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~tOCl!~~O~ dl! mudança l!

m gtu~o~
matginalizado!: ~Q.[a "dQ.fcillncia"
Q ~Q[a VQ[hiCQ "inca~acitada"

Re~umo Ab~ttact

A longevidade dos seres humanos demanda novos The longevity of the human beings demand new
olhares à qualidade de vida das pessoas. Grupos glances to the quality of the people 's life. Groups
geralmente marginalizados como o de pessoas com usuaslly marginalized as those of people with
história de deficiência ou aqueles compostos pela deficiency history, or those composed by the
velhice "carente" destacam-se neste panorama como neglected elderies, stand out in this panorama as the
alvos de atenção. O presente artigo relata um traba­ targets of attention. The present article report a work
lho que estudou a viabilidade de uma formação whith had studied the viability of na occupacional
ocupacional para os primeiros, como mediadores formation for the first groups, whose members
de atividades artísticas e de lazer, e para as senho­ became the mediators of artistic and leisure activities
ras que vivem num asilo situado numa das praias de for ladies who live at an asylum located in one of the
Florianópolis. Com base em aportes teóricos de Florianópolis's beaches. Based on the theoretical
Vygotski e Feuerstein, foi possível acompanhar os contributions of Vygotski and Feuerstein, was
processos de compensação e modificabilidade possible to accompany the compensation and
vivenciados. changeability processes lived by the participants.

P::lI::lvt::ll:-cn::lve: história de deficiência, velhice, mudança. Key wotdl:: deficiency history, age, change.

rnttodução objetivos, metas e desejos parecem não mais cogita­


dos como possíveis de serem alcançados. Este qua­
o desenvolvimento da ciência, mais especifica­ dro agrava-se, particularmente, nas instituições de
mente da medicina, vem proporcionando um aumento amparo à velhice onde resta como atividades às pes­
na longevidade dos seres humanos. No entanto, este soas que lá estão apegarem-se à televisão e, muitas
aumento tem sido mais quantitativo do que qualitati­ vezes, a alguns trabalhos manuais feitos de forma
vo, já que ao se atingir uma certa idade cronológica, mecânica e isolada.

1 Professora do EED/CED/UFSC. Doutora em Psicologia da Educação pela PUC/SP. Pesquisadora do NUCLEIND/CED/


UFSC.

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Se este quadro parece dramático, para pessoas com constituição de um novo devir.
história de deficiência2 ele piora ainda mais. Em geral, Assim, ambos os grupos em processo de mútua
esta parcela da população passou a vida inteira sendo ro­ constituição mediaram o aparecimento de novas possi­
tulada, marginalizada, sem desenvolver-se no sentido da bilidades de desenvolvimento.
construção de sua história como sujeito atuante e crítico.
Conseqüentemente, quando atingem a fase adulta, dis­
põem fundamentalmente do legado social que as estig­
matizou como deficientes. Isto se deve em grande parte
ao modo como historicamente o conceito de deficiência Os fundamentos teóricos do trabalho desenvolvido
foi construído. A velhice dessas pessoas é, indiscutivel­ basearam-se fundamentalmente nos dois autores cita­
mente, outra questão séria a ser considerada. dos. Sua escolha deveu-se principalmente à perspectiva
Nesta perspectiva, e preocupados com a gravida­ que esta pesquisa teve: a de buscar formas de ativida­
de da matéria, é que se pensou em estudar a viabilidade des que auxiliassem os sujeitos na busca de estratégias
de uma oficina para formação ocupacional de pessoas de mudança frente às trajetórias de vida anunciadas a
com história de deficiência voltada ao trabalho com pes­ quem é portador de um diagnóstico de "deficiência men­
soas idosas institucionalizadas (idosos carentes). O ca­ tal" ou de velhice "incapacitada".
ráter do trabalho pautou-se na compreensão de que tra­ L. Vygotski (1991c) define a deficiência a partir de
balhar com idosos marginalizados poderia ser uma for­ duas noções: a primária e a secundária. A primária
ma de preparar a sua própria velhice, e que participar de concerne ao biológico, como as síndromes, as
processos de mudanças poderia ser uma forma de mo­ malformações orgânicas, entre outras, ou seja, aquilo que
dificar-se. A inspiração na qual se baseou esta iniciativa se refere às características físicas do sujeito possuidor de
se deve a Reuven Feuerstein (1985) que desenvolveu deficiência. A secundária compreende o social, a forma
em Israel trabalho semelhante através de seu programa como o sujeito que possui tais características se desen­
de Experiências de Aprendizagem Mediada e volve, tendo como base as interações sociais constituidoras
Modificabilidade Cognitiva. do sujeito que é. Entende-se que os problemas da velhice,
Procurou-se, também, apoio teórico nas idéias de em geral, podem ser definidos desta forma. Ou seja, que
compensação dialética da deficiência em Vygotski (1995). para além das questões físicas características do ser ve­
Ou seja, de que as possibilidades de mudança, de trans­ lho, o que há de mais significativo na constituição da ve­
formação sejam pautadas não em determinações nega­ lhice são, sem dúvida, os próprios olhares de uma socie­
tivas, mas em processos edificadores de uma nova tra­ dade que marginaliza aqueles que considera incapaz para
jetória qualitativa. Desta maneira, e para além das ca­ a resolução de suas demandas. Daí o termo incapacidade
racterísticas orgânicas próprias da deficiência, centrou­ estar diretamente associado aos que, como no caso da
se a atenção nos processos secundários ou culturais (in­ maioria dos velhos no Brasil, estão de acordo com o que é
diretos em relação a questões biológicas em si), isto é, proposto através deste legado.
de enraizamento na cultura. A experiência da troca de Esta diferenciação deriva da visão de desenvolvi­
papel de apenas aprendiz para ser mediador de apren­ mento que Vygotski (1991c) possui, quer dizer, que se
dizagens impulsionadoras do desenvolvimento foi um dá pela interação histórico-dialética entre o biológico e o
ponto decisivo em todo o processo de "treinamento". social na e pela mediação dos signos culturais. Isto sig­
Quanto à velhice, o desenvolvimento de processos nifica que o homem possuidor de um complexo biológico
de resistência ao legado social de que "velho não apren­ é parte orgânica do social, estabelecendo relações com
de mais" e de que a "atividade criadora está em seus semelhantes através dos signos culturais, modifi­
descenso" foram, talvez, a principal batalha travada na cando o meio e sendo modificado por este.

2 A utilização do termo "pessoas com história de deficiência" procura modificar o foco deficientizador localizado no sujeito em
si para que se considere a construção da sua história, nas relações que travou durante sua vida. Termo cunhado na
realização da Tese de Doutorado de Silvia Zanatta Da Ros, intitulada: Cultura e Mediação em Reuven Feuerstein: relato de
um trabalho pedagógico com adultos que apresentam história de deficiência. São Paulo, 1997, PUC - SP.

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Para tanto, a aprendizagem torna-se fundamental A proposta pedagógica caracterizou-se pelo
para Vygotski, que a vê intimamente ligada ao desen- enfrentamento do fracasso enquanto legado social e pela
volvimento, favorecendo-o e impulsionando-o. A este crença de que os transtornos primários, como chama
aspecto está ligada a concepção de dois níveis de de- Vygotski (1995), presentes ou não no caso das deficiên-
senvolvimento: o real, que constitui o que o sujeito já cias ou da velhice, não encerram em si toda a responsa-
conquistou; e o proximal (Zona de Desenvolvimento bilidade das dificuldades apresentadas pelas pessoas. Por
Proximal- ZDP), que representa o que o sujeito pode este motivo, e ainda de acordo com esse autor, é impor-
apresentar através de mediações que visam a novas tante não a deficiência por si mesma, não a insuficiência
aprendizagens propulsoras do desenvolvimento por si mesma, o defeito, mas a reação como resposta à
(Vygotski, 1981b). Para as pessoas com diagnóstico dificuldade. Reação às conseqüências ou respostas
de deficiência ou aquelas que são consideradas inca- àquilo que sua deficiência ou incapacidade provoca em
pazes por estarem velhas e não corresponderem às relação às expectativas da cultura.
expectativas daquilo que é culturalmente esperado, isto A partir desta possibilidade de reação, Vygotski de-
é extremamente significativo. senvolveu a idéia da compensação aos transtornos se-
Em termos conceituais, a ZPD de Vygotski cundários que pode ser traduzida pelo movimento de luta
corresponde à zona de modificabilidade em Feuerstein, e resistência do sujeito ao legado social. O plincípio da
ou seja, à capacidade de transformação do sujeito a par- compensação pode ser explicado como aquele no qual o
tir de relações mediadoras de novas formas de apropri- sujeito, criança ou adulto, envolve-se na vida social, cole-
ação da cultura. Esta plasticidade do ser humano deve tiva, e em processos que favorecem o desenvolvimento
levar em conta o processo de aprendizagens superiores das atividades cognitivas superiores, independentemente
que impulsionam o desenvolvimento e a autonomia do dos problemas primários que marcam a história da pes-
sujeito frente às demandas culturais. Feuerstein diz que soa: "(...) as dificuldades objetivas (...) são fonte, estímu-
a relação deve lo primário para o surgimento dos processos de compen-
sação. Estas dificuldades ela trata de evitar ou de vencer
exprimir a idéia de um processo voltado à au-
com a ajuda de uma série íntegra de formação que não
tonomia do sujeito (. ..). Há um produto especí-
estão dadas inicialmente em seu desenvolvimento (...) e
fico de experiências de aprendizagens superi-
para superá-las, se vê forçada a avançar por uma via
ores (. ..) para responder não a um ambiente
indireta. Observamos que do processo de interação (...),
constante e estável, mas a situações e circuns-
cria-se a situação que a empurra para a via da compen-"
tâncias que estão em constante modificação
sação." (Vygotski, 1991c, p.1ÜG) (Grifo nosso)
(Feuerstein, 1983, p.34).
Neste processo de enfrentamento, destacam-se
Feuerstein ressalta a importância das Experiências como meios auxiliares ao desenvolvimento a linguagem,
de Atividade Mediada, chamando a atenção para o fato a palavra e outros signos. Mesmo na ausência da pala-
de que os processos de pensamentos não são inatos ao vra falada, outros instrumentos, outros recursos podem
sujeito, mas sim constituídos nas interações mediadas a ser mediadores da chamada compensação que se reali-
estes fins. A mediação aqui deve ser entendida não como za, como se disse, tendo em vista as atividades superio-
uma forma de interação em si, mas sim como uma rela- res de pensamento deflagradas na relação com pares
ção dialética dos homens com a cultura e do movimento mais experientes. As atividades artísticas parecem, se-
de significação desta relação que está em constante pro- gundo o exposto, estar em perfeita consonância com os
cesso de mudança. demais recursos mediadores da compensação, dadas as
Neste contexto teórico, as alterações orgânicas por possibilidades semi óticas nelas contidas. O coletivo, o
deficiência ou velhice podem ou não se constituir em in- grupo, constitui-se como fonte destes processos, uma
capacidade. Com este argumento, Vygotski chama a aten- vez que é constituído por e constitui espaços de media-
ção para a peculiaridade do desenvolvimento destes su- ção semiótica: "O papel dos meios auxiliares (...) tam-
jeitos que em geral só são lembrados por não se enqua- bém conduz a um segundo postulado fundamental que
drarem no padrão tido como normal. Não são levadas em caracteriza os processos de compensação que é o pos-
conta as possibilidades, mas somente os fracassos. tulado sobre o coletivo como fator de desenvolvimento
N a pesquisa, e considerando o exposto para além das funções psicológicas superiores (...)." (ibid., p.1ÜG)
da detecção das perdas próprias da história de defici- Na vida social coletiva, em que o processo de medi-
ência, ou da velhice e do enquadramento das pessoas ação instiga a relação com o mundo e com os demais
com história de deficiência em um dos diagnósticos sujeitos priorizando o significado e não a "coisa" ou o indi-
clássicos que enfatizam estas perdas, o que se procu- víduo, destaca-se como essencial o caráter criador desta
rou foram as possibilidades de sucesso destes sujeitos. relação. Equivale dizer que, considerando as particulari-
Isto tanto no que se refere a questões intelectuais quan- dades próprias das histórias de deficiência ou da velhice,
to aos processos afetivos que permitem constituir co- o estabelecimento de estratégias para o enfrentamento
letivos voltados ao vir-a-ser. das demandas da sociedade faz-se fundamental.

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Esta lei de compensação aplica-se também a qual- gará aos 70 anos em 2025. 3 Porém, este aumento é quan-
quer sujeito. Por exemplo, diante da falta de memória, titativo e não qualitativo, pois a tecnologia que auxilia a
como estratégia, pode-se desenvolver uma acurada ob- viver mais não prepara para os "maus momentos" da
servação para a retenção dos dados ou um exercício de longevidade.
categorização daquilo que se vê. Isto é, uma grande quan- Em sua maioria, diz-se que a velhice "pega" as
tidade de dados, objetos ou outros, ao serem vistos, são pessoas desprevenidas, mas o que realmente ocorre é o
imediatamente classificados em categorias: frutas, brin- não se dar conta de que se está, desde O nascimento,
quedos, peças do vestuário, etc., O que facilita a num processo de envelhecimento:
memorização. O sujeito utiliza estratégias criativas e
Se o envelhecimento é o tempo da idade que
conscientes para ordenar recordações, como compen-
avança, um processo irreversível que diz res-
sação de sua dificuldade.
peito a todos nós, a velhice poderia também
A compensação não se dá no sentido de reparo Uá
ser entendida como um estado que diz respei-
que estamos utilizando as palavras defeito, problema,
to às singularidades e que não está vinculado
incapacidade), "o qual não é possível em grande parte"
às idades, mas a modos de experimentação
(Vygotski, 1991c, p.9), mas no enfrentamento das con-
da própria existência e que, portanto, não pode
seqüências sociais, como já se ressaltou várias vezes,
ser compreendida fora das condições concre-
porque a "deficiência" ou a "incapacidade" por velhice
tas do cotidiano. (Sais, 1995, p.7)
desenvolvem-se num contexto de relações pautadas em
experiências sociais formalizadas para um tipo determi-
nado de pessoa. Tais exigências são colocadas de ante-
A txpe~iªncia De!:envolvida
mão como premissa de normalidade para o desenvolvi-
mento de todas as pessoas. Por isso o movimento de
compensação não se processa livremente, mas "seguin- Criou-se, assim, a oficina de "Mediadores em ati-
do um curso social determinado." (ibid., p.10) vidades artísticas e de lazer para a terceira idade", que
Aliás, Vygotski propõe que se inverta a equação teve seu início em setembro de 1997 e congregou, até a
que tem como termos o defeito ou a incapacidade e as sua finalização, oito pessoas adultas. Destas, a maioria
conseqüências prejudiciais: diz que O defeito se instala a registra história de deficiência em sua vida, uma vez que,
partir das conseqüências, pois os instrumentos materi- apenas no primeiro semestre de 1999, abrimos oportuni-
ais, as instituições psicológicas e sociais onde se inscre- dade para inscrição de outras pessoas da comunidade
vem as leis ou previsões de aprendizagem e suas "re- em geral.
gras de efetivação" pela educação foram produzidas por As atividades desenvolvidas na oficina dividiram-
uma dada civilidade, que também as produz, se em dois momentos: o primeiro, às segundas-feiras, no
dialeticamente. A pessoa com história de deficiência ou Departamento Artístico e Cultural da UFSC, e o segun-
os velhos "enquadram-se" nesta civilização e do, às terças-feiras, na SEOVE, uma instituição de am-
condicionam-se em relação a elas, tentando uma cor- paro à velhice situada na praia do Campeche -
respondência às pautas previstas e esperadas para um Florianópolis. Às segundas-feiras, concentrávamos es-
dado crescimento e um dado desenvolvimento humano forços no trabalho realizado pelas pessoas com história
padrão de uma sociedade. de deficiência, o qual chamamos, com Vygotski (1991c),
Ao enfrentamento das conseqüências sociais, de vivência estética, ou seja, a realização de atividades
Feuerstein (1995) chama de "stress" positivo, pois con- de arte e lazer.
figura-se como um obstáculo que proporciona desafios Tais pessoas foram consideradas como mediado-
ao sujeito que, ao ultrapassá-lo, modifica-se e desenvol- res, uma vez que seu papel não era o de instrutores so-
ve-se. Para este autor, o desenvolvimento também está mente, mas de alguém que, através das atividades pro-
ligado à aprendizagem mediada e impulsionadora de tal gramadas, pudesse, a todo momento, estabelecer rela-
desenvolvimento. Ou seja, aqui também a deficiência ou ções do feito e do vivido com aspectos que tivessem a
a incapacidade se constitui nas relações com o outro, ver com elementos afetivos e intelectivos de quem co-
podendo ser constituidora delas ou criadoras da possibi- ordenava a atividade e de quem as realizava. Mediar,
lidade de modificabilidade. neste caso, significava esforçar-se para que a atividade
No tocante à questão da velhice mais especifica- não se resumisse ao fazer pelo fazer, simplesmente, mas
mente, é preciso dizer que o Brasil possui uma popula- que fosse estabelecida uma relação indireta com o pro-
ção que está envelhecendo cada vez mais tarde, como duto do trabalho para chegar ao que mais importava:
em vários outros países do mundo. A perspectiva de vivenciar possibilidades de mudança, falar sobre elas,
vida do brasileiro está aumentando e estima-se que che- apropriar-se do modificar-se e com prazer. O grande

3 Fonte: SAIS, Almir Pedro. Coisas de Velho: coisas de vida. São Paulo, 1995. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica),
PUC-SP.

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objetivo) então) era vivenciar) através de experiências do centro da cidade até o bairro onde se localiza tal ins-
estéticas (artes plásticas) e de lazer, a possibilidade de tituição, que demandava um exercício de autonomia sem
sensibilização à mudança, à transformação. precedentes para algumas pessoas do grupo: o de reali-
Vale ressaltar, novamente, que a oficina se cons- zar o percurso de ônibus, primeiramente acompanhados
tituiu, fundamentalmente, no estudo da viabilidade de e em seguida sozinhos. Além de ser uma surpresa para
realização da formação anunciada: mediadores em ati- os pais, foi surpresa para eles próprios. Foi um aconteci-
vidades artísticas e de lazer à velhice institucionalizada. mento que mexeu com o sentir-se competente e seguro.
Às terças-feiras, o trabalho era desenvolvido na SEOVE, "Foi uma aventura," como disse uma delas, completan-
como estágio prático dos mediadores. do com a observação de que "comecei a me sentir mal
Por verificar-se que as instituições da amparo à ve- quando o ônibus começou a andar, queria vomitar e aí
lhice estão cada vez mais repletas, tendo em vista que a pensei, agora é tarde, ou vai ou racha."(Carol, 05/07/99)
longevidade é cada vez maior, e que as dificuldades finan- Um segundo ponto foi, como já se ressaltou, o de
ceiras dos familiares pobres são grandes, impossibilitando assumir o papel de quem ensina, ou melhor, de quem é
os cuidados necessários aos velhos, o que os leva à pro- capaz de ensinar, de quem sabe tantas coisas que pode
cura de instituições desse tipo, optou-se por reunir estes compartilhar com outras pessoas. Esta inversão exigiu
dois grupos promovendo um movimento de auto-ajuda conversas de muita elaboração, de consciência de que
rumo à modificabilidade, às mudanças frente ao legado custava realizar o aprender e o ensinar simultaneamen-
social da "deficiência" e da "incapacidade" por velhice. te, não só por uma questão pessoal, particular, mas de
É sabido que são muitas e duras as críticas à que a briga que se estava travando era com a sociedade
profissionalização das pessoas tidas como portadoras de como um todo que não espera, não admite, não abre
alguma deficiência, em especial as portadoras de defici- oportunidades para que os "deficientes" ensinem.
ência mental. Para não se repetirem as iniciativas que
se caracterizaram pelo trabalho repetitivo, manual, rea-
lizado de forma mecânica e não-criativa, foi pensada
Ap. Mudançap.
uma nova frente de atuação para os componentes do
Observaram-se, após estudo detalhado do movi-
grupo: a de constituírem-se como animadores/
mento do grupo, muitas mudanças que envolveram:
integradores/ mediadores de atividades artísticas e de
lazer junto a grupos da população que são carentes e · Luta interna para abandonar seu papel de sujeito
também discriminados. que aprende, para poder assumir-se como sujeito
Além dos aspectos acima citados vale dizer ainda que aprende para ensinar;
que, após um ano de treinamento específico, dos oito
componentes da oficina de formação de mediadores · Transformação da forma como se relacionam en-
apenas quatro dedicaram-se efetivamente ao trabalho e tre si. Houve um aumento significativo da exigên-
participaram do início ao fim das atividades. Dois dedi- cia para consigo próprio e para com os colegas.
caram-se a outro tipo de atividade e outros dois foram Houve inclusive exageros de cobrança entre eles.
encaminhados à terapia familiar por compreender-se que · Possibilidade de tolerar críticas e reposicionar-se
somente com um trabalho desta natureza seria possível frente a elas.
para eles o desenvolvimento das condições necessárias
ao assumir-se como adulto capaz de enfrentar os estig- · Manifestação de satisfação e prazer em realizar
mas da incapacidade num contexto onde o ensinar e o os trabalhos propostos e criados por eles próprios.
aprender centralizassem a relação entre as pessoas. · Necessidade de parar os trabalhos práticos para
Suas histórias até então tinham sido marcadas pelo conversar, e muito, sobre a relação dos membros
papel de aprendizes apenas, não no sentido da recriação do grupo com seus familiares.
constante de si próprio e do seu entorno, num processo
amplo e aberto de aprendizagens, marcadas por sínte- · Necessidade de examinar atitudes que pareciam
ses qualitativas que tendem a ser cada vez mais eleva- evidenciar autonomia, mas que acabavam por
das, mas pelos rastros de fracassos, de tentativas não mostrar estes sujeitos como "deficiente".
exitosas, de olhares que se detiveram na síndrome, na · Necessidade de rediscutir suas histórias de defi-
seqüela. Suas histórias de vida carregavam a marca de ciência, o seu futuro e suas próprias velhices.
quem se constituiu como aprendiz por suas "impossibili-
dades" de aprender. Em virtude disso, assumir a tarefa · Mostrarem-se como adultos com desejos sexu-
de quem ensina parecia inacessível. ais, com vontade de namorar, mas com muita difi-
Neste processo de mudança, alguns pontos signifi- culdade para tal.
cativos marcaram o estágio realizado na instituição de
· Desenvolverem preferências e capacidades des-
amparo à velhice. O primeiro deles a se comentar deva
conhecidas na realização de algumas atividades
ser, talvez, a importância da proposta de deslocamento

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que poderiam ensinar: um descobriu-se muito ca- pintura ajudava muito pois não ficavam "pensando bo-
paz para dobraduras, por exemplo; o outro para bagem durante o intervalo entre uma 'aula' e outra".
ensinar as regras e truques do jogo de dominó Depoimentos como esse autorizaram a pensar que,
(muito difundido entre os velhos na Ilha de de certa forma, havia uma espécie de elaboração de ou-
Florianópolis); o outro para fazer máscaras etc. tros sentimentos que não apareciam na hora do trabalho,
mas que, pela condição de institucionalização da velhice,
. Assumirem-se como "profissionais".
certamente povoavam realidade e fantasia do viver das
Deflagrada a modificabilidade, tais sujeitos pude- senhoras. Com isto ousamos pensar que a arte se realiza-
~_.n enfrentar o legado social da incapacidade, da defi- va, sim, naqueles encontros de terça-feira à tarde, pois
~jencia, e conferir aos rumos do seu cotidiano uma nova
a verdadeira natureza da arte sempre implica
.::, jetória: por exemplo, um deles iniciou-se como balco-
algo que transforma, que supera o sentimento
-..: ta de uma lanchonete e outro começou a freqüentar
comum (. ..). A arte está para a vida como o
oro curso de música (piano). As observações dos fami-
vinho para a uva (. ..), a arte recolhe da vida o
.nes e vizinhos quanto à maturidade, autonomia, ade-
seu material, mas produz, acima deste materi-
ção às demandas sociais vinham sempre ao encon-
al, algo que ainda não está nas propriedades
das conquistas obtidas pelas pessoas dentro do gru-
desse material. (Vygotski, 1998, p.307-308)
. Como se tratava de uma população adulta, o traba-
_ 0, em uma nova etapa, voltou-se à formação Esta questão intrigou-nos sobremaneira. A busca
upacional, tendo em vista a necessidade de estes su- da compreensão das afirmações vygotskianas parecia
:..itos serem incluídos e integrados na dinâmica da saci- clara quando elas apontavam a possibilidade de elabora-
e- ade como capazes de assumirem-se como adultos. ção de transposição ou superação do sentimento comum
Outro ponto importante refere-se ao trabalho com - que para nós estava explicado pela gratificação imedi-
.. velhice, ao encontro com a velhice institucionalizada, ata ligada ao prazer diretamente ligado ao fazer. Mas, e
:om a desesperança como talvez pense a sociedade em quando Vygotski diz que na arte há uma produção que
,;eral. Estes encontros, como já se falou, corresponderam se dá acima do material produzido objetivamente? Que
_ segunda parte do trabalho e efetivaram-se em forma aí se faz presente algo que ainda não está presente nas
de estágio em um asilo. Tratava-se do repasse, por as- propriedades desse material?
sim dizer, do que se havia vivenciado no dia anterior, em Chegou-se, então, a uma aproximação maior das
essão preparativa intitulada vivência artística, com apren- atividades realizadas por nós no asilo, quer dizer, com-
dizagem de diversas técnicas relacionadas às artes plás- preender a atividade artística como instigadora de algo
ti as e atividades relacionadas ao lazer. que vai além daquilo que ela mesma recolhe da vida
No estágio, dentre as diferentes técnicas utiliza- enquanto material de sua constituição, algo que não está
jas, a que mais chamou as idosas ao trabalho foi o dese- ainda nas propriedades do material, mas que constitui o
nho livre com guache em papel. Primeiramente o grupo vir-a-ser enquanto elaboração do presente. O "não pen-
cie mediadores hesitou em atender os pedidos de traba- sar bobagem", como disseram as senhoras, insere-se
. lar sempre com esta mesma técnica, pois havia consi- nesta perspectiva, a de que o ato criador ao materiali-
jerado que esta talvez se limitasse somente ao pintar zar-se numa obra - numa pintura, numa poesia - aquilo
or pintar. Percebeu-se, depois, que essa era uma idéia que seria o final de um processo - torna-se, ao mesmo
tquivocada, Ou seja, a de que o ato criador ocupasse um tempo, um começo como algo novo, completamente di-
egundo plano, de que o que importava era sentir-se bem, ferente do "material recolhido da vida".
') apreciar positivamente o trabalho de maneira que as Dona Maria Jardineira pintava flores e pássaros e
gratificações pudessem acompanhá-Ias na quase soli- elegia como tema sempre os mesmos motivos. Este
~ -o do asilo. Concluímos que estávamos perdendo a nome, na verdade apelido, já revela uma parte da vida
. ssibilidade da arte que sempre foi, da mesma forma de Enedina: um momento em que foi contratada para
que o lazer, um dos nossos objetivos. Foi possível com- trabalhar com jardim e horta em uma residência. Sua
flreender que havia nesta insistência pelo que chama- fala, no entanto, nas raras vezes que comentou o seu
mos de pintura livre, um objetivo não explícito, mas que trabalho, não trazia esta vivência como conteúdo direto.
era ddas, construído no desenrolar do trabalho. Soubemos do acontecimento por conversas com Maria
Foi muito importante estar sensível a este fato, pois Jardineira num momento em que uma das pessoas da
le nos fez retornar à t~oria e reaprender algo que tal- equipe de trabalho, passeou com ela pelo jardim da ins-
':ez se estivesse perdendo de vista: a dimensão do ato tituição. Maria Jardineira, pintava o mesmo motivo e a
-riador. As verbalizações das idosas foram uma pista partir dele começou a falar sobre outras passagens de
e grande valor neste sentido. Suas falas traziam men- sua vida. Isso foi uma surpresa. As flores que pintava
sagens de que a pintura não se esgotava em si mesma, não eram só memórias de sua vivência como jardineira,
mas que era mediadora de outras ações, Dona Iracema eram, antes, deflagradoras de sentimentos sobre sua vida
e Dona Rosa, por exemplo, disseram várias vezes que a conjugal, viagens...

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Talvez essa fala possa explicar o que diz Vygotski lhos, aprisionados nas armadilhas de uma sociedade que
ao afirmar que a arte modifica o sentimento e que ela lhes imputa o lugar da improdutividade e incapacidade,
"revive para o sentimento aquelas emoções, paixões e puderam revelar-se como artistas, como produtores do
vícios que sem ela teriam permanecido em estado defi- novo que resultou da bricolagem de emoções que mar-
nido e imóvel. Ela pronuncia a palavra que estávamos caram sua vida. As oficinas de que participavam, coor-
procurando (...)". (Op. cit., p.316) denadas por sujeitos de suposta inoperância, revelaram-
Diante do exposto, conclui-se, finalmente, com a se para estes velhos preciosos lugares de trocas igual-
observação de que transformar é possível e que, embo- mente preciosas.
ra tenha havido mudanças significativas, houve também
limites. Entre eles vale destacar que uma vivência cir-
cunscrita a um tempo restrito, o da própria experiência, Refetência~ 8ib r;ogtáfica~
não pode conter em si a pretensão do enfrentamento de
DA ROS, S. Z. (1997). Cultura e Mediação em Reuven
questões tão amplas como a que se refere ao legado
Feuerstein: relato de um trabalho pedagógico com
cultural da incapacidade que se inscreve em relações
adultos que apresentam história de deficiência. São
sociais de exclusão.
Paulo: Tese (Psicologia da Educação), PUe.
Foi possível, sim, vivenciar, mediados pelo con-
ceito de compensação em Vygotski, os efeitos da defi- FEUERSTEIN, R. (1983).Reuven Feuerstein. In:
ciência secundária, aquela que se adere às histórias de OLTMANS, Willem. Sobre la inteligencia humana.
deficiência, em que os sujeitos se constituem a partir Madrid: Santillana, S.A. deI Ediciones. p. 130-152.
do "defeito" que produz o chamado "descenso social". FEUERSTEIN R.et alli.(1988). Don 't accept me as f
A compensação vai de encontro às conseqüências cul- am: helping ~~retarded» people to excel. New York:
turais a que a história de deficiência ou a velhice reme- Plenun Press.
tem. O eu, o outro, a cultura entrelaçados,
dialeticamente, no processo de compensação enfren- SAIS, A. P.(1995). Coisas de velho: coisas de vida.
tam o enraizamento cultural das pessoas marginaliza- São Paulo. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clí-
das por exigências pautadas num determinado padrão nica), PUe.
de normalidade, abrindo novas possibilidades de cons- VIGOTSKII, L. S. (1990). La imaginación y el arte
tituição como sujeitos ativos. en la infancia. Madrid: AKAL, S.A.
Assim, a tarefa principal foi a de perseguir, com
_ _ _ _ _. (1991a). Obras Escogidas f: Proble-
estes sujeitos a "transformação do menos da incapaci-
mas Teóricos y Metodológicos de la Psicologia.
dade no mais da compensação" (Vygotski, 1995 p.7),
Madrid: Visor Distribuiciones.
entendida como resistência aos mandos excludentes da
sociedade em que vivemos. As atividades artísticas e de _ _ _ _ _. (1991b). Obras Escogidas II: Pro-
lazer, em perfeita consonância com os propósitos da blemas de Psicología General. Madrid: Visor
experiência, mostraram-se como alternativa significati- Distribuiciones.
va ao processo de mediação do vir-a-ser nos e dos gru-
_ _ _ _ _. (1991c). Obras Escogidas fI!: Pro-
pos envolvidos no trabalho.
blemas del Desarollo de la Psique. Madrid: Visor
Neste trabalho foi possível observar o encontro de
Distribuiciones.
variados pólos de expressão: O encontro promovido en-
tre sujeitos e trajetórias tão diversas, onde os que têm _ _ _ _ _. (1998). Psicologia da Arte. São Pau-
uma história relativamente pequena no tempo, embora lo: Martins Fontes.
profundamente marcada pelos avatares da discrimina- _ _ _ _ _. (1995). Obras Completas. Tomo Cin-
ção, conviveram com sujeitos com longas histórias, po- co. Fundamentos de defectologia. Ciudad de la
rém sujeitados a avatares outros que secundarizam as Habana: Editorial Pueblo y Educación. !li
suas experiências. Isso possibilitou a todos ressignificar
suas trajetórias e imprimir movimentos outros à dinâmi-
ca das relações sociais de que participam.
Os sujeitos com histórias de deficiência puderam, \\0 ~onho/fJlilo qual btigo
a partir do novo lugar social que assumiram (coordena-
dores de grupo) reconhecer-se como sujeitos ativos e
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críticos, rompendo assim com um legado cultural que
lhes imputava o lugar da inoperância e impotência. Ain-
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da que essa conquista seja restrita a um determinado
lócus, permitiu a produção de novas significações e o
ao fado da eOtaggtrt dd atnat"
redimensionamento, por parte desses sujeitos, dos senti-
dos que imprimem à própria existência. Quanto aos ve- Paufo ~tQitQ

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