Talvez porque o inconsciente seja extenso no tempo e no
espaço, há uma época da vida em que começamos a nos deparar com a envelhescência. Não se trata, evidentemente, de uma formação do inconsciente nem de uma alteração da sexualidade humana, como ocorre na adolescência, ainda que homens e, especialmente, mulheres se defrontem, nessa época, com o fantasma da impotência, da frigidez e da ejaculação precoce; com o fantasma da decadência do corpo. Pensar na envelhescência como um desencontro pode ser frutífero. O desencontro entre o inconsciente atemporal e o corpo, âmbito da temporalidade. Na adolescência, o sujeito freqüentemente se espanta com as transformações que ocorrem no corpo: a voz engrossa, a barba nasce, o esquema corporal muda, os seios aparecem, a menstruação desce. São muitas e assustadoras as transformações que ocorrem no corpo durante a adolescência, já que, nessa época da vida, o sujeito se vê, de resto, como sempre, uma criança. Só que, nesse momento da vida, ele enfrenta, também, a adultez desconhecida e misteriosa. Algo semelhante ocorre na envelhescência. Quando menos se espera, a vista não mais alcança, o ouvido não mais ouve, a pele enruga, os cabelos caem, o peso
Anigo publicado originalmente no Boletim de Novidades da Livraria Pulsional.
São Paulo: Escuta. 9(91): 5-8. 1996. 194 METAPSICOLOGI A
torna-se um problema e só a alma o sujeito a uma redescrição de seu
permanece jovem, em evidente próprio mito. É nessa época da vida descompasso com seu envelope. que se pode perguntar, mais uma vez, Nesse lento e inexorável processo, o "para o que mesmo eu estou vivo?", que mais choca, freqüentemente, é ainda que essa pergunta não seja perceber que os jovens ficam cada característica da envelhescência. vez mais jovens em certos contextos, Em outras palavras, a como se a juventude ficasse cada vez envelhescência aponta para uma mais distante. redescrição do narcisismo primário, Da mesma maneira que na que, na ótica do sujeito, é visto como adolescência o sujeito se percebe sua própria herança. Perguntar "o que diante de um futuro desconhecido e foi mesmo que her- assustador, na envelhescência ele se surpreende pensando na proximidade da morte, a inseparável companheira da vida. Os projetos já não podem ser pensados a longo prazo, pois este se reduz a dez ou vinte anos, no máximo. Além disso, o corpo já não responde a certos estímulos do desejo. Esforços prolongados são inviáveis, pois a resistência necessária a qualquer trabalho mais intenso e prolongado fica reduzida. O sujeito se vê, então, muitas vezes, na contingência de recriar sua rotina diária e repensar seu trabalho, adaptando-os às novas exigências corporais. Nessa época, como na adolescência, pode ocorrer radicais modificações no eu diante dos ideais. Enquanto, na adolescência, o sujeito se vê na incômoda posição de ter de abandonar o sonho de ser o salaminho da mamãe para se defrontar com o seu próprio salaminho - e isso vale tanto para homens como para mulheres -, na envelhescência o sujeito se depara com sonhos que acalentou durante muito tempo e que não podem ser mais sonhados por evidente falta de tempo. Sonhar, por exemplo, em fazer uma carreira política, iniciando-a aos sessenta anos, parece uma completa estultície. Claro, é sempre possível reduzir a abrangência do sonho. Fazer carreira política é loucura, mas ainda dá para fazer política, por que não? É nessa época que começamos a pensar no possível e não mais no ideal como algo que pode ser alcançado. Pensamentos desse tipo apontam para uma certa limitação tanto do eu ideal como do ideal de eu e podem remeter A ENVELHESCÊNCIA l95
dei de meus antepassados?" pode lançar o sujeito a uma
reconstrução de sua própria pré-história, num momento em que ele é o mais jovem sobrevivente. Todos os seus antepassados já não existem e ele percebe, entre horrorizado e conformado, que os que falecem são cada vez mais jovens, com idades cada vez mais próximas da sua. Se envelhecer se manifesta no corpo, pode-se ficar velho sem passar pela envelhescência. Prova disso é que, freqüentemente, esbarramos com velhos adolescentes, velhos jovens, jovens velhos e assim por diante. A envelhescência é um momento muito específico, tal como a adolescência, que pode ser vivida de múltiplas maneiras. Esse encontro da alma sem idade com o corpo que envelhece só compõe a envelhescência se for vivido de forma a mais natural possível. Nada de lamentações, nada de ações reativas, nada de operações plásticas, nada de ginásticas, de alongamentos, de caminhadas diárias. Tudo isso compõe outros momentos que, muitas vezes, fazem parte do envelhecer. A envelhescência, por sua vez, é puro reconhecimento desse estranho encontro que adquire um efeito de significante. A envelhescência é um significante como o ato falho, o sonho ou o dito espirituoso. Talvez seja até mais do que isso, pois supõe, necessariamente, um trabalho do eu, enquanto o sonho, o ato falho, o dito espirituoso podem se resumir num sintoma que se repete interminavelmente sem produzir, jamais, um efeito de subjetivação. A envelhescência é um ato de subjetivação! Porém, não é só no encontro do espírito com o corpo que envelhece que a envelhescência se manifesta. A envelhescência produz, no imaginário do sujeito, uma radical modificação de seu lugar. Ele se descobre mais sozinho do que nunca, ainda que possa estar rodeado de um grande número de pessoas com quem interage cotidianamente. Esse ser sozinho resulta do reconhecimento de que seus antepassados já não existem e que seus filhos se afastaram porque se tornaram adultos. Nessa circunstância, a memória deixa de ter um caráter familiar e passa a ser uma propriedade privada do envelhescente. Trata-se, provavelmente, de uma intensa sensação de individualidade, pois as memórias não são mais compartilháveis, já que não há mais uma comunidade de referência que freqüentemente se manifesta por lembranças de eventos vividos 196 METAPSICOLOGI A
coletivamente. Essa memória não é compreensivo, que evita grandes
composta por grandes ocorrências solicitações do próprio corpo, que que estão registradas na história, mas não agüenta mais tensões por pequenas ocorrências que se prolongadas. enlaçam a fatos históricos e que Outro âmbito da vida que requer designam a pertinência a uma novos cuidados do sujeito na geração. Um cantar de galo na envelhescência é o da alimentação. O madrugada, um aroma que remete a corpo não tolera certas bebidas e uma série de fatos cujos partícipes já certas comidas. Beber, então, é não mais existem ou simplesmente possível se a bebida é mais leve, são inalcançáveis. Essas memórias menos forte e se for praticado com lançam o sujeito ao reconhecimento muito mais moderação do que na de sua solidão e, ao mesmo tempo, de juventude, quando o corpo era tratado que participou da história. Trata-se, como se tudo pudesse. Inventar portanto, não só de uma sensação de comidas menos gordurosas, menos individualidade, mas, também, de cidadania. Neste sentido, a envelhescência se destaca da adolescência quando pretendemos mudar o mundo, fazermos história. Na envelhescência, o sujeito encontra-se empenhado em refazer sua própria história, de forma que ela possa se adequar ao corpo que envelhece. A envelhescência se distingue do envelhecer porque este é considerado, em nossa sociedade, como um estágio da vida que é desprezível. Os velhos são considerados uma espécie de praga que ataca as contas da previdência social, encarece o seguro saúde, pesa na vida dos mais jovens. Na envelhescência, ao contrário, o sujeito se vê na contingência de ter de pensar sua velhice, ou seja, distingui-la do preconceito e do estigma para que possa ser vivida com um mínimo de dignidade. Esse trabalho de pensamento é, via de regra, um esforço solitário, que pode enriquecer o mundo interno do sujeito. Por tudo isso, a envelhescência produz no sujeito uma certa tolerância, que raramente é vista nos mais jovens. Nela descobre-se, a posteriori, que todas as idades do homem possuem suas próprias limitações e que elas devem ser toleradas em nome de uma economia corporal. Os deslizes de cada um adquirem uma certa desimportância. Além disso, certas atitudes rígidas cedem lugar a um pluralismo A ENVELHESCÊNCIA l97
farináceas e. principalmente, mais delicadas pode se tornar um
trabalho muito enriquecedor. Mas, de qualquer forma, muitas vezes isso perturba o outro, que tem dificuldade em entender nossa frugalidade. A envelhescência é, então, uma época em que se descobre que desagradar o outro não só é necessário como. também, nos distancia da sedução. Ou melhor, a sedução já não pode ser praticada indiscriminadamente, pois, novamente, o corpo não suporta sustentar certas promessas que fazemos ao outro com a fantasia de agradá-lo. Freqüentemente, os sujeitos que se vêm diante da velhice adotam práticas maníacas que lhes dão a sensação d<- que ainda são jovens. Festas, bailes, jantares, comemorações, encontros tomam completamente o tempo e impedem ter de enfrentar o trabalho de reinventar o cotidiano em virtude das novas exigências da vida. Nesse sentido, essa forma de envelhecer muito se parece com os adolescentes, aqueles que, diante da contingência de terem de adentrar o mundo dos adultos, optam por um retorno à infância. Enfim, a envelhescência é a arte de viver a velhice e requer muito engenho e muito empenho, podendo ser, ao mesmo tempo, triste e divertida, animada e desanimada, ativa e sem atividade, podendo, enfim, ser como o resto da vida. Porém, como toda arte, há uma solicitação à estética do próprio corpo, que pode fazer dele um belo elemento que muita satisfação pode trazer ao seu portador e aos que com ele convivem. Nesta época da vida, um discreto charme, uma indisfarçável elegância, uma graça nos movimentos, uma alegria derivada da vida vivida podem fazer toda a diferença entre o envelhescer e a envelhescência. Na envelhescência não há lugar para a crítica social destrutiva, para os radicalismos juvenis e até mesmo infantis que podem, perfeitamente, ser substituídos por novas interpretações que revelem a experiência e a capacidade de pensamento a favor da vida. O que estou propondo, então, é que a envelhescência é uma recriação do eu diante das exigências pulsionais e as novas exigências do corpo que se aproxima da morte. Dadas as funções que o eu desempenha no psiquismo humano - a função sintética e a função administrativa -, ele é uma verdadeira criação cotidiana e é solicitado a constantes rearranjos diante da dinâmica realidade. 198 METAPSICOL OGIA
Um eu rígido, que não responde com
criatividade às exigências internas e externas que lhes são feitas, corre o grave risco de rotinizar o cotidiano, podendo acabar como um simples instrumento enfraquecido e estereotipado. A envelhescência é uma boa oportunidade para a flexibilização do eu e, portanto, para a saúde mental do sujeito.
Publicado em Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000, p. 193-198.