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Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

P667 Pires, Maria de Fátima Novaes

o crime na cor: escravos e forros no alto do sertão da Bahia


(1830-1888)/ Maria de Fátima Novaes Pires - São Paulo
Annablume/ Fapesp, 2003.
250 p. ; 11,5 x 20 em

Originalmente apresentada como dissertação (Mestrado -


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999).

ISBN 85-7419-331-3

I. História do Brasil - Sociedade (Escravidão) 2. Escravidão -


Bahia (1830- I888) L Título
CDD 326.0981

o CRIME NA COR: ESCRAVOS E FORROS


NO ALTO SERTÃO DA BAHIA (1830-1888)

Coordenação editorial
Joaquim Antonio Pereira

Editoração
NAC Flávio de Carvalho
Regina Aparecida Coelho

CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Pefiuela Cafiizal
).'
Norval Baitello Junior
J' ••••••••• '"
Maria Odila Leite da Silva Dias
Gilberto Mendonça Teles
-"~\ ..:
~'
Maria de Lourdes Sekeff
Cecilia de Almeida Salles
>~::. Pedro Jacobi
-,,'
c Gilberto Pinheiro Passos
Eduardo Alcântara de Vasconcellos

1a edição: abril de 2003 '-


A José de Oliveira Pires
© Maria de Fátima Novaes Pires
(in memorian) e a
ANNABLUME editora. comunicação Maria Lldia MartinsPires.
Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros
05427 -100 . São Paulo. SP . Brasil
Tel. e Fax. (011) 3812-6764 - Televendas 3031-9727
http://www.annablume.com.br

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•.•.~••'--~-:---~~'~.-~~'~::rr.~J.

INTRODUÇÃO

Ao menos, indicando os sítios onde a questão das


práticas cotidianas foi articulada, vou marcar já as
dívidas e também as diferenças que possibilitaram um
trabalho nestes lugares.

Michel de Certeau

o presente estudo dos processos criminais de escravos e


forros tem a perspectiva de contribuir para a compreensão das
relações escravistas no alto sertão-efã"Bãhia, I reconstltum7!ü- --
experiências sociais tecidas cotidianamente por esses segmentos.
Pretende analisar as especificidades das formas de dominação
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encontradas nessas relações, nas vilas/cidades de Rio de Contas e
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Caetité, que mantiveram estreitos contatos socioeconômicos durante
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: '. " os séculos XVIII e XIX"
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.> O tema da escravidão tem recebido, por parte da historio-
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grafia, uma atenção constante e inovadora. Desde os anos 1930-
~
.... .
1940, historiadores e demais cientistas sociais, através de vários

1. Ver, quanto à definição de alto Sertão, Neves. O autor justifica: "Geralmente


definem região de modo pouco preciso, física ou socioeconomicamente, I
como área que se pretendem delimitar, [...]; região do sertão, caracterizada pela
morfologia da vegetação; região do Alto Sertão ela.Bahia, referenciada na
posição relativa ao curso do rio São Francisco na Bahia e ao relevo baiano,
que ali projeta as maiores altitudes" (1998: 22). Cabe salientar que se define
por Sertão baiano uma extensa região com particularidades nos seus
aspectos fisico, econômico, social e cultural. O Sertão baiano neste livro
refere-se às regiões de Rio de Contas (Chapada Diamantina) e Caetité (Serra
Geral), no século XJ..,'<:.

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20 MARlADE FÁTIMA NOVAES PlRES o CRIl\I1E NA COR 21

esquemas explicativos, procuraram compor um quadro da Contribuições teórico-metodológicas desta ordem auxiliam,
escravidão brasileira. A partir das décadas de 1950 e 1960, pari passu, a romper com a generalização que o tema da escravidão
procedeu-se a uma revisão sistemática de várias obras e as pesquisas assumiu entre nós, bem como, indicam que a condição de explicita-
realizadas encaminharam novos e fecundos estudos sobre o tema.? ção de um tema está no plano da sua especificidade histórica, levan-
De certo modo, muitos desses estudos não poderiam deixar do em conta a sua articulação com processos históricos mais amplos.
de ter, como pedra de toque mais lógica, a referência à realidade É também fundamental a noção da quebra da linearidade do
dual da escravidão: a oposição entre cativo e senhor. Movendo-se tempo através da qual temporalidades múltiplas se articulam.
entre as balizas - arbitrariedade, subordinação e revoltas - não avan- Como analisa Kosselleck: "La historia no se efectua én el tiempo,
çavam, em grande medida, no sentido de indicar as especificidades sino através del tiempo. Se dinamiza el tiempo en una fuerza de
da escravidão brasileira, bem como quanto às formas de resistência Ia historia misma" (1993: 307). A história que se efetua através do
cotidianas e mais "silenciosas", ou mesmo da difusão de pequenos tempo deve considerar os percursos, as trajetórias, as dinâmicas, as
poderes e hierarquias no âmbito das sociedades escravistas que a continuidades e descontinuidades em que a pesquisa histórica se
historiografia contemporânea procura documentar. inscreve. Deve também identificar que: "O tempo físico, o tempo
Recentes estudos vêm rompendo com uma tendência na psicológico, o tempo histórico e o tempo lingüística são formas
pesquisa que se ateve, preferencialmente, à problemática da diferentes do real" (NUNES,1995: 23) e todos estes tempos estão
dominação senhorial ou das resistências escravas mais amplas. presentes na narrativa construí da pelos historiadores. Portanto,
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Apontam ainda para a necessidade de perceber que as diretrizes que "nem sempre visível em seus limites, as narrativas oferecem tempos
marcaram as esferas de controle e de reprodução da ordem múltiplos". Assim, o historiador, enquanto narrador "é obrigado
escravista contextualizarn-se no tempo e no espaço, marcos essenciais a explicar de uma outra maneira os episódios com que lida"
para o estudo das experiências históricas na sua singularidade. (BENJAMIN,1987: 209) e deve~::~ic~r as diversas experiências de
Urna outra tendência, que caminha ao lado desta, tem sido tempo vividas pelos sujeitos sociais que mobiliza.
o abandono das pretensões macrossociais e um redimensionamento As pesquisas em arquivos, aliadas a uma mudança do enfo-
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1
do estudo das relações escravistas no fazer cotidiano destas que temático, têm sido fundamentais e vêm direcionando, nos últi-
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, .'
relações. Para Maria Odila L. S. Dias, mos anos, o estudo da escravidão para aqueles agentes sociais que
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até então estiveram silenciados na nossa história: escravos e forros.
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Com um novo olhar sobre o tema, muito se tem dito sobre
..... Novas abordagens e métodos adequados libertam aos poucos
as formas de resistência montadas cotidianamente pelos cativos
os historiadores de preconceitos atávicos e abrem espaço para
para sobreviverem dentro dos limites de existência que lhes eram
...~_: uma história microssocial do cotidiano: a percepção de
-". ~.
~"
impostos, principalmente nas regiões de grandes plantéis, a
processos históricos diferentes, simultâneos, a relatividade das
exemplo da Bahia (Salvador e Recôncavo Baiano),Pernambuco,
dimensões da história, do tempo linear, de noções como
Rio de Janeiro e São Paulo,
progresso e evolução, dos limites de conhecimento possível
Principalmente a partir da década de 1980, o orime passou
diversificam os focos de atenção dos historiadores, antes restritos
a ser um alvo perseguido por muitos pesquisadores interessados na
ao processo de acumulação de riqueza, do poder e à história
reconstituição das experiências sociais de escravos ê forros. As fontes
política institucional (1995: 14 - grifas meus),
privilegiadas para essas análises são os processos criminais, uma do-
cumentação do Judiciário, que à época serviu às suas investigações,
e hoje enriquece e amplia o horizonte da pesquisa histórica. Essa
2. Desse debate destacam-se, dentre outros, Freyre, 1978; Vianna, 1973; Azevedo, é uma fonte particularmente rica, já que traz a "fala" de cativos e
s.d.; Bastide e Fernandes, 1959; Fernandes, 1965; Ianni, 1962; Costa, !966.
forros, embora mediada e diluída peja "pena do escrivão". Apesar
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22 MARIA DE FÁTIMA NOVAESPIRES o CRIME NA COR 23


1

1
dessas limitações, é certamente uma fonte que possibilita dar voz conflitos, as "falas" elas testemunhas e informantes," e isto propor-
a esses segmentos, cujo silêncio ainda marca a nossa história.' ciona, em certo sentido, um descortinamento das experiências
O auto criminal é um material singular, por captar e registrar i, escravas ao mesmo tempo em que nuança singularidades da vida
J
as nuanças e tensões sociais que envolveram variadas regiões ·i social no alto sertão.
subordinadas ao regime de trabalho escravo. Mostram-se valiosos Os espaços de constituição das experiências são variados: a
para a análise dos crimes, dos seus mecanismos impulsionadores J moradia, a taberna, o trabalho, a rua. Estes são espaços de conflito,
e possibilitam reconstituições da vida social. Apontam ainda para resistência, acomodação e também de improvisação.
possíveis significados que dela fizeram os sujeitos envolvidos em Entender os lugares dos conflitos é significativo para a aná-
situações tidas como infratoras. lise da mobilidade; elas vizinhanças; elo nível das relações sociais
Uma outra dimensão dessa fonte está naquilo que ela ~ e sociabilidades; bem como da dinâmica socioeconômica da regi-
silencia, que não aparece, que não está no campo do visível. Sobre ão. Inscreve-se como tentativa de reconstituir o chão social das expe-
este aspecto Pinaud esclarece, riências desses segmentos.
Este estudo, no campo de produção da história social, baliza-se nos
conceitos de cultura e experiência desenvolvidos por E. P. Thompson.
As dimensões silentes das linguagens negras que falaram a

I submissão, a angústia, o sofrimento, o trabalho, o medo, a -!;

o que descobrimos [em minha opinião] está num termo que


desobediência, a fuga e a luta, latejam inarticuladas em
. I
i
1" I
implicitudes,
escrita
na linguagem
nos processos,
formalizada
oficias, petições,
dos brancos,
contratos,
tal como
escrituras, -.
falta:"exPerlêllciahl;rrlãii.ã~;'[.
retomam
.. Óshomens
como sujeitos, dentro deste termo -não
e mulheres também
como sujeitos

! autônomos, 'indivíduos livres', mas como pessoas que experi-


.! testamentos, Tais documentos retratam a violência de imprimir,
t mentam suas situações e relações produtivas determinadas como
± na consciência dos negros critérios e categorias coloniais-
necessidades ê iiífêresses e como antagornsmos, e em seguiàa·-----
J escravistas que lhes eram inteiramente alheios, Essa supressão
"tratam" essa experiência em sua consciência e sua cultura [as
~ cultural da africanidade básica foi realizada através de ordem ~1
1 _1 duas outras expressões excluídas pela prática teórica] das mais
I ,U jurídica portuguesa imposta às condições brasileiras, por força
~: ,::,"""-...,11 complexas maneiras [sim, "relativamente autônomas"] e em
;.' ~ a priori absolutista. E nesse sentido, embora - e justamente
-~ seguida [muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas
"~', .!O":', " porque - falando a linguagem do Senhor, os processos
de classes resultantes] agem, por sua vez, sobre sua situação
',.1'.' '\:~ criminais, como instrumentos políticos de dominação, revelam
•!~
' determinada (1981: 182 - grifos meus) .
o não-dito e recalcado, por parte do Escravo, na medida em ,
que, semanticamente, encobriram suas próprias contradições
[ Como nos trabalhos analisados a seguir, procura-se aqui rom-
-'. :~"
-
11
(1987: 105 - grifos meus).
li
per com uma linha interpretativa da escravidão que desprezou o
jl
negro, escravo ou forro, como sujeito da sua própria história, "pou-
A leitura dos processos criminais permi te verificar os fatores co interesse houve em registrar suas vidas obscuras, seus meios de
f que motivaram os delitos, as pessoas envolvidas, os lugares dos sobrevivência, seus conflitos internos, seus valores e aspirações"
(WISSENBACH, 1998b: 13).5

3. Como afirmou Thompson: "Grande parte da evidência histórica sobreviveu 4. Qualificava-se de informante todos os escravos chamados a depor nos inter-
por motivos muitodistantes de qualquer intenção dos atores de projetar uma rogatórios judiciais.
], imagem de si mesmos à posteridade: os registros administrativos, de tributa- 5. Apresentada, originalmente, em 1989, como dissertação de mestra do ao
1, ção, legislação, crença e prática religiosa, as contas dos templos e mosteiros, Departamento de História da Universidade de São Paulo - USP, sob orientação

.: ~ t e a evidência arqueológica de suas localizações" (1981: 36). da Prof' Dr' Maria Odila Leite da Silva Dias .

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1 .
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24 MARIADEF Á TIMANOVAESPIRES o CRlMENA COR 25

Esta realidade vem mudando, principalmente a partir da infratores e a reconstituição de fragmentos da vida cotidiana, onde
década de 1980, quando, ao lado do movimento negro, ocorreu escravos e forros construíram as suas "estratégias adaptativas,
um crescimento significativo de novas interpretações acerca da elaboradas e ampliadas no contexto aparentemente rígido do
escravidão brasileira com pesquisas e estudos que proporcionam regime de trabalho escravo" (1998b: 29), Para a autora, as ações
um descortinamento das relações escravistas em variadas regiões criminosas e os delitos revelaram sentidos mais amplos,
do Brasil.
É o caso do livro de Machado (1987),6 No seu estudo, a au- . Traduziam estratégias dirigi das, sobretudo, à exigência dos
1 tora procurou reconstituir, através dos processos criminais, os com- direitos dos escravos enquanto tais: por vezes um ritmo de
1 portamentos de escravos e as suas estratégias de resistência e aco- trabalho mais brando, um tratamento mais humano dos feitores;
modação, Empreendeu um balanço dos padrões e tendências da por outras, respeito aos dias de festas e resguardo, direito aos
'1 "criminalidade" escrava e uma análise do cotidiano da vida desses cultivos próprios, remuneração nos serviços extras, legitimidade
!I segmentos, Desse modo, pôde perceber W11acorrelação entre as fa- na apropriação dos resíduos de produção (l998b: 25).
~ ses de intensificação do ritmo de trabalho e a criminalidade no interior
das fazendas paulistas. Ao tratar dos crimes, a autora assinala, Ao abordar o crime enquanto "ato social, que expressa
,1
tensões e espaços autônomos" (WISSENBACH, 1998b: 26);'aautora
j Homicídios contra senhores, feitores e capatazes, furtos da o coloca enquanto instrumento de análise de a~Q..e_ctosda vida

1
produção agricola e outros crimes, ao deslindarem a dinâmica social e nos remete às discussões sobre cultura escrava e a
do trabalho escravo e a tessitura da dominação social escravista ampliação do conceito de resistência e acomodação.
que a envolvia, desvendam a condição escrava em sua muta- No livro Campos da Violência: escravos e senhores na
bilidade histórica (1987: 09), Capitania do Rio deJaneiro,eSO-1808, Lara aborda a conexão
J entre violência, controle social e reprodução da ordem escravista;
Algranti, em sua dissertação de mestrado, O Feitor Ausente, e como a relação senhor-escravo se construía cotidianamente como
:.,.
"I ~ 'f
Estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-1821, um processo pessoal de dominação.f
analisou os registros de prisões efetuadas pela polícia do Rio de Sob esta ótica, Lara pôde identificar os tipos de delitos mais
-'"",--~. Janeiro entre os anos de 1810-1821. Ao estudar os padrões de cri- comuns e apresentou as práticas, costumes, lutas, resistências,
"~',~~:'. minalidade, observou que as infrações revelaram a resistência de acomodações e solidariedades, presentes no cotidiano das relações
"-;
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cativos e forros contra a degradação total e excesso de dominação escravistas na região estudada, durante o período colonial.
~: a que eram submetidos." Uma outra obra imprescindível à "leitura" do cotidiano
:1 Com abordagem instigante e inovadora, Wissenbach escreveu através de autos criminais é, sem dúvida, o livro Homenslivres na
~ Sonhos Africanos, Vivências Ladinas, Escravos eforros no município ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, A
11
jJ
de São Paulo, Este trabalho dedica-se à interpretação do sentido
social do crime na escravidão, o seu significado para os grupos
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j; 8. Segundo a autora, "o exame dos crimes, dos criminosos e suas vítimas, e do
6. Apresentado originalmente, em 1985, como dissertação de mestrado ao cruzamento entre as diferentes instâncias repressivas, nos permitirá
Departamento de História da Universidade de São Paulo-USP, sob orientação aprofundar a análise dos confrontos e conflitos que envolviam escravos e
I!. da Prof"Dr' Maria Odila Leite da Silva Dias, iluminar outros aspectos da relação senhor-escravo nos Campos dos
7. A autora considera que: "Estudar as ações destes homens para conquistar suas Goitacazes" (LARA,1988: 269). Trata-se de lima versão "bastante modificada"
f
ambições ou sua revolta contra a ordem imposta é revelar, embora palida- da sua tese de doutoramento apresentada ao Departamento de História da
mente, sua história" (ALGRANTI, 1988: 49) Universidade de São Paulo - USP, em 1986,
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MARIADEF ÁTIMA NOVAES PlRES
o CRIME NA COR 27
26

eram equivalentes para os segmentos sociais comprometidos com a


documentação pesquisada pela autora se refere à comarca de
manutenção da ordem escravista nas mais variadas regiões do Brasil,
Guaratinguetá e adjacências, pertencentes à região do Vale do .2
Na pesquisa dos processos criminais das comarcas de Rio de
Paraíba, durante o século XIX,
j Contas e Caetité identificam-se as tipologias dos delitos, e mesmo
os mecanismos impulsionadores desta ou daquela atitude tida como
a escolha de uma área mais pobre da região paulista para o à criminosa, Mas, certamente, a trajetória mais acertada foi aliar estas
estudo dos problemas de ordem local prende-se ao fato de que,
observações à constituição das experiências de escravos e forros,
nela, as transformações vindas com o café se fizeram sentir de
~ perscrutando possíveis significados dessas experiências para esses
~
.0

~ maneira mais branda, conservando-se as características anteriores


i
.i:.
segn1entos, ao integrá-Ias ao conjunto das relações que cobriram
I; e, assim, ajudando a observação dos nexos de recorrência entre
,. o sertão baiano durante o século XIX Por conseguinte, a leitura
'i estabilidade e mudança social. Guaratinguetá aparece privilegiada ."1!
dos processos possibilitou uma ampliação da análise de aspectos
i por ser comarca e oferecer, por isto, talvez a única fonte para ~<
da vida de escravos e forros, confrontando-se assim, com a natu-

'1
i
1
a reconstrução histórica das relações comunitárias:
processos-crimes [sic] (1997: 17 - grifas meus).
os i
reza meramente policial dessa fonte, já que o presente estudo não
trata propriamente da violência na escravidão sertaneja,
Através dos processos buscou-se proceder à análise não
Franco analisa os aspectos sociais registrados nos autos g
j somente das relações entre os proprietários e os seus escravos, mas
J criminais, bem como as situações de tensão presentes na vida do
"l-
I compreender-as-vaFiadas-intm:"HMac,;ee-s-E]ue-Gativos·
e forros mantive-
homem livre e pobre; suas relações com outros segmentos sociais;
ram com os demais segmentos da sociedade local, para compor, a
o poder no campo das instituições públicas e a exploração do café

I
", \

partir daí, as suas estratégias de resistência e acomodação, que


na região, É ainda uma fecunda contribuição para o estudo de
visavam à criação de espaços de mobilidade e relativa autonomia.
tropeiros e vendeiros.
JI --" Conta-se na Bahia com valiosos estudosf.sohre a escravidão _
Não se resumem aqui as obras que se dedicaram ao estudo
na cidade de Salvador e no Recôncavo Baiano, regiões agro-
li: do crime na escravidão, mas considero que estes são exemplares
f
1
"T exportadoras que assumiram grande relevância para a economia
para se pensar sobre as direções que o tema vem tomando nas lides ~~
, '.",;-1''li
~. y
acadêmicas, Traçar mesmo que brevemente o percurso destes
fJ- da Colônia e do Império. No entanto, o sertão baiano ressente-se
-r, ",,';,' .. 1
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de-mais pesquisas acadêmicas. Exceto os livros de viajantes, de
-"---.' estudiosos pode auxiliar a melhor explicitar as reflexões propostas
""~") ~',. ".' , agentes do governo e de intelectuais interessados no estudo da
,_,' neste livro,
":.1; região, é praticamente inexistente uma produção mais criteriosa e
Elementos muito particulares vieram à tona com a leitura dos
.!~ "
.c há um verdadeiro silêncio quanto às experiências sociais de
processos criminais de Rio de Contas e Caetité; antiga região
escravos c forros. Uma iniciativa recente neste campo é o livro Da
., escravocrata dos sertoins de cima, que se dedicou preponde-
sesmaria ao minifúndio, do professor Erivaldo F. Neves, que, através
rantemente, 110 oitocentos, à policultura, à pecuária e ao artesanato
de uma coleta criteriosa de fontes, abordou amplos aspectos do
I (metais e couro). Os escravos, grosso modo, viviam em pequenos
sertão baiano, figurando como uma âncora para muitos dos
e médios plantéis e realizavam serviços variados nas roças ou nas

-11
trabalhos sobre a região.
cidades, Trabalhavam ao lado de fOlTOSe homens livres e com eles
.a
partilhavam espaços comuns também em suas diversões.
-I
-I
As tensões presentes nosprocessos indicaram aspectos da do-
4 minação senhorial, bem como um conjunto de práticas repressivas ~

.: ~
I que foram acionadas por senhores de escravos e pela Justiça, vi-
sando manter o controle social que marginalizou e pôs em estado
de suspeita e vigilância todas as pessoas de cor. Escravos e forros
9. Ver, dentre outros: Oliveira, 1988; Andrade, 1988; Reis, 1986; Reis e Silva,
1989; Mattoso, 1978; Mattoso, 1992; Nascimento, 1989_

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28 MARlADEFÁTIMANOVAESPIRES o CRIME NA COR 29

AS FONTES auxiliam principalmente no esclarecimento das relações familiares


e domésticas. Os registros de casamento, assim como os registros
A inexistência de trabalhos 10 sobre escravidão no sertão de batismo, trazem dados sobre o compadrio, além de identifica-
constituiu em obstáculo para a realização deste estudo. Foi necessário rem, em alguns casos, a etnia dos pares na união.
costurar indícios dispersos para compreender a dinâmica da região Aparece de forma rarefeita, nas fontes pesquisadas, a nação
e, assim, compor o chão social que abrigou as experiências escravas. africana a que pertencia determinado escravo, o que impossibilita
A leitura de relatos de viajantes que percorreram o alto perceber, dentre outras questões, possíveis desentendimentos entre
sertão no século XIX foi significativa para uma composição do africanos de nações diferentes.
.z;
lugar e dos seus costumes. Pode-se observar, no entanto, que se As cartas de liberdade, ao estipularem condições para alfor-
trata de um olhar estrangeiro, marcado pela estranheza quanto ao ria e documentarem escravos que as compraram, em muito contri-
4.

modus vivendi dos moradores daquela região. buíram para a análise das relações entre escravos e seus senhores.
I
Os processos criminais, pela riqueza de informações que No tocante às posturas municipais, buscou-se proceder a uma
I apresentam e sugerem, são o "pano de fundo" comum a todo o análise relacionando-as às tentativas de controle social. Vale ressaltar
1 conjunto do presente estudo, e são um caminho para a apreensão que as posturas municipais, durante o século XIX, circulavam em
das experiências constituídas na luta cotidiana desses sujeitos. todo o Império e foram moldadas a partir de Lisboa. Poreste f~~o,
j Portanto, dos materiais pesquisados, aqueles que assumiram
maior relevância foram os processos criminais das vilas/cidades de
c:
são muito genéricas e repetitivas, mas certamente sintomáticas das
transgressões·GGtifl.iaHas,al~m-de-i-1uminarem-aspectosrclacionados
Rio de Contas e Caetité, durante o período de 1830-1888, em nú- à tentativa de controle da circulação e ações levadas a efeito por

T ]
mero de 87 e 24, respectivamente. Outras fontes, de ordem diversa,
contribuíram para a análise das relações que escravos e forros
mantiveram com os demais segmentos sociais do alto sertão, são
negros, sejam escravos ou forros. Ao contrastá-Ias com os proces-
sos criminais podemos constatar o quanto a vigilância foi algo
pretendido, mas nem sempre Ievado.à.efeím.na.regiâc, ~ _

'I
li elas: inventários, livros de registro de casamentos e batismos, livro O livro Senhores e caçadores: a origem da lei negra, do
-~

de registro de compra e venda de escravos, livro de registro de historiador inglês E. P. Thompson (1987),11 é essencial para análise
cartas de liberdade (livro de notas de tabelionato), posturas muni- de fontes como posturas municipais, já que se parte para uma
cipais de Caetité, o livro da Escola Particular de Primeiras Letras análise da lei enquanto um expediente de reserva, um recurso
..j: ",:, =--,:~ " de Caetité e o jornal caetiteense A Penna. Como já foi evidenciado, somente acionado quando necessário. Em outras palavras, o fato
,;
._,," foram também consultados os livros de viajantes, que são, em sua da lei existir não é condição para a sua aplicação, o seu uso está à
....
1
maioria, corografias e dão uma idéia aproximada da região. mercê da utilidade que possa representar em determinadas circuns-
~
Os inventários, além de contribuírem para a compreensão da tâncias. Thompson entende a Lei Negra na Inglaterra como media-
.., .~.," tili base econômica regional, já que indicam bens de raiz, semoventes, dora de tensões e o seu emprego relacionado às necessidades histó-
~ móveis, benfeitorias, dentre outros, ao relacionarem escravos, tra- ricas concretas. Nesse livro, duas questões de ordem teórico-metodo-
*I . zem, além do seu valor, especificações quanto às suas carac- lógica evidenciam-se. Em primeiro lugar, a análise do crime como
~
:1 terísticas, defeitos físicos e oficioso Os r.§gistros de batismo indicam produto de demandas histórico-sociais, perspectiva esta perseguida
i~ o crescimento vegetativo e, ao lado dos registros de casamento,
lli
J 1. Esse livro, escrito-em 1975, dedica-se ao estudo da Lei Negra decretada em
~
rn
27 de maio de 1723, na Inglaterra, durante o reinado de George L Denomi-
10. Sobre escravos no sertão baiano ver Neves (J 998: 247-93) e, do mesmo autor, nado por Thompson como experimento historiográfico, reserva ao leitor,

."!
I J
Sampauleiros Traficantes ... ,"s.d. (texto mimeo) e Sucessão dominial.,., s.d.
(texto mimeo).
leigo ou especializado, facetas significativas para uma história social do cri-
me, ao tratar dialeticamente a lei e as infrações na Inglaterra no século XVU!.

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I
30 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES
I, O CRlMENA COR 31

j
j
por muitos pesquisadores que estudam a sociedade escravocrata existe, é ainda muito precária. Alguns arquivos como os de Rio de
i
brasileira. Em segundo lugar, na abordagem metodológica das ~ Contas e Caetité foram constituídos muito recentemente e contam
I t

I fontes, a preocupação em reconstituir contextos, a meticulosidade


na leitura dos materiais e o perscrutar nas entrelinhas o não-dito.
J~i com poucos profissionais efetivos para realizar um trabalho que
corresponda às necessidades do precioso acervo disponível. No
Este estudo encontra-se dividido em três capítulos. O primei- Arquivo Público do Estado da Bahia a situação de precariedade de
ro deles pretende inicialmente traçar um panorama geral da região, conservação da documentação infelizmente aponta para a
a fim de contextualizar territorialmente escravos e forros no sertão impossibilidade da pesquisa em futuro breve, caso não se reverta
I da Bahia. Após um breve histórico da região, procura-se contrastar
fontes como posturas municipais e processos-crime a fim eviden-
o triste quadro da política arquivística nacional.
É preciso ainda indicar que a documentação pesquisada
ciar a dinâmica e as contradições da vida social nessas vilas/cidades -} encontra-se dispersa e inteiramente inédita. Os processos criminais
1 ~1
'I
,I do alto sertão. Escravos e forros foram pinçados em variados espa- e a maior parte dos demais materiais foram pesquisados pela
j ços: no trabalho em pequenos e médios plantéis, e também nas vilas, primeira vez.
~
J entre ruas, quintais, rios e fontes; nos rituais de casamento e batismo; Desejamos que este livro venha a contribuir para romper
-H
nas negociações de compra e venda e nas alforrias. O entrecruzamen- com uma tendência da pesquisa que sempre privilegiou, na Bahia,
fi ,
to de indícios sugeridos pelos processos criminais, relatos de viajantes
J e agentes do governo, posturas municipais, cartas de liberdade,
o estudo dos escravos e forros dos grandes plantéis da economia
li agro-exportadora e também que suscite a curiosidade dos leitores
li inventários, registros de casamento e batismo, contribuiu para traçar "

para outras questões-cle-pesquisas-sobre-o-tema ou mesmo acerca


o contexto social das experiências cotidianas desses segmentos. do alto sertão, que em muito carece de estudos.

J:i O segundo capítulo trata da criminalização das ações de


escravos e forros e dos conflitos advindos da própria precariedade
de vida sob a escravidão. Tratou-se de reconstituir tensões e confli- ~ j-"
rII tos, evidenciando a situação de suspeita e vigilância a que estiveram
submetidas todas as pessoas de cor. Há também algumas consi-
derações quanto aos procedimentos da Justiça sertaneja, isto é,
< ,"~~I'II
,,:.' !' algumas indicações quanto à atuação do judiciário na região. As
c"- -,_!"
fontes utilizadas para este capítulo são basicamente os processos-
"~'\ ':"",
.;
li
.•-:": crime articulados aos demais materiais .
· ',~'
,c No terceiro capítulo, procura-se analisar mais detidamente a j'

, -v.:
relação entre escravos e senhores, bem como as relações intraclasse.
Tornou-se fundamental ao estudo da escravidão enfocar de modo I
mais específico os conflitos entre senhores e escravos, bem como
explorar as solidariedades e também as tensas relações entre escra-
vos, seus parceiros, homens livres e forros, e mesmo entre os pró-
f prios senhores locais.
I O trabalho de pesquisa com a documentação arquivística
+'11 também revelou o péssimo estado de conservação em que se en-
contram esses valiosos materiais. De um modo geral, essas fontes

/
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j,
estão em estado deplorável, o que contribuiu para aumentar as
i dificuldades de manuseio e leitura. Mesmo a classificação, quando
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C:APÍTULO 111
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CRUEZAS E MALQUERENÇAS -
ENTRE COERÇÕES, COAÇÕES E
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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A


ABORDAGEM

1.1,
Este último capítulo pretende analisar mais detidamente as
f" relações entre senhores e escravos e destes últimos com seus parceiros.

1: Apesar deste tema já estar, de certa forma, em pauta ao longo dos


dois primeiros capítulos, preferiu-se somente a esta altura enfocar,

I mais diretamente, as questões neste âmbito.


Com o desenv61vlmeiíi6 atuardapesquisasobl'~ o tema, já não

r 1>1
se aceita a tese,de um suposto caráter pacífico e cordial da escravidão
brasileira. O quadro de benevolência e brandura de senhores para
com escravos, desenvolvido por Gilberto Freyre em Casa grande e
Senzala (1930),vemsendod'esmisüficadoâfravés den'üvas'-----.-
pesquisas arquivísticas. Até mesmo Freyre, que contribuiu para criar
o mito do cativeiro brasileiro "bom", em oposição à "má" escravidão ,I,
norte-americana, "indica" outra situação ao estudar escravos através
"- ''''<lI1-
.-".")
dos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, que tratavam da ;'~I.i~
III.~:.~
compra, venda, aluguel e fuga de escravos. Apesar de considerar os !i,::lI,·
castigos como uma "política pedagógica" necessária ao enquadramento
e assimilação de novos hábitos pelos escravos, ao perscrutar esses
- '. '. ..,
novos materiais admitiu que muitas das deformações físicas eram
conseqüências diretas dos maus tratos, da pobre alimentação e da
própria insalubridade das senzalas. Ao pesquisar os anúncios de
.',.~",
jornais o sociólogo admitiu:

'.,....
A verdade, porém, é que dos anúncios de escravos à venda ou
* que pudessem ser comprados e alugados, em jornais brasileiros

I'
;~
do século XIX, há uns tantos que revelam o que, na verdade,
houve de cruel, em CO!1fHi-!J4,e com aquelas evidências de
benignidade nas relações de não poucos senhores com seus

,.-
II escravos (FREYRE, 1979: XlI -, grifos meus).

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174 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 175

Hebe M. Mattos, ao tratar desta questão, expressa uma opinião Compreende-se que Silvia H. Lara não contraria a hipótese
que tem sido melhor acolhida pela historiografia contemporânea de que a sociedade escravocrata tenha sido marcada pelas contradições
mais comprometida na interpretação da experiência escrava, "A que formavam o cerne das relações senhor/escravo e que teve, em
noção de um 'cativeiro justo' ou do 'bom senhor' em primeira análise contrapartida, a resistência por parte dos cativos. A autora indica d z_:
está reconhecendo a própria legitimidade da instituição escravista" que a estrutura social escravista foi antinômica, polarizada, mas não Oft-::51
(1998: 155). foi estática. Ela se dinamizou em diversos níveis e apresentou,
A leitura dos processos-criminais das comarcas de Rio de - sobretudo, a insubmissão do escravo, contrariando a imagem de
Contas e Caetité acentuou que as tensões decorrentes da escravidão escravos fiéis, resignados à sua sorte. Entretanto, ao lado disso e na
se espalharam e abarcaram diversos segmentos sociais. Essas ten- dialeticidade das ações desses sujeitos sociais, surpreende-se também
sões tiveram significados próprios, dimensionados às circunstâncias a acomodação, que em alguns momentos indica uma abstinência do
das múltiplas temporalidades que abrigam a História. escravo em intervir diante de situações que não lhe dissesse respeito
O propósito de interpretação de indícios a partir de passagens'·- diretamente, ou mesmo momentos em que "estratégias adaptativas
mais ricas dos autos permanece neste capítulo. Portanto, perscrutar [...] foram sendo elaboradas e ampliadas pelos escravos", como se
a intricada rede de relações sociais sugeridas por essa fonte não é referiu M. C. Wissenbach, "tempo de acomodar-se, tempo de produzir
I aleatório. Essa narrativa, assim constituída, tem o intuito de tomar'--'-'
'mais visível a vivência escrava nessas vilas do sertão no século XIX"
experiências" (1998b: 29).
Esta discussão também remete à análise da dita "relação
t_ centrando a atenção num contexto cultural bastante próprio. K------ -',~paternalista" entre sennore'seescíivoS':Ao tratardas-ãmbigüidades
suspeição sócio-racial pode novamente ser acompanhada em outros a esse nível é necessário, antes de tudo, considerar que as atitudes
indícios assinalados na interpretação dessa fonte. aparentemente benévolas de senhores para com escravos estiveram,
em muitos momentos, relacionadas «formas especlficas de dominação, 4'
A VIOLÊNCIA SENHORIAL - "EXERCÍCIOS" DE
1
isto é, muitos senhores buscaram ffíânterosêu plarífêl sob contfOll("---' -'-
DOM.INAÇAo E AS ARTIMANHAS DO PODER através de atitudes aparentemente liberais, que na essência se :,
firmavam sob o fundamento de preservação da ordem escravocrata. '-:\
~'--"'
Na análise de processos-crime que envolveram senhores e Sabe-se ainda que muitas das atitudes de "proteção senhorial" /'
c"~ ~


t
escravos na região do alto sertão baiano, atentou-se para uma instigante-s--,-; ~,- significaram a necessidade de preservação de um patrimônio, haja
:.. .
•I
interpretação dessa dicotômica relação, elaborada pela historiadora vista que, a aquisição de escravos representava aos senhores um
Silvia H. Lara: investimento, além, dentre outros fatores, da possibilidade de pater-
nidade ou do apadrinhamento.
"
a observação do cotidiano campista em fins do século XVIII e Em um caso relatado, num processo de Rio de Contas de 1842,
início do XIX não questiona a existência de uma clivagem geral um senhor foi incriminado por "occultar" o seu escravo, que por sua
vez estava sendo acusado de ter assassinado um outro escravo. As

II'
que separava senhores e escravos, Entretanto, o exame do'
cotidiano das relações entre senhores e escravos nos leva a circunstâncias do crime são elucidativas de conflitos intrac1asses,
constatar que essas duas "categorias" não podem ser tomadas mas principalmente das condições da vida escrava na região:
como categorias estáticas e cristalizadas, pois não só eram
definidas uma em relação à outra como vivenciadas, até ce110 disse que sabe por conhecer a autora que esta he moradora em
~ ponto, de formas bem mais amplas e ambíguas do que costumam seu sitio em Bananeiras deste termo aonde vive de suas lavouras,

I ser referidas pela bibliografia (1988: 346 - grifos meus). e entre os mais bens do seu possessorio [...] era também o escravo
Joze pardo que na noite do dia quinze de dezembro de 1830 foi
assassinado com facadas por escravo do réo de nome Benedito
" ..:
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II
iI MO ~"
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si" , -I
->

176 MARIA DE FÁTIMA NOVAESPIRES o CRfME NA COR 177

Affricano [...) sabe elle testimunha em razam de na noite do talvez melhor ainda, que o espaço para as relações ditas pater-
acontecimento ser elle chamado pela autora a fim de no mesmo nalistas era mais amplo em comunidades menores.245 Aqui se toma
instante accodir a seu escravo, e vindo elle testimunha ao lugar o caminho oposto. Não se trata exatamente da proximidade ou
do acontecimento, porem por caminho estranho ao da distanciamento entre senhores e escravos que contribuíram para
navegaçam do costume encontrara ao chegar [...) a porta da fomentar maiores tensões, até mesmo e principalmente porque o
I sanzala [sic) do escravo da Autora hum vulto que depois de o critério não pode ser este. Ao analisar as tensões sociais numa
lI observar por algum tempo se caminhou para elle e o prendeu, ~._ ..~ sociedade escravista deve-se considerar, em primeiro lugar, que as
conhecendo entam ser escravo do Réo [...) perguntando elle próprias contradições que lhe eram inerentes opuseram segmentos
Ii
J testimunha ao mesmo escravo da Autora, que entam inda vivo sociais diversos, mas, sobretudo, antagonizaram escravos e senhores.
quem lhe dera aquelas facadas, repondera que foi Benedicto [...) Sem dúvida, as reações escravas e a perversidade de senhores
1 dentro do seu rancho [...) disse que sabe por ouvir dizer e ser foram freqüentes mesmo em regiões cuja marca da sua economia
publico no lugar de sua morada, que o Reo tendo certeza do tenha sido a pequena e média propriedade.
acontecimento, e receando perder seu Escravo, o enviou para Há, neste estudo, uma sugestão de que o crime na cor, isto
1 as partes de Mucambas, seguindo-o logo atras e pelos mesmos é, as atitudes e olhares de suspeita e vigilância estiveram-presentes ./
-,.L
I lugares de Mucambas negociara o dito escravo por hum outro na vida de escravos e forros nas vilas sertanejas de Rio de Contas

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de apelido 'toca fogo', o qual não se dando bem com o reo com
·.~l1eo tornara a negociara troco decavallos e mais não disse244
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e Caetité e não se diferenciaram,
regiões escravocratas.
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em muitos momentos,
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das demais
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-:'.,' ,~.
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\, ,;:" j -'='11'/' / Ressaltou-se, em muitos casos - dos quais pôde-se obter maio-
\. ," \ ,) ... / Em circunstâncias adversas, muitos senhores estrategicamente res detalhes devido aos processos-crime a que deram origem - que
.... I "protegiam" os seus escravos das "barras da lei", no sentido de foi muito comum atitudes severas e perversas dos senhores do ser-
I preservação d2,.§eu 12.3:!E~~ônio.No caso específico do sertão baiano, -_ ... =; tão baiano. Talvez a grande maioria dessas ações não possa séi'-----
contava-se à essa época com a crise econômica provocada pelo.~--:-= '-.. examinada, no campo da pesquisa histórica, por ter sido conduzida

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... .
/,;,.:
-/
declínio
em tempos
da mineração
abalavam
e também
a economia
com as estiagens,
regional.
que de tempos no âmbito privado.
jas reconheceram,
Todavia, como as próprias
em certos momentos,
autoridades
que "o cazo era de sum-
sertane-

"''--.'1' "H.I·
.•.•.• , ",O ~ As indicações de drásticos e intensos conflitos entre escravos -. - mario",246 pode-se hoje contar com este rico material para análise. ~I~~,

,;.1.
'\~,;:'!". •
~ e senhores no sertão, que logo mais serão abordados, podem a priori, Porém esse "reconhecimento" não impedia que se "trabalhasse" para
'~~I
i~,':JII"
,!:' surpreender, pois apesar de haver consensualidade nas análises da o favorecimento do senhor na condução do auto processual.
rigorosidade dessa relação nas plantations, quando se tratava da
escravidão em áreas menores falava-se em ambientes menos .• ~= Senhores e escravos
violentos. Que elementos teriam contribuído para a difusão de uma-
imagem de convivência "mais harmoniosa" entre esses segmentos Indubitavelmente, "não há escravidão 'suave' ou 'cruel', ela
em regiões 00 menor porte socioeconômico? Justifica-se, geralmente, dispensa adjetivos" (MATTOS, 1998: 143). Todavia, compete à
pelo argumento de que, face à própria estrutura fundiária, a proximidade .
entre senhores e escravos era facilitada, gerando, por conseguinte,
relações mais amistosas e benevolentes, menos conflituosas ou, __ . 245. Ver, neste sentido, o estudo historiográfico da escravidão brasileira, prin-
cipalmente as referências às obras brasilianistas analisadas por Queiroz,
1987: 7·35. A autora, nesse artigo, faz alusão ao inglês Henry Koster, que
afirma haver relações menos conflituosas entre escravos e senhores em
244. Arquivo Municipal de Rio de Contas ~ AMRC. Processo-Crime de 4/2/1842. regiões de menor porte socioeconôrnico.
Série: sumário de culpa, fi. 7 (grifas meus). 246. AMRC. Processo-Crime de 26/3/1846. Série: sumário de culpa, fi. 3.
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«, o CRIME NA COR 179


178 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES

Ainda consta no processo o depoimento de duas testemunhas:


historiografia documentar os comportamentos dotados de requintes
de perversidade por senhores de escravos no Brasil, sejam nas José Ferreira dos Anjos, 55 anos, morador nos Remédios,
plantations, sejam no sertão. Até porque análises generalizantes da carcereiro, Diz que soube da morte das escravinhas Lucinda e
escravidão sertaneja não lograram denunciar episódios insuspeitos Ludugera na noite de 13 de junho, apareceram duas crianças
de dor e sofrimento vivenciados por cativos e forros. mortas na cisterna do quintal de Joaquim foi chamado para ver
Os quadros compostos a seguir, a partir de processos criminais, o acontecimento, Uma de cinco e outra de um mez.
evidenciam essa questão, [.,,] Antonio Placido Dantas, disse que Paulino estando ele em
O interrogatório de Ana Maria, na vila do Rio de Contas, faz caza de venda de seu senhor tarde da noite ouviu batidas na
emergir para a pesquisa contemporânea uma trágica forma de porta pedindo para socorrer uma escrava que caíra no poç0248
resistência escrava:
I
'!l
Na sentença, Ana Maria foi condenada, "Julgo procedente o
Ana Maria, escrava de Joaquim Manoel da Silva, filha do escravo
sumário prezente declaro a ré incursa no Artigo 192 do código penal
Manoel e Adriana, casada com Manoel, escravo de seu senhor,
(já referido) por ter matado seus dois filhos".
.ç; nascida no Brasil, natural de Tamanduá,
Noutro despacho, quase um ano após o primeiro processo, const~
\ _ Perguntada onde se achava no tempo em que se diz ter cometido

I o crime.
- Nesta vila em cassa de meu Senhor.
Nas Minas,do..Rio_de..Contas,_e.ca~tór:io.de.mim_EsGfÍ.vãQ audiante
nomiado sendo ahi fasso estes autos comcluzos ao Doutor Juis

{ ,~
.-
-r
\.~
,_L
_ Conhece
-Sim,
as pessoas que contra você juraram?

_ Tem algum motivo que atribua a sua prisão?


_ Diz, suponho que foi porque na noite do dia 13 de junho do
mês passado com dois filhos meus deixando-se morrer em uma
Municipal
Couto,
Brasilico,
o presente
e dellegado
e para
Tabelião
constar

sumario,
deste Termo
fiz este termo.
que escrevy.
Ermano Dominigues
Eu Marciano
Concluzas.Tulgo
do
Célio
nIl2.Cclen1L--..
que tem por bem a parte official deferido
.

.>:1 contra Carlota Maria de Jesus, mulher de Joaquim Manoel da


cisterna que tem lá no fundo do quintal do meu senhor que caindo
.~,'-/-.ill~ Sil va por ser a causa matara de pelos exessos de castigo levar
:11' 11 ~ no poço com os dois filhinhos nos braços e que principiando a
.. afogar-se não se lembra como desagarrou-se deles nem me
sua escrava de nome Arma Maria a se querer suicidar, e a matar '.f
\0;,
ti os seus dois filhos afogados em uma cisterna de quintais da casa
I' < ",";>;' •~ lembro como me tiraram. Soube depois que foi Paulino escravo
de seus senhores, e por tal incurça no art. 192 em relação ao 34
C:U:;!.
",,;~,;
".~. .:. .,' de Bento Mendes que me tirou de lá. do Codigo Penal, dando-se a circunstancia agravante do art. 16
_ Por que motivo baviamatado seus filhos e tentado o mesmo consigo?
[parag.] 7°, do mesmo ccdigo.ê"? O escrivão lance seu nome
_ Respondeu que-foi.pelo continuado castigo que sofria de sua no rol de culpados e fosse mandado para ser preza, Rio de
senhora, e que nesse mesmo dia o tinha acabado de sofrer em Contas, 27 de Março de 1849, Ermano Domingos do Couto250
ocasião em que sua senhora acabava de ter questão com seu
I"' senhor prometendo-lhe ainda maior castigo para o dia seguinte
e que a ré quase alucinada pelos tormentos de surras procurou
248, AMRC. Processo-Crime de 5/7/1848, número de folha não identificado (já
aliviar-se deles por meio da morte assim como seus filhos pela referido).
rigorosidade de sua senhora.ô! 249. O Art, 192 prevê penas no grau máximo: morte; médio: galés perpetuas;
mínimo: 20 anos de prisão com trabalhos forçados. Art. 16 e Art. 34 jareferidos
(Código Criminal do Império do Brasil, 183/, 1980: 169; 17l ; 234)
247. AMRC. Processo-Crime de 5/7/1848, (grifos meus). Sem o número de folha .---. 250. Ai'vrRC. Processo-Crime de 5/7/1848 (grifos meus), número de folha não
por não ter sido localizado este documento desde o ano de 1997. Consta apenas identificadozjá referido).
a queixa-crime contra a senhora em uma única folha isolada.
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I"

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180 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 181

1 É importante registrar que o tema deste estudo surgiu a partir como protagonizava Manoel Ribeiro Rocha, "para que o castigo
r
-Ót

do contato com esse intrigante processo-crime, Uma escrava dos escravos seja pio, e conforme a nossa religião e cristandade, 4h,'Io
açoitada constantemente, a mando de sua senhora, que procura fugir é necessário que se ministre com prudência" (LARA, 1988: 52).252 '--,
ao tormento se lançando à cisterna abraçada aos seus dois pequenos Nos anos finais da escravidão, por temer castigos e represálias,
filhos, talvez numa tentativa de livrá-Ios da triste sina que lhes a escrava Gaudência, do Cap. Antônio Calixto de Oliveira, abortou
reservava a vida sob a escravidão, Deve também ter pesado para esta seu filho, Um infanticídio, como denominou a Justiça da época, O
atitude desesperada as preocupações com o futuro das crianças sem cadáver de uma criança do sexo masculino, de cor branca, foi
a sua presença, Retirada ainda com vida, foi processada pelo encontrado em um pari,253dentro do rio Brurnado. As testemunhas,
<'. assassinato dos seus filhos, lavradores pobres brancos, ao serem interrogadas disseram "que
.( Ana Maria, assim como muitos outros escravos no Brasil, sabem por ouvir dizer que a escrava, uma negra do lugar" é a mãe
valeram-se do suicídio, um trágico e último recurso, para escapar da criança e autora do crime, "querendo encobrir o ter dado a luz a
..i
aos rigores que atormentavam o dia-a-dia das suas vidas,251 A criança por ser viúva atirara esta ao rio",2S4
postura da senhora, D, Carlota Maria de Jesus, ao castigar a sua Gaudencia, natural de Bana do Mulato, que supôs ter 16 anos,
escrava impiedosamente, com tamanha obstinação "prometendo lhe era viúva há dois e já tinha filhos, No seu depoimento informou:

..j.~
ainda maior castigo para o dia seguinte", supõe inclusive intrigas
de ordem pessoal. estava grávida, foi lavar roupas no rio, viu grande quantidade
Sob a escravidão, o poder de vida e morte, assim como os de pinhas e tentou pegá-Ias; saltando de pedras-em pedras; caiu
castigos deferidos contra escravos, fora do âmbito da lei, cabiam .- sobre o lajedo, sentido de imediato dores, vendo cair no rio outro
legitimamente aos senhores e obedeciam a um código socialmente objeto que tentando apanhar não lhe foi mais possível porque
aceito que era reposto pela postura opressora desses sujeitos, O já era noite, Esse objeto era a criança que foi passar no pari que
emprego de meios coercitivos e violentos, como mecanismos de estava pouco abaixo do rio. Foi-para-casa-de-seu s~~

.~
"1
punição e controle, fez parte do desempenho das funções senhoriais, ninguém disse o que havia acontecido, não só por ser viúva, mas
Ana Maria, em sua aflita reação, também infringia postulações também por temer seus senhores e seus pais, Perguntada se tinha
..
';
w.;
pertinentes a este controle próprio aos códigos e à lógica inerentes provas ou fatos que comprovem inocência - disse que sim255
•.. às relações escravistas. '''~
ti •• l·
O castigo doméstico não deixou de existir e teve importância O promotor público indicou, em 08 de agosto de 1882, a I~;
....
1,'
"~ seguinte sentença: ,'lI·
fundamental para o funcionamento efetivo da escravidão, Mesmo
que regulamentado e parcelado, foi regularmente acionado, Vários
"
. -', reformadores emancipacionistas, como Jorge Benci e André João denuncia a escrava Gaudencia por crime em que procurou evitar
Antonil, ao protestarem contra os excessos dos castigos domésticos, a justa indignação pública e merecida punição por parte da
apesar de considerá-Ios imprescindíveis ao funcionamento do
trabalho compulsório, aconselhavam a moderação por parte dos
senhores para que estes não pusessem em risco o seu investimento, 252, A autora, no capítulo I do seu livro Controle Social e Reprodução da Ordem
pois de outra forma não se "otimizaria" a produtividade e o tempo Escravista, p. 29-96, traça um grande painel sobre esta discussão,
de vida útil do cativo, Os excessos nos castigos fugiam, ao largo, 253, Cerca ou armadilha de varas colocada nos rios para apanhar peixes,
254, AMRC Processo-Crime de 18/8/1882, Série: sumário de culpa, fi. 4,
de uma necessária e verdadeira "ciência da dominação senhorial",
255, AMRC Processo-Crime de 18/8/1882, fi. 7 (grifas meus), O interrogatório I
de Gaudência foi encerrado neste ponto, O processo-crime encontra-se
incompleto, as testemunhas foram novamente chamadas a depor, mas não
251, Ver, sobre o tema do suicídio entre escravos, Goulart, 1973: 123-30, compareceram,

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rI 182 MARIA DE FÁTIMA NOVAESPIRES o CRIME NA COR 183

justiça, baseado nas testemunhas que depuseram no Inquérito chamar-se Antonio Joaquim Ferreira, que com o esquecimento
Policial que atribui em todas a maternidade da criança e a autoria da linguagem da sua terra se não lembra do nome de seos
de tão bárbaro quão repugnante crime a Gaudencia. Penas do paes, por vir para o Brasil de tenra idade, de idade de cessenta
Art. 197, grau máximo, por terem acompanhado o crime as e tantos annos, casado, affricano, lavrador, natural e nascido
circunstâncias agravantes do Art. 16, parágrafos 1,4, 6 e 8256 em Affrica, e não sabe ler nem escrever [...) Respondeo que
-o
\..[.\ poucos dias antes de achar morto o mesmo escravo, este havia
'AV; Da mesma forma que no processo anterior, não poderíamos levado pancadas de hum boi bravo de que lhe resultava algumas
,Y

(j afirmar se a sentença foi cumprida, se houve comutação e mesmo feridas, e com estasfiLgira para o malta sem lhe dar trato algum
recurso ao Tribunal da Relação. [...) respondeo que o procurava em sua vizinhança e que o não
No depoimento da escrava Gaudencia alguns aspectos merecem~~'C~ achava, não podendo seguir em procura delle em maior distância
destaque. Talvez a expressão "esse objeto era a criança" tenha sido por ser paralitico das pernas, e por isso não poder andar257
I'
\ '
empregada como um recurso de linguagem que buscava inocentemente
S''::. afastá-Ia, mesmo que sutilmente, do ato considerado criminoso. Esse depoimento ocorreu quando o senhor, no caso o réu, já
Noutro momento afirmou "a ninguém disse não só por ser viúva, estava preso. As testemunhas ainda não haviam deposto, todavia,
mas também por temer seus senhores e seus pais". O temor aos pais Antônio Joaquim Ferreira, africano, já se encontrava detido. A sua
refere-se a um reconhecimento de respeito familiar, que ultrapassa condição de forro e pequeno lavrador provavelmente condicionou
os estreitos limites de autoridade reconhecidos legitimamente soh_a_ essa atitude das autoridades públicas- -----~
escravidão, aponta ainda para uma vida familiar regular entre escravos Uma das testemunhas, Constantino Alves de Oliveira, "natural
de um mesmo planteI. da Provincia do Rio de Janeiro", atendendo ao chamado do subdelegado
Que dilemas teriam levado Gaudência a não declarar a gestação para ver o corpo do escravo, informou, "achou ter uma ferida no
e a abortar seu filho? A infração de convenções sociais (por ser viúva)? casco da cabeça, e que lhe parecia «esfeiia com pás,Qutra..sQbI:e~hurn_. "
,
Uma gravidez indesejada, fruto de estupro? Ou situações mais braço, e que mostrava ter pelo corpo outras contusoens".258
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....- inusitadas? Em todo o caso, cabe assinalar os diversos níveis de-


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O lavrador Marioel Lopes Fernandes, "natural do Reino de
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constrangimento que a conduziram para ações extremadas. Portugal, morador no Sitio das bananeiras, Districto do Arraial da
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"', ~-. ~.',
'. '. s. Esses processos criminais, em toda a sua extensão, apontam para Fuma donde vive de sua lavoura, de 52 anos", afirmou: ;,
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•• marcas profundas da opressão que recaía sobre escravos. O que vemos


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são reações desesperadas de escravas ante situações consideradas sabe por ouvir dizer ter morrido o escravo Antonio por
insolúveis e que acarretaram em saídas altamente traumáticas para pancadas que lhe dera o seo senhor, disse mais que sabe por
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as suas vidas. ver que antes de morrer o dito preto quatro, ou cinco deas, que
Noutro processo, um africano forro foi acusado de agredir estava com bastantes pancadas pelo corpo as quaes pode
violentamente e assassinar ao seu escravo Affricano Antonio. Ao observar estarem corruptas, e que lhe dissera o mesmo preto em
identificar-se perante a Justiça disse: sua morada, estar assim maltratado por pancadas de seo senhor
e que mandando elle testemunha retirar de sua casa para casa
de seo senhor 1110SS0, ou senhor velho, disse que não hia que

I
!
"I 256. AMRC. Processo-Crime de 18/8/1882, fl 13 (gritos meus). O artigo 197do
Código Criminal dispunha sobre "matar alguém recém-nascido". No grau 257. AMRC. Processo-Crime de 17/10/j 845. Série: sumário de culpa, fi. 2 (grifas
I máximo, eram 12 anos de prisão simples e multa correspondente à metade
do tempo.
meus).
258. AMRC. Processo-Crime de 17110/1845, n. 5 (grifos meus).

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I
11
MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 185
184

hia morrer pelo mato, e que no dia seguinte ali vierá o acusado O escravo, determinado a livrar-se dos maus tratos, procurou
seo senhor o procurando, e elJe testemunha lhe dissera, que o evadir-se. O fracasso de seus propósitos levou-no a procurar ajuda
procurasse para parte de sua casa2S9 entre lavradores da região a fim de retomar à casa de seu senhor
"apadrinhado". Em momento algum as condições exatas da sua
Outra testemunha, ao ser convocada pelo subdelegado para morte foram esc1arecidas nesse processo. Tampouco se vê, no
examinar o corpo, acrescentou, "havia outras muitas contusoens que encaminhamento das investigações, algum esforço por parte das
.,I mostravam ser antigas". A quarta testemunha, um lavrador 10Cál, autoridades judiciárias. Situação muito semelhante ao processo-
I
j. afirmou ter encontrado "feridas feitas por pás ou grande queda e crime envolvendo o assassinato da escrava Fillipa, analisado n~ (
I, primeiro capítulo deste livro, f\tA,)J,f'-l 'J'"
que parecião novas algumas feridas que tinha, por que dellas
lançava sangue".260 Medos, castigos, torturas, constrangimentos e humilhações,
t O escravo Africano Antonio parecia temer bastante o seu cercaram a vida desses sujeitos sociais e o caso do escravo Martinho,
senhor, "Respondeo que fugitivo e pedindo a elle testemunha para ora em exame, exernplifica a truculência de senhores de escravos.
o levar apadrinhado a seo senhor elle testemunha o não levou, sim o . Trata-se do processo-crime irnpetrado pelo promotor público
mandara a hum senhor mosso para lhe curar as feridas da cabeça",261 nas Minas do Rio de Contas, em 28/911884, contra o Senhor Antônio
Em mais dois depoimentos consta a "peregrinação" do escravo, José Cardoso, proprietário do escravo Martinho, "de trinta anos mais
buscando "apadrinhamento" para voltar à casa do seu senhor. Na ou menos, solteiro, filho de Victoriano, casado com Anna falecIda
sentença do juiz, expedi da um mês após a abertura do processo, o.,....~_ . [...] que foi escfR\éa_de_Gre.goriu..AL\'.cs,..naturaLcL'e.sta..fr.equesia
do
senhor Antônio Joaquim Ferreira foi absolvido. MOlTodo Fôgo, lavrador e residente na Malhada [...] que é captivo".262
Depois de acompanhar, através dos autos, outros episódios em Na denúncia do promotor público, o enredo de mais uma trama:
que a questão da fuga de escravos esteve em questão, nota-se que
nesses momentos os senhores ficavam enfurecidos e é presumível _.L Pretendendo Martinho, escravo de~11.tônioJose Cardoso, casar·
que o senhor Ferreira tenha agredido ao seu escravo Affricano se com uma sua parceira de nome Anna, para isto dirigio-se a
Antonio, que não conseguiu defender-se por estar ainda muito seu senhor pedindo o seu consentimento como devia, Cardoso,
machucado, em virtude da sua primeira tentativa de fuga e pelas indignando-se com esta pretenção de seu escravo, nega-lhe o
assentimento pedido, e manda-lhe que va procurar outro
--',:", "\:~ s,
"pancadas de um boi bravo". "f

-c/,' ", " Importa nuançar aqui elementos de uma mentalidade senhor, isto é, quem lhe compre, e que, quanto antes, traga-lhe ;iil·
II~
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o seu dinheiro. Retira-se Martinho e vai procurar quem lhe ,:1I,'
~'} ::!I escravista arraigada firmemente pelos poros daquela sociedade, a
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,'ir' ponto de um ex-escravo exercer domínio em moldes senhoriais, queira comprar, não achando, quis fugir, mas não o fez á
negando plenamente sua condição social de origem. A postura conselho de alguem. No 28 de septembro passado [1884],
i
autoritária de mando e perversidade marcou as ações daquele' estando Martinho na fazenda de seu Senhor, na Malhada, e sem'
Il senhor, mesmo na condição de um ex-escravo, nascido éi11 África ter commettido outro crime além do pedido que fez, o de
e que viveu no Brasil desde criança, passando por todas as agruras consentir no seu casamento, Cardoso o mandou agarrar, e
.••••inerentes à vida sob a escravidão. condusindo-o para os fundos de sua casa, prende-o em um
II quarto e pela maneira seguinte - nos pés põe- lhe pêgas de ferro,
I prende-lhes os pulsos com algemas de coiro, e pondo-lhe no
'ii
i~
I

ill 259, AMRC. Processo- Crime de 17/l 0/l'845, fi. 6 (grifos meus).
I
260. AMRC. Processo-Crime de 17/10/1845, n. 7 (grifos meus).
11'
I
261. AMRC. Processo-Crime de 17/1 0/1845, fl. 7 (grifos meus). 1 2ó2. AMRC. Processo-Crime de 18/10/1884. Série: sumario de culpa, n. 6.
\:

~ Pl':e
186 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 187

pescoço uma corrente de feno, prende a outra extremidade desta Martinho, chamado a depor em 22.10.1884, adicionou
corrente em certa altura de uma parêde, de modo que o infeliz outras informações. Observe-se algumas passagens do Auto de
Martinho não podesse estar nem de pé, nem sentado, nem deitar- perguntas ao offendido:
se! Nesta posição horrivelmente incommoda passou alguns dias
Martinho, até que levado pelo desespero, com os dentes, P. razão por que foi preso por seo senhor? R. que foi por lhe ter
conseguia cortar as ditas algemas de coiro, que lhe prendião os pedido para vender-o; n'essa ocasião seo senhor negou-lhe e
pulsos. Sabendo Antônio José Cardoso por uma das sentinellas, apesar do escravo fazer o pedido por intermédio de Amâncio
que vigião a prisão do infeliz Martinho, que este havia cortado Cardoso, filho do seu senhor, este negou-lhe: então, eIle
as algemas, manda chamar Theodosio de tal, ferreiro, que respondente no dia seguinte tendo voltado para a casa do seu
substitui, por seu mandado, aquellas algemas por outras de senhor trazendo um garrafão de caxassa pertencente ao mesmo
ferro, sendo estas posta por tal forma, que, alguns dias depois, e dirigindo-se para a casa do engenho, alhi, pouco depois foi
as mãos e os braços de Martinho acha vão-se completamente preso por Castiliano e Manoel, a mando de seu senhor.
inchadas e os pulsos feridos. Não é só isto! Devido a ferida feita P. Para onde foi elle respondente conduzido depois de preso?
pelas algemas uma das mãos de Martinho acha-se em estado R. que foi levado para urna casa no fundo da de morada do seo
de completa putrefacção, já lhe tendo cahido quatro dos dedos senhor e ahi prenderão-lhe ambas as mãos no trônco, fizerão-
d'esta mesma mão! Duas grandes feridas existem mais nas lhe uma pêia de feITOem ambos os pés; uma corrente no pescôço
_,.,1 costas do miseravcl escravo e ambas em estado também de e n'essa corrrente esta-vão-uma-G0FEla,á-E1ual,Elepois-de-presa á
i putrefacção, segundo nos consta, Martinho só é visitado de pêia dos pés, amarrarão a um têrmo, que foi affincado no chão
"j
vinte em vinte e quatro horas pelo seu senhor, que não consente á certa distância do lado das costas.
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que alguern, alem dos que lhe servem de guarda o veja. Parece- P. se sabia que havia ordem para que n.inguem o podesse ver
nos que Antônio José Cardoso, depois de haver castigado seu
.1 na prisão? R. que não sabe, porem que sabe que seo.senhor, • • _
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escravo tão bárbara, quão cruelmente, pelo modo acima dito, sempre que seo parceiro Apolinario, que levava-lhe comida
agora só espera arrancar-lhe lentamente a vida, contando duas vezes ao dia, lhe ia levar comida, perguntava somente se
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esconder sob as dobras de uma mortalha e alguns palmos de elle respondente já tinha morrido.
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terra a prova de sua perversidade, a prova de que há homens P. qual a razão por que chegou a sua mão ao estado de putrefacção
t~ perante quem a faminta fera é humana! Antônio José Cardoso, "
• I~. ,'i'\" em que se acha? R. que foi por ter estado com o braço no trônco, U:~
com este procedimento, tornou-se passível das penas do art 205 ,::,~,
e a mão entre este e muito unida á parêde, o que fez com sua mão
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do Cod. Crime, grao maximo por terem concorrido do crime inchasse muito; elle respondente pedindo ao seo senhor para lhe
as circunstâncias aggravantes do art 16 mesmo Cod. Parágrafos tirar da prisão elle lhe respondeo-: que não havia Santos que lhe
4°,6°,8°, e 15°; e para que assim seja punido vem o mesmo valessem; então, dias depois, vendo o mesmo seo senhor que o
promotor dar a presente denúncia 263 estado de sua mão se agravava, tirou-lhe a mão do tronco [...].
P. se isso que tem soffrido é só pelo facto de querer que seo
senhor lhe vendesse, ou se é tão bém por ter procedido mal para
com seo senhor? R. que é somente pelo facto de lhe ter pedido
263. AlvlRC. Processo-Crime de 18/10/1882. Série: sumário de culpa, fl.Z (grifas para lhe vender, e que nunca fez nada a seo senhor.
meus). Artigo 205 já referido. O artigo i6 (já referido), nos seus parágrafos
4°,6°,8° e 15° acrescenta, respectivamente, as seguintes situações agravantes: P. se depois que a mão aprodeceo e cahio tem-se botado algum
motivo reprovado ou frívolo, superioridade em sexo, forças ou armas, remédio, e se elle respondente o tem pedido? R. que nenhum
premeditação e crime cometido com surpresa (Código Criminal do império remedio se tem deitado e que, em resposta á seos pedidos de
do Brasil, 1831, 1980: 239).
rernedio, diziam-lhe que não [... ].
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I
I 188
MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 189

1
P. á quanto tempo cahio-lhe a mão? R. que não póde bem precisar, Considerando ser esse um processo de 1884, talvez se explique a
\ porém que dois dias depois de preso a mão estourou, e trez dias postura do senhor que demonstrou não se importar com a perda do
depois cahio, sendo que fará seis semanas que está preso [...]. seu escravo.
P. se seo senhor tem por costume maltratar a elle e a seus Esse processo tramitou por três anos e não foi localizada a Ata
264 de Julgamento. Há apenas um registro informando que o SI. Antônio
parceiros com pancadas, troncos e algêmas? R. que tem
José Cardoso, após o mandado de prisão, "foi recolhido voluntariamente
Dentre as testemunhas lavradores, garimpeiro,
convocadas: à cadeia", em 1887, ocasião em que Martinho aparece nos autos
negociante, ferreiro, um pedreiro e um escrivão do Juizo de Paz, como "eix escravo". No último despacho, o senhor em questão
apenas este último negou a violência do senhor Antonio Jose "apresenta sua contrariedade e rol de testemunhas [...] com as quais
Cardoso. Todas afirmaram que "o senhor Cardoso costuma maltratarC'~- pretende provar que as offenças encontradas na extremidade do
seus escravos nelles batendo, pondo-os no tronco, em algemas". braço do eix escravo Martinho forão por elle occazionadas e não
Uma das testemunhas referiu-se com maior detalhe a questão do pelo qualificante"266
motivo que levou o senhor a "castigar" Martinho: Considerando as práticas adotadas pela Justiça, é bastante
provável que o senhor Cardoso, na condição de "qualificante", tenha
sabe por ouvir dizer que encontrando a senhora do denunciado, saído ileso. O próprio encaminhamento proposto com a convocação
Martinho e uma sua parceira Anna, voltou para caza bastante de novas testemunhas, todas muito próximas, amigas do "qualificante",
zangada ralhando com a dita Anna, então Martinho mandou está a indicar o quanto·nãe-se-pretendi·a-a-condenaçã-o-daqlTele. Um
pedir ao seo senhor para consentir no seo casamento com Anna, dos componentes que corrobora para a análise de uma Justiça
. I
I ou lhe desse seo escripto de venda, seo senhor não consentio, comprometida erri não ferir a lógica da dominação escravista revela-
'r", e nem lhe dêo escripto algum e que foi isto a causa do castig0265 se ainda no tratamento atenuante da condição dos senhores, ou seja,
I

denominados inicialmente como réus, no' decorrer-fi-e.g--atl{es-~ _.. ~~ I


o escrivão do Juiso de Paz, o único que, em seu depoimento, adquirem outras designações como suplicante, qualificante, )
disse não saber se o senhor Cardoso maltratava seus escravos, justificante, articulante, numa clara intenção de atenuar a presença 1..,1

afirmou que o motivo do castigo foi por Martinho querer "seduzir e culpabilidade destes sujeitos nos espaços judiciais. Essa postura,
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.,:',
sua parceira Anna para fugirem". Mas, os depoimentos, grosso em momento algum, foi observada em casos envolvendo segmentos li·

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-:;"1,' modo, confirmaram a denúncia do promotor público. sociais marginalizados. Nestes casos buscou-se acentuar, jamais I:~I
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atenuar cu Ipa bilid
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De acordo com os autos, Martinho ficou preso em tortura "por ,
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um espaço de cinco semanas", perdeu a mão esquerda, que entrou Ao analisar a violência sob a escravidão, Lilia M. Schwarcz
em estado de putrefação causado pela corrente que lhe prendia a e José Reis nos dizem:
••circulação. Afinal, quais razões estariam por trás do ódio que nutria
os senhores por escravos como Martinho? Barbaridades como estas A violência era em parte constitutiva desse tipo de organização

demonstram uma estratégia muito peculiar para afirmação do que supunha a propriedade de um homem por outro. Com efeito,

. domínio senhorial sobre a vida de escravos, uma vez que denun- o cativeiro só poderia existir em virtude da disseminação do

I ciama exacerbação da truculência como mecanismo de controle. medo e do exemplo de controle. É por isso mesmo que, rio
. I I

'. . ' ., j.', I,' o f,O{,AAN' c5h 'Í\.rO L-c, A Brasil, criou-se um verdadeiro "museu de horrores ". com
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'ii castigos dos mais rotineiros aos mais especializados. O

264. A1vlRC. Processo-Crime de 18/10/1884. Série: sumário de culpa, fl. 5-7 (grifos
meus).
':' 265. AMRC. Processo-Crime de 18/10/1884, fl. 13. 266. AMRC. Processo-Crime de 18/101l884, fi. 45 (grifos meus).

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190 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 191
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essencial, porém, era a "marca" do castigo que deixava no corpo _ dos malês que, como já foi referida, ec!odiu no mesmo ano em
a memória do cativeiro. Torturar e humilhar sem matar, eis urna Salvador-Ba, sendo liderada por negros muçulmanos, disseminando
espécie de código cotidiano que revelava como, nessa sociedade, - .... ' o medo entre proprietários brasileiros, Revoltas como a dos malês
L~
a violência naturalizada aparecia nuançada (Scr'IWARCZ
E REIS, ""=~h~r-ic constituem episódios extraordinários e mais próximos às
1996: 21 - grifas meus), circunstâncias da escravidão em áreas da grande produção. Já na
documentação pesquisada para este estudo, os mais comuns foram
Esses e outros processos similares contribuem para desfazer.~ ~ ~ resistências individuais, ou em pequenos grupos, umas organizadas,
o mito da benevolência ou "benignidade" da escravidão brasileira~::::-~ outras improvisadas.ê''?
Contrariam, dentre outras, as análises do viajante A1cide D'OrbÍ!U';Y~"'~'':'''''::''
b ,
~ Apesar de alguns processos estarem circunscritos noutro
"os negros são, em geral, muito mais bem tratados no Brasil, do que contexto, merecem destaque por aludirem a momentos em que
nas colônias francesas e inglesas" (1976: 105). As experiências dé" escravos do sertão foram enquadrados na referida lei de 1835,
I' Martinho, Ana Maria, Gaudência e tantos mais contrariam ta(" Examiná-Ios nos permite analisar as condições da vida escrava, os
)'i

interpretação. procedimentos da Justiça, as posturas das pessoas da comunidade,


e, quando pertinente, os momentos em que a suspeição fez-se mais /
Escravos e senhores presente.
,
_1
' <,
__ . O escravo Antonio Cabra foi acusado de assassinar o seu
.'. '!' Reações à condição de escravizados aconteciam a todo-o 2-f senhor, Joaquim Marques-de-Carvalho; ....
n3s-Minas-dv-Rio das
00);tiva.1.... =
t
. tempo e nem sempre resultavam em ações de resistência ;c.'. Contas, especi,fi~amente no Sitio d~ Casa da. Telha ..
A grande maioria delas se deu no plano individual, atraves de . No mterrogatono ao escravo, considerado reu, deslinda-se a
práticas sociais que se ~ontrapunham ~ ~iolência do trabalho, '~_-= .' - ação:' (\ í\,d'-:':'r.'."'..-:-)
compulsório e à amarga VIda sob a escravidão. ._.,.~.:L - .. • . ' "'~_----"-
Já foram vistos até aqui vários exemplos dessa resistência: Disse ser cativo de Joaquim Marques de Carvalho de idade de
,·1' ,,';,o-y. fugas, furtos, formação de quilombo, ou formas mais extremadas, 22 anos pouco mais ou menos e que a ocasião estavam presentes
",
como assassinato, suicídio, infanticídio e envenenamento, na Casa da Telha ele cativo, o ofendido [seu senhor] e um primo
,---
•• ;:- ' ••:~ :.', '.', ,I • Comportamentos prescritos como crimes, que são tratados pe~ , 7"' do ofendido [,..] dormiam juntos todos na mesma casa, e elle I'
Ili
.\,'",:
/"~ historiografia contemporânea "como categoria de interpretação" - - reei retirado de onde dormião porem no mesmo quarto [...] :;~
;ll,'
~.:.,
histórica que, revelando múltiplas tensões envoltas no regime de , ' respondeu que o acontecimento teve lugar em caza de Anna
"
trabalho escravo, devem ser avalizados internamente à dinâmica . Francisca na Caza da Telha; foi mais perguntado o motivo
-, -v,.: :::'
dessas relações',' (\VISSEMBACH, 1998b: 24). porque se achava aly com seu senhor, respondeu que não
Essas práticas exprimiam, além da insatisfação ou do., C;"'~ = querendo mais servil-o sahio de caza para procurar Senhor,
desespero diante da escravidão, a necessidade de escravos e forros que o comprasse, e que na ladeira da Gameleira fora prezo por
em manterem um posicionamento ativo em meio à subordinação" ~, '-'seu Senhor Joaquim Marques de Carvalho, o qual o conduzira
'.', "desejada por senhores e demais membros da elite local. para a Caza da Telha, arranchando-se na caza de Anna
Muitas dessas ações resultavam em agressões e mortes que o Francisca, sendo na noite desse mesmo dia que teve lugar o tiro
Código Criminal, vigente à época, conferiu "fundamento legítimo"
para a punição, Além daquele Código, houve a rigorosa J~;.de 10 "r
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de junho de 1835, que em seu artigo primeiro, punia com a pena 267, Reis, 1986, estuda uma série de revoltas de escravos que eclodiram na Bahia,
capital os escravos que provocassem a morte de seus senhores, por volta de 1807 e 1835, Ver, dentre outros, Schwartz, especialmenteo cap,
prepostos e feitores, AIglU1s estudiosos relacionam esta lei à revolta
1 17(1985, 468-88), Moura, 1981.; Queiroz, 1977; Rodrigue 1970; IMOi. 1978

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192 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PlRES o CRIME NA COR 193

dado em seu senhor, e perguntado, se na noite do acontecimento abrigou o senhor e o escravo]. Posteriormente, com base na Lei
havia hum faccão, e perguntado, onde se achava elle Reo, de 1835, Antonio Cabra foi condenado à pena de morte. Não se
depois que derão o tiro no offendido, respondeu que fora de caza sabe se essa nova captura foi montada por capitães-do-mato e se
[... ] [o final da folha está destruído] accordão-n-o o mandarão houve de fato a execução da sentença, apenas supõe-se, por indícios
saltar pela janella, mas que ignora quem fosse; sendo sugeridos em outros autos, que quando cumprida, fazia-se na
perguntado qual a razão, por que não soccorrera a seu senhor capital da provincia.ê"?
na occazião do tiro, e saltara para fora, respondeu que por ser A fuga, uma forma de resistência muito comum, continuou
mais pequeno, e não ter o entendimento que tem hoje; foi motivando mais assassinatos no sertão baiano.
perguntado, se no acto do tiro achavam se mais pessoas alem Um processo-crime do mês de junho de 1860 reporta-se ao
daquellas que se achavam ate então respondeu que não; foi assassinato de um capitão-do-mato responsável pela captura de
perguntado se sabia o motivo de sua prizão respondeu, que pela Rufino criollo. No depoimento de uma das testemunhas, o relato do
offensa
testimunhas
em seu Senhor,
que juraram,
foi perguntado
contra elle respondeu
se conhece
que sim, foi
as episódio: f!"(/'-tA' ~-. 0

perguntado se attribue alguma couza a sua prizão, respondeu


) --
que chegando o dito José Custódio, e o negro, com o senhor
que não. E mais não respondeu, nem se intelTogou268 mosso, que vierão atras do dito negro que tinha fugido da [... ], e __
que tal escravo hera ela Mai do tal mosso, que no lugar do Bomba
As testemunhas que depuseram contra o escravo AnJ.õnio_:~"- trasendo o dito_escr~\éo--So.lto,-e...ahi-em-caza-do_R.Qiz_Jledirão
confirmaram a sua responsabilidade no delito. Uma delas, Custódio agazalho [... ] já achando elles arranchados, e vindo com o
Vieira da Silva, que "vive de lavoura e do vacum", informou que, machado [o sogro do dono da casal o poz de baixo de W11acama
de varas que tinha na varanda, onde dormio o tal José Custódio
na madrugada do dia de Domingo a dois anos ouviu um tiro [capitão-do-mato], e o Senhor mosso do Escravo em ouna.cama ~. _
na caza do Roberto, foi chamado pelo ofendido que disse que na mesma salla, e o negro na beira do fogo da salla, e conversarão
.. ;•.....,.. tendo elle amarrado com as maons para frente, que elle desatara até tarde, e entrou o dono da caza para dentro, e deitou-se ainela
com os dentes e que lhe atirara com sua propria espingarda, e estava acordado, ouve uma pancada e applica o ouvido e ouve
":~_~ .:o,
~ que depois saltara da janella para evadir-se.õ? gemer, levanta-se quando vem chegando na salla o negro abre a
..~{,~'i hj
.
',~
'~.'.' "\ porta e corre e elle vê o homem com o machado enterrado na ,.
t.l HI
Uma outra testemunha, disse ter ouvido "da boca do proprio cabeça, acorda o mosso e diz que acuela seu camarada que o negro i~,·

reu as palavras daqui atirei eu". Para a Justiça, não houve dúvidas o matou, levanta-se e seguem uma distância e como o negro
"~' .
ti Li quanto a culpabilidade do escravo que, numa primeira tentativa de levasse uma arma defogo poude evadir-se.ê?'
. '.:1
fuga, foi capturado pelo seu senhor na Casa da Telha, um pequeno
povoado do município. Tentando evadir-se novamente, recorreu à . Novas informações foram adicionadas noutro depoimento:
arma de fogo que estava ao seu alcance, procurando evitar uma nova
captura. Contudo, dois anos mais tarde, foi "recolhido e prezo na o fallecido disse ao dono da caza que elle tinha vindo mais o
casa do próprio Roberto" [o fazendeiro da Casa da Telha, que 1110SS0e este trazia o tal escravo de caza da Mai, que morava
.,
l
270. Muitas questões não podem ser respondidas pela escassez de fontes e mesmo
268. AMRC. Processo-Crime de 17/10/1843, Série: sumário de culpa, 11.8 (grifas pela inexistência de informações mais precisas naquelas que são consultadas.
meus). 271.
Apeb. Processo-Crime de 3/6/1860, 11.6. Est. 13, Cx. 446, doe. 3, fi. 5 (grifas
269. AMRC. Processo-Crime de 1711 011 843, Série: sumário de culpa, 11.8. meus).
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I
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l _ . .w=rPh
~
.
194 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES
--
', o CRIME
1
NA COR 195

abaixo de São Felipe, e hia para o rio pardo, e na altura do


cinco pessoas] [...] participo a V. S. para ficarsiente e dar as
currar novo o tal capitan do matto soltou o negro, o tal Rodrigo providencias q' for de Lei'274
[senhor moço], aconselhou que prendesse o negro, e elle
falecido disse onde vai este diabo que "eu amanhã não o
Um morador do Araçá, que disse "viver de carpina", referiu-
prenda ", e já muito tarde retírou-se.P?
se ao apoio de segmentos sociais pobres no momento da fuga,
indicando a cumplicidade constituída nesses momentos:
.1. Esse processo-crime teve seus últimos despachos no ano de-
1873, quando novamente o juiz expediu mandado de prisão ao querendo o cunhado d'este [o senhor] de nome Jozé de Souza
escravo Rufino, e enquadrou o delito no art. 193 do Código Criminal, prender o referido escravo, n'este interim chegarão diversas
que previa "penas de galés perpetuas no grao maximo, de prisão com pessoas umas para ajudar e pegar o dito escravo, e outras
trabalho por doze annos no medi o, e por seis no minimo".273 coadjuvarãa a júga do mesmo, por algumas vezes vio elle
Geralmente estas penas eram comutadas em açoites e ferros. testemunha [... ] [que o escravo] chegou a dar algumas
Treze anos após o episódio o escravo não havia sido recapturado, cassetadas [... ] em um seu irmão de nome José escravo de

---~
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mas os despachos judiciais não cessaram, aparentando, ao menos Gonsalo, e em uma sua irrnan escrava de Pedro Gusmã0275
formalmente, uma atitude vigilante das autoridades públicas. .__.
Outro processo nos conta que, num "Domingo de Ramos de - - Em seguida, o escravo chegou à casa de Manoel Joaquim
08 para 09 horas do dia" ou "em horas de almoço", na Fazenda--r- Moreira "a qual fica murro perwae seu senlior, a5riounia-porta de
Gameleira,ji-eguesia e termo de Caetité, o escravo Antonio cabra, . um quarto e apanhou uma arma que dentro estava". Atirou no
de 24 anos, que trabalhava na lavoura do seu Senhor, foi acusado pela .__ -. cunhado do seu 'senhor e
i\ ~;~te de ~~1 parente daquele. Um inspetor de quarteirão registrou: ~
\ \ \.\ \./) ',1:\ [) • logo depois do tiroo: escravo Antoniccabrarxnretre seguinâu
.1.>
Participo a V. S. q. no meo Quarteirão no lugar denominado pessoas atras o não poderão pegar, tendo antes d'isso Manoel
Gameleira no dia 2 do corrente um escravo do Sr. Manoel Ignacio podido tomar-lhe a arma [...] tem ouvido dizer que o
..:." .'.~.\;',: ~ " Antonio Avelar por nome Antonio cabra, mandando seo Sr. referido escravo tem por costume embriagar-se e n'essa
f'-
occasião provocar sempre barulh0276 ~ f
.c·"· ~~;;.
pegar um cavaIlo o dito escravo, o disobedeceo. Elle chamando
r~\-l,,~V;·
> •

--!,' :. .~'

seo cunhado José de Souza Pinto para prender o dito escravo , 11,
~..
elle acodio e pegou, mais elle [o escravo] por emtermedio de E noutro momento, expressou a suspeição sempre recorrente
..;..

outra pessoa escapolio e correo o dito Jose de Souza Pinto na vida desses sujeitos que ofereciam maior resistência à condição
segui o atraz do dito escravo e chegando na casa do Sr. Manoel de escravizados, "disse que o motivo de prenderem o escravo foi por
Joaquim de Souza [o escravo] apanhou uma arma defogo do desobediência a seu senhor, e que pela mesma razão de desobediência
dito Manoel [...] e voltando para traz déo um tiro no dito Jose e desafôrro foi o motivo de ter commetido o delito"277
:,.
de Souza que hia na sua seguida e recebendo o tiro no braço As demais testemunhas, todas lavradores da região, confirmaram
direito dizacete caroços de chumbo na prezença das testemunhas esse depoimento: "conhece bem o escravo, e que tem por costume
que se acharão na ocazião do acontecimento [cita o nome das

274. Apeb. Processo-Crime de 18/4/1871. Série: sumário de culpa. Est. 16, Cx.
542, Doe. 13, fi. 3 (grifos meus).
275. Apeb. Processo-Crime de 18/4/1871, fi. 11 (grifos meus).
272. Apeb. Processo-Crime de 3/6/1860, tl. 7 (grifos meus).
276. Apeb. Processo-Crirriede 18/4/1871, fi. 11.
273. Código Criminal do Império do Brasil, 1831, 1980: 234.
277. Apeb. Processo-Crime de 18/4/1871,11. 13 (grifos meus).
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11 MARIA DE FÁTIMA NOVAESPIRES o CRIME NA COR 197
196

embriagar-se, e n'essas occaziões sempre se põe a valentona Forma de resistência muito comum ao longo da escravidão,
provocando barulhos com essa ou aquela pessoa, e desobedecendo a fuga teve para os escravos diversos significados, As interpreta-
a todos"; "quando fica n'esse estado provoca desordens, torna-se ções desses significados peculiarizam as abordagens,
~ ensoportavel"; "provoca barulhos e desobedece a qualquer pessoa, Para José Alípio Goulart, o escravo não vislumbrava com a
, tanto assim que elle testemunha por duas ou trez vezes tem visto elle fuga adquirir a liberdade ou mudanças no seu status social e o que
desobedecer a seu proprio senhor". Somente uma delas contrariou o impulsionava a evadir-se foi "tão somente, o imperativo de
\esses depoimentos: "conhece o escravo, e que este tem por costume sobrevivência fisica, alimentado por pesada carga de revolta" (1973:
beber cachassa, porem não tem por costume fazer desordens".278 25). Já o sociólogo Gilberto Freyre compreende que, "Crueldades
Capturado, o escravo Antonio cabra procurou inocentar-se: que explicariam fugas de escravos menos à procura, em vários casos,
de uma abstrata liberdade que de um bem-estar que, entretanto,
passando por uma cêrca e trazendo uma espingarda, esta estavam certos de encontrar em senhores diferentes dos seus" (1979:
desparára involuntariamente sobre a pessoa de José de Souza XI - grifos meus). Essa passagem de Freyre faz lembrar um processo-
Pinto [...] estando elle interrogado bastantemente embriagado, crime em que o escravo afirmou que o seu senhor era "muito
e fora de seus sentidos vio que suas irman s e o referido aborrecido" .
offendido lhe pretendião prender, e por isso tratou elle O brasilianista Stuart B. Schwartz, mais preocupado (~on...u>
interrogado de evadir-se a fim-de evassar a pretenção que tinhão estudo das fugas de caráter coletivo, alerta, " i <? c
{lA,'\ .

-'-l-"
_./'! {~ -/
suas irmans e o offendido de pegal_0279
tem-se encarado o tópico fuga e resistência escrava no Bra;il '
Na sentença do juiz, a punição para o escravo: de forma ilusoriamente simples e as análises têm sido
freqüentemente baseadas em um conjunto limitado de questões
incurso, no grao medio do art. 205 do Codigo Penal, em virtude __
.~_
..
l [... ] [e problematiza] Até que ponto os.escravos.fugidos.c.c. __

:..•.. do art. 60 do mesmo código e aviso de 10 de junho de 1861, o organizaram uma resistência visando conscientemente a
condeno a duzentos açoutes [...] que serão dados na conformidade desbaratar ou pelo menos atacar a sociedade escravocrata em
da lei, e a trazer uma argola de ferro ao pescoço, por espaço de lugar de procurar sua liberdade pessoal é questão que permanece
'-.'):."", trez annos, em cujo sentido se obrigará o senhor do referido réu: sem resposta no Brasil (1987: 62_3)281
.,;', '

pagar os custos pelo senhor do mesmo. 25.10.1871280 I,

- , Considera ainda que é dificil responder a questões como esta I"

A revolta contra o regime de trabalho escravo, o ódio da es- por escassez de documentação apropriada, mas acredita que, "uma
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~~, ,:. :
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cravidão, as suspeições e humilhações expressas de variadas ma- leitura minuciosa de fontes locais e o uso de técnicas etno-históricas
neiras, impulsionavam as fugas, que atormentavam desde colonos podem abrir caminho para respostas empíricas a algumas das ques-
e administradores do período colonial até senhores e autoridades tões centrais sobre a comunidade de fugitivos na sociedade escra-
públicas do Império. Foi, sem dúvida, uma estratégia recorrente, na vista brasileira" (SCHWARTZ, 1987: 63)
resistência à escravidão, efn toda a América. Em verdade, na medida em que se desenvolvem pesquisas
mais localizadas sobre a escravidão brasileira despontam novas

278. Apeb. Processo-Crime de 18/4/1871, fi. 25-48. 281. No artigo "The Mocambo: Slaves Resistance in ColonialBrazil", o autor trata
279. Apeb. Processo-Crime de 18/411871, fi. 68 (grifos meus). dos quilornbos que floresceram na Bahia durante o período colonial,
280. Apeb. Processo-Crime de 18/4/1871, fl. 78. Artigos já referidos. destacando principalmente o famoso "Buraco do Tatu".

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':il o CRIME NA COR 199
i 198 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES

compareceo o escravo José, réo [... ) por haver assassinado em


problematizações para temas que aparentemente não suscitavam
no dia vinte e nove do mez de junho proximo passado, a seu
maiores inquietações.
senhor mossa Xisto Romeu de Carvalho. [... ) tem de 40 a 50
As fugas surpreendidas nos processos-criminais do sertão
anos, solteiro, filho de Antonia, já falecida, brasileiro, nascido
geralmente foram acompanhadas de roubos, agressões físicas ou
neste Districto I~ [disse viver) de serviços [a seu senhor)
assassinatos. Como foi dito, esse foi um expediente comum da
trabalhando em suas roças283
resistência escrava e é certo que os significados foram modificados··.
para os escravos fugitivos, especialmente quando as motivações
eram de ordem pessoal. Percebeu-se nos processos que mUitos~i~t~ Na leitura dos autos percebe-se o quanto as autoridades
escravos buscavam, através das fugas, livrar-se desse ou daquele' judiciárias não demonstraram o menor interesse em averiguar a
senhor com a perspectiva de alterar, mesmo que minimamente, a":=:-': versão do escravo, haja vista que este foi o único quesito referente
sua condição de vida, neste sentido não é possível interpretá-Ias ao delito,
i!
,Ir"ii
'ii unicamente como uma estratégia direta para a liberdade. Em muitos __ ; __
~:
momentos, escravos evadiam-se após a pratica de delito __e~~~-'-=· Tem algum motivo particular a que atribua a parte official e o
procedimento. da Justiça? Respondeo que não tem, que somente
dificilmente eram r~capnll:ad~s,.enquanto que outros, após a CaptllTK'-=-=".=T.·
"."
ao serem sentenciados judicialmente, geralmente passavam a,'=.:-cdt atribuía a ter sido elle o autor de matar a seo senhor mosso Xisto
~
111
:i: carregar ferros presos a seus corpos, J Romero de Carvalho [... ) Se tem provas de sua inocência, que

.It As fugas não ocorreram apenas com objetivos efêmeros-ou não tem284
~r-'
.' !1~
.~ ,, imediatos, muitas delas tiveram pretensões de "liberdade" mais~-~
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I"
definitiva. Muitos escravos fugitivos ganhavam os sertões, as matas . -; f-= Uma das testemunhas procurou apontar os motivos, "sabe que
e os quilombos. Alguns deles, ao chegarem em regiões mais distantes, o mesmo reo mataria ao finado porque faltando sertos objetos, elle
I~
~ conseguiram se passar por forros. Não é aleatório que nos processos - ~ [o escravo] determinara o lugar onde estavão JJ9 nm.ttQ,_ecom effeito. .
1$ pesquisados encontra-se muita desconfiança por parte de pessoas hiam-se ver, e achava-a, bem como entre outros, o cano de uma
da comunidade, especialmente inspetores de quarteirão, quando clavina, instrumento do assassinato", Uma outra esclareceu "foi o
,.;. '~~~ i!1
escravo do pai [ela vítima] por lhe dizer o mesmo réo, que com o
;\,' b
.1~
negros forros chegavam "da noite para o dia" para trabalharem como
cano da arma que elle [senhor moço] levava".285
lavradores nas vilas de Rio de Contas e Caetité: "n'este Arraial
'-'é\ '::
~ O juiz municipal classificou o crime incurso na lei de 1835
~ haverá 4 mezes pouco menos, que appareceo hum cabra de nome
.; " Q
Antonio Caetano, que diz ser forro".282 (já referida), no entanto, seis meses após a instauração do processo,
• !~ •
.,'
Passemos agora a análise de mais três processos-crime, dando no seu último despacho consta que, "faleceu em caminho para a
~ ~",
continuidade à linha interpretativa de autos criminais que põem em capital da provincia onde ia cumprir a pena de galés perpetuas, que
cena escravos e senhores em conflitos, resultando em mortes e que lhe fora imposta pelo juiz da vila, o reo Jose, escravo de Manuel
\. a Justiça lançou mão ela referida lei de 1835. Romeu de Carvalho".286 Ao que parece, a morte do "senhor
rf?/ Em 29/6/1866, no Arraial da Vila Velha, nas Minas do Rio mossa" foi "devidamente" vingada com a complacência e aquies-
I) r de Contas, foi instaurado um processo que envolveu um escravo, cência das autoridades judiciárias. O escravo José não teve nem
.'
í acusado pela morte do filho do seu senhor. No interrogatório de José,
escravo ele Manuel Romeu de Carvalho, em 8/7/1866, foi possível
observar algumas evidências: 283. AMRC. Processo-Crime de 13/1111866, n. 3.
284. AMRC. Processo-Crime de 13/11/1866, fl. 11. Interrogatório concluído.
285. ANIRC. Processo-Crime de 13111/1866, n. 9-10.
286. AMRC. Processo-Crime de 13/11/1866, fl. 43 (grifas meus).

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282. AMRC. Processo-Crime de 18/12/1821. Série: sumário de culpa, fl. 3.

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200 MARIA DE FÁTIMA NOVAESPIRES o CRIME NA COR 201

mesmo chance de defesa; seu interrogatório minimamente organi- e quando correu tudo isto [...] foi no dia onze de julho passado
zado demonstrou a indisposição da Justiça em "averiguar os fatos". deste corrente armo as 10 horas do dia, disse mais a testimunha
O processo-crime fora montado por mera formalidade. De fato, as que o dito Escravo fes esta disordem por se achar auzente
autoridades judiciárias agiram antecipando a culpabilidade de José. Antonio dos Santos. Senhor do dit0287
Como se viu sobejamente neste livro, quando se tratava de julgar
e punir um escravo ou forro, considerado, pela comunidade, como As testemunhas foram unânimes em acusar o escravo. Eram
um "escravo desobediente" e "de maus costumes", agia-se pronta- elas, lavradores, official de justiça e sapateiro e uma outra
"'~I i mente no sentido da punição, que em muitos casos significou a sua~~~- classificada como proprietário. Exceto pela "ausência do senhor da
' .. \~xc1usão da vida social nas vilas. fazenda", em momento algum sc evidenciou o motivo que
Os exemplos que se seguem também negam plenamente as impulsionou o comportamento do escravo. No libelo do juiz pediu-
" / atitudes de "benignidade" ou "brandura" entre escravos e senhores se a condenação com base no Art. 1 da lei de 10 de junho de 1835
0

\:, / no sertão baiano. São eles processos da Vila de Santo Antônio da e no art. 192 do Código Criminal no grau máximo (já referidos).
\ Bana (atual Condeúba), que, até o ano de 1860, pertenceu à comarca As informações adicionais no processo permitem verificar o
de Caetité. cotidiano da vida das senhoras do sertão. Quando mencionadas,

~I~
_ ,/) Nesse processo, o escravo Domingos Africano foi acusado de aparecem trabalhand.o em rios, lavando roupas e demais objetos,
.,·'a:§sassinar a sua senhora Maria Rufina de Jesus, no distrito de Sam diferenciando-as das senhoras das plantations. Não se quer aqui
'tcr//Fellipe termo da Vil/a de Santo Antonio da Barra. Uma das afirmar que as senhoras- das grandes-fazendas -eram inertes, a
"
.v testemunhas, parente da senhora, relatou o episódio. Segundo a sua pesquisa histórica tem demonstrado um nível de atuação mais amplo
versão: neste aspecto (MALUF:1995). O que se pretende dizer é que estas
senhoras se ocupavam de afazeres domésticos que possivelmente
Disse que estando ella testemunha no Arraial dos Currais J_ não foram tão corriqueiros no dia-a-dia de senhor-as-ma-i-s-a.east-adas.-_. _
Velhos é quando chegou hum filho e hlU11sobrinho de Missia Eurico Boaventura, ao escrever sobre o sertão, afirmara "outra
Rufina de Jesus dizendo que se achava morta sua Irmã Maria vida, outra economia, outra cultura". No prefácio ao seu livro,
'.! ,': ~

~.
"l','
,
.. --.r Rufina de Jesus, e que foi morta pelo Escravo de seu Pai José Wilson Lins procura diferenciar os sujeitos, trabalhados por aquele
. ,
Antonio dos Santos, de nome o Escravo Domingos nação autor, dos senhores que inspiraram a obra gilbertiana:
"'.\ :."",
Nagôu, e que estando sua Mãe Missia Rufina de Jesus com sua fi
(l e.X.14
Tí:'.
l rJ:/-, .•
filha Maria Rufina na frente da agoada do seu costume na Enquanto a obra do grande pernambucano retrata os nédios e .-_.--
Fazenda Boa Vista, e quando ellas sairão para afonte deixarão fartos fidalgos [...] comumente viviam nas costas dos negros,
o escravo Domingos, em casa amolando uma foice e estando que não só suavam por eles nas plantações de cana e nas
ellas já 110trabalho dentro da agoa, hé que chegou o Escravo caldeiras dos engenhos, como ainda carregavam nas redes e
Domingos e deo hua grande cutilada no pescoso de Maria cadeirinhas de arruar, o volumoso trabalho do poeta baiano
!
t •
Rufina e que dentro d'água cahio "l'i'iorta,c deo outra grande mostra uma aristocracia suarenta, requeimada de sol que, em
,. , cutilada na offendida Missia Rufina de Jesus Mulher de José vez de se deixar transportar pelos escravos, nas padiolas,
.', 1:
Antonio dos Santos e a morta Maria Rufina de Jesus, filha de rasgava as roupas no cerrado, correndo atrás de boi bravo, nos
ambos, e logo que ela testemunha ouviu esta noticia promptamente seus cavalos de campo (BOAVENTURA, 1971: 17 e 9).
corrêo do Arraial ao lugar do acontecido [...] Disse mais que
depois xegou na casa da offendida, ella disse que o Escravo
Domingos Africanojoi quem fez a morte a sua filha e a offença 287. Apeb. Processo-Crime de 12/7/1862, Série: sumário de culpa, Est. 15, Cx.
a ella e que bem vio e conheceo o Escravo Domingos Africano, 539. Doe. 7, fi. 18 (grifes meus).

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o CRIME NA COR
J I'
202 MARIA DE FÁTIMA NOVAESPIRES 203

Discutir a qualificação do trabalho nessa região também senhora [...] tentou levantar-se e fugir peja porta mas a negra a
sugere relativizar, em certo sentido, a concepção de trabalho as- seguia, e sempre as pancadas, foi a derribar 110 terreiro, onde
sociada à idéia de desclassificação social, presente no Brasil desde' a largou morta. No intanto a mossa Ma Magdalena [11 anos]
os tempos coloniais, como foi analisado por muitos estudos que muito aterrada com a senna, tomou ao collo seo irmão, que
discutiram a transição no período abolicionista, tendo por refe- principiava a sentar-se, e para ver se com elJe se salvava áofuror
rência os grandes centros produtores. Esta é, sem dúvida, uma daquella fera, deitor a fugir, pela estrada, por meio d'uma
questão bastante instigante cuja análise transcende aos limites da capineira limpa, em procura da caza de M.el Alves Per" Chaves,
abordagem proposta por este estudo. que muito longue lhe ficava. A negra julgando morta a ..sua
O último processo nessa linha de abordagem trata do senhora, e vendo a fuga da mossa aborava em discoberta, deitor
assassinato de uma senhora por sua escrava, na Alagoa do Fellis oU.----:: a correr atraz desta, que já tendo feito cerca de mil passos de
no Lagedão, no districto de Sam Gonsalo das Lages, no termo da fuga, sentindo a negra em demanda delta, largou seo irmão e
Vil/a de Santo Antonio da Barra, em 10 de novembro de 1862. com elle os sapatos, e dos hombros [...], e continuou a fugas,
O oficial de justiça expôs minuciosamente as circunstâncias do mas a negra adiante a alcançou, e com páos lhe quebrou os
crime, que será aqui transcrito, quase na íntegra, pela sua riqueza ossos da cabeça dentro do couro, esbugalhando um olho, e a
de informações: matou. E continuou a correr em demanda de dois meninos José _
c Herculano que brincavão no curral, quando ouvirão pancadas
)\r
c.~.",I). '"\.. r >", O o:fficial de justiça interino Barboza Tellis com quatro apinadas dentro, e dacaza sair-sua-irmã-Ma·com-o-outTo-no-collo;-correrão,
,', ~ ./
e como mais ageis puderão escapar, chegando em caza de M.el
" [?] entregará a VS. preza por uma corrente afera humana, com
o nome de Benta, escrava D' Antonio Alves da S.". Essa monstra Alves. A negra não os pudendo alcançar, e nem mais retroceder
acaba de aprezentar na caza de seo senhor senna horroroza, pela da vista de M.el Alves, e de M.el Joaquim Ramos, que com este
manhã segu.inte. Este mosso havendo viajado para o Brejo L estava, chegou disendo que acodissem sua-senhoro-es-doie
Grande, deixou em sua caza no lugar da Alagoa do fellis, sua negros fugidos a tinhão matado, e q' eJ1adepois de ver se a [...]
pacificafam.", constando sua mulher Anna Maria de Assumpção, com medo tambern correo, sem contudo dar mais explicação
!",,/>~Ai alguma, e mesmo q' levando em si signais de sangue della
e [...] menores seos filhos. E! Pelas 9 ou 10 horas da manhã,
-'-':'"
que estando a escrava Benta [...] em caza [...] pillando um pouco desconfiarão, e prenderão, e conduzindo-a para traz,
..•.; '\ , ."
de milho, da parte de fora no quintal, sua senh." jazia na sala encontrarão no caminho morta a menina Ma. e chegando em
.. -,,'
'I~•
sentada sobre um catri, com sua e Maria Magdalena, cuzendo, caza quaze morta a senr", por que não fallava, então a menor
cuja menina contava apenas 11 anos de idade. Ex que ouvindo Rita sua e [filha] disse ser a negra Benta [...] quebrando nesta
,. a senhora chorar a sua filha menor Ritta, de cimo annos, vitima duas man de pillã0288
perguntou a mesma sentada como estava, o que tinha a menina,
e a escrava já em tom arrogante, respondeo que perguntasse a A escrava Benta em sua qualificação, já detida, disse ser filha
menina, e esta então disse que Benta lha avia dado, a senhora do Brazil e ser natural da Villa do Rio de Contas. Uma das
sem que se movesse do lugar onde estava em seo trabalho, testemunhas, um lavrador natural da Frequesia de Caetité, afirmou
ralhou com a negra, e por todo o castigo delimitou a mandala que ouviu da própria escrava que "apareceu um magro, muito preto
que pizasse dois pillões de milho. A negra continuou a pizar e e vestido de preto com a figura de Quintiliano do Brejo, escravo,
depois parou aquelle trabalho, em seguida entrou pela porta, e
a sua senhora quando avio foi levantando a vista p" ella, quando
já encontrava a acção de levantamento dos braços, e a negra lhe 288. Apeb. Processo-Crime 'de 10/1 1/1862. Série: sumário de culpa. Est. 13, Cx.
446, Doc. 2 (grifos meus). Folhas não numeradas.
discarregou na sua cabessa em grande golpe [com o pilão]. A
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I1 o CRIME NA COR 205


MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES
204
f

que já havia morrido. Este escravo lhe figurou o diabo e lhe o processo ainda tramitava. Na queixa-crime, a triste sina de Dona
mandou matar a sua senhora com o pillão". 289 Segue o seu Maria Clemência do Nascimento foi registrada:
depoimento afirmando que todas as ações da escrava foram
provocadas pelo mando deste negro, e que quando viu Manuel a razão que tem a queixosa hé, que no dia seis de novembro as

Alves "tentou lhe explicar que um negro havia matado a sua nove horas do dito dia estando ela queixoza em sua rossa no
senhora e a Magdalena, más ela apontava o negro e mais ninguém mesmo lugar da faIlecida Rita cuidando em seu trabalho, e

o via. Manoel Alves achou ser ela uma atora e Benta então cuzinhando para seus trabalhadores, que tinha allugados,
começou a pedir-lhe que Manoel a matasse".290 chegarão Manoel Gardiano e Antonio Cabra, Liberatto crioulo,

O promotor público pediu a condenação de Benta nas penas escravos do Tenente Jozé Alves Portugal, a saber Manoel

do art. 1 da lei de 10 de junho de 1835 (já referida), no entanto, na


0
Gardiano camarada ou aggregado do dito Portugal [também

sentença expedida dois anos mais tarde, em 19.12.1864, a escrava citado como vaqueiro deste], e assim todos estes disserão a eIla

ainda encontrava-se na cadeia, não ficando claro se em celas das queixosa, que Dona Maria mulher do mesmo José Alves a

vilas de Santo Antônio da Barra ou de Caetité. mandara chamar com muita precizão e presteza para hum

Os episódios no Curral Velho e na A lagoa do Féllis recolocam


atritos, vinganças e o ódio, sempre patentes nas relações entre escra-
vos e senhores. Evidenciam ainda que, em muitos momentos, a au-
j .
negócio, e convencida
Dona Maria da estimação
ser humilde não pôz duvida
assim de convensão
da Queixosa,
alguma
passifica,

em accudir
por ser
e n'eIla ter boa fé, e por
aqueIle

sência dos senhores propiciava formas mais extremadas de vingan--- --' chamado, apezar dos-pezares;-e-deixalldo-serts~alllgados;- Jozé

ça. No caso específico de Benta, maiores informações relativas à Caibra e Manoel de Jesus na dita rossa, e foi accudir o chamado

sua relação com os seus senhores, talvez permitissem análises mais innocentemente, e quando chegou ao pé da caza do mesmo Jozé

precisas do triste e bárbaro enredo que os autos nos oferecem. Alves nas Alagoas no lugar do Morro do Caldeirão, ahi
___
.L, mandarão que a queixosa esperasse-por- D0l1a-Maria,e.Í!~d0-S€---
) Manoel Gardiano chamar a mesma Dona, chegou ao depois
, ,'I As artimanhas do poder - senhores e senhores
,.,; li Dona Angelica Ferreira de Faria mulher de Joaquim Alves
.;::~~ 11
, , li Ocorriam entre senhores no sertão desentendimentos motiva- Portugal, vindo em sua companhia o mesmo Manoel Gardiano,
..•=--' '~
dos por disputas de ordem vária. Importa aqui especialmente as e huma escrava de Jozé Alves Portugal por nome Rumana
"~\ :•.••,~ J.
~
contendas em que estiveram na cena histórica escravos ou fOITOS. crioula, e outra escrava, e outra escrava de Joaquim Alves
..... '::".'. Senhores mais abastados oprimiam, além dos seus escravos, Portugal por nome Eduviges crioula trazendo a escrava Rurnana

lavradores mais pobres e ainda contavam com forte favorecimento uma cuberta embrulhada, e ali abrindo a dita foi quando elIa
~~,. queixosa vio huma palmatória, e cordas de croar, e huma laca
e privilégios nos espaços judiciais.
Para o exame desta questão, desloquemo-nos novamente para com cinco pernas, e outra mais dita com hum cabo de paú, e
a Vi/Ia de Santo Antonio da Barra, Districto dos Currais Velhos, logo foi ordenado pela dita Dona Angelica que amarrassem a

Termo da Vila de Caetité. Lá, em agosto de 1865, o escrivão interino queixosa, e a querendo os escravos amarrar, e estranhando

do Juiz, Antônio Joaquim Moreira, localizou uma "cópia autêntica" inteiramente tal procedimento tentou correr, e[oi obstada por

do processo-crime que se originou em 1854. Naquele momento Manoel Gardiano ; igual os escravos, e logo em seus brados a
quizerão atirar com huma espingarda que trazia Manoel
Gardiano, sendo-se a queixosa em tamanhas e tão [... ] costumes
valendo-se da mesma Dona Angelica cahindo em seus pez

289. Apeb. Processo-Crime de 1011 1/1862. Folhas não numeradas. pedir-lhe com o amor de Deos e de Maria Santissima a qual
290. Apeb. Processo-Crime de 1011111862. Folhas não numeradas (grifos meus). Dona respondeu-lhe, que a nada conhecia, e que amarrasem e
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206 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 207

açoutaçem, que tudo logo o fizerão, a queixoza preza e amarrada seus negócios e sua lavoura; morador da Fazenda do Emchú, tem
com cordas de croar, e chegando em hum paú secco que ahi se sua lavoura e criação; Fazenda da Barra das Queimadas, vive de
acha acoutada com grande rigôr, primeiramente foi atormentada lavoura; morador no Xapio, lavrador; da Lagoa do Páo de
com palmatória dada pela escrava Rumana crioula, já estando Colher, lavrador; morador na Barra das Queimadas, lavrador e
a queixoza amarrada, e a escrava lduviges segura na corda, e vaqueiro; morador do Pé do Morro, lavrador. Essas referências
ao depois de levado a queixoza muitas duzias de palmatoria, denotam o quanto às condições topográficas e culturais definiam
estando com as mãos [...] de nada sentir, e toda esbandalhada, a nominação dos lugares. A literatura regional se apropriou em
1 - (;,/.
.- foi determinado por Dona Angelica que açoitaçem com o diversos momentos dessas caracterizações, a exemplo de Eurico
bacalhao, tornou a mesma escrava Rumana a pegar neste, e Boaventura, que fala de um "Brasil do Sertão, com pastos,
0\1'"
assim estava amarrada foi atormentada com o dito instrumento malhadas, currais e casas-de-fazenda [...] as lavouras e as criações"
~
I :j
em tanta forma que acabou seus pobres panos, e derramou muito (1971: 16 e 23).
sangue de seu corpo, até que a queixoza ahi ficou adormecida, Como assinalamos ao longo deste livro, o registro das profissões
'.;1
tanto derão-lhe com o bacalhao, como tambem ao depois com nos autos criminais auxilia a compreensão da estrutura econômica
uma taca cabo de pau por cima de sus hombros, ou costas, regional. São essas pequenas frestas que se abrem com a leitura dos
estando já muito inferrna a queixoza foi quando ahi chegou -1-- processos que enriquecem a possibilidade de reconstituição histórica
outra escrava de Joze Alves por nome Leocadia, e chegando- da região, adensando significados outros para essa fonte.
~,I
~_.-- --'ii] se a Dona Angelica, e disse minha senhora manda dizer a -- - - - Retomando a condução-do-processo-;-é-impurta-n1e-informar
Vosmmicê, que se não tivesse dado na mulher que não desse
mais, foi respondido pela mesma Senhora, que desde que ella
chegou esta berrando. A queixosa requer Vossa Senhoria hum
corpo de delito para ser punido tão grande assassino sem
nenhum respeito as Leis do Imperio em huma humanidadeV'í
T -

--'--
.
que os cinco primeiros depoimentos foram realizados em 1712/1854,
e o processo ficou' sem trâmite ou mesmo sem nenhum despacho
até a data de 18/8/1863. As primeiras testemunhas foram unânimes
em afirmar que nada sabiam ou que "sabia-por ter Otl'\f:i-cle-dela--
mesma [a vítima]". Quando o processo foi retomado, na década de

~
..~.~~',:
Tal qual o processo do escravo Martinho, tratado neste
capítulo, este velho auto mostra a truculência de senhores e senhoras
~. 1860, as quatro testemunhas restantes, menos pressionadas,
chegaram a afirmar "por ser vós publica". Em momento algum as I
(
testemunhas foram inquiridas sobre os motivos da agressão. Uma
,~li· no sertão baiano. Salienta-se a utilização dos mesmos instrumentos única testemunha, um sapateiro transador, informou o provável
'I~•

·:i
de tortura empregados no "castigo" doméstico de escravos: motivo da vingança de D. Maria, expondo ainda o poder que a I
palmatória, e cordas de eroar, e huma taca com cinco pernas, e família do Tenente José Alves Portugal ostentava na região:
-Ô, • ~-.'
outra mais dita com hum cabo de paú e o bacalhau.
Esse processo tramitou por 22 anos. Seu último despacho
li ocorreu em 2511/1875, quando o crime havia sido prescrito. Toda a
Disse ter ouvido da propria ofendida o já descrito até agora e
ainda mais, que a mulher do Tenente José Alves disse que a
!
sua condução mostrou o beneplácito das Authoridades do sertão para ofendida estava desencaminhando o seu filho, e nele "deitado
com os "homens de bem".
Ir,1' ji
moléstias pecaminosas" e que ainda depois de restabelecida a
No momento de qualificação das testemunhas indicou-se, vítima, o Tenente e sua mulher lhe chamaram a sua casa para
como de praxe, os lugares de moradia e -asprofissões: morador nas.: remediar a situação e lhe ofereceram dinheiro para desistir do
veredas, vive de sua lavoura; carpinteiro, da Lagoinha. vive de processo. Dis tambem que o Tenente e sua mulher tomaram a
ofendida em seu poder e a casaram mantendo-a em sua
II 291 Apeb, Processo-Crime de 13/12/1854 Est 15, Cx. 540, Doc. 12, fi. 2-3 (do propriedade, coisa que ele próprio viu quando estando lá viu a
li -

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original) (gnfos meus).

'.:.. i ofendida em seu poder ferrando cavalos para o Tenente, e

" .
--.,- f ~;i
MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 209
208

disse ser publico e notório que o subde1egado na época expedio nascido em Passo D 'Anta desta Frequesia, "lê porém não escreve",
mandado de busca para a ofendida por estar ela mantida em a segunda nascida em Monte Alto desta Frequesia, analfabeta. As
propriedades do Tenente e que realmente a acharam oculta nos novas testemunhas arroladas depuseram neste mesmo dia, mas, não
matos com o seu marido, em propriedade do Tenente sendo surpreendentemente, todas alegaram ser muito próximas da família,
mantidos ali a mando do mesmo Tenente292 "muito envolvido tanto com amizade como comércio", "não sabia
nada do caso, tambem bem relacionado com a família das rés", "as
Diante dessas evidências pediu-se a condenação dos réus justificantes estiveram sempre presentes nesta vila", "asjusficantes,
citados na queixa, inclusive a dos escravos. Todavia, em 27/9/1864, nunca sairam deste Termo nem a paseio", "nunca sairam e é vizinho
somente foi preso o vaqueiro Manoel Gardiano, que à época já contava dasjustifícantes". 294 Pela idade das cinco novas testemunhas arroladas,
com 64 anos. Em seu depoimento explicou: evidencia-se que quando ocorreu o crime, três delas tinham dez anos
I!I' de idade e as demais 19 e 20 anos. Isto sugere que foram convocadas
foi apenas chamar a vitima [...] que a ofendida apanhou por pouco com o propósito de nada esclarecerem.
tempo e sem gritar e que depois ela retomou para suas roças [...] O próprio inquérito não passava de lU11 grande embuste. No
que assistiu a tudo de sua casa [...] que tres meses depois a caso do interrogatório de Manoel Gardiano, o quesito "mais
;'1 offcndida foi morar na mesma fazenda onde fora surrada [...] que importante" dizia respeito ao porte de uma espingarda que este teria
I.; utilizado para levar a lavradora Maria Clemencia do Nascimento à
li após tres meses de se mudar, casou com um caboclinho da mesma
m fazenda [...] que ele nunca soube o motivo da smra293 casa de Maria Clernentina.de __ Iesua..e.como.o.í'réu'Lnegou este

---I'iJ1',111
I" .--.-.~f--- aspecto, foi prontamente absolvido. No caso das senhoras, as
O júri reuniu-se em 22 de outubro de 1864 e absolveu Manoel testemunhas tiveram que responder simplesmente se estas haviam
:: ;1.1

i·i Gardiano, com menos de um mês da sua detenção. - se ausentado ou não da vila durante o período de tramitação do
. ,I! Porém, diante da declarada indignação de um promotor, que . •.• processo. Um processo paralisado por tanto tempo e totalmente senL .. ..
:[1 pediu reabertura e condenação de Manoel Gardiano da Silva, I providências foi alvo de criticas de certas autoridades, "deveria ser
outra a marcha do processo visto a gravidade do fato que deu origem
ocorreu um novo interrogatório em 17/3/1866, mas o júri novamente "-:

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o absolveu. Em 20/3/1866 foi expedido um mandado de prisão às
senhoras, lvfaria Clementina de Jesus e Dona Angelica Ferreira (ou
ao mesmo [... ] pede-se sério cuidado da parte da Authoridade,
entretanto tal tem sido o desprezo [...] Caetité, 17/6/1858. [...] Freire",
Novamente, em 1863, o promotor público, Antonio de Souza Lima,
i Carolina) de Faria. A primeira era molher de José Alves Portugal e
mostrou-se indignado, "é surpreendente que após 5 anos o processo
'!~ ' a segunda de Joaquim Alves Portugal. Os seus maridos eram irmãos
e ricos proprietários da região. O mandado, no entanto, não passou ainda esteja empenado, [...] que se convoque novas testemunhas e
de mais uma farsa. Somente nove anos após, em 25 de janeiro de que estas sejam mais conhecedoras do ocorrido que foi tão
1875, quando uma portaria do Juizo Municipal do Termo de Santo revoltante". Em 1866, Manoel C. da Costa, outro promotor, mandou
Antonio da Barra solicitou a prescrição do crime, as referidas ~ ..
uma nota ao juiz solicitando a reabertura do processo e urna nova
senhoras foram chamadas à delegacia e mesmo assim não depuseram, detenção de Manoel Gardiano, "que foi solto mesmo com a
~;
foram apenas qualificadas e disseram estar com 60 e 50 anos, F apresentação das provas do crime, com a finalidade de não se chegar
~
,
respectivamente. A primeira, acusada de ser a inandante, disse ter lI até a familia do tenente, que por tudo está sendo protegida pelos
poderes locais, fazendo-se assim a justiça motivo para piada". 295

.
292. Apeb. Processo-Crunc d/'e 13 12/1854. EsL 15, Cx. 540, Doe. 12, f115 (grifos
. t
l-
294. Apeb. Processo-Crime.de 13/12/1854, n. 90-2.
I' meus). -
293. Apeb. Processo-Crime de 13/12/1854,11.84. 295. Apeb. Processo-Crime de 13/121! 854. Idem, fl. 17,28-89.

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I1-1 ~ :fbi62 FlI ...-=em== !LWM3UUmcr= •• 2 ~
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210 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 211

Observe-se que as acusadas deixaram de ser denominadas


"rés" desde os últimos interrogatórios, quando passaram a
"justificantes" e, posteriormente, na sentença, o juiz optou pelo
termo "articulantes". Como já foi observado, o fato de senhores
receberem uma denominação diferenciada daquela utilizada para

}JliI
outros segmentos envolvidos em crimes, visava atenuar a situação
destes perante a Justiça e, conseqüentemente, preservar as suas
prerrogativas no contexto social da escravidão.
~'1
I,
li! Salienta-se que os escravos em momento algum foram chamados
a depor, apesar de "pertencerem" aos senhores e estarem envolvidos
jl! naquele episódio, Por certo, os proprietários souberam como deixá-
11
\11, los de fora, até mesmo porque o depoimento daqueles envolveria
1]11 diretamente as suas senhoras, Um único depoimento em que se
1jl[ menciona as escravas, inclusive incriminando-as pelo crime, foi o
Jlii~ de Manoel Gardiano, que, buscando livrar-se e às suas senhoras.;
"disse não ter levado nenhuma espingarda para chamar e levar a
ji!
II ofendida para o local de-incidente e-que-não-a-to'cou;tendo sido as
'~Jr escravas que realizaram o crime".300
A offendida;« lavradora Maria Clemencia, não foi citada nas
!'III reaberturas do processo, Certamente resignou-se em face da
Bü possibilidade de novas represálias por parte da família-E!o-+e-ne-nte-
:j; José Alves Portugal, além da percepção de que o processo jamais
w
....
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.(.

"
,.:-,.
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tramitaria em seu benefício.
Assim, o enredo desse processo examinado até aqui reafirma
".~').:o,:~, i ' . o quanto privilégios e benefícios foram assegurados aos proprietários
•••
1.i
;\1!\ no sertão. Outros processos envolvendo senhores e pequenos
','
';:'; I"''-I , lavradores tiveram menor alcance e repercussão, porém, singularizam-
"I
I!! se para análise de elementos da vida cotidiana.
.. , ~.
'"
Tensões entre senhores e lavradores lamentavelmente atingiram
também os escravos. Um inquéritopolicial do Arraial de Canabravinha,
da Villa do Rio de Contas, ilustra essa questão:
=:
sabendo Antonio Pereira [Brandão] que ele [Francisco Xavier
Malheiro] havia mandado o seu escravo Pardo Joaquim para
296. Apeb. Processo-Crime de 13/1211854, fl. 102. a Lapa da Onça, Antonio foi tocalhar já a noite, em caminho
297. Apeb. Processo-Crime de 13/12/1854, fl. 8,
passando o referido Escravo sahio o Suplicado a elle dando-lhe
298. Essa média foi alcançada com base na pesquisa em inventários da Vila do
Rio de Contas. No primeiro capítulo deste texto pode ser consultada lima tabela
que desenvolvi para facilitar essas informações.
299. Apeb. Processo-Crime de 13/12/\854. Idem, fl. 104 (grifas meus). 300. Apeb. Processo-Crime de 13/12/1854. Idem, fl. 98 (grifes meus) .

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o CRIME NA COR
212 MARIA DE FÁ TlMA NOVAES PIRES
F,c -- -- 213

cacetadas que pregou hurna na cabessa que abria huma grande Vigário Tibério, da Vila e Minas do Rio de Contas, acusado de
brêcha, e profundou até o casco do que cahio em terra como assassinar com um tiro o senhor Rufino Vi eira. Em .seu
morto, e o suplicado conciderando que o tinha matado, se interrogatório, "quando questionado se nunca dali ausentou-se,
arritirou violento para aquelle lugar do Morro do Chapé0 301 respondeu que algumas vezes tem ido a Chapada e voltado [...]
após o crime foi para a Chapada com o Senhor Campos, parente
Ao que parece, o escravo Joaquim foi vítima da vingança entre de sua senhora [...] diz que estava com a garrucha carregada e que
os dois lavradores: "Antonio estava trabalhando para Francisco ~_ disparou, mas não por sua vontade, e sim casualmentev.F" Com
Xavier de quem recebeu dinheiro adiantado e está dever". Já foi visto .-t== total apoio de seus senhores, Bernardo, não chegou a ser detido,
que os lavradores trabalhavam também em lavouras alheias à Sua '#?' sendo absolvido em 02.08.1874. Deve ter interessado, aos senhores
propriedade. Esse trabalho, realizado em roças vizinhas, agia como e à Justiça, manter o caso como "acidental". De novo vale lembrar
mecanismo de sobrevivência, principalmente face à carência de que, de acordo com a conduta pregressa de determinado escravo,
!I·· recursos de pequenos proprietários e das estiagens prolongadas. a Justiça organizava "ajustes oficiosos" que fugiam aos padrões
r
Um aspecto relevante nesse processo consiste na estratégia de previamente estabelecidos.
vingança adotada pelo lavrador Antonio, que buscou atingir o senhor Esse processo também recoloca o porte de armas por escravos,
Francisco Xavier através do assassinato do seu escravo, exprimindo ~:---:1t=.- presença ostensiva nos processos pesquisados. . __
= - Um último processo envolvendo senhores e lavradores, ou
a vulnerabilidade a agressões de toda ordem que a condição de
~-;;,- mesmo trabalhadores-li vr:e-s,~G~am-QoJ1lJall()-das---lages;·-termo
j.~
"investimento" expunha os cativos.
Apesar do risco de fugas, muitos escravos afastavam-se a
trabalho "das vistas" dos seus senhores. Assim como Joaquim e
'I~·
de Caetete. Jacinto Manoel Gabira e José Luiz Ferreira foram
acusados: .
muitos outros, vemos que, "Izaac da Rocha Pinto mandou seu
"
escravo Marcilino, Pardo, no Jirema e barbado no dia 3 para 4 de _1:: No anno de 1850 no lugar do Sururú termo de.Maragugipe, _
dezembro apercura de sentos remedios, e mais outras cousas".302 Jacinto Manoel, por meios de seducções, furtara o preto
Como já foi referido, a precária situação econômica enfrentada por Quinteliano, escravo de Manoel José de Soza, tendo-o
muitos senhores, a partir principalmente de meados do século XIX, conduzido para o Districto das Lages, aonde occuitava em caza
os impossibilitava de contratar homens livres. Todavia, não podendo de seu cumplice José Luiz Ferreira.P"
..;:. ":) ~":'..,. prescindir de certos produtos oriundos de regiões mais distantes,
'[:' , somente poderiam contar com seus escravos para realizar compras No seu depoimento, o escravo, já capturado, afirmou ser
externas. Não lhes restava outra alternativa senão a de escolher entre
seus escravos aqueles que lhes parecessem mais confiáveis. Já os morador no Sururú, vizinhança do Curralinho termo da Villa
. ~,.
senhores sertanejos mais abastados, além dos seus escravos, podiam de Maragogipe, que fora conduzido por Jacinto de Tal, Cabra,
recorrer aos seus vaqueiros, agregados e mesmo a meeiros. Dezindolhe que vinha o vender Nestes Sertoins a outro Melhor
Similarmente aos processos dos escravos Joaquim e Marcilino, . Senhor, e que o conduzia a noite e de dia e chegando no destricto
--.il;' quanto a realização de serviços externos, há um OUtl~O
proce.sso_que 1 de Sam Felipe [...] Delle intrega a José Luis Ferreira. Honde
Estava elle oculto, athe que elle Jacinto puder o conduzir para
';111. envolveu o moleque Bernardo escravo de Dona Candzda irma do ._
o Sertoins de Sima.305
~ .

"
j1t: 30 I. AlvlRC Inquérito Policial de 21/5/1849. Autuação de Petição de Queixa, 1 303. AMRC. Processo-Crime de 7/7/1871. Série: sumário de culpa, fi. 5.
I '. fi. 2 (grifes meus). J 304. Apeb. Processo-Crime de 7/1111850. Est. 15, Cx. 538, Doe. 17,11. 2.
!. 302. Apeb. Processo-Crime de 28/12/1859. Est. 13, Cx. 444, Doe. 6, t1. 2. I 305. Apeb. Processo-Crime de 7/II/J 850. Idem, fi. 3 (grifos meus).

l_._ . _ _L __ . ---------------------~------~
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\ 214
MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 215
1
t
.1
Através dos depoimentos das testemlU1has, há relatos de que L análises das relações intrac1asses,mesmo que não fosse essa a intenção.
Jacinto Manoel era um "ladrão contumaz de escravos", animais e Pesquisas recentes tendem a amenizar este quadro proporcionando,
dinheiro na região e vizinhanças. Na sentença do juiz, dez anos mais pari passu, uma maior visibilidade deste tema.307
tarde, em 16.03.1860, pediu-se a condenação dos réus no Art. 257 Mesmo considerando que durante a escravidão a violência
no grau máximo.306 Não se pode saber quanto ao cumprimento da apresentou-se como "naturalizada e rotinizada no cotidiano"
pena, já que os "réus" não foram localizados. (Scnwxncz, 1996: 21), ao se buscar interpretar essas relações, alerta-
Quanto ao "Preto Quinteliano", talvez houvesse de sua parte
uma esperança diante da promessa de encontrar um "melhor
senhor". Pela primeira vez na consulta a esse tipo de fonte, consta
_,
...
se para o fato de que as querelas entre segmentos sociais pobres
especificaram-se por circunstâncias de tempo e lugar e, portanto,
as suas ações não devem ser entendidas a partir do mesmo sistema
uma descrição minuciosa de aspectos físicos de um escravo, t" de referência utilizado na análise da violência desferi da por senhores
- 'r
"angolano, 40 annos, de boa estatura, fechado de Barba, Cara chata, contra os seus escravos e vice-versa.
nariz chato, pés largos, meio beicudo e gago". Uma descrição
completa de escravos da região é exceção, a gagueira, no entanto,
foi mais anunciada. G. Freyre analisa esse aspecto:
I
1
I
r.:
Os processos criminais que serão apresentados aqui guardam
a vantagem de trazerem um maior número de cativos que depuseram
como réus ou informantes, permitindo, mesmo que parcialmente,
penetrar nos espaços de sociabilidade escrava e no cotidiano das suas
1
a gagueira de vários dos gagos que passam pelos anúncios de .... +- vidas. Evidente que tais "falas" passaram "pelo filtro _datranscrição
negros fugidos nos jornais brasileiros do tempo do Império .. _~. judicial" (MATTos,·T998:129), mesmo assim muito informam acerca
talvez resultasse de experiências extremas de medo ou de pavor do contexto social da região no século XIX.

"
""'.'U \(,0
de crianças
severamente
ainda inermes
autoritários
que o despotismo
tivesse traumatizado
dos seus senhores
ou atenorizado
L
I
1
Nos processos-crime, há várias evidências do quanto cativos,
forros e trabalhadores livres estiveram bem próximos, partilhando
muitas vezes da mesma têffiforialidadé, enfrentando difículdad~-
. -' \~" :/ para sempre (1979: 61). o

similares, seja no trabalho, nos batuques, nas tabernas, nas casas de


','

I
",
,1
A gagueira foi assim, mais uma característica da dor, impressa prostituição, nas roças, nos rios e fontes e também nas ruas das vilas.
no corpo de cativos. Muitas das marcas da escravidão estiveram nas Mas, nem sempre essa proximidade identitária ejisica gerou relações
memórias, nos corpos e também na incorporação da violência no isentas de tensões (ver Quadros III e IV).
"', Numa análise quantitativa e comparativa dos processos
cotidiano da vida social sob o cativeiro.
,::,,"
1 criminais, localizamos um montante de cinco processos envolvendo
ESCRAVOS E ESCRAVOS-CONFRONTOS
SOLIDARIEDADES
E
t escravos e forros, e vinte envolvendo somente escravos, de um total
de 111 autos pesquisados para as Comarcas de Rio de Contas e
-", -; ~. '

r Caetité. Mesmo considerando que muitos dos processos do século


A historiografia direcionou por muito tempo a sua atenção
para o estudo das relações entre senhores e escravos. Esta "escolha
1
'.\
temática" se, por um lado, foi fundamental para o conhecimento j
.f- 307. Refiro-me a trabalhos desenvolvidos, principalmente a partir da década de
da escravidão brasileira, por outro, limitou ou mesmo ofuscou as 1"980, quando, sob a influência de uma "história vista de baixo", como se

I reportava a historiografia dos annales franceses, ou mesmo da "microfísica


do poder" sugeri da por M. Foucault, novos temas foram perscrutados. As
análises das relações entre segmentos sociais pobres, ora nenhuma descartando
Art. 257: "Tirar a cousa alheia contra a vontade de seu dono, para si ou para suas demais relações no social, mostram-se muito válidas para a compreensão
306.
outro ... Grau maximo - 4 annos de prisão com trabalho, e multa de 20% do das lutas, disputas e solidariedades presentes na vida destes segmentos. Um
valor furtado" (Código Criminal do Império do Brasil, 1831, 1980: 34). estudo essencial sobre esta questão encontra-se llO livro de Franco, 1997.

':;'
t, ~:
~,kZ2ll 'i!'"' ;;aa + f""1íher _
:-:':-'r
~f~~r·:··

MAR~FÁTIMA NOVAES PIRES


o CRIME NA COR 217
216

XIX se perderam e que muitos inquéritos policiais não se TlflOl ~1~1~1~1001~1~1~


reverteram em processos, cinco é um número pequeno, se
SOJjno
comparado com o montante estudado. ~I I I I I--IN! • I~ILO

A explicação dessa questão pode estar nas seguintes 1.- SOAeJOSa


ap e5n" I
considerações: sabe-se o quanto um escravo era valioso para um I 110

,~

proprietário sertanejo e que a perda de um deles significava grandes :o


'::J
o, olpJO!ns , 'o
prejuízos. Lutava-se na Justiça para que um proprietário de
.~ •. ~. E
determinado escravo acusado por assassinato indenizasse àquele que W
'E lejOjqns __ I~I 11--1 I 1~INIc.c
o
perdeu o seu escravo como vítima em conflito. E no caso do forro, j ro
poderia ele indenizar ao senhor? Nas condições do alto sertão, ~c eWJeapalJod II II II __ I,I,I __ IN

certamente, tal situação era muito difícil, senão impossível, ao


menos à ampla maioria. Assim, até que ponto as ocorrências dos ·-1
I .S
o
o
(j)
W apepuoine t;! epu'i'js!saCj
I I I 1 I I I I I I -- I -r- 1N
inquéritos policiais esvaziavam-se, já que não interessava aos
proprietários a instauração de processos judiciais?
Os processos-crime pesquisados foram selecionados dentre os
--t «,O
!Xl
1
B!apeo ap e5n" ~I~I I1 I I I I I I IIN

-~I
<fi

demais processos do século XIX, que se encontravam dispersos na ~ wapJosao I I I I I I I o


000
documentação do Arquivo Municipal de Rio de Contas. Desses 00(,)
OOQ)
--

processos, muitos se encontram incompletos ou bastante danificados '7"0 eu Q) lelolqns N -.:::t -- -- I N --:: ,
g.2 ~ ~ , ,g
e, na grande maioria das vezes, não foi possível identificar, a 00 o::
-e- I
0"0
o Q)
SOAeJOSa
ap -co
(3
sentença final do juiz. Certamente, muitos processos se perderam 1 I VJ ~ '§.. ouru o opueqanuorj ~ M -- -- I I I (O :.o
com o tempo, em virtude da tardia fundação do Arquivo Municipal,
1.- -;; E .s o..e -=l0
que data da década de 1980. A classificação de outros para os
~u
:L...=
Ü
~
eu oqnOtf/OlJn.:l -- --
--~-
I I
-
I N __ LO t~
··

~ Q) W
0'0 ~
Quadros I, II, III e IV indica autorias e delitos não classificados pelas .!)1 lejOjqns 00 ~ ~ r- <D ;: ~ :g Ü
m ~
tabelas: reduzir à escravidão forros, ocultação de escravos, escravos E ~
concedidos a depósito público, escravo como mandatário de crime o «
,& O!PP!lUejUI I I __ I I I -- N I
do seu senhor, escravo que aciona a Justiça em busca de beneficio, I- ro «
,[/ .... g fi
'I:' parcerias amplas envolvendo escravos, senhores, forros e homens (j)
<L>
~
OAeJOSaura SOjBJjsneV'J
Illlll---r-CO
-ou,
I
livres, e assim por diante. ro §
ro e!l!weje
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Os processos-crime de Caetité encontram-se totalmente ~
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dispersas, em deplorável estado de conservação e com lista U o

computadorizada constando unicamente a existência de dezesseis


processos envolvendo escravos. Para a presente pesquisa contamos I ~
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processos constantes desta tabela, no total de vinte e quatro. Desses '" ::J
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processos, muitos se encontram incompletos ou bastante danificados §;


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e, na grande maioria das vezes, não foi possível identificar a 0>10>10> O'JI0>10>1 E'

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de Caetité para o Arquivo Público do Estado da Bahia-Apeb.


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Quadro> 11-1800-1888
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Crimes contra a pessoa Crimes contra Crimes contra a ordem pública
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1830-1839 - I - - - 1 - - - - - - - - - - - - - -
1840-1849 - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
1850-1859 3 1 1 - - - 5 - 1 1 - - 1 - 1 - - - 7
1860-1869 9 - - - - - 9 - - - - I - - - - - - - 9
-
1870-1879 2 1 1 - - - 4 - - - - - 1 - - - - - - 4
1880-1888 3 - - - - - 3 - - - - - - - - - - - 3
Total 17 2 3 O O O 22 I O 1 1 O O 1 O 1 - - - 24
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Quadro 111-1800-1888
Quadro Geral de Autores e Vítimas de Crimes - Rio de Contas - BA
Escravos e Senhores Parcerias agressoras Forros Escravos e
H, livres
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1830-1839 O
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- 31 - 2 2 2 4 1 15
1840-1849 1 1 6 - 1 9 - - - - - - .,
- - - 1 - 1 2 3 2 14
1850-1859 - - 2 - 1 3 - - - - 1 -
1 I - - - - 1 3 4 2 10
1860-1869 - - 1 1 - 2 - - - 2 - - - -
2 I - - 2 - 2 2 8
'
1870-1879 - - 1 - - 1 - - 1 1 21 1 - -
i- - 1 5 4 9 1 14
I
1880-1888 - 1 3 - - 4 - 3 1 4 I
- I- - , - - - - ,2 1 3 3 14
Total 1 15 I
3 2 4 25 O 7 1 4 14 3 1 1 1
12 I, 6 14 14 28 14 87
Fonte:Arquivo Municipal de Rio de Contas-BA - AMRC. SeçãO~JUdiCiário,
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220 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 221

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~ Esses processos apontam para relações de desarmonias, mas
- também de solidariedades entre sujeitos sociais pobres. Essas
, , , N N , , ambivalências presentes nas relações intemas merecem registro para
SOJ)no
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que se possa fugir aos estereótipos que permearam as análises desse
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tema. Estabelecer alguns contrapontos nestas relações, a partir de
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(1) OA8J~S3 8J)UO~ aJA!J .H , , , , , o indícios surpreendidos nos processos, sugere pensar em sujeitos
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(/) históricos que viviam experiências concretas de forma dinâmica e
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J8)O)qnS , , , , ..- '"
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tO --- As rixas, grosso modo, estiveram indicadas direta ou indire-

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~ e tamente na maioria dos processos que tratam de tensões envol-
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bastante tensionado pelas condições de vida social sob a escravidão.
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l- (WISSENBACH, 1998b: 17).

I1 Insultos, desarmonias domésticas, intrigas amorosas e outros


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J:f! VI o percalços mais, desencadearam contendas e levaram segmentos
» (/) OAeJ:lSa a OJJO=, , , , , , , o ~~
p ~ mo, 4 pobres a se enfrentarem impiedosamente.
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'ÕQí 'õ Para examinar aspectos relacionados ao trabalho compulsóriO. ,------
eu ••. OAeJ:lSa a OAeDS3 , , , , o ....,::J
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.~ privilegiou-se aqui o tratamento de processos criminais referentes
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.(1)
o. - -j~ a esses espaços.
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o cabra, efi/ha legitima de Joaquim Indio e de Ponciana Crioulla
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morava na Povoacam do Senhor Bom Jesus elaBoa Sentença,
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e perguntou o mesmo subdeJegado aonde se achava na

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t Maria Thereza do Carmo, disse que se achava na mesma caza
de Dona Maria Thereza do Carrno fazendo farinha [...] disse
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222 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 223

que no lugar só se achava quatro meninos, e perguntado onde este consumido mais intensamente em outras regiões nordestinas.
se achava a dita fallescida Eduvigens disse que sahindo da Indicações quanto ao uso de armas brancas, tomaram-se corriqueiras
cozinha a dita falescida para hir buscar pimenta, e no lugar da nos autos criminais.
pimenteira foi que recebeo a faccada, e dela entrou para dentro Essas contendas implicavam geralmente na manutenção de
da caza de sua Senhora, e cahio em cima do estrado, [__.] prerrogativas garantidas anteriormente, neste caso a preservação do
perguntado a dita Ré de quem era a facca com que foi morta a casamento da escrava Albina, e na existência de disputas num espaço
dita falescida Eduvigens disse que era della Ré, e perguntando social comum, que resultavam, na grande maioria das vezes, em
que qualidade era a faca, disse que era hum trinxeita [trinchete cursos violentos de que geralmente saía ferido ou assassinado um
~ faca de sapateiro] velho e com o cabo de páo e que de dos contendores.
comprimento tinha um palmo dos seus [...], e perguntando a dita Nesse processo fala-se de escravas trabalhando juntas, mesmo
Ré se a dita falescida tinha alguma inimizade com algumas pertencendo a senhoras diferentes. Encontros dessa natureza devem
pessoas, disse que a inimizade que a dita falescida tinha era ter sido comuns, face aos pequenos plantéis, e deveriam ser mais
bater boca com as pareceras della, e que ella Ré nam gostava intensos em momentos de festejos nas fazendas, sítios ou na sede
da dita falescida Eduvigens por razam de seu marido, [__.] das vilas. No caso específico das escravas Albina e Eduvigens, parece
perguntando a Ré quantos annos morava ella na Povoaçarn da ter ocorrido uma colaboração entre pequenas proprietárias rurais.
Boa Sentença disse que veio pequena de dote para sua Senhora Por fatores próximos aos daqueles em que se envolveu a escrava
Dona Roza Joaquina de Almeida.ê'" Albina, outros processDs~orall1.ll1ontados_Eassemos_ao seu exame.
lzidoro Crioulo foi acusado de assassinar o seu parceiro Silverio
Uma das testemunhas, que vivia de "arrear tropas e lavouras", Crioulo, ambos pertencentes à Jozé Ferreira Salgado, no arraial
afirmou que os senhores moços da escrava falecida perguntaram a destricto de Sam Felippe, termo de Caetité. As testemunhas, lavradores,
Albina "para que tinha feito aquella morte", ao que ela respondeu, '~~_L lavradoras e costureiras, .acusamm_JLnJ!J::lÍme1l1e.nte-ª-~s..c.r.a.Y.o_
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"que dera mais nam foi para matar".309 Izidoro. Uma delas especificou as circunstâncias do crime:
Em seu depoimento, Albina foi qualificada como "filha
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legitima", no lugar de "filha natural", portanto, urna expressão não Segundo ouvio dizer a testemunha, Izidoro crioulo conduzia um
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usual entre filhos de escravos; uma escrava filha de índio com carro de bois carregado com taras de madeira juntamente com
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crioula, indicando a miscigenação na região; a menção das suas seu parceiro Silverio, que segundo relata a testemunha, não
especializações "sabia fiar e cozer", o saber uma profissão entre estava conduzindo os bois direito; por este motivo o crioulo
.,'-
. ~', escravos significava muito como distintivo social, fazendo-os "melhor lzidoro arernessou uma tora de madeira que quebrou o
quistos" na comunidade local, implicando, muitas vezes, em garantias espinhaço de seu companheiro Silverio, que seguiu para casa
e benefícios; vê-se uma escrava se deslocando de uma região para do seu senhor bastante doente, vindo a morrer alguns dias
outra, realizando trabalhos em casa de farinha em roça vizinha. Vale
salientar que o fabrico local de farinha alimentou e ainda alimenta
1 depois. A testemunha acrescenta que ao chegar no velório a
vítima já estava "mortalha da", o que impossibilitava se ver
!.
as populações sertanejas, com tradição superior ao do milho, sendo qualquer ferirnento. 310

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308. AMRC. Processo-Crime de 9112/1843. Série: sumário de culpa, fl2~3 (grifos
meus).
309. Só foram localizadas dez folhas desse processo, impossibilitando maiores
informações.
I
I
i
310. Apeb. Processo-Crime
meus).
de 17/7/1861. Est. 13, Cx. 445, Doe. 6, fi. 6 (grifos

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224 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 225

No depoimento de Sofia nagô, mãe da vítima, confirmou- ao questionar o que estava acontecendo, I1arião saiu de sima da
se a acusação ao escravo Izidoro. Em 19 de janeiro de 1863, dois vítima e atacou o dito informante com um punhal defendendo-
anos após o episódio, o escravo foi considerado culpado e o se este com o cabo de seu machado. Logo em seguida llarião
promotor público pediu a condenação no art. 194 do Código I foge. Martiniano corre para casa e conta o acontecido para seu
Criminal, no grau máximo (já referido). Como não constam ao II senhor que segurido ele fora imediatamente ao local com outras
longo do proc~sso referências a detenção ou mesmo .depoimento r pessoas para tomar providencias. Segundo o dito informante
do escravo Izidoro, tudo leva a crer que este evadiu-se ou foi . Ilarião e Honorato não tinhão qualquer inimizade a não ser no
devidamen~e vendido para outra região pelo ~eu senhor.--t dia anterior ao assasinato, quando tiverão uma discussão por
Na decada de 1860, quando se encammhou esse processo -~e- causa de um dinheiro que o escravo Ilarião devia ao dito

criminal, ~ tráfico já estava extinto e as secas castigavam.~s se_rtões. J" Honorato. O informante também disse que tal fato ocorreu longe
A formaçao de escoltas para capturar escravos na regrao nao foi t da casa do seu senhor, seiscentos braços.>!'
mencionada nos processos consultados. Há também parcas referências t
a capitães-do-mato. ~ Uma outra testemunha, que vivia "de seu negócio de Carpina",
É freqüente nessas fontes a menção ao trabalho com madeiras. ~~ contou que era "a dívida referente ao dinheiro de um toucinho que
Esta atividade, além de desempenhar papel complementar à I o assasino tinha comprado na mão do assasinado". Outros
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policultura e à pecuária, se notabilizou como fonte de energia, no depoimentos contam que Ilarião devia "cinco mil reis", que "havião
caso de lenha para uso doméstico, em engenhos, cerâmicas, 11~_=-l= outros escravos por perto, a exemplo de Martiniano escravo que
saíra do mato". No Auto de Qualificação, realizado somente em
construção de casas, no fabrico de móveis e de demais utensílios.
Posteriormente, o desmatamento da região procurou atender à- 07.02.1861, Ilarião disse morar com seu senhor "há 12 anos";
demanda PN ,,,,,ão vegetal acarretando graves prejuízos ambientais, .. "trabalho de pajear meu senhor, e também na roça", e que, quando
sentidos ate o presente. í ocorreu o crime "Estava na Tapera em seus passeios [...] Como se
Já na "fala" da testemunha aparece uma evidência muito ----t deu o caso de aparecer no serviço datirada del11adeira no mato,
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..
:~ , ,. comum quando as contendas envolviam segmentos pobres: é
provável que a morte de um dos contendores não estivesse na
"intenção" daquele que o atingiu, ou seja, no momento em que se
i aparecer morto Honorato de tal? Eu não sabia". 312
Detido, três anos após o episódio, Ilarião exprimiu em seu
interrogatório indícios em que se amalgamaram elementos da vida
'I:'
irrompeu a luta não" premeditava desfechos fatais. Em alguns • escrava e as dificuldades enfrentadas no espaço judicial:
casos os contendores eram amigos que, de um momento para outro, I
.'. ~
~ .," se desentendiam por circunstâncias aparentemente banais. t soube aqui da Cadeia que Honorato fora assasinado mas não
As desavenças nas roças continuaram a gerar processos. Nas t sabe em que tempo [... ) P. Alguma vez o preto Martiniano esteve
"matas da fazenda do Espírito Santo", Termo de Caetité, em 29 de i com você réu e com Honorato de tal tirando madeiras? Somente
abril de 1859, Hilarião, escravo do CapoAntonio Xavier de Carvalho 1 esteve o assasinado, sendo o outro Martiniano vaqueiro. P.
Contrim, e Honorato de Tal, iniciaram uma "questam" por dívida r Teve algum negócio com o assasinado ou alguma desavensa?
em dinheiro. No depoimento do escravo Martiniano, testemunha t Não. P. f- .. ) se esteve ausente da fazenda em que morava? [... )
ocular, encontra-se uma versão mais completa,
T-

disse estar no mato trabalhando quando ouviu uma discussão


311. Apeb. Processo-Crime de 29/4/1 859. Est. 23, CX. 802, Doe. 4, fi. 45-6 (grifos
entre Ilarião e Honorato, logo depois ele ouve uma pancada e meus).
um grito e correndo para ver o que era, encontrou Honorato no 312. Apeb. Processo-Crime de 29í4/l859. Est. 23, CX. 802, Doe. 4, fi. 58. (grifes
meus).
chão e Hilarião em cima dando-lhe estocadas com um punhal,
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MARIA DE FÁTIMA NOVAESPIRES o CRIME NA COR 227


226 t
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me ausentei pras bandas do rio pardo. P. Porque se ausentou Ao lado deste exemplo confesso do condicionamento de
para as bandas do Rio Pardo? Por causa do assasinato. P. Como prerrogativas da lei às demandas do trabalho compulsório outros
é que disse ter-se retirado para a tapera e o Rio Pardo por causa I indícios foram documentados: mais uma referência ao corte de
da morte de Honorato, e respondeu agora que só teve
conhecimento desta morte depois de se achar na cadeia? Não
I
l'
i
madeira na região; o trabalho escravo ao lado de homens livres; o
rio Pardo (também na região sertaneja - sertão da ressaca) como
sei desses negócios de processo, e morte aqui nesta ocazião. P. lugar de refúgio; um escravo pajem e lavrador, que diz acompanhar
j o senhor em seus passeios; empréstimos em dinheiro entre escravos
O assasinado morava na fazenda do Espírito Santo e se ai esteve
algum tempo? Ele não morava na fazenda só estava trabalhando
neste lugar no corte de madeiras. P. Esteve tirando madeiras
t! e livres; os embaraços do escravo diante dos códigos da tramitação
judicial e sua sagacidade, frente às situações mais contraditórias da
na mesma fazenda, por mandado se seu senhor? Não. P. Como sua fala, "não sei desses negócios de processo".
Em um auto de outubro de 1847, consta que no Districto de
é que disse ter estado ocupado no corte de madeira por ocazião 1 Boa Sentença na Vil/a de Nossa Senhora do Livramento do Rio de
do fato e agora diz o contrário? Nunca estive cortando madeiras.
[...] P. O Rio Pardo é muito distante deste lugar, e Ia esteve Contas, os escravos Manuel d 'Oliveira, escravo do Tenente Coronel
durante muito tempo? Fica a3 dias de viagem, assim como que Manuel Alves Coelho, e Joaquina, escrava de Vicente Coronel,
depois do assassinato que se trata esteve por mais dois anos trabalhavam numa mesma roça, quando Manoel, ao interrompero

---1
neste local. P. Qual a razão pela qual se retirou ao Rio Pardo serviço "um pouco mais adiante comendo uma cana que no caminho
uma vez que tinha seu senhor? Por causa do cativeiro e por ter cortara, a qualdiscasca'V-a-c0m-lmm-faG-ão-que-nessa ocasião
desconfiado vontade da parte de seo senhor de o mal tratar. levava", foi surpreendido por Clemente, escravo de Dona Maria
P. Tem algum motivo particular a que atribua a acusação? Ao Ricarda de São Caetano, que "pegou W11 pao para dar em Joaquina,
desejo de fazer mal. P. Tem fatos a alegar ou provar que justifique esta se agarrara com ele interrogado [Manuel d'Oliveira] pelas
:; costas", diante disto, Manoel, buscando proteger.Joaquína..enfren . .
ou mostrem sua inocencia? As testemunhas são suspeitas e L

foram inqueridas na minha ansência 313 tou Clemente, que morreu vítima de uma facada no peito. Manuel
foi preso e executado. "Certifico eu Tabelião at. asso que em virtu-
Na sentença, expedida a 29 de abril de 1859, quando o escravo de do aviso copiado retro foi executada na praça da Matriz desta
.'\ ''''''.':

estava foragido, pediu-se a condenação no grau máximo do art. 193 villa a sentença de morte na pessoa do reo Manoel d'Oliveira,
do Código Criminal (já referido). Dois anos mais tarde, após o observando em tudo a lei. Rio de Contas, 28.07.1851".315 Consta
referido interrogatório do escravo Ilarião, consta uma apelação do ainda que houve remessa do processo para a Comarca de Caetité,

I
~
~,
. defensor do réo, ao Superior Tribunal da Relação, pois "o réo sendo e ainda a seguinte referência "Pelo qual houve sua Majestade o
escravo está sujeito a lei especial, e consequentemente não poderá Imperador por bem mandar cumprir as sentenças de morte dos réos
permanecer preso durante seis anos, por conta dos prejuisos que Manuel d'Oliveira e Manuel Severino de Almeida", este último
seu senhor irá sofrer por conta de sua reclusão [...] Vila de Caetité,
8 de novembro de 1861".314 ! envolvido em outro crime. Surpreendentemente,
optou pela comutação da pena.
a Justiça não

Também no espaço do trabalho conflitaram Manoel e Basí-

~.
I lio, escravos de Pacomio Jacarandá Cambuhi. Basílio, no "Auto de
Perguntas", disse ter "vinte e sete anos de idade mais ou menos,

313. Apeb. Processo-Crime de 29/4/1859. Est. 23, Cx. 802, Doe. 4, fi. 60-1 (grifas
1
meus).
314. Apeb. Processo-Crime de 29/4/1859. Est. 23, Cx. 802, Doe. 4, fi. 74 (grifas 315. AMRC. Processo-Crime de 13/1211847. Série: sumário de culpa, fi. 38 (grifos
meus). meus).
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228 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 229
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solteiro, filho de Lina já falecida, que foi escrava do finado O crime foi classificado pelo promotor interino no art. 193
Antonio Quirino do Rego, natural desta Freguesia e trabalha no do Código Criminal Uá referido), que também acrescentou
serviço de lavoura", informou em seu depoimento: "requeiro a prompta captura do mesmo réo. Lençois, 28 de janeiro
i de 1868". Os autos foram dados por conclusos em 911/1869,
j
Respondeo que estando trabalhando na roça com seo companhei:ro
t. quando o "réo" ainda estava foragido.

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Manoel, este chingou a elle interrogado, resultando d'ahi terem No dia em que se puxava "um terno de reis", no "Arraial de
uma altercação, e que elle interrogado dando com lima vara no São Felippe, na Malhada Limpa", o escravo Preto João atingiu
mortalmente a João Manoel. Algumas testemunhas iniciaram seus
mesmo Manoel, deste recebera umafilcada que lhe produzio o .f.
ferimento que apresenta [... ] P. em que dia teve isto lugar? que depoimentos fazendo referência às suas participações naquela festa,
"disse que vindo dos Gerais mais outros muitos em brinquedo de tirar
no dia 29 do corrente ao meio dia [...] P. que destino tomou o
1 rez [...] vindo dos gerais com outros companheiros que andavam
seo ofensor? Que depois de ter offendido a elJe interrogado,
1
ficou na roça, mas consta-lhe que desapareceué!"
~.
tirando reis e chegando ali dia seis de janeiro de mil oitocentos e
I
ir: sessenta e quatro". 318
Diante disso, o promotor público "requer" do Juiz "penas do [
f. No depoimento de uma das testemunhas, as causas que
1

Art. 205 Grao Máximo" (já referido). Contudo, o Juiz "pede" novo ~ moveram o delito:
I interrogatório das testemunhas e "pena de desobediência, ao Réo, J
f
·1 se for encontrado". O auto encerra-se deste modo, com o escravo '--,-i disse que estando os dois-no-curral] o-Preto-João e-JoãoManoel],
Manoel foragido há quatro meses. pegaram um debate por causa de um moleque que o João
Por motivo similar, um conflito entre escravos ocorreu no Sítio Manoel queria que o moleque viesse parra o Curral, e o negro
I
'I I queria que o moleque fosse lançar telhas. Ao sair do curral João
da Caxauna dafreguesia de N. S. do Carmo do Morro do Fogo, termo
da Villa e Minas do Rio de Contas: f Manoel, que morava do lado do Tanque, passapor.cima.da.serca, _
f e logo o negro vai esperá- 10, quando João manoel passa a cerca

..:: . ,
~
71 respondêo que estando em uma rossa perto do servisso de José
i

1 adiante, o escravo atira nele e o corpo cai dentro d'água.'!"


Joaquim Mafra aonde estava trabalhando o imfelis Pascoal
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...
". '

.';~:.:"! 1 Nem sempre havia entre os contendores inimizades anteriores


como um Parceiro do mesmo por nome José que a poucos
I
I
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I instantes elle testemunha tinha sahido de junto delles, hi quando ao momento do conflito, "eles eram muito amigos, que andavam
i bebendo caxaça juntos".
~~!: I apareceo uma menina para o serviço delle testemunha e deo
~~,.
I l O escravo "fugira na mesma occasião" e não há registro de
parte que acudisse ato da pressa que os negros de José Joaquim I
estava se matando um ao outro [ ... ] que entre eles não sabia se sua captura. Este processo ficou paralisado por sete anos (1864-
avia intriga [... ] [outras
trabalhavão
testemunhas]
só na roça de seo senhor [
[ ] sabe que estes
] sabe que foi por I
1
1871), mesmo assim pediu-se a condenação do "ré o" no art.193
do Código Criminal.V?
Disputas na própria condução do trabalho, seja quanto ao
, ~ razoins que tiverão no servisso de Seo Senhor.'!" t
seu ritmo, seja quanto a forma da sua execução, aparentemente

316. AMRC. Processo-Crime de 3/2/1882. Série: sumário de culpa, fl. 8 (grifas 318. Apeb, Processo-Crime de [?]1864. Est. 15, Cx. 539, Doc. 22, fis. 10-4.
meus). 319. Apeb, Processo-Crime de [?]1864. Est. 15, Cx. 539, Doc. 22, fi. 22 (grifas
'.'
317. AMRC. Processo-Crime de 3í2/1867. Série: sumário de culpa, fl. 4·7 (grifes meus).
meus). 320. Art. 193já referido (Código Criminal do Império do Brasil, 1831,1980: 234).

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f; MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIME NA COR 231
230
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L motivaram conflitos no interior do segmento escravo e entre este sabe que chegara em casa de Quintiliano, escravo de José
e trabalhadores livres. Observem-se as circunstâncias apontadas Baptista de Souza, Gregório crioulo [escravo de Dona Anna
por alguns processos: "não estava conduzindo os bois direito" ou Pereira] ja se achava na dita caza Manoel crioulo [escravo de
"[um] queria que o moleque ficasse no curral e o [outro] queria Felix Martins de Oliveira] e que Manoel fôra logo com insultos

--i-"R
que o moleque fosse lançar telhas". dirigidos ao Gregorio, apesar de acudir para os apartar.P'
Os insultos, calúnias e difamações, constantes em toda vida
social, fo:am poten~ializados ~asAso~iedades escravistas diante ç1-ª---_ .•.•.•.•.._ Há um registro informando sobre a presença de mais dois
dominação senhonal e da violência em todas as suas esferas. .' ;E escravos na casa ou senzala do escravo Quintiliano, que estariam
Prin~i~almente .p.ara. segmentos soc~ais pobres, destituídos de . .. t ali para "conversar".
condições materiais clignas e sob o estigma da cor, o resguardo de :e.: Por sentir-se caluniado, Silvério, com mais de 60 anos, escravo
condutas morais tacitamente aceitas, e ainda o escamoteamento
supostos "deslizes", além de caros nesse meio, radicalizaram
'de
a~
- -!-~..."~.-
-
do Tenente Coronel Antonio Joaquim de Macedo, foi acusado
matar a sua parceira, Eufrasia, escrava do mesmo senhor,
de
que já
tensões internas. - -: ..- tinha, à época, mais de 70 anos. Em seu depoimento, procurou
Muitos processos criminais explicitam esta faceta. Vejamos fi· justificar a sua atitude: "tendo na missão de Frei Candido sua
alguns extratos selecionados nos autos: --- - t. parceira Eufrasia levantado um falso e depois de feito certas c.9~~a_s~
., ' 1 entre as quaes furtado algumas galinhas resolveo elle respondente
Nicolâo [escravo de Manoel de Oliveira Ledo] era cunhado da __ á assassinal-a e o.fez.pela.forma.seguinte" 325 Silvério,-em-seguida,

vitima [Francisco Africano escravo de Rosendo José SurUCllCÚ . !- informou que após matá-Ia, buscou esconder o corpo da escrava
Buriti] e deu um tiro por sentir-se caluniado por esta32!
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amarrando cordas 'com pedras na sua cintura para que afundasse,
"mas o corpo voltou".
Disse mais que ouvio dizer ter assim praticado o Réo, por ter a 1 Noutro processo, um escravo foi ~ÇUSj:lJiod~1>~assinar o seu. c ••

offendida [Jusifina Maria de Jesus], embriagada, descomposto f próprio irmão. No interrogatório o escravo Anicácio se defendeu:
t
com palavras o mesmo [Polycarpo, escravo de D. Francisca de ~ ..

r .>~',.',.-'"
.,..-- .
Castro Meira322 r
t
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estava na casa de sua senhora naquele dia de domingo, indo para
casa do seu senhor moço Alipio Ferreira de Fariapara comprar
que tendo ido buscar água por ordem de sua Senhora no Riacho um pano ou fasendas brancas e mui to perto da casa de sua
denominado Sacavem, em caminho sendo chingada pela
i senhora lhe saira de encontro seu irmão Joaquim, perguntando-
.'. '.~,.
acusada Maria, ella respondente tão bem chingando , foi .L_
f lhe que elle andava falando mal de aquele, e logo foi dando
fomecida a dita Maria de um cacete que lhe dera [...] com a ~= uma pancada com o cabo de uma taca da qual muito o atorduou
~-
qual lhe fez a mesma Maria os ferimentos que estão vistos, ella ~ tanto que caio no xão e tomando a levantar-se ferrarão urna luta
por sua vez quebrou lhe a cabeça.V'
r [ ] correu e deixou o seu irmão sem que saiba quem o ofendece
'.," ....
~
L [ ]foi para rossa onde se encontrava outro irmão, Pantalião,
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e a mai delles [...] participou a estes e ao senhor mosso Antonio
*'t Dutra [...] e quando foi preso e então é que ouvio dizer que que
321. AMRC. Processo-Crime de 20/8/1835. Série: sumário de culpa, fi. 8. ~. seu irmão estava morto [...] andava com um facção de seu primo
322. AMRC. Processo-Crime de 3/12/]877. Série: sumário de culpa, fi. 24.
323. AMRC. Processo-Crime de 17/10/1881. Série: sumário de culpa, fl. 5 (grifas
meus). Maria Benedicta, de 50 anos pouco mais ou menos, solteira e
lavadeira, e Firrnma, escrava de Donna Joanna Francisca de Souza, de 17 324. AMRC. Processo-Crime de 29/1/1849. Série: sumário de culpa, fl. 10.
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anos, solteira e cozinheira. 325. AMRC. Processo-Crime de 3/2/1875. Série: sumário de culpa, fl. 12.

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232 MARIA DE FÁTIMA NOVAES PIRES o CRIl'vIE NA COR 233

e pariceiro Vicente, o que estava em Juizo [...] não se recorda Os processos-crime aos poucos contribuíram para traçar um
ter ofendido com elle a ninguém, e muito menos ao asacinado quadro das sociabilidades escravas no sertão, apontando peculi-
que era seu irmão, de quem tinha muito respeitoP" aridades, mas também aproximações com as demais práticas da
escravidão brasileira.
No julgamento, em novembro de 1864, Anicácio de Tal escravo, Essa fonte, ao trazer fricções entre escravos e senhores, seus
não mais contestou as testemunhas que haviam deposto contra ele. pares, fOITOSe homens livres, contribui para descortinar um universo
Foi sentenciado com base no art. 193 do Código Criminal, no grau amplo das relações sociais escravas apontando para as resistências
máximo, comutada a pena para "400 acoites, trazer uma argola de cotidianas e a ampliação de espaços de mobilidade e autonomia. São
feITO ao pescoço por espaço de 4 anos".
Outros processos falam das relações conflituosas
forros e livres apresentando
ent.re escravos,
motivos muito variados, apontando para
Fr fundamentais para uma análise dos contextos
interna da vida nas vilas/cidades
nesses espaços.
e da presença
sociais, da dinâmica
dos escravos e forros

um universo plural da experiência escrava. A fim de iluminar os t Certamente, as lutas, traduzi das em resistências coletivas ou
I
espaços de autonomia escrava no sertão, um processo é emblemático í individuais, marcaram a vida desses sujeitos sociais ao longo da
para indicar práticas costumeiras nas relações internas daqueles L escravidão. No entanto, a exclusão sócio-racial é emblemática ao
sujeitos, Lt longo de muitos anos da história brasileira.
ativa nos diversos espaços sociais em igualdades
Alcançar participação
de condição é ainda
dice que sabe por ouvir dizer a varias pessoas que o dito Joze- .-----.-.--f- !
urna luta dos negros-brasileiros,Ejl:1e-sentem·de-perto a discriminação,

I Pedro deu as pancadas no mesmo Bruno [na noite de 16 para


17 de junho] foi porque este por vêzes rralhava com sua Nora
Raimunda cazada com seu filho Manoel Joaquim que esta
I
1

exclusão e preconceitos
A análise dessa
de ordem vária.
situação remete ao estudo
escravista e do período posterior à abolição, quando os ex-escravos
do passado

'.! :. ~.
..~ deixa-ce de bandalheiras, e porqueiras a sua vista e que por esta L procuraram definir novas trajetórias e sinais-às suas vidaa.Naquele .~
. .;"'~~ cauza dizem muitas pessoas que foi o Joze Preto por ser amante i momento o controle do ex-escravo relacionou-se à necessidade de
1
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.....
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N
da dita Raimunda que dera as mencionadas pancadas.F?
1
j
controle da "ordem social" e foi amplamente
do poder público e privado, marcando,
desenvolvido
certamente,
ao nível
a experiência
.:.,; ~f •

~ Uma outra testemunha, ao acusar o escravo, disse que "athe


+
de libertos e ex-senhores,
!
.,\ se conheceo o rrastro do dito José Preto o qual dorme todas as noites É sabido que a ideologia racial "no Brasil pós-emancipação
i
:~,. :~ em sua caza que tem distante da de seu senhor" 328
J
j
continuou [e de certa forma continua] sendo elaborada a partir de
Ao lado dos lugares de trabalho, onde as tensões foram cons- inversão dos sentidos das demandas dos libertos, operada ainda na
ti
tantes, à noite, quando o trabalho cedia espaço às sociabilidades aurora republicana" (MATTOS, 1998: 405).

11
entre pessoas da comunidade (encontros, conversas, pequenos L No período pós-abolição, a ideologia do branqueamento,
!] passeios), também OCOITeram "intrigas com cursos violentos", como como enfatiza, Hebe Mattos, não se construiu sobre a tábula rasa
é possível acompanhar ao longo deste estudo. de negros subsocializados pela experiência do cativeiro e sim sobre
1".
.; as suas lutas nas dimensões do dia-a-dia em meio a uma sociedade
11 extremamente segregadora, tanto racial corno socialmente.
,
d

326. Apeb. Processo-Crime de 4/4/1864. Est. J 3, Cx. 446, Doc. 9, fi. 32 (grifas
meus).
r-I I
327. Apeb. Processo-Crime de 16/7/1849, fi. 6.
~~ 328. Apeb. Processo-Crime de 16/7/1849, fi. 6 (grifas meus). 'r
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