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Violência contra as mulheres: cultura, subjetivação e ensino de histórias do possível
algo que diz respeito ao espaço da vida íntima, doméstica e privada das relações
entre os sexos, – pautada na naturalização da superioridade, dominação e poder
dos homens sobre as mulheres. Essa visão, impregnada também de crenças e
preceitos sagrados, nega não só o reconhecimento da historicidade e do caráter
político dessa violência, mas a extensão da igualdade de direitos às mulheres e
homossexuais, servindo, portanto, à manutenção dos privilégios e poderes políticos
e econômicos de determinados grupos sociais.
Positivamente, boa parte das redações aprovadas com nota máxima4 são
aquelas que não incorreram no desrespeito aos direitos humanos e que revelaram
esforços significativos na busca por explicações históricas para o problema da
violência de gênero, atentando para a historicidade do tema, escapando ao
presenteísmo dominante e problemático na sua abordagem. Entretanto, chama
aqui a nossa atenção o modo como alguns estudantes brasileiros concebem a
persistência da violência contra as mulheres em uma dimensão temporal, a partir
de uma cultura histórica5 onde o patriarcado e o machismo são tomados como
fatos universais e persistentes na longa duração. Como exemplo, destacamos nas
redações as seguintes afirmações:
- “Segundo a história, a mulher sempre foi vista como inferior e
submissa ao homem”;
- “Ao longo da formação do território brasileiro, o patriarcalismo
sempre esteve presente, como por exemplo na posição do ‘Senhor do
Engenho’, consequentemente foi criada uma noção de inferioridade da
mulher em relação ao homem”;
__________
4- Os dez candidatos que tiraram nota 1.000 na redação forneceram seus textos ao G1 (2016). A cartilha do Inep
apresenta as cinco competências avaliadas nas redações: “Competência 1: Demonstrar domínio da modalidade escrita
formal da Língua Portuguesa. Competência 2: Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas
de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa.
Competência 3: Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de
um ponto de vista. Competência 4: Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção
da argumentação. Competência 5: Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os
direitos humanos” (...) Cada avaliador atribuirá uma nota entre 0 (zero) e 200 pontos para cada uma das cinco
competências, e a soma desses pontos comporá a nota total de cada avaliador, que pode chegar a 1.000 pontos. A
nota final do participante será a média aritmética das notas totais atribuídas pelos dois avaliadores (BRASIL, 2016, p. 8).
5- “(...) la cultura es el modo en que una sociedad interpreta, transmite y transforma la realidad. La cultura
histórica es el modo concreto y peculiar en que una sociedad se relaciona con su pasado. (...) Con la categoría
de cultura histórica definimos, por tanto, el conjunto de recursos y prácticas sociales a través de las cuales los
miembros de una comunidad interpretan, transmiten, objetivan y transforman su pasado. (...) Al estudiar la
cultura histórica indagamos la elaboración social de la experiencia histórica. Es imposible acceder al pasado en
cuanto que pasado. Para aproximarnos a él debemos representarlo, hacerlo presente a través de una
reelaboración sintética y creativa. Pero la elaboración de la experiencia histórica y su uso en el presente se
enmarca siempre dentro de unas prácticas sociales de interpretación y reproducción de la Historia”
(SÁNCHEZ-COSTA, 2009, p. 277).
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6- Uma das possíveis consequências desse tipo de narrativa histórica linear e evolutiva, que procura seguir os
rastros do desenvolvimento contínuo das relações entre os sexos, está em que ela “(...) é o correlato
indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a
certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o
sujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica –, se apropriar, novamente, de todas essas coisas
mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua
morada” (FOUCAULT, 1997, p. 14).
7- “Chamarei de subjetivação o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, mais exatamente de
uma subjetividade, que evidentemente é uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de
si” (FOUCAULT, 1984, p. 137). Nesse sentido, como explica Deleuze, “um processo de subjetivação, isto é, uma
produção de modo de existência, não pode se confundir com um sujeito, a menos que se destitua este de toda a
interioridade e mesmo de toda a identidade” (1992, p. 123).
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8- O texto de Asunción Bernárdez Rodal e Ignacion Moreno Segarra, nesta mesma coletânea, ao analisar o
modo como o fotojornalismo, premiado nas últimas décadas, constrói as diferenças de gênero acerca do
sofrimento humano, traz uma importante discussão sobre a cultura midiática e os usos de corpos femininos para
representar a globalidade ou particularidade de desastres e traumas humanos.
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Embora boa parte dos livros didáticos apontem para as diferenças de religião
e de crença como fatores de perseguição e condenação à morte pela Inquisição, a
dimensão de gênero – constitutiva também desse grande episódio de feminicídio –
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não é explicitada9. Não por acaso, a caça às bruxas ainda é um tema bastante
controverso, envolvido em uma variedade de discursos históricos (historiográficos,
cinematográficos, artísticos, literários, feministas, religiosos, dentre outros) que nos
revelam disputas, interesses, identidades e apropriações políticas em torno deste
passado.
Já o livro Oficina da História fala de Policarpa Salavarrieta ou Pola (1795-1817),
sacrificada em praça pública pelos espanhóis em 1817. Segundo os autores, ela foi
considerada por numerosos historiadores da época como a mais
representativa mulher da independência da Colômbia. (...) alia-se à
causa de Antonio Nariño, um dos chefes militares do movimento
independentista, e torna-se informante em Santa Fé de Bogotá.
Recolhe informações tanto em locais públicos como nas casas dos
realistas espanhóis onde trabalha como costureira. Transmite os dados
a mulheres que os comunicavam aos soldados que combatiam na
frente. Mas acaba por ser detida e executada a 14 de novembro de
1817. Em homenagem, em 1967, foi ratificada lei que tornou o 14 de
novembro o “dia da mulher colombiana” (CAMPOS; PINTO;
CLARO, 2016, v. 2, p. 142).
Imagem 1: Policarpa Salavarrieta, marcha para o suplício.
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9- Apenas a coleção #Contato História traz uma “Uma interpretação feminista da ‘caça às bruxas’” ao mencionar
que tais práticas estiveram diretamente relacionadas ao preconceito contra as mulheres e que variaram
dependendo da região em que ocorreram. A partir de questionamentos sobre quem eram estas mulheres e do
porquê do feminismo retomar a “bruxa” como um dos seus princípais símbolos, o texto afirma que se tratou de
uma “massiva campanha judicial” desencadeada pela Igreja, o Estado e as classes dominantes contra mulheres da
população rural e que, desse modo, teve um “significado religioso, político e sexual” (DIAS; GRINBERG;
PELLEGRINI, 2016, v. 2, p. 50).
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PELLEGRINI, 2016, v. 3, p. 283). Para isso propõe que se discuta “nas escolas, na
vida pública e nos meios familiares a importância da igualdade de gênero e a
valorização do papel das mulheres em nossa sociedade” (DIAS; GRINBERG;
PELLEGRINI, 2016, v. 3, p. 283). A narrativa se encerra de modo controverso
com a foto de uma manifestação de mulheres contra a implantação do vagão de
metrô exclusivo para mulheres em São Paulo (SP), em 2014, cuja legenda ressalta
que “os manifestantes alegam que esse tipo de medida não resolve o problema do
assédio sofrido pelas mulheres nos metrôs” (DIAS; GRINBERG; PELLEGRINI,
2016, v. 3, p. 283). Embora as propostas e abordagens apresentadas nesse livro
demonstrem certos avanços relevantes na educação para o combate à violência de
gênero, observamos que a exposição da historicidade dessa violência não é
explorada, ou seja, os processos históricos que explicam a persistência dessa
violência escapam à narrativa, alijando o ensino de história da tarefa importante
de desnaturalização das desigualdades de gênero.
Já a coleção História em Debate, em um texto intitulado “Desafios para a
conquista de direitos em questões de gênero”, menciona brevemente que os
enormes avanços alcançados pela sociedade quanto aos direitos das
mulheres estabelecidos em lei não se refletiram, como esperado, na
diminuição da violência contra elas. Em 2006, a Lei Maria da Penha
entrou em vigor alterando a possibilidade de seus agressores,
principalmente em ambiente doméstico, obterem penas alternativas
para seus crimes. A Lei Maria da Penha também é considerada um
marco na luta das mulheres por igualdade de direitos, já que
transforma a percepção social do papel das mulheres (MOCELLIN;
CAMARGO, 2016, v. 2, p. 290).
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Não por acaso, uma parte das demandas dos movimentos feministas e de
mulheres para a educação no combate ao sexismos e racismo foram incorporadas
aos critérios de avaliação das coleções didáticas inscritas no PNLD de 2018.
Assinalando o compromisso educacional assumido pelo Estado, de construção de
uma sociedade antirracista e antissexista, previa-se também que os livros didáticos
deviam:
1.1.1. promover positivamente a imagem da mulher, considerando sua
participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder,
reforçando sua visibilidade e protagonismo social;
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No entanto, sabemos que isso não é tarefa fácil no ensino de história, haja
vista a força de uma tradição epistêmica sexista/racista que promove o
silenciamento, apagamento e estigmatização de outras vozes, saberes, culturas e
histórias nos livros didáticos escolares. As histórias do possível abrigam a
alteridade, conferindo visibilidade aos “passados estranhos” reveladores de saberes
e práticas que escapam às convenções e normas de sociedades classificadas como
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12- Cf. em http://www.afrika.org.br/2016/somos-todas-rainha/.
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BOULOS JÚNIOR, Alfredo. História, Sociedade & Cidadania. 2. ed., São Paulo: FTD, 2016.
CAMPOS, Flávio de; PINTO, Júlio Pimentel; CLARO, Regina. Oficina de História.
2. ed., São Paulo: Leya, 2016.
COTRIM, Gilberto. História global. 3. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2016.
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Referências
_____. PNLD 2018: História. Guia de livros didáticos, Ensino Médio. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2017.
COLLINS, Patricia Hill. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como
categorias de análise e conexão. In: MORENO, Renta (Org.). Reflexões e práticas de
transformação feminista. São Paulo: SOF, 2015, p. 13-42.
DELEUZE, Gilles. A vida como obra de arte. In: Conversações. São Paulo: Ed. 34,
1992. p. 118-126.
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
G1. Redação no Enem: leia textos que tiraram nota mil em 2015. In: Educação.
Publicado em 16/06/2016. Disponível em
https://g1.globo.com/educacao/noticia/leia-redacoes-do-enem-2015-que-tirara
m-nota-maxima.ghtml. Acesso em: 29 abr. 2019.
LUGONES, María. Colonialidad y Género. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 73-102, dez. 2008.
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_____. O que a história não diz, nunca existiu? As amazonas brasileiras. Caminhos
da História (Unimontes), v. 9, 2004.
_____. Violência contra mulheres nos livros didáticos de História (PNLD 2018).
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 3, e58426, 2019.
_____. Por uma história do possível: representações das mulheres Incas nas crônicas e
na historiografia. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.
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SANTOS, Giselle Cristina dos Anjos Santos. Somos todas Rainhas. Coleção Histórias das
Mulheres Negras. Passado, Presente e Futuro. São Paulo: Associação Frida Kahlo e
Articulação Política de Juventudes Neg ras, 2011. Disponível em:
http://www.afrika.org.br/publicacoes/somos-todas-rainha-1ed.pdf. Acesso em 20 nov. 2017.
SCOTT, Joan W. Preface a gender and politics of history. Cadernos Pagu, Núcleo de
Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 1994, p. 11-28.
SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Madri: Traficante de Sueños, 2016.
WHITE, Hayden. Meta-história. A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EdUSP, 1995.
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