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A respeito da pessoa

A trama existencial exige de todos a possível jornada para encontrar-se a si


mesmo. Esta começa com a descoberta de um tempo oportuno, chão fértil para
refletir sobre aquilo que o ser humano tem se tornado. Desta forma, o momento
histórico que se vive, apresenta-se fecundo para tal empreitada. Talvez nunca
como agora tenha sido preciso falar de quem se é; descobrir-se, refazer-se,
eleger-se, redimensionar-se, devolver-se, etc..

É de entre deste emaranhado de tessituras que o conceito de pessoa desponta


com ampla condição de fazer ligar os elos que prendem o ser humano a si
mesmo, evocando sua profundeza estrutural para romper com o
elanguescimento que o aprisiona num jogo que subtrai deste a sua dignidade e
por que não dizer a sua humanidade.

Entrementes, talvez caibam perguntas como: O que se entende por pessoa?


Será que já se aprofundou o suficiente em tal conceito de modo que venha a
dispensar toda a novidade guardada no mais íntimo de cada um? Quem sabe
ainda haja a necessidade de se rever os conceitos até hoje propostos e, então,
talvez se descubra que a pessoa está muito mais além das palavras que se
construíram para tentar defini-la. Certo é que ocorre uma divagação no que
tange o assunto pessoa. Muito se diz, mas pouco se promove da realidade que
sustenta o existir de cada ser humano. O decorrer da história comprova esta
tese. O ser humano sempre vilipendiado em nome de projetos econômicos,
sociais, científicos e religiosos. O menoscabo dado ao humano favoreceu o
empobrecimento da própria pessoa que se esqueceu que a verdade sobre ela
é a chave da sua libertação.

Face ao exposto, é válido evocar o pensamento de Emmanuel Mounier sobre a


pessoa, o que ele tentou definir para os seus leitores sobre uma realidade tão
complexa, contudo, desafiadora e preciosa.

As constatações vindas das suas reflexões permitiram entender que aquilo que
se havia feito do homem e com o homem nos diversos momentos históricos,
havia subtraído do mesmo a sua condição de dignidade; era desumana a forma
como tratavam as pessoas. Esta forma de lidar com a figura pessoa, legitimada
pela sociedade, conduziu o mundo a catástrofes sociais nunca dantes
experienciadas. A perda das impressões próprias do ser favoreceu a morte de
milhões de pessoas pelo mundo, fundamentando um sistema que desprezava
o valor da pessoalidade.

Superando o individualismo

Assim, contra todo individualismo vigente que apregoa a morte das


prerrogativas que fomentam atitudes para o desenvolvimento do ser enquanto
pessoa, a supervalorização do indivíduo conduziu o mundo ao caos instalado
nas entranhas de um sistema político que anulava a personalidade de cada
agente. Este individualismo mais se parecia com uma forma de liberalismo...,
devido ao fato de este apregoar uma clausura do homem em si mesmo, sem
que jamais promovesse a sua liberdade, além do mais, tornava descrente a
possibilidade de uma inesgotável autocriação e comunicabilidade com o fito de
hospedar em si a realização do homem.

Tal autocriação favoreceria dinamicidade ao ser de cada pessoa sem que


jamais se pudesse esgotar seu poder criador; e de fato o ser humano é isso:
portador da criatividade, do poder de se refazer em cada tempo e situação. A
reconstrução humana dá-se mediante esta potencialidade inata a cada ser.
Cada um carrega em si a condição de possibilidade de não se derrotar, antes
de soerguer-se. É isso que faz com que o homem não se dobre diante das
situações limites que se lhe apresentam.

A pessoa é mais..., cada vez que consegue enxergar a sua condição de


construtor de si mesmo e da sua realidade, independente das adversidades, o
homem tem sempre algo a mais para pensar e fazer. Afinal, atitude conta muito
no processo de redimensionamento da própria existência, haja visto que o ato
humano manifesta na pessoa aquilo que está em sua interioridade, o que está
encarnado em sua essência enquanto pessoa humana não fechada nem
fadada ao fracasso, mas liberta e aberta; com as portas da sua alma
escancaradas para deliciar-se com as novidades que o conhecimento de si
mesmo pode proporcionar e que o seu ser tanto almeja.

O autoconhecimento, nesta toada, se opõe a toda consideração individualista e


egoísta da consciência no que se refere ao ego enquanto sujeito, assim o
autoconhecimento não se assemelha ao conhecimento objetivador que se
ocupa com um ego abstrato e generalizado. O grande objetivo do
autoconhecimento é o ego concreto, o que podemos dizer de “eu” enquanto
“eu”, que cada homem possui e que é o lugar onde reúne todos seus atos
intencionais. A riqueza ora revelada, ora escondida no interior de cada pessoa
é incomensurável, inesgotável, por isso mesmo de valor incontestável.

Se a pessoa não pode furtar-se de seguir alargando o seu ser como acima fora
dito, isso não significa que o mesmo deva diluir-se numa espécie de
coletivismo que fragmenta sua pessoalidade e o torna impessoal e
“impessoalizante”. A pessoa não pode perder-se em esquemas/armadilhas
montados para desumanizá-lo.

O sujeito humano não pode e nem deve ficar perdido em sua liberdade e muito
menos reduzido a um mero indivíduo coletivo. A pessoa humana possui em
sua essência, intrínseco a sua natureza, a vocação, a necessidade e o desejo
de conviver com outro ego, um outro “eu” numa espécie de amor-doação, que
não fica fechado em si mesmo, mas vai além, é capaz de se doar. O amor é
entendido como um exercício que possibilita o homem alcançar o
autoconhecimento e até mesmo a autorrealização, além do convívio com um
“eu” externo, que é o seu semelhante. A participação e a integração do homem
em uma comunidade onde exista comunhão entre as pessoas, o ajudam a
evitar a coisificação de si mesmo, faz o homem ver seu próximo como
realmente o é: pessoa humana. Com isso... no pensamento de Mounier ,
“entende-se que a pessoa não é objeto de conhecimento ela só se revela, no entanto, através
de uma experiência decisiva..., não a experiência imediata de uma substância, mas a
experiência progressiva de uma vida, uma vida pessoal” (MOUNIER apud SEVERINO, 1941, p.32).

Também conforme relato de Hannah Arendt, referindo-se aos campos de concentração


nazistas, onde sublinha sua instrumentalidade para a consecução dos objetivos mais caros ao
nacional-socialismo: a coisificação da personalidade humana, o controle científico da
espontaneidade enquanto expressão de conduta. Os campos serviam como laboratório,
espaços sociais de experimentação de um modelo perfeito para um regime de domínio total a
ser aplicado em larga escala (ARENDT apud LENHARO, 1986, p.77-78).

Contudo os esforços do hitlerianismo de purificar a raça alemã acabaram em


suicídio. A sua decadência é fatal, pois tudo o que não está voltado para a
personalização da pessoa está contra ela e, quando isso é visível, a tendência
de qualquer regime totalitário é sucumbir.

Condição humana e seus antagonismos

Talvez por isso haja uma predileção em dispor sobre a condição humana em
detrimento de uma tal natureza humana. Quem sabe para que não suceda
nenhum mal entendido, para que não haja uma compreensão reduzida ou
limitada do ser, uma vez que, o termo condição humana possibilita uma maior
abordagem da pessoa em suas diversas dimensões, ou melhor, do absoluto
humano que é a totalidade da história do homem. É a partir dessa noção
intencional de condição humana que, o personalismo desenvolverá a defesa da
pessoa contra os totalitarismos, os individualismos e tudo aquilo que vai de
encontro à eminente dignidade da pessoa.

Há de igual forma, no pensamento de Mounier, uma recusa a um niilismo, uma


vez que este nega a existência da absoluticidade, quer como verdade, quer
como valor ético. Verdadeiramente, Nietzsche proclama a morte da esperança.
Nada de progresso, nada de Deus. Aliás, para ele, Deus está morto. O
absoluto não existe nem mesmo os fundamentos metafísicos que sustentam
todos os valores éticos, estéticos e sociais da tradição.

O niilismo conduz a valores novos, segundo Nietzsche, que venham ser


“afirmativos da vida”, da vontade humana e superem os princípios metafísicos
tradicionais e a suposta moral de rebanho sustentada pelo cristianismo. A
voluptuosidade nietzschiana sofre de uma soberba incomum, porém, em se
tratando de ser humano, como viver sem o sustento, a razão do seu caminhar
que é a esperança? Por isso é que as reflexões de Mounier rechaçam as
investidas nietzschianas.

Dito de outra forma, o pensamento de Mounier é uma reação contra toda


espécie de maldição imposta sobre a pessoa, instigado por uma postura de
letargia em relação à mesma. Isto é, o individualismo e o coletivismo, fatores
que estão alheios aos reais elementos que constituem o ser humano,
conduzindo-o, desta feita, à despersonalização e, consequentemente, à perda
do sentido da sua existência humana. O indivíduo só se torna pessoa a partir
do momento que, cônscio de si mesmo, de seu poder criativo, de sua
liberdade, direciona o seu ser ao outro em atitude de disponibilidade fazendo
acontecer o engendramento da comunhão. Mesmo por que, a comunidade é o
elemento que proporciona a vida pessoal. Nela o amor passa a ser a base
desta comunicação e, desta forma, pensa-se em um Deus Pessoal que atraí
todos os seres pessoais, de modo, que estas só encontram a sua plena
realização na Pessoa suprema e único de olhar personalizante.

Ante a situação supracitada, o homem deve gozar de valor absoluto. Quando é


forçado a abrir mão desta categoria, ocorre uma negação das suas instancias
de abertura de si mesmo a todos que fazem parte da sua realidade (os outros e
Deus). Mas a Pessoa jamais pode abandonar sua absoluticidade. Deparar-se
com as situações humanas urgentes, faz com que se entenda que o homem,
em todo tempo e lugar, pede respeito incondicional pelo simples fato de ser
quem é: humano. Desta feita, o respeito pode significar a disposição
incondicional para considerar e defender todo e qualquer ser humano como
realidade da qual não se pode dispor. O caráter absoluto do homem não
significa “infinito”, mas “incondicional”..., como diz o teólogo:

“A pessoa humana, em seu próprio ser e em sua própria identidade, reclama respeito
incondicional, independente de toda e qualquer avaliação e finalidade; absoluto, em uma
palavra” (Karl Rahner, escritos de teologia, II, Madri, 1962, p. 256).

Por isso que Emmanuel Mounier faz do personalismo uma filosofia completa,
cujo eixo é fixado no valor absoluto da pessoa. Ele define a pessoa como “o
que, em cada homem, não pode ser tratado como objeto”. Ele queria promover
uma “revolução personalista e comunitária” e propunha o individuo para a
sociedade e a sociedade para a pessoa. Ele enfatizava a diferença entre o
indivíduo e a pessoa, que sempre é inserido no mundo e na comunidade dos
homens. Contudo, convém frisar que sua pretensão nunca foi a de formar um
sistema filosófico, mas promover a pessoa humana em sua integridade. Diante
dessa intenção, a filosofia de Mounier encontrar-se-á entrelaçada com o
universo da pessoa humana, ou seja, a História da pessoa será paralela à
história do personalismo. Assim, o personalismo deve ser entendido como uma
filosofia a serviço da pessoa humana e nada mais.

Esta exaltação do personalismo deu-se ante a constatação da existência de


uma crise civilizacional que atrai o pensar de Mounier para arvorar-se contra os
sistemas que promoviam a despersonalização da humanidade (individualismo,
coletivismo, nazismo, fascismo, etc.). Primar pela pessoa e sua dignidade fez
do pensamento mounieriano um marco na reflexão sobre a construção do ser
humano de modo diferente em combate ao despersonalismo, a
despersonificação da pessoa.
Uma realidade nefasta é mascarada na atualidade para não expor a
desumanidade velada pelas manobras dos sistemas políticos e econômicos.
Constata-se hoje como antes uma crise também civilizacional. Basta olhar o
mundo árabe expondo seus irmãos ao exílio e à morte. Quantos para fugirem
da crise instalada em seus países aventuram-se pelas águas dos oceanos com
a esperança de encontrarem o valor e respeito que tanto merecem. Contudo,
encontram, na maioria das vezes, o ato final da sua desumanidade: a morte.

Pode-se usar as palavras do próprio pensador para referir-se a esta situação


em que ante a esta crise mundial e à crise da civilização, propõe “Refazer a
Renascença”, é necessário trazer luz à condição na qual vivem as pessoas
hoje; mediante uma revolução que formasse uma nova visão de pessoa e de
comunidade. Tanto em Mounier como em outros pensadores, percebemos a
urgência em edificar a necessidade de refazer um mundo, uma humanidade
diferente. A palavra revolução, adotada por Mounier é também adotada por
pensadores marxistas, em muitos momentos, no sentido de se entender a
revolução como mudança radical, como conversão íntima e comunitária.

Mounier sugeriu uma nova civilização para antes e para hoje da mesma
maneira. Todavia, esta nova civilização deveria desprender-se dos conceitos
individualistas que vigoram até o momento, bem como da arrogância burguesa
que insiste em diluir a pessoa no coletivismo, anulando a pessoalidade de cada
ser. Antes apregoa uma filosofia do engajamento, a qual atribui relevância
impar pelo fato de que o engajar-se “é uma exigência essencial da vida
pessoal”(Moix, 1968,p.176). Com isso, pode-se dizer que por meio da ação, a
pessoa humana transforma a natureza e a si mesmo, pois permite a
manifestação de si em sua totalidade de maneira criativa e livre.

Mounier coloca a ação da pessoa como ato primordial para o seu


desenvolvimento bem como da doutrina personalista. Atinge sobremaneira, a
finalidade da sua filosofia, uma vez que sua pretensão era desenvolver o
humano em todas as dimensões pessoais. Muito embora, seu primeiro impulso
tenha sido a ação civilizadora, quis fundamentar sua reflexão filosófica com a
exigência da ação.

“Se quisermos ter uma noção da humanidade, precisamos captar no seu vivo exercício e na
sua atividade global” (MOUNIER, 2004, p.31).

A exigência da ação, do engajar-se é “que modifique a realidade exterior, que


nos forme, que nos aproxime dos homens, que enriqueça de valores nosso
universo” (MOUNIER, 2004, p.103). Aqui, encontra-se, levemente a importância do
engajamento para a existência humana, pois favorece a formação daquele que
executa a ação e a recebe, a suas potencialidades, as suas virtudes, enfim a
sua unidade pessoal:

“Ora, nunca relações entre pessoas se podem estabelecer em um plano puramente técnico.
Desde que o homem é presente todos são por ele contaminados. Agem até pela qualidade da
sua presença. Os próprios meios materiais tornam-se meios humanos, vivem nos homens, por
eles modificados e modificando-os a eles, ao mesmo tempo que integram essa
interação num processo total” (MOUNIER, 2004, p.105).

Mediante a reflexão e a exigência da ação propostas por Mounier, tem-se início


o processo de personalização. Iniciar este caminho é entender que o ser
humano precisa estar na posse de si mesmo para abrir-se à doação de si e
receber a doação das outras pessoas. A ação de fazer-se dom para os outros
exige cada vez mais a posse de quem se é, não fazendo conta de muitas
coisas para tornar-se realmente pessoa. É uma construção que exige a parte e
o todo. Por isso, tornar-se pessoa é empreitada deveras contagiante. Quando
se encontra alguém que verdadeiramente está desbravando seu universo de
possibilidades e limites, de alguma maneira nos sentimos motivados a realizar
o mesmo. Acaso houvesse um envolvimento tamanho neste processo poder-
se-ia vislumbrar um novo horizonte para a humanidade.

É vicinal a possibilidade de uma nova humanidade já que a tecnologia


possibilitou uma maior aproximação de todos. Poder-se-ia usar esta tecnologia
para tornar-nos mais próximos e mais humanos igualmente. Esta rede
relacional, se é que se pode dizer desta forma, traz consigo a exigência de
abertura ao outro, pois é o ser humano que está no centro desta rede, assim
sendo, descobre-se que o isolamento e o fechamento em si só causará a
degradação da pessoa e, por conseguinte, da humanidade. Todos estão
implicados nesta rede, de modo que não se pode falar de uma história da
sociedade, da comunidade, da humanidade se não ressaltar aquele que possui
a capacidade de conviver e de gerar. Deste modo, torna-se necessário tomar
consciência em que se baseia a exigência ontológica de se estabelecer
vínculos. Para que assim, possa-se combater toda a tentativa de individualismo
e de coletivismo que perpassou e perpassa a história do homem.

O movimento existencial pede ao homem dinamicidade em seu viver de modo


a leva-lo a um mergulho na sua relacionalidade para que assim, se possa ir
além de si mesmo. Envolto em transcendentalidade, o chamado do homem é
para ultrapassar-se, volvendo-se para a consciência e posse de si mesmo. As
realidades que o cercam pedem ser conhecidas e ultrapassadas pelo homem.
Num primeiro movimento o homem transcende a natureza e no segundo
transcende a si mesmo. Pode-se então inferir que o homem foi feito para ir
além. Este movimento faz parte do processo de personalização do homem.
Abrir mão dele seria recusar o próprio desenvolvimento. O ostracismo não
serve de barganha para que cada indivíduo possa trilhar seu caminho.

Neste ínterim, o indivíduo só se torna pessoa, no momento, em que adere ao


movimento de personalização. Considera-se o próprio exercício da dupla
transcendência, ou seja, personalizar o mundo a sua volta e a si mesmo. Isso
faz parte da dialética em prol da construção humana. Dito isso, compreende-
se, que o indivíduo é aquele fechado em si, egocêntrico e que o contrário desta
condição é a pessoa, dotada de características como: a abertura ao outro, a
doação de si e a gratuidade. O indivíduo está para a transcendência. Neste
sentido Mounier ressalta que “esta ascensão da pessoa criadora pode seguir-
se na história do mundo”. Isto parece remeter a uma luta, guerra de opostos:
personalizar-se ou despersonalizar-se. O indivíduo, em sua característica
própria de fechamento e egocentrismo, parece tender à despersonalização e a
pessoa, também com suas características próprias busca a personalização. De
qualquer forma, é preciso entender que caminhar em direção ao outro torna
cada caminheiro mais puro, mais humano..., esta é a busca do personalismo.

Ser para afrontamento

Cônscios de que a sociedade fabrica pessoas doentes e medrosas com o fito


de manipulá-las, constata-se de forma virulenta a intensão dos dominantes
sociais: matar toda e qualquer esperança do coração das pessoas, isso por
que sabem que o homem sem esperança deixa de ser homem, torna-se
desacreditado em si mesmo e por fim desiste de lutar e se entrega aos ditames
de quem comanda a sociedade. Mas lá no seu íntimo ele sabe que o estado
não pode possuí-lo, defini-lo nem como indivíduo nem como pessoa por que
eles são anteriores ao estado.

Ainda assim, o homem poderia ter agido comodamente diante da natureza,


aceitar o poder dela sobre ele e ficar no seu canto e simplesmente receber
daquilo que ela produzia, e permitir que ela o definisse. Entretanto, o homem é
grande demais para se subjugar ao sentimento de falsa segurança - ainda que
tente -, ergue-se e afronta qualquer um que queira depô-lo de sua condição.
Como afirma Lima Vaz:

“O homem poderia abrigar-se no seio protetor da natureza para dela receber


alimento. Mas, como razão e liberdade – como pessoa -, o homem transcende
a natureza e, por isso, a sua relação primordial com ela assume a forma de um
afrontamento, de uma conquista, da construção de um sentido humano para
sua presença no mundo”. Lima Vaz, problemas de fronteira. P. 127.

É justamente neste momento de afrontamento, segundo Mounier, que a pessoa


expõe-se, exprime-se: faz face, é rosto. Surge como aquele que olha de frente,
que afronta. Tem atitude de oposição e proteção algo próprio da sua condição.
Com isso começam-se as confusões. A pessoa pode afrontar não somente o
outro, mas as coisas e a natureza, sabendo que é justamente na relação do eu
com os outros que se pode produzir os afrontamentos necessários para a
construção de um todo com maior robusteza.

O simples fato de existir confere à pessoa a condição ou capacidade de


projetar-se para fora de si mesma em defesa própria perante o mundo que o
cerca. Isso por que nos valores de ruptura, a pessoa como protesto, faz no
afrontamento com a existência. Existir pessoalmente é também, e muitas
vezes, saber dizer não, saber dizer não é na maioria das vezes um protesto,
afrontando-se com a existência, um desligar-se.

O afrontamento tange a pessoa como poder de protesto, talvez como


estruturalmente protestante. Suas rupturas possuem valor necessário uma vez
que se aflora como ser de possibilidade de oposição, de dúvida e de
resistência.
Tentando sobressair ante situações que miram apequenar o espírito humano,
Mounier prega essa atitude: Afrontar, inventar, ir até o fundo..., única atitude
que desde as origens da vida estremeceu os pilares de qualquer das crises já
enfrentadas. A capacidade de romper é uma característica importante do ser
humano. Nessa perspectiva, encontra-se aí, mais uma vez, esse fogo - como
que divino - que inquieta a interioridade da pessoa conduzindo-a a expressão
da sua vontade, deixando-a com a atitude de repulsa veemente a toda e
qualquer servidão.

A pessoa possui em si a condição de possibilidade de recusa, de protesto e de


decisão. Por isso se mostra em seu processo de personalização como ato de
complexidade e fragilidade, exigindo, por vezes, força e violência ao sujeito. No
interior da própria dignidade se ouve o clamor por liberdade que emerge do
afrontamento a tudo que possa ferir-lhe a autonomia e a dignidade.

Ser para a liberdade

Não há como traçar fórmulas já definidas quando o assunto é a liberdade. Isso


por que, conforme Mounier, a liberdade não é uma coisa. Ela passa pela
afirmação das pessoas. Logo, vive-se, não se vê. Desta forma não pode ser
pensada como que uma manifestação espontânea como queria Sartre. Mas
sim como uma manifestação de qualidade sempre mutável, um surto original,
uma perene invenção de si e para si, como diz Mounier: uma subjetividade
absoluta.

Ocorre, desta feita, uma necessidade urgente em relação à postura que se


deve ter ante a vida e suas implicações. Se é vivendo que se torna livre, pode
inquirir: Já se é possuidor de si o bastante para alcançar liberdade? Para se
tornar livre faz-se necessário grande esforço na conquista de si mesmo. Como
afirma Fábio de Melo em seus escritos:

“Já somos livres, mas ainda não. Parece um jogo de palavras, mas não é.
Trata-se de uma perspectiva muito interessante que pode ser explicada de
maneira simples a partir da frase: nem tudo que temos é nosso, porque carece
ser conhecido e conquistado... , liberdade é semelhante a um talento. É um
elemento constitutivo humano desencadeado à medida que o ser humano se
esmera no processo de torna-lo real. A conquista da liberdade se dá no mesmo
processo do tornar-se pessoa”. Melo, Fábio de. In Quem me roubou de mim. P.131.

A liberdade existente em cada ser precisa ser libertada. O caminho é árduo,


contudo, o sacrifício é recompensável.

Todo o processo mounieriano de pessoalidade alcançará o seu escopo


mediante entrega irrenunciável de todos para que se possa chegar ao
conhecimento de si. Afinal, somente tornar-se-á pessoa aqueles que tomarem
posse de si mesmos e vivendo constroem sua liberdade de modo seguro e
maduro para entender que cada passo firmado o torna mais livre.

Esta forma de liberdade causa angústias, escolhas complicadas, enganosas e


danosas ao desenvolvimento da pessoa. Sem a segurança da posse de si
mesmo, perde-se por veredas repletas de armadilhas existenciais,
acomodando-se com qualquer tipo de liberdade oferecida. Desta feita, nunca
chegará a descobrir mais que duas formas mal definidas de liberdade: A
primeira é uma liberdade de indiferença: indeterminação total no pensar e no
agir, do nada ser, nada desejar e nada fazer. A segunda é uma liberdade
baseada numa eventual falha do determinismo: é um contrassenso, pois além
de basear-se numa fraqueza do conhecimento, é apenas uma sombra que
nada tem de humano.

O homem precisa saber que para ser livre é preciso navegar nas águas
profundas do próprio oceano existencial no qual habita, caso contrário morrerá
sufocado pelas superficialidades que se tornam grilhões vivenciais não vistos,
mas reais. Somente quando se deixar aflorar a sua subjetividade é que se
conseguirá, de fato, falar sobre a própria liberdade.

Cada subjetividade é única, não se repete.

Subjetividade é núcleo que integra consciência, liberdade, dialogalidade,


criatividade, afetividade e responsabilidade. Na subjetividade o ser humano
afirma-se como sujeito e emancipa-se como pessoa. Arduini, Juvenal. In
antropologia – ousar para reinventar a humanidade.

É a emancipação da própria pessoalidade que Mounier propõe à sociedade,


porque a subjetividade é irredutível, não se pode renunciar a dimensão alguma
do seu ser. Ela é insubstituível, não se troca por outra, porque não é objeto ou
cifra.

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