A velhice é hoje esse “continente cinza” delimitando uma população indecisa,
um pouco lunar, extraviada na modernidade. O tempo não está mais na experiência e na memória. Ele tampouco está no corpo deteriorado. A pessoa idosa ressalva lentamente para fora do campo simbólico, transgride os valores centrais da modernidade: a juventude, a sedução, a vitalidade, o trabalho. Ela é a encarnação do recalcado. Lembrete da precariedade e da fragilidade da condição humana, ela é o rosto mesmo da alteridade absoluta. Imagem intolerável de um envelhecimento que atinge todas as coisas em uma sociedade que cultua a juventude e não sabe mais simbolizar o fato de envelhecer ou de morrer. Os homens envelheciam com o sentimento de seguir uma marcha natural, que os conduzia a um reconhecimento social aumentado, o homem da modernidade combate permanentemente todos os traços de sua idade, e teme envelhecer com medo de perder sua posição profissional e de não mais encontrar emprego ou perder seu lugar no campo da comunicação. Envelhecer, para a maior parte dos ocidentais, sobretudo nas camadas populares, mas não somente, é entregar-se a um lento trabalho de luto, que consiste em despojar-se do essencial daquilo que foi sua vida, em desinvestir as ações outrora apreciadas, e em admitir pouco a pouco como legitimo o fato de possuir apenas um controle restrito sobre sua existência. O envelhecimento é um processo insensível, infinitamente lento, que escapa à consciência porque nele nenhum contraste acontece; o homem desliza flexivelmente de um dia ao outro, de uma semana a outra, de um ano ao outro, são os eventos de sua vida cotidiana que pontuam o fluxo do dia, e não a consciência do tempo. Com uma lentidão que escapa do entendimento a duração, se agrega sobre o rosto, penetra os tecidos, enfraquece os músculos, ameniza a energia, mas sem traumatismo, sem ruptura brutal. A imagem do corpo é a representação que o sujeito se faz de seu corpo; a maneira pela qual ele aprece mais ou menos conscientemente a partir de um contexto social e cultural particularizado por sua história pessoal. A imagem do corpo é aqui uma medida pela qual são avaliadas aa ações cumpridas ou a cumprir, é uma medida familiar de sua relação com o mundo. Neste âmbito não existe, a princípio, conflito entre a realidade cotidiana do sujeito e a imagem que ele se forma do seu corpo. O homem pode ganhar com o tempo uma força de sedução crescente, porquanto se valoriza nele a energia, a experiência, a maturidade. Uma mulher que busca ainda seduzir um homem bem mais jovem que ela atrai um juízo sem complacência da sociedade; ao contrário, é absolutamente admitido, e testemunha, em última instância, o “vigor” do homem. A velhice marca desigualmente, no juízo social, a mulher e o homem. Reavivando o sentimento do rosto, afirma-se à pessoa idosa que as rugas não alteram sua identidade, e que ela pode ter prazer em cuidar de sua aparência. Ela atualiza também gestos e sentimentos, faz renascer as recordações, reencontra uma espessura de vida que pouco a pouco se encolhia. Por suas ações, favorece-se a instauração de uma jazida de sentido e de valores que pode permitir à pessoas idosa retomar o gosto por sua existência e reinvesti-la em sua relação com o mundo. Nosso corpo nos expõe ao trabalho do tempo e da morte. Mas a imagem que o indivíduo forja acerca deles para se modela-se segundo seu avanço na vida, ela o dispensa de uma apreciação demasiadamente brutal de seu envelhecimento. A imagem do corpo não é um dado objetivo, não é um fato, é um valor que resulta essencialmente da influência do ambiente e da história pessoal do sujeito. As coisas do corpo, é sem dúvidas também aquelas do desejo, revelam a marca do tempo. Quando o olhar do outro deixar de se voltar para si com a suspensão ínfima na qual o jogo do desejo um instante se pressente, já se inicia a consciência de seu envelhecimento. É do olhar do outro que nasce o sentimento abstrato de envelhecer. Na mesma ordem de fato, são sequências ao mesmo tempo sociais e individuais que o reformulam em nossa consciência: aniversários, uma separação, ver crescer os filhos, vê-los partir; por sua vez, ver chegarem seus primeiros netos, a aposentadoria, a desaparição súbita mais frequente dos seus amigos etc. A velhice é uma semente que leva muito tempo para eclodir, é um sentimento vindo de fora que, por vezes, lança raízes precoces; por vezes, ao contrário, tarda infinitamente, porque é uma medida do gosto de viver do sujeito. Não se trata somente de uma cifra cronológica, não começa em uma idade precisa, ela é uma soma de índices que só o sujeito conhece. A velhice é um sentimento. Nela entrecruzam-se os dados que o campo social integra mal; o corpo, por um lado, porém mais ainda a precariedade e a morte. O status atual das pessoas idosas, a denegação que marca a relação por cada um com seu próprio envelhecimento, a denegação também da morte, eis os sinais que mostram as resistências do homem ocidental em aceitar os dados da condição que faz dele, antes de tudo, um ser de carne. O HOMEM E SEU DUPLO O homem é indiscernível de sua carne. Esta não pode ser mantida por uma posse circunstancial; ela encarna o seu ser-no-mundo, aquilo sem o que ele não seria. O homem é esse não-sei-o-que e esse quase-nada que transborda seu enraizamento físico, mas não poderia ser dissociado dele. O corpo é a morada do homem, seu rosto. Momentos de dualidade em uma vertente desagradável (doença, precariedade, deficiência, fadiga, velhice, etc.), ou em uma outra vertente agradável (prazer, ternura, sensualidade, etc.), dão ao ator o sentimento de que seu corpo lhe escapa, de que excede aquilo que ele é. O ator social está em posição de observador perante seu próprio corpo da mesma maneira que o esfolado de Valverde contempla pensativamente, sem dor nem nostalgia, sua pele, que ele segura sobre si como uma veste antiga, de cujo conserto ele encarrega seu alfaiate. O corpo de certa maneira, é aquilo que fica quando perdemos os outros, é o traço mais tangível do sujeito, a partir do qual se distendem a trama simbólica e os liames que os vinculavam aos membros de sua comunidade. O individualismo inventa o corpo e o indivíduo ao mesmo tempo; a distinção de um engendrando a distinção do outro em uma sociedade na qual os laços entre os atores são mais frouxos, menos sob a égide da inclusão do que sob aquela da separação. Uma série de rituais tem então por função gerar uma relação com o corpo tornada mais indecisa. A intimidade torna-se um valor-chave da modernidade; ela engloba a busca de sensações novas, aquelas do bem-estar corporal, da exploração de si; ela exige o contato com os outros, mas sempre com a mesura e de maneira controlada. O homem bacana, descontraído, cuidadoso com o seu visual, o que a demanda dos outros é essencialmente um ambiente e um olhar. O corpo torna-se espécie de parceiro a quem pedimos a melhor apresentação, as sensações mais originais, a ostentação dos sinais mais eficazes. Seu próprio corpo, o melhor parceiro e o mais próximo de si, o representante mais capaz, aquele pelo qual julgam você.