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© 2021 Lutz Editora

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Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)
Editora-Chefe
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Organizadoras
Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab
Mércia Cardoso de Souza
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Karine Ribeiro
Capa e Projeto Gráfico
Jeferson Barbosa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Os novos desafios dos feminismos na era pós-democrática / Isabelle


Maria Campos Vasconcelos Chehab, Mércia Cardoso de Souza, or-
ganizadora. -- Goiânia, GO : Lutz, 2021.

Várias autoras.

ISBN 978-65-994693-0-5

1. Educação jurídica 2. Feminismo 3. Feministas cristãs 4. Mulheres - Con-


dições sociais 5. Mulheres - Direitos 6. Políticas públicas de saúde 7.
Saúde da mulher 8. Violência - Obstetrícia I. Chehab, Isabelle Maria
Campos Vasconcelos. II. Souza, Mércia Cardoso de.

21-63465 CDU-342.7

Índices para catálogo sistemático:


1. Feminismo : Pós-democrática : Direito 342.7
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

https://doi.org/10.47658/20210100

Todos os direitos desta edição reservados à


LUTZ EDITORA
www.lutz.mondru.com
Goiânia - GO
"Para minha mãe, Teodora, por ser minha maior inspiração na
luta pela defesa dos direitos das mulheres.

Mércia Cardoso de Souza

"Para Hannah, minha filha, fonte diária de inspiração e espe-


rança para a construção de tempos melhores."

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


APRESENTAÇÃO
ISABELLE MARIA CAMPOS VASCONCELOS CHEHAB,
MÉRCIA CARDOSO DE SOUZA
sumário

Entre os dias 16 e 18 de outubro de 2019, realizou-se, na lendária Universi-


dade de Coimbra, em Portugal, o IV Congresso Internacional de Direitos Hu-
manos de Coimbra, no qual as organizadoras da presente obra coordenaram
o simpósio intitulado “Feminismos e resistências democráticas”, que assumia
como objetivo central trazer visibilidade aos estudos acadêmicos, iniciativas
e/ou espaços de práxis em torno dos feminismos e da sua vinculação – direta
ou indireta – com a resistência democrática no Brasil e no mundo, contando
com a participação de 13 pesquisadoras que, dentre várias outras propostas
submetidas, tiveram os seus trabalhos científicos selecionados para apresen-
tação em terras lusitanas.

Ressalta-se, pois, que o foco do simpósio dizia respeito às ações coletivas


dos feminismos, fossem as de matriz formal ou informal. Portanto, malgrado 13
sejam conhecidas algumas ações individuais de mulheres, que ousaram se

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab, Mércia Cardoso de Souza


opor ao padrão estabelecido pelo sistema patriarcal, os trabalhos ali aco-
lhidos tinham como finalidade principal depurar argumentos, compartilhar
experiências, destacar estudos/teorias e propor políticas públicas e meca-
nismos de participação inovadores acerca dos movimentos e ações coletivas
feministas, considerando, para tanto, os seus ciclos históricos, desafios pre-
sentes e propostas de resistência na atual conjuntura de resistência demo-
crática mundial.

Após a exposição dos trabalhos e, especialmente, pela qualidade dos de-


bates ali articulados, as organizadoras sugeriram para as autoras que tais
ideias, inquietações e propostas amealhadas e discutidas no estrangeiro fos-
sem objeto de uma publicação conjunta no Brasil, o que foi prontamente
acolhido por oito participantes e, posteriormente, por mais cinco pesquisa-
doras, que, embora não vinculadas ao evento acadêmico de Coimbra, foram
convidadas a participar da obra, pelos seus estudos e vivências relacionadas
à temática.

Destarte, consubstanciou-se uma coletânea plural, pautada sobre uma


miríade de olhares, possibilidades e perspectivas, por intermédio de autoras
que partem de múltiplos saberes, como o Direito, a Antropologia, o Serviço
Social e as Ciências da Saúde, os quais, em alguma medida, se entrecruzam,
reverberam e contribuem entre si – e para além de si, com o objetivo de lan-
çar luz aos desafios dos feminismos nesta era pós-democrática tão comple-
xa, representada, sobretudo, e infelizmente, pela centralidade da lógica mer-
sumário

cantil e pelo parco apreço – ou completo desapreço – aos direitos humanos


e à democracia substancial.

Nessa senda, o primeiro artigo, intitulado “Narrativas da educação ju-


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

rídica brasileira sob o olhar feminino”, de autoria de Ana Paula Araújo de


Holanda, tem por objeto dissertar acerca da gênese da educação jurídica
brasileira, forjada sob os arautos masculinos, mas também sobre as mulheres
OS NOVOS DESAFIOS DOS

que ousaram – e ousam – romper com essa lógica excludente e quais são os
seus principais – recorrentes – desafios.
Por seu turno, o segundo capítulo, nomeado de “Vidas ininteligíveis: a per-
versidade nos assassinatos de travestis”, escrito por Andressa Regina Bisso-
lotti dos Santos e Mariana Garcia Tabuchi, expõe uma temática urgente, em-
bora invisibilizada, e elabora um debate amplo e fundamentado em torno de
14 suas notas contextuais, das consequências – fáticas e/ou simbólicas –, e das
responsabilizações para com os assassinatos brutais de travestis no Brasil.
APRESENTAÇÃO

Na sequência, o terceiro capítulo, cujo título é “A violência obstétrica e a


justiça sob a ótica dos direitos sexuais e reprodutivos: uma análise jurispru-
dencial nos tribunais de justiça da região Centro-Oeste”, subscrito por Cristia-
ne Leal de Morais e Silva Ferraz, apresenta uma análise inédita – e necessária
– sobre a violência obstétrica, a partir de dados jurisprudenciais da região
Centro-Oeste, reforçando a imperatividade do dever-ser relacionado à pro-
teção efetiva da mulher contra todas as formas de violência e discriminação
e da aplicação dos instrumentos de justiça e mudança social.

Já no quarto capítulo, com o título “Direito à amamentação em público:


paradoxo entre direitos fundamentais e a cultura da erotização da mulher no
Brasil”, as autoras Fabiana de Paula Lima Isaac Mattaraia e Neide Apareci-
da de Souza Lehfeld lançam seus olhares para o reconhecimento do direito
à amamentação em público, debatendo a visão preconceituosa e arcaica
acerca do corpo feminino e de como as suas raízes estão umbilicalmente
vinculadas ao machismo e ao capitalismo aqui reinantes.

No quinto capítulo, que recebeu o nome de “Etnografia com feministas


cristãs no Supremo Tribunal Federal”, elaborado por Flávia Valéria Cassimiro
Braga Melo, que faz uma abordagem, por intermédio de sua própria práxis,
no que tange à observação e acompanhamento de grupos de feministas cris-
tãs, quando da discussão dos direitos reprodutivos de mulheres no âmbito do
STF.
sumário

No capítulo seguinte, intitulado “As mulheres e a imposição de padrões


inatingíveis: breves conjecturas sobre como foram forjados, quais os seus efei-
tos e como podem ser enfrentados”, de autoria de Isabelle Maria Campos
Vasconcelos Chehab, propõe uma análise sobre a dimensão, os consectários
e as eventuais rotas de fuga para romper com os padrões históricos e inatin-
gíveis impostos em face das mulheres.

Por sua vez, o sétimo capítulo, nomeado “Os conflitos armados como im-
pulsionadores do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual”, subs-
crito por Mércia Cardoso de Souza e Priscila Nottingham, apresenta uma re-
flexão acurada acerca de um tema atual e relevante, pertinente às conexões
entre os conflitos armados e o tráfico de mulheres para fins de exploração
sexual, valendo-se de extensa gama de dados, debates e documentos – na-
cionais e estrangeiros, alinhados à urdidura de um delineamento arguto so-
15
bre as suas causas e consequências.

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab, Mércia Cardoso de Souza


No capítulo oitavo, Mylena Maria Reginaldo Ferreira Gomes, autora de
“Políticas públicas de saúde a mulheres no município de Fortaleza: um pano-
rama a partir da atuação da Defensoria Pública no ano de 2019”, cuida de
discutir amiúde sobre como as políticas públicas de promoção e defesa da
saúde das mulheres em Fortaleza - CE têm sido implementadas e qual tem
sido o papel desempenhado pela Defensoria Pública Estadual, tendo por nor-
te a igualdade de gênero.

Ainda, no nono capítulo, com o título “O jusfeminismo como medida de


enfrentamento à violência jurídica de gênero: uma análise crítica do patriar-
calismo no direito brasileiro”, Raquel Andrade dos Santos explana acerca do
jusfeminismo, demarcando suas principais propostas e potenciais aplicações,
com vistas à desconstrução do machismo, racismo e sexismo e no afã de
promover a igualdade material e justiça social.

Finalmente, o décimo capítulo, intitulado de “A beleza ao seu alcance: o


cabelo crespo na intersecção entre raça, gênero e classe social”, Sara França
Eugênia faz uso de uma corajosa análise transdisciplinar, por meio da qual
sublinha as estruturas sutis de opressão, tristemente vigentes, em face das
mulheres negras, o seu largo modus operandi e a obrigação do seu enfren-
tamento.

Tem-se, assim, por intento inequívoco que esse conjunto de trabalhos, ora
publicado, sob o feixe da presente obra Os Novos Desafios dos Feminismos
na Era Pós-Democrática, pretende estar além de uma concepção meramen-
te acadêmica, albergando também – e sobretudo – a finalidade genuína de
sumário

colaborar, no campo teórico e prático, para a construção de novos tempos,


mais humanos, justos e dignos, por meio dos quais as mulheres possam ser
efetivamente reconhecidas pela sua grandeza histórica, voz robusta e resis-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

tência tenaz. Somos cônscias dos desafios que estão em jogo, das dificul-
dades que nos rodeiam e do horizonte pouco alentador, entretanto, como
sempre e uma vez mais, escolhemos persistir e seguir adiante, construindo e
OS NOVOS DESAFIOS DOS

reconstruindo a primavera que haverá de chegar.

Por nós e por todas aquelas que nos sucederão,

As organizadoras

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab

Mércia Cardoso de Souza


16
APRESENTAÇÃO
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA SOB O OLHAR FEMININO������� 23
Ana Paula Araújo de Holanda

CAPÍTULO 2
VIDAS ININTELIGÍVEIS: A PERVERSIDADE NOS ASSASSINATOS DE TRAVESTIS�������� 43
Andressa Regina Bissolotti dos Santos, Mariana Garcia Tabuchi

CAPÍTULO 3
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E RE-
PRODUTIVOS: UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL NOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DA RE-
GIÃO CENTRO-OESTE ��������������������������������������������������������������������������������������������59
Cristiane Leal de Morais e Silva Ferraz
19
CAPÍTULO 4
DIREITO À AMAMENTAÇÃO EM PÚBLICO: PARADOXO ENTRE DIREITOS FUNDAMEN-
TAIS E A CULTURA DA EROTIZAÇÃO DA MULHER, NO BRASIL �������������������������������� 77
Fabiana de Paula Lima Isaac Mattaraia, neide Aparecida de Souza Lehfeld

CAPÍTULO 5
ETNOGRAFIA COM FEMINISTAS CRISTÃS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL �������� 93
Flávia Valéria Cassimiro Braga Melo

CAPÍTULO 6
AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO DE PADRÕES INATINGÍVEIS: BREVES CONJECTURAS
SOBRE COMO FORAM FORJADOS, QUAIS OS SEUS EFEITOS E COMO PODEM SER
ENFRENTADOS������������������������������������������������������������������������������������������������������� 111
Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab

CAPÍTULO 7
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL �������������������������������������������������������������������129
Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham

CAPÍTULO 8
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DAS MULHERES NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA: UM
PANORAMA A PARTIR DA ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NO ANO DE 2019�159
Mylena Maria Silva Reginaldo Ferreira GomeS
CAPÍTULO 9
O JUSFEMINISMO COMO MEDIDA DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA JURÍDICA DE
GÊNERO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO PATRIARCALISMO NO DIREITO BRASILEIRO�175
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Raquel Andrade dos Santos

CAPÍTULO 10
OS NOVOS DESAFIOS DOS

A BELEZA AO SEU ALCANCE: O CABELO CRESPO NA INTERSECÇÃO ENTRE GÊNERO,


RAÇA E CLASSE SOCIAL ��������������������������������������������������������������������������������������� 189
Sara França Eugênia

sobre as autoras ����������������������������������������������������������������������������������������������212

20
sumário
ANA PAULA ARAÚJO DE HOLANDA - Doutora em Direito - Universidad
Rovira i Virgil. Mestre em Direito - Universidade Federal do Ceará.
Especialista em Direito Público – Universidade Federal de Santa Catarina.
Graduação em Direito - Universidade de Fortaleza. Presidente da Comissão
de Práticas Colaborativas do IAB após Representante do Instituto dos
Advogados Brasileiros no Ceará . Presidente da Associação de Mulheres da
Carreira Jurídica - Ceará. 1ª Vice-Presidente do Instituto dos Advogados
do Ceará. Representante do Instituto dos Advogados Brasileiros no Ceará.
Presidente da Comissão de Práticas Colaborativas da OAB-CE. Membro
da Comissão Especial de Defesa da Autonomia Universitária da OAB
Nacional. Ex-presidente da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-CE. Ex-
membra da Comissão de Educação Jurídica da OAB Nacional. Avaliadora
do SINAES do Ministério da Educação – INEP. Professora da Universidade
de Fortaleza. Advogada Colaborativa. E-mails: apaholanda@hotmail.
com; anapaula@unifor.br
1
CAPÍTULO 1

NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO
JURÍDICA BRASILEIRA SOB O
OLHAR FEMININO
NARRATIVES OF BRAZILIAN LEGAL EDUCATION
UNDER THE FEMALE VIEW

ANA PAULA ARAÚJO DE HOLANDA

https://doi.org/10.47658/20210101
sumário

Resumo

A educação jurídica no Brasil é marcada por uma história de dominação


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

de homens. Desde os rudimentos coloniais e, posteriormente, no Brasil Impé-


rio, a concepção da educação é voltada para homens enquanto elementos
de reprodução do modelo estatal patriarcal e partícipes ativos das estruturas
OS NOVOS DESAFIOS DOS

do Estado. Perpassam, assim, pelo Brasil Império até a fundação da Repúbli-


ca brasileira, as bases patriarcais que se perpetuam até o atual século. Para
desenvolvimento desta pesquisa utilizou-se de bibliografia, documentos his-
tóricos e análise de dados. Depreende-se que o cenário histórico se manteve
no presente século como resta, comprovado pelos dados do censo 2018 do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira-INEP/
Ministério da Educação-MEC e em pesquisas a sites de Instituições do Ensino
24 Superior-IES no estado do Ceará.

Palavras-chaves: Educação jurídica. Mulheres. Patriarcado.


CAPÍTULO 1
NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA SOB O OLHAR FEMININO

Abstract
Legal education in Brazil is marked by a history of male domination. Since the
colonial and later in Brazil Empire, the concept of education is geared towards men
as elements of reproduction of the patriarchal state model and active participants in
the state structures. The patriarchal bases that perpetuated until the present century
passed through Brazil Empire until the foundation of the Brazilian Republic. For the
development of this research, bibliography, historical documents and data analysis
were used. It appears that the historical scenario has remained in the present centu-
ry, as evidenced by data from the 2018 sense of INEP / MEC and surveys of IES sites
in the state of Ceará.

Keywords: Legal education. Women. Patriarchy.


sumário

Introdução

Esta pesquisa visa abordar a trajetória da mulher na educação brasileira


com foco na educação jurídica. Percurso marcado pela participação mascu-
lina de 1500 a 1800 com lampejos de inclusão de mulheres no final do século
XIX.

No primeiro momento, o tratamento será o olhar histórico da colonização


portuguesa com os fundamentos do Estado Imperial brasileiro e a condição
da mulher nas estruturas oficiais. Posteriormente, perpassará por uma aná-
lise da criação dos cursos de Direito no Brasil e seus reflexos na tessitura da
sociedade do Brasil Império. No terceiro momento, analisar-se-á a participa-
ção das mulheres na educação jurídica do início da República até o presente
cenário.
25
O foco contemporâneo será uma análise da inserção das mulheres nas

Ana Paula Araújo de Holanda


carreiras jurídicas com base nos sites das instituições que compõem a estru-
tura judicial, bem como de duas Universidades (pública e privada) do estado
do Ceará. Depreendeu-se que a participação de mulheres na docência da
educação superior na presente década cresceu em ritmo acelerado, porém
não há reflexo no mesmo ritmo nas estruturas do poder e em especial nas
funções de comando, quer nas academias, quer nos cargos do alto escalão
das funções jurisdicionais.

1. Passagens dos Cursos de Direito no Brasil

1.1 Terra Brasilis e suas arcadas


Desde o Brasil Colônia, a nação brasileira expressava seu desejo de cons-
tituir em solo nacional um ensino superior e, em especial, cursos de direito,
para, assim, desenvolver estudos em sintonia com a cultura local aos moldes
da América espanhola1. Entretanto, Portugal impunha à sua maior colônia
restrições ao desenvolvimento da instrução, fato que permitia um maior po-
der de dominação. Nesse sentido, aduz Venâncio Filho (1982, p.1): “o estudo do
ensino jurídico no Brasil não pode prescindir da análise da situação cultural

1 A América espanhola teve cursos superiores desde o início da colonização, cuja


primeira Universidade foi fundada em São Domingos em 1538, seguida da Universidade de
São Marcos (Lima), em 1551, e da Universidade do México, em 1553. Nosso ensino resumia-se,
até a fuga da família real, aos ensinamentos jesuítas, com a Companhia de Jesus, os quais
tiveram o primeiro Colégio estabelecido na Bahia em 1550.
sumário

em Portugal, do papel que nela desempenharam as instituições educacionais


e o direito, e do modo como esta cultura se transplantou para o Brasil, como
forma e tipo de colonização.”
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Por sucessivos séculos, os Jesuítas preenchiam o espaço da instrução que,


apesar de suas limitações, despertaram um relativo espírito acadêmico entre
nós, porém, com sua metodologia e controle pedagógico, nos colocaram à
OS NOVOS DESAFIOS DOS

margem do processo de desenvolvimento intelectual europeu.

É preciso narrar o processo de construção histórica do surgimento dos


cursos de direito no Brasil2 para que possamos entender a realidade, ainda
hoje, patriarcal e conservadora. A gênese da educação brasileira tem em seu
DNA um modelo conservador e extremamente religioso com fortes valores
patriarcais, senão vejamos.
26 Com a sua chegada ao Brasil, a Família Real3 se depara com um am-
biente precário em todos os aspectos, em especial na cultura e nas letras.
CAPÍTULO 1
NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA SOB O OLHAR FEMININO

Imediatamente, D. João VI cria as escolas especiais de Medicina, na Bahia, e


a cadeira de Artes Militares, no Rio de Janeiro, o que permitiu o início das “lu-
zes” em solo brasileiro. Ressalta-se que, mesmo com estes cursos, o Brasil se
mantém precário no ensino superior, poisugis não foram criadas Faculdades,
quiçá Universidades4. Permanece concentrada em Portugal a formação do
establishment nacional, ou seja, persiste em solo português a disseminação
dos valores, da cultura e do pensamento intelectual. Toda intelectualidade
brasileira era forjada pelo português. Esta era uma estratégia da metrópole.
Fato que muito contribuiu para nosso atraso intelectual, bem como para o

2 Com o fortalecimento do Brasil da colônia, aumenta o número de brasileiros


(homens) que se deslocam para Portugal a fim de estudar na Universidade de Coimbra. Em
seus regressos constituem a elite intelectual e política brasileira. Brasileiros que se formaram
em solo português: José Bonifácio de Andrade e Silva, Conceição Veloso, Arruda Câmara,
Câmara Bittencourt de Sá, Silva Alvarenga, Alexandre Rodrigues Ferreira, José da Silva
Lisboa, Cipriano Barata, José Vieira Couto e outros.
3 Com a vinda da Família Real, o Brasil foi elevado a Reino Unido de Portugal, Brasil
e Algarve. Há um amplo desenvolvimento da sociedade com a criação de Jardim Botânico,
Escola de Medicina, Conselho Supremo Militar e de Justiça, Tribunal da Mesa do Poço, Casa
da Suplicação, Intendência-Geral de Polícia, Imprensa Régia, Banco do Brasil, Biblioteca
Nacional, Academia Real Militar e o Real Teatro. (HOLANDA, 2001).
4 A sociedade brasileira desejava, com a vinda família real, a fundação dos Cursos
Jurídicos, o que de fato não ocorre. A formação dos bacharéis em Coimbra muito colaborava
na manutenção do status quo, pois constituía-se num modo de controle ideológico.
(HOLANDA, 2001).
sumário

atraso na concepção de um ordenamento jurídico genuinamente de matrizes


nacionais.

A sociedade brasileira fica, portanto, a depender da metrópole no tocan-


te à educação jurídica, pois só os “homens” – frise-se gênero masculino – com
grandes posses podiam se deslocar e sorver o “bacharelismo”. Segundo Ho-
landa (2001):

O “direito não possuía um celeiro próprio para desenvolver


suas pesquisas, pois estávamos atrelados aos ensinamen-
tos e doutrinas estudadas em Coimbra, uma espécie de
controle ideológico da nação brasileira. É com este precá-
rio panorama nacional que se defrontava nosso país após
a Independência”.

O Brasil torna-se independente, soberano, constitui-se em uma monar- 27


quia, porém totalmente dependente da cultura jurídica do seu “ex-domina-

Ana Paula Araújo de Holanda


dor”. Durante a primeira Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil,
fica evidenciado o anseio nacional por instituições de ensino superior, em
particular, por cursos de direito. Consta nos anais do Império brasileiro que
a Comissão de Instrução Pública propôs a criação de dois cursos de direito
(BRASIL, Senado, 1823, on-line):

Art.1° - Haverão duas universidades, uma na cidade de S.


Paulo e outra na de Olinda; nas quais ensinarão todas as
ciências e belas-letras.
[...]
Art. 4° - Entretanto haverá, desde já, um curso jurídico
na cidade de S. Paulo, para o qual o Governo convocará
mestres idôneos, os quais se governarão, provisoriamente,
pelos estatutos da Universidade de Coimbra, com aquelas
alterações e mudanças que eles, em mesa presidida pelo
vice-reitor, julgarem adequadas às circunstâncias e luzes
do século. (BRASIL, 1823, p. 130)

O clamor social e político para a criação de Universidades e de cursos ju-


rídicos em solo nacional data de antes mesmo da proclamação da indepen-
dência. A Assembleia Constituinte foi dissolvida por D. Pedro I5 e todo o pro-
cesso de concepção de educação superior mais ampla se desfez. Ressalta-se

5 O Imperador, por decreto, criou em 9 de janeiro de 1825 um curso de direito no Rio de


sumário

que, neste período, Visconde de Cachoeira redigiu os Estatutos, os quais, pos-


teriormente, seriam utilizados pelos Cursos Jurídicos criados em 1827.

Consta no projeto de Estatuto de Visconde de Cachoeira6 a formalização


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

do patriarcado de então, pois assim posiciona a necessidade de criação dos


cursos:
OS NOVOS DESAFIOS DOS

[...] um Curso Juridico para nelle se ensinarem as doutrinas


de jurisprudência em geral, a fim de se cultivar este ramo
da instrucção publica, e se formarem homem habeis para
serem um dia sabios Magistrados, e peritos Advogados, de
que tanto se carece; e outros que possam vir a ser dignos
Deputados, e Senadores, e aptos para occuparem os luga-
res diplomatico, e mais emprego do Estado, [...]” (grifo da
autora). (BRASIL, 1827, on-line; FGV, 2020, on-line)
28
Muitos debates foram travados no poder legislativo ao longo do ano de
CAPÍTULO 1
NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA SOB O OLHAR FEMININO

18267, e, em 31 de agosto de 1826, delibera-se, em sintonia com a proposta


inicial da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil, a criação de
dois cursos jurídicos: o de Olinda e o de São Paulo. Segundo Holanda (2001),
esta deliberação atende às demandas dispersas na grande extensão territo-
rial brasileira, um ao Norte e outro ao Sul. O referido Projeto foi aprovado em
4 de julho de 1827.

Com base na Carta de Lei votada pela Assembleia Geral e sancionada


por Dom Pedro I, em 11 de agosto de 1827, funda-se no Brasil os primeiros Cur-
sos Jurídicos com a nomenclatura de Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais:
“Art. 1º Crear-se-hão dous Cursos de Sciencias Jurídicas e Sociaes, hum na
Cidade de São Paulo, e outro na de Olinda, e nelles no espaço de cinco anos
e em nove Cadeiras, se ensinarão as matérias seguintes: [...]”. Muitos debates

Janeiro, que jamais chegou a ser efetivado. Havia uma parcela da elite brasileira que desejava
o curso na corte e outra parcela temia que a instalação na sede política poderia trazer
consequências negativas. Em Portugal, a opção foi levar o curso para o interior (Coimbra).
6 Em vários trechos do Estatuto de Visconde Cachoeira, ele se refere ao gênero
masculino, tais como: “Bachareis formado, dizendo-se homens jurisconsultos”, “haveria em
grande abundancia homens”, “ahindo da Universidade grandes mestres, dignos e sabios
magistrados, e habilissimos homens d’Estado” e assim segue toda a exposição do referido
Estatuto. O foco é criar o curso jurídico e, por conseguinte, uma estrutura estatal com
participação exclusivamente de homens.
7 O deputado mineiro Lúcio Soares Teixeira de Gouveia, juntamente com o deputado
Januário da Cunha Barbosa, travou com veemência a necessidade de curso de direito no
Brasil. Cunha Barbosa apresentou projeto de criação e estruturação de cursos jurídicos em
cinco anos.
sumário

antecederam a promulgação, mas as bases propostas por Visconde de Ca-


choeira foram mantidas.

Funda-se, portanto, nesta data a educação jurídica brasileira. Ambos ins-


talados em estruturas religiosas. O Curso de Direito de São Paulo no Conven-
to de São Francisco, em 1º de março de 1828, e o de Olinda, no Mosteiro de
São Bento, em 15 de maio de 1828. Ademais, a fundação em solo nacional dos
cursos de direito sinaliza para a busca de uma unidade nacional, pois trata-se
de solo fértil para o debate de ideias. Depreende-se dos debates legislativos
que o anseio de criação de cursos jurídicos tem sua gênese num projeto da
elite brasileira com valores conservadores e patriarcais. Para Hironaka e Mo-
naco (2008), a criação dos cursos jurídicos no país se deveu, principalmente,
ao fato de que o Império queria a formação de quadros para o exercício das
funções administrativas e de governo e que fossem formados por homens
29
que coadunassem com as visões políticas, jurídicas e ideológicas do Império.

Ana Paula Araújo de Holanda


Narrativa importante porque ressalta o valor da época, formar homens
nas letras jurídicas para o Estado. Em momento algum incluiu mulheres. O
bacharel em direito passa a ter importância política na construção do Brasil
Império e do Brasil República. Com os cursos jurídicos, outras profissões se
fortalecem: jornalismo, letras, magistério e políticos em geral. Ressalta-se to-
das profissões exercidas à época por homens. As mulheres neste cenário não
possuem representatividade social e política.

Frise-se que o Estado brasileiro cria os referidos cursos, porém mantém


sobre eles total controle desde a seara administrativa, a nomeação de pro-
fessores, a metodologia do ensino, a bibliografia adotada e a definição da
estrutura curricular advindas de Portugal. As academias não tinham au-
tonomia científica e nem organizacional, o que impedia, e, por vezes, até
hoje impede, a inovação e a própria liberdade de pensar. O Estado brasi-
leiro à época era de modelo político Unitário (concentrado e centralizado).
Atualmente, mesmo que o Brasil se constitua numa República Federativa,
conserva resquícios desta época, pois a União possui um modelo de gestão
educacional concentrado e centralizado.

1.2 Das arcadas à República


O processo de construção da educação jurídica brasileira no Brasil Impé-
rio se cinge numa argamassa conservadora e aos moldes portugueses, pois,
mesmo o Brasil independente, o ordenamento jurídico brasileiro persiste atre-
sumário

lado ao ordenamento jurídico português, na medida em que perpassa todo o


período imperial e não se promulga um Código Civil brasileiro, ou seja, per-
manece em vigor as normas portuguesas, inclusive as ordenações. Fato que
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

só vem a ser superado em 1916, com a promulgação do Código Civil brasileiro


elaborado por Clóvis Beviláqua.

Visto que a primeira Constituição Brasileira de 1824 já determinava a ne-


OS NOVOS DESAFIOS DOS

cessidade de sistematização do direito pátrio, assim se expressa em seu ar-


tigo Art. 179:

A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cida-


dãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segu-
rança individual, e a propriedade, é garantida pela Cons-
tituição do Imperio, pela maneira seguinte [...] inciso XVIII.
Organizar–se-há quanto antes um Código Civil e Criminal,
30 fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade. Vale
ressaltar a ordem proposta, em primeiro lugar, Código Ci-
CAPÍTULO 1
NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA SOB O OLHAR FEMININO

vil, e, posteriormente, Código Criminal. Fato que foi total-


mente subvertido na prática. (BRASIL, 1824, on-line)

Como ressalta Holanda (2001), o primeiro Código brasileiro foi o Crimi-


nal, em 1830, revogando parte do Livro V das Ordenações Filipinas. E, em
1832, surge o Código do Processo Criminal, introduzindo no Brasil o habeas
corpus, revogando-se, portanto, os demais artigos do Livro V da referida Lei.
Tal omissão do Estado brasileiro deixa toda a sociedade sem uma consolida-
ção normativa para condução da própria vida em sociedade, mantendo-se
em solo brasileiro os valores conservadores portugueses. Segundo Holanda
(2001), faltando, assim, a base de toda sociedade civil, sua consolidação de
direito civil, tarefa posteriormente desenvolvida por Clóvis Beviláqua.

Isto posto, resta comprovada a vinculação dos valores portugueses em


solo brasileiro. Estes valores, representados pelo conservadorismo, pela bu-
rocracia e pelo patriarcado, repercutem também na participação de mulhe-
res nos cursos de direito e perpassaram quase todo o período imperial sem
ingressos de mulheres nos cursos de Direito. Guimarães e Ferreira (2009) re-
latam que as primeiras mulheres a se graduarem em Direito no Brasil foram
Maria Coelho da Silva Sobrinha, Delmira Secundina e Maria Fragoso (1888) e
Maria Augusta C. Meira Vasconcelos (1889), na Faculdade de Direito do Reci-
sumário

fe.8 Ressalta-se, entretanto, que as mesmas não seguiram nenhuma carreira


jurídica9.

A ruptura deste contexto patriarcal ocorre com Myrthes Gomes de Cam-


pos, que se graduou em Direito junto à Faculdade de Direito do Rio de Janeiro
em 189810. Em ato contínuo, segundo Guimarães e Ferreira (2009), Myrthes
postula reconhecimento do diploma de bacharel pelo Tribunal da Relação do
Rio de Janeiro. Após muitos embates, conseguiu a autenticação. Em seguida,
solicita reconhecimento do diploma na secretaria da Corte de Apelação do
Distrito Federal, o que levou meses para ocorrer.

E, como de praxe no Brasil, os recém-formados postulavam inscrição jun-


to ao Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil (IOAB), na condição de
estagiários. Myrthes o faz em 06 de julho de 1899. Obtém parecer favorável
da Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência11, mesmo assim seu in- 31
gresso é negado, a partir da impugnação do romanista Carvalho Mourão me-

Ana Paula Araújo de Holanda


ses depois. Esta negativa não a fez desistir da carreira, pois logo em seguida
instala seu escritório de advocacia. No mesmo ano (1899), faz defesa perante

8 Já na Faculdade de Direito de Coimbra, a pioneira foi Regina da Glória Pinto de


Magalhães Quintanilha de Sousa e Vasconcelos, que se graduou em 1913, mas o Código Civil
português (1867) não permitia o exercício profissional da advocacia por mulheres, em seu Art.
1354: Não podem ser procuradores em juízo: 1 º (...), 2º As mulheres, exceto em causa própria,
ou dos seus ascendentes e descendentes ou de seu marido, achando-se estes impedidos. O
pensamento português com seu espírito patriarcal só permite ingresso de mulheres anos
depois do Brasil. Fonte: http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Codigo-Civil-
Portugues-de-1867.pdf
9 Ver também obras: ARAÚJO, Tânia Rodrigues de: As mulheres na carreira jurídica.
ARAÚJO, Tânia Rodrigues de (Org.). As mulheres na carreira jurídica. Rio de Janeiro: Manaim,
2002. p. 85-86 e BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Brasília: INL,
1977.
10 Em 1897, a Faculdade Direito do Largo de São Francisco admitiu a Maria Augusta
Saraiva como ingressa em seu curso. Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/235253/
as-mulheres-e-o-direito-historias-de-pioneirismo
11 Parecer da referida comissão: [...] não se pode sustentar, contudo, que o casamento
e a maternidade constituam a única aspiração da mulher ou que só os cuidados domésticos
devem absorver-lhe toda atividade. [...] Não é a lei, é a natureza, que a faz mãe de família. [...] a
liberdade de profissão, é, como a igualdade civil da qual promana, um princípio constitucional
[...]; nos termos do texto do art. 72, § 22 da Constituição o livre exercício de qualquer profissão
deve ser entendido no sentido de não constituir nenhuma delas monopólio ou privilégio, e sim
carreira livre, acessível a todos, e só dependente de condições necessárias ditadas no interesse
da sociedade e por dignidade da própria profissão; [...] não há lei que proíba a mulher de
exercer a advocacia e que, importando essa proibição em uma causa de incapacidade, deve
ser declarada por lei [...]. (Revista IOAB, 6 jul. 1899)
sumário

o Tribunal do Juri12, em fortes polêmicas da sociedade, e obtém êxito com


brilhantismo pela absolvição do seu constituinte. Myrthes foi aprovada para
o quadro de sócia efetiva do IOAB somente em 12 de julho de 1906, após pos-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

tular novamente a filiação, o que provocou longos debates internos. Myrthes,


portanto, inicia sua trajetória de luta contra o patriarcado em suas diversas
faces: profissional, participação política (voto feminino) e divórcio no ordena-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

mento jurídico brasileiro, dentre outras. Assim, a primeira advogada do Brasil


abre as portas da sociedade republicana com força e coragem.

1.3 A República e as pioneiras da educação jurídica


Com os movimentos republicanos em solo brasileiro, ecoa com eles a luta
por novos cursos de Direito, e neste diapasão foram fundados no Rio de Ja-
32
neiro a Faculdade Livre de Direito (1881) e a Faculdade de Ciências Jurídicas
e Sociais (1882). Com a República, a intelectualidade brasileira aspirava cada
CAPÍTULO 1
NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA SOB O OLHAR FEMININO

vez mais pela ampliação do ensino superior; Minas Gerais, com a sua força
econômica, fez nascer, em 1892, a Faculdade Livre de Direito do Estado de
Minas Gerais em Ouro Preto, posteriormente transferida para Belo Horizonte,
e, em 1900, a Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre. Já sob a influência
da Escola do Recife, surgem as Faculdades Livres de Direito da Bahia (1891) e
do Ceará (1903). Em consulta aos sites destas IES, não foi encontrado registro
de acesso de mulheres nestes anos de criação. Portanto, estes novos cursos
não representaram o acesso proporcional de mulheres na educação superior.

A lógica patriarcal brasileira também ecoou nas acadêmicas de Direi-


to para o exercício da docência. E segundo Guimarães e Ferreira (2009), a
primeira mulher a exercer o magistério no Brasil foi Heloisa Assumpção do
Nascimento, junto a Faculdade de Direito de Pelotas/RS.

12 Nesta sua primeira defesa Myrthes, junto ao Tribunal do Juri, aproveita a


oportunidade e assim se posiciona: No preâmbulo da sua intervenção a causídica aproveitou
a oportunidade para responder aos seus opositores e discorrer sobre o papel da mulher na
sociedade: [...]. Envidarei, portanto, todos os esforços, a fim de não rebaixar o nível da justiça,
não comprometer os interesses do meu constituinte, nem deixar uma prova de incapacidade aos
adversários da mulher como advogada. [...] Cada vez que penetrarmos no templo da justiça,
exercendo a profissão de advogada, que é hoje acessível à mulher, em quase todas as partes
do mundo civilizado, [...] devemos ter, pelo menos, a consciência da nossa responsabilidade,
devemos aplicar todos os meios, para salvar a causa que nos tiver sido confiada. [...] Tudo
nos faltará: talento, eloquência, e até erudição, mas nunca o sentimento de justiça; por isso,
é de esperar que a intervenção da mulher no foro seja benéfica e moralizadora, em vez de
prejudicial como pensam os portadores de antigos preconceitos. (O País, Rio de Janeiro, p. 2,
30 set. 1899)
sumário

Esther de Figueiredo Ferraz fez história quando ingressou no Largo de


São Francisco em 194013, e formou-se em 1944. No Largo de São Francisco
também exerceu o magistério como Livre Docente de Direito Penal da Facul-
dade de Direito da Universidade de São Paulo. Rompe com todo patriarcado
brasileiro e passa a ser a primeira Ministra da Educação do Brasil em pleno
regime militar (Presidente João Figueiredo), de 24 de agosto de 1982 a 15 de
março de 1985. Destaca-se também por ter sido a primeira mulher a exercer a
reitoria de uma Universidade (Mackenzie) em toda América Latina. Segundo
Gois (2005), Esther foi a primeira professora do curso de direito na década
de 1950 e conta em relato que foi alertada, antes de sua primeira aula, que
poderia haver resistência dos alunos e ela assim respondeu: “Preparei uma
ótima aula. Quando entrei na sala, os alunos se levantaram e bateram pal-
mas. Na minha mesa, havia uma maçã com um bilhete escrito “an apple for
the teacher” [uma maçã para a professora].” 33

Em consulta ao site da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,

Ana Paula Araújo de Holanda


registra-se que apenas em 1998 foi Ivette Senise Ferreira eleita a primeira e
única mulher para exercer o cargo de Diretora da faculdade, cujo mandato
foi até 2002. Este fato indica que não há ampla participação de mulheres na
gestão desta arcádia.

A Faculdade de Direito do Recife, desde sua criação e, em especial, com


a consolidação do movimento intitulado Escola do Recife, sempre se mostrou
progressiva e, por que não dizer, revolucionária. Notabilizou-se nos estudos
da sociologia do direito. Foi neste seio acadêmico que ingressou no Brasil a
doutrina do positivismo crítico de Emile Littré (HOLANDA, 2007), que propu-
nha uma verdadeira ruptura do paradigma dogmático defendido em São
Paulo e nos movimentos intelectuais do Rio de Janeiro, mas mesmo assim
não foi capaz de ser pioneira na inclusão de mulheres na docência, pois o
processo de inclusão de mulheres no magistério foi mais tardio e somente em
1965 foi admitida, no quadro de docentes junto ao Departamento de Direito
Público Geral e Processual da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a
primeira mulher, Bernadete Neves Pedrosa14, que se aposentou em 1998 e em
novembro de 2006 recebeu o título de Professora Emérita.

13 Segundo o IBGE, em 1940, apenas 34% de mulheres sabiam ler e escrever em face
ao percentual de 42% dos homens. Elemento que dificultava o acesso das mulheres ao ensino
superior.
14 Em 1998, aposentou-se e em novembro de 2006, ela recebeu o título de Professora
Emérita.
sumário

Foi por meio da Escola do Recife que o Brasil ingressou no estudo dos
doutrinadores alemães, mas, mesmo tendo sido uma academia historica-
mente crítica e libertária, atrasa-se nas questões de gênero. Destes bancos
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

escolares forjou-se Clóvis Beviláqua, profundo defensor da participação das


mulheres nas instituições. Sua defesa intransigente o fez retirar-se da Aca-
demia Brasileira de Letras, quando da negativa de postulação a uma vaga
OS NOVOS DESAFIOS DOS

feita por Amélia Beviláqua, em 1930, sob a alegativa de que os estatutos


em seu art. 2º não previam o ingresso de mulheres, pois a terminologia lá
utilizada era de ingresso de brasileiros. Esta foi a interpretação restritiva dos
confrades. Ele se retira desta academia por ter se negado a postulação de
uma mulher e não por ser sua esposa15. E nesta arcádia o ingresso feminino é
muito tardio, pois só veio a ocorrer com Rachel de Queiroz em 1977, ocupando
a cadeira de número 516.
34
1.4 Breves recortes no contexto atual da educação jurídica do Ceará
CAPÍTULO 1
NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA SOB O OLHAR FEMININO

“PERFIL” TÍPICO DOS DOCENTES DAS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO SUPE-


RIOR PO CATEGORIA ADMINISTRATIVA - BRASIL - 2018

CATEGORIA ADMINISTRATIVA
ATRIBUTOS DO VÍNCULO DOCENTE
PÚBLICA PRIVADA

Sexo Masculino Masculino

Idade 38 38

Escolaridade Doutorado Mestrado

Regime de Trabalho Tempo Integral Tempo Parcial

Fonte: Elaboração Própia com base em dados do Censo da Educação Superior 2018.

Nota: Para Construção do perfil docente foi considerada a Moda de cada atributo selecionado

As estatísticas consolidadas do Censo da Educação Superior de 2018


apontam para o predomínio na docência de homens, tanto na rede pública
como na rede privada.

15 O ingresso de uma mulher na ABL só ocorrerá em 1977, por uma cearense destemida
– Rachel de Queiroz, que passou a ocupar a cadeira de número 5.
16 Academia Brasileira de Letras – Discurso de posse de Rachel de Queiroz: Disponível
em: https://www.academia.org.br/academicos/rachel-de-queiroz/discurso-de-posse. Acesso
em: 20 jul. 2020.
sumário

“PERFIL” TÍPICO DOS DISCENTES NOS CURSOS DE GRADUAÇÃO, POR MO-


DALIDADE DE ENSINO - BRASIL - 2018

ATRIBUTOS DO VÍNCULO DISCENTE MODALIDADE DE ENSINO


DE GRADUAÇÃO PRESENCIAL A DISTÂNCIA

Sexo Feminino Feminino

Categoria Administrativa Privada Privada

Grau Acadêmico Bacharelado Licenciatura

Turno Noturno n.a.

Idade (ingressante) 19 21

Idade (matrícula) 21 24

Idade (Concluinte) 23 30 35

Ana Paula Araújo de Holanda


Fonte: Elaboração Própia com base em dados do Censo da Educação Superior 2018.

Nota: Para Construção dos perfil dos discentes foi considerada a Moda de cada atributo selecionado

Já no perfil discentes, há mais mulheres tanto na rede pública como


na rede privada. A maior demanda na educação superior brasileira é para
cursos de bacharelado, com 68% dos alunos matriculados. E, neste universo,
71,3% são mulheres e 28,7% são homens.

Em consulta à página de um curso de Direito de uma Instituição de Ensino


Superior (IES) privada no Ceará, registra-se possuir 159 (cento e cinquenta e
nove) docentes e depreende-se o seguinte quadro na docência por gênero:
49% mulheres e 51% homens do seu total de professores. Nesta IES há um
equilíbrio por gênero, fato não tão corriqueiro no Brasil. Não há registro de
docentes com identificação social de gênero.

Observando o site de um curso de Direito de uma IES pública no Ceará17,


depreendeu-se que do total de 61 (sessenta e um) professores, tem o seguinte
recorte por gênero: 65,6% homens e 34,4 mulheres. Nesta IES, quando se de-
pura os dados em seus três departamentos, encontra-se a seguinte realidade
por gênero: Departamento de Direito Público possui 20 (vinte) professores,
sendo 40% mulheres e 60% homens; Departamento de Direito Privado pos-
sui 20 (vinte) professores, sendo 40% mulheres e 60% homens; e no Depar-
tamento de Direito Processual são 21 (vinte e um) professores, sendo 76,2%
homens e 23,8% mulheres. À primeira vista, ressalta que há um número exces-

17 Os dados contidos neste artigo acerca de duas IES consolidadas no Ceará foram
compilados a partir de pesquisas realizadas nos sites das próprias IES.
sumário

sivo de homens no departamento de direito processual, em comparação com


os outros departamentos. Não há registro de docentes com identificação por
gênero social. Será que aqui ainda reside um preconceito de gênero? As mu-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

lheres não são seres humanos afetas ao processo? À prática jurídica?

Para Bonelli (2016), a maior incidência de mulheres encontra-se nas ins-


tituições com fins lucrativos, com 41,2%. A menor porcentagem está nas ins-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

tituições federais, com 36,5%, mas a distância entre as IES quanto à visibi-
lidade das mulheres ministrando aulas nos cursos presenciais varia pouco.
Se existe uma certa igualdade de ingresso na carreira, isso não ocorre na
ascensão, uma vez que as hierarquias profissionais se cingem nos bastiões
masculinos.

Em entrevista com a presidente da Comissão da Mulher Advogada da


36 Ordem dos Advogados do Ceará (OAB CE) – Christiane do Vale Leitão, nos
foi repassado o seguinte dado quantitativo da OAB em 29 de julho de 2020:
a) total de inscritos ativos e ativos isentos = 29200, b) 13298 são mulheres,
CAPÍTULO 1
NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA SOB O OLHAR FEMININO

ou seja, 45,55% e c) 15902 são homens, ou seja, 54,45%. O que configura um


quadro minoritário de mulheres na advocacia no estado do Ceará. Ressalta-
-se que até hoje nenhuma mulher exerceu o cargo de Presidente da OAB-CE.

O Tribunal de Justiça do estado do Ceará (TJCE) disponibiliza em seu site


sua composição de 42 desembargadores, sendo 28 (vinte e oito) desembar-
gadores homens e 14 (catorze) desembargadoras mulheres, ou seja, 66,7% de
homens e 33,3% de mulheres. O universo feminino no TJCE é muito aquém do
universo masculino na instância mais alta do tribunal. Em detrimento às esta-
tísticas por gênero em 2020, quando o TJCE informa que “entre os cargos de
magistrados, servidores, terceirizados e estagiários, as mulheres são maioria.
Elas representam 52,57% da força de trabalho. Atualmente, num total de 453
magistrados (1º e 2º Graus), 167 mulheres compõem o quadro de profissionais
no Judiciário cearense” (TJCE, 2020, on-line).

Ampliando-se o espectro da consulta junto ao site do TJCE, encontra-se


algumas preciosidades. A primeira magistrada brasileira foi a cearense Auri
Moura Costa, que depois tornou-se a primeira desembargadora em 1963 e
a primeira mulher a presidir o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará em 1974.
Junto à galeria de Ex-Presidentes do Tribunal de Justiça do estado do Ceará,
disponível em seu site, depreende-se que ao longo de sua trajetória o TJCE
teve 59 (cinquenta e nove) presidentes, destes, apenas, duas foram mulheres:
Águeda Passos Rodrigues Martins (1999-2000) e Maria Iracema do Vale (2015
a 2017) (TJCE, 2020, on-line). Fatos que comprovam a lógica de que cabe às
sumário

mulheres funções hierarquicamente inferiores, pois as duas únicas mulheres


a presidirem o TJCE datam de um período após a Constituição de 88 e com
intervalo longo entre uma administração e a outra.

Já a presidência do TJCE só veio a ser desempenhada por uma mulher


em 1999, com a desembargadora Águeda Passos, que se constituiu na segun-
da mulher a integrar o Tribunal de Justiça do Ceará quando de sua posse em
1986. Em consulta a galeria de Ex-Presidentes do Tribunal Regional Eleitoral
do estado do Ceará (TRE-CE), identificou-se de um total de 46 (quarenta e
seis) ex-presidentes, dos quais apenas 06 (seis) foram mulheres.

Junto ao Ministério Público do estado do Ceará, consta em sua galeria de


Ex-Procuradores Gerais de Justiça (MPCE, 2020, on-line) um quantitativo de
18 (dezoito), sendo 16 (dezesseis) homens, ou seja, 88,9%, e apenas 02 (duas)
mulheres, ou seja, 11,1%. 37
Em entrevista datada de 29 de julho de 2020, com a Defensora Pública

Ana Paula Araújo de Holanda


do estado do Ceará Amélia Soares da Rocha, atualmente na presidência da
Associação das Defensoras e dos Defensores Públicos do estado do Ceará,
obtivemos os seguintes dados: a) total de defensores no estado Ceará: 347
(trezentos e quarenta e sete), assim distribuídos por gênero: 182 homens e 165
mulheres, ou seja, 52,4% homens e 47,6% mulheres, bem como nos relatou
que de 06 (seis) Defensores Públicos Gerais apenas uma gestão foi exercida
por um homem. Todas as demais gestões foram exercidas por mulheres e
sua ampla maioria com recondução. Em primeiro olhar, depreende-se que a
instituição mais nova da estrutura do Sistema de Justiça18 possui em seu DNA
uma face feminina. Fato que vem romper a tradicionalismo e o patriarcado
instaurados nas demais instituições jurídicas.

Com o perfil de participação por gênero acima disposto, tem-se que,


como afirma Bonelli (2016, p. 2):

[...] o Brasil não se diferenciou deste padrão na composi-


ção do grupo profissional e dos laços entre as elites jurídi-
cas e o poder político. Desde a criação dos cursos de Di-
reito no país, no século XIX, até a última década do século
XX (Adorno, 1988; Venâncio Filho, 1977; Falcão, 1984) as
carreiras privadas e públicas foram preenchidas principal-

18 A Defensoria Pública do Estado do Ceará foi criada pela da Lei Complementar


Estadual n° 06/1997. Neste momento nasce uma nova realidade para os hipossuficientes do
Ceará, pois passam a ter real acesso à justiça. 
sumário

mente por homens brancos ou embranquecidos pela po-


sição social, e a docência do Direito manteve-se ajustada
aos mesmos critérios de seleção e recrutamento.
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

De posse dos dados acima descritos no estado do Ceará, tem-se a con-


firmação de que as carreiras jurídicas desde o Brasil Império até nosso século
têm sido sistematicamente preenchidas por homens. E quanto mais se sobe
OS NOVOS DESAFIOS DOS

na hierarquia das carreiras, menos se identifica a participação feminina nos


comandos das estruturas.

Considerações finais

A trajetória de construção do ensino jurídico no Brasil possui alicerces em


38 Portugal e com a matriz acadêmica luso instaura-se nos cursos de Direito
com normativos baseados nos Estatutos de Coimbra. O texto deste Estatuto,
CAPÍTULO 1
NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA SOB O OLHAR FEMININO

conhecido como Estatuto de Visconde de Cachoeira, possui narrativa mas-


culina e com todo o arcabouço voltado para ingresso e ascensão de homens
nas carreiras jurídicas. Toda a base doutrinária, conceitual e formal veio do
seio português. Portanto, inicia-se a educação superior no Brasil fortemente
atrelada aos moldes lusitanos e, no caso específico do direito, permanece em
solo brasileiro todo o arcabouço educacional e estrutural português.

Utiliza-se em todo o Brasil imperial os manuais de autores portugueses,


bem como toda a estrutura do Poder Judiciário deste modelo decorre com
forte inclinação burocrática e patriarcal. Como exposto, mulheres só ingres-
sam no curso de direito de Recife no final do Império.

Destaca-se que por todo Brasil Império não se tem registro de mulheres
em alguma carreira jurídica, pois as primeiras, ao se formarem em Recife, em
1888, não atuaram profissionalmente. Tem-se, portanto, a partir de registros
históricos de Myrthes Gomes de Campo, graduada apenas na República bra-
sileira, que a saga das mulheres foi longa e desigual. Mulheres ingressam na
advocacia de modo isolado e sob fortes preconceitos, como o fato da postu-
lação de Myrthes para os quadros do IOAB. A trajetória na docência inicia-se
com Heloisa Assumpção do Nascimento, no final da década de 1930, porém
colhe desta realidade participações esporádicas das mulheres na docência.
Este contexto tem repercussão até hoje, pois o número de mulheres na do-
cência, quer em instituições de ensino superior públicas ou privadas, é menor
que o número de homens.
sumário

Quando o olhar se volta para as carreiras que compõem o Poder Judici-


ário, na análise desta pesquisa que se circunscreveu ao Poder Judiciário do
Ceará, as estatísticas não foram animadoras. Apesar da primeira magistrada
brasileira ter sido uma cearense - Auri Moura Costa -, o Ceará não mantém
seu pioneirismo e avanços, posto que, na magistratura, a história nos coloca
em total descompasso quanto às questões de gênero. No Ministério Público,
o quadro não é diferente, e na OAB nenhuma mulher exerceu a presidência
até hoje, sendo que ainda se tem um menor número de inscritas mulheres do
que homens.

A única instituição do sistema de justiça do Ceará que tem e teve no


exercício de função máxima a predominância de mulheres é a Defensoria
Pública do Estado Ceará, entretanto, no atual quadro de defensores públicos
do estado do Ceará, há um predomínio de homens.
39
Deste recorte parcial da educação e das carreiras jurídicas, registra-se a

Ana Paula Araújo de Holanda


persistência histórica do predomínio masculino nas diversas carreiras jurídi-
cas, pois mesmo tendo atualmente um maior número de mulheres no corpo
discente, a composição de docentes e das demais carreiras são exercidas
predominantemente por homens. A inserção de mulheres no mundo do direi-
to ainda é um desafio extremo, pois a sociedade ainda permanece apoiada
no ideário masculino.

As questões de gênero precisam ser constantemente revisitadas no ce-


nário antropológico, não se pode aceitar a imutabilidade deste cenário. É
preciso reconhecer as diferenças e buscar a inclusão do olhar feminino.
sumário

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FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

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VENANCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo:150 anos de ensino
jurídico no Brasil. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982.

41

Ana Paula Araújo de Holanda


ANDRESSA REGINA BISSOLOTTI DOS SANTOS - Doutoranda em Direitos
Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná. Mestra pela
mesma instituição. Professora da Universidade Estadual de Maringá e da
Faculdade de Pinhais. Advogada. E-mail: bissolottiandressa@gmail.com

MARIANA GARCIA TABUCHI - Mestranda em Direitos Humanos e Políticas


Públicas na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista
em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política
Criminal. E-mail: mariana.tabuchi@gmail.com
2
CAPÍTULO 2

VIDAS ININTELIGÍVEIS: A
PERVERSIDADE NOS ASSASSINATOS DE
TRAVESTIS
UNINTELLIGIBLE LIVES: THE PERVERSITY
IN TRAVESTIS MURDERS

ANDRESSA REGINA BISSOLOTTI DOS SANTOS,


MARIANA GARCIA TABUCHI

https://doi.org/10.47658/20210102
sumário

Resumo

O presente trabalho tem como escopo compreender a expressão de per-


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

versidade como elemento comum nas violências que atingem as travestis


e os corpos femininos ininteligíveis. Refletir sobre essas questões se mostra
especialmente fundamental no contexto do Brasil atual, em que os discursos
OS NOVOS DESAFIOS DOS

de ódio contra mulheres e pessoas LGBTI+ parecem indicar aumento dos


dados dessas violências. Assim, utilizando-se das ferramentas desenvolvidas
por Judith Butler, ao pensar a construção dos corpos abjetos, e das reflexões
trazidas por Rita Segato, busca-se compreender como as formas contempo-
râneas de guerra fazem desses corpos o seu território, seu lócus mais legítimo
de demonstração de soberania. A metodologia adotada foi a pesquisa quali-
tativa, com base na análise documental dos dados publicados no Dossiê dos
44 assassinatos e da violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018,
bem como na revisão bibliográfica. Quanto aos resultados obtidos, apon-
CAPÍTULO 2
VIDAS ININTELIGÍVEIS: A PERVERSIDADE NOS ASSASSINATOS DE TRAVESTIS

ta-se que esses corpos caminham fora dos limites da inteligibilidade e, por
vezes, esbarram na fronteira do que é entendido como humano, pelo que se
tornam vidas descartáveis. Assim, a sua expropriação através de elementos
cruéis e a sua matabilidade ganham centralidade como estratégia bélica em
um sistema definido por relações de gênero.

Palavras-chave: Travestis. Perversidade. Assassinatos.

Abstract
The purpose of the present study is to comprehend the expression of perversity
as the common element in acts of violence towards travestis and unintelligible fe-
male bodies. To reflect upon such questions becomes especially fundamental in the
context of current-day Brazil, where hate speeches against women and LGBTI+ in-
dividuals seem to indicate an increase of data related to this type of violence. In this
sense, by making use of the framework developed by Judith Butler when considering
the construction of abject bodies, and the observations brought by Rita Segato, it
seeks to understand how contemporary forms of war turn such bodies into their own
territory, their most legitimate locus for demonstrating sovereignty. The adopted
methodology was qualitative research, with basis on a documental analysis of the
data published in the Dossier on Murders and Violence Against Travestis and Trans
People in Brazil - 2018, as well as bibliographic revision. As for the results obtained,
it indicates that these bodies walk outside the edges of intelligibility and sometimes
touch the boundary of what is understood as human, becoming expendable lives.
sumário

Consequently, the expropriation of these bodies through cruel elements and their
killability acquire central significance as a warlike strategy in a system defined by
gender relations.

Keywords: Travestis. Perversity. Murders.

Introdução

No contexto atual da democracia brasileira, a difusão de discursos de


ódio tem se mostrado como elemento crucial nas disputas em torno da cons-
trução e da manutenção de mulheres e população LGBTI. Paralelo a esses
discursos, cuja produção se intensificou ao longo da última década, os re-
latórios que buscam quantificar as violências contra essas populações de-
monstram a intensificação dessas violências, em especial no que tange à 45
crueldade com a qual são perpetradas.

Andressa Regina Bissolotti dos Santos, Mariana Garcia Tabuchi


Neste trabalho, se procura estabelecer a relação entre as normas que de-
finem a inteligibilidade de gênero e as violências sofridas por pessoas trans-
gêneras e travestis, em especial a partir da identificação da produção dos
discursos de ódio no contexto da chamada “Ideologia de Gênero”.

Para isso, procuramos, a partir de uma metodologia ensaísta, interpretar


os dados do Dossiê produzido pela Associação Nacional de Travestis e Tran-
sexuais do Brasil (ANTRA) e pelo Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE),
acerca dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais no Brasil
em 2018, a partir do uso das categorias que nos são oferecidas especialmente
por Judith Butler e Rita Laura Segato.

1. A perversidade como elemento comum nos assassinatos de


travestis
Suba, suba! Não vai subir, não? Viado fêi. Sobe logo! A
mundiça tá de calcinha e tudo!1

No dia 17 de fevereiro de 2017, na cidade de Fortaleza/CE, a travesti Dan-


dara dos Santos, que possuía 42 anos de idade na época, foi brutalmente
violentada até a morte. Dandara recebeu chutes, pauladas, tapas e insultos.

1 Palavras proferidas antes do assassinato da travesti Dandara dos Santos,


identificadas mediante gravação do momento das torturas. Disponível em: <https://www.
nexojornal.com.br/ensaio/2019/Dandara-dos-Santos-dois-anos>. Acesso em: 28 fev. 2020.
sumário

Ensanguentada, ela pedia que parassem os ataques. Todavia, a par de suas


súplicas, foi obrigada a subir em um carrinho de mão e, na sequência, foi as-
sassinada a tiros por um grupo de homens2.
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Apesar do caso Dandara dos Santos possuir uma única particularidade


em relação aos demais homicídios de travestis no Brasil – ter sido gravado
e ter tido grande repercussão midiática –, chama a atenção as semelhanças
OS NOVOS DESAFIOS DOS

profundas desse caso em relação aos demais assassinatos dessa população,


sobretudo no que tange à crueldade dos meios empregados nesses contex-
tos.

O Dossiê produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais


do Brasil (ANTRA) e pelo Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE) acerca
dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais no Brasil, em
46 2018, apenas confirma esse argumento.

O documento produzido aponta que as violências cometidas contra a po-


CAPÍTULO 2
VIDAS ININTELIGÍVEIS: A PERVERSIDADE NOS ASSASSINATOS DE TRAVESTIS

pulação trans se distinguem pelo grande número de golpes desferidos contra


as vítimas e pela perversidade nos métodos utilizados (BENEVIDES; NOGUEI-
RA, 2019, p. 41).

Apenas no ano de 2018, pelo menos 163 pessoas trans foram assassina-
das no país. E os elementos que se repetem são: “a agressão física, tortura,
linchamento, afogamento, espancamento e facadas. Em 83% dos casos, os
assassinatos foram acompanhados de requintes de crueldade como uso ex-
cessivo de violência, esquartejamentos, afogamentos e outras formas brutais
de violência” (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019, p. 23).

Ressalta-se, nesse sentido, não só a vulnerabilidade dessa população em


um país líder no ranking de matabilidade de pessoas transgêneros3, mas em
especial a perversidade como elemento comum em tais ações delituosas.

Os tipos de armas utilizadas nesses crimes reforçam a constatação. Con-


forme também aponta o Dossiê, embora a faca e o revólver sejam as armas

2 GLOBO. Travesti Dandara foi apedrejada e morta a tiros no Ceará, diz secretário,
2017. Disponível em: <http://g1.globo.com/ceara/noticia/2017/03/apos-agressao-dandara-
foi-morta-com-tiro-diz-secretario-andre-costa.html>. Acesso em: 28 fev. 2020.
3 Segundo dados da organização não-governamental (ONG) Transgender Europe
(TGEU), divulgados em novembro de 2018, foram reportados 369 casos de assassinatos
de travestis e transexuais no mundo entre outubro de 2017 e setembro de 2018, sendo que
destes, 167 ocorreram somente em território brasileiro. Relatório da Transgender Europe, 2018.
Disponível em: <https://transrespect.org/en/tmm-update-trans-day-of-remembrance-2018/>.
Acesso em: 06 set. 2019.
sumário

mais comuns para a consumação dos homicídios, igualmente foi identificada


a utilização de outros instrumentos – como estilhaços de vidro, tijolos, peda-
ços de pau, enxada, pedras e barra de ferro – que indicam a ocorrência de
um maior sofrimento da vítima.

Saliente-se, além disso, que os homicídios também estão centrados em


um perfil específico de vítima. 97,5% dos casos foram cometidos contra pes-
soas do gênero feminino e 82% contra pessoas negras e pardas, sendo, ain-
da, a idade média dos atingidos 26,4 anos (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019, p.
41). E 65% foram direcionados às travestis prostitutas, com 60% deles ocor-
rendo nas ruas (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019, p. 19).

Esses dados revelam, por conseguinte, não só uma violência extremada


e cruel contra a população trans, mas também que a matabilidade dessas
pessoas está associada às relações sociais de gênero, raça e classe, sendo as 47
mulheres negras e pobres as mais expostas às violações e ao exaurimento de

Andressa Regina Bissolotti dos Santos, Mariana Garcia Tabuchi


seus corpos.

Há que se sublinhar, ainda, o que os dados não mostram. Aliás, o que


a ausência deles diz acerca das demais violências cometidas contra essa
população, em especial a institucional. Apesar do Dossiê produzido pelo AN-
TRA e pelo IBTE reunir informações ricas e importantes acerca de parte dos
assassinatos cometidos contra travestis, não reflete a totalidade deles, tendo
em vista sobretudo a dificuldade de angariar informações frente à inexistên-
cia de dados demográficos a respeito da população trans brasileira e de um
levantamento por parte do Estado acerca desses homicídios.

A ausência de registros ou documentos de notação acerca dessa popu-


lação não deixa de ser uma ação administrativa que delimita o que deve ou
não deve ser posto em debate, invisibilizando não só a existência de travestis
e transgêneros, mas também a violência cometida contra elas.

Não à toa, o governo do Ceará não considerou transfobia o assassinato


brutal de Dandara dos Santos. No ano de sua morte, a Secretaria de Segu-
rança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) afirmou que nenhum cri-
me cometido naquele período estava ligado à homofobia (PAIVA; SANTANA,
2018).

Assim, refletindo acerca das estatísticas, da ausência delas e das narra-


tivas construídas em torno de assassinatos em que a regra é a crueldade e a
perversidade, é que se mostra necessário compreender de que modo os cor-
pos de pessoas trans e travestis caminham fora dos limites da inteligibilidade.
sumário

2. A política do ódio e a (re)inscrição de corpos travestis no cam-


po da abjeção
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

A publicação do dossiê produzido pela ANTRA e pelo IBTE, destacando


não apenas os alarmantes números, mas as formas através das quais essas
violências se dão, sinaliza para uma evidente política de ódio contra esses
OS NOVOS DESAFIOS DOS

corpos.

Essa política se relaciona, há um só tempo, com a posição de abjeção


em que esses corpos são localizados no contexto das normas culturais que
estabelecem a inteligibilidade de gênero (BUTLER, 2007), bem como com os
discursos acentuados dos últimos anos que (re)produzem e (re)afirmam cons-
tantemente essas normas, em detrimento do reconhecimento social e mesmo
48 jurídico da legitimidade das experiências transgêneras e travestis.

A localização do gênero como atributo de inteligibilidade primeiro do su-


CAPÍTULO 2
VIDAS ININTELIGÍVEIS: A PERVERSIDADE NOS ASSASSINATOS DE TRAVESTIS

jeito, nos é dada por Judith Butler. A autora desloca a oposição sexo/gênero
como tradicionalmente formulada nas teorias feministas, questionando-se
acerca das formas através das quais o próprio corpo, constantemente pen-
sado como lócus de pré-discursividade e natureza, materializa-se nos termos
dessas normas constitutivas da inteligibilidade gendrada (BUTLER, 2002). O
sexo, assim, se reúne com o gênero, revelando-se como tendo sido sempre
gênero, jamais materialidade pré-discursiva.

Sexo/gênero revelam-se como uma não oposição, mas uma conjunção


pressuposta culturalmente como coerente, e que classifica os sujeitos como
inteligíveis/não-inteligíveis, normais/anormais, a partir da relação do sujei-
to concreto com a exigida coerência ou seu afastamento em relação a ela.
A posição como corpo abjeto surge, nesse sentido, como efeito do desloca-
mento dessas normas culturais, da não correspondência daquela experiência
com o que os enquadramentos que orientam nossas percepções do humano
estabelecem (BUTLER, 2015).

Para perceber a atuação do sexo/gênero, como elemento basilar de inte-


ligibilidade do sujeito, convém relembrar uma historieta, contada por Guacira
Lopes Louro em Pedagogias da Sexualidade:

[...] numa pequena cidade da Alemanha, o prefeito, al-


gum tempo depois de eleito, assume publicamente uma
nova identidade de gênero. Ele agora se apresenta como
mulher e comunica sua intenção de completar essa trans-
sumário

formação através de processos médicos, especialmente


cirúrgicos. A cidade inicia um movimento para destituí-lo,
pois, na opinião de grande parte da população, ele é ago-
ra “outra” pessoa. (LOURO, 2013, p. 12-13)

A percepção de que o prefeito desta pequena cidade, ao assumir uma


identidade de gênero diversa da anteriormente reconhecida, teria se tornado
uma outra pessoa, surge como metáfora do que se expõe até aqui: o sexo/
gênero é localizado como o centro de inteligibilidade social. Nesse sentido,
evoca-se também as categorias que nos são dadas por Foucault ao anun-
ciar que, no contexto do dispositivo da sexualidade, a Modernidade verá no
sexo4 a verdade sobre si mesma e sobre cada um de seus componentes (FOU-
CAULT, 2014).

As pessoas transgêneras e travestis, assim, acabam por ocupar social- 49


mente um lugar deslocado, desafiador das normas culturais que estabele-

Andressa Regina Bissolotti dos Santos, Mariana Garcia Tabuchi


cem a coerência entre sexo/gênero, nas fronteiras daquilo que é considerado
inteligível como humano, portanto. Essa fronteira também é frequentemente
transpassada por outros marcadores sociais, como a raça, a pobreza e o
exercício da prostituição como profissão.

Assim, em seus deslocamentos pelas fronteiras das normas sociais, que


orientam a inteligibilidade generificada do humano, essas pessoas, especial-
mente as prostitutas, também parecem lidar com outras fronteiras: a cor de
sua pele e os territórios que ocupam, no contexto do espaço urbano. Seus cor-
pos se tornam reinos da exceção às leis estatais. No olhar do sistema de justi-
ça sobre os crimes que as vitimam, perscrutam-se a abjeção de seus corpos
e a marginalidade de seus espaços; na frequência e violência extrema com
que esses crimes se realizam, bem como na negligência estatal em investigá-
-los (CARRARA; VIANNA, 2006), percebe-se a atuação daquilo que Foucault
chamou racismo de Estado (FOUCAULT, 2010), através da classificação dessas
vidas como matáveis, como vidas que não são passíveis de luto (BUTLER, 2015).

Essa vivência no local da abjeção, expondo-as à precariedade e à vio-


lência, deve ser vista não como um elemento estático, mas dinâmico, de

4 Ele se torna espaço de definição da normalidade de cada sujeito individualmente:


a partir da categorização das perversões, das inquirições sobre as práticas perversas, o sexo
ocupa o centro da verdade do sujeito. Parece adequado compreender que o que Foucault
procura focalizar com a expressão sexo é mais do que o que o sexo significa na clássica
oposição entre sexo/gênero. Parece possível afirmar que o sexo aparece aqui como uma
mistura das tradicionalmente separadas categorias de Gênero/Identidade de Gênero e
Orientação Sexual.
sumário

constante (re)produção. Por um lado, é importante ter em mente que esses


corpos resistem cotidianamente, de diversas formas, às marcas que lhe são
atribuídas, tensionando o diagnóstico que acima se desenha. Por outro lado,
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

o Brasil vive contemporaneamente um contexto de ascensão de discursos de


ódio acerca dessas vidas, que as reinscreve no local tradicional da abjeção e
procura lhes retirar a possibilidade de exercer a própria experiência de gêne-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

ro de forma autônoma e reconhecida socialmente.

Recentemente, tivemos mudanças importantes na realidade sociojurídica


de pessoas trans, como o entendimento de que suas identidades de gênero
devem ser reconhecidas e respeitadas pelo Estado, através da possibilidade
de retificação de nome e designativo sexual de forma extrajudicial e sem
exigência de apresentação de laudos médicos, na Ação Direta de inconsti-
tucionalidade (ADI) n. 4.275 (BRASIL, 2018); ou a equivalência da LGBTIfobia
50
ao crime de racismo, nos termos do Mandado de Injunção (MI) n. 4733 (BRA-
SIL, 2019) / Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26
CAPÍTULO 2
VIDAS ININTELIGÍVEIS: A PERVERSIDADE NOS ASSASSINATOS DE TRAVESTIS

(BRASIL, 2019). Mas essas mudanças convivem com um amplo movimento


que nega a legitimidade de suas experiências, pretende reclassificá-las como
doentes mentais e que vê nelas um perigo constante para a segurança da
população, representado pelo pânico gerado em torno da possibilidade de
que se ensine às crianças, nas escolas, que não há nada de errado em ser
transgênero e/ou travesti.

Ao analisar os discursos produzidos no contexto amplo do que se intitulou


pela extrema direita de “Ideologia de Gênero”, a negação à identidade de
gênero assume papel central. Aqueles que visam combater esta “ideologia”
anunciam que as crianças estariam sendo ensinadas que elas não devem ser
“meninos” e “meninas”, no sentido tradicional que essas expressões signifi-
cam, o que, de maneira geral, parece indicar uma crença de que as crianças
estariam sendo “ensinadas”, “doutrinadas”, a serem pessoas transgêneras e/
ou homossexuais.

Representativa desses discursos foi a fala da Ministra da Mulher, da Fa-


mília e dos Direitos Humanos que, na posse dos Ministros do novo governo,
afirmou que “menina será princesa e menino será príncipe”, e que posterior-
mente apareceu em vídeo afirmando que se estaria vivendo uma “nova era
no Brasil”, na qual “menino veste azul e menina veste rosa”5.

5 O GLOBO. ‘Menino veste azul e menina veste rosa’, diz Damares Alves em vídeo.
sumário

A frase da Ministra, no entanto, é apenas um ponto dentre tantas arti-


culações que já vinham se realizando a nível local, estadual e regional no
país, e que se tornaram especialmente visíveis após as discussões dos planos
municipais e estaduais de educação em 2015. Na votação desses planos, em
Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas do país inteiro ouviam-se
gritos como “ninguém vai dizer à minha filha que ela não é menina, que ela
não pode ser menina” (KIRCHHOFF; OLIVEIRA; DOS SANTOS, 2018, p. 216).

Desde então, uma oposição organizada e pública à legitimidade da expe-


riência transgênera e travesti têm se realizado de forma capilar, com eventos
e proposições legislativas diversas. O que esses discursos sinalizam, de ma-
neira geral, é à existência de uma compreensão de que a transgeneridade/
travestilidade seria necessariamente um distúrbio psíquico, um desvio e um
risco à sociedade, especialmente às crianças. Veja-se, nesse sentido, cartaz
51
recentemente divulgado de evento a ser realizado na Assembleia Legislativa
do Rio Grande do Sul, idealizado por deputado do DEM, que se intitulava

Andressa Regina Bissolotti dos Santos, Mariana Garcia Tabuchi


da seguinte forma: “Epidemia de Transgêneros: o que está acontecendo com
nossas crianças?”6.

Todos esses discursos (re)inscrevem a transgeneridade e a travestilidade


no espaço social da abjeção e do ininteligível. O uso do termo “epidemia” aci-
ma, especialmente, nos remete à ideia de “contágio”, de que essas subjetivi-
dades e corpos colocariam em risco os demais por sua existência e por seus
direitos.

Tudo isso contextualiza os dados do dossiê trabalhados neste capítulo,


possibilitando-nos perceber o quanto estes corpos se tornam território abjeto
e inimigo, no qual se realiza uma política de guerra e extermínio.

Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-


diz-damares-alves-em-video-23343024>. Acesso em: 22 ago. 2020.
6 Ressalte-se que, posteriormente, dada a repercussão negativa que a escolha do nome
causou, os organizadores renomearam a palestra para “Aspectos médicos e desenvolvimentais
da disforia de gênero na infância e adolescência”. O título inicial, no entanto, parece ainda
bastante representativo da mensagem que se pretenderá passar.
sumário

3. Corpos femininos como território de guerra

Se, por um lado, Butler nos informa acerca do campo de abjeção em que
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

os corpos das pessoas travestis e transgêneros são deslocados, por outro,


Rita Laura Segato (2014) nos auxilia na compreensão da utilização da peda-
gogia da crueldade como método bélico para a destruição desses corpos.
OS NOVOS DESAFIOS DOS

Conforme destaca a autora (SEGATO, 2012, p. 108), a vulnerabilidade dos


corpos femininos e feminizados frente à violência não só tem aumentado,
como se tem verificado formas de destruição corporal sem precedentes, uma
espoliação até o último vestígio de vida, de tortura até a morte.

Essa transformação contemporânea da violência de gênero está vincu-


lada às novas formas de guerra, que já não se caracterizam pelos conflitos
52 convencionais entre Estados-nação que marcaram o século XX. Um novo uni-
verso bélico urge – com baixos níveis de formalização, ainda que o Estado
seja também agência propulsionadora desse acionar – e com ele a guerra
CAPÍTULO 2
VIDAS ININTELIGÍVEIS: A PERVERSIDADE NOS ASSASSINATOS DE TRAVESTIS

é escrita e inscrita no corpo das mulheres. A agressão, a dominação de seus


corpos, a violência sexual, física e seus assassinatos não são, como foram em
outros momentos, um complemento da guerra, mas ganharam centralidade,
sendo a própria estratégia bélica (SEGATO, 2014, p. 343).

Assim, tais corpos se tornam o território dos conflitos, o lócus mais legíti-
mo de demonstração de soberania, posto que a violência executada é o meio
pelo qual se afirma a destruição moral do inimigo.

La violación pública y la tortura de las mujeres hasta la muerte


de las guerras contemporáneas es una acción de tipo distinto
y con distinto significado. Es la destrucción del enemigo en el
cuerpo de la mujer, y el cuerpo feminino o feminizado es, como
he afirmado en innumerables ocasiones, el próprio campo de
batalla en que se clavan las insígnias de la victoria y se signifi-
ca en él, se inscribe en él la devastación física y moral del pue-
blo, tribu, comunidad, vecindario, localidad, familia, barriada o
pandilla que ese cuerpo femenino, por un proceso de significaci-
ón próprio de un imaginario ancestral, encarna (SEGATO, 2014,
p. 361)

Nestes termos, inaugura-se um novo paradigma de territorialidade, no


qual o território não se constitui meramente por fronteiras geográficas, mas
pelos corpos, que carregam as insígnias e as senhas da dominação e das
estratégias biopolíticas. Por isso, “es posible decir que los cuerpos y su ambiente
espacial inmediato constituyen tanto el campo de batalla de poderes en conflicto
sumário

como el bastidor donde se cuelgan y exhiben las senãs de su anexión” (SEGATO,


2014, p. 352).

Os feminicídios, os estupros e a violência corporal se constituem, por-


tanto, como atos comunicativos, como enunciados. São mostras públicas de
extermínio que expressam êxito e, também, o lugar e a posição do dominado.
Nesse sentido é que Segato (2005, p. 282) defende que estes não são crimes
comuns ou, ainda, meramente de natureza sexual, mas sim de um “segundo
Estado”, de um Estado paralelo, no qual a dimensão expressiva da violência
prevalece.

As reflexões da autora, nesse sentido, ajudam na compreensão do cenário


brasileiro, notadamente da guerra instaurada contra os corpos ininteligíveis e
da pedagogia da crueldade como método cada vez mais frequente nos casos
de feminicídios e transfeminicídios. Os discursos de ódio que ascendem no 53
Brasil – analisados no tópico anterior – respaldam o aumento exponencial

Andressa Regina Bissolotti dos Santos, Mariana Garcia Tabuchi


dos assassinatos de mulheres e, em especial, da população trans.

Mas, não se trata apenas de tirar a vida desses corpos. Os 83% de casos
apurados pelo ANTRA e pelo IBTE em que se constataram requintes de cruel-
dade comunicam, enunciam: a humilhação perversa, a supressão e extermínio
de travestis, negras, pobres, prostitutas são estratégias centrais da política,
da guerra e da política de guerra. São seus corpos o campo de batalha em
que se disputam os signos da inteligibilidade e das normas totalitárias de
gênero.

Conclusão

Em suma, pode-se constatar que as violências perpetradas contra mulhe-


res trânsgeneras e travestis possuem um papel performativo na (re)produção
das normas de inteligibidade gendrada: através dela, e especialmente dos
requintes de crueldade que são ali percebidos, esses corpos são (re)inscritos
no lócus da abjeção.

Tal violência, no entanto, não é um ponto isolado no contexto da cultu-


ra, mas se localiza num processo amplo de violência discursiva e simbólica,
a partir de discursos de ódio que negam a inteligibilidade e a legitimidade
da experiência transgênera e travesti, constituindo-a como desvio perigoso
à continuidade da cultura, da qual se deve proteger os demais, em espe-
cial as crianças. Assim, esses corpos são tomados como territórios da guerra
sumário

perpetrada contra as experiências contestatórias das normas que definem o


normal/anormal em termos de gênero.

Nesse contexto, é de se perceber que o combate dessas violências exige


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

mais do que a cobrança de políticas de segurança pública por parte do Es-


tado, em especial em um contexto no qual agentes deste mesmo Estado são
responsáveis pela difusão de discursos deslegitimadores. O enfrentamento
OS NOVOS DESAFIOS DOS

dessas violências passa, acima de tudo, pela disputa dos termos através dos
quais essas vidas são representadas no espaço público.

54
CAPÍTULO 2
VIDAS ININTELIGÍVEIS: A PERVERSIDADE NOS ASSASSINATOS DE TRAVESTIS
sumário

Referências
BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. Dossiê dos assassi-
natos e da violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018. Associação
Nacional de Travestis e Transexuais Do Brasil (ANTRA) e Instituto Brasileiro Trans
de Educação (IBTE): Brasil, 2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275,
Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Ple-
no, julgado em 01 de março de 2018, DJE nº 045 publicado em 07 de março de 2019.
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56
CAPÍTULO 2
VIDAS ININTELIGÍVEIS: A PERVERSIDADE NOS ASSASSINATOS DE TRAVESTIS
CRISTIANE LEAL DE MORAIS E SILVA FERRAZ - Docente e pesquisadora
da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Mestre em Ciências
Ambientais e Saúde pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB Goiás (CMA/OAB
GO). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Gênero da CMA/OAB GO.
Advogada. E-mail: ferraz.cris@gmail.com
3
CAPÍTULO 3

A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA


SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E
REPRODUTIVOS:
UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL NOS TRIBUNAIS
DE JUSTIÇA DA REGIÃO CENTRO-OESTE

OBSTETRIC VIOLENCE AND JUSTICE FROM THE PERSPECTIVE OF SEXUAL


AND REPRODUCTIVE RIGHTS: A CASE-LAW ANALYSIS IN THE CENTRAL WEST
COURTS

CRISTIANE LEAL DE MORAIS E SILVA FERRAZ

https://doi.org/10.47658/20210103
sumário

Resumo

O presente estudo teve por objetivo a análise dos acórdãos nos Tribu-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

nais de Justiça da região centro-oeste do Brasil que envolvessem situações


de violência obstétrica, a fim de compreender como esta temática tem sido
tratada pelo nosso sistema de justiça. A pesquisa teve por base a perspectiva
OS NOVOS DESAFIOS DOS

de gênero e o compromisso do Brasil por meio de tratados internacionais


para a implementação e proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres. Para tanto, realizou-se uma análise documental associada a uma
análise quantitativa de critérios objetivos levantados por intermédio do exa-
me destas decisões. Ao final, concluiu-se que a violência obstétrica é uma
violação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e, como tal, precisa
ser enfrentado, tanto por meio do ordenamento jurídico de nosso país, como
60 pelo discurso do Direito que emana das decisões jurisprudenciais em nossos
Tribunais. Ademais, reforçou-se sobre o dever legal dos magistrados de pro-
CAPÍTULO 3
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

mover, a partir de suas decisões, a proteção efetiva da mulher contra todas


as formas de violência e discriminação, fazendo-se, assim, instrumentos efe-
tivos de justiça e mudança social.

Palavras-chave: Violência obstétrica. Direitos sexuais e reprodutivos. Vi-


olência de gênero. Poder Judiciário.

Abstract
The present study aimed to analyze the judgments in the Courts of Justice in the
central-west region of Brazil that involved situations of obstetric violence, in order
to understand how this theme has been treated by our justice system. The research
was based on the gender perspective and Brazil’s commitment through international
treaties for the implementation and protection of women’s sexual and reproductive
rights. To this end, a documentary analysis was carried out associated with a quan-
titative analysis of objective criteria raised through the examination of these deci-
sions. In the end, it was concluded that obstetric violence is a violation of women’s
sexual and reproductive rights and, as such, needs to be faced, both through the
legal system of our country, and through the discourse of law that emanates from
the jurisprudential decisions in our Courts. In addition, it reinforced the magistrates’
legal duty to promote, based on their decisions, the effective protection of women
against all forms of violence and discrimination, thus becoming effective instru-
ments of justice and social change.

Keywords: Obstetric violence. Sexual and reproductive rights. Gender-based


violence. Judicial Branch.
sumário

Introdução

Historicamente, o parto acontecia no lar, sob a responsabilidade de par-


teiras, detentoras de um conhecimento empírico e intergeracional, e tinha
como protagonista, por ser um fenômeno natural, a mulher. Contudo, o avan-
ço tecnológico e científico trouxe a institucionalização do parto e, como de-
tentor do saber e da técnica, o médico tornou-se a sua figura principal, rele-
gando a mulher a um segundo plano (HELMAN, 2009, p. 143-168).

Essa nova forma de conduzir o processo de parturição mudou a qualida-


de da assistência prestada e culminou no que se denominou violência insti-
tucional, posto que praticada no âmbito da prestação dos serviços de saúde
durante a gestação, parto e puerpério. 61

No Brasil, 98,4% dos nascimentos ocorrem em instituições de saúde.

Cristiane Leal de Morais e Silva Ferraz


Apesar disso, ainda temos altos índices de mortalidade materna, com taxas
de 62,0 óbitos por 100.000 nascidos vivos (BRASIL, 2018, p. 39-57). Ademais,
inclui-se ao processo intervenções agressivas, desnecessárias ou contraindi-
cadas, manipulações excessivas, abusos e desrespeito à parturiente e seus
familiares (DINIZ et al, 2018, p. 19).

Essa apropriação do corpo da mulher na gestação, parto e puerpério,


negando sua participação, desrespeitando seus sentimentos e opções, infli-
gindo um tratamento violento e abusivo, quer físico, sexual ou psicológico, é
definida como violência obstétrica. Desta forma, a própria relação de autori-
dade do médico e/ou profissional de saúde para com a paciente, impedindo
e constrangendo sua manifestação, é tida como uma violência obstétrica,
neste caso, sendo mais bem definida como violência simbólica.

Nas últimas décadas, um amplo esforço internacional tem sido envidado


para resgatar a humanização do parto. A Organização Mundial da Saúde
(OMS), por exemplo, possui recomendações acerca do incentivo ao parto nor-
mal, bem como avalia práticas relacionadas ao parto normal e indica quais
são úteis e quais devem ser evitadas, além de recomendar o compartilha-
mento da tomada de decisões com as mulheres (WHO, 1996, p. 1).

No Brasil, desde os anos 2000, o Ministério da Saúde (MS) tem buscado


a implementação de programas e políticas em saúde cujo propósito é asse-
gurar o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção a humanização à
gestação, parto e puerpério.
sumário

Contraditoriamente, em 2019, um despacho do MS informou que não


mais utilizaria em seus documentos o termo “violência obstétrica”. Esta de-
cisão causou reação de entidades em defesa das mulheres, da Ordem dos
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Advogados do Brasil, do Ministério Público Federal, dentre outros, que se ma-


nifestaram contrários à decisão do MS. Tal acontecimento trouxe a necessi-
dade de reflexão e o questionamento dos reais motivos de se abolir o termo
OS NOVOS DESAFIOS DOS

“violência obstétrica” da política pública nacional, invisibilizando a violência


perpetrada institucionalmente às mulheres.

Por outra banda, em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo,


em 2010, verificou-se que uma entre quatro mulheres atendidas em mater-
nidades brasileiras sofre violência obstétrica. Como se não bastassem esses
números alarmantes, a pesquisa identificou que as mulheres têm dificuldade
em reconhecer as violências sofridas, o que indica que a violência institucio-
62
nal já se naturalizou, transformando-se em uma consequência do parto (HO-
TIMSKY; AGUIAR; VENTURI, 2013, p. 221). Estes dados reforçam a necessidade
CAPÍTULO 3
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

e importância em se nomear a violência obstétrica e trazê-la para a pauta de


debates sobre os direitos sexuais e reprodutivos da mulher.

Destarte, é preciso compreender que a violência obstétrica vai além dos


cuidados relacionados à saúde materna, é, sobretudo, reflexo de uma socie-
dade patriarcal na qual a autonomia de seu próprio corpo é negada à mulher.
Neste sentido, o reconhecimento da violência obstétrica como uma violência
contra a mulher tem suas origens na luta de movimentos feministas, para que
políticas públicas fossem implementadas visando a humanização do parto, e
perpassa pela contribuição de pesquisadores e profissionais da área da saú-
de, que compreendem seu papel no combate à violência institucional.

Nesse contexto, Saffioti (2001, p. 115) define violência de gênero como


aquela que se dirige especificamente às mulheres e fundamenta-se clara-
mente em valores patriarcais que retiram da mulher a autonomia sobre seu
corpo, não reconhecendo seus direitos sexuais e reprodutivos. Fica clara, por-
tanto, a necessidade de se analisar a violência obstétrica como uma violên-
cia de gênero.

Por seu turno, a configuração da violência obstétrica como uma violência


aos direitos humanos das mulheres, posto ser uma violação aos direitos se-
xuais e reprodutivos, tem fundamento nos tratados internacionais, dos quais
o Brasil é signatário.

Enquanto violência de gênero, é discriminativa e, portanto, está intrinse-


camente relacionada à violação de direitos fundamentais, conforme estabe-
sumário

lecido pelo artigo 1º da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de


Discriminação contra a Mulher (CEDAW) (BRASIL, 2002, on-line).

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência


contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) define violência contra a
mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera
pública, como na esfera privada”, podendo, portanto, ser perpetrada pelo
Estado ou seus agentes (BRASIL, 1996, on-line). Por meio deste documento
internacional, os Estados signatários, incluindo o Brasil, assumiram o compro-
misso de combater a violência contra as mulheres em todas as suas formas.

Por sua vez, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim, reali-


zada no ano de 1995, reafirmou a necessidade de tratar os direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres como direitos humanos das mulheres (ONU, 1999, 63
on-line). No âmbito interno, há uma lacuna legislativa, a despeito de diver-

Cristiane Leal de Morais e Silva Ferraz


sos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, o que dificulta a
concretização dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, em especial,
quando abordada sob o aspecto da violência obstétrica. A ausência de nor-
mas legais que tipifiquem e coíbam este tipo de violência reflete na forma
como essa temática é tratada pelo sistema judiciário.

É importante ressaltar que, na vanguarda legislativa, o estado de Santa


Catarina editou a Lei 17.097, de 17 de janeiro de 2017, que dispõe sobre a im-
plantação de medidas de informação e proteção à gestante e parturiente
contra a violência obstétrica no âmbito estadual. Contudo, ainda são tímidas
as iniciativas para implementação de leis específicas sobre este tema.

Nesse contexto, o presente trabalho assume como objetivo central anali-


sar as decisões nos Tribunais de Justiça da região centro-oeste do Brasil que
envolvam situações de violência obstétrica, sob a perspectiva de gênero e o
compromisso do Brasil por meio de tratados internacionais para a implemen-
tação e proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Para tanto,
dividiu-se o texto em dois momentos, quais sejam: a descrição do caminho
metodológico percorrido e a apresentação dos resultados entremeada pela
análise dos dados obtidos. Ao final, concluiu-se que violência obstétrica é
uma violação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e, como tal,
precisa ser enfrentada, tanto por meio do ordenamento jurídico de nosso
país, como pelo discurso do Direito que emana das decisões jurisprudenciais
em nossos Tribunais, conforme será adiante explicitado.
sumário

1. Caminho metodológico percorrido

Para a realização deste estudo, optou-se pela utilização de uma pesqui-


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

sa qualitativa, por meio da análise documental dos acórdãos nos Tribunais


de Justiça da região centro-oeste do Brasil. Em associação, realizou-se uma
análise quantitativa de critérios objetivos levantados por intermédio da aná-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

lise destas decisões.

A pesquisa documental consiste no exame de documentos originais que


ainda não receberam tratamento analítico. Os dados são obtidos exclusiva-
mente por meio de documentos e o pesquisador extrai destes as informações
necessárias para compreensão do fenômeno estudado (KIPKA; SCHELLER;
BONOTTO, 2015, p. 58).

64 Sem prejuízo à pesquisa documental, alguns dados obtidos passaram por


um processo de análise estatística descritiva para obtenção das frequências
absolutas e relativas, uma vez que a mensuração destes dados auxilia na
CAPÍTULO 3
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

caracterização do objeto da pesquisa.

A pesquisa documental foi realizada nas bases de jurisprudências dos Tri-


bunais de Justiça da região centro-oeste do Brasil (Distrito Federal, Goiás,
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) durante o mês de janeiro de 2020. Não
houve limitação quanto ao período de publicação das decisões e as pala-
vras-chave utilizadas foram: violência obstétrica (VO), direitos reprodutivos
(DR), episiotomia (E), manobra de Kristeller (MK), acompanhante e parto (A),
ponto do marido (PM), violência e parto (V).

O processo de elaboração do estudo consistiu em quatro momentos. No


primeiro momento, realizou-se uma busca textual nas bases de dados utili-
zando-se as palavras-chave elencadas, sendo identificadas 69 decisões (TA-
BELA 1).

O segundo momento consistiu na leitura da narrativa dos fatos, para ve-


rificar se as decisões realmente tratavam de situações de violência obstétrica
e, ao final desta etapa, foram constatadas 36 decisões. No terceiro momento,
cuidou-se de excluir decisões em duplicidade, sendo encontradas 5 decisões
nestas condições. Ao final, foram selecionadas 31 decisões para o estudo. Por
fim, o quarto momento teve por escopo a leitura do inteiro teor das decisões
e a problematização do fenômeno estudado (FIGURA 1).
sumário

Tabela 1. Resultado da busca textual nas bases de dados dos Tribunais de Jus-
tiça da região centro-oeste, utilizando-se os descritores elencados para o es-
tudo, Brasil, 2020.

TRIBUNAL VO DR E MK A PM V TOTAL

Distrito Federal 4 0 0 4 8 0 0 16

Goiás 0 0 1 0 0 0 0 1

Mato Grosso 1 1 10 7 2 0 0 21

Mato Grosso do Sul 1 0 5 8 17 0 0 31

Total 69

Fonte: Elaboração Própia.


65
Figura 1. Representação do fluxo de informação com as diferentes fases da

Cristiane Leal de Morais e Silva Ferraz


análise documental (Elaboração própria)
sumário

2. Apresentação e análise dos dados obtidos

2.1. A violência obstétrica nas decisões jurisprudenciais em números


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Para melhor compreensão do fenômeno estudado, foram consideradas


as seguintes variáveis: tipo de ação, forma de atendimento, tratamento juris-
prudencial dado ao caso, pedido e para quem foi dado enfoque na ação. Os
OS NOVOS DESAFIOS DOS

dados foram apresentados na Tabela 2 e analisados em seguida.

Tabela 2 - Análise estatística das variáveis categóricas do estudo, Brasil, 2020.

VARIÁVEL N %

Tipo de Ação
66
Cível 29 93,55
CAPÍTULO 3
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

Penal 2 6,45

Forma de atendimento*

Público 18 72

Privado 7 28

Tratamento Jurisprudencial

Erro médico 21 67,74

Direito à saúde** 8 25,8

Violência obstétrica 1 3,23

Direitos sexuais e reprodutivos 1 3,23

Pedido***

Acompanhante no parto 9 31

Danos morais 3 10,35

Danos morais e materiais 3 10,35

Danos morais e estéticos 8 27,6

Danos morais, materiais e estéticos 1 3,45

Danos morais, violência psicológica e física 1 3,45

Danos morais e violência física 1 3,45

Direitos sexuais e reprodutivos 3 10,35


sumário

VARIÁVEL N %

Enfoque

Criança 7 22,59

Mãe 14 45,16

Criança e mãe 7 22,58

Pai 2 6,45

Violação aos direitos das mulheres 1 3,22

Legenda: n - frequência absoluta, % - frequência relativa (porcentagem)


*Em 06 decisões não foi possível determinar a forma de atendimento
**Termo usado nos casos de direito à acompanhante
***Excluídas as ações penais 67
Verifica-se, no presente estudo, que a maioria das ações que buscam re-

Cristiane Leal de Morais e Silva Ferraz


paração pelas violências obstétricas sofridas pelas mulheres foi de natureza
cível (93,55%), tendo o fato ocorrido em um hospital da rede pública de as-
sistência à saúde (72%).

Estes dados demonstram a dificuldade em tipificar essa forma de violên-


cia de gênero pela ausência de uma legislação específica em nosso país que
trate do assunto. Por isso, as ações são conduzidas no âmbito da responsa-
bilização civil, em regra, sem que seja levantado o debate acerca da viola-
ção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e sua proteção. Deve-se
considerar, também, que leis específicas contribuem para a viabilização do
reconhecimento dos direitos das mulheres.

Ademais, evidenciam a vulnerabilidade das mulheres pobres e dependen-


tes do sistema público de saúde frente à violência institucional. Esta consta-
tação é confirmada por dados da pesquisa “Nascer no Brasil: inquérito na-
cional sobre parto e nascimento” (FIOCRUZ, 2012, p. 7), que identificou serem
as mulheres pobres, pretas e pardas, atendidas no setor público, submetidas
a partos extremamente medicalizados, dolorosos, sendo as que demonstram
menor satisfação com a atenção recebida.

Por sua vez, o tratamento jurisprudencial dado à temática, em sua maio-


ria (67,74%) foi de erro médico. Os casos em que se pleiteava a permanência
de um acompanhante durante o parto, foram caracterizados como direito
à saúde (25,8%) e eram fundamentados na Lei Federal 11.108, de 07 de abril
de 2005. Apenas em 1 caso (3,23%) sublinhou-se a violência obstétrica como
sumário

pano de fundo da ação, merecendo destaque pela qualidade da análise jurí-


dica apresentada. E, por fim, em 1 caso (3,23%) tratou-se de direitos reprodu-
tivos, relativo à antecipação terapêutica do parto.
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Chama à atenção o percentual de ações relativas ao direito à acompa-


nhante (31%), quando existente uma lei federal específica para tal situação.
A recusa sem justificativa legal de acompanhante durante o processo de par-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

turição reforça, sobretudo, o desrespeito aos direitos humanos da mulher e


coloca a gestante em uma situação de vulnerabilidade em um momento que,
por si só, já é de fragilidade.

Os pedidos constantes nas ações albergavam o direito à acompa-


nhante, direitos sexuais e reprodutivos e indenizações, este último presente na
maioria das ações. Em várias decisões, verificou-se a cumulação de pedidos.
68 Contudo, deve-se ressaltar o pequeno percentual de pedidos que destacaram
de maneira clara em seu contexto a violência obstétrica sofrida e/ou os direi-
tos sexuais e reprodutivos violados.
CAPÍTULO 3
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

O pedido, como elemento da ação e sob a ótica material (pedido me-


diato), representa o bem da vida perseguido. Quando a violência obstétrica é
resumida a um quantum, a um valor monetário a título de reparação, deixa-se
de analisar o problema em sua essência e, portanto, a reflexão necessária
para a compreensão do fenômeno é descartada. Importante deixar claro que
não há qualquer erro em se pleitear uma indenização, o que se propõe é a
análise da violência obstétrica sob a ótica dos direitos humanos das mulhe-
res, portanto, sendo fundamental que o pedido perpasse pela caracterização
deste tipo de violência.

A mãe foi a protagonista na maioria das ações (45,16%), questionan-


do judicialmente as violências sofridas, seja psicológica ou física. Contudo,
apenas em uma ação (3,22%), tratou-se especificamente dos direitos sexuais
e reprodutivos da mulher. Considerando que a violência obstétrica é uma
lesão aos direitos humanos da mulher, trata-se de uma constatação que re-
força a invisibilidade das mulheres no processo de parturição, enquanto de-
tentora de direitos, e a ausência de autonomia sobre seus corpos.
sumário

2.2. Como a violência obstétrica é juridicamente analisada nos Tribunais de


Justiça da região centro-oeste
A leitura do inteiro teor das decisões jurisprudenciais permitiu conhecer os
fatos ocorridos, o posicionamento das partes e como o Poder Judiciário trata
juridicamente estas ações.

Da análise das decisões foi possível observar que, quando se vincula a


violência obstétrica ao erro médico, retirando-lhe o caráter autônomo e in-
dependente, cria-se o dever de provar que o evento danoso aconteceu em
virtude de negligência, imperícia ou imprudência. Ora, em sendo violência,
basta a realização da ação/omissão para se configurar como tal, o que re-
força a necessidade de tipificação da violência obstétrica enquanto violação
de direitos das mulheres. A prova de que a violência obstétrica aconteceu
deveria ser suficiente para sua punição. Infelizmente, não é o que aconte- 69
ce em nossos Tribunais, conforme pode-se depreender do trecho de um dos

Cristiane Leal de Morais e Silva Ferraz


acórdãos analisados:

Também restou configurada a violência obstétrica sofrida


pela parte autora. Em que pese as negativas do Réu, ve-
rifica-se que há provas nos autos quanto a utilização da
manobra de “Kristeller”, conforme destacado na análise
preliminar. [...] No que diz respeito à episiotomia, trata-se
de um direito da paciente de ser comunicada e assentir ou
não com o procedimento médico. [...] Desta feita, a falta
de comunicação de que o procedimento era necessário
caracteriza sim um ato de violência contra a gestante. [...]
o descaso no atendimento da autora no momento da in-
ternação (falta de vestimentas) e a falta de informações
quanto ao seu estado de saúde no pós-parto, são ense-
jadores de indenização por dano moral”. (BRASIL, 2018,
on-line)

Esta ação trata de uma situação em que a mulher sofreu violência


obstétrica durante o parto, mas que, apesar de reconhecida pela corte, não
foi considerada na quantificação da indenização, ou seja, não trouxe qual-
quer repercussão no mundo jurídico.

É importante ressaltar que, à despeito do debate acerca da escassa le-


gislação interna que contemple os direitos sexuais e reprodutivos das mulhe-
res, cabe ao magistrado a interpretação das leis sob o prisma constitucional.
Assim, é fundamental compreender que o discurso do Direito, refletido nas
decisões e acórdãos judiciais, se não considerados os avanços sociais que,
sumário

muitas vezes, se concretizam antes da elaboração das leis, pode se constituir


instrumento de perpetuação do caráter discriminatório (SEVERI, 2011, p. 332),
conforme se observa na transcrição de um trecho constante de um dos acór-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

dãos analisados:

Por mais que a apelante insista em afirmar que o seu qua-


dro de depressão pós-parto e a dificuldade de amamentar
OS NOVOS DESAFIOS DOS

tenham decorrido de violência obstétrica cometida pelo


segundo apelante, o laudo pericial foi claro e conclusivo
no sentido de que não houve qualquer indicação de erro
médico, de ato ilícito praticado com dolo imprudência, ne-
gligência ou imperícia. [...] Não há que se falar em “total
desclassificação do discurso de uma mulher vítima de violência
obstétrica para privilegiar um prontuário feito por um médi-
co homem e por um laudo feito por um perito homem, ambos
70 cheios de evidentes e invencíveis contradições” (grifos no ori-
ginal). (BRASIL, 2019, on-line)
CAPÍTULO 3
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

É por meio do controle do corpo e da sexualidade da mulher que se


inflige a violência obstétrica. É no corpo da mulher que são deixadas marcas
e sequelas que, em muitos casos, não serão superadas, sem olvidar do
comprometimento emocional e psíquico, estes tão graves quanto os físicos,
porém minimizados e até desacreditados, como demonstrado neste julgado.

A vivência e o significado que emergem de um processo violento de ges-


tação, parto e puerpério precisam ser acolhidos e considerados, tendo o Po-
der Judiciário o dever de instrumentalizar o discurso que emana de suas de-
cisões como forma de concretização da justiça no enfrentamento à violação
dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Neste sentido, Facio (2002, p. 85-102) esclarece que o Direito deve ser
usado como instrumento de mudança social, deve criar estratégias para
construir justiça e alcançar igualdade. No caso da violência obstétrica, tendo
como fundamentação jurídica a Constituição Federal de 1988 e os tratados
internacionais, resta clara a importância fundamental de magistrados pro-
moverem em suas decisões a proteção efetiva da mulher contra todas as
formas de violência e discriminação.

Destaca-se, nesta busca pela compreensão de como o judiciário pode ser


um diferencial na proteção e consolidação dos direitos sexuais e reproduti-
vos das mulheres, o voto da Desembargadora Maria Aparecida Ribeiro que,
brilhantemente, trouxe à luz a violência obstétrica como violação dos direitos
reprodutivos das mulheres:
sumário

No caso, o alegado erro médico consubstancia-se em vio-


lência obstétrica (grifos no original), resultante de trata-
mento inadequado durante a realização de parto, o qual
resultou em graves sequelas à apelante. [...] Destarte, tra-
ta-se de violência obstétrica, um assunto que tem ganha-
do relevo no cenário nacional, na medida em que estudos
sobre o tema [...] revelam a naturalização de procedi-
mentos médicos que, ao contrário de “naturais”, ofendem
direitos básicos da mulher, notadamente sua dignidade,
saúde, integridade física e autonomia do próprio corpo.
Esses procedimentos são verdadeiros atos desrespeitosos,
abusivos e de maus-tratos que negligenciam o bem-estar
e a vida da mulher e do bebê. [...] A violência obstétrica,
cumpre repetir, constitui uma grave violação à autono-
mia das mulheres, aos seus direitos humanos e aos seus
direitos sexuais e reprodutivos. A relevância desse tema, 71
inclusive, deságua em intensos estudos sobre a violência
obstétrica em âmbito nacional [...] especificamente sobre

Cristiane Leal de Morais e Silva Ferraz


meios de prevenção, com reflexos na seara legislativa. Ali-
ás, já há tipificação destes atos em determinados países,
como a Argentina. (BRASIL, 2019, on-line)

Depreende-se das decisões analisadas que a judicialização das violên-


cias obstétricas sofridas pelas mulheres é a busca por resgatar a autonomia
sobre seus corpos e o protagonismo no processo de parturição. Perpassa por
questões de gênero que não podem ser ignoradas, devendo ser analisadas
sob a ótica dos direitos humanos das mulheres. Tratar violência obstétrica
apenas como erro médico é desqualificar a violência sofrida pela gestante,
uma violência que tem como origem a desigualdade de gênero. É cometer
outra violência contra a mulher, que já se encontra sem voz e, por isso, busca
justiça onde acredita poder encontrá-la, no Judiciário.
sumário

Considerações finais

A violência obstétrica é uma violação aos direitos sexuais e reprodutivos


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

das mulheres e, como tal, precisa ser enfrentada, tanto por meio do orde-
namento jurídico de nosso país, como por meio do discurso do Direito que
emana das decisões jurisprudenciais em nossos Tribunais. Para tanto, tem-se
OS NOVOS DESAFIOS DOS

como fundamento a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacio-


nais que combatem a discriminação e a violência contra a mulher.

Os magistrados têm o dever legal de promoverem em suas decisões a


proteção efetiva da mulher contra todas as formas de violência e discrimina-
ção, fazendo-se instrumentos efetivos de justiça e mudança social.

72
CAPÍTULO 3
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS
sumário

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CAPÍTULO 3
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS
1| Parte do manuscrito foi submetido no IV Congresso Internacional de
Direitos Humanos de Coimbra - uma visão transdisciplinar, em Portugal.
Somente seu resumo se encontra publicado nos Anais de aludido evento.
Na presente análise houve aprofundamento do tema com o contexto
histórico das lutas feministas pela autonomia do corpo da mulher.

FABIANA DE PAULA LIMA ISAAC MATTARAIA - Mestra e Doutoranda


em Direitos Coletivos e Concreção da Cidadania pela Universidade de
Ribeirão Preto/SP (UNAERP), Professora e Advogada atuante; Email:
fmattaraia@unaerp.br; fabianaplisaac@gmail.com

NEIDE APARECIDA DE SOUZA LEHFELD - Doutora em Serviço Social


pela PUC- SP. Livre-docente da Unesp- Campus de Franca. Consultora
nacional do CNPq (ad-hoc) e de algumas Universidades brasileiras.
Possui pós-doutorado em Políticas Públicas de Salamanca – Madrid e
Pós-doutorado pela Universidade de Coimbra. É docente do Programa
de Pós-graduação Saúde e Educação e Programa de Pós-graduação em
Direito pela UNAERP - Universidade de Ribeirão Preto. E-mail: nlehfeld@
unaerp.br
4
CAPÍTULO 4

DIREITO À AMAMENTAÇÃO EM
PÚBLICO:
PARADOXO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
E A CULTURA DA EROTIZAÇÃO DA MULHER, NO
BRASIL¹

RIGHT TO BREASTFEEDING IN PUBLIC: PARADOX BETWEEN FUNDAMEN-


TAL RIGHTS AND WOMEN’S EROTIZATION CULTURE IN BRAZIL

FABIANA DE PAULA LIMA ISAAC MATTARAIA,


NEIDE APARECIDA DE SOUZA LEHFELD

https://doi.org/10.47658/20210104
sumário

Resumo

Em que pesem as campanhas de conscientização da sociedade mundial


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

acerca do aleitamento materno, responsável por salvar vidas, além das orien-
tações vigentes do Ministério da Saúde de nosso país, ainda paira polêmica a
respeito de estabelecimentos que restringem a mãe de amamentar o recém-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

-nascido, no público, sob olhares castradores que causam grande constrangi-


mento, sofrimento e prejudicam direitos fundamentais tanto da mãe quanto
de seu bebê. Isso porque ainda se vive sob a égide de uma cultura machista,
embora as mulheres, no Brasil, não representem literalmente, em termos nu-
méricos, a minoria. A mulher é ainda considerada objeto sexual e o Brasil um
país onde a nudez e o Carnaval são grandes veículos de mercado dessa so-
ciedade capitalista – e machista. O presente trabalho busca demonstrar que,
78 mesmo diante da importância do aleitamento materno, é necessário lançar
luz sobre tal paradoxo, especialmente quanto às restrições de locais públicos
CAPÍTULO 4
DIREITO À AMAMENTAÇÃO EM PÚBLICO

e de acesso coletivo à mulher. O método utilizado é o dedutivo, por meio do


qual procurar-se-á estabelecer ao longo do estudo algumas premissas, as
quais deverão nortear as conclusões finais.

Palavras-chave: Aleitamento materno em público. Mulher. Restrição aos


direitos fundamentais. Cultura. Erotização.

Abstract
Despite the awareness campaigns of the world society about breastfeeding,
responsible for saving lives, in addition to the guidelines in force in the Ministry of
Health of our country, there is still controversy regarding establishments that restrict
the mother to breastfeed the newborn -birth, under pain of castrating looks that
cause great embarrassment, suffering and undermine fundamental rights of both
mother and baby. This is because one still lives under the aegis of a macho culture,
in spite of the fact that women in Brazil do not literally represent, in numerical terms,
the minority. Women are still considered sexual objects and Brazil is still considered
the country in which nudity and Carnival are major market vehicles. The present
study seeks to demonstrate that, despite the importance of breastfeeding, there is
such a paradox, especially regarding restrictions on public places and collective ac-
cess to women. The method to be used is the deductive one, through which we will
try to establish, throughout the study, some premises, which should guide the final
conclusions.
sumário

Keywords: Breastfeeding in public. Restriction of fundamental rights. Culture.


Eroticization. Woman.

Introdução

Mesmo diante das crescentes campanhas de conscientização da socieda-


de mundial a respeito do aleitamento materno, responsável por salvar vidas,
envolvendo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e Fundo das Nações
Unidas para Infância (UNICEF), além das orientações vigentes do Ministério
da Saúde do Brasil, bem como as legislações municipais existentes sobre o
tema, ainda paira certa polêmica a respeito de estabelecimentos que res-
tringem a mãe de amamentar o recém-nascido, sob olhares castradores que
causam grande constrangimento, sofrimento e prejudicam direitos funda-
79
mentais tanto da mãe quanto de seu bebê.

Fabiana de Paula Lima Isaac Mattaraia, neide Aparecida de Souza Lehfeld


Isso porque ainda se vive sob a égide de uma cultura historicamente ma-
chista que subalterniza, silencia e violenta as mulheres e, por outra banda,
forja, organiza e opera as grandes estruturas nacionais, malgrado elas sejam
a maioria numérica no Brasil.

O presente artigo busca demonstrar que, mesmo diante da importância


do aleitamento materno, o qual é reiteradamente estimulado por campa-
nhas de diversos órgãos nacionais e internacionais, permanece tal paradoxo,
especialmente quanto às restrições de locais públicos e de acesso coletivo à
mulher, vinculado, no mais das vezes, ao contexto sociocultural.

Nessa senda, está sendo elaborado um projeto de lei no Brasil, com o


propósito de tipificar como crime a conduta de restrição ao aleitamento em
locais públicos ou de grande circulação, o que representa, na realidade, im-
portante desvio de valores na cultura da sociedade brasileira.

Inicialmente, para uma maior contextualização, será feita uma digressão


sob o olhar da autora Constância Lima Duarte (2019) a respeito das lutas
feministas, tendo como última fase a revolução sexual em que a mulher luta
pelo domínio de seu próprio corpo; após, serão feitas considerações a respei-
to da necessidade do aleitamento materno, bem como acerca do projeto de
lei já mencionado.

O método dedutivo é utilizado neste estudo, procurando-se estabelecer


algumas premissas, as quais deverão nortear as conclusões finais sobre a
proteção desses direitos fundamentais.
sumário

1 Digressão histórica das lutas feministas


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Com o objetivo de contar a história do feminismo para que seja mais co-
nhecida e também mais considerada entre os formadores de opinião, Cons-
tância Lima Duarte (2019, p. 25) entende que houve um desgaste semântico
OS NOVOS DESAFIOS DOS

da palavra “feminismo”, transformando a imagem de feminista em “sinônimo


de mulher mal-amada, machona, feia, em total oposição à idéia do “femi-
nino”, destarte, por receio de serem rejeitadas ou mal vistas, muitas autoras
brasileiras recusam esse título.

Esta autora conta a história da luta feminista nas suas principais épocas:
no primeiro momento, que denomina de “Letras Iniciais”, conta que no come-
ço do século XIX, as mulheres brasileiras, na maioria, viviam enclausuradas
80
em antigos preconceitos e imersas numa rígida indigência cultural. As pri-
meiras solicitações feministas eram consideradas elementares, pois, mesmo
CAPÍTULO 4
DIREITO À AMAMENTAÇÃO EM PÚBLICO

a alfabetização mais superficial esbarrava em toda sorte de preconceitos.


Destaca-se a seguinte frase que demonstra a pretensão inicial da luta das
mulheres: “Nossas mulheres precisavam, primeiramente, ser consideradas se-
res pensantes, para então pleitearem a emancipação política” (DUARTE, 2019,
p. 28-29). Inclusive, menciona a escritora Nísia Floresta, que ridicularizava em
suas obras a ideia dominante da superioridade masculina.

Em um segundo momento, que denomina “Ampliando a educação e so-


nhando com o voto” (DUARTE, 2019, p. 31), destaca Josefina Álvares de Aze-
vedo, jornalista (1851-1905) que questionou ativamente e defendeu o direito
ao sufrágio. Neste momento, também foi lembrado que em 15 de outubro de
1899, houve um comentário intitulado “O feminismo” que saudava a abertura
do mercado de trabalho para as mulheres (DUARTE, 2019, p. 34).

No terceiro momento, intitulado “Rumo à cidadania”, conta que o século


XX já inicia com uma movimentação inédita de mulheres mais ou menos
organizadas que clamam alto pelo direito ao voto, ao curso superior e à am-
pliação do campo de trabalho, pois queriam não apenas ser professoras, mas
poder trabalhar no comércio, nas repartições, nos hospitais e indústrias (DU-
ARTE, 2019, p. 35).

Por último, no quarto momento, denominado “Revolução Sexual e Litera-


tura” (DUARTE, 2019, p. 42), é mencionado que enquanto em outros países as
mulheres estavam unidas contra a discriminação sexual e pela igualdade de
direitos, no Brasil, o movimento feminista teve marcas distintas e definitivas,
sumário

pois a conjuntura histórica impôs que as mulheres se posicionassem contra


a ditadura militar e a censura, pela redemocratização do país, pela anistia e
por melhores condições de vida.

Duarte (2019) ainda debateu muito a sexualidade, o direito ao prazer e ao


aborto. “Nosso corpo nos pertence” era o grande mote que recuperava, após
mais de sessenta anos, as inflamadas discussões promovidas pelas socialis-
tas e anarquistas do início do século XX.

Desta forma, segundo a autora, o planejamento familiar e o controle da


natalidade passam a ser pensados como integrantes das políticas públicas.
E a tecnologia anticoncepcional torna-se o grande aliado do feminismo, ao
permitir à mulher igualar-se ao homem no que toca à desvinculação entre
sexo e maternidade, sexo e amor, sexo e compromisso (DUARTE, p. 41).

Portanto, houve um movimento evolutivo contínuo e não pendular, acerca 81


do nível e profundidade das discussões feministas, sendo que atualmente o

Fabiana de Paula Lima Isaac Mattaraia, neide Aparecida de Souza Lehfeld


domínio do próprio corpo pela mulher tem sido o desejo a ser estabelecido.

Neste sentido, a maternidade hoje é vista como direito conquistado, des-


vinculado do papel biológico da mulher e da dominação do sexo masculino
ao sexo feminino. A mulher não teria mais a obrigação de procriar, mas essa
prerrogativa torna-se um direito a ser optado e exercido. Juntamente com
ele, a mulher, enquanto senhora de seu corpo, decide a respeito da ama-
mentação, bem como parto, não sendo mais direitos a serem impostos pela
sociedade.

2 Aleitamento materno e restrições

Para contextualização, interessante analisar que, as mulheres, conforme


Blay (2015, p.1), são na realidade uma maioria sujeita a uma minoria que pos-
sui poder decisório:

A organização deste dossiê sobre minorias incluiu as mu-


lheres. Mas são as mulheres uma minoria? A inclusão me
pareceu paradoxal, pois as mulheres, no Brasil, são mais
da metade da população (51,4%). Fui buscar um esclare-
cimento no Dicionário Aurélio para entender o significa-
do atribuído à palavra – minoria. Li que há dois sentidos:
minoria é um substantivo feminino que significa uma ‘in-
ferioridade numérica’; ou, pode ser ‘a parte menos nume-
rosa duma corporação deliberativa e que sustenta ideias
sumário

contrárias às do maior número’. Ora, não somos numerica-


mente inferiores. E também não somos uma parte menor
de uma corporação que delibera, ao contrário, constituí-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

mos uma maioria submetida a uma minoria que tem o po-


der de decisão. No imaginário brasileiro, as mulheres são
tidas como pessoas incapazes de decidir, incompetentes,
frágeis, infantis. Resta analisar como e porque a imagem
OS NOVOS DESAFIOS DOS

da mulher é desqualificada. 1

A mesma autora comenta em seu artigo que o mercado está ligado à


venda de imagens eróticas da mulher, para, então, chegar-se ao público con-
sumidor, exemplificando o caso de venda de cervejas, ligadas à imagem do
corpo erótico da mulher. Observa-se este raciocínio como de extrema signi-
ficância para a contextualização da cultura ainda vivenciada neste sentido:
82 “Basta ver as propagandas da cerveja, do Carnaval, para observar que não
se vendem bebidas, mas os seios ou partes íntimas do corpo de uma mulher”
(BLAY, 2015, p. 2).
CAPÍTULO 4
DIREITO À AMAMENTAÇÃO EM PÚBLICO

Em abril de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das


Nações Unidas para a Infância (UNICEF) publicaram um guia de dez passos
para aumentar o apoio ao aleitamento materno nos centros de saúde que
prestam serviços de maternidade e neonatologia (OPAS/OMS, 2018). Isso por-
que amamentar todos os bebês durante os primeiros anos de vida salvaria
mais de 820 mil crianças com menos de cinco anos de idade anualmente.
Destarte, além de ser uma escolha da mãe, o aleitamento é incentivado como
maneira de manutenção da vida dos nascituros.

Na notícia mencionada, foi exposto que o leite materno é o melhor ali-


mento para os recém-nascidos e crianças com até dois anos. Porém, cinco
em cada 20 bebês (52%) na América Latina não são amamentados em sua
primeira hora de vida, o que é uma medida essencial para salvar vidas. Outro
dado importante ali veiculado é que a amamentação melhora o coeficiente
intelectual e reduz o risco de câncer de mama nas mães.

Nesses termos, o representante da Organização Pan-Americana da Saú-


de (OPAS/OMS) no Brasil, Joaquín Molina, ressaltou a importância de os paí-
ses envolvidos na Semana Mundial de Amamentação incentivarem o aleita-
mento materno, a saber:

1 Grifo nosso.
sumário

O leite materno é um recurso natural capaz de preservar


e melhorar a saúde, combater a pobreza e as desigual-
dades, melhorar a produtividade no trabalho, empoderar
as mulheres e proteger a biodiversidade. Funciona como
a primeira vacina de um bebê e dá a ele todo o alimento
que precisa. A OPAS reafirma o seu apoio ao Brasil no en-
frentamento das barreiras que dificultam o livre acesso às
medidas de proteção e garantia ao aleitamento materno
adequado. (BRASIL, 2018)

O Ministério da Saúde, em campanha ao aleitamento materno no último


ano, com o slogan “Amamentação é a Base da Vida”, em alusão à Semana
Mundial da Amamentação (1° a 7 de agosto), reforçou a importância do leite
materno para o desenvolvimento das crianças até dois anos e exclusivo até
os seis meses de vida. Além de reduzir em 13% a mortalidade por causas
83
evitáveis em crianças menores de cinco anos, a amamentação materna tam-

Fabiana de Paula Lima Isaac Mattaraia, neide Aparecida de Souza Lehfeld


bém reduz casos de diarreia, infecções respiratórias, hipertensão, colesterol
alto, diabetes e obesidade (BRASIL, 2015).

Diante de tais informações, o aleitamento materno não é somente ato de


amor da mãe com seu bebê, mas necessário à sobrevivência de recém-nas-
cidos. Inclusive, em pesquisa jurisprudencial recente, pelo sítio eletrônico do
Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2019), verificou-se que o entendimento é
de que o aleitamento materno proporciona desenvolvimento físico e psíquico
do recém-nascido, utilizado como fundamento, em caso de responsabilidade
hospitalar objetiva pelo tempo que o recém-nascido ficou privado de sua
amamentação, em razão de sua defeituosa prestação de serviços.

Ou seja, as consequências para a restrição de aleitamento materno são


reconhecidas do ponto de vista de indenização, até porque observa-se que
o aleitamento materno envolve dois direitos fundamentais garantidos pela
Constituição Federal, no caput do artigo 5º, que são: direitos à vida e à liber-
dade.

Portanto, seria natural que o aleitamento fosse respeitado pelos cidadãos,


até porque diz respeito a todos eles e não só às mulheres. Não é o que ocorre,
entretanto. Já que em várias notícias televisionadas e constantes na internet,
a mãe sofre restrições para proporcionar o aleitamento ao seu filho (ROME-
RO, 2015). E como resposta a essa restrição de liberdade, ocorreram várias
manifestações denominadas “mamaço”, consistentes em grupos de mães que
foram aos estabelecimentos de restrição e amamentarem juntas seus filhos,
para consignar seus protestos face ao abuso cometido.
sumário

Diante da falta de efetividade para o exercício dos direitos fundamentais


que envolve o aleitamento materno, importante verificar, no próximo tópico,
qual tem sido a proteção estatal oferecida para sua garantia e sua efetivi-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

dade.

3 Da proteção estatal ao aleitamento


OS NOVOS DESAFIOS DOS

Em vários municípios, já há legislação que normatiza a proibição de res-


trição ao direito ao aleitamento materno, como em São Paulo, conforme Lei
n. 16.161, de 13 de abril de 2015. A referida Lei, em seus artigos 1º e 2º, es-
tabelece que todo estabelecimento localizado no município de São Paulo
deve permitir o aleitamento materno em seu interior, independentemente da
existência de áreas segregadas para tal fim, sob pena de multa. Esta norma
84
determina ainda que estabelecimento é um local, o qual pode ser fechado ou
aberto, destinado à atividade de comércio, cultural, recreativa ou prestação
CAPÍTULO 4
DIREITO À AMAMENTAÇÃO EM PÚBLICO

de serviço público ou privado.

No âmbito estadual, fazendo o recorte ao estado de São Paulo, para fins


de exemplificação, a Lei n. 16.047, de 04 de dezembro de 2015, estabelece
que estaria assegurado o direito ao aleitamento materno à criança nos es-
tabelecimentos de uso coletivo, públicos ou privados, independentemente da
existência de áreas segregadas para o aleitamento, sendo ato livre e discri-
cionário entre mãe e filho. A infração ao disposto acarreta multa.

Na esfera federal, o Projeto de Lei do Senado n° 514, de 2015, proposto


pela então Senadora Vanessa Grazziotin (PC do B – AM), é responsável pela
normatização de proibição de referidas restrições, determinando inclusive
efeitos penais decorrentes da violação. Por meio de referido Projeto, busca-
-se garantir o direito à amamentação em público, transformando em crime
a sua violação, bem como normatizando o direito à indenização por danos
morais à vítima.

Ou seja, está sendo necessário que o Estado normatize, com abrangência


federal, já que nem todos os municípios possuem a legislação que dispõe so-
bre esse direito, inclusive em termos penais, tipificando a violação do direito
de amamentação em público.

Nesse sentido, vale observar o texto original proposto (GRAZZIOTIN, 2015):


sumário

Art. 1º Todo estabelecimento público ou privado, aberto


ao público ou de uso coletivo, deve permitir o aleitamento
materno em seu interior.
§1º A amamentação deve ser assegurada,
independentemente da existência de locais, equipamentos
ou instalações reservadas para esse fim, cabendo,
unicamente à lactante a decisão de utilizá-los.
§2º Eventual abordagem para prestar informação à
lactante sobre os locais reservados deve ser feita com
discrição, sem induzi-la ao uso desses recursos.
Art. 2º Comete crime o indivíduo que segregar, proibir ou
reprimir lactante, contrariando o disposto no art. 1º desta
Lei, sujeitando-se o infrator à pena de 50 a 100 dias-multa.
§1º Para o cálculo da multa prevista no caput, observar-
85
se-á o procedimento aplicável na legislação penal em
vigor.

Fabiana de Paula Lima Isaac Mattaraia, neide Aparecida de Souza Lehfeld


§2º Será devida indenização por danos morais às vítimas,
independentemente da multa aplicável pelo crime,
devendo ser considerado solidariamente responsável o
proprietário do estabelecimento onde ocorreu a violação.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação
oficial.

Houve, porém, duas emendas ao referido projeto, as quais foram aprova-


das em 24 de agosto de 2016, incluindo os seguintes complementos essen-
ciais da então Senadora Regina Souza (PT-PI), consignando que:

Ao longo dos últimos anos, têm sido intensificadas cam-


panhas de promoção ao aleitamento para promover a
saúde física e emocional das crianças e de suas mães.
Um grande volume de pesquisas tem demonstrado que
crianças amamentadas têm melhor imunidade, adoecem
menos e sofrem menos internações hospitalares do que
crianças que não recebem essa alimentação e esse conta-
to. As lactantes também estão menos sujeitas ao risco de
desenvolver câncer de mama e osteoporose. É evidente,
ainda, a forte influência do aleitamento materno sobre a
saúde emocional das crianças.
Decorre, em parte, dessa conscientização o aumento da
amamentação em regime de livre demanda, no qual a
criança é atendida sempre que deseja se alimentar.
sumário

Contudo, ainda há, na nossa sociedade, episódios nos


quais a amamentação em público resulta em lamentáveis
constrangimentos às nutrizes e às crianças. As lactantes,
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

sentindo-se agredidas, ou outras mulheres, revoltadas


com a agressão, têm organizado os chamados 'mama-
ços' em resposta a esses episódios. Felizmente, em muitos
casos, os responsáveis pela violação reconhecem o erro
OS NOVOS DESAFIOS DOS

cometido e apoiam esses eventos, oferecendo conforto e


respeito às participantes.
Porém, esse padrão de desrespeitar e depois compor não
é o ideal, pois o que vemos é a conscientização e o respei-
to surgirem após abordagens constrangedoras e segrega-
ção. Isso fere a intimidade da lactante e da criança, que
estão num ato íntimo, ainda que estejam em local público,
além de tolher o seu direito – natural, diga-se – à ama-
86 mentação incondicional.
Ninguém tem o direito de perturbar ou de tutelar essa
CAPÍTULO 4
DIREITO À AMAMENTAÇÃO EM PÚBLICO

relação. E o argumento de que a intimidade só pode ser


exercida longe do público não se sustenta, pois liberdades
como a de ir e vir, ou de consciência e de crença, ou de se
expressar, também são íntimas e podem ser exercidas em
público. Amamentar é ato íntimo no sentido de que só in-
teressa às pessoas diretamente envolvidas nessa relação,
mas não agride, e nem diz respeito a ninguém fora dela.
(SOUZA, 2015)

Além disso, a emenda traz a explicação de que confundir a


intimidade da amamentação com a intimidade dos direitos sexuais é uma
distorção cultural. Em que pese ser compreensível que, na nossa cultura, a
imagem da mama seja associada à sensualidade. A perspectiva da criança,
para quem o peito significa nutrição e carinho, deve prevalecer sobre a do
adulto que erotiza essa visão.

O referido projeto foi aprovado em Sessão Plenária pelo Senado e enca-


minhado à Câmara dos Deputados (diante do sistema bicameral), em 20 de
março de 2019. Importante observar que não foi suficiente normatizar, por
meio da Constituição da República do Brasil, como direitos fundamentais à
vida e à liberdade, no sentido de garantir a amamentação livre. Da mesma
forma, não foram suficientes legislações municipais tampouco estaduais. O
projeto de lei que está em vias de aprovação, pelo qual se estabelece a me-
dida máxima face à infração de tais direitos, tipificando a conduta respectiva
como crime, representa a falência dos valores da atual sociedade brasileira,
sumário

pois nos mostra que estamos vivendo em tempos em que o óbvio, o bom-sen-
so, o direito à vida somente conseguirão ser exercidos através de medidas
coercitivas do Estado.

Considerações finais

A fundamentação utilizada na análise das Emendas do referido Projeto


de Lei, conforme acima transcrita, é muito coerente com a realidade para-
doxal em que estamos vivendo em relação a este assunto. Se, por um lado, o
aleitamento materno salva vidas, e é mundialmente recomendado, ou seja,
tem o viés de ordem pública, e garante o direito fundamental da criança à
vida; e da mãe à liberdade (artigo 5º, caput, da Constituição da República),
normatizado municipalmente, orientado pelo Ministério da Saúde, incentiva-
87
do por campanhas anuais, etc. Por outro lado, é necessária a aprovação de

Fabiana de Paula Lima Isaac Mattaraia, neide Aparecida de Souza Lehfeld


Lei Federal que tipifica a conduta de restrição à amamentação em lugares
públicos e de acesso coletivo, como crime, para que possa, de fato, ser garan-
tido e protegido pelo Estado.
Destaca-se a tipificação da violação à amamentação em público como
crime, bem como o dever de indenização, o que prova, de forma incontrover-
sa, o desrespeito a esse direito. Destarte, é necessário que as consequências
sejam proporcionalmente severas, no sentido de corrigir a conduta da socie-
dade. Isso porque, aqui a mulher ainda é considerada objeto sexual, não há
como negar, apesar de diversas manifestações e protestos, sendo o Brasil
um país em que a nudez e o Carnaval são muito explorados pelo mercado
capitalista.

Destarte, a despeito das lutas feministas pela conquista da mulher ao


domínio de seu próprio corpo, ao que parece, ainda se fazem necessários
mecanismos estatais para reforçar o aleitamento como direito, que deve ser
exercido, sem quaisquer óbices, o que é verdadeiramente absurdo, diante in-
clusive dos dispositivos constitucionais a esse respeito.

Nessa senda, entende-se como imperioso que a sociedade brasileira,


de forma evolutiva e progressiva, possa reconhecer o aleitamento materno
como direito de todos, sem que lhe seja aplicada qualquer conotação erótica.

Para tanto, espera-se que as movimentações que são feitas hoje tenham
seus efeitos culturais operados na posteridade, para as próximas gerações,
na esperança de haver um menor grau de normativização do Estado para
sumário

correções advindas de uma cultura machista, contrária, ressalte-se, à própria


Constituição Federal.
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA
OS NOVOS DESAFIOS DOS

88
CAPÍTULO 4
DIREITO À AMAMENTAÇÃO EM PÚBLICO
sumário

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sumário

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OS NOVOS DESAFIOS DOS

90
CAPÍTULO 4
DIREITO À AMAMENTAÇÃO EM PÚBLICO
FLÁVIA VALÉRIA CASSIMIRO BRAGA MELO - Doutoranda em Antropologia
Social pela UFG. Mestra em Ciências da Religião e graduada em Ciências
Sociais. Professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG). E-mail:
flavia_valeria@yahoo.com.br
5
CAPÍTULO 5

ETNOGRAFIA COM
FEMINISTAS CRISTÃS NO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
ETHNOGRAPHY WITH CHRISTIAN FEMINISTS IN THE BRAZI-
LIAN SUPREME COURT

FLÁVIA VALÉRIA CASSIMIRO BRAGA MELO

https://doi.org/10.47658/20210105
sumário

Resumo

Diante dos acontecimentos que precederam as eleições presidenciais de


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

2018 e da conjuntura política brasileira, evidenciou-se a sensação de estar-


mos no ápice da unificação das frentes religiosas fundamentalistas, com as
forças políticas reacionárias de direita mediante o acirramento do discurso
OS NOVOS DESAFIOS DOS

da moralidade, do combate à “ideologia de gênero”, ao aborto e ao feminis-


mo. No entanto, pretendo relatar, neste estudo, sobre os ativismos de mulhe-
res feministas cristãs que estão construindo suas dissidências e trincheiras,
fazendo uso da teologia como forma de resistência. Por se tratar de estudo
etnográfico, serão apresentadas notas de observação do trabalho de campo
durante a Vigília em Ato Público a favor da descriminalização do aborto (Au-
diência Pública no STF em Brasília, em 2018). Enfim, com base neste estudo
94 foi possível constatar que embora o Brasil esteja num momento de forte as-
censão fundamentalista evangélica, existem, por outro lado, vozes dissiden-
CAPÍTULO 5
ETNOGRAFIA COM FEMINISTAS CRISTÃS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

tes, como é o caso dessas mulheres, que estão utilizando seus corpos como
bandeiras de luta e suas teologias como discursos contra-hegemônicos.

Palavras-Chave: Aborto. Feminismo. Supremo Tribunal Federal. Religião.

Abstract
In view of the events that preceded the 2018 presidential elections and the Bra-
zilian political situation, the feeling of being at the peak of the unification of the fun-
damentalist religious fronts, with the right-wing reactionary political forces through
the intensification of the discourse of morality, the fight against “Gender ideology”,
abortion and feminism. However, I intend to report in this study, on the activism of
Christian feminist women who are building their dissent and trenches, using theolo-
gy as a form of resistance. As this is an ethnographic study, notes of observation of
fieldwork will be presented during the Vigil in Public Act in favor of the decriminal-
ization of abortion (Public Hearing at the STF in Brasília, in 2018). Anyway, based
on this study it was possible to verify that although Brazil is in a moment of strong
evangelical fundamentalist ascension, there are, on the other hand, dissident voices,
as is the case of these women, who are using their bodies as flags of struggle and
their theologies as counter-hegemonic discourses.

Keywords: Abortion. Feminism. Brazilian Supreme Court. Religion.


sumário

Introdução

Neste texto proponho apresentar componentes de uma pesquisa de cam-


po1 feita em Brasília, no mês de agosto de 2018, durante o governo Temer,
praticamente nas vésperas das eleições presidenciais. As descrições a seguir
se referem às minhas observações etnográficas durante o Ato Inter-religio-
so organizado por mulheres feministas evangélicas, em frente ao Supremo
Tribunal Federal (STF), momento em que diferentes coletivos feministas reli-
giosos e não religiosos se preparavam para participar da Audiência Pública
sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, objeto
da ADPF 4222.

Proponho neste texto relatar sobre as interlocuções, pautas e enfrenta-


mentos destas mulheres. O intuito a ser observado é a aparente contradição
95
entre ser feminista e cristã, tendo em vista o próprio cenário político brasi-
leiro atual, e, com isso, observar quais são as continuidades e rupturas que

Flávia Valéria Cassimiro Braga Melo


essas mulheres conseguem configurar em suas interlocuções e compreensões
êmicas sobre o feminismo cristão, a fim de conhecer seus engajamentos e
subversões. Como abordagem metodológica, esta pesquisa de campo está
pautada na antropologia do ciberespaço (RIFIOTIS, SEGATA, 2016) e na etno-
grafia multissituada (MARCUS, 2001).

Este texto está dividido em duas partes: a primeira delas apresenta as


minhas notas de observação, ao me aventurar na militância feminista de mu-
lheres evangélicas no Ato Inter-religioso pelo direito à descriminalização do
aborto, e discute como aquele espaço foi produzido como trincheira inter-
-religiosa em defesa da descriminalização do aborto. Na segunda parte, de
forma sucinta, descrevo algumas narrativas dos representantes religiosos ali
presentes. Assim, o texto discorre sobre esses dois momentos, que, por meio
das descrições etnográficas, registram a unificação de pautas, o uso de seus
corpos como bandeiras de luta e suas teologias como discursos contra-he-
gemônicos.

1 Este trabalho integra parte do texto que comporá minha tese de doutorado no PPGAS
/ UFG. Esta experiência etnográfica foi apresentada na RAM 2019 (Reunião de Antropologia
do Mercosul 2019) e está publicada nos anais do Congresso.
2 A ADPF 442 (Ação de Descumprimento de Preceito Legal n.442) foi impetrada pelo
PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Esta Audiência Pública foi convocada visando discutir
os aspectos interpretativos dos artigos 124 e 126 do Código Penal Brasileiro.
sumário

1 Entrando na roda: as religiosas e a pauta da legalização do


aborto
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Viajei para Brasília (DF), indo ao encontro de algumas jovens (oriundas do


Rio de Janeiro), integrantes do grupo Flores Insubmissas3 e do coletivo Frente
Evangélica pela Legalização do Aborto (FEPLA). Elas estavam em três (Açuce-
na, Girassol e Orquídea4) e tinham ido para Brasília para ficarem à frente da or-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

ganização de uma vigília inter-religiosa em defesa da legalização do aborto.

O horário da vigília ficou programado para realizar-se no dia 06 de agos-


to às 5 horas da manhã. Quando cheguei ao local, me aproximei do gramado
situado na parte externa do STF e percebi que havia muita gente acampada
em barracas de camping. Avistei um pequeno grupo de mulheres sentadas em
roda, algumas embrulhadas com cobertores e outras deitadas em colchone-
96 tes. Elas cantavam diversas músicas com repertórios feministas, suas vozes
(acompanhadas por batuques) eram audíveis de longe e traziam mensagens
CAPÍTULO 5
ETNOGRAFIA COM FEMINISTAS CRISTÃS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

como:

Nesse dia se escuta um só grito: Aborto legal, seguro e


gratuito!
Legaliza! O corpo é nosso! É nossa escolha! É pela vida
das mulheres!! Legaliza!
Companheira me ajude que eu não posso andar só, eu so-
zinha ando bem, mas com você ando melhor!
Ô Poder Público! Vou te dizer! Existe aborto independente
de você! E fica aí! Com blá blá blá! E as mulheres estão
morrendo ao abortar!
(Cancioneiro cantado pelas mulheres em Ato Inter-religio-
so. Diário de campo, 06 ago. 2019).

Em volta delas havia um grupo de policiais colocados próximos às via-


turas, estrategicamente posicionados. Ao me aproximar da roda, senti-me
acolhida, suas músicas me conectaram. Aquele ambiente causava um misto
de sensações: o aroma do café em alternância com o perfume das mudas de

3 O nome Flores Insubmissas é um pseudônimo. Trata-se de um grupo fechado na


plataforma Facebook.
4 Utilizei cognomes para as elas, cada interlocutora indicou uma flor para se
autonomear na pesquisa.
sumário

arruda5 irradiavam o ambiente, o som das suas canções parecia disputar com
os feixes de luz que vinham das viaturas policiais e o calor da roda, que aos
poucos aumentava o seu número. Nessa atmosfera, entre tantas mulheres,
fui ressignificando-me diferentemente como mulher, como de modo nenhum
havia percebido antes.

Pouco tempo depois, encontrei as três jovens da FEPLA. Elas estavam


vestindo camisetas do coletivo e portavam uma grande faixa e um megafone.
Senti-me enredada em apoiá-las, envolvi-me na militância, assumi o risco de
ver meu “projeto de conhecimento se desfazer” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 160),
vendo-me implicada no fato de que suas pelejas se entrecruzavam com as
minhas. Eu me lancei na experiência e me tornei uma delas.

Ao se dirigirem para o centro daquele grupo, elas distribuíram inúme-


ras velas acesas às manifestantes, formando-se um grande clarão naquela 97
madrugada fria. Muitas mulheres estavam utilizando indumentários e lenços

Flávia Valéria Cassimiro Braga Melo


presos ao pescoço nas cores verde (signo da luta das mulheres argentinas
pela legalização do aborto) e roxo (símbolo da luta feminista no Brasil). Foi
dado início ao Ato Inter-religioso e Orquídea fez a abertura para trazer a sau-
dação, anunciando num megafone que algumas mulheres religiosas estariam
explicando como elas entendem a questão do aborto. Foi uma integrante da
Umbanda, vinda de Goiânia/GO, quem deu início.

Flor de Manacá6 foi a segunda a falar ao megafone. Ela proferiu que es-
taria ali para disputar o discurso religioso predominante, afirmando que a
condenação das mulheres era grande hipocrisia:

[...] Nós estamos aqui como resistência e dizendo que nem


todo cristianismo é inimigo da luta e da causa das mulhe-
res. [...] A maioria que estará aqui hoje vem pra condenar,
pra julgar e pra criminalizar, mas nós precisávamos estar
aqui, para dizer que essa não é toda a verdade [...]. E dizer
que Jesus não condena as mulheres, não julga e não crimi-
naliza. [...] Pessoas odiosas, pessoas que não estão interes-
sadas na vida de ninguém, nem na vida dos fetos! É uma
grande hipocrisia e nós estamos aqui pra requerer e dispu-
tar esse discurso. Nós vamos disputar esse discurso porque

5 Mudas de arruda (plantadas em vasos) foram espalhadas no gramado do


STF durante a vigília. A arruda é uma erva medicinal, suas folhas são aromáticas. Ela é
popularmente afamada por ser abortífera.
6 Flor de Manacá é pastora evangélica e integrante do Flores Insubmissas. Ela é
de Maceió (AL).
sumário

a religião cristã não é desses homens religiosos violentos.


[...] Eu queria convidar a todas... Pai nosso, Mãe nossa que
estás nos céus... (Flor de Manacá, Brasília, 06 ago. 2019)
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Dando alguns passos à frente, Açucena fez uso da palavra:

Nos reunimos aqui hoje, religiosos ou não, porque compre-


OS NOVOS DESAFIOS DOS

endemos que há algo de muito errado com um Estado que


julga sobre os nossos corpos e vidas com base em dogmas
religiosos. Nos levantamos de tantas crenças e da não
crença para clamar que a laicidade não seja mais uma vez
golpeada nesse país. Reivindicamos as espiritualidades
que respeitam a pluralidade, que se constroem pelo amor
e autonomia de consciência e repudiamos a utilização das
religiosidades para imposições e propagação do ódio! Nos
98 levantamos em defesa da vida, denunciando um projeto
de morte, arquitetado politicamente por setores religiosos
nefastos! Dos 13 expositores religiosos da audiência de
CAPÍTULO 5
ETNOGRAFIA COM FEMINISTAS CRISTÃS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

hoje, duas mulheres em defesa da vida! E onze homens!


Onze homens!! [...] sacerdotes do genocídio contra nós
mulheres, defendendo a manutenção da política, que tem
assassinado tantas mulheres e destruído tantas famílias!!
Em memória delas, tantas, que nós estamos aqui. (Açuce-
na, Brasília, 06 ago. 2018)

Depois disso, Orquídea fez a interlocução e exprimiu lentamente alguns


nomes de mulheres que perderam suas vidas ao tentarem abortar por vias
clandestinas. À medida que ela mencionava o nome de cada uma, as outras
respondiam “Presente!”, homenageando-as.

Ao finalizar a leitura dos nomes, Orquídea acrescentou, dizendo: “É por


essa e por tantas outras que estamos aqui. E a gente não quer que ninguém
mais passe por isso. Então, nesse momento, nós vamos encerrar com uma
prece silenciosa e cada uma fique à vontade para fazer do seu modo. Um
minuto de silêncio, por favor”.

Durante as interlocuções delas, pude reparar que alguns pequenos gru-


pos pouco a pouco se aproximaram. Observei que algumas delas eram ma-
nifestantes contra o aborto (elas portavam faixas e camisetas com signos
antiabortos) e seus olhares se cruzavam como se quisessem nos dizer algo
e nós também fazíamos o mesmo, umas com as outras, parecia uma guer-
ra silenciosa de olhares (nós contra elas/es), uma guerra capaz de expressar
sumário

o desassossego que sentíamos pela aproximação de grupos oponentes em


nossas trincheiras.

No decorrer de todo o ato inter-religioso, eu permaneci próxima à Orquí-


dea e Açucena; elas haviam me solicitado ajuda para segurar uma das pontas
da faixa que elas haviam levado. Pude notar que, entre tantas faixas e estan-
dartes ali erguidos, o nosso parecia ser aquele que causava maior tensão em
relação ao grupo antiaborto. Terminado o momento das falas, elas pediram
às outras que se organizassem em fila para formarem um cordão humano em
volta da entrada do STF. E assim elas o fizeram. Como elas ainda estavam
com suas velas acesas, avistava-se de longe um extenso um filete de luz.

O amanhecer se deu desta forma, acompanhado por vozes, performan-


ces e cancioneiros feministas em torno daquele espaço de poder. Enquanto
o dia clareava, por volta das 6 horas da manhã, os contornos das mudas de 99
arruda ficaram mais nítidos aos olhos. Elas foram discretamente distribuí-

Flávia Valéria Cassimiro Braga Melo


das numa linha reta (numa distância de mais ou menos 1 metro entre uma e
outra), como se fossem meras ornamentações, posicionadas taticamente de
onde nós estávamos até a entrada central da plenária do STF. Lentamente,
algumas pessoas começaram a se posicionar numa fila, ao lado das arrudas.

Por volta das 8 horas da manhã, a entrada foi liberada e passamos por
uma checagem dos objetos que portávamos, havendo proibições sobre uso
de quaisquer símbolos que fizessem apologias favoráveis ou contrárias ao
aborto. Lembro-me de um detalhe importante, do rosto de satisfação das
militantes feministas que estavam comigo na fila e que conseguiram entrar
“sorrateiramente” pela vistoria dos seguranças com seus adornos de arruda
em seus cabelos, sem que eles pudessem ser decifrados como tática. Elas pu-
deram se gabar, durante toda a audiência pública, de um dos símbolos mais
usados naquele movimento pró-aborto, na porta do STF: a arruda.

2 A disputa de narrativas: a defesa do Estado laico e do Deus que


não condena as mulheres que abortam

Daqui em diante me reportarei aos acontecimentos ocorridos no plenário


do STF naquela manhã. Aquele período da Audiência Pública estava reser-
vado para a oitiva de diferentes líderes religiosos. A eles seria dada a oportu-
nidade de apresentarem (num prazo de vinte minutos) suas arguições sobre
suas percepções religiosas a respeito do aborto. Segue a lista destas pessoas
e as instituições que elas declaravam pertencer:
sumário

Tabela 1: Descrição das pessoas religiosas que participaram das exposições da


ADPF 442, no STF (Brasília, 06/08/2018 – período matutino).
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Nomes dos Expositores/as Instituições pertencentes:

Dom Ricardo Hoerpers e Padre José Conferência Nacional dos Bispos -


OS NOVOS DESAFIOS DOS

Eduardo de Oliveira e Silva CNBB

Sílvia Maria de Vasconcelos Palmeira Conselho Nacional do Laicato do


Cruz Brasil

Convenção Geral das Assembleias de


Douglas Roberto de Almeida Baptista
Deus

Lourenço Stelio Rega Convenção Batista Brasileira


100

Pastora Lusmarina Campos Garcia Instituto de Estudos da Religião


CAPÍTULO 5
ETNOGRAFIA COM FEMINISTAS CRISTÃS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Luciano Alencar da Cunha Federação Espírita Brasileira

União dos Juristas Católicos de São


Angela Vidal Gandra Martins Silva
Paulo

Maria José F. Rosado Nunes Católicas pelo Direito de Decidir

Edna Vasconcelos Zilli Associação dos Juristas Evangélicos

Rabino Michel Schlesinger Confederação Israelita do Brasil.

Federação das Associações


Mohsin Ben Moussa
Muçulmanas do Brasil

Fonte: Diário de campo (2018)

Nem todos os nomes citados na programação que tinha sido liberada


pelo STF participaram, alguns faltaram7 e outros nomes foram substituídos

7 Duas agremiações religiosas não tiveram representações, suas cadeiras ficaram


vazias durante a audiência. São elas: Sociedade Budista do Brasil (expositor: Dr. João Nery
Rafael) e Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro (expositor não divulgado). Não houve
substituição destes por seus pares.
sumário

por outros inscritos. Abordarei sucintamente sobre a participação de cada


um dos arguidores8.

Os primeiros a falarem foram Dom Ricardo Hoerpers e Padre José Edu-


ardo de Oliveira, ambos da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB). Dom
Ricardo deu início à fala; ele vestia indumentária sacerdotal e cruz peitoral.
Ele questionou sobre onde estaria o fundamentalismo religioso e assegurou
que a CNBB reiterava sua defesa pela vida dos fetos. Argumentou que estava
ali por fazer parte da maioria dos brasileiros que é movida pela fé em Deus
e pedia que, por esse motivo, aquela Suprema Corte não permitisse jamais
a descriminalização do aborto. Em seguida, o Padre José Eduardo Oliveira
imbuído em voz colérica acusou aquela Corte de se prestar ao papel de ati-
vista, lamentando que aquela Audiência Pública tivesse postura parcial, clas-
sificando-a como profanadora da própria Constituição e arguiu que ela nem
101
deveria ter existido, denunciando-a ilegítima. Por fim, atacou pesquisadores e
entidades por divulgação de dados falsos sobre números de abortos no Brasil

Flávia Valéria Cassimiro Braga Melo


e concluiu dizendo que aquela audiência se tratava de um teatro armado,
pedindo aos ministros presentes que não mentissem para o povo brasileiro.

Outra defensora da criminalização do aborto foi Sílvia Maria Cruz (mé-


dica, católica e vice-presidente do Conselho do Laicato do Brasil da Arqui-
diocese de Aracaju). Ela argumentou que o início da vida de um ser humano
ocorre a partir da hora que existe a “concepção ou a fertilização”. Há um
momento, em sua arguição, que ela fala sobre o aborto como um ato de
desrespeito aos homens (os progenitores masculinos) e defende o fato do
embrião ser somente cinquenta por cento da mulher, por isso, ela não pode
destruir esse material genético, por respeito à outra metade, originada pelo
homem. Ela finaliza explicando que a mulher que aborta recairá em arre-
pendimento e sentirá culpa pelo aborto quando estiver na finitude da vida.
Enfim, em sua explicação, ela exprime sobre a questão da maldade, da culpa
e da responsabilidade sobre as mulheres e livra os homens, isentando-os da
responsabilidade e do remorso.

O terceiro momento das arguições foi feito pelo pastor Douglas Roberto
de Almeida Baptista, da Convenção Geral das Assembleias de Deus. Assim
como o Padre José Eduardo de Oliveira, ele também espezinhou aquela au-
diência e acusou que o próprio deferimento da ADPF 442 ocorreu pela busca

8 O relatório completo desta Audiência Pública encontra-se no site do STF. Disponível


em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntri
adagravidez.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2019.
sumário

legal para “matar inocentes no ventre materno”. Em tom de pregação, como


se estivesse no púlpito de sua igreja, ele denominou aqueles que estavam ali
para defender a descriminalização do aborto como “militantes da cultura da
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

morte”. Demonstrou-se indignado com as demandas judiciais disfarçadas de


progressistas, que, para ele, estariam permeadas pelo “viés ideológico políti-
co-partidário” e assegurou que, indiscutivelmente, a prática do abortamento
OS NOVOS DESAFIOS DOS

seria reprovável pela maioria da sociedade brasileira, que professa a fé cristã.


Concluiu tratando o aborto como desrespeito e afronta à moral e à ética do
povo brasileiro, definindo o povo assembleiano (membros da igreja Assem-
bleia de Deus) como defensor da família e favorável ao direito inviolável da
vida.

Em seguida, Lourenço Stelio Rega, da Convenção Batista Brasileira subiu


à plenária para fazer a sua argumentação. Declarando-se um estudioso da
102
bioética, ele lança a pergunta: “O que é a vida?”, então, ele responde: “a vida
se inicia no momento pré-embrionário”. Ele foi enfático ao defender a ideia
CAPÍTULO 5
ETNOGRAFIA COM FEMINISTAS CRISTÃS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

de que “o embrião humano é uma pessoa”. Enfim, ele concluiu atribuindo


méritos aos arguidores anteriores daquele dia, solidificando a tese de que a
“concepção é o marcador do início da vida”.

A quinta pessoa a falar foi a pastora Lusmarina Campos Garcia, da Igreja


Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (integrante do Instituto dos Estu-
dos da Religião). Ela foi a segunda mulher a se pronunciar e a primeira na-
quele bloco a defender a laicidade do Estado e descriminalização do aborto.
Ela alegou existir, há séculos, um “Cristianismo Patriarcalizado” que pune as
mulheres e legitima suas mortes. Ela discorreu sobre a reprodução de miso-
ginia e o controle sobre o pecado e a culpa, que são impostos às mulheres.
Ao dirigir-se às mulheres daquele salão, ela disse: “Vocês não estão sozinhas
e vocês não são criminosas!”. Defendeu que a Bíblia não condena o aborto e
aclamou pelo mapeamento dessas mulheres que estão morrendo por aborto
clandestino no Brasil, justificando que elas são mulheres comuns, têm filhos
e são religiosas, são mulheres católicas, evangélicas e espíritas. Ela lançou
uma indagação aos presentes: “[...] Essas mulheres comuns, mulheres de fé,
nossas irmãs, devem ser consideradas criminosas?” Alegou que o aborto não
é uma prática leviana, mas uma decisão difícil para a mulher e que a laici-
dade é fundamental para a igualdade e que caberia ao Estado decidir se as
mulheres terão direito ou não à vida. Ao concluir, ela frisou que “um Estado
laico não é um Estado ateu, mas é um Estado que não confunde os conceitos
de crime e de pecado e nem se orienta por leis religiosas” e deixou a seguinte
mensagem: “Saibam que somos milhões de vozes que estão sufocadas pelo
sumário

medo do poder religioso patriarcal e aguardamos atentas por uma decisão


que nos considere ao menos uma vez”. Quando ela encerrou sua fala, muitas
pessoas se levantaram de suas cadeiras para aplaudi-la, havendo necessida-
de de inferência pela ministra Rosa Weber.

Na sequência, Luciano Alencar da Cunha, da Federação Espírita Brasilei-


ra, outro homem, também defensor da criminalização do aborto. Ele citou o
nome de um jurista brasileiro (Teixeira de Freitas), defendendo que o “nascitu-
ro é um ente” detentor do direito de nascer e viver. Também fez referência ao
Artigo 227 da Constituição que trata sobre o dever de proteção dos processos
ecológicos essenciais, justificando que o Direito Ambiental oferece garantias
de proteção aos ovos das tartarugas, das araras e dos peixes e perguntou
se com os seres humanos deveria ser diferente da fauna. Ele mencionou so-
bre um vídeo antigo intitulado “O grito Silencioso”, gravado nos anos 1971, e
103
com expressões de horror descreveu sobre as cenas de uma ultrassonografia
que registrava o abortamento por aspiração mecânica de um feto de doze

Flávia Valéria Cassimiro Braga Melo


semanas, em que esse feto ficou “desesperado” com a invasão daquele tubo
e tentou se proteger da sonda. Então, aquele interlocutor explicou a todos
que aquele vídeo mostrava a feição do rosto daquele feto e seu “grito de dor”
e que somente aquele médico (Dr. Bernard Nathanson9), que acompanhava
aquele procedimento, foi capaz de ouvi-lo. Ele foi também ovacionado pelos
militantes antiabortos.

A sétima pessoa a falar foi Ângela Vidal Gandra M. Silva, da União dos
Juristas Católicos de São Paulo. Ela também se posicionou contra a descri-
minalização do aborto. Criticou a existência daquela audiência, explicando
que ela teria sido criada de maneira oportunista para atender aos interesses
do partido proponente, e lembrou que no Congresso já havia projetos de lei
tramitando para tratar desse assunto, cabendo ao Supremo devolver essa
questão. Explicou que, se legalizássemos o aborto no Brasil, começaríamos
com fetos de até três meses, mas que depois avançaríamos para seis meses,
para fazer cosméticos, e, posteriormente, para sete meses, a fim de fazer co-
mércio de órgãos, que, segundo ela, já estava acontecendo em outros países.
Relatou, sem apresentar referências, que naquela semana ela tinha ouvido
de uma enfermeira, que ao fazer o procedimento de aborto de uma “crian-

9 O documentário The silent scream (O grito silencioso) foi dirigido e produzido em


1984, por Jack Duane Dabner. Nele, o médico Bernard Nathanson apresenta imagens de
fetos em processo de abortamento. O filme está disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=T-cND3VXy-E. Acesso em: 16 ago. 2018.
sumário

ça” de sete meses, ela não morria, então, a criança agonizou sozinha até a
morte. Justificou ser contra a legalização do aborto porque desejava o psiquê
da mulher estável e, quase na finalização de sua arguição, Ângela Vidal co-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

mentou: “[...] que a mulher brasileira possa não ser destinada a ter relações e
abortar, mas seja destinada, [...] a construir um Brasil, a cooperar com todo
esse desenvolvimento econômico.”
OS NOVOS DESAFIOS DOS

A oitava expositora foi Maria José Rosado Nunes, da organização “Cató-


licas pelo Direito de Decidir”. Ela foi a segunda pessoa a defender a descrimi-
nalização do aborto. Em sua arguição, falou sobre sua longa trajetória como
uma mulher religiosa católica e freira e explicou que as mulheres católicas
abortam e que a fé conta na decisão, pois a religião é o único consolo para
elas. Explicou ser possível que a igreja católica reconsidere sua posição, visto
que ela sempre mudou quando percebeu que as sociedades mudaram. E per-
104
guntou à Suprema Corte: “Não é também o tempo de se mudar da crimina-
lização à legalização do aborto em nosso país?” Ela fez outras ponderações,
CAPÍTULO 5
ETNOGRAFIA COM FEMINISTAS CRISTÃS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

como o fato de a clandestinidade atingir “principalmente as mulheres pobres,


mulheres negras, vítimas de procedimentos inadequados, de maus tratos em
hospitais e mesmo prisão”. Defendeu ainda que respeitar a mulher é reco-
nhecer nela o direito de escolha e decisão e que imoral é o que fazem com
as mulheres, pois elas estão morrendo em clínicas clandestinas “em nome
de uma suposta defesa da vida”. E na finalização da sua arguição, Maria
José Rosado observou que “mulheres morrem em nosso país cotidianamente,
devido à ilegalidade do aborto” e perguntou: “que defesa da vida é essa?”, e
lembrou que elas são mães jovens, em sua maioria.

A próxima expositora foi outra mulher, Edna Vasconcelos Zilli, da Associa-


ção Nacional de Juristas Evangélicos. Ela apresentou sua defesa pela manu-
tenção da criminalização do aborto e acusou que aquela audiência pública
fora reivindicada pelo Partido Socialista, justificando que o Poder Judiciário
não deveria tratar desse assunto pela sua limitação, alegando que “o aborto
não é uma questão de valorização dos grupos minoritários, não é unicamente
uma questão de saúde pública, não é moralismo, envolve princípios e direitos
fundamentais caríssimos [...]”. Enfim, seu debate se estendeu sobre a questão
das limitações do judiciário e defendeu que o assunto aborto se mantivesse
nas “mãos parlamentares”.

Logo depois, o Rabino Michel Schlesinger falou pela Confederação Is-


raelita do Brasil. Até aquele momento, sete pessoas explanaram contra a
descriminalização do aborto e duas a favor, ele, porém, embora tivesse se
colocado num campo mais neutro, mostrou-se prestimoso ao aborto legal.
sumário

Lembro-me dos olhares de surpresa por parte das feministas e dos burbu-
rinhos de desagrado por parte da plateia antiaborto que o assistia. Como
advogado, explicou que não pretendia que o Brasil seguisse a lei judaica ou
de nenhuma outra religião. Ao dizer que o princípio bíblico na compreensão
hebraica seja a opção pela vida, ele lança a seguinte questão: “Qual vida?
A vida de quem? Qual aspecto da vida? Saúde mental também é vida”. Ex-
plicou que até os quarenta dias esse feto é considerado ser composto so-
mente por água (seria equivalente à oitava semana); depois desse estágio, o
feto seria considerado como a “coxa de sua mãe” (uma parte do organismo
materno) e se essa parte oferece perigo à mãe, ela é recomendada a retirá-
la. Enfim, ele mostrou circunstâncias em que o aborto seria permitido e que
a vida da mãe seria sempre prioridade. Lembrou a todos que nos momentos
em que pessoas lhe procuraram pedindo aconselhamento sobre o aborto,
elas estavam em situações críticas, em desespero. Para ele, os motivos que 105
poderiam justificar o aborto, sob o ponto de vista do entendimento judaico,

Flávia Valéria Cassimiro Braga Melo


estariam além do que é permitido pela nossa Constituição.

O último a falar naquela manhã foi Mohsin Ben Moussa, integrante da


Federação das Associações Mulçumanas do Brasil (Fambras). Ele não foi in-
cisivo no seu posicionamento, sua narrativa tinha um caráter mais descritivo
sobre as possibilidades de o aborto ser permitido pela fé islâmica. Ao narrar
sobre a posição do islã em relação ao aborto, rememorou os castigos im-
postos à mulher adúltera nos tempos de Moisés, que durante sua fase de
gravidez e amamentação, não foi punida, mas terminado o prazo da criança
desmamar (por volta de dois anos de idade), aquela mulher foi castigada
pelo seu pecado. Ao tomar esse exemplo, explicou que a gravidez possui “sa-
critude” e que, para eles, “a vida começa a partir da fecundação”, ao dar
esse exemplo, não inferiu nem lamentou pela violência histórica sofrida pelas
mulheres no contexto apresentado. Justificou que, para eles, jurisconsultos
islâmicos, existem as seguintes posições sobre o aborto: até os seis primeiros
dias “não se considera ainda vida” (apenas uma mistura de água e sangue)
e, por isso, o aborto seria permitido; por volta da sexta ou sétima semana (42
dias aproximadamente), “o aborto é totalmente desgostado”, mas se fosse
caso de estupro, o islã o permitiria; destes 42 dias até os 4 meses de gestação,
o aborto seria unicamente permitido se a mãe corresse risco de morte e após
os 120 dias, o islã não mais o permitiria, sob nenhuma alternativa, porque a
partir dessa fase, “já houve o sopro da alma no feto”.

Enfim, do total de onze expositores religiosos, apenas duas mulheres de-


fenderam abertamente a descriminalização do aborto e dois homens (um
sumário

judeu e outro mulçumano) arguiram numa postura mais transigente, pois re-
conheceram que, de acordo com as tradições originais de suas religiões, o
aborto seria permitido. Destes últimos, considerei-os às vezes “em cima do
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

muro”, ambos foram copiosamente descritivos em relação às suas tradições


culturais e religiosas, e, por isso, não opinaram sobre os casos das mulheres
brasileiras em práticas de abortamentos clandestinos no Brasil e se elas te-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

riam, ou não, seus apoios, caso abortassem.

Quanto aos outros sete expositores, sendo eles majoritariamente con-


trários à legalização, realçaram seus arcabouços teológicos acerca do mal
feminino. Em maioria, corresponderam às redundâncias das religiões hege-
mônicas ali presentes. Aquela mesa era notadamente composta por vozes
defensoras da teologia dominante, da moral cristã e do patriarcado.

106 O fato de não ter havido expositores de outras religiões (budistas, matri-
zes africanas e outras) naquela audiência, o debate inter-religioso ficou di-
recionado e impreciso acerca do assunto. Sentaram-se à mesa para debater
CAPÍTULO 5
ETNOGRAFIA COM FEMINISTAS CRISTÃS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

sobre o aborto, membros de uma maioria hegemônica defensora do interesse


astucioso da valorização da moral religiosa sustentada no patriarcado, no
monoteísmo, na culpa e no fundamentalismo.

Outro ponto a ser observado foi o sucessivo insulto ao Supremo Tribunal


Federal em suas falas, a oposição dos arguidores “pró vida” se baseou na re-
cusa ao diálogo, no desprezo à interpretação teológica em prol das mulheres,
à ciência e às pesquisas sobre o aborto no Brasil. Aquela Audiência Pública,
ao invés de ser tratada por estes representantes como um espaço de oitiva
das diferenças ou de lamento pelas mortes destas mulheres, foi acusada de
ativista e profanadora, tratada com um recôncavo do comunismo e da imo-
ralidade.

Conclusão

A vigília foi um momento de estreitamento, de unificação de pautas entre


diferentes coletivos feministas ali presentes. O ato inter-religioso permitiu a
elas a conexão sobre a libertação de seus corpos da condenação religiosa e
a reunião de posicionamentos aparentemente incongruentes: o aborto e a fé.

O combate das igrejas evangélicas ao feminismo tem sido usado como


instrumento de poder e sujeição de mulheres à manutenção da dominância
patriarcal, ao passo que os projetos de lei com vistas à retirada de direitos
das mulheres estão sendo submetidos pela Bancada da Bíblia com inscrições
sumário

teológicas. No entanto, as interlocutoras da pesquisa disputam o fazer teoló-


gico e acreditam num Deus que pode ter imagem feminina, que não condena
a mulher que aborta.

Nesta entrada em campo, notei que elas se sentiram exitosas na ida à


Brasília, pela oportunidade de assistirem e apoiarem as exposições de mulhe-
res feministas cristãs a favor de suas pautas. É dessa forma que eu as tenho
percebido na etnografia. Com isso, tornou-se possível o delineio de algumas
respostas que foram levantadas no início da pesquisa. Como declarou, por
exemplo, Flor de Manacá: “Nós vamos disputar esse discurso porque a religião
cristã não é desses homens religiosos violentos”, em suas interlocuções existe
a disputa pelo uso da Bíblia em favor das mulheres, pela não condenação do
aborto. Enfim, são mulheres que estão na defesa de uma teologia feminista,
cuja bandeira carrega aquilo que para muitos não pode ser juntado, ao passo
107
que, para elas, o feminismo e o cristianismo fazem parte de uma coisa só, eles
são quase redundantes.

Flávia Valéria Cassimiro Braga Melo


sumário

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FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

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OS NOVOS DESAFIOS DOS

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CAPÍTULO 5
ETNOGRAFIA COM FEMINISTAS CRISTÃS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

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ISABELLE MARIA CAMPOS VASCONCELOS CHEHAB - Pós-doutoramento
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da Universidade
Federal de Goiás (PPGDA/UFG). Doutora e Mestra em Direito Constitucional
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza.
(PPGD/UNIFOR). Professora da ESUP/FGV (Goiânia - GO). Membro e
Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero da Comissão da Mulher
Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Goiás (CMA/
OAB-GO). Advogada. E-mail: ivchehab@gmail.com
6
CAPÍTULO 6

AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO
DE PADRÕES INATINGÍVEIS:
BREVES CONJECTURAS SOBRE
COMO FORAM FORJADOS, QUAIS OS
SEUS EFEITOS E COMO PODEM SER
ENFRENTADOS
WOMEN AND THE IMPOSITION OF UNACCEPTABLE STAN-
DARDS: BRIEF CONJECTIONS ON HOW THEY WERE FORGED,
WHAT THEIR EFFECTS AND HOW THEY CAN BE FACED

ISABELLE MARIA CAMPOS VASCONCELOS CHEHAB

https://doi.org/10.47658/20210106
sumário

Resumo

A ordem para o inalcançável é destinada ao feminino. Direta ou indireta-


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

mente, mulheres sempre foram medidas por réguas desiguais – e mais rígidas
– em relação aos homens, pesando sobre os nossos ombros cobranças histó-
ricas e padrões inatingíveis – concernentes ao afetivo, social, cultural e polí-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

tico. Embora que vigentes desde os primórdios, tais regramentos ganharam


contornos particularmente mais severos a partir da Idade Média, provocan-
do, com o transcurso temporal e a sua progressividade, efeitos devastadores
para a autoaceitação, saúde e crença de autovalor das mulheres de ocu-
parem espaços diversos do tradicional confinamento doméstico. O presente
trabalho assume como finalidade central discutir sobre como foram – e são
– construídos tais padrões, quais são os seus impactos para as mulheres e
112 como podem ser enfrentados. Para tanto, valeu-se de pesquisa bibliográfica
interdisciplinar e documental. Ao final, concluiu-se sobre a sofisticação e a
CAPÍTULO 6
AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO DE PADRÕES INATINGÍVEIS

massificação desses padrões nos mais diversos campos da sociedade, por


isso tão complexo o seu enfrentamento. Cabe-nos como norte, entretanto,
a conjugação de esforços plurais para avançar nessa jornada, tendo clareza
que isso somente será possível quando – e se – nos dispusermos a compreen-
der a (verdadeira) história das mulheres, o modus operandi utilizado para (ten-
tar) moldá-la e invisibilizá-la e a fortaleza que pode ter um projeto comum,
inclusivo, acolhedor de/com/para mulheres.

Palavras-chave: Mulheres. Padrões inalcançáveis. Silenciamentos. Subal-


ternização. Resistência.

Abstract
The order for the unreachable is intended for the feminine. Directly or indirectly,
women have always been measured by unequal - and more rigid - rules in relation
to men, weighing on our shoulders historical demands and unattainable standards
- concerning the affective, social, cultural and political. Although in force since the
beginning, these rules have become particularly more severe since the Middle Ages,
causing, with the passage of time and their progressiveness, devastating effects for
the self-acceptance, health and belief in the ability / competence of women to oc-
cupy spaces different from the traditional domestic confinement. The main purpose
of this paper is to discuss how these standards were - and are - constructed, what
their impacts are for women and how they can be addressed. For that, it was used
interdisciplinary and documentary bibliographic research. In the end, it was con-
sumário

cluded about the sophistication and massification of these patterns in the most di-
verse fields of society, that is why it is so complex to face. It is up to us as the north,
however, the combination of plural efforts to advance this journey, being clear that
this will only be possible when - and if - we are willing to understand the (true) history
of women, the modus operandi used to (try) shape it and make us invisible and the
strength that a common, inclusive, welcoming project for / with / for women can
have.

Keywords: Women. Unreachable standards. Silences. Subalternation. Resis-


tance.

Introdução

Desde sempre, as mulheres foram submetidas a cobranças – sociais e 113


pessoais – desmedidas e padrões inalcançáveis. Em regra, deveriam ser sub-

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


servientes, dóceis e belas. Nesse afã, seus corpos, sentimentos, vestimentas,
mentes, almejos e vidas foram cuidadosamente controlados. Moldar-se e
subordinar-se constituíram-se palavras de ordem para o universo feminino.
Quaisquer tentativas de transcender esse padrão eram exemplarmente puni-
das. Na Idade Média, com humilhação e violência públicas. Nos séculos XVI
e XVIII, com degredo, excomunhão e condenação à fogueira. Nos séculos XIX
até a metade do século XX, com a nódoa de histeria e violência simbólica
normativa. A partir do final do século XX e até os nossos dias, com o incentivo
– velado e (piro)técnico – ao consumo de medicamentos, com a indústria da
estética de vento em popa e com o feminicídio em ponta de lança.

No imaginário social, criou-se o paradigma mítico de que mulher de ver-


dade “não vive, apenas aguenta”. O sofrimento, a doação e a abnegação
deveriam fazer parte do ser mulher, qualidades supostamente inerentes à
condição feminina e as suas mais diversas expressões. Dentro dessa lógica,
a potência das mulheres estaria na falta e na frustração permeadas pelo
intento de perfeição, acerca dos quais elas sempre foram rigorosamente co-
bradas – externa e internamente. Já em tenra idade, deveriam se ocupar,
com esmero e em silêncio, dos afazeres da casa. Quando recém-chegadas à
adolescência, eram destinadas, majoritariamente, ao casamento ou, na sua
falta, aos conventos. Se escravizadas, eram submetidas duplamente a toda
sorte de violências e opressões. Sendo donas de casa, deveriam fazer jus com
graça e temor ao título de “rainha do lar”, que lhes conferia algum respeito
e vasto confinamento social. Com o transcurso temporal, essas exigências
genéricas se somaram aos padrões de determinadas épocas e espaços geo-
sumário

gráficos, sempre com o jugo do inatingível na sua senda, sem perguntar qual
a opinião ou intento de suas destinatárias, gerando, pois, no mais das vezes,
adoecimentos, angústias e dores para as mulheres.
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Tendo consciência da existência e dos desdobramentos – históricos,


sociais e políticos – desses padrões, entendeu-se por elaborar, mediante o
presente ensaio, uma reflexão mais acurada acerca desse contexto tortuoso,
OS NOVOS DESAFIOS DOS

complexo e perene estrategicamente operado em face das mulheres, real-


çando três indagações centrais: como tudo isso foi construído? Quais são os
seus efeitos sobre as mulheres? Como podem ser superados?

Para tanto, valeu-se de pesquisa bibliográfica interdisciplinar e documen-


tal, com esteio qualitativo e exploratório, forjado sob o anseio de encontrar
novos caminhos ou, pelo menos, novos instrumentais para conjecturar, trilhar
114 e despertar para alguma transposição do atual estado de coisas em desfavor
das mulheres, conforme adiante será explicitado.
CAPÍTULO 6
AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO DE PADRÕES INATINGÍVEIS

1. Sobre padrões inalcançáveis para o feminino: como eles foram


– e são – construídos?

Entre os séculos XII e XIV, as mulheres eram concebidas como perso-


nagens quase idílicas. Em geral, elas eram pouco conhecidas, apresentadas
ou consideradas pela sociedade. Tidas, normalmente, salvo raras exceções,
como objetos – e de pouca valia –, forjadas para o universo masculino, é
dizer, para seguir os seus ditames, desejos e caprichos. Até aqui a história
(oficial) era indiscutivelmente contada, pensada e projetada pelos homens.
Na Europa, o padrão de beleza feminino estava vinculado às largas curvas e
a tez clara, o que reforçava, por meio dos seus corpos, a ideia de exceção à
regra, ou distinção perante as demais, tendo em vista que a maior parte das
pessoas, naquele período, pouco conseguia se alimentar e, consequentemen-
te, sobreviver, em razão das inúmeras guerras, intempéries climáticas e pestes
enfrentadas no território local e nas suas adjacências asiáticas (TRINDADE,
2002, p. 21-22).

A partir do final do século XV, mas sobretudo do século XVI, dada a ex-
pansão marítima capitaneada, principalmente, por Portugal, Espanha e, na
sequência, por Inglaterra, França e Holanda, ocorreram diversas transfor-
mações no que se compreendia e vivenciava sobre o mundo. Por anos e –
até – décadas seguidas, homens largavam suas cidadelas e famílias para as
cruzadas do além-mar, com o intuito de encontrar novas terras, acumular
sumário

tesouros, feitos e títulos e fazer-se relevantes aos olhos de El-Rei. (HOLANDA,


1995, p. 83) Nesse ínterim, as mulheres se viram instadas a levar adiante as
suas casas, famílias e plantações, o que lhes impôs, via de regra, alguma
movimentação mais fluida e constante pelas cidades e a assunção de res-
ponsabilidades até então limitadas exclusivamente aos homens. A despeito
disso, o poder de mando e de estabelecimento de normas sociais persistiam
sob os auspícios dos homens, para quem as mulheres deveriam representar
um ser angelical, indefeso e subserviente. As exceções ao molde social femi-
nino eram, de pronto, tachadas como indesejáveis ou impróprias, portanto,
descartáveis, pela via dos claustros religiosos ou da condenação à loucura,
acerca dos quais dissertaremos na próxima seção.

No Brasil, em específico, desde a sua colonização, as mulheres foram


percebidas como apêndices da história. Para os pretensos desbravadores, a
115
vinda das mulheres para cá estava estritamente vinculada ao intento de po-
voamento (brancas) e reforço da mão de obra escravizada (negras) (RIBEIRO,

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


1995, p. 225). Não se conjecturava qualquer possibilidade de relevância, inten-
to próprio ou reconhecimento da individualidade das mulheres. Esperava-se
das ditas sinhás vastos dotes domésticos, parcos estudos e pouco interesse
pelo mundo exterior (REZZUTTI, 2018, p.78-79; PRIORE, 2004, p. 43). Tal lógica
se estendia, inclusive, à arquitetura local, que, até a chegada da família real,
1808, servia como mais um impedimento para as mulheres serem vistas em
suas casas e terem contato com qualquer estranho, exceto com aqueles que
seus pais e/ou maridos permitissem (REZZUTTI, 2018, p. 35). Por seu turno, as
africanas escravizadas e sequestradas de suas terras, quando aqui chegavam,
se deparavam com uma violência física, emocional e sexual sem precedentes.
Compreendidas, no mais das vezes, como meros sujeitos de procriação dos
engenhos e objetificadas pela lascívia dos senhores de engenho, em relação
aos quais, consoante os padrões sociais de antanho, deveriam submeter-se
silenciosamente (RIBEIRO, 2005, p. 239). Ali, por indubitável, sob os auspícios
desses tais padrões ignóbeis, sobretudo em face das mulheres negras, nasceu
a cultura do estupro nacional, a qual violou – e segue violando – os nossos
corpos, a nossa dignidade e a nossa descendência (SCHWARCZ, 2019, p. 190).
Ainda, das indígenas, era esperado que largassem as suas tradições, suas
origens e suas crenças em prol do povo branco “libertador” e da Igreja Cató-
lica. Não por acaso, era comum dar ampla visibilidade, por meio de versos
e prosas, aquelas que decidiam casar com os homens brancos, converter-se
ao catolicismo e seguir a cultura europeia (REZZUTTI, 2018, p. 36-37). Por der-
radeiro, para o fiel desenvolvimento da temática proposta, é curial registrar
sumário

que essa foi a triste matriz que nos constituiu e sob vários aspectos aqui per-
siste. No Brasil, por meio dessa gênese, como afirmou Jessé Souza, “a família
patriarcal reunia em si toda a sociedade”, a qual forjou e espraiou as conse-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

quências desse molde opressor, violento e estratificado para os nossos dias,


incidentes, principalmente, sobre as mulheres (SOUZA, 2017, p. 42).

Entre 1776 e 1789, duas grandes revoluções foram deflagradas no mun-


OS NOVOS DESAFIOS DOS

do, a estadunidense e a francesa, respectivamente, ensejando consequências


vultosas também para as mulheres, sobretudo no que tange à última. Malgra-
do tenham participado ativamente da Revolução Francesa, lembrando que
“[...] foram as mulheres de Paris que marcharam sobre Versalhes, a fim de ex-
pressar ao rei a exigência do povo de que fossem controlados os preços dos
alimentos” (HOBSBAWM, 2011, p. 313), elas não receberam as mesmas láureas
nem conquistaram os mesmos direitos que os homens integrantes da insurrei-
116
ção. Como resposta ao que consideraram uma injustiça dos revolucionários,
tendo em vista que não se viram contempladas pela Declaração dos Direitos
CAPÍTULO 6
AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO DE PADRÕES INATINGÍVEIS

do Homem e do Cidadão, já no ano de 1791, foi lançada a Declaração dos


Direitos da Mulher e da Cidadã, elaborada e divulgada pela artista francesa
Marie Gouze, conhecida pelo pseudônimo Olympe de Gouges, quem findou
por ser guilhotinada em 1793 (COMPARATO, 2008, p. 137). Tal fato só refor-
çou a sanha silenciadora em face das mulheres, sobretudo daquelas que não
compunham com a dominação masculina e ousavam suplantá-la. Mas isso
não foi o suficiente. As mudanças chegaram e dali se disseminaram, mesmo
que lentamente. A partir de então, como efeito dos ventos revolucionários, foi
sendo forjado, progressivamente, um novo código de vestimentas e de con-
dutas, menos faustoso e mais coerente com a proposta do lema “liberdade,
igualdade, fraternidade”. Pela primeira vez, as mulheres abandonaram os ve-
lhos corseletes por modelos assemelhados, mais simples e de fácil manuten-
ção, que exigiam um padrão corporal menos esguio e a possibilidade de uso
independente da colaboração de terceiros. Conquistaram uma liberdade não
só de cunho prático, mas simbólico também. Conseguiram conjugar esfor-
ços para constituir pequenos grupos de discussões sobre política e filosofia,
embora, é fato, ainda bastante criticadas e desacreditadas, inclusive, pelos
pensadores da Revolução (HUNT, 2009, p. 68-69).

No século XIX, as mulheres começaram a realizar mais atividades e as-


sumir responsabilidades fora de casa, rompendo, em grande medida, com o
confinamento que lhes era imposto. Elas passaram a liderar grêmios recre-
ativos, desempenhar atividades laborais remuneradas formais e lançar as
suas vozes para – e por – questões políticas (HOBSBAWM, 2011, p. 329). Os
sumário

pequenos grupos de mulheres dispostos a intervir na política e na cultura


ganharam mais espaços institucionais e fizeram das suas vozes ecoadas em
diversões rincões do mundo, inclusive no Brasil, com pensadoras e revolucio-
nárias como Dionísia Gonçalves Pinto (1810-1885), cujo pseudônimo era Nísia
Floresta, Maria Firmina dos Reis (1825-1917) e Luiza Mahin (início do século XIX
-) (REZZUTTI, 2018, p. 167; 234-235). Por semelhante modo, aqui já há registros
de, em solos europeus e estadunidenses, mulheres não somente frequentarem
as universidades, como também por lá lecionarem, a exemplo de Inglaterra,
Rússia e Estados Unidos (HOBSBAWM, 2011, p. 319). Podem parecer avanços
tímidos, mas significavam, em perspectiva, largos passos. Em suma: menos
padrões inalcançáveis para subjugação e mais (alguma) autonomia para as
mulheres. Isso não quer dizer que o cajado social tenha de todo arrefecido.
Mulheres continuavam a ser cobradas pela obediência aos rígidos padrões
sociais, os quais também já detinham seus análogos normativos, ou seja, nes- 117
se período, com o franco avanço das codificações nacionais, dezenas de re-

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


gras jurídicas foram firmadas para garantir a sua subalternização em relação
aos homens. Mais: esse foi um período de extremo torpor em face das mulhe-
res, especialmente no que concerne as tentativas de vinculá-las diretamente
com o fenômeno da histeria (FREUD, 1905). Em outras palavras, nessa qua-
dra, iniciou-se um movimento no afã de aproximar as mulheres da concep-
ção de seres histéricos, incapazes de lidar com os seus próprios sentimentos,
logo, por segurança, o senso comum, liderado por uma intensa campanha da
medicina misógina, entendia que aquelas mulheres distintas dos padrões de
docilidade e subserviência deveriam ser tratadas, medicadas, anestesiadas e
imobilizadas – tanto no que concerne ao aspecto físico quanto ao emocional
(FARIAS, 2017, p. 102). Tal engenhosidade machista provocou sérios prejuízos
no campo individual, mas também no coletivo das mulheres, dificultando, ou
até mesmo impedindo, uma vez mais, que elas lograssem viver as suas pró-
prias histórias, projetos políticos, construções sociais e contribuições culturais
(PRIORE, 2004, p. 287-288).

Com o advento da I Guerra Mundial, 1914-1918, as mulheres foram com-


pelidas a substituir os homens em diversos dos seus postos tradicionais de
trabalho, a exemplo da indústria e do comércio de grande monta, mas igual-
mente a ocupar espaços no próprio cenário bélico, inclusive nos campos de
batalha. Durante todo esse século, houve uma verdadeira revolução no modus
operandi da vida das mulheres, uma vez que passaram a exercer atividades e
protagonismos inéditos, como na educação, ciência e tecnologia. Ao redor do
mundo, em sua maioria, elas garantiram o direito de votar e serem votadas.
sumário

Fizeram história no meio acadêmico e começaram a conquistar algum reco-


nhecimento formal por isso, a exemplo de premiações, espaços de poder e de
fala ao redor do mundo (HOBSBAWM, 2011, p. 514).
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

A despeito de todas essas conquistas, um silencioso efeito backlash se


instalou e explodiu no final do século XX e início do século XXI, a saber: a
discussão sobre a padronização dos corpos e das mentes das mulheres tor-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

na à lume. O debate que, de algum modo, havia sido arrefecido, no final do


século XIX e no começo do século XX, regressou, sob novas roupagens e com
grande força, a partir das imposições estéticas e de costumes, sobretudo no
que concerne ao labor – ou a cobrança social e subliminar de cumprimento
de segunda ou de terceira jornada para se ver apta ao trabalho produtivo
fora de casa. Para tal, a institucionalidade da dominação masculina se (re)
organizou e, valendo-se do aparato (quase bélico) da mídia impressa e, pos-
118
teriormente, televisiva, impôs modelos inatingíveis que demandam, infligem e
fazem morada no imaginário social, mas particularmente no feminino. Nesse
CAPÍTULO 6
AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO DE PADRÕES INATINGÍVEIS

sentido, basta lembrar acerca dos estereótipos forjados, entre o final do sé-
culo XX e começo do século XXI, pelas populares revistas femininas, novelas
e propagandas de grande monta no Brasil. Por meio desse combo dominial
masculino, o padrão veiculado era/é, mais uma vez, do inatingível: para o
corpo, magreza; para o rosto, a juventude eterna; para o trabalho produtivo e
reprodutivo, a perfeição em 24 horas sem intervalos comerciais; para o afeto,
apenas o socialmente acatado; e para o cansaço, tranquilizantes – muitos e
diversos.

Ainda, convém ressaltar que, apesar de sermos um país de diversas cultu-


ras, etnias e raças, o branco sempre foi o aqui convencionado pelos donos do
poder: aquele que era o visibilizado pelas mídias tradicionais, reforçado pelas
estruturas de poder e o laureado socialmente (CHAUÍ, 2010, p. 22-23; RIBEIRO,
2017, p. 44-45). Durante décadas, o Brasil negou as suas raízes plurais, ou, no
mínimo, subalternizou-as, com especial desdém para com as mulheres, que,
se diferentes do acolhido e forjado como padrão, eram duplamente sujeitas
às práticas de subalternização desumanizadoras, que remontavam à era co-
lonial, as quais ensejaram – e ensejam – consequências tortuosas – em maior
ou menor medida – para todas, consoante será discutido na seção seguinte.
sumário

2. Quais os efeitos dos padrões inalcançáveis impostos às mulhe-


res?

Como visto na seção anterior, os padrões impostos às mulheres não são


datados. Há séculos, vivem e convivem conosco. Com o transcurso temporal,
podem ter tido alguma modificação ou reparo, mas, no geral, a sua essência
persiste imbatível, a saber: gerar um sentimento constante de inadequação,
frustração e/ou fragilização (social, física e emocional) nas mulheres.

Somos bombardeadas, desde tenra idade, com as seguintes mensagens:


devemos ser obedientes, belas, jovens, figurantes (dos protagonistas homens)
e dóceis para sempre. Qualquer uma que fuja desse padrão haverá de en-
frentar, invariavelmente, verdadeiras hordas, sejam de conhecidos ou desco-
nhecidos, consubstanciadas sob o espírito da ojeriza, xingamento, ódio, des-
legitimação e humilhação. A pergunta que não quer calar é: quais os efeitos 119
dessa terra arrasada promovida em face das mulheres?

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


No período medieval, as mulheres que não se adaptavam ao padrão ouro
feminino se refugiavam nos – ou eram levadas para os – conventos. Ali, curio-
samente, se percebiam num terreno mais seguro e fértil para desenvolver seus
dons e habilidades, ou, tão somente, para serem elas mesmas. Tinham a pos-
sibilidade de escrever, dialogar com outras mulheres e levar adiante algumas
de suas capacidades e aptidões. Não por acaso, muitas delas conseguiram
transformar aqueles pequenos espaços de isolamento em verdadeiros cen-
tros do saber, referências de/para a organização financeira e locais de revita-
lização da cultura (REZZUTTI, 2018, p. 40).

Outras não tiveram a mesma sorte. Já a partir dos séculos XV e XVI, mas
principalmente com a chegada do século XVII, as mulheres entendidas como
diferentes, eram interpretadas como loucas e, portanto, deveriam ser inter-
nadas em hospícios ou, pior: extirpadas da sociedade. Sofriam toda sorte de
preconceitos, violências e desamparos (FOUCAULT, 1978). Ainda, não pode
ser olvidado que, para algumas, a tarjeta de “diferentes” ou “incompatíveis”
nada tinha de mérito próprio, elas não eram revolucionárias, curiosas ou coi-
sa que o valha, apenas eram alvos fáceis dos seus próprios pais, irmãos ou
parentes que não queriam dividir as suas heranças com mulheres e providen-
ciavam uma forma “honrosa” de se livrar da indesejável, consoante os dita-
mes da lei e com o (simbólico) aval da sociedade (PRIORE, 2004, p. 407-408).

Com a culminância do século XIX e o início do século XX, o patriarcado


ganhou uma grande aliada à percepção e à introjeção de sentimentos de
sumário

inadequação e frustração das mulheres, a saber: a ciência. Com o auxílio de


estudos supostamente científicos, mulheres passaram a ser diagnosticadas
como seres emocionalmente histéricos, os quais, em sua maioria, deveriam
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

ser submetidos a contenções clínicas, que incluíam, em alguma medida e


durante muito tempo, a instrumentalização das mulheres e a aplicação em
seu desfavor de técnicas ainda deveras incipientes. Curiosamente, no curso
OS NOVOS DESAFIOS DOS

do mesmo século XIX, as mulheres deram ensejo às suas próprias revoluções,


a começar pelas reivindicações ao seu reconhecimento enquanto sujeitos, e,
em contrapartida, enfrentaram um aumento exponencial de discursos, pan-
fletos e pretensos tratamentos que propagavam a cura para aquelas que
não correspondiam aos padrões demandados, via de regra, repisa-se, com a
chancela do científico para contê-las e volvê-las à condição de “compatíveis”
e “adequadas” socialmente (FARIAS, 2017, p. 102).
120
Destarte, é importante notar que toda essa jornada tortuosa de extirpa-
ção de direitos e imposição de padrões em face das mulheres jamais foi des-
CAPÍTULO 6
AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO DE PADRÕES INATINGÍVEIS

pida de interesses. Mulheres como Cristina de Pisano, Joana D´Arc, Olym-


pe de Gouges, Ana de Barandas, Emily Dickinson, Narcisa Amália e Nise da
Silveira foram tidas como incongruentes e inaptas, portanto, ao viver tradi-
cional. Misteriosamente, séculos ou décadas depois, essas mesmas mulheres
foram reconhecidas como brilhantes e à frente do seu tempo. Para a mão
(nada) invisível da habitual dominação masculina, a fragilização e a exclusão
das mulheres de uma condição mínima de igualdade e reconhecimento são
fundamentais para a manutenção do atual estado das coisas, onde elas são
diariamente alvos de toda sorte de violências, silenciamentos, subalterniza-
ções e preconceitos.

Infelizmente, alguém – ou muitos “alguéns” – ganha com todo esse ciclo


negativo em face das mulheres. Alguém ganha – e muito – quando as mulhe-
res se submetem a receber menos pelo mesmo trabalho desempenhado por
homens, porque, nos seus imaginários, tal padrão foi constituído como razoá-
vel ou aceitável. Alguém ganha quando as mulheres não se sentem aptas ao
exercício de cargos de chefia ou dispostas à concorrência de cargos públicos,
os quais, obviamente, não ficarão vagos, porque não há lacunas no poder,
mas serão novamente ocupados, salvo raras exceções, por/para homens1. Al-

1 Um triste exemplo do tema diz respeito ao golpe deflagrado em face da presidenta


Dilma Rousseff, que, sem qualquer indício de prova ou mínima razoabilidade jurídica, foi
alvo de um contestável e injusto impeachment, promovido por uma campanha francamente
misógina e liderada por homens, especialmente por aqueles que haviam perdido nas urnas as
eleições de 2014. (PINHEIRO-MACHADO, 2019; FERNANDES, 2019; TIBURI, 2019)
sumário

guém ganha – milhões – quando as mulheres sempre se veem na obrigação


de correrem em busca de uma beleza, jovialidade e magreza inalcançáveis,
catalisadas pelos folhetins, mídias digitais e indústrias farmacêuticas. Mu-
lheres não investem apenas os seus rendimentos nessa maratona, os quais,
diga-se de passagem, não são poucos, alcançam algo em torno de 1/3 dos
seus salários, mas também o seu tempo, a sua criatividade, o seu foco e a sua
energia (WOLF, 2019, p. 84). Tudo isso, de algum modo ou por múltiplos mo-
dos, poderia estar sendo investido em prol de outras habilidades e áreas de
interesse, inclusive, para a sua promoção educacional, econômica e política,
tal qual os homens usualmente o fazem (BIROLI, 2018, p. 35; 45), contudo, é
estrategicamente dirigido para a tentativa de superar essa imposição históri-
ca do inatingível, que sempre torna, sob as abas de questionamentos relacio-
nados à eventual incapacidade técnica, insatisfação estética e/ou fragiliza-
ção emocional, acerca dos quais as mulheres são deveras e constantemente 121
julgadas e tachadas como incompatíveis.

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


Em apertada síntese, quanto mais as mulheres se sentem inadequadas,
incompatíveis e fragilizadas, menos conseguem ter forças para promover e
defender os seus direitos e avançar com a sua presença e o seu protago-
nismo para os espaços privados e públicos de poder. Ou mesmo, se o fa-
zem, muitas vezes, se veem como impostoras ou não merecedoras da história
que construíram. Aqui, a ideia de inaptidão e/ou frustração é colocada como
uma constante que carrega o peso de preconceitos seculares, mas também
a força daqueles que bem representam o domínio masculino e não estão
dispostos a dividir os seus espaços, sobretudo os espaços de poder, com as
mulheres. Assim, na impossibilidade de uma guerra armada ou dado o seu
arcaísmo, trava-se uma guerra supostamente soft2, que acompanha e ator-
menta as mulheres por gerações a fio, e, atualmente, com a dificuldade do
patriarcado de explicitar claramente os seus preconceitos para grandes audi-
ências, valem-se dos instrumentais sofisticados e cuidadosamente burilados
pela estética, pelo discurso machista enviesado e por uma suposta ciência
parcial para docilizar, alienar, gerar necessidades – e ansiedades – e persistir
na senda de extirpar as mulheres de qualquer avanço social, político e cultu-
ral mais efetivo.

2 Há exceções à guerra soft, notadamente quando os donos do poder entendem que


a figura feminina pode ser uma ameaça de grande monta à manutenção dos seus privilégios,
aqui eles avançam para o extermínio, tal qual ocorreu com Marielle Franco. (PINHEIRO-
MACHADO, 2019, p. 175; TIBURI, 2019, p. 18-19)
sumário

3. Como as mulheres podem enfrentar os padrões inalcançáveis


que lhes foram impostos?
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Após apresentar algumas reflexões sobre como foi constituído e quais os


efeitos desses padrões inalcançáveis historicamente impostos sobre as mu-
lheres, há que se indagar o que fazer com isso. Mais especificamente, se há
alguma pista de como enfrentá-los gradual e firmemente. Embora não se
OS NOVOS DESAFIOS DOS

tenham respostas incontestes a tamanho e complexo problema, são apre-


sentadas adiante três propostas sobre como enfrentá-lo e, quiçá, superá-lo.

Inicialmente, é importante ter em vista que problemas dessa magnitude,


introjetados na sociedade desde os tempos mais remotos, com tanta força
e tantos tentáculos, dificilmente são suplantados com uma única medida
ou estratégia. De fato, demandam tempo e reflexão compatíveis com a sua
122 largueza e profundidade. Igualmente, exigem uma visão plural, não apenas
acerca da esfinge em si, mas também sobre os seus intentos, configurações
CAPÍTULO 6
AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO DE PADRÕES INATINGÍVEIS

e perspectivas históricas. Nesse sentido, entende-se fundamental fazer uso


de uma análise plural de saberes, pessoas e fatos. Tal argumento, embora
pareça dispersivo, reúne forças para a compreensão e disposição de supera-
ção mais efetiva. Logo, tem-se que o primeiro aporte para a suplantação do
padrão inalcançável, nas suas mais diversas roupagens, imposto em face das
mulheres, seria acoplar e assumir uma visão plural, transdisciplinar e histórica
sobre a questão. Aqui não se trata apenas de um problema de ordem estética,
política, normativa e/ou cultural, mas diz respeito a tudo isso, conjuntamente,
que perpassa as mais diversas sociedades, classes, etnias, espaços geográ-
ficos e tempos históricos, com as suas respectivas especificidades. Dito de
outro modo, é preciso refletir para além do padrão inalcançável, buscando
compreender no que ele se sustenta, como funciona e para quem serve. Tate-
ando essas respostas, já se tem uma boa trilha para o seu enfrentamento. De
uma maneira ainda embrionária, é possível afirmar que a imposição do inal-
cançável está sustentada majoritariamente na percepção – consciente e in-
consciente – de silenciamento e subalternização das mulheres, que opera por
meio dos mais diversos instrumentais de cunho individual e coletivo; sob o
tripé da classe, raça e gênero; e com uso da violência – fática e/ou simbólica,
organizada para manutenção da dominação masculina, desde sempre, em
vigência, malgrado objeto de discordâncias, resistências e enfrentamentos.

Em segundo lugar, é fundamental desconstruir as narrativas que lhes fo-


ram impostas e promover fissuras nessas noções seculares do inalcançável
que pesam sobre as mulheres. Nesses termos, há que se desenvolver um tra-
sumário

balho paciente, quase penitencioso, de retomar a história – mundial e local –


e verificar os papéis secundários e tortuosos que foram impostos às mulheres
ao longo dos séculos: como o silenciamento, a subalternização e o inalcançá-
vel foram construídos; e quais as suas reais finalidades, aqui o inatingível e as
opressões gozam de cruzamento refinado. É preciso resgatar como tudo isso
foi implementado e trouxe repercussões para o nosso cotidiano. Sem aden-
trar nessas narrativas, pouco se pode fazer. Vejamos o exemplo das histórias
tecidas acerca das supostas bruxas, que provocaram histeria e violência em
face das mulheres em parte da Europa, com destaque para Inglaterra, Fran-
ça, Alemanha e Suíça, e nas colônias estadunidenses. Na realidade, as ditas
“bruxas” eram, em sua maioria, mulheres pobres, de origem rural, conhecedo-
ras dos saberes tradicionais fitoterápicos e costumavam ser “caçadas” sob a
pecha de feiticeiras. Por trás disso, operava-se uma pretensão vil e machista,
qual seja: reduzir a concorrência de suas atividades com a classe médica, 123
eminentemente masculina e aristocrata, que despontava entre os séculos XVI

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


e XVIII. Tal fato pode parecer de somenos importância, mas, por intermédio
dessas pequenas (grandes) histórias, foram sendo urdidas, sobretudo no ima-
ginário popular, as ideias acerca das mulheres como seres que demandam
controle, merecem ser, em alguma medida, silenciadas e, se insubordinadas
à dominação tradicional, justificam contra si a violência masculina e/ou es-
tatal. Nota-se que a estratégia é antiga, mas os seus efeitos ultrapassam as
gerações e fazem-se mais atuais do que nunca, basta verificarmos os dados
referentes à violência contra as mulheres no Brasil e no mundo, que, em geral,
infelizmente, só crescem (COLOMBO, 2020, on-line; ONU MULHERES, 2020,
on-line).

Por terceiro, propõe-se uma mensagem curta e clara: ou vamos juntas ou


não iremos. Mais do que nunca é preciso que nós mulheres acolhamos umas
às outras, nos seus mais diversos matizes, pautas e lutas; unamos as nossas
forças e estabeleçamos estratégias normativas, acadêmicas e políticas para
suplantar esses padrões inalcançáveis que, ao longo dos séculos, ensejaram
e justificaram – em maior ou menor medida – constrangimentos, adoecimen-
tos e violência em nosso desfavor. Ao invés disso, urge que construamos um
novo locus conjunto para as mulheres, o qual possa vir a colaborar para a
nossa ocupação dos mais diversos espaços – presenciais e virtuais –, que tra-
ga visibilidade e reconhecimento ao nosso trabalho produtivo, mas também
ao reprodutivo; que respeite as nossas escolhas afetivas e que oportunize a
concretização de projetos e passos mais ousados pelas próximas gerações de
mulheres. Nessa senda, é curial termos em mente que as inúmeras clivagens
sumário

concebidas em face das mulheres não são aleatórias, mas foram cuidadosa-
mente arquitetadas, sejam para colocar-nos como rivais e dissonantes, seja
para silenciarem a todas. A dominação masculina tem clareza que a união
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

entre mulheres pode provocar verdadeiras fissuras no seu tradicional modelo


de opressão, conforme pode ser visto, por exemplo, quando do #Elenão3 –
talvez por isso tão criticado à direita e à esquerda (PINHEIRO-MACHADO,
OS NOVOS DESAFIOS DOS

2019, p. 173-174). Destarte, faz-se fundamental compreender que a construção


de novos tempos passa necessariamente pelas mulheres, pelas nossas lutas e
pelas nossas pautas comuns – e jamais pelo contrário.

Conclusão

Desde sempre, fomos impostas – e expostas – a padrões inatingíveis. In-


124
dependentemente de quem se tratava ou de quais as suas particularidades,
talentos e potencialidades, a sanha dominial foi historicamente direcionada
CAPÍTULO 6
AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO DE PADRÕES INATINGÍVEIS

e projetada sobre as mulheres.

Durante séculos, tais padrões nos silenciaram, subalternizaram e compu-


seram em nosso desfavor as mais variadas – e abjetas – tarjetas, dentre as
quais, histéricas, loucas e/ou inconvenientes. Portanto, se fugíssemos ao pa-
drão, logo era encontrada uma maneira de volver-nos ao estado anterior, que
concebia as mulheres, sobretudo, a partir da noção de indefesa, dependente,
frágil e/ou inábil.

Entre avanços e retrocessos, o final do século XVIII, mas, principalmente,


o advento do século XIX, trouxe consigo e com os seus acontecimentos histó-
ricos a possibilidade das mulheres, conjugadas, avançarem no campo social,
político e científico. Os desafios foram inúmeros, violências das mais diversas,
mas trilhamos nos mais diferentes espaços geográficos uma jornada colossal.

De lá para cá, continuamos sendo alvo. Nos séculos XX e XXI, novas es-
tratégias foram concebidas pelo patriarcado, na tentativa de silenciar-nos
e obliterar as nossas conquistas. A indústria farmacêutica, a cosmética, a
estética e a grande mídia empreenderam um papel fundamental nessa sen-
da. Esqueceram, entretanto, que nós mulheres, a despeito de tudo, também,
sempre nos refazemos.

3 Movimento liderado principalmente pelos novos coletivos feministas e por jovens


mulheres atomizadas, que ganharam às ruas brasileiras, nos dias 29 e 30 de setembro de 2018,
para protestar contra o então candidato à presidência Jair Bolsonaro, atual ocupante do
cargo.
sumário

Nesses tempos tortuosos, os desafios se multiplicam. Haveremos, contu-


do, uma vez mais, de resistir. Para tal, a expressão de ordem mais elucidativa
talvez seja: seguirmos juntas. Olharmos juntas. Enfrentarmos juntas. Falarmos
juntas. Com todas, para todas. Sem isso, simplesmente, não iremos.

125

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


sumário

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FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

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CAPÍTULO 6
AS MULHERES E A IMPOSIÇÃO DE PADRÕES INATINGÍVEIS

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127

Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


MÉRCIA CARDOSO DE SOUZA - Doutora em Direito. Realizou estágio
pré-doutoral no Departamento de Estudios Internacionales - Universidad
Loyola Andalucía, em Sevilha (Espanha). Professora da Faculdade
Luciano Feijão [Sobral – CE]. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0828-
7096. E-mail: merciacdsouza@gmail.com

PRISCILA NOTTINGHAM - Mestra em Políticas Públicas e Sociedade pela


UECE. Especialista em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos Sociais
(UECE). Assistente social atuante no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas do Estado do Ceará (NETP/CE). E-mail: priscilanotty@gmail.
com
7
CAPÍTULO 7

OS CONFLITOS ARMADOS COMO


IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL

ARMED CONFLICTS AS DRIVES IN WOMEN TRAFFICKING FOR SEXUAL


EXPLOITATION

MÉRCIA CARDOSO DE SOUZA,


PRISCILA NOTTINGHAM

https://doi.org/10.47658/20210107
sumário

Resumo

O tráfico de mulheres para fins de exploração sexual é uma realidade que


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

atinge milhares de pessoas no mundo todos os anos. Alguns fatores têm se


apresentado nesse contexto como catalisadores dessa modalidade de crime,
sendo um deles apontado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como
OS NOVOS DESAFIOS DOS

os conflitos armados, pois forçam fluxos migratórios e agravam a vulnerabili-


dade social da população que vive nessa situação. Nesse sentido, o objetivo
geral deste artigo é refletir sobre a incidência do tráfico de mulheres em con-
junturas de conflitos armados. Aspectos referentes à desigualdade e violência
de gênero foram abordados, uma vez que estão diretamente relacionados
com o tráfico de mulheres. A metodologia adotada compreende uma abor-
dagem qualitativa, tendo em vista que as informações são de natureza ma-
130 joritariamente subjetiva. Privilegiou-se a pesquisa bibliográfica e documental
para debater as categorias propostas e aprofundar o tema. Identificou-se
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

que a desigualdade de gênero fomenta práticas de violência contra a mulher,


promovendo graves violações de direitos humanos, sendo uma das expres-
sões dessa realidade o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual.
Os conflitos armados, que têm eclodido com muito mais frequência nos últi-
mos trinta anos, acentuam diversas situações de pressão econômica, falta de
oportunidades laborais e educacionais, impulsionando várias práticas viola-
tórias de direitos humanos, como a violência sexual e o tráfico de mulheres e
meninas para fins de exploração sexual.

Palavras-chave: Tráfico de Mulheres. Violência de Gênero. Conflitos Ar-


mados.

Abstract
Trafficking in women for the purpose of sexual exploitation is a reality in the
world that affects thousands of people every year. Some factors have appeared in
this context as catalysts for this type of crime, one of which was pointed out by the
United Nations (UN) as armed conflicts, as they force migratory flows and aggra-
vate the social vulnerability of the population living in this situation. Given this re-
ality, the general objective of this article is to reflect on the incidence of trafficking
in women in situations of armed conflict. Aspects related to gender inequality and
violence were addressed, since they are directly related to trafficking in women. The
adopted methodology comprises a qualitative approach, since the information is
mostly subjective in nature. Bibliographic and documentary research was privileged
sumário

to discuss the proposed categories and deepen the theme. It was identified that gen-
der inequality promotes practices of violence against women that promote serious
violations of human rights, one of the expressions of this reality is the trafficking of
women for the purpose of sexual exploitation. The armed conflicts that have broken
out much more in the last thirty years, accentuate several situations of economic
pressure, lack of work and educational opportunities, which propel several violations
of human rights, such as sexual violence, trafficking in women and girls for the pur-
pose of sexual exploitation.

Keywords: Trafficking in Women. Gender Violence. Armed conflicts.

Introdução

O tráfico de pessoas é uma atividade criminosa que tem sido objeto de 131
preocupação dos Estados. Tal delito afeta todos os países do mundo, sendo

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


que, conforme informações do UNODC, mais de 70% das pessoas afligidas
pelo tráfico no mundo são do sexo feminino. Os dados demonstram que a
atuação das organizações criminosas tem aumentado e que o tráfico de pes-
soas tem vitimado mais pessoas a cada ano. Embora não seja possível cons-
tatar o perfil das vítimas, os dados evidenciam que a maior parte dessas é
composta por mulheres adultas (49%) e adolescentes (meninas) (23%). Já os
homens representam 21% das vítimas e os meninos 7%1. Enquanto a maioria
das vítimas de exploração sexual é do sexo feminino, os homens formam o
maior grupo nos casos de trabalho forçado (UNODC, 2018).

O Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações Uni-


das sobre Drogas e Crimes (UNODC, sigla em inglês2), indica que mais vítimas
de tráfico de pessoas foram identificadas em 2016 do que nos treze anos an-
teriores (UNODC, 2018, p. 21). O documento ainda sublinha que a incidência
de conflitos armados3 pode repercutir significativamente no delito de tráfico

1 UNODC. Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas. Nova York: Publicação das
Nações Unidas, 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_
TIP/Publicacoes/TiP_PT.pdf>. Acesso em: 24 maio 2020.
2 United Nations Office on Drugs and Crime.
3 Os conflitos armados podem ser de dois tipos: i) Conflito armado internacional:
situação em que se recorre ao uso da força armada entre dois ou mais Estados, quaisquer
que sejam os motivos ou intensidade do confronto. ii) Conflito armado não internacional:
confronto armado prolongado que ocorre entre as forças armadas governamentais e as
forças de um ou mais grupos armados, ou entre esses grupos, e que surge no território de
um Estado. O confronto armado deve atingir um nível mínimo de intensidade e as partes no
sumário

de pessoas. Algumas das causas impulsionadoras seriam a fragilidade do


Estado de Direito, em razão da situação alarmante do conflito e um vasto nú-
mero de pessoas vivenciando condição de vulnerabilidade, em decorrência
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

da violência e impossibilidade de satisfazer necessidades básicas.4

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Walk Free Foundation,


em parceria com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), pu-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

blicou em 2017 o relatório The Global Estimates of Modern Slavery, que revelou
estimativas sobre práticas violatórias de direitos humanos. Assim, conforme
o documento, computou-se que 24,9 milhões de pessoas se encontravam em
trabalho forçado e exploração sexual em 2016. Da aferição total de 24,9 mi-
lhões: i) 16 milhões de pessoas (64%) sofreram exploração do trabalho força-
do no setor privado, no trabalho doméstico, construção ou agricultura (em
comparação com 14,2 milhões no cômputo da OIT de 2012); ii) 4,1 milhões de
132
pessoas (17%) vivenciaram situação de trabalho forçado imposto por auto-
ridades estaduais (em comparação com 2,2 milhões no pressuposto da OIT
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

de 2012); iii) 4,8 milhões de pessoas (19%) foram apontados como sujeitos a
exploração sexual (ILO; WALK FREE FOUNDATION, 2017).

Nessa perspectiva, aspectos subjacentes à situação de vulnerabilidade


são potencialmente agravados, podendo ensejar impactos significativos na
ocorrência do tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e meninas. De
uma maneira geral, fatores relacionados à desigualdade de gênero, discri-
minação de raça, classe, nacionalidade, violência doméstica, abuso sexual

conflito devem ter um nível mínimo de organização.


4 A Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993, proclamou
os direitos das mulheres como direitos humanos. Ademais, reconheceu o tráfico de mulheres
como uma forma de violência contra a mulher. “38. A Conferência sobre Direitos Humanos
salienta principalmente a importância de se trabalhar no sentido da eliminação da violência
contra as mulheres na vida pública e privada, da eliminação de todas as formas de assédio
sexual, exploração e tráfico de mulheres para prostituição, da eliminação de tendências
sexistas na administração da justiça e da erradicação de quaisquer conflitos que possam
surgir entre os direitos das mulheres e os efeitos nocivos de certas práticas tradicionais ou
consuetudinárias, preconceitos culturais e extremismos religiosos. A Conferência Mundial
sobre Direitos Humanos apela à assembléia Geral para que adote o projeto de declaração
sobre a violência contra as mulheres, e insta os Estados a combaterem a violência contra
as mulheres em conformidade com as disposições contidas na declaração. As violações dos
direitos das mulheres em situações de conflito armado constituem violações dos princípios
internacionais fundamentais de Direitos Humanos e de Direito Humanitário. Todas as violações
deste tipo, incluindo especialmente, o homicídio, as violações sistemáticas, a escravatura
sexual e a gravidez forçada exigem uma resposta particularmente eficaz.” (DECLARAÇÃO
E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA. Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, 1993,
parágrafo 38).
sumário

intrafamiliar, pobreza e exclusão social, homofobia, migração irregular, im-


pacto social dos modelos de desenvolvimento adotados, dentre outros, são
apontados como fenômenos envolvidos nos índices de incidência do tráfico
(BRASIL, 2016, p. 63).

Dessa maneira, este trabalho científico tem como objetivo central ana-
lisar o tráfico de mulheres para exploração sexual em situação de conflitos
armados. Para alcançar tal finalidade, utilizou-se a pesquisa qualitativa, vez
que a especificidade de nossa temática exige uma análise que está situada
para além de processos quantificáveis e leis gerais que possam explicar a
incidência do fenômeno. Haguette (1997) afirma que a pesquisa qualitativa:
“fornece uma compreensão profunda de certos fenômenos sociais apoiados
nos pressupostos de maior relevância do aspecto subjetivo da ação social
face à configuração das estruturas societais, seja a incapacidade da estatística
133
de dar conta dos fenômenos complexos e dos fenômenos únicos”5 (HAGUETTE, 1997,
p. 63).

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


A aproximação com o objeto indicado ocorreu a partir da pesquisa bi-
bliográfica, definida como aquela que “é desenvolvida a partir de material
já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (GIL,
2008, p. 50), que possibilitou o aprofundamento na discussão das categorias
propostas e a análise crítica estabelecida. A pesquisa documental também
foi utilizada para complementar a discussão, vez que o aparato corporificado
em leis, decretos, tratados internacionais e relatórios representou a impor-
tância significativa para o estudo aqui proposto. Conforme Cellard (2008, p.
205), “[...] graças ao documento, pode-se operar um corte longitudinal que
favorece a observação do processo de maturação ou de evolução de indi-
víduos, grupos, conceitos, conhecimentos, comportamentos, mentalidades,
práticas etc. [...]”.

O presente trabalho está dividido em três seções, além da introdução e


das considerações finais. No que se refere à primeira seção, traçou-se uma
discussão geral do tráfico de pessoas, definição do fenômeno, suas tipologias
e sua contextualização no panorama contemporâneo dos século XX e XXI; na
segunda seção, abordou-se o debate da violência de gênero e do tráfico de
mulheres para fins de exploração sexual, apontado como aquele de maior in-
cidência em caráter mundial em relação às demais finalidades do tráfico de
seres humanos; na terceira seção, discutiu-se sobre a relação entre o tráfico
de mulheres para fins de exploração sexual e sua incidência em contextos de

5 Grifou-se.
sumário

conflitos armados; e, na conclusão, apontou-se óbices para a inclusão plena


das vítimas do tráfico na sociedade, bem como algumas sugestões para o
enfrentamento do problema.
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

1. O tráfico de pessoas no mundo contemporâneo


OS NOVOS DESAFIOS DOS

A era contemporânea, compreendida entre os séculos XX e XXI, trouxe


um acelerado desenvolvimento das tecnologias digitais, da ciência, meios de
transporte, comunicação, estreitamento de fronteiras, dentre outros, compon-
do uma base objetiva globalizada, parte de um mundo material conduzido
por processos hegemônicos que incidem sobre o cotidiano da humanidade.
O desenvolvimento dessas forças produtivas e modernas tecnologias, entre-
tanto, não possibilitou acesso igualitário a todos os indivíduos, ocasionando
134
exclusão de grande parte da população mundial que se mantém à margem
da sociedade, vivendo, muitas vezes, de modo precário e sub-humano. Con-
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

forme expressa Milton Santos:

Um mercado avassalador dito global é apresentado como


capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as
diferenças locais são aprofundadas. [...] para grande par-
te da humanidade a globalização está se impondo como
uma fábrica de perversidades. (MILTON SANTOS, 2000, p.
19).

Despontam nessa conjuntura o agravamento do desemprego, a precari-


zação do trabalho, a fome, a mortalidade infantil, a redução da estimativa
de vida, o aumento dos índices de violência e drogadição, a limitação no
acesso aos serviços socioassistenciais essenciais para a qualidade de vida,
dentre outros impactos, que promovem um panorama de vulnerabilidades,
colaborando para a exposição dos sujeitos às redes de exploração das mais
diversas naturezas, sendo o tráfico de pessoas uma dessas consequências.
Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos apresenta um pano de fundo
dessa realidade:

É hoje evidente que a iniquidade da distribuição da riqueza


mundial se agravou nas duas últimas décadas: 54 dos 84
países menos desenvolvidos viram o seu PNB per capita
decrescer nos anos 80, em 14 deles a diminuição rondou
os 35%; segundo as estimativas das Nações Unidas, cerca
de 1 bilhão e meio de pessoas (1/4 da população mundial)
sumário

vivem na pobreza absoluta, ou seja, com um rendimento


inferior a um dólar por dia e outros 2 bilhões vivem apenas
com o dobro desse rendimento. (SANTOS, 2011, p. 33-34)

O tráfico de pessoas é um fenômeno arrevesado em razão de sua com-


plexa estrutura e dinâmica, que compreende múltiplas finalidades, represen-
tando um complexo desafio no que se refere à sua compreensão, prevenção,
enfrentamento e assistência às vítimas. Apesar desse profundo enredamento,
alguns indicativos, que serão abordados ao longo deste trabalho, podem ser
apresentados para colaborar com os debates sobre a temática.

O conceito de tráfico de pessoas se encontra no art. 3º do Protocolo Re-


lativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial
Mulheres e Crianças6 (Protocolo de Palermo), que é um dos instrumentos adi-
cionais da ONU contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de 135
Palermo). Este documento foi adotado pela ONU com o fim de organizar

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


ações de persecução criminal no combate ao crime organizado transnacio-
nal, bem como de ações para a proteção dos direitos humanos das pessoas
vítimas desse delito. Nesse contexto, o instrumento internacional estabelece
ações concretas para a prevenção, repressão dos criminosos e assistência às
vítimas, assim como medidas de reparação. (SOUZA, 2016) Com efeito, ad-
verte Waldimeiry Corrêa da Silva que:

[…] este instrumento jurídico va más allá de la tradicional com-


prensión de la trata (la dimensión penal y de seguridad pública),
debido a su perspectiva multidimensional, además de adoptar
compromisos políticos. El Protocolo de Palermo esboza la ex-
tensión y la busca de defensa de los derechos humanos porque
combina la protección y la asistencia a las víctimas y piensa la
prevención para lograr la persecución, la represión y la coope-
ración judicial. (CORRÊA DA SILVA, 2014, p. 226)

6 O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime organizado


Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial
Mulheres e Crianças foi adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da
Resolução n. A/RES/55/25, em 15 de novembro de 2000, em Palermo, Itália, durante a 55ª
Sessão da Assembleia Geral da ONU. Enquanto todos os Estados Partes da ONU assinaram
a Convenção de Palermo, apenas oitenta apuseram assinatura, em um primeiro momento, no
Protocolo que trata sobre o tráfico de pessoas. O Protocolo de Palermo (2000) possuía até em
03 de junho de 2020, 117 Signatários e 176 Estados Partes. O referido Protocolo foi promulgado
pelo Brasil por meio do Decreto federal de n. 5.017, de 12 de março de 2004.
sumário

O citado instrumento define o tráfico de pessoas como o recrutamento,


o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, re-
correndo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto,
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabili-


dade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de
OS NOVOS DESAFIOS DOS

exploração (NACIONES UNIDAS, 2000, on-line).7

Tom Obokata salienta que “one key aspect of the Trafficking Protocol is
that it adopted a definition of trafficking for the first time under international law”
(OBOKATA, 2006, p. 3). O Protocolo de Palermo (2000) é o primeiro instru-
mento de Direito Internacional Público a tratar de modo amplo o tráfico de
pessoas, estabelecendo uma definição clara e mundialmente reconhecida,
abordando, ainda, os vários aspectos dessa prática (ALONSO, 2008, p. 173).
136
Além do mais, o instrumento trouxe a definição mais atual e adequada de
tráfico de pessoas, já que incluiu todos os seres humanos na categoria de
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

vítimas (SOUZA, 2016, p. 54).

Evidencia-se que essa primeira definição internacionalmente aceita do


tráfico de pessoas é ampla, muito “aberta” e não apresenta conceitos claros
para vulnerabilidade, exploração e consentimento8, o que tem gerado críticas
(CORRÊA DA SILVA, 2018). Para a pesquisadora Maria Lúcia Leal, a defini-
ção de tráfico de pessoas vigente internacionalmente é “sujeita ao texto da

7 No âmbito da União Europeia, a Convenção do Conselho da Europa relativa à


Luta contra o Tráfico de Seres Humanos (Convenção Anti-Tráfico), CETS n. 197, 16 de maio de
2005, acolhe a definição contida no Protocolo de Palermo. Em seu preâmbulo, a Convenção
Anti-Tráfico (2005) afirma, dentre outras coisas: a) Considerando-se que o tráfico de seres
humanos constitui uma violação dos direitos humanos direitos e uma ofensa à dignidade e à
integridade do ser humano; b) Considerando-se que o tráfico de seres humanos pode resultar
em escravidão para as vítimas; c) Considerando que o respeito dos direitos das vítimas,
proteção das vítimas e à luta contra o tráfico de seres humanos devem ser os objetivos
primordiais. (COUNCIL OF EUROPE, 2005, on-line) Por sua vez, estabelece medidas concretas
para prevenir, reprimir e prestar assistências às vítimas do tráfico, senão veja: O artigo 1° prevê
que os efeitos do instrumento são prevenir e combater o tráfico de pessoas, para proteger
os direitos humanos das vítimas de tráfico, a concepção de um quadro abrangente para
a proteção e assistência às vítimas e testemunhas e para garantir a efetiva investigação e
repressão do tráfico; O artigo 4° (a) adota a definição de tráfico e no artigo 4° (b), o documento
replica o disposto no Protocolo de Palermo (2000) sobre o irrelevância do consentimento de
uma vítima de tráfico para a exploração. O artigo 5° estabelece que os Membros devem tomar
medidas para evitar o tráfico. O artigo 10 estabelece medidas em matéria de formação e de
cooperação. (LIMA; SOUZA, 2015, p. 580-581)
8 A respeito desses temas a ONU elaborou documentos temáticos para que se possa
ter uma melhor compreensão.
sumário

violência criminal e fora de lugar em uma análise macrossocial e cultural do


fenômeno” (LEAL; LEAL, 2002, p. 44).

A professora Waldimeiry Corrêa da Silva explica com propriedade que o


tráfico de pessoas é um fenômeno complexo e multifacetado que necessita
de respostas a partir de uma análise interdisciplinar, pois é preciso abordar o
problema sob diversos aspectos, quais sejam: direitos humanos, questão de
gênero, desigualdade econômica, globalização, fronteiras nacionais, mobili-
dade humana, desenvolvimento e crime transnacional organizado. Asseve-
ra, ainda, que o tráfico de pessoas precisa ser entendido como um processo
(CORRÊA DA SILVA, 2018). Nessa mesma lógica, aponta Pérez Alonso:

Frente a un problema global y multifactorial la solución tam-


bién ha de ser necesariamente global y multidisciplinar, Sólo a
través de medidas internacionales que impliquen igualmente 137
a todos los países, aunque en distinta forma y medida, y que
atiendan a todos los factores imbricados, puede hacerse fren-

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


te con seriedad y eficacia a esta nueva forma de delincuencia.
Se tiene que producir aquí una globalización de la legalidad.
(ALONSO, 2008, p. 150)

Fatores relativos à situação de exclusão – que podem ter incidência em


diversos aspectos, afetando as condições dignas de sobrevivência humana
– catalisam essa prática que tem afetado milhares de pessoas em escala
mundial. De acordo com o UNODC (2018), o número de vítimas do tráfico de
pessoas aumentou entre os anos de 2003-2016, sendo as mulheres e meninas9
(adolescentes) as mais afetadas. Conforme o último Relatório sobre Tráfico
de Pessoas do UNODC, o tipo de tráfico mais reportado seria aquele para a
finalidade da exploração sexual (UNODC, 2018).10

9 O Comitê para a Eliminação da Discriminação da Mulher da ONU (Comitê da


Cedaw), em sua 72ª sessão, realizada em Genebra (18 de fevereiro a 8 de março de 2019),
fez uma discussão geral sobre o tráfico de mulheres e meninas no contexto da migração
global no âmbito das disposições da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres. No evento foi minutada uma Recomendação Geral sobre o
tráfico de mulheres e meninas no contexto da migração global. O objetivo da recomendação
geral é de orientar os Estados Partes na Convenção sobre as medidas que devem adotar para
garantir o cumprimento de suas obrigações de respeito, proteção e cumprimento dos direitos
humanos das mulheres no contexto do tráfico e da migração global. Para mais informações
consultar o sítio do Comitê da Cedaw. https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CEDAW/Pages/
GRTrafficking.aspx
10 A maioria das vítimas detectadas globalmente é traficada para fins de exploração
sexual, embora este padrão não seja uniforme em todas regiões. O tráfico de pessoas do sexo
feminino - tanto mulheres como meninas - para exploração sexual prevalece nas áreas onde
sumário

Destarte, são claramente perceptíveis as múltiplas tipologias de explora-


ção as quais o tráfico se destina, sendo ainda bastante provável que outras
modalidades de exploração sejam desenvolvidas, ou até mesmo já estejam
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

em prática, visando a lucratividade de indivíduos ou grupos criminosos que


descobriram nessa violação de direitos humanos um mercado bastante lu-
crativo. Nesse sentido, o Protocolo de Palermo estabelece algumas formas
OS NOVOS DESAFIOS DOS

de exploração em rol exemplificativo, a exploração de crianças em conflitos


armados; o uso de crianças para adoções irregulares; o emprego das víti-
mas em atividades ilícitas (tráfico de drogas, etc.); a exploração direta da
fisionomia da vítima, que ocorre por meio de extração de órgãos ou outros
elementos corporais, como o sangue; a mendicância, dentre outras (SOUZA,
2016, p. 54).

A elevada lucratividade dos criminosos, inclusive, já foi apontada em al-


138
gumas pesquisas desenvolvidas por organismos internacionais, como, por
exemplo, a OIT, que indicou a partir de documento elaborado em 2012 e pu-
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

blicado em 2014, uma estimativa de 99 bilhões de dólares em lucros totais


ilícitos produzidos anualmente nessa prática violatória de direitos humanos
(ILO, 2012). Outra evidência é o relato recentemente indicado em publicação
do UNODC estabelecendo que: “Em um país no centro da Europa, por exem-
plo, um traficante ganhou no mínimo 7.000 euros por obrigar uma vítima a
envolver-se em sexo comercial durante cinco semanas” (UNODC, 2018, p. 39).

Associada à situação de vulnerabilidade das vítimas, esse mercado lucra-


tivo desencadeia múltiplas situações de violação de direitos. Os criminosos,
que geralmente atuam em organizações criminosas, exploram os indivíduos
de maneira desumana e exaustiva, como é possível identificar em relatórios
e/ou pesquisas já publicados.

Por conseguinte, assevera Waldimeiry Corrêa da Silva que as pessoas em


situação de tráfico vivenciam diversas práticas violatórias de direitos huma-
nos, isto é, de privação de direitos, a exemplo de integridade, liberdade e
dignidade. São sujeitas a manter relação de submissão, de silêncio, em que
são coagidas, vigiadas etc. No caso do tráfico para fins de exploração sexual,
as mulheres (grupo mais afetado) são expostas a problemas de saúde e cons-
trangidas (física e psicologicamente) (CORRÊA DA SILVA, 2018).

a maioria das vítimas é detectada: Américas, Europa, Ásia Oriental e Pacífico. (UNODC, 2018,
p. 10).
sumário

Quanto à finalidade da exploração no ambiente do tráfico, percebe-se


que sempre se configura por intermédio da exploração da vítima, seja ela
sexual, do trabalho escravo, casamento servil ou mesmo remoção de órgãos,
tecidos e fluidos do corpo, dentre outras que existem ou possam vir a existir.
Dessarte, a reificação dos corpos se faz presente e mostra a sua face mais
cruel na sociedade moderna, reduzindo o indivíduo à condição de objeto.
Siqueira ressalta que: “O ser humano passa a ser ‘reificado’ ou ‘coisificado’,
perdendo sua individualidade e suas características ontológicas de pessoa
cidadã de Direitos, tornando-se uma mercadoria para a compra e venda, um
simples valor de troca” (SIQUEIRA, 2013, p. 29).

Na seção que segue, aprofundar-se-á o debate sobre modalidade especí-


fica de tráfico de pessoas: o de mulheres para fins de exploração sexual. Con-
forme o UNODC, “[...] o tráfico de pessoas do sexo feminino - tanto mulheres
139
como meninas – para exploração sexual prevalece nas áreas onde a maioria
das vítimas é detectada: Américas, Europa, Ásia Oriental e Pacífico” (UNODC,

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


2018, p. 10). Aludido documento aponta ainda que 49% das vítimas detecta-
das a nível global são mulheres e 23% meninas, enquanto 21% são homens
e 7% meninos, demonstrando um panorama que evidencia que as mulheres
representam o maior número de pessoas afetadas por modalidade delituosa.

2. Violência de gênero e o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual


Antes de apresentar as reflexões sobre violência de gênero, faz-se neces-
sário destacar a definição da terminologia “gênero” que, sob a abordagem
filosófica e científica, é estudado sob variados enfoques (PIMENTEL, 2017).11

Considerado por Joan Scott (1990) como uma categoria histórica e analítica
e por Rubin (2017) como uma divisão dos sexos socialmente imposta, o conceito
de gênero passa a ser amplamente discutido pelo movimento feminista, em
sua segunda onda, a partir da década de 1970. A emergência desse deba-
te percebe que o significado de gênero não está ligado ao fator biológico
de ser do sexo feminino ou masculino, mas a uma complexidade de fatores
socioculturais, ideológicos, religiosos, dentre outros, que contribuem para a
formação do indivíduo a depender do sexo que possui, a partir do momento

11 Para detalhes sobre os conceitos de gênero desenvolvidos nas quatro ondas do


movimento feminista consultar: PIMENTEL, Sílvia. Gênero e Direito. In: PIMENTEL, Sílvia;
PEREIRA, Beatriz; MELO, Mônica de. Direito, Discriminação e Gênero. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2017. pp. 1-38.
sumário

que nasce. Na verdade, em razão dos avanços da ciência, é possível ter essa
informação ainda durante a gestação, quando muitas famílias, por exem-
plo, escolhem todo um enxoval já repleto de significados que repercutem na
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

formação da identidade cultural de meninos e meninas: babados, bonecas,


panelinhas e cor-de-rosa, para meninas; e carrinhos, aviões, soldadinhos e
cor azul, para meninos.
OS NOVOS DESAFIOS DOS

A respeito do conceito de gênero desenvolvido durante a segunda onda


do movimento feminista, Sílvia Pimentel assinala que: “A teoria essencialista
sobre gênero – e respectivo determinismo biológico – é criticada pelos cons-
trucionistas sociais, que ressaltam os aspectos relacionais como a dimensão
fulcral de gênero”. A autora destaca que a definição de gênero se refere ao
elemento sociocultural do ser mulher como algo construído. Tal conceito foi
estratégico para a luta das mulheres por direitos, bem como para a sua con-
140
quista (PIMENTEL, 2017, p. 7).

A referida discussão, inicialmente suscitada pelo movimento feminista,


OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

conforme mencionado, foi tornando-se cada vez mais diversificada naquela


seara, havendo inclusive pontos divergentes na conceituação do gênero. Não
obstante, Saffioti (2011, p. 129) assevera que: “Rigorosamente, o único consen-
so existente sobre o conceito de gênero reside no fato de que se trata de uma
modelagem social, estatisticamente, mas não necessariamente, referida ao
sexo. Outrossim, destaca-se que o gênero pode ser construído independente-
mente do sexo.” Seguindo a essa linha de compreensão, Piscitelli e Vasconce-
los (2008) relatam essa diversidade de formulações, assinalando um aspecto
bastante relevante que corresponde a toda categoria: a inquietação do mo-
vimento feminista em relação às posições desiguais que ocupam homens e
mulheres na sociedade, conforme enunciado a seguir:

A história do pensamento feminista mostra que há diver-


sas formulações do conceito de gênero. Ele foi sendo pen-
sado e reelaborado de diferentes maneiras, em perspec-
tivas ancoradas em diversas abordagens teóricas. Essas
diversas formulações estão marcadas por uma preocupa-
ção política: considerar as operações de poder que situam
homens e mulheres em posições desiguais. (PISCITELLI;
VASCONCELOS, 2008, p. 17)

Essas relações de poder desiguais na sociedade machista e patriarcal


estabelecem uma conjuntura de opressão, dominação e violência em relação
ao gênero feminino, submetendo inúmeras mulheres, adolescentes e meninas
a uma existência repleta da violação de seus direitos. Nesse sentido, Saffioti
sumário

ressalta que, apesar de tal imposição, não há como o dominador deter


completo domínio sobre todas as variáveis de resistência do oprimido. Dessa
maneira, apela-se à violência física e simbólica para garantir o cumprimento
de todos os ditames dessa opressão, portanto, “a execução do projeto de
dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade
de mando seja auxiliada pela violência” (SAFIOTTI, 2001, p. 15).

Com efeito, toda a discussão suscitada em torno da categoria “gênero”,


embora por si não seja sinônimo de violência, lança luz sobre a origem e
constituição da discriminação e opressão que o gênero masculino sustenta
sobre o gênero feminino, constituindo uma outra categoria, a da violência de
gênero. “Diferenças” construídas pelo ser humano no âmbito simbólico, social,
religioso, cultural, econômico, histórico, científico, que perpetuam práticas
despóticas e perseguidoras do feminino para que se enquadre nas exigências
141
denotas pela supremacia masculina.

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


Para a jurista e ex-presidenta do Comitê Supervisor da Convenção sobre
a Eliminação sobre Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
(Cedaw, sigla em inglês12), apesar de a Convenção não ter tratado do tema
“violência contra a mulher”, já que a conjuntura da década de 1970 não era
favorável, a lacuna foi solucionada com a elaboração da Recomendação Ge-
ral n. 19, que “define discriminación contra la mujer y que esta definición incluye la
violencia basada en el género. Esta, a su vez, sería todo tipo de violencia dirigida a
la mujer por el simple hecho de ser mujer o que la afecta desproporcionadamente”
(PIMENTEL, 2008, p. 34; ONU, 2007, p. 18).

A respeito da violência de gênero contra a mulher, o Comitê para a Eli-


minação da Discriminação das Mulheres ao tratar sobre a Recomendação n.
3513, indicou alguns fatores que estão relacionados ao problema citado:

El Comité considera que la violencia por razón de género contra


la mujer está arraigada en factores relacionados con el género,
como la ideología del derecho y el privilegio de los hombres
respecto de las mujeres, las normas sociales relativas a la mas-
culinidad y la necesidad de afirmar el control o el poder mas-
culinos, imponer los papeles asignados a cada género o evitar,

12 Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women.


13 Para mais informações consultar: NACIONES UNIDAS, Convención sobre la
Eliminación de Todas las Formas de Discriminación contra la Mujer, Comité para la Eliminación
de la Discriminación contra la Mujer Recomendación general num. 35 sobre la violencia por
razón de género contra la mujer, por la que se actualiza la recomendación general n. 19,
CEDAW/C/GC/35, 2017.
sumário

desalentar o castigar lo que se considera un comportamiento


inaceptable de las mujeres. Esos factores también contribuyen
a la aceptación social explícita o implícita de la violencia por
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

razón de género contra la mujer, que a menudo aún se considera


un asunto privado, y a la impunidad generalizada a ese respec-
to. (NACIONES UNIDAS, 2017, p. 8)
OS NOVOS DESAFIOS DOS

O cenário do tráfico de pessoas é propício para as práticas violatórias de


direitos humanos. Nessa lógica, a violência de gênero desponta como fator
significativo. A ampla demanda por “serviços sexuais” prestados pelo gêne-
ro feminino faz com que as organizações criminosas submetam mulheres,
meninas e travestis ao tráfico de pessoas como objeto sexual e mercadoria.
Nesse sentido, o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual reforça a
percepção da mulher como objeto sexual, e não como sujeito de direitos. A
142 ideia do homem como provedor emocional e financeiro estabelece relações
de poder entre ambos os sexos. Nessa perspectiva, mulheres foram historica-
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

mente estimuladas a desempenhar o papel social de atender aos desejos e


demandas do homem ou de quem tiver alguma forma de poder hierárquico
sobre elas.

O tráfico de mulheres para fins de exploração consiste na


exploração sexual inserida no comércio sexual, ou seja,
serviços sexuais, indústria do sexo, pornografia, turismo
sexual, espetáculos sexuais ou atividades similares. Nes-
se contexto, o traficante se beneficia dos lucros da explo-
ração sexual alheia. Conforme evidenciado por meio da
definição internacionalmente aceita, do Protocolo de Pa-
lermo, o consentimento da vítima é irrelevante, já que os
meios usados (coação e/ou engano, uso da força ou vio-
lência) com um determinado fim, são os que caracterizam
o delito e a pessoa sujeita a ele será a vítima. (CORRÊA DA
SILVA, 2018, p. 114).

Por conseguinte, o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual re-


presenta uma clara modalidade de violência de gênero14, por meio do qual

14 A respeito da violência de gênero contra a mulher a Declaração de Viena (1993)


destacou que “A violência baseada no sexo da pessoa e todas as formas de assédio e
exploração sexual, nomeadamente as que resultam de preconceitos culturais e do tráfico
internacional, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser
eliminadas. Isto pode ser alcançado através de medidas de caráter legislativo e da ação
nacional e cooperação internacional em áreas tais como o desenvolvimento socioeconômico,
a educação, a maternidade segura e os cuidados de saúde, e a assistência social.”
(DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA. Conferência Mundial sobre Direitos
sumário

as vítimas são comercializadas para satisfazer uma demanda predominan-


temente masculina por sexo pago. Tal fato transparece o alicerce sociocul-
tural historicamente construído e ainda tão presente em boa parte do terri-
tório terrestre. Um fenômeno baseado na desigualdade de gênero, conforme
aponta Giffin:

[...] os pares contrapostos são vistos como opostos e ex-


cludentes, além de fixos nas suas diferenças. Aplicado à
construção dos gêneros, o dualismo afirma, em primeiro
plano, que o homem é ativo e a mulher, passiva. Aplicado
à construção da sexualidade, ele funde a identidade de
gênero e a identidade sexual (ser homem é praticar sexo
com mulheres, e vice-versa), resultando na hegemonia he-
terossexual, baseada em dois tipos de seres: homens se-
xualmente ativos e mulheres sexualmente passivas. Aqui,
um confronto entre opostos é a base da sexualidade: o 143
homem vai fazer e à mulher será feita. (GIFFIN, 1994, p. 151)

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


Outro fato importante a ser destacado e que contribui para a violência
de gênero é a existência de uma visão que evidencia uma necessidade sexu-
al masculina exacerbada prevalecendo sobre a feminina, como um impulso
biológico instintivo, tido como “natural”, que deve dominar, controlar e até
usar da violência: “[...] a ideologia dominante enfatiza que a dominação, o
controle e, até mesmo, a violência masculinas na sexualidade são ‘naturais’.”
(CAULFIELD, 1985, p. 360). Dessa maneira, tal “naturalidade” legitima social-
mente a violência de gênero, desencadeando diversificadas práticas e atitu-
des capazes de violar direitos e marginalizar mulheres e meninas.

Destarte, Leal e Pinheiro (2007) avaliam o tráfico para fins de exploração


sexual destacando um importante elemento nesse processo de mercantiliza-
ção: sua relação com o dinheiro. A atual conjuntura, tangenciada pelo siste-
ma capitalista, tende a transformar pessoas e relações humanas em relações

Humanos, 1993, parágrafo 18). Ainda sobre o tema, o Comitê da Cedaw se posicionou em 2017
na Recomendação Geral n. 35, que atualizou a Recomendação Geral n. 19. “[...] se utiliza como
un término más preciso que pone de manifiesto las causas y los efectos relacionados con el
género de la violencia. La expresión refuerza aún más la noción de la violencia como problema
social más que individual, que exige respuestas integrales, más allá de aquellas relativas a
sucesos concretos, autores y víctimas y supervivientes”. (NACIONES UNIDAS, Comité para
la Eliminación de la Discriminación contra la Mujer Recomendación general núm. 35 sobre
la violencia por razón de género contra la mujer, por la que se actualiza la recomendación
general núm. 19, CEDAW/C/GC/35).
sumário

de mercado com o objetivo de gerar lucros concentrados nas mãos dos ex-
ploradores.
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

[...] o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual


embute uma fórmula para corporificar o capital e, ao
mesmo tempo, resolve um outro problema que é fazer
crescer extensivamente o dinheiro. Qualquer mercadoria
OS NOVOS DESAFIOS DOS

que queira se transformar em outra, deve, antes de tudo,


como mercadoria, no mundo moderno, transformar-se
em dinheiro, retransformando-se em mercadoria. (LEAL;
PINHEIRO, 2007, p. 19)

Em vista disso, constata-se que, enquanto a desigualdade de gênero não


for desconstruída, as disparidades sociais que agravam o panorama de vul-
nerabilidades humanas, fruto dos desdobramentos dessa discrepância, não
144
serão verdadeiramente enfrentadas e reduzidas; do mesmo modo, o tráfico
de mulheres para fins de exploração sexual, compreendido como uma violên-
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

cia de gênero, permanecerá uma atividade altamente lucrativa, uma vez que
a demanda preferencial por mulheres e meninas refrata a histórica e cultural-
mente disseminada perspectiva de que o feminino seria inferior e subalterno
ao masculino. No tópico seguinte, abordar-se-á sobre os conflitos armados e
a incidência do tráfico de mulheres naquela conjuntura.
3. Os conflitos armados como conjuntura potencializadora do
tráfico de mulheres para fins de exploração sexual

No Preâmbulo da Carta de São Francisco (ou Carta das Nações Unidas),


os Estados-Membros se comprometeram a “preservar as gerações vindouras
do flagelo da guerra” (ONU, 1945). Com o passar de quase oito décadas, as
expressões da violência foram remodeladas em nível mundial (ONU MULHE-
RES, 2018). Desse modo, as guerras foram minimizadas e os conflitos entre os
Estados foram reduzidos.

Consoante o Relatório do Human Security Centre, os conflitos entre Estados


são responsáveis por mais de 95% de todos os conflitos (HUMAN SECURITY
CENTRE, 2005). Nesse sentido, a maioria dos conflitos ocorridos nos últimos
anos se expressam por meio de guerras civis de baixa intensidade ou guerras
assimétricas em que milícias irregulares e outros grupos de oposição lutam
entre si ou contra Exércitos estatais. Esses conflitos envolvem lutas entre prin-
cípios e ideologias. Portanto, antagônicos entre si.
sumário

Estudos indicam que houve uma diminuição nas mortes relacionadas às


batalhas, de cerca de 700 mil em 1950 para 20 mil em 2002. Porém, os índi-
ces começaram a aumentar a partir de 2012 (ONU MULHERES, 2018). Apesar
de o número de conflitos ter sido reduzido, isso não significa que as práticas
violatórias de direitos humanos tenham cessado. Ao contrário, as violações
de direitos humanos continuam a ser uma realidade presente em zonas de
conflitos.

À vista disso, no cenário de conflitos armados existe um tipo de prática


violatória de direitos humanos, um tipo específico, que é a violência sexual
baseada no gênero (SGBV, sigla em inglês15). Esse tipo de violência é pratica-
da com foco em indivíduos ou grupos de indivíduos em razão do seu gênero
ou sexo. Algumas formas de expressão da SGBV são: estupro, “escravidão” se-
xual16, gravidez forçada, mutilação genital, assédio, tratamentos humilhantes,
145
se despir em público mediante coação etc. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2020;
ONU, 2000; MATUELLA, 2017). Destaca-se que a SGBV pode afetar tanto ho-

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


mens como mulheres.

O tema da violência de gênero, inclusive relacionada ao contexto de con-


flitos armados, também foi tratada por ocasião da Conferência Mundial so-
bre Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993. A respeito do art. 18, pa-
rágrafo 2° do Programa de Ação, o embaixador José Augusto Lindgren-Alves,
explica que:

Igualmente inovador e com repercussões doutrinárias,


[...] dirige-se à violência contra a mulher em seus diversos
graus e manifestações, “inclusive as resultantes de precon-
ceito cultural e tráfico de pessoas”. Sua eliminação pode
ser alcançada “por meio de medidas legislativas, ações
nacionais e cooperação internacional nas áreas do de-
senvolvimento econômico e social, da educação, da ma-
ternidade segura e assistência de saúde e apoio social”.
Superficialmente corriqueiro, esse parágrafo traz embuti-
do profunda transformação na concepção tradicional dos
direitos humanos como direitos exclusivamente violados
no espaço público, pelo estado e seus agentes, por ação
ou omissão conivente, enquanto a violência privada era
questão de criminalidade comum. Na medida em que a

15 Sexual and Gender – based violence.


16 Escravidão e tráfico de pessoas possuem conceitos próprios no Direito Internacional
Público.
sumário

violência contra a mulher infringe os direitos humanos de


metade da humanidade [...]. (LINDGREN-ALVES, 2018, p.
152-153)
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Nessa linha de compreensão, o tráfico de mulheres e meninas para ex-


ploração sexual (escravidão sexual, casamento forçado, prostituição forçada
e gravidez forçada) está englobado no panorama geral da violência sexual
OS NOVOS DESAFIOS DOS

cometida contra a população civil durante e após os conflitos (NACIONES


UNIDAS, 2015). A ONU, atenta para esses problemas, em 1999/2000, por meio
do seu Conselho de Segurança, adotou uma variedade de resoluções com
foco em temas específicos, sobre conflitos em países específicos, de modo a
analisar a segurança de uma maneira ampla. Consequentemente, a agenda
do CSNU foi ampliada.

146 Nessa circunstância, o CSNU adotou resoluções sobre a proteção de civis


em conflitos armados (Res. 1265 e 1296), crianças e conflitos armados (Res.
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

1261 e 1314), a importância da democracia e dos direitos humanos no estabe-


lecimento da paz (Res. 1327) e as ameaças do HIV/AIDS à paz e à segurança
internacional (Res. 1308).

Dessa maneira, a Resolução n. 132517 (2000) sobre mulheres, paz e segu-


rança foi adotada pela ONU por unanimidade em 31 de outubro de 2000.
Esse documento foi o primeiro da lavra do CSNU a tratar de modo específico
do impacto da guerra nas mulheres e meninas, da contribuição das mulheres
na resolução de conflitos e na manutenção da paz e da segurança. Outros-
sim, o tema “gênero” foi incorporado pela primeira vez ao contexto do conflito
armado e da segurança da ONU.

No que concerne à relação entre o tráfico de pessoas e a violência se-


xual, foi reafirmada por meio de comunicado da Presidência da Conselho
de Segurança (CSNU), na sessão 7585ª, em 201518, tratando sobre a urgência

17 A questão de conceitos contidos na Resolução 1325 (2000) teve égide com a


Plataforma de Ação de Beijing, que identificou a questão das mulheres e conflitos armados
como um dos seus 12 objetivos estratégicos. Em 1998, a Comissão sobre o Status da Mulher
(CSW, sigla em inglês) fez opção por esse tema e discutiu os obstáculos postos para a
implementação dessa área de inquietações da Plataforma de Ação de Beijing. Nessa reunião,
em que participaram mulheres de diferentes zonas de conflitos que a rede de organizações
não-governamentais (ONGs) para MPS começou a se delinear. Foi nessa época que se
defendeu pela primeira vez a ideia de uma resolução do CSNU sobre a dimensão de gênero
nos conflitos armados.
18 Para mais informações acessar [S/PRST/2015/25], disponível em: https://undocs.
org/sp/S/PRST/2015/25
sumário

de envidar os esforços necessários para prevenir, identificar e interromper


o tráfico de pessoas, em especial o delito cometido por grupos terroristas e
extremistas violentos.

El Consejo de Seguridad señala las repercusiones que la trata de


personas en las situaciones de conflicto armado tiene en parti-
cular sobre las mujeres y los niños, entre otras cosas, aumentan-
do su vulnerabilidad a la violencia sexual y la violencia basada
en el género. El Consejo de Seguridad expresa su intención de
seguir estudiando esas repercusiones, incluso, según proceda,
en el contexto de su Grupo de Trabajo sobre los Niños y los Con-
flictos Armados, dentro de su mandato, y en el marco de su pro-
grama para prevenir y abordar la violencia sexual relacionada
con los conflictos armados. (NACIONES UNIDAS, 2015, p. 2)

O problema do tráfico de pessoas no cenário dos conflitos armados tem 147


ocorrido em países como a Colômbia, Síria, Iraque, República Democrática

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


do Congo, Mianmar, Líbia e Nepal, em uma conjuntura permeada por va-
riados tipos de vulnerabilidades, a exemplo da discriminação de gênero, em
que as principais vítimas têm sido mulheres, crianças, migrantes etc. (UNITED
NATIONS UNIVERSITY, s/d). Assim, são elucidativas as palavras da Relatora
sobre Tráfico de Pessoas da ONU:

25. Las personas y las comunidades que se ven atrapadas en los


conflictos son vulnerables a diversas violaciones de los derechos
humanos. Durante los conflictos se exacerban la vulnerabilidad
y las situaciones preexistentes, tales como la discriminación
estructural por razón de género y otros tipos de discriminación
que afectan a las mujeres, los niños y los no ciudadanos, ya que
las oportunidades de explotación aumentan y las protecciones
se debilitan. Algunos factores, como por ejemplo el sistema de
patrocinio (kafala), que tiene por objeto regular las relaciones
entre el empleador y el empleado en algunos países, otorga a los
empleadores un poder excesivo sobre los trabajadores migran-
tes, lo que aumenta el riesgo de que sean víctimas de la trata.
Por ejemplo, en el rescate de víctimas de la trata provenientes de
Kenya, quienes estaban realizando trabajo doméstico en Libia
durante los conflictos que tuvieron lugar en ese país, surgieron
dificultades porque sus empleadores, que eran los responsables
de autorizar sus permisos de salida, habían huido del país, lle-
vándose consigo los documentos de viaje de sus empleadas. Del
mismo modo, durante el conflicto armado en el Líbano en 2006,
alrededor de 300.000 trabajadores domésticos provenientes de
Sri Lanka, Etiopía y Filipinas, a quienes se dejó atrás durante la
sumário

evacuación de sus empleado s, se volvieron vulnerables a los


traficantes, quienes les ofrecían otras opciones para obtener
medios de subsistencia y la condición de residentes.(NACIO-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

NES UNIDAS, 2015, p. 11).19

Os ambientes de conflitos aumentam as vulnerabilidades das pessoas e,


por consequência, impulsionam as variadas formas de exploração no pano-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

rama do tráfico de pessoas. As causas20 do problema podem ser identificadas


como: Estado de direito fragilizado, problemas de infraestrutura de proteção
e a banalização da violência em contextos de conflito e desastre; aumento
da incidência da violência sexual e de gênero; procura dos integrantes de
grupos armados por serviços sexuais ou laborais de baixo custo ou sem cus-
to; vulnerabilidade física, social e/ou econômica; acesso restrito à educação,
o que torna as crianças mais vulneráveis; instabilidade das redes familia-
148 res, que deixa as crianças mais vulneráveis ao trabalho infantil e casamento
forçado; acesso restrito dos meios regulares de acesso a viagens para fugir de
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

conflitos e desastres, o que agrava a vulnerabilidade das pessoas às redes de


contrabando de migrantes e outras formas de exploração (UNITED NATIONS
UNIVERSITY, s/d).

O tráfico de pessoas é uma das características de ambientes de conflitos


armados, bem como das situações após conflitos. Nessas conjunturas, existe
a possibilidade de militares e/ou grupos armados sequestrarem pessoas para
explorarem, com destaque para a exploração sexual. Esse tipo de violação
afeta em maior número as mulheres e meninas. Após cessadas as práticas
violatórias de direitos humanos ainda existe uma outra questão social, a sa-
ber: as populações civis podem sofrer pressões de ordem econômica (ou de
outras espécies), o que impulsionará os deslocamentos forçados para luga-
res onde essas pessoas possam buscar uma vida digna (NACIONES UNIDAS,
2014).

Nessa linha de raciocínio, a Relatora da ONU sobre o Tráfico de Pessoas


explica com propriedade alguns fatores que aumentam as vulnerabilidades e,
consequentemente, impulsionam a multiplicação das formas de exploração
relacionadas ao tráfico de pessoas.

19 Para mais informações acessar: https://undocs.org/es/A/71/303


20 Para mais informações acessar: https://delta87.org/recursos/perspetivas-tematicas/
contextos-humanitarios-e-de-conflito/?lang=pt-br
sumário

Hay una serie de circunstancias propias de las situaciones de


conflicto, o frecuentemente relacionadas con estas, que fomen-
tan la trata al acrecentar las vulnerabilidades y multiplicar las
oportunidades de explotación. Entre ellas cabe mencionar, sin
ánimo exhaustivo, las economías distorsionadas fuertemente
dependientes de la delincuencia y la presencia de grupos de
delincuencia organizada que ya participan en el tráfico trans-
fronterizo de armas, drogas y otros productos ilícitos, que tienen
la capacidad de ampliar sus actividades para incluir la trata de
personas y que, por tanto, están en condiciones de aprovechar
nuevas oportunidades para generar ganancias. Los sistemas
de justicia y protección débiles o inexistentes que perpetúan
la impunidad no protegen a los grupos y a las personas más
vulnerables de la sociedad ante la explotación. Otros factores
son una tolerancia amplia de la violencia, así como su elevada
incidencia, que trasciende el ámbito de las fuerzas armadas e 149
incluye a las comunidades y familias, y una presión que fuerza
a las personas a desplazarse, lo que da paso a decisiones ar-

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


riesgadas en materia de migración. Si no se estudian respuestas
contra la trata en los esfuerzos humanitarios y de mantenimien-
to de la paz cuando surgen los conflictos, la vulnerabilidad de
las víctimas o las posibles víctimas de la trata es todavía mayor.
(NACIONES UNIDAS, 2016, p. 22-23)

Com efeito, a relação entre o tráfico de mulheres e os conflitos armados


tem sido constatada e discutida pela ONU em vários documentos. O relatório
recente sobre o tráfico de pessoas na conjuntura de conflitos armados, afir-
mou que “In 2016, more countries were experiencing some form of violent conflict
than at any other time in the previous 30 years. People living in conflict-affected
areas may experience abuse, violence and exploitation, including trafficking in per-
sons.” (UNODC, 2018-b, p. 5).

Nessa linha de raciocínio, as mulheres e meninas que vivenciam situações


de vulnerabilidade(s), como, por exemplo, exclusão, discriminação e que, ao
mesmo tempo, vivem em locais em que existem conflitos armados tendem a
ser as potenciais vítimas de uma variedade de práticas violatórias de direitos
humanos, notadamente o tráfico de mulheres e meninas para fins de explo-
ração sexual (NACIONES UNIDAS, 2014; NACIONES UNIDAS, 2016; UNODC,
2018-a; UNODC, 2018-b). Outra questão é que a presença de militares inter-
nacionais ou forças de manutenção de paz também pode agravar o risco de
tráfico de mulheres e meninas (NACIONES UNIDAS, 2014).
sumário

Estas situaciones preexistentes de exclusión, estigmatización y


discriminación hacia las mujeres, se exacerban en espacios en
donde predomina el conflicto armado, en el cual la violencia y
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

el uso de las diferentes formas de violencias promueven y vali-


dan relaciones de poder desiguales a partir de la imposición del
orden, el control y el castigo a través de la fuerza, según esque-
mas patriarcales en donde el ejercicio del poder y por ende de la
OS NOVOS DESAFIOS DOS

autoridad buscan cambiar y corregir aquello que para lo mas-


culino no debe ser así y que además bajo el marco del conflicto
armado queda a discreción de quien ejerce y tiene la autoridad,
para satisfacción y uso de sus propios fines. (OIM, s/d).

Nesse sentido, os conflitos armados podem ser apontados como um dos


fatores impulsionadores do tráfico de pessoas, junto com a pobreza, as di-
versas vulnerabilidades, a globalização, a discriminação de gênero, dentre
150 outros.21

Esse tipo de conflito, considerando as zonas geográficas com um Estado


OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

de direito fragilizado, além da falta de recursos para responder de manei-


ra adequada à criminalidade organizada nacional e transnacional, facilita a
ação das redes de tráfico de pessoas (UNODC, 2018-b). Isso ocorre tendo em
vista as condições de escassez da efetividade dos direitos básicos, o que faz
com que haja o agravamento da vulnerabilidade das possíveis vítimas.

Com relação ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, este


ocorre em zonas de conflito, a exemplo da África Subsaariana, África Seten-
trional e no Oriente Médio, Ásia Sudoriental, além de outras regiões. (UNODC,
2018-a).

De acordo com as informações contidas no Relatório sobre Tráfico de


Pessoas (UNODC) de 2018, nas zonas de conflito ocorre o seguinte fato: me-
ninas ou mulheres jovens se casam com homens para serem exploradas se-
xualmente em países próximos. Isso também foi documentado nos campos
de refugiados do Oriente Médio. Outro problema que ocorre em regiões de

21 [...] o impacto dos conflitos armados é complexo, disseminado e frequentemente


indiscriminado. Combatentes e civis de todas as idades sofrem. Mulheres, homens, meninas
e meninos são vítimas. Entretanto, o modo como mulheres, homens, meninas e meninos
vivenciam os conflitos armados normalmente são bastante diferentes. Mulheres e meninas
têm vulnerabilidades específicas que homens e meninos nem sempre possuem. Além disso,
assim como homens e meninos participam de conflitos contemporâneos, mulheres e meninas
também participam. As mulheres raramente têm os mesmos recursos que os homens, assim
como os mesmos direitos políticos, autoridade ou controle sobre suas circunstâncias e
necessidades. (ONU MULHERES; INSTITUTO IGARAPÉ, 2018, p. 33).
sumário

conflito, como África Central e Ocidental, Iraque, República Árabe Síria, o


sequestro de mulheres e meninas para fins de exploração sexual nas mãos
do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS). Assevera-se que, por igual, tem
acontecido o tráfico de mulheres e meninas para fins de matrimônio tempo-
rário, infantil ou forçado (UNODC, 2018-a; NACIONES UNIDAS, 2016).

151

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


Fonte: UNODC. Report on Trafficking in Persons, 2018.

Nessa linha de compreensão, nas zonas de conflito existe uma relação de


poder em que os denominados “grupos armados”, muitas vezes, podem utili-
zar o tráfico de pessoas como estratégia para impor o seu domínio territorial.
Os criminosos agem, ainda, se utilizando de meios para obter o controle das
vítimas (UNODC, 2018-b).

O tráfico de pessoas vinculado a conflitos raramente é identificado, abor-


dado e estudado e, por isso, as pessoas afetadas pelo tráfico de pessoas e
outras formas de violência em meio a conflitos armados raras vezes recebem
uma assistência, conforme largamente demonstrado pelos documentos in-
ternacionais. Isso representa um óbice genuíno para que haja a reintegração
da pessoa à sociedade. Nos dias atuais, as pessoas afetadas pelo tráfico hu-
mano enfrentam problemas, entre outros, como a discriminação e o estigma
de suas famílias e da sociedade, somados à falta de acesso à justiça etc.

Com isso, as pessoas em situação de tráfico (ou que vivenciaram esse


problema) continuam sendo as potenciais vítimas, o que dificulta ainda mais
a reabilitação e reintegração na sociedade.
sumário

É preciso desagregar dados das vítimas e autores do delito por idade, gê-
nero, etnia e outras características. Isso ajudaria a ter um panorama para que
se pudesse entender o problema e, a partir desses dados, apontar soluções.
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Consideração finais
OS NOVOS DESAFIOS DOS

A exploração dos seres humanos é reflexo, especialmente, da busca de-


senfreada pela satisfação dos prazeres e pela aquisição de lucro por meio de
corpos sem rosto e sem identidade, considerados apenas naquilo que podem
oferecer enquanto mercadoria. Essa relação, sem dúvida, é agravada pelas
diferenças socioculturais entre os sexos, classes sociais, raça e etnia. Se se
considerar o outro como alheio, como estranho, como excluído, legitima-se
as violências que lhe são impostas.
152
A desigualdade de gênero desponta historicamente como um fenôme-
no de incidência global presente na prática do tráfico de pessoas, vez que
OS CONFLITOS ARMADOS COMO IMPULSIONADORES DO TRÁFICO DE MULHERES
CAPÍTULO 7

mulheres e meninas têm sido vastamente submetidas à exploração sexual


em decorrência desse delito. Na outra ponta desse “mercado”, os homens
emergem como os principais consumidores desses serviços, reforçando uma
cultura ancorada na redução do gênero feminino à condição de ser humano
secundário.

No amálgama dessas relações histórica e culturalmente fomentadas, ex-


pressa-se ainda na contemporaneidade uma conjuntura de conflitos arma-
dos, agravando a incidência de tráfico de pessoas, especialmente porque a
situação de vulnerabilidade social e econômica da população se acentua
de modo expressivo. A escassez de direitos básicos para assegurar o mínimo
de sobrevivência humana impulsiona diásporas, muitas vezes, ocorridas de
modo precário, expondo essa população a inúmeros riscos. As mulheres e
meninas, sem dúvida, são as mais afetadas, pois além das privações básicas
gerais, sofrem o risco da violência sexual, retrato de uma prática marcada-
mente machista e patriarcal presente praticamente em quase a totalidade
do território mundial.

Analisar essas categorias representa fator fundamental para trazer à luz


maiores informações sobre essa realidade e promover uma urgente sensibili-
zação em nível mundial das diversas violações que têm ocorrido nessas situ-
ações. Isso objetiva dar visibilidade ao problema e oferecer elementos para
que os Estados possam considerar a latente necessidade de promover estra-
tégias transnacionais e nacionais de enfrentamento do tráfico de mulheres e,
sumário

consequentemente, de proteção e assistência às vítimas do delito. Destaca-


-se, ainda, que a assistência aqui comentada se refere ao seu sentido amplo,
por meio da qual as pessoas afetadas possam ser incluídas na sociedade,
com oportunidades educacionais e laborais, de maneira a restarem consi-
deradas. Em suma, defende-se que somente por meio de uma emancipação
real as pessoas afetadas pelo tráfico poderão estar plenamente libertas.

153

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


sumário

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FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

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157

Mércia Cardoso de Souza, Priscila Nottingham


MYLENA MARIA SILVA REGINALDO FERREIRA GOMES - Mestra em Direito
Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Graduada em Direito pela
Universidade de Fortaleza. Defensora pública do Estado do Ceará. E-mail:
mylenamagomes@edu.unifor.br
8
CAPÍTULO 8

POLÍTICAS PÚBLICAS DE
SAÚDE DAS MULHERES NO
MUNICÍPIO DE FORTALEZA:
UM PANORAMA A PARTIR DA ATUAÇÃO
DA DEFENSORIA PÚBLICA NO ANO DE
2019
PUBLIC HEALTH POLICIES FOR WOMEN IN FORTALEZA
CITY: A PANORAMA FROM THE PERFORMANCE OF THE PUBLIC
DEFENDER IN 2019

MYLENA MARIA SILVA REGINALDO FERREIRA GOMES

https://doi.org/10.47658/20210108
sumário

Resumo
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

O objetivo deste artigo consiste em traçar um panorama da saúde pú-


blica da mulher no município de Fortaleza durante o ano de 2019. A saúde
pública foi erigida à categoria de direito fundamental de acesso universal a
OS NOVOS DESAFIOS DOS

partir do advento da Constituição Federal de 1988. Com o intuito de efetivá-


-la, foi instituído o Sistema Único de Saúde (SUS), com destaque para a par-
ticipação das mulheres, principais usuárias. As políticas públicas de saúde,
nesse contexto, devem focar nas especificidades desse grupo como forma
de corrigir desigualdades de poder entre mulheres e homens. Por meio da
coleta de dados estatísticos fornecidos pela Defensoria Pública do Estado
do Ceará, o presente tenta demonstrar que o dito sistema, no que tange à
160 saúde da mulher, possui várias deficiências. Com efeito, a Defensoria, desde
o ano de 2013, na Comarca de Fortaleza, possui um núcleo de atuação, tanto
CAPÍTULO 8
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DAS MULHERES NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA

judicial quanto extrajudicial, nessas demandas. Com fundamento nos dados


coletados, observou-se que a busca por atendimentos foi de quase 79% (se-
tenta e nove por cento) do total de atendimentos feitos pelo núcleo. Eviden-
ciou-se, no entanto, que as tais políticas públicas voltadas para mulheres são
insatisfatórias. Além da pesquisa empírica, foi feita pesquisa jurisprudencial
e bibliográfica.

Palavras-chave: Direito fundamental à saúde. Políticas públicas. Saúde


da mulher.

Abstract
The aim of this article is to outline an overview of women’s public health in For-
taleza city during 2019. Public health was erected to the category of fundamental
right of universal access from the advent of the Federal Constitution in 1988. In order
to effect it, the Unified Health System was established with emphasis on the par-
ticipation of women, main users. Public health policies, in such context, should fo-
cus on the specificities of this group as a way to correct power inequalities between
women and men. This article, from the collection of statistical data provided by the
Public Defender’s Office of the State of Ceará, tries to demonstrate that this system,
with regard to women’s health, has several deficiencies. In fact, since 2013, in For-
taleza, the Public Defender’s Office has a core of action, both judicial and extraju-
dicial, on these demands. From the data collected, it is possible to observe that the
sumário

search for healthcare was almost seventy-nine percent of the total number of care
services made by the core. It is evident, however, that such public policies aimed
at women are unsatisfactory. In addition to empirical research, jurisprudential and
bibliographic research were carried out.

Keywords: Fundamental right to health. Public policies. Women’s health.

Introdução

O direito fundamental à saúde nasceu com a Constituição Federal de


1988, a qual determinou que a saúde é um direito de todos e cabe ao Estado
assegurá-la, de forma universal e integral, por intermédio do Sistema Único
de Saúde - SUS.

Em termos históricos, verifica-se que foi um avanço, sem precedentes, 161


pois anteriormente não havia um sistema de proteção e de promoção da

Mylena Maria Silva Reginaldo Ferreira GomeS


saúde pública, mas de medidas verticalizadas e centralizadas no Governo
Federal para a saúde. Muitas destas se resumiam ao controle de epidemias
e de saneamento, este último, principalmente, nas cidades portuárias1. Desse
modo, anteriormente, o direito à saúde não possuía um comando constitucio-
nal expresso, apenas algumas disposições esparsas. Tratar tal direito como
um direito fundamental e voltar-se para sua sistematização somente foram
ações possíveis a partir da CF/882. Essa tomada de consciência da importân-

1 Como exemplo de medidas verticalizadas voltadas para o combate às epidemias,


pode-se citar a criação do Código Sanitário em 1903, pelo então diretor-geral da saúde pública
Oswaldo Cruz, cargo que hoje corresponde ao de Ministro da Saúde, no Governo de Rodrigues
Alves. É com a instituição deste código sanitário que uma série de medidas impopulares
foram introduzidas, a saber: desinfecção, o arrasamento de edifícios considerados nocivos
à saúde, notificação permanente de casos de doenças graves, bem como instituição da
quarentena para isolamento dos doentes. Mas a principal estratégia verificada foi em relação
à obrigatoriedade da vacinação. Devido aos métodos nada ortodoxos de vacinação, esta
acarretou grande insatisfação da população, o que deu origem a Revolta da Vacina, verificada
na capital da República, em 1904 (BAPTISTA, 2007, p. 34).
2 Como informam Sarlet e Figueiredo (2008, p. 126), antes de 1988, o direito à saúde
contava com algumas disposições esparsas nos textos constitucionais anteriores a 1988,
dentre as quais podem ser citadas: a garantia dos socorros públicos (art. 179, XXXI da
Constituição Federal de 1824) e a garantia de inviolabilidade do direito à subsistência (art. 113,
caput da Constituição Federal de 1824). Indiretamente, no que concerne à competência entre
os entes federados, que assim englobavam a saúde, podemos elencar: art. 5º, XIX, “c”, e art. 10,
II da Constituição Federal de 1934; art. 16, XXVII e art. 18, “c” e “e”, da Constituição Federal de
1937; art. 5º, XV, “b” e art. 6º, da Constituição Federal de 1946; art. 8º, XIV e XVII, “c”, e art. 8º,
§ 2º da Constituição Federal de 1967. Percebe-se que tratar o direito à saúde como um direito
social e fundamental foi algo que ocorreu apenas pós 1988.
sumário

cia de conferir status constitucional a muitos direitos sociais, embora tenha


se consolidado no Brasil em 1988, já era uma situação constante em muitas
constituições no plano internacional. A positivação de direitos fundamentais
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

sociais no texto constitucional, notadamente o direito à saúde, consoante


Sarlet e Figueiredo (2008, p. 126), é considerada um dos principais avanços
da CF/88, ligando-se, portanto, ao constitucionalismo de cunho social-demo-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

crático desenvolvido, sobretudo, após a II Guerra Mundial3. No caso do Brasil,


bastou, no entanto, em conformidade com Sarlet (2002, p. 335), que fossem
contemplados no texto constitucional os direitos sociais, tais como saúde,
educação, assistência social, previdência social, enfim, todos os direitos fun-
damentais que necessitem de atuação estatal positiva, inclusive com aporte
de recursos materiais, para que se questionasse acerca da sua fundamentali-
dade e da possibilidade de sua efetivação plena.
162
Destaque-se que, além de ser um direito do cidadão, de acordo com o
art. 196 da CF/88, configura-se como dever do Estado a sua promoção, razão
CAPÍTULO 8
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DAS MULHERES NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA

pela qual se está diante de um direito e de um dever fundamental.

Nessa perspectiva, Sarlet e Figueiredo (2008, p. 130-131) informam que os


deveres fundamentais relacionados ao direito à saúde podem impor obri-
gações originárias, como as políticas de implementação do SUS, ou impor
obrigações derivadas, que dependem da legislação infraconstitucional regu-
ladora da matéria. A dimensão do direito fundamental à saúde, prevista no
art. 196, alberga, além da prevenção, a promoção e a recuperação da saúde.

Em se tratando de gênero, muito embora no plano constitucional assegu-


re-se a igualdade, esta tem se verificado apenas formalmente, pois os desní-
veis constatados entre homens e mulheres, em decorrência de fatores sociais
e econômicos, têm se mantido.

As medidas de acesso à saúde da população feminina, efetivamente, só


passaram a se desenvolver nas últimas décadas do século passado4, fato este

3 Historicamente, o primeiro país a albergar em seu texto constitucional os direitos


sociais, econômicos e culturais, foi o México que, em 1917, ao dispor acerca da organização da
atividade econômica, inseriu uma série de direitos sociais. Como informa Tavares (2017, p. 713),
é esta a primeira constituição a prever expressamente direitos sociais em favor das classes
mais desprotegidas. Anteriormente, tínhamos um constitucionalismo sem preocupação com
assuntos socioeconômicos, de matriz político liberal, em que a pauta de reivindicações era a
proteção à propriedade privada, à liberdade e a igualdade, esta última apenas formal.
4 Cabe destacar que as primeiras medidas de saúde da mulher, no caso do Brasil,
começaram a ser implementadas nas primeiras décadas do século passado, mas de forma
limitada à gravidez e ao parto (BRASIL, 2004, p. 15). Era visível a redução da mulher à condição
sumário

que, por si só, já demonstra desigualdades. Medidas como amparar as víti-


mas de violência doméstica, as vítimas de estupro que sofrem com gravide-
zes indesejadas e que, portanto, têm direito ao abortamento seguro e dentro
da rede pública de saúde, somente passaram vigorar no final do século pas-
sado, por meio de uma política pública de monitoramento da rede e de seus
resultados. Um exemplo disso foi a Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde da Mulher – PNAISM, que foi instituída pelo Ministério da Saúde em
1984 (BRASIL, 2004, p. 16). Enfim, a política pública efetiva de saúde da mu-
lher não pode se resumir ao tratamento ginecológico e de exames de preven-
ção ao câncer de mama.

No que concerne ao acesso à saúde pública para mulheres, o SUS deve


ter uma atenção prioritária no desenvolvimento de políticas públicas, como
forma de dirimir as desigualdades de gênero verificadas, que se refletem nas
163
condições de saúde da mulher.

Mylena Maria Silva Reginaldo Ferreira GomeS


Com efeito, a criação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
da Mulher – PNAISM5 tem como objetivo verificar se as ações de saúde pú-
blica, desenvolvidas pelas secretarias de saúde, tanto estaduais e municipais,
estão efetivamente contribuindo para que as políticas de saúde voltadas
para mulheres sejam exitosas, não apenas quanto a monitorar as políticas
que surgirem, mas também quanto a manter ou modificar as estratégias já
existentes. Portanto, deve-se partir da premissa de que o acesso à saúde para
mulheres, tal qual constatado nos últimos anos, não deve ficar adstrito a atu-
ações relacionadas à concepção materna e ao parto. Em verdade, a com-
plexidade das necessidades femininas engloba não apenas a saúde sob o
aspecto ginecológico, mas também os desníveis verificados por conta de sua
condição feminina, que possui uma maior jornada de trabalho, que ocupa
grande parte de seu tempo com atividades sem remuneração e que, por isso,
ficam excluídas do acesso à saúde pública.

de dona de casa e reprodutora, que eram medidas verticalizadas no Governo Federal, sem a
ampla participação social.
5 A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – PNAISM do Ministério
da Saúde encampou como uma das áreas de atuação prioritária da saúde da mulher. Tem
como compromisso a implementação de ações de saúde prioritárias que reduzam as causas
de mortalidade femininas mediante ações tanto preventivas quanto curativas (BRASIL, 2004).
As mais variadas ações da saúde da mulher encontram no PNAISM um vetor de efetivação,
que engloba ações não apenas na saúde de concepção, mas, de igual modo, no tratamento
de mulheres que convivem com HIV/AIDS, de mulheres vítimas de estupro, de tratamentos
de câncer, portadoras de doenças crônicas, ou seja, uma variedade de linhas de atuação e
proteção.
sumário

De acordo com dados levantados no relatório do Fundo de População


das Nações Unidas – UNFPA, no ano de 2017, as desigualdades relaciona-
das às mulheres não se resumiam somente à maior taxa de desemprego, em
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

comparação com a população masculina, ou às diferenças de renda, mas


também albergavam desigualdades verificadas no acesso à saúde6. Interes-
sante ressaltar que o relatório destaca que direito universal é aquele que se
OS NOVOS DESAFIOS DOS

aplica a todas as pessoas indistintamente, independente de raça, religião,


local de residência e gênero. No entanto, a realidade mostra que o direito
universal está longe de ser exercido, com mulheres que ainda lutam para ter
acesso a serviços e métodos para evitar gravidez ou ter um parto seguro (SI-
TUAÇÃO..., 2017, p. 17).

É de bom alvitre salientar que atendimentos verificados pelo Sistema


Único de Saúde – SUS devem obedecer às diretrizes que estão previstas
164
constitucionalmente, em seu art. 198, no sentido de fomentar o atendimento
de forma descentralizada, integral, atuando prioritariamente na prevenção e
CAPÍTULO 8
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DAS MULHERES NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA

com a participação da comunidade.

Em decorrência da descentralização7 administrativa, que deve permear


a atuação no sistema público de saúde, grande parte dos atendimentos são
feitos pelos municípios, os quais são os responsáveis pela atenção básica,
levando-se em consideração as especificidades de cada região. Destarte, o
trabalho em apreço tenta apresentar um panorama de como a saúde públi-
ca da mulher dentro do município de Fortaleza tem se desenvolvido, a partir
dos atendimentos verificados pelo Núcleo de Defesa da Saúde da Defensoria
Pública Estadual.

Cabe mencionar que, em decorrência do aumento da demanda perante


a Defensoria Pública Estadual do Ceará, no que se refere à saúde pública8, foi

6 De acordo com o relatório do Fundo de População das Nações Unidas – UNFPA,


intitulado “Mundos distantes: saúde e direitos reprodutivos em uma era de desigualdade”,
publicado no ano de 2017, aponta-se que as mulheres estão mais suscetíveis às vulnerabilidades
sociais. Uma das deficiências apontadas diz respeito ao acesso às políticas públicas dos
direitos sexuais e sua garantia. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/
publi/unfpa/swp_2017.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2020.
7 O processo de descentralização da saúde pública desencadeou uma mudança na
forma de prestação dos serviços públicos de saúde. A descentralização, segundo Bodstein
(2002, p. 404), não significou apenas uma nova forma de administrar, mas permitiu um
maior controle e participação social na tomada de decisões, por intermédio dos Conselhos
Municipais de Saúde (CMS).
8 Em pesquisa apresentada pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ, as demandas
de saúde tiveram, em se tratando de primeira instância, durante os anos de 2008 a 2017, um
sumário

criado um núcleo especializado na matéria, o qual tem concentrado todos os


atendimentos feitos na Comarca de Fortaleza, a partir do que é provocado
pela comunidade. Portanto, os dois capítulos seguintes deste trabalho abor-
darão o direito fundamental à saúde pública, sob a perspectiva da Consti-
tuição Federal, bem como analisarão as políticas públicas voltadas para a
mulher e, por fim, apresentarão dados de como se têm pautado a questão do
acesso à justiça, na Comarca de Fortaleza, em se tratando de saúde pública,
não se olvidando que os estudos são elaborados sob a ótica de gênero.

1. O direito fundamental à saúde pública e as políticas públicas


de saúde da mulher

No que concerne ao direito à saúde, a Constituição Federal estabelece,


em seu art. 6º que: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, 165
o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social,

Mylena Maria Silva Reginaldo Ferreira GomeS


a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição. ”. Já no art. 196 firma: “A saúde é direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que vi-
sem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal
e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recupera-
ção.” (BRASIL, 1988, on-line).

Assim, a partir da Constituição Federal de 1988, a prestação dos serviços


públicos de saúde não mais estaria restrita a uma parcela da população. To-
dos os cidadãos passariam a ser titulares do direito à saúde. Daí o seu caráter
universal, isonômico e integral.

Desta maneira, muito mais do que uma mera disposição de direitos e


deveres imposta ao atual Estado, o direito à saúde deve ser visto sob sua
condição de um direito fundamental que engloba tanto aspectos formais,
quanto materiais.

O direito fundamental à saúde, formalmente previsto na Constituição Fe-


deral, refere-se à sua positivação, que se desdobra em três elementos:

aumento de 130% (cento e trinta por cento) nas demandas que tramitaram perante os juízos
singulares. O último relatório do Conselho Nacional de Justiça, publicado em maio de 2019,
retrata um levantamento com base na Lei de Acesso à Informação, nº 12.527, publicada em
18 de novembro de 2011. Disponível em: <https://static.poder360.com.br/2019/03/relatorio-
judicializacao-saude-Insper-CNJ.pdf>. Acesso em: 30 maio 2019.
sumário

como parte integrante da Constituição escrita, sendo que os direitos fun-


damentais se encontram no ápice;

na condição de normas fundamentais insertas na Constituição escrita,


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

encontrando-se submetidas a condições especiais para sua alteração, tanto


materiais (cláusulas pétreas), quanto formais (procedimento agravado), da
reforma constitucional;
OS NOVOS DESAFIOS DOS

de acordo com o art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, trata do caráter


vinculante e diretamente aplicável das normas definidoras de direitos e ga-
rantias fundamentais.

Já o direito fundamental à saúde, sob a perspectiva material, diz respeito


à relevância do bem jurídico tutelado pela ordem constitucional. Destaque-se
que, de acordo com o art. 196 da CF/88, o direito à saúde, além de ser um
166 direito do cidadão, figura como dever do Estado quanto à efetiva promoção,
razão pela qual se está diante de um direito e de um dever fundamental.
CAPÍTULO 8
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DAS MULHERES NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA

Nesse contexto, Sarlet e Figueiredo (2008, p. 130-131) informam que os de-


veres fundamentais relacionados ao direito à saúde podem impor obrigações
originárias, como as políticas de implementação do SUS, ou impor obriga-
ções derivadas, que dependem da legislação infraconstitucional reguladora
da matéria.

Nos termos da legislação, a Lei n. 8.080, publicada em 19 de setembro


de 1990, dispõe, em seu art. 2º, que a saúde “é um direito fundamental do ser
humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício”. A garantia da saúde deve ser promovida pelo Estado por intermé-
dio da reformulação e da execução de políticas econômicas e sociais que
visem a redução dos riscos de doenças e outros agravos à saúde.

Destarte, a garantia da saúde, efetivamente, deve consolidar-se, no plano


da Administração Pública, a partir da implementação das políticas públicas
que são de fundamental importância para a concretização não apenas do
direito à saúde, mas de todos os direitos previstos constitucionalmente.

1.1 O que se entende por políticas públicas de acesso à saúde da mulher


A partir do enfoque dado à seara do direito fundamental à saúde, urge a
necessidade de compreender as políticas públicas como meio para a concre-
tização desse direito. Dessa maneira, esta subseção abordará a importância
sumário

que as políticas públicas possuem como forma de efetivação do direito fun-


damental à saúde.

Independente de se tratar de um direito fundamental de cunho positivo


ou negativo9, existe a necessidade de se entender que tais direitos, sem uma
atuação prestacional do Estado, tendem ao insucesso. Assim, as políticas pú-
blicas atuam como categoria jurídica que busca concretizar os direitos so-
ciais. De acordo com Lopes (1998, p. 130), a importância da política pública é
verificada à medida que os direitos, para terem eficácia, necessitam de uma
ação concreta do Estado, e não apenas da possibilidade de agir em juízo.
Para tanto, a prestação dos serviços públicos para efetivação do direito à
saúde depende da existência de meios concretos: hospitais, postos de saúde,
centro de reabilitação, entre outros.

Assim, as políticas públicas englobam um complexo de decisões, normas 167


e meios para sua efetiva promoção. Seguindo esta mesma linha de enten-

Mylena Maria Silva Reginaldo Ferreira GomeS


dimento, Bucci (2006, p. 38) define políticas públicas como os programas de
ação governamental que visam coordenar meios disponíveis pelo Estado
para a realização dos objetivos socialmente relevantes e predeterminados10.
Cabe ainda inferir que não apenas os meios para a efetivação dos direitos
sociais devem ser almejados pelo Estado, é mister que as políticas públicas
tracem objetivos e planos de governos para buscar a plena efetivação dos
direitos, no caso em estudo, quanto ao direito à saúde da mulher.

Nessa perspectiva, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da


Mulher – PNAISM busca, através de parcerias com diversos segmentos da
sociedade e dos entes públicos, criar uma rede de empoderamento feminino.
A vulnerabilidade feminina é muito mais decorrente de fatores econômicos,
culturais e sociais do que de fatores biológicos (BRASIL, 2004, p. 9).

Por estar inserido dentro do sistema público de saúde, o PNAISM deve


incorporar os princípios e diretrizes das ações e serviços públicos de saúde
que incluem a descentralização, o atendimento de forma integral, preconi-
zando as ações preventivas e a participação da comunidade (art. 198, CF/88)
(BRASIL, 1988, on-line).

9 Não é enfoque deste trabalho analisar as várias teorias acerca dos direitos
fundamentais, mas o fato é que a divisão dos direitos fundamentais em positivos e negativos
depende da atuação estatal para sua conformação e concretização.
10 Adota-se aqui um conceito de políticas públicas eminentemente público, embora
não se desconsidere a existência de participação das instituições privadas para a realização
das políticas públicas.
sumário

A descentralização administrativa, por meio da atuação dos Municípios,


é verificada a partir da Atenção Básica da Saúde, que passou a ser de res-
ponsabilidade da municipalidade e é a principal porta de atuação da saúde
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

pública.11 12Como dito, entre as diretrizes do atual sistema público de saúde,


encontra-se a descentralização administrativa, com direção única em cada
uma das esferas de governo (inciso I, do art. 198, da Constituição Federal)
OS NOVOS DESAFIOS DOS

(BRASIL, 1988, on-line).

A garantia constitucional de um sistema público de saúde, de maneira


descentralizada, somente ocorreu com a edição das Leis nº 8.080 e 8.142,
ambas de 1990. Estas leis, além de estabelecerem as normas gerais para o
funcionamento da saúde, determinaram as transferências de recursos finan-
ceiros para que os serviços públicos de saúde fossem implementados a nível
municipal.
168
Contudo, somente com a edição da Norma Operacional Básica (NOB) do
SUS, publicada em 1993, NOB/93, por intermédio da Portaria n. 545/93, é que
CAPÍTULO 8
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DAS MULHERES NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA

efetivamente se iniciou o processo de descentralização administrativa das


ações e serviços de saúde.

No entanto, atualmente, mesmo sendo de competência dos municípios


a responsabilidade pela Atenção Básica na Saúde, é fato que os municípios
não gozam de plenas condições estruturais para promoverem um atendi-
mento efetivo dos diversos segmentos da sociedade e isto se aplica à saúde
da mulher.

1.2 A atuação descentralizada na saúde em atenção básica do Município de


Fortaleza
A nível municipal, a principal forma de planejamento do SUS é por meio
do Plano Municipal da Saúde (PMS)13, que deverá contemplar as principais

11 No caso da descentralização da Atenção Básica da Saúde, ver Norma Operacional


da Assistência à Saúde – NOAS 2001, que foi responsável pela ampliação da responsabilidade
dos municípios com a atenção básica de saúde.
12 O entendimento do que é Atenção Básica encontra-se na Política Nacional
de Atenção Básica – PNAB, que em seu art. 2º, do Anexo XXII, destaca: a Atenção Básica
é o conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas que envolvem promoção,
prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos, cuidados
paliativos e vigilância em saúde, desenvolvida por meio de práticas de cuidado integrado e
gestão qualificada, realizada com equipe multiprofissional e dirigida à população em território
definido, sobre as quais as equipes assumem responsabilidade sanitária.
13 O Plano Municipal de Saúde do Município de Fortaleza foi editado para
sumário

necessidades da população em um recorte temporal de quatro anos, apon-


tando qual caminho a gestão deverá se basear. De acordo com as áreas de
atuação da saúde da mulher, previstas no PNAISM, a atuação em saúde da
mulher não deve ficar restrita ao pré-natal, mas englobar uma multiplicidade
de áreas, senão vejamos: prevenção da mortalidade materna; redução da
precariedade da atenção obstétrica; direito ao abortamento em condições
de riscos; assistência contraceptiva; combate às doenças sexualmente trans-
missíveis, HIV/AIDS; combate à violência doméstica e sexual; saúde da mu-
lher adolescente; saúde da mulher durante o climatério/menopausa; direito
à saúde mental; tratamento das doenças crônico-degenerativas e de câncer
ginecológico; saúde das mulheres lésbicas; saúde das mulheres negras; saúde
das mulheres indígenas; saúde das mulheres do campo e saúde das mulheres
encarceradas14. No caso do Município de Fortaleza, a atuação na saúde pú-
blica inicia-se nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Ocorre que, mesmo que 169
haja a atuação descentralizada, voltada para o atendimento integral, pode

Mylena Maria Silva Reginaldo Ferreira GomeS


haver situações nas quais a população feminina se depare com a ausência
de atendimento em determinados serviços que devem ser ofertados pelo sis-
tema público de saúde, por intermédio da atenção básica.

Diante da ausência ou deficiência de atendimento, uma das vias encon-


tradas para fazer valer o acesso à saúde de forma ampla a integral tem sido
a judicialização da saúde ou a resolução extrajudicial das demandas.

1.3 Os reflexos dos atendimentos da Defensoria Pública do Estado do Ceará


em matéria de saúde pública
Nestes termos, a Defensoria Pública do Estado do Ceará, de forma exito-
sa, tem atuado tanto judicialmente, quanto extrajudicialmente, no acesso à
saúde pública no Estado do Ceará, servindo de meio para que demandas da
comunidade sejam efetivadas. No último caso, ou seja, na atuação extraju-
dicial, a defensoria pública, por intermédio de convênios feitos com os mais
diversos prestadores de serviços públicos de saúde, tem contribuído para que
um número significativo demandas, em se tratando de saúde pública, não
sejam judicializadas15. Isto, de igual modo, aplica-se à saúde da mulher.

o quadriênio 2018-2012. Disponível em: <https://saude.fortaleza.ce.gov.br/images/


planodesaude/20182021/_Plano-Municipal-de-Saude-de-Fortaleza-2018-2021_.pdf>. Acesso
em: 05 fev. 2020.
14 Os segmentos da atenção da saúde da mulher encontram-se minimamente descritos
na PNAISM. (BRASIL, 2004, p. 26-57).
15 Com efeito, deve-se frisar que as demandas de saúde recebidas pela Defensoria
sumário

Digno de registro que as defensorias públicas, em se tratando de acesso à


justiça, tem desempenhado um papel relevante na busca e efetivação da jus-
tiça social, e por se tratar de uma das funções essenciais da justiça16, tem efe-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

tivamente contribuída para a efetivação dos direitos fundamentais previstos


constitucionalmente, dentre os quais o direito à saúde. Cabe destacar que, di-
ferentemente do pode-se concluir, esta atuação não é unicamente sob a es-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

fera judicial, pois muitas das demandas de saúde atendidas pela Defensoria
Pública do Estado do Ceará são resolvidas extrajudicialmente. As demandas
judicializadas apenas são decorrentes de casos em que o pedido feito dire-
tamente pela defensoria pública recebe resposta negativa das secretarias
de saúde, quer municipal ou estadual. Isto em se tratando da Comarca de
Fortaleza. Portanto, os dados apresentados neste trabalho levam em consi-
deração, unicamente, as demandas de saúde pública desta comarca.
170
Levando em consideração os atendimentos feitos pela defensoria pública
estadual durante o ano de 2019, verifica-se que foram feitas aproximada-
CAPÍTULO 8
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DAS MULHERES NO MUNICÍPIO DE FORTALEZA

mente 11 mil solicitações de saúde pública. Deste total, cerca de quase 79%
(setenta e nove por cento) são de solicitações feitas por assistidas do sexo
feminino.

Observa-se, pelos dados apresentados que, muito embora exista o


PNAISM, a realidade aponta que as políticas públicas de saúde voltadas para
a saúde feminina não estão sendo efetivamente desenvolvidas, no caso do
Município de Fortaleza. O que demonstra também que a maioria dos aten-
dimentos feitos pela Defensoria Pública em matéria de saúde pública tem
como principais demandantes a população do sexo feminino.

Pública do Estado do Ceará, apenas são efetivamente judicializadas quando a demanda


recebe resposta negativa das secretarias de saúde, tanto do município quanto estadual. Foi
firmado um termo de parceria com a Secretaria de Saúde do Município de Fortaleza e com a
Secretaria de Saúde do Estado do Ceará em que, via correio eletrônico, é feita a solicitação
pela defensoria pública para atendimento da demanda, caso a resposta seja negativa, é que
a ação é judicializada.
16 Nos termos do art. 134 da Constituição Federal: a Defensoria Pública é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e
instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção
dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos
individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso
LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
80, de 2014).
sumário

171
Fonte: Defensoria Pública Estadual do Estado do Ceará. Demanda de saúde pública. Ano 2019.

Mylena Maria Silva Reginaldo Ferreira GomeS


Conclusão

Com efeito, diante dos dados apresentados nesta pesquisa, é possível


concluir que, em se tratando de saúde da mulher, mesmo existindo esforços
dos entes públicos em tentar dirimir as desigualdades verificadas entre ho-
mens e mulheres, em decorrência do gênero, a questão do acesso à saúde
para mulheres tem um longo caminho por percorrer.

É sabido que as desigualdades de gênero não são decorrentes de fatores


biológicos, mas de fatores sociais, culturais e financeiros, que contribuem para
uma consolidação deste desnível. No entanto, as políticas públicas devem ser
desenvolvidas e implementadas como forma de dirimir estas desigualdades.
Tais políticas públicas não devem ser entendidas apenas como uma carta de
intenções, mas como contributos ativos para a mudança de paradigma.

No caso do Município de Fortaleza, a partir dos casos que chegam ao


núcleo de saúde pública da Defensoria Pública Estadual, demonstra-se que
as políticas públicas de saúde não têm, efetivamente, contribuído para uma
igualdade de gênero, em se tratando de acesso ao sistema público de saúde.
sumário

Referências
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

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CAPÍTULO 8
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promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
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sumário

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173

Mylena Maria Silva Reginaldo Ferreira GomeS


RAQUEL ANDRADE DOS SANTOS - Graduada em Direito pelo Centro
Universitário Estácio do Ceará. Especialista em Direito e Processo do
Trabalho. Mestranda em Avaliação de Políticas Públicas pela Universidade
Federal do Ceará - UFC. Membro da Associação Brasileira de Juristas pela
Democracia - ABJD. Presidente da Comissão da Promoção da Igualdade
Racial e Vice- presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB
seccional Ceará. Membro efetivo do Conselho Cearense dos Direitos da
Mulher do Estado do Ceará. Atuou como Assessora na Procuradoria Geral
do Município e Coordenadora Jurídica da Secretaria de Direitos Humanos
de Fortaleza. Possui experiência em Gestão Pública, Políticas Públicas em
Direitos Humanos e Políticas Públicas para Mulheres e Igualdade Racial.
Atualmente é Coordenadora da Procuradoria Especial da Mulher da
Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. E-mail: raquelandradesdh@
gmail.com
9
CAPÍTULO 9

O JUSFEMINISMO COMO MEDIDA


DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA
JURÍDICA DE GÊNERO:
UMA ANÁLISE CRÍTICA DO PATRIARCALISMO NO
DIREITO BRASILEIRO
JUSFEMINISM AS A MEASURE TO FACE GENDER LEGAL VIOLENCE: A CRITI-
CAL ANALYSIS OF PATRIARCHALISM IN BRAZILIAN LAW

RAQUEL ANDRADE DOS SANTOS

https://doi.org/10.47658/20210109
sumário

Resumo

A violência de gênero historicamente constituída nas relações sociais no


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Brasil mostrou-se também deveras presente no ordenamento jurídico, en-


quanto agente de violação dos direitos das mulheres por ação, omissão ou
negação. No presente estudo, optou-se por percorrer a inserção histórica do
OS NOVOS DESAFIOS DOS

patriarcalismo no direito brasileiro, considerando questões gênero-raciais,


no intuito demonstrar a urgência na desconstrução de tais elementos por
meio de um horizonte teórico feminista. Propõe-se a inserção da perspectiva
jusfeminista no campo das ciências jurídicas, enquanto instrumento técnico-
-científico, no intuito de ressignificar os papéis sociais de gênero. O estudo
intenta elaborar, por intermédio de uma pesquisa bibliográfica e documental,
uma análise crítica da legislação e dos conceitos que atravessam a discussão
176 acerca da garantia dos direitos das mulheres e da masculinidade, enquanto
condição de violência instrumentada pela norma. Por fim, pretende-se de-
CAPÍTULO 9
O JUSFEMINISMO COMO MEDIDA DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA JURÍDICA DE GÊNERO

monstrar que a desconstrução do machismo, racismo e sexismo decorrentes


da estruturação patriarcal do ordenamento jurídico é medida que ultrapassa
a questão de gênero e visa promover a igualdade material e justiça social.

Palavras-chave: Jusfeminismo. Direito. Mulheres. Patriarcalismo.

Abstract
Gender violence appears in Brazilian history, social relations also in our legal
system, as an agent of violation of women’s rights by action, omission, or denial.
In this article, I examine the historical insertion of patriarchalism in Brazilian law,
considering gender and racial issues, to show the urgency in deconstructing such
elements through a feminist theory. It is proposed to insert the Jusfeminism’s per-
spective in the legal sciences Field, as a technical-scientific instrument, to resignify
the social roles of gender. This paper proposes a critical analysis of legislation and
concepts about the discussion about guaranteeing women’s rights and masculinity
as a condition of violence instrumented by law. This article intends to demonstrate
that the deconstruction of machismo, racism and sexism resulting from the patriar-
chal structuring of the legal system is a measure that goes beyond the gender issue
and aims to promote material equality and social justice.

Keywords: Jusfeminism. Right. Women. Patriarchy.


sumário

Introdução

O patriarcalismo, enquanto fenômeno histórico e cultural, aderiu umbili-


calmente à ciência jurídica, de modo que o Estado brasileiro se tornou agente
de violação instrumentada pela norma. Discutir o feminismo como perspec-
tiva teórico-normativa no ordenamento jurídico sugere uma reparação his-
tórica, em razão da violência jurídica de gênero-raça imposta a gerações de
mulheres por séculos.

Quanto aos procedimentos, utilizou-se a pesquisa documental e quanto


à abordagem, a pesquisa qualitativa como melhor metodologia para rea-
lização deste trabalho. A aplicação do método exploratório no estudo da
legislação brasileira restou fundamental para demonstrar a necessidade de
integração científica da perspectiva feminista no âmbito jurídico, objetivo
177
central deste trabalho. Ademais, a releitura sistemática da literatura femi-
nista indicou a necessidade de interlocução técnico-científica com a ciência

Raquel Andrade dos Santos


jurídica, de modo que provocasse uma análise crítica da aderência de uma
Teoria Feminista do Direito no citado campo.

Nessa toada, a escolha de mulheres negras e não negras para compor a


maioria dos autores que subsidiam esta produção ocorre pela necessidade
de interromper o silenciamento científico de gênero e raça no campo do Di-
reito. Em regra, quando são reconhecidas, as doutrinadoras escrevem sobre
temas limitados a áreas específicas do campo jurídico, em consequência da
subalternização científica decorrente da condição de gênero e raça. Assim, o
estudo de questões epistemológicas, axiológicas e teleológicas que conferem
sentido e significação às ciências jurídicas são masculinizadas. Justifica-se a
presente discussão pela necessidade de desconstrução do controle mascu-
linizado de narrativas, significação e constituição das ciências jurídicas por
meio da desintegração do patriarcalismo do ordenamento jurídico brasileiro.
O jusfeminismo se apresenta como alternativa científica para o deslocamen-
to teórico e pragmático de tal elemento sociocultural que induz a reprodução
do machismo estrutural por meio da norma.

Por fim, a presente investigação intenciona provocar a discussão crítica


da proposta de integração do jusfeminismo como viés teórico-normativo no
Direito brasileiro, além de demonstrar que a proposta transcende a afirma-
ção coletiva dos direitos das mulheres, mas representa medida de efetivação
da igualdade material e justiça social.
sumário

1. Uma análise crítica do patriarcalismo no direito brasileiro

O modelo ocidental para o exercício de papéis sociais impostos a homens


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

e mulheres ainda constitui traço marcante herdado do processo histórico da


colonização portuguesa no Brasil. O conservadorismo cristão tornou-se fun-
damento na formação das estruturas sociais brasileiras, cujo resultado foi
OS NOVOS DESAFIOS DOS

a instituição da cultura patriarcal inicialmente representada pela oligarquia


rural, que introjetou a ideia da supremacia do masculino frente à condição
feminina.

O controle sociopolítico das instituições públicas e privadas pelos ho-


mens em detrimento das mulheres resultou no domínio das narrativas sociais,
produção de conhecimento e luta por direitos. Tal fenômeno repercutiu na
esfera jurídica e na formação e constituição das ciências jurídicas no Brasil.
178
A ausência da participação política das mulheres em decorrência do con-
finamento doméstico ocasionou o silenciamento social individual, no que diz
CAPÍTULO 9
O JUSFEMINISMO COMO MEDIDA DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA JURÍDICA DE GÊNERO

respeito a defesa de interesses comuns e coletivos, quando impedidas de fa-


lar enquanto representantes de extratos nos quais estavam inseridas.

Em análise crítica da teoria do discurso historicamente dominado pela


masculinidade, a historiadora Mary Beard expõe o caráter misógino e autori-
tário no domínio das narrativas:

Em outras palavras, as mulheres podem, em circunstân-


cias extremas, defender publicamente os próprios interes-
ses setoriais, mas não podem falar pelos homens nem pela
comunidade como um todo. (BEARD, 2018, p. 25)
[...] Essa “mudez” não é apenas um reflexo do esvaziamento
geral do poder feminino em todo mundo clássico: nenhum
direito de voto, independência legal e econômica limitada
[...] mas estamos lidando com uma exclusão muito mais
ativa e intensa das mulheres do discurso público - e com o
impacto muito maior do que em geral reconhecemos em
nossas próprias tradições, convenções isso posições rela-
cionadas a voz feminina. (BEARD, 2018, p. 28)

A naturalização da mudez e invisibilidade das mulheres, culturalmente


instituídas pelo patriarcalismo, induz a ausência de representatividade fe-
minina na produção e aplicação do conhecimento. Nesse sentido, qualquer
mudança significativa na esfera jurídica quanto a efetivação dos direitos das
mulheres requer a retomada do manejo das narrativas, por meio de represen-
sumário

tação feminina nos espaços de poder. Sem a representatividade qualitativa


decorrente da ocupação de locais de poder, o direito brasileiro permanece
um conglomerado de narrativas jurídicas masculinas que sustenta o cenário
de múltiplos privilégios em razão do gênero.

O patriarcado é definido como um dos sistemas de manutenção de pri-


vilégios que impõe um estado de opressão e injustiça em face das mulheres.
Já o machismo pode ser determinado como um modo de ser que privilegia e
impõe a superioridade dos homens a todos os demais indivíduos, em razão
da masculinidade (TIBURI, 2018).

O feminismo surge como movimento político, social e ideológico de ga-


rantia de direitos a partir da ressignificação dos papéis sociais predetermi-
nados em razão da condição de gênero. Ao passo que o machismo induz a
reprodução de condutas, que mantém condições de desigualdades, o femi- 179
nismo visa a emancipação das mulheres com vistas à garantia de equidade

Raquel Andrade dos Santos


e justiça e não a sobreposição de privilégios.

Nesse sentido é imprescindível destacar a contraposição teórica ideológi-


ca entre o feminismo e o sistema patriarcal:

[...] o feminismo teórico não é apenas uma defesa do


pensamento livre ponto ele é o próprio pensamento livre.
Como postura prática de oposição a ordem concreta, o
feminismo nasce de uma desconstrução teórica profunda.
o patriarcado é um sistema de pensamento que reserva
para si a pretensão da verdade. [...] o feminismo surge,
portanto, como desmontagem do patriarcado, ele mesmo
um sistema de injustiças. (TIBURI, 2018, p. 68-69)

Ao tratarmos da politização das perspectivas de gênero, cumpre men-


cionar a filósofa francesa Simone de Beauvoir. Na obra atemporal O Segundo
Sexo, de 1949, a intelectual realiza profunda investigação acerca das signifi-
cações de hierarquias que inferiorizam os papéis existenciais da Mulher em
relação aos homens. A categoria do outro beauvoiriano deve ser considerada
para tratar de qualquer discussão que envolva o sistema patriarcal ou quais-
quer outros sistemas de manutenção de desigualdades.

Nessa toada, a filósofa brasileira Djamila Ribeiro, na obra Lugar de Fala,


investiga o citado conceito a partir do pensamento da intelectual europeia:
sumário

Para a filósofa francesa, a mulher foi constituída como o


outro, pois é vista como objeto, na interpretação que Be-
auvoir faz do conceito do “em si” sartreano. De forma sim-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

ples, seria pensar na mulher como algo que possui uma


função. [...] seres humanos não deveriam ser pensados da
mesma forma pois isso seria destituir-lhes de humanidade.
(RIBEIRO, 2019, p. 36-37)
OS NOVOS DESAFIOS DOS

Apesar da perspectiva exclusiva de gênero, que toma como referência


mulheres brancas, percebe-se que a mulher ocupa compulsoriamente um lu-
gar de subordinação em relação ao homem, simplesmente pela sua condição
de gênero.

Entretanto, não há como investigar a inferiorização existencial das mu-


lheres no Brasil considerando a perspectiva de gênero dissociada das ques-
180 tões raciais e de classe. Como já mencionado, o processo de escravização e
a chegada do povo negro no Brasil-colônia nesta condição marcaram pro-
CAPÍTULO 9
O JUSFEMINISMO COMO MEDIDA DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA JURÍDICA DE GÊNERO

fundamente as estruturas sociais no que se refere à introjeção do machismo


e racismo estruturais, os quais edificam o sistema capitalista, paladino das
desigualdades.

Já na obra Mulheres, Raça e Classe, a intelectual e feminista estadunidense


Angela Davis expõe a dinâmica de uma ordem social de exclusão baseada
no sistema capitalista estruturado pelo racismo e sexismo.

A autora narra interessante fenômeno histórico que interrelaciona a luta


abolicionista promovida por mulheres brancas, com a atuação política para
fortalecimento dos direitos civis destas mulheres:

O movimento antiescravagista oferece às mulheres de


classe média uma oportunidade de provar seu valor de
acordo com parâmetros que não estavam ligados a seus
papéis sociais como esposas e mães. Nesse sentido, a
campanha abolicionista era um espaço em que elas po-
deriam ser valorizadas por seu concreto. De fato, seu
envolvimento político na luta contra a escravidão talvez
tenha sido tão intenso, apaixonado e total porque podiam
vivenciar uma estimulante alternativa a sua vida domésti-
ca. E estavam resistindo a uma opressão que se asseme-
lhava àquela que elas mesmas viviam. Além disso, no inte-
rior do movimento anti escravista aprenderam a desafiar
a supremacia masculina. (DAVIS, 2016, p. 51)
sumário

Infere-se que a desconstrução de uma sociedade patriarcal perpassa pela


desestruturação de qualquer sistema, cujo pilar seja a desigualdade de raça,
classe ou gênero. Logo, a desconstrução do caráter de violação existencial de
mulheres pelo ordenamento jurídico impõe uma articulação prático-teórica
do machismo, racismo e classicismo no Brasil.

Assim posto, um Brasil para todos que aspira profundas


transformações estruturais tem de romper, em seu pla-
nejamento estratégico, com os eufemismos ou silêncios
que historicamente vêm massacrando as desigualdades
raciais e consequentemente postergando o seu enfrenta-
mento. A absoluta maioria dos excluídos tem cor e sexo, e
a política social tem de expressar essas dimensões. (CAR-
NEIRO, 2011, p. 161)

181
Ao apurarmos o fenômeno da negação da igualdade material às mulhe-
res em relação aos homens, de modo geral, é imprescindível que se realize um

Raquel Andrade dos Santos


debate gênero-racial acerca da mitigação dos direitos das mulheres negras
em relação às mulheres brancas e homens brancos. Esta hierarquização de
existências parte de uma percepção de que certos humanos são mais ou
menos humanos do que outros. No imaginário social, alguns indivíduos não
possuem a humanidade completa, o que naturaliza a não participação igua-
litária no gozo dos direitos humanos.

Ao entendermos que a questão racial é unidade fundamental de qualquer


inferência cujo ponto de partida teórico seja o feminismo, a perspectiva aqui
exposta aponta no mesmo caminho, visto que são as mulheres negras as mais
afetadas pelo não garantismo mínimo de igualdade e dignidade humana.

Assim, embora atravessada por complexas interferências decorrentes das


múltiplas facetas sociais, econômicas, políticas e culturais, de modo geral
entende-se por violência qualquer ato que provoque a ruptura da integridade
física, psíquica, sexual e moral da vítima (TELES; MELO, 2002, p. 11-12).

Ante à compreensão do fenômeno da violência contra a mulher, sob a


perspectiva da desigualdade, em razão desta condição, é fundamental apre-
ender o conceito de gênero, aqui entendido como categoria de agrupamento
de sexos para além da heteronormatividade restrita ao masculino e feminino
biologicamente definidos. Cumpre apontar a categoria de gênero de modo
a expor as desigualdades socioculturais existentes entre homens e mulheres
que repercutem no exercício de papéis sociais historicamente constituídos,
sumário

a partir de polos de dominação, nos quais o poder masculino impõe-se em


detrimento dos direitos das mulheres.

Pressupõe-se que um dos elementos essenciais para a compreensão do


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

fenômeno da violência de gênero é a análise crítica das relações de poder


entre os indivíduos e a interferência no exercício político de seus papéis so-
cialmente definidos.
OS NOVOS DESAFIOS DOS

[...] o conceito de violência de gênero deve ser entendido


como uma relação de poder de dominação do homem e
de submissão da mulher ele demonstra que os papéis im-
postos as mulheres e aos homens consolidados ao longo
da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia
induzem relações violentas entre os sexos indica que a
prática desse tipo de violência não é da natureza mas sim
182 do processo de socialização das pessoas. (TELES, 2013, p.
13)
CAPÍTULO 9
O JUSFEMINISMO COMO MEDIDA DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA JURÍDICA DE GÊNERO

No que tange ao disposto no ordenamento jurídico brasileiro acerca da


violência de gênero contra a mulher, a Lei n° 11.340, de 07 de agosto de 2006,
conhecida como “Lei Maria da Penha”, instituiu mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher. Considerada uma das mais
avançadas do mundo ao tratar do tema, o instrumento normativo corrobo-
ra com as modalidades de violência já mencionadas, incluindo somente a
modalidade patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial dos bens da vítima (BRASIL, 2006).

Apesar do avanço legislativo, no curso da história do Direito no Brasil,


o pátrio poder presente nas enraizadas relações de opressão das mulheres
ultrapassou as barreiras da casa grande e senzala, aderindo ao ordenamen-
to jurídico. E muito embora os movimentos feministas tenham alcançado
importantes conquistas que repercutiram na legislação, as transformações
no campo das ciências jurídicas não acompanharam a tal dinâmica social,
sobretudo quanto à desconstrução de elementos patriarcais expressamente
previstos em diversos diplomas legais.

A vigência do Código Civil de 1916 até os anos 2002, quase quinze anos
após do advento da Constituição Federal de 1988, constitui prova inconteste
da indisposição normativa do Estado Brasileiro em garantir a plenitude dos
direitos das mulheres. A Lei n° 3.071, de 1° de janeiro de 1916, ainda que de
forma obsoleta, previa expressamente, em pleno século XXI, os institutos do
sumário

pátrio poder, filhos ilegítimos, concubinato, além de considerar relativamente


capaz a mulher casada (BRASIL, 1916).

Por seu turno, o Código Penal Brasileiro, até os anos 2000, apresentava
em seu artigo 215 o termo mulher “honesta” para caracterizar crime contra a
liberdade sexual. Embora em vigor desde a década de 1940, somente com o
advento da Lei 11.106, de 28 de março de 2005, o termo foi suprimido (BRASIL,
2005).

O teor conservador das normativas apontadas, bem como o longo perío-


do de vigência, demonstram a necessidade de adesão a um horizonte teóri-
co-normativo sob prisma de uma teoria feminista do Direito.

A escassez de exploração teórico-jurídica sob uma perspectiva feminista


demonstra notória indisponibilidade teleológica do Direito enquanto ciência,
no que tange à efetivação dos direitos humanos das mulheres. Para além das 183
múltiplas explorações conceituais, que ensaiam um “feminismo jurídico” ou

Raquel Andrade dos Santos


“teoria jurídico-feminista”, propõe-se, nesta discussão, o jusfeminismo como
teoria do conhecimento que pretende a ressignificação jurídico-existencial
das mulheres enquanto sujeitas de direitos e garantias, no intuito de descons-
truir a masculinidade como elemento de dominação no percurso de produ-
ção, interpretação e aplicação da norma.

De acordo com Stamile (2018, p. 410-411), tem-se que:

Apresentar a complexidade dessa temática não é uma


tarefa simples. Por um lado, temos que resulta difícil iden-
tificar uma posição unânime dentro da teoria jurídica
feminista, sem contar que ainda hoje alguns estudos e
abordagens dificultam o reconhecimento de uma teoria
do direito feminista independente, uma vez que continu-
am delimitando-a como apenas um movimento. Por outro
lado, verifica-se a estratificação secular dos modelos cul-
turais que continua, a propor, impor e construir a imagem
da mulher como ‘uma realidade de corpos subalternos,
inferiores e desbordantes’.

O padrão androcêntrico impregnado no Direito brasileiro é responsável


pela violação jurídica de gênero e raça que atinge mulheres e mulheres ne-
gras, não apenas em razão da existência de um ordenamento estruturado
sob a cultura machista e racista, mas pela manutenção de tais estruturas em
razão da omissão social e estatal.
sumário

A integração do jusfeminismo como instrumento juspolítico de efetivação


e garantia dos direitos das mulheres sob uma perspectiva técnico-científica,
apresenta-se como instrumento legítimo de emancipação juspolítica. Frise-se
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

que a ressignificação da função da masculinidade, em sistemas de opressão


sedimentados no machismo e racismo, fundamentada em um feminismo plu-
ral, é parte indispensável na solução de problemas sociais ligados a gênero,
OS NOVOS DESAFIOS DOS

raça, classe, sexualidade, dentre outros.

É evidente que a teoria feminista não tem, em nenhuma


de suas múltiplas vertentes, a solução para esses dilemas.
Mas, ao mesmo tempo, nenhuma solução pode prescindir
de suas contribuições. a teoria política feminista, como
buscamos mostrar nesse livro, deslocou a compreensão
do que é justiça, democracia, autonomia, identidade e
184 fez isso motivada por uma compreensão profundamente
crítica das instituições vigentes e das relações que elas
fomentam. É esse olhar crítico, transformador - E não
CAPÍTULO 9
O JUSFEMINISMO COMO MEDIDA DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA JURÍDICA DE GÊNERO

aquele que busca apenas o lugar ao sol para as mulheres


vírgulas nos quadros da sociedade tal como é hoje -
que produziu e produz o melhor do feminismo como
movimento social e também como teoria política. (BIROLI,
MIGUEL, 2015, p. 151 - 152)

A adoção da perspectiva ora em análise não se resume tão somente à


garantia do direito ao compartilhamento do protagonismo na construção
das narrativas jurídicas. Para além, representa o ecoamento da reivindicação
de uma sociedade mais justa e igualitária, pela voz das mulheres.

A Constituição Federal de 1988 representa o marco histórico-jurídico da


evolução dos direitos e garantias fundamentais no ordenamento jurídico
brasileiro. A Carta Magna representa a consagração da democracia parti-
cipativa por meio da consideração de diversas emendas populares. Nesse
sentido, a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes restou fundamental
na evolução do texto constitucional quanto na defesa dos direitos humanos
(PIOVESAN, 2008, p. 2-4).
Verifica-se que a participação feminina qualitativa na elaboração da
Constituição Cidadã não representou apenas um movimento coletivo de
garantias específicas de um segmento social. Muito embora vitimadas pela
reprodução do machismo e patriarcalismo na legislação, o movimento de
mulheres organizadas à época figurou como agente de efetivação jurídico-
-política de justiça social. Tal fenômeno pode ser considerado uma das pri-
sumário

meiras experiências de implementação da perspectiva jusfeminista no Direito


brasileiro, a saber:

[...] no caso brasileiro, podemos afirmar que o movimento


social feminista, visto aqui como um movimento político,
teve um considerável papel, participando ativamente do
processo de redemocratização do país, inaugurando o es-
paço público de reivindicação de direitos. esse movimento
social inaugurou uma nova forma de fazer política, seja
no que diz respeito ao debate e encaminhamento das ne-
cessidades das mulheres brasileiras durante a constituin-
te nos anos de 1980, seja junto aos partidos políticos no
que se refere a institucionalização do movimento. (BRABO,
2008, p. 27)

Apesar de embrionária, a intervenção organizada dos movimentos so- 185


ciais de mulheres na elaboração do texto Constitucional que melhor repro-

Raquel Andrade dos Santos


duziu os anseios das minorias sociais na história do ordenamento jurídico
brasileiro merece demarcação histórica. O fenômeno em questão representa
não somente a viabilidade da Institucionalização da teoria jusfeminista em
proposição, mas a ressignificação da atuação jus-política de mulheres orga-
nizadas nas ciências jurídicas como instrumento de participação social com
vistas à promoção da igualdade social.

Conclusão

Em suma, as proposições dos movimentos organizados de mulheres no


contexto histórico citado ultrapassaram um conjunto de exigências de direi-
tos civis de determinado segmento de gênero, para garantir a inserção de
relevantes jurídicas com vistas à promoção do bem-estar social.

Conclui-se, assim, que a desconstrução do patriarcalismo reminiscente no


ordenamento jurídico brasileiro, bem como o resguardo das conquistas nor-
mativas alcançadas no campo dos direitos das mulheres, dar-se-á por meio
da inserção de uma perspectiva técnico normativa jusfeminista, enquanto
instrumento de ressignificação dos fundamentos históricos, sociais, culturais
que constituem o que entendemos por ciências jurídicas, com o propósito de
fortalecer o Estado Democrático de Direito, a justiça e o bem-estar social.
sumário

Referências
BEARD, Mary. Mulheres e poder: um manifesto. São Paulo: Planeta do Brasil,
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

2018.
BICALHO, Eduardo Barbuto. A moralidade do patriarcado rural enraizada no Bra-
sil: uma leitura de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda. Revista Augustus, v.
25, n. 50, pp. 173-191, 2020.
OS NOVOS DESAFIOS DOS

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução.


São Paulo: Boitempo, 2015.
BRABO, Tânia Suely Antonelli Marcelino. Gênero e poder local. São Paulo: Hu-
manitas, 2008.
BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Dis-
186 criminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Pu-
nir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal,
CAPÍTULO 9
O JUSFEMINISMO COMO MEDIDA DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA JURÍDICA DE GÊNERO

o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Aces-
so em: 25 jul. 2020.
BRASIL. Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos
do Brasil. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1916. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm. Acesso em: 25 jul. 2020.
BRASIL. Lei 11.106 de 28 de março de 2005. Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227,
231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 –
Código Penal e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11106.htm. Acesso em: 25 jul. 2020.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo
Negro, 2011.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.
PIOVESAN, Flávia. Igualdade de Gênero na Constituição Federal: os direitos ci-
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https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-deestudos/ou-
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mulheres-do-brasil. Acesso em: 25 jul. 2020.
STAMILE, Natalina. Nenhuma, uma, cem mil vozes de mulheres. Discutindo
Donne, Diritto, Diritti. Prospettive del giusfemminismo de Thomas Casadei. In: Re-
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TELES, Maria Amélia Almeida de; MELO, Mônica de. O que é Violência contra a
Mulher. São Paulo: Brasiliense, 2002.
sumário

TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. São Paulo:
Record, 2018.

187

Raquel Andrade dos Santos


1| Slogan de campanha publicitária voltada ao público negro, veiculada
na revista Brasil entre os anos de 2009 e 2010.

SARA FRANÇA EUGÊNIA - Mestranda do Programa de Pós-Graduação


interdisciplinar em Direitos Humanos da UFG. E-mail: saraeugenia87@
gmail.com
10
CAPÍTULO 10

A BELEZA AO SEU ALCANCE¹:


O CABELO CRESPO NA INTERSECÇÃO ENTRE
GÊNERO, RAÇA E CLASSE SOCIAL

BEAUTY AT YOUR FINGERTIPS:


CURLY HAIR AT THE INTERSECTION OF GENDER, RACE AND SOCIAL CLASS

SARA FRANÇA EUGÊNIA

https://doi.org/10.47658/20210110
sumário

Resumo

O cabelo crespo, como parte de um corpo negro, tem sido alvo de de-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

monstrações de racismo. Percebido como um cabelo inferior e desprovido de


beleza, ele sofre constantemente com a interseccionalidade da opressão de
gênero, raça e classe social. Os efeitos dessas opressões, que são reiterada-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

mente reforçadas pelos meios de comunicação, sujeitam mulheres negras a


noções de inferioridade que impactam suas identidades. Ser constantemente
associada à falta de feminilidade, à ausência de beleza e à pobreza impacta
a autoestima e compromete uma construção identitária baseada em premis-
sas positivas. À medida que essas associações são internalizadas, passam a
oprimir e paralisam a mulher negra em um local de inferioridade. Perceber
como essas opressões ocorrem e como são reforçadas diariamente pelo sen-
190 so comum e pela mídia pode ser um passo importante para resistir.

Palavras-Chave: Feminismo Negro. Racismo. Cabelo Crespo. Direitos Hu-


A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

manos. Interseccionalidade.

Abstract
Curly hair, as part of a black body, has been the target of racism. Perceived as
inferior and lacking in beauty, he constantly suffers from th e intersectionality of the
oppression of gender, race, and social class. The effects of these oppressions, which
are repeatedly reinforced by the media, subject black women to notions of inferior-
ity that impact their identities. Being constantly associated with lack of femininity,
lack of beauty and poverty impacts self-esteem and compromises an identity con-
struction based on positive assumptions. As these associations are internalized, they
oppress and paralyze the black woman in a place of inferiority. Understanding how
these oppressions occur and how they are reinforced daily by common sense and
the media can be an important step to resist.

Keywords: Black Feminism. Racism. Curly Hair. Human Rights. Intersectionality.


sumário

Introdução

O presente artigo tentará demonstrar como a interssecionalidade pode


ser percebida na tripla opressão que recai sobre o cabelo crespo e conse-
quentemente sobre a mulher negra. As mulheres, de uma forma geral, so-
frem diversas pressões devido a padrões de beleza homogeneizantes. Esses
padrões são constantemente impostos e oprimem mulheres, na medida que
passam a ser percebidos como uma obrigação feminina. Os meios de comu-
nicação, ao incentivarem consumo, atribuem à beleza o caminho para a fe-
licidade, fazendo com que, principalmente as mulheres, passem a buscar um
padrão de beleza inatingível. Para as mulheres negras, o cenário é ainda pior,
já que, no caso delas, além de uma opressão de gênero, recai sobre seus cor-
pos uma opressão de raça e de classe. Seus cabelos naturais não costumam
ser percebidos como femininos, como belos e são comumente associados à 191
pobreza.

Sara França Eugênia


Ao identificarmos a interseccionalidade que atinge a estética do cabelo
crespo, enquanto corpo negro, pretende-se elucidar a necessidade de rever-
termos preconceitos já naturalizados na sociedade brasileira e que são re-
forçados pelos diversos meios de comunicação. Através de uma abordagem
bibliográfica sobre o tema e uma análise de imagens veiculadas em propa-
gandas, novelas, programas de televisão, etc., objetiva-se demonstrar como
o machismo, o racismo e o preconceito de classe atuam sobre o corpo da
mulher negra, com o aval dos meios de comunicação, que, por sua vez, en-
contram respaldo na sociedade de uma maneira geral.

No primeiro momento, trataremos das opressões de gênero, que infligem


às mulheres a obrigação de serem belas, oprimindo-as com padrões de bele-
za inatingíveis e objetificando-as. Sendo uma opressão ainda maior no caso
da mulher negra, uma vez que antes de não se enquadrarem nos padrões es-
téticos impostos, não são nem mesmo consideradas femininas. Seus cabelos
crespos não costumam ser percebidos como cabelos femininos ou bonitos.

No segundo momento, analisaremos as opressões de raça, percebendo


como, pelo imaginário social, o cabelo crespo e o corpo negro são percebidos
como inferiores. Constantemente associados à inferioridade em função do
racismo, o corpo negro e o cabelo passam a ser oprimidos. Levando muitas
mulheres negras a buscarem o alisamento como forma de se esquivarem de
ataques racistas, e buscando aumentar suas autoestimas, uma vez que per-
cebem o cabelo alisado como o único cabelo realmente belo.
sumário

Ao final, verificaremos as opressões de classe, percebendo como o cabelo


crespo é constantemente e reiteradamente associado à pobreza pelos meios
de comunicação. Examinaremos como a mídia, através de filmes e novelas,
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

reforça a ideia de que a ascensão econômica está intimamente relacionada


ao cabelo alisado ou liso, sendo a estética mais aceita à medida que a mu-
lher ascende socialmente e profissionalmente, relegando ao cabelo crespo o
OS NOVOS DESAFIOS DOS

lugar de inferioridade e pobreza.

1. Cabelo de Princesa

Não é preciso uma pesquisa muito extensa para se identificar qual o


padrão estético capilar feminino dominante no Brasil. Em uma breve ob-
servação dos cabelos de mulheres pelas ruas do país, é possível perceber
192
a predominância de cabelos longos, lisos e loiros. Um indício muito forte da
predominância desse padrão é o fato de que uma das brasileiras mais famo-
A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

sas do mundo, conhecida exatamente pela sua beleza “brasileira”, se chama


Gisele Bündchen e possui o padrão descrito acima.

[...] Tal representação que concebe a beleza da brasilei-


ra como produto da miscigenação esquece que a grande
maioria daquelas mulheres aqui nascidas e reconhecidas
mundo afora pelo seu padrão estético, em geral, nada,
ou quase nada tem de musas mestiças, ao menos em sua
aparência, ostentando nomes e aspecto que dariam ao
incauto a sensação de estar diante de mulheres alemãs
ou italianas: Gisele Bündchen, Daniella Cicarelli, Shirley
Mallmann, Mariana Weickert, Ana Hickmann etc. (SABINO,
2004, p. 17)

Uma breve pesquisa no Google também pode elucidar o que o senso co-
mum entende como “cabelo feminino” no Brasil. Ao buscar imagens associa-
das a essas palavras no mecanismo de busca, fica evidente de que tipo de
cabelo estamos falando.

Esse padrão estético de beleza está ligado à noção de feminilidade oci-


dental e europeia. “O padrão de beleza apresentado nas representações dos
indivíduos mostra-se eminentemente europeu. As♥ representações sobre o
corpo não apenas ajudam a construí-lo, mas algumas vezes, também a opri-
mi-lo.” (SABINO, 2004, p. 20). No Brasil, a busca pela aproximação da beleza
branca, ou mais especificamente da beleza da mulher europeia, a despeito
da maioria do país não possuir naturalmente tais fenótipos, faz com que a
sumário

maioria das mulheres brasileiras almeje um padrão inatingível. Essa busca


constante se torna uma forma muito eficiente de opressão sobre o corpo da
mulher brasileira e, mais especificamente, sobre o corpo da mulher negra.
Imagem 1 – Pesquisa em Mecanismo de Busca Web

193

Sara França Eugênia


Fonte: Google.

À essa opressão somam-se muitas outras, como a necessidade das mu-


lheres estarem sempre de dieta, usarem os melhores cosméticos antienvelhe-
cimento, realizarem inúmeros procedimentos estéticos, andarem sobre saltos
desconfortáveis, vestirem roupas que sempre traduzam o que está na moda,
etc. A mídia reproduz constantemente esse padrão feminino, reforçando exi-
gências sociais e auto exigências com relação à estética feminina desejável.

Representadas recorrentemente como objetos de consumo, que devem


incitar desejo aos que estão ao seu redor, existe um grande apelo à sensuali-
dade quando se fala de beleza feminina. A beleza há muito tempo vem sendo
representada na mídia como um atributo feminino.
sumário

Imagem 2 – Propaganda Biotônico Fontoura


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA
OS NOVOS DESAFIOS DOS

194
A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

Fonte: REIS (2018)

Isso faz com que as mulheres vivam em situação de opressão sobre seus
corpos. As mensagens sociais, constantemente reforçadas pelos meios de co-
municação, que relacionam beleza, sucesso e atratividade a um dever femini-
no para estar no mundo, aprisiona mulheres.

A internalização desses discursos acaba gerando insatisfação e senti-


mento de inadequação. Segundo Liliane Bittencourt:

Essa supervalorização do corpo, reflexo da perda de iden-


tidade, nesta cultura pós-moderna na qual se privilegia o
consumo exacerbado, acaba por difundir uma pseudover-
dade, na qual a felicidade é conquistada a partir do con-
sumo, e a imagem corporal feminina torna-se produto de
grandes investimentos, massificados pelos meios de co-
municação. (BITTENCOURT, 2013, p.29)

Essa nova realidade faz com que as mulheres sejam impelidas a consumir
bens e serviços para sentirem-se mais adequadas, bonitas, a fim de se apro-
ximarem do ideal de beleza dominante.

Não apenas revistas, mas também, as propagandas, os


programas de TV, outdoors, entre outros veículos midiáti-
cos, utilizam como modelos figuras de profissionais da mí-
sumário

dia – cujos corpos estão sendo constantemente moldados


ao “ideal” de beleza da época -, visando despertar em to-
das as mulheres o desejo de possuírem tais características,
de modo que essas, a partir da identificação do padrão de
aceitabilidade de seu grupo, consumam, na indústria de
cosméticos, produtos que possam aliviar as insatisfações
que o próprio modelo-exemplo instiga. (SANTOS, 2008, p.
50)

Essa mensagem social, constantemente reforçada pelos meios de comu-


nicação, oprime a mulher, na medida em que delimita um padrão único de
beleza. Esse padrão ideal e inalcançável para a maioria das mulheres faz
com que sentimentos de baixa autoestima e complexos de toda natureza
sejam cada vez mais frequentes. Percebemos, então, como a mídia consegue
aprisionar muitas mulheres nessa busca pela beleza ideal, sendo o cabelo um 195
alvo fácil, dada sua maleabilidade.

Sara França Eugênia


Feministas, inspiradas por Friedan, destruíram o monopó-
lio dos anunciantes de produtos para o lar na imprensa
popular feminina. De imediato, as indústrias da dieta e
dos cosméticos passaram a ser os novos censores cultu-
rais do espaço intelectual das mulheres. Em consequência
das suas pressões, a modelo jovem e esquelética tomou o
lugar da feliz dona-de-casa como parâmetro da feminili-
dade bem-sucedida. (WOLF, 1992, p.13)

Essa ideia pode ser percebida na comparação entre um anúncio antigo


acerca de produtos que fariam a vida das mulheres melhores antigamente
e um anúncio em revista atual sobre produtos indispensáveis para mulheres.

A necessidade de estar sempre dentro de um padrão de beleza aprisiona


mulheres de todos os tipos ao associarem beleza a uma obrigação feminina.
A perpetuação dos sistemas de opressão sobre a mulher são ainda piores se
analisarmos especificamente a condição da mulher negra. No caso especí-
fico delas, a violência ainda é maior, uma vez que seu fenótipo nem sequer
está alocado dentro de um conceito de feminilidade. Sueli Carneiro (2003)
defende que a não representatividade na mídia é uma forma de violência.
sumário

Imagem 3 – Comparativo entre Propaganda Antiga e Atual


FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA
OS NOVOS DESAFIOS DOS

196
A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

Fonte: EGO (2015) e PASSOS; JOSÉ (2015)

Se partimos do entendimento de que os meios de comu-


nicação não apenas repassam as representações sociais
sedimentadas no imaginário social, mas também se insti-
tuem como agentes que operam, constroem e reconstro-
em no interior da sua lógica de produção os sistemas de
representação, levamos em conta que eles ocupam posi-
ção central na cristalização de imagens e sentidos sobre a
mulher negra. (CARNEIRO, 2003, p.125)

Diante do apontado pela autora acima, percebemos que até mesmo o


recente crescimento de um padrão de beleza “natural” acaba por instigar nas
mulheres negras o desejo por cabelos domados, controlados, sem frizz, ou
seja, ainda distante de um cabelo realmente natural. Os cabelos “naturais”
incorporados no discurso midiático atual ainda continuam a requerer muito
esforço, muitos produtos e muitas horas de dedicação às mulheres, favore-
cendo novamente uma indústria pronta para apresentar soluções em forma
de produtos. Talvez não apenas nossos cabelos estejam sendo “domados” e
“disciplinados”. “O complexo de inferioridade do negro africano em relação
a seu físico, ou seja, a sua alienação, virou um motivo de lucro.” (MUNANGA,
2012, p. 1013).
sumário

A ativista norte-americana bell hooks1 (2005) esclarece que não é apenas


o cabelo liso que é perseguido, mas também o loiro, e, é claro, o cabelo longo.
“Todos os tipos de publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição de
que não seremos bonitas e atraentes se não mudarmos a nós mesmas, espe-
cialmente o nosso cabelo.” (HOOKS, 2005). No caso, o cabelo longo sempre
esteve relacionado à feminilidade, logo, quanto maior o cabelo mais adequa-
da ao padrão de feminilidade a mulher está.

O mercado de consumo e os padrões sociais continuam a exercer gran-


de poder sobre o corpo feminino. Apesar dos avanços dos feminismos com
relação à emancipação feminina, ainda existem opressões a serem vencidas,
principalmente com relação à estética. Nesse ponto, os cabelos, em espe-
cial, ainda são alvos de grande insatisfação feminina na busca por se alcan-
çar padrões de beleza impostos. Ter “cabelos de princesa” ainda é uma luta
197
constante da mulher contra seus padrões naturais, exigindo tempo, dinheiro
e sacrifícios.

Sara França Eugênia


Para as mulheres negras, essa realidade é ainda mais opressiva, uma vez
que seus traços não são considerados belos e nem mesmo femininos. A de-
licadeza, a vulnerabilidade e a polidez, traços associados ao feminino, não
costumam ser características associadas às mulheres negras.

Eu tenho de fazer muito para “provar” que sou feminina e


compensar minha “negritude” (manter o cabelo longo, a
voz suave, usar roupas femininas), enquanto as mulheres
brancas ou de pele mais clara possuem muito mais liber-
dade para experimentações. Passei muito tempo lutando
com a pergunta “E não sou uma mulher?” – não por incerte-
za minha, mas por causa da aparente certeza do resto do
mundo. (EKO, 2018, on-line)

Se o conceito de feminilidade, percebido através do cabelo liso e longo


perfeito, consegue oprimir mulheres brancas que possuem esse tipo de estru-
tura capilar, o que dizer das negras que possuem o cabelo crespo? A opres-
são, no caso, lhes nega o reconhecimento de serem mulheres, em primeiro
lugar, para depois lhes negar o reconhecimento de beleza.

1 bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, artista, ativista social, feminista
e escritora norte-americana. O apelido utilizado para assinar suas obras, grafado sempre
em letras minúsculas, é uma homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó. A justificativa
da grafia em letra minúscula é servir a dois propósitos: distinguir-se das pessoas que
buscou homenagear com o pseudônimo e estabelecer que o conteúdo de suas obras possui
importância maior do que sua biografia.
sumário

Neste contexto, podemos perceber os efeitos da interseccionalidade


(CRENSHAW, 2002) com relação ao cabelo crespo, uma vez que a opressão
de raça e de gênero operam juntas para negar ao mesmo o status de femi-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

nino e de beleza.

2. Cabelo Bom
OS NOVOS DESAFIOS DOS

Como elemento corporal, o cabelo possui um papel relevante na


composição da autoestima. Sobre a importância do cabelo para a autoes-
tima de mulheres em geral, podemos analisar o pensamento de Joice Berth.
“Os cabelos são um importante elemento estético de autoafirmação e de
cultivo do amor à própria imagem, sobretudo para mulheres, sejam elas da
etnia que forem.” (BERTH, 2019, p. 944). Ao cabelo também podem ser dados
198
significados de pertencimento racial. O sociólogo Orlando Patterson compre-
ende que o cabelo é um elemento corporal muito importante na identificação
A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

racial, inclusive mais do que a cor da pele.

Ao contrário da visão comum, as diferenças de cor não


foram mais cruciais como marcas de servilismo nas Amé-
ricas do que as diferenças de tipo de cabelos. Ademais, as
diferenças de cor são rapidamente nuançadas pela misci-
genação, o que diminui a significância da cor muito mais
rápido do que se imagina. Variações no cabelo eram ou-
tra questão. Diferenças entre brancos e negros eram mais
acentuadas nesse aspecto do que as de cor, e persistiram
por muito mais tempo com a miscigenação. (PATTERSON,
2008, p. 43)

Essa diferenciação pode estabelecer critérios valorativos com rela-


ção a cada tipo específico de cabelo. Como discutido no tópico anterior, o
padrão de beleza europeu ainda detém uma hegemonia entre as mulheres
brasileiras, o que tem sido reforçado pelos meios de comunicação. Estabele-
cer esse padrão cria no senso comum uma dicotomia muito opressora de que
cabelos lisos são “bons” e cabelos crespos são “ruins”.

[...] no tocante aos negros: a de que a sociedade branca


projetou por gerações uma imagem depreciativa a cuja
adoção alguns negros se mostraram incapazes de resistir.
Nesse modo de ver as coisas, sua auto depreciação vem a
sumário

ser um dos mais fortes instrumentos de sua opressão. Sua


primeira tarefa teria de ser purgar a si mesmos dessa iden-
tidade imposta e destrutiva. (TAYLOR, 2000, p. 241)

Essa concepção de valores negativos e positivos com relação a cada


tipo de cabelo é fortemente influenciada pelo racismo e tem um impacto
significativo na autoestima de mulheres negras.

A construção da imagem de grupo e da autoimagem po-


sitiva fica comprometida pela associação do negro com
estigmas construídos socialmente. Crescer em ambientes
desfavoráveis à sua sociabilização pode comprometer o
amadurecimento do indivíduo e sua formação como sujei-
to. (TELLA, 2008, p. 155)

Neste contexto, o cabelo crespo não pode ser dissociado do corpo 199
negro, da identidade negra. “Pegar no cabelo é tocar no corpo. Cabelo cres-

Sara França Eugênia


po e corpo negro, colocados nessa ordem, são expressões de negritude. Por
isso não podem ser pensados separadamente.” (GOMES, 2008, p. 35).

Oracy Nogueira (1985) especifica a diferença entre o racismo nor-


te-americano e o racismo brasileiro. Para o autor, o racismo brasileiro é um
racismo de marca, o que quer dizer, dentre outras coisas, que o fenótipo dos
negros é alvo constante e direto de discriminação e inferiorização, sendo a
partir da cor da pele e da textura dos cabelos que se identifica o valor nega-
tivo ou positivo associado ao sujeito.

Assim, no Brasil, a intensidade do preconceito varia em


proporção direta aos traços negróides; e tal preconceito
não é incompatível com os mais fortes laços de amizade
ou com manifestações incontestáveis de solidariedade e
simpatia. Os traços negróides, especialmente numa pes-
soa por quem se tem amizade, simpatia ou deferência,
causam pesar, do mesmo modo por que o causaria um
“defeito” físico. (NOGUEIRA, 1985, p. 296)

A comparação que Oracy Nogueira faz entre a negatividade vista


em quem possui um “defeito físico” e em quem possui traços negros, é muito
interessante para se pensar como o cabelo crespo pode ser percebido social-
mente como um estigma, ou seja, “a situação do indivíduo que está inabili-
tado para aceitação social plena” (GOFFMAN, 2004, p. 4). Corroborando as
ideias trazidas anteriormente, Kabengele Munanga também entende que: “O
fato de ser branco foi assumido como condição humana normativa, e o de
sumário

ser negro necessitava de uma explicação científica. A primeira tentativa foi


pensar o negro como um branco degenerado, caso de doença ou de desvio
da norma.” (MUNANGA, 2012, p. 307).
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Até mesmo o rótulo dos produtos de beleza já contribuem para refor-


çar a ideia de que o cabelo crespo está fora dos padrões de “normalidade”.
“Pode-se utilizar como exemplo a nomenclatura utilizada nos produtos de be-
OS NOVOS DESAFIOS DOS

leza: xampu para cabelos normais x xampu para cabelos crespos, em alguns
rótulos há a descrição ‘cabelos étnicos’: quem é racializado aqui?” (BARBOSA,
2014, p. 66).

A noção de que os cabelos crespos não são cabelos “normais”, os pro-


jeta na direção oposta, ou seja, são subentendidos como cabelos “estranhos”,
“diferentes” ou “feios”. O constante reforço dessa ideia pode ser percebida,
200 por exemplo, na propaganda abaixo.
A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

Imagem 4 – Propagando Espaço Cabelo

Fonte: QUINTÃO (2013)

O anúncio acima deixa implícito, pela imagem de uma mulher negra


com o cabelo alisado e a frase “A beleza ao seu alcance”, que a beleza só
pode ser alcançada através do cabelo liso, o que afasta do cabelo crespo a
noção de beleza. Ideia semelhante também é utilizada no anúncio abaixo:
sumário

Imagem 4 – Propaganda de cabelo alisado

201

Sara França Eugênia


Fonte: Google

Se existe a necessidade do cabelo liso para que o melhor da mulher


negra seja ressaltado, fica evidente que ao cabelo crespo é destinada uma
noção de inferioridade estética. A opressão racista com relação à estética
negra camufla o verdadeiro objetivo do racismo, que é desestabilizar e infe-
riorizar os negros a fim de mantê-los em posição de subalternidade.

Desde então, liberados do cativeiro, mas jamais libertos


da condição de escravos de um estigma, os negros têm
sofrido toda sorte de discriminação, que tem como base
a ideia de serem os negros seres inferiores, portanto não
merecedores de possibilidades sociais iguais. (NOGUEIRA,
1998, p. 1108)

Essa pretensão costuma ser reforçada pelos meios de comunicação,


através de propagandas, novelas, filmes e imagens racistas, que continuam
a dar visibilidade aos negros apenas em situações de desvantagem, fortale-
cendo no imaginário popular a ideia de inferioridade. A pedagoga Nilma Lino
Gomes aborda de maneira muito pertinente a questão da ideia de inferiori-
dade e representações negativas:

O racismo, com sua ênfase na superioridade racial, ajuda


a construir no imaginário social a crença de que é possível
hierarquizar os sujeitos e seu corpo. Nessa perspectiva, o
negro é visto como pertencente a uma escala inferior. Pro-
sumário

duz-se, nesse contexto, um tipo de violência que impregna


a vida de suas próprias vítimas, a ponto de se constituir
em representações negativas do negro sobre si mesmo e
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

seu grupo étnico/racial. (GOMES, 2008, p. 2228)


OS NOVOS DESAFIOS DOS

Essas representações negativas do negro nos meios de comunicação não


necessitam de grande esforço para serem percebidas, e acabam por alcan-
çar o corpo negro, e mais especificamente o cabelo. O cabelo crespo então
passa a ser percebido como desprovido de beleza. Esse fato pode ser ilustra-
do pela imagem abaixo:

Imagem 5 – Aviso enviado por Escola aos Pais de Alunos


202
A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

Fonte: ESCÓSSIA (2015)

A imagem acima foi enviada aos pais de alunos de uma escola na cidade
de São Paulo em 2015. O texto pedia que as meninas viessem para a esco-
la com um determinado “penteado” a fim de estarem “bonitas”, contudo a
imagem não mostra penteado algum, mas apenas um cabelo liso e solto. A
questão ganhou repercussão na mídia, sendo a escola acusada de racismo,
sumário

por não considerar as características físicas das crianças negras que também
são alunas da escola. É possível perceber também a ideia que é alocada
nas meninas negras, de que seu cabelo é desarrumado, sendo necessário
sempre “controlá-lo”. “Falamos sobre o quanto as mulheres negras percebem
seu cabelo como um inimigo, como um problema que devemos resolver, um
território que deve ser conquistado. Sobretudo, é uma parte de nosso corpo
de mulher negra que deve ser controlado.” (HOOKS, 2005, p. 4).

O fato revela que não apenas o cabelo crespo é preterido como expli-
citamente é visto como um cabelo desprovido de beleza. Além disso, uma
mensagem com teor tão discriminatório, emitida por uma escola, evidencia
o quanto o racismo no Brasil é institucional. Meninas negras, ao receberem
desde tão novas mensagens depreciativas como essas, são reiteradamente
atingidas em sua subjetividade e crescem acreditando na inferioridade de
203
seus traços físicos. O que as faz, por exemplo, odiar seus cabelos, perceben-
do-os como cabelos feios, ou como se costuma dizer no Brasil, cabelos “ruins”.

Sara França Eugênia


3. Cabelo de Pobre

O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão. De


acordo com pesquisa recente que produziu o maior banco de dados sobre o
tráfico negreiro, organizado por historiadores da Universidade de Emory, em
Atlanta, nos Estados Unidos, e de Hull, na Inglaterra2, o Brasil foi também o
país que mais recebeu africanos para serem escravizados.

Quando finalmente aboliu a escravidão, em 1888, não o fez por uma


questão humanitária, mas sim por uma necessidade liberal. “Para os liberais,
a escravidão significava antes de tudo um obstáculo para as suas ideias.
Eles não tinham uma reflexão sobre as relações raciais nem se preocupavam
com a condição dos negros depois da abolição.” (GUIMARÃES, 1995, p. 26).
O fato é que o fim da escravidão não foi seguido por qualquer tipo de repa-
ração pelos anos de exploração a que foram submetidos os negros libertos e
seus descendentes. O efeito foi diverso, “tal processo foi vivenciado como um
abandono.” (NOGUEIRA, 1998, p. 36). Por isso, o negro não conseguiu se inte-
grar à sociedade brasileira de forma igualitária, permanecendo em posição
de subalternidade e precariedade econômica.

2 Pesquisa disponível para consulta pelo site: https://slavevoyages.org/about/about


sumário

Permanecendo à margem da sociedade, ao negro restou o trabalho em


áreas não dinâmicas da economia, o que lhe dificulta, até os dias atuais, a
possibilidade de uma ascensão econômica. Atualmente no Brasil, a popula-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

ção negra é a maioria da população pobre do país. De acordo com dados do


IBGE, coletados na Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio Contí-
nua de 2016, entre os 10% mais pobre do Brasil, 78,5% são negros.
OS NOVOS DESAFIOS DOS

Dessa forma, é possível analisar que no Brasil a pobreza tem cor, e ela é
preta. Entender isso é importante para refletir o motivo do cabelo crespo ser
sempre associado à pobreza, e o cabelo liso à ascensão social.

A busca do negro por ascensão social dentro de uma so-


ciedade sob perspectiva da democracia racial brasileira
era uma busca que visava à ruptura com tudo o que lhe
era herança de inferioridade, portanto tudo que era re-
204
lacionado à negritude, consequentemente seus cabelos
crespos. (SOUSA, 1983, p. 22).
A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

Neusa Santos Sousa (1983) analisa essa necessidade do negro de em-


branquecer na sua tentativa de buscar uma ascensão social, uma vez que as
características negras são ainda vistas como inferiores e, portanto, ligadas
à pobreza. O cabelo de pobre nada mais é do que o cabelo negro, o cabelo
crespo. Novamente isso pode ser percebido pelas linhas narrativas de filmes e
novelas. Recentemente uma novela veiculada no Brasil, chamada “A dona do
pedaço” teve em sua trama a história de uma personagem rica, que precisou
se disfarçar de pobre, o resultado podemos analisar abaixo:

Enquanto era rica, a personagem tinha os cabelos lisos e loiros, mas, para
se disfarçar de pobre, ela passou a usar os cabelos crespos. A imagem é
bem literal e não necessita de grandes explicações, sendo claro o preconceito
acerca da estética do cabelo crespo, visto como cabelo de pobre e possuin-
do, portanto, uma conotação de inferioridade. Essa ideia de que a ascensão
social e profissional está relacionada ao abandono da estética negra e à
aproximação da estética branca não é um privilégio brasileiro. Na série nor-
te-americana produzida pela Netflix, Orange is the new black, podemos perce-
ber algo semelhante na narrativa de vida de uma das personagens.
sumário

Imagem 6 – Repostagem sobre programa televisivo

205

Sara França Eugênia


Fonte : GSHOW (2015)

Imagem 7 – Personagens Tamika e Tasha se reencontram na prisão

Fonte: Google
sumário

A personagem Tamika (à direita na foto) é guarda da penitenciária fe-


minina onde a série se passa. Dentro da penitenciária, ela reencontra uma
amiga de infância, que está cumprindo pena na mesma penitenciaria, a per-
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

sonagem Tasha (à esquerda na foto). Em alguns momentos, as personagens


comentam como vieram do mesmo lugar, mas acabaram tendo destinos di-
ferentes e diametralmente opostos.
OS NOVOS DESAFIOS DOS

Na última temporada da série, a personagem de Tamika consegue ser


promovida e passa a ser Diretora da penitenciária, o cargo mais alto da car-
reira e almejado por muitos guardas. Para se tornar Diretora, Tamika disputa
a vaga com vários colegas de trabalho, e, ao ganhar o cargo, passa a ter sua
autoridade desafiada pelos colegas que não conseguiram vencer a dispu-
ta. Em um dos episódios, um deles ridiculariza, de forma irônica, o fato dela
manter o cabelo black power, ocupando o cargo que ocupa, claramente ten-
206
tando desqualificá-la e desestabilizá-la.

No dia seguinte, a personagem Tamika aparece para trabalhar com os


A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

cabelos alisados, associando sua imagem alisada com a ascensão profissio-


nal. Em um dos episódios, a ilustração do que aqui tentamos argumentar é
bem expressiva. Vejamos:

Imagem 8 – Personagens Tamika (promovida) e Tasha (prisioneira).

Fonte: Google

Na cena acima, vemos novamente as duas personagens juntas. Tasha,


ainda cumprindo pena, mantém os cabelos naturais e “indisciplinados”, mas
Tamika, agora Diretora da penitenciária, usa os cabelos alisados. A imagem
parece transmitir a ideia de que a ascensão profissional e social é mais asso-
sumário

ciada ao uso do cabelo alisado, enquanto o cabelo crespo continua sendo o


cabelo associado à marginalidade, à indisciplina e à pobreza.

A exclusão que restringe as mulheres negras a papéis de


subalternidade gera fortalecimento de estigmas e reper-
cussões em todas as áreas da vida, incluindo trabalho,
vida afetiva, relação com o corpo e sexualidade. Isso se
constitui como uma violência simbólica, apresentada em
imagens brancas ou embranquecidas, ocasionando sal-
dos negativos para as subjetividades de mulheres negras.
(CARNEIRO, 2015, p. 31)

O preconceito com o cabelo de pobre, é, na verdade, ocasionado


pelo racismo, que associa o negro à pobreza, à inferioridade e à negativida-
de. “A desvalorização e a alienação do negro estende-se a tudo aquilo que
207
toca a ele: o continente, os países, as instituições, o corpo, a mente, a língua,
a música, a arte, etc.” (MUNANGA, 2012, p. 193).

Sara França Eugênia


Essa confusão entre classe social e raça é mais uma das característi-
cas do tipo de racismo brasileiro, que se dá através do preconceito de marca
(NOGUEIRA, 1985).

Conclusão

Por meio da análise realizada no decorrer deste trabalho, foi possível


perceber que o cabelo crespo é associado a noções de pobreza, de falta de
beleza e de feminilidade. Percepções intrinsecamente ligadas ao racismo es-
trutural brasileiro, que concebe o negro, e tudo o que lhe diz respeito, como
inferior. O cabelo crespo como marca física e visível de identidade negra
absorve para si os preconceitos sociais e raciais.

Essa percepção equivocada persiste no imaginário social graças à


atuação dos meios de comunicação, que continuam a propagar ideias racis-
tas e estereotipadas de beleza. O reforço constante de um padrão de beleza
e feminilidade que não inclui fenótipos negros exclui e oprime, na medida
que é interiorizado por mulheres negras. A aceitação de um padrão de beleza
branco inatingível causa uma opressão violenta, que atinge principalmente
as mulheres negras, atuando através do gênero, da classe social e da raça,
reduzindo as chances de enfrentamento ao agir em três frentes distintas.

Essa opressão violenta e silenciosa é danosa e paralisa mulheres ne-


gras, fazendo-as buscar constantemente ideais de feminilidade, ascensão
sumário

social e beleza que não as inclui. Perceber que as noções do senso comum
acerca do que é belo, feminino e indicativo de sucesso profissional não in-
cluem as características negras é fundamental para nos conscientizarmos
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

de como o racismo sujeita mulheres negras a uma tripla forma de opressão.


Compreender isso e reconhecer as relações de poder que sustentam essas
ideias e que levam mulheres negras a rejeitarem seus corpos e cabelos é um
OS NOVOS DESAFIOS DOS

primeiro passo de resistência à opressão.

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A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10
sumário

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FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

QUINTÃO, Adriana Maria Penna.  O que ela tem na cabeça?: um estudo so-
bre o cabelo como performance identitária. Dissertação de Mestrado (Programa
de Pós Graduação em Antropologia). Universidade Federal Fluminense. Niterói.
OS NOVOS DESAFIOS DOS

2013. Disponível em: http://ppgantropologia.sites.uff.br/wp-content/uploads/si-


tes/16/2016/07/O-QUE-ELA-TEM-NA-CABECA_-Um-estudo-sobre-o-cabelo-como-
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PATTERSON, Orlando. Escravidão e Morte Social: um estudo comparativo.
Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
REIS, Dalmir. Propaganda antiga biotônico Fontoura. 2018. Disponível em:
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co-fontoura.html > . Acesso em: 20 set. 2019.
210
SABINO, César. O corpo utópico. In: SABINO, César. O peso da forma: cotidiano
e uso de drogas entre fisiculturistas. Universidade Federal do Rio de Janeiro/Pro-
A BELEZA AO SEU ALCANCE¹
CAPÍTULO 10

grama de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia - Tese de Doutorado. Rio de


Janeiro, 2004.
SANTOS, Helena. A construção da imagem “ideal” da mulher na mídia contempo-
rânea. In: FERREIRA, Silvia; ALVES, Ivia; Costa, Ana Alice. (Org.) Construindo inter-
disciplinaridades: estudos de gênero na Bahia. Salvador: UFBA/Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre a Mulher, 2008.
SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro
brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
TAYLOR, Charles. A Política do Reconhecimento. In: Argumentos Filosóficos. São
Paulo: Edições Loyola, 2000. pp. 241-274.
TELLA, Marco. Aurélio. Paz. Estigmas e desqualificação social dos negros em
São Paulo e Lisboa. Ponto e vírgula, n. 3, 2008. pp. 152-169.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as
mulheres. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
OS NOVOS DESAFIOS DOS
sobre as autoras

212
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA
sumário

AUTORAS
SOBRE AS
1. Ana Paula Araújo de Holanda
Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (1989), mestrado
em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará
(2002) e doutorado em Doutorado em Direito - Universidad Rovira i Virgili
(2017), Presidente da Associação de Mulheres da Carreira Jurídica - Ceará.
Conselheira da Associação Brasileira de Direito à Educação, Vice-Presidente
do Instituto dos Advogados do Ceará, Representante do Instituto dos Advo-
gados Brasileiros no Ceará, Ex-conselheira da Prefeitura Municipal de Forta-
leza, Coordenadora região Nordeste da Associação Brasileira de Ensino do
Direito, Membro da Comissão Especial de Defesa da Autonomia Universitária
da OAB Nacional, Ex-presidente da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-CE,
213
avaliadora do SINAES do Ministério da Educação – INEP, Professora assis-
tente N6 da Universidade de Fortaleza e Professora da Confederação das
Associações Comerciais e Empresariais do Brasil. Advogada. E-mail: apaho-
landa@hotmail.com

2. Andressa Regina Bissolotti dos Santos


Doutoranda e Mestra em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa
de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Gradua-
da em Direito pela mesma instituição. Pesquisadora visitante do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra para estágio de investigação
doutoral no período de jan-jun de 2021, com bolsa de doutorado sanduíche
financiada pela CAPES/Brasil. Integrante do Núcleo de Direitos Humanos
e Vulnerabilidades e do Núcleo de Estudos em Direito Civil Constitucional,
ambos do PPGD/UFPR. Professora de Direito Civil da Faculdade de Pinhais.
Advogada.

3. Cristiane Leal de Morais e Silva Ferraz


Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Universidade de Santa
Cruz do Sul - UNISC. Mestra em Ciências Ambientais e Saúde pela Universi-
dade Católica de Goiás. Docente e Pesquisadora da Pontifícia Universidade
Católica de Goiás. Advogada - atuante na área dos direitos das mulheres.
Associada ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
(CONPEDI). Parecerista da Revista da Faculdade de Direito da UFG (Univer-
sidade Federal de Goiás). Membro e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa
em Gênero da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Brasil - Seccional Goiás (CMA/OAB GO). E-mail: ferraz.cris@gmail.com

4. Fabiana de Paula Lima Isaac Mattaraia


OS NOVOS DESAFIOS DOS

Mestra e Doutoranda em Direitos Coletivos e Concreção da Cidadania


pela Universidade de Ribeirão Preto/SP (UNAERP). Especialista em Direito
Empresarial pelo Programa de Educação Continuada e Especialização em
Direito GVlaw SP. Professora e Advogada atuante; Email: fmattaraia@unaerp.
br; fabianaplisaac@gmail.com

214

5. Flávia Valéria Cassimiro Braga Melo


sobre as autoras

Graduada em Ciências Sociais pela UniEvangélica. Mestra em Ciências


da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goias (PUC/GO). Dou-
toranda em Antropologia Social pela UFG. Pesquisadora do NER - Núcleo de
Estudos de Religião e integrante do Comitê da Mulher e da Diversidade pela
UEG. Professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG). E-mail: flavia_va-
leria@yahoo.com.br

6. Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab


Pós-doutoramento pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário
da Universidade Federal de Goiás (PPGDA/UFG). Doutora e Mestra em Direito
Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universida-
de de Fortaleza. (PPGD/UNIFOR). Professora da ESUP/FGV (Goiânia - GO).
Membro e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero da Comissão
da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Goiás
(CMA/OAB-GO). Advogada. E-mail: ivchehab@gmail.com

7. Mariana Garcia Tabuchi


Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Es-
pecialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e
Política Criminal (ICPC). Mestra pelo Programa de Pós-Graduação de Direitos
Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUC/PR). E-mail: mariana.tabuchi@gmail.com

8. Mércia Cardoso de Souza


Doutora em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR, com está-
gio pré-doutoral no Departamento de Estudios Internacionales - Universidad
Loyola Andalucía, em Sevilha (Espanha). Mestra em Direito Público pela Pon-
tifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduada em Serviço Social
pela Universidade Estadual do Ceará e em Direito pela UNIFOR. É professora
da Faculdade Luciano Feijão [Sobral – CE]. Desenvolve projetos de pesquisa
sobre Direitos Humanos, com foco em tráfico de pessoas, trabalho forçado,
direitos das mulheres, gênero, raça e jurisprudência.
215

9. Mylena Maria Reginaldo Ferreira Gomes


Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (2003). Mestra em
Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2019). Defensora públi-
ca do Estado do Ceará. E-mail: mylenamagomes@edu.unifor.br

10. Neide Aparecida de Souza Lehfeld


Graduada em Serviço Social pela Universidade de Ribeirão Preto (1971),
graduação em Pedagogia pela Universidade de Ribeirão Preto (2011), mes-
trado em Serviço Social pela Fundação Escola de Sociologia e Política de
São Paulo (1980) e doutorado em Serviço Social PUC/SP pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo (1985). Atualmente é consultora nacional
da Universidade Estadual de Londrina, consultora nacional da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, presidente da comissão
Própria de Avaliação - CPA Universidade de Ribeirão Preto, celetista da Uni-
versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, presidente da comissão
central de pós-graduação da Associação de Ensino de Ribeirão Preto, profes-
sora da disciplina de estágio pedagogia da Associação de Ensino de Ribeirão
Preto e consultora adhoc do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-
fico e Tecnológico. E-mail: nlehfeld@unaerp.br
11. Priscila Nottingham
Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
FEMINISMOS NA ERA PÓS-DEMOCRÁTICA

Especialista em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos Sociais (UECE).


Mestra em Políticas Públicas e Sociedade (UECE, 2013). Assistente social atu-
ante no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará
(NETP/CE). E-mail: priscilanotty@gmail.com
OS NOVOS DESAFIOS DOS

12. Raquel Andrade dos Santos


Graduada em Direito pelo Centro Universitário Estácio do Ceará. Espe-
cialista em Direito e Processo do Trabalho. Mestranda em Avaliação de Políti-
cas Públicas pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Membro da Associa-
216 ção Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD. Presidente da Comissão
da Promoção da Igualdade Racial e Vice- presidente da Comissão da Mulher
Advogada da OAB seccional Ceará. Membro efetivo do Conselho Cearense
sobre as autoras

dos Direitos da Mulher do Estado do Ceará. Atuou como Assessora na Pro-


curadoria Geral do Município e Coordenadora Jurídica da Secretaria de Di-
reitos Humanos de Fortaleza. Possui experiência em Gestão Pública, Políticas
Públicas em Direitos Humanos e Políticas Públicas para Mulheres e Igualda-
de Racial. Atualmente é Coordenadora da Procuradoria Especial da Mulher
da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. E-mail: raquelandradesdh@
gmail.com

13. Sara França Eugênia


Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(2009). Pesquisou a influência da mídia em casos criminais de grande reper-
cussão, dando ênfase em direitos humanos e direitos constitucionais garan-
tidos pela Constituição Federal de 88. Possui MBA em Administração e ne-
gócios jurídicos pela Fundação Getúlio Vargas - RJ (2012), tendo pesquisado
a atuação da mídia em crises de imagem empresarias e as formas de conter
prejuízos. Membro participante do Grupo de Estudos em direitos humanos
cadastrado no CNPq, como atividade do grupo de pesquisa Memória, Ci-
dadania e Direitos Humanos (coordenado pela Profª Drª Vilma de Fátima
Machado). Especialista em Direitos Humanos, Cultura e Democracia pela
Universidade Federal de Goiás (2018) e Mestranda em Direitos Humanos pela
Universidade Federal de Goiás. E-mail: saraeugenia87@gmail.com
217

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