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DA HANSENÍASE
Luiza Porto de Faria1
Resumo: O presente trabalho parte da hipótese de que, no tempo presente, existe uma disputa de memórias em
torno da doença causada pelo bacilo de Hansen. Entende-se que existe uma série de enunciados diferentes que
circundam o fenômeno etiológico atualmente chamado de “hanseníase”. Tal disputa está articulada entre dois
discursos principais - o “discurso da hanseníase” e o “discurso da lepra” – que competem pelos sentidos da doença
e das internações compulsórias. Por esses motivos, os termos “doença”, “lepra” e “hanseníase” serão discutidos a
fim de dar nome às coisas e explicar o porquê da utilização de um ou outro a cada momento do trabalho. A fim
de problematizar este fenômeno, o trabalho analisará, à luz das teorizações foucaultianas, quatro entrevistas de
história oral temática realizadas para esta pesquisa.
Abstract: The present work starts from the hypothesis that, in the present time, there is a dispute of memories
around the disease caused by Hansen's bacillus. It is understood that there is a series of different statements that
surround the etiological phenomenon currently called “leprosy”. This dispute is articulated between two main
discourses - the “leprosy discourse” and the “haseníase discourse” - which compete for the meanings of the disease
and compulsory hospitalizations. For these reasons, the terms “disease”, “leprosy” and “leprosy” will be discussed
in order to name things and explain why one or the other is used at each moment of the work. In order to
problematize this phenomenon, the work will analyze four thematic oral history interviews carried out for this
research in the light of Foucault’s theories.
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Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina
(PPGH/UDESC). Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
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1984, foi professor de História dos Sistemas de Pensamento no Collègge de France, sua cátedra
definitiva. Foucault faleceu aos 57 anos, vítima de complicações no quadro de soropositividade
(CORRÊA, 2016).
A tarefa de qualificar o pensamento de Michel Foucault é uma empreitada de caráter
mais didático do que classificatório. O próprio pensador não se considerava um estruturalista,
pós-estruturalista ou pós-moderno - nem mesmo se definia como um teórico. Segundo Foucault:
Antes de tudo, Foucault defendeu que os métodos existem para instigar o pesquisador e
não para garantir a previsibilidade da pesquisa. Isso significa que uma pesquisa nunca é
previamente definida pelo método, ou seja, seu trajeto é sempre desconhecido. Por conseguinte,
os resultados da pesquisa se transformam e necessariamente transformam a forma de pensar do
pesquisador.
Segundo Veiga-Neto (2009), a forma de pensar proposta por Foucault colocou o autor
na contramão da ciência moderna. A racionalidade moderna buscava por teorias absolutas que
permitissem alcançar a verdade. Além disso, também defendia a existência de um conhecimento
fundamental, de um sujeito racional e de objetos pré-concebidos. Foucault não encarava a
pesquisa dessa forma e descartava tais concepções.
Se eu tivesse de escrever um livro para comunicar o que penso, antes de começar a
escrevê-lo, não teria jamais a coragem de empreendê-lo. Só o escrevo porque não sei,
ainda, exatamente o que pensar sobre essa coisa em que tanto gostaria de pensar. [...]
Cada livro transforma o que eu pensava quando terminava o livro precedente
(FOUCAULT, 2010, p. 289-290).
Em suma, para Foucault, todo pensamento é provisório. Não existem verdades perenes.
Isso não significa dizer que tudo é mentira. De fato, existem muitas verdades, - umas menores,
outras maiores - nenhuma essencial enquanto efeito real imposto ao sujeito. O autor parte das
singularidades cotidianas para questionar generalidades universais, sendo que o objetivo de sua
filosofia é questionar os limites do conhecimento. Para Veyne (1998), o pensamento de
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Foucault é o de um inconformista (não de um esquerdista, de um socialista, de um freudiano ou
de um progressista), o autor usa a filosofia para dissipar as evidências e transformar os caminhos
do próprio pensamento.
A batalha pela memória é algo comum quando se trata de eventos traumáticos. Entre
1924 e 1962, o Estado Brasileiro internou compulsoriamente pessoas atingidas pela hanseníase
nos mais de 30 asilos-colônias construídos para conter a doença. Os antigos leprosários
mantiveram o confinamento até a década de 1980, quando foram reformados e transformados
em centros de saúde. No tempo presente, esses espaços carregam uma memória incomoda e
provocam dissensos acerca da história recente do país.
Segundo Samantha Quadrat (2018), o termo “temas sensíveis da História” identifica eventos
traumáticos ou catastróficos, marcados por situações-limite de violência ou violação de direito
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humanos. São passados difíceis que reverberam no presente, exigindo tratamento especial dos
pesquisadores do ponto de vista ético e moral. As internações compulsórias nas colônias para
“leprosos” (como os doentes eram chamados na época) se estenderam até 1980 e deixaram uma
marca indelével na sociedade, o que faz com que sejam consideradas um tema sensível da
história.
O presente trabalho parte da hipótese de que, no tempo presente, existe uma disputa de
memórias em torno da doença causada pelo bacilo de Hansen. Entende-se que existe uma série
de enunciados diferentes que circundam o fenômeno etiológico atualmente chamado de
“hanseníase”. Tal disputa está articulada entre dois discursos principais - o “discurso da
hanseníase” e o “discurso da lepra” – que competem pelos sentidos da doença e das internações
compulsórias. Por esses motivos, os termos “doença”, “lepra” e “hanseníase” serão discutidos
a fim de dar nome às coisas e explicar o porquê da utilização de um ou outro a cada momento
do trabalho.
Se você for analisar antigamente... Se você falar leproso, a gente não gosta. É
hanseníase, você entendeu? É hanseníase. Então, antigamente, os hansenianos eram
trancados dentro de loca - no início da Bíblia. Se saísse para fora, era apedrejado. Tem
mentalidades pobres e medíocres que acreditam nisso até hoje: que o hanseniano, ou
o ex-hanseniano, é uma ameaça onde ele passa (Fidelcino Gomes, 2022).
Fidelcino Gomes é um dos ex-pacientes da antiga Colônia Santa Isabel entrevistado para
a construção do dossiê de história oral que embasa essa dissertação. A oralidade foi utilizada
como ferramenta para a escrita da história aqui reproduzida, sendo que uma série de análises
sobre a metodologia da história oral são destrinchadas ao longo do texto.
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compor um grupo amplo de entrevistados foi possibilitar a análise comparativa das entrevistas
e identificar atravessamentos entre os discursos narrados. Metodologicamente, esses grupos
foram pensados da seguinte forma: um grupo de pessoas que se identificam com aquilo que,
nesta pesquisa, é chamado de “discurso da hanseníase”. Eva, Luís e Fidelcino representam este
primeiro núcleo de antigos pacientes da Colônia Santa Isabel internados depois do advento das
sulfonoterapia.
O segundo grupo de entrevistados representa o “discurso da lepra” e é composto por
indivíduos idosos que apresentam sequelas físicas e/ou emocionais decorrentes da internação e
de tratamentos medicamentosos alternativos. São indivíduos cuja internação remonta os
primeiros antes da política isolacionista.
O terceiro grupo buscou representar o discurso da hanseníase por meio de agentes
ligados ao Morhan (Movimento de Reintegração das pessoas afligidas pela Hanseníase), por
familiares ou por pessoas próximas à causa que se envolveram diretamente na luta contra o
preconceito e em prol da conscientização da hanseníase no Brasil. O último grupo de
entrevistados foi estruturado a fim de pensar a doença e a instituição de sequestro por meio da
fala de antigos membros da direção da colônia, médicos, enfermeiros ou outros indivíduos que
desempenharam posições de autoridade dentro do hospital.
Hoje eu tenho orgulho de falar que eu amo a Colônia Santa Isabel. E eu morria de
medo de falar. Mas, a partir do dia que eu cheguei na casa da minha irmã e ela me
disse: “Não fala que você mora na Colônia”. Eu decidi: A partir de hoje eu vou falar
que eu moro na Colônia. Aqui é a minha terra. Hoje, aqui é a minha terra natal. Se for
para eu voltar para onde eu nasci, eu não quero. Então, hoje, eu represento a Colônia
(Luís Coutinho Silva, 2022).
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Heráclides César de Souza-Araújo (1886-1962) Entidade custodiadora: Fundação Oswaldo Cruz. Casa de
Oswaldo Cruz.
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Nesta pesquisa, escrever uma história pública no tempo presente significa compartilhar
a autoridade da escrita da história com os sujeitos vivos, que vivenciaram a hanseníase e o
isolamento compulsório nos hospitais-colônias brasileiros ao longo do século XX. Para isso, a
história oral foi utilizada como ferramenta metodológica e as entrevistas realizadas
compuseram o dossiê de fontes orais e escritas.
Partindo do pressuposto de que os documentos não são traduções de uma realidade
passada, a análise dos discursos inerente às entrevistas teve como objetivo desconstruir essas
narrativas com o mesmo rigor com que foram construídas. Destaca-se que o mesmo tratamento
dado às fontes orais será dirigido às fontes escritas. Ao longo do texto, os documentos não serão
tomados como expressão da realidade objetiva, ou seja, como signo das coisas reais, mas
servem para analisar como tais indivíduos lembram e como lembram.
Em meio a esta batalha por memória, como a história pública pode contribuir para a
maior circulação do “discurso da hanseníase” e para a desetigmatização dos sujeitos atingidos
pela doença?
Como explicado, o termo “lepra” e seus derivados são utilizados neste trabalho para
designar um conjunto de discursos marcado pelo estigma da doença. Esta narrativa é marcada
pela permanência da experiência do isolamento compulsório e pelas marcas físicas e
emocionais nos indivíduos cujas vidas foram atravessadas pelas “instituições de sequestro”
Um dos principais desafios colocados neste estudo é construir um novo olhar para as
dinâmicas da história e para as condições de possibilidade que edificaram os saberes em torno
da lepra e da hanseníase. Ao longo das entrevistas, os narradores rememoram suas experiências
e, em alguns momentos, as ressignificaram. A memória apareceu como um processo contínuo
de elaboração e reconstrução de sentido. É nesse ponto que a história pública demonstrou seu
potencial.
Uma vez expressos pela oralidade, esses sentidos puderam ser interpretados pelo
historiador. A interpretação das entrevistas e a análise dos discursos que atravessam as
narrativas demonstrou que os eventos em torno das internações compulsórias nos hospitais-
colônias de hanseníase produziram determinados discursos e determinadas memórias.
Essas memórias, provocados no momento das entrevistas, puderam ser levadas para fora
dos limites da Colônia Santa Isabel. A produção acadêmica realizada produziu novas
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sensibilidades e criou um canal de comunicação efetivo com públicos mais amplos
(SANTHIAGO, 2016). Ou seja, a história feita com e pelos entrevistados gerou uma devolução
para estes sujeitos.
Referências
CORRÊA, Erick Quintas. A repercussão do maio de 68 no pensamento de Michel Foucault.
Revista Angelus Novus, p. 165-178, 2016.
FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 23ª
ed., 2000.
QUADRAT, Samantha. É possível uma história pública dos temas sensíveis no Brasil. Que
história pública queremos, 2018, p. 213-220.
SANTHIAGO, Ricardo. Duas palavras, muitos significados: alguns comentários sobre a
história pública no Brasil. História pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra
e Voz, p. 23-36, 2016.
VEIGA-NETO, Alfredo. Teoria e Método em Michel Foucault: (im)possibilidades. Cadernos
de Educação, Pelotas, n. 34, p. 85-94, set./dez. 2009.