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Organizadores

João Paulo Allain Teixeira


Louise Dantas de Andrade

Jurisdição, Processo e
Direitos Humanos

Recife, julho de 2014


Créditos

Dseign da capa: Ana Catarina Lemos

Composição do miolo: Ana Catarina Lemos

Organização e revisão: João Paulo Allain Teixeira e Louise Dantas de Andrade

Editora: APPODI

J95 Jurisdição, processo e direitos humanos / João Paulo Allain


Teixeira, Louise Dantas de Andrade, organizadores.
-- Recife : APPODI, 2014.
255 p. : i..

ISBN: 978-85-64680-03-6

1. Direitos humanos - Brasil. I. Teixeira, João Paulo


Fernandes Allain. II. Andrade, Louise Dantas de.

CDU 342.7(81)
SOBRE OS AUTORES

João Paulo Allain Teixeira


Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005), Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas del Derecho pela
Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela Universi-
dade Federal de Pernambuco (1995). Professor dos programas de pós-graduação stricto sensu
da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Católica de Pernambuco. Professor
Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, professor da Universidade Católica de Pernam-
buco e Professor titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador ad hoc do MEC/INEP.

Louise Dantas de Andrade


Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Graduada em Direito
pela Universidade Católica de Pernambuco (2010).
APRESENTAÇÃO

O pensamento jurídico contemporâneo, nascido a partir da segunda metade do século pas-


sado, tem se voltado às múltiplas possibilidades de compreensão da tutela e promoção dos Direitos
Humanos. Uma das mais evidentes formas de proteção aos Direitos Humanos encontra-se na
dimensão jurisdicional do direito. O trabalho ora apresentado é o resultado de um esforço cole-
tivo voltado a debater as possibilidades de compreensão do papel do Poder Judiciário no que se
refere à efetividade dos Direitos Humanos em um contexto social fragmentado e multifacetado.
Este esforço é viabilizado a partir de diálogos estabelecidos entre os integrantes do Programa de
Pós-Graduação em Direito da UNICAP, integrantes do grupo de pesquisa “Jurisdição Constitucio-
nal, Democracia e Constitucionalização de Direitos” e pesquisadores de outras Universidades e
Centros de Pesquisa do país.
As abordagens que se seguem oferecem um panorama das possibilidades de pensar os di-
reitos humanos a partir do viés jurisdicional. Virginia Colares e Vinicius Calado, utilizando-se das
ferramentas da Análise Crítica do Discurso (ACD), dissecam um editorial publicado em um jornal
pernambucano acerca da Extradição de Cesare Batisti; Carolina Salazar L`Armee Queiroga de
Medeiros e Marilia Montenegro Pessoa de Mello, analisam o simbolismo da Lei Maria da Penha
no tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher; Érica Babini Lapa do Amaral,
Marilia Montenegro Pessoa de Mello, Juliana Marques Lyra Carneiro Leão, Keunny Raniere Car-
valho de Macêdo Filho estudam o tema da criminalização secundária nas varas da infância e da
juventude do Recife, evidenciando os paradoxos do sistema punitivo brasileiro; Manuela Abath
Valença lança um olhar crítico sobre a cultura do medo e seus reflexos para os Direitos Humanos;
Luciana Brasileiro inscreve os Direitos Humanos no contexto da reprodução assistida, analisando
seus reflexos para o direito à liberdade;em análise sobre a tutela dos Direitos em decorrência da
atividade médica, Natália Barroca estuda as violações aos Direitos Humanos e a responsabilidade
penal em decorrência da episiotomia; Hugo de Brito Machado Segundo partindo da neurociência
e da biologia, vislumbra a possibilidade de contribuições destes dominios do saber para a filosofia
do direito, Daniel Carneiro Leão Romaguera e João Paulo Allain Teixeira procuram estabelecer
um crítica contemporânea aos Direitos Humanos a partir da sua doxa universalista; sob uma pers-
pectiva institucional, Rafael Bezerra de Souza e Carlos Bolonha estudam as dificuldades de pensar
o funcionamento das instituições a partir de um recorte estritamente normativo; Flávia Santiago
Lima trabalha com o tema do “neoconstitucionalismo” destacando seus reflexos para a efetivida-
de constitucional; Em estudo sobre o controle da administração pública, Glauco Salomão Leite e
Marcelo Labanca Corrêa de Araújo se propõem a refletir sobre o pael da adminsitração pública no
que se refere à constitucionalização do direito à saúde; partindo do perfil legislativo brasileiro, Hé-
5
lio Silvio Ourém Campos dedica a sua atenção para a as interferências assimétricas da política na
produção do direito tributário brasileiro; Raymundo Juliano Feitosa e Alexandre Salema estudam o
tema da extrafiscalidade a partir da Teoria dos Sistemas; Lúcio Grassi de Gouveia trabalha com as
relações entre antijuridicidade e litigância de má-fé; Roberto Wanderley Nogueira analisa os novos
paradigmas constitucionais para o acesso à justiça de pessoas com deficiência; o tema de Aline da
Silva Machado Joaquim e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger é o estudo do Direito à Memória
na Constituição de 1988, partindo da obra “Eichmann em Jerusalém” de Hannah Arendt; Alexan-
dre Henrique Tavares Saldanha trabalha com a liberdade de comunicação em uma sociedade de
informação na restauração de democracias em regimes transicionais; Alexandre Freire Pimentel
dedica-se ao estudo do sistema jurisdicional norte-americano, lançando as bases para uma análise
comparativa entre o direito, o processo e a classificação das ações nos Estados Unidos, e finalmen-
te, Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso estuda as relações entre desenvolvimento econômico e
tráfico de pessoas.
Como se percebe, trata-se de um trabalho conjunto cuja maior virtude encontra-se na pos-
sibilidade de afirmação de um olhar multifacetado sobre um fenômeno complexo. É com alegria
e satisfação que apresentamos à comunidade jurídica nacional este conjunto de reflexões, na
esperança de que possam vir a estimular o debate em torno da proteção jurisdicional dos Direitos
Humanos.

João Paulo Allain Teixeira


Louise Dantas

Recife, julho de 2014

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO5

EXTRADIÇÃO DE CESARE BATTISTI: UM ESTUDO DA INFORMATIVIDADE JURÍDICA


DA MÍDIA NUM EDITORIAL PERNAMBUCANO 10
Virgínia Colares
Vinícius Calado

O SIMBOLISMO DA LEI “MARIA DA PENHA” NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊN-


CIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 18
Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros
Marília Montenegro Pessoa de Mello

A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA NAS VARAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE


RECIFE- SISTEMA PUNITIVO DISFARÇADO DE SOCIOEDUCATIVO – UM RETORNO
AO MENORISMO  28
Érica Babini Lapa do Amaral Machado
Marília Montenegro Pessoa de Mello
Juliana Marques Lyra Carneiro Leão
Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho

PRIVILÉGIO DE BANDIDOS? A CULTURA DO MEDO E O SENTIMENTO DE INSEGU-


RANÇA COLOCANDO OS DIREITOS HUMANOS EM XEQUE 41
Manuela Abath Valença

DIREITOS HUMANOS REPRODUTIVOS E REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA:


LIBERDADE DE REPRODUZIR (?) 53
Luciana Brasileiro

A RESPONSABILIDADE PENAL DECORRENTE DA EPISIOTOMIA COMO VIOLA-


ÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS 64
Natália Barroca

CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA E DA BIOLOGIA À FILOSOFIA DO DIREITO72

Hugo de Brito Machado Segundo


DOXA UNIVERSALISTA DOS DIREITOS HUMANOS E SEUS PARADOXOS: POR UMA
CRÍTICA AO DIREITO NA ATUALIDADE 85
Daniel Carneiro Leão Romaguera
João Paulo Allain Teixeira

TEORIAS JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOB A PERS-


PECTIVA INSTITUCIONAL 105
Rafael Bezerra de Souza
Carlos Bolonha

“MOVIMENTO BRASILEIRO DA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL”: CONSIDERA-


ÇÕES SOBRE A ADOÇÃO DOS POSTULADOS NEOCONSTITUCIONALISTAS NO
BRASIL120

Flávia Santiago Lima

O OUTRO LADO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CONTROLE DA ADMINISTRA-


ÇÃO PÚBLICA: ANÁLISE A PARTIR DO DIREITO À SAÚDE  132
Glauco Salomão Leite
Marcelo Labanca Corrêa de Aráujo

O BRASIL – ATOS INSTITUCIONAIS, ATOS COMPLEMENTARES E UMA HISTÓRIA DE


DESCONSTITUCIONALIZAÇÕES E RECONSTITUCIONALIZAÇÕES ACELERADAS139

Hélio Sílvio Ourem Campos

TEORIA DOS SISTEMAS E EXTRAFISCALIDADE: A QUESTÃO DA PREVALÊNCIA DA


LÓGICA DO SUBSISTEMA DA ECONOMIA 157
Raymundo Juliano Feitosa
Alexandre Henrique Salema Ferreira

ANTIJURIDICIDADE E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ 177


Lúcio Grassi de Gouveia

ACESSO À JUSTIÇA PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: NOVOS PARADIGMAS


CONSTITUCIONAIS189
Roberto Wanderley Nogueira

O DIREITO À MEMÓRIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: um olhar a partir da obra


Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt 202
Aline da Silva Machado Joaquim
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: DESAFIOS DA LIBER-
DADE DE COMUNICAÇÃO E DA LÓGICA “WIKILEAKS” NA RESTAURAÇÃO DAS
DEMOCRACIAS EM TRANSIÇÃO 223
Alexandre Henrique Tavares Saldanha

O SISTEMA JURISDICIONAL NORTE-AMERICANO: ANÁLISE COMPARATIVA SO-


BREO DIREITO, O PROCESSO E A CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES NOS EUA 231
Alexandre Freire Pimentel

LA POLÍTICA MIGRATORIA DE LOS ESTADOS DESARROLLADOS COMO FACTOR


FACILITADOR DE LA TRATA Y DEL TRÁFICO HUMANO 246
Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso
EXTRADIÇÃO DE CESARE BATTISTI: UM ESTUDO DA INFORMATIVI-
DADE JURÍDICA DA MÍDIA NUM EDITORIAL PERNAMBUCANO

Virgínia Colares1
Vinícius Calado2

1. A NOTÍCIA DO EDITORIAL

O fato jurídico (lato sensu) noticiado no editorial é uma decisão judicial proferida pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) no tocante ao pedido, feito pela Itália, de extradição de Cesare
Battisti, com fundamento em decisão judicial transitada em julgado naquele país que condenou
o cidadão italiano à pena de prisão por homicídio. Destaque-se que até mesmo esta simples in-
formação resumida da questão de fato jurídico não fora abordada no editorial, uma evidência de
versão da notícia politicamente comprometida.
O editorial, intitulado “BATTISTI ATINGE O STF”, ao leitor médio pode até passar desper-
cebido e iniciar a leitura do texto sem qualquer reflexão, entretanto o verbo atingir no presente do
indicativo insinua,em seu eixo de possibilidades polissêmicas, imediatamente, um duplo sentido:
o primeiro o de alcançar (chegar até lá) e o segundo de ofender/ manchar a imagem (HOUAISS,
2001. p.334). Assim a oração poderia ser interpretada como “Battisti chega até o STF” ou “Battisti
mancha a imagem do STF”, assinalando ambigüidade na construção.
Para o jurista, fica evidenciada a idéia de que Cesare Battisti conseguiu manchar a imagem
do STF com o episódio, notadamente porque juridicamente o caso não chegou até o STF, mas sim
originou-se nele por força de sua competência fixada na Constituição da República como adiante

1 Possui mestrado (1992) e doutorado (1999) em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Atualmente, é professora, adjunta IV, da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), atuando na graduação e
mestrado em Direito. É líder do Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito (Plataforma Lattes). Integra a International
Language and Law Association (ILLA). É participante do Grupo de Pesquisa em Linguística Forense da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem experiência na área de Linguística Aplicada ao Direito, atua na linha de pes-
quisa da Análise Crítica do Discurso Jurídico.
2 Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2000), com especialização em Direi-
to Tributário pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2002). Obteve o primeiro lugar na seleção para
o programa de mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2010), sendo aprovado
com distinção em sua defesa pública (2012). Atua como professor de Direito Civil, Direito do Consumidor e Prática
Jurídica na UNICAP (desde 2011). Sócio fundador e ex-presidente da APPODI - Associação Pernambucana de Pós-
graduandos em Direito (2010-2012).
10
se demonstrará.
Outro elemento de destaque neste editorial é a sua chamada: “O Supremo poderia ter
evitado o espetáculo vexatório de uma decisão inócua”, conforme figura 01, a seguir. De modo ex-
plícito, uma posição de crítica à conduta do STF, com escolhas lexicais eruditas precisas e tempo
verbal que remete o leitor a uma idéia de “culpa” do tribunal, pois, pela construção do texto do
editorial,pode-se inferir que o STF poderia ter evitado o espetáculo, mas não o fez.

Figura 01

2. ANÁLISE CRÍTICA DO EDITORIAL


A crescente expansão do poder judicial no Estado Democrático de Direito vem sendo cha-
mada por alguns autores de judicialização da política (WERNECK VIANNA et al., 1999; CAS-
TRO, 1997; SANTOS, 2003). Esse fenômeno mundial é caracterizado por uma postura ativista
dos juízes, que passam a interpretar “criativamente” o direito, ocasionando assim uma espécie de
transferência da função legislativa, antes concentrada nos poderes Legislativo e Executivo, para
os tribunais. Por outro lado, a influência do Poder Judiciário (e do raciocínio judicial) no campo
político torna-se visível devido à utilização, cada vez maior, de procedimentos judiciais por parte
de agências executivas e legislativas (TATE; VALLINDER, 1995).
Tais fenômenos que evidenciam essa dúplice tendência antidemocrática quando noticiados
na imprensa expõem relações entre diferentes práticas discursivas. No editorial, apresentam o
alinhamento político da empresa midiática como assegura Nascimento (2003, p.85):

O editorial é um texto argumentativo que representa a opinião da empresa jorna-


lística que o publica. Através dele, é apresentado o posicionamento do jornal sobre
fatos do dia-a-dia. A partir de um fato, o (a) editoralista desenvolve um raciocínio
valorativo, através do qual defende, com argumentos persuasivos, a posição políti-
co-social do jornal e refuta as opostas, conduzindo o leitor à conclusão pretendida
pela empresa.

11
Pelo sistema de transitividade da Gramática Sistêmico Funcional (GSF) há seis modos de ex-
pressar os processos verbais: (a) materiais, (b) mentais, (c) relacionais; considerados os principais
e (d) verbais, (e) existenciais e (f). comportamentais; considerados secundários. O processo, na
perspectiva da GSF, é um espaço semiótico no qual as regiões não são rígidas, há um continuum
entre os vários processos que sustenta o princípio da indeterminação semântica das línguas. Num
texto, podemos ver experiências construídas no domínio da emoção/ sentimento, p. ex. “estou
muito cansada” ou no domínio da classificação “meu corpo está quebrado” porque o mundo das
experiências é altamente indeterminado e a gramática constrói seu sistema a partir dos vários
tipos de processo sem comprometer a comunicação. Os processos principais [(a) materiais – do
mundo físico, (b) mentais – do mundo consciente, (c) relacionais - do mundo das relações abs-
tratas] são aqueles pelos quais se faz algo. Os processos materiais constituem ações nas quais as
entidades fazem algo. Assim, há orações médias ou intransitivas e orações transitivas ou efetivas.
Nas primeiras, há apenas um participante, p. ex. “Nos últimos anos, o STF tem buscado exibir de
maneira mais intensa, com transparência louvável, o debate sobre as suas decisões.” (linhas 03-
05, fragmento 01, a seguir). Já as orações efetivas ou transitivas têm dois ou mais participantes
como p. ex. “Causou estranheza em boa parte dos cidadãos quando, na última quarta-feira, o STF
decidiu procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti pela Itália, e logo em seguida, voltou
atrás, na prática, ao deixar para o Executivo – leia-se o presidente Lula – a última palavra sobre a
extradição.” (linhas 09-12, fragmento 02, a seguir). As orações transitivas assinalam que alguém
fez alguma coisa a alguém. Se na intransitiva acima, o STF aparece como único protagonista na
construção textual do editorial e por essa razão a oração aparenta maior isenção ou intransitivi-
dade; a segunda envolve vários protagonistas “os cidadãos” (leitoras do jornal); “o STF”; “Cesare
Battisti”; “a Itália”; “o Executivo/ o presidente Lula”.
1. Composto idealmente por personalidades de reconhecida experiência, notório saber e
2. ilibada trajetória pública, ao Supremo Tribunal Federal cabe decidir, em última instância,
3. questões muitas vezes polêmicas que são postas ao sistema jurisdicional brasileiro. Nos
4. últimos anos, o STF tem buscado exibir de maneira mais intensa, com transparência
5. louvável, o debate sobre as suas decisões. Neste processo, contudo, cresce a impressão
6. de que os holofotes da mídia chegam a ofuscar os ministros a tal ponto que a discussão
7. intramuros parece contaminar-se pelo calor do lado de fora.

Fragmento 01

A escolha dos verbos do mundo físico, eixo do fazer, comportamental: “cabe decidir” (linha
2); “exibir” (linha 4); “cresce” ( linha 5); “chegam a ofuscar” (linha 6) “contaminar-se” (linha 7)
reafirmam a idéia de agente do Supremo Tribunal Federal (STF) realizando processos materiais
que constituem ações de mudanças externas, físicas e perceptíveis. A reflexividade entre os minis-
tros do STF, “os holofotes da mídia” e o “calor do lado de fora” da população brasileira, é anuncia-
da pelo editorialista como “transparência louvável” (linhas 04-05) do STF. Entretanto, nos escritos
de Chouliaraki & Fairclough (1999) sobre a pós-modernidade, a reflexividade, em toda prática
social, há um aspecto discursivo; ou seja as construções discursivas das práticas são partes cons-
titutivas das próprias práticas e as práticas podem depender dessas construções para sustentar
relações de dominação; dessa forma, a reflexividade funciona ideologicamente e não de maneira
neutra como apregoam tanto o judiciário, como a imprensa- centros de poder da vida social no
dizer foucaulteano. A “informação” sobre a composição do STF (linhas 01-03), ao usar o advérbio
idealmente já demonstra o tom de crítica, um ar de ironia; inferindo-se daí que a composição do
STF, de fato, não é a ideal. Ao utilizar a técnica de ancoragem (aproximação/ distanciamento)
para falar genericamente da atuação positiva do STF e no caso concreto criticá-lo, o editorial re-
corre às expressões “Nos últimos anos” (linhas 03-04) e “Neste processo” (linha 05). O operador
argumentativo“contudo”(linha 05), indicador de contraposição, estabelece relações de contraste,
disjunção, concessão, oposição corroborando a ironia insinuada com a escolha lexical do advérbio
“idealmente” (linha 01).

8. Essa intercomunicação aparenta ter sido prejudicial à própria capacidade do STF de


9. discernir o seu raio de poder. Causou estranheza em boa parte dos cidadãos quando, na

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10. última quarta-feira, o STF decidiu procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti
11. pela Itália, e logo em seguida, voltou atrás, na prática, ao deixar para o Executivo – leia-
12. se o presidente Lula – a última palavra sobre a extradição. Lembra a letra de uma
13. canção de Vinicius de Moraes - se era para desfazer, por que é que fez? Ficou a
14. incômoda sensação de que a sutil diferença entre veredicto “determinativo” e
15. “autorizativo” configurou a tentativa de saída honrosa para uma questão resolvida, desde
16. a origem, politicamente.

Fragmento 02

O movimento dos verbos, no fragmento 02, informa que o STF fez e desfez uma decisão ao
sabor da política. Entretanto não informa que apenas o chefe de estado pode homologar um pedi-
do de extradição. O editorial joga mais que com os permitidos jogos de linguagem wittgnsteineanos
ao citar Vinicius de Moraes: “se era para desfazer, por que é que fez?” (linha 13). Nesse sentido,
Meurer e Motta-Roth (2002) dizem que, emtodo contexto cultural de situação, há atividades que
são representadasna linguagem, há papéis desempenhados por nós e por nossos interlocutoresque
se estabelecem pela linguagem, e há pressuposições compartilhadas pornós e por nossos interlo-
cutores sobre como essas atividades e esses papéisserão explicitados por meio da linguagem.
Assim, o uso dos verbos e da adjetivação demonstra tendenciosidade do jornal ao afirmar
que o STF estaria “contaminado” (linha 07, 46) e com seus ministros “ofuscados” (linha 06), e
ainda que ficou uma sensação “incômoda” em face de “sutil” (linha 14) diferença que configurou
a atitude uma “saída honrosa” (linha 15), numa decisão “apertada” (linha 32) que teria gerado
um “perigoso” (linha 35) precedente. Fala ainda de um elemento “perturbador” (linha 43) e aque-
la fora uma “surpreendente solução” (linha 47), além dos já citados “espetáculo vexatório/decisão
inócua” (chamada).Aduz ainda de modo implícito que o STF deveria ficar de “fora do mundo/
realidade social” para não se prejudicar ao asseverar que: “Essa intercomunicação aparenta ter
sido prejudicial à própria capacidade do STF de discernir o seu raio de poder.” (linhas 08-09)

17. Seria mais lógico, sob qualquer ângulo avaliado, que a apreciação que se sucedeu ao
18. mérito da extradição tivesse sido realizada antes, determinando-se previamente a quem
19. caberia a palavra final sobre o caso. Posto que, ficasse decidido, como ficou, que a
20. decisão seria da alçada do Executivo, posição defendida desde o início pelo ministro da
21. Justiça, Tarso Genro, o STF estaria dispensado de dar continuidade ao espetáculo
22. vexatório de uma decisão inócua. Se os processos de extradição “começam e terminam
23. pelo Executivo”, como declarou o ministro Carlos Ayres, a utilização da Suprema Corte
24. nacional como mero “rito de passagem” apenas onera os cofres públicos e toma o tempo
25. dos réus. Os ministros do Supremo certamente têm mais o que fazer.

Fragmento 03

Predomina neste fragmento verbos do eixo do mundo das relações abstratas que represen-
tam algo que acontece ou existe e se constroem com apenas um participante que a GSF denomina
existente, na nossa análise o STF. O fulcro do editorial é asserção: “Posto que, ficasse decidido,
como ficou, que a decisão seria da alçada do Executivo, posição defendida desde o início pelo
ministro da Justiça, Tarso Genro, o STF estaria dispensado de dar continuidade ao espetáculo ve-
xatório de uma decisão inócua”. O ministro não defendeu nenhuma posição, apenas aludiu à lei
que determina a competência jurídica da decisão.
Destaque-se, ainda, que existiram fatos precedentes a esse pronunciamento do STF. Cesa-
re Battisti havia solicitado a condição de refugiado político que fora deferida pelo Ministro Tarso
Genro. Nos autos da extradição, o STF reconhece a ilegalidade do ato de concessão de status de
refugiado político, concedido pelo Ministro de Estado da Justiça em setembro de 2009, e discute
o mérito do pedido feito pela Itália. Esse fato fez cair por terra um dos argumentos da defesa de
Cesare Battisti que se fundamentava no art. 33 da Lei nº 9.474/97 “O reconhecimento da condi-
ção de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que
fundamentaram a concessão de refúgio”.
Os parâmetros de legalidade para o caso da extradição de Cesare Battisti estão estabelecidos
no art. 77, VII do Estatuto do Estrangeiro, disciplinando que o crime político não pode ser o fun-
damento do pedido de extradição:

13
Lei n.: 6.815/81Art. 77. Não se concederá a extradição quando: VII - o fato consti-
tuir crime político;
Lei n.: 6815/81, Art. 77 - § 2º Caberá, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Fede-
ral, a apreciação do caráter da infração.

Nesse mesmo sentido está grafado o Tratado de Extradição entre Brasil e Itália, em seu
artigo 3º, 1: “A extradição não será concedida: (...) e) se o fato pelo qual é pedida for considerado,
pela Parte requerida, crime político;”. Da interpretação dos dispositivos constitucionais e legais
pertinentes, compreende-se que o papel do STF é apreciar a questão de fundo e não a extradição
em si. Ou seja, competiria ao STF, por meio de seu Plenário, decidir exclusivamente acerca da
prática ou não de crime político pelo extraditando Cesare Battisti. Caso não houvesse se pronun-
ciado o Plenário do Supremo Tribunal Federal - STF sobre a legalidade e procedência do pedido
de extradição, o extraditando não poderia ser entregue à Itália por força do art. 77 do Estatuto
do Estrangeiro acima transcrito, mas como houve o reconhecimento (apertado) da existência de
crime comum de homicídio, pronunciou-se o STF pelo deferimento do pedido de extradição.
Segundo o editorial, o problema fora o conteúdo da manifestação do STF na “contraditória
sessão” (linha 26) que julgou procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti feito pela Itália
e, ao mesmo tempo, entendeu que compete ao Presidente da República a discricionariedade da
execução ou não da extradição por se tratar de questão de relações internacionais. O discurso que
emerge da superfície textual do editorial expressa uma não-neutralidade; sinaliza explícita posição
contrária à atitude do STF; tece inúmeras críticas; e finda por inferir supostas conseqüências do
fato, sem qualquer correlação direta ao episódio. Nessas condições, a informatividade e a intertex-
tualidade restam comprometidas.
O caso Battisti não “chegou até o STF”, mas sim se originou nele por força de sua compe-
tência fixada na Constituição da República, pois assim estabelece o Art. 102, I, ‘g’ da CF/88:

CF/88, Art. 102 - Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda


da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro;

Assim, compete exclusivamente ao STF processar a julgar a extradição solicitada por Esta-
do estrangeiro, sendo justamente o que ocorreu no caso objeto de análise do editorial, qual seja,
o julgamento pelo STF do pedido de extradição de Cesare Battisti formulado pela Itália. A Lei n°
6.815/81 que “Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de
Imigração”, conhecida como “Estatuto do Estrangeiro”, trata da questão da extradição e disciplina
sobre qual aspecto deve o STF se pronunciar, estabelecendo ainda que dita decisão é irrecorrível,
posto que proferida pelo plenário da Corte3. Daí o menor grau de informatividade dos aspectos
legais envolvidos no fato jurídico (lato sensu), noticiado pelo editorial, compromete a notícia, tor-
nado-a tendenciosa.
O fragmento 03 se caracteriza pela utilização de verbos do eixo dos processos verbais (d),
existenciais (e) e comportamentais (f), considerados por Halliday; Matthiessen (2004) como se-
cundários. Esses processos verbais que expressam o dizer, comunicar, apontar, configuram as re-
lações simbólicas construídas na mente e expressas verbalmente ou por outras vias multimodais.
O editorial enuncia que “Se os processos de extradição ‘começam e terminam pelo Executivo’,
como declarou o ministro Carlos Ayres, a utilização da Suprema Corte nacional como mero ‘rito de
passagem’ apenas onera os cofres públicos e toma o tempo dos réus” (linhas 22-15). A utilização
das aspas, desloca a responsabilidade do dizer para o ministro, entretanto o Art. 102 da CF, como
visto acima, é incisivo quanto à competência do STF no que concerne “a extradição solicitada por
Estado estrangeiro”.
Na linha 25, a asserção de que “Os ministros do Supremo certamente têm mais o que fa-
zer. ”, um ato indireto de fala modalizado pelo advérbio “certamente”, ironicamente constrói uma
3 Lei n.: 6.815/81 - Art. 83. Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo
Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão.
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identidade negativa do STF.

26. A implicação da contraditória sessão do STF não passou despercebida por seus
27. integrantes. O ministro Cezar Peluso, relator do caso, comparou a possível negativa do
28. presidente da República à extradição a transformar a função do STF numa “brincadeira
29. de criança”. No mesmo tom, o presidente do Tribunal, Gilmar Mendes, afirmou que não
30. deveria haver espaço para questionar a validade da aprovação da extradição, uma vez
31. que a casa não seria “órgão de consulta”. Contrariando Mendes e o relator, pela mesma
32. votação apertada da primeira parte, só que em sentido inverso, por cinco votos a quatro,
33. os juízes resolveram dar o caráter “autorizativo” para a extradição do italiano.

Fragmento 04

Halliday; Matthiessen (2004) classificam os processos materiais em criativos e transfor-


mativos, sendo esses últimos aqueles que mudam o estado de coisas numa dada situação. Ao
comparar “ /.../a possível negativa do presidente da República à extradição a transformar a função
do STF numa “brincadeira de criança”, na voz do ministro Cezar Peluso; o editorial constói uma
oração cuja transitividade coloca em rota de colisão os poderes Executivo e Judiciário. A despeito
da concessão da extradição (ou sua execução) ser ato compete ao chefe de Estado, por força do
art. 84, incisos VII e VII da CF/1988. Ou seja, quem efetivamente despacha a extradição no Brasil
é o Presidente da República, após o prévio pronunciamento do STF, como já explicitado. Ou ainda
dito de outro modo, a decisão de deferimento da extradição pelo STF não vincula o Presidente da
República, sendo a decisão presidencial política e não jurídica. Neste diapasão, compulsando o
andamento do processual do processo de Extradição nº 1.0854, encontra-se o resumo da decisão
objeto do editorial: “O Tribunal, por maioria, deferiu o pedido de extradição, por maioria, o Tribu-
nal assentou o caráter discricionário do ato do Presidente da República de execução da extradição,
Extradição nº 1.085. Plenário, 18.11.2009.”
Como se vê, falar de mero “rito de passagem” (linha 24); “órgão de consulta” (linha 31);
“coadjuvante” (linha 41); dentre outras estratégias de nomeação da entidade jurídicaem tom de
caráter jocoso evidenciam a construção de uma identidade negativa STF pelo editorial do jornal.

34. O professor de direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Jr., chamou o vaivém
35. do STF no desfecho do caso Battisti de “um tiro no pé”. Abre-se perigoso precedente
36. para a desvalorização do Judiciário diante de um Executivo já hipertrofiado, como o
37. Executivo brasileiro. Afinal, para o cidadão comum, e de acordo com a prescrição
38. constitucional, o Supremo Tribunal Federal deve ser evocado para dirimir as mais altas
39. dúvidas, e sobre a sua resposta não devem restar bifurcações. Dentro da repartição dos
40. poderes republicanos, ninguém espera que o “tribunal supremo” funcione como um
41. coadjuvante “supremo conselho”. Ou que o julgamento dos dilemas nacionais seja
42. encargo submetido à ponderação do presidente da República. Como se vê, o recuo do
43. STF após “extraditar” Battisti lança um elemento perturbador na própria arquitetura
44. democrática.

Fragmento 05
No fragmento 05, o editorialista arremata o tecido textual iniciado com do fio condutor “se
era para desfazer, por que é que fez?” (linha 13) com o “vaivém do STF” (linha 34) atribuindo ao
“professor de direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Jr” o enunciado gnómico dar
“um tiro no pé” ( linha 35). Nesse caso, o tiro saiu pela culatra, pois qualquer cidadão brasileiro
poderia ter dito tal “pérola”, usar o argumento de autoridade de um eminente catedrático da USP
parece piada. Trata-se de uma “citação”, no mínimo, inadequada. Como já dito, se existem “bifur-
cações” (linha 39) foram postas pelo poder legislativo na construção das leis, vistas acima, e não
pelo STF que as cumpriu.
Assim, “a sutil diferença entre veredicto ‘determinativo’ e ‘autorizativo’” (linhas 14-15) não
se trata de uma “tentativa de saída honrosa para uma questão resolvida, desde a origem, politi-
camente”. (15-16), como pretende o editorial, o judiciário cumpriu aquilo posto pelo legislativo;

4 Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2514526
15
sendo ambos expressões do poder institucionalizado.

A idéia de poder, que está ao centro da visão moderna do direito processual, cons-
titui assim fator de aproximação do processo à política, entendida esta como o pro-
cesso de escolhas axiológicas e fixação dos destinos do Estado. (itálicos no original)
/.../
Em sua acepção mais ampla e necessariamente vaga, poder é a capacidade de pro-
duzir os efeitos pretendidos (ou simplesmente de alterar a probabilidade de obter
esses efeitos), seja sobre a matéria ou sobre as pessoas. (itálicos no original) DINA-
MARCO (2005. p. 100)

Assim, sendo o poder a capacidade de produzir os efeitos pretendidos, e sendo a observân-


cia do devido processo legal um direito fundamental, era indispensável a manifestação do poder
judiciário para atingir este desiderato, pois, se assim não fosse, estar-se-ia “ferindo de morte” o
texto constitucional e não “bifurcando-o”, ou o STF dando um “tiro no pé”.

45. A extradição de Cesare Battisti (ou a sua acolhida pelo governo brasileiro) recebeu tons
46. dramáticos e uma carga ideológica que não poderiam contaminar o seu julgamento.
47. Entretanto, a surpreendente solução, encontrada pelo máximo juizado do País, de
48. “concluir sem encerrar” um caso polêmico, além de perplexidade, traz de volta a
49. preocupação acerca da saúde de nossas instituições. Diante de um cenário continental
50. que apresenta endêmicas fragilidades, qualquer suspeita de trincamento em uma das
51. bases do estado de direito pode fazer ressurgir o fantasma de tempos idos, quando o
52. argumento político proibia que qualquer um pudesse contar com o bom senso final de
53. um tribunal superior isento, democrático e justo” – como consideramos o STF.

Fragmento 06

O tom do fragmento 06 é panfletário, evoca “o fantasma de tempos idos” da ditadura mili-


tar. Estrategicamente, o editorial alinha “a extradição de Cesare Battisti” com “a sua acolhida pelo
governo brasileiro” como sinônimos (linha 45), fato que, aí sim denota o tom político-partidário do
jornal. Paradoxalmente, a concepção de linguagem do jornalista isola as práticas sociais de julgar e
de dar a notícia de “tons dramáticos” e de “carga ideológica” como se produzissem textos no vácuo
social.
As vozes de Tarso Genro, Carlos Ayres, Cezar Peluso, o ministro relator do caso, o presidente
da República, Gilmar Mendes e Miguel Reale Jr tentam aproximar e persuadir o leitor a concordar
com ele (autor), mostrando uma conformidade discursiva de seu texto com o dos ministros, utili-
zando essa intertextualidade como uma de suas estratégias além de tentar a transitividade com os
cidadãos, evocando-os aqui e ali.
Em fecho, o autor conclui, sem qualquer, coerência de raciocínio com as premissas previa-
mente estabelecidas em seu texto que o STF estaria doente, inferindo que o judiciário teria “trin-
cado” e estaria submisso ao Executivo, não sendo, pois “isento, democrático e justo” como deveria
ser.

3. REFLEXÃO SOBRE A ANÁLISE


Em conclusão, podemos afirmar que o conteúdo informativo que deveria ser o aspecto mais
nítido do editorial, com linguagem clara e objetiva sobre o fato em si mesmo considerado, notada-
mente a questão jurídica de fundo e as divergências existentes (entre juristas), não foi a principal
preocupação do autor, emergindo do texto um discurso construído em premissas equivocadas/
parciais/ localizadas com uma conclusão de aspecto generalizante que termina por questionar
a lisura do Poder Judiciário, demonstrando-se que o editorial enquanto “voz” oficial do jornal,
expressou um discurso comprometido ideologicamente, numa verdadeira violação ao compromis-
so ético-profissional dos jornalistas, consubstanciado em levar ao grande público a “verdade dos
fatos”. Observou-se que o editorial em análise limita-se a transmitir ao leitor uma versão ideo-
logicamente comprometida visando angariar adeptos às suas teses, sem abordar, como deveria,

16
a questão central (efetivo deferimento da extradição pelo STF), a questão de fundo (não houve
crime político, segundo decisão do STF) e, por fim, a questão a decisão judicial que é objeto de
crítica pelo editorial (compete ao presidente e não ao STF executar a extradição).

REFERÊNCIAS
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do, 1988.
BRASIL. Lei n. 6.964, de 9.12.1981, com as alterações por ela introduzidas. Os anexos referidos
estão publicados no DOU, de 10.12.1981. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o
Conselho Nacional de Imigração. Disponível em http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/biblio-
tecavirtual/dh/volume%20i/naclei6815.htmAcesso em 19 set. 2010.
BRASIL. TRATADO DE EXTRADIÇÃO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A
REPÚBLICA ITALIANA. Assinado em Roma, em 17 de outubro de 1989.Aprovado pelo Decreto Le-
gislativo nº 78, de 20 de novembro de 1992. Ratificações trocadas em Brasília, em 14 de junho de
1993. Promulgado pelo Decreto nº 863, de 9 de julho de 1993. Publicado no Diário Oficial de 12 de
julho de 1993. Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/tratado-extradicao-brasil-italia.pdf. Acesso
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et al. Corpo e alma da magistratura brasileira. 3. ed. Riode Janeiro: Revam, 1997. 334 p.

17
O SIMBOLISMO DA LEI “MARIA DA PENHA” NO ENFRENTAMEN-
TO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER1

Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros2


Marília Montenegro Pessoa de Mello3

1. A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA COMO FORMA DE CONTROLE INFORMAL SOBRE


AS MULHERES NA SOCIEDADE PATRIARCAL BRASILEIRA
A legitimação da sociedade patriarcal por parte do sistema da justiça criminal se deu, dentre
outras razões, porque o Estado penal se eximiu de interferir na esfera privada. Nesse sentido, o
sistema penal transferiu a responsabilidade de controle sobre as mulheres para outras instituições
de controle social, tidas como informais, como as escolas, a mídia, a religião e, principalmente, as
famílias, através das quais eram aplicadas sanções informais (privadas) às mulheres cujas condu-
tas eram contrárias ao padrão social esperado (não preenchiam a condição de “boa” filha, “boa”
esposa ou “boa” mãe), e não as formais (públicas) aplicadas pela Justiça Penal (BARATTA, 1999,
45-46).
O Estado penal, então, absteve-se de interferir na esfera privada, transferindo para o ho-
mem, detentor do poder patriarcal, a responsabilidade de exercer o controle e fiscalizar o compor-
tamento das mulheres. A preocupação com a sexualidade e reputação da mulher autorizava, por
exemplo, a restrição de sua liberdade e acesso aos espaços públicos, como também maior controle
sobre o seu corpo. Ademais, a falta de independência econômica permitia também o controle das
horas vagas e das atividades de lazer.

1 O presente trabalho foi aprovado e apresentado pelas autoras no 4º CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊN-
CIAS CRIMINAIS: Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos, realizado no segundo semestre de
2013, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Ademais, está vinculado às pesquisas
desenvolvidas pelo Grupo Asa Branca de Criminologia -www.asabrancacriminologia.blogspot.com.br
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista CAPES/
PROSUP.
3 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco. Professora do programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e da Gradua-
ção em Direito da UNICAP e UFPE.
18
Em último caso, porém com certa frequência, essas formas de controle resultavam na práti-
ca de violência, “justificada como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos
papéis de gênero” (DIAS, 2010, p. 21). Ao eximir-se de interferir na esfera privada, pois, o Direito
Penal elevou praticamente à legalidade ações violentas no seio familiar contra as mulheres, mas-
carando-as e dando a impressão de que a paz reinava no “nobre” e intocável âmbito privado. Nesse
contexto, em momentos históricos, ainda que teoricamente possível, o Direito Penal eliminou, na
prática, a atuação da mulher no polo ativo de um crime, por ser considerada, ao revés do homem,
vulnerável, inativa e inferior. Ressaltou com frequência, entretanto, desde que considerada “ho-
nesta”, sua qualidade de vítima.
Na tipificação dos crimes sexuais do Código Penal, o legislador utilizou-se da técnica que
Vera Andrade denomina de “lógica da honestidade” (ANDRADE, 2005, p. 90), pela qual, classi-
ficavam-se as mulheres vitimizando ou desvitimizando-as conforme o padrão de sexualidade da
época. Obviamente, as mulheres consideradas “desonestas” e “indignas” eram afastadas do polo
passivo do crime, de modo a desmerecer a tutela do Direito Penal.
Nesse cenário, a qualidade de vítima da mulher, desde que considerada “honesta”, foi tão
frequentemente ressaltada que, embora apenas exigido para a configuração de alguns crimes se-
xuais, o preenchimento da condição de honestidade pela mulher parecia ser elemento essencial
para sua figuração no polo passivo de qualquer tipo penal. Logo, independentemente do bem ju-
rídico atingido – vida, integridade física ou honra – enquanto considerada “indigna”, “pública” ou
“prostituta”, a prática criminosa contra a mulher parecia ficar subliminarmente autorizada pela
ordem jurídica (MELLO, 2009, p. 466).
Foi nesse contexto, pois, que se desenvolveu a sociedade patriarcal brasileira. Nela, os es-
tigmas impostos pelo sistema penal, especialmente os relacionados à sexualidade, legitimaram
exigências de padrões comportamentais femininos e também contribuíram para ressaltar os me-
canismos de controle sobre as mulheres, que se resumiam à aplicação pelos homens de penas
privadas no núcleo da instituição familiar, em nome da “proteção da família”, da “defesa da honra”
ou da “garantia do pátrio poder”.
Em razão da abstenção do Estado penal de interferir na esfera privada, portanto, a maio-
ria dos delitos praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar não chegava ao co-
nhecimento das autoridades ou, quando chegava, por algum motivo, não resultava em processo
criminal. Esse processo de imunização e impunidade gerou a chamada “cifra oculta” do crime
(SUTHERLAND, 1985)4. Por conseguinte, tinha-se a falsa impressão de que não havia violência
alguma contra a mulher.

2. O POPULISMO PUNITIVO E A LEI “MARIA DA PENHA”


Somente após a vigência da Constituição Federal Brasileira de 1988, com a formal equi-
paração dos direitos das mulheres aos dos homens, a realidade dessa legitimação passou a ser
modificada e a violência de gênero passou, paulatinamente, a ser revelada e a ter um tratamento
diferenciado no sistema jurídico penal brasileiro.
Nesse cenário, por intermédio de indicadores oficiais, dentro dos Juizados Especiais Cri-
minais, se evidenciou a alarmante presença de inúmeros casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher, até então desconhecidos (ou ignorados) pela sociedade brasileira (CAMPOS;
CARVALHO, 2011, p. 143-145). Constatou-se, assim, um paradoxo, já que a família, espaço de
proteção onde laços de amor e afeto são construídos, revelou-se, também, um local de violência e
violação. No contexto da violência doméstica, pois, o homem, pai ou companheiro, confunde-se
com o agressor.
Embora evidenciada, o julgamento da violência doméstica nestes Juizados demonstrou-se
ineficaz, porque se desconsiderava a relação hierarquizada e de poder sobre as mulheres no am-
biente doméstico e familiar, como também a existência, entre vítima e agressor, de uma relação de
carinho e afeto (ROMEIRO, 2009, p.54). No mais, o propósito de escuta das vítimas era inverso ao

4 A “cifra oculta” da criminalidade é representada pela diferença entre a “criminalidade real” (quantidade de delitos
cometidos verdadeiramente em um determinado momento) e a “criminalidade aparente” (casos que chegam ao co-
nhecimento das autoridades e constam nas estatísticas oficiais).
19
procedimento utilizado e as soluções apresentadas, através indiscriminada utilização das medidas
despenalizadoras e redução dos conflitos a aspectos pecuniários, findaram por banalizar esta vio-
lência de gênero (CAMPOS; CARVALHO, 2006, P. 419).
Além de estar bastante presente nos JECRIMs, a violência doméstica contra a mulher pas-
sou a ocupar um espaço cada vez maior na imprensa brasileira. Portanto, ao divulgar e dramatizar
alguns casos extremos de violência contra a mulher, como o da cearense Maria da Penha Maia
Fernandes, vítima de duas tentativas de homicídio por seu ex-marido, a mídia passou a fomentar
e legitimar a necessidade de um maior rigor punitivo para os agressores, interferindo, assim, na
opinião pública.
A mídia, no entanto, superficializa as realidades sociais e distorce o modo de enxergá-las,
de sorte que a essência dos problemas passa a ser ignorada. Adicionalmente, todo conhecimento
produzido nas universidades por estudiosos renomados a respeito da violência institucional das
prisões, seus efeitos negativos sobre o indivíduo e o fracasso das ideologias prevencionistas é es-
condido. Ganham espaço nos telejornais de maiores audiência, em contrapartida, os discursos
vazios dos “especialistas em tudo”, os quais reduzem a complexidade dos conflitos ao binômio de-
lito-pena e tentam convencer os expectadores de que a única opção que resta ao Estado é o poder
de punir e criminalizar (BATISTA, 2002, p. 274-276).
Com efeito, as pessoas compadecidas com o drama da violência de gênero, se visualizavam
como potenciais vítimas, demonizavam os possíveis agressores e criticavam o Estado brasileiro em
razão do banal tratamento dado à violência contra a mulher no âmbito dos JECrims. Nesse ínte-
rim, a sociedade se mobilizou a fim de inserir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos
debates políticos e pleitear o aumento indiscriminado da punição.
Nesse contexto, é de suma importância a apresentação dos ensinamentos de David Garland
(2008, p. 55), que, embora observador das realidades norteamericanas e britânicas, conseguiu
caracterizar um fenômeno evidentemente global:

Os interesses e sentimentos das vítimas (...) agora são rotineiramente invocados em


apoio às medidas de segregação punitiva. Nos EUA, políticos concedem entrevistas
coletivas para anunciar leis relativas às sentenças condenatórias, e são acompanha-
dos no palco pelas famílias das vítimas. Leis são aprovadas e batizadas com o nome
de vítimas (...). O novo imperativo político é no sentido de que as vítimas devem ser
protegidas, seus clamores devem ser ouvidos, sua memória deve ser honrada, sua
raiva deve ser exprimida, seus medos devem ser tratados (...). Qualquer atenção
aos direitos ou ao bem-estar do agressor é considerada defletiva das medidas apro-
priadas de respeito às vítimas. Cria-se um jogo político maniqueísta, no qual o gan-
ho do agressor significa a perda da “vítima”, e “apoiar” as vítimas automaticamente
quer dizer ser duro com os agressores.

A articulação do poder da mídia com o sofrimento das vítimas e as demandas populares


recrudescedoras causam fortes consequências na política, gerando o fenômeno que se denomina
“populismo punitivo”, o qual consiste na verdadeira “perpetuação do antigo clientelismo que sem-
pre marcou as recentes democracias latino-americanas” (GLOECKNER, 2011, p. 82) por meio
da utilização política do arsenal penal. Tal fenômeno é caracterizado pela atual tendência política
de se atuar emergencialmente enrijecendo legislações penais, em razão da demanda populacional
por respostas mais incisivas ao crime, consequência da disseminação do medo e forte sentimento
de insegurança social, potencializados, ainda, pelo apelo midiático. Como efeito, políticas crimi-
nais recrudecedoras, incluídas nas pautas eleitoreiras como principal forma de solução das maze-
las sociais, são aplaudidas pela sociedade e a popularidade dos mentores dessas políticas aumenta
significativamente.
A respeito dessas manobras políticas através das quais os legisladores fogem às suas respon-
sabilidades ao tentar atribuir às legislações penais um efeito educador meramente simbólico, Raúl
Zaffaroni (2011, p. 44) declara:

Essas normalizações são claramente inconstitucionais porque, (a) usam as pessoas

20
como meio para a obtenção de fins e (b) porque valoram positivamente o embuste
público (pretendem que a população acredite falsamente que seus bens são tutela-
dos com eficácia). Quando os bens jurídicos ficam desprotegidos, o público engana-
do e o poder punitivo incrementado, é violada frontalmente a constituição porque
(a) não se provê segurança, (b) se coisificam ou se mediatizam os seres humanos,
(c) o príncípio democrático é pervertido por enganação, (d) se colocam em perigo
os âmbitos democráticos, habilitando o abuso do poder punitivo, (e) se aprofunda
a seletividade punitiva, (f) por fim, se obstaculizam o desenvolvimento social e o
aperfeiçoamento institucional.

Com efeito, as soluções atuais dadas ao crime ganham um novo semblante bastante para-
doxal, porque, na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança e educar a moral
societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, por não conseguem
cumprir, sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas, assim como, muitas vezes,
põem em risco os próprios bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MRAINHO JÚNIOR,
2009, p. 86-89).
Face, portanto, ao compadecimento social com a história de Maria, à fácil aderência por
todos às causas feministas, no que tange à violência doméstica contra a mulher, como também
aos fortes anseios e apelos vindicativos midiáticos e coletivos por uma máxima intervenção penal,
o Estado, por meio de seus discursos políticos-demagogos, não inovou e decidiu governar através
da simbólica intervenção punitiva e fez por encerrada sua suposta atuação voltada para a solução
do problema social “iluminado”. Surgiu, assim, no cenário jurídico nacional a Lei n.º 11.340/2006
como resposta política às fortes demandas midiáticas e populacionais por ações mais incisivas
contra a criminalidade doméstica.
Quanto ao tratamento penal previsto para os crimes praticados contra a mulher no contexto
doméstico e familiar, a Lei n.º 11.340/2006 pecou em inúmeros aspectos. O Poder Legislativo,
preocupado apenas em atender clamores demandantes de uma Lei rigorosa, contrariamente à
tendência dos movimentos e reformas garantistas em favor dos direitos humanos, vedou o uso
das aclamadas medidas despenalizadoras, aumentou penas de crimes, adicionou circunstâncias
agravantes ao Código Penal, ampliou o rol de situações passíveis de prisões preventivas e preferiu
a regra da ação penal incondicionada. Afastou-se, portanto, do referencial minimalista do Direito
Penal para solucionar conflitos de origem doméstica e familiar.
Diante do exposto, a Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe
muitas alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante acla-
mada pelos militantes em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para autonomia e
segurança feminina. No entanto, as pretensões da criminalização provedora são tidas como fala-
ciosas e inócuas. Nesse sentido, assegura-se:

O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do movimento
feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo que as normas
penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata, uma sensação de segu-
rança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de
segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirma-
ção que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significam mais presos, mas não
menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social,
as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua
carga simbólica (MELLO, 2010, p. 146).

A legislação, através de sua redação, portanto, trouxe a simbólica criminalização de comple-


xos problemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto, os estudos de crimino-
logia crítica comprovam o quanto esse sistema está deslegitimado por produzir um falso discurso
de erradicação da violência e promoção da segurança.

21
3. A INCAPACIDADE DE O SISTEMA PENAL RESOLVER UM PROBLEMA SOCIAL
A lógica da imposição de sanções do sistema penal, através da teoria da pena, apresenta-se
aparentemente perfeita, porque, promete acabar com a criminalidade, garantir a segurança e a
correção do delinquente. Com efeito, alude-se ao sistema penal, diante de suas promessas, como
melhor forma de solução de mazelas sociais.
Entretanto, pesquisas revelam que, contrariamente ao que se espera como consequência da
crescente utilização do cárcere como meio de prevenção do crime, os índices da criminalidade
não diminuem, mas aumentam concomitantemente ao aumento dos indicadores da população
encarcerada (CID; LARRAURI, 2009, p. 3-13). Nesse sentido, Foucault confirma: “as prisões
não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a
quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta” (FOUCAULT,
1999, p. 292).
Outrossim, o cárcere revela-se como uma instituição degradante que não realiza a promessa
de recuperação do delinquente. A prisão, que ainda é uma pena corporal, só gera sofrimento: im-
põe um modo de vida peculiar, controlado e negativo ao detento, priva-o a da forma cotidiana de
viver, do contato com familiares, amigos e pertences, das relações amorosas, do trabalho, de modo
que despersonaliza e dessocializa o prisioneiro (ZAFFARONI, 2001, p. 135-136).
Nesse diapasão, é contraditória a utilização da segregação pessoal e consequente afastamen-
to de todas as regras sociais extramuros, com a intenção de integrar o preso, como um passe de
mágica, às regras sociais das quais foram afastados. Sem mencionar, ainda, a crise institucional
pela qual o cárcere passa em razão das degradantes condições de vida proporcionadas aos prisio-
neiros. Ademais, as dificuldades de readaptação são potencializadas pelo estigma social que marca
um ex-condenado, de modo que, mesmo com a cessação do sequestro institucional, a exclusão
social perdura para além do tempo atrás das grades. Como consequência da exclusão constante,
altos índices de reincidência são apresentados à sociedade (ANDRADE, 1997, p. 291).
Cai por terra, pois, a funcionalidade das atribuições da pena: o sistema penal é incapaz de
proteger bens jurídicos, de reduzir da criminalidade e de ressocializar o preso. Assim, salta aos
olhos que a operacionalidade do sistema penal baseia-se na irracionalidade e que ele representa
uma aberração no mundo real. O sistema penal revela-se como um sistema de aparências porque
não consegue fazer com que as promessas que o legitimam sejam cumpridas; marcada está, pois,
sua completa crise de legitimidade (ANDRADE, 2006, p. 470-471).
O sistema penal, portanto, está falido e deslegitimado e possui uma lógica particular, cuja
funcionalidade é intangível aos problemas que pretende resolver. A pena deixou, nesse contexto,
de ter funções concretas; restou-lhe, apenas, a função simbólica de manutenção do sistema penal
e crença populacional na legislação vigente e na funcionalidade do próprio sistema; é o que se
denomina de “função agnóstica da pena” (ZAFFARONI, 2004, p. 33).
Na atualidade, no entanto, a sociedade, escravizada pelo medo e pela insegurança, prefere
optar por uma atuação simbólica a qual acaba por expandir o paradoxal sistema punitivo no intui-
to de acalmar seus anseios. Nesse compasso, porém, as esferas que apresentariam soluções mais
plausíveis aos conflitos são ocultadas e os problemas sociais findam por não serem solucionados.
A ineficiência do sistema penal para prevenir e erradicar a criminalidade não é diferente
quando o assunto é a violência doméstica e familiar contra a mulher. Estudos divulgadospor Ele-
na Larrauri demonstraram que, na Espanha, conquanto exista a rígida Lei Orgânica n.º 11/2003,
a qual em muito inspirou a brasileira Lei “Maria da Penha”, os índices de homicídios praticados
contra as mulheres por seus parceiros não diminuíram. Deveras, resultados revelam, ainda, que
as mulheres em situação de violência não vislumbram a aptidão da justiça penal para ajudá-las a
solucionar seus problemas (LARRAURI, 2011, p. 1-2).
Os motivos que conduzem a decepção feminina com o sistema penal são vários, no entanto
todos eles convergem para um único fato (de inúmeros efeitos negativos): a apropriação, pelo sis-
tema penal, dos conflitos das vítimas, de sorte que suas vozes e expectativas são completamente
olvidadas e o problema não é solucionado.
O procedimento processual penal, tal como é concebido na modernidade, relega à vítima um
papel secundário. A prioridade da ação Estatal não consiste na contemplação dos sentimentos da
vítima ou dos efeitos da prática delitiva sobre sua vida, mas na persecução penal daquele que pra-

22
ticou um ato criminoso. Após a expropriação do conflito pelo Estado, portanto, o suposto agressor
não tem que dar satisfações à ofendida, mas deve prestar contas ao próprio Estado, detentor da
ação penal.
As vítimas, no sistema penal, portanto, são ignoradas; seus depoimentos são reduzidos a
termo e, para os oficiais, tudo que importa ao reportá-los são as circunstâncias que fazem o fato
subsumir à norma, o que leva à completa redução da complexidade desses conflitos. No enqua-
dramento legal, portanto, o encadeamento da briga é totalmente refutado e reduzido àquele único
ato que define o crime (CELIS; HULSMAN, 1993, p. 82).
Necessário destacar, ainda, um dos aspectos mais relevantes e diferenciadores dos conflitos
de gênero: o comprometimento emocional entre as partes envolvidas. As normas do direito penal
não contemplam o envolvimento afetivo entre os integrantes dos polos ativos e passivo do crime;
elas programam, normalmente, situações corriqueiras e não complexas nas quais as partes não se
conhecem, como uma briga em um bar ou um roubo eventual. No caso da violência doméstica e
familiar contra a mulher, entretanto, a briga ou agressão é concomitante à existência de uma rela-
ção familiar, onde os integrantes partilham laços de amor, intimidade e carinho. Logo, os casos en-
volvem uma carga subjetiva muito grande e o Direito Penal não foi estruturado para contemplá-la.
Em decorrência dessas relações íntimas e de afeto existentes, aponta-se que as mulheres
violadas, ao tornarem público o conflito doméstico e familiar, normalmente não querem retribuir
o mal causado pelo agressor, criminalizando-o e punindo-o. Elas desejam apenas romper o ciclo de
violência e restabelecer o pacto familiar e a paz no lar. Até mesmo as raras mulheres que desejam
a separação, no caso de violência conjugal, não almejam a persecução penal do agressor; elas pre-
ferem que a coesão familiar seja mantida, especialmente quando há filhos envolvidos.
Nesse diapasão, as mensagens midiáticas de que as vítimas e suas famílias clamam por
vingança e punição são bastante falaciosas. Afirma-se que o sentimento da vindita até existe,
principalmente logo após a ocorrência do fato, daí a existência de calorosos depoimentos veicu-
lados nos meios de comunicação. Entretanto, esse sentimento não é generalizado e muito menos
duradouro. Pesquisas revelam que as vítimas, em geral, não vislumbram a necessidade de um pro-
cesso penal e, até mesmo em casos mais graves, preferem a resolução do conflito fora do mundo
jurídico-penal e punitivo (CELIS; HULSMAN, 1993, p. 116-118).
As vítimas querem, nesse contexto, proteção e a disponibilidade de formas diversas e con-
cretas para a solução dos conflitos domésticos e não, necessariamente, a punição do agressor. No
entanto, a expropriação do conflito pelo Estado, além reduzir as complexidades dos conflitos por
não contemplar suas peculiaridades e múltiplas facetas, redunda na apresentação de uma única
reação à situação conflituosa: a resposta punitiva através da imposição de uma pena privativa de
liberdade.
O enforque penal, portanto, limita as mulheres e o conflito é subtraído, por completo, da
órbita de alcance das partes envolvidas, de modo que e as múltiplas formas de solução disponíveis
são forçosamente substituídas pela aplicação de uma lógica punitiva (OTERO, 2008).
Ademais, a crença de que, com a punição do agressor, a vítima poderá descansar e encontrar
sua paz, é tão falaciosa quanto os ideais de ressocialização e prevenção que acompanham o mo-
delo da justiça encarceradora. Quando o processo termina com a imposição de uma medida cons-
tritiva, a mulher, que ainda partilha sentimentos amorosos pelo agressor, ao ver o sofrimento do
condenado no cumprimento da pena, sente-se uma violadora e não mais uma vítima, já que vis-
lumbra o mal causado ao agressor muito mais gravoso que aquele que ele lhe causou. Outrossim,
os efeitos da pena transcendem à pessoa do condenado, de modo que afetam substancialmente a
família (HERMANN, 2002, p. 56-57).
A imposição da pena ao agressor, portanto, implica também a imposição de uma sanção à ví-
tima. Com a intervenção penal, a mulher fica desamparada em todos os sentidos: não possui mais
apoio econômico (seja porque ela já não trabalhava, seja porque a renda familiar não será mais
complementada); não há mais a afetividade daquele ente querido no seio familiar; e, o estigma
de ser “filha”, “mãe” ou “mulher” de um condenado acompanha-a em qualquer âmbito social,
dificultando suas relações e obtenção de trabalho. A condição de vítima da mulher, portanto, per-
petua-se com a condenação de seu agressor; o vitimizador, no entanto, agora é o próprio sistema
penal.
Ante o exposto, percebe-se que normalmente as mulheres vítimas da violência doméstica

23
não desejam a existência do procedimento penal5. A Lei Maria da Penha, no entanto, impossi-
bilitou qualquer forma de diálogo e de exposição das vontades das vítimas, seja pela vedação da
utilização dos institutos alternativos ao processo, seja pela escolha da regra da ação penal pública
incondicionada. Paradoxalmente, pois, a Lei que surgiu, no contexto do fenômeno do populismo
punitivo, no intuito de dar voz e poder às mulheres, impõe um procedimento o qual impede que
elas falem e que elas tenham vez.
Com efeito, a rigidez da legislação, que impõe a irreversibilidade do procedimento processual
penal e a prisão como única resposta ao conflito doméstico, findará por inibir a procura do auxilio
institucional e contribuir para o silêncio e temor das vítimas. Por conseguinte, as “cifras ocultas”
da violência doméstica contra a mulher poderão ser incrementadas, já que o próprio instrumento
reservado à proteção feminina irá, de todas as formas, penalizá-la. A respeito, afirma Julita Lem-
gruber (2011, p. 381):

(...) legislações muito rígidas desestimulam as mulheres agredidas a denunciarem


seus agressores e registrarem suas queixas. Sempre que o companheiro ou esposo
é o único provedor da família, o medo de sua prisão e condenação a uma pena
privativa de liberdade acaba por contribuir para a impunidade... É urgente que se
amplie o conhecimento das experiências alternativas à imposição de penas nesta
área, pois já existe evidência de que, em vários casos, o encarceramento de homens
pode aumentar, ao invés de diminuir, os níveis de violência contra a mulher e as
taxas gerais de impunidade para esse tipo de crime.

Nesses termos, pois, a intervenção penal jamais poderá ser considerada como um meio efeti-
vo para a solução de conflitos domésticos. Em verdade, muitos dos conflitos pessoais, os quais são
enquadráveis na previsão taxativa da Lei penal, na atualidade, são resolvidos através de meios não
disponibilizados pelo sistema penal. Apenas uma ínfima parte deles é resolvida na justiça criminal.
Na maioria das vezes, as soluções são encontradas pelos próprios membros da família ou com o
auxílio de profissionais que apontem uma alternativa viável.
Resta comprovada, assim, a incapacidade da superação dos conflitos interpessoais pela via
formal da justiça criminal, visto que ela se apropria do conflito das vítimas, fugindo aos propósitos
de escuta das partes envolvidas, não apresentando soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos
ou sequer prevenindo as situações de violência. Nesse contexto, se o sistema penal está falido por
não conseguir solucionar os problemas que se propõe erradicar e as mulheres vítimas da violência
doméstica e familiar, em sua maioria, não desejam a persecução penal de seus agressores, resta,
unicamente, a irracionalidade da utilização de medidas punitivas extremas para a solução dos
conflitos domésticos.

Certamente o caminho para a solução do conflito não passa pela criminalização,


muito menos pela carcerização do agressor, na medida em que o sistema penal, em
especial a pena de prisão, não oferece mais que uma falácia ideológica em termos
de ressocialização do agente (...). Esse mesmo sistema, ademais, não faz pelas víti-
mas mais que duplicar as suas dores, expondo-as a um ritual indiferente e formal,
que desconsidera a diversidade inerente à condição humana e reproduz os valores
patriarcais que a conduziram até ele. Aportando ao sistema penal, a vítima, mais do
que nunca, distancia-se de seu desiderato de reformular a convivência doméstica,
porque deflagra um aparato que não esta munido dos mecanismos necessários para
a mediação do conflito, o que a leva a retirar-se do espaço público que conquistou
ao longo de uma história de lutas, para retornar à esfera do privado, desmuniciada

5 Em estudo realizado pelas autoras durante dois anos no 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher da cidade do Recife, em que se pesquisou todos os processos criminais instaurados no Juizado nos anos de
2007 a 2010 arquivados pelo Tribunal pernambucano até Junho de 2011, constatou-se que 57% das mulheres retra-
taram, quando se tratava de crime de ação penal pública condicionada à representação. Ademais, 79% dos processos
pesquisados foram extintos sem a resolução do mérito e pode-se afirmar que 53% dessas extinções foi devida à mani-
festação de vontade das vítimas, já que os institutos que deram ensejo à extinção da punibilidade foram a decadência
e a retratação da vítima.
24
de qualquer resposta (HERMANN, 2002, p. 18-19).

Reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social,


portanto, não implica que o Direito Penal seja a melhor solução. Importante, assim, que sejam
discutidos e apresentados meios alternativos para a solução de conflitos, principalmente através
transferência da responsabilidade para outros ramos do Direito, como também pela utilização de
medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas, rompendo assim com o paradigma pena-
lista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal.
Resultados positivos têm sido obtidos quando no investimento em políticas públicas emanci-
padoras. Logo, concomitantemente às políticas minimizadoras da intervenção penal e à evolução
do pensamento criminológico, devem ser implementadas políticas sociais de prevenção incidentes
nas verdadeiras causas da criminalidade doméstica.
Portanto, as políticas de prevenção e combate à violência contra a mulher devem estar fo-
cadas na reprodução de um ambiente doméstico e familiar equilibrado, ultrapassando, assim,
as barreiras da medieval e maniqueísta perquirição do culpado e eterna vitimização feminina. É
indispensável, nesse diapasão, a superação e não disseminação, no intelecto social, dos precon-
ceitos, ainda existentes, decorrentes de uma sociedade ainda patriarcal e machista, que levam à
ideia da mulher como um ser passivo e desigual que se pode dominar e de quem se pode dispor.
Logo, é preciso se voltar às origens do problema, precipuamente familiar e de origens históricas,
da violência doméstica e, definitivamente, o sistema penal não se presta a fazer isso.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei “Maria da Penha”, criada no intuito de “empoderar” as mulheres para enfrentar a
violência doméstica e familiar, não cumpre os seus propósitos. Entretanto, paradoxalmente, por
haver retirado a fala feminina do espaço público e não ter contemplado as peculiaridades dos
conflitos de gênero e a falência do sistema punitivo, pode contribuir para a ocultação dos dados
relativos à violência doméstica e familiar, já que as mulheres vítimas preferem o silêncio à dolorosa
e ineficiente intervenção do sistema penal no ambiente doméstico. É urgente, portanto, que se
ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos domésticos para
além do sistema penal.
Como precisamos denunciar uma estrutura falida de um sistema, antes de pensar em for-
mas capazes de substituí-lo, não coube a este trabalho apontar formas alternativas de soluções de
conflitos aplicáveis ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Por ora, en-
tretanto, fica o apontamento de que se deve atentar para as contradições do sistema penal e criar
formas de resistir ao fenômeno do populismo punitivo, visto que, através dele, políticas públicas
de aparência são enxertadas no seio social e, consequentemente, os espaços de debate na socie-
dade são reduzidos e os meios que apresentem soluções efetivas aos problemas que incomodam a
sociedade são ocultados.

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27
A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA NAS VARAS DA INFÂN-
CIA E JUVENTUDE DE RECIFE- SISTEMA PUNITIVO DISFARÇADO
DE SOCIOEDUCATIVO – UM RETORNO AO MENORISMO 1

Érica Babini Lapa do Amaral Machado2


Marília Montenegro Pessoa de Mello3
Juliana Marques Lyra Carneiro Leão4
Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho5

1. INTRODUÇÃO
O Estatuto da Criança e do Adolescente, criado pela Lei 8.069/90 e consagrado nos ter-
mos dos artigos 227 e 228 da Constituição Federal de 1988, estabelece um novo paradigma no
tratamento conferido à infância e juventude. Antes alicerçado sob os parâmetros da Doutrina da
Situação Irregular, o menor submetia-se à tutela do Estado, que regido pelo binômio menor/delin-
quente, resultava em um processo de intenso aprisionamento.
Com o advento do ECA, a Doutrina da Proteção Integral passa a elencar garantias próprias
do sistema constitucional para a apuração de atos infracionais, impedindo violações de direitos e
garantias fundamentais, ainda que em nome da “socioeducação”, determinando novo marco no
tratamento à infância e juventude, ao reconhecer seu status de sujeito de direitos e deveres em
condição peculiar de desenvolvimento - conditio sine qua non para a proteção dos direitos funda-
mentais da pessoa humana em um Estado Democrático de Direito - e garantido seu tratamento

1 Este trabalho é resultado de pesquisa realizada no Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC, finan-
ciado pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e está vinculado às pesquisas desenvolvidas pelo Grupo
Asa branca de Criminologia -www.asabrancacriminologia.blogspot.com.br
2 Professora de Criminologia e Direito Penal da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Doutoranda em
Ciências Criminais na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
3 Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e da Universidade
Federal de Pernambuco – UFPE. Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC
4 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora PIBIC-UNICAP
5 Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisador PIBIC-UNICAP.
28
específico e particular.
A Doutrina da Proteção Integral orienta as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescen-
te (ECA), incorporando o conceito de ato infracional para conferir à responsabilização o caráter
de medida socioeducativa, objetivando fomentar a perspectiva pedagógica. Entretanto, resta veri-
ficada através desta pesquisa que a implementação da nova política guarda muitos resquícios do
antigo sistema menorista.
Percebe-se, ao lado da excessiva intervenção estatal por meio do Poder Judiciário, conferido
ao juiz poder quase absoluto de decisão, uma ampla discricionariedade ao impor valores e crenças
pessoais quando da aplicação de medidas, o que termina por restringir as prerrogativas constitu-
cionalmente asseguradas pelos referidos diplomas legais.
Destarte, é sob a égide da Criminologia Crítica que se tem o marco teórico norteador da pre-
sente pesquisa, o qual desenvolve estudo crítico acerca das questões atinentes ao sistema penal e
suas políticas punitivistas adotadas pelo Estado, detectando, por conseguinte, as influências e os
impactos exercidos sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Orientar-se através dos estudos proporcionados pela Criminologia Crítica é de fundamental
importância, posto que a perspectiva crítica pretende compreender o crime como um fenômeno
complexo – resultado da criminalização das agências oficiais de poder, cuja reação é condicionada
por ideologias e políticas (ZAFFARONI, 2001).

O desvio não é a qualidade do ato cometido por alguém, mas antes a consequência
da aplicação, por outros, de regras e sanções a um ‘ofensor’. O desviante é uma pes-
soa a quem este rótulo pôde ser aplicado com sucesso. O comportamento desviante
é o comportamento designado como tal (BECKER, 1963, p. 55).

Trata-se exatamente do intento sociológico, segundo o qual a real atuação do sistema de


justiça deve ser perquerido, apesar das diagramações da dogmática legislativa.
A pesquisa está sendo realizada a partir da metodologia etnográfica, com o objetivo de com-
preender como a criminalização secundária atua nas audiências de apresentação e continuidade
para apuração de ato infracional, de modo a investigar o grau de cumprimento de garantias penais
e processuais quando da cominação de medidas socioeducativas.
Nesse sentido, foram acompanhadas audiências na Vara da Justiça Sem Demora, e nas 3ª e
4ª Varas de Continuação da Infância e Juventude da cidade do Recife, no período de abril a junho
do ano de 2013, para apuração de dados necessários à proposta da pesquisa em estudo. Outros-
sim, verificou-se em que nível se processam tais impedimentos e suas influências na imputação de
medidas, em detrimento dos princípios assegurados pelo referido dispositivo legal e consolidados
pela Constituição Federal de 1988.
Para consolidar a temática proposta, adentrar no contexto social-político envolto no trata-
mento conferido as crianças e adolescentes, foi necessário um extenso estudo teórico. Inicial-
mente a metodologia dedutiva, fundamentada na investigação bibliográfica, foi importante para
compreender a evolução cultural-legislativa da infância e juventude no Brasil e no mundo.
Com o objetivo de alcançar a verdadeira compreensão dos fatos, focou-se na contextuali-
zação da própria estrutura jurídico-protecionista de intervenção estatal, caracterizada por um
modelo legislativo garantista através, principalmente, da aplicação do Estatuto da Criança e do
Adolescente influenciado pela Doutrina da Proteção Integral. Procurou-se verificar a incidência
paralela de influências extrínsecas de controle social legitimados por uma camada latente de pu-
nitivismo e segregação.
Com base nesta investigação, o pesquisador posiciona-se como espectador dentro do objeto
em exame, absorvendo os dados de forma impessoal, visando absorção da realidade dos fatos em
sua essência. Neste projeto, o método foi empregado a partir do acompanhamento de um total de
54 audiências, sendo 21 delas realizadas na Vara da Justiça Sem Demora (VJSD), e outras 33 nas
3ª e 4ª Varas de Continuação da Infância (VI) e Juventude, na cidade do Recife, durante o período
de abril a junho do ano de 2013. Constituindo-se como uma pesquisa de campo, este convívio per-
mitiu uma produção de dados concretos frutos de observação direta do pesquisador com o objeto
científico.

29
Nesse sentido, serão utilizadas de forma amostral para análise e cruzamento de dados que
irão compor a presente pesquisa, 3 das audiências acompanhadas VJSD, e 5 das audiências pre-
senciadas nas VI. De modo a realizar a interpretação do conteúdo pelo cruzamento de dados,
foram criadas três categorias de análise, objetivando delinear as conclusões obtidas através dessa
experiência.
As categorias de análise formuladas foram as seguintes: 1ª Categoria: Procedimentos – Direi-
tos e Garantias Fundamentais; a) Legalidade; b) Devido processo legal (- Materialidade, - Provas,
- Trâmite legal); c) Proporcionalidade; 2ª Categoria: Seletividade do Sistema; 3ª Categoria: Fun-
damentos do Julgador (- Família, - Escolaridade, - Drogas, - Exemplo para a sociedade, - Arrepen-
dimento do ato praticado, - Religião).
O procedimento desenvolvido seguiu, portanto, etapas sucessivas e determinadas: 1- Rea-
lizado o estudo bibliográfico de contextualização da temática (objeto da pesquisa); 2- Acompa-
nhadas as 54 audiências, coletando-se os dados relevantes e necessários para teste das premissas
preestabelecidas inicialmente; 3- Prosseguiu-se uma análise de conteúdo (BARDIN, 1977), explo-
rando os elementos ocultos constatados a partir dos dados empiricamente agrupados; 4- Tomando
como base as fases anteriores, estabeleceu-se as categorias de análise para filtração das mesmas;
5- Levando-se em consideração todo o estudo teórico-prático elaborado, faz-se necessária a exibi-
ção das discussões trazidas e dos resultados advindos.
Após o empreendimento algumas conclusões foram levantadas, o que se verá a seguir.

2. DO MENORISMO À PROTEÇÃO INTEGRAL: UM OLHAR SOB A INFÂNCIA E JUVENTUDE


Para abordar a temática sobre a infância e juventude, é mister estabelecer um marco refe-
rencial, que no presente trabalho será dado pela edição da Lei 8.069/90, que inaugura o Estatuto
da Criança e do Adolescente, simbolizando novo modo de se visualizar e lidar com jovem no Brasil.
A história da infância comprova que somente a partir de meados do século XIX que se tem
dedicado um tratamento jurídico diferenciado para este grupo. Em outros termos, é neste mo-
mento histórico que a criança passa a ser visualizada juridicamente. Porém, o que se verificava
anteriormente, além de não ser reconhecida pela sociedade, era a criança sequer ser contemplada
nos textos legais, fato que pode ser analisado diante dos Códigos Penais existente na época. Estes
consideravam menores de idade da mesma forma que os adultos, de caráter penal indiferenciado,
conferindo tratamentos semelhantes e fixando penas privativas de liberdade relativamente meno-
res que às aplicadas aos maiores, a serem cumpridas em condições deploráveis de encarceramento
e sujeitas às promiscuidades praticadas pelos adultos, visto que ambos encontravam-se recolhidos
nas mesmas instituições penitenciárias (PLATT, 1977).
Esse quadro perdura até o final do século XIX e início do século XX, quando surge forte
indignação moral da sociedade com as condições existentes e da promiscuidade vivenciada nos
ambientes penitenciários, sinalizando os primeiros indícios de mudanças, que seriam propostas
pelos ideais do Movimento dos Reformadores, nos Estados Unidos, onde teve início essa nova
compreensão acerca da criança, e se espalharia pelo mundo no decorrer do novo século (MEN-
DEZ, 1998).
Fundamental ressaltar que o contexto da época colaborava com a situação vivida pela infân-
cia. As inovações e inúmeras mudanças promovidas pela Revolução Industrial, trazendo em si os
novos rumos do capitalismo, terminaram por produzir efeitos nas diversas camadas sociais, pro-
vocando o deslocamento de grandes massas do campo em direção aos centros urbanos nascentes,
na busca por emprego nas grandes fábricas.
Como o artesão perdeu espaço frente às linhas de produção fabris, fator aliado aos salários
muito baixos, fazia-se necessário a aplicação de toda família no trabalho, de maneira a obter o
sustento mínimo do lar. Destarte, mulheres e crianças ocuparam os novos postos de trabalho nas
fábricas. Uma vez que as mulheres e as crianças não estavam sujeitas a qualquer regulamentação
de trabalhista, e com salário auferido inferior àquele pago ao homem, consistiam em mão de obra
barata de fácil acesso, favorecendo o empresariado, no intento de ter todos os postos ativos.
Nesse sentido, a criança cumpria importante papel, visto que auxiliava na renda familiar.
Destaca-se que as condições a que estavam submetidos operários e crianças era de completa
precariedade, em ambientes insalubres, inadequados ao desempenho de qualquer atividade. Não
30
obstante as circunstâncias desfavoráveis, o sistema econômico capitalista agravou a pobreza no
campo, de modo que a necessidade das famílias em obter seu sustento gerou incessante busca
por empregos, impulsionando intenso processo de superlotação das grandes cidades, que aliado
à falta de infraestrutura que comportasse o excesso de contingente populacional, culminou em
graves problemas sócio estruturais, ensejando o surgimento dos subúrbios onde se aglomeravam
as pessoas mais pobres, provocando, por sua vez, a difusão de doenças e o aumento da violência
urbana (SARAIVA, 2009).
Esse processo passou a clamar por políticas que atuassem tanto no sentido da manutenção
do sistema econômico, quanto no controle dos problemas sociais. Nesse ínterim, medidas foram
instituídas nesse propósito. O alto índice de jovens em situação de abandono, em razão das dificul-
dades enfrentadas pelas famílias para criá-los, e de jovens delinquentes, em função da excessiva
aglomeração nos centros urbanos aliada à precária infraestrutura, além de estarem situados à
margem do mercado de trabalho, fomentam a introdução de novas políticas destinadas à criança
e ao adolescente. Os ideais propostos pelo Movimento dos Reformadores no início do século XX,
nos Estados Unidos, instauram um momento de caráter tutelar da juventude, ao estabelecer clas-
sificações distintas entre criança e adulto, eliminando a promiscuidade existente nos centros de
reclusão, principal dos motivos de contestações.
Intentada uma análise crítica, evidencia-se que o projeto dos reformadores, além de uma
conquista sobre o velho sistema, constituiu compromisso profundo com àquele. As novas leis e
administração da Justiça de Menores nasceram e se desenvolveram sob os pilares ideológicos do
positivismo filosófico, de maneira que a cultura de sequestro dos conflitos sociais somente foi al-
terada em único aspecto: a promiscuidade (MÉNDEZ, 1998).
Ademais, se por um lado visava extinguir a promiscuidade através da distinção estabeleci-
da, por outro reproduzia articuladas políticas de repressão social, com intensa criminalização da
pobreza e estereotipação da juventude desviada, invariavelmente estigmatizada por ser pobre, de
maioria negra, mal instruída e localizada nos subúrbios das cidades, o que não raro resultou no
encarceramento, alegando-se proteção ao menor abandonado/delinquente (BARATTA, 1998).
Remonta ao final do século XIX a criação do primeiro Tribunal de Menores, em Illinois, nos
Estados Unidos. Seguiu-se com diversos outros países aderindo à criação de Tribunais de Meno-
res, instituindo seus juízos especiais. Através do Decreto Federal 16.273, o Brasil cria seu primei-
ro juízo de menores em 1923, no Rio de Janeiro. A criança que era tratada como coisa passou a
reclamar a condição de objeto de proteção do Estado, dando molde à nova Doutrina da Situação
Irregular que perduraria até meados do século XX.
Esta doutrina acaba consagrando o binômio carência/delinquência, promovendo intensa
criminalização da pobreza. Imperioso constatar que essa nova política surge como uma tentativa
de solucionar os problemas sociais, e não havia melhor alternativa senão a de exercer estratégico
controle nas camadas mais desfavorecidas da população, notadamente os mais pobres. Nos dize-
res de Emilio García Méndez (1998, p. 27), essa doutrina não significa outra coisa que legitimar
uma potencial ação judicial indiscriminada sobre as crianças e os adolescentes em situação de
dificuldade.
Dessa forma, busca o Estado, através da intervenção jurídico-penal, suprir as deficiências
estruturais de políticas sócias básicas, o que demonstra claro populismo punitivo, dado que se re-
corre a mecanismos da esfera penal para intentar a dizimação dos grupos mais vulneráveis, à mar-
gem do sistema econômico vigente, em decorrência da própria omissão estatal no cumprimento
de medidas mínimas que atendam as necessidades da sociedade.
Em nome da paz e da ordem, aqueles que não detinham o poderio econômico pregado pelo
sistema capitalista estavam sujeitos a contínuo processo de controle e explícita exclusão, conse-
quentemente. Em outras palavras, consistia na criminalização dessa faixa social, e para tanto,
o cárcere desempenhava papel essencial no funcionamento das sociedades, sendo instrumento
civilizado e constitucional de segregação das populações problemáticas criadas pela economia e
pelos arranjos sociais atuais (GARLAND, 2008).
No tocante a Doutrina da Situação Irregular, é de suma importância atentar que suas leis
estabelecem clara divisão na categoria da infância: entre crianças e adolescentes, aqueles per-
tencentes às classes mais altas; e menores, compreendendo o universo dos excluídos economi-
camente, da escola e da família. Levando em consideração a impunidade declarada, ignorando
31
juridicamente delitos graves cometidos por adolescentes das classes mais favorecidas, não resta
entendimento diverso acerca das leis existentes enquanto destinadas exclusivamente para os me-
nores em situação de dificuldade. O tratamento jurídico dos problemas relacionados à juventude,
seguido da atuação do juiz portando-se como um bom pai de família, encarregado de suprir as de-
ficiências de instrução do jovem, infere que o Juiz de Menores não estava limitado pela lei e tinha
amplo poder discricionário para tomar sua decisão.
Destarte, a proteção conferida à juventude frequentemente violava ou restringia direitos,
dado não ser concebida desde a perspectiva dos direitos fundamentais, como se observa diante da
utilização de categorias vagas e ambíguas para definir em que situação o menor seria classificado
em condição de risco ou perigo, além de reunir no mesmo lugar crianças e adolescentes que co-
meteram delitos graves com aqueles que se encontravam em status de abandono.
É válido suscitar que nesse sistema as condições pessoais, familiares e sociais que fazem o
jovem estar em situação irregular, tornando-se potencial objeto de intervenção estatal. A juventu-
de aparece como objeto de proteção, porém não reconhecidos enquanto sujeito de direitos, e sim
como incapazes, tornando a opinião da criança irrelevante. Uma vez que essas leis são direcio-
nadas aos menores, abandonados e delinquentes, a medida adotada pelos Juizados de Menores
resumia-se na privação de liberdade, por tempo indeterminado, tanto para os que delinquiram,
quanto para os protegidos em razão de abandono. Nesses termos, a prisão constitui o principal
instrumento da política habitacional do Estado para os inúteis da nova economia (WACQUANT,
2007).
Ora, inolvidável reconhecer que se trata de uma política jurídico-penal que estereotipa sua
clientela, criminaliza a pobreza e segrega os vulneráveis, e diante da inexistência de investimentos
públicos básicos, figuram a imagem de inimigo interno, constituindo-se em ameaça a sociedade,
fruto da própria má atuação estatal, que encontra em mecanismos de controle e exclusão social a
manutenção e justificativa de sua omissão administrativa.

2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e a promoção da Dou-


trina da Proteção Integral
Na vigência do Código de Menores, decorrente da discricionariedade outorgada ao juiz, e
em consequência da atuação judicial-criminalizante dos órgãos repressivos e intervencionistas,
frequentemente se aplicavam sanções de privação de liberdade a situações não tipificadas como
delito na legislação penal brasileira, suprimindo-se garantias penais e processuais.
Desse modo, evidencia-se a assertiva proferida por Larrauri (2006, p. 14) quando atenta
que o aumento de pessoas que estão na prisão não reproduz o aumento da delinquência, mas a
multiplicidade de outros fatores, como decisões legislativas, sensibilidade judicial e capacidade e
limites do próprio sistema para processar os diversos atos delitivos.
Outrossim, esse populismo punitivo que assolava o universo infanto-juvenil resultou em
grande movimento pela reforma do Direito do Menor, a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1989, que tem força de lei in-
terna para os países signatários, dentre os quais o Brasil. Essa lei internacional constituiu marco
na condição jurídica da infância, e terminou por consagrar a Doutrina da Proteção Integral, que
embasaria as futuras legislações concernentes à criança e ao adolescente, substituindo a velha
Doutrina da Situação Irregular (DOLINGER, 2003 ).
A Doutrina da Proteção Integral foi adotada na Constituição Federal de 1988, contemplada
nos artigos 227 e 228, promovendo a juventude à condição de sujeitos de direitos e obrigações
próprios de seu peculiar estado de desenvolvimento, eliminando o conceito menor e atribuindo
novo funcionamento da Justiça da Infância e Juventude. Os sistemas de garantias presentes no
Direito Penal passam a ser aplicados à criança e ao adolescente, inclusive quando da prática de
ato infracional.
A introdução da atual legislação retira a figura do Juiz de Menores, atribuído do caráter de
instrutor do jovem, na figura de um pai, restringindo sua atuação ao estrito papel de julgador dos
fatos, com poderes limitados pelas garantias processuais e penais asseguradas na Carta Magna
(DA ROSA, 2011).
Definem-se os direitos das crianças, que sob pena de ameaça ou violação, é dever da família,
32
da sociedade, de sua comunidade e do Estado reestabelecer o exercício do direito atingido, e não
mais a criança ou o adolescente que se encontra em situação irregular, mas sim a pessoa ou insti-
tuição responsável pela ação ou omissão; as ambiguidades sobre as categorias de risco e perigo são
extintas; a ideia de proteção dos direitos visa não apenas protegê-los, trata de garantir os direitos
que lhes competem; a proteção perde seu caráter de intervenção estatal coercitiva, assim como
se cria a ideia de universalidade de direitos, estabelecendo condições de igualdade, inexistindo
distinção entre crianças e adolescentes e menores.
Importante aspecto dessa doutrina é a não utilização do argumento de incapacidade do jo-
vem, sendo contemplado o direito individual de serem ouvidos e suas opiniões consideradas, cuja
única particularidade é o estado de desenvolvimento. Merece especial destaque a introdução de
um rol de medidas aplicáveis ao adolescente, sendo a privação de liberdade sempre última medida
a ser adotada, por breve tempo e em caráter excepcional, a ser cumprida em instituição especia-
lizada.
A Doutrina da Proteção Integral tornou-se marco norteador das novas políticas dedicas à
criança e ao adolescente. Tal fato é comprovado ao se constatar a inclusão dos princípios da Dou-
trina da Proteção Integral no texto da Constituição Federal de 1988, expressos nos artigos 227 e
288. E sob este prisma ideológico será elaborada pela edição da lei 8.069/90, o Estatuto da Criança
e do Adolescente, regulamentando os dispositivos constitucionais que tratam da matéria.
Assentando-se no princípio de que crianças e adolescentes gozam dos mesmos direitos e es-
tão sujeitos às obrigações compatíveis com sua condição de desenvolvimento, o Estatuto promove
uma ruptura com o antigo sistema da Doutrina da Situação Irregular. Imprescindível destacar que
a presente legislação estabelece-se por meio de uma estrutura pautada em três sistemas de garan-
tias: o sistema primário, voltado às políticas públicas de atendimento, compreende toda população
infanto-juvenil; o sistema secundário, que remete às medidas de proteção destinadas jovens em
situação de risco, tem caráter preventivo, de modo a salvaguardar aqueles enquanto vitimizados; e
o sistema terciário, que engloba as medidas socioeducativas, direciona-se àqueles que praticaram
conduta infracional, na condição de vitimizadores (SÊDA, 1999).
Com a edição da Lei 8.069/90, que instaura o Estatuto da Criança e do Adolescente no Bra-
sil, se construiu novo modelo de responsabilização do adolescente em conflito com a lei. Embora
a imputabilidade penal se dê aos dezoito anos, a partir do momento que a infância e juventude
ascende à condição de sujeito de direitos, constitui-se uma relação de direito e dever, ressalvan-
do a condição peculiar de desenvolvimento que lhes é próprio. Outrossim, a responsabilização
conferida aos adolescentes, através do Direito Penal Juvenil, decorrente das sanções previstas no
Estatuto, e aplicáveis aos autores de ato infracional, podem interferir, limitar e até suprimir tem-
porariamente sua liberdade, verificado o devido processo legal, sob a luz dos princípios extraídos
do Direito Penal, do garantismo jurídico e da ordem constitucional (RAMIDOFF, 2011).
Dessa maneira, somente haverá imputação de medida socioeducativa quando praticado ato
infracional, entendendo-se por este toda conduta descrita em lei como crime ou contravenção.
Portanto, o jovem será submetido à medida socioeducativa quando sua conduta for típica, anti-
jurídica e culpável, não havendo implicação de medida socioeducativa quando a conduta não for
passiva de reprovação, por ausência de elementos de culpabilidade.

2.1.1 Dos Direitos e Garantias Processuais da Criança e do Adolescente


O Estatuto da Criança e do Adolescente, proveniente da edição da Lei 8.069/90, passa a
implementar em seu texto os direitos individuais e garantias processuais consignados na Consti-
tuição Federal de 1988 e no Direito Penal à infância e juventude. Destarte, todo adolescente terá
assegurado os seus direitos e garantias por força de lei, como prevê a legislação vigorante.
Nesse sentido, imperioso ressaltar o disposto em seu artigo 103, que define ato infracional
a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Conforme definição vigente na Lei de
Introdução ao Código Penal brasileiro (Decreto-lei n. 3.914/41), “considera-se crime a infração
penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou
cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamen-
te, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”. Para tanto,
estabeleceu-se como penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, estando sujeitos às
33
medidas previstas no ECA.
No que concerne às mudanças auferidas em relação ao antigo sistema menorista, o dispo-
sitivo contempla direitos e garantias ao adolescente, coadunando seu novo status de sujeito de
direitos e deveres ao texto normativo. Na presente legislação prevalece o princípio da legalidade,
de modo que não há crime sem lei que o defina, garantindo segurança jurídica ao ordenamento.
Desse modo, a atuação irrestrita do Estado, no que toca ao intenso aprisionamento de jovens
durante o período em que vigorou a Doutrina da Situação Irregular, sob alegações de abandono
e vulnerabilidade encontra seu primeiro entrave, uma vez que o sistema atual proíbe a privação
de liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da au-
toridade judicial competente, garantido ao adolescente a identificação dos responsáveis por sua
apreensão, como também ser informado de seus direitos.
Ademais, a apreensão e o local onde se encontra recolhido o adolescente devem ser imedia-
tamente comunicados à autoridade judiciária e à sua família, devendo ser analisada a liberação
imediata.
A lei prevê possibilidade de internação antes da sentença, com período máximo de quarenta
e cinco dias, devendo a decisão fundamentar-se em indícios comprobatórios de autoria e mate-
rialidade, e verificada a imperiosidade da medida. Nesses termos, notável avanço se conquistou
com a nova lei, como expõe o artigo 110, ao obstar privação de liberdade a adolescente, sem o
devido processo legal, assegurando inúmeras garantias processuais, estabelecidas pelo artigo 111 e
incisos, quais sejam: conhecimento da atribuição de ato infracional; igualdade na relação proces-
sual, podendo produzir todas as provas necessárias à sua defesa; defesa por advogado; assistência
judiciária gratuita e integral; direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; e
direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento de
apuração de ato infracional.
Com tais modificações normativas, o tratamento conferido à infância e juventude se pautou
na elaboração de medidas socioeducativas que melhor se adequassem ao seu público alvo, levado
em conta sua peculiar condição de desenvolvimento, que requer modos especiais e específicos de
atuação, atentando à recuperação do jovem em conflito com a lei, permitindo sua reintegração ao
convívio social.
Dispõe o estatuto de seis medidas socioeducativas, nos termos do artigo 112, aplicáveis se
verificada a prática de ato infracional: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de ser-
viços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; e internação em
estabelecimento educacional.
Por constituir objeto de análise indispensável à pesquisa, especial atenção cumpre ser dada
a medida socioeducativa de internação. Diante da previsão legal, consignada no artigo 121 do es-
tatuto, a internação constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de desenvolvimento do jovem infrator.
Nota-se, portanto, que tal medida compreende uma situação de cerceamento de liberdade,
aplicável desde que cumpridos os requisitos exigidos. Verifica-se, contudo, um ponto problemático
no que tange à internação: não comporta prazo determinado, devendo ser reavaliada sua manu-
tenção, através de decisão fundamentada, em no máximo seis meses.
Muito embora não se tenha um prazo determinado para execução de medida de internação,
a legislação define em três anos o período máximo a que o adolescente estará submetido ao cum-
primento, sendo compulsória a liberação aos vinte e um anos.
Entretanto, encontra-se nessa brecha uma margem à possibilidade de discricionariedade do
juiz, detentor do poder decisório acerca da perpetuação na referida medida, independentemente
das circunstâncias e situação concernentes ao jovem.
Situação esta remete aos resquícios da antiga Doutrina da Situação Irregular, em que o me-
nor estava à mercê das arbitrariedades judiciais quando da imputação de medidas de internação.
Referido fato indica para lacunas presentes na lei, que invariavelmente ameaçam a segurança
jurídica, e como será exposto em sequência, ensejam decisões que violam os direitos e garantias
instituídas à infância e juventude.
A aplicabilidade de medida de internação restringe-se a três situações: tratar de ato infra-
cional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa; por reiteração no cometimento de
outras infrações graves; e por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente

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imposta.
Cumpre levantar questionamento sobre esse dispositivo do artigo 122, uma vez que não se
encontra menção no estatuto sobre o que se define por ato infracional grave e reiteração, tornan-
do-os termos vagos e imprecisos na aferição de emprego da medida, de forma a oferecer risco ao
adolescente na tomada de decisão por parte do juiz, visto que da imprecisão dos termos será dado
ao magistrado a capacidade de suprir essa lacuna de interpretação, e assim deliberar sobre o caso,
numa clara afronta aos princípios e direitos constitucionais assegurados, remontando ao sistema
menorista, sob o qual impera o poder decisório judicial frente qualquer direito ou garantia do ado-
lescente.
Compreendida a questão legislativa, seguem-se os resultados da pesquisa.

3. ANÁLISE DOS DADOS: A IDENTIFICAÇÃO DE FATORES EXTRÍNSECOS E INTRÍSECOS


DA DECISÃO
Nesse momento, fez-se necessário a criação de categorias de análise, com o objetivo de
cruzar os dados obtidos durante a pesquisa de campo, no acompanhamento das audiências de
apresentação da Vara da Justiça Sem Demora, e de continuação das 3ª e 4ª Varas da Infância e
Juventude da cidade do Recife.

3.1 Procedimentos – Direitos e Garantias Fundamentais – os abandonos legais em


nome da “tutela” do adolescente
a) Legalidade: no decurso das audiências, percebeu-se o uso de interpretação extensiva com
relação às hipóteses estabelecidas para aplicabilidade de medida socioeducativa de internação, de
modo que as resoluções aplicadas aos casos perpassassem diretamente pelo julgamento próprio do
juiz competente, representando grave ameaça à ordem jurídica e afronta ao princípio constitucio-
nal assegurado nos termos do artigo 5º, XXXIX da CF/88 e ao dispositivo normativo do artigo 122
do ECA.
Comprovação esta se verificou na aplicação de medida de internação nos casos de tráfico
de drogas e em uma situação de porte ilegal de arma, situações completamente contrárias à legis-
lação. Entretanto, foi notável a percepção de analogia feita pelos magistrados entre as situações
infracionais acima mencionadas enquanto ato infracional grave, quando sequer o próprio estatuto
define quais atos remontam a tal gravidade. Além disso, o próprio STJ proferiu entendimento, por
meio da súmula 492, no sentido que “o ato infracional análogo ao de tráfico de drogas, por si só,
não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação ao adolescen-
te”.
Ora, no quadro em tela não há qualquer respeito ao princípio da legalidade quando da apli-
cação de internação ao jovem que incorre nos casos de tráfico de drogas e do porte ilegal de arma,
vez que ao menos encontram-se previstos enquanto ato infracional grave no próprio dispositivo
normativo, como não representam situações nas quais se faça mister a imposição de internação
ao adolescente, dado o caráter de excepcionalidade e real necessidade, requisitos exigidos para
adoção de medida de internação.
Além disso, como se percebeu, em nenhum caso houve preocupação do magistrado em de-
finir, na sentença – qual das hipóteses que justifica a internação – em termos estritos, qual dos
incisos do art. 122. Era como se a obrigatoriedade da fundamentação inexistisse.
Na verdade, a legalidade, enquanto limite da tensão entre a liberdade pessoal e o arbítrio es-
tatal é violentada como se não fizesse parte do sistema de responsabilização juvenil. A prova disso
é o número considerável de adolescentes cumprindo medida socioeducativa de internação em PE
decorrente de tráfico de entorpecentes – 127, além de outros 48 casos que além do tráfico há outro
tipo de ato infracional ( de um total de 1013 adolescentes em internação no mês de fevereiro de
2014) (FUNASE, 2014).
Como se percebeu a definição da medida socioeducativa como responsabilização do ato in-
fracional varia enormemente e independe do respeito à legalidade. E neste sentido, a definição
de advertência ou internação vai depender do estereótipo - “elemento suspeito” ou da “atitude
suspeita”, símbolos que representam mecanismos de interpretação que, “no cotidiano do exercício
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do poder de polícia, criminalizam um grupo social vulnerável muito bem representado no sistema
carcerário: jovens pobres, em sua maioria são negros, que vivem nas periferias dos grandes centros
urbanos” (CARVALHO, 2013, p. 71).
b) Devido processo legal: previsto no artigo 5º, LIV da CF/88 e no artigo 110 do ECA, encon-
tra-se assegurado o devido processo legal no procedimento de apuração de ato infracional pratica-
do pelo adolescente. Dessa forma, devem imperar as garantias arroladas nos diplomas referidos,
a fim de que esteja o jovem livre das arbitrariedades e discricionariedade nas decisões judiciais
proferidas.
Destarte, o pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na re-
lação processual, defesa técnica por advogado, assistência judiciária gratuita e integral, direito de
ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente, e poder solicitar a presença de seus pais ou
responsável são garantias invioláveis que evitam excessos nas decisões e constituem característica
ímpar de um Estado Democrático de Direito.
Porém, verificou-se que em todas as audiências há alguma violação desses direitos.
Em nítida desigualdade na relação processual, dada a prevalência das provas, impera o de-
poimento da acusação, tomadas em quase totalidade por policiais. Em três audiências verificou-se
a transgressão ao direito de acompanhamento pelos pais ou responsáveis; e em mais da metade
das audiências não esteve ausente o defensor no procedimento de apuração, infringindo o princí-
pio da ampla defesa.
Quando está presente, porém, a postura da defensoria pública é frequentemente de aten-
der ao celular, sair da sala em momento de ouvida do adolescente ou de testemunha, balançar a
cadeira ou os cabelos. Em outros momentos, quando o adolescente entra na sala de audiência,
de cabeça baixa e em choro, a defensora toma suco de alguma fruta, cantarola alguma música, e
quando a juíza questiona sobre a necessidade de a defensora conversar em particular, a mesma
sequer ouve a provocação da magistrada, continua sem acompanhar a audiência. E apesar disso,
a audiência segue, e nada acontece.
Aliás, em todas as audiências observadas a defensora não elabora questionamentos para fins
de defesa. Quando o faz parece ser por curiosidade sobre o contexto, e ao obter a informação não
elabora nenhuma argumentação de defesa ou quando muito, faz algum comentário paralelo com
a pesquisadora, ante um comentário desesperado da mãe que dizia estar sendo o filho injustiçado
por um policial que o perseguia: “ele precisa articular melhor as palavras e aproveitar o que a mãe
disse para se defender”. Como a defensoria afirmando que o adolescente precisa se defender? Isso
é obvio, o que não parece óbvio é a função que ela está exercendo.
Ainda em termos de instrução processual, há de se ressaltar que a materialidade do crime
resta comprometida, em decorrência da falta de perícia e consistência de provas consignadas nos
autos, sendo possível averiguar a ausência de elementos comprobatórios das alegações, atentando
às imprecisões nos relatos sobre a quantidade de drogas apreendidas na posse do adolescente, o
que se mostrou muito recorrente, por exemplo.
Demonstrada a insuficiência e, inclusive, falta de provas contundentes para se alegar a au-
toria da infração, resulta que todo o trâmite legal termina negligenciado, em desacordo com as
diretrizes estabelecidas pelo ECA. Ainda, duas audiências não estava presente o representante do
Ministério Público, sendo iniciada a audiência somente com a juíza competente, porque também
a defesa não estava; reforçando a concentração de poder detido nas mãos do magistrado, que sem
a interpelação do representante do MP e do defensor, visto suas ausências, termina por proferir
a decisão que julgar conveniente inexistindo qualquer oposição, num claro descumprimento às
previsões do texto normativo do estatuto.
Proporcionalidade: não obstante a ineficiência na apuração da materialidade do crime, e da
insuficiência de provas conclusivas de autoria de ato infracional, este importante princípio encon-
trou-se deflagrado nas audiências com diversos problemas de aplicação. Haja vista o emprego de
medidas de internação, alicerçadas em violações de direitos e garantias processuais, figura a pró-
pria proporcionalidade como elemento transgredido, imputando-se a medida de internação sem
que haja convicção de que ato infracional fora cometido pelo adolescente e qual sua gravidade.
Retrato disso é que em mais da maioria dos casos houve apreensão somente pelo fato de o jovem
estar em localidade dita de “atividade suspeita de traficância”.
Ademais, foi verificado que em quase metade das audiências as testemunhas arroladas pela

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acusação, invariavelmente policiais, alegaram não saber do que tratou a ocorrência ou não se
lembrarem dos depoimentos prestados à época do fato, o que confere ainda mais imprecisão na
apuração sobre a infração cometida, e enseja a imposição de medida de internação sem que se
atenda a qualquer dos requisitos exigidos.
Destaca-se que a esse quadro cumpre merecida atenção o disposto no artigo 189 do esta-
tuto, que determina a não aplicação de qualquer medida, se: provada a inexistência do fato; não
haver prova da existência do fato; não constituir o fato ato infracional; e não existir prova de ter
o adolescente concorrido para o ato infracional. Ante o exposto, é inolvidável a transgressão das
diretrizes normativas previstas.

3.2. Categoria de Análise: Seletividade do Sistema – verificação do estereótipo


Por meio da pesquisa de campo desenvolvida, foi possível evidenciar variáveis que influen-
ciam no julgamento.
Inicialmente, verifica-se o alto nível de seletividade do sistema ao estabelecer o seu público
alvo. Em outras palavras, o que se nota não é simples fiscalização policial na busca pela redução
dos índices de criminalidade juvenil, sequer uma política de prevenção é intentada, mas sim uma
ação voltada à captura daqueles que encontram em situação de marginalidade social. Nesse con-
texto, a juventude passa a ser encarada como um inimigo interno à segurança pública, e toda uma
política coercitivo-repressiva manifesta-se sobre esse grupo social (MÉNDEZ, 1998).
Em uma perspectiva crítica, o interesse da tutela penal, considerado como último recurso
para intervenção estatal, remonta a uma ideia pejorativa da “menoridade”. Os elementos de cul-
pabilidade do agente tomados objetivamente cedem lugar a uma verdadeira criminalização funda-
mentada em aparências e discriminações sociais.
No curso do acompanhamento das audiências de apresentação, foi constatado como esses
valores tem um papel fundamental na constituição de uma verdadeira identidade do “menor in-
frator”. Tal verificação remonta uma questão de prejudicialidade intrínseca baseada em códigos
ideológicos advindos de um senso comum social. O compromisso central da jurisdição volta-se
a perseguição de alguns hipossuficientes em prol de um garantismo de fachada, essencialmente
punitivista e pouco pedagógico.
Nesse parâmetro, não é revelador o fato de a atuação policial se dar notadamente nas loca-
lidades mais isoladas e vulneráveis, de situação socioeconômica deficitária, predominantemente
humilde. O papel policial ganha valor intimidador, “caçando” os seus escolhidos, eleitos para
adentrar nesse sistema punitivo, expondo nas salas de audiência a estereotipação e estigmatização
atribuídas aos jovens em conflito com a lei, os excluídos da nova economia política do controle.

O ato infracional não é uma realidade ontologicamente pre-constituída, mas rea-


lidade social construída por juízos atributivos do sistema de controle, determina-
dos menos pelos tipos penais legais e mais pelas metaregras – o elemento decisivo
do processo de criminalização –, aqueles mecanismos atuantes no psiquismo do
operador jurídico, como estereótipos, preconceitos e outras idiossincrasias pessoais
que decidem sobre a aplicação das regras jurídicas e, portanto, sobre o processo de
filtragem da população criminosa (SANTOS, 2001).

De modo a retratar esse cenário, seguem-se algumas análises quantitativas do que foi obser-
vado: 100% dos casos de apreensão se deram em comunidades carentes; ademais, todas as autua-
ções ocorreram por rondas policiais, realizadas durante a noite; 62,5% das apreensões foram por
alegações de tráfico de drogas, pelo simples motivo de estar em localidade de atividade suspeita de
traficância; 12,5% correspondem a ameaça, 12,5% a homicídio, e outros 12,5% a porte ilegal de
arma; em 100% dos casos envolvendo tráfico houve divergências nas provas acerca da quantidade
de droga apreendida e da posse; em 40% dos casos analisados os adolescentes relataram prática de
agressão e abuso por parte dos policiais; em 20% o jovem admitiu ter seus pertences furtados pelos
policiais, não sendo consignados nos autos. Ressalta-se que em 40% das observações os irmãos dos
representados foram apreendidos pelos menos policiais de sua autuação; 40% dos jovens avaliados

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é reincidente na prática de ato infracional; 80% afirmaram ser viciados em drogas; e 60% disse-
ram não estar frequentando a escola.
Ante as análises realizadas, é perceptível a série de violações a direitos e garantias constitu-
cionalmente asseguradas, como também se verifica o modus operandi das agências de controle e
segurança pública no tratamento aos jovens em conflito com a lei. Além disso, como será compro-
vado em sequência, essa política criminalizadora da juventude se manifesta inclusive nas salas de
audiência, seja pelo discurso afirmado pelas testemunhas de acusação, notadamente policiais ou
agentes de segurança, como pela atuação dos magistrados, reforçando o caráter punitivo através
de intensa criminalização secundária quando da aplicação de medidas socioeducativas, o que
somente se torna palpável ao estudar criticamente a atuação dos autores do sistema punitivo nas
audiências de apuração de ato infracional, onde se revelam as variáveis e fundamentos incrimina-
dores não elencados nos autos do processo.

3.3. Categoria de Análise: Fundamentos do Julgador – a concretização de metare-


gras
Não obstante todas as violações aqui narradas, a medida socioeducativa é posta como uma
benesse estatal, e como tal não precisaria estar submetida a todas as amarras constitucionais ga-
rantidoras de um devido processo legal.
A categoria de análise que se adentra tem seu cerne pautado no fundamentos norteadores
das decisões proferidas pelos magistrados, e guarda estreitas relações com cada uma das etapas
supramencionadas, vez que tudo se resume a um ciclo contínuo e progressivo, em que cada ação
positiva ou negativa terá seus efeitos na decisão final sentenciada em cada processo.
No acompanhamento dos processos de apuração de ato infracional foi notável a utilização
de diversas variáveis na composição dos fundamentos proferidos pelos magistrados. Análise, esta,
verificada em todos os casos em estudo. Para tanto, critérios como família, escolaridade, drogas,
exemplo para a sociedade, arrependimento do ato praticado e religião foram contemplados recor-
rentemente para fundamentar a deliberação dos togados.
Nesses termos, a condição familiar do representado, se capaz e empenhada a colaborar com
sua recuperação; a situação escolar do adolescente, se tem prosseguido em seus estudos; a relação
do jovem com as drogas; o exemplo que se deve dar a sociedade pela ação negativa de seu ato; o
arrependimento do cometimento de ato infracional; e sua orientação religiosa, foram classifica-
ções decisivas para a imposição de medida socioeducativa.
É como se existisse duas saídas para um único caminho – ou a medida socioeducativa é ne-
cessária para responsabilização do adolescente devido à prática do ato infracional ou é imposta em
razão das “ necessidade pedagógicas do adolescente”. Por um ou outro argumento a solução final
é o aprisionamento dos adolescentes.
Mas não se esta a falar de qualquer adolescente, mas sim a juventude marginalizada e so-
cialmente excluída. Será, portanto, que o sistema socioeducativo, nas paragens locais não estaria
a funcionar como um disfarce do sistema punitivo?
Zaffaroni (2003) já alertara sobre isto quando trabalha sobre os processos de recepção da
criminologia na América Latina, indicando um sistema penal em sentido estrito e outro paralelo,
composto por agências de menor hierarquia, porém destinado a operar com uma punição tida
como menor, razão pela qual gozaria de maior discricionariedade (arbitrariedade). Ou seja, neste
sistema paralelo enquadra-se o sistema infracional o qual por meio de ações não institucionais (ilí-
citas) promove o controle dos indesejados, mas que é normalizado por termos estatais aceitáveis.
Na América Latina, a realidade, assinala Juarez Cirino, é orientada pela repressão das clas-
ses dominadas, imunidade das classes dominantes e a imunidade do terror institucionalizado.
Para aqueles leis, polícias e tribunais especiais, para os segundos, liberdade de práticas contra a
vida, a saúde, a integridade e o patrimônio do povo e estes últimos a autorizações de todas as or-
dens vistas por toda a história desde a colonização - de genocídio de índios, passando pelo tráfico
de escravos - a torturas e assassinatos dos tempos modernos. Práticas que se generalizam por toda
a América Latina “como consequência de sua absorção/integração no mercado mundial, sob a égi-
de do imperialismo [...] (cujo território) desenvolveu ao mais alto nível a tecnologia da violência”
(1984, p. 70-71)
38
Na realidade marginal, o controle de índios, negros, pobres e marginalizados, hoje mais no-
tadamente por meio da criminalização do tráfico de jovens pobres e negros da periferia, mesmo
sendo a pena declarada público estatal, o que se vê é o exercício arbitrário do poder privatizado.
A conclusão é que não se encontra abismos entre o evolucionismo oficial do passado e o moderno
– “o que subsiste é um continuum metódico punitivo, desde a colonização, o mercantilismo e a
escravidão, até a globalização do capitalismo” (ANDRADE, 2012, p. 108)
O sistema punitivo (não mais aqui ser reconhecido como sistema infracional) conta com a
própria estrutura de poder que ao julgar a conduta do adolescente, invariavelmente aplica a me-
dida que assegurava conveniente amparado em suas convicções pessoais, de maneira que seus
valores e crenças atuam conjuntamente ao seu papel de julgador dos fatos, inexistindo o dito prin-
cípio da imparcialidade do magistrado (SARAIVA, 2009). Tal situação não é fato novo no universo
da infância e juventude, dado que no período em que vigorava a Doutrina da Situação Irregular, o
mesmo procedimento se identificava com o juiz se portando como um bom pai de família, devendo
zelar pelo futuro de seu “filho” e suprir-lhe as ausências e deficiências que o levaram à prática
delituosa (MÉNDEZ, 1998).
Como se percebe a natureza da intervenção socioeducativa é eminementemente penal, o
que implica reconhecer que “a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições
para maiores condutas lesivas (...) e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são
características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais”
(ZAFFARONI, 2001).
Deste modo é importante reconhecer que em sendo assim, há um pífio grau de comprometi-
mento da magistratura recifense atuante nas Varas de apuração do Ato Infracional. Porém, se a “a
polícia exerce o poder seletivo, o juiz pode reduzi-lo, ao passo que o legislador abre um espaço para
a seleção que nunca sabe contra quem será individualmente exercida.” ZAFFARONI, BATISTA;
et all, 2001, p. 51) .
Pôde-se verificar, entretanto, a excessiva intervenção estatal por meio do Poder Judiciário no
cotidiano da prestação jurisdicional, restringindo as prerrogativas processuais ilustradas no texto
constitucional, assim como no Estatuto da Criança e do Adolescente. Percebeu-se que a convicção
particular do julgador torna-se, por vezes, fator decisivo que restringe a concessão de direitos e
garantias os quais, em um plano normativo, devem ser observados. Nesse segmento, constata-se
que essa política de criminalização secundária concebe uma estereotipação do jovem infrator,
invariavelmente oriundo de camadas mais vulneráveis, que termina por determinar não somente
seu público alvo, como também a forma pelo qual serão submetidos e tratados no decurso do pro-
cesso judicial de apuração do ato infracional praticado.

4. ENSAIANDO ARREMATES
A Lei 8.069/90, que inaugura o Estatuto da Criança e do Adolescente, introduz no Brasil
um Direito Penal Juvenil, assentado na Doutrina da Proteção Integral, resultante da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança, em 1989. Embora todos os avanços conquistados perante
o antigo sistema da situação irregular, vestígios desta ainda se encontram no Estatuto da Criança
e do Adolescente.
A Doutrina da Proteção Integral adota um sistema de garantismo, com a construção das
colunas mestras do Estado de Direito, que tem por fundamento e fim a tutela das liberdades do in-
divíduo, inclusive das crianças e dos adolescentes enquanto sujeitos de direitos, frente às variadas
formas de exercício arbitrário de poder, odioso no Direito Penal (BOBBIO, 2002).
É nesse propósito que se orientou o presente trabalho, visto que as lacunas de implemen-
tação e interpretação existentes no texto do Estatuto da Criança e do Adolescente terminam por
produzir a discricionariedade, o subjetivismo, o que não raro resulta em autoritarismo, em tempos
de afirmação dos Direitos da Criança.

REFERÊNCIAS
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39
(des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012
BARATTA, Alessandro. Infancia y democracia. In: Infancia, ley y democracia en América Latina.
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_____. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Di-
reito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2001.

40
PRIVILÉGIO DE BANDIDOS? A CULTURA DO MEDO E O SENTIMENTO DE
INSEGURANÇA COLOCANDO OS DIREITOS HUMANOS EM XEQUE1

Manuela Abath Valença2

1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca investigar como o medo de ser vítima de um delito pode ser deter-
minante na construção de uma opinião reticente a um sistema punitivo regulado por um conjunto
de garantias. Parte-se da ideia de que o sentimento de insegurança e a sensação de impunidade
que, por vezes, dele deriva, geram um clima de antipatia em relação aos direitos fundamentais que
visam a limitar o Estado Penal.
Tentaremos verificar a hipótese a partir da literatura produzida sobre a cultura do medo no
Brasil e por meio da análise qualitativa de dados secundários colhidos em pesquisas de opinião
sobre pena de morte, redução da maioridade penal e sentimento de insegurança no país. Sem
deixar de lado a importante discussão em torno de como essas pesquisas são realizadas e sobre
a existência efetiva de uma ‘opinião pública’, verificamos que em épocas de forte clamor público
em torno de eventos delitivos específicos a adesão a medidas punitivas extremas aumenta. De um
modo geral, entretanto, o apoio à pena de morte e à redução da maioridade penal é elevado. Como
interpretar esses dados?

2. O CRIME E A VIOLÊNCIA URBANA: QUE CATEGORIAS SÃO ESSAS? DO QUE TEMOS


MEDO, AFINAL?
A Teoria do Etiquetamento ou o labeling approach representou uma das maiores reviravoltas
nas teorias criminológicas contemporâneas. Até então com bases eminentemente etiológicas, as
diversas teorias que enfrentavam o fenômeno da criminalidade buscavam encontrar uma causa

1 O presente artigo está vinculado às pesquisas desenvolvidas pelo Grupo Asa branca de Criminologia -www.asabran-
cacriminologia.blogspot.com.br
2 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB). Mestre
em direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE (2012). Possui graduação em Direito pela Universi-
dade Federal de Pernambuco (2010).
41
para ele, algo que, contido no indivíduo ou na sociedade, compelisse aquele à prática de delitos.
De Cesare Lombroso e sua teoria antropológica do criminoso atávico a Robert Merton e sua teoria
funcionalista, identificando a causa dos crimes em desfuncionalidades biológicas, psicológicas ou
sociais e os métodos de investigação se dirigiam sempre no sentido de apontar para a causa da
criminalidade, para algo que produz o comportamento desviante (BARATTA, 2002).
A teoria da reação socialparece romper com estas concepções ao acrescentar às análises
sobre o crime um elemento essencial: a política. Abandonando um conceito ontológico de crime,
define-o como um comportamento “que as pessoas rotulam como tal” (BECKER, 2008, p. 22). Se
o crime não é uma realidade pré-discursiva, importa estudar por que determinadas condutas são
definidas como delituosas, quem pode realizar essa tarefa e quem serão os alvos preferenciais da
etiqueta de desviante (BECKER, 2008, p. 155).
Muitas foram as conclusões que advieram dessas teorias, as quais levaram a uma inexorável
deslegitimação do sistema penal (ANDRADE, 2009, p. 175): a) o sistema de justiça penal protege
essencialmente o patrimônio (afirmações normalmente confirmadas pelos índices de encarcera-
mento); b) o sistema de justiça penal, incapaz de lidar com todas as atividades que ele criminaliza,
seleciona em regra aqueles sujeitos mais vulneráveis, com fracas redes sociais e que cometem cri-
mes “grotescos” (ZAFFARONI;BATISTA;ALAGIA, SLOKAR, 2006); c) o sistema de justiça penal
não é capaz de lidar com grandes violações de direitos humanos, a exemplo de casos de genocídios
(praticados ou não pelo Estado) d) o sistema de justiça penal opera conforme estereótipos que
atribuem a algumas pessoas (as selecionadas pelas instâncias policiais) o caráter de criminosa; e)
os estereótipos recaem preferencialmente sobre as classes pobres, já selecionada e mais selecioná-
veis etc.
A distribuição do estereótipo criminoso é essencialmente desigual e comumente atribuído
às chamadas “classes perigosas”. A noção de classe perigosa está ligada ao surgimento de pe-
quenos conflitos urbanos relacionados, sobretudo, ao dano ao patrimônio, no final do século XIX
(FOUCAULT, 2008). Roubos, furtos, violações de domicílio, mendicância, saques, dentre outras
condutas, conformam uma noção de perigo. No Brasil, após o fim da escravidão em 1888, esses
indivíduos ameaçadores podem ser identificados nos negros, razão pela qual surgem legislações de
contenção social que proíbe condutas como a mendicância, a vadiagem e a capoeira.
Essa violência da rua é mais comumente explorada na mídia e pelo Sistema Punitivo. Em-
bora possamos falar de diversas outras formas de violência igualmente danosas como a morte de
crianças por inanição decorrente de situação extrema de pobreza - a violência estrutural - ou ainda
de violência praticada pelas próprias forças do Estado – violência institucional - (BARATTA, 1993,
p. 47-48), quando submete uma mulher a uma revista vexatória na entrada do sistema prisional,
é a possibilidade de ser atingido ou ter seu patrimônio lesado por uma terceira pessoa que provoca
as reações que vão desde a adesão a fortes aparatos de segurança à vontade de eliminar o “sujeito
perigoso” do convívio social.
De certo, apesar de haver uma distribuição de certa forma arbitrária em torno do que cons-
titui uma conduta danosa, talvez possamos referir àquilo que Michel Misse chamou de “núcleo
forte”, ou seja, crimes que, de modo geral, são capazes de gerar sensação de insegurança em pra-
ticamente todas as parcelas da população e responsáveis por aquilo que se costuma referir como
violência urbana. Conforme pontua o autor:

Na modernidade, esse núcleo forte, que produz reação social relativamente homo-
gênea, tende a se constituir a partir da noção de violência criminal. Definidos como
indiferença à alteridade - o homicídio com crueldade, o assassinato de crianças, o
estupro com morte, o latrocínio ou o sequestro com morte - são alguns exemplos
de cursos de ação (designados aqui pela sua representação jurídica) dificilmente
enquadráveis numa perspectiva social de divergência, onde uma disputa de signifi-
cados morais arrefeça estrategicamente a acusação de desvio (MISSE, 1999, p. 50).

Ainda que não seja possível falar em unanimidades a respeito da valoração de algumas
dessas condutas, são elas que permeiam o imaginário social constitutivo do problema ‘violência
urbana’. Essa violência, antes de constituir um evento que se materializa no mundo concreto, é

42
representada pela sociedade.
Como teorias do senso comum, as representações sociais não guardam necessariamente
relação direta com os eventos da realidade. São significados a ela atribuídos. Sendo assim, há na
sociedade representações sobre o fenômeno da criminalidade que, se de um lado derivam da ex-
periência com alguma agressão, de outro, alimentam-se fortemente do imaginário social sobre o
crime, sobre o criminoso, sobre a vítima.
Dito de outra forma: o sentimento de insegurança, assim como a violência urbana, são re-
presentações contidas no plano simbólico. Se os índices de criminalidade são manipulados e a
“propaganda do medo” entra em ação, não se pode por isso negar que exista o medo. Trata-se do
famoso Teorema de Thomas “se um homem define uma situação como real, ela é real em suas
conseqüências” (apud MISSE, 1999, p. 110). Neste sentido Luiz Antônio Machado da Silva pon-
dera:

Como conseqüência desta observação, vale ressaltar um segundo ponto. As afirma-


tivas acima, se corretas, reduzem a importância das freqüentes discussões sobre a
magnitude real do incremento das práticas relativas à violência urbana, bem como
sugerem a irrelevância de considerações sobre a “paranóia” da violência, apresenta-
da como uma falha na percepção das populações urbanas, induzida pelo tratamento
dado pela mídia ao crime violento. Do ponto de vista aqui adotado, estas são falsas
questões, pois o que caracteriza a violência urbana, como qualquer construção sim-
bólica, é justamente o fato de que ela constitui o que descreve. E, mais importante,
a noção de violência urbana, como já foi dito, não se refere a comportamentos iso-
lados, mas à sua articulação como uma ordem social (característica que permanece
quer se venha a demonstrar ou não sua relação com o crescimento quantitativo do
crime comum violento). (MACHADO, 2004) (Grifos nossos)

Luiz Antônio Machado vai procurar, nesse ensaio, chamar atenção para o fato de a repre-
sentação da violência ser parte integrante de seu objeto, de modo que, a constatação (que even-
tualmente seja feita) de que as pessoas sentem medo em vão ou porque são manipuladas não
anula o fato de que o sentimento de insegurança exista e promova reações. Dentre essas reações,
podemos referir à opinião reticente aos direitos humanos.

3. MEDO E SENTIMENTO DE INSEGURANÇA


Se definirmos segurança como o estado de espírito daquele que crê estar ao abrigo e longe
do perigo (LAGRANGE, 2008, p. 280), resta a delimitação de que perigo se está falando. A noção
de sentimento de insegurança é, portanto, ampla e comporta múltiplas acepções. Nesse início de
século, várias foram as conotações que o termo passou a adquirir, de modo a afirmar Zygmund
Baumann (2008, p. 9) que “vivemos numa era de temores”. Terrorismo, epidemias, desemprego,
violência nas grandes cidades, incertezas sobre o futuro, quebra da seguridade social. Todos esses
elementos são compatíveis com a noção de sentimento de insegurança e representam perigos dos
quais o homem moderno não mais se sente protegido. Pensemos mais especificamente o medo da
violência.
Esse medo não necessariamente deriva da experiência. É com base nesta ideia que Hugues
Lagrange traz o conceito de medo derivado (LAGRANGE, 2010). Após realizar uma enquete sobre
vitimização e sentimento de insegurança na cidade de Grenoble, na França, Lagrange concluiu
que 77% das pessoas que afirmavam ser sua cidade perigosa, nunca haviam vivido3 uma experiên-
cia violenta. A enquete seguiu procurando compreender se havia ligação entre medo e vitimização
e a conclusão foi a de que não era possível estabelecer esse liame e que, aliás, o sentimento de
insegurança era crescente entre aquelas pessoas mais idosas e que menos saíam de casa, isto é,
que menos se expunham ao perigo.

3 Lagrange chama atenção para o fato de o termo “vivido” remeter a uma representação da realidade e não neces-
sariamente a um fato da realidade. Desse modo, aoresponder que nunca viveu uma violência, o entrevistado já possui
uma representação e uma interpretação do fenômeno.
43
Lagrange constatou ainda que o medo cresce entre aqueles cidadãos que mais se isolam e
que rompem com laços sociais (que não saem de casa a não ser para cumprir obrigações como o
emprego, a escola, a universidade etc).
O medo derivado consiste naquele que é sentido ainda que não haja ou que nunca tenha
havido uma situação concreta de perigo. Sendo assim, é possível que moradores de uma cidade
partilhem um grande medo de ações truculentas ainda que objetivamente não sejam grandes os
índices de crimes violentos praticados naquela localidade. É o caso, conforme demonstrou a pes-
quisa de Lagrange, da cidade de Grenoble.
Para analisar o sentimento de insegurança, não adianta se debruçar, portanto, sobre possí-
veis fatores de medo em uma sociedade. Conforme pontua Lagrange (1995, p. 36) “uma enquete
sobre o medo não pode consistir em uma enumeração de coisas peníveis e violentas”. O medo
prescinde da violência e esta não necessariamente desencadeia sentimento de insegurança.
É neste ponto em específico – da criação de medo desligado da experiência - que ganham
importância os estudos que examinam o desempenho da mídia na formação de uma cultura do
medo em nossa sociedade, afinal a imprensa possui um papel central na difusão de crimes que ela
escolhe para publicizar e na criação de estereótipos e preconceitos sobre os indivíduos que prati-
cam aqueles crimes mais valorizados como “maus” na sua agenda.
Neste sentido, Patrícia Bandeira de Melo afirma que “levados a construir sua agenda pessoal
a partir da agenda jornalística, os indivíduos reproduzem as histórias rocambolescas e fantasma-
góricas contadas pela imprensa. Neste processo, reforçam as sensações de perigo e os riscos incal-
culáveis de serem vítimas” (MELO, 2010, p. 115), ressaltando que o medo

é uma condição psicológica do indivíduo que se torna coletiva porque não é fruto de
uma experiência individual, em seu campo privado, mas de uma experiência me-
diada, não necessariamente direta, e cujo processo de mediação é cultural porque
se dá via imprensa” (2010, p. 202).

A mídia é um campo fundamental na compreensão da formação de um trauma cultural do


medo no Brasil, afinal ela não costuma fazer uma cobertura dos crimes em consonância à objetiva
incidência destes, criando muitas vezes falsas ideias sobre a quantidade desses crimes, gerando
um medo que alguns autores apontam como irracional4. A mídia seria capaz de manipular a opi-
nião, fazendo suscitar um medo coletivo que, sem ela, estaria circunscrito a determinados grupos
que, de fato, estão expostos à criminalidade violenta.

4. OS DIREITOS HUMANOS POSTOS EM XEQUE E O SENTIMENTO DE INSEGURANÇA


Uma das consequências da percepção da violência urbana é, como vimos afirmando, a dis-
tância que se estabelece entre aqueles sujeitos que se julgam “bons” em relação às chamadas
“classes perigosas”. Porém, para além desses reconhecimentos negativos, procurei trabalhar aqui
a hipótese de que as representações sobre a violência urbana produzem e reforçam opiniões con-
trárias à afirmação de direitos humanos, sobretudo quando estes são dirigidos ao disciplinamento
do sistema punitivo. Esta afirmação traz implícita a ideia de que os direitos humanos não são
verdades autoevidentes e que a sensibilidade para aceitá-los não é inerente à condição humana,
precisando ser socialmente construída.
“Os direitos humanos são uma conquista da sociedade moderna, podendo também ser ca-
racterizados como uma construção ou invenção da modernidade”, afirma Marcelo Neves (2004,
p. 149). No direito penal e processual penal, esses direitos humanos passaram a ser considerados
ainda nos textos dos representantes da Escola Clássica, dentre os quais o clássico “Dos delitos

4 Barry Glassner possui obra de enorme referência na temática do medo. O autor trabalhou esse fenômeno nos Es-
tado Unidos, sobretudo na era Bush, apontando-o como uma das grandes armas que detinha o governo para justificar
atitudes de endurecimento de leis penais em relação aos nacionais – com políticas na linha do zero tolerance-, mas,
sobretudo, em relação aos imigrantes. Glassner possui a máxima: “perigo algum é pequeno o suficiente que não pos-
sa ser transformado em pesadelo nacional”, com a qual orienta a sua crítica à cultura do medo no país de Tio Sam.
GLASSNER, Barry. Cultura do medo. São Paulo: Francis, 2003, p. 31.
44
e das penas”. Nele, encontram-se discursos que impunham a necessidade de se construir um
sistema punitivo mais eficaz e que garantisse ao cidadão segurança, sem os excessos das penas
medievais e com o abandono da tortura.
Recusemos ou não as pretensões humanistas das reformas oitocentistas, nos ter-
mos da desconfiada tese foucauldiana anti-humanista teórica, o fato é que o poder puni-
tivo e as dogmáticas penal e processual penal passaram por modificações que fizeram se-
dimentar conceitos ligados à limitação do poder punitivo. O princípio da legalidade, por
exemplo, que aparece no texto de Cesare Beccaria em 1764, é consagrado em diversas car-
tas de direitos nos séculos XVIII e XIX e até hoje constitui a premissa básica para a constru-
ção dos sistemas penais de democracias (BARATTA, 2004, p. 305; FERRAJOLI, 2002, p. 74).
No processo penal, buscou-se superar o modelo inquisitivo de processo, trazendo para ele
garantias como a ampla defesa, contraditório e publicidade.
Um modelo garantista de justiça penal tem como objetivo central a limitação do estado pu-
nitivo, seja em sua esfera material (o que punir), seja na forma (como punir). Como situa Amílton
B. de Carvalho e Salo de Carvalho (2002, p. 20):

Representando um elogio à racionalidade jurídica, a teoria do garantismo penal


pressupõe o direito como única alternativa à violência dos delitos e das penas, cuja
existência apenas se justifica se percebido como mecanismo de tutela do indivíduo
contra as formas públicas e privadas de vingança

A epistemologia garantista visa criar condições para controlar a intervenção do Estado puni-
tivo, levando em consideração que alguma margem de discricionariedade diante dos textos é ine-
vitável, mas que é preciso criar mecanismos para reduzir e tornar controlável a atividade decisória.
Todo sistema punitivo garantista deve estar então assentado em certos princípios, dentre os quais
o da legalidade, culpabilidade jurisdicionalidade, dentre outros.
Boa parte desses princípios não resiste, digamos assim, a um minuto de realidade e acabam
por desempenhar uma função simbólica de legitimação de uma justiça estruturalmente desigual
e violenta. No Brasil e na América Latina, conforme refere Lola Aniyar de Castro, convive com o
sistema legalmente positivado uma funcionalidade extraoficial truculenta e violadora de direitos
humanos:

o controle social formal é exercido praticamente sem que se leve em conta o fun-
cionamento prescrito para o controle formal estabelecido, através dos operativos
policiais, a prisão preventiva como pena antecipada, as execuções extrajudiciais e a
lei de vadios e malfeitores (CASTRO, 2005, p. 75)

Essa justiça subterrânea não é extraordinária, mas acompanha o cotidiano do funciona-


mento da justiça penal. Ainda assim, os discursos favoráveis a um sistema de justiça garantista
e limitado estão acossados em meio a um turbilhão de falas que acusam os direitos humanos de
ser “privilégios de bandidos”. Como é possível associar direitos humanos que se afirmam como
universais a privilégios?
O período de redemocratização do país protagonizou, provavelmente, um dos momentos
mais frutíferos em discussões a respeito de direitos humanos. Os movimentos sociais, que até a
década de 1970 eram identificados como movimentos de pauta única (oposição e organização da
classe operária face à burguesia), passam a concentrar lutas de outras minorias, levando-os a se-
rem denominados de “novos movimentos sociais” com o fortalecimento das ações feministas, de
homossexuais, de negros, de índios, dentre outras, deu fôlego às discussões sobre direitos huma-
nos.
A isso se somou uma pauta a respeito das mazelas do sistema punitivo brasileiro, o qual parte
da classe média e alta politizada brasileira havia tido o desprazer de conhecer no período militar,
experiência esta que foi, segundo Oliveira, fundamental para a inserção, na pauta da esquerda,
de uma consciência das precárias condições a que se submetiam os presos comuns e dos próprios
direitos humanos. O autor explica:
45
(...) não resta dúvida de que houve uma mudança no ‘espírito’ de uma parte expres-
siva da cultura política de esquerda no Brasil dos anos 70 pra cá – mudança essa, a
meu ver, em parte devida às duras provas a que foram submetidos vários dos seus
militantes (OLIVEIRA, 1992, p. 3).

Teresa Caldeira explica que houve uma tentativa de transpor as reivindicações dos movi-
mentos populares que apoiaram presos políticos para a realidade dos condenados comuns, tendo
a investida fracassado por diversas razões.
Primeiramente, os presos comuns, ao contrário de minorias que se afirmavam à época (mu-
lheres, homossexuais, negros etc), não possuíam uma identidade a defender, eram bandidos, cri-
minosos não de crimes injustos (que lesam a liberdade de expressão, de imprensa...). Em razão
disso, foi preciso que a bandeira em defesa dos presos comuns fosse hasteada por setores externos
a eles como a igreja, os juristas e intelectuais. Estes ao defenderem os direitos humanos foram
acusados de defensores de bandidos e, em uma dedução lógica perversa, os próprios direitos hu-
manos passaram a ser entendidos como coisa de bandido.
Caldeira aponta que houve uma forte campanha de setores conservadores em São Paulo
contra a afirmação do que seriam verdadeiros privilégios para marginais e que grande parte dessa
campanha apelava para o uso da sensação de insegurança, que, na década de 80, passava a figurar
como aspecto relevante do cotidiano das pessoas. Assim, conclui a autora (CALDEIRA, 1991, p.1),

de reivindicação democrática central no processo da chamada abertura política,


defendida por amplos setores da sociedade, os direitos humanos foram transforma-
dos, no contexto de discussões sobre a criminalidade, em ‘privilégios de bandidos’ a
serem combatidos pelos homens de bem.

Foi em meio a esse quadro que a constituição federal de 1988 consagrou garantias proces-
suais penais. Contudo, como os documentos nada dizem sobre suas consequências, essas garan-
tias são em alguns contextos vistas como problemáticas e, até mesmo, como uma das causas para
a manutenção dos altos índices de criminalidade.
A uma pesquisa recentemente elaborada e desenvolvida pela Secretaria Especial dos Direi-
tos Humanos da Presidência da República (2008), 43% dos entrevistados, responderam concordar
com a frase “bandido bom é bandido morto”. Sobre a favorabilidade a algumas políticas públicas
de combate à violência, 73% se mostraram a favor de endurecer as condições dos presidiários
(como? É uma boa questão), 71% concordam com a redução da maioridade penal, 70% aderem
à adoção da pena perpétua e 45% são favoráveis à pena de morte. Alguns desses números se re-
petem em pesquisas nacionais de opinião pública executadas pelo instituto Datafolha, consoante
veremos em seguida.
O medo da criminalidade urbana nos últimos vinte anos galvanizou as opiniões a respei-
to do tratamento que deve ser dispensado a bandidos. À ocorrência de um crime bárbaro e que
provoca clamor público se sucede uma multiplicidade de posicionamentos sobre qual medida se
adotar, muitas das quais diversas das que prevê a nossa legislação, de maneira que temas como
pena de morte, redução de maioridade penal, prisão perpétua, tortura e “baculejos” policiais são
sempre recorrentes e apontados como soluções ideais.
De um modo geral, o tema dos direitos humanos é visto com certa antipatia. Como nos
lembra Oliveira (2008, p. 269):

Nesse cenário de grandes acenos e esperanças, onde era legítimo esperar que o país
finalmente ingressasse numa fase nova de respeito aos direitos humanos mais ele-
mentares, não é, entretanto, o que tem acontecido: o tema dos direitos humanos,
depois de uma fulgurante e bem sucedida aparição no cenário político brasileiro a
partir de meados dos anos 70, no contexto da luta contra o regime militar, chega ao
início do século XXI, no Brasil, carregando consigo o incômodo rótulo de ‘privilé-
gios’ de bandidos

46
O status de privilégio de bandidos que adquirem direitos fundamentais (muitos dos quais
que nada têm a ver com a justiça criminal) é atribuído, de modo geral, por indivíduos das diversas
classes sociais do país, conforme se conclui das pesquisas de opinião sobre o tema. Aliás, é comum
que nas pesquisas se verifique “um desdém popular em relação aos direitos humanos” (OLIVEI-
RA, 2009, p. 36) e um posicionamento mais duro em relação aos mesmos vindo, justamente, da
classe mais propícia a sofrer violações a seus direitos fundamentais por esse próprio sistema puni-
tivo, a classe pobre.
O sentimento de insegurança coloca em xeque a justiça. Ele normalmente é acompanhado
de uma demanda ao Estado no sentido de cobrar deste o resgate ou a manutenção da ordem na
sociedade. As penas exemplares e rígidas são invocadas como necessárias para restabelecer essa
ordem ferida ainda que não sejam funcionais do ponto de vista do controle da criminalidade.
O medo da violência e a percepção da escalada do crime está fortemente ligado ao respaldo
a sanções mais severas, porque estão alicerçados na exigência de restabelecimento da ordem. Por
isso, ao surgimento de uma cultura do medo sucederia invariavelmente uma adesão a políticas
rígidas de controle social ou, em outros termos, o crescente sentimento de insegurança costuma
estimular o sentimento de impunidade e a percepção de que o Estado precisa punir mais.
Com esta hipótese trabalhou Hugues Lagrange, procurando entender como o recrudesci-
mento do problema da violência urbana pode pôr em risco conquistas como a garantia de direitos
fundamentais. Lagrange vai tentar relacionar o apoio à pena de morte e o aumento da crimina-
lidade. Segundo Lagrange, “a escolha pela pena de morte, que mobiliza os valores mais pessoais,
fortemente enraizados em opções morais, mostra-se sensível à pressão dos fatos” (1995, p. 163),
sensível, pois, ao crescimento do medo da criminalidade violenta. O autor explica (1995, p. 163-
164):

Se o valor dissuasivo da pena de morte não é demonstrado, o desejo de ordem que


ele testemunha encontra, por outro lado, uma justificativa no contexto de evolução
do crime. (...) Esta medida (a pena de morte) do medo global é, de longe, a expres-
são mais coerente da necessidade de restabelecimento da ordem e da autoridade.

A adesão à pena de morte é entendida como uma variável derivada da sensação de impuni-
dade, bem como o aumento efetivo da criminalidade é um fator associado ao sentimento de inse-
gurança. Assim, se o apoio àquela medida punitiva cresce em uma sociedade, é porque as pessoas
estão partilhando de um sentimento de que o Estado não está reprimindo a criminalidade com
eficácia.
Lagrange constata que, nos Estados Unidos, o apoio à pena de morte aumenta em mais de
15% de 1967 a 1990, passando de 40% a 70% o total de opiniões favoráveis a essa medida. No
mesmo período, a criminalidade violenta cresceu consideravelmente e quase que no mesmo ritmo
que o apoio à pena capital, demonstrando haver uma correspondência clara entre aadesão a penas
rígidas e apercepção do crescimento da violência.
Lagrange ressalta que estabelecer o apoio à pena de morte como uma variável dependente
da alteração dos índices de criminalidade pode ser uma conclusão equivocada, haja vista estar a
adesão a esse tipo de medida muito mais ligada a um sentimento de insegurança do que aos reais
números da criminalidade, afinal o medo, como vimos, não possui necessária correspondência
com a experiência com o crime. Desse modo, o apoio à pena de morte pode estar simplesmente
relacionado a uma campanha midiática massiva.

5. A OPINIÃO PÚBLICA E O SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL


A provocação feita por Pierre Bourdieu em “A opinião pública não existe” é perspicaz:

opinião pública é um artefato puro e simples cuja função é dissimular que o estado da
opinião em um dado momento do tempo é um sistema de forças, de tensões e que não
há nada mais inadequado para representar o estado da opinião do que uma percentagem
(BOURDIEU, 1972)
47
Pesquisas de opinião produzidas a respeito do sistema punitivo podem estar francamente re-
lacionadas a demandas de modificações legislativas na seara penal, servindo de suporte para legiti-
má-las. Ao mesmo tempo, não podemos ignorar outras importantes advertências feitas em relação
a esse tipo de enquete. Destacamos o fato de a formulação das perguntas poder alterar significa-
tivamente o resultado. Perguntar se uma pessoa é a favor da pena de morte pode ser diferente de
questionar se em um caso específico, ela seria a favor de matar fulano dessa ou daquela maneira,
isto é, trazer aspectos da realidade para uma pergunta que está em uma dimensão meramente
abstrata do tipo “você é a favor da pena de morte”. Julian Roberts e Trevor Sanders trabalham com
a seguinte hipótese em um estudo opinião pública a respeito de sentença condicional no Canadá:

a hipótese sendo testada foi a de que apoio público a respeito da sentença condi-
cional iria crescer se as condições específicas do cumprimento da sentença fossem
salientadas aos respondentes (ROBERTS, SANDERS, 2000, p. 201)

Feitas essas ressalvas e interpretando com cautela seus dados, cremos que essas pes-
quisas representam, de alguma maneira, as percepções das pessoas em uma sociedade.
Dito isto, passemos à avaliação de algumas delas.
Há duas propostas político-criminais que se mostram especialmente sensíveis ao alvoroço
em torno da midiatização de um delito e da sensação de insegurança: a adoção de pena de morte
e a redução da maioridade penal. Como a opinião pública se comporta em relação a esses temas?
Estariam essas opiniões relacionadas à cultura do medo?
O único instituto que, no Brasil, realiza pesquisas em âmbito nacional sobre pena de mor-
te é o DATAFOLHA, que disponibiliza resultados de pesquisas desde 1991. Antes disso, há um
verdadeiro vácuo sobre o que pensa a população sobre essa medida punitiva. A última pesquisa
sistemática sobre o tema feita pelo instituto foi em 2008.
Como detalharemos adiante, as opiniões a respeito da pena de morte não variaram muito
nos anos em que a pesquisa foi realizada pelo DATAFOLHA, porém apresentaram alguns picos
significativos que podem ser explicados pela ocorrência, nesses anos, de crimes que chocaram a
opinião pública e refletiram diretamente nas enquetes realizadas.
Segundo dados fornecidos pelo Instituto de Pesquisa, a adesão à pena de morte variou no
período de 1991 a 2008 de 48% a 47%, apresentando o menor percentual de apoio em 2008 e os
maiores em 1993, 1995 e 2007, chegando as opiniões favoráveis a alcançar 55% dos entrevistados.

TABELA 1 – Opiniões favoráveis à adoção da pena de morte (%)


Ano 1991 1993 1995 2000 2002 2003 2007 2008
% 48 55 54 48 51 50 55 47
Fonte: DATAFOLHA
De um modo geral, o apoio à pena de morte é expressivo. As explicações para tanto podem
estar relacionadas a fatores diversos: midiatização excessiva de situações problemáticas violentas,
o escasso acesso à justiça de boa parte da população, o desconhecimento em relação ao siste-
ma punitivo, a exploração do ‘problema da impunidade’, uma cultura de violência nas relações
interpessoais, a truculência corriqueira de forças estatais na abordagem com a comunidade, a
desconfiança em relação ao poder judiciário, dentre muitos outros, incluindo o sentimento de
insegurança.
O sentimento de insegurança parece se estabelecer de modo permanente em uma sociedade
que vivencia uma cultura do medo, como a brasileira, o que, talvez, explique os altos índices de
adesão à pena capital. O exame da conjuntura que envolve as pesquisas sobre pena de morte pare-
ce reforçar a hipótese de que a aceitação de certos direitos fundamentais está intimamente ligada
a uma sensibilidade que o medo da violência ajuda a perder. Vejamos.
A pesquisa em 1993 se realizou entre os dias 2 e 4 de fevereiro, pouco mais de um mês após
o assassinato de Daniela Perez, atriz morta pelo ator Guilherme de Pádua, que contracenava com
ela na novela “De Corpo e Alma” da Rede Globo. A morte de Daniela causou grande comoção pú-
blica e foi amplamente midiatizada, gerando campanhas de diversas naturezas acusando o Estado
48
como incapaz de lidar com homicidas, dentre elas a de alteração da Lei de Crimes Hediondos,
que, à época, não previa o homicídio como delito hediondo5.
Após o assassinato de Daniela Perez, iniciou-se uma grande movimentação para a coleta
de assinaturas com o objetivo de propor à Câmera dos Deputados um projeto de lei de iniciativa
popular que pugnava pela modificação na Lei n° 8072 de 1990. Pela primeira vez, no Brasil, a
sociedade fazia uso de uma ação de iniciativa popular, prevista na constituição como forma de
permitir instrumentos de participação direta no processo político-legislativo.
A lei proposta foi aprovada e publicada em setembro de 1994, de modo que as discussões
em torno do assassinato de Daniela, bem como da hediondez do crime de homicídio persistiu for-
temente até pelo menos o final de daquele ano, o que pode explicar a persistência, em 1995, de
um percentual alto de adesão à pena de morte, visto que, neste ano, as entrevistas ocorreram no
mês de março.
Possivelmente a proximidade entre a pesquisa DATAFOLHA e o assassinato de Daniela em
1993 e a permanência dos debates em prol da modificação da lei de crimes hediondos nos anos
seguintes tenha alterado consideravelmente a adesão à pena capital, haja vista ter o apoio a essa
medida sido reduzido nos anos seguintes, alcançando novamente em 2000 o patamar de 48% dos
entrevistados. Isto reforça a ideia de que a proximidade, seja física ou temporal, ao crime mantém
vivo um sentimento de vingança que se reflete sobremaneira na reação contra o criminoso.
A pesquisa foi realizada novamente em 2002 e 2003 e registrou pequenos aumentos, tendo
51% e 50%, respectivamente, dos entrevistados se posicionado favoravelmente à pena de morte.
Apenas em 2007 o DATAFOLHA repetiu a consulta, registrando novamente 55% de opiniões de
apoio, uma alta considerável em relação às enquetes anteriores.
Interessante notar que em 2007 a pesquisa DATAFOLHA se realizou entre os dias 20 e
30 de março de 2007, um mês depois da morte da criança João Hélio, um crime bárbaro que foi
amplamente midiatizado e provocou uma revolta coletiva, mais uma vez, encetando-se debates a
respeito “da leniente legislação penal”. Talvez esse caso em específico possa justificar aquele au-
mento que, como disse, não se manteve nos anos seguintes.
Esses dois momentos são fortemente elucidativos daquilo que afirmamos anteriormente: a
mídia é capaz de gerar clamor público quando aborda incessantemente determinados crimes. Isso
ocorreu nos casos Daniela Perez e João Hélio. No entanto, o desdém em relação aos direitos huma-
nos fica claro com a forte adesão à pena de morte em todos os anos em que houve pesquisa. Se de
um lado isso está associado à forma como a criminalidade é tratada nos veículos de comunicação,
tem, de outro, estreita ligação com o aumento da sensação de insegurança, verificada em pesqui-
sas sobre o tema, conforme pontuamos acima. O medo da violência é capaz de gerar um estado
de permanente revolta e irracionalidade concernente ao problema da criminalidade. Quando um
crime bárbaro vem à tona, essa revolta apenas se acentua.
No que toca à redução da maioridade penal, os achados são semelhantes. Muito menos sis-
temáticas que as pesquisas sobre pena de morte, as que abordam a redução da maioridade penal
também demonstram, quando realizadas, forte adesão da população. A última dela, realizada em
abril de 2013 pelo DATAFOLHA apenas na cidade de São Paulo, demonstra uma adesão ao projeto
de 93% dos entrevistados. Assim como verificado acima, essas pesquisas, quando realizadas após
a ocorrência de crimes emblemáticos ou fortemente midiatizados, podem sugerir uma adesão
mais emocionada a essas políticas. Neste último caso, a pesquisa se realizou após a enxurrada de
notícias sobre crimes supostamente envolvendo adolescentes, dentre os quais da dentista Cinthya
Magaly Moutinho de Souza, assassinada com uso de fogo em seu consultório médico e o do ado-
lescente Victor Hugo Deppman, morto durante um assalto em frente a sua residência.
Em 2004, outra pesquisa de opinião conclui que 84% da população brasileira era favorável à
redução da maioridade penal. Destaque-se que a pesquisa ocorreu entre os dias 8 e 15 de dezem-
bro de 2003, praticamente um mês após o crime que envolveu o casal Liana Friedenbach e Felipe
Caffé, perpetrado por um grupo de pessoas, que envolvia o, à época adolescente, Champinha.
De 7 a 8 de agosto de 2006, nova pesquisa foi realizada pelo DATAFOLHA e a redução apa-
rece novamente com 84% de adesão.
É possível imaginar que, de um modo geral, há uma boa recepção em torno desse tipo de
5 O que, aliás, é muito interessante. O latrocínio figurava na primeira versão da lei de crimes hediondos como o
primeiro dentre os delitos daquela natureza e o homicídio, não.
49
medida, embora os percentuais de concordância possam subir muito quando fatos sociais envol-
vendo adolescentes geram forte clamor.

6. UMA ÚLTIMA REFLEXÃO. O CASO DO “MENINO DO POSTE” E A PESQUISA DE OPINIÃO


Em janeiro de 2014, um adolescente de 15 anos, negro e morador de rua foi amarrado a um
poste, pelo pescoço, com uma corrente de bicicleta. O menino teria supostamente tentado praticar
um furto, quando foi alvo de justiceiros. O caso repercutiu na mídia e nas redes sociais e chegou
até mesmo a receber apoio público da jornalista Raquel Sheherazade que, em jornal da emissora
SBT, afirmou que o “contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma
sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite”.
O “menino do poste” é o retrato de muitas tragédias brasileiras. A tragédia do racismo, do
abandono e da justiça sumária privada. No Rio de Janeiro, desde a década de 1950, a atuação de
grupos de extermínio famosos como o Esquadrão da Morte e a Escuderie Le Cocq, fazem meninas
e meninas de rua como vítimas. A cifra desses homicídios, certamente, nós jamais conheceremos.
O curioso é que, embora a fala da jornalista não tenha sido isolada, em pesquisa realizada
pelo instituto DATAFOLHA, na cidade do Rio de Janeiro, a ação dos justiceiros mereceu o repú-
dio de 79% dos entrevistados. 17% concordaram com a ação e 5% não respondeu. Importante
destacar que, entre pessoas negras, 12% afirmou ter sido correta a atitude dos justiceiros e entre
pessoas que se declararam brancas, esse percentual subiu para 21%.
O menino do poste foi alvo de uma pena infamante e corporal aplicada sumariamente a
um sujeito que guarda as características do estereótipo criminoso responsável pela criminalidade
violenta. É negro, é adolescente e perambulava pelas ruas de um bairro nobre, Copacabana, su-
postamente praticando furtos e roubos. Ainda assim, a medida a ele imposta foi rechaçada. Será
que, quando somos colocados frente a frente com a acusado ou o apenado, a nossa sensibilidade
em torno de medidas drásticas não se altera? Falar vagamente em apoio à pena de morte pode ser
muito mais fácil do que ver a morte e ver a pessoa que será morta.
Talvez os indagados na pesquisa tenham simplesmente se sentido constrangidos em decla-
rar apoio à ação contra o adolescente. Todavia, e quiçá essa hipótese possa se confirmar em ou-
tras pesquisas, quando nos deparamos com a crueldade das medidas que abstratamente dizemos
apoiar, podemos mudar de postura e opinião, confirmando a hipótese dos trabalhos de Roberts e
Sanders.

7. CONCLUSÃO
A adesão a propostas de expansão do sistema punitivo é, em média, alta no Brasil e acaba por
alcançar os patamares mais elevados justamente em contextos de publicização de crimes violentos
letais que causam clamor público. Isso está em grande medida ligado à abordagem sensacionalista
da mídia, mas não está desligado do sentimento de insegurança, o qual se sedimenta todos os dias
com experiências diretas ou indiretas com o crime e atingem cumes máximos quando certos casos
vêm à tona, gerando um processo de identificação com ele ou mesmo, de pura revolta.
O sentimento de insegurança traz consequências consideráveis para a forma de organiza-
ção da vida de cada cidadão. Como aponta Zaluar,

Os efeitos mais evidentes dessa postura não são os muros altos, grades, fechaduras,
alarmes e cadeados, mas o descrédito no trato com estranhos e a descrença na par-
ticipação democrática. A idealização de uma comunidade de semelhantes encolheu
os horizontes sociais, restringindo o mundo significativo e de confiança (ZALUAR,
1995, p.13)

Para a democracia, talvez o pior dos efeitos da cultura do medo seja o fato de ela vir acompa-
nhada de uma necessidade de neutralização do perigo, ainda que em níveis concretos isso signifi-
que a exclusão e o extermínio do outro. Entretanto, nem tudo que dissemos apoiar seria algo que
estaríamos dispostos a vivenciar. O caso da pesquisa sobre o “menino do poste” será um alento?
50
Esperamos.

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52
DIREITOS HUMANOS REPRODUTIVOS E REPRODUÇÃO MEDI-
CAMENTE ASSISTIDA: LIBERDADE DE REPRODUZIR (?)

Luciana Brasileiro1

1. A REPRODUÇÃO HUMANA
A reprodução humana, é tema fulcral da vida em sociedade. Não podemos pensar em conti-
nuidade da raça humana, sem vislumbrar a necessária reprodução e nela, refletir o papel feminino
em diversos momentos da história, até os dias atuais.
Historicamente, a reprodução humana era vista como um dever da mulher -, o que, aliás,
Beauvoir2, considera que foi o elemento que a colocou numa situação de inferioridade em relação
ao homem -, hoje é vista como um direito assegurado. Diante dos avanços tecnológicos que, em
termos de velocidade, ultrapassam os limites do Direito, nos deparamos com inúmeras mudanças,
ao longo dos tempos em relação ao tema.
Autores como Malinovski (1973, p. 39) e Lévi-Strauss (1996, p. 268), registraram a exis-
tências de sociedades matriarcais, o primeiro, nas tribos trobriand, onde a reprodução era definida
pela mulher, cabendo ao homem se submeter ao ato sexual; o segundo, em tribos indígenas bra-
sileiras, onde a criança passava a primeira infância apenas na companhia materna. Em ambas as
situações, os papéis de pai se assemelhavam: lhes cabia divertir os filhos, e tão somente.
Com as sociedades patriarcais, em uma vertente oposta, essa reprodução era imposta à mu-
lher, que reunia consigo o dever de cuidados com a prole. Quanto mais numerosa a família, maior
o número de pessoas a trabalhar na propriedade.
A fecundidade era determinante para a manutenção da família, resumida ao casamento.
Nos dias atuais, a inserção da mulher no mercado de trabalho, a sua independência e o alcance
de tratamento isonômico, aliados à tecnologia, lhe permitem não só o controle da fecundidade,
mas também a decisão da maternidade, independente, inclusive, de uma figura que exercerá o
papel paterno.
Diante de tanta segregação vivida pela mulher durante o período civilizatório, no Brasil, por

1 Mestre em Direito Privado pela UFPE. Advogada. Professora Universitária.


2 Beauvoir afirmou que “a maternidade destina a mulher a uma existência sedentária; é natural que ela permaneça
no lar enquanto o homem caça, pesca e guerreia”(BEAUVOIR, 2009, p. 108).
53
exemplo, desde a colonização até 1960, pelo menos, diversos movimentos ebuliram a busca pelos
seus direitos, dentre eles, os direitos humanos reprodutivos.

2. DIREITOS HUMANOS REPRODUTIVOS


Os direitos reprodutivos tiveram seu conceito legitimado a partir de dois importantes docu-
mentos: o Plano de Ação da Conferência Internacional sobre a População e Desenvolvimento, no
Cairo, 1994 e a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em
Pequim, 1995. A partir de então, o desafio dos países participantes, inclusive o Brasil, foi observar
os princípios basilares dos documentos e implementar ações no sentido de assegurar o pleno exer-
cício dos direitos reprodutivos pelos cidadãos.
Os documentos tiveram alcances distintos, sendo o primeiro direcionado a casais, adoles-
centes, mulheres solteiras, homens e pessoas idosas; e o segundo, a mulher, em específico.
Esses direitos são considerados Direitos Humanos e assim foram tratados pela primeira vez
na Conferência Internacional de Direitos Humanos, celebrada em Teerã, em 1968, quando ho-
mem e mulher já eram iguais em dignidade.
O parágrafo 18 da Declaração de Viena de 1993 fez constar, ainda, os direitos humanos das
mulheres e das meninas, inseridos nesse contexto, os direitos reprodutivos e sexuais. A intenção
de erradicar toda e qualquer forma de discriminação pelo gênero tem por base a dignidade hu-
mana. O artigo ainda estimula a adoção de medidas legais e ações nacionais e internacionais nas
áreas de desenvolvimento socioeconômico, educação, maternidade, saúde e assistência social.
Com a busca pela erradicação da discriminação baseada no gênero, outras ações surgiram
no sentido de reafirmar a necessidade de proteção da mulher, mas foi, consoante mencionado,
o Plano de Cairo, que ressaltou no plano internacional, o conceito dos direitos reprodutivos, en-
quanto direitos humanos, já que traçou um plano de metas com a finalidade de atingir a igualdade
de gênero.
Eles decorrem, primordialmente, do Direito Humano à Saúde e não se restringe à mera pos-
sibilidade de reproduzir, mas sim, regula situações que envolvem as relações privadas e públicas:

Os Direitos Reprodutivos são constituídos por certos direitos humanos fundamen-


tais, reconhecidos nas leis internacionais e nacionais. Além das leis, um conjunto
de princípios, normas e institutos jurídicos, e medidas administrativas e judiciais
possuem a função instrumental de estabelecer direitos e obrigações, do Estado para
o cidadão e de cidadão para cidadão, em relação à reprodução e ao exercício da se-
xualidade (VENTURA, 2004, p.19).

Flávia Piovesan acrescenta ainda uma fusão entre esses direitos e os direitos sexuais, assim
definidos, como “o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação,
coerção ou violência”3.
A saúde reprodutiva foi definida no §7.1 da Plataforma de Cairo e ratificada pela Plataforma
de Ação de Pequim (C.94) como sendo:

A Saúde Reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social em


todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo, suas funções e processos, e
não a simples ausência de doença ou enfermidade. A Saúde Reprodutiva implica,
por consegüinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tendo
a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quanto e quantas vezes
deve fazê-lo. Está implícito nesta última condição o direito de homens e mulheres
de serem informados e de terem acesso aos métodos eficientes, seguros, aceitáveis
e financeiramente compatíveis de planejamento familiar, assim como a outros mé-
todos de regulação de fecundidade a sua escolha e que não contrariem a Lei, bem
como o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que propiciem às mulhe-

3 PIOVESAN, Flávia. Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos. Disponível em: <www.mp.pe.gov.br>. Acesso
em: 10 jan., 2014.
54
res as condições de passar em segurança pela gestação e parto, proporcionando aos
casais uma chance melhor de ter um filho sadio.4

Não é demais ressaltar que essas políticas têm em vista, principalmente, o combate às inú-
meras formas de violência sofrida pelas mulheres, bem como a necessidade de erradicação da prá-
tica de políticas agressivas de controle de natalidade, como ocorre, por exemplo, na China, onde
o governo implantou a política do filho único, chegando inclusive a aplicar multa na hipótese de
descumprimento. Mas não se esgotam em um único foco de atuação. Os direitos reprodutivos são
amplos, e incluem o acesso ao progresso científico, para prevenção e tratamento da esterilidade,
como prevê o §7.6 da Plataforma de Cairo5, que previu um prazo até 2015 para que os países signa-
tários disponham de serviço de assistência à saúde reprodutiva, bem como tratamentos da esterili-
dade, dentre outros, observando-se, sempre, a paternidade responsável e o planejamento familiar.
Os dois documentos ainda ressaltaram que as medidas a serem tomadas devem considerar a
“promoção do exercício responsável desses direitos por todos os indivíduos, e que esse sentido de
responsabilidade deve ser a base primordial das políticas e programas estatais e comunitários na
área de saúde reprodutiva, inclusive planejamento da família”, destacam o§7.3 da Plataforma de
Cairo6 e C.95 da Plataforma de Pequim7.
Como visto anteriormente, o direito em tela está intrinsecamente vinculado à autonomia
da vontade, onde apenas a mulher/homem/casal, podem definir sobre a liberalidade de procriar,
contudo, deve o Estado possibilitar, através de políticas públicas, o acesso à informação, orientação
e tratamento.
Não é demais salientar que as medidas acima foram tomadas com base no espírito da iso-
nomia. Reconhecida a vulnerabilidade da mulher em relação ao homem, foi prioridade o alcance
da dignidade em ambos os sexos, fomentando-se, inclusive, a participação do homem nas tarefas
domésticas e criação dos filhos, através de um ideal de paternidade responsável.
O tema também foi tratado em 1979 pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas
de Discriminação contra a Mulher, das Nações Unidas. Pertinente à Convenção, destaque-se o
que prevê o art. 12:

Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discri-


minação contra a mulher nas esfera dos cuidados médicos, a fim de assegurar, em
condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos,
inclusive referentes ao planejamento familiar.

Flávia Piovesan indica “os delineamentos iniciais dos direitos reprodutivos”:

a) eliminar a discriminação contra a mulher nas esfera da saúde (vertente repres-


siva/punitiva) e
b) assegurar o acesso a serviços de saúde, inclusive referentes ao planejamento
familiar (vertente promocional).8

4 PATRIOTA, Tânia. Relatório da Conferência Internacional sobre população e desenvolvimento – Plataforma de


Cairo. Disponível em: <www.sepm.gov.br/Articulacao/articulacao-internacional/relatoriocairo.pdf>. Acesso em: 10
jan., 2014.
5 PATRIOTA, Tânia. Relatório da Conferência Internacional sobre população e desenvolvimento – Plataforma de
Cairo. Disponível em:<www.sepm.gov.br/Articulacao/articulacao-internacional/relatoriocairo.pdf>. Acesso em: 10
jan., 2014.
6 PATRIOTA, Tânia. Relatório da Conferência Internacional sobre população e desenvolvimento – Plataforma de
Cairo. Disponível em:<www.sepm.gov.br/Articulacao/articulacao-internacional/relatoriocairo.pdf>. Acesso em: 10
jan., 2014.
7 VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher. Dispo-
nível em: <www.sepm.gov.br/Articulacao/articulacao-internacional/relatorio-pequim.pdf.>. Acesso em: 07 set., 2012.
8 PIOVESAN, Flávia. Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos. Disponível em: <www.mp.pe.gov.br>. Acesso
em: 10 jan., 2014.
55
Ratificando os tratados internacionais, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226,
§7o, reconhece o planejamento familiar como direito e institui ao Estado a obrigação de propiciar
recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.
Em 1996, a Lei nº 9.263, regulamentou o planejamento familiar. A referida lei trouxe à baila
a discussão acerca da interferência do Estado nas relações privadas, haja vista que sua função
supera a esfera educativa e promocional e alcança aquela da fiscalização, pois lhe cabe também
verificar se estão sendo atendidos os ditames legais.
Não obstante a lei venha regulamentar o preceito constitucional, a realidade se apresenta
assaz distinta da norma. Visualizar os Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos, é antes de
tudo, conforme alerta Flávia Piovesan:

transpor e implementar, no plano local, os recentes avanços obtidos na esfera inter-


nacional, conferindo prevalência aos parâmetros internacionais e constitucionais
para a efetiva proteção dos direitos reprodutivos, enquanto direitos nacional e in-
ternacionalmente assegurados.9

É de palmar importância compreender os Direitos Reprodutivos como um complexo, haja vista que o
mesmo assegura direitos como concepção e contracepção. Nesse sentido, a Lei do Planejamento Familiar no
Brasil, é bastante compreensiva, contudo, as políticas públicas não asseguram a aplicação efetiva da norma.
A referida lei decorre do reconhecimento dos Direitos Reprodutivos como Direitos Huma-
nos, conferidos, aqui, em especial, à mulher, vítima de violência, de planos, inclusive públicos, de
incentivo ou repressão à reprodução, conferindo-lhe a possibilidade de exercício da liberdade de
reprodução. Entretanto, não é demais destacar que a dita liberdade não pode, jamais, ser dissocia-
da da responsabilidade.

3. PLANEJAMENTO FAMILIAR

3.1 Lei do Planejamento Familiar


O Planejamento Familiar, garantido pelo art. 226, §7º da Constituição Federal, impõe ao Es-
tado o dever de propiciar recursos, educacionais e científicos garantidores de seu exercício. Além
do uso de técnicas de contracepção, cabe ainda o poder público, a oferta de métodos e tratamentos
de concepção, ambas reguladas atualmente, pela lei nº 9.263/96. O civilista Paulo Lôbo esclarece
que o planejamento é “direito de todo cidadão, e não apenas do casal, como referido na Constitui-
ção” (LOBO, 2011, p. 218).

A autora Maria Cláudia Crespo Brauner define planejamento familiar:

Sob a designação de planejamento familiar está implícita a ideia de regulação de


nascimentos, de contracepção, de esterilização e de todos os outros meios que agem
diretamente sobre as funções reprodutoras do homem e da mulher e, especialmen-
te, sobre a saúde de ambos (BRAUNER, 2003, p. 15).

O governo, através da lei, criou programas de concepção e contracepção que são atualmente
ofertados pelo Sistema Único de Saúde-SUS, e todo cidadão pode se valer das técnicas previstas
em lei. As técnicas de contracepção, envolvem atendimento especializado em clínicas da mulher,
cirurgias de laqueadura e vasectomia, bem como a conscientização da população carente de mé-
todos caseiros de contracepção, além da distribuição de anticoncepcionais e preservativos.
No que pertine à infertilidade, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Atenção
Integral em Reprodução Humana Assistida, do Ministério da Saúde, que prevê o apoio do SUS
para o tratamento das patologias, executadas pelassecretarias estaduais e municipais, através da

9 PIOVESAN, Flávia. Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos. Disponível em: <www.mp.pe.gov.br>. Acesso
em: 10 jan., 2014.
56
Portaria 426/GM de 22 de março de 2005, que regula a competência para a implantação das téc-
nicas no sistema público de saúde.
A portaria levou em consideração seis fatores, quais sejam:
a) necessidade de estruturação dos SUS para aplicação das técnicas de reprodução
humana;
b) o disposto na Constituição Federal, em seu art. 226, §7º e a Lei do Planejamento
Familiar, que assegura a utilização de todas as técnicas cientificamente viáveis de
concepção e contracepção;
c) a coleta de dados da Organização Mundial de Saúde-OMS e demais sociedades cien-
tíficas, de que aproximadamente 8% a 15% dos casais apresentam problemas de
infertilidade;
d) Que as técnicas de reprodução assistida contribuem para a diminuição da transmis-
são vertical e/ou horizontal de doenças infectocontagiosas, genéticas, entre outras;
e) A necessidade de estabelecimento de mecanismos de regulação, fiscalização, contro-
le e avaliação da assistência prestada aos usuários do SUS; e
f) A necessidade de estabelecimento de critérios mínimos para o credenciamento e a
habilitação dos serviços de referência de média e alta complexidade em reprodução
humana10.
A portaria regula, então, o uso das técnicas de reprodução humana assistida pelo SUS, pre-
vendo que as secretarias estaduais e municipais deverão implantar, executar e fiscalizar o sistema.
Contudo, importa salientar que a referida portaria se aplica apenas para o uso de técnicas de
reprodução humana medicamente assistida por um casal. No entanto, ela não foi implementada,
em razão da necessidade de um estudo de impacto financeiro, já que os tratamentos de fertilidade
humana possuem alto custo.
Num outro vértice está a Lei do Planejamento Familiar, que prevê o planejamento à família
em seu art. 1º, como direito de todo cidadão. Ao contrário daquela, esta não faz menção apenas ao
casal, mas sim, à mulher, o homem ou o casal, senão vejamos:

Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de
ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limi-
tação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.

A lei dedica um número maior de artigos para a contracepção, uma vez que essa é a maior
preocupação, do ponto de vista do interesse social, haja vista a necessidade de controle dos altos
índices de gravidez indesejada que, muitas vezes, resulta em abortos clandestinos. No entanto,
menciona a possibilidade de constituição de prole pela mulher, pelo homem, ou pelo casal, que
estariam, portanto, autorizados a, de forma autônoma, ter um projeto parental, ao contrário do
que prevê a Constituição Federal, conforme já mencionado.
Muito embora tenha a questão do Planejamento Familiar, sido introduzida no ordenamento
jurídico pela Constituição, carecendo, destarte, de lei ordinária que regulasse, o que fez a lei em
questão, é necessário que se observe a orientação dada pela norma constitucional ao tema, no
sentido de ser o planejamento uma decisão de um casal e não uma opção para um eventual pla-
nejamento individual.

3.2 Liberdade de reprodução


A liberdade é princípio garantido constitucionalmente e está vinculada ao tema em análise,
promovido pela possibilidade de cada cidadão escolher se pretende, ou não ter filhos.
A garantia reside no fato de que ninguém poderá ser coagido a procriar ou ainda, a deixar de
fazê-lo. Essa ideia nos remete à noção de liberdade jurídica, qual seja, a autonomia privada.

10 PORTARIA 426/GM de 22 de março de 2005. Disponível em: www.brasil.gov.br/sobre/saude/saude-da-mulher/pla-


nejamento-familiar. Acesso em: 22 set., 2013.

57
Antes, contudo, é necessário refletir sobre a liberdade, dotada de forte conteúdo filosófico. A
autora Maria Celina Bodin de Moraes, ao buscar o conceito de liberdade, encontra um único pon-
to para o qual todos os filósofos convergiram em relação à liberdade: a noção de responsabilidade.
Segundo a autora, “quando há uma, há outra, e a recíproca também é verdadeira” (MORAES,
2010, p. 184).
Ela aponta ainda, como fundamental para entender a liberdade, compreender o livre-arbí-
trio, que consiste na possibilidade do sujeito “querer o que se quer” (MORAES, 2010, p. 184).
Kant definiu o livre arbítrio como sendo “a escolha que pode ser determinada pela razão
pura”, ou seja, a liberdade estaria vinculada à independência do ser “determinado por impulsos
sensíveis”(KANT, 2008, p. 63). O filósofo ainda remete à ideia da liberdade às leis morais, que po-
derão ser jurídicas ou éticas, sendo as primeiras, aquelas que conformam ações externas às leis e
as éticas, as que unem as leis jurídicas ao que justifica/determina as ações.
Kant baseia sua ideia de liberdade à ausência de coerção e independente de impulsos, que
ele vincula ao arbítrio animal. Assim, embora soframos interferências de diversos estímulos com
frequência, temos, na liberdade, a possibilidade de escolher.
Bodin associa a liberdade à dignidade humana, esclarecendo a conhecida divisão kantiana
sobre os valores: preço e dignidade (MORAES, 2010, p. 184). Estando a dignidade como intrín-
seca ao ser humano, a faculdade lhe garantiria a proteção contra a coerção. A nossa Constituição
Federal, ao assegurar no inciso II do art. 5º, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei”, está resguardando a liberdade de todos, dentro do sistema
legal.
Paulo Lôbo define a liberdade, no Direito, como sendo “o direito de ser livre, desde o nasci-
mento até à morte, o direito de não estar subjugado a outrem, o direito de ir e vir, salvo a restrição
em virtude do cometimento de crime”. O autor ainda registra que a violação desse direito de per-
sonalidade, gera o direito de reclamar uma indenização por danos morais11.
Atrelado ao conceito de liberdade, está o de autonomia, em especial no que toca ao direito
privado. A autodeterminação assegura a todo indivíduo o direito de direção nas decisões indivi-
duais, cabendo ao Estado a mínima intervenção nessas relações, de sorte que não haja violação
de privacidade.
Pietro Perlingieri, entende a autonomia privada dentro de qualquer relação, privada ou ne-
gocial, inclusive aquelas relações existenciais, senão vejamos:

Uma definição usual, a ser considerada, no entanto, como mero ponto de partida
para em seguida desenvolver as respectivas críticas, entende por autonomia priva-
da, em geral, o poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um
indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas como consequência
de comportamentos – em qualquer medida – livremente adotados (PERLINGIERI,
2008, p. 335).

A liberdade reside no tema em apreço e tem direta vinculação ao planejamento familiar,


estando tipificada no art. 9º da Lei 9.263/96, que põe à disposição os métodos de concepção e
contracepção, desde que sejam eles aceitos cientificamente sem colocar em risco a vida e a saúde
das pessoas, assegurando-lhes a liberdade de opção.
Planejar ter, ou não ter filhos, estaria dentro do conceito de liberdade de reprodução. Além
disso, o indivíduo é ainda dotado de liberdade na escolha do método de contracepção, mas há po-
lêmica quanto à concepção.
O Conselho Federal de Medicina é o único a regular eticamente no Brasil o uso das técnicas
de reprodução assistida e o faz através da Resolução nº 1.957/10, que revogou integralmente o
contido na Resolução nº 1.358/1992. O Código Civil Brasileiro só faz referência ao tema ao tratar
das presunções de filiação. O primeiro dos princípios gerais da Resolução do CFM, prevê que as
técnicas de reprodução deverão ser utilizadas apenas quando houver problemas medicamente
identificados:

11 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Disponível em: <jus.com.br/revista/texto/4445/
danos-morais-e-direitos-da-personalidade#ixzz27ElrEcDq>. Acesso em: 22 set., 2013.
58
1 – As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução
de problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação quando
outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas.
(g.n.)

Aparentemente, a Resolução vedaria, portanto, hipóteses como o projeto individual de ma-


ternidade/paternidade, ou ainda, um projeto homoparental. A Resolução anterior direcionava o
uso das técnicas apenas às mulheres, e a atualmente vigente se adequou às conformações fami-
liares definidas na Constituição Federal, considerando o contexto de pluralidade de entidades
familiares, contemplando que os pacientes das técnicas, são todas as pessoas capazes:

1358/1992
II - USUÁRIOS DAS TÉCNICAS DE RA
1 - Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não
se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde
que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consenti-
mento informado.
2 - Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou
do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado.
1957/2010
II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA
1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indica-
ção não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de
RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos
sobre o mesmo, de acordo com a legislação vigente.

Não há dúvidas de que a Resolução do CFM foi ponderada no sentido de limitar o uso das
práticas médicas apenas em última hipótese. Entrementes, a Lei do Planejamento Familiar não
inibe a liberdade do paciente de escolha do método de concepção. Sendo a Resolução uma norma
que visa estabelecer apenas critérios éticos de utilização das referidas técnicas pelos médicos,
estaria ela sujeita à lei.
Assim, cabe ao indivíduo, no caso em análise, à mulher, se utilizando de sua liberdade, esco-
lher como pretende planejar a concepção. Sendo assim, está autorizada, por lei, a eleger a técnica
de reprodução assistida para uma “produção independente”.
Essa liberdade de reprodução, no entanto, pode ter um outro vértice, bastante perigoso, de
“mercantilização”, haja vista que os tratamentos de reprodução assistida têm um altíssimo custo,
o que possibilita que apenas pessoas que gozam de estabilidade financeira possam se submeter aos
tratamentos, quando esses não são subsidiados pelo SUS.
Os avanços tecnológicos não são acompanhados pela norma pátria, que quedou engessada
perante a progressão científica e, inevitavelmente, não prevê a regulamentação dessas práticas no
país. Pior, o Poder Judiciário assiste silente ao patente desrespeito à norma constitucional, que
apenas prevê o direito à procriação de forma livre, mas não abre sendas para a prática da sexagem,
ou seja, escolha de sexo, ou cor dos olhos, tipo de pele e cabelo. Tais procedimentos, inclusive,
fogem da seara da infertilidade, que deveria ser o principal foco do tratamento.
A relação de consumo gerada entre médico e paciente, ultrapassa as fronteiras da prestação
do serviço médico, na medida em que se oferecem técnicas para seleção da espécie humana e
não há nenhum proibitivo legal específico em vigor, mas tão somente uma regra ética. Partindo do
princípio de que o projeto parental está afeto à autonomia privada, caberia ao paciente definir se
pretende, ou não, se submeter à prática de sexagem.
Urgente delimitar o que prevê o direito à procriação e quais são suas barreiras limítrofes.
José Oliveira Ascensão revela sua preocupação com a garantia do atendimento ao interesse do
nascituro:

Mas nenhum direito é absoluto. Semelhante direito teria pelo menos de se conciliar

59
com os direitos dos outros. No caso, parece muito mais importante acentuar que há
que entrar em conta com os direitos do novo ente, que não pode em caso nenhum
ser considerado um mero instrumento para a satisfação dos objectivos alheios. (...)
Isto implica que se pressuponha que haja um casal no destino do novo ser. Afasta-
ria, por exemplo, a mulher solteira (ASCENSÃO, 1994, p. 98).

À mesma corrente se filia Eduardo de Oliveira Leite (1995), ao ensinar que a Constituição
Federal, em seu artigo 226, §4º apenas prevê o reconhecimento de entidades familiares forma-
das pelo pai ou mãe com seus filhos. Porém, não é intenção da norma que seja criada uma nova
modalidade de família, que já se constitua, naturalmente, sem um dos genitores, pois ambos são
necessários para o desenvolvimento dos filhos. Afasta-se o invocar precipitado e equivocado do art.
226, §4º do texto constitucional como argumento legitimador da inseminação artificial da mulher
“independente” e livre.
Essa possibilidade é alcançada pelas técnicas de reprodução assistida, sem a necessidade da
presença de um pai, pois a mulher está autorizada, sozinha, a se submeter aos métodos de inse-
minação, já que não há lei que a proíba de fazê-lo.

4. A REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA


O problema da fertilidade não é atual e sempre preocupou o homem, qualquer que fosse
a sua origem. Não ter filhos representaria uma ameaça à espécie humana, estando o ser humano
fadado à extinção. Entender o estágio atual requer uma análise do tempo, para que cheguemos
à conclusão de que os tratamentos de reprodução humana medicamente assistida decorrem, em
verdade, do culto aos deuses.
A mulher infértil sempre foi motivo de preocupação e muitas vezes de preconceito em so-
ciedades menos desenvolvidas. As deusas da fertilidade, na maioria das vezes representadas por
mulheres grávidas eram cultuadas para trazerem filhos.
Até o momento em que o homem pôde compreender as causas de infertilidade humana, as
mulheres sofreram, em diversas culturas, toda sorte de discriminação. A Pesquisadora de Harvard,
Debora Spar, registra que:

De acordo com essa lógica, as mulheres como Raquel não tinham filhos porque, de
alguma forma, não mereciam tê-los, porque Deus tinha determinado que eram in-
dignas de conceber. E os homens casados com mulheres indignas eram, em muitas
culturas, livres de as matar ou abandonar. Na Índia antiga, um homem podia amar-
rar a sua mulher estéril e atear-lhe fogo. Na China, uma esposa sem filhos não tinha
direito a morrer em casa. Noutros países – em certas regiões da Grécia, da Turquia e
do Bali – dependendo do espírito da época e do credo dos governantes, as mulheres
estéreis eram forçadas a suicidar-se, ‘desonradas, odiadas e maltratadas’ por socie-
dades para as quais infertilidade era sinónimo de impiedade (SPAR, 2007, p. 30).

A procriação sempre representou um dever social imposto, normalmente à mulher. Simone


de Beauvoir, em sua obra “O Segundo Sexo” chegou a afirmar que a repressão sobre a necessidade
de procriação, exercida nas mulheres, caracteriza uma espécie de violência, quando menciona
que “viola-se mais profundamente a vida de uma mulher exigindo-se dela filhos do que regula-
mentando as ocupações dos cidadãos; nenhum Estado ousou jamais instituir o coito obrigatório”
(BEAUVOIR, 2009, p. 93).
A fertilidade já foi relacionada à bruxaria. No séc. XV a publicação dos julgamentos das bru-
xas (Hammer of the Witches) lhes atribuía como pecado as práticas de tornar homens impotentes
bem como a prática de esterilização e castração. Em seguida, se acreditou que a prática frequente
do sexo, poderia levar à infertilidade. A conclusão adveio de que os “ventres movediços” podiam
evitar a concepção, como ocorria com as meretrizes. Então, a conclusão dos religiosos era de que
as mulheres inférteis se equiparavam às prostitutas, o que fomentava o desejo de ter filhos:

60
(as mulheres) bebiam poções de urina de mula e sangue de coelho e cobriam-se
de ervas que se acreditava induzirem a gravidez. Beijavam árvores, deslizavam por
pedras e banhavam-se em água salobra, tida como semelhante ao sangue do parto.
Quando tudo o mais falhava, rezavam, adoptavam ou, à semelhança de Raquel,
arranjavam outra mulher para gerar o ‘seu’ filho (SPAR, 2007, p. 31).

Com o passar do tempo e a incessante busca da fertilidade, a maioria dos tratamentos se


mostraram lucrativos e deu margem a uma série de caras invenções. Debora Spar registra o caso
do escocês James Graham, criador de uma terapia baseada em impulsos elétricos, que ganhou
maior repercussão após, aparentemente, ter curado a Duquesa de Devonshire. Na época, ele
montou o Templo da Saúde, onde realizava “tratamentos” em homens e mulheres, todos com es-
tímulos elétricos (SPAR, 2007, p. 33).
Foi apenas a partir do séc. XIX que teve início a associação entre infertilidade e condição
clínica, afastadas as técnicas rústicas de cura desse mal.
A reprodução assistida representou, sem dúvida, um dos maiores avanços da ciência. É
oriunda de inúmeras pesquisas, iniciadas no final do século XIX, primeiramente com técnicas ru-
dimentares para contribuir com a reprodução natural, tais como bálsamos, banhos elétricos, entre
outros, já mencionados, que já custavam fortunas. Esses dados históricos, nos levam a refletir, que
durante todo o tempo em que o homem tentou curar a infertilidade, o fez na expectativa de dar
filhos a quem não os podia ter naturalmente. Assim, aqueles casais que eram diagnosticados como
inférteis, precisavam recorrer a técnicas de reprodução e pagar para ter filhos. A título de registro,
uma noite na “cama celestial”, também criação de James Graham, custava o equivalente a, nos
dias de hoje, U$37.500 (SPAR, 2007, p. 34).
Muito embora estivesse arraigado no ser humano o sentimento de solidariedade àqueles que
não podiam procriar, alguém pensou na venda de um bálsamo fertilizador, alguém criou o aluguel
da cama celestial, alguém ofereceu ao comércio da medicina, a técnica da proveta.
Em 1978, nascia na Inglaterra Louise Brown, o primeiro bebê de proveta do mundo, sendo
importante mencionar que a descoberta de uma possível fertilização extra corpórea surgiu em
1944, quando John Rock, especialista em fertilidade, conseguiu fazê-lo, in vitro12.
E os tratamentos são caros. Os nossos tribunais já chegaram a se pronunciar contrariamente
à concessão de fertilização in vitro pelo Sistema Único de Saúde, alegando que o procedimento
“transcende à saúde, para chegar à felicidade da mulher”13.
As atuais técnicas de reprodução medicamente assistida possibilitam, com recursos sofis-
ticados, inúmeras “opções” àqueles que as utilizarão. Dentre eles, a possibilidade de escolha de
sexo, ou cor dos olhos, tipo de pele e cabelo, bem como a “fabricação” de crianças imunes a doen-
ças como diabetes, miopia, resistentes a obesidade e maior capacidade de aprendizado.
Merece destaque a matéria de capa da Revista Super Interessante de fevereiro de 2012, que
noticiou: “Como fazer um superbebê: Eles serão projetados por cientistas, terão imunidade contra
doenças e a aparência que os pais escolherem. Conheça os bebês de laboratório – porque um dia
você vai ter um. E eles já começaram a nascer”14.
As pesquisas indicam que o procedimento, intitulado Diagnóstico Pré-Implantacional – DPI,
“permite escanear o DNA de embriões com poucos dias de vida retirando uma célula deles”. A
matéria registra pesquisa realizada na Universidade John Hopkins, nos EUA:

Em 2006, quase metade das clínicas de DPI americanas já oferecia o serviço de es-
colha do sexo do bebê. Outro levantamento, da Universidade de Nova York, mostrou
que 10% dos entrevistados fariam o procedimento para garantir ‘melhorias’ como
habilidade atlética, e 12%., inteligência superior no bebê. Já existe até um nome

12 Disponível em: <almanaque.folha.uol.com.br/ciencia_06jul1969.htm>. Acesso em: 23 set., 2012.


13 BRASIL, TJSP, AC 994.09.234287-2, Relator: Ribeiro da Silva, DJ: 05/05/2010. Disponível em: <esaj.tjsp.jus.br/
cjsg/resultadoCompleta.do;jsessionid=9CA13A0DA76E7096 4D3A38638E6E5E50>. Acesso em: 07 jan., 2013.
14 SUPER INTERESSANTE, fevereiro de 2012, ed. 301, tiragem 416.153 exemplares, p.42-51.
61
para essas crianças: são os designer babies, ou bebês projetados15.

No Brasil, embora a Resolução 2013/2013 do CFM proíba expressamente a prática de se-


xagem, expressão utilizada para a escolha das características fenotípicas do bebê, um escândalo
envolveu o renomado médico Roger Abdelmassih. O Ministério Público de São Paulo, após apurar
inúmeras provas, constatou que ele praticava em seu consultório médico a troca de materiais
genéticos à revelia dos clientes; venda de material genético. Ele vendia óvulos de doadoras por
cerca de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a unidade; criação de óvulos transgênicos, consistente na
retirada do citoplasma do óvulo da paciente com mais de 35 anos e preenchia a célula com um
citoplasma de óvulo de uma outra mulher, com menos de 30 anos, o que poderia gerar crianças
com três DNAs diferentes; bem como a prática da sexagem, que possibilitava aos pais a escolha do
sexo do bebê16.
O método de reprodução medicamente assistida, por sua vez, é consolidado na solidarieda-
de, uma vez que a infertilidade é considerada por muitos como sinônimo de fracasso. O mesmo
médico em obra de sua autoria, ao relatar o caso Pelé (ABDELMASSIH, 1999, p. 18)17, denomi-
nou de “frutos sociais” a procura por sua clínica após o sucesso do procedimento empregado ao
casal. Ele refere que o fato do caso ter chegado à mídia fez com que muitas pessoas passassem a
acreditar que poderiam também ter filhos, o que fomentou o que hoje é considerado um merca-
do, no qual o Brasil ocupa o terceiro lugar do turismo reprodutivo, por oferecer o tratamento com
menos custo18.
Os fatos acima revelados, chamaram a atenção ao fato de que não há uma fiscalização efeti-
va das clínicas que oferecem o serviço no Brasil, não obstante seja a ANVISA – Agência Nacional
de Vigilância Sanitária o órgão competente para a observância do cumprimento da ordem legal
nesses casos19.
Num universo completamente alheio a essas circunstâncias, o Direito se restringe a regular
esses procedimentos conforme o primeiro dos princípios gerais da Resolução 2013/2013 do Con-
selho Federal de Medicina, o qual preconiza que as técnicas de reprodução assistida têm o papel
de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procria-
ção quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas.

REFERÊNCIAS
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2010. Disponível em: <esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do;jsessionid=9CA13A0DA76E-
70964D3A38638E6E5E50>. Acesso em 07 jan., 2013.
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, Sexualidade e Reprodução Humana: conquistas médi-

15 SUPER INTERESSANTE, 2012, p.44.


16 SANCHES, Mariana. CPI da Reprodução Assistida é criada em São Paulo. Disponível em: <colunas.revistama-
rieclaire.globo.com/mulheresdomundo/2012/06/12/cpi-dareproducao-assistida-e-criada-em-sao-paulo/>. Acesso em:
19 set., 2012.
17 O jogador de futebol, após o casamento com a esposa Assíria, queria ter filhos, mas havia se submetido a cirurgia
de vasectomia há 14 anos e a tentativa de reversão foi frustrada. O autor do livro, após procedimento de inseminação
artificial, conseguiu que o casal tivesse filhos gêmeos.
18 FERTILIZAÇÃO entra na rota do turismo brasileiro. Disponível em:<delas.ig.com.br/saudedamulher/fertiliza-
cao+entra+na+rota+do+turismo+brasileiro/n1237789424668.html>. Acesso em: 17 set. 2012.
19 PAGGI, Matheus. Fiscalização de clínicas de reprodução será intensificada. Disponível em: <revistaepoca.globo.com/Revis-
ta/Epoca/0,,EMI234987-15228,00.html>. Acesso em: 19 set., 2012.
62
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63
A RESPONSABILIDADE PENAL DECORRENTE DA EPISIOTO-
MIA COMO VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Natália Barroca1

1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo o estudo sob o prisma jurídico das consequências oriun-
das do procedimento de episiotomia, tanto sob o enfoque do profissional médico, como sob o da
paciente.
Considerado, inicialmente, na literatura médica como um procedimento excepcional, a epi-
siotomia ganhou adeptos e passou a ser utilizada de forma rotineira e com pouca (ou nenhuma)
consciência da paciente sobre a realização de tal ato cirúrgico. Este processo evolutivo vem cau-
sando danos às pacientes indiscriminadamente e sem responsabilização do profissional.
O tema episiotomia ainda é escasso, o que temos é uma visão tecnicista dos profissionais da
área de médica que se preocupam com a doença, ao invés da saúde. Neste sentido, entendem Pau-
lo Alexandre e Rosângela da Silva2 que “é mais ‘mais fácil’ advogar pela utilização da episiotomia,
que tem intervir para ‘auxiliar’ o períneo da mulher, do que defender a prática de exercícios no
sentido de prevenir a ocorrência de lacerações perineais e necessidade do emprego da mesma”.
Visamos, aqui, explicitar a reverberação da episiotomia realizada sem o consentimento livre
e esclarecido da paciente, como estas questões caracterizam a violação ao direito humano à saúde,
à integridade física da parturiente e quais são as possíveis soluções ao tema.

1 Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especializada em Direito
Penal e Processual Penal. Professora titular em disciplinas de Direito da Faculdade Metropolitana do Grande Recife e
pelo Instituto de Ensino Superior de Olinda (IESO). Coordenadora do Núcleo de Direito Penal da Escola da Superior
de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Pernambuco. Colunista semanal em Direito à Saúde na
rádio JC News 90,3FM. Site: www.nataliabarroca.com.br E-mail: nataliabarroca@hotmail.com
2 SANTOS, Rosangela da Silva; SÃO BENTO, Paulo Alexandre de Souza. Realização da episiotomia nos dias atuais
à luz da produção científica: uma revisão. Disponível em: <http://www.portalbvsenf.eerp.usp.br/pdf.ean/v10n3/
v10n3a27.pdf> Acesso em: 13 mai. 2010. p.558.

64
2 BASES LITERÁRIAS MÉDICAS DO ESTUDO DA EPISIOTOMIA

2.1. A origem do procedimento: (des)necessidade e (des)aconselhamento do meio


facilitador da expulsão do nascituro e redutor da morbidade e mortalidade mater-
na e fetal
Originária na Irlanda, a episiotomia foi introduzida na literatura médica em 1742 por Fel-
ding Ould, que defendia que o procedimento deveria ser utilizado, como meio auxiliar, somente
em partos difíceis e assim foi considerada e até o século XX. O termo “episiotomia” foi originaria-
mente sugerido por Carl Braun, em 1857.
Apenas no início do século XX a episiotomia foi tratada como procedimento de rotina após a
publicação do artigo de Pomeroy, em 1918, intitulado “Deveríamos cortar e reparar o períneo de
todas as primíparas?” e, reforçando a defesa deste autor, Joseph DeLee defendeu o parto como
processo patológico, sugerindo o uso de fórceps profilático, necessitando – para tanto – a episioto-
mia média-lateral precoce.
Conforme a defesa de DeLee, a realização da episiotomia tem como fim salvar a gestante
do esforço do parto e do longo período expulsivo, além de preservar a integridade física da mus-
culatura pélvica e da entrada vulvar, evitar pressões no cérebro do bebê causadas pelo assoalho
pélvico, prevenir prolapso uterino e restabelecer as condições virginais, evitando, assim, possíveis
rupturas. Contudo, não houve embasamento em pesquisa científica por meio de evidências para
que DeLee defendesse sua tese.
Foi na década de 1980 que começaram a surgir ensaios clínicos casuais e controlados acerca
do uso rotineiro da episiotomia. Com as evidências encontradas, constatou-se o inverso da defesa
de tese de DeLee e o desenvolvimento de vários estudos nessa mesma linha (TOMASSO et al,
2002, p. 115-121).

2.2. Definição médica do procedimento


A episiotomia, etimologicamente, significa o corte do pube. É considerada, atualmente,
como sendo um “alargamento do períneo, realizada por incisão cirúrgica durante o último perío-
do do trabalho de parto, com tesoura ou lâmina de bisturi, requerendo sua sutura para correção”
(CARVALHO; SOUZA; MORAES FILHO, 2010, p. 265-270). Por sutura, neste caso, entenda-se a
episiorrafia.
O procedimento admite três execuções: lateral, médio-lateral e mediana (também conhe-
cida como perineotomia). A lateral praticamente não tem sido usada mais em razão da vasta vas-
cularização desta região e da probabilidade de lesão dos feixes internos da musculatura elevatória
do ânus.
Mais comumente utilizada, a episiotomia médio-lateral tem como área de abrangência a
pela, a mucosa vaginal, a aponeurose superficial do períneo, as fibras dos músculos bulbocaverno-
so e as do transverso superficial do períneo, além das fibras internas elevadas do ânus, por vezes.
No procedimento de episiotomia mediana tem-se a vantagem da menor perda sanguínea e
a fácil reparação, sendo considerada menos invasiva e mais respeitosa à integridade anatômica do
assoalho muscular. Também se constata que causa um menor desconforto doloroso e raramente
ocasiona dispareunia (OLIVEIRA; MILIQUINI, 2005, p. 289).

2.3. Indicações e critérios


Um estudo, em Portugal, constatou que:

nos últimos vinte anos, múltiplos trabalhos tem tentado definir melhor as indica-
ções e seqüelas associadas à episiotomia; a maioria conclui não haver suporte para
acreditar que a sua prática generalizada diminua, por exemplo, o risco de lesão
grave do períneo, melhore a sua cicatrização, previna a lesão fetal ou reduza o risco
de incontinência urinária (BORGES; SERRANO; PEREIRA, 2009, p. 448).

65
Indica-se a episiotomia “quando a cabeça fetal está suficientemente baixa, a ponto de dis-
tender o períneo, porém, antes de ocorrer uma distensão exagerada”, entretanto, “não se pode ser
realizada cedo demais, pois, deve-se prevenir um sangramento excessivo”(BORGES; SERRANO;
PEREIRA, 2009, p. 448).
Evitar que a mulher permaneça deitada diminui a duração do trabalho de parto e decresce
o risco de sofrimento fetal em razão de aumentar a intensidade e a eficácia das contrações. O
desrespeito deste simples procedimento ocasiona em um aumento da taxa de episiotomia, a justifi-
cativa decorre do fato de que “na posição dorsal horizontal, há pressão da veia cava inferior, que di-
minui o fluxo sanguíneo de oxigênio para o feto”(BORGES; SERRANO; PEREIRA, 2009, p. 448).
Ao contrário do que deveria ser considerado, uma exceção, o procedimento de episiotomia
se tornou rotina:

Praticada em cerca de 80% dos partos, quando o ideal seria em 20%, a incisão está
na mira das autoridades de saúde desde que a Medicina Baseada em Evidências
provou que, na maioria dos casos, não protege nem a mãe nem o bebê. Ao contrário,
seria responsável por um número maior de infecções pós-operatórias, hemorragias
e até rebaixamento da bexiga. Esse último seria um dos fatores que levam à incon-
tinência urinária na maturidade e ocorre porque o obstetra dificilmente consegue
recompor a região pélvica como antes (STRINGUETO, 2011, p. 1).

A episiotomia é considerada como um procedimento comum na área obstétrica, superada


somente pelo corte e pinçamento do cordão umbilical, justificando-se no intuito de evitar traumas
perineais, prevenção da morbimortalidade infantil, problemas ginecológicos (retocele, cistocele,
relaxamento da musculatura pélvica, afrouxamento pélvico, danos de prolapso e de incontinência
urinária)(STRINGUETO, 2011, p. 1).
O uso restrito do procedimento revela um risco de menor proporção no tocante às morbi-
dades clinicamente relevantes, tais como trauma perineal e complicações de cicatrizações. Além
do mais, a seletividade permite – ainda – um fator vantajoso também ao setor público, mediante
a racionalização de gastos, aproximadamente, US$ 15 a 30 milhões (apenas na esfera brasileira),
conforme estimativa de estudos da área.

3. RESPONSABILIDADE PENAL DO PROFISSIONAL MÉDICO E O DIREITO À INTEGRIDADE


CORPORAL DA PARTURIENTE
O exercício da medicina não decorre de poderes divinos, é ciência. Já dizia William Osler
“medicine is a science of uncertainty and an art of probability” (tradução nossa: “a medicina é
uma ciência da incerteza e uma arte de probabilidade”). A prática médica é tipificada em razão de
falha na prestação do serviço, respondendo por dolo ou por culpa. A imputação da responsabiliza-
ção médica requer a caracterização da pessoalidade do profissional, além da comprovação do dano
ocorrido – por ação ou omissão – negligentemente, imprudentemente ou imperitamente, tendo
em vista que o Código de Defesa do Consumidor estabelece que a responsabilidade médica é sub-
jetiva, fundada na culpa que deverá ser comprovada pelo(a) autor(a) da demanda (art. 14, §4º).
É princípio fundamental, constituído no inciso XIX, do Código de Ética Médica, em seu
Capítulo I, que “o médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus
atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência,
competência e prudência”. O referido diploma normativo também prevê que é vedado ao médico
“causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou
negligência” (art.1º, do Capítulo III) e, ainda, determina que “a responsabilidade médica é sempre
pessoal e não pode ser presumida” (parágrafo único do citado art. 1º).
Mesmo que a vontade dolosa nestes casos de lesão corporal decorrente de episiotomia seja
de difícil constatação uma vez que, na grandiosa maioria dos casos, a comunidade médica não
apresenta qualquer justificativa para o animus laedendi na prática do procedimento obstétrico em
estudo.

66
O profissional médico tem o dever jurídico de responder pelos atos que impliquem em erros
em técnicas ou procedimentos ligados diretamente à saúde e integridade física da paciente.
A lesão corporal culposa tem como causa de aumento de pena o dano que resulta em inob-
servância de regra técnica profissional. Neste sentido, observamos que o grau de reprovabilidade
do ato, para a fixação da pena, leva em consideração a maior ou menor gravidade do descuido
havido, bem como, a maior ou menor previsibilidade da ocorrência do evento lesivo (MARTINS
COSTA in FREITAS, 2011, p. 656).
Embora não exista um estudo estatístico acerca do litígio judicial brasileiro referente à res-
ponsabilização médica, percebe-se o aumento das demandas por negligência e imperícia proces-
sadas pelo Conselho Federal de Medicina; em uma década, este número aumentou sete vezes
(MARTINS-COSTA in FREITAS, 2011, p. 669).
A episiotomia é ato cirúrgico e assim sendo, é ato médico. Importante salientar que estamos
analisando, tão somente, os casos decorrentes de erros médicos. São estes que repercutem na
seara jurídico-penal, ora estudada.
Em termos de resultados adversos, nem tudo é erro médico, existem acidente imprevisível e
mal incontrolável. O acidente imprevisível é o infeliz fato, que no dizer de Genival Veloso constitui
“o resultado lesivo é oriundo de caso fortuito ou força maior, durante o ato médico ou em face
dele, porém incapaz de ser previsto e evitado, não só pelo autor, mas por outro qualquer, em seu
lugar” (FRANÇA, 2010, p. 63). Por mal incontrolável, aduz o citado autor que

é aquele proveniente de uma situação incontida e de curso inexorável, cuja con-


sequência é decorrente de sua própria natureza e evolução, em que as condições
atuais da ciência e a capacidade profissional ainda não oferecem solução(FRANÇA,
2010, p. 63).

Na caracterização da responsabilidade da culpa médica, o profissional descumpre com seus


deveres, como o de informação, de cuidado, de assistência, de vigilância, de bom atendimento,
entre outros. Além de violar um dever de conduta, cujo resultado poderia ou deveria conhecer e
evitar.
No ramo obstétrico, em especial nos casos de procedimento de episiotomia, convém-nos o
estudo da responsabilidade penal derivada dos delitos de lesões corporais em que a integridade
física e/ou a saúde da parturiente é/são ofendido(s). A classificação da gravidade em simples, grave
ou gravíssima não é levada em consideração já que estamos tratando da modalidade culposa.
Não se excluirá do ato médico obstétrico resultante em lesão corporal, o ressarcimento fi-
nanceiro em razão do dano causado a ser pleiteado no âmbito civil. Também não se excluirá a
responsabilização ética, com fulcro administrativo e natureza moral.
Resvalando a esfera processual penal, o exame de corpo de delito, direto ou indireto, será
indispensável ao caso, em atenção ao art. 158, do Código de Ritos Penais. A ausência do exame
acarretará em nulidade insanável do processo (art. 564, III, b, do CPP).
A episiotomia desnecessária desrespeita os direitos humanos na área de saúde e constitui
uma violência de gênero. A paciente tem seus direitos mitigados, é afastada da tomada decisória
quanto à realização de tal procedimento, perdendo sua autonomia e ganhando mutilação genital.
Não só o direito à integridade física da parturiente deve ser observado, a humanização e in-
tegralidade na assistência à saúde também.
A dignidade humana da mulher foi posta de lado aos que defendem o uso do procedimento
rotineiramente. Aliena-se o profissional e incute-se nele a ideia da maternidade como linha de
produção, despersonalizando a mulher (objetivando a perspectiva final do bem-estar do feto) e uti-
lizando excessivas intervenções com o intuito de acelerar o trabalho de parto, práticas condenáveis
pela Organização Mundial de Saúde (DIAS; DESLANDES in DESLANDES, 2006, p. 357-359).
Em geral, o médico não está isento de cometer erros, assim como qualquer outro profissio-
nal. Contudo, recomenda-se que divida sua responsabilidade decisória acerca dos procedimentos
a serem realizados com seus pacientes, informando-os quanto às formas de tratamentos e os pro-
váveis riscos e resultados de cada um.
A responsabilidade criminal do médico ainda representa uma pequena quantidade diante do

67
montante de ações judiciais sobre responsabilidade médica.

4. A NECESSIDADE DO PRÉVIO CONSENTIMENTO LIVRE E INFORMADO PARA O PRO-


CEDIMENTO DE EPISIOTOMIA
O médico, como qualquer outro profissional, deve pautar sua conduta profissional nos estrei-
tos laços da ética, da moral e da lei. É necessário lembrar que a classe médica e de saúde ainda
entendem, em sua maioria, que a episiotomia é um dos excepcionais entendimentos realizado
sem qualquer consentimento prévio da paciente. O consentimento, além de respeitar a vontade
da paciente, exime a responsabilidade do profissional de saúde.
No mais das vezes, a episiotomia ocasiona traumas estéticos que reclamam cirurgias repa-
radoras, para além de acarretar incontinência urinária e fecal, instalar quadro infeccioso e com-
prometimentos de cicatrizes.
Indubitavelmente, ela tem trazido danos de monta e, pior do que isto, tem encontrado resis-
tência na mitigação do uso, sobretudo na latina-américa.
Conforme a literatura médica, “se as pacientes forem completamente informadas sobre os
benefícios e riscos, é improvável que consintam em realizar a episiotomia de forma rotineira”
(DIAS; DESLANDES in DESLANDES, 2006, p. 357-359). E vamos além nas observações, “uma
pesquisa colombiana mostrou, a partir revisões sistemáticas e estudos aleatórios, que a prática ro-
tineira da episiotomia não encontra suporte científico. Ela não previne a ocorrência de lacerações
perineais, e pior, favorece a aparição de lesões de 3º e 4º graus” (DIAS; DESLANDES in DESLAN-
DES, 2006, p. 357-359).
Atrelado ao consentimento informado e à escolha esclarecida, temos o respeito ao princípio
bioético que traduz o direito à autonomia da paciente. Trata-se, concomitantemente, de um dever
do médico e de um direito da paciente.
Por ser um procedimento interventivo com sérios riscos à parturiente, o profissional médico
responde na proporção do seu silêncio acerca das complicações de tal operatório. É fato que o
descumprimento do dever de informação médica deve ser avaliado casuisticamente, em razão de
urgência de atendimento e das condições de chegada da paciente ao nosocômio.
A conduta médica deve ser pautada nos princípios basilares essenciais da relação médi-
co-paciente, observando – além do princípio da autonomia e do princípio da justiça – os princí-
pios essenciais, disciplinados no Capítulo Inaugural do Código de Ética Médica (Resolução nº
1.931/2009) tal como o da beneficência: “o médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e
atuará sempre em seu benefício”; e o da não maleficência: “Jamais utilizará seus conhecimentos
para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e aco-
bertar tentativa contra sua dignidade e integridade” (ambos constante no inciso VI, do Capítulo I,
do CEM).
O princípio da autonomia norteia o respeito à liberdade de escolha do paciente e está atre-
lado ao consentimento livre e informado do paciente. Aduz Maluf (2010, p. 11) que a autonomia
“seria a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem qualquer coação ou influência
externa”.
Goldim e Protas (2008, p. 813) estabelece que “a autonomia pressupõe o respeito às opiniões
e escolhas individuais, a menos que elas sejam gravemente prejudiciais para o próprio indivíduo
ou para outras pessoas” e esclarecem ainda que pode ela “estar reduzida devido ao estágio do ciclo
no qual o indivíduo se encontra, por perda parcial ou total dessa capacidade, em decorrência de
doenças orgânicas ou mentais, ou por circunstâncias sociais que restrinjam a sua liberdade”.
Citando os ensinamentos de Locke e Kant, aduzem Dantas e Coltri (2010, p. 82) que o
princípio da autonomia tem seus principais fundamentos na história do direito e da filosofia, onde
John Locke “pugnava pelo direito à proteção contra intervenções médicas não consentidas”, en-
quanto que Immanuel Kant lecionava como requisito fundamental a liberdade de escolha.
Para a caracterização do conceito de autonomia, segundo Beauchamp e Childress, mister se
faz a orientação seguida por todas as teorias da autonomia, que consideram essenciais às condi-
ções de: “(1) liberdade (independência de influências controladoras)” e “(2) qualidade do agente
(capacidade de agir intencionalmente)”(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2011, p.138).
No dizer de Dworkin (2009, p. 319), a autonomia “estimula e protege a capacidade geral das
68
pessoas de conduzir suas vidas de acordo com uma percepção individual de seu próprio caráter,
uma percepção do que é importante para elas”.
A importância do respeito à autonomia do indivíduo deve ser observado como princípio que
traduz a autoridade controladora do próprio poder decisório pessoal. Funda-se na dignidade da
pessoa e baseia-se na autodeterminação do paciente em relação à sua vida e à sua saúde, tendo o
poder de buscar e escolher o tratamento que melhor lhe convier, sendo necessárias para a escolha,
as devidas informações prestadas pelo profissional da área médica para que o consentimento seja
exercido de forma plena (CEZAR, 2012, p. 139).
A competência acerca da percepção sobre a impossibilidade do paciente em tomar decisão
é do médico, sendo de igual forma responsável em “tomar iniciativas quando não exista defini-
ção quanto a quem seja o seu representante, ou mesmo quando haja conflito entre a vontade do
paciente incapaz e a de seu representante” (CEZAR, 2012, p. 140). Neste sentido, aduz o artigo
24 do Código de Ética Médica – Resolução CFM nº 1.931/2009: “Deixar de garantir ao paciente
o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer
sua autoridade para limitá-lo”.
Maluf (2010, p. 316) citando Venosa, conceitua o consentimento como sendo o

direito do paciente de participar de toda e qualquer decisão sobre tratamento que


possa afetar sua integridade psicofísica, devendo ser alertado pelo médico dos ris-
cos, benefícios das alternativas envolvidas e possibilidades de cura, sendo manifes-
tação do reconhecimento de que o ser humano é capaz de escolher o melhor para
si sob o prisma da igualdade de direitos e oportunidades.

Cumpri-nos esclarecer que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) possui


requisitos de admissibilidade e deve-se observar – quando de sua elaboração – as exigências conti-
das no art. 104 do Código Civil pátrio (“I – agente seja capaz; II – objeto lícito, possível, determina-
do ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei”), para validar o ato jurídico, além
de outras específicas conforme seja o caso.
A permissividade do exercício regular de direito, excludente da ilicitude prevista no art. 23,
III do Código Penal, apenas deve ser levada em consideração se houver um consentimento válido
da paciente ou de seu representante legal para que seja possível a realização da episiotomia, bem
como, da episiorrafia. Não se trata apenas de informar acerca da realização do procedimento, a
paciente deve compreendê-lo, bem como, as suas consequências para, então, exercer a faculdade
de consenti-lo ou optar por outra intervenção/alternativa (como, por exemplo, a realização de ce-
sariana). Apenas o consentimento do ofendido, obtido de forma válida, exclui a ilicitude do fato,
afastando a antijuridicidade da conduta lesiva corporal à parturiente.
Podemos até imaginar que a obrigatoriedade do TCLE para a realização do procedimento de
episiotomia pode causar uma burocratização, ou ainda, nos questionaremos em que momento ele
ocorrerá. Mas temos que destacar que a maternidade é um momento prazeroso tanto à mulher,
como ao casal e à família em geral, a chegada do novo ser de acontecer de forma segura e sem
repercussões negativas momentâneas ou futuras. A informação acerca da possibilidade de realiza-
ção da episiotomia pode acontecer tanto durante o pré-natal, como durante o parto. O cotidiano
moldará as situações conforme elas ocorram, permitindo que, em algum momento, o profissional
de saúde possa elaborar o TCLE para anexação ao prontuário da paciente.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cuidar do ser humano exprime a atenção aos seus valores e a sua dignidade, como ser
totalitário, biopsicossocial e espiritual, harmonizando a saúde humana e o desequilíbrio provocado
pela doença. O contato direto com o paciente reflete os anseios por ele, identifica-o, estabelece
uma relação empática traduzida na ética da alteridade.
A saúde deve ser entendida além do prisma epistemológico dos direitos humanos, não ape-
nas em sua forma de tratamento em razão do acometimento de doença, mas também como cui-
dado integral, sendo um direito de todos. Isto quer dizer que o cuidar exige a atenção à dignidade

69
humana em sua completude da saúde, priorizando a prevenção, focada no ser humano; e não na
doença em si, sem percepção do ser que está acometido da enfermidade.
Na relação médico-paciente, o diálogo é imprescindível para a boa tomada de decisões. Mais
do que isto, é um direito da paciente obter informações sobre seu estado, prognóstico, diagnósti-
cos, possíveis tratamentos indicados ao caso, suas consequências e prováveis riscos e complica-
ções, etc.
Tanto a episiotomia desnecessária, quanto a cesárea forçada desrespeitam os direitos hu-
manos na área de saúde e constituem uma violência de gênero. A paciente tem seus direitos mi-
tigados, é afastada da tomada decisória quanto à realização de tais procedimentos, perdendo sua
autonomia e ganhando mutilação genital/cicatriz cesariana, além de trauma psicológico, que a
acompanhará por longas datas.
Não só o direito à integridade física da parturiente deve ser observado, a humanização e in-
tegralidade na assistência à saúde também.
A dignidade humana da mulher é posta de lado aos que defendem o uso da episiotomia ou
do parto cesáreo, rotineiramente. Aliena-se o profissional e incute-se nele a ideia da maternidade
como linha de produção, despersonalizando a mulher (objetivando a perspectiva final do bem-es-
tar do feto) e utilizando excessivas intervenções com o intuito de acelerar o trabalho de parto,
práticas condenáveis pela Organização Mundial de Saúde.
A forma de nascimento, como direito assegurado à gestante, está prevista – até mesmo – na
Convenção Americana de Direitos Humanos, na qual o Brasil é signatário (artigo 1º - Obrigação de
respeitar os direitos. 1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direi-
tos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja
sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica,
nascimento ou qualquer outra condição social).
O agir beneficente do médico, sem o norteamento livre, esclarecido e consentido da paciente
para a intervenção médica de um parto cesáreo ou um parto normal com episiotomia, apenas deve
desconstituir um ilícito se estiver ele diante de um iminente perigo de vida.
A mudança do atual quadro para prevenção de episiotomias desnecessárias requer transfor-
mações na assistência à saúde da parturiente. O compartilhamento da decisão de realização do
procedimento por parte do médico com a paciente é a recomendação fundamental nesta temática.
Treinamentos e atualizações sobre as diretrizes baseadas em evidências na obstetrícia tanto
por parte dos médicos, quanto por parte das instituições hospitalares, devem ser realizadas ob-
jetivando à humanização dos cuidados prestados à mulher durante o período gestacional, parto
e pós-parto. Salientando que configura negligência (modalidade de culpa) a não atualização ou
atualização deficiente do profissional de saúde.
A integridade, tanto física como emocional, da mulher deve ser preservada, evitando uma
banalização da dor.
Cabem, ainda, estratégias educativas a fim de informar a mulher quanto aos seus direitos
como paciente-parturiente, encorajando-as à escolha de práticas não invasivas e alternativas ao
procedimento (como práticas de exercícios e deambulação), visando à redução do uso da episio-
tomia.

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70
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71
CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA E DA BIOLOGIA À FILOSOFIA DO DIREITO

Hugo de Brito Machado Segundo1

1. INTRODUÇÃO
Durante muito tempo ouviu-se a afirmação de que o conhecimento científico deve ser me-
ramente descritivo de uma realidade objetiva. Essa ideia, aliás, talvez esteja ainda hoje presente
no âmbito do senso comum, no imaginário popular a respeito da figura do cientista. Mesmo sem
discutir, ainda, essa visão da ciência e da atividade do pesquisador, o que importa é que dela de-
corre, no campo da ciência jurídica, a defesa da necessidade de afastamento do chamado “direito
natural”, que teria todos os atributos capazes de impossibilitar uma análise científica, a saber:
subjetividade, caráter emocional, impossibilidade de demonstração empírica etc. Ética, moral e
direito natural seriam assuntos para uma discussão filosófica, talvez, mas nunca elementos a se-
rem considerados em uma abordagem científica do direito. Diz-se talvez porque, como se sabe,
mesmo a Filosofia foi ameaçada pelo paradigma positivista, que, no âmbito do Direito, pretendeu
substituí-la pela Teoria Geral do Direito, dotada de igual pretensão universalista, mas supostamen-
te alheia a questões metafísicas (RADBRUCH, 1997, p. 73).
O presente trabalho tem a finalidade de retornar a esse antigo problema. Não tanto ques-
tionando a apontada visão do conhecimento científico, o que se faz brevemente, mas verificando
como o atual estado da arte da neurociência e da biologia evolutiva põe em xeque a visão da “acien-
tificidade” do direito natural, mesmo se mantido o paradigma epistemológico positivista. Além de
relatar como algumas descobertas em tais áreas permitem uma consideração científica de senti-
mentos morais e de seus reflexos e tratamentos no âmbito das sociedades humanas, pretende-se,
ao final, examinar criticamente como essas constatações podem contribuir para uma adequada
compreensão do fenômeno jurídico. Permitir-se-á, com isso, uma abordagem das contribuições da
neurociência e da biologia à Filosofia do Direito, entrando-se, ainda que sumariamente, no debate
1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará.Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de
Fortaleza.Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários.Professor de Processo Tributário (graduação)
e de Epistemologia Jurídica (Pós-Graduação) na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, de cujo Pro-
grama de Pós-Graduação (Mestrado/Doutorado) é Coordenador. Visiting Scholar da Wirtschaftsuniversität, Viena,
Áustria.

72
relativo a uma suposta superação da Filosofia pela Ciência, a qual seria tanto maior quanto mais
esta última desvenda os segredos do cérebro humano.

2. ACIENTIFICIDADE DO DIREITO NATURAL NO PARADIGMA EPISTEMOLÓGICO POSITI-


VISTA
Não é o propósito deste artigo proceder a longo apanhado histórico a respeito do positivismo
e suas ramificações ou divisões no âmbito da ciência jurídica (veja-se, para tanto, BOBBIO, 1995).
Talvez seja suficiente, aqui, saber que, à luz de uma perspectiva positivista de ciência, visto o co-
nhecimento científico como necessariamente descritivo e objetivo, ele somente poderia se ocupar
de objetos cujas características seriam lógica ou empiricamente verificáveis. O que estivesse fora
desse quadrante seria considerado metafísico, emocional e subjetivo. Essa, como se sabe, é a
principal razão pela qual a ciência do direito de cunho positivista recusa-se a examinar questões
relacionadas à justiça ou ao chamado “direito natural”. Cabe ao cientista moderno aceitar “a rea-
lidade como ela é, procurando compreendê-la com base numa concepção puramente experimen-
tal” (BOBBIO, 1996, p. 135-136), razão pela qual se podem examinar normas, decisões judiciais,
comportamentos, fatos sociais, mas não os valores a partir dos quais tais realidades poderiam ser
julgadas.
Importante pilar dessa visão de mundo reside na distinção entre juízos de fato e juízos de
valor, e na impossibilidade destes serem extraídos daqueles, decorrentes da clássica alusão de
David Hume à “falácia naturalista” (HUME, 2000, Livro 3, Parte 1, Seção 1, § 27, p. 509). Por
meio dos juízos de fato, objetivos, se descreve a realidade, como é. Por meio dos juízos de valor, se
julga a realidade, como boa ou ruim, a partir de um ideal de como ela deveria ser. O conhecimento
científico seria composto dos primeiros, devendo evitar ou afastar, tanto quanto possível, os se-
gundos, sendo certo que não é porque as coisas são de determinada maneira que se deve concluir,
necessariamente, que elas devem ser dessa maneira (KANT, 1998, p. 137). Daí a necessidade de
o cientista do direito descrever o direito posto, tal como é, sem se preocupar em como ele deveria
ou poderia ser. Embora existam, é certo, divergências sobre o que se deve considerar como tal, se
as normas, se as práticas dos juízes, ou o comportamento da sociedade em face dessas normas,
de qualquer modo essas visões convergem em um ponto: são dados “postos”, passíveis de exame
“objetivo”. Ao cientista interessaria a validade, não o valor de uma ordem jurídica.
Não se está, convém esclarecer, defendendo como correta essa visão do direito natural ou
das teorias jusnaturalistas. Sabe-se, por certo, que há autores que defendem formas contemporâ-
neas de jusnaturalismo, as quais não se encaixam no aludido estereótipo. É o caso, por exemplo,
de Dworkin (1982) e de John Finnis (2007). Em verdade, o que se almeja, neste tópico, é revisitar
a visão caricata que têm do jusnaturalismo seus principais detratores positivistas, ainda que ela
possa padecer ou decorrer da chamada “falácia do espantalho”, assim entendida aquela segundo a
qual se constrói versão caricata da ideia que se pretende objetar, para facilitar a crítica. Pretende-
se, com isso, mostrar que mesmo ela pode merecer revisão, em face de alguns achados da biologia
e da neurociência.

3. POSSÍVEIS CRÍTICAS A ESSE PARADIGMA


A visão de ciência jurídica resenhada no item anterior suscita algumas críticas. Pode-se,
aceitando a referida ideia de ciência, questionar a sua suficiência, defendendo a necessidade de a
abordagem por ela propiciada ser complementada por outras aproximações do mesmo fenômeno,
como a filosófica, por exemplo. A objeção mais profunda, porém, talvez seja a que atinge as pró-
prias premissas epistemológicas do paradigma positivista.
Realmente, sabe-se que o conhecimento científico não se desenvolve a partir de desinte-
ressadas observações da realidade objetiva, feitas por um sujeito distinto e separado dela, que se
limita a descrevê-la. Valores guiam o empreendimento científico já a partir da eleição e da iden-
tificação do objeto a ser estudado. Do contrário, ver-se-iam estudiosos dedicados à contagem dos
grãos de areia existentes em determinada praia, ou do número de azulejos existentes no banheiro
da Universidade na qual lecionam, da mesma forma como e em igual quantidade com que se
veem pesquisadores tentando descobrir maneiras de interromper o desenvolvimento das células
73
de um tumor maligno, por exemplo, ou compreender as causas da violência urbana ou da pobreza.
Em verdade, o conhecimento se desenvolve a partir de problemas, e do teste de soluções
possíveis para esses problemas. E isso ocorre mesmo na mais primitiva forma de vida. A interação
com o meio é inerente a qualquer sistema, e pressupõe a existência de informação. Por outras pa-
lavras, um sistema, para ser entendido como tal e interagir com o meio que o circunda, necessita
de informações sobre si mesmo, sobre esse meio, e sobre como reagir diante dele. Para fugir do
calor extremo, danoso à sua estrutura molecular e, por conseguinte, à sua subsistência, é preciso
que o ser vivo conheça a temperatura do ambiente que o cerca e quão adequada ou inadequada ela
é. O primeiro problema que se coloca para a formação do conhecimento, portanto, é a sobrevivên-
cia. É para resolvê-lo que, no processo de seleção natural dos seres vivos, surgem as mais diversas
soluções, em um processo de tentativa e erro.
Veja-se que se pode cogitar de conhecimento, usando-se a palavra em um sentido mais
amplo, como se fez no parágrafo anterior, embora não se pressuponha, ainda, necessariamente,
consciência. Uma bactéria, nesse sentido, “conhece” as formas de obter alimento, digeri-lo e a
partir dele gerar energia, reproduzir-se etc., ainda que, enquanto ser unicelular, obviamente não
possua consciência. Há, porém, informação, tanto armazenada em seu interior quanto obtida do
meio externo a partir de suas interfaces com ele. Essa informação e a maneira de lidar com ela são
armazenadas em seu código genético (AFTALIÓN, VILANOVA, RAFFO, 2004, p. 41-47), no qual o
conhecimento referente à formação e ao funcionamento do sistema vai sendo registrado ao longo
de milhares de gerações. Os seres dotados das melhores informações, assim entendidas aquelas
mais adequadas à sobrevivência, subsistem e geram descendência, fazendo com que ao longo de
milhões de anos enorme quantidade de informação (sobre como fabricar, manter e regenerar cé-
lulas, tecidos, órgãos, sistemas etc.) seja selecionada, aprimorada e armazenada no DNA de cada
ser vivo.
Poder-se-ia afirmar, em oposição, que não é desse conhecimento que se cogita quando se
está a tratar de ciência. Essa objeção, contudo, não procede, pois o conhecimento humano não
se desenvolve de forma tão diferente. De fato, entendido de forma mais estrita, como a relação
estabelecida entre um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido, em face da qual o sujeito
constrói uma imagem desse objeto, ou como o produto – sempre inacabado – dessa relação, não se
pode negar que ele se desenrola em termos análogos aos verificados no âmbito do processo seleti-
vo, do qual, em última análise, é um produto (RIDLEY, 2010, p. 5).
Realmente, o cérebro humano dispõe de uma compreensão do mundo que o cerca, a qual
é composta de informações que lhe são trazidas por sentidos imperfeitos – ou apenas bons o sufi-
ciente para permitir a sobrevivência (NICOLELIS, 2011, p. 452) –, e interpretadas a partir de pré-
compreensões surgidas a partir de experiências passadas do mesmo indivíduo ou de antepassados
seus (POPPER, 2009, p. 108; NOZICK, 2001, p. 108; GAZZANIGA, 2011, p. 51). Essa compreen-
são é sempre imperfeita e, nessa condição, provisória, estando sujeita a constante processo de
confirmação ou retificação. O ser humano tem consciência de que seus sentidos eventualmente o
enganam a respeito da realidade que o cerca, mas dispõe apenas deles para acessar essa realida-
de, pelo que sujeita constantemente a testes as impressões que obtém dela (RESCHER, 2003, p.
83). Com isso, a neurociência tem confirmado, de algum modo, afirmações feitas por teóricos da
hermenêutica muito tempo antes, como Husserl e Gadamer, por exemplo.
Com o aparecimento, ao longo do processo evolutivo, de neurônios espelho, que permitem
ao indivíduo que os possui colocar-se no lugar do outro, vendo nesse outro alguém como ele e
imaginando, nesse contexto, o que pode estar pensando ou sentindo, surgiram figuras como a
empatia, os sentimentos morais, e, no que mais de perto interessa à formação do conhecimento
humano, a linguagem (RAMACHANDRAN, 2011, p. 117). A partir daí, fez-se possível aplicar o
mesmo processo de seleção natural às ideias. Em vez de desaparecer o indivíduo que teria em seu
DNA registrada a forma inadequada de resolver um problema colocado à sobrevivência, este pode-
ria observar – ou ouvir, ou ler - outro que teria descoberto uma forma mais adequada de resolvê-lo.
Daí por que se disse, linhas atrás, que o conhecimento humano, embora diferente, é produto di-
reto do processo seletivo, de algum modo refletindo-o.
De uma forma ou de outra, isso mostra que primeiro se colocam problemas, em face dos
quais surgem propostas de solução, calcadas em pré-compreensões do indivíduo em relação ao
problema e às formas de resolvê-lo. Tais pré-compreensões podem decorrer de experiências havi-

74
das por antepassados e refletidas no respectivo DNA, formadoras de instintos em face dos quais se
tem um registro prévio de como reagir diante de tais situações (GAZZANIGA, 2011, p. 51), ou de
experiências passadas do mesmo indivíduo, mantidas em sua memória. Mas, sejam decorrentes
de instintos, experiências passadas ou observação de experiências havidas por terceiros, essas pro-
postas são tentadas, e selecionadas as melhores. Não existe solução definitiva, pois sempre pode
surgir outra, mais adequada ou eficiente.
Essa, como se sabe, é a base da epistemologia falibilista de Karl Popper (POPPER, 2001, p.
17), sendo a forma como se desenrola o processo de seleção natural e como acontece a própria
cognição humana, em geral. Não há razão para se entender que o conhecimento científico se pro-
cesse de modo radicalmente distinto, até porque, ainda que este tenha maior preocupação com a
sistematicidade, ele não deixa de ser espécie do gênero cognição humana.
Por outro lado, sabe-se que a realidade é mais complexa que a humana capacidade de
compreendê-la, o que leva o cérebro a simplifica-la, eliminando ou desprezando partes dela con-
sideradas irrelevantes para a finalidade para a qual se quer a compreensão. Assim, alguém que
pretenda “apenas descrever” uma parcela da realidade deverá, partindo das razões que justificam
essa “mera descrição”, escolher quais aspectos serão destacados, e quais serão ignorados. E mais:
na determinação dos limites entre o objeto descrito e as demais parcelas da realidade, deverá es-
colher, novamente levando em conta os propósitos da descrição, quais aproximações e “arredon-
damentos” deverá fazer. Exemplificando, se alguém deseja “descrever” a distância entre Fortaleza
e Recife, alguns metros, ou mesmo quilômetros, certamente serão desprezados, em uma refe-
rência aproximada, caso a descrição tenha por finalidade apenas calcular a quantidade de horas
necessárias para se percorrer o trajeto de avião. Caso, porém, seja da altura de um indivíduo, para
a aquisição de uma roupa, precisão maior será exigida, mas ainda assim centímetros ou mesmo
milímetros poderão ser desprezados (DEEMTER, 2010, p. 81), milímetros esses todavia essenciais
ao aluno que indaga qual o tipo de lapiseira do colega que lhe pede grafite emprestado, se 0.5 ou
0.7.
Assim, ainda que se entenda que o empreendimento científico seria “descritivo” da realida-
de, tal como ela é, é preciso admitir quevalores guiam a eleição do que será descrito e a determi-
nação dos aspectos a serem levados em conta na descrição. Essa descrição, por sua vez, consiste
em uma “reconstrução” da realidade pelo sujeito que a estuda, feita com o propósito de confirmar,
ou corrigir, construção anterior a respeito dessa mesma realidade, sabidamente imperfeita. Não
se pode, portanto, categoricamente afastar a consideração de valores, mesmo que se pretenda
uma ciência “descritiva”, até porque, aliás, a própria ideia de que os valores devem ser afastados
do labor do estudioso é, ela própria, marcadamente orientada por valores, sendo, nessa condição,
contraditória.
De tudo isso, extraem-se, em síntese, as seguintes conclusões, que deitam por terra as
premissas epistemológicas de uma visão positivista de ciência: (i) a realidade não é “meramente
descrita” pelo sujeito que a estuda, mas reconstruída por ele, através de sentidos imperfeitos, que
fornecem ao cérebro informações a serem interpretadas a partir de pré-compreensões instintivas
ou conscientes; (ii) o estudioso escolhe qual parcela da realidade irá descrever, e para que ela será
descrita, finalidade que o leva a desprezar alguns aspectos do objeto descrito quando da feitura da
descrição; (iii) precisamente por ser o conhecimento formado por reconstruções imperfeitas da
realidade, ele é provisório e essencialmente retificável.
O mais notável, porém, é que mesmo para quem insistir em se manter no paradigma epis-
temológico positivista, eventualmente encontrando sólidas razões para afastar cada uma dessas
objeções, o que não será discutido aqui (veja-se, a propósito, MACHADO SEGUNDO, 2014), será
difícil manter a tese de que juízos de fato e juízos de valor são passíveis de separação estanque,
e de que sentimentos morais são emocionais e subjetivos e, nessa condição, incompatíveis com
uma análise científica meramente descritiva. A dificuldade, no caso, origina-se nas mais recentes
descobertas da biologia e da neurociência, das quais se ocupa o próximo item deste trabalho.

4. BIOLOGIA, NEUROCIÊNCIA E SENTIMENTOS MORAIS


A biologia contemporânea tem revelado, de forma contundente, que o processo de seleção
natural não está relacionado, de forma necessária, a comportamentos egoístas. Isso, aliás, já era
75
afirmado por Darwin, mas, nas últimas décadas do Século XX, estudos com diversos primatas de-
monstraram, empiricamente, a presença, sobretudo em mamíferos superiores, de rudimentos de
instituições políticas e de sentimentos morais (WAAL, 1996; 2013). Quando Richard Dawkins, por
exemplo, faz alusão metafórica ao “gene egoísta”, em sua clássica obra de igual nome (DAWKINS,
1989), refere-se à ação de algo que compõe o DNA situado no interior das células, algo que não
pode, por razões óbvias, ter “motivações” – egoístas ou não – para seus “atos”. Ação que pode, no
entanto, levar à seleção de indivíduos dotados de aparatos neurológicos que permitam o surgimen-
to de comportamentos genuinamente altruístas (WAAL, 1996, p. 117).
De rigor, as relações estabelecidas entre os seres vivos, na luta pela sobrevivência, envolvem
o que em Teoria dos Jogos se conhece por “jogo de soma não-zero”. Jogos de “soma zero” são aque-
les nos quais se um participante ganha pontos, o outro os perde em igual quantidade, de modo
a que a soma da pontuação de todos seja sempre zero. Já os jogos de soma não-zero envolvem a
possibilidade de um dos participantes ganhar pontos sem que isso implique, por si só, prejuízo,
desvantagem ou desfavor para os demais. É o caso da sobrevivência, pois não necessariamente
para que um ser sobreviva, ou obtenha alimentos ou se reproduza será preciso que todos os demais
seres vivos presentes no mesmo ambiente fracassem nessas mesmas tarefas. Daí o surgimento,
natural nos jogos de soma não-zero, da figura da cooperação (AXELROD, 2010).
Considerando que comportamentos cooperativos favorecem a sobrevivência dos grupos de
indivíduos que os adotam, eles são naturalmente selecionados até mesmo entre seres desprovidos
de consciência, como é o caso de insetos ou de bactérias (AXELROD, 2010, p. 19 e ss; GREE-
NE, 2013, p. 57-58). Mas justamente porque esses comportamentos cooperativos viabilizam a
sobrevivência dos grupos de indivíduos que os adotam, eles levaram à seleção natural de aparatos
neurológicos e sensoriais que, entre outras funções, são capazes de incrementar essa cooperação,
tornando-a mais eficiente e complexa. Essa é a base, por exemplo, não só para que os animais,
em geral, tenham instintos de proteção em relação à prole e a parentes próximos (kin selection),
os quais levam à preservação de indivíduos com carga genérica semelhante, mas para o próprio
surgimento de um aparato neurológico – em mamíferos superiores como chimpanzés, bonobos,
lobos e golfinhos – capaz de propiciar sentimentos morais que viabilizam a vida em comunidade
(WAAL, 1996, p. 88).
Parece claro, de fato, que a vida em grupo é menos difícil que aquela conduzida de forma
isolada, e a conveniência de organizar-se em grupos será tanto maior quanto maior for a coopera-
ção dos membros desse grupo. Por outro lado, como pode acontecer de alguém “de fora” inserir-se
nesse grupo, ou mesmo de indivíduos que o integram não cooperarem da mesma forma que os
demais, foram naturalmente selecionados, também, mecanismos destinados a que os indivíduos
reconheçam aqueles que cooperam ou não cooperam e lembrem de interações anteriores mantidas
com esses indivíduos e dos comportamentos por eles assumidos. Mas não basta reconhecer e lem-
brar, até porque, em grupos grandes, pode ocorrer de a pessoa “enganada” em uma relação nunca
mais ter a oportunidade de interagir novamente com quem a enganou. Daí a necessidade de que
tais comportamentos causem impressões, positivas ou negativas, em quem deles deve lembrar em
interações futuras, mas também em terceiros que os testemunham, que os devem reprimir ou
sancionar, se for o caso. Surgem, assim, figuras como a reputação e a confiança (PINKER, 1998;
AXELROD, 2010, p. 14; WAAL, 1996, p. 113; GREENE, 2013, p. 112).
Assim como um alimento nutritivo provoca o prazer, e um estragado ou venenoso pode pro-
vocar enjoo ou nojo, por obra do processo de seleção natural, comportamentos que positivamente
viabilizam a coesão e a harmonia do grupo provocam sensações agradáveis, tanto quando são ob-
servados quanto quando praticados, levando a que sejam apreciados e incentivados. E os que con-
duzem ao resultado inverso produzem sentimentos negativos, que levam os demais a reprimi-los
ou censurá-los. Daí dizer-se que os sentimentos morais têm origem na seleção natural, algo hoje
relativamente pacífico entre biólogos (RUSE, 1986; HAUSER, 2006; WAAL, 2013; DAWKINS,
1989; 2006).
Nessa ordem de ideias, autores como Joshua Greene (GREENE, 2013) partem de tais no-
ções biológicas para revisitar conhecidas questões morais, como aquelas relacionadas ao trolley
dilema, assim entendido o conhecido experimento mental, usado por estudiosos de filosofia mo-
ral (v.g., SANDEL, 2009), no qual um vagão desgovernado corre por trilhos nos quais trabalham
cinco operários, mas cujo curso pode ser desviado para um caminho alternativo, no qual está tra-

76
balhando apenas um operário. Seria moralmente correto acionar um desvio e, assim, matar uma
pessoa para salvar cinco? É bastante frequente a resposta positiva, nesse caso: sim, seria correto
alterar o curso do vagão para salvar cinco pessoas, ainda que com isso se provoque a morte de
uma. Seguem-se, então, modificações no experimento, como aquela na qual, em vez de um des-
vio, cogita-se de empurrar alguém corpulento sobre os trilhos, para morrer atropelado pelo vagão e
interromper seu curso, salvando as cinco pessoas situadas ao final dos trilhos. Dessa vez, porém, a
maior parte das pessoas às quais é narrado o experimento considera incorreta ação de empurrar e
provocar a morte da pessoa corpulenta, ainda que assim se salvem cinco pessoas ao custo da vida
de uma, exatamente como na primeira formulação do experimento.
Há vasta literatura na qual se desenvolve discussão filosófica em torno desse problema, per-
quirindo-se em torno das distinções entre as duas situações e de seus reflexos no estudo de teorias
utilitaristas, kantianas etc. Dawkins (2006, p. 214) e Hauser (2006, passim), por exemplo, veem
na repulsa em empurrar o sujeito corpulento, ainda que para salvar cinco vidas, um reflexo do im-
perativo categórico kantiano, pois o problema estaria em usar o sujeito como coisa, equiparando-o
a uma pedra; na situação em que o vagão é desviado, o sujeito que morre ao final da rota alterna-
tiva não é usado como meio, sendo a sua morte apenas um indesejado efeito colateral negativo.
Aliás, caso o sujeito não estivesse ao final do trilho, o desvio poderia ser feito e o salvamento dos
cinco trabalhadores aconteceria de igual forma.
Joshua Greene (GREENE, 2013), porém, utiliza as já apontadas noções de biologia, aliadas a
descobertas de neurociência e brain imaging,avaliando em tempo real o funcionamento do cére-
bro das pessoas submetidas ao citado experimento mental do trolley car, para tentar dar resposta
menos especulativa e mais empiricamente fundamentada a essas questões, investigando por que
em alguns casos a ação que leva à morte de uma pessoa para salvar cinco nos parece correta, e
em outros não, sem que muitas vezes consigamos explicar as razões para isso. Ele discorda de que
a explicação seja simplesmente o caráter inato de algo como o imperativo categórico kantiano, e
para tanto procede a nova alteração no experimento. Suponha-se que a rota alternativa na qual
está o trabalhador sozinho não seja “sem saída”, mas em verdade conduza o vagão novamente ao
mesmo trilho principal onde ao final estão os outros cinco trabalhadores que devem ser salvos.
Nesse caso, a ausência daquele que trabalha sozinho tornaria inócuo o desvio: o vagão retornaria
ao trilho principal e mataria os cinco trabalhadores. Assim, com essa mudança, a presença do tra-
balhador sozinho, no desvio, passa a ser o obstáculo (tal como uma pedra, ou o sujeito corpulento
a ser empurrado nos trilhos), a impedir o retorno do vagão para matar os cinco colegas. Ainda
assim, sem sabermos bem porque, optamos por fazer o desvio nesse caso, ou pelo menos o desvio
nos parece menos repugnante, mesmo com a alteração, do que a alternativa de empurrar alguém
sobre os trilhos, ainda que para atingir a mesma finalidade de matar um para salvar cinco.
Para Greene, o que ocorre, na verdade, é que fomos biologicamente selecionados para ter
certa repulsão por atos que têm a violência como fim imediato, como empurrar alguém para a
morte, mas não termos igual capacidade de percepção em relação àqueles atos nos quais a morte
de alguém aparece como fim remoto, indireto ou mediato, e não como o objetivo mais imediato.
Pode-se estabelecer, nesse contexto, rica e importante discussão a respeito de formas cons-
cientes e inconscientes de reações humanas diante de questões morais, que Greene (2013, p.
320) estuda a partir das ideias de Daniel Kahneman (KAHNEMAN, 2011) relacionadas às duas
formas de comportamento humano, por ele batizadas de “automático” e “manual”. O comporta-
mento automático, preponderantemente intuitivo e, em alguma medida – mas não só –, instintivo,
é eficiente e rápido diante de problemas iguais aos que levaram à sua formação, seja na seleção
de comportamentos inconscientes de antepassados, seja na formação de memórias inconscientes
em razão de experiências passadas do mesmo indivíduo; mas incapaz de manejar situações novas
e inusitadas (sobre o instinto e sua rigidez, confira-se MIRANDA, 1937, p. 19; GREENE, 2013,
p. 341). Já o comportamento manual, dito consciente ou racional, é mais lento, envolve maior
esforço cognitivo, mas, por sua vez, é flexível, sendo capaz de lidar com situações novas. Uma
amostra disso pode ser colhida quando se está tentando aprender algo como dirigir, que envolve
toda atenção consciente para ações como pisar em pedais e passar marchas; depois de alguma
prática, porém, o sujeito dirige apenas pensando para onde deseja ir, mas sem conscientemente
pensar em qual marcha engatar ou em qual dos pedais pisar.
Nessa sua forma automática de conduzir-se, o ser humano possui – moldados por milhões

77
de anos de seleção natural – mecanismos que o impelem a colaborar com pessoas por ele vistas
como de seu mesmo grupo. Na relação do indivíduo com os seus semelhantes, sentimentos de
cooperação permitem que, na relação entre o “eu” e o “nós”, nem sempre o primeiro seja privile-
giado em relação aos segundos. Daí por que, às vezes, as pessoas têm manifestações de genuíno al-
truísmo desinteressado, ou experimentam alguma satisfação ao testemunhar atos dessa natureza,
mesmo em benefício de outras pessoas com as quais não têm laço de parentesco ou das quais nada
esperam em troca (WAAL, 1996, p. 144). A isso se credita, atualmente, a origem dos sentimentos
morais.
O problema é que esses mesmos mecanismos deixam de funcionar, ou não funcionam tão
bem, quando esse “outro” é visto como alguém externo ao grupo, fazendo surgir não o conflito
entre eu x nós, mas entre nós x eles. Nesse caso, tais mecanismos, geradores dos sentimentos
morais, não promovem o mesmo altruísmo, mas um sentimento de competição e, não raro, de
rivalidade e destruição. Por outras palavras, a evolução selecionou comportamentos cooperativos
e sentimentos que os favorecem nas relações intragrupais, mas não naquelas intergrupais. Isso
se reflete, por exemplo, nas religiões, que não raro pregam comportamentos altruístas em relação
ao “semelhante”, conceito geralmente não lembrado por muitos crentes no que tange àqueles que
professam cultos diversos dos seus.
Joshua Greene defende, em tais situações, que se adote a mesma solução utilizada pelo cé-
rebro quando dois de seus mecanismos automáticos entram em conflito, conduzindo a resultados
divergentes: o acionamento do modo manual. A título de exemplo, quando lemos uma palavra
grafada de uma cor, mas que designa outra (p.ex., a palavra “vermelho”, escrita em cor azul), e
somos provocados a dizer rapidamente qual cor está escrita, parte de nosso sistema automático de
funcionamento cerebral nos impele a pronunciar o nome da cor das letras que formam a palavra
(“azul”), mas outra parte indica como resposta o significado dessas mesmas letras em conjunto
(“vermelho”). Quando isso ocorre, diante da divergência de comportamentos indicados pelo siste-
ma intuitivo, o sistema “manual” assume o comando e, conscientemente (e muito mais esforçada
e lentamente), verifica qual das respostas está de acordo com o que foi perguntado, escolhendo a
que corresponde ao significado das letras e não à sua cor.
Da mesma forma como é aplicado no caso de soluções divergentes apresentadas por setores
distintos de um mesmo cérebro, que operam em “modo automático”, que Greene chama de confli-
to intracraniano de soluções intuitivas, defende ele que isso seja também feito no caso de conflitos
intercranianos, ou seja, conflitos entre soluções apresentadas pelo modo automático ou intuitivo
de pessoas diferentes (GREENE, 2013, p. 693). Quando o sistema automático das pessoas não
é competente para fornecer respostas convergentes, em face de o conflito se estabelecer entre
sistemas morais dos diferentes grupos nos quais estão inseridas (v.g., cultura brasileira x cultura
árabe, no que tange aos direitos da mulher), seria o caso de acionar o sistema manual, consciente
e racional, capaz de julgar a mais adequada solução.
O problema que se pode colocar, nesse caso, é o de saber qual seria a melhor solução “ra-
cional”, vale dizer, qual seria o metacritério para julgar os vários sistemas morais naturalmente
existentes em cada sociedade. Essa, na verdade, é a grande questão da Filosofia Moral e da teoria
dos Direitos Humanos, na atualidade, a qual mostra que os referidos achados da biologia e da
neurociência estão muito longe de tornar superadas as discussões filosóficas (CORTINA, 2011).
Afinal, por que alguns de nossos sentimentos morais, moldados pela seleção natural, deveriam ser
alimentados, enquanto outros precisariam ser reprimidos? E mais: qual o critério a ser utilizado
para identificar uns e outros?
Para Greene, a solução a ser adotada, nesse caso, deve ser aquela obtida por meio de um
raciocínio utilitarista. Afinal, racionalmente, a melhor solução, no caso de conflitos morais, seria
aquela capaz de trazer a maior felicidade ao maior número de pessoas. Em síntese, no caso de
questões “fáceis”, em relação às quais não há conflitos morais, não havendo divergência ou dis-
puta ente teses opostas, é possível confiar no sistema automático e nos sentimentos morais dele
decorrentes, representantes da forma mais adequada que o processo de seleção natural encontrou
para formar grupos coesos e cooperativos. Entretanto, havendo disputa entre posicionamentos
morais opostos, decorrente do fato de as pessoas terem concepções radicalmente diversas sobre
como proceder (decorrentes, no mais das vezes, do fato de enxergarem o outro como alguém “di-
ferente”, e não “do mesmo grupo”), seria o caso de acionar o sistema automático e, na visão de

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Greene, defender a solução compatível com uma resposta utilitarista para o problema, adotando
aquela solução que maximize a felicidade do maior número de pessoas.

5. CONSEQUÊNCIAS PARA O ESTUDO DO DIREITO NA CONTEMPORANEIDADE


As conclusões a que biólogos, neurologistas, psicólogos e até teóricos da inteligência artifi-
cial têm chegado, nas últimas décadas, em estudo transdisciplinar geralmente intitulado de “neu-
rociência”, são induvidosamente perturbadoras, além de capazes de conduzir a uma revolução na
forma como se estudam questões éticas.

As questões éticas, porém, não precisam, por conta dos achados da neurociência, ser resol-
vidas apenas por biólogos, ou neurologistas. Aliás, outra importante revelação da neurociência está
em sua própria formação: um novo setor do conhecimento originado da interação de especialistas
de áreas diversas, que passaram a dialogar em relação aos pontos de interseção de seus estudos,
permitindo avançar além das fronteiras onde as possibilidades de suas especialidades se estavam
esgotando. Uma só pessoa não pode estudar em profundidade todos os assuntos, mas não é por
isso que deve ignorar o que em outras áreas se tem investigado e concluído. Da mesma forma
como teóricos da cognição e até da inteligência artificial (CHRISTIAN, 2013) podem interagir
com neurologistas, o mesmo talvez se aplique, por igual, a juristas e filósofos do direito.
Assim, é possível, por certo, fazer objeções às ideias de Greene e de outros biólogos ou
neurocientistas que se ocuparam do tema, rapidamente resenhadas no item anterior deste texto,
notadamente no que tange às conclusões não especificamente biológicas a que ele chega. Por
exemplo, embora Greene faça uma defesa bastante competente da filosofia utilitarista, podem ser
feitos alguns aprimoramentos às suas ideias, além de se poderem extrair algumas conclusões mais
práticas e imediatas para o estudo do Direito na contemporaneidade.
Como a concepção que cada um faz do que seja a felicidade pode mudar, bem como a res-
peito dos meios ou elementos que conduzem a ela, talvez seja mais adequado substituir a maximi-
zação da felicidade, proposta por Greene, pela maximização das liberdades, como faz, com muita
propriedade, Amartya Sen, por sinal outro competente crítico do utilitarismo (SEN, 2000). Afinal,
com liberdade, cada um pode decidir o que entende por felicidade e quais os melhores caminhos
para persegui-la, atendendo, de uma forma ou de outra, mas mais eficientemente, o próprio ideal
utilitarista.
Por outro lado, embora a neurociência esteja a reforçar a ideia sobre o quão tênue e nebu-
losa é a distinção entre juízos de fato e juízos de valor, ou proposições descritivas e proposições
valorativas, não se pode dizer que ela perdeu inteiramente o sentido e a utilidade. Tanto que Gree-
ne, para evitar a falácia naturalista denunciada por Hume, reconhece que diante de desacordos
morais, decorrentes da insuficiência dos mecanismos naturais que nos impelem à cooperação
intragrupal mas não intergrupal, é preciso encontrar uma solução consensual. À míngua de um
metacritério “dado”, seja pela natureza ou por Deus, e diante do caráter insatisfatório da solução –
aliás, da não-solução – relativista, em face da qual a inexistência de padrões faria qualquer solução
igual a um jogo de dados (GREENE, 2013, p. 684), ele precisa ser “construído” consensualmente,
a partir de uma base comum (common ground) em torno da qual todos estejam de acordo, base
que para Greene seria a ideia de que se deve maximizar a felicidade das pessoas. Não se evita,
porém, a falácia naturalista. Afinal, por que devemos perseguir ou prestigiar esses sentimentos
morais, em determinados casos, e por quais motivos devemos recorrer a outras soluções, quando
eles não conduzem ao altruísmo ou à cooperação como resultado, ou quando há conflito entre as
soluções por eles ditadas a pessoas diversas? Para dar uma resposta a essa questão, ainda que se
consiga grande “objetividade” no estudo de questões morais, será preciso reconhecer o caráter
não meramente descritivo da ciência, à qual cabe, também, propor soluções e aprimoramentos à
realidade descrita. Isso impõe uma revisão do próprio paradigma positivista no âmbito da episte-
mologia.
A propósito, independentemente da utilidade de se recorrer a um metacritério para resolver
conflitos morais, outra inteligente forma de minimizar as falhas do “modo automático” de agir,
que levam a esses conflitos, é o recurso à ideia, defendida por Amartya Sen, segundo a qual, no
mundo contemporâneo, todos fazemos parte de vários grupos diferentes ao mesmo tempo, o que
79
deve ser levado em conta para que se consiga uma solução não violenta para os conflitos morais
(SEN, 2006). Se, no passado remoto, nossos antepassados nômades viviam em pequenos grupos
com indivíduos com os quais deveriam cooperar para sobreviver, e os grupos rivais eram encon-
trados muito raramente, sendo quase sempre fonte de perigo, no mundo contemporâneo a indivi-
dualidade de alguém é determinada por muitos fatores diferentes, os quais colocam essa pessoa,
ao mesmo tempo, inserida em grupos os mais diversos.
Para fazer uso de um exemplo, um professor, torcedor do Flamengo, ateu, pai de uma
criança com deficiência visual, e de ideologia liberal, pode ser “rival” de um sujeito que se declara
torcedor do Fluminense, se consideradas as respectivas preferências esportivas. O mecanismo
automático de conduzir questões morais do referido professor não lhe daria maiores inclinações
ao altruísmo ou à cooperação com esse sujeito, se apenas a rivalidade futebolística fosse levada
em consideração. Caso, porém, percebessem ambos terem filhos com deficiência visual, ou ambos
defenderem ideologia liberal, a empatia decorrente da identidade nesse outro grupo poderia mini-
mizar ou neutralizar aquela rivalidade.
De uma maneira ou de outra, tais ideias revelam, de forma clara, que é possível, mesmo
dentro de um paradigma “descritivo” e “empírico”, tratar de questões éticas ou morais, investi-
gando sua origem e fundamentos, e trabalhando maneiras de utilizá-los em proveito de uma mais
adequada solução de questões morais que, de outro modo, poderiam ser vistas como insolúveis
ou mesmo impossíveis de serem estudadas e discutidas. Saber como deveriam ser utilizados os
conhecimentos sobre tais sentimentos morais, ou quais deles deveriam ser alimentados (altruís-
mo) e quais deveriam ser minimizados (hostilidade a pessoas “diferentes”, vistas como de “outro
grupo”), por certo passa por reflexões filosóficas, mas não se pode dizer, simplesmente, que senti-
mentos morais sejam metafísicos e por isso impossíveis de análise científica.
Vê-se, com isso, o quão tênue e nebulosa é a divisão entre juízos de fato e juízos de valor.
Ainda se pode trabalhar com ela, naturalmente, até porque alguém poderia dizer, não sem alguma
dose de razão, que nem todos os produtos da seleção natural devem ser pela humanidade otimi-
zados e incrementados. Dela deriva, afinal, também a agressividade, além de uma série de outros
instintos e sentimentos que não raro tentamos inibir ou minimizar. Se os sentimentos morais
naturalmente selecionados nos dão os fundamentos das várias “morais positivas” existentes ao
redor do mundo, exame racional desses mesmos sentimentos, de seus objetivos e, em face destes,
de suas falhas, talvez no permita a construção de uma metamoralidade que auxilie na solução de
conflitos entre sistemas morais diferentes. E, como se disse antes, ela talvez esteja relacionada à
maximização das liberdades dos indivíduos.
Poder-se-ia dizer, porém, que a discussão aqui não deveria girar em torno da moral, mas
do Direito Natural. As palavras moral e direito natural, porém, talvez possam ser empregadas
como sinônimas, notadamente quando se trata de encontrar um paradigma ideal a partir do qual
uma ordem jurídica positiva possa ser avaliada. A origem natural de tais sentimentos morais – e
sua insuficiência, a ser complementada com metamoralidade racionalmente fundamentada para
resolver eventuais situações de conflito – aplica-se por igual à ideia de direito natural, que experi-
menta, com isso, mais um renascimento2.
De outro turno, os apontados neurônios espelho, que permitem ao ser humano colocar-se
na perspectiva do outro, não só viabilizaram sentimentos morais e empatia, mas também a cria-
ção de realidades institucionais, assim entendidas aquelas que somente existem na medida em
que pactuadas intersubjetivamente (SEARLE, 2005, p. 103). Surge, assim, a cultura, e, com ela,
figuras como o dinheiro e o direito, os quais somente existem porque sua existência é pactuada
intersubjetivamente.
Para que seja assim reconhecido pelos que a ele se submetem, o Direito, enquanto ordem
jurídica, deve ter conteúdo próximo àqueles que essas pessoas reputam desejável. Obviamente,
coincidência completa seria impossível, sendo utópica e inalcançável. Mas isso não inibe a que se
procure a aproximação possível. Quanto maior a proximidade, maior o grau de reconhecimento de
uma ordem jurídica, que assim se distancia, para quem a ela se submete, do mero uso organizado
da força.
Nesse contexto, liberdade, igualdade e democracia figuram como possíveis bases universais
2 A escola do Direito Natural – diz Michel Villey, já reproduzindo o pensamento de Batiffol – “por mais que se a con-
dene, ela renasce das cinzas. É um ‘cadáver que não se cansa de ressuscitar’ (H. Batiffol).” (VILLEY, 2003, p. 310).
80
em face das quais toda ordem jurídica se deve organizar, de modo a corresponder, em conteúdo,
àquilo que os que a ela se submetem esperam (MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 87 e ss). Permi-
te-se, com isso, que esse “direito natural”, que nos é inerente por força do processo evolutivo que
gerou a própria espécie humana, esteja de algum modo presente em suas disposições, e que seja,
em suas insuficiências, corrigido e aperfeiçoado para tornar mais eficaz a ordem jurídica.
Pode-se dizer que, em alguma medida, o que se disse acima incorre, também, em uma fa-
lácia naturalista. Afinal, por que pretender construir uma ordem jurídica mais eficaz, e reputada
como mais justa por quem a ela se submete? A elevada indeterminação do conceito de justiça não
deveria sugerir o abandono dessas pretensões? Na verdade, não. Médicos não reputam menos
científica uma pesquisa que pretenda tornar mais indolor ou rápido um procedimento cirúrgico,
ou que incremente o bem estar do paciente, por mais subjetivos que esses conceitos eventualmen-
te possam ser. O mesmo pode ser dito de pesquisa destinada a fabricar carros mais econômicos e
seguros, ou fontes de energia mais baratas e menos poluentes. Se o Direito é uma realidade insti-
tucional, medidas que incrementem o reconhecimento de uma norma como expressão do Direito,
e não como o mero exercício da força, destinam-se a torná-lo mais perfeito enquanto instrumento,
ideal que também inspira os que se dedicam ao estudo de outras parcelas da realidade. Não que se
deva confundir por completo o direito que é com aquele que deveria ser, para quem o estuda. Em
verdade, trata-se de descrevê-lo, como se entende que ele é, mas fazê-lo de modo a permitir seu
aprimoramento, para que se aproxime do que deve ser.
Ainda que existam, seja no plano das “moralidades positivas”, seja no da “moralidade crítica
ou ideal”, esta última entendida como um metacritério para o julgamento dos vários sistemas mo-
rais encontrados em cada sociedade, divergências, isso por si só não deveria ser causa para o aban-
dono da discussão, no que tange aos valores que devem orientar a crítica e o aperfeiçoamento da
realidade. Primeiro, porque divergências também há no âmbito das ciências supostamente mais
descritivas e objetivas, como a física e a biologia. A par de desacordos irrazoáveis, como o dos que
negam a seleção natural e afirmam serem os fósseis o registro dos animais que não lograram êxito
em subir na Arca de Noé, há mesmo desacordos fundados e atualmente não solúveis, como entre
os teóricos da física em torno de questões fundamentais na compreensão do universo. E isso não é
motivo para que tais disciplinas sejam consideradas inferiores, subjetivas ou impossíveis de serem
debatidas (ZIMMERMAN, 2010, p. 100; TERSMAN, 2006, p. xi). Questões morais não são equi-
valentes a meros gostos pessoais, tanto que se apresentam razões para a defesa de pontos de vista
diversos (BENN, 1998, p. 5). Além disso, o fato de haver divergência quanto à solução ideal para
certos problemas não significa que igual dificuldade se coloque para todo tipo de dilema moral.
A falta de consenso sobre uma solução ideal não impede que se resolvam situações em relação às
quais há acordo quanto à necessidade de serem corrigidas (SEN, 2009, p. 104 e ss; LUKES, 2008,
154). Podem ser discutidas, portanto, de forma aberta e falibilista, com apoio em dados empíricos
e experimentais, mas, independentemente deles, de forma científica.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sentimentos morais afiguram-se atualmente menos “metafísicos” do que pareciam a cien-
tistas, notadamente cientistas sociais, de algumas décadas ou séculos atrás. Sem esquecer o ca-
ráter falseável dessa afirmação, como de qualquer outra que se pretenda científica, é possível
determinar-lhes a origem, a razão de ser, e, inclusive, as falhas ou insuficiências.
A partir dessas noções, talvez seja possível cogitar-se de (mais) um renascimento das ideias
relacionadas ao “direito natural”, abrindo-se novas oportunidades de discussão do tema e de sua
interação com a construção e a interpretação da ordem jurídica positiva. Entre essas oportunida-
des está a pesquisa por mecanismos capazes de solucionar os conflitos decorrentes do contraste
de padrões culturais e morais distintos, um dos dilemas mais atuais da contemporaneidade. A
melhor forma para dirimir tais questionamentos parece ser a que maximiza a liberdade – e não
propriamente a felicidade – do maior número de pessoas, em uma perspectiva aperfeiçoada do
utilitarismo, sendo essa opção, porém, reconhecidamente prescritiva, o que, por si só, não deveria
ser causa para o seu abandono.
Não se está, com isso, a preconizar um retorno do jusnaturalismo clássico, ou a defesa de
um ideal de justiça eterno e imutável. Mas tais ideias autorizam a que, pelo menos, juízos morais
81
sejam vistos como algo menos abstrato e subjetivo, de modo a que se incrementem discussões em
torno deles, de seus fundamentos, e de sua possível relação com o direito posto, sem com isso se
incorrer no receio de perda de “cientificidade”.
Tampouco se está sugerindo, convém frisar, que os sentimentos morais, moldados pela
seleção natural, determinam tudo no que tange ao comportamento humano. A rigor, a biologia
contemporânea tem mostrado que o ser humano é mais animal do que imagina, e que os demais
animais têm características ou traços que antes se imaginavam exclusivamente humanos. O que
ocorre, em verdade, é que a fronteira entre humanos e outros animais é gradual e turva, como
se dá com praticamente todas as separações que vemos no mundo fenomênico. É claro que há
componentes humanos que nos fazem distintos, ainda que de forma quantitativa e não qualitativa,
os quais permitem o surgimento da cultura e, com ela, de diferenças nas formas como tais senti-
mentos são implementados no tempo e no espaço. Da mesma maneira como há um fundamento
biológico para o surgimento da linguagem, que dá origem, não obstante, a línguas, idiomas ou
dialetos os mais diversos, existe uma inclinação natural do ser humano a certos nutrientes, que,
todavia, faz surgirem pratos típicos diversos em diferentes partes do mundo. O mesmo se dá com
os sentimentos morais.

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84
DOXA UNIVERSALISTA DOS DIREITOS HUMANOS E SEUS PARA-
DOXOS: POR UMA CRÍTICA AO DIREITO NA ATUALIDADE1

Daniel Carneiro Leão Romaguera2

João Paulo Allain Teixeira3

1. INTRODUÇÃO
A temática abordada consiste na aferição dos paradoxos e aporias da concepção contempo-
rânea dos Direitos Humanos, ao serem confrontados os valores consignados pelo discurso preva-
lente e a realidade vivenciada.
Nesse escopo, identificam-se as práticas suportadas pelos Direitos Humanos em meio à
violência externalizada nesses valores. Parte-se da análise entre constitucionalismo e democracia
na dita pós-modernidade, das concepções, política e jurídica e suas tensões.
Com o sentido de afligir a desconsideração da ideologia por trás da aparência dos Direitos
Humanos, vê-se, a temática em questão de formação da doxa dos Direitos Humanos. Para tanto,
faz-se imperioso atentar as relações de poder desconsideradas, sem as quais, jamais, a criação dos
Direitos Humanos poderia ser concebida.
Sob esse viés, propõe-se a análise das práticas manifestadas ao longo da tradição imperia-

1 A gênese deste Artigo também foi utilizada para publicação nos anais do IV Congresso do ABRASD - I encontro
Moinho Jurídico: http://www.abrasd.com.br/biblioteca/anais/anaisIVcongabrasd.pdf. Foram feitas alterações no senti-
do de atualizar e trazer novas discussões ao texto.
2 ¹ Mestrando da UNICAP em programa de Mestrado-Sanduíche na UNISINOS, sob a orientação do Prof. João Paulo
Fernandes de Souza Allain Teixeira e da Profª. Fernanda Frizzo Bragato.
Email: danielromaguera@hotmail.com
3 Professor Adjunto do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco (CCJ/UFPE), Pro-
fessor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), Professor
da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professor do Mestrado em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP), Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP. Doutor e Mestre em
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
85
lista do “velho continente”4, de como, o eurocentrismo conduziu a formação do senso prático na
contemporaneidade. Nesse ínterim, busca-se a demonstração das origens coloniais dos Direitos
Humanos.
Isto porque, a lógica que suportou as violações e praticas extirpadoras iniciadas no pro-
cesso colonial não foi deixada de lado. Em absoluto. De tal forma, a hipótese é de que não houve
qualquer tipo de ruptura, mas reprodução da proposta civilizatória em meio às novas formas de
dominação.
Dito isto, o ideal do projeto racional moderno pautado nos valores europeus foi determinan-
te a produção da doxa, o que se percebe das diversas manifestações de violência ao longo dos pro-
cessos de colonização, independência e consequente dos países colonizados. A romper, inclusive,
com o mito da libertação e autonomia dos estados-nação.
Para isso, mister retomar questões quanto ao processo histórico conduzido pelo ocidente,
de forma a questionar o discurso tradicional, destaca-se a geopolítica do conhecimento. Desse
modo, cumpre-se com o ofício de genealogia, ao apontar-se os processos coloniais como eventos
fundantes à concepção de modernidade.
De sua contextualização, percebe-se que os direitos humanos integram o centro moral de
império, a fomentar praticas contrárias aos ideais que professam, isso porque, sua particularidade
foi transcendida. Cumpre ressaltar, que submerge a essa ideologia relações de forças suportadas
pelos axiomáticos inquestionáveis da humanidade, conduz-se ao niilismo desses direitos quando
a concepção de humanidade universal os antecede, visto que, promovem e legalizam o desejo in-
dividual.
Parte-se, da aferição das aporias e paradoxos ante a realidade fática que circunscreve o
discurso prevalente de Direitos Humanos.

2. DA DOXA HUMANISTA: PARADOXOS, APORIAS E CONTRADIÇÕES


A motivação acadêmica à temática pretendida, parte da relevância em investigar a forma-
ção da doxa dos direitos humanos em meio a práticas dominantes observadas a partir do projeto
colonialista conduzido pelos países europeus. De pronto, há que se fazer menção a imperiosa ne-
cessidade de romper com a tradição de ortodoxia da história do ocidente.
Vê-se, que, o discurso se manifesta nas estruturas de poder inserto à realidade política e
social que o circunscreve. Em razão disso, o prospectado é a investigação acerca da projeção he-
gemônica alcançada pelos Direitos Humanos, identificam-se as aporias na lógica de campo e os
intentos por trás desses direitos.
Desse modo, padecem de entendimento da dimensão social em que se encontram, trata-se
de perspectivismo histórico, consigna Heiner Bielefeldt:

(...) interpretá-los retroativamente como direitos humanos implícitos ou potenciais


significaria adotar a ingenuidade do pensamento histórico teleológico que, con-
forme Kaviraj, deságua numa cobrança essencialista-cultural da idéia dos direitos
humanos, ou em algo como um Espírito do Ocidente. (BIELEFELDT, 2000, p. 149)

De igual maneira, a obra de Augustin Cochin nos revela a necessidade de aferição dos fenô-
menos sociais em atento aos fatores de poder determinantes à sua existência. Em evidência, faz
crítica à percepção valorativa do iluminismo, quanto aos aspectos sociais propulsores para difusão

4 Expressões como essa nos permite constatar que a história é construída pelo vencedor, revelam o problema da
epistemologia e produção do saber. Necessário se faz retomar o processo histórico expansionista do Ocidente, em que
a história foi/é construída pelo vencedor. Logo, vê-se o eurocentrismo, pois a produção do saber está atrelada a civi-
lização prevalente (por exemplo, Revolução Francesa, Bill of Rights, Constituição Americana, Renascimento e etc.).
Faz-se menção a análise da geopolítica do conhecimento conduzida por Walter Mignolo (MIGNOLO, 2002), influen-
ciada pela crítica feita ao historicismo por Foucault, ao perceber que os embates sociais e conflitos são inerentes às
estruturas sociais, pois “(...) não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém”. (FOUCAULT, 2000,
p. 59) A perceber, o conhecimento como objeto de disputa relacionada ao poder e as circunstâncias de sua produção.

86
dos interesses prevalentes:

O corpo, Ia société de pensée, explica o espírito, as convicções compartilhadas. A


Igreja precede aqui, e cria, o seu Evangelho; está unida para a verdade, não pela
verdade. A Regeneração, o Iluminismo, era um fenômeno social, não um fenômeno
moral ou intelectual. (COCHIN, 1921, p.14)

Sob essa gênese tornar-se-á perceptível os fatores que levaram a solidificação dos valores
morais do ocidente. Nesses termos, não se quer desconsiderar a importância de institutos como,
por exemplo, o contrato social, a vontade geral, declarações de direitos, por serem inegáveis ele-
mentos instituidores da ordem estatal moderna5. Contudo, não por expor aquilo que o mundo
moderno concebe em seu âmago, mas, sim, por serem capazes de suportar práticas sociais deter-
minantes à apropriação de poder, em que subjaz a legitimação das práticas dominantes6.
As ressalvas acusadas são resilientes na obra de Costas Douzinas7, acerca da tendência uni-
versalizante dos direitos humanos, pois conduz a leitura em perspectiva da sua produção. Adotada
esta postura crítica, a hipótese é de que os direitos humanos revelam contrassensos visto que não
conduzem aos ideais humanitários professados, pois, selecionam os afortunados e definem sua
humanidade.
A tendência homogeneizante dos Direitos Humanos é trazida como problemática pelo au-
tor, quando realizada a leitura em perspectiva da sua produção. Adotada esta postura crítica, os
Direitos Humanos revelam contrassensos visto que não conduzem aos ideais humanitários profes-
sados, pois, selecionam os afortunados e definem sua humanidade. De tal modo, veremos, que a
concepção do humano é construída dessa maneira.
Ressalta-se que, cabe compreender a força do soberano na atualidade em que se afirma.
Nesse sentido, tem relação com os demais afluentes da ordem social, a destacar os direitos hu-
manos em meio à globalização econômica, constitucionalismo democrático, ambiente político e
as leis internacionais. De como, a concepção humanista é força motriz das práticas dominantes
e institui o limite de responsabilização da ordem global ao “humano” que professa em sua ideolo-
gia8.
É, para além do conteúdo transcendental tido por inerente à significação desses direitos,
que se percebe a dissimulação das relações de poder que os permeia:

A irrealidade ontológica do homem abstrato dos direitos conduz inexoravelmente à


sua utilidade limitada. Direitos abstratos são, assim retirados de seu lugar de apli-
cação e das circunstâncias concretas das pessoas que sofrem e se ressentem de que
eles não conseguem corresponder a suas reais necessidades (DOUZINAS, 2007, p.
166).

5 Ao criticar o liberalismo, Costas Douzinas revela a crosta dominante e o idealismo moderno: “O mundo em que
habitam é um lugar atmocêntrico, constituído por contratos sociais e posturas originais motivados pela cegueira sub-
jetiva dos véus da ignorância, atribuídos a situações de discursos ideais e que retornam a uma certeza pré-moderna
de respostas corretas únicas a conflitos morais e jurídicos.” (DOUZINAS, 2007, p. 15)
6 Revela-se a: “(...) funcionalização da ciência, a par da sua transformação na principal força produtiva do capi-
talismo, diminuiu-lhe a radical e irreversivelmente o seu potencial para uma racionalização emancipatória da vida
individual e colectiva.” (SOUSA SANTOS, 2000, p. 119)
7 São diversos os escritos que que auxiliam à fundamentação da hipótese proposta e ao enfrentamento do problema
em evidência, tais quais: “O fim dos direitos humanos”; “Athens Revolting: Three Meditations on Sovereignty and
One on Its (Possible)”; “Human Rights and Empire. The Political Philosophy of Cosmopolitanism”; “Human Rights
and Postmodern Utopia”; “Human Rights at the End of the History”; “Humanity, military humanism and the new
moral order”; “Oubliez Critique”; “Critical Jurisprudence”; “Sublime Law: On Legal and Aesthetic Judgements”; “The
Legality of the Image”; “Justice miscarried: Ethics and aesthetics in law postmodern theory”; “Violence, Justice, De-
construction”; “New Critical Legal Thinking: Law and the Political”; Philosophy and Resistance in the Crisis: Greece
and the Future of Europe”.
8 Douzinas destaca as feições subjetiva e institucional dos direitos humanos, pois: “(...) ajudam a constituir o sujeito
(jurídico) livre e ao mesmo tempo subordinado à lei (...) mas os direitos humanos são também um discurso e uma
prática poderosos no Direito Nacional e Internacional”. (DOUZINAS, 2007, p. 22)
87
Segundo Costas Douzinas os direitos humanos que ao seu nascedouro (à época, os direitos
do homem, ou seja, naturais de feição liberal) consistiam em valores que foram opostos à opressão
e dominação na Revolução Francesa, vêm a fazer parte do discurso triunfal da atualidade. O re-
ferenciado autor indica o momento a ser observado diante da lógica de institucionalização desses
direitos, em revisão feita pela Universidade de Melbourne:

A história dos direitos humanos fez da resistência à dominação e opressão seu fim
principal. No entanto, a partir de modernidade precoce em diante, os direitos na-
turais sustentaram a soberania do Estado moderno. Esta tendência foi reforçada
na pós-modernidade e os direitos humanos tornaram-se a ordem moral de um
novo império em construção (MELBOURNE UNIVERSITY LAW REVIEW, 2002, p.
445,tradução nossa)9.

É nessa acepção que os Direitos Humanos vêm a constituir o centro dominante da contem-
poraneidade em meio à formação de uma doxa. Segundo Bourdieu, a doxa consiste na produção
de um senso prático homogeneizante e indiscriminadamente seguido, que se dá com o alcance da
submissão de forma universal do ponto de vista particular:

A doxa é um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes, que se


apresenta e se impõe como ponto de vista universal; o ponto de vista daqueles que
dominam dominando o Estado e que constituíram seu ponto de vista em ponto de
vista universal ao criarem o Estado (BOURDIEU, 1996. p. 120).   

Dito isto, a lógica dos direitos humanos por ser uma ideologia, não está à margem de críti-
cas, nas palavras de Douzinas, da “crítica da ideologia”. (DOUZINAS, 2007, p. 21). Muito embo-
ra: “(...) atribuímos ao mundo uma crença jamais profunda do que todas as crenças (no sentido
comum) já que ela não se pensa como uma crença.” (BOURDIEU, 1996, p. 144).
Nesse sentido, busca-se analisar a expansão do discurso humanista, o que se deu com a
dominação do terceiro mundo pelo continente europeu que não se trata apenas do aspecto econô-
mica (de mercado), mas do empreendimento moderno de colonização de mundo. Muito embora,
seja determinante a leitura marxista do capitalismo global, é preciso levar em consideração o do-
mínio colonial10.
A concepção de “transmodernidade” de Enrique Dussel nos permite identificar que a mo-
dernidade não se limitou ao locus temporal do continente europeu, observa-se, também, o que
Immanuel Wallerstein denominou de “universalismo europeu”:

O que estamos usando como critério não é o universalismo global, mas o universa-
lismo europeu, conjunto de doutrinas e pontos de vista éticos que derivam do con-
texto europeu e ambicionam ser valores universais globais – aquilo que muitos de
seus defensores chama de lei natural – ou como tal apresentados (WALLERSTEIN,
2007, p. 60).

É por isso que a crítica deve exceder as reminiscências do âmbito ordenado da pós-moder-
nidade, José-Manuel Barreto:

9 Thehistory of human rights has made resistance to domination and oppression their main end. However from early
modernity onwards, natural rights underpinned the sovereignty of the modern state. This trend has been strengthe-
ned in post modernity and human rights have become the moral order of a new empire under construction. (MEL-
BOURNE UNIVERSITY LAW REVIEW, 2002, p. 455)
10 Como o centro do capitalismo mundial, a Europa não só tinha assumido controle de todas as regiões de mercado,
mas também era capaz de impor o seu domínio colonial sobre as regiões e populações do planeta, incorporando-as ao
sistema-mundo e seu modelo específico do Poder. (QUIJANO, 2008 p. 540, tradução nossa)
88
(...)é evidente na noção de ‘transmodernidade’, uma ideia formulada por Enrique
Dussel a fim de ir além da teoria “pós-moderna”- que consiste em uma perspectiva
crítica que visa transcender a modernidade a partir dela e dessa crítica pós-mo-
derna, que, ao fazê-lo, continua a ser uma crítica eurocêntrica da modernidade
(BARRETO, 2013, p. 34, tradução nossa).11

Nota-se, que, as expressões “europeu” e “eurocentrismo” não estão atreladas tão somente
ao aspecto geográfico, mas, possuem acepção geopolítica, o que nos remete a forma de dominação
pautada na produção do modelo da modernidade expansivista do norte global. (CONNELL, 2011,
p. 10) Assim como, o “ocidente”, pois, nem todos os países ou manifestações deste espaço geográ-
fico representam a metódica colonialista, em absoluto12.
Mister consignar, que o esforço do “progresso evolucionista” em atrelar que os Direitos Na-
turais aos Direitos Humanos, de certa forma o foi para garantir o ideal universalista da lei natural.
Nesse diapasão, Douzinas afirma acerca dos Direitos Humanos, que, o discurso profano
fixa serem estes direitos atribuídos às pessoas em razão da sua condição de ser humano indepen-
dente de qualquer outro aspecto. Com isto, o direito à tutela de bens jurídicos seriam conferidos às
pessoas não por causa de sua filiação ao estado, nação ou comunidade, mas, por sua humanidade.
Acontece que, o que vemos é um discurso não humanitário, mas humanizador. Isto porque,
as ações desses direitos selecionam os afortunados, consequentemente, define a humanidade do
homem. Ações estas, que decorrem da luta social e da concorrência dos agentes, pois os direitos
humanos são definidores da humanidade, e nada tem de inerente ao ser humano.
É uma ordem de corpos que permite as desigualdades, o poder disciplina os corpos, mas
também os faz surgir. Nas palavras de Michel Foucault: “(...) no corpo como máquina: no seu
adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo
de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos.”
(FOUCAULT, 1988, p. 151).
Diante dessa acepção, tem-se como imprescindível atentar aos processos colonialistas pro-
movidos pelos países europeus no curso da modernidade. De como, as praticas espúrias da coloni-
zação permitiram a construção do humano na ideologia hodierna. Inicialmente, cumpre observar
a ruptura que submerge a dimensão de humanidade nesse processo dito por civilizatório, entre os
colonos e colonizados:

A discussão do mundo colonial pelo colonizado não é um confronto racional de


pontos de vista. Não é um discurso sobre o universal, mas a afirmação desenfreada
de uma singularidade admitida como absoluta. O mundo colonial é um mundo
maniqueísta. (FANON, 1968, p. 30)

Não é por outra razão, que o projeto da modernidade conduz a formação de grupos mino-
ritários e vulneráveis, pois o colonizado – produto/subalterno/invisível – não é o sujeito racional,
livre e autônomo professado pela modernidade13.

11 This is evident in the notion of ‘transmodernity’, an idea formulated by Enrique Dussel in order to go beyond ‘post-
modern’ theory—a critical perspective that aims at transcending modernity from within and that, in doing so, remains
a Eurocentric critique of modernity. (BARRETO, 2013. p. 34)
12 Cabe pontuar que a definição dessa lógica tem relação direta com o eurocentrismo, na medida em que “(...) não
se refere a todos os modelos de conhecimento de todos os europeus em todas as épocas (...) pelo contrário há uma
específica racionalidade ou perspectiva na produção do conhecimento que se fez hegemônica globalmente (...)”.
(QUIJANO, 2008, p. 549, tradução nossa).
13 Perceptível à divisão do mundo colonial, em duas partes, através da sujeição pelo racismo e inferiorização do outro,
relata Frantz Fanon: “Este, mundo dividido em compartimentos, êste mundo cindido em dois, é habitado por espécies
diferentes. A originalidade do contexto colonial reside em que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme
diferença dos modos de vida não logram nunca em mascarar as realidades econômicas (...) as realidades humanas.
(...) Quando se observa em sua imediatidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de
mais nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça.” (FANON, 1986, p. 29)

89
Nesses termos, produz-se o subhumano, inumano e até antihumano:

Não basta ao colono afirmar que os valôres desertaram, ou melhor jamais habita-
ram, o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de
valores, como também negação dos valôres. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos
valôres. Neste sentido, é o mal absoluto (FANON, 1968, p. 31).

De tal modo, a hipótese é de que a concepção humanista e os direitos humanos partem des-
ses ideais universais para formar o sujeito concreto do humano desde as práticas colonizadoras.
Nesse sentido, a lógica das violações e praticas extirpadoras iniciadas no processo colonial
não foram deixadas de lado, manteve-se a proposta imperialista durante todo o processo da civili-
zação moderna. Em resgate remissivo, busca-se fazer o link da passagem ao pós-colonialismo e a
formação do senso comum dos Direitos Humanos:

A segunda metade do século XX foi um período de descolonização em massa pelo


mundo afora. A causa e a consequência imediatas dessa descolonização foram uma
mudança importante na dinâmica do poder no sistema interestados, como resulta-
do do alto grau de organização dos movimentos de libertação nacional. (...) A lin-
guagem retória então a um conceito que veio a ter novo significado e força na época
pós-colonial: os direitos humanos (WALLERSTEIN, 2007, p. 42/43).

Em meio ao:

(...) contexto de crescente desigualdade entre o Norte e o Sul, os Estados periféri-


cos e semiperiféricos estão a ficar cada vez mais limitados – como vítimas ou como
parceiros – ao cumprimento das determinações do capital financeiro e industrial
transnacional, determinações, por sua vez, estabelecidas pelas organizações inter-
nacionais controladas pelos Estados centrais (SOUSA SANTOS, 2000, p. 155).

Feitas essas incursões, veremos no capítulo seguinte que é preciso ter em mente como se
deu o progresso europeu e, de como essa penúria persiste no mundo globalizado, nas palavras de
Frantz Fanon: “O bem-estar e o progresso da Europa foram construídos com o suor e o cadáver
dos negros, árabes, índios e amarelos. Convém que não nos esqueçamos disto.” (FANON, 1968,
p. 77)14.
No prefácio da obra “Os condenados da terra” de Frantz Fanon, Jean-Paul Sartre realizou
diagnóstico do humanismo europeu:

Encaremos primeiramente êste inesperado: o strip-tease de nosso humanismo. Ei-


-lo inteiramente nu e não é nada belo: não era senão uma ideologia mentirosa, a
requintada justificação da pilhagem; sua ternura e seu preciosismo caucionavam
nossas agressões (SARTRE, 1968, p. 16).

Nesse diapasão, é preciso relocar o papel do colonialismo na construção da modernidade,


ao percebermos a correspondência do projeto imperialista dos países europeus e o ideal civilizató-
ria da modernidade: “A história do sistema-mundo moderno tem sido, em grande parte, a história
da expansão dos povos e dos estados europeus pelo resto do mundo.” (WALLERSTEIN, 2007, p.
29).

14 A raça permaneceu como critério determinante de sujeição política e construção dos espaços sociais, desde o
início dos processos coloniais em que a: “(...) raça tornou-se o critério fundamental para a distribuição da população
mundial em categorias, lugares e papéis na estrutura da nova sociedade do Poder”. (QUIJANO, 2008, p. 535, tradução
nossa) (...) race became the fundamental criterion for distribution of the world population into ranks, places, and
roles in the new society’s structure of Power. (QUIJANO, 2008, p. 535)
90
Sem abandonar a crítica ao aparato dominante da modernidade, faz-se relação com a praxis
imperialista. Acerca da sujeição à Lei Moderna, cito trecho da obra de Peter Fitzpatrick a denotar
o falso transcendental e universal do humano, com a compreensão da identidade e abrangência
dos valores morais a partir do iluminismo:

Esse mundo recentemente criado entra em confronto com um reino mítico de


sentido fechado, ainda que múltiplo, um reino em que a origem e a identidade
estão localizadas no plano transcendente. No Iluminismo, o transcendente foi tra-
zido para a terra. O “ser humano” teria de ser a medida do ser humano. Não havia
mais necessidade de mediação mítica entre o real e o transcendente. O sentido
fora então unificado. O transcendental e o limite que ele impunha ao pensamento
e à existência representavam os freios temerosos que os homens haviam imposto
a si mesmos em eras passadas. (...) A realidade e suas divisões não mais obtinham
sua identidade do seu lugar dentro de uma ordem mítica abrangente - elas eram
manifestações de um processo de descoberta e realização. Quando esse processo
atinge os limites de sua apropriação do mundo, o Iluminismo cria os verdadeiros
monstros ao quais ele se contrapõe tão assiduamente. Esses monstros da raça e da
natureza indicam os limites exteriores, o “outro” intratável contra o qual o Iluminis-
mo volta a vacuidade do universal e, nessa oposição, confere ao seu próprio projeto
um conteúdo palpável. Uma existência esclarecida é aquilo que o outro não é. A lei
moderna foi criada nessa disjunção (FITZPATRICK, 2007, p. 74).

A unificação é conduzida nesse arbítrio demonstrado pelo autor, suportada pela mítica va-
lorativa dos ideais humanistas tem-se a predisposição dominante.
Para tanto, é imperioso analisar os institutos atrelados à visão moderna de mundo, traz-se a
título de exemplo, soberania, lei, território, estado... Não porque esses institutos denotam expli-
citamente a concepção de modernidade, mas, sim, como âmago capaz de iludir e dissimular as
práticas espúrias da colonização.
Dessa concepção, o contrassenso legal desponta ser fator determinante à construção polí-
tica da sociedade democrática e suas discrepâncias.
Nesses termos, a constatar que os processos de colonização são eventos basilares e fundantes
do projeto modernista europeu, propõe-se re-tomar a história dos direitos humanos:

(…) engloba uma interpretação diversa da filosofia da história em que a teoria dos
direitos humanos tem sido baseada habitualmente ou implicitamente, e dá a luz a
um novo paradigma em que os eventos da Conquista da América e a colonização
do mundo também são reconhecidas como pedras de toque da história moderna. O
desenvolvimento de uma nova versão da história dos direitos no contexto da histó-
ria do mundo, traz para a consciência quinhentos anos de mobilização utópica dos
direitos naturais, dos Direitos do Homem e dos direitos humanos para resistir ao
imperialismo (BARRETO, 2013, p. 07, tradução nossa)15.

A tornar frutífero esse esforço crítico, demanda-se a análise da geopolítica do conhecimen-


to, para consequente estorno do ponto vista dominante, em busca da produção de uma(s) contra-
memória(s) à história incorporada, e, assim, repensar a teoria dos direitos humanos. Para além do
eurocentrismo, atenta-se às margens (contraponto histórico dos oprimidos):

Este distinto pano de fundo histórico e geopolítico pode modificar os termos, con-
ceitos e agenda da teoria e da prática dos direitos humanos. O intérprete é cons-
ciente também do fato de que sua perspective -a do terceiro-mundo- posiciona-se

15 (…) encompasses a different interpretation of the philosophy of history in which human rights theory has been
customarily or implicitly based on, and gives birth to a new paradigm in which the events of the Conquest of America
and the colonization of the world are also recognized as key signposts of modern history. Developing a new version of
the history of rights in the context of world history, it brings into consciousness five hundred years of utopian mobili-
zation of natural rights, the Rights of Man and human rights to resist imperialism. (BARRETO, 2013, p. 07)
91
em desacordo com outra perspective- a da Europa. A crítica ocorre nesta mudança
de pontos de vista, que ao mesmo tempo cria as condições para tentar uma aborda-
gem nova e independente da tradição dos direitos naturais e humanos, para assim
possibilitar um diálogo entre estes dois pontos de vista (BARRETO, 2013, p. 07,
tradução nossa)16.

Sob tal viés crítico, é concebida a investigação reflexiva capaz de atender as exigências de
uma genealogia combativa ao eurocentrismo desses direitos.
Acerca disso, pertinente se faz a perspectiva desconstrutivista, destaco trecho do escrito
“Força de Lei” de Jacques Derrida, vê-se a necessidade de questionar a memória incorporada: (…)
em nome de uma exigência mais insaciável de justiça, à reinterpretação de todo o aparelho dos
limites nos quais uma história e uma cultura puderam confinar criteriologia (DERRIDA, 2010, p.
36).
A demonstrar esse tipo de investigação, o autor aborda o conceito de emancipação que per-
meia o direito, em remissão à mitologia iluminista e ao projeto racionalista da modernidade17, na
busca de uma contramemória:

Nada me parece menos perempto do que o clássico ideal emancipatório. (...) não se
pode desqualificá-lo hoje (...) é verdade que também é necessário, sem renunciar a
esse ideal, pelo contrário, reelaborar o conceito de emancipação, de franqueamento
ou de libertação, levando em conta as estranhas estruturas que descrevemos neste
momento. Mas, para além, dos territórios hoje identificáveis da jurídico-politização
em grande escala geopolítica, para além de todos os desvios arrazoados e interessei-
ros (...) outras zonas devem abrir-se constantemente, que podem a primeira vista
parecer zonas secundárias ou marginais. Essa margem significa também que uma
violência e um terrorismo ou outras formas de sequestro estão em ação (DERRIDA,
2010, p. 57).

O que pode ser feito na democracia, pois a mesma abre possibilidades, que em seu exercício
devem ser extrapoladas, cito:

A democracia é, para Derrida, o único regime ou quase-regime político aberto a


sua historicidade na forma de transformação política, e aberto à sua própria recon-
ceitualização por meio da autocrítica, chegando até e incluindo a idéia e o nome
‘democracia’. (NAAS, 2006. p. 33)

Nota-se que, é no deslocamento das estruturas que reside o democrático para Derrida.
Procura-se, neste artigo, adotar também a perspectiva desconstrutivista com relação aos Direitos
Humanos18.

16 This distinct historical and geopolitical background can modify the terms, concepts and agenda of the theory and
practice of human rights. The interpreter is also conscious of the fact that her perspective—that of the Third World—
stands at variance with another perspective—that of Europe. The critique occurs in this shifting of viewpoints, which
at the same time creates the conditions for attempting a novel and independent approach to the tradition of natural
and human rights, as well as for making possible a dialogue between these two points of view. (BARRETO, 2013, p. 07)
17 “Emancipação significa para os modernos o abandono progressivo do mito e do preconceito em todas as áreas da
vida e a substituição destes pela razão. Em termos de organização política, libertação significa a sujeição do poder a
razão da lei.” (DOUZINAS, 2007, p. 23).
18 Derrida denominou de desconstrução como uma possibilidade de justiça, de questionar os valores humanistas
em face do espaço residente entre a regulação estabelecida pelo direito e a justiça, a perceber que o: “(...) direito é
essencialmente desconstrutível, ou porque ele é fundado, isto é, construído sobre camadas textuais interpretáveis e
transformáveis (e esta é a história do direito, a possível e necessária transformação, por vezes a melhoria do direito),
ou porque seu fundamento último, por definição não é fundado. Que o direito seja desconstruível, não é uma infelici-
dade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance política de todo o progresso histórico. Mas o paradoxo que eu gostaria
92
Logo, cabe compreender os Direitos Humanos em consideração da realidade social em que
se inscrevem. Nesse sentido, a reprodução indiscriminada da ideologia dominante dos direitos
humanos tem relação com os demais afluentes do mundo hodierno, pois tais direitos se projetam
como discurso moral hegemônico, conjuntamente com a globalização econômica e as leis interna-
cionais.
Primeiramente, constata-se o cenário de estados-nação que possuem constituições demo-
cráticas, pois para que exista a nação-estado é inexpugnável definir seus limites, com a exclusão
de outras pessoas, povos e nações. A concepção de soberania opera na lógica de inclusão/exclusão.
Em destaque, aponta-se que o constitucionalismo consiste no movimento de apreensão
política à formação e condução dos estados democráticos na dita modernidade, suplantado por
valores que se projetam como universais.
Sempre apto a conter os conflitos sociais através do controle de governo, por isso não se
pode repartir a “constituição” do “governo”, vê-se uma conjunção de fatores que continua a ser
negada.
Ainda, da análise das praticas constitucionais, identifica-se o aspecto temporal. Percebe-se,
a lógica prevalente parte da reminiscência do futuro para justificar as praticas políticas de domi-
nação do presente, afirma-se no agora. Ao passo que, fomenta praticas de poder contrárias aos
valores que propugna, a questão democrática tende a esvaecer-se. Tem-se por contínuo o controle
de liberdade.
Não por menos, a representação democrática e sua validação constitucional enfraquece a
possibilidade de promoção para além desse âmbito. Tratar-se-á da análise da democracia no por
vir de Jacques Derrida, acerca da afirmação do político nos espaços de sua criação.
Nos propõe que a democracia deve sair desse âmbito, que não passa de usurpação de justi-
ça, deve opor-se a pretensa ordem constitucional em que se governa sob os auspícios da soberania
popular.
Dessa forma, procura-se apontar o que é dissimulado e ocultado pelos direitos humanos
acerca de suas praticas violentas, com isso, enfrentar o debate de como a ideologia não conduz aos
ideais que professa. Através dessa análise, permite-se demonstrar a formação da doxa dos Direitos
Humanos, como imperativo prevalente e inquestionável da nova ordem, com ênfase na violência
incorporou as praticas constitucionais democráticas. Para tanto, faz-se necessária abordagem do
projeto imperialista do universalismo europeu19, em remissivo aos processos de colonização.
Os direitos com sua feição dissimulada de significação, suplantados pela ontologia de seus
valores, vem a constituir principal fonte degovernamentalidade no mundo contemporâneo, isto
porque, o espaço político reside em sua discrepância:

(...) suas pressuposições ontológicas, os princípios de igualdade e liberdade, e seu


corolário político, a pretensão de que o poder políticos deve estar sujeito às exigên-
cias da razão e da lei, agora passaram a fazer parte da principal ideologia da maio-
ria dos regimes contemporâneos e sua parcialidade foi transcendida (DOUZINAS,
2007, p. 19).

O discurso abduz que todos têm esses direitos, fato é que os direitos humanos triunfaram
em momento histórico que revela flagrantes violações a seus princípios. Para isso, as estruturas
dominantes reduzem às pessoas a sintéticas entidades capazes de integrar a lógica desses direitos.
Conclui Costas Douzinas:

de submeter à discussão é o seguinte: é esta estrutura desconstrutível do direito ou, se preferirem, da justiça como
direito, que assegura também a possibilidade de desconstrução.” (DERRIDA, 2010, p. 27)

19 “O universalismo europeu é o conceito que define essa realidade: conjunto de doutrinas e pontos de vista éticos
que derivam do contexto europeu e ambicionam ser valores universais globais – aquilo que muitos de seus defensores
chamam de lei natural – ou como tal são apresentados. É uma doutrina oralmente ambígua porque ataca os crimes
de alguns e passa por cima dos crimes de outros, apesar de usar critérios que se afirmam como naturais.” (WALLERS-
TEIN, 2007, p. 59).
93
A diferença entre o triunfo da ideologia dos direitos humanos e do desastre de sua
prática é a melhor expressão de cinismo pós-moderno, a combinação de iluminação
com resignação e apatia e, com um forte sentimento de impasse político e claustro-
fobia existencial, de uma ausência no meio da sociedade mais móvel (DOUZINAS,
2000, p. 12, tradução nossa)20.

Nessa visão, não se pode ignorar as dissimulações dos direitos humanos, propõe-se a com-
preensão crítica de que: “(...) são o fado da pós-modernidade, a energia das nossas sociedades,
o cumprimento da promessa do iluminismo de emancipação e autorrealização”. (DOUZINAS,
2007, p. 13). Ao atentar que os direitos humanos são consignados às pessoas por causa de sua
posição social, as violações dos valores são consignadas a título simbólico ante a distribuição de
capital, pois, apenas certas pessoas tem humanidade. Vê-se, pois, que as pretensões morais desses
direitos não comportam concordância com a leitura empírica, afirma Gabriel Marcel: “(...) que a
vida humana nunca foi tão universalmente tratada como uma comodidade perecível tal qual em
nossa própria época.” (MARCEL, 1964, p. 94, tradução nossa)21.
Segundo Douzinas: “Se o século XX é a era dos direitos humanos, seu triunfo é, no mínimo,
um paradoxo. Nossa época tem testemunhado mais violações de seus princípios do que qualquer
uma das épocas anteriores e menos iluminadas” (DOUZINAS, 2007, p. 20). Nesse pesar: “(...) é
como se o luto, mais do que a comemoração, virasse a cara do final do milênio” (DOUZINAS, p.
24).
Mais recentemente, o que se poderia chamar de uma nova ordem humanitária22, na qual
o sofrimento das pessoas não é computado: “As “vitórias em nome da liberdade e da democracia”
no Afeganistão e no Iraque confirmaram isso. Essas vitórias foram afogadas em um naufrágio dos
direitos humanos para as pessoas locais”. (DOUZINAS, 2007, p. 15)
O desafio é por desmascarar a instituição liberal dos direitos humanos, em tentativa de per-
mitir a desconstrução e consequente resgate de tais direitos para além de seu âmbito de validação,
através da investigação proposta busca-se demonstrar que:

Quando os apologistas do pragmatismo decretam o fim da ideologia, da história ou


da utopia, eles não assinalam o triunfo dos direitos humanos; ao contrário, eles
colocam um fim nos direitos humanos. O fim dos direitos humanos chega quando
eles perdem o seu fim utópico. (DOUZINAS,2007, p. 13)

Apesar da clara tendência dos juristas em atribuir as debilidades e abusos na democracia


constitucional a um déficit de efetividade social, como simplório percalço no funcionamento das
instituições, não é a compleição das relações de poder e do maquinário constitucional. Tem-se a
moldura dos direitos humanos para adequação aos fins políticos desejados, em que: “(...) o para-
doxo é o princípio organizador dos direitos humanos.” (DOUZINAS, 2007, p. 13)
Almeja-se, assim, resistir à dominação e a opressão institucional. Ao constatar que, os Direi-
tos Humanos perdem este objetivo, ou possibilidade, quando constituem a versão contemporânea
de missão civilizatória europeia, pois cumprem com o papel de ideologia política prevalente.

3. COLONIALISMO E FORMAÇÃO OCIDENTAL DOS DIREITOS HUMANOS


Neste início do capítulo, destaca-se o paradoxo que diz respeito à dimensão universal do

20 The gap between the triumph of human rights ideology and the disaster of their practice is the best expression of
postmodern cynicism, the combination of enlightenment with resignation and apathy and, with a strong feeling of
political impasse and existential claustrophobia, of an exitlessness in the midst of the most mobile society. (DOUZI-
NAS, 2000, p. 12)
21 “(...) that human life has never been as universally treated as a vile nad perishable commodity as during our own
era.” (MARCEL, 1964, p. 94)
22 Na qual, os direitos humanos e suas relações estão atrelados a política global: “encontram-se entranhados (...) suas
reivindicações adotadas, absorvidas, e reflexivamente seguradas contra objeções.” (DOUZINAS, 2007, p. 16)
94
ideal de humanidade, isto porque, não contém significado estático e inquestionável. De tal forma,
questiona-se sua condição de fonte moral capaz de justificar a produção dos Direitos Humanos23.
Para tanto, identifica-se a concepção de humanidade nos processos coloniais, como suporte
transcendental à construção do humano. Por mais que se afirmem como inerentes esses direitos,
as vicissitudes são inegáveis, o que poderia parecer “contraditório”, pois aquele que o promove é o
seu maior violador24:

De um testemunho judicial às vicissitudes da saga direitos humanos, percebe-se


que estes não são simplesmente “um conceito ocidental”. Como mostra as evidên-
cias históricas, o Ocidente tem sido também um inimigo -o mais mortal?- À sua
existência. Tanto quanto o Ocidente produziu tratados, manifestos e documentos
legais que consagram esses direitos, como também foi o deflagrador em grande
escala de crimes inomináveis como o colonialismo –longo período de “violação dos
direitos humanos”- bem como as atrocidades nazistas. (BARRETO, 2013, p. 18,
tradução nossa)25

Diante disso, permite-se conceber que o poder e a moralidade humanitária não estão dis-
tantes um do outro. Em absoluto. O conhecimento moral produzido revela-se adstrito às praticas
dominantes, pois o campo de produção pressupõe e constitui ao mesmo tempo relações de poder:
“Não há relação de poder sem a correlativa constituição de um campo de conhecimento, nem
qualquer conhecimento que não pressuponha e constitua ao mesmo tempo relações de poder.”
(FOUCAULT, 1979, p. 27, tradução nossa)26.
Portanto, revela-se outro paradoxo quanto à oposição de poder e moralidade. Destaca-se,
atualmente, a mesma dialética entre Direitos Humanos e soberania, bem como, império e cosmo-
politanismo.
O curso da humanização não se opôs a dominação e concentração de poder, que se deu na
ocupação da colônia, sua libertação e consequente inclusão no âmbito internacional como esta-
do-nação. Da fala de Robert Cooper, consultor do governo britânico, podemos perceber o viés do
imperialismo pós-moderno:

O que é necessário, então, é um novo tipo de imperialismo, um aceitável para o


mundo de direitos humanos e valores cosmopolitas. Já podemos discernir o seu
contorno: um imperialismo em que, como tudo o imperialismo, tem por objetivo
trazer ordem e organização, mas que repousa hoje sobre o princípio do voluntariado
(COOPER, 2002, tradução nossa)27.

23 Questiona Lynn Hunt acerca do paradoxo de autoevidência desses direitos: “(...) afirmação de autoevidência,
crucial para os direitos humanos mesmo nos dias de hoje, dá origem a um paradoxo: se a igualdade dos direitos é tão
autoevidente, por que essa afirmação tinha de ser feita e por que só era feita em tempos e lugares específicos? Como
podem os direitos humanos são universais se não são universalmente reconhecidos?” (HUNT, 2009, p. 18)
24 Para Derrida, o État Voyou, Rogue State, ou Estado Vadio é: “(...) o Estado que não respeita os seus deveres de Estado
diante da lei da comunidade mundial e as obrigações do direito internacional, o Estado que ultraja o direito – e que
troca do Estado de direito.” (DERRIDA, 2005, p. 33) E, o que poderia ser uma surpresa, mas não é, que segundo Der-
rida os Estados Unidos da América é o maior Rogue State, afinal exerce a razão do mais forte em oposição ao discurso
prevalente, quando não contempla seus interesses.
25 For a judicious witness to the vicissitudes of the human rights saga they are not simply “a Western concept”. As
historical evidence shows, the Occident has been also an enemy―the deadliest?―to their existence. As much as the
West has produced treatises, manifestos and legal documents that enshrine rights, the Occident has also been the
perpetrator of large scale and unspeakable crimes such as that of colonialism―an age long “violation of human righ-
ts”―as well as the Nazi atrocities. (BARRETO, 2013. p. 18)
26 “There is no power relation without the correlative constitution of a field of knowledge, nor any knowledge that
does not presuppose and constitute at the same time power relations.” (FOUCAULT, 1979, p. 27)
27 What is needed then is a new kind of imperialism, one acceptable to a world of human rights and cosmopolitan
values. We can alerady discern its outline: an imperilism which, like all imperialism, aims to bring order and organi-
sation but which rests today on the voluntary principle.(COOPER, 2002)
95
Esse voluntarismo é o elemento simbólico capaz de permitir o controle e vigilância da liber-
dade, temos a manifestação de poder simbólico para a representação de mundo, característico da
experiência dóxica:

O poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confir-
mar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo po-
der quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força
(física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exercer se
for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (BOURDIEU, 2006, p.14)

Dito isto, não quer dizer que sejam eliminados conflitos, de maneira alguma, averígua-se
que a operacionalidade atual dos Direitos Humanos não afasta a guerra das relações de poder,
mas, conduzem a produção de insopitáveis conflitos que são dissimulados em seu poder simbóli-
co.28 Muito embora, retire-se o véu de completude do direito sobre as relações sociais, através da
normatividade internacional e roupagem jurídica do constitucionalismo:

(...) a alegação de que as relações de poder podem ser plenamente traduzidas para
a linguagem da lei e dos direitos nunca foi totalmente digna de crédito e agora está
mais esfarrapada do que nunca. Estamos sempre enredados em relações de força e
reagimos às exigências do poder que, como Foucault argumento convincentemen-
te, são colocadas em prática e estão disfarçadas em formas jurídicas (DOUZINAS,
2007, p. 25).

Trata-se de problema observado por Rancière quando da exclusão da “parte que não tem
parte” (RANCIÈRE, 1996).
Por exemplo, para ilustrar o papel do científico na manifestação dominante na contempora-
neidade, traz-se a recente situação dos índios guarani-kaiowás na sociedade brasileira, o que nos
revela a expansão do controle pela inclusão humanista, em que “a vigilância assimétrica tende a
gerar o papel do “educador”, e não a de um de mero expert em coerção (embora os dois papéis
não estejam obrigatoriamente em oposição)” (BAUMAN, 2010, p. 74).
Contrariamente a história produzida pelo homem europeu29, pugna-se por retirar o polo
discursivo do centro europeu, e atentar aos aspectos marginalizados pela história incorporada em
busca de um resgate crítico das práticas anticolonialistas desses direitos. Pois, não se pode almejar
o idealismo de um retorno às origens, mas, resistência à violência e institucionalização presente.
Nesse sentido, aponta-se aspecto do processo colonial espanhol na América latina, o debate
Las Casas e Sepúlveda30, que nos permite compreender os métodos de operacionalização da ideo-
logia dominante. Atenta-se, ao aspecto excludente do universalismo, pois é capital para o direito
tornar algo absoluto e depois estabelecer seus limites31.

28 Ao ser avaliado o cenário recente, com os eventos de nossa época suportados pelo humanismo que se concebe
fazer relação com a mácula colonialista: a) o catálogo de direitos humanos para exportação; b) imposição dos ideais
democráticos; c) legitimação do soberano nos estados-nação; d) noção de guerra justa; e) combate ao terrorismo;
f) modelo de economia capitalista; g) demonização do comunismo; h) guerras neocoloniais no oriente médio; i) os
embates étnicos na África; j) guerra de Kosovo; Iraque; Afeganistão k) guerra do Vietnã; l) financiamento das milícias
africanas; m) desenvolvimentismo nuclear e exploração do petróleo; n) dumping social; o) o controle das fronteiras
e imigração; p) ajuda humanitária; q) mercado financeiro; r) proliferação das multinacionais e exportação de bens;
dentre outros.
29 Na pós-modernidade prevalece à formalização por um conjunto de experts (eurocêntricos), nas palavras de Boa-
ventura de Sousa Santos: A hegemonia do conhecimento-regulação significou a hegemonia da ordem, enquanto for-
ma de saber, e a transformação da solidariedade – a forma de saber do conhecimento emancipação – numa forma de
ignorância (...). (SOUSA SANTOS, 2000, p. 119) Veremos, no momento pertinente, como o campo científico define
o espaço regulador em oposição a qualquer possibilidade de emancipação.
30 Importante situar o momento de Bartolomé de Las Casas (1484-1566); Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1565);
bem como, Francisco Suárez (1548-1617); Francisco de Vitoria (1483-1546) que serão mencionados em breve.
31 Referência ao texto de Enrique Dussel, intitulado “Las casas, Vitoria and Suárez, 1514-1317” que integra a obra:
96
Ginés de Sepúlveda concebeu que o colonizado deve ser dizimado e sacrificado por seus
próprios males, por ser inumano e representar o mal, tem de ser extirpado. Para ele, a sujeição dos
indígenas é justa, pois implica na própria preservação dos ideais cristãos e condução do processo
civilizatório da humanidade. (cf. DUSSEL, 1993)
Em oposição, Bartolomé de Las Casas professou crítica ao método de Encomienda (sub-
missão dos indígenas a ordem religiosa através da escravidão para salvação de suas almas), pois
reconheceu a importância da catequização, de submissão aos ideais europeus e cristãos sem a vio-
lência que segundo ele iria extirpar a possibilidade de humano dos indígenas. (LAS CASAS, 1986)
Ainda com base na concepção de direito natural, pois o indígena possui liberdade para
aquiescer ou não os direitos naturais. De tal forma, a imposição de violência física não implicava
na promoção dos ideais cristãos, mas ao uso desmedido da força que conduz à sujeição do outro.
Entretanto, apesar dessa abertura para a não aceitação, as tribos indígenas não deixaram de
ter selvagens inferiorizados, consequentemente, sujeitos a inclusão no discurso humanista para
adoção da imagem do europeu. Conforme vimos, em Las Casas, não pela força impositiva das
armas.
Conclui-se, que, cada qual, mostrou-se servível a agregar o ideal humanista europeu. Muito
embora, caiba destacar o manifesto contrário à violência física sem limites de Las Casas e a pos-
sibilidade de consideração da alteridade. Muitos referenciam tal posicionamento como a primeira
grande crítica à modernidade. (cf. WALLERSTEIN, 2007)
Cabe mencionar também, Francisco de Vitória, com a concepção universalista através da ra-
cionalidade dos direitos naturais, capaz de justificar a sujeição e exclusão do indígena no domínio
do estado moderno. Ao justificar o indígena tão somente quando reconhecida “sua” humanidade
pelo discurso racional. Nesse sentido, conferiu aporte à ordem universal, na qual os direitos tem
relação com as construções ideológicas prevalentes.
Não seria absurdo, compreender a dilação de Vitória em suporte da formação da lei interna-
cional e promoção dos direitos naturais pelos europeus, pois, todo um plexo de relações de explo-
ração e expansionismo econômico passou a ser legitimado na jurisdição internacional.
A partir disso, faz-se ligação histórica dos eventos coloniais aos Direitos Humanos, pois o
exercício de violência e operacionalidade das instituições preserva ambos os métodos de tratativa
para com o subalterno. Às vezes com uma violência corporal, ou, através da submissão institucio-
nal e simbólica, conjugadas em nome dos Direitos Humanos.
Sem esquecer-se do dever de genealogia, em contraposição a história produzida pelo homem
europeu, pugna-se por retirar o polo discursivo da razão eurocêntrica, e atentar aos aspectos mar-
ginalizados pela história incorporada em busca de um resgate crítico das praticas anticolonialistas
desses direitos.
Dito isto, faz-se a ligação histórica dos eventos coloniais através da percepção de contexto
social que suplanta as praticas particulares, as quais, foram capazes de resultar na hegemonia
dos Direitos Humanos: “(…)Na medida em que essa conexão é feita, é evidente que a teoria he-
gemônica dos direitos humanos é o fruto de uma perspectiva particular fundamentada em um
contexto histórico e geográfico.” (BARRETO, 2013, p. 05, tradução nossa)32
Walter Mignolo, ao conceber o conceito de geopolítica do conhecimento impele seja deixa-
do de lado o foco na origem da verdade, pois se dá nas relações de poder e conhecimento, necessá-
ria à percepção dos rastros históricos das construções de verdades. Anuncia José-Manuel Barreto:

A geopolítica do conhecimento é uma epistemologia contextualista na medida em


que encontra na política e na história os fundamentos para o conhecimento. No
entanto, a geopolítica do conhecimento não busca localizar a fonte de “verdade” em
um quadro sócio-econômico com as implícitas fronteiras nacionais, mas no meio
da história do mundo moderno considerada como um todo - se afasta da história do
capitalismo mundial, ou, o que é o mesmo, imperialismo moderno, ou seja, a his-

“Human Rights from a Third World Perspective: Critique, History and International Law”, organizada por José-Ma-
nuel Barreto.
32 (…) such a connection is made, it is evident that the hegemonic theory of human rights is the offspring of a parti-
cular perspective grounded on a historical and geographical context.”(BARRETO, 2013, p. 05)
97
tória das relações entre impérios e colônias desde o final do século XV (BARRETO,
2013, p. 03, tradução nossa)33.

Há de se pontuar que a secção temporal colonialista abrange uma tradição de cinco séculos:

(...) desde o início da modernidade, em momentos e lugares diferentes, as ideias de


direitos naturais e direitos humanos têm sido aproveitadas pelos povos colonizados
a se opor ao imperialismo e aos abusivos regimes nacionais, empreendimento cul-
tural e político que já constitui longa tradição de cinco séculos (BARRETO, 2013,
p. 19, tradução nossa)34.

A mencionar, a conquista da América como marco divisor da modernidade para o descolo-


nialismo, em contrariedade a cronologia acadêmica tradicional (que enaltece o contexto intraeu-
ropeu, renascimento, as revoluções liberais…): “Um dos princípios fundamentais da historiografia
dos direitos neste horizonte de compreensão é a ideia segundo a qual a história dos direitos hu-
manos na modernidade começa com a conquista da América.” (BARRETO, 2013, p. 20, tradução
nossa)35.
Com ênfase em perspectiva das praticas intermitentes a partir do processo de colonização
busca-se demonstrar as origens coloniais dos Direitos Humanos.
É por isso que se tem por necessário opor-se ao que foi construído, ao homem europeu dos
Direitos Humanos que há em cada um dos colonizados, resultante do processo de colonização:

Assim a Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou classes e por vezes


racismos, tentou por todos os meios provocar e incrementar a estratificação das
sociedades colonizadas. Fanon não dissimula nada: para lutar contra nós, a antiga
colônia deve lutar contra ela mesma. (SARTRE, 1968, p. 06)

Destaca-se, o contexto revolucionário em San Domingo no Haiti concomitante à Revolução


Francesa, na obra “Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos”
escrito por C. L. R. James.(C.L.R., 2000) Tal evento antecedeu a tão cultuada Revolução Francesa.
Não é novidade, Frantz Fanon fez minuciosa leitura do processo de colonização dos países
africanos, principalmente da Argélia, ao iniciar sua obra:

O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos. Sem dúvida é supér-


fluo, no plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e cidades
européias, de escolas para indígenas e escolas para europeus, como é supérfluo
lembrar o apartheid na África do Sul. (FANON, 1968, p. 27)

Em consequência dessa discrepância tem-se a repercussão da imagem do ser no outro,


constrói-se o europeu de cada colonizado, são os “frankensteins” criados pelo colonialismo:

O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria,

33 The geopolitics of knowledge is a contextualist epistemology in as much as it finds in politics and history the grou-
nds of knowledge. However, the geopolitics of knowledge does not locate the source of “truth” in a socioeconomic fra-
mework with implicit national borders, but in the milieu of the history of the modern world considered as a whole—it
departs from the history of world capitalism or, what is the same, modern imperialism, in the history of the relations
between empires and colonies since the late Fifteenth century. (BARRETO, 2013, p. 03)
34 (…) since the very beginning of modernity, at different times and in different places, the ideas of natural rights
and human rights have been seized upon by colonized peoples to oppose imperialism and abusive national regimes, a
cultural and political endeavor that already constitutes a five centuries long tradition. (BARRETO, 2013, p. 19)
35 One of the key tenets of the historiography of rights in this horizon of understanding is the idea according to which
the history of human rights in modernity starts with the Conquest of America.”(BARRETO, 2013, p. 20)
98
um olhar de inveja. Sonhos de posse. Tôdas as modalidades de posse: sentar-se à
mesa do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher dêste, se possível. O
colonizado é um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar, constata
amargamente mas sempre alerta: “Êles querem tomar o nosso lugar.”: É verdade,
não há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se instalar no
lugar do colono. (FANON, 1968, p. 29)

A divisão sequer é mascarada no colonialismo, Fanon constata que a infraestrutura econô-


mica é igualmente uma superestrutura, isto porque: “A causa é conseqüência: o indivíduo é rico
porque é branco, é branco porque é rico. (...) A espécie dirigente é antes de tudo a que vem de fora,
a que: não se parece com os autóctones, “os outros”.”(FANON, 1968. p. 30)
De igual maneira, Aníbal Quijano, quando trata da situação da anglo-américa: “(...) isto foi,
acima de tudo, através de uma associação quase exclusiva de brancura com os salários e, é claro,
com as posições de maior grau na administração colonial” (QUIJANO, 2008, p. 537)36.
Logo, há que se fazer uma relação com a necessidade de questionar o colonialismo para
além do limite territorial, tanto é, que, a divisão de fronteiras, ante a consequente independência
da colônia, não afasta sua herança maldita.
Para que se permita romper com esse plexo dominante é imprescindível questionar a histó-
ria hegemônica, aquela que foi produzida pelo vencedor, o europeu: “O colono faz a história. Sua
vida é uma epopéia, uma odisséia. Êle é o comêçoabsoluto: “Esta terra, fomos nós que a fizemos”:
É a causa contínua: “Se partirmos, tudo estará perdido, esta terra regredirá à Idade Média”. (...)
O colono faz a história e sabe que a faz.” (FANON, 1968, p. 38)
A gênese dos processos históricos de colonização nos revela que a exploração inicial de
matéria prima, a humilhação e continua submissão do colonizado durante a ocupação territorial
não se mantém, visto que as práticas violentas conduzem a deturpações do sistema inicialmente
infirmado (FANON, 1968, p. 50).
Tais práticas implicam em uma insatisfação generalizada, capaz de deflagrar movimentos de
oposição ao regime colonial. Em resposta, o País colono sagra pela contenção violenta, até certo
ponto.
Portanto, quando o regime colonial e a escravização local não mais se sustenta, o colono vê
uma alternativa econômica viável na transição colonial, que resultou na autonomia territorial da
colônia:

O capitalismo, em seu período de: desenvolvimento, via nas colônias uma fonte
de matérias-primas que, manufaturadas, podiam espalhar-se no mercado europeu.
Depois de uma fase de acumulação do capital, impõe-se hoje modificar a concepção
da rentabilidade de um negócio. (FANON, 1968, p. 38)

Em detrimento dos auspícios econômicos e êxito do projeto de dominação, tem-se o térmi-


no do massacre37:

Pobre colono: eis sua contradição posta a nu. Deveria, dizem, como faz o gênio,
matar as vítimas de suas pilhagens. Mas isso não é possível. Não é preciso também

36 “(...) This was, above all, through a quasi-exclusive association of whiteness with wages and, of course, with the high-order positions in
colonial administration.” (QUIJANO, 2008, p. 537)
37 A relação entre a viabilidade econômica e os processos e dominação, fazem parte de uma leitura conjugada das
práticas coloniais, na América vê-se a tratativa conferida ao indígena, tanto é que: “Quando Cortez deve dar sua
opinião acerca da escravização dos índios, encara o problema de um único ponto de vista: o da rentabilidade do ne-
gócio(...).” (TODOROV, 2011, p. 189). Afinal, a própria existência do indigenato passou a ser afetada: “Lembraremos
que em 1500 a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas.
(…) Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me,
não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de 90% ou mais), mas também absolutos, já que estamos
falando de uma diminuição da população [nativa] estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes
massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatombe.” (TODOROV, 2011, p. 192).
99
que as explore? Não podendo levar o massacre até ao genocídio e a servidão até ao
embrutecimento, perde a cabeça, a operação de desarranjo e uma lógica implacável
há de conduzi-la até à descolonização. (SARTRE, 1968, p. 06)

Até porque, em dado momento, é insustentável a fruição lucrativa do colono durante a ocu-
pação, em meio a inúmeras atrocidades e à submissão do colonizado, tal processo de dominação
que impele força física foi deixado de lado:

Por esse motivo os colonos veem-se obrigados a parar a domesticação no meio do


caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Derrotado, subali-
mentado, doente, amedrontado, mas só até certo ponto, tem êle, seja amarelo, negro
ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão,
que vive de nada e só reconhece a força. (SARTRE, 1968, p. 06)

A denotar que, em regra, apesar dos esforços conduzidos pelo povo dominado, não conse-
gue alcançar a ruptura com o sistema de exploração, mas contemporizações.
Mas o que permite a aceitação dessa transposição à independência de forma “harmôni-
ca”?! O resultado da própria construção do colonizado como espelho distorcido do europeu, com
o desejo de assumir sua posição:

Prevalece a crença de que os povos europeus atingiram um alto grau de desen-


volvimento em conseqüência de seus esforços. Provemos então ao mundo e a nós
mesmos que somos capazes de iguais realizações. Êsse modo de colocar o problema
da evolução dos países subdesenvolvidos não nos parece justo nem razoável (FA-
NON,1968, p. 76).

Segundo Quijano o posicionamento do dominante diante da exploração laboral e da produ-


ção tem relação com o interesse do capital e os gastos realizados na escala de um mercado global,
ao englobar os institutos da escravidão, servidão, trabalho assalariado, dentre outros. Em oposição
à linearidade tradicional, não se pode considerar tais formas de controle do trabalho como inte-
grantes de uma cadeia progressiva da história civilizatória, devem ser considerados no momento e
contexto de sua implementação (QUIJANO, 2008, p. 537)38.
Todas essas foram implementadas conjuntamente na América para cumprir com o interesse
do capitalismo e às exigências do mercado global:

Escravidão, na América, foi deliberadamente estabelecida e organizada como uma


ordem de comodidade para produzir bens ao mercado mundial e para servir aos
propósitos e necessidades do capitalismo. Da mesma forma, a servidão imposta aos
índios, inclusive a redefinição das instituições da reciprocidade, foi organizada a fim
de servir os mesmos fins: produzir mercadorias para o mercado global. A produção
independente de comodidade foi estabelecida e expandida para os mesmos fins
(QUIJANO, 2008, p. 550, tradução nossa)39.

Dessa forma, o controle de labor tem relação com o modelo de poder, desde o colonialismo
até o capitalismo globalizado, veremos que a colonialidade persiste nas relações de dominação:

38 Na colonização da América, a dizimação dos indígenas conduziu a um momento de insustentabilidade do regime


estabelecido e dos métodos de colonização, o que levou ao término dos regimes da encomiendas, para a servidão. (cf.
QUIJANO, 2008, p. 538)
39 “Slavery, in America, was deliberately established and organized as a commodityin order to produce goods for the
world market and to serve the purposes and needs of capitalism. Likewise, the serfdom imposed on Indians, including
the redefinition of the institutions of reciprocity, was organized in order to serve the same ends: to produce merchan-
dise for the global market. Independent commodityproduction was established and expanded for the same purposes.”
(QUIJANO, 2008, p. 550)
100
No processo histórico de constituição da América, todas as formas de controle e
exploração de trabalho e da produção, bem como o controle de apropriação e distri-
buição de produtos, girava em torno da relação entre capital e salário e do mercado
mundial. Estas formas de trabalho incluído escravidão, servidão, pequena produção
mercantil, regime de trocas, e os salários. Em tal assembléia, cada forma de contro-
le do trabalho não era uma mera extensão de seus antecedentes históricos. (...) pois
não foram deliberadamente estabelecidas e organizadas para produzir mercadorias
para o mercado mundial; (...) e nem se limitaram a existir simultaneamente no
mesmo espaço/tempo, mas cada um deles foi também articulada ao capital e seu
mercado (QUIJANO, 2008, p. 536, tradução nossa)40

Mantém-se, o êxito colonialista:

O bem-estar e o progresso da Europa foram construidos com o suor e o cadáver dos


negros, árabes, índios e amarelos. Convém que não nos esqueçamos disto. Quando
um país colonialista, coagido pelas reivindicações de independência de uma colô-
nia, proclama diante dos dirigentes nacionalistas: “Se querem a independência,
ei-la, voltem à Idade Média”, o povo recém-emancipado tende a aquiescer e aceitar
o repto (FANON, 1968, p. 77).

E, o que parecia para os colonizados um processo de independência capaz de romper os


laços com o colono, em razão do domínio econômico que conduz a impossibilidade de disputa com
o antigo mundo, logo, “a apoteose da independência transforma-se em maldição da independên-
cia.” (FANON, 1968, p. 77).
Então, após a “libertação” dessas colônias, os Países têm suas práticas econômicas restritas
a disputa de restos, explico. Estão aptos a explorar seus produtos locais resultado dos métodos de
produção ultrapassados com relação ao país colono, que, permite-se lucrar com o fato de que: “a
economia nacional do período da independência não é reorientada.” (FANON, 1968, p. 127).
Sempre passos atrás, essa atividade econômica desenvolve-se para a migração forçada e a
urbanização, tendo por base, praticas indesejáveis de serem realizadas no território das potências
imperialistas, o que conduz a uma massa de explorados sem qualificação técnica e condições de
vida precárias ante a exploração dos detentores de capital.
A concluir que as praticas dominantes do imperialismo também estão presentes no âmbito
do estado-nação fruto do processo de colonização. Destaca-se, o papel da burguesia colonizada41
resultante da transferência de ordem neocolonialista:

Como vemos, não se trata de uma vocação de transformar a nação, mas prosaica-
mente de servir de correia de transmissão a um capitalismo encurralado na dis-
simulação e que ostenta hoje a máscara neocolonialista. A burguesia nacional vai
deleitar-se, sem complexos e com tôda dignidade, no papel de procuradora da bur-

40 “In the historical process of the constituion of America, all forms of control and explotation of labor and produc-
tion, as well as the control of appropriation and distribution of products, revolved around the capital-salary relation
and the world market. These forms of labor included slabery, serfdom, petty-commodity production, recirpocity, and
wages. In such na assemblage, each form of labor control was no mere extension of its historical antecedents. (...) they
were deliberately established and organizaed to produce commodities for the world market; (...) they did not merely
exist simultaneously in the same space/time, but each one of them was also articulated to capital and its market.”
(QUIJANO, 2008, p. 536)
Ou seja, os índios continuaram a ser a mão-de-obra controlada, inferiorizados com relação ao europeu. Mas, em tal
momento apenas passaram a fazer jus a salários. Inclusive, inferiories aos brancos em atribuições que não eram de
seu interesse realizar como detentor do capital desenvolver.
41 Cabe noticiar a profusão de ditaduras no leste, na Ásia, com a reprodução dos modelos ocidentais: “A violência
liberada pelo colapso do comunismo foi outra vez contida pelos novos governos e pelas novas máfias no leste, que têm
a mesma aparência dos governos e das máfias do Ocidente.” (DOUZINAS, 2007, p. 25) Faz-se referência ao filme
“The act of killing”, documentário que retrata a situação na Indonésia, com a perseguição ao comunismo e a formação
das ditaduras.
101
guesia ocidental (FANON, 1968. p. 127).

Não é de se espantar, a diversão “censurada” nos países colonizados42:

Se se deseja uma prova dessa eventual transformação dos elementos da bur-


guesia ex-colonizada em organizadores de parties para a burguesia oci-
dental. vale a pena evocar o que se passou na América Latina. Os cassi-
nos de Havana, do México, as praias do Rio, as meninas brasileiras, as
meninas mexicanas, as mestiças de treze anos, Acapulco, Copacabana, são
,estigmas dessa depravação da burguesia nacional (FANON, 1968, p. 128)43.

A hipótese é de que o humanismo tem relação com a divisão de mundo pelo racionalismo
moderno, em que a matriz colonial revela a sujeição do outro aos padrões prevalentes, para tanto
é invisibilizado e legitimada sua exclusão. Afinal, o negro; o índio; o nativo; o escravo; o pobre; o
estrangeiro; o homossexual; a mulher; não são pensados pela noção central de sujeito de direitos,
qual seja, o homem europeu.
É por isso tudo, que, na tentativa de descolonização não se pode desconsiderar a espúria
condição dos países em razão da colonização, adverte Fanon quanto à cautela a ser tomada para
evitar a ilusão de que tais práticas foram ultrapassadas:

A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico, isto é, não pode ser com-


preendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna transparente para si
mesma senão na exata medida em que se faz discernível o movimento historicizan-
te que lhe dá forma e conteúdo (FANON, 1968. p. 179).

A referida obra analisada do autor trata de manifesto capaz de revelar os perigos dos diver-
sos mecanismos e operacionalizações hábeis a sustentar o sistema imperialista, que se expandiu,
conforme esse escrito, ao discurso hegemônico de Direitos Humanos. É, a partir da crítica à
concepção universalista da modernidade e ao colonialismo, que se permite analisar as violações e
exclusão promovida pelo humanismo dos Direitos Humanos.

4. CONCLUSÃO
Destacou-se, no presente artigo, o posicionamento crítico de Costa Douzinas acerca dos
Direitos Humanos, pois, sofreram uma mutação de uma possível defesa contra o poder para a mo-
dalidade de suas operações, que não se reconhece como tal, pois, sucedem ao fim da história, e,
apesar de não possuírem um significado comum, unificam as mais díspares pessoas e instituições
na ordem global. Os Direitos Humanos tem origem particular no âmbito Europeu, mas almejam
atingir submissão de forma universal com a doxa.
Percebe o autor, um cinismo pós-moderno visto que esses valores estão em contínua dis-
crepância com as praticas que legitima, é patente, à disparidade entre o discurso simbólico e a
realidade vivenciada.
Em contrariedade a tradição eurocêntrica, apontou-se a perspectiva descolonialista em
análise do poder geopolítico na produção desses direitos, perceptível na obra de José-Manuel Bar-
reto, dentre outros.
Propõe-se, a partir de investigação histórica, demonstrar a experiência doxa infirmada nes-

42 Praticas vedadas nas potências civilizadas, são escancaradas nas áreas oriundas do processo de colonização (pros-
tituição, exploração sexual, uso de drogas, festas...), é o paraíso do pecado para os moradores do céu. (cf. FANON,
1968, p. 160/189)
43 Em específico, a fruição do empresariado dos Estados Unidos na América latina: “Atenda uma vez convém ter
diante dos olhos o espetáculo lamentável de certas repúblicas da América Latina, Com um simples bater de asas,
os homens de negócios dos Estados Unidos, os grandes banqueiros, os tecnocratas desembarcam “nos trópicos” e
durante oito a dez dias afundam-se na doce depravação que lhes oferecem suas “reservas”. (FANON, 1968. p. 128)
102
ses direitos que se estendeu aos Países de terceiro mundo. Assim sendo, abandonou-se a crença
incorporada nas práticas ditas civilizadas.
Fez-se análise do relato historiográfico de Frantz Fanon acerca das diversas etapas do pro-
cesso de colonização, em meio ao projeto imperialista de dominação conduzido pelos Países Oci-
dentais.
Em oposição, busca-se romper com o plexo estruturante desses direitos, propôs-se a des-
construção conforme os escritos de Jacques Derrida.
A despeito disso, tem-se crítica comprometida em questionar as práticas ditas por civiliza-
tórias residentes na cruzada cultura inserta ao ideal racional do homem moderno. Para tanto, é
imperioso analisar os influxos das relações de poder e a violência simbólica como pano de fundo
aos Direitos Humanos. Com isso, demover o ideal humanista em remissivo a sua construção ex-
pansiva.

Verifica-se, que, os Direitos Humanos constituem a moral determinante da concepção pre-


valente em meio à formação da doxa, que tem relação imperiosa com os processos colonialistas.

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104
TEORIAS JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS: UMA ANÁLI-
SE CRÍTICA SOB A PERSPECTIVA INSTITUCIONAL

Rafael Bezerra de Souza1


Carlos Bolonha2

1. INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas a teoria do direito e a teoria constitucional têm-se debruçado na busca
persistente por um padrão decisório consensual, que represente a superação do paradigma jurí-
dico positivista, bem como, propicie a utilização de critérios interpretativos racionais, universais e
objetivos que limitem a discricionariedade judicial, ao tempo que assegure a garantia de direitos
fundamentais, a segurança jurídica e a legitimidade das decisões3.

1 Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (Rio de Janeiro-RJ, Brasil).
Pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições (LETACI/FND/
UFRJ). E-mail: rafaelbezerras@gmail.com. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Moncorvo Filho, 8, Praça da
República, Centro, 20211-340, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2 Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. (Rio de Janeiro-RJ, Brasil). Coordenador do Grupo de Pesquisa: Laboratório de Estudos
Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições (LETACI/FND/UFRJ) E-mail: carlosbolonha@direito.
ufrj.br. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Moncorvo Filho, 8, Praça da República, Centro, 20211-340, Rio
de Janeiro, RJ, Brasil.
*Este artigo fora publicado na edição n° 43, jul./dez. 2013, da Revista Direito, Estado e Sociedade, organizada pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), sendo elaborado no âmbito do Laboratório de Estudos
Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições (LETACI). São financiadores do presente trabalho o
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no âmbito da concorrência do Edital Uni-
versal nº 14/2013 (Processo nº 483289/2013-2), e a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado
do Rio de Janeiro (FAPERJ), no âmbito da concorrência do APQ-1, 2013 (Processo nº E-26/111.351/2013).
3 Como síntese deste intento teórico no sentido de desenvolver limites para a interpretação constitucional - apesar
do equívoco de parcela considerável dos juristas brasileiros – tem-se a teoria sustentada por Robert Alexy, a qual
apresenta o princípio da proporcionalidade como método de aplicação dos direitos fundamentais, estes, entendidos a
partir de uma estrutura principiológica como mandados de otimização, quando concretizados, colidem com outro(s)
direito(s) fundamental(is). Posteriormente, como resposta às inúmeras críticas recebidas, dentre elas a de Jürgen
Habermas, no sentido de inexistir parâmetro racional para o sopesamento de direitos fundamentais, o referido autor
reformulou a sua Lei da Ponderação, traduzida em fórmula de base matemática, propondo a ideia de representação
105
Seguindo esta tendência, ecoa na doutrina constitucional brasileira forte influência de teo-
rias normativas que se enquadram nas chamadas Teorias Constitucionais Contemporâneas4, es-
pecificamente o Neoconstitucionalismo e o Novo Constitucionalismo Latinoamericano, centrados
no alargamento da Jurisdição Constitucional - sob a primazia do Poder Judiciário - e no fortaleci-
mento do Poder Constituinte e na ampliação dos atores constitucionais - sob a primazia da sobe-
rania popular, respectivamente.
Em contrapartida, o Constitucionalismo Contemporâneo (HIRSCHL, 2009, p. 139)5, prin-
cipalmente a partir do começo do século XXI, vem adotando uma nova perspectiva acerca da
análise das instituições jurídicas, a qual tem sido caracterizada como Virada Institucional6. Esta
nova perspectiva metodológica considera que apesar dos teóricos constitucionalistas, em parte,
haverem procedido um importante trabalho inicial de viés institucionalista na década de 1970,
a doutrina jurídica até o momento ainda permanece em estado de cegueira quando do trato de
certas questões institucionais(SUNSTEIN;VERMEULE, 2002, p. 48)7.
Com efeito, a proposta da perspectiva institucional, típica da matriz norte-americana, lança
mão de um viés pragmático, através do qual se vislumbra a consideração comportamental e fun-
cional das instituições políticas, com foco na análise do desempenho da atividade institucional8,

argumentativa como elemento de racionalidade discursiva para fundamentar a legitimidade do Tribunal Constitucio-
nal. Cf. ALEXY, 2007, pp. 53-54; 2008, pp. 576-593.
4 O termo utilizado acima, Teorias Constitucionais Contemporâneas, deve ser entendido em referência às teorias
normativas que têm orientado a atuação das Cortes Superiores, com ênfase no fortalecimento da jurisdição constitu-
cional sensível à força normativa da Constituição, à aplicação direta de suas normas e à interpretação das leis e fatos
conforme as normas constitucionais. Estas possuem como ponto de partida a pergunta: como os juízes devem julgar?,
bem como, enfatizam o papel preponderante do intérprete no processo de interpretação-aplicação constitucional.
5 Evidenciando a transição do Estado Democrático de Direito para o chamado Estado Constitucional de Direito,
o Constitucionalismo Contemporâneo consolidou-se a partir do fim da II Guerra Mundial, possuindo como traços
marcantes: a centralidade da Constituição, a supremacia judicial, e, nos últimos anos, a ascensão, o protagonismo e a
hipertrofia institucional do Poder Judiciário no Brasil e em alguns países centrais, vislumbrando-se o desenvolvimento
de uma pretensa onda global rumo à constitucionalização (HIRSCHL, 2009, p. 139).
6 O presente trabalho adota uma abordagem institucionalista contemporânea, sem perder de vista a contribuição
das visões clássicas do Institucionalismo, desenvolvidas por Maurice Hauriou, Massimo La Torre, Santo Romano e
Carl Schmitt, considerado como Velho Institucionalismo Jurídico. Esta postura renovada, considerada como Novo
Institucionalismo Jurídico, mormente na década de 1990, possui como obras de referência: SUNSTEIN; VERMEU-
LE, 2002, p. 2. Atualmente, são obras de referência para esta teoria institucional, as seguintes contribuições, entre
outras: VERMEULE, Adrian.Mechanisms of Democracy: Institutional Design Writ Small. Cambridge, MA: Oxford
University Press, 2007; PILDES, Richard. LEVINSON, Daryl. Separation of Parties, Not Powers. Harvard Law Re-
view, Cambridge, v. 119, n. 1, 2006; WALDRON, Jeremy. The Core of the Case Against Judicial Review. The Yale Law
Journal, New Haven, v. 115, n. 1344, 2006; VERMEULE, Adrian. Judging Under Uncertainty: an institutional theory
of legal interpretation.Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006; SUNSTEIN, Cass. A Constitution of Many
Minds: Why the Founding Document Doens’t Means What It Meant Before. Princeton: Princeton University Press,
2009; POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian. The Executive Unbound: after the madisonian republic. New York: Ox-
ford University Press, 2011. Mais recentemente, VERMEULE, Adrian. The System of the Constitution. Cambridge,
MA: Oxford University Press, 2011. Na doutrina brasileira, para o entendimento da Virada Institucionalista no âm-
bito das Ciências Sociais, as concepções clássicas e contemporâneas do Institucionalismo Jurídico. Cf. CAMARGO,
M. L.; VIEIRA, J. R.; TAVARES, R. S.; RE, M. C.; CARVALHO, F. M.; PAIVA, C.; SOARES, B.; GAMA, F. A prática
institucional e a representação argumentativa no caso Raposa Serra do Sol [primeira parte]. Revista Forense, Rio de
Janeiro, v. 408, pp. 02-19, mar./abr. 2010.
7 Trata-se de importante objeto de pesquisa da Teoria Institucional, cujo foco são os processos de interpretação da
Constituição e das normas infraconstitucionais, observando-se os desdobramento dessas atividades institucionais em
um contexto jurídico-político. No trecho a seguir, Vermeule e Sunstein sintetizam o conceito de questões institucio-
nais, enfatizando os conceitos de capacidades institucionais e efeitos sistêmicos: “Here as elsewhere, our minimal
submission is that a claim about appropriate interpretation is incomplete if it does not pay attention to considera-
tions of administrability, judicial capacities, and systemic effects in addition to the usual imposing claims about
legitimacy and constitutional authority” (SUNSTEIN;VERMEULE, 2002, p. 48).
8 A compreensão da dimensão da atividade institucional sustentada pela Virada Institucional concebe que o proble-
ma da legitimidade constitucional não se limita à dimensão normativo-interpretativa, pautada em critérios de teorias
sobre interpretação, deliberação e decisão de uma Corte Constitucional, mas sim na consideração dos resultados
obtidos a partir do desempenho das diversas instituições democráticas, mediante a adequação de seus desenhos ins-
titucionais.
106
em detrimento do já extenuante debate acerca do problema da legitimidade constitucional, reali-
zado sob a dimensão normativo-interpretativa.
Assim sendo, a problemática central do presente estudo resta evidenciada na insuficiência
dos tradicionais paradigmas teórico-constitucionais para a compreensão da realidade constitu-
cional contemporânea, haja vista a negligência da dimensão prática do comportamento das insti-
tuições políticas e dos seus rebatimentos em outras esferas de interesse (jurídica, administrativa,
democrática, etc.), em face da cegueira institucional na consideração das capacidades institucio-
nais e efeitos sistêmicos.
Neste diapasão, a partir da crítica em relação às chamadas visões perfeccionistas (SUNS-
TEIN, 2006, p. 3)9, reafirma-se a necessidade de superação dos velhos dilemas dicotômicos já in-
cessantemente debatidos pela doutrina, tais como o da supremacia do Legislativo vs. supremacia
do Judiciário e das tradicionais teorias de interpretação constitucional com foco restrito à norma
jurídica.
Em face do exaurimento da corriqueira afirmação da doutrina constitucional brasileira de
que o problema da ausência de legitimidade político-constitucional das Cortes Constitucionais
pode ser suprido apenas argumentativamente e da ingênua crença de que é possível superar a
tradicional tensão entre constitucionalismo e democracia apenas a partir de sofisticações intermi-
náveis de artifícios de interpretação normativa, sustenta-se como principal hipótese que as teorias
normativas perfeccionistas, prescritivas e ideais representativas do modelo principialista de inter-
pretação-aplicação constitucional, sob os auspícios de uma suposta efetivação plena dos direitos
fundamentais, acabam por negligenciar a prática constitucional, o funcionamento das instituições
e seus processos decisórios, assim como, a própria atividade institucional, fato este que eviden-
ciaria a necessidade de substituição do critério da racionalidade argumentativa pelo da atividade
institucional no debate relacionado aos limites democráticos da jurisdição constitucional.
Discute-se, assim, a tentativa de transição de um paradigma cuja ênfase é dada na lógica
binária reducionista de supremacia do Judiciário ou do Legislativo(SILVA et al., 2010, p. 14) fo-
cada na análise de critérios de interpretação e deliberação, ou seja, na discussão de se um Poder
Constitucional deve ou não rever os atos do outro, e neste caso, a intensidade com que a revisão
deve ocorrer (SUNSTEIN;VERMEULE, 2002, p. 38), para uma abordagem acerca da atividade
institucional do ponto de vista jurídico-político, na qual se atenta tanto para o desempenho de
funções e competências infra-institucionais, quanto para a relação dialógica interinstitucional
(BOLONHA; EISENBERG; RANGEL, 2011, p. 289).
O objetivo do presente estudo é apresentar uma consideração crítica acerca das insuficiên-
cias do modelo principialista de interpretação-aplicação constitucional, característicos do Neo-
constitucionalismo e do Novo Constitucionalismo Latinoamericano, considerados aqui como sen-
do teorias normativas perfeccionistas, prescritivas e ideais, bem como, a partir da análise dessas
vertentes teóricas apontar para uma visão alternativa, amparada na Teoria Institucional, que au-
xilie na compreensão dos desenhos e mecanismos institucionais quando do processo decisório.
Por fim, cabe a ressalva epistemológica de que o fato das referidas teorias jurídicas contem-
porâneas não serem suficientemente sensíveis à dimensão institucional de interpretação cons-
titucional, não as invalidam enquanto doutrina jurídica, sendo forçoso reconhecer os avanços
alcançados no plano da eficácia normativo-constitucional dos direitos fundamentais.

2. DA SUPERAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO À “HERCÚLEA” PRINCIPIOLOGIZAÇÃO


DO DIREITO BRASILEIRO: INSUFICIÊNCIAS DE UMA ABORDAGEM PERFECCIONISTA,

9 Sunstein apresenta síntese para a compreensão de uma abordagem perfeccionista da constituição: the view that
the Constitution should be construed in a way that makes it best, and in that sense perfects it. Imagine a society—
proudly called Olympus—in which the original public meaning of the document does not adequately protect rights,
properly understood. Imagine that the text is general enough to be read to provide that protection. Imagine finally
that Olympian courts, loosened from Thayerian structures, or from the original understanding, or from minimalism,
would generate a far better account of rights and institutions, creating the preconditions for both democracy and
autonomy. In Olympus, a perfectionist approach to the Constitution would be entirely appropriate(SUNSTEIN, 2006,
p. 3).
107
PRESCRITIVA E IDEAL
A partir da segunda metade do século XX, o pensamento jurídico vivenciou a superação
histórica do Jusnaturalismo10 e o fracasso jurídico-político do Positivismo Jurídico11, ensejando
profundas reflexões acerca da discussão de um novo marco epistemológico para o Direito. Assim
sendo, a teoria do direito viu-se diante da chamada Virada Kantiana12, através da qual se eviden-
ciou uma (re)aproximação entre o direito e a moral, característica do paradigma pós-positivista13.
Considerando tal guinada principiológica do pensamento jurídico, é importante ressaltar
a influência de dois estudiosos norte-americanos na reinserção da questão moral no âmbito da
Filosofia Política e do Direito, defendendo a justiça como valor imprescindível às sociedades con-
temporâneas: John Rawls14 e Ronald Dworkin15. Em uma postura de reformulação da teoria dos
princípios desenvolvida por Ronald Dworkin desde a década de 1960, o jurista alemão Robert Ale-
xy16, a partir de uma reconstrução da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão dos anos

10 O conceito Jusnaturalismo é plurívoco, do qual decorre a existência de variadas correntes que remontam desde a
Antiguidade até os dias atuais. A menção expressa no presente trabalho faz alusão especificamente ao Jusnaturalismo
Racionalista, doutrina contemporânea ao Iluminismo e ao processo de Codificação do Direito. Para uma breve com-
preensão da “evolução” histórica do jusnaturalismo, Cf. BOBBIO, Norberto et al. 1991, pp. 655-656 e BARCELLOS,
2000, pp. 8-9.
11 Segundo Luís Roberto Barroso, o Positivismo Jurídico pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso
assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. No entanto, o fetiche da lei e o
legalismo acrítico, seus subprodutos, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados, consubstancian-
do-o em verdadeira ideologia, movida por juízos de valor, haja vista ter se tornado não apenas um modo de entender
o Direito, como também de querer o Direito. Para a análise de algumas características desta importante corrente do
pensamento jurídico, bem como suas variações, dentre elas o normativismo de Hans Kelsen. Cf. BARROSO, 2009,
p. 3-46. Para uma visão renovada sobre o Positivismo Jurídico, dissociado da ideia convencional de uma postura
essencialmente formalista na doutrina brasileira. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude
positivista? Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 15, n. 1, pp. 158-173, 2010; DIMOULIS, Dimitri. A relevância prática
do positivismo jurídico. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 102, pp. 215-253, jan./jun. 2011;
STRUCHINER, Noel. Posturas interpretativas e modelagem institucional. A dignidade (contingente) do formalismo
jurídico. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Teorias Contemporâneas de Direito Contitucional. Rio de Janeiro: Lumen
Júris, 2009, pp. 463 – 482; “A quem cabe a escolha?” Sobre a importância de distinguir os métodos alternativos de
interpretação jurídica. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 36, pp. 6-23, jan./jun. 2010. Na doutrina estran-
geira. Cf. SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. OUP: Oxford, 1991.
12 Este conceito desenvolvido por autores alemães (kantische Wende) retrata o fenômeno do retorno à influência
da filosofia de Kant, com a fundamentação moral dos direitos humanos e a busca da justiça fundada no imperativo
categórico. Cf. BARROSO, 2009, p. 28.
13 O Pós-positivismo fundamentado na ascensão dos valores, no reconhecimento da normatividade dos princípios e
na essencialidade dos direitos fundamentais propiciou a reintrodução dos ideais de justiça e legitimidade no estudo
da teoria do direito, identificou as incompletudes das concepções normativas de cunho semântico de Hans Kelsen e
de Herbert Hart e apontou para a interpretação construtivista do direito, o direito como integridade e o romance em
cadeia de Ronald Dworkin. Em contrapartida às teses positivistas – a tese das fontes do direito (teste de pedigree), da
separação entre o direito e a moral e da discricionariedade judicial – reconhece a relação intrínseca entre o direito e
a moral, a não sujeição das normas/princípio ao teste de pedigree, já que elas não se sujeitariam ao tudo ou nada e
nem poderiam ser identificadas por sua origem, mas sim por seu conteúdo ou força argumentativa, a indeterminação
do direito evidenciada na incompletude da teoria da interpretação na resolução dos chamados hard cases, onde não
haveria norma exatamente aplicável pelo juiz. Assim, ao invés de tese da discricionariedade judicial, valer-se-ia das
diretrizes e dos princípios, daí a defesa da teoria da adjudicação. Para uma esclarecedora análise dos paradigmas po-
sitivista e pós-positivista. Cf. CALSAMIGLIA, 1998, pp. 209-220.
14 Para a compreensão do pensamento de John Rawls e a ideia de justiça como equidade. Cf. RAWLS, 2000; 2002.
15 Para a compreensão da teoria dworkiniana, do debate acerca dos princípios jurídicos e a distinção em relação
às regras e a crítica à versão mais poderosa do positivismo jurídico, qual seja, a Teoria do Direito de H.L.A Hart, na
opinião do próprio Ronald Dworkin, ver o famoso artigo de sua autoria publicado em 1967, sob o título É o Direito um
Sistema de Regras?, incorporado ao capítulo 2 da obra Taking Rights Seriously e o El postscript de Hart y el sentido de
la filosofia política, capítulo 7 da obra La Justicia com toga.
16 No trecho a seguir, Juliana Neuenschwander caracteriza o entendimento de Alexy sobre princípios, regras e pon-
deração: “Para ALEXY, os princípios são obrigações de otimização, enquanto as regras têm um caráter de obrigação
definitiva. Assim, para os princípios a ponderação é a forma característica da aplicação do direito, ao passo que, para
as normas, é aplicada a subsunção”(MAGALHÃES, 1994, p. 102).
108
1970, criticou a tese de que as regras seriam aplicadas de acordo com a disjunção excludente do
tudo ou nada, logo, válida ou inválida, reformulando-a; concebeu os princípios como mandados
de otimização, associando-os à noção de proporcionalidade e ponderação/sopesamento(NEVES,
2013, p. 63) e se dissociou da tese da unidade da solução justa, que pretende oferecer uma única
decisão correta ou o melhor julgamento, que deve ser encontrada apenas pelo juiz Hércules17.
Tais doutrinas de forte apelo acadêmico e que disseminaram rapidamente o apego a valores
jurídicos suprapositivos - no qual a realização de direitos fundamentais desempenha papel central
- evidenciam uma postura de individualismo metodológico18, que tenta explicar a ação social co-
letiva através das escolhas individuais, e (retro)alimentam a aporia do tradicional paradoxo entre
constitucionalismo e democracia, agora, sobre uma nova roupagem: entre as chamadas Teorias
do Consenso, as quais argumentam que a criação de regras constitucionais básicas de uma demo-
cracia devem reger-se pela lógica do consenso, e as Teorias do Dissenso, as quais privilegiam o
princípio majoritário e até abordagens descontrutivistas/pós-modernas19.
Neste contexto, fora notória a ampla recepção pelo direito constitucional brasileiro de teo-
rias alienígenas, consubstanciada na recorrência do debate entre regras e princípios; da consti-
tucionalização do direito; dos princípios e métodos de interpretação constitucional; das técnicas
hermenêuticas de ponderação ou sopesamento e da teoria da argumentação jurídica, a maioria
delas tendo como ponto comum a aposta no protagonismo dos juízes. Sem dúvida, há uma vasta
literatura jurídica teorizando acerca destas temáticas, restando quase uma dicotomia no âmbito
acadêmico entre apoiadores e críticos, bem como certa trivialização em sua abordagem (STRECK,
2011a, p. 8)20.
Não é outra a percepção de Streck (2011a, p. 8)21 ao afirmar que o advento de uma nova
Constituição exigira novos modos de análise: no mínimo, uma nova teoria das fontes, uma nova
teoria da norma, uma nova teoria interpretativa e, fundamentalmente, uma teoria da decisão
(teoria da validade).
Como resultado, para a elaboração da análise crítica ora pretendida, cabem considerações
propedêuticas acerca da importação irrefletida e acrítica de construções teóricas desenvolvidas em
sua origem em países com experiência e cultura constitucionais e institucionais diversas da nossa,
sem a observância de apropriada recepção ao ordenamento jurídico pátrio (NEVES, 2006)22.

17 Ao invés desta teoria forte dos princípios proposta por Dworkin, Alexy defende uma tese fraca ou mitigada, a qual
aceita a existência da resposta correta, mas não concorda que ela possa ser sempre alcançada. Neste sentido, uma
teoria dos em uma ordem fraca deve observar três elementos: um sistema de condições de prioridade; um sistema de
estruturas de ponderação; e um sistema de prioridades prima facie. Cf.ALEXY, 1988, p. 146.
18 Jon Elster definiu o individualismo metodológico como “a doutrina de que todos os fenômenos sociais (suas es-
truturas e mudanças) são, em princípio, explicáveis somente em termos do indivíduo – suas preferências, objetivos
e crenças”. Cf. ELSTER, 1982, p. 453 apud HODGSON, 2007, p. 97. Sob uma abordagem neo-institucionalista,
o individualismo metodológico possibilitaria uma perspectiva reducionista do fenômeno social, pois, segundo esta
postura: a) Social phenomena should be explained entirely in terms of individuals alone, and b) Social phenomena
should be explained in terms of individuals plus relations between individuals. Assim, na visão de Hodgson, para uma
compreensão holística dos fenômenos sociais, deve-se buscar um institucionalismo metodológico, o qual foca nas
instituições e hábitos que moldam e são moldados pelos indivíduos, a partir da sua interação indivíduo-instituição.
Cf. HODGSON, 2007.
19 Como exemplo do que consideramos Teoria do Consenso, Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre
facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. Em contrapar-
tida, como exemplo de Teoria do Dissenso, Cf. WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. New York: Oxford Univer-
sity Press, 1999. O presente trabalho adota a perspectiva de Marcelo Neves, a qual caracteriza a sociedade moderna
como pautada não pelo consenso, mas pelo dissenso conteudístico decorrente de uma esfera pública pluralista, na
qual os conteúdos valorativos e as visões de mundo discrepantes se entrechocam. Cf. NEVES, 2006, pp. 148-149.
20 Streck identifica marcadamente a existência de incentivo doutrinário de três posturas ou teorias de origem es-
trangeira: a jurisprudência dos valores, o realismo norte-americano (com ênfase no ativismo judicial) e a teoria da
argumentação de Robert Alexy.
21 O respectivo autor arremata pontuando que: “nossa tradição jurídica esta(va) assentada em um modelo liberal-
-individualista (que sempre operou com os conceitos oriundos das experiências da formação do direito privado fran-
cês e alemão), em que não havia lugar para direitos de segunda e terceira dimensões. Do mesmo modo, não há(via)
uma teoria constitucional adequada às demandas de um novo paradigma jurídico” (STRECK, 2011a, p. 8).
22 Prefácio.
109
O conceito reserva do possível23-24 é o exemplo mais emblemático na prática jurídica e
constitucional brasileira da incorporação distorcida de técnicas criadas para reduzir o espectro de
discricionariedade judicial, mediante a adoção de parâmetros racionais, objetivos e pretensamen-
te universalizáveis, os quais muitas vezes reproduzem efeito inverso, mascarando procedimentos
decisórios arbitrários e voluntaristas(CABALLERO, C.; TAVARES, R.S., 2010, p. 157).
Outro aspecto importante diz respeito à exigência de ponderação ou sopesamento nos casos
de colisão entre princípios constitucionais, a qual revela a noção idealista do mandamento de pon-
deração otimizante, que somente poderia ter um significado prático se concebêssemos o juiz mo-
nológico (juiz Hércules dworkiniano25-26) ou uma intersubjetividade orientada consensualmente
para a busca de solução dos chamados hard cases, mediante argumentação racional, asseguradas
condições ideais do discurso27.
A supracitada abordagem, todavia, certamente, é de manifesta subestimação da complexida-
de constitucional em sociedades hipercomplexas, haja vista que durante o processo político-deci-
sório os indivíduos normalmente discordam a respeito dos meios de concretização das finalidades
públicas28, bem como, negligencia um dissenso estrutural29 a partir das inúmeras expectativas de
comportamento humano decorrentes das variadas possibilidades de leituras morais baseadas em
princípios(NEVES, 2013, pp. 141-142).
No que tange à racionalidade das decisões tomadas com base em princípios constitucionais
colidentes, observa-se certo caráter de falibilidade30, haja vista a possibilidade de fatos jurídicos
com características idênticas serem entendidos de maneira diversa, em face do casuísmo judicial
nas decisões de hard cases, aceito pela jurisprudência de matriz principiologista, norteada pelas

23 Referido conceito tem sua origem em construção jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e fora uti-
lizado pela primeira vez em decisão conhecida como Numerus Clausus – BverfGE 33, 303 (333), a qual tratou do
direito ao acesso ao ensino superior diante do problema da restrição do número de vagas nas Universidades Públicas.
Para uma análise mais detalhada do problema da transposição deste conceito para a prática constitucional brasileira
de forma acrítica, desvirtuando seu propósito original, com base nas realidades histórico-sociais e político-econômicas
do Brasil e da Alemanha, Cf. KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha:
os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2002.
24 De acordo com a concepção original do Tribunal Constitucional Alemão, a reserva do possível estabeleceria o que
o indivíduo pode, racionalmente falando, exigir da coletividade, no intuito de evitar exigências acima de um certo
limite básico social, cabendo ao Legislador o juízo primário. No entanto, a doutrina e jurisprudência brasileira, de
forma diversa, associa a promoção dos direitos sociais à disponibilidade de recursos orçamentários, a partir da qual
seseguem diferentes concepções ativistas acerca da possibilidade de controle judicial dos direitos sociais e das políti-
cas públicas. Cf.GONÇALVES, 2011, p. 328-329.
25 O “tipo ideal” do “juiz Hércules” é caracterizado por Dworkin como “um juiz imaginário, de capacidade e paciên-
cia sobre-humanas, que aceita o direito como integridade”. Cf. DWORKIN, 2007, p. 287.
26 Marcelo Neves propõe aproximação conceitual entre o modelo contrafactual de ponderação otimizante e a noção
de única/melhor decisão correta, defendidas respectivamente por Robert Alexy e Ronald Dworkin. Cf. NEVES, 2013,
p. 141.
27 Alexy considera que uma resposta correta para cada caso apenas poderia ser admitida se recorrermos a cinco
idealizações da teoria do discurso: a) tempo ilimitado; b) informação ilimitada; c) clareza lingüística conceitual ili-
mitada; d) capacidade e disposição ilimitada para a mudança de papéis e e) carência de pré-concepções ilimitada.
ALEXY, 1988, p. 151.
28 Waldron, considerando o dissenso como inerente ao processo decisório em sociedades pluralistas: “The specifica-
tion of social goals – to which participatory rights are supposed (on his account) [de John Elster] – is not only intensely
controversial in modern society; it is of course the primary subject matter of the very politics that participatory rights
are supposed to constitute. Those who claim participatory rights are demanding the right to participate in resolving
controversies of exactly this sort”. (…) But since people disagree about what rights we have or ought to have, the
specification of our legal rights has to be accomplished through some political process”. Cf. WALDRON, 1999, p. 243.
29 Neves identifica como fator desencadeador deste dissenso estrutural a ideia de dupla contingência, a qual evi-
dencia que em razão de controvérsias jurídicas que envolvem princípios constitucionais colidentes sempre haverá
perspectivas antagônicas, sem que se possa contar nem com o convencimento (do auditório universal) de todos os
destinatários atuais epotenciais da Constituição nem com a persuasão (do auditório particular) dos envolvidos efeti-
vamente na solução do caso. Cf. NEVES, 2013, p. 142.
30 O conceito de falibilidade é desenvolvido por Neves no esteio do conceito sistêmico de contigência, de origem
luhmanniana.
110
técnicas de ponderação/sopesamento. Na esteira deste processo decisório, decisões ad hoc tendem
a afastar, relativizar ou violar direitos e garantias fundamentais, a partir da superação das próprias
regras constitucionais por construções jurisprudenciais, constituindo severa ameaça ao Estado
Democrático de Direito.
Ainda, em face destas teorias de interpretação jurídica de cunho moral altamente complexas
e abstratas31, observam-se decisões judiciais baseadas em princípios igualmente abstratos, negli-
genciando os problemas institucionais32 relacionados ao procedimento de interpretação e concre-
tização do direito, em seu aspecto operacional, pelas múltiplas instituições estatais concretas.
No esforço de demonstrar a inutilidade e/ou limites concretos das teorias abstratas na reso-
lução de desacordos acerca do método interpretativo apropriado a concretização do texto constitu-
cional, Vermeule aponta para um sério problema destas visões contemporâneas: o típico equívoco
da tentativa de transição direta de conceitos ou premissas políticas e morais de alto nível de abstra-
ção (tais como: compromisso com a democracia, dignidade da pessoa humana, justiça, equidade,
etc.) para conclusões sobre arranjos institucionais ou abordagens interpretativas (VERMEULE,
2006, p. 13).
Com efeito, mesmo com a forçosa consideração de que pessoas razoáveis concordam com a
maioria dos princípios constitucionais33 - fato que evidenciaria certa perspectiva perfeccionista
outrora rechaçada - essa concordância no plano valorativo não necessariamente se materializa no
desenho institucional, plano prático, ou seja, o acordo sobre princípios básicos não se reflete em
um segundo nível, de maior especificidade. Em face deste gap operacional, surge a necessidade de
se buscar uma perspectiva institucional que auxilie na compreensão dos desenhos e mecanismos
institucionais quando do processo decisório.

3. NEOCONSTITUCIONALISMO34E NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICA-

31 Em um olhar crítico das teorias de interpretação jurídicas abstratas: Typically interpretive issues are debated at
high level of abstraction, by asking questions about the nature of interpretation, or by making large claims about de-
mocracy, legitimacy, authority, and constitutionalism. But most of the time, large-scale claims of these kinds cannot
rule out any reasonable view about interpretation. Cf. SUNSTEIN; VERMEULE, 2002, p. 2.
32 Acerca dos problemas institucionais. Cf. BOLONHA; EISENBERG; RANGEL, 2011.
33 Reiterando a perspectiva epistemológica supracitada, o presente estudo trabalha sob um paradigma da impossibi-
lidade de consenso sobre um determinado modelo de sociedade universalmente aplicável, haja vista que, no plano da
Filosofia Política, as sociedades contemporâneas são marcadas pela complexidade e pelo pluralismo, bem como, pela
existência de profundos “desacordos morais razoáveis” entre inúmeras “doutrinas abrangentes”. Cf. NETO, 2006.
Este entendimento, inclusive, norteou importante turnpoint na Teoria da Justiça de Rawls, ao conceber como um
dos objetivos centrais da teoria política contemporânea “compreender como é possível existir, ao longo dotempo, uma
sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e mo-
rais razoáveis, embora incompatíveis”. Cf. RAWLS, 2000. p. 25. No trecho a seguir, Kok-Chor Tan sintetizao conceito
Rawlsiano de burdens of judgments: A reasonable disagreement for Rawls is a disagreement of a particular sort. It
is a disagreement that stems from differences over deep philosophical, moral, or religious comprehensive views and
commitments. These commitments can give rise to reasonable disagreements because they involve what Rawls calls
“the burdens of judgments” concerning the epistemological and ontological status of these metaphysical, moral, and
philosophical claims, and hence are irresolvable differences. Cf. TAN, 2006, p. 90.
34 A terminologia Neoconstitucionalismo fora utilizada pioneiramente pela jurista italiana Suzanna Pozzolo durante
conferência em Buenos Aires, concebendo-o como “um certo modo antijuspositivista de se aproximar o direito”. Cf.
DUARTE; POZZOLO, 2010, p. 77. Todavia, faz-se necessária a ressalva epistemológica de que resta inconsistente
qualquer tentativa de categorizar de modo uniforme o presente fenômeno constitucional, haja vista as variadas formas
de entendê-lo e interpretá-lo já consagradas em doutrina nacional e estrangeira. Neste sentido, Miguel Carbonell, em
coletânea clássica sobre o tema, o define como Neoconstitucionalismo (s), tendo em vista as múltiplas possibilidades
de construção e constituição desse movimento. Cf. CARBONELL, 2006, p. 75. Ainda, na doutrina nacional, Eduardo
Moreira propõe classificação didática para a devida compreensão do novel paradigma: a) Neoconstitucionalismo teó-
rico; b) Neoconstitucionalismo filosófico; c) Neoconstitucionalismo político e Neoconstitucionalismo total. Cf. MO-
REIRA, 2008, pp. 21-22. Ver também sobre o tema: MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São
Paulo: Atlas, 2ª edição, 2009; SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio Pereira (orgs.). A constitucionalização do
direito – fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007; BARROSO, Luís Roberto
(org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 3ª edição revista, 2008.
111
NO35: APONTAMENTOS SOBRE OS EQUÍVOCOS DO FASCÍNIO DA DOUTRINA BRASILEIRA
No plano da teoria do direito e da teoria constitucional observou-se o disseminar do debate
em torno da constitucionalização do direito36 e do Neoconstitucionalismo37 na doutrina constitu-
cional brasileira. Em paralelo, a contextualização do atual momento político latinoamericano, a
partir de profundas mudanças sociais, políticas e institucionais vivenciadas principalmente em
países andinos (Equador, Bolívia e Colômbia), despertou o olhar acadêmico para as inovações
normativas implementadas em suas constituições, sob o conceito de Novo Constitucionalismo
Latinoamericano38.
Partindo-se da leitura dos estudos produzidos pelos professores Roberto Viciano Pastor e
Rubén Martínez Dalmau39, os quais promovem o cotejo entre o chamado Neoconstitucionalis-
mo e o Novo Constitucionalismo Latinoamericano, o presente trabalho, em face dos pontos de
aproximação entre as referidas correntes de pensamento jurídico40, considerá-las-á como teorias
normativas perfeccionistas, prescritivas e ideais, restando aplicadas a consideração crítica supraci-
tada acerca das insuficiências do modelo principialista de interpretação-aplicação constitucional.
Referido paradigma normativo tem influenciado fortemente o pensamento jurídico brasilei-
ro, evidenciando verdadeiro fascínio da doutrina nacional pela principiologia jurídico-constitucio-
nal, marcadamente, em relação à ponderação ou sopesamento entre valores, bens ou princípios;
proporcionalidade e razoabilidade e métodos de interpretação constitucional41.

35 São características desse novo paradigma constitucional elencam-se: a) a originalidade dos institutos previstos
no texto constitucional; b) a limitação da atuação do poder constituído; c) rigidez constitucional; d) o fomento à par-
ticipação popular, mediante o desenvolvimento de novos instrumentos de democracia participativa e cidadania ativa,
em revisão do modelo de democracia representativa, baseado na representação política através de partidos políticos.
Como atributo peculiar ao Novo Constitucionalismo Latinoamericano tem-se a) o reconhecimento e o empodera-
mento da população indígena, historicamente marginalizada dos processos político-decisórios, fato evidenciado na
fundação do chamado Estado Plurinacional da Bolívia, no qual as 36 etnias indígenas são reconhecidas como nações;
b) a coexistência da jurisdição Indígena Campesina com a Jurisdição Ordinária; c) a composição mista do Tribunal
Constitucional Plurinacional. Cf. VICIANO. R. P; DALMAU. R. M., 2010, pp. 24-26 e 34-35.
36 Este fenômeno também é concebido na doutrina estrangeira, nas palavras do jurista italiano Riccardo Guastini,
como impregnação da constituição no ordenamento jurídico. GUASTINI, 2006, p. 49. Na doutrina nacional é referido
por Eduardo Moreira como a invasão da constituição.
37 Moreira apresenta a seguinte síntese acerca das características da referida vertente teórica: a) a presença inva-
sora da constituição; b) o protagonismo judicial, ao invés da supremacia parlamentar; c) a revisão completa da teoria
da interpretação, da teoria da norma e da teoria das fontes do direito; d) a ênfase nos princípios e nos direitos funda-
mentais; e) a técnica da ponderação e Estado Ponderador de normas constitucionais; f) o pensar o direito no plano
da justificação/fundamentação da criação e aplicação do direito (influência da Teoria da Argumentação Jurídica) e g)
a pretensão de correção como critério racional regulador do direito. Cf. MOREIRA, 2008, p. 38-39.
38 Para uma devida análise acerca do constitucionalismo contemporâneo na América Latina. Cf.GARGARELLA. R.
& COURTIS. C. El nuevo constitucionalismo latinoamericano: promesas e interrogantes. CEPAL: Santiago de Chile,
2009; VICIANO. R. P; DALMAU. R. M. Aspectos generales del nuevo constitucionalismo latinoamericano.In: Corte
Constitucional do Equador para el período de transición. El nuevo Constitucionalismo latinoamericano. 1ª ed. Quito,
2010; YRIGOYEN. R. Z. Y. El Pluralismo Jurídico en la historia constitucional latinoamericana: de la sujeción a la
descolonización, 2010.
39 Referidos estudiosos são considerados os precursores do desenvolvimento teórico do chamado Novo Constitu-
cionalismo Latinoamericano, tendo trabalhado in loco como assessores constituintes dos processos constitucionais
do Equador, Bolívia e Venezuela.
40 Consideram-se como pontos de aproximação entre o Neoconstitucionalismo e o Novo Constitucionalismo Lati-
noamericano: a) a constitucionalização do ordenamento jurídico; b) a rigidez constitucional; c) a força normativa dos
princípios e a sua presença abundante nas constituições; d) constituições analíticas/prolixas, em razão da busca da
permanência da vontade do constituinte, face à necessidade de estabilidade institucional). Para analisar comparati-
vamente os pontos de aproximação e tensão entre, ver quadro ilustrativo constante no nosso trabalho: VIEIRA, José
Ribas; SANTOS, Fabiana de Almeida Maia; MARQUES, Gabriel Lima; SOUZA, Rafael Bezerra de; DIAS, Sérgio Bo-
cayuva Tavares de Oliveira. Impasses e alternativas em 200 anos de constitucionalismo latino-americano. RECHTD.
Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, São Leopoldo, v. 5, pp. 122-132, jul./dez. 2013.
41 Neves associa este fascínio aos processos de democratização e constitucionalização que ocorreram nas últimas
décadas do século XX, na América Latina, especialmente no Brasil, após um longo período de regimes autoritários que
retiraram liberdades civis e políticas. Cf. NEVES, 2013, p. 171.
112
Esta postura tem sido alvo de inúmeras críticas que apontam para o equívoco da consi-
deração dos princípios constitucionais e da ponderação como ultima ratio para a resolução dos
problemas constitucionais(NEVES, 2013, p. 175). Neste sentido, Silva42 identifica o sincretismo
metodológico como marca do atual estágio da discussão sobre interpretação constitucional na dou-
trina brasileira, haja vista a ausência nos estudos baseados no paradigma em questão de análises
jurisprudenciais concretas que comprovem a possível aplicação prática de métodos e princípios de
interpretação constitucional largamente difundidos na doutrina e jurisprudência brasileira.
Em contrapartida, na esteira da análise prática da correlação entre previsão constitucional -
a partir de transposição de modelos alienígenas - e resultado fático, Fábio Nadal(2006, p. 93-102),
apoiado em dados estatísticos, ao confrontar a realidade fática e a determinação constitucional
expressa sobre a educação e a saúde, assevera que não existe correspondência direta entre estas
variáveis, pois outros são os fatores que preponderam no suporte dado pelo Estado.
Ainda, no presente estudo, o autor também demonstra que o percentual de desenvolvimento
humano não tem correspondência com a natureza e a forma de organização das constituições, já
que entre os primeiros de uma lista mundial aparecem países com Constituições sintéticas, analí-
ticas, e até com Constituição histórica – caso do Reino Unido.
No mesmo sentido, estudo elaborado pelo advogado Octavio Luiz Motta Ferraz, teve por ob-
jetivo a análise dos efeitos do fenômeno da judicialização da política43 na saúde brasileira, em face
do crescimento exponencial, nos últimos anos, do número de decisões judiciais que determinam
ao Poder Público o custeio de tratamentos de saúde ou fornecimento de medicamentos com base
na aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Como resultado, concluiu-se que, a despeito da pretensa efetivação plena dos di-
reitos fundamentais advinda com a judicialização da saúde, as ações judiciais para a ob-
tenção de remédios no Brasil estão concentradas em áreas ricas e focam excessivamen-
te em tratamentos de alto custo, que não favorecem pessoas com as piores condições
socioeconômicas, bem como aumentam as desigualdades do sistema de saúde brasileiro44.
A ausência de uma conexão sólida entre a ordem normativa e a prática jurídico-constitucio-
nal evidencia a inconsistência jurídica das diversas formulações da teoria constitucional em torno
da devida relação recíproca entre prática e dogmática jurídica ou teoria do direito refletida no
abuso da utilização de princípios e na ponderação desmedida45, os quais sugerem uma equivocada
superioridade intrínseca destes sobre as regras constitucionais46.

42 Como síntese da ideia desenvolvida pelo conceito de sincretismo metodológico tem-se a adoção de catálogos de
princípios e métodos de interpretação, propostos por doutrinas e práticas constitucionais diversas – no presente es-
tudo, especificamente no caso do Neoconstitucionalismo, pode-se citar a matriz constitucional alemã, enquanto que
no caso do Novo Constitucionalismo Latinoamericano cite-se a matriz constitucional andina – e transplantados para
o Brasil como se constituíssem algo universal, não passando, muitas vezes de discussão meramente teórica, sem o
devido apego ao rigor dogmático, teórico e metodológico. SILVA, 2005, p. 182.
43 A judicialização da política é concebida por Hirschl como “o recurso cada vez maior a tribunais e a meios judi-
ciais para o enfrentamento de importantes dilemas morais, questões de política pública e controvérsias políticas”.
Cf. HIRSCHL, 2009, p. 140. Sobre as distinções entre ativismo e judicalização: TASSINARI, Clarissa. Jusridição e
Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013; BARROSO, Luis Rober-
to. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível:em: <www.oab.org.br/oabeditora/users/
revista/1235066670174218181901.pdf>. Acesso em: 15 set 2013; VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo
Jurisprudencial e o Supremo Tribunal Federal. Laboratório de Análise Jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá. 2009.
44 Ferraz afirma que “a judicialização garante a poucos, aos que têm acesso mais fácil ao Judiciário, benefícios que
o Estado não pode dar a toda a população, já que os recursos são necessariamente escassos”. Em outro estudo de sua
autoria ainda não publicado a desigualdade é traduzida em números: os cinco Estados com melhor Índice de Desen-
volvimento Humano (IDH) concentram quase 75% dessas ações em nível federal, embora representem cerca de 45%
da população do país. Ressalta que “como a taxa de sucesso dessas ações é altíssima, o privilégio dos que buscam os
tribunais não é baseado em nenhuma concepção de justiça, mas exclusivamente na habilidade de recorrer ao Judiciá-
rio - algo que os mais pobres e necessitados não possuem”. Cf. FERRAZ, 2009, pp. 33-45.
45 Streck lista mais de quarenta desses standards jurídicos, enfatizando tratar-se de resultado de construção volun-
tarista por parte de juristas descomprometidos, em sua maioria, com a deontologia do direito. STRECK, 2011b, pp.
477-489.
46 NEVES alerta para o equívoco do afastamento de regras constitucionais a partir da invocação retórica de princí-
pios, sob a pretensa observância da teoria da argumentação de Alexy citando-o diretamente: “Isso traz à tona a ques-
113
Ainda, quanto à prática-constitucional brasileira, cabe o registro de um fenômeno peculiar
a nossa realidade constitucional contemporânea, qual seja, o panprincipiologismo, caracterizado
pela utilização da ponderação como um verdadeiro princípio. Segundo Streck47, os tribunais na-
cionais fazem um uso equivocado da teoria da argumentação alexyana, utilizando-a como se fosse
um enunciado performativo, uma espécie de álibi teórico capaz de fundamentar os posicionamen-
tos mais diversos.
Por fim, ressalte-se que na própria Alemanha, berço do modelo principialista de interpre-
tação-aplicação constitucional, há indícios de que a chamada Jurisprudência dos Valores48 está
sendo paulatinamente superada(NEVES, 2013, p. 187), evidência maior de que devemos sair do
estado de deslumbramento diante daquilo que vem de fora e do “novo”, que desde há muito não
é mais novo(SILVA, 2005, p. 140).

4. A VIRADA INSTITUCIONALISTA NA TEORIA INTERPRETATIVA: UM OLHAR SOBRE OS


DESENHOS INSTITUCIONAIS DE PEQUENA ESCALA
Antes de dar início a análise da perspectiva institucional, cabe a ressalva de que o seu cres-
cente interesse dar-se-á pela unilateralidade da doutrina constitucional brasileira, mormente por
parte dos adeptos das chamadas teorias modernas da interpretação constitucional. Estas teorias
normativas acabam por ignorar debates profícuos ao desconsiderar que os debates acerca da prin-
cipiologia e metodologia de interpretação constitucional são meramente parte da questão consti-
tucional(NEVES, 2013, p. 141).
A respectiva postura revela a preocupação excessiva com uma abordagem meramente teóri-
ca, bem como o foco apenas em uma única instituição: o Poder Judiciário, desconsiderando a aná-
lise acerca do desempenho de suas funções e competências intra-institucionais (inputs) e a sua
relação dialógica interinstitucional (outputs)(BOLONHA; EISENBERG; RANGEL, 2011, p. 289).
A justificativa para a apontada insuficiência da abordagem perfeccionista, prescritiva e ideal
típicas das teorias de interpretação jurídica modernas estaria na desconsideração das chamadas
questões institucionais, haja vista sua tradicional perspectiva focada na figura do intérprete, a qual
possui como questionamento central: como determinado texto jurídico pode ser melhor interpre-
tado?, ao invés de como os juízes reais devem interpretá-lo?49.
Referida insuficiência ilustrada no estudo empírico supracitado sobre a judicialização da
saúde no Brasil reflete a cegueira institucional50, característica das teorias normativas modernas,

tão da hierarquia entre os dois níveis. A resposta a essa pergunta somente pode sustentar que, do ponto de vista da
vinculação à constituição, há uma primazia do nível das regras. [...]. É por isso que as determinações estabelecidas no
nível das regras têm primazia em relação a determinações alternativas com base em princípios”. NEVES, 2013, p.192.
47 Este conceito desenvolvido por Streck encontra-se sintetizado no trecho a seguir: “é um subproduto do neo-
constitucionalismo à brasileira, que acaba por fragilizar as efetivas conquistas que formaram o caldo de cultura que
possibilitou a consagração da Constituição brasileira de 1988. Esse pan-principiologismo faz com que – a pretexto de
se estar aplicando princípios constitucionais – haja uma proliferação incontrolada de enunciados (standards) para
resolver determinados problemas concretos, muitas vezes ao alvedrio da própria legalidade constitucional”. Cf. STRE-
CK, 2011a, pp. 11-12.
48 A tese principal da Jurisprudência dos Valores difundida no Brasil dentre outros autores por Luis Roberto Barro-
so, Ana Paula de Barcellos e Daniel Sarmento concebe que “a Constituição é uma ordem concreta de valores”, sendo
o papel dos intérpretes o de encontrar e revelar esses interesses ou valores. STRECK, 2011a, p. 10.
49 Para os referidos autores “the central question is not “how, in principle, should a text be interpreted?” The
question instead is “how should certain institutions, with their distinctive abilities and limitations, interpret certain
texts?”. Cf. SUNSTEIN; VERMEULE, 2002, p. 2.
50 São três os tipos de cegueira institucional que desconsideram à análise das instituições concretas tratados por
Vermeule: a) out-and-out philosophizing:an account of interpretation from resolutely noninstitutional premises,
particulaly high-level political concepts like “democracy”, “authority” or “integrity”or abstrations about the character
of legal language. Philosopher-lawyers like Ronald Dworkin are the paradigm here;b) stylized institutionalism:here
the interpretative theorist talks about comparative institutional competence, but in a stylized or a stereotyped way,
on the basis of abstract visions of “legislatures”, “agencies” and “courts’”. (…) In these and other versions, stylized
institutionalism proceeds by reference to conceptual claims about the essential features of legislatures, courts and
agencies, rather than by the reference to empirical claims about institutions in particular legal systems; c)asymmetri-
cal institutionalism: a distinct but related mistake is to take a cynical or pessimistic view of some institutions and an
114
especificamente, no presente estudo, do Neoconstitucionalismo e do Novo Constitucionalismo
Latinoamericano, haja vista a negligência de considerações institucionais.
Observa-se que as teorias normativas em tela focalizam a investigação do fenômeno consti-
tucional centradas no alargamento da Jurisdição Constitucional, desprestigiando a atividade pro-
priamente dita das instituições jurídico-sociais. Assim sendo, resta negligenciada a análise do
desempenho da atividade institucional, face à desconsideração das capacidadesinstitucionais e
dos efeitos sistêmicos.
Constatada a insuficiência dos tradicionais paradigmas teórico-constitucionais para a com-
preensão da realidade constitucional contemporânea e a partir da crítica em relação às chamadas
visões perfeccionistas, Vermeule aponta como modelo de estrutura e atividade institucional a ser
adotado pelo Estado Democrático de Direito o second-best democracy (aquilo que efetivamente
pode alcançado através da atividade institucional), ao invés do first-best (mera idealização da
atividade institucional), tendo em vista que as instituições no plano operacional se deparam com
limitações por elas ignoradas51.
Importante contribuição, sob viés pragmático, trazida pela Virada Institucional52, são os con-
ceitos de institutional design writ largee mechanisms of democracy53, no fito de auxiliar na com-
preensão do papel e da configuração dos desenhos e mecanismos institucionais, bem como na
construção de mecanismos que possam constituir alternativas à dicotomia supremacia do Legisla-
tivo vs. supremacia do Judiciário e às tradicionais teorias de interpretação constitucional com foco
restrito à norma jurídica, permitindo a contribuição cooperativa de outras esferas – seja de poder
político organizado, seja da sociedade.
Em análise da arquitetura institucional54 proposta pelo Neoconstitucionalismo e pelo Novo
Constitucionalismo Latinoamericano55, tem-se que ambas teorias normativas focalizam desenhos
constitucionais de larga escala, tais como: a separação de poderes, a soberania popular, suprema-
cia da constituição, etc. Ao passo que, ao contrário do paradigma de rupturas institucionais ou
profundas reformas, característicos destas práticas constitucionais, o conceito de mechanisms of
unjustifiably rosy view of others. Cf. VERMEULE, 2006, p. 16.
51 Apontando a inerência de certo grau de limitação e/ou incapacidade das instituições sociais, da qual decorreria
a temeridade para um regime democrático da atribuição de tamanho poder deliberativo a uma única instituição, haja
vista a possibilidade de verificação de efeitos sistêmicos negativos. Cf. BOLONHA; EISENBERG; RANGEL, 2011, p.
301.
52 Vermeule e Sunstein sintetizam a noção de Virada Institucional no trecho a seguir: Those who emphasize philoso-
phical arguments, or the idea of holistic or intratextual interpretations, seem to us to have given far too little attention
to institutional questions. Here as elsewhere, our minimal submission is that a claim about appropriate interpretation
is incomplete if it does not pay attention to considerations of administrability, judicial capacities, and systemic effects
in addition to the usual imposing claims about legitimacy and constitutional authority. But we have also suggested
the possibility that in constitutional law, an assessment of those issues might lead to convergence, on appropriate me-
thods, from those who disagree about what ideal judges should do. Cf. SUNSTEIN; VERMEULE, 2002, p. 48.
53 Vermeule explicita os temas relacionados ao conceito de institutional design writ large no trecho a seguir: the
debate center on massa elections, the separation of powers, federalism, and other large-scale institutional structures”.
Em contrapartida, ao relacionar o conceito de mechanisms of democracy e institutional design writ small, sintetiza-o
como “a repertoire of small-sclae institutional devices and innovations that promote democratic values against the
background of standard large-scale institutions. Cf. VERMEULE, 2007, pp. 1-2.
54 Na doutrina nacional, em uma abordagem interdisciplinar, Carvalho propõe a constituição de uma nova arquitetu-
ra institucional, que possua como pano de fundo o redimensionamento do desenho institucional do Estado brasileiro,
pressupondo-se não mais a centralidade do debate teórico na figura de um ou outro titular, mas sim, o reconhecimen-
to de que nenhum dos sujeitos constitucionais se revela, por si só, apto a solucionar profundos dissensos. Cf. CARVA-
LHO, 2004, pp. 115-126). Apontando para a necessidade de discussão de um novo arranjo nas relações institucionais
entre os Poderes Constitucionais e de uma maior participação da Sociedade Civil no processo político-decisório. Cf.
SILVA, Cecília de Almeida; MOURA, Francisco; BERMAN, José Guilherme; VIEIRA, José Ribas; TAVARES, Rodrigo
de Souza; VALLE, Vanice Regina Lírio. Diálogos institucionais e ativismo. 1°. Ed. Curitiba: Juruá, 2010.
55 Um olhar comparativo das experiências constitucionais vivenciadas recentemente nos países andinos que refe-
renciam o Novo Constitucionalismo Latinoamericano revela importantes elementos comuns, especialmente em rela-
ção à forma como organizam o desenho institucional. Neste sentido, Couso apresenta síntese “intentando identificar
el ‘hilo conductor’ que une al diseño constitucional de Venezuela, Bolivia y Ecuador, este pareciera ser la concentra-
ción del poder político en torno al Ejecutivo, de manera de dotarlo de facultades suficientes como para avanzar en
transformaciones económico-sociales profundas”. Cf. COUSO, 2013, p. 12.
115
democracy trabalha na lógica de rearranjo/rearquitetura institucional, por entender que o esforço
em identificar mecanismos já existentes, ou tentar conceber novos mecanismos, em uma esfera
mais reduzida de desenho institucional se apresenta como uma saída democrática mais estratégi-
ca e eficaz do que a alcançada com alterações em arranjos de maior escala56.

5. CONCLUSÃO
A análise das teorias jurídicas contemporâneas, a partir da Teoria Institucional, possibilita
um novo olhar, sob perspectiva holística, para a compreensão do fenômeno constitucional. En-
quanto a agenda acadêmica do final do século XX mais parece um trabalho sísifico, tão eterno
quanto inútil, uma vez que se encontrara pautada na busca persistente por um padrão decisório
consensual que representasse a superação do paradigma jurídico positivista, bem como, propi-
ciasse a utilização de critérios interpretativos racionais, universais e objetivos limitadores da dis-
cricionariedade judicial, a perspectiva institucional nos possibilita o contraste à unilateralidade
metodológico-interpretativa da constituição.
O presente estudo, nesta linha de pensamento, teve por objetivo a rediscussão do papel da
Constituição, apontando para a necessidade de rearranjo da arquitetura institucional em busca
de uma configuração adequada para as instituições democráticas, a partir da superação de tra-
dicionais concepções interpretativas e da construção de um processo político-decisório estável,
simétrico, menos ativista, mais dialógico, por parte dos sujeitos constitucionais.
No âmbito da teoria do direito e da teoria constitucional, o Poder Judiciário, sem dúvidas,
apresenta-se como um ator destacado da defesa e garantia de direitos fundamentais. Todavia, em
sociedades complexas e pluralistas não se pode atribuir estaticamente a apenas um Poder Cons-
titucional a definição do sentido da constituição, bem como desconsiderar a dimensão prática do
funcionamento e do comportamento das instituições políticas, seus processos decisórios e seus
rebatimentos em outras esferas de interesse.
Por fim, deve-se manter vigilante para que a compreensão da tarefa de investigação do papel
das instituições jurídicas e de concretização da constituição não reedite o estado de deslumbra-
mento diante daquilo que vem de fora e do “novo”, nem o debate academicista, de cunho teórico.
Apontar para os limites e as complexidades dos novos desafios para a construção de uma teoria
e práxis constitucional que fortaleça as instituições democráticas brasileiras já nos remeteria ao
pensamento do ensaísta francês R. Caillois (1946): Il n’y a pas d’efforts inutiles. Sisyphe se faisait
les muscles57.

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56 ALMEIDA; RANGEL, 2012, p. 12.


57 “Não existem esforços inúteis. Sísifo ganhava músculos” (tradução nossa). Cf. CAILLOIS, 1946.

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119
“MOVIMENTO BRASILEIRO DA EFETIVIDADE CONSTITUCIO-
NAL”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A ADOÇÃO DOS POS-
TULADOS NEOCONSTITUCIONALISTAS NO BRASIL

Flávia Santiago Lima1

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS: DA PREMÊNCIA DA AVALIAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS TEÓ-


RICOS E DA OPERATIVIDADE DOS POSTULADOS NEOCONSTITUCIONALISTAS
O constitucionalismo atual adquiriu seus contornos iniciais nos Estados Unidos do século
XIX, quando o célebre caso Marbury x Madison estabeleceu a premissa da hegemonia do texto
superior como norma estruturadora da produção do direito.
Nos países filiados à tradição romano-germânica, este modelo fortaleceu-se com a redemo-
cratização da Europa após a Segunda Grande Guerra. Além da previsão de constituições extensas,
foram concebidos os tribunais constitucionais, aptos a assegurar os valores nelas inscritos.
Diante do sucesso europeu e do fortalecimento da Suprema Corte Norte-Americana, a “re-
volução constitucional” (CAPPELLETTI, 1996, p. 14-15) irradiou-se pelo Ocidente e, juntamente
com a expansão da economia de mercado, é considerada um fenômeno mundial, a abranger dis-
tintas tradições jurídicas.
O presente texto insere-se neste debate e pretende avaliar o constitucionalismo a partir da
sua expressão teórica nos países de tradição ibérica – a festejada fórmula neoconstitucionalista,
que busca compreender – ou promover – a aceitação da preponderância constitucional enquanto
alicerce das instituições estatais, a determinar as condições de exercício do poder político.
O constitucionalismo, além de seus aspectos descritivos, parece pretender mais. Constitui-
ria um “movimento” de matizes ideológicos, teóricos e metodológicos (COMANDUCCI, 2003, p.
76), cujo objetivo é operar uma transformação da cultura jurídica, para fazer frente ao fenômeno
da constitucionalização dos ordenamentos nacionais. Intenta, ainda, avaliar as repercussões da
sua proposta na prática dos tribunais e demais atores jurídicos e até nas demais relações sociais
(GUASTINI, 2003, p. 49).

1 Doutora em Direito pela UFPE (2012). Mestre em Direito pela UFPE (2006). Advogada da União, com exercício
na Procuradoria Regional da União - 5ª Região. Professora da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
120
As contribuições dos autores identificados com o neoconstitucionalismo tiveram enorme
acolhida entre os doutrinadores brasileiros, que vislumbram na concretização de parte dos direitos
previstos na Constituição de 1988 a oportunidade de romper com a tradição de desigualdades que
caracteriza a sociedade brasileira. Não por acaso, Cláudio Pereira de Souza Neto (2003, p. 14)
observa uma mobilização jurídica e política, cujo objetivo é desenvolver mecanismos dogmáticos e
processuais para concretização do texto constitucional, ao qual denominou de “constitucionalis-
mo brasileiro da efetividade”.
Em detrimento dos louváveis objetivos deste comprometimento teórico, defende-se aqui a
necessidade de analisar a validade teórica e a operatividade dos postulados neoconstitucionalistas.
Assim, busca-se avaliar a adoção deste movimento pelos constitucionalistas brasileiros e a corres-
pondência das suas pretensões com as características do texto constitucional vigente no Brasil.

2. NEOCONSTITUCIONALISMO E SUAS VERTENTES: PRESSUPOSTOS PARA A CARACTERI-


ZAÇÃO DOS SISTEMAS JURÍDICOS CONSTITUCIONALIZADOS
A experiência constitucionalista do século XX é assentada, ao lado das perspectivas polí-
ticas e filosóficas que a nortearam, em extensa e variada produção teórica jurídica. Como visto,
nos meios acadêmicos ibero-americanos, o conjunto de teorias que intentam uma reaproximação
entre as dimensões descritiva e prescritiva na Teoria Geral do Direito (ARIZA, 2003, 164-ss) é
denominado preferencialmente de neoconstitucionalismo.
Como assevera Paolo Comanducci (2003, p. 75), os termos “constitucionalismo” e “neo-
constitucionalismo” são bastante ambíguos e se prestam a representar uma teoria e/ou ideologia
e/ou método de análise do direito, além de modelos constitucionais. Segundo o autor, o mero
uso destes sentidos mostra-se suficiente para delinear a diferença entre neoconstitucionalismo e
constitucionalismo, pois este seria uma ideologia, talvez respaldada no jusnaturalismo, mas que
não constituía uma Teoria do Direito. Tampouco exibia uma pretensão metodológica, num período
marcado pelo positivismo jurídico. Em contrapartida, o neoconstitucionalismo caracteriza-se por
esta dimensão tríplice: ideologia, teoria e metodologia.
Numa concepção preliminar, tem-se que o neoconstitucionalismo refere-se a determinados
aspectos estruturais, que repercutem numa renovada cultura jurídica. Implica, primordialmente,
numa noção forte da intervenção jurídica, e se caracteriza pela aceitação de uma “constituição in-
vasora”, que impregna gradualmente toda a legislação e acaba por transformar o sistema jurídico.
Isto porque a implementação parcial ou integral das condições necessárias para a sua realização
dá-se segundo um processo histórico que pode ser mais ou menos longo, cambiante de acordo com
o sistema jurídico estudado.
Riccardo Guastini, ao enumerar as condições que determinado sistema deve satisfazer para
ser considerado “impregnado” pela normativa constitucional, assevera a existência de condições
necessárias para esta constatação, ao lado de outras que permitem aferir a intensidade desta
constitucionalização. Assim, a previsão de uma constituição rígida e da sua garantia jurisdicional
é pressuposto indispensável. Já o reconhecimento da força normativa da constituição e a repercus-
são das instâncias judiciais no processo político denotam um ordenamento altamente influenciado
pela constituição (GUASTINI, 2003, p. 49).
No plano jurídico, os neoconstitucionalistas identificam a concepção de Estado de Direito
com o reconhecimento da supremacia constitucional, que condiciona a interpretação das demais
normas do ordenamento e determina os conteúdos da legislação ordinária2. As normas constitu-
cionais não podem ser derrogadas, modificadas ou ab-rogadas por quaisquer outros dispositivos.
A constituição possui normatividade, o que pressupõe a aceitação do seu caráter vinculante
aos poderes públicos e aos particulares. As relações jurídicas são intermediadas pelos princípios e
direitos constitucionalizados, ainda que reconhecido o alto grau de abstração.
Aceita-se, assim, o forte caráter principiológico e genérico das normas constitucionais, que

2 “Uma das perspectivas que ganha força é a da denominada “filtragem constitucional”, que reconhece a pree-
minência normativa da constituição frente às demais normas do ordenamento jurídico. Fala-se, nesta seara, numa
unidade formal do sistema, com o reconhecimento do aspecto hierárquico-normativo, como numa unidade material
ou axiológica, que remete a interpretação de qualquer instituto jurídico ao parâmetro constitucional.” (SCHIER,
2008, p. 3)
121
decorre do seu alcance mais amplo, em virtude dos objetivos colimados e dos valores nelas implí-
citos. Estas peculiaridades redundaram, inclusive, na (re)formulação de uma Teoria da Constitui-
ção, encarregada da discussão da interpretação e aplicação dos seus preceitos.
Foram exploradas as especificidades da matéria, pois os preceitos constitucionais são di-
ferentes das disposições legislativas ordinárias, ao estabelecer os fundamentos do ordenamento
jurídico (BARACHO, 1984, p. 108).
Como lembra Inocêncio Mártires Coelho (1997, p. 78), as constituições enunciam princí-
pios ou critérios gerais de valoração, e seu conteúdo depende da densificação e concretização por
parte do intérprete aplicador, que deve exercer uma atuação criativa, adequando-se às mutações
dos valores nelas expressos (CAPPELLETTI, 1992, p. 130). Constata-se, conseqüentemente, um
grande esforço da doutrina juspublicista em trazer novos elementos para a formação de uma
“Nova Hermenêutica Constitucional” (BONAVIDES, 1999, p. 258).
Defende-se que a eficácia das normas constitucionais - independentemente de sua estru-
tura ou conteúdo normativo - permite sua aplicação direta em alguns momentos, a garantir sua
efetividade sem intervenção de qualquer órgão legislativo.
A imperatividade constitucional não conferiria, a rigor, um espaço de discricionariedade
ao legislador na densificação dos seus mandamentos. Dessarte, entende-se que as deliberações
públicas – estatais ou não – estariam submetidas aos inafastáveis conteúdos constitucionais. Isto
porque os direitos fundamentais nelas previstos, que formam uma espécie de núcleo intangível
do Estado, representariam uma “esfera” do que pode ser decidido ou não, e podem “legitimar” ou
“deslegitimar” uma determinada atuação estatal.
A própria democracia, no neoconstitucionalismo, justificar-se-ia pela capacidade operacio-
nal de um determinado sistema político e/ou seu ordenamento jurídico tornar(em) efetivos os
direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2000, p. 22-25).
Ao mesmo tempo, a constituição, ao exigir esta “guarda” especial, por abrigar em seu texto
importantes decisões acerca de determinado grupo social, deve ter sua força normativa afirmada
(BARROSO, 2005), por uma jurisdição forte e adequada.
Demanda-se uma nova visão dos poderes estatais, especialmente do poder judiciário, que
passa a exercer uma função de garantia do cidadão, em contraponto aos demais - executivo e
legislativo -, ainda que estes estejam legitimados democraticamente pelas maiorias, já que seus
membros são investidos pelos processos eleitorais.
A preponderância do texto, e dos acordos nele contidos, irradia-se pelas gerações ulteriores,
que sofrem limitações nas tentativas de alterá-lo, diante da relevante rigidez nos processos de re-
forma. Para os neoconstitucionalistas, é precisamente a dificuldade de promover mudanças nas
regras que favorece e fortalece a imperatividade dos seus mandamentos (SANCHÍS, 2003, p. 101,
ss).
Esta construção teórica redunda na supervalorização do Direito Constitucional, ramo ju-
rídico que encerra, hoje, as discussões em torno da dimensão política do direito (BERCOVICI,
2003, p. 109-112). É reconhecida a insuficiência de uma teoria jurídica meramente descritiva
para entender a expansão do direito nas sociedades ocidentais, que se restringiria, nos moldes tra-
dicionais, tão-somente a reproduzir as normas jurídicas, sem atentar para seu necessário caráter
prospectivo.
Deste modo, o neoconstitucionalismo significa uma ruptura com os padrões jurídicos co-
nhecidos, e impõe uma nova visão. Como bem expõe Luigi Ferrajoli (2000, p. 23-34), um dos seus
maiores expoentes, a partir da descrição do seu parâmetro garantista para o direito,

el paradigma del Estado constitucional de derecho – o sea, el modelo garantista –


no es otra cosa que esta doble sujeción del derecho al derecho, que afecta a ambas
dimensiones de todo fenómeno normativo: la vigencia y la validez, la forma y la sus-
tancia, los signos e los significados, la legitimación formal y la legitimación sustan-
cial o, si se quiere, la “racionalidad formal” y la “racionalidad material” weberianas.

Verifica-se que, além de descrever os ordenamentos jurídicos, numa análise preponderante-


mente dogmática, o neoconstitucionalismo pretende trazer um novo método, uma nova teorização

122
do direito, que inegavelmente guarda um amparo ideológico, no sentido da defesa das potenciali-
dades da normatividade constitucional.
Diante da multiplicidade de significados da expressão e da grandiosidade deste projeto aca-
dêmico, nos próximos itens passa-se à análise de dois aspectos desta teorização: sua metodologia
(ou o conjunto de métodos que compõem esta pretensão) e sua influência ideológica.

3. PÓS-POSITIVISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO: A DEFESA DA CENTRALIDADE DOS


PRINCÍPIOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL E REDEFINIÇÃO DAS COMPLEXAS RELAÇÕES
ENTRE DIREITO E MORAL
Enquanto teorização, o neoconstitucionalismo almeja descrever as conseqüências da cons-
titucionalização, atribuindo-lhe características próprias, como a existência de uma constituição
“invasora”, a positivação dos direitos fundamentais, a “onipresença” dos princípios e regras cons-
titucionais e peculiaridades da interpretação e aplicação destas normas.
Verifica-se um certo consenso quanto aos aspectos descritivos de um ordenamento constitu-
cionalizado. Todavia, há divergências quanto à forma de abordagem destes sistemas. Como alerta
Paolo Comanducci (2003, p. 83-87), alguns entendem que o neoconstitucionalismo tem o mesmo
método – mas um objeto modificado – do positivismo; ao passo que outros autores defendem uma
mudança radical de metodologia de abordagem, diante do novo objeto de estudo.
Haveria, assim, um neoconstitucionalismo positivista de matriz italiana, mais aproximado
de um “positivismo inclusivo”, que tem como expoentes os multicitados Paolo Comanducci e
Riccardo Guastini, Susana Pozzolo e José Juan Moreso; e o neoconstitucionalismo não positivista,
respaldado na obra de Robert Alexy, que parece concentrar a maioria dos autores,como Gustavo
Zagrebelsky, Alfonso Garcia Figueroa, Santiago Sastre Ariza (MAIA, 2008, p. 7). Fala-se, por isso,
da existência de vários neoconstitucionalismos, como no título da obra que contém parte conside-
rável dos artigos citados no presente texto.
Embora alguns neoconstitucionalistas, como Luigi Ferrajoli (p. 8), concebam sua formula-
ção como o reforço ou a própria representação do positivismo em sua forma mais perfeita 3, fato
é que a maioria dos autores visualiza nesta teoria ou neste conjunto de teorias um afastamento do
positivismo tradicional (FIGUEROA, 2003, p. 164-165).
Deste modo, o neoconstitucionalismo ampara-se em variada produção teórica, que parece
convergir em um ponto: as dificuldades do positivismo metodológico – útil na formatação libe-
ral-burguesa – na compreensão dos ordenamentos permeados por um projeto moral e ideológico
diversificado. A Teoria do Direito deve aceitar os valores ínsitos às normas positivadas e a interfe-
rência dos juízos morais na interpretação. Por fim, cabe-lhe revelar o caráter preponderantemente
prático que deve nortear seus estudos (ARIZA, 2003, p. 245).
A corrente que atenta para a ineficiência do método positivista é denominada de pós-posi-
tivista e tem como uma de suas idéias-chave a superação da dicotomia direito natural x direito
positivo (BONAVIDES, 1999, p. 258). Defende, também, a normatividade dos princípios jurídicos,
que antes eram vistos como enunciados de cunho suprapositivo ou derivações da lei.
Assim, a norma jurídica pode ser geral (estabelecida para uma infinidade de atos) ou espe-
cial (rege tão-somente atos ou fatos). O princípio é geral porque comporta uma série indefinida
de aplicações.
O reconhecimento da normatividade dos princípios os situa como espécie do gênero norma
jurídica, juntamente com as regras, ocupando um papel de superioridade frente a estas. Esta é a
perspectiva adotada por Robert Alexy e Ronald Dworkin, cujos principais trabalhos são constante-
mente citados pelos autores neoconstitucionalistas.
Regras e princípios explicitam um dever ser, podendo ser formulados com a ajuda das ex-
pressões deontológicas de mandato, permissão e proibição4, sendo razões e juízos concretos

3 Interessa notar que Paolo Comanducci (2003, p. 88) entende que Ferrajoli assinala um conteúdo normativo para
a ciência jurídica, recaindo numa adesão ao neoconstitucionalismo ideológico. A ciência jurídica, ademais, abrangeria
a Dogmática Jurídica e a Teoria do Direito, que passam a exercer um papel político, incompatível com um modelo
explicativo. O modelo de Ferrajoli seria ideal, o que lhe afasta de uma abordagem teórica do direito.
4 Diversamente, Canotilho (2000, p. 1052) defende que as regras implicam em mandatos, pois os princípios teriam
123
(ALEXY, 1997, p. 83). Assim, a normatividade dos princípios está assentada na sua positividade,
vinculatividade, pois são autênticas normas, que obrigam e têm eficácia positiva – conduzem a
determinadas soluções em cada caso, segundo a finalidade perseguida - e negativa sobre compor-
tamentos públicos ou privados. Sabe-se que as decisões, regras ou mesmo subprincípios que se
contraponham a princípios serão inválidos, por contraste normativo (ESPÍNDOLA, 1999, p. 59).
Ao lado dos princípios e regras, as normas jurídicas ainda comportam uma dimensão axioló-
gica, os valores ou fins – conforme prefere denominá-los Dworkin. Osprincípios e valores são geral-
mente relacionados. Os tribunais constitucionais, quando se referem aos princípios, costumam-se
reportar aos valores e vice-versa. Afirma-se, até, que o cumprimento gradual dos princípios tem
seu equivalente na realização dos valores (DWORKIN, 1978, p. 24-25).
Princípios e regras têm métodos de interpretação específicos, a exigir a identificação dos
enunciados normativos dentre estas categorias. A doutrina principiológica encarrega-se de defi-
nir critérios de diferenciação, como o da generalidade, determinabilidade dos casos de aplicação,
remissão à idéia de direito, importância para o ordenamento jurídico, entre outras. Estes, porém,
mostram-se insuficientes na análise dos casos concretos, pois careceriam de objetividade.
Os princípios são reconhecidos como mandados de otimização, pois seu cumprimento de-
pende das necessidades reais e das jurídicas (ALEXY, 1997, p. 86). Somente os princípios possuem
a dimensão do valor. Oprincípio pode ser válido para uma determinada relação concreta, um pro-
blema legal, mas não estipula uma solução particular. E quem houver de tomar a decisão levará
em conta todos os princípios envolvidos, elegendo um deles, o que não implica na invalidade do
outro.
Assim, é o critério do peso que define a diferença entre uma regra ou princípio (DWORKIN,
1978, p. 27). A solução quando princípios estão envolvidos difere dos critérios fornecidos pela her-
menêutica tradicional, como o da especialidade ou da norma mais recente. É bastante divulgada
a afirmação de que os princípios colidem, ao passo que as regras são conflitantes.
O critério do peso exige a análise de acordo com as peculiaridades e circunstâncias do caso
concreto, estabelecendo-se entre os princípios uma relação de precedência condicionada.
As circunstâncias indicam as condições sob as quais um princípio precede o outro. Devem
ser observadas, porém, as condições sob as quais se produz uma lesão a um direito fundamental,
devendo tal fato ser evitado. Pesa, nesta hipótese, uma proibição “jusfundamental”.
A questão deve ser resolvida mediante uma lei de colisão, que coloca que as condições sob
as quais um princípio precede ao outro, constituindo o pressuposto de fato de uma regra que ex-
pressa a conseqüência jurídica do princípio precedente. Infere-se daí o caráter diferenciado prima
facie dos princípios, pois um princípio não determina como resolver a relação entre sua razão e
uma que lhe é oposta. Os princípios carecem de determinação com respeito aos seus contrapostos
e as possibilidades fáticas (ALEXY, 1997, p. 87-94). Para Dworkin (1978, p. 26-27), as regras váli-
das são aplicáveis na medida do tudo ou nada e os princípios contêm uma razão que indica uma
direção, mas não predeterminam uma decisão.
As regras também estão sujeitas às exceções, por vezes até dos princípios. Mas o fato é que
um princípio pode ser deixado de lado quando um oposto tem peso maior. Em contrapartida, isso
não acontece com a regra, que não é afastada quando o princípio que a “sustenta” é hierarquica-
mente inferior a outro princípio.
Tampouco com a suposição de uma carga de argumentação em benefício de um determina-
do princípio se equipara a seu caráter prima facie, bem como uma regra que traga esta carga de
argumentação libera o princípio da necessidade de condições de precedência. Os princípios são
razões prima facie e as regras são razões, a menos que se estabeleçam exceções, definitivas.
Tecidas estas considerações, para que diante do caso concreto seja escolhida a solução mais
justa, propõe-se o uso da máxima de proporcionalidade, que envolve a avaliação da adequação, ne-
cessidade (postulado do meio mais benigno) e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação
propriamente dita). Esta máxima de proporcionalidade, em sentido estrito, é dedutível do caráter
de princípio dos direitos fundamentais. Já as noções de necessidade – que preconiza a solução que
envolva o menor prejuízo – e de adequação - adequação entre meios e fins -, referem-se às possi-
bilidades fáticas (ALEXY, 1997, p. 89-106).

apenas uma função genérica. Já as normas de direitos, liberdades e garantias teriam aplicabilidade direta.
124
O reconhecimento da preponderância dos princípios privilegia a ponderação, voltada ao caso
concreto. A interpretação é reconhecida como uma atividade criadora e, por conseguinte, são acei-
tos maiores espaços de discricionariedade aos operadores jurídicos e à função jurisdicional. Há
quem se refira, como Perez Luño (1996, p.14), à idéia de “direito judicial”, caracterizado pelo pro-
tagonismo dos magistrados na conformação do direito, para adaptá-lo às transformações sociais.
Portanto, a incorporação de conteúdos morais na estrutura normativa constitucional através
dos princípios permite redefinir as complexas relações entre direito e moral. Neste sentido, deve-se
pontuar que a distinção entre as ordens normativas constitui-se um dos parâmetros fundamentais
do positivismo jurídico clássico. A constitucionalização de valores morais sob a fórmula normativa
de princípios abriu uma ampla margem para o reconhecimento da influência desta ordem ética
no direito positivo. Mais que espécies normativas, tem-se a centralidade dos princípios na ordem
constitucional. Sob esta concepção, portanto, reabilita-se a dimensão axiológica no direito, por
influência de um princípio tido como universal – a dignidade humana.

4. ASPECTOS IDEOLÓGICOS DO NEOCONSTITUCIONALISMO


Constatado que o positivismo metodológico não atende adequadamente aos novos e rele-
vantes fins atribuídos ao direito, os neoconstitucionalistas defendem a necessidade de uma nova
ciência comprometida com referidos aspectos. Método e ideologia estão, portanto, relacionados.
Não por acaso, Humberto Ávila (2009, p. 187) aponta fundamentos (ou características)
comuns às diversas acepções da expressão neoconstitucionalismo, que guardam entre si um en-
cadeamento lógico necessário: normativo (preferência normativa ou teórica pelos princípios, em
detrimento das regras jurídicas); metodológico (os princípios exigem, para sua aplicação, a téc-
nica da ponderação); axiológico (a ponderação demanda o privilégio da justiça particular frente
à justiça geral) e organizacional (a individualização da aplicação necessita de um judiciário forte,
predominante em relação ao poder legislativo).
É freqüente o emprego da expressão “movimento” para definir o neoconstitucionalismo,
mostrando, entre seus principais aspectos, sua faceta ideológica, ao lado da busca por uma teo-
rização e uma metodologia diferenciadas. O objetivo, comumente apregoado, é o de operar uma
transformação da cultura jurídica (GUASTINI, 2003, p. 47-ss).
Nesta ideologia, destaca-se a preferência pela defesa dos direitos fundamentais. A limitação
do poder estatal, objetivo do constitucionalismo clássico, é posta em segundo plano, pois hoje
se exige dos poderes legislativo e judiciário a concretização dos direitos fundamentais constitu-
cionais, além da valorização dos mecanismos estatais de tutela destes. A conexão entre direito e
moral é tão forte, que autores como Alexy, Dworkin e Zagrebelsky defendem um dever moral de
obedecer a constituição e a diferença entre sua interpretação e dos demais ramos jurídicos.
Os juristas são exigidos a tomar uma “posição mais ativa e comprometida com a melhor rea-
lização do Estado constitucional democrático de direito”, justificada pelo consenso em torno dos
valores constitucionalizados, que “dinamizariam um patriotismo constitucional a suprir a ideia de
nação” (MAIA, p. 15-16).
A construção teórica do neoconstitucionalismo, especialmente, depende desta mobilização.
O positivismo científico, do qual a maioria dos seus autores busca se afastar, era caracterizado jus-
tamente pelo apego à “neutralidade” e à função descritiva. Distanciar-se do positivismo redunda
na aceitação de uma ciência jurídica prescritiva, que inscreve sua relevância a partir dos compro-
missos que assume (ARIZA, 2003, p. 251).
A afirmação de um neoconstitucionalismo ideológico, todavia, abre margem para relevan-
tes ponderações quanto a este projeto. Além da inevitável crítica sob o aspecto da legitimidade
democrática das suas pretensões, que deferem ao direito e suas instituições um acentuado papel
político, tem-se ainda a complexa relação entre as esferas jurídica e moral.
A ponderação de princípios constitucionais e a aceitação da interpretação moral da consti-
tuição diminuem consideravelmente o grau de certeza do direito. A afirmação do direito subme-
ter-se-ia às preferências éticas do juiz individual (POZZOLO, p. 352-353).
Por isso, além de apontar os inevitáveis problemas desta “moral objetiva”, a ser aplicada pe-
los magistrados, Comanducci (2003, p. 91-3) critica a pretensão de reduzir a indeterminação do
direito por princípios que acabam por ampliá-la, ainda que tais princípios prestem-se a objetivos
125
recomendáveis.
A individualização das decisões, por sua vez, pode comprometer a função da justiça geral,
que assegura uniformidade de tratamento e estabilidade do sistema, cujo princípio da segurança
jurídica depende de inteligibilidade, estabilidade e previsibilidade (ÁVILA, 2009, p. 199).

5. O “CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO DA EFETIVIDADE” E O ENGAJAMENTO ACA-


DÊMICO PELA CONCRETIZAÇÃO DA PAUTA REDISTRIBUTIVA DA CONSTITUIÇÃO DE
1988
Com amparo no debate europeu, a expressão neoconstitucionalismo tornou-se freqüente no
vocabulário jurídico brasileiro. Inúmeros são os trabalhos jurídicos destinados à descrição do fe-
nômeno da constitucionalização do direito no Brasil, e suas repercussões nos mais diversos ramos
jurídicos. O trabalho de Luís Roberto Barroso, “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do
Direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil”, de 2005, publicado em incontáveis
veículos doutrinários, mostra-se um dos principais inventários do protagonismo das normas cons-
titucionais.
A discussão sobre os conteúdos constitucionais encontra respaldo no texto vigente que, am-
parado por um projeto redemocratizante, positivou os mecanismos da democracia representativa
e participativa. A previsão dos meios de canalização das expectativas da “comunidade de intérpre-
tes”, como o amplo rol de legitimados a propor ação direta de inconstitucionalidade e os mecanis-
mos de defesa popular dos direitos coletivos e difusos (ação civil pública e ação popular) ou ainda,
as possibilidades de reclamações aos poderes públicos, permitem aferir que o texto constitucional
previa os futuros embates sobre seu conteúdo.
São os instrumentos de participação previstos na CF-88 que, segundo Cittadino, asseguram
aos cidadãos o status de autores do direito, e não meros destinatários das normas jurídicas. O
trabalho de conversão dos preceitos constitucionais em realidade política é “tarefa de responsa-
bilidade de uma cidadania juridicamente participativa que depende, é verdade, da atuação dos
tribunais, mas sobretudo do nível de pressão e mobilização política que sobre eles se fizer” (CIT-
TADINO, 2002, p. 37-39).
A positivação de princípios de conteúdo mais aberto e a constante remissão à posterior regu-
lamentação em lei ordinária das questões constitucionais mais palpitantes delegou alguns debates
para o futuro, na expectativa de que os arranjos políticos permitissem a concretização de algumas
daquelas normas. E, diante da complexidade da sociedade brasileira, as esperanças em torno do
resultado destes arranjos dependiam do ponto de vista defendido.
E se, no âmbito das constituições pluralistas, cada setor representa uma determinada inter-
pretação do direito, alinhada com seus interesses, no caso brasileiro, há diversos caminhos inter-
pretativos na experiência posterior à promulgação da Constituição. Há setores que discordam das
suas diretrizes e outros que procuram retirar do texto toda a carga eficacial possível. Os primeiros
recorrem às “teses e interpretações despistadoras”, e apoiados na tradição privatista, passam a
supervalorizar os textos infraconstitucionais. Já os segundos partem em busca da efetividade e
enfatizam os valores e princípios adequados às suas pautas políticas.
Desde 1988, os diversos grupos capitanearam as interpretações sobre os conteúdos consti-
tucionais. Defende-se até a existência de um “movimento político teórico” sem precedentes na
história jurídica brasileira - o “constitucionalismo brasileiro da efetividade”. O objetivo deste mo-
vimento de dimensões jurídicas e políticas é desenvolver mecanismos dogmáticos e processuais
para efetivação do texto constitucional, com a aceitação do seu caráter emancipatório. Para Cláu-
dio Pereira de Souza Neto, esta mobilização conjuga elaboração teórica e uma perspectiva de ação,
assumindo caráter nitidamente político. Em termos históricos, somente poderia ser comparada
com a discussão que resultou na redefinição do instituto do Habeas Corpus, ainda no século XIX.
Assume-se, assim, que a “luta” política pela eficácia constitucional é também uma busca jurídica
(SOUZA NETO, 2003, p. 14-17)
Para Raymundo Juliano Feitosa (2003, p. 253), é um reflexo do constitucionalismo na Amé-
rica Latina, em que “as normas, ao lado de possuírem capacidade prescritiva e vinculante, são
consideradas uma expressão de desejos, ou seja, o norte, o horizonte para onde se deseja conduzir
o processo social”.
126
O interessante no direcionamento ao campo da efetividade constitucional (principalmente
dos direitos sociais) das esperanças progressistas de parte da doutrina é que a solução dos proble-
mas brasileiros, até o inicio dos anos 90, era vista sob “um discurso mais alternativo, em alguns
casos até anti-estatal”. Como bem observa João Maurício Adeodato (2003, p. 88), “os aconteci-
mentos posteriores os fizeram agarrar-se à constituição, que se tornou uma espécie de âncora
das novas esperanças bem-intencionadas”. No mesmo sentido, Feitosa (FEITOSA, p. 246-247)
também critica os “exageros” na visão transformadora e até “messiânica” do texto e da jurisdição
constitucional.
O direcionamento dos anseios ao Judiciário é acompanhado pela expectativa quanto ao de-
sempenho, pela instituição, de um papel ativo na tutela dos parâmetros constitucionais, a con-
dicionar e limitar as deliberações públicas “contrárias” à natureza dos princípios e normas da lei
fundamental. Conforme acentua Campilongo (CAMPILONGO, 1994, p. 49), “o juiz não aparece
mais como o responsável pela tutela dos direitos e situações subjetivas, mas também como um dos
titulares da distribuição de recursos e da construção de equilíbrio entre interesses supra-indivi-
duais.”
Expressivos e importantes autores, amparados pelas contribuições do neoconstitucionalis-
mo, caminharam para a formulação de uma nova teoria jurídica no Brasil. Como exemplo destes
esforços, Streck (2002, p. 91-93) cataloga as mais relevantes pesquisas, a abranger diversas áreas,
que têm por escopo a reformulação dos pressupostos de estudo do direito, em aproximadamente
3 (três) páginas de seu livro.
Destacam-se as formulações de Andreas Krell (2002, p. 15) que, ao combater alguns dos ar-
gumentos levantados contra a atuação judicial, defende que a noção de uma cidadania reivindica-
tória pode sim ser compatibilizada com uma instituição apta a cumprir sua função constitucional.
Isto porque, enquanto os outros poderes são justificados pelos processos eleitorais, o Judiciá-
rio extrairia sua legitimidade da realização dos fins prescritos no art. 3° da Constituição Federal de
1988. Esta é a posição de Jônatas Moreira de Paula (2002, p. 51-61), que afirma que os princípios
do mencionado dispositivo são marcos do ordenamento e paradigma essencial para a interpreta-
ção e concretização da CF-88, o que excluiria a neutralidade dos juízes para sua implementação.
Sob referido parâmetro, quando a questão submetida à apreciação diz respeito àqueles objetivos,
deve o judiciário avaliar as escolhas do gestor público.
O juiz não poderia limitar-se a declarar um direito material. Se necessário for, deve consti-
tuir o direito objetivo, protetivo de direito subjetivo, que se torna eficaz na eventualidade de ser
cometida uma sanção jurídica em caso de descumprimento. Considera-se, deste modo, o proces-
so como instrumento de efetivação da ordem jurídica, pois é através dele “que se confere eficácia
forçada a direitos materiais espontaneamente ineficazes” (PAULA, 2002, p. 112).
Outros expoentes, como Comparato, direcionaram seustrabalhos para a análise das possibi-
lidades jurídicas de controle da atividade do Executivo, de forma a garantir que os compromissos
constitucionais sejam incorporados à prática dos poderes. O autor defende o controle de consti-
tucionalidade de políticas públicas, confrontando as regras que estruturam o desenvolvimento
da atividade administrativa e as decisões de governo com os objetivos constitucionais. A análise
jurídica da decisão administrativa abrangeria os instrumentos escolhidos para a intervenção e
também a finalidade almejada.
Segundo o autor, constatada a inconstitucionalidade da política adotada, todas as leis e atos
normativos executórios seriam atingidos, mas os atos já praticados sob a vigência da política ques-
tionada seriam preservados. Para evitar os prejuízos decorrentes da invalidação de uma política
pública em andamento, o autor propõe a viabilidade do controle prévio das decisões administra-
tivas, que teria, além do óbvio efeito desconstitutivo, natureza injuntiva ou mandamental. (COM-
PARATO, 1997, p. 21-22).
A doutrina que sustenta o controle e até a imposição coercitiva de políticas publicas pelo
Poder Judiciário, evidentemente, sofre severas críticas. Tais questionamentos freqüentemente são
respaldados pela noção de democracia, considerando que o Judiciário não detém legitimação
popular para interferir nas decisões tomadas pelos poderes majoritários, o que seria incompatível
com o sistema representativo previsto no art. 1º, parágrafo único da CF-88.
Observa-se, deste modo, que os postulados do neoconstitucionalismo, especialmente da sua
vertente ideológica, encontraram ampla aceitação nos meios jurídicos brasileiros e se converteram

127
num dos marcos para a compreensão do ordenamento jurídico pátrio. Como toda nação periféri-
ca, é natural que a doutrina brasileira esteja “sobredeterminada pelos influxos especulativos das
culturas jurídicas mais maduras” (MAIA, p. 2). Por outro lado, o histórico de desigualdade social
e política da sociedade brasileira mostrou-se um fator de reforço do empenho pela normatividade
constitucional.
Persiste, porém, o questionamento acerca da operatividade do neoconstitucionalismo en-
quanto marco teórico aplicável à interpretação da Constituição de 1988, em confronto com as
características da norma vigente.
Nesta seara, tem-se as considerações de Humberto Ávila, no sentido de avaliar os principais
aspectos do neoconstitucionalismo. Para o autor, o fundamento normativo desta concepção con-
siste na idéia de que as constituições utilizam-se “exclusiva” ou “preferencialmente” dos princí-
pios, dando preferência a esta espécie normativa. Esta predileção do constituinte fundamentaria o
emprego da ponderação enquanto método, implicando na prevalência da justiça particular frente
à justiça geral e, por fim, num Poder Judiciário forte.
A análise do texto normativo da Constituição de 1988, porém, atinge o argumento central,
pois a preferência por um modelo analítico denota a opção pelo estabelecimento de regras, com a
clara função de “eliminar ou reduzir problemas de coordenação, conhecimento, custos e controle
do poder”, numa espécie de ponderação “pré-legislativa”. Tem-se, claramente, mais regras que
princípios.
Assim, a tese da constituição principiológica sofreria um empecilho de ordem cientifica, que
denota a “sobreposição de enunciados doutrinários” ao invés de descrição do sistema jurídico, o
que transformaria o neoconstitucionalismo em ideologia ou movimento, ao invés de teorização ou
método, que não esconderia, em verdade, uma certa “subserviência à doutrina estrangeira”(ÁVI-
LA, 2009, p. 189-192).

6. CONCLUSÕES: PONDERAÇÕES SOBRE AS PRETENSÕES NEOCONSTITUCIONALISTAS E


AS DIFICULDADES NA INTERPRETAÇÃO DOS DISPOSITIVOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Conforme foi possível verificar nas linhas precedentes, o neoconstitucionalismo é um em-
preendimento acadêmico ambicioso. Propõe uma nova visão, ao descrever os ordenamentos ju-
rídicos e as conseqüências da sua constitucionalização, espelhando uma teorização e uma me-
todologia distintas. São poucos os pontos em comum entre as diversas correntes albergadas pela
expressão. Estas atendem às mais diversas tradições jurídicas e se mostram demasiadamente con-
traditórias. Referida fragmentação metodológica demanda a consideração das especificidades de
cada um dos universos que compõem a expressão.
As teorias e métodos, nesta seara, parecem confundir-se com seu aspecto ideológico, na
exigência de um dever moral dos juristas com a efetividade das escolhas constitucionais. A inde-
terminação entre o neoconstitucionalismo ideológico e teórico conflui numa pretensão transfor-
madora da realidade que certamente exige a avaliação das conseqüências deste projeto.
Destaca-se, assim, a dúvida acerca da operatividade dos sistemas altamente influenciados
pelo discurso neoconstitucionalista, seja na sua prática ou por seus resultados, para alcançar a
efetividade de algumas promessas constitucionais e justificar referido projeto, tão questionável sob
o aspecto democrático.
Sabe-se que mesmo os defensores da normatividade constitucional têm dificuldades em
formular uma direção “correta” a ser considerada na abordagem dos “valores constitucionais”.
As constituições pluralistas, em seu texto normativo, obstaculizam este tipo de aproximação, ao
estabelecer uma diversidade ideológica, ou, nas palavras de Gustavo Zagrebelsky (1999; p. 13-14),
uma “proposta de soluções e co-existências possíveis”, que não pode ser traduzida num projeto
rigidamente ordenador da vida social.
Algumas destas novas constituições exprimem, ao lado da previsão de um projeto redistribu-
tivo, a defesa de interesses que são antagônicos a esta pretensão.
A Constituição Brasileira, por exemplo, caracterizada por sua riqueza programática e razões
redemocratizantes, carrega pontos de divergência, a permitir que as mais diversas expectativas,
decisões e doutrinas sejam criadas em seu nome. Isto porque o constituinte, que não podia es-
tabelecer um projeto pré-determinado de vida em comum, optou por ratificar suas condições de
128
realização, adotando certo relativismo em alguns dos seus preceitos. A norma superior, assim, é
vista como uma plataforma a garantir legitimidade para que cada um dos setores sociais inicie a
competição para imprimir ao Estado uma orientação (ZAGREBELSY, 1999, p. 13-14).
Não se pode prever qual aspecto será ressaltado na atividade interpretativa dos tribunais e
demais agentes jurídicos, o que põe à prova os pressupostos de submissão da atividade política ao
direito, por vezes movidos pelo bem-intencionado interesse em atingir as vantagens transformado-
ras da concretização de um projeto constitucional essencialmente indefinido quanto aos seus fins.
A amplitude do universo constitucional compreende uma fragmentação metodológica que
parece impedir a definição de uma “teoria adequada” para a interpretação. No caso brasileiro, tra-
ta-se apenas de uma conseqüência de uma sociedade complexa. Nestes termos, a defesa de uma
materialidade constitucional não dispõe de elementos aptos a garantir a efetivação de determina-
dos direitos em detrimento de outros.
A caracterização neoconstitucionalista, ao promover a relevância das normas constitucio-
nais, sem a necessária consideração destes aspectos, assume o risco de se desvencilhar da sua
pretensão descritiva dos ordenamentos jurídicos, numa confusão entre o aspecto simbólico-dis-
cursivo e sua prática jurídica. Referidos fatores, se não considerados, repercutem precisamente
nas condições de concretização deste projeto.

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131
O OUTRO LADO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CONTROLE DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: ANÁLISE A PARTIR DO DIREITO À SAÚDE

Glauco Salomão Leite1


Marcelo Labanca Corrêa de Aráujo2

1. INTRODUÇÃO
O fenômeno da “constitucionalização” do direito tem sido apontado como uma das conse-
quências de um novo paradigma emergente do modelo de Estado Democrático de Direito, que
remonta aos processos de redemocratização verificados em diversos países ocidentais a partir do
final da Segunda Guerra Mundial. Mas este fenômeno guarda estreira relação com a expansão do
Poder Judiciário, que passou a ocupar espaços antes comummente enquadrados na esfera políti-
ca. Nesta perspectiva, é importante ter em mente que Constituição Federal de 1988 tem sido vista
como o grande marco jurídico da “constitucionalização”do direito no país.
Ocorre que, como se verá, “constitucionalizar” certo conteúdo siginifica retirá-lo da esfera
de deliberação política ordinária e, ao mesmo tempo, eleva o poder da jurisdição constitucional.
É nesse contexto que se pretende questionar até que medida as políticas públicas, resultantes de
decisões advindas das instâncias políticas e elaboradas para concretizar os comandos constitucio-
nais, podem ser controladas judicialmente.
Em países que ainda não atingiram graus satisfatórios de fruição de direitos sociais básicos,
como é o caso do Brasil, tem sido comum se exigir uma postura mais ativa da jurisdição constitu-
cional na tentativa de diminuir o fosso que separa a realidade (mundo do “ser”) da normatividade
constitucional (mundo do “dever-ser”). Daí, não é raro se falar na necessidade de o juiz ter que
ser mais “político”, no sentido de “progressista”, o que representa, na prática, prover aquilo que os
demais poderes deixaram de prover.
Diante de tal cenário, pretende-se fazer uma abordagem sobre o modo de atuação do Su-
premo Tribunal Federal (STF) no âmbito de ações judiciais , em particular a partir de decisões
proferidas em pedidos de suspensão de segurança e cassação de antecipações de tutela, quando

1 Doutor em Direito Público pela UFPE. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Prof. de Direito Consti-
tucional da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal da Paraíba. Membro da Comissão de
Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Pernambuco.
2 Mestre e Doutor em Direito (UFPE). Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambu-
co (Graduação e Mestrado). Procurador do Banco Central. Vice-Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais
da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Pernambuco.
132
relacionadas ao controle de políticas públicas realizadoras do direito fundamental à saúde.
Para tanto, far-se-á uma abordagem sobre significado do fenômeno da “constitucionalição”,
realçando sua ligação com o alargamento do espaço judicial. Em seguida, serão analisados os prin-
cipais questionamentos que surgem nas demandas em torno direito à saúde, destcando porque os
direitos prestacionais, como o direito à saúde, possuem efetividade mais baixa que outros direitos
fundamentais. Com isso, poder-se-á apontar alguns indicadores que precisem o limites da atuação
do Poder Judiciário em tais matérias.

2. DA “CONSTITUCIONALIZAÇÃO” DO DIREITO À JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE


Quando se fala em “costitucionalização” do direito civil, penal, administrativo, processual,
é fundamental esclarecer o sentido dessa expressão. No âmbito do debate atual, convém elucidar
dois sentidos possíveis para a expressão “constitucionalização”. Em uma primeira acepção, o fe-
nômeno da constitucionalização consiste no poder de irradiação das normas constitucionais para
os demais setores do sistema jurídico. Ele está ligado ao reconhecimento da força normativa das
Constituições, notadamente dos preceitos que asseguram direitos fundamentais e fixam princí-
pios jurídicos. Isto significa a superação de uma visão clássica, prevalecente nos países de tradição
romano-germânica até meados do séc. XX, segundo a qual as constituições possuíam um caráter
predominantemente político, dando-se mais ênfase a códigos e legislações ordinárias (ZAGRE-
BELSKY, 2003, p. 32-53; OTTO, 1995, p. 133; ACOSTA SÁNCHES, 1998, p. 171).3
Assim, passa-se a reconhecer que os princípios e direitos que integram a Constituição têm
natureza de norma jurídica (GARCIA DE ENTERRÍA, 1994, p. 41 e ss.), de modo que o seu con-
teúdo e os seus valores passam a influenciar concretamente todo o direito ordinário. Em outras
palavras, os preceitos constitucionais possuem um o poder expansivo ou efeito de irradiaçãoque
encobre os demais quadrantes do sistema jurídico. Nessa perspectiva, o sistema jurídico se apre-
senta impregnado pela Constituição (GUASTINI In CARBONELL; 2003, p. 49; BARROSO, 2009,
p. 351 e ss.; SARMENTO In SOUZA NETO; SARMENTO, 2007, p. 134 e ss.; SILVA, 2006, p. 40
e ss.; LEITE In LEITE; LEITE, 2008, p. 97).
Na prática, o fenômeno é representado pela abundância de controvérsias (cíveis, penais,
trabalhistas, tributárias, processuais) em que se percebe a incidência de direitos fundamentais e
princípios constitucionais nos diversos ramos jurídicos, criando o ambiente propício para a releitu-
ra de várias categorias e institutos tradicionais de tais ramos do direito. Neste sentido, o fenômeno
da “constitucionalização” é bastante impulsionado pela atuação do Poder Judiciário, ora quando
fundamenta suas decisões diretamente em normas jusfundamentais e principiológicas, ora quan-
do interpreta o direito ordinário à luz desses vetores constitucionais.
Em uma segunda acepção, a “constitucionalização” significa a inserção, no texto constitu-
cional, de institutos e categoriais de vários segmentos jurídicos ou a positivação de determinados
interesses de grupos sociais. Em outras palavras, cuida-se da elevação de institutos de vários ra-
mos do direito ao patamar constitucional.Dessa maneira, os principais setores do sistema jurídico
possuem disposições plasmadas no texto constitucional. Isso se passa com o direito administrativo,
civil, penal, processual (civil e penal), trabalho, tributário, urbanístico, previdenciário, econômico,
financeiro, além de preceitos concernentes à família, criança, idosos e índios. Ocorre que, no caso
específico do sistema constitucional brasileiro, o grau de detalhamento é tão intenso ao ponto de
existirem regras sobre prazo de concurso público (art. 37, III); acumulação de cargo, emprego e
função pública remunerada (art. XVI); o ensino de História no Brasil (art. 242, §1º), dentre outras.
Todas essas disposiçõesse tornaram, pelo menos formalmente, assunto constitucional.
Como visto, as duas acepções para o termo “constitucionalização” não se confundem. Po-
rém, existe um espaço de contato entre elas, na medida em que a elevação de matérias à Cons-
tituição, normalmente disciplinadas no âmbito infra-constitucional, estabelece uma relação de
subordinação entre as normas de uma ramo jurídico que estão no plano ordinário e aquelas outras
que estão no âmbito constitucional. Assim, verifica-se a “constitucionalização” (positivação) das

3 Como destaca Gustavo Zagrebelsky (2003, p. 32-53), “A lei por excelência era então o código, cujo modelo histó-
rico durante todo o século XIX estaria representado pelo Código civil napoleônico (...)”, de modo que tal Código era
tido como a ‘Constituição da burguesia liberal’.”
133
fontes do Direito para aquele específico setor do ordenamento jurídico, o que, de certa maneira,
também contribui para a o efeito expansivo da Constituição (BARROSO, 2009, p. 361).4
Pois bem, esclarecidas essas noções, nota-se que a “constitucionalização”, especialmente
na primeira acepção antes indicada, é bastante impulsionada pela atuação Poder Judiciário. Isso
significa que, ao invocar algum parâmetro constitucional para solucionar certo litígio, o Judiciário
dá forma ao “efeito irradiador” ou “força expansiva” dos comandos constitucionais.
Nesse sentido, se se pensar que o direito fundamental à saúde, além de estar previsto for-
malmente no texto constitucional, afigura-se como direito prestacional, o ideário subjacente à
“constitucionalização” direito serve de fundamento para superar a tese tradicional segundo à qual
os direitos prestacionais, por estarem assegurados em preceitos programáticos, não seriam pro-
priamente normas jurídicas, inviabilizando qualquer pretensão individual fundada em tais regras.
É o reconhecimento da força normativa da Constituição, e o caráter vinculante de seus preceitos,
que permite falar que seu conteúdo deve se expandir para os demais setores do ordenamento.
O afastamento do caráter programático dos direitos sociais é, de fato, um grande avanço e
tem sido reconhecido pelo próprio em STF, quando este considera o direito à saúde como direito
público subjetivo, de sorte que o caráter programático não deve convertê-lo em promessa consti-
tucional inconsequente5.
Por via de conseqüência, aumentam-se as referências normativas para a jurisdição consti-
tucional no exercício de suas funções, facilitando a justificação de um maior controle em relação
aos demais poderes, já que o campo de “matérias constitucionais” agora é ampliado. Dessa manei-
ra, ao reconhecer que o direito à saúde é um direito público subjetivo, impulsiona-se a busca no
Poder Judiciário para o acesso a serviços públicos na área da saúde.
Isso significa que problemas de eficiência administrativa na execução de políticas públicas
de saúde têm sua legitimidade questionada na esfera judicial, transferindo para este locus o con-
flito entre o indivíduo e o Estado. Em outras palavras, judicializa-se o direito à saúde, ampliando-
se o raio de atuação do Poder Judiciário, que se torna ele próprio uma arena política de reivindi-
cação de direitos prestacionais. Por outro lado, busca-se uma revisão sobre a margem de liberdade
da Administração Pública (VIANNA; CARVALHO; MELO et al, 1999, p. 47-51).

3. O CUSTO DOS DIREITOS


A circunstância de se admitir que os direitos sociais, como o direito à saúde, são direitos sub-
jetivos não implica uma ampla e irrestrita tutela judicial (LIMA In SARLET; TIMM, 2008, p. 265).
As normas que asseguram direitos fundamentais (prestacionais ou não) estabelecem que algo
deve ser concretizado na maior medida do possível, respeitadas as limitações fáticas e jurídicas,
razão pela qual são tidas como mandamentos de otimização (ALEXY, 1997, p. 89). A referência
aos limites é relevante para se compreender que os direitos fundamentais estão condicionados à
satisfação de condições fáticas e materiais. Daí que há de se levar em conta o custo dos direitos.
Comumente se imagina que apenas o direitos sociais, por envolverem direitos à prestações
estatais, conduzem a um custo financeiro. O argumento é falso. O direitos individuais e liberda-
des públicas também dependem, em certa medida, de prestações estatais (HOLMES; SUSTEIN,
1999, p. 59 e ss.). Sem investimento em segurança pública, haveria o risco de violação ao direito
à propriedade privada, em razão da possibilidade de invasões e outras agressões. O direito político
ao sufrágio depende de investimentos que viabilizem a realização e regularidade de todo o pleito

4 Como exemplo, ressalte-se o Capítulo VII, da Constituição Federal, dedicado à família, criança, adolescente e
idoso. Assim, uma vez constitucionalizadas, as disposições do Direito de Família que cuidam do conceito de entidade
familiar, igualdade entre cônjuges e filhos, de certo repercutem na interpretação dos preceitos do Código Civil sobre
a mesma matéria.
5 “O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das
pessoas pela própria Constituição da República (art. 196).(...)O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da
Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização
federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o
Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o
cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determi-
na a própria Lei Fundamental do Estado. (RE 393175 AgR / RS, rel. Min. Celso de Mello, d.j. 12.12.06)
134
eleitoral. Por que, então, existe certa perplexidade quando surgem demandas judiciais em que o
indivíduo busca o fornecimento de um medicamento de alto custo?
Ocorre que a realização das condições para exercício dos direitos sociais supõe tudo aquilo
que se demanda para a proteção dos direitos individuais e liberdades públicas e algo mais (SILVA,
2009, 243). É que para cada direito social se exige um custo específico e adicional, o que aumenta
a necessidade de disponibilidade de recursos públicos. Em outros termos, ao passo que boa parte
dos custos com os direitos e liberdades individuais é usado de maneira global (proteção, organi-
zação judiciária, etc), assegurando vários desses direitos de uma só vez, cada direito social exige
um custo exclusivo que apenas será utilizado para este direito e não será aproveitado para outros.
Assim, os recusos para aquisição de medicamentos, compra de equipamentos, contratação de mé-
dicos, construção dos hospitais, campanhas contra epidemais são usados para atender um único
direito social (saúde).

Vê-se, com isso, que a discussão em torno do custo dos direitos não pode ser simplesmente
ignorada, especialmente em relação aos direitos prestacionais. Por essa razão, existe uma maior
preocupação em torno das repercussões econômicas de decisões judiciais que estabelecem obri-
gações à Administração Pública na área de saúde, pois o seu cumprimento normalmente envolve
alguma mudança na alocação dos recursos estatais. Diante do que foi colocado, ver-se-á como o
STF tem decidido demandas dessa natureza e até que ponto o argumento do custo dos direitos
interfere no resultado final do julgamento.

4. PARÂMETROS DE ATUAÇÃO DO STF


Considerando o elevado número de ações que chegam ao Poder Judiciário tratando o direito
à saúde, impõe-se destacar os parâmetros usados pelo STF, em razão de sua posição institucional,
para decidir os litígios dessa natureza. Primeiramente, destaque-se aquilo que é discutido no âm-
bito da Corte para que esta negue o direito a uma prestação estatal.
Um dos argumentos é que decisões favoráreis a particulares que pedem medicamentos ou
tratamentos a serem assegurados gratuitamente podem provocar uma desorganização no planeja-
mento orçamentário do ente público. Daí a constante referência ao art. 4º, da Lei 8.437/92, que
autoriza o deferimento do pedido de suspensão de segurança para evitar “grave lesão à ordem,
à saúde, à segurança e à economia pública”. Com base nessa regra legal, quando Presidente do
Tribunal, a Min. Ellen Gracie suspendeu decisão proferida pelo TJ-GO que obrigava o Estado a
fornecer o medicamento necessário ao tratamento de infertilidade feminina. A Ministra entendeu
que, como tal doença não punha em risco a vida das pacientes e, dado o alto custo do medicamen-
to em face do“já abalado sistema público de saúde”, era cabível a suspensão dos efeitos da decisão
do Tribunal local6.
Por outro lado, a Corte tem rejeitado a alegação do denominado “efeito multiplicador da
decisão”, que poderia também causar grave lesão à ordem e saúde públicas, haja vista a “análise de
decisões dessa natureza deve ser feita caso a caso, considerando-se todos os elementos normativos
e fáticos da questão jurídica debatida”7.
A partir desse caso concreto, depreende-se que não apenas se reconheceu a existência de
limites materiais (escassez de recursos) ao exercício de direitos prestacionais, como que esse fator
exerceu considerável influência na decisão.
Cumpre destacar que a escassez dos recursos públicos, por vezes, cede diante de outras
variáveis, quais sejam, a necessidade do acesso a uma específica prestação estatal e a falta de
condições econômicas do indivíduo. Isso não significa olvidar que a fruição do direito à saúde
depende de alocações orçamentárias específicas. A rigor, em tais situações, verifica-se o chama-
do “periculum in mora inverso” ao beneficiário, uma vez que comprovada a necessidade vital do
medicamento e a impossibilidade do custeio da aquisição da medicação pleiteada pelo próprio
particular, caberia a intervenção judicial.Dessa forma, conclui-se que o risco causado ao particular
seria muito maior do aquele causado à Administração Pública, na hipótese de se não conceder do

6 SS n. 3263, Min. Ellen Gracie.


7 AgRg na STA n. 175., Min. Gilmar Mendes, destaque nosso.
135
medicamento pela via judicial8.
É curioso observar que, em certos casos, as limitações orçamentárias, conquanto relevan-
tes, não são motivos suficientes para restringir o acesso do indivíduo aos serviços públicos de saú-
de. Nesse sentido, tem decidido o Min. Celso de Mello:

Tal como pude enfatizar em decisão por mim proferida no exercício da Presidên-
cia do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa
(Pet. 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se
qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela Constituiçãoda
República (art. 5º, “caput” e art. 196), ou fazer prevalecer contra essa preorroga-
tiva fundamental, um intresse financeiro e secundáriodo Estado, entendo – uma
vez configurado o dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador
uma só e possível ação: aquela queprivilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde
humana9

Cabe esclarecer, ainda, que a Corte tem negado pedidos de medicamentos ou tratamentos
quando ainda não existe comprovação de sua eficácia e segurança, o que se comprova mediante o
seu registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Assim, um dos requisitos para
que haja a concessão do pedido é o registro da medicação ou do tratamento, de sorte que, caso
qualquer destes ainda esteja em fase de experimentação, o pedido há de ser negado10.
Pode-se extrair como conclusão que a concessão de medicamentos ou realização de trata-
mentos médicos depende da a) necessidade do paciente; b) da comprovada falta de condições
econômicas para custeá-los por conta própria e c) do seu registro na ANVISA.

5. CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRECEDENTES DO STF


A análise dos argumentos usados pelos integrantes do STF permite suscitar alguns questio-
namentos. Em primeiro lugar, emerge a antiga discussão sobre legitimidade do Poder Judiciário
em promover intervenções sobre políticas públicas. De fato, uma vez que o direito à saúde depende
de alguma política social, fruto, por sua vez, de decisões político-administrativas que disponham
inclusive sobre a destinação dos recursos públicos, questiona-se se caberia ao Poder Judiciário
realizar um controle mais efetivo sobre as ações e, prinicipalmente, omissões, da Administração
Pública.A propósito, o Min. Gilmar Mendes tem sustentado que “o problema não é de inexistência,
mas de execução (administrativa) das políticas públicas pelos entes federados”11. Dessa forma,
para o Ministro, a principal atividade do Judiciário não é criar políticas públicas, mas sim fazer
com que as já existentes sejam efetivadas. Com essa postura,pretende-se atenuar a discussão acer-
ca de um possível ativismo judicial por parte da Corte Suprema ao julgar ações correlatas, o que
tornaria mais complexa a legitimidade de sua intervenção.
Ora, é sabido que, em certos casos, a questão não envolve apenas a implementação de uma
política pública já existente, o que, de fato, seria mais simples de justificar. Por vezes, o pedido do
indivíduo consiste, por exemplo, em lhe assegurar um determinado medicamento de alto custo
que não faz parte uma lista oficial de remédios disponíveis para a coletividade. Consoante tem sus-
tentado, Andreas Krell (2003, p. 90 e ss.) “onde o processo político (Legislativo e Executivo) falha
ou se omite na implementação de Políticas Públicas e dos objetivos sociais nela implicados, cabe
ao Poder Judiciário tomar uma atitude ativa na realização da correição da prestação dos serviços
sociais básicos”. Isso significa que a atuação do Poder Judiciário assumiria um caráter subsidiário,
ou seja, havendo falha na prestação serviços tidos como essenciais, caberia sua interferência.
Relacionado a esse problema, verifica-se que quando o STF prioriza o direito subjetivo do
cidadão, considerando, inclusive, “secundário” o interesse financeiro do Estado, normalmente o
faz em casos extremos quando a vida da pessoa está em perigo. Daí, caberia indagar se apenas

8 AgRg na SS n. 2944,Rel. Min. Gilmar Mendes.


9 RE n. 393.175, Rel. Min. Celso de Mello.
10 AgRg na SS n. 3345, Rel. Min.Gilmar Mendes.
11 AgRg na SS n. 2944. Rel. Min. Gilmar Mendes.
136
haverá a concessão dos pedidos a prestações estatais (medicamentos e tratamentos) quando o
próprio direito à vida estiver em risco. Em caso afirmativo, o direito à saúde só teria prioridade en-
quanto bem jurídico justiciável quando estivesse vinculado ao direito à vida, isto é, apenas quando
a gravidade do estado de saúde do indivíduo puder comprometer a sua sobrevivência, é que o
Judiciário estaria legitimado a colocar em segundo plano questões orçamentárias. Ao agir dessa
maneira, o STF está reconhecendo que o direito ao “mínimo existencial” não se submete a reser-
vas orçamentárias (TORRES In SARLET; TIMM, 2008, p. 82). Só que essa intepretação reduziria
a importância dos preceitos constitucionais que tratam do direito à saúde como direito autônomo.
Afinal, apenas quando houve perigo de morte será legítima intervenção judicial?
Outro ponto a ser ponderado diz respeito ao caráter individual ou coletivo do direito à
saúde. A circunstância de o STF destacar que pedidos a prestações estatais devem ser analisados
topicamente, avaliando inúmeros fatores, pode conduzir ao entendimento de que tudo só pode
averiguado de maneira casuística. Isso criaria grave insegurança jurídica, pois a própria Corte
não estaria revelando os critérios sob os quais decide os casos. É preciso ter mente que o acesso
à saúde deve ocorrer de maneira “universal”e “igualitária”. Isso impõe ao Tribunal não apenas
decidir se a parte no processo tem direito a uma específica prestação estatal, mas, fundamental-
mente, decidir se os demais indivíduos que se encontram na mesma situação têm igual direito.
O argumento se apóia no fato de que a simples demanda individual em busca de uma prestação
estatal não atende ao referido princípio da isnomia, haja vista que inúmeros indivíduos ainda não
possuem um efetivo acesso ao Judiciário.

6. CONCLUSÃO
A constitucionalização do direito, enquanto fenômeno que busca expandir os efeitos jurí-
dicos dos preceitos constitucionais, tem sido fomentado, em boa parte, pela recente experiência
do Poder Judiciário ao invocar diretamente os comandos constitucionais na solução de litígios.
De um lado, supera-se o entendimento conservador que reputava certas clásulas constituionais
desprovidas de normativas, como se dava com os preceitos programáticos. Por outro, não se deve
concluir que a força normativa da Constitução será uma fórmula mágica para diminuir uma
realidade marcada pelo elevado grau de exclusão social e deficiência na fruição de direitos básico,
como a saúde.
Todos os direitos fundamentais dependem, em certo grau, de um custo estatal que lhes
dêem respaldo. Mas os direitos prestacionais demandam custos a mais, que só são utilizados para
cada direito social específico. Tendo isso em vista, constatou-se que o STF tem assumido clara
tendência a interferir em políticas públicas na área de saúde, quando se comprovar a real necessi-
dade, por parte de cidadão hipossuficiente, em ter acesso a alguma prestação estatal de compro-
vada eficácia. Em tais casos, embora não desconsidere a problemática da escassez dos recursos,
prioriza o direito à saúde, em detrimento de restrições orçamentárias, especialmente que há risco
à própria vida do indivíduo.
Todavia, cabe ainda delinear com maior clareza o âmbito de proteção justiciável do direito à
saúde como direito fundamental autônomo e sua dimensão coletiva.

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137
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ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Traducción de Marina Gascón.
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138
O BRASIL – ATOS INSTITUCIONAIS, ATOS COMPLEMEN-
TARES E UMA HISTÓRIA DE DESCONSTITUCIONALIZA-
ÇÕES E RECONSTITUCIONALIZAÇÕES ACELERADAS

Hélio Sílvio Ourem Campos1

O artigo que vai a seguir faz parte de uma série que pretende apresentar uma seqüência
concreta da interferência política assimétrica na produção do direito legislado brasileiro.
Foi dividido em duas partes bem definidas. Na primeira, dispondo quanto a reflexões sobre
um momento histórico, ainda, tão destacado no Brasil atual. Refiro-me ao período a partir do
final da vigência da Constituição de 1946, com todos os Atos excepcionais de que ela foi objeto.
Na segunda, tento demonstrar que isto não é uma novidade em nossa história. Para este cotejo,
aprofundo-me na realidade tributária brasileira desde as suas origens, ousando resumir os Atos de
maior relevo em uma apertada síntese que, para o leitor mais interessado, poderá ser aprofundada
a partir de um outro texto que escrevi nos idos de 2001-2002, ao qual chamei de A Constituição
brasileira de 1988 e o princípio da segurança jurídica no âmbito das medidas provisórias tribu-
tárias.
É’ o que vai a seguir.
No Brasil, durante o regime da Constituição de 18 de setembro de 1946, foram expedidos
quatro (4) Atos Institucionais.
Dou destaque para o Ato Institucional nº 01, de 10.04.1964 (republicado em 11.04.1964,
por ter saído com incorreções). Nele, os Comandantes em Chefe do Exército, da Marinha e da
Aeronáutica, em nome do que a Exposição de Motivos deste Ato chamou de “autêntica revolução”,
manteve a Constituição de 1946, ampliando os poderes do Presidente da República. Disse, tam-
bém, que “a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato
Institucional” a sua legitimidade.
Assim, defendia-se não haver radicalizado, pois se estava resolvendo manter o Congresso
Nacional com as reservas de poderes nele (AI-1) fixadas.
A justificativa que se dava era a da “restauração da ordem interna e do prestígio internacio-
nal”, tomando as “urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista.”
1 Doutor e Mestre pela UFPE. Pós-Doutor pela Universidade Clássica de Lisboa. Juiz Federal Titular da Sexta Vara
da Seção Judiciária do Estado de Pernambuco. Professor Titular da Universidade Católica do Estado de Pernambuco
(graduação e Mestrado). Ex-Procurador Judicial do Município do Recife. Ex-Procurador do Estado de Pernambuco.
Ex-Procurador Federal. www.ourem.web44.net. http://lattes.cnpq.br/1508584545879443
139
Enfim: “a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, legitima-se por si mesma.”
É o que dizia, na Ementa “À Nação”, pois assim começavam os três primeiros Atos Institu-
cionais. Eles esclareciam que a revolução estava em movimento, ou, como proclamava o Ato Ins-
titucional nº 02, de 05.11.65 (também republicado por ter saído com incorreções): “Não se disse
que a Revolução foi, mas que é e continuará. Assim, o seu Poder Constituinte não se exauriu (...)”.
No Ato nº 02/65, dizia-se no art. 14: “Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais
de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a do exercício em funções por tempo
certo.” E, no art. 15: “No interesse de preservar e consolidar a Revolução, o Presidente da Repú-
blica, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição,
poderá suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos e cassar man-
datos legislativos federais, estaduais e municipais.”
Quanto ao Ato Institucional nº 04, de 07.12.1966 (também retificado), já ficou salientado
que ele convocou o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar o projeto de Constituição
apresentado pelo Presidente da República (art. 1º, “caput” e § 1º).
Veio a Constituição de 1967.
Na Constituição de 24 de janeiro de 1967, computando-se os quatro Atos já existentes, che-
gou-se aos dezessete (17) Atos Institucionais e quarenta (40) Atos Complementares. Entre os Atos
Institucionais, ainda merece destaque o AI-5, de 13.12.1968.
A origem deste Ato deveu-se ao seguinte fato.
O Deputado MÁRCIO MOREIRA ALVES, protestando, na Câmara dos Deputados, contra
a violência policial e o regime militar, sugeriu o boicote ao desfile da Independência, de sete de
setembro.
Este discurso provocou uma enorme irritação nas Forças Armadas.
Por isto, o Governo pediu licença ao Congresso para processar o Deputado.
O Congresso negou. Aos doze de dezembro, o Plenário rejeitou a solicitação do Governo.
A reação foi drástica. Expediu-se o AI-5.
O Ato Institucional nº 05/68, além de autorizar os Atos Complementares, no art. 9º, com o
objetivo de instrumentalizar a execução das suas medidas e de defender a revolução com medidas
de estado de sítio (art. 152, § 2º, da Constituição de janeiro de 1967), estabeleceu que o Presidente
da República, quando julgasse conveniente, poderia decretar o recesso parlamentar, ficando, neste
período, “autorizado a legislar em todas as matérias” (art. 2º, “caput” e § 1º).
Manteve, ainda, a possibilidade de suspensão dos direitos políticos, sem a necessidade de
atender às limitações constitucionais (art. 4º); suspendeu as garantias de vitaliciedade, inamovibi-
lidade e estabilidade (art. 6º); suspendeu o habeas-corpus em casos de crimes políticos (art. 10);
excluiu de qualquer apreciação judicial a si próprio (AI-5) e aos Atos Complementares que dele
decorressem etc.
Como se vê, a Constituição de janeiro de 1967, acaso tenha sido feita com o objetivo de, gra-
dualmente, normalizar a ordem jurídica no Brasil, não teve o seu objetivo confirmado na prática.
A idéia de elaborá-la, ao que parece, decorreu do fato do grande número de Atos Institucio-
nais e de Emendas Constitucionais editadas após o movimento de 1964.
Sobre isto, disse PAULO BONAVIDES (1991, p.429)

E o caminho escolhido pelos militares não poderia ter sido outro que o da centra-
lização e fortalecimento do Poder Executivo. O período de abril de 64 a dezembro
de 66 registra nada menos do que a edição de quatro atos institucionais e quinze
emendas constitucionais. Entre essas últimas, estão as que determinavam refor-
mas nos Poderes Legislativo e Judiciário, no sistema financeiro e ainda no campo
tributário.

A rigor, como foi possível observar, não se pode dizer, ao certo, se ela foi outorgada ou pro-
mulgada, tendo um caráter semi-autoritário.
Afinal, o Congresso foi convocado para se reunir extraordinariamente, discuti-la e votá-la. O
rígido calendário, previamente estabelecido, foi cumprido rigorosamente.
Veja-se. O Projeto foi enviado pelo Governo, chegando ao Congresso Nacional em 12.12.1966.

140
A Carta foi promulgada em 24.01.67.
As formalidades foram cumpridas.
PONTES DE MIRANDA, ao comentar a Carta de 1967, disse: “Na Constituição de 1967, há
mais subservidade do que revolucionariedade.”2 E arremata: “o Ato Institucional de 1964 foi erro
grave na história do Brasil e produziu os outros erros, em outros atos institucionais.”
Esperava-se que, pelo menos, cessassem os Atos Institucionais. Mas não cessaram.
Daí o caráter também psicológico do AI-5.
Ele liquidou com as esperanças de democratização.
Quanto à Emenda nº 01, de 17 de outubro de 1969, até hoje ainda se discute se foi mesmo
uma nova Constituição.
Isto acontece, a meu ver, por dois motivos, a saber:

a) em face da procura de legitimidade constitucional do governo à época instituído, que ainda


pretendia o reconhecimento da Carta de 1967, que teve origem híbrida;
b) dado às grandes modificações que provocou no regime jurídico constitucional.
Na verdade, uma Junta de Ministros militares a outorgou em 17.10.1969, havendo ela tra-
tado de adaptar os vários Atos Institucionais e Complementares, fortalecendo o Poder Executivo,
que, na época, justificava-se com o pretexto de que aquilo era uma tendência universal.
A sociedade protestava como podia, mas a concentração autoritária de poder respondeu com
a repressão e com a censura à liberdade de expressão, de reunião, de imprensa, etc.
Uma das reações mais marcantes ao autoritarismo ocorreu no Estado de Pernambuco, com
o lançamento da Carta do Recife, em 1971, por um grupo progressista do Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), que tentava fazer oposição ao regime.
Neste documento, pretendia-se uma Assembléia Nacional Constituinte, o que só veio a ocor-
rer anos depois, em 1986.
No entanto, foi em abril de 1984 que se iniciou, em São Paulo, uma grande campanha de rua
exigindo as eleições diretas em todos os níveis. Esta campanha teve o nome “Diretas, já”.
O produto da mobilização foi a eleição indireta de TANCREDO NEVES por um Colégio elei-
toral, que era repudiado pela opinião pública.
A posse não veio. O Presidente eleito morreu.
Surgiram as divergências de interpretação sobre quem deveria assumir. Se o Presidente da
Câmara, Deputado ULYSSES GUIMARÃES, ou o Vice-Presidente eleito, o Senador JOSÉ SAR-
NEY. Tornou-se Presidente o segundo, em 1985.
Ainda sobre a Constituição que antecedeu a de 1988, falava-se que era uma “colcha de re-
talhos”, dado que foi atingida por 27 (vinte e sete) Emendas. A 26ª foi para instalar a Assembléia
Constituinte que elaborou a atual Constituição3. A 27ª, de 02 de dezembro de 1985, dispôs, so-
bretudo, quanto à repartição de receitas entre as pessoas políticas que compunham a Federação
brasileira (União, Estados-membros, e, também, os Municípios).
Compreendidas no período histórico da Constituição que precedeu a atual no Brasil, destaco
duas Emendas, a saber:

a) a Emenda Constitucional nº 08, de 14 de abril de 1977, o chamado “Pacote de Abril”, que, entre
outros dispositivos, fez surgir a figura dos denominados Senadores “biônicos”, pois previa, no § 2º,
do art. 41, que o preenchimento de um cargo, entre os três destinados aos Senadores de cada Estado,
deveria ser feito mediante eleição indireta, por um Colégio Eleitoral. Este Colégio era composto
por membros das Assembléias Legislativas estaduais e de delegados das Câmaras municipais
do respectivo Estado a ser representado;
b) a Emenda Constitucional nº 15, de 21 de novembro de 1980, que restabeleceu o sistema de voto
direto nas eleições para Governador de Estado e para Senador da República (art. 41, “caput”,
com a redação da Emenda).
2 MIRANDA, PONTES DE. Comentários à Constituição de 1967 – Tomo I. Editora Forense. 1987.
3 A Emenda Constitucional nº 26, de novembro de 1985, convocou a Assembléia Nacional Constituinte (art. 2º),
além de conceder anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos
por atos de exceção, institucionais ou complementares. Também concedeu anistia aos autores de crimes políticos ou
conexos e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis (art. 4º).
141
A atual Constituição do Brasil é a de 05 de outubro de 1988, e já possui 85 (oitenta e cinco)
Emendas, sendo 6 (seis) Emendas Constitucionais de Revisão, todas elas editadas entre março e
junho de 1994, além de outras 79 (setenta e nove) Emendas. Isto em cerca de 26 (vinte e seis)
anos de promulgação.
Muitas delas merecem especial destaque. Como exemplo: as Reformas Administrativa e Pre-
videnciária (Emenda Constitucional nº 19, de 05 de junho de 1998 e Emenda Constitucional nº
20, de 15 de dezembro de 1998, respectivamente – duas entre as mais extensas), computando-se,
neste universo, as Emendas Constitucionais nºs. 21 e 22, a mbas de 18 de março de 1999, a de
nº 24, de 09 de dezembro de 1999, a de nº 31, de 14 de dezembro de 2000e a de nº 32, de 11 de
setembro de 2001, que, embora de menor extensão, tratam, respectivamente, de assuntos impor-
tantes, como: o reforço para o custeio da previdência social, mediante a prorrogação da Contribui-
ção provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos de natureza financeira
(CPMF, tributo cujas prorrogações já se escoaram); a possibilidade de criação de juizados especiais
no âmbito da Justiça Federal; a criação do Ministério da Defesa, retirando a condição de Ministros
dos Comandantes militares (Exército, Marinha e Aeronáutica); sobre a criação de um Fundo de
Combate à Erradicação da Pobreza e confere uma nova regulamentação constitucional para as
medidas provisórias brasileiras.
Embora este dispositivo fale em separação de poderes, cabe ressalvar que, no art. 2º, da atual
Constituição, figura, entre o que ela chama de princípios fundamentais, a previsão de que: “são
Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
Além destas, há a Reforma Tributária, a do Poder Judiciário, a da instituição de um sub-teto
para a remuneração dos servidores públicos estaduais, distritais e municipais, etc.
Um verdadeiro desmonte constitucional que, a cada dia, parece reclamar mais uma reforma.
De fato, a Constituição de outubro de 1988, em face de não haver partido de um projeto
padrão, permitiu o acolhimento de propostas as mais variadas, cabendo às Subcomissões temáti-
cas tentar conferir um mínimo de unidade ao que se fazia. Depois, com a Comissão de Sistema-
tização, lançou-se na difícil tarefa de conferir unidade a algo que efetivamente não possuía, até
porque pretendia-se um sistema de governo parlamentar, e foi votado o presidencialismo, inclusive
no plebiscito previsto no art. 2º, das Disposições Transitórias4.

4 A cronologia da Assembléia Nacional Constituinte foi a seguinte, segundo o “Jornal da Constituinte”: (Obs.: (1)
em 03.12.1987, foi aprovada mudança no Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte; (2) a Consti-
tuição de 05 de outubro de 1988 originalmente previa a sua promulgação para 15.11.1987; (3) em seguida, vão os
principais momentos do processo constituinte brasileiro)

Mês Dia Matéria


1987 02 01 Instalação
02 02 O Dr. ULYSSES GUIMARÃES foi eleito Presidente da Co-
missão Diretora
02 05 Foi aprovado o Regimento provisório
03 19 Foi aprovado o Regimento definitivo
03 24 Foi promulgado o Regimento definitivo
03 26 Ano
04 07 Instalação das Subcomissões temáticas
04 14 Início do prazo de Emendas
04 19 Fim do prazo de Emendas
05 25 Encerramento
04 01 Instalação das Comissões temáticas
05 27 Início do prazo de Emendas ao Anteprojeto das Subcomis-
sões
06 01 Fim do prazo de Emendas
04 09 Início da Comissão de Sistematização

142
Além do mais, vários foram os dispositivos que, embora promulgados, tinham contra si forte
oposição, especialmente aqueles que envolviam matéria econômica e financeira.
Apenas para exemplificar o que digo, assinalo a Emenda Constitucional nº 06, de 15 de agos-
06 15 Recebimento de 08 Anteprojetos das Comissões
06 26 1º Anteprojeto da Constituição, com 501 artigos
06 29 Início do prazo de apresentação de Emendas na Comissão de
Sistematização
07 02 Fim do prazo de apresentação de Emendas na Comissão de
Sistematização
07 09 Término da votação do anteprojeto de Constituição, resul-
tando no Projeto de Constituição da Comissão de Sistemati-
zação, com 496 artigos
07 12 Encaminhamento do Projeto aprovado ao Plenário
07 14 Início do prazo de discussão do Projeto em Plenário
07 15 Início do prazo de apresentação de Emendas
08 13 Fim do prazo de apresentação de Emendas
08 23 Fim do prazo de discussão do Projeto em Plenário, voltando
à Comissão de Sistematização
08 24 Início do prazo para o Relator apreciar as Emendas
08 26 O Relator apresenta o substitutivo
09 05 Fim do prazo de apresentação de Emendas ao Substitutivo e
o Relator apresenta o 2º Substitutivo, com 264 artigos
09 24 Início do prazo na sistematização de votação do Projeto, com
496 arts; Substitutivos: 1º (305 arts.) e o 2º (264 arts.) e das
Emendas
11 18 Término de votação na Comissão de Sistematização
11 24 O Projeto A, aprovado na Sistematização, é entregue ao Pre-
sidente da Assembléia Nacional Constituinte
11 26 Inicia a discussão e votação pelo Plenário do Projeto A
1988 01 07 Início da apresentação de Emendas ao Projeto A
01 13 Fim do prazo de apresentação de Emendas
01 14 Início do prazo para o Relator proferir parecer sobre as
Emendas, sem alterar o Projeto
01 20 Fim do prazo para o Relator proferir parecer sobre as Emen-
das
04 21 Instituída a Comissão de Redação, com 19 membros
06 30 Fim da votação em 1º turno, resultando no Projeto B
07 05 O Relator entrega a redação final do Projeto B
09 02 Término da votação, em 2º turno, do Projeto B, que se trans-
forma em Projeto C
09 15 A Comissão de Redação distribui a redação aprovada do Pro-
jeto C
09 20 Término da apreciação de propostas, resultando no Projeto
D, redação final
09 21 Publicado e distribuído o Projeto D, redação final
09 22 O Plenário aprova, em turno único, em votação global, a re-
dação final, do Projeto transformado em Constituição
10 05 Foi promulgada a Constituição (*) O Substitutivo do Relator
ao Projeto de Resolução nº 02/1987- Assembléia Nacional
Constituinte, que trata do seu Regimento Interno, previa o
término dos trabalhos constituintes em 15.11.1987.

143
to de 1995, que terminou por fazer uma série de modificações no Texto Constitucional, entre elas:

a) eliminou a figura da empresa brasileira e da empresa brasileira de capital na-


cional (art. 170, inc. IX e art. 171)5. De fato, o que, particularmente, o art. 171
pretendia era que fossem conferidas proteções e benefícios especiais, no campo
da defesa nacional e em áreas de especial interesse para o desenvolvimento na-
cional (tecnologia por exemplo), a empresas que ficassem sobre o controle efetivo
de pessoas radicadas no Brasil;

b) interferiu na pesquisa e na lavra de recursos minerais e potenciais de energia


hidráulica, pois substituiu do § 1º, do art. 176 a expressão “empresa brasileira de
capital nacional” por “empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua
sede e administração no País”;

c) interferiu no monopólio da União sobre o petróleo e o gás natural, pois autorizou


a mesma a contratar com empresas estatais ou privadas a realização das ativida-
des de pesquisa e lavra das jazidas, refinação e transporte do petróleo etc., con-
forme dispôs na nova redação do § 1º, do art. 177. Apenas a pesquisa, a lavra, o
enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios
e minerais nucleares e seus derivados ficaram sob o monopólio da União, sem
a possibilidade de a mesma contratar estas atividades com empresas estatais ou
privadas; isto por força da exclusão do referenciado §1º.

Com a Emenda nº 07, também de 15 de agosto de 1995, não foi diferente, pois alterou o
art. 178, chegando a modificar a regra geral de que a navegação de cabotagem e a interior seriam
privativas de embarcações nacionais, porquanto, no Parágrafo Único do mesmo artigo, assinalou:
“Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de
mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangei-
ras.” No texto reformado, havia a taxatividade de que a navegação de cabotagem e a interior eram
privativas de embarcações nacionais, apenas com a ressalva de casos de necessidade pública, se-
gundo o que dispusesse a lei.
Ainda no campo da ordem econômica, cabe destacar que a Emenda nº 08, de 15 de agosto
de 1995, tratou de ampliar as possibilidades de o setor privado vir a explorar os serviços de tele-
comunicações, pois, entre outras novidades, nada vem dizendo sobre a necessidade de controle

5 Diziam os artigos eliminados: “Art. 170. (o “caput” foi mantido) A ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios: (...) IX – tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital na-
cional de pequeno porte.” Era o texto do art. 171: “Art. 171. São consideradas: I- empresa brasileira a constituída sob
as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País; II- empresa brasileira de capital nacional aquela cujo
controle efetivo esteja em carácter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e
residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titula-
ridade da maioria de seu capital votante e o exercício de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades.
§ 1º. A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional:
I- conceder protecção e benefícios especiais temporários para desenvolver actividades consideradas estratégicas para
a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País.
II- estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras
condições e requisitos:
a exigência de que o controle referido no inciso II do caput se estenda às atividades tecnológicas das empresas, assim
entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia,
percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito
público interno.
§ 2º. Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa
brasileira de capital nacional.” Todo este artigo 171 foi eliminado do Texto Constitucional pela Emenda nº 06, de 15
de agosto de 1995.
144
acionário estatal.6 (art. 21, inc. XI e XII, al. “a”)
É bem possível que se diga que tudo isto vai no caminho de que o mundo está a exigir que o
Estado diminua de tamanho, dado que a burocracia oficial não se apresenta como a base para se
construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inc. I, da Constituição do Brasil), o que é
um dos objetivos fundamentais da República. Após 1988, caiu o muro de Berlim, e isto simbolica-
mente permitiria a mais ampla abertura ao capital privado.
Pode ser que nisto haja razão, mas, nos setores onde a lucratividade não se apresente, será
necessária a atuação do Estado, sob pena de nem o Estado nem o capital privado virem a aten-
dê-los. Ou, dito de outro modo: quando a atividade for lucrativa, cabe às empresas particulares
tirarem o proveito; quando não for, caberá ao Estado arcar com o prejuízo. Parece que esta não
pode ser a interpretação a se atribuir ao art. 173, “caput”, da Constituição do Brasil7, que predica
que a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária
aos imperativos da segurança nacional ou ao relevante interesse coletivo. Afinal, não pode caber a
alguém apenas o que dá prejuízo; não sendo razoável admitir que se retire como compatível com
o interesse coletivo esta conseqüência hermenêutica.
Em verdade, no trecho constitucional referente à ordem econômica foram tais as modifica-
ções e a pressa com que elas foram feitas que até se redundou por provocar um artigo que não
possui nenhum texto. É, como foi visto, a situação do art. 171, da Constituição do Brasil, que, ao
seu lado, tem apenas o seguinte registro: “Revogado pela Emenda Constitucional nº 06, de 15 de
agosto de 1995.”
Mais (repita-se): as Emendas nºs. 06 e 07, que têm a mesma data (15 de agosto de 1995),
aprovaram, cada uma delas, o mesmo artigo constitucional. Acredite se quiser. O art. 246, da
Constituição do Brasil foi aprovado duas vezes, e com idêntico teor, tal a desatenção que vem me-
recendo a Constituição no Brasil. Algo bastante semelhante, mas ainda pior, do que adotar uma
Constituição por um dia. No caso, sequer se procurou saber que o artigo já havia sido aprovado.
Dizia o art. 246:

Art. 246. É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da


Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a
partir de 1995.8

6 O Texto original tinha a seguinte redação: “Compete à União explorar, diretamente ou mediante concessão a
empresas sob o controle acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados, e demais
serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de serviços de informações por entidades de direito
privado, através da rede pública de telecomunicações explorada pela União e explorar, diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens e demais serviços de tele-
comunicações.” O atual Texto prevê: “Compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou
permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação
de um órgão regulador e outros aspectos institucionais e explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão
ou permissão os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens;”
7 Constituição do Brasil: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de ativi-
dade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a rele-
vante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
(Este parágrafo vai com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 05 de junho de 1998) § 1º A lei esta-
belecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem
atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
I- sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;
II- a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, co-
merciais, trabalhistas e tributários;
III- licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração públi-
ca;
IV- a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas mi-
noritários;
V- os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.”
8 É a nova redação deste artigo, conferida pela Emenda Constitucional nº 32, de 11.09.2001: “É vedada a adoção
145
Diante deste dispositivo, e analisando um tributo que, no Brasil, é chamado de contribuição
social do salário-educação, escrevi um artigo que terminava afirmando:

1. se a Constituição chegou ao exagero de ver aprovado um mesmo artigo duas vezes, também,
entre as suas matérias, há aquelas que vêm repetidas em mais de um artigo, como é o caso
do princípio da igualdade e da segurança jurídica9 e a garantia da irretroatividade da lei me-
nos benéfica etc. Ora, se um destes dispositivos vier a ser alterado por Emenda, e os outros
não o forem, poderiam estes últimos servir de fundamento de validade para novas medidas
provisórias, posteriores a 1995?
2. se um artigo alterado por Emenda tratasse, originalmente, de dois ou mais assuntos, e ape-
nas um houvesse sofrido alteração, estaria o outro impossibilitado de vir a ser regulado por
meio de medida provisória, mesmo estando manifestamente presentes os requisitos constitu-
cionais para a sua edição: relevância e urgência (art. 62, da Constituição do Brasil)?10

Quanto ao primeiro argumento, é possível que se diga que tanto a isonomia, quanto a se-
gurança jurídica, como também a garantia da irretroatividade da lei menos benéfica, estão, todos
eles, sob o manto da intangibilidade constitucional (art. 60, § 4º, da Constituição do Brasil)11. No
entanto, cabe sopesar que nada é mais fundamental, nos tempos modernos, do que a educação de
um povo, e, entre os direitos e garantias individuais, é obrigatória a presença da educação.
Assim, reconhecida esta como um direito de todos e um dever do Estado (arts. 205 e ss.) - o
que é fortalecido pelo fato de que o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público,
ou mesmo a sua oferta irregular, detém como conseqüência, prevista na Constituição, a respon-
sabilidade da autoridade competente (art. 208, § 2º) – é preciso que, na interpretação dos seus
predicamentos constitucionais, não se esqueça de que a cidadania se constrói com a melhoria da
qualidade de ensino e com a universalização do atendimento escolar (ver arts. 205 e ss, da Cons-
tituição do Brasil)12.

de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de
Emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 até a promulgação desta Emenda, inclusive.”
9 Quanto à redução das desigualdades entre as regiões, pode-se, ao menos, citar-se os arts. 3º, inc. III; 151, inc. I;
165, § 7º e 170, inc. VII.
Sobre o princípio da irretroatividade, é o mesmo que ocorre, conforme se retira dos arts. 5º, “caput” (segurança jurídi-
ca); 5º, inc. XXXVI (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”); 150, inc. III,
al. “a” (“é vedado às pessoas políticas cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência
da lei que os houver instituído ou aumentado”).
10 Constituição do Brasil: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar me-
didas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso,
será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.
Parágrafo Único. As medidas provisórias perderão eficácia desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo
de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decor-
rentes.” (Texto originário).
11 Constituição do Brasil: “Art. 60 (...) § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolirI-
a forma federativa de Estado;II- o voto direto, secreto, universal e periódico;III- a separação dos PoderesIV- os direitos
e garantias fundamentais.”
12 Constituição do Brasil. Por exemplo: “Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Es-
tados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, com-
preendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. § 1º. A parcela da arrecadação
de impostos transferida pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, ou pelos Estados aos respectivos
Municípios, não é considerada, para efeito de cálculo previsto neste artigo, receita do governo que a transferir.§ 2º.
Para efeito do cumprimento do disposto no caput deste artigo, serão considerados os sistemas de ensino federal, esta-
dual e municipal e os recursos aplicados na forma do art. 213 (escolas públicas, comunitárias, confessionais ou filan-
trópicas).§ 3º. A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino
obrigatório, nos termos do plano nacional de educação.§ 4º. Os programas suplementares de alimentação e assistência
à saúde previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recur-
sos orçamentários. (a L. nº 8.913, de 12 de julho de 1994, dispõe sobre a municipalização da merenda escolar).§ 5º. O
ensino fundamental terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação recolhida,
pelas empresas, na forma da lei.”
146
Não se pense que a questão que agora apresento só tenha importância teórica. Veja-se.
A contribuição social do salário-educação vem disciplinada no art. 212, § 5º, que foi altera-
do em 1996, pela Emenda nº 14, de 12 de setembro de 1996, que lhe retirou a expressão: “que
dela poderão deduzir a aplicação realizada no ensino fundamental de seus empregados e depen-
dentes”, embora a remissão feita à lei disciplinadora pudesse vir a restabelecer a regulamentação
neste mesmo sentido.
Vale lembrara que o antecedente histórico mais antigo desta exação brasileira parece ser o
“subsídio literário”, um imposto destinado a financiar a educação, instituído logo após a expulsão
dos jesuítas do Brasil, o que implicou no fechamento dos seus colégios e na substituição pelas
“aulas régias”. Foram dois os motivos básicos para esta expulsão, a saber: a) a região das Missões
ou a questão dos limites no sul do Brasil; b) o atentado contra o Rei José I, em 1758, em Portugal.
Ora, embora não de maneira especial, é sabido que o art. 149, da vigente Constituição do
Brasil13, trata das contribuições especiais; e, entre elas, estão as sociais.
Abstraindo a existência de outros defeitos apontados nesta contribuição social, cabe perqui-
rir se este pode ser visto como mais um.
Particularmente, isto me faz lembrar um chavão tantas vezes repetido no Brasil: “quando
não se quer, qualquer desculpa serve.”
Feita esta análise panorâmica da história do Estado e do direito constitucional brasileiro,
passo a um maior detalhamento, na área tributária, quanto àquilo que de mais importante passou
pelo Brasil desde o descobrimento.
Antes disto, vale a referência sobre o que venha a ser “tributo” de acordo com o direito po-
sitivo nacional.
Tal como muitas definições são positivadas, o mesmo ocorre com o “tributo”.
A própria Constituição da República Federativa do Brasil de outubro de 1988 remete à lei
complementar a tarefa de definir “os tributos e suas espécies” (art. 146, inc. III, al. “a”)14.
Por sua vez, o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/25.10.1966) define o que seja o
tributo, dizendo no seu art. 3º: “é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela
se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade
administrativa plenamente vinculada.”
Em suma, a idéia do conceito de tributo é pertencente ao direito positivo, não sendo uma
questão de lógica jurídica ou universal. Varia com a história.
Dentro desta perspectiva, é que se torna preciso considerar que as contribuições extraídas
da história não são antecedentes perfeitos das exações atuais.
De fato, muitas vezes, as comparações, inclusive as históricas, são perigosas.
Etimologicamente, contudo, a expressão tributo deriva do latim, tributum, particípio passa-
do do verbo tribuere, e tem, dentre outras acepções, a de dividir ou repartir entre as tribos. Daí a

13 Constituição do Brasil: “Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção
no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação
nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III (exigência de lei complementar para o estabelecimento
de normas gerais em matéria de legislação tributária, e 150, I e III (princípio da legalidade estrita ou da tipicidade
cerrada e princípios da irretroatividade e anterioridade, com a ressalva de que para as contribuições em favor da
seguridade social a anterioridade é nonagesimal), e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às con-
tribuições a que alude o dispositivo.Parágrafo Único. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir
contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência
social.”
Diz o art. 195, § 6º, Constituição do Brasil: “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de
forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (...)
§ 6º. As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da
publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art, 150, III, b (princípio
da anterioridade, que impede às pessoas políticas cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido
publicada a lei que os instituiu ou aumentou;).”
14 Constituição de outubro de 1988. “Art. 146. Cabe à lei complementar: (...) III- estabelecer normas gerais em ma-
téria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação
aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
(...)”.
147
idéia de carga pública repartida entre as tribos.
No caso do Brasil colônia15, é fundamental inserir esta noção de acordo com:

a) o direito geral português, que valia para todo o reino;


b) o direito expresso por uma legislação específica, ou colonial geral;
c) o direito especial formulado para o Brasil. Foi o caso das minas e dos índios;
d) o direito emanado pela própria colônia (os forais16 e os regimentos permitiam aos governado-
res, limitadamente, complementarem as leis da metrópole. Também as câmaras ou os sena-
dos das câmaras das vilas e cidades formulavam leis, pretendendo atender às necessidades
da administração municipal);
e) o direito consuetudinário, derivado dos usos e costumes locais, inclusive dos índios autócto-
nes.

Em suma, o direito colonial era diferente daquele em vigor na metrópole.


Mas, creio que já na fase inicial da Colônia, ainda no princípio da exploração do pau-brasil,
adveio a cobrança do “quinto do pau-brasil”, uma espécie de primeira exação fiscal nas terras
brasileiras.
Cabe observar que o período do Brasil colônia não conheceu muitos tributos tradicionais em
Portugal, como os foros de julgada, a fossadeira, o relego, as portagens, as açougagens, o montado
e a coima, etc.17
Até o final do regime das Capitanias Hereditárias18, algo que ocorreu por volta do século
XVIII, nos tempos do Marquês de Pombal19, os tributos ou as rendas eram distribuídos entre o real
Erário e o donatário, mais ou menos da seguinte forma:
Para o real Erário:

15 A Capitulação do Mar Oceano, conhecida como o Tratado de Tordesilhas (07.06.1494), determinava que, caso a
Espanha descobrisse novas terras a oeste até 20 de junho de 1494, a linha passaria a 250 léguas de Cabo Verde. Caso
contrário, tal como ocorreu, passaria a 370 léguas. Contra isto, o Rei FRANCISCO I, da França, contraditava, dizendo
que não encontrava, no testamento de Adão, poderes conferidos ao Papa, ALEXANDRE VI, para dividir o mundo entre
Portugal e Espanha (Castela, Leão, Aragão e Granada). Este é, provavelmente, o primeiro diploma legal afetando o
Brasil. A Bula do Papa JÚLIO II, de 24 de janeiro de 1506, confirmou ao Rei MANUEL I, enquanto grão-mestre da Or-
dem de Cristo e soberano de Portugal, os direitos sobre o Brasil, conforme o referido Tratado. Esta Bula foi novamente
confirmada por outra, do Papa LEÃO X, isto sem que deixassem de existir restrições das demais potências européias.
16 Os forais são, às vezes, considerados autênticos Códigos tributários.
17 A título de esclarecimento: (1) foros de julgada – recaía em terras lavradas, às vezes pagos em pão (trigo); (2)
fossadeira – eram pagos pelos que eram obrigados a ir com o rei ao fossado, e, também, era o nome dado à terra que
estava obrigada àquele tributo; (3) relego – privilégio que gozavam os servidores de algumas terras para venderem o
seu vinho sem concorrência; (4) portagens – correspondia aos direitos de barreira, e era pago por cargas ou passagem.
Uma espécie de pedágio; (5) açougagem – pago por ter açougue, não só pela venda de carne, mas também pão, horta-
liça, etc.; montado (6) – expressava o tributo pago aos donos dos terrenos que serviam para a engorda dos porcos; (7)
coima – pena pecuniária incidente contra o que se apoderava de pequenos valores de propriedade alheia ou ao dono
de animais que pastavam indevidamente em propriedade de outrem. Uma forma de multa.
18 Uma espécie de usufruto ou de enfiteuse (direito privado), ou de concessão (direito público). Interessante ob-
servar que, nos séculos IX e X, quando os visigodos desceram das Astúrias, ganhando terrenos aos infiéis (árabes e
mouros), e, também, nos séculos XII e XIII, quando os monarcas do antigo condado portucalense avançavam para o
sul, ao serem conquistadas as terras, e diante do problema de defendê-las, conservava-as com o povoamento e o cul-
tivo. Assim, alguém da confiança do rei era designado governador, encarregando-se da ocupação e da conservação das
terras. Nas capitanias, não era diferente, nomeando-se, mediante a carta foral, alguém com objetivo similar.
19 O século XVIII foi o do iluminismo, onde surgiram os “déspotas esclarecidos”, entre eles CATARINA, da Rússia;
FREDERICO, da Prússia; JOSÉ II, da Áustria e o Ministro de JOSÉ I, de Portugal, denominado de SEBASTIÃO JOSÉ
DE CARVALHO E MELO, o Conde de Oeiras e Marquês de Pombal. A opinião sobre este importante vulto português
vai de críticas que o taxam de tirânico e cruel a elogios que apontam nele o que houve de melhor em Portugal, colo-
cando-o ao lado de VASCO DA GAMA e de LUÍS DE CAMÕES. Com o seu caráter revolucionário, promoveu reformas,
entre elas a reconstrução de Lisboa, a quase total extinção das capitanias hereditárias e a expulsão dos jesuítas, que
foram obrigados a sair do Brasil, fechando todos os colégios que patrocinavam. Estes colégios foram substituídos pelas
“aulas régias”, que eram financiadas pelo “subsídio literário”, um tipo de imposto que pretendia financiar a educa-
ção, criado pelo Alvará de 23 de novembro de 1772. Incidia sobre cada rês abatida, e sobre a aguardente destilada e
a “carne verde”.
148
a) os direitos alfandegários (importação, exportação);
b) 10% do valor das mercadorias naufragadas que viessem às costas brasileiras;
c) o quinto ou vigésimo do ouro, prata, cobre, coral, pérola, chumbo, etc.
d) o dízimo do pescado e dos demais produtos da terra;
e) a sisa (transmissão) por cabeça de índio escravizado.

Para o donatário ou equivalentes:

a) o monopólio das explorações das moedas e quaisquer outros engenhos;


b) a barcagem, ou direitos de passagem nos rios;
c) o quinto ou vigésimo do produto do pau-brasil, das especiarias e das drogas;
d) o quinto do ouro e minerais preciosos, encontrados na Capitania;
e) meio dízimo do pescado, ou, a cada grupo de vinte peixes, um cabia ao donatário, capitão-
mor ou governador;
f) a redízima, ou a décima parte da dízima, sobre todas as rendas da coroa.

No período em que vigorou o Governo Geral, dividia-se os tributos em ordinários e extraor-


dinários. Para o real Erário, basicamente os mesmos tributos eram remetidos. Para o Governador-
Geral, acrescentava-se os direitos dos escravos.
Os tributos designados de extraordinários, como o próprio nome indica, eram destinados a
despesas excepcionais, tais como para fazer frente aos gastos com tropas ou construções de forta-
lezas ou cidades.
Em termos mais genéricos, costumava-se distribuir os tributos em três classificações:

a) as derramas, que independiam dos rendimentos do contribuinte;


b) as fintas, que obedeciam a uma proporção com a renda do contribuinte;
c) as contribuições, que eram uma espécie de designação subsidiária e de conteúdo variado.

Observação: no século XVIII, a derrama teve uma significação histórica importante


para o Brasil, pois dela sobressaía-se a cobrança do quinto do ouro em atraso. Daí
a Inconfidência mineira20, que levava às armas o sentimento de impopularidade
do esquema tributário implantado. Aliás, no Brasil, ainda é popular a expressão
“quintos dos infernos”; o que, por si só, fornece uma imagem simbólica do repúdio.

Durante o chamado domínio holandês, por volta de 1630 a 1654, onde os batavos fixaram-

20 A Inconfidência mineira é havida como um dos principaismovimentos de emancipação política do Brasil colônia,
embora haja sido coordenada pela elite de Minas Gerais sob a influência de ideais iluministas. Em 1789, propunha a
Independência em relação a Portugal. Parece que a política pombalina para o Brasil, com a organização das Compa-
nhias de Comércio monopolistas, trouxe um peso que se fazia bem sentir na mais importante região aurífera e dia-
mantífera brasileira, que era Minas Gerais. De fato, a “derrama” não implicava em um novo tributo, mas na cobrança
da diferença em relação ao que deveria ter sido pago e não o foi. Porém, a forma de execução promovida pelas auto-
ridades portuguesas era extremamente violenta, gerando uma revolta contra a situação de dominação. Além disto, o
“Alvará de proibição industrial”, baixado em 1785, por D. MARIA I, a louca, proibia a existência de manufaturas no
Brasil; o que dificultou, ainda mais, o nível de vida da população interiorana, que passara a depender das tropas que
traziam do litoral os produtos importados por preços muito altos e em uma quantidade precária. A independência das
13 colônias inglesas, na América do Norte, também foi um exemplo estimulador para outros movimentosemancipa-
cionistas na América Ibérica, incluindo o Brasil. Um dos poucos líderes sem posses desta Conjuração foi TIRADEN-
TES - um militar (Alferes) filho de um pequeno proprietário - que, procurando garantir o apoio de outros proprietários
rurais, contactou com vários mineradores, entre eles JOAQUIM SILVÉRIO DOS REIS, que, embora a princípio haja
aderido ao movimento, pois era também um devedor de impostos, posteriormente, com medo, resolveu delatar a cons-
piração. Na Quarta audiência de depoimentos, no início de 1790, TIRADENTES assumiu a sua posição de líder. Onze
dos acusados foram condenados à morte, mas apenas TIRADENTES foi executado, pois os demais tiveram as penas
comutadas para degredo perpétuo por D. MARIA I. O Alferes foi executado aos 21 de abril de 1792, no Rio de Janeiro,
sendo esquartejado, distribuindo-se as partes do seu corpo para exposição em Minas Gerais como uma advertência
contra novas tentativas de rebelião.
149
se no então centro econômico do Brasil, Pernambuco, a terra do açúcar (Zuickerland), e de onde
surgiu a reflexiva afirmação de que “não existia pecado do lado de baixo do Equador” (GASPAR
BARLEAUS, “História dos feitos recentemente praticados durante os oito anos no Brasil”), os
holandeses como que fixaram uma espécie de Constituição do Brasil holandês, mediante o Re-
gulamento de 23 de agosto de 1636, havendo, em cada município, o Conselho comunal, que im-
plicava na soma do Conselho dos escabinos (uma espécie de tribunal municipal) mais o escuteto
(schout), que era o chefe administrativo municipal.
Era exatamente o escuteto que detinha as funções de promotor de justiça, de chefe de polí-
cia local e também de exator da fazenda. Na verdade, nem sempre a cobrança dos impostos holan-
deses realizava-se pelo escuteto, sendo passível de ser realizada por arrendatários, especialmente
comerciantes judeus.
Já no reinado de D. MARIA I, ou entre o final do século XVIII e o início do século XIX, eclo-
diram, no Brasil, mais quatro contribuições:

a) direitos que variavam de 10, 20, 24 ou 40% relativos à pólvora de origem estrangeira (Alvará
de 13 de julho de 1778);
b) subsídio do açúcar e do algodão (Carta Régia de 19 de maio de 1779);
c) subsídio do tabaco em pó (Alvará de 18 de setembro de 1779);
d) imposto sobre o ouro, sobre botequins e tabernas e sobre a aguardente (Alvará de 18 de mar-
ço de 1801).

Em seguida, com a vinda ao Brasil da família real portuguesa, advieram transformações


principalmente no campo do direito público brasileiro, ficando o Reino Unido de Portugal, Brasil
e Algarves um tanto refém dos ingleses.
Era a sombra da Inglaterra lançada por sobre o Atlântico. No Brasil, havia, de fato, uma
espécie de jurisdição especial para os súditos da majestade britânica, ratificada e destacada no
Tratado de Comércio e Navegação de 1810.
Sob esta fisionomia histórica, foram criados novos tributos, ao lado dos já existentes. São
exemplos disto:

a) importação (Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, a da abertura dos portos às nações ami-
gas);
b) direitos de guindaste (Alvará de 25 de abril de 1808);
c) décima dos prédios urbanos, ou 10% sobre os rendimentos líquidos dos imóveis situados no
litoral ou em regiões populosas do interior (Alvará de 27 de junho de 1808). Depois, passou
a ser chamado de décima urbana, e, em seguida, de imposto sobre prédios urbanos;
d) pensão para a Capela Real (Alvará de 20 de agosto de 1808);
e) contribuição de polícia (Ato de 13 de maio de 1809);
f) imposto de sisa dos bens de raiz (Alvará de 3 de junho de 1809). Depois, passou a chamar-se
de imposto sobre a transmissão imobiliária por ato inter-vivos;
g) meia sisa dos escravos, implicando na cobrança de 5% sobre toda a venda de escravo conhe-
cedor de um ofício – ou ladino (Alvará de 3 de junho de 1809);
h) décima das heranças e legados (Alvará de 17 de junho de 1809);
i) imposto do selo sobre o papel (Alvará de 17 de junho de 1809);
j) direitos de entrada de escravos novos (Alvará de 22 de junho de 1810);
k) imposto sobre carruagens, lojas, armazéns ou sobrados e navios (Alvará de 20 de outubro de
1812);
l) imposto sobre a carne verde e as lãs grosseiras produzidas no Brasil;
m) direitos de 10% exigidos sobre os vencimentos dos funcionários da Fazenda e da Justiça, um
predecessor do imposto de renda.

Enfim, existiam paralelamente impostos semelhantes cobrados pela Corte, pelas Províncias
e pelos municípios.
Obviamente, os tributos não passaram imunes ao movimento de independência e pela Cons-
tituição de 25 de março de 1824.

150
No art. 15, inc. X, ela previa como da atribuição da Assembléia Geral, composta pela Câmara
dos Deputados e pela Câmara dos Senadores, fixar anualmente as despesas públicas e repartir a
contribuição direta. No art. 36, inc. I, firmava como da competência da Câmara dos Deputados a
iniciativa sobre os impostos.
Era o ideal liberal de que toda tributação precisaria passar pela representação. Era o princí-
pio da legalidade.
A Constituição de março de 1824 não continha apenas este princípio, comportando o da
capacidade contributiva, o da isonomia, o da irretroatividade, etc.
Outra peculiaridade é a de que, mesmo sendo o Brasil um Estado unitário, existiam, ao lado
da central, a receita provincial, e os tributos municipais.
Eram cerca de 151 rubricas, com denominações assistemáticas, além das provinciais e mu-
nicipais.
Com o Ato Adicional de 1834, tentou-se discriminar melhor as exações, fixando que às
Assembléias provinciais cabia legislar sobre a fixação das despesas municipais e os impostos ne-
cessários, contanto que estes não prejudicassem as imposições gerais do Estado. E às Câmaras
municipais poderiam propor os meios de compor as despesas dos seus municípios (art. 10, § 5º)21.
A Lei nº 99, de 31 de outubro de 1835 especificou as rendas do Governo central.
A Lei nº 317, de 21 de outubro de 1843 criou novos impostos e aumentou os já existentes.
Era bastante caótico o sistema estabelecido, se é que se achava possível fornecer um sistema
tributário equilibrado para o Brasil imperial.
Entre outros problemas, a carga tributária era cumulativa e as receitas costumavam ser dis-
tribuídas em:

a) receitas gerais (ex.: importação, exportação, sisa dos bens de raiz, loterias, taxas dos escra-
vos, etc);
b) receitas provinciais (ex.: décima dos legados e herança, dízimas dos gêneros – açúcar, café,
transmissão sobre a propriedade móvel, meia sisa dos escravos ladinos, décima dos prédios
urbanos, etc);
c) receitas municipais (arrecadavam os tributos que a Província respectiva lhes outorgava).

Veio a República, e com ela a Constituição de 24 de fevereiro de 1891, pretendendo firmar


um sistema rígido de discriminação de receitas tributárias, distribuído entre a União e os Estados,
pois ficavam excluídos os Municípios.
No art. 7º, havia uma competência exclusiva da União (ex.: importação, taxas de selo, res-
salvada a estadual, taxas de correios e telégrafos). Vedava-se ao Governo federal criar distinções e
preferências com relação aos portos estaduais.
No art. 9º, definia-se os impostos estaduais (ex: exportação, sobre imóveis rurais e urbanos,
sobre transmissão de propriedade e sobre indústria e profissões, contribuições referentes aos seus
telégrafos e correios).
Foi esta Constituição que fixou a imunidade recíproca, proibindo aos Estados tributarem
bens e rendas federais ou serviços a cargo da União, e reciprocamente (art. 10)22. Vedava-se, tam-
bém, à União e aos Estados a prescrição das leis retroativas.
Contudo, no art. 1223, considerava lícito aos Estados e à União, cumulativamente ou não,
criar outras fontes de receitas, desde que não colidisse com as vedações nela fixadas. Esta com-
petência concorrente permaneceu sendo objeto de severas críticas, e serviu de anteparo para a

21 Acto Addicional, Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834 – Faz algumas alterações e adições à Constituição Política
do Império, nos termos da Lei de 12 de outubro de 1832. “Art. 10. Compete ás mesmas Assembléas legislar: (...) § 5º.
Sobre a fixação das despezas municipaes e provinciaes, e os impostos para ellas necessarios, com tanto que estes não
prejudiquem as imposições geraes do Estado. As Camaras poderão propôr os meios de occorer ás despezas dos seus
municipios.”
22 Constituição de 24 de fevereiro de 1891. “Art. 10. É prohibido aos Estados tributar bens e rendas federaes ou
serviços a cargo da União, e reciprocamente.”
23 Constituição de 24 de fevereiro de 1891. “Art. 12. Além das fontes de receita discriminadas nos arts. 7º e 9º, é
lícito á União, como aos Estados, cumulativamente ou não, crear outras quaesquer, não contravindo o disposto nos
arts. 7º, 9º e 11, n. 1.”
151
criação do imposto de renda no Brasil pela via subconstitucional.
Finalmente, proibia a criação de imposto de qualquer natureza senão em virtude de lei au-
torizativa.
Ocorre que a grave crise econômica que abateu o mundo, no final dos anos 20, não deixou
de influenciar decisivamente no Brasil. Trouxe a depressão para o setor rural e, por outro lado, fez
com que houvesse um estímulo para a fabricação de produtos nacionais.
Em suma, a economia agrícola sentiu-se sufocada, tirando o seu apoio do Governo; o que
redundou na chamada “Revolução de 30”.
No período revolucionário, foram criados:

a) a taxa de educação e saúde, incidente sobre documentos no âmbito federal, estadual ou mu-
nicipal (Decreto nº 21.335, de 29 de abril de 1932);
b) a contribuição de melhoria (Decreto nº 21.930, de 11 de maio de 1932);
c) o imposto proprocional sobre capitais empregados em hipotecas (Decreto nº 21.949, de 12
de outubro de 1932).

Em 1934, foi determinada uma Reforma no Tesouro Nacional (Decreto nº 24.036, de 26 de


março).
Também em 1934, eclodiu uma nova Constituição brasileira, mais precisamente aos 16 de
julho.
Uma das suas novidades foi o fato de que manteve, ao lado das receitas federais e estaduais,
as municipais.
Outra foi o fato de vedar a bitributação. Era o texto: “É vedada a bitributação, prevalecendo
o imposto decretado pela União quando a competência for concorrente. Sem prejuízo do recurso
judicial que couber, incumbe ao Senado Federal, ex officio ou mediante provocação de qualquer
contribuinte, declarar a existência da bitributação e determinar a qual dos dois tributos cabe a
prevalência.” (art. 11)
Criou também:

a) o imposto de renda e o de consumo como tributos federais (art. 6º, inc. I, als. “c” e “b”);
b) o imposto de vendas e consignações para os Estados (art. 8º, inc. I, al. “e”).

Competia privativamente à União (art. 6º), entre outras exações, fixar impostos sobre: im-
portação; consumo de quaisquer mercadorias, exceto os combustíveis de motor à explosão; renda
e proventos de qualquer natureza, excetuada a cedular de imóveis, etc.
Competiam privativamente aos Estados fixar impostos sobre: propriedade territorial, exceto
a urbana; transmissão de propriedade causa mortis; transmissão de propriedade imobiliária inter
vivos, inclusive a sua incorporação ao capital da sociedade; vendas e consignações efetuadas por
comerciantes e produtores, inclusive as industriais, ficando isenta a primeira operação do peque-
no produtor, como tal definido na lei estadual; exportação de mercadorias de sua produção até o
máximo de dez por cento ad valorem, vedados quaisquer adicionais; indústria e profissões, etc.
Quanto ao imposto de indústrias e profissões, embora lançado pelo Estado, seria arrecadado
por ele e pelos Municípios em partes iguais.
Também previa a competência residual, admitindo a criação de outros impostos, para além
do disposto expressamente no Texto Constitucional, cabendo 30% à União e 20% aos Municípios,
de onde tinham provindo.
Competia privativamente aos Municípios, além da participação no imposto de indústria e
profissões e de vinte por cento sobre a competência residual: imposto de licenças; impostos predial
e territorial urbanos, cobrado, o primeiro, sob a forma décima ou de cédula de renda; o imposto
sobre diversões públicas; o imposto cedular sobre a renda dos imóveis rurais e as taxas sobre ser-
viços municipais.
Mas o intervalo democrático foi curto, pois em 1937, veio a “polaca”, que, embora trouxesse
pequenas alterações, mantendo o que havia sido previsto em 1934, alinhou consigo uma ditadura.
Entre as mudanças:

152
a) suspendeu-se o imposto estadual sobre consumo de motor à explosão e o municipal sobre
rendas de imóveis rurais. Disto resultou a unificação dos impostos de consumo e de renda,
que ficaram com a União;
b) criou-se um adicional ao imposto de renda, motivando-o na proteção à família. Ele incidia
sobre pessoas solteiras, viúvas e sobre casais sem filhos (Decreto nº 3.200, de 19 de abril de
1941).

Após, veio a Constituição de 18 de setembro de 1946, que destacou:

a) o aspecto municipalista24;
b) o desaparecimento das referências à bitributação feitas nas Constituições de 1934 e 1937,
entendendo-se que toda ela seria inconstitucional, sem que isto precisasse ser dito;
c) o conceito expresso da contribuição de melhoria para a hipótese de valorização do imóvel
em conseqüência de obras públicas, não sendo exigível para além da despesa realizada e do
acréscimo do valor para cada imóvel beneficiado (art. 30 e Parágrafo Único);
d) as limitações ao poder de tributar foram ampliadas, tornando-se imunes os templos, bens e
serviços de partidos políticos, instituições educacionais e assistenciais e o papel destinado
exclusivamente a jornais, periódicos e livros (art. 31);
e) os impostos deveriam ser sempre que possível pessoais e graduados pela capacidade econô-
mica do contribuinte (art. 202);
f) a visão de proteger os setores mais pobres, reduzindo a antiga tradição da tributação regres-
siva, onde se onera mais os que menos têm capacidade de pagar;
g) o instituto do direito anglo-saxão (grants-in-aid) que implica na técnica de participação por
uma pessoa política de um tributo da competência para a instituição de uma outra pessoa
política. Isto foi promovido pela Emenda Constitucional nº 05, de 21 de novembro de 1961,
que tinha por epígrafe instituir uma nova discriminação de rendas em favor dos municípios
brasileiros.

Exemplificando com a fórmula adotada:

1. tributos da competência da União. Ex.: imposto sobre consumo de mercadorias – do total


do volume arrecadado, 10% pertenciam aos municípios, efetuada a distribuição em partes
iguais; imposto único sobre combustíveis e lubrificantes minerais do País e energia elétrica
– 60%, no mínimo, entregues aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios proporcional-
mente à sua superfície, população, consumo e produção; imposto sobre a renda e proventos
de qualquer natureza – 15% do total do volume arrecadado pertenciam aos municípios, efe-
tuada a distribuição em partes iguais, etc;
2. tributos da competência dos Estados. Ex.: competência residual – 20% do produto da arreca-
dação pertenciam à União; participação na arrecadação do imposto único sobre lubrificantes
e minerais do País e energia elétrica – 60%, no mínimo, eram entregues aos Estados, ao Dis-
trito Federal e aos Municípios, etc;
3. tributos dos municípios. Ex.: participação na arrecadação do imposto sobre consumo de
mercadorias (10%), do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (15%), dos
impostos concorrentes entre a União e os Estados (40%) e do recebimento do excesso de
arrecadação de impostos do Estado (30%)25.

24 Em 1945, o Tesouro Federal arrecadava 63% dos tributos pagos, enquanto os Municípios não chegavam a receber
7%, cabendo aos Estados por volta dos 30% restantes. Por isto, objetivando melhorar as finanças municipais, tomou-
se, entre outras, as seguintes medidas: a) conferiu-se aos Municípios todo o Imposto de Indústria e Profissões (IIP),
pois antes só ficavam com 50% dele; b) fixou-se uma quota, dividida em partes iguais, no rateio dos 10% do Imposto
de Renda, excluídas as Capitais; c) quando a arrecadação estadual de impostos, salvo o de exportação, excedesse, em
Municípo que não fosse o da Capital, o total das rendas locais de qualquer natureza, o Estado dar-lhe-ia anualmente
30% do excesso arrecadado.
25 Vide o art. 29, da Emenda Constitucional nº 05, publicada no Diário Oficial de 22 de novembro de 1961, e re-
vogada pelo art. 25, da Emenda Constitucional nº 18, de 1 de dezembro de 1965: “Art. 29. Além da renda que lhes é
atribuída por força dos §§ 2º, 4º e 5º, e dos impostos que, no todo ou em parte, lhe forem transferidos pelo Estado, per-
153
Em seguida, veio aquele que é considerado o fator inicial mais marcante do atual sistema
tributário brasileiro. Refiro-me à Emenda Constitucional nº 18, de 01 de dezembro de 1965, que
procurou encontrar uma nova ordem tributária para o Brasil.
Também, vale lembrar a importância da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que estatui
normas gerais de direito financeiro para a elaboração e controle dos orçamentos e balanços da
União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
Também no período pós 1964, recebe realce a Emenda Constitucional nº 07, de 22 de maio
de 196426, que suspendeu, até 31 de dezembro de 1964, a limitação constitucional sobre a exi-
gência de prévia previsão orçamentária para a cobrança dos tributos, também conhecida como
princípio da anualidade.
Enfim, foi esta a discriminação de competências estatuída pela Emenda Constitucional nº
18/196527, em suas linhas mais gerais mantida até hoje no Brasil:
tributos da competência da União:

a) impostos: I- impostos sobre o comércio exterior (art. 7º) – importação de produtos estran-
geiros e exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais e nacionalizados; II- impostos
sobre o patrimônio e a renda (art. 8º) – propriedade territorial rural, renda e proventos de
qualquer natureza; III- impostos sobre a produção e a circulação (arts. 11 e 14) – produtos
industrializados, operações de crédito, câmbio e seguro e sobre operações relativas a títulos e
valores mobiliários, serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza estritamente
municipal; IV- especiais (art. 16) - produção, importação, circulação, distribuição ou consu-
mo de combustíveis e lubrificantes líquidos ou gasosos, sobre produção, importação, distri-
buição ou consumo de energia elétrica, sobre produção, circulação ou consumo de minerais
do País (art. 16, inc. III), extraordinários (art. 17);
b) taxas (art. 18);
c) contribuições de melhoria (art. 19).

1. tributos da competência dos Estados:

a) impostos: I- sobre o patrimônio e a renda (art. 9º); sobre a transmissão de bens imóveis por
natureza ou por acessão física, de direito reais sobre imóveis; II- sobre a produção e a circu-
lação (art. 12) – operações relativas à circulação de mercadorias;
b) taxas;
c) contribuições de melhoria (art. 19).

2. tributos da competência dos municípios:

a) impostos: I. sobre o patrimônio e a renda (art. 10) – sobre a propriedade predial e territorial
urbana; II- sobre a produção e a circulação (arts. 13 e 15) – sobre operações relativas à cir-

tencem aos municípios os impostos: I- sobre propriedade territorial urbana e rural; II- predial; III- sobre transmissão
de propriedade imobiliária inter vivos e sua incorporação ao capital de sociedades; IV- de licenças; V- de indústria e
profissões; VI- sobre diversões públicas; VII- sobre atos de sua economia ou assuntos de sua competência. Parágrafo
Único. O imposto territorial rural não incidirá sobre sítios de área não excedente a vinte hectares, quando os cultive,
só ou com sua família, o proprietário.”
26 A Emenda Constitucional nº 07, de 22 de maio de 1964, dispunha: “Artigo Único. A vigência do parágrafo 34,
do art. 141, da Constituição Federal, na parte em que exige a prévia autorização orçamentária para a cobrança de
tributo em cada exercício, fica suspensa até 31 de dezembro de 1964.” Era o mencionado § 34, do art. 141: “Art. 141. A
Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes
à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) § 34. Nenhum tributo será
exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização
orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra.”
27 Emenda Constitucional nº 18, publicada no Diário Oficial da União de 06.12.1965. Era o seu art. 1º: “O sistema
tributário nacional compõe-se de impostos, taxas e contribuições de melhoria, e é regido pelo disposto nesta Emenda,
em leis complementares, em resoluções do Senado Federal, e, nos limites das respectivas competências, em leis federal,
estadual ou municipal.”
154
culação de mercadorias, com base na legislação estadual e por alíquota não superior a 30%
(art. 13); sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência tributária
da União e dos Estados (art. 15);
b) taxas;
c) contribuições de melhoria (art. 19).

Seguindo estas linhas gerais, veio o Código Tributário Nacional, a Lei nº 5.172, de 25 de ou-
tubro de 1966, recepcionado pela Constituição de 1967 e consagrado a título de lei complementar
pelo Ato Complementar nº 36, de 13 de março de 1967.
De fato, aos 19 de agosto de 1953, havia sido indicada uma Comissão para elaborá-lo. O seu
Anteprojeto foi encaminhado ao Congresso Nacional sob o nº 4.834-54.
Na verdade, com a Constituição de 1967, que, como foi visto, foi elaborada em face da trans-
formação do Congresso Nacional em Poder Constituinte originário, pouco se alterou.
Entretanto, com a Emenda Constitucional nº 01/1969, de larga extensão, ocorreram algu-
mas transformações, mas continuavam mantidas as designações gerais da Emenda Constitucional
nº 18/1965.
Enfim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988 consa-
grou um Título para a “Tributação e o Orçamento”, o Título VI, destinando o Capítulo I para o
Sistema Tributário Nacional.
Este Capítulo está dividido em três partes: a) trata dos princípios gerais e das limitações do
poder de tributar; b) discrimina as receitas dos impostos pela União, por Estados e o Distrito Fe-
deral e pelos Municípios; c) dispõe sobre a repartição das receitas tributárias.
Questões como a da progressividade do IPTU – imposto sobre a propriedade predial e terri-
torial urbana, alterações na legislação do IR – imposto de renda e proventos de qualquer nature-
za, o planejamento tributário e a denominada norma geral anti-elisiva, a constitucionalidade de
novas contribuições (SEBRAE, CPMF, etc.), o sigilo bancário mediante a Lei Complementar nº
105/2001, o caráter nacional/estadual do ICMS, a guerra fiscal e os seus motivos e mecanismos
são todos assuntos, entre muitos outros, que precisam ser estudados mediante o conhecimento do
Sistema e das suas Normas Gerais, para, só após, investir-se no caso concreto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A interferência de uma política assimétrica, que considera apenas as questões de momento,
na produção do direito legislado brasileiro, é uma característica que acompanha a nossa história
desde o período colonial.
Contudo, quando isto ocorre na órbita do direito tributário, as conseqüências são a formação
de um arcabouço legislativo, profundamente, caótico; o que desfavorece sobremedida a idéia da
formação de um sistema.
A própria utilização do termo sistematributário nacional- tal como registrado no Capítulo I,
do Título VI, da Constituição de 1988, sobre a tributação e o orçamento, para o que existe, atual-
mente, como direito tributário brasileiro merece sofrer contestações, tal como se demonstrou por
todo o texto de pesquisa.
Enfim, no Brasil, tem-se sempre a sensação de que falta uma lei. E não paramos de produ-
zi-las. Caoticamente.

REFERÊNCIAS
A CONSTITUIÇÃO DO BRASIL 1988 – comparada com a Constituição de 1967 e comentada –
São Paulo, Price Waterhouse, 1988.
BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. Rio de Janei-
ro. Editora Paz e Terra. 1991
CAMPANHOLE, Adriano e CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil

155
(1988, 1969, 1967, 1946, 1937, 1934, 1891, 1824). 10ª ed., São Paulo, Editora Atlas
S.A, 1989.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 6ª ed, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1983.
HART, Herbert. O Conceito de Direito. 2ªed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1983.
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 – Tomo I. Editora
Forense. 1987.
MIRANDA, Jorge Manuel de. A transição constitucional brasileira e o anteprojecto
da Comissão Afonso Arinos. Lisboa. Extraído da Revista Jurídica da AssociaçãoAcadêmica da Fa-
culdade de Direito de Lisboa, Nova Série, nº 9-10 (jan.- jun 1987).
OTERO, Paulo Manuel. O Brasil nas Côrtes Constituintes Portuguesas de 1821- 1822. Lisboa.
Separata da Revista “ O Direito” – Ano 120º, 1988
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª ed., São Paulo, Ma-
lheiros Editores Ltda., 1995.
TEMER, MICHEL. Elementos de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo, Editora Revista os
Tribunais Ltda., 1990.
TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa, Fundação Calouste Gul-
benkian, 1989.
Revista Justiça e Cidadania. Ano III, nº 18, Agosto/2.001, pp. 30-31. Artigo “Lavagem de Dinhei-
ro”. Ministro NELSON JOBIM.

156
TEORIA DOS SISTEMAS E EXTRAFISCALIDADE: A QUESTÃO DA PRE-
VALÊNCIA DA LÓGICA DO SUBSISTEMA DA ECONOMIA

Raymundo Juliano Feitosa1


Alexandre Henrique Salema Ferreira2

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho de conclusão da disciplina Temas jurídicos fundamentais, minicurso A ex-
trafiscalidade como forma de concretização do princípio da redução das desigualdades regionais,
ministrado pelo Prof. Dr. Luiz Alberto Gurgel de Faria, no curso de doutorado do PPGD da UFPE,
tem a pretensão de confrontar a extrafiscalidade com a realidade sócio-econômica brasileira.
Na tentativa de explicar as relações entre extrafiscalidade e resultados materiais, partimos
da Teoria dos Sistemas de Luhmann. Esta decisão não implica a adesão científica à referida teoria,
mas mero reconhecimento parcial de sua validade descritiva da realidade social. Paralelamente
ao reconhecimento da validade parcial da teoria dos sistemas de Luhmann no plano do ser, tam-
bém devemos reconhecer suas inumeráveis deficiências no plano do dever-ser. Neste contexto,
partimos da hipótese de que nenhuma teoria social universalizante e totalizante têm condições de
explicar as complexas interações que se formam na sociedade. Isso não retira a validade das teo-
rias sociais, apenas as limita, devendo ser aceitas juntamente com suas limitações. Essa idéia da
validade parcial de uma teoria não é estranha, por exemplo, às ciências naturais – a relação entre
tempo e espaço é completamente modificada na teoria da relatividade.
No plano descritivo, a teoria dos sistemas de Luhmann possibilita apreender as relações
entre os subsistemas sociais, tomando como ponto de partida a lógica econômica que permeia
as sociedades contemporâneas. Evidentemente que a abordagem proposta neste trabalho vai de
encontro às análises meramente formais – adstritas, quase sempre, ao plano normativo –, que
envolvem as questões de coerência interna do direito positivado. O controle da legitimidade e o
controle formal do direito (constitucionalidade e legalidade) já não conseguem – na verdade, nun-
ca conseguiram – dar respostas aptas à complexa realidade social.

1 Professor da Universidade Federal de Pernambuco, Professor-adjunto da Universidade do Estado do Amazonas,


Pós-doutor pela Universidad Castilla de La Mancha, Doutor pela Universidad Autônoma de Madrid e Mestre em
Sociologia pela UFPE.
2 Professor da Universidade Estadual da Paraíba, Auditor Fiscal da Receita Estadual da Paraíba, Doutor em Direito
pela UFPE e Mestre em Ciências da Sociedade pela UEPB.
157
O percurso inicia-se com algumas considerações acerca dos sistemas sociais autorreferen-
ciais e autopoiéticos, enclausurados em si mesmo, constituídos de atos de comunicação e não de
seres humanos. A partir desse contexto, coloca-se a questão da insensibilidade social, da incapa-
cidade dos sistemas sociais reconhecerem os desdobramentos externos aos próprios sistemas (ex-
ternalidades). Associado a isso, tem-se o fenômeno da circularidade sistêmica, com a impregnação
da lógica econômica nos subsistemas da política e do direito.
É exatamente dentro desse contexto, de insensibilidade dos sistemas sociais e da circula-
ridade sistêmica, que se coloca a questão da extrafiscalidade destinada a fomentar o desenvolvi-
mento econômico, com ampla transferência de riquezas da sociedade para a iniciativa econômica
privada. Este comportamento estatal abarca diversas questões pouco discutidas. A mais imediata
é aquela que envolve o direcionamento das receitas públicas a agentes econômicos em detrimen-
to da própria sociedade. Uma outra, não menos relevante, é aquela que aponta o custo social
(sacrifício da riqueza individual), subjacente à renúncia de receitas, especialmente no campo de
incidência dos tributos indiretos, como o ICMS.
Por outro lado, a extrafiscalidade destinada a fomentar o desenvolvimento econômico, atra-
vés da transferência de riqueza da sociedade para a atividade econômica privada, tem resultado
em um estímulo à ineficiência econômica. Esta conduta estatal tem o condão de provocar dese-
quilíbrios de mercado exatamente porque possibilita a mitigação dos custos desses agentes. A ma-
nutenção desses agentes no mercado tem um custo social, que, evidentemente, é suportado pela
sociedade. Contudo, a justificação social para a manutenção no mercado de agentes econômicos
ineficientes tem fundamento naquilo que Macpherson denomina de troca compensatória.
A pesquisa empírica parte da sensação comum na sociedade brasileira, que, após quase
duas décadas de intensa desoneração tributária3, começa a lançar dúvidas acerca das vantagens
da renúncia de receitas, tendo em vista a desproporcionalidade dos ganhos sociais (por exemplo,
geração de emprego e renda, redução das desigualdades regionais, etc.). Esse descompasso deixa
aparente a realidade subjacente à relação entre renúncia de receitas e desenvolvimento socioeco-
nômico, capaz de abrigar outras intenções ou comportamentos inadequados por parte dos agentes
econômicos beneficiados, exatamente por que a tributação é percebida apenas como um custo de
transação a ser reduzido (no campo da fiscalidade) ou como um valor a ser apropriado pelo agen-
te econômico (no campo da extrafiscalidade). Ambas as situações relacionam-se com elementos
da lógica econômica das sociedades capitalistas modernas: a acumulação de capital e eficiência
econômica.

2. TEORIA DOS SISTEMAS E A QUESTÃO DA PREVALÊNCIA DA LÓGICA ECONÔMICA


Segundo Lange (1981) os sistemas materiais encontram fundamento no materialismo dialé-
tico, que distingue o todo (os sistemas) das partes (os elementos e suas relações). Apesar do todo
se constituir dos elementos e suas relações, ou seja, das partes, isto não implica reconhecer que
o todo (sistemas) seja a mera reunião das partes. O todo apresenta atributos e ações próprias, di-
ferentes, portanto, das dos elementos que os constitui. A partir desse contexto, Luhmann propôs
uma teoria geral da sociedade com fundamento no estruturalismo funcional, com a finalidade de
descrever o mundo real, ou seja, a realidade assim como ele se apresenta. Luhmann (1990, p. 42)
elaborou “una teoría de sistemas directamente referida a la realidad”, cujas funções são meramen-
te descritivas e explicativas da realidade social.
Luhmann parte do reconhecimento da complexidade (diferenciação) inerente às sociedades
contemporâneas, da multiplicidade de relações entre os seres humanos e, por isso, da impossibi-
lidade de estabelecer conexões diretas (correspondências lineares) entre indivíduos. A complexi-
dade representa, então:

[…] un conjunto interrelacionado de elementos cuando ya no es posible que cada


elemento se relacione en cualquier momento con todos los demás, debido a limita-
ciones inmanentes a la capacidad de interconectarlos. (LUHMANN, 1990, p. 69).

3 No período pós-Constituição de 1988 a guerra fiscal entre os Estados-membros tem sido emblemática. Mas, não é
prudente esquecer que a União também tem protagonizado forte atuação no campo da renúncia de receitas.
158
Para Luhmann, a questão central de qualquer teoria social é a redução da complexidade das
sociedades contemporâneas. Mas, ele se coloca diante de um paradoxo: a redução da complexida-
de resulta, em si mesmo, no aumento da complexidade. Por mais paradoxal que possa parece, o
processo de simplificação (redução da complexidade) é, por si só, um processo complexo.
A teoria de Luhmann trabalha com as categorias sistema4, elementos, relações e entorno.
Por sistema entende-se “[…] un conjunto de elementos que mantienen determinadas relaciones
entre sí y que se encuentran separados de un entorno determinado” (LUHMANN, 1990, p. 18).
O entorno, então, delimita o sistema e, por isso, é seu elemento constitutivo:

Los sistemas no solo se orientan ocasionalmente o por adaptación hacia su entorno,


sino de manera estructural, y no podrían existir sin el entorno. Se constituyen y se
mantienen a través de la producción y el mantenimiento de una diferencia con res-
pecto al entorno, y utilizan sus límites para regular esta diferencia. Sin la diferencia
respecto al entorno ni siquiera existiría la autorreferencia, pues la diferencia es la
premisa para la función de las operaciones autorreferenciales. En este sentido, el
mantenimiento del límite (boundary maintenance) significa el mantenimiento del
sistema. (LUHMANN, 1990, p. 50).

Só a partir da diferenciação entre sistema e entorno é possível definir o sistema. Luhmann


denomina a isto de autorreferência, ou seja, a necessidade de o conceito de sistema incluir, em
si mesmo, o conceito de entorno. Mas, além da diferenciação entre sistema/entorno (teoria da
diferenciação sistêmica), é pertinente apontar a diferenciação entre elemento/relação (teoria da
complexidade sistêmica). Neste sentido, Luhmann (1990, p. 60-61) escreve:

Hay que distinguir la diferencia sistema/entorno de otra que también es consti-


tutiva: la diferencia entre elemento y relación. En uno y otro caso hay que pensar
la unidad de la diferencia como constitutiva. De la misma manera que no existen
sistemas sin entorno, tampoco existen elementos sin conexión relacional, ni rela-
ciones sin elementos. (LUHMANN, 1990, p. 60-61).

A base teórica de Luhmann sustenta-se em duas características dos sistemas: a primeira, a


autorreferência, que trata da questão do limite ou do entorno dos sistemas; e, a segunda, é a auto-
poiesis, ou seja, a autocriação ou autogeração da estrutura e dos elementos sistêmicos. Os sistemas
autorreferenciais e autopoiéticos são fechados (conjunto de operações específicas), circunscritos
a si mesmos e insensíveis ao ambiente externo. Apesar disso, os sistemas possuem algum grau de
abertura seletiva ao entorno que permite a troca de informações entre sistema/entorno, destinada
a reduzir a complexidade do entorno.
A autorreferência desdobra-se nos conceitos de observação e diferença. Observar é o ato de
determinar as diferenças, o que implica dizer que inexiste observação neutra. Evidentemente que
a atividade de observação (e, consequentemente, de diferenciação) tanto é dirigida ao interior do
sistema (observan a si mismos) quanto ao entorno. Daí a íntima relação entre observação e autor-
referência. A observação também possibilita a eleição de procedimentos que reduzem a complexi-
dade do entorno do sistema.
A teoria dos sistemas de Luhmann descreve a sociedade como um sistema autorreferencial
e autopoiético, composto não de seres humanos, mas de atos de comunicação, que alimentam os
processos de seleção e, consequentemente, da redução da complexidade. Neste caso, o ser huma-
no encontra-se situado no entorno do sistema social. Aliás, para Luhmann o ser humano também
é um sistema autorreferencial e autopoiético, denominado de sistema psíquico ou da personali-
dade, cujos modos de operação são a consciência e a linguagem. Por isso, para Luhmann o ser
humano, como sistema, distingue-se do sistema social e é externo a este:

4 Para Luhmann (1990, p. 66) “Un caso mínimo de sistema sería, pues, el simple conjunto de relaciones entre ele-
mentos”.
159
La teoría de sistemas […] no deja lugar para el concepto de sujeto. Lo substituye por
el concepto de sistema autorreferente. La teoría de sistemas puede formular, enton-
ces, que cualquier unidad utilizada en este sistema (sea la unidad de un elemento,
de un proceso o de un sistema) tiene que constituirse a través del propio sistema y
no a través de su entorno (LUHMANN, 1990, p. 77).

Evidentemente que há íntima relação entre ser humano e sociedade, mas não a ponto de
incluir o primeiro no segundo. A relação entre ser humano e sistemas sociais assemelha-se à re-
lação entre sistema/entorno. Situa-se no âmbito da interpenetração e da observação. Exatamente
por isso, os sistemas sociais se apresentam insensíveis, com operações funcionais extremamente
independentes, com regras próprias e que muitas vezes desprezam a própria presença dos seres
humanos. Com isso, os seres humanos perdem o protagonismo no sistema social.
A alta diferenciação nas sociedades avançadas resulta na diferenciação (especialização) dos
subsistemas sociais parciais. Cada subsistema apresenta funções sociais diferenciadas, sintetiza-
das através atos de comunicação específicos. Os subsistemas ou sistemas sociais parciais são uma
resposta à complexidade da sociedade. Cada subsistema, através da especialização das operações
de comunicação e de seleção realizadas em seu interior, reduz uma complexidade específica do
sistema social. É através destes mecanismos de especialização e seleção que o sistema social pre-
tende apresentar respostas (soluções) aos problemas da sociedade. Luhmann aponta diversos sub-
sistemas sociais, tais como da política, da economia, do direito, da religião e da educação, dentre
inúmeros outros.
Uma importante questão que se levanta na teoria dos sistemas da sociedade, fundamentada
em atos de comunicação, é aquela que despreza as assimetrias informacionais. As teorias sociais
(por exemplo, em Luhmann e Habermas) que defendem o protagonismo da comunicação, na
verdade, são teorias que implicitamente defendem ou aceitam a manutenção do status quo, exa-
tamente porque os atos de comunicação se processam em condições assimétricas e refletem, em
muito, as desigualdades materiais. E pior ainda, em muitas situações a comunicação se presta
mesmo a acentuar as desigualdades materiais, em especial porque privilegia os indivíduos com
maior capacidade comunicativa, em outras palavras, aqueles que detêm os meios de comunicação
ou apresentam maior habilidade comunicativa ou que possuem o monopólio da comunicação ou,
ainda, aqueles que têm acesso a dados e informações relevantes. A realidade material, na verdade,
evidencia o nível de assimetria informacional.
É nesse contexto de assimetrias que se coloca a questão da circularidade sistêmica, ou seja,
a prevalência, através dos atos de comunicação, da lógica de um determinado subsistema e sua
impregnação nos demais subsistemas sociais, desdobrando-se em relações de determinação, de
legitimação e de justificação entre os subsistemas. É disso que trataremos a seguir.

2.1 Subsistemas sociais e a questão da circularidade sistêmica


Apesar das pertinentes críticas que recaem sobre a teoria dos sistemas, é inacreditável como
ela consegue descrever a realidade da sociedade contemporânea, especialmente porque possibilita
identifica a lógica imanente ao sistema social; apontar a prevalência dos aspectos econômicos em
detrimento das relações sociais; explicar a desprezível condição humana, bem como descrever as
relações sistêmicas desapegadas de qualquer valor.
A questão da “centralidad del componente económico” nas democracias é descrita por Sar-
tori ( 2008, p. 64). No mesmo sentido são as palavras de Barcellona (2000, p. 151):

Secondo un’opinione sempre più diffusa, la política va definita como amministra-


zione degli interessi e il diritto como técnica per realizzare la pace sociale.
Queste defizioni, apparentemente neutre, in realtà tendono ad affermare la subor-
dinazione della política e del diritto allo spazio dell’economico [...].

A circularidade sistêmica nos remete, imediatamente, à lógica econômica predominante na


sociedade contemporânea, que joga à periferia (ao entorno do sistema e dos subsistemas sociais)
160
o ser humano e dá prevalência aos atos de comunicação no interior do sistema ou entre os diver-
sos subsistemas sociais. Neste sentido, entende-se por circularidade sistêmica o fato de a lógica
econômica (subsistema da economia) determinar o conteúdo da agenda política (subsistema da
política), que, por sua vez, através do processo democrático, legitima a norma jurídica positivada
(subsistema do direito), que, por fim, justifica o próprio modelo econômico hegemônico (subsiste-
ma da economia). A circularidade sistêmica pode ser representada pelo quadro a seguir.

Quadro 1 – Circularidade sistêmica


Assim, entre os subsistemas da economia e da política evidencia-se uma relação de determi-
nação; entre os subsistemas da política e do direito, uma relação de legitimação; e entre os subsis-
temas do direito e da economia, uma relação de justificação. Da Rosa (2009, p. 53) sintetiza esse
fenômeno quando reconhece que o sistema legal “[...] é a legitimação racional da ordem existente,
na leitura hegemônica do capital”.
A relação de determinação implica reconhecer que o subsistema da economia determina a
agenda política, e a partir da lógica econômica são colocados temas, tais como crescimento econô-
mico, tutela da propriedade, desoneração do capital e do lucro, subsídios e estímulos à atividade
econômica produtiva, dentre inúmeros outros. Para Barcellona (2000, p. 153) diz:

Il sistema econômico definisce in ultima istanza i fini e gli obiettivi entro cui l’agire
político viene collocato come puramente strumentale e contestualmente definisce
lo spazio delle regola giuridiche como regola del gioco, procedure e tecniche funzio-
nali allá negoziazione degli interessi economici.

Por outro lado, o subsistema da política apresenta uma relação de legitimação do subsiste-
ma do direito. Através da democracia procedimental legitima-se o exercício do poder e a criação
das normas jurídicas que obrigam coletivamente. Evidentemente que o subsistema da política,
161
como fenômeno associado ao exercício do poder, apresenta-se vulnerável a grupos de pressão.
Por isso, em muitas situações a norma jurídica representa mero instrumento através dos quais os
grupos dominantes satisfazem seus interesses, estabelecendo, por exemplo, mecanismos de tutela
a privilégios individuais ou necessários ao exercício dos direitos de propriedade e à execução dos
contratos, dentre inúmeros outros. É exatamente neste contexto que Da Rosa (2009, p. 51) alerta
para a criação de um novo princípio jurídico “[...] «o do melhor interesse do mercado». O Direito
é um meio para atendimento do fim superior do «crescimento econômico»”. O resultado concreto
desse fenômeno é aquilo que Pietro Barcellona denomina de direito como mera técnica, ou seja, o
direito como mera codificação de como proceder, vazio de significado ou valor social.
Evidentemente que para a concretização da lógica econômica torna-se imprescindível a
existência de um ambiente institucional (estabelecido através da ordem jurídica) propício à ex-
pansão econômica5 e de um aparato institucional6 (instituições estatais) voltado a proteger direitos
de propriedade, contratos privados, privilégios individuais e estimular à acumulação do capital,
dentre outros. Daí emerge a relação de justificação entre os subsistemas do direito e da economia.
A circularidade sistêmica, na verdade, decorre da inata insensibilidade7 do sistema social e
de seus subsistemas, constituídos de forma autorreferenciais e autopoiéticos. Isto implica dizer
que o sistema social e seus subsistemas não levam em consideração suas externalidades, ou seja,
os custos externos ao próprio sistema ou subsistema – e que recaem sobre a própria sociedade –,
tais como, o subdesenvolvimento, a pobreza, o desemprego, a degradação do meio ambiente, den-
tre inúmeros outros. É, então, neste contexto de circularidade sistêmica (prevalência das relações
econômicas em detrimento das relações sociais) que é pertinente colocar a questão da extrafisca-
lidade, especialmente quanto aos custos e ganhos sociais advindos desse modelo de estímulo ao
crescimento econômico. É disso que trataremos a seguir.

3. EXTRAFISCALIDADE E DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO


O tema extrafiscalidade não é recente. Financistas como Amaro Cavalcanti (1849-1922) e
Augusto Olympio Viveiros de Castro (1867-1927) ilustram discussões sobre o tema desde o Brasil
colônia até início da República, que se assemelham em muito aos atuais. Por exemplo, Viveiros de
Castro (19898) faz referência a medidas protecionistas implantadas na época da chegada da Famí-
lia Real ao Brasil, destinadas a protegem a incipiente economia local contra os produtos importa-
dos das economias mais desenvolvidas. A finalidade era impedir que os produtos estrangeiros, com
preços mais vantajosos, sufocassem a produção local:

[...] o imposto não era considerado como simples fonte de renda, e sim como um
instrumento econômico que devia ser prudentemente manejado no intuito de favo-
recer a produção nacional. (CASTRO, 1989, p. 32).

Em outra passagem, agora já no 2º Reinado, Viveiros de Castro (1989) faz referência ao fim
dos tratados comerciais, que possibilitou ao Brasil alterar as tarifas aduaneiras a fim de compatibi-
lizá-las com as de outros países. Através dos direitos aduaneiros era possível proteger a economia
local, com aplicação de alíquotas móveis, ora igualando a concorrência dos produtos importados
com os nacionais, ora incentivando a importação de insumos para a indústria, conforme disposto
no art. 2º da Lei nº 3396, de 24 de novembro de 1888, a seguir transcrito:

5 Como, por exemplo, a flexibilização das relações de trabalho e o menor controle ambiental, dentre outros.
6 Representado, por exemplo, pelas instituições estatais destinadas à manutenção da ordem estabelecida e ao controle
da sociedade, dentre outras.
7 Como os sistemas são seletivos, os custos externos não são reconhecidos como um problema inerente ao próprio
sistema social.
8 O texto foi originalmente escrito em 1915, resultado das palestras sobre a História Tributária do Brasil, ministradas
pelo autor no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Posteriormente foi reeditado pela ESAF em 1989.
162
Art. 2º. O Governo fica autorisado:
[...]
4º. A manter relativamente à impostação dos gêneros para cuja produção já existem
e funccionando no paiz fabricas, que empregam nas respectivas industrias matéria
prima nacional, tarifa móvel da Alfândega (...); bem como elevar os direitos de im-
portação sobre artefactos de algodão e de juta, para o fim de não soffrerem com a
concurrencia iguaes productos de fabricas nacionaes;
[...]
7º. A rever as tarifas com o fim de abaixar as taxas cobradas sobre productos chi-
micos ou outras mercadorias applicaveis como adubo ou correctivos na industria
agrícola, ficando dispensados do pagamento dos direitos alfandegaes e dos 5% ad-
dicionais [...]
8º. A isentar dos direitos de importação e expediente os animaes de raça, que forem
importados para as fazendas de criação [...].9

Também Amaro Cavalcanti, (apud CASTRO, 1989, p. 88) discorre sobre o tema, afirmando que:

Examinando as coisas de perto, chega-se à convicção de que, em geral, predomina


o intuito fiscal, isto é, a necessidade de obter a maior arrecadação para a receita pú-
blica, o que, todavia não exclui que nas diversas reformas aduaneiras aparecessem
disposições ora de caráter liberal, ora de caráter manifestadamente protecionista.

A indústria incipiente, a carecer de proteção diante do mercado produtor mundial, foi, sem
dúvida, um grande pretexto para implementação de tarifas protecionistas, de caráter extrafiscal.
É importante ressaltar que tais medidas eram tomadas sem qualquer respeito à capacidade con-
tributiva dos consumidores, que se viam na incomoda situação de consumir produtos oriundos
do Brasil a um custo mais elevado do que aqueles importados, cujos preços eram igualados aos
nacionais por medidas artificiais de proteção ao mercado. Neste sentido, o Ministro da Fazenda
Joaquim Murtinho (apud CASTRO, 1989, p. 124), em Relatório apresentado, em 1899, ao Presi-
dente Campos Sales, afirmou:

Todo consumidor é, pois, lesado, e a diferença entre o que ele paga pelos objetos
nesse regime e o que pagaria em um regime livre, representa um imposto que lhe é
arrancado para manutenção daquelas indústrias.

Estes exemplos são suficientes para mostrar que o tema não é recente e que a questão en-
volve outros interesses. É a partir desse contexto que a seguir será discutida a relação entre extra-
fiscalidade e lógica econômica.

3.1 Extrafiscalidade e mercado


Em condições perfeitas, os agentes econômicos buscarão satisfazer suas necessidades in-
dividuais com o menor consumo de recursos. Nestas condições ideais, a interação entre agentes
econômicos, segundo as regras de mercado, será suficiente para a maximização os resultados.
Segundo Pinheiro e Saddi (2005, p. 60):

Quando há concorrência perfeita, as interações entre empresas e consumidores no


mercado são suficientes para gerar um equilíbrio em que o bem-estar é maximiza-
do.

9 Mantida a grafia original.


163
Na realidade, o mercado não se apresenta perfeito, as regras de mercado não são suficientes
para reger as interações econômicas e os agentes não conseguem satisfazer suas necessidades
com o menor consumo de recursos. Por outro lado, a análise microeconômica tradicional não
consegue alcançar os custos de transação inerentes às interações no mercado, e daí advém sua
impossibilidade teórica e empírica de apresentar soluções que preservem à eficiência econômica
em condições distintas da perfeita.
Em situações distintas das perfeitas, as instituições e o ambiente institucional são elementos
necessários à minimização dos custos de transação. Mas, em determinadas situações os arranjos
institucionais são incapazes de promover a alocação eficiente de recursos, segundo as regras de
mercado, exatamente por que os custos de transação podem inviabilizar as atividades de deter-
minados agentes econômicos. Nestes casos específicos, o Estado precisa interagir com o mercado
para, por exemplo, estimular o crescimento econômico e atrair novos investimentos. Talvez a
vocábulo interagir não seja o mais adequado. Na verdade, o Estado deve subsidiar as regras de
mercado quando estas não são capazes, por si só, de resolver determinados impasses econômicos.
Neste sentido, Pinheiro e Saddi (2005, p. 64) dizem:

Custos de transação muito elevados podem inviabilizar certos mercados, a menos


que, para funcionar, contem com o apoio de instituições mais complexas do que
apenas as instalações físicas (mercados) em que compradores e vendedores se en-
contram.

A solução, então, passa por uma decisão política e por um conjunto de regras jurídicas pro-
pícias ao desenvolvimento econômico. Para Cooter e Ulen (2002, p. 127):

[...] hemos señalado los costos de transacción como si fuesen exógenos al sistema
legal, es decir, como si fuesen determinados tan solo por características objetivas de
las situaciones de negociación, fuera del dominio de la ley. No siempre ocurre así.
Algunos costos de transacción son endógenos al sistema legal en el sentido de que
las reglas legales pueden disminuir los obstáculos existentes para la negociación
privada. El teorema de Coase sugiere que la ley puede alentar la negociación redu-
ciendo los costos de transacción.

É exatamente neste contexto que se coloca a tributação como um custo de transação a ser
reduzido ou eliminado. Este tema será tratado a seguir.

3.1.1 Custo de transação, extrafiscalidade e eficiência econômica


O tributo é identificado como um custo associado, por exemplo, ao exercício e manutenção
de direitos de propriedade e à execução de contratos. No primeiro caso, temos os tributos inciden-
tes sobre a propriedade (IPVA, IPTU) ou sobre a transmissão dessa propriedade (ITBI, ITCD). No
segundo caso, temos os tributos incidentes sobre a circulação jurídica (contrato de compra e ven-
da mercantil) de produtos, mercadorias e serviços (ICMS, ISS, IPI). Para Caliendo (2009, p. 22):

A tributação pode ser entendida como um custo de transação em sentido restrito,


na medida em que se constitui em um custo para a formalização de um negócio
jurídico [...]
De outra parte, a tributação pode ser entendida também como sendo um custo de
transação em sentido amplo, ou seja, conforme o teorema de Coase. Nesse caso, a
tributação pode ser considerada um custo a ser verificado na utilização dos meca-
nismos de mercado. As inseguranças decorrentes de um sistema tributário imper-
feito e ineficiente implicam em maior incerteza na contratação e, portanto, em um
custo de transação maior.

164
Mas, a identificação da tributação como custo de transação traz implícita uma outra ques-
tão: aquela que vincula, através de uma relação negativa, tributação e eficiência econômica. Neste
contexto, maior ônus tributário implica menor eficiência econômica. O esforço do agente econô-
mico, neste caso, deverá ser direcionado à redução ou eliminação desse custo de transação, ou
seja, dos encargos tributários.
Em muitas situações as discussões acerca dos custos de transação encobrem, na verdade,
a ineficiência dos agentes econômicos. A solução de mercado para as situações de ineficiência
econômica é sumária: exclusão do mercado. Uma medida corrente contra essa objetividade do
mercado é aquela que atribui um protagonismo ao Estado com a finalidade de subsidiar agentes
econômicos ineficientes10 através da desoneração tributária e/ou da transferência de recursos da
sociedade à atividade econômica privada.
Um fato subjacente, cuja discussão ainda é incipiente, é aquele que aponta um subproduto
da extrafiscalidade: a tutela de agentes econômicos ineficientes. Ao adentrar no ambiente econô-
mico-privado, o Estado pode, implicitamente, criar um estímulo à ineficiência econômica, ou seja,
o agente econômico não mais procurará reduzir seus custos com medidas de mercado, mas atra-
vés, por exemplo, da desoneração tributária ou da apropriação de recursos da sociedade11. Sobre
este tema, com muita propriedade, Caliendo (2009, p. 79) diz:

[...] um dos defeitos mais graves de mercado decorre da presença de instituições


ineficientes, estas, conforme Daron Acemoglu, atingem um fraco desempenho eco-
nômico por ação intencional de uma elite econômica. Esta elite escolhe políticas
econômicas que aumentam a sua renda pela transferência direta ou indireta de
recursos do restante da sociedade.

Por eficiência econômica deve ser entendida a diferença entre valor de mercado e custos de
produção de mercadorias, produtos e serviços. Para Dahl (2008, p. 112):

La “eficiencia económica” se mide por la proporción entre los “costos” de los bienes
y servicios que se utilizan en la producción y el “valor” de la producción para el
mercado […] (DAHL, 2008, p. 112).

Matematicamente, a eficiência econômica pode ser representada através da seguinte fórmula:

EFICIÊNCIA Econômica = VALOR Mercado – CUSTOS Produção

Evidentemente que o Estado, em qualquer situação, deve ter precaução ao interferir nos
custos dos agentes econômicos, em especial diante da possibilidade de criar privilégios, muitas
vezes, não extensíveis aos demais agentes econômicos. Ao proporcionar um ganho individual, o
Estado produzirá um desequilíbrio no mercado. Neste sentido, Caliendo (2009, p.331) aponta:

[...] a concessão de benefícios fiscais para determinados setores ou fases do ciclo


econômico de tributação que nos leva ao consumo ou da redução da base de cálculo
ou concessão de isenções pode distorcer a concorrência, afetar a capacidade contri-
butiva e afetar a neutralidade fiscal.

Por isso, a renúncia de receitas esconde uma realidade pouco revelada pelos discursos po-
lítico, econômico e jurídico: a ineficiência econômica. O que comumente se chama de eficiência
econômica – e, consequentemente, a sobrevivência do agente econômico no mercado – pode, na
verdade, omitir o consumo de recursos públicos em detrimento, inclusive, da própria sociedade.

10 Estas condutas estatais são amplamente justificadas a partir das contrapartidas sociais dos agentes econômicos,
tais como a geração de emprego e renda, a redução das desigualdades regionais, dentre outras.
11 Neste caso, a extrafiscalidade terá a função de reduzir artificialmente os custos dos agentes ineficientes.
165
Evidentemente que o custo social da manutenção no mercado de agentes econômicos inefi-
cientes necessita ser compensada (justificada) através de ganhos sociais. Esta questão é colocada,
habilmente, em termos de troca compensatória, conforme a seguir descrito.

3.1.2 Extrafiscalidade e troca compensatória


Os discursos político, econômico e, até mesmo, jurídico, apresentam como alternativas mu-
tuamente excludentes determinadas atividades ou situações. Esta situação Macpherson (1991)
denomina de troca compensatória (trade-off), entendida como:

Uma decisão, ou uma ação resultante de uma decisão tomada pelo indivíduo ou a
coletividade (poderes Legislativo ou Executivo, de âmbito nacional ou restrito, uma
empresa, um sindicato) com relação a duas coisas igualmente desejadas (positiva
ou negativamente), mas tidas como incompatíveis depois de certo ponto. Se as duas
coisas desejadas forem de fato alternativas incompatíveis, é preciso fazer uma esco-
lha: tanto de uma por tanto de outra (MACPHERSON, 1991, p. 66).

A lógica econômica coloca a tributação em termos de troca compensatória: troca-se cres-


cimento econômico por tributos; emprego e renda por tributos; desenvolvimento regional por
tributos. Diante de alternativas mutuamente excludentes, como é colocado pelo discurso corrente
(inclusive, o oficial), a solução mais atraente é ofertar ampla rede de possibilidades de desonera-
ção tributária destinada a incentivar, por exemplo, o desenvolvimento econômico, a geração de
emprego e renda e a redução das desigualdades regionais.
No caso específico da renúncia de receitas, é interessante apontar que em muitas situações
esta é efetivada de forma graciosa – sem nenhuma contrapartida que onere o agente econômico
–, ou de forma desproporcional e sem mecanismos de controle efetivos. Colocado nestes termos,
a renúncia de receitas tem representado uma situação que pode, muito bem, ser denominada
de privatização dos tributos, ou seja, toda a coletividade contribui financeiramente com recursos
individuais que serão destinados à atividade econômica privada, como se esta, por si só, não fosse
capaz de gerar riquezas.
É claro que uma política de renúncia de receitas responsável pode aliar desoneração tributá-
ria e desenvolvimento socioeconômico. Por isso, qualquer renúncia de receitas no sentido de troca
compensatória apenas tem algum sentido social se o esforço do agente econômico for direcionado
a recompor seus custos, ou seja, gerar emprego e renda, proporcionar desenvolvimento econômi-
co ou reduzir as desigualdades regionais, dentre outras contrapartidas. Caso contrário estar-se-ia
diante de mera transferência de recursos da sociedade para os agentes econômicos.

4. EXTRAFISCALIDADE E REALIDADE MATERIAL


Com a deterioração do modelo desenvolvimentista adotado até meados da década 1990,
em especial diante da inabilidade na promoção do desenvolvimento social e na redução da de-
sigualdade regional, tem inicio o processo de desmantelamento das superintendências regionais
de desenvolvimento, como SUDENE e SUDAM. Diante dos pífios resultados socioeconômicos e
da ausência de um modelo nacional de desenvolvimento, restou aos próprios Estados-membros a
iniciativa de estabelecer políticas de desenvolvimento local.
É neste contexto que a partir do início dos anos 1990 intensifica-se a guerra fiscal entre os
Estados-membros com finalidade de atrair investimentos privados para seus territórios no intuito
de estimular o desenvolvimento socioeconômico local. Segundo Faria (2009, p. 94-95), a guerra
fiscal entre os Estados da federação brasileira tem início nos anos 1960 e, após um período de
declínio, ressurge com maior ímpeto nos anos 1990, especialmente a partir de 1993/1994. Este
dado é importante porque permite contextualizar a agudização da guerra fiscal com a nova ordem
jurídica inaugurada pela Constituição Federal de 1988.
Apesar das profundas e inegáveis alterações trazidas à sociedade brasileira, há uma coinci-
dência histórica pouco discutida: a elaboração e promulgação da constituinte de 1988 e o ressurgi-
166
mento do liberalismo econômico, agora travestido de neoliberalismo. Naquele momento histórico
nos deparamos, dentre outras, com duas situações prementes: i) forte pressão por liberdades polí-
ticas, por garantias individuais e ii) estímulo ao crescimento econômico.
Evidentemente que não integra o escopo do presente trabalho discorrer sobre o momento
sócio-político-econômico precedente à nova Carta Magna. Nosso interesse é bem mais modesto.
Por isso, faz-se necessário proceder a um recorte, de forma a centrar o objeto do presente trabalho
no modelo econômico predominante na década de 1980, portanto, subjacente à Constituição de
1988. Com muita propriedade, Varela e Alvarez-Uría (1989, p. 18) aponta:

Una de las innovaciones producidas en el ámbito macropolítico de los años ochenta


fue la pretendida revolución conservadora que preconizo en su momento la Admi-
nistración Reagen y cuyo programa político sintetizaba Noam Chomsky en los tres
puntos siguientes: transferir los recursos de los pobres a los ricos, subvencionar a
la industria de alta tecnología a través del sistema militar y, por último, extender la
intervención por la fuerza en el Tercer Mundo.

Especificamente no Brasil, foram privilegiados dois mecanismos de indução ao crescimen-


to econômico: i) forte desoneração tributária do capital e do lucro; e ii) maciça transferência
de riquezas para a atividade econômica privada. O modelo tributário insculpido na Constituição
de 1988 expressamente direcionou a tributação à pessoa física, privilegiando bases econômicas
como a renda, patrimônio individual e o consumo. Mas, de forma implícita, também estabeleceu
as bases para um impressionante mecanismo de transferência de riquezas da sociedade para a
atividade econômica privada: o ICMS – tributo sobre o consumo, de competência comparticipada
entre os Estados-membros, não-cumulativo e com uma enorme base econômica de incidência12.
O mercado não deixou de reconhecer esta oportunidade.
Diferentemente da idéia corrente que associa a guerra fiscal à vulnerabilidade dos gestores
estaduais às pressões econômicas, a verdade é que o ICMS, da forma que foi estruturado na Cons-
tituição de 1988, é o tributo mais adequado à política de transferência de riquezas da sociedade
para atividade econômica privada. Fosse o ICMS da competência da União, o estrago seria absolu-
tamente o mesmo. Por isso, a questão central não passa pela titularidade da competência tributá-
ria, mas pelo simples fenômeno de transferência de riquezas da sociedade (do agente econômico
consumidor) para a iniciativa econômica privada (o agente econômico empresa).
A questão da extrafiscalidade nos tributos indiretos não tem merecido a devida atenção da
doutrina jurídica. Nestes tributos quem suporta o ônus tributário é o consumidor. O tributo encon-
tra-se embutido no preço final dos produtos, mercadorias e serviços vendidos. Assim, a desonera-
ção no campo de incidência do ICMS, concomitantemente à manutenção do preço final a consu-
midor, possibilita a transferência direta da riqueza da pessoa física para a pessoa jurídica. A lógica
é simples: como a fixação do preço encontra-se no âmbito de decisão dos agentes econômicos,
conforme a regras de mercado (tipo de mercado, elasticidade, oferta, demanda, etc.), o Estado ao
promover a desoneração no campo de incidência do ICMS, atribui à empresa à decisão do mon-
tante de riqueza individual a apropriar. Reduzida ou eliminada a obrigação tributária no campo de
incidência do ICMS, e não havendo nenhuma obrigatoriedade de transpassar a desoneração ao
preço final, a transferência de riqueza dar-se de forma direta e imediata entre o consumidor e a
empresa, em outras palavras, entre sociedade e atividade econômica privada.
Por isso, torna-se relevante apreender os resultados materiais do modelo de desenvolvimen-
to econômico implícito à Constituição de 1988, especialmente a questão da renúncia de receitas
destinada ao estímulo da atividade econômica privada. A seguir serão expostos alguns indicadores
socioeconômicos pós-Constituição de 1998.

4.1 Resultados socioeconômicos posteriores à Constituição de 1988


Antes do início da análise quantitativa, faz-se necessário apontar um primeiro e intransponí-
vel obstáculo: a falta de transparência. Por incrível que possa parecer, inexistem dados consolida-
12 Não é por acaso o interesse da União em retirar o ICMS da competência dos Estados.
167
dos e séries históricas sobre os montantes renunciados pela União, pelos Estados-membros, pelo
Distrito Federal e pelos Municípios, no período pós-Constituição de 1988. Isto dificulta análises
estatísticas mais consistentes. Apesar disso, é possível mensurar a realidade social brasileira e a
partir dela inferir relações entre renúncia de receitas e desenvolvimento socioeconômico. Neste
caso, o percurso metodológico se inverte. Isto implica tomar como verdadeira a premissa que jus-
tifica a transferência de recursos públicos à atividade econômica privada como instrumento de
desenvolvimento socioeconômico. Assim, se a renúncia de receitas é socialmente justificada pelos
gestores públicos federais, estaduais, distritais e municipais – foi, até mesmo, transformada em
política pública nacional e local de atração de investimentos privados –, é por que os resultados
sociais devem ser positivos.
A seguir serão mostrados alguns indicadores macroeconômicos e sociais, tais como, PIB,
renda apropriada, coeficiente de Gini e linhas da pobreza e indigência; além da carga tributária
brasileira, segmentada por ônus incidente sobre a pessoa física e pessoa jurídica.
O gráfico 1 ilustra a variação real acumulada, no período 1990 a 2007, do PIB brasileiro13.

Gráfico 1 – Variação real acumulada do PIB

13 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: IBGE, IPEA

168
No período, o PIB brasileiro apresentou um incremento real acumulado (descontado o de-
flator implícito) de 67,04%, uma média anual de 3,72%, inferior ao crescimento econômico de
outros países emergentes, como a China e a Índia, que se avizinha aos dois dígitos.
Apesar do crescimento econômico medido pelo PIB, no mesmo período, observa-se que a
estrutura da apropriação da renda não foi alterada, conforme mostrado no gráfico 2.14

Gráfico 2 – Renda apropriada

14 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: IBGE, IPEA

169
Mesmo diante do crescimento econômico experimentado no período de 1990 a 2007, o
gráfico 2 mostra que a apropriação da renda tem se mantido, com pequenas alterações. Por exem-
plo, a renda apropriada por 1% mais ricos teve, no período, uma redução de 1,72% (= 14,20% –
12,48%) e a apropriada por 10% mais ricos caiu 4,95% (= 48,78% – 43,83%). A renda apropriada
por 50% mais pobres aumentou 3,29% (= 14,74% - 11,45%) e a renda apropriada por 20% mais
pobres teve incremento de apenas 0,76% (= 2,90% – 2,14%). Isto implica dizer que o crescimento
econômico não foi capaz de alterar a estrutura de apropriação da renda no país, que apresenta
ainda imensa desigualdade e concentração de renda. Este resultado é corroborado pelo indicador
social chamado de coeficiente de Gini, mostrado no gráfico 3.15

Gráfico 3 – Coeficiente de Gini

15 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: IBGE, IPEA

170
No período de 1990 e 2007, o Coeficiente de Gini manteve-se acima de 0,5, evidenciando
que o crescimento econômico pouco afetou a extrema concentração de renda no Brasil.
Em sentido contrário, os indicadores linhas de pobreza e indigência apresentaram substan-
cial evolução positiva, conforme mostrado no gráfico 4.16

Gráfico 4 – Linhas de pobreza e indigência


A proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza17 foi reduzida consideravelmente no pe-
ríodo de 1990 a 2007. Em 1990 a porcentagem de pessoas que viviam abaixo da linha de pobreza
era de 40,01%, já em 2007 cai para 22,7%, uma redução de 17,31%. Tal fenômeno também foi
verificado em relação à proporção do número de pessoas abaixo da linha de indigência18, que em
1990 era de 18,55% e em 2007 cai para 7,95%, ou seja, uma redução de 10,6%. Mas, estes resul-
tados extremamente positivos têm sido relacionados, exclusivamente, à política de transferência
de renda do governo federal, iniciada ainda no primeiro governo de FHC e ampliada no governo
Lula. Apenas nos últimos 5 anos (2003 a 2007), a proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza
foi reduzida em 11,26%; e a proporção de pessoas abaixo da linha de indigência, em 6,18%.

16 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: IBGE, IPEA
17 Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata?SessionID=691601676&Tick=1235592044812&-
VAR_ FUNCAO=Ser_Temas%28136%29&Mod=M.
18 Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata?SessionID=691601676&Tick=1235592044812&-
VAR_ FUNCAO=Ser_Temas%28136%29&Mod=M.
171
Associado aos pífios ganhos sociais advindos da política de renúncia de receitas, os dados
ainda mostram que a tributação, do período de 1990 a 2007, incidiu mais pesadamente sobre a
pessoa física, que suportou cerca de 2/3 da carga tributária brasileira, conforme mostrado no grá-
fico 5.19

Gráfico 5 – Distribuição da carga tributária


Apesar da impossibilidade de correlacionar estatisticamente dados da renúncia de receitas
com indicadores sociais (para daí inferir relação tendencial entre as variáveis), é notório que no
período a defesa do modelo de renúncia de receitas se mostrou inábil a produzir resultados socioe-
conômicos positivos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas sociedades contemporâneas, o modelo de organização social, fundamentado em indiví-
duos atomizados e maximizadores de seus interesses, impôs a prevalência das interações econô-
micas sobre as interações políticas e sociais. A teoria dos sistemas de Luhmann, apesar das severas
restrições, consegue descrever esta complexa realidade de forma impressionante. Para isso, atribui
um protagonismo aos atos de comunicação em detrimento do próprio ser humano, jogado à pe-
riferia (ao entorno) dos sistemas sociais. Tais sistemas, constituídos de forma autorreferenciais e
autopoiéticos, fechados em si mesmos, com linguagens especializadas, apresentam uma insen-
sibilidade imanente, incapaz de integrar a sociedade em um todo. Além disso, depara-se com a
impregnação nos subsistemas sociais da política e do direito da lógica do subsistema da economia,
que resulta na circularidade sistêmica.
É exatamente neste contexto, de insensibilidade social e de circularidade sistêmica, que se
coloca o tema da extrafiscalidade, em especial a renúncia de receitas. O tema ainda não é pacífico
nem os resultados foram ainda concretamente mensurados. Na verdade, sem grandes resultados
socioeconômicos, a renúncia de receitas tem representado mera transferência de recursos da
sociedade (consumidores) para determinados agentes econômicos (empresas), com substancial
aumento da lucratividade privada, sem estes, no entanto, despenderem qualquer esforço de ges-
tão ou qualquer contrapartida social, tais como a geração de emprego e renda ou a redução de
preço final de produtos, mercadorias e serviços. Nesta situação, ocorre o fenômeno que pode ser
denominado de privatização dos tributos.
A lógica econômica subjacente ao discurso que coloca a renúncia de receitas como instru-
mento de estímulo ao desenvolvimento socioeconômico, encontra guarida nas doutrinas liberal e

19 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: SRF, IBGE
172
neoliberal, nas quais as diferenças materiais justificam, inclusive, as diferenças formais e a própria
lei deve ser o vetor indutor dessas diferenças ao propor tutelas (por exemplo, reservas de merca-
do), privilégios (por exemplo, desregulamentação dos direitos alheios, tais como os trabalhistas e
previdenciário) e recursos públicos (por exemplo, financiamento estatal e, até mesmo, transferên-
cia de recursos públicos à atividade econômica privada) para estimular o crescimento econômico.
Neste contexto político-econômico, o tributo é enxergado apenas como um custo de transação a
ser reduzido ou eliminado.
Evidentemente que esta lógica, e o discurso que se forma em torno dela, tem o condão de
omitir a relação de causa e efeito entre renúncia de receitas e ineficiência econômica. Isto implica
reconhecer que a preservação de agentes econômicos ineficientes no mercado dá-se através do
consumo de riquezas da sociedade. Esta conduta estatal impele toda a sociedade a conviver com
os custos da ineficiência econômica, embutidos, por exemplo, nos preços finais de produtos, mer-
cadorias e serviços; na degradação do meio ambiente e na precarização da relação de trabalho,
dentre outras externalidades.
Claro que o estímulo estatal a agentes econômicos ineficientes tem fundamento em uma
justificação social muito bem elaborada: a troca compensatória. Neste sentido, gestores públicos
e legisladores “trocam” tributos por uma determinada contrapartida do agente econômico, tais
como, por exemplo, emprego e renda; desenvolvimento econômico; redução das desigualdades
regionais, dentre outras. Mas a troca compensatória não é tão linear quanto se imagina. Neste sen-
tido, Macpherson aponta que “Qualquer troca compensatória é conveniente para os governantes,
porém ilusória para os cidadãos” (MACPHERSON, 1991, p. 48).
Isto não quer dizer que em determinadas circunstância o Estado não deva intervir na eco-
nômica. Em situações específicas é aceitável que o Estado conceda privilégios financeiros a fim de
possibilitar um gap ao agente econômico, destinado, por exemplo, à geração de emprego e renda,
à redução de preço ao consumidor final ou à redução das desigualdades regionais. Contudo, da
forma como o tema extrafiscalidade tem sido tratado no Brasil, desde o período da colonização até
a época atual, com evidente banalização na concessão de privilégios tributários à atividade econô-
mica privada, pouco se questiona o elevado custo social desse modelo.
Na intenção de mensurar os resultados materiais da renúncia de receitas como instrumento
de estímulo do desenvolvimento socioeconômico nacional e local, a pesquisa empírica se debru-
çou nos dados socioeconômicos no período de 1990 a 2007. O presente estudo partiu do modelo
tributário inaugurado pela Constituição Federal de 1988, para daí apreender as relações entre
renúncia de receitas e resultados materiais. No caso específico do Brasil, há um ingrediente adi-
cional: a coincidência histórica entre elaboração e promulgação da Constituição Federal de 1988 e
a consolidação da doutrina neoliberal. Esta contextualização torna-se importante porque permite
contemporizar a nova ordem jurídica constitucional-tributária com o acirramento das políticas
de renúncia de receitas protagonizada pelos Estados-membros, denominada, genericamente, de
guerra fiscal. Na verdade, apenas a guerra fiscal tornou-se pública e ganhou evidência, mas, em
todo o período, a União jamais deixou de despender severos esforços no sentido de ofertar à ativi-
dade econômica privada uma enorme gama de possibilidades de desoneração tributária.
Apesar da maciça transferência de riquezas para a iniciativa econômica privada, a pesquisa
empírica mostra um descompasso entre o discurso que defende a renúncia de receitas como ins-
trumento de estímulo ao desenvolvimento socioeconômico e os resultados materiais. Por exem-
plo, enquanto no período de 1990 a 2007 o PIB brasileiro teve um incremento real acumulado,
descontado o deflator implícito, de 67,04% (crescimento econômico que se situa aquém daquelas
experimentadas pelas economias emergentes no mesmo período), a estrutura de apropriação da
renda no país manteve-se inalterada, preservando a brutal desigualdade de renda. Este dado é
corroborado pelo coeficiente de Gini, que em todo o período manteve-se acima de 0,5, ou seja, o
Brasil ainda é um país com uma forte concentração de renda.
Dos indicadores sociais observados, apenas a proporção de pessoas abaixo das linhas de po-
breza e indigência, no período, experimentou uma expressiva redução, especialmente a partir de
1993 e, de forma mais acentuada, a partir de 2003. Mas, este resultado significativo é atribuído
exclusivamente às políticas de distribuição de renda iniciadas no governo de FHC e ampliadas no
Governo Lula.
Subjacente a estes resultados, também é relevante indicar que, no período de 1990 a 2007,

173
a carga tributária foi suportada prioritariamente pela pessoa física (2/3). Este resultado possibili-
ta identificar dois fenômenos distintos: forte tributação sobre a pessoa física associada à maciça
transferência de riquezas públicas para a atividade econômica privada. Em outras palavras, o
custo social da renuncia de receitas é suportado preponderantemente pela pessoa física. No caso
específico da guerra fiscal entre os Estados-membros, como o ICMS integra o preço final de produ-
tos, mercadorias e serviços, essa transferência de riqueza se dá de forma direta e imediata através
dos mecanismos de fixação de preço pelo mercado.
Evidentemente que a solução deste problema não passa pelo protagonismo da União em
detrimento dos entes subnacionais ou pela centralização das competências tributárias. Em geral,
os mesmo males atribuídos aos entes subnacionais também são observados no ente nacional, em
todas as esferas de Poder. A própria comprovação histórica mostrou que o protagonismo da União
não foi capaz de remediar o passivo social brasileiro nem, muito menos, minorar as desigualdades
regionais.
Uma provável solução é incluir no debate político a discussão sobre o modelo de financia-
mento estatal da atividade econômica privada através da renúncia de receitas. Esta discussão terá
de passar, invariavelmente, pela disposição da sociedade brasileira em suportar o custo social da
ineficiência econômica.

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176
ANTIJURIDICIDADE E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ

Lúcio Grassi de Gouveia1

1. INTRODUÇÃO
Situam-se no campo da antijuridicidade tanto o abuso de direito quanto o ato ilícito stricto
sensu.
Costuma parte da doutrina afirmar que a litigância de má-fé prevista nos art. 17 e 18 do
Código de Processo Civil brasileiro é abuso de direito processual. Faz sentido tal afirmação?
Apesar de o ato abusivo ser considerado ilícito pelo Código Civil brasileiro, diferencia-se
conceitualmente dele. No caso da litigância de má-fé,tendo havido ampla previsão das condutas
desleais, as mesmas foramtransformadas em ilícitos processuais, sem necessidade de socorro ao
instituto do abuso de direito.
Na elaboração dos incisos do art. 17 do CPC, utilizou-se o legislador de conceitos indeter-
minados, podendo a ilicitude ser verificada prima facie, sendo desprovida de aparência de licitude
a conduta do improbus litigator.
Veremos assim que, atualmente, ao estudarmos as condutas previstas no art. 17 do CPC, não
devemos fazer uso do instituto denominado por parte da doutrina de abuso de direito processual.

2. O ABUSO DO DIREITO DE DEMANDAR E DE SE DEFENDER NO CÓDIGO DE PROCES-


SO CIVIL DE 1939
Dispunha o Código de Processo Civil de 1939:

Art. 3º - Responderá por perdas e danos a parte que intentar demanda por espírito
de emulação, mero capricho, ou erro grosseiro.
Parágrafo único - O abuso de direito verificar-se-á, por igual, no exercício dos meios
de defesa, quando o réu opuser, maliciosamente, resistência injustificada ao anda-
mento do processo”.

1 Professor do Mestrado em Direito e Graduação da Universidade Católica de Pernambuco. Doutor em Direito pela
Universidade de Lisboa. Mestre em Direito pela UFPE. Membro da ANNEP. Juiz de Direito.

177
Dispunha ainda:

Art. 63. Sem prejuízo do disposto no art. 3º, a parte vencida que tiver alterado, in-
tencionalmente, a verdade, ou se houver conduzido de modo temerário no curso da
lide, provocando incidentes manifestamente infundados, será condenada a reem-
bolsar à vencedora as custas do processo e os honorários do advogado.
§ 1º - Quando, não obstante vencedora, a parte se tiver conduzido de modo teme-
rário em qualquer incidente ou ato do processo, o juiz deverá condená-la a pagar à
parte contrária as despesas a que houver dado causa.
§ 2º - Quando a parte, vencedora ou vencida, tiver procedido com dolo, fraude,
violência ou simulação, será condenada a pagar o décuplo das custas.
§ 3º - Se a temeridade ou malícia for imputável ao procurador, o juiz levará o caso
ao conhecimento do Conselho local da Ordem dos Advogados do Brasil, sem prejuí-
zo do disposto no parágrafo anterior”.

Naquele tempo, Pontes de Miranda ensinava que o art. 3º referia-se ao abuso do direito pro-
cessual (MIRANDA, 1958, p. 130).
Ao explicar o abuso do direito, afirmou que

o estudo do abuso do direito é pesquisa dos encontros, dos ferimentos, que os di-
reitos se fazem. Se pudessem ser exercidos sem outros limites que os da lei escrita,
com indiferença, se não desprezo, da missão social das relações jurídicas, os abso-
lutistas teriam razão. Mas, a despeito da intransigência deles, fruto da crença a que
se aludiu, a vida sempre obrigou a que os direitos se adaptassem entre si, no plano
do exercício. Conceptualmente, os seus limites, os seus contornos, são os que a lei
dá, como quem põe objetos na mesma matela, ou no mesmo saco. Na realidade,
quer dizer – quando lançam na vida, quando se exercitam – têm de coexistir, têm
de conformar-se uns com os outros (MIRANDA, 1966, p. 67-68).

Ao mesmo tempo, ao tratar dos atos ilícitos, ensinava Pontes de Miranda que os elementos
comuns aos atos ilícitos lato sensu seriam o ato humano e a contrariedade a direito. Quanto ao ato
ilícito stricto sensu, afirmava que

o ato ilícito stricto sensu tem a particularidade de violar, com culpa, a regra jurídica,
sem atinência a que essa regra regula negócio jurídico ou ato jurídico stricto sensu.
Contraria direito, ferindo (lesando) bens da vida, que o direito protege; indepen-
dentemente do vínculo entre ofensor e ofendido, oriundo de negócio jurídico, ou
de ato jurídico stricto sensu. É ilícito estricto sensu, portanto, todo ato ilícito que
ofenda direito subjetivo ou cause outros danos (MIRANDA, 1970, p. 213).

Passemos agora à redação do Código de Processo Civil atual, no que diz respeito ao instituto
da litigância de má-fé.

3. A LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ATUAL


Em sua redação atual, dispõe o Código de Processo Civil Brasileiro:

Art. 17.  Reputa-se litigante de má-fé aquele que: (Redação dada pela Lei nº 6.771, de
1980)
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontrover-
so; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 1980)
II - alterar a verdade dos fatos; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 1980)
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; (Redação dada pela Lei nº 6.771,

178
de 1980)
IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; (Redação dada pela
Lei nº 6.771, de 1980)
V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; (Reda-
ção dada pela Lei nº 6.771, de 1980)
Vl - provocar incidentes manifestamente infundados. (Redação dada pela Lei nº 6.771,
de 1980)
VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. (Incluído pela Lei
nº 9.668, de 1998)

Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de


má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a inde-
nizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatí-
cios e todas as despesas que efetuou. (Redação dada pela Lei nº 9.668, de 1998)
§ 1o  Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um
na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que
se coligaram para lesar a parte contrária.
§ 2o  O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não supe-
rior a 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, ou liquidado por arbitramen-
to. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 1994)

Vale relembrar o que dispõe o Código Civil:

Dos Atos Ilícitos


Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, ex-
cede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes.

Na hipótese do art. 186, o ato é praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando
direito subjetivo individual, causando dano patrimonial ou moral a outrem, criando o dever de
repará-lo.
O art. 187prevê hipótese em que, sob a aparência de um ato legal ou lícito, esconde-se a
ilicitude no resultado, por atentado ao princípio da boa-fé e aos bons costumes ou por desvio da
finalidade socioeconômica para a qual o direito foi estabelecido. No ato abusivo há violação da
finalidade econômica ou social.
O legislador ampliou, de modo significativo, o âmbito de incidência da teoria do abuso de
direito, ao estabelecer critérios da boa-fé, dos bons costumes e dos fins econômico ou social, como
parâmetros para aferição do ato abusivo.
Para Tepedino, o legislador de 2002 não foi feliz ao definir abuso de direito como espécie de
ato ilícito (TEPEDINO et al, 2007, p. 342).
A redação do Código Civil brasileiro confunde duas espécies de antijuridicidade: o ilícito
e o abusivo. Apesar de o abuso ser atuação contrária ao direito, isto é, conduta antijurídica, não
necessariamente se configura como atuação vedada por lei ou norma explícita no ordenamento
jurídico. Porém, em nosso Código Civil, ambas estão enquadradas como espécies do gênero ilici-
tude lato sensu.
O art. 187 dispõe sobre o abuso de direito, que passaremos a estudar agora.

4. O CONCEITO DE ABUSO DE DIREITO NA DOUTRINA


Segundo Planiol,

a teoria do abuso do direito veio alargar o âmbito das nossas responsabilidades,


179
cerceando o exercício dos nossos direitos subjetivos, no desejo de satisfazer melhor
o equilíbrio social e delimitar, tanto quanto possível, a ação nefasta do egoísmo hu-
mano. Como corretivo indispensável ao exercício do direito, ela veio limitar o poder
dos indivíduos, mesmo investidos de direitos reconhecidos pela lei, conciliando es-
tes direitos com os da coletividade (PLANIOL apud LEÃO, 1986, p. 7).

A concepção individualista do Código Civil de Napoleão construiu um sistema de direito


absoluto, do qual é exemplo, no campo da propriedade, o seu famoso art. 544. A teoria do abuso
de direito, tão bem esquematizada por Josserand, na França, e Campion, na Bélgica, é a reação
contra a amoralidade e conseqüências anti-sociais que decorrem da doutrina clássica dos direitos
absolutos. Afirmou Josserand que “o exercício de um direito não é incompatível com a noção de
culpa, mas o conceito de culpa, que acolhe, quanto trata do abuso de direito, não é o conceito
clássico, mas o de culpa social, ou seja, o desvio da missão social do direito” (JOSSERAND, p. 329
apud LEÃO, 1986, p. 7).
A teoria do abuso de direito ou da relatividade dos direitos é a reação contra a amoralidade
e determinados resultados anti-sociais que decorrem da doutrina clássica dos direitos absolutos,
visando ao que Josserand denominou “moralização do direito” (JOSSERAND, p. 91 apud LEÃO,
1986, p. 7-8).
Na fixação do abuso de direito, há o critério subjetivo e o critério objetivo. Pelo primeiro, só
há o exercício abusivo do direito com intenção de lesar o direito de outrem. Pelo segundo, também
chamado finalista, será anormal o exercício do direito quando contrariar sua finalidade social e
econômica.
Josserand, apesar de ter iniciado a exposição de sua teoria defendendo o critério subjetivo,
veio a entender que é pelo critério finalista que se chega à verdade. E admite que

deve-se ter em vista a finalidade dos direitos, sua função própria a cumprir e, con-
seqüentemente, cada um deles deve realizar-se conforme o espírito da instituição;
os pretensos direitos subjetivos são direitos-funções, os quais devem permanecer no
plano da função que devem desempenhar, senão o seu titular comete um desvio,
um abuso de direito. O ato abusivo é o ato contrário ao fim da instituição, ao seu
espírito, à sua finalidade(JOSSERAND, 1972, p. 329 apud LEÃO, 1986, p. 18).

Todo direito tem uma finalidade específica. O desvio dessa finalidade caracteriza o abuso de
direito.
A teoria do abuso de direito, diz ainda Alvino Lima, proclamando a relatividade dos direitos,
ante a impossibilidade de se traçar na lei qual o uso que cada um deve fazer de seu direito, é bem
a teoria da moralização do direito, opondo à rigidez de um texto, os princípios superiores da moral,
indispensável na regulamentação humana, dentro da esfera jurídica (LIMA, p. 338 apud LEÃO,
1986, p. 8).
Para José Olímpio de Castro Filho,

toda vez que , na ordem jurídica, o indivíduo no exercício do seu direito subjetivo
excede os limites impostos pelo direito positivo, aí compreendidos não só o texto le-
gal mas também as normas éticas que coexistem em todo sistema jurídico, ou toda
vez que o indíviduo no exercício do seu direito subjetivo o realiza de forma contrária
à finalidade social, verifica-se o abuso do direito. Entende que o direito subjetivo,
poder de agir, é, na sua realização normal, o uso, e, na sua realização anormal, o
abuso (CASTRO FILHO, 1959, p. 21).

Roberto Rosas adverte que,

numa orientação mais moderna, o exercício anormal do direito pode se caracterizar


sem a intenção de prejudicar. Não havendo proveito próprio, ou intenção de preju-

180
dicar, não há anormalidade (orientação de Saleilles e Josserand), ou como diz San-
tiago Dantas: o abuso é qualificado pelo aspecto objetivo do ato. Se este patenteia a
sua anti-socialidade existe abuso e cabe repressão (ROSAS, 1987, p. 171).

Saleilles foi o criador da teoria do exercício anormal do direito, repelindo o critério psicológi-
co do Código alemão, no qual, o exercício de um direito é inadmissível se ele tiver por fim, somen-
te, causar dano a outro (BGB - § 226), em contraposição a outro dispositivo do BGB, que impõe a
indenização do dano a quem, de modo atentatório contra os bons costumes, cause, dolosamente,
dano a outro (BGB - § 826). Saleilles, em face da autonomia desses dispositivos, proclamou a teo-
ria objetivista da destinação social e econômica do direito. Para ele, o abuso de direito consiste no
exercício anormal do direito, exercício contrário à destinação econômica ou social do direito sub-
jetivo, exercício reprovado pela consciência pública (Théorie Générale de l”Obligation, 2ª ed., pág.
371). Mas o próprio Saleilles alterou o seu pensamento para adotar a teoria subjetivista (D’Abuse
du Droit). Segundo Roberto Rosas, “a melhor orientação está na fusão das duas doutrinas forman-
do a chamada doutrina mista”2 .
Menezes Cordeiro trata o abuso de direito como “exercício inadmissível de posições jurídi-
cas”. Para ele, deve-se apontar um papel particular da boa-fé, presente nas diversas regulações
típicas do abuso de direito: o da metodologia por ela pressuposta. Entende que o essencial do
exercício inadmissível de posições jurídicas é dado pela boa-fé: aos bons costumes e à função so-
cial e econômica dos direitos, incluídos no art. 334.°(do Código Civil Português), cabe um papel
diferente (CORDEIRO, 2011).
Analisado o conceito de abuso de direito, passemos a uma análise da doutrina que equipara
a litigância de má-fé no processo civil ao abuso do direito de ação e de defesa.

5. A CARACTERIZAÇÃO DA LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ COMO ABUSO DE DIREITO POR


PARTE DA DOUTRINA
Para diversos autores, a figura jurídica do abuso de direito é a que melhor explica a litigância
de má-fé no processo civil. Analisemos o pensamento de alguns que realizam tal aproximação.
Quanto ao abuso do direito no processo, a doutrina enfatiza que o processo, instrumento
de realização do direito, não é meio para se prejudicar alguém (teoria subjetivista) ou para atingir
objetivos anti-sociais (teoria objetivista). Entretanto, mais do que o direito privado, é propício o
processo para o exercício abusivo de direito, conforme afirma Frederico Marques (1958, p. 132).
A teoria geral do processo, no particular da lide temerária, foi buscar o seu fundamento na
teoria do abuso de direito, portanto, no privatismo, mas o efeito do abuso, na relação processual
é mais amplo pois atinge o Estado. Segundo Walter Zeiss, “a conduta do litigante é abusiva para
com o Estado, não para com o adversário. A litigância temerária constitui pois um ataque às ins-
tituições justutelares do Estado, uma provocação inútil, excessiva ou antifuncional dos tribunais

2 Dessa forma, divergiram no devenir da história partidários de critérios distintos para caracterização do abuso de
direito. Os adeptos da teoria subjetiva entendem que só se caracterizará o abuso do direito quando restar provada a
intenção de prejudicar, sem qualquer proveito ou vantagem para quem o comete, sugerindo que devam ser pesados a
intenção do litigante e o seu desejo de causar dano, com intuito de prejudicar. Em outras palavras, para determinar-se
se há abuso de direito, atende-se exclusivamente à intenção do agente. O exercício do direito passa a ser abusivo se se
pretende, com ele, prejudicar terceiros, sem nenhum ou insignificante proveito para si (são expoentes dessa corrente
Bonnecase, Demogue, Ruggiero e Lalou). Os adeptos da teoria objetiva estendem muito mais o conceito de abuso de
direito, embora , como é claro, não fiquem de certo modo infensos à intenção maldosa do infrator. Para estes, pouco
importa que o infrator tenha ou não tirado vantagem do seu ato nocivo e prejudicial ao antagonista; bastar-lhes-á a
realização do ato de modo diferente do visado pelo legislador, ou pelo respectivo instituto jurídico, para caracterizá-lo.
Não discutirão o intuito do agente, e sim a vontade da norma disciplinada com regra geral. Ou seja, para os objeti-
vistas pode haver abuso de direito mesmo sem intenção de prejudicar. O ato é lícito ou ilícito conforme se realize ou
não de acordo ou em harmonia com a finalidade do instituto jurídico. Para esses, o exercício abusivo do direito sem
proveito próprio, ou com a intenção de prejudicar, constitui sempre um abuso, sendo essa sua forma mais freqüente
e expressiva; todavia, entendem que é difícil de ser pautada e é insuficiente a intenção, para caracterizar o abuso;
mais objetivamente, ocorrerá sempre que o direito seja exercido em desacordo com sua finalidade social (expoentes
desta corrente são Josserand e Saleilles). Dessa forma, abuso de direito é a relação de contrariedade entre a conduta
do homem e o fim pretendido pela ordem jurídica. (Idem, p. 171)
181
estatais”(ZEISS, 1979, p. 32).
Não pode a parte ou seu procurador invocar a tutela jurisdicional para prejudicar outrem ou
desvirtuar a finalidade do seu direito. O abuso existe, mesmo não tendo havido dano à parte con-
trária. José Olímpio de Castro Filho preleciona que a repressão pelo Estado se efetua, “não porque
resulte, ou possa resultar, em dano alheio, senão porque representa o abuso, por si só, um dano ao
Estado” (CASTRO FILHO, 1959, p. 33).
Assim, a doutrina do abuso do direito teve origem no Direito Civil, conforme analisado supra
e foi transplantada para o processo civil. Neste, passou-se a se considerar que o exercício da de-
manda não é um direito absoluto, pois que se acha, também, condicionado a um motivo legítimo.
A utilização do processo pressupõe um direito a reintegrar, um interesse a proteger, uma séria
razão para invocar a tutela jurisdicional (DIAS, 1998, p. 36).
Existe ainda a agravante em processo que, além de ser atingida a parte contrária, atinge-se
também o Estado, ficando esse a mercê de indivíduos que pretendem, através do processo, preju-
dicar outros ou obter resultados ilícitos. Daí a enxurrada de dispositivos legais a punir a litigância
de má-fé, salvaguardando os princípios da boa-fé, lealdade e probidade no processo civil.
Pontes de Miranda fala em proibição ao abuso do direito público (subjetivo) de demandar,
o abuso do exercício da ação (e da exceção), o abuso do remédio jurídico processual ou de atos
processuais (1970, p. 485-486).
Couture ensina que o litigante malicioso comete abuso do direito constitucional de petição,
desviando-o de seus fins próprios (COUTURE, p. 23 apud CASTRO FILHO, 1959, p. 25).
Moacyr Amaral Santos, em voto proferido no STF (R. Ext.n. 69.439 ) assinalou que “o abuso
do direito no exercício da demanda se caracteriza pelo dolo, no sentido de intenção de prejudicar,
ou erro grosseiro, ou pelo espírito de aventura ou temeridade” ( RTJ 56/129 ).
José Olímpio de Castro Filho enfatiza que o abuso de direito atingiria não só a parte adversa
ou terceiros, mas também o Estado. Para ele, com essa teoria (abuso do direito) vieram ao pro-
cesso todas as denominações atribuídas ao ato ilícito, formando o “quadro patológico do abuso do
direito”: o dolo, a temeridade, a fraude, a emulação, o mero capricho, o erro grosseiro, a violência,
a protelação da lide, etc (1959, p. 32, 87-88).
Arruda Alvim identifica o abuso na pretensão, afirmando que

o direito de ação, que é faculdade de acionar a jurisdição, deve conter uma preten-
são, e esta é que não deve ser abusiva. Todavia, nossa legislação processual, tanto
a anterior como a vigente, acolhe o abuso do direito no processo, i.e., não admite
certas deslealdades processuais, que superem os limites definidos pelo sistema. A
problemática da má-fé assenta-se muito mais na análise da pretensão do que no
direito de ação (ALVIM, 1975, p. 150).

Para Gino Zani, o ilícito processual não poderá ser procurado no direito de ação, mas na an-
tijuridicidade da pretensão, na falta de fundamento do direito de ação, e, enfim, na desonestidade
e delituosidade dos meios instrumentais eventualmente postos em ação (ZANI, 1931, p. 77) .
Zani nega a aplicação da teoria do abuso do direito ao processo, justificando que somente
no caso, praticamente absurdo, no qual o litigante no próprio ato de proposição da demanda in-
fundada, expressamente declarasse que age sem razão e unicamente para importunar o próximo,
e de pedir o reconhecimento que nenhum direito lhe compete, só para exercitar aquele direito
processual de ação e de fatigar assim o adversário, poderia haver atividade emulatória no próprio
direito (processual) de ação (ZANI, 1931, p. 83).
Prefere Zani assentar a discussão em torno do dolo processual, esclarecendo que

é assim que em relação à amplitude de seu conteúdo e do ambiente que se desen-


rola, a teoria do dolo processual fala a propósito de atividade enganatória em relação
ao mérito da demanda ou da exceção, seja no curso do juízo principal ou incidental,
seja em procedimentos especiais de conhecimento (não definitiva, inaudita altera
parte, etc.)(ZANI, 1931, p. 87).

182
Mas como bem sabemos, também poderá ocorrer litigância de má-fé sem dolo.
Para Barbosa Moreira, o abuso de direito no processo civil se desdobra em abuso do direito de
demandar (direito de ação em sentido estrito), por parte do autor, e o abuso do direito de defesa,
por parte do réu (p. 22-23).
Para Roberto Molina Pasquel,

no sistema anglo-americano os atos abusivos praticados no processo são considera-


dos ofensivos aos juízes ou tribunais, podendo ser conceituados como tal: a) desa-
preço à autoridade, à justiça ou à dignidade de um tribunal; b) desprezo voluntário
à autoridade exercida por uma corte de justiça; c) execução de atos que possam
conduzir a um desapreço genérico à pessoa dos juízes, e que exijam uma interven-
ção sumária para preservar a ordem no tribunal e manter a dignidade dos juízes; d)
tendência a obstruir a administração da justiça em uma demanda, fazendo nulas
as resoluções do tribunal, levando ao menoscabo de sua reputação e a uma falta
de respeito entre os homens; e) a desobediência a qualquer resolução legítima, de-
creto, auto ou ordem de um tribunal ; e f) a obstrução ofensiva aos procedimentos
judiciais em que o juiz atua de ofício (PASQUEL, p. 23 apud SOUZA, p. 67).

Admite Molina Pasquel que constituem contempt, entre outros, os seguintes atos praticados
no processo: desapreço, indiferença, desatenção ou desacato; subtração ou alteração de documen-
tos judiciais; abuso de recursos ou ações; destruição, alteração, ocultação ou disposição de coisa
objeto do litígio; caução ou fiança ilusórias ou fictícias; mau comportamento em audiência, de par-
tes, advogados ou testemunhas; recusa de depor ou falso testemunho; obstar citações; exercício
ilegal da advocacia, etc (PASQUEL, p. 104 e ss.apud SOUZA, p. 68).
Entende ainda que o contempt, ou ofensa, caracteriza perfeitamente o abuso do direito de
demandar ou no curso da demanda, e, através de processo regular, “vindicatorio de la dignidad
judicial”, de iniciativa tanto do ofendido como da autoridade judicial, são impostas ao ofensor
sanções que variam de prisão à indenização, incapacidade para demandar, retratação em juízo,
etc(PASQUEL, p. 136-137 e 155 apud SOUZA, p. 68).
Tais procedimentos fortalecem o juiz e os tribunais na tarefa de conduzir o processo ao seu
fim imediato, impedindo toda forma de abuso perante a Justiça, pelo que Carlos Aurélio Mota de
Souza compara o instituto do contempt of court ao nosso “atentado a dignidade da justiça”, cuja
aplicação não deveria ficar limitada às poucas referências do Código, mas ser estendida a toda
situação de real ofensa à ordem jurídica, ocorrente no processo (p. 68).
Carlos Alberto Mota de Souza refere-se ainda às astreintes dos franceses, que têm caráter
cominatório para assegurar o efetivo cumprimento de sentenças que impõem ao devedor uma
prestação de fazer ou não fazer e que teriam sido acolhidas pelo nosso CPC de 1973 nos arts. 644,
645 e 932. E indaga se as astreintes seriam sanções contra o abuso do direito.
Para Mendonça Lima se trata de aplicação do princípio da probidade, de alto sentido ético,
visando a romper a resistência obstinada e talvez ímproba do devedor que, além de lesar o direito
do credor, ainda zomba da autoridade do Estado, representado pelo Poder Judiciário, não cum-
prindo a obrigação que lhe foi imposta em sentença (LIMA, p. 347-356).
Para Alcides Mendonça,

se bem que as astreintes tenham caráter econômico, o seu alvo é ético, por ser meio
coativo, contra atos de protelação do devedor, burlando a finalidade da justiça antes
de atentar contra os direitos do credor exequente, como adversário. É o prestígio da
justiça que está em jogo, pois se trata de assegurar aquilo que seus órgãos julgaram
a favor do credor-exequente. O sentido, assim, é duplamente moral: resguarda a
autoridade do Estado e protege os direitos subjetivos do credor (LIMA, p. 39).

Sintetiza Mota de Souza que largas são as discussões em torno da incidência do abuso do
direito no campo processual, abrangendo as questões pré-processuais (litígio ou pretensão), as que
ocorrem durante o processo (má-fé, deslealdade, temeridade), e as que irão repercutir além do
183
processo, através da coisa julgada (p. 69).
Vicente Miranda afirma que “o chamado abuso do direito processual encontra vedação nos
arts. 16, 17 e 18 de nosso Código de Processo”, admitindo assim consistir a litigância de má-fé em
abuso de direito (MIRANDA, 1993, p. 188).
Diante de tantas afirmações de tão renomados juristas da incidência da figura do abuso de
direito no que diz respeito à litigância de má-fé, merece um aprofundamento o estudo da distinção
entre os conceitos de abuso de direito e ilicitude, para demonstrarmos que esse último é o adequa-
do para explicar a litigância de má-fé do Código de Processo Civil brasileiro.

6. A LITIGÂNCIA DE MÀ-FÉ COMO ILICITUDE


Nos direitos brasileiro e português a litigância de má-fé assume contornos de ilicitude. Pas-
semos a distinguir ilicitude (ou ilegalidade) e abuso de direito.
Ripert assinalou a distinção pelas características de cada caso: “no abuso de direito é a in-
tenção delitual que motiva o ato, enquanto a ilegalidade é o ato contrário à lei” (RIPERT, 1937, p.
230; GIORGIANNI, 1963; RESCIGNO, 1965, p. 205; NATOLI, 1958, p. 18 apud ROSAS, p.173).
Veremos que na ilegalidade caracteriza-se a violação da lei, ao passo que no abuso do direito
há exercício do direito, de modo anormal.
Segundo Fernando Augusto Cunha de Sá,

o comportamento do titular de certo direito subjetivo pode, esquematicamente,


reconduzir-se a uma das três seguintes hipóteses:
a) tal comportamento conforma-se quer com a estrutura do direito subjetivo exer-
cido, isto é, com a sua forma, quer com o valor normativo que lhe está inerente;
b) o comportamento do titular é, logo em si mesmo, contrário ou disforma da pró-
pria estrutura jurídico-formal do direito subjetivo em causa;
c) o comportamento preenche na sua materialidade, in actu, a forma do direito
subjetivo que se pretende exercer, mas do mesmo passo, rebela-se contra o sentido
normativo interno de tal direito, isto é, contra o valor que lhe serve de fundamento
jurídico.
Só no primeiro caso se pode falar, com inteira correção, de exercício do direito. Por-
que se preenche a estrutura formal do direito e se respeita o valor que juridicamen-
te funda o sentido desse direito, a atuação do titular integra concretamente um ato
de exercício do mesmo direito, preenche faticamente a previsão normativa a que é
feita seguir a qualificação jurídica de admissibilidade ou permissão em termos de
direito subjetivo. Estamos, aí, no domínio da licitude, do ato que é válido e legítimo
e que o é concretamente, como exercício de um direito.
Na segunda hipótese, o comportamento do titular viola, opõe-se à própria estru-
tura do direito subjetivo, ultrapassa os limites formais de tal direito, excede-o na
sua configuração jurídico-formal, atua sem direito, para lá do direito. Costuma-se ,
aqui, falar tradicionalmente de excesso de direito, de falta de direito, de carência de
direito: quer dizer, a atuação do sujeito não é desde logo formalmente tida como ad-
missível ou por permitida e não pode, assim, dizer-se com propriedade que se trata
do exercício de um direito quando nem sequer há aparência do mesmo, quando a
atuação se não reveste das características formais do direito subjetivo. Nessa hipóte-
se enquadra-se o atuar em desacordo com a lei, a prática de ilegalidade ou ilicitude.
No terceiro caso o comportamento do titular preenche a estrutura do direito subje-
tivo, mas que, pelos precisos termos em que aparece ou pela exata situação em que
surge, a sua realidade material não cumpra aquele mesmo valor normativo que é o
fundamento jurídico de tal direito subjetivo (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 465-467)3.

3 Segundo Fernando Sá “aparentemente, no plano da forma, o titular atua no seu direito, move-se dentro dele, mas,
na realidade, comportamento e direito opõem-se pelo concreto sentido que um e outro possuem diferentemente. A
aparência estrutural do direito não é integrada pela sua intenção normativa; a forma está presente, mas o seu preci-
so valor está ausente, a realidade finge o direito: o comportamento do titular viola, no seu íntimo sentido, os limites
materiais que para a qualificação jurídica do permitido em termos de direito subjetivo resultam do seu fundamento
axiológico. E tão pouco se pode falar aí de exercício de um direito, pois que, à face deste mesmo fundamento, é ilegíti-
184
Nesse último, fala-se de abuso de direito, sobre o qual já nos manifestamos.
Dessa forma, tanto na segunda como na terceira hipótese se atua fora do direito, sem di-
reito, porque se ultrapassaram os limites que a ordem jurídica assinala ao mesmo direito: só que,
na segunda, foram excedidos os limites lógico-formais do direito, aqueles que direta e claramente
resultam dos quadros estruturais da norma positiva, enquanto que, na terceira, são os limites axio-
lógico-materiais do mesmo direito que a situação concreta desrespeita; mas, em ambos os casos,
pois, resulta evidente a antijuridicidade própria da conduta que, num, é relativa à forma do direto
subjetivo e, no outro, ao seu fundamento ou sentido valorativo (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 468).
Na segunda fala-se de ilegalidade ou, pura e simplesmente, de ilicitude; na terceira, de abu-
so de direito. Logo, pelo respectivo fundamento, as duas qualificações jurídicas se autonomizam:
na ilegalidade ou ilícito formal, são os limites estruturais do direito que se ultrapassam; no abuso
do direito, excedem-se os limites materiais desse direito, aquelas precisas fronteiras que lhe são
marcadas pelo seu imanente sentido axiológico-jurídico (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 468).
Devemos concordar ainda com o autor, no sentido de que, mesmo que, porventura, se venha
a concluir que deveriam ser idênticas as conseqüências de ambas as modalidades do antijurídico,
bastaria a diversidade dos critérios por que se determinam para assegurar o interesse dogmático
da distinção e a autonomia científica das respectivas qualificações jurídicas (CUNHA DE SÁ,
1997, p. 468-469).
Assim, assiste razão a Fernando Augusto Cunha de Sá ao admitir que

ao salientar a relação transcedental e unitária que existe entre o fundamento axio-


lógico de um certo e determinado direito subjetivo e a estrutura formal desse mes-
mo direito (raciocínio que foi aplicado depois às diversas prerrogativas jurídicas
individuais), fixou a autonomia dogmática da qualificação jurídica em termos de
abuso do direito por referência ao elemento valorativo e a da qualificação jurídica
em termos de ilicitude em conexão com o elemento estrutural (CUNHA DE SÁ,
1997, p. 633).

Em ambas as hipóteses, porém, se concluiu estar perante um comportamento que é mate-


rialmente estranho ao exercício do direito subjetivo ou da diversa prerrogativa jurídica individual:
só que enquanto a ilicitude é, desde logo, direta e frontal violação dos limites formais do direito
ou da prerrogativa em causa, já o ato abusivo finge a aparência estrutural desse mesmo direito ou
prerrogativa, assim encobrindo a violação da sua intenção normativa (CUNHA DE SÁ, 1997, p.
633-634).
Concluímos, pois, que quer a ilicitude, quer o abuso do direito, são em si mesmos, substan-
cialmente, atuação sem direito, em carência do direito, apesar de naquela tratar-se da ultrapassa-
gem dos limites lógico-formais de uma determinada prerrogativa individual e, nesta, do excesso
ou desrespeito dos respectivos limites axiológico-materiais (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 634).
Diz-se que no ato ilícito stricto sensu, há subsunção do ato concreto ao preceito legal, pois
há violação de um comando normativo. Por outro lado, no ato abusivo o sujeito age no exercício de
seu direito, mas viola os valores que lhe fundamentam. No abuso de direito há a presença da apa-
rência de direito, fato que justifica sua singularidade e consequentemente sua autonomia frente
ao ato ilícito (MODENESI, 2013).
Reconhece-se que a doutrina do abuso de direito se encontra em sintonia com a mudança
de paradigma operada no ordenamento, a qual se dirige à superação do ideal de completude, tão
defendido pelo positivismo jurídico. Admite-se portanto que o direito positivo não é capaz de pre-
ver de forma exaustiva todas as condutas indesejadas, que devem ser repelidas do ordenamento
(CARPENA in TEPEDINO, 2007, p. 407).
mo o comportamento concreto do titular. Aliás, a nossa própria lei expressamente refere o abuso ao excesso manifesto
dos limites do direito. Mas poderá haver responsabilidade pelo exercício danoso do direito próprio, quando o titular,
permanecendo por hipótese dentro dos limites de tal direito, escolha entre os diversos modos possíveis de exercício,
precisamente aquele que poderia causar dano ? No sentido afirmativo, quando a escolha do modo mais gravoso fosse
intencional, pronunciava-se o Landrecht prussiano de 1794, 1ª parte, tít. 6º, §§ 36º e 37º. Todavia, o problema só se
colocaria aí com autonomia quando a escolha não fosse dolosa; de resto, tratar-se-ia de encontrar a solução no caso
concreto que decorresse do critério geral adotado (Idem, p. 467).
185
Quanto às sanções (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 634-635)4 aplicáveis a ambas poderão ser idên-
ticas, sem qualquer prejuízo para a autonomia conceitual das mesmas.
No mesmo sentido Taruffo, para quem da idéia generalíssima de abuso de direito se pode
tirar algumas sugestões úteis para individualizar a natureza do abuso do processo. Uma primeira
indicação é que se pode abusar de qualquer coisa de que se pode fazer uso legitimamente, se fos-
sem observadas algumas regras de correção. Em outros termos, se pode abusar de uma situação
subjetiva da qual se é titular, ou seja, de um direito, de um poder, de uma faculdade, etc (TARU-
FFO, 1995, p. 435-457).
Exemplifica Taruffo:

se Tizio não tem um direito ou um poder, não se pode propriamente dizer que dele
abusa; mas se poderá dizer que ele viola a norma, que usurpa uma posição, que
gaba-se, ou qualquer outra coisa, mas não que abusa de algo. Em substância, se
pode abusar do que se tem direito de fazer, não daquilo que não se pode fazer. Se
se faz o que não pode fazer estaremos diante de um comportamento ilegal, mas
essa ilegalidade não é propriamente definível como abuso. Emerge assim, dentro
da generalíssima categoria dos comportamentos ilícitos, uma distinção de ordem
subjetiva: só quem é titular de uma situação subjetiva ativa pode abusar, entre-
tanto, quem assim atua comete ilícito de diversas naturezas, não reconduzíveis ao
conceito de abuso. Essa distinção pode ser válida mesmo no âmbito processual: se
Tizio tem o direito, o poder ou a faculdade de praticar um ato do processo, pode
servir-se de modo correto ou impróprio e de forma abusiva. Se porém Tizio não
tem direito de praticar um certo ato do processo e todavia o pratica, não se pode
dizer que comete um abuso: se dirá, porém, que ele não está legitimado a praticar
aquele ato, e que assim o ato é nulo, inválido, anormal, inadmissível, ou outra coisa.
A sentença proferida por quem não é juiz não representa um abuso cometido pela
sua pronúncia, mas qualquer coisa que não existe no âmbito dos fenômenos juridi-
camente relevantes. A demanda proposta por quem não tem legitimidade para agir
não representa um abuso, mas uma banal hipótese de carência de legitimação ativa.
Assim, não é o abuso cada violação da regra processual, mas somente o exercício
impróprio, incorreto ou distorcido de uma situação processual ativa de que é titular
o autor do comportamento abusivo (TARUFFO, 1995, p. 435-457).

Ainda seguindo essa linha, Alberto dos Reis, que para justificar a penalização da litigância
de má-fé admite que

uma coisa é o direito abstrato de ação ou de defesa, outra o direito concreto de


exercer atividade processual. O primeiro não tem limites; é um direito inerente à
personalidade humana. O segundo sofre limitações, impostas pela ordem jurídica;
e uma das limitações traduz-se nesta exigência de ordem moral: é necessário que o
litigante esteja de boa fé ou suponha ter razão. Portanto , revelada a má fé, torna-se
patente que ele exerceu atividade ilícita. Há , em tal caso, segundo alguns, abuso de
direito; segundo o autor, parece mais rigoroso dizer que não há direito. Esta cons-
trução não colide com o princípio de que é lícito intentar ações ou deduzir defesas
objetivamente infundadas, porque o princípio deve entender-se nestes termos: con-
tanto que a parte esteja convencida de que lhe assiste razão (REIS, p. 261).

4 Segundo FERNANDO SÁ se este preciso fundamento permite autonomizar dogmaticamente as duas qualifica-
ções jurídicas no âmbito da contraditoriedade a direito, já aquela identidade substancial leva a aceitar a possibilidade
de serem as mesmas, no caso concreto, as sanções com que o ordenamento jurídico reprima ou previna o ato ilícito
e o ato abusivo. E conclui: “talvez até para salientar esta conclusão é que, como se viu, haja quem prefira falar a tal
propósito, respectivamente, de ilicitude formal e de ilicitude material – a diferente adjetivação deixando bem claro
tratar-se da mesma realidade substantiva que por ela é qualificada. Por isso também se teve logo oportunidade de
pôr em relevo que a autonomia científica dos conceitos de ilicitude e de abuso de direito, assim baseada na diferença
dos respectivos fundamentos ou critérios por que foram individualizados, não seria prejudicada por uma presumível
convergência de efeitos sancionatórios” ( FERNANDO CUNHA DE SÁ, Abuso do Direito ( reimpressão da edição de
1973), Livraria Almedina, Coimbra, 1997, p. 634-635 ).
186
É evidente que em alguns sistemas jurídicos nos quais as hipóteses de litigância de má-fé
não se apresentam taxativamente indicadas e acompanhadas das respectivas sanções, far-se-á
necessário o uso da figura do abuso de direito.
Numa simples leitura do art. 17 do CPC brasileiro observamos que ele indica taxativamente,
em seus incisos, os casos em que o autor, réu ou interveniente praticam condutas processualmen-
te ilícitas, não tendo sentido a utilização da figura do abuso de direito processual para qualificá-las
juridicamente.
Não tem qualquer direito àquela forma de atuar (e portanto não se pode abusar daquilo que
não se tem) o que litiga de má-fé no processo civil brasileiro, que fica sujeito às sanções previstas
no mesmo ordenamento.
O mesmo ocorre no direito português, onde o artigo 456º, nº 2 dispõe que litigante de má-fé
é o que, com dolo ou negligência grave, pratica as condutas indicadas nas letras a) a d) , ficando
sujeito às sanções previstas no nº 1 (multa e indenização). Nesse caso, não há que se socorrer da
figura do abuso de direito, pois aquele que age nos moldes do art. 456º nº 2 pratica ilicitude ali
prevista, devendo ser punido com as sanções indicadas no referido nº 1.
Concorda conosco Yussef Cahali, para quem as disposições dos artigos 16 a 18 do CPC bra-
sileiro configuram uma espécie de ilícito em que o elemento material consiste no desenvolvimento
de uma atividade processual, sendo o ilícito, que causa dano a uma parte, fonte de obrigação para
a parte a que é imputável (CAHALI, 1978, p. 38).

7. CONCLUSÃO
Dessa forma, equivocam-se os doutrinadores brasileiros que afirmam que o litigante que
pratica as condutas tipificadas como litigância de má-fé no art. 17, com sanções no art. 18, ambos
do Código de Processo Civil, estariam praticando abuso de direito. Trata-se na verdade de ilicitude
(ato ilícito stricto sensu, para alguns). Apesar de ambos se situarem no campo da antijuridicidade,
a distinção se faz necessária.

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bunais, 1975.
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Advocatícios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.
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Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
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187
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proceso de cognicion civilistico. Trad. Y presentación de Tomas A.Banzhaf, Buenos Aires: Edicio-
nes juridicas Europa-America,1979.

188
ACESSO À JUSTIÇA PARA PESSOAS COM DEFICIÊN-
CIA: NOVOS PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS1

Roberto Wanderley Nogueira2

1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem o propósito de descrever de modo preciso algumas das diversas va-
riáveis cognitivas do conceito de acessibilidade, à luz das novas diretrizes da Inclusão Social das
Pessoas com Deficiência (PcD), as quais foram cristalizadas, no país, por norma convencional
assinada em Nova Iorque com status de emenda à Constituição da República.
Dentre as inúmeras abordagens sobre acessibilidade consolidadas pelo caráter analítico-ex-
ploratório do Artigo 9, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto-Le-
gislativo nº 186/2008; Decreto Federal nº 6949/2009), perpassa a ideia fundamental do Acesso à
Justiça sem o que as demais variáveis da acessibilidade podem sofrer comprometimento, depre-
ciação ou simples descaso preconceituoso que suscita as diversas formas de discriminação que a
Norma Convencional intenta combater e erradicar3.
Aliás, o preconceito — uma forma de barreira atitudinal — é talvez a mais persistente hipó-
tese de agravo aos direitos “da maior minoria do Planeta”, conforme uma já notabilizada locução
atribuída ao Vice-Presidente da República do Equador, Lenín Moreno, ele mesmo Pessoa com
Deficiência (cadeirante). O preconceito, por isso mesmo, também se insinua sobre as estruturas

1 O artigo tem origem na Palestra apresentada pelo autor (http://lattes.cnpq.br/0179326544123326) à V Conferên-


cia RIADIS no Seminário Internacional ¨Latino América Acessibible y sin Barreiras”, sobre o tema: “Acesso à Justiça
à Luz da Convenção de Nova Iorque”. Quito, Equador, 10 de novembro de 2012.
2 Doutor em Direito Público. Professor adjunto da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Cató-
lica de Pernambuco. Juiz Federal em Recife
3 Um movimento progressivo em escala planetária vem sendo desenvolvido há mais de duas décadas, a partir de
uma ação mundial sob a firme orientação da ONU e das entidades que congregam as pessoas com deficiência em tor-
no do ideal de inclusão social em igualdade de condições. Esses esforços resultaram, a duras penas, no que podemos
convencionar como a “era dos direitos” dessas mesmas pessoas, as quais, estando em toda parte e que pela razão de
alguma limitação física, intelectual, psicossocial, sensorial ou múltipla, acabavam acreditando, ingenuamente, que
eram mesmo, em muitos casos, “incapazes” (com aspas), mas não eram. E realmente não são! A pessoa é um todo
muitíssimo complexo e, ao lado das próprias limitações, coexistem outras tantas habilidades e competências que não
devem ser diminuídas ou desprezadas, pois tudo isso é útil à cidadania, ao país e à sociedade. É fundamental à afir-
mação da cidadania de cada qual. A propósito, esse registro vale a todos.
189
e rotinas do Poder Judiciário Latino-americano. Os modelos que dispomos para fazer Justiça aos
casos concretos — que vão do modelo empírico-primitivo, passando pelo modelo tecnoburocrático
na direção de um modelo democrático contemporâneo (ZAFFARONI, 1995) — sofrem os revezes
do próprio Sistema Político no qual são gestados e os resultados desse cenário podem servir de
base, e frequentemente servem, a construções alopoiéticas (no sentido da moderna filosofia jurí-
dica alemã), quase sempre descoladas de sua razão de ser, ou seja: a Justiça!
Tais problemas, vistos aqui em gênero, se afirmam e evoluem solenemente em face de so-
ciedades ainda incipientes, cujos contingentes humanos são desprovidos da plena cidadania e
as pessoas se flagram numa insuperável incapacidade de avançar no processo de reivindicação
social, um paradigma da contemporaneidade.
A Rede Latino-Americana de Organizações Não Governamentais de Pessoas com Deficiên-
cia e suas Famílias (RIADIS), em sua notável perspectiva funcional e atuação nas Américas, vem
ao encontro desses objetivos emancipatórios, sobretudo porque, em síntese, atua para fortalecer a
participação das Pessoas com Deficiência nas diversas organizações da sociedade que lidam com
Direitos Humanos e nos setores de Governo da região das Américas.
Esforcemo-nos todos por reconhecer o preconceito como uma realidade interna e externa,
qualquer que seja, provenha de onde ou de quem provier, até de nós mesmos, e às demais barrei-
ras de atitude, para proscrevê-los de nossos cenários sociais (idem, quanto às práticas/barreiras
de atitude que dele emanam). Pois, onde houver barreiras de atitude há discriminação e precon-
ceito. E onde houver discriminação, traiçoeira da convivência social mesmo em nossos próprios
territórios, há injustiça social. É muito lamentável admitir que esse sentimento ainda se encontre
presente nos corações e mentes de muita gente, com ou sem deficiência, sobretudo em países
de economia periférica em que há um predomínio das grandes desigualdades sociais, além de
desinformação sistemática e de corrupção endêmica em maior ou menor grau de verificação e
intensidade.
Desse modo, toda barreira atitudinal faz mal e acarreta dissabores os quais, mais cedo do que
tarde, assim individual quanto coletivamente, acabam reverberando contra quem discrimina ou é
preconceituoso, no sentido de Ortega-Y-Gasset — para quem todo egoísmo é labiríntico! (ORTE-
GA Y GASSET, 1987, p. 153).
O Acesso à Justiça, realmente, é instrumento de garantir sua eliminação: dos preconceitos e
de toda forma de embarreiramento ao livre e pleno exercício da cidadania das PcD, em particular.
Por isso, perpassa o reconhecimento e a execução de todos os demais direitos relacionados.

2. MUITAS BARREIRAS ATITUDINAIS, UMA SÓ DIRETIVA


Das barreiras atitudinais podem-se alinhavar muitas formas, não importa se expressas ou
veladas, estas últimas conforme mais comumente acontece nas sociedades abertas. Essa evidên-
cia universal, atualmente, corrobora uma outra observação, em nosso caso participativa e também
evidente, baseada no comodismo ou na intolerância, de que por interferência das diversas formas
de discriminação (máxime os preconceitos) a sociedade acaba aceitando, por omissão, a exclusão
das pessoas com deficiência dos benefícios dessa mesma sociedade. E abrem mão do direito de
demandar, em face de barreiras burocráticas que se interpõe idiopaticamente à sua frente. Para
muitos, é menos vexatório deixar de exercer os próprios direitos do que serem submetidos a mais
discriminação, agora por parte do próprio Estado ou daqueles atores que mais detêm a responsabi-
lidade de os garantir pela razão do próprio ofício. Esse quadro se verifica presente não apenas nas
repartições do Poder Judiciário, mas também nos diversos setores do Poder Executivo — sobretudo
onde não haja sido constituído serviço próprio da área da inclusão —, na atividade policial, nos
ambientes penitenciários e no serviço fiscal.
Com efeito, não há equilíbrio entre os contendores, que é o suporte de validade empírica
para toda litigiosidade tida como civilizada, quando uma das partes seja economicamente desas-
sistida, ou quando as suas demandas não possam ser sustentadas mediante outras formas instru-
mentais constituídas pelo Estado, a exemplo de núcleos de Defensoria Pública realmente eficazes
e aparelhadas, gratuidade de encargos e custos processuais e facilidades para aquisição de toda
sorte de tecnologia assistiva sem a qual alguém com alguma deficiência não apresente condições

190
materiais de litigar de igual para igual, e postular desse modo os seus direitos4.
Do ponto de vista jurídico, parece elementar que a condição pessoal de cada um não deve
afetar o circuito de seus direitos subjetivos e nem mesmo restringir-lhe o acesso a eles, à sua efe-
tividade. Assim, não basta reconhecer os direitos. É fundamental que se operem as condições sem
as quais esses direitos não serão ordinariamente alcançados pelos seus titulares. Importante con-
siderar que a igualdade jurídica, hoje, não importa em uma mera abstração, ou em uma simples
ficção legal, mas se traduz em um exercício de comprometimento com a Justiça para todos, sob o
império da Lei (Equal Justice, under Law). Igualdade formal sem igualdade real é, pois, desigual-
dade e isto já não pode ser admitido concretamente nas sociedades contemporâneas, regidas pelo
império constitucionalizado e universal dos Direitos Humanos.

3. AS GRANDES BARREIRAS ATITUDINAIS


Corrupção e ignorância são, seguramente, as maiores barreiras de atitude que as Pessoas
com Deficiência têm de enfrentar em nossa quadra, sobretudo nas sociedades de economia peri-
férica, caso da América Latina. E é exatamente o que nós, pessoas com deficiência, vamos fazer
de um modo persistente e crescente até que a ideia do “desenho universal” (Artigo 2, parte final,
da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência) deixe de ser uma utopia entre nós5.
Com efeito, “a maior arma do opressor é a mente do oprimido”, teria afirmado o revolucio-
nário sul-africano Steve Biko, nos anos 60, ainda quando da luta contra o apartheid, afinal supe-
rado6.
A propósito, no Brasil vivenciamos, no passado, um abolicionismo tardio. Fomos talvez a
última Nação do Planeta a abolir a escravidão. Queremos viver, agora, um segundo abolicionismo
tardio que consiste, justamente, na emancipação política, social, moral e econômica das pessoas
com deficiência. Isto representa igualdade para todos, conforme o modelo do “desenho universal”
e o conceito contemporâneo de “maior parte” política que não exclui ninguém e, portanto, aban-
dona de certo modo a retrógrada percepção liberal de que a maioria é a “metade mais um” e não
o todo de um conjunto identificado por uma só natureza, para aceitar que essa maior parte é o
todo das pessoas, todo que deve ser contemplado em todas as ações políticas e sociais, sobretudo
na Administração da Justiça.
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no Brasil
Assinada em 2006, foi internalizada no Brasil pelo Decreto-Legislativo 186/2008, na forma do
artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal, hipótese que a configura como norma constitucio-
nal — equivalente a uma emenda constitucional. Após sua entrada em vigor pela forma suprema
antes descrita, eis que no ano seguinte, o Presidente Lula assinou o Decreto 6949/2009, promul-
gando-a, pelo que se estabeleceu o início de sua eficácia plena no território nacional. Tornou-se
exigível tecnicamente no plano interno. Tragicamente, no entanto, o Poder Judiciário brasileiro
não se aparelhou para recepcionar a supremacia da Norma Convencional em foco e os processos
continuam a ser tocados como se nenhuma transformação de fundo tivesse ocorrido. Trata-se de
uma situação, convenhamos, desproposital que conspira contra a própria Constituição da Repú-
blica.
Conforme a norma convencional suscite o início da “era dos direitos” das pessoas com de-
ficiência em âmbito mundial, o Decreto de promulgação antes aludido traduz a “era dos direitos”
4 Estima-se que na América Latina existem mais de 100 milhões de pessoas com deficiência (só no Brasil, o Cen-
so Oficial 2010-IBGE projeta um contingente de aproximadamente ¼ da população de 194 milhões de habitantes),
sendo que mais de 80% desse grupo não desprezível das populações latino-americanas sofrem também os efeitos
perversos da exclusão econômica, resultado de violações sociais sistemáticas que se protraem no tempo sem solução
de continuidade.
5 Nos termos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada pelos Estados Partes em Nova
Iorque: “Desenho universal” significa a concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na
maior medida possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico. O “desenho univer-
sal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias. (Artigo
2, parte final)
6 http://giovanimiguez.com/files/noticia/20120811192037_midia_e_conformismo.pdf (acesso em 13/09/2012)

191
das pessoas com deficiência no Brasil, que ainda está por acontecer, em face das circunstâncias
antes aludidas.
Há de se reconhecer, no entanto, o caráter histórico, emancipatório e de Justiça desse em-
penho de Governo. Ninguém há de tirar-lhe esse mérito do qual todos aqueles que sofremos
discriminação em razão de deficiência reconhecemos. Todavia, a garantia de Acesso à Justiça por
parte das Pessoas com Deficiência vai muito além de um simples reconhecimento público sobre a
validade jurídica de determinada disciplina legal.
Conforme acentuado, há uma distância entre o que está posto normativamente e o mundo
real, o plano dos acontecimentos em que os direitos deveriam estar sendo plenamente gerenciados
também positivamente.
O fato incontestável é que a norma convencional, incorporada constitucionalmente em toda
sua extensão e sem ressalvas, inclusive no que se refere ao seu Protocolo Facultativo, é autoaplicá-
vel, naquilo que comportar, traduz cláusula pétrea, por se tratar de matéria que envolve a Doutri-
na dos Direitos Humanos e foi aprovada com quorum qualificado por ambas as Casas Legislativas
— Senado Federal e Câmara dos Deputados —, e é também insuscetível de revisão constitucional
(derivada). Deveria ser comumente aplicada pelos Juízes e Tribunais sem titubeios, reticências ou
desconhecimentos de causa, tudo isso que revela mais discriminação, qualificada e agravada pelos
seus atributos funcionais específicos.
Sobre o Protocolo Facultativo, também incorporado na Constituição Federal brasileira, en-
tende-se que por sua subscrição o país reconhece a competência do Comitê sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência para receber e considerar comunicações submetidas por pessoas ou
grupos de pessoas, ou em nome delas, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem vítimas de viola-
ção das disposições da Convenção por um Estado-parte (Artigo 1, do Protocolo Facultativo). Isto
significa, na prática, que as matérias concernentes à solução de controvérsias que versem à fiel
aplicação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência podem ser discutidas ou
rediscutidas para além da Ordem Jurídica interna. O Supremo Tribunal Federal, nesses casos, não
detém, portanto, a última palavra.
Pela norma convencional, a alteridade passou a fundamentar mais ostensivamente as ações
do poder público e também as relações do setor privado de uma sociedade aberta. Isso explica o
interesse social crescente pelos negócios de Estado e pela construção social como um todo, aclara
o despertar das dormitâncias da cidadania em países ainda submetidos às desigualdades sociais
mais agudas e sinalizam para um futuro de mais prosperidade para todos.
Todavia, ainda estamos nos construindo a partir das bases. Tudo ainda parece muito inci-
piente, distante de concretização sistemática. Os casos isolados bem sucedidos acabam sendo
tomados como excepcionalidades, frequentemente exitosos em face da sensibilidade pessoal de
alguns ou da pressão social e servem, por isso mesmo, como confirmação da regra geral omissiva
da qual se reporta neste texto7.

4. DISTÂNCIA ENTRE A FORMA E A CONCRETUDE


Temos lei, certamente, mas no Brasil ainda se vive como se a lei não existisse, ou como se
ela apenas funcionasse para poucos. O Estado, por meio do Poder Executivo, não parece suficien-
temente aparelhado para garantir a todos o recurso ao pleno exercício de seus direitos (Acesso à
Justiça).
Enquanto isso, o Poder Judiciário brasileiro, engalfinhado em questões prosaicas e corpora-
tivistas, frequentemente vaidosas, não raro vencimentais, acaba perdendo a chance de realmente
distribuir Justiça aos brasileiros em qualidade e quantidade que a justifiquem politicamente. E

7 O Conselho Nacional de Justiça, órgão integrante do Poder Judiciário do Brasil, encarregado de controlar a
atuação administrativa e financeira de todos os seus elementos integrativos (Juízes e Tribunais), conforme os termos
do art. 103-B, da Constituição Federal, considerou pela imposição de comando gerencial no sentido da produção de
estudos e providências quanto à acessibilidade de todos os recintos judiciários para cumprimento em até 120 dias (cf.:
Pedido de Providências n° 1236). Essa deliberação, sobre ter sido compreendida, na origem e na destinação, como
viés de “rota acessível”, tampouco foi inteiramente cumprida até os dias que correm. E mais não se tem debatido a
respeito. Chegou-se a um ponto de inflexão tal que só a presença de pessoal qualificado pela vivência, pela condição e
pelo comprometimento será capaz de oferecer resposta adequada, e mesmo assim veladamente resistida.
192
não há democracia efetiva — que mede com participação — sem que se compreenda a existência
de um Poder Judiciário que realmente funcione e que sobrepaire acima de todas as críticas sociais
e desconfianças públicas. Nada obstante, o que vemos é que os Tribunais brasileiros acabam sen-
do, ainda, estruturas como que feudais, pesadas, burocratizantes, territórios de um passado que
somente nos deixará quando forem reoxigenadas as suas composições sob o crivo da meritocracia
real e da participação popular. Ajudará muitíssimo se as populações vierem a compreender a ne-
cessidade de transformação institucional para os cenários judiciais em nossa Pátria, a começar
pela reciclagem pedagógica de seus quadros. A propósito, poucos são os Juízes que já ouviram falar
na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e, quando isso acontece, mediante
uma tomada de consciência mais ou menos relevante e séria, se não se envergonham do quanto
desconheciam em detrimento dos destinatários da Ordem Jurídica, a quem devem servir, e do fei-
xe de suas próprias responsabilidades constitucionais, às quais estão submetidos funcionalmente,
insistem em fazer de contas que essa disciplina simplesmente não existe, ou não se lhes parece tão
relevante em face do círculo de giz em que se encontram represados, escravizados pelo próprio Po-
der que representam. Nesse contexto, as carreiras judiciais encontram terreno fértil às defecções
de toda ordem, porque fica estabelecido um dilema funcional crudelíssimo e também antissocial:
manter a independência funcional e abrir mão da possibilidade de ascender nas carreiras, ou tor-
nar-se moralmente laxista para aspirar às suas promoções.
Com efeito, nomenclaturas, institutos, conceitos diversos estão seguramente abrogados pela
norma convencional, após sua internalização com status constitucional no país. Mas, para que
a tanto se reconheça é necessário um esforço hermenêutico de atualização sistemática que tem
a ver com o modo de como se haverá de ler o conjunto ressaltado das disposições legais preexis-
tentes, inclusive aquelas constantes do corpo da própria Constituição Federal, ainda não revisada
para isso, e o que está regulado hodiernamente, mas que poucos dominam, é lamentável. Essa
atitude vale também para boa medida dos quadros do Ministério Público, inclusive aqueles que
cuidam dos interesses coletivos ou difusos, cuja atuação, em tese, resulta em maior volume de
atenção e cuidado para as questões de fundamento constitucional. Chega-se ao ponto de passar ao
desaviso uma regra processual de proteção da cidadania, inscrita no Artigo 5º, da Lei 7853/1989,
que exige a participação efetiva do Ministério Público, enquanto fiscal da lei (custos legis), em
todas as ações relativas à questão dos direitos das pessoas com deficiência, qualquer que seja esse
direito, qualquer que seja a pessoa, desde que relacionados, um e outra, com a deficiência8.[9]
Também o Acesso à Justiça está, de um modo especial, tratado na Convenção de Nova Ior-
que, mas, se contemplamos as reais possibilidades desse enfrentamento, nos damos conta que há
um gap tremendo entre o que está positivado e o que de fato acontece em termos de possibilidades
concretas de execução dos postulados da Ordem Jurídica estabelecida, do atendimento aos direi-
tos subjetivos e de sua efetividade.
É desse modo que a igualdade de condições preconizada pela Convenção, além da capaci-
tação de Juízes e servidores, nos termos do Artigo 13, ítens 1 e 2, da norma convencional, tem
sido solenemente negligenciada pelas repartições de Justiça no Brasil, inclusive no que se refere à
linguagem empregada em seus sistemas9.
Sobre isso, o processo judicial eletrônico, por exemplo, que exige interoperabilidade comuni-
cacional, mesmo em razão de disposições processuais aplicáveis, simplesmente não pode ser lido
pelas pessoas cegas, dado que esse processo se materializa por meio de dados imagéticos os quais,
sem o auxílio da ferramenta da audiodescrição ou da ledoria (Mesas de Atermação e consulta)
sem custo adicional para a parte, simplesmente não consegue conhecer e avaliar.
Essa característica estranha do processo judicial eletrônico no Brasil — de não dispor de

8 Art. 5º, Lei nº 7853/89 - O Ministério Público intervirá obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou indivi-
duais, em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas.
9 Artigo 13 – Acesso à Justiça: 1. Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das pessoas com deficiência à
Justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais
adequadas à idade, a fim de facilitar o efetivo papel das Pessoas com Deficiência como participantes diretos ou in-
diretos, inclusive como testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigações e outras etapas
preliminares. 2. A fim de assegurar às Pessoas com Deficiência o efetivo acesso à Justiça, os Estados-partes promo-
verão a capacitação apropriada daqueles que trabalham na área de Administração da Justiça, inclusive a polícia e os
funcionários do sistema penitenciário.
193
tecnologia assistiva satisfatória, talvez nenhuma, para garantir o acesso de todos aos seus recursos
—, inaugurado às pressas sobejamente por motivações em grande parte midiáticas, importa em
que uma pessoa cega possa vir a ser condenada sem saber do que se trate a imputação que lhe é
feita no processo de tipo eletrônico sem acessibilidade comunicacional. E sem a mínima acessibi-
lidade comunicacional, ademais, as pessoas surdas falantes da Língua Brasileira de Sinais (Libras)
sequer têm acesso, por intermédio dessa que é também uma língua oficial no país, aos principais
documentos legais como a Constituição Federal e a própria Convenção sobre os Direitos das Pes-
soas com Deficiência, em mídia eletrônica (DVD) que possa ser ordinariamente distribuída, país
afora, juntamente com outras mídias convencionais já em uso sistemático, comercialmente ou
não. O mesmo se diga quanto às pessoas surdas usuárias do vernáculo, igualmente desassistidas,
em geral, quanto às soluções de acessibilidade de que precisam. A comunicação é fundamental
para que o Acesso à Justiça se planifique entre as Pessoas com Deficiência de tipo sensorial (RE-
SENDE in RESENDE; VITAL, 2008, p. 68).
Paradoxalmente, falta-nos, ainda, uma lei que torne a tudo isso obrigatório, sob risco de
penalidade severa e eficaz, e que conjuntura ou ideologia alguma de momento possa sentir-se na
mais remota legitimidade para objetar tudo isso, acesso a todos ao processo e as rotinas da Justiça
em seu país ou fora dele. Vale mais à Nação o direito natural de conhecer-se a si mesma e propi-
ciar a comunicação efetiva entre os seus filhos. Vale mais a humanidade realizar-se enquanto tal.
Por outro lado, para a imensa maioria dos Juízes e dos servidores de Justiça no Brasil — di-
go-o, sem receio, assumindo, embora, a leviandade de não dispor de uma pesquisa social aplicada
quanto ao enredo —, mas com base em minhas observações participativas de trinta anos de ju-
dicatura inteiramente engajada e crítica do corporativismo do setor, acessibilidade não passa de
“rota acessível”, quando muito.
Em termos gerais e mesmo que venha a ocorrer uma ou outra recomendação de gestão po-
sitiva a respeito do assunto, inclusive da parte do Conselho Nacional de Justiça, órgão que exerce
o controle externo do Poder Judiciário, mas que não se ocupa das atividades de mesmo viés da
Suprema Corte e de seus Ministros, não se tem noção do que acessibilidade em meio judicial quer
significar em toda sua extensão!
Ora, o simples implemento da mudança dos sistemas processuais em direção a uma mídia
tecnologicamente sofisticada em sociedades como as da América Latina ignora solenemente o
estado de desigualdades sociais em que ainda vivemos. E agrava o estado de embarreiramento das
pessoas mais economicamente desassistidas quanto ao Acesso à Justiça nessas sociedades. Trata-
se de um dilema paroxístico que pede reflexão, porque, enquanto os sistemas processuais estão
migrando, as pessoas menos felicitadas estão padecendo mais exclusão. As Pessoas com Deficiên-
cia são parte desse processo e formam um contingente dos mais vulneráveis.
Cheguei a fazer consulta sobre isso ao Conselho Nacional de Justiça, remetendo expediente
escrito a um de seus Conselheiros, lancei reptos em Listas de Discussão de Magistrados e também
nas Redes Sociais, mas obtive o silêncio como resposta. É como se o Estado brasileiro estivesse
mais interessado em construir molduras, montar cenários, mas sem conteúdos realmente con-
sistentes e, sobretudo, de acordo com a Constituição Federal que, em nosso caso, incorporou a
Convenção de Nova Iorque, sem ressalvas, inclusive quanto ao seu Protocolo Facultativo.
Cumpre destacar, outrossim, que todos os Tribunais Superiores do Brasil investiram larga-
mente para migrar do formato processual do papel (mídia tradicional) ao meio eletrônico (mídia
moderna), sem cuidar da acessibilidade tão importante quanto inadiável, porque diferentemente
importa em violar o direito do cidadão, qualquer que seja ele, de se socorrer da Administração da
Justiça para obter o cumprimento de seus direitos por parte de terceiros e até do próprio Estado.
Adicionalmente, os sistemas processuais eletronicamente disponibilizados restringem o po-
tencial de armazenamento de dados, o que traduz situação que controverte ao princípio consti-
tucional do Acesso à Justiça para todo e qualquer cidadão. Toda limitação ao direito de produzir
defesa útil aos demandantes em geral é injustificável do ponto de vista da Doutrina dos Direitos
Humanos. E quanto ao exercício dos direitos das PcD, quando questionados juridicamente, even-
tual interpretação restritiva constitui vício epistemológico insanável, cabendo, por isso, ser apro-
veitados ao máximo possível até o ponto de equalização técnica, que é a igualdade real.
Tampouco o Poder Judiciário tem sido sensível à constituição de quadros funcionais com-
postos, em escala significativa, de PcD. Há quem ainda considere, absurdamente, que pessoas

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cegas, por exemplo, não podem ser Juízes. Juízes que, nada obstante, superam as barreiras de ati-
tude que têm de enfrentar em sua vida pessoal e profissional, acabam sendo excluídos das promo-
ções na carreira e não compartilham dos ciclos discursivos e nem compõem a pauta dialógica das
Cortes, limitando-se a um exercício como que burocrático de suas funções. Não há espaços para
a expansão de suas atividades. Um certo ostracismo ao mesmo tempo cínico e cruel se estabelece
e mesmo entre os mais jovens, sucede que eles já sabem dos estigmas daqueles, motivo pelo qual
os evitam também.
É um cenário absurdamente kafkiano para quem, sendo PcD, tenha superado os desafios do
embarreiramento atitudinal, logrado galgar posições institucionais — um cargo de Juiz, por exem-
plo —, sobretudo nos modelos tecnoburocráticos, cujo acesso se faz por meio de seleção pública,
mas se flagram a si mesmos impotentes de evoluir por outras razões jamais confessadas, mas que
se exprimem como preconceito e discriminação. O curioso é que até as normas legais e consti-
tucionais acabam sendo subvertidas ou violadas para evitar o avanço propositivo dessas pessoas,
porque: a uma, sabem o valor da própria dignidade; a duas, porque, em face desse reconhecimen-
to, se esforcam para manter a integridade de sua independência e a qualidade das decisões que
proferem em seu exercício.

5. ACESSIBILIDADE E EMPODERAMENTO
Essa abordagem, rigorosamente convencional, pressupõe, além da igualdade, da acessibili-
dade e da inclusão, um outro atributo indissociável, a saber: o empoderamento!
Empoderar é garantir ao vulnerável, a plenitude de suas possibilidades humanas, mediante
a disponibilização e o emprego, no caso das pessoas com deficiência, de recursos assistivos, tecno-
lógicos ou criativamente dimensionados para as diversas espécies de limitação ou dificuldade que
tenham de ser superadas, seja no trabalho, na escola, no lazer, em casa, em todo lugar e em todas
as atividades nas quais se pretenda inserir, para que essa pessoa possa exercitar, já empoderada
para o autogoverno, de igual para igual, os seus direitos que estão associados ao seu patrimônio ju-
rídico e à sua dignidade, não à sua condição física, intelectual, psicossocial, sensorial ou múltipla.
As deficiências, desse modo, refletem um estágio de desenvolvimento social do meio or-
ganizado em que se vive, não um extrato de dignificação da condição humana da pessoa com
deficiência, que é um axioma jurídico, um valor como que absoluto, insuscetível a relativizações
especiosas ou não consubstanciais à própria deficiência, vista a partir do foco da PcD (“Nada de
nós, sem nós!”).
Com efeito, a única resposta possível de ser oferecida quanto ao trato dos Direitos Humanos
é que eles são inegociáveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, incondicionais e jamais excludentes.
Porque todo ele resulta da insubmissão aos propósitos de manutenção de certos extratos de exclu-
são ativados por séculos a fio, durante os quais muitos foram privados de seus direitos, do acesso
à riqueza e ao poder que esses mesmos excluídos ajudaram a construir a toda carga e a pleno
sacrifício.
Assim sendo, a interpretação que serve à ontologia dos Direitos Humanos não pode ser res-
tritiva, mas extensiva. O Acesso à Justiça é, pois, substanciamente a efetivação dos direitos daque-
les que postulam. Os direitos das pessoas com deficiência, portanto, são interpretáveis amplamen-
te, por forma a garantir-lhes empoderamento sem o que tampouco se estabelece a “paridade de
armas” indispensável ao Acesso à Justiça, como categoria fundamental tanto na Ordem Jurídica
interna quanto internacional. Não por acaso, um Protocolo Facultativo foi anexado à Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de modo a que esses direitos relacionados possam
ser discutidos, ainda que o Estado Parte se manifeste, concretamente, como desaparelhado a fa-
zê-lo bem.
Além disso, as condições para esse empoderamento podem ser naturais ou constituídas.
Muitos superam por si mesmos as próprias dificuldades e são muito bons! Esses, porém, não
traduzem referências paradigmáticas para o estabelecimento de uma política pública afirmativa
da Inclusão Social, pois o que serve de substrato a uma tal regulação é o promédio da condição
humana a ser protegido contra toda vulnerabilidade que as pessoas superdotadas de talento não
chegaram a experimentar radicalmente, apesar de suas diferenças e do caldo de cultura que o
preconceito findou por sufocá-los de algum modo. Já ouvi heresias do tipo a rechaçar a política
195
afirmativa e compensatória de cotas, sobretudo nas Universidades, em razão da presença proativa,
embora isolada, de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, ante o fato de Sua Excelência ser
uma pessoa negra. Convém destacar que no Supremo Tribunal Federal do Brasil jamais atuou
um julgador com algum tipo de deficiência. Já ouvi outras tantas, tão ou mais vituperiosas como
aquela de que Juízes em geral não podem ser cegos. Quanta estupidez que associa, numa química
explosiva, ignorância cognitiva e prepotência situacional de dominação!
Dentre as barreiras que constantemente se nos afligem, contam-se inúmeras abominações
éticas que insistem em não largar a contemporaneidade. É preciso combatê-las e, fazê-lo, é antes
de tudo conquistar espaços e trabalhar pela transformação social, a partir do exemplo.
De fato, a Suprema Corte brasileira, que já superou a barreira étnica e a de gênero, pelo vis-
to, reclama também a superação da barreira atitudinal que impediu, ao longo de sua história, de
ter uma pessoa com deficiência em seus quadros para contribuir no aprimoramento da construção
da jurisprudência que vai favorecer, por medida de Justiça e em razão do perfeito atendimento da
Carta Política e da legislação de regência ao universo de pessoas com deficiência no Brasil, sem
necessidade de que tenhamos de nos socorrer, a todo instante, do Protocolo Facultativo que nos
garante o direito de demandar ao Comitê da ONU encarregado da composição desses conflitos
em sede internacional. Esta possibilidade, no entanto, deveria ser melhor aparelhada pelas Enti-
dades que congregam os propósitos de emancipação e direitos das PcD no Brasil e no mundo. O
monitoramento internacional dos litígios relacionados deve ser uma prática regular na dimensão
das lutas inclusivas. A pressão que vem de fora fomenta o aprimoramento dos sistemas internos,
quando um Estado é parte de um ajuste internacional, caso da Convenção de Nova Iorque e de
nossos países latino-americanos.
Pode-se, pois, afirmar que o Acesso à Justiça é talvez a cláusula mais recorrente de empode-
ramento com que as pessoas com deficiência passam a lutar, com eficiência, pela observância fiel
e exaustiva de seus direitos, a partir da construção de meios com os quais efetivamente pelejam e
se autoafirmam na medida justa, ainda que o mundo não lhes proporcione as adequações razoá-
veis a que também têm direito fundamental. Para isso, será sempre necessário um corpo judicial
qualificado tecnicamente o bastante e também preparado e sensível do ponto de vista atitudinal
para garantir, por meio da aplicação sobranceira e racional do Direito, a superação das barreiras
idiopaticamente montadas para impedirem o florescimento da paz, da prosperidade e da felicidade
para todos.
Repete-se, ao fim, o que diz o Professor Ferdinand Cavalcante Pereira, da Universidade Fe-
deral do Piauí, Brasil:
O empoderamento devolve poder e dignidade a quem desejar o estatuto de cidadania, e prin-
cipalmente a liberdade de decidir e controlar seu próprio destino com responsabilidade e respeito
ao outro. O débito social das instituições políticas e estatais diminui à medida que seus agentes
desenvolvam ações e condutas de efetiva participação e mudança sociais10

6. ACESSIBILIDADE GERAL PREVISTA NA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE


O conceito jurídico de acessibilidade, além do mais, está analiticamente estabelecido na
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de acordo com o seu Artigo 9, o qual
dispõe de dois ítens com diversas alíneas.
A norma convencional estabelece que, para o fim de possibilitar às pessoas com deficiência
viver de forma independente e participar plenamente de todos os aspectos da vida — todos, sem
exceção! —, deverão ser adotadas medidas ajustadas ao asseguramento do acesso dessas pessoas,
em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação
e instalações abertas ao público ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural. Pressu-
pondo a identificação de barreiras e obstáculos à acessibilidade, também e principalmente as de
atitude que derivam comumente de preconceitos arraigados no socius, não raramente reveladores
de viés autoritário e colonizador, tais medidas se devem prestar ao redimensionamento funcional
de prédios, estradas, meios de transporte e demais instalações internas e externas em geral com
vistas ao seu uso conforme o parâmetro do desenho universal. Do mesmo modo, as informações,

10 http://www.fapepi.pi.gov.br/novafapepi/sapiencia8/artigos1.php (acesso em 12/09/2012).


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as comunicações e outros serviços, inclusive os veiculados por meio eletrônico, além dos emer-
genciais, precisam guardar o desenho universal, que confere acesso a todos, não somente a uma
suposta maioria.
Além disso, os Estados-partes estão obrigados a estabelecer padrões mínimos de normatiza-
ção técnica para a garantia da acessibilidade, segundo o padrão do desenho universal, proporcio-
nar formação e capacitação aos atores envolvidos, dotar os espaços públicos ou de uso público de
plena sinalização em formatos de fácil assimilação e leitura, mediação, guias, ledores, intérpretes
de língua de sinais, promover outras formas de assistência e apoio a pessoas com deficiência tendo
em vista as informações de que necessitem, promover o acesso dessas pessoas a novas tecnologias
da informação e comunicação, inclusive à Internet, conceber, desenvolver e disseminar a produ-
ção de novos sistemas e tecnologias de informação e comunicação, objetivando acessibilidade com
custo mínimo.
Tudo isso revela alteridade, palavra que concentra uma síntese muitíssimo apertada, em-
bora inteiramente substanciosa quanto às necessidades de descrição do objeto aqui comentado.
Mas, afinal, o que pode ser definido como alteridade que serve a esse propósito sintetizador? É
ser capaz de apreender o outro na plenitude de sua própria dignidade, e não na conformidade de
nossa própria ética ou na supremacia dos próprios interesses. Olhar para o outro, conforme a sua
perspectiva para, sem abandonar a própria identidade, procurar compreender com mais profundi-
dade e menos superficialidade os objetos que se encontram à nossa volta, sobretudo aqueles que
se relacionam com os direitos alheios. É respeitar as diferenças e reconhecer, sobranceiro, que a
diversidade é o que há de mais convergente na existência humana, pois a dignidade da pessoa
notabiliza a todos e não somente a alguns. O sentimento de alteridade exclui a possibilidade de um
substituir-se a outro. E quanto menos alteridade existir no contexto das relações intersubjetivas e
sociais, mais conflitos acontecem. Se a falta de alteridade acontece no âmbito interno aos umbrais
da Justiça, fica descortinado o palco para grandes sofrimentos e atavismo social. Consolida-se,
pois, institucionalmente, a desigualdade e se transforma em letra morta tudo o quanto se cons-
truiu até agora em termos de plataforma normativa de referência universal para as relações sociais
no trato dessa questão fundamental da luta pelos direitos das PcD.
Se mais fosse possível referir ao instituto da acessibilidade das pessoas com deficiência junto
aos setores públicos ou aos ambientes e serviços de uso público, muito não se poderia acrescentar,
salvo pelo registro de que, muito embora não se trate de um termo equívoco ou indeterminado,
presta-se, por outro lado, a robustecer a ideia de expansão lógica de seu conteúdo e de suas pos-
sibilidades.
E é exatamente o caráter construtivista que melhor afirma, de modo progressivo e potencial,
a sua natureza. Pois, afinal, também “o homem é um ser inacabado”, conforme genial intuição de
Cabral de Moncada, filósofo português (MONCADA, 1966, p. 342).

7. ACESSO À JUSTIÇA COMO PROBLEMA E A INCLUSÃO SOCIAL


Conforme restou implícito linhas atrás, no campo da Inclusão Social ainda prevalece a igno-
rância e a falta de alteridade, mesmo da parte de atores oficiais que deveriam, outrossim, sofrer
algum tipo de atualização modernizadora no que respeita aos fundamentos de sua própria fun-
cionalidade. Juízes, Representantes do Ministério Público, Advogados, Serventuários de Justiça,
Autoridades Policiais, Fiscais e Penitenciárias, Funcionários Executivos e até Professores de Di-
reito integram essa pletora de qualificados “analfabetos funcionais”. Entre eles, ressalvando-se as
honrosas exceções, predomina a insensibilidade, o descuidado e a prepotência socavada e sibilina
que prevalece à toda razoabilidade. O despreparo é gritante e o fomento ao ensino inclusivo e à
interdisciplinaridade, além de raro, desencorajado.
Esses elementos, na verdade, são os fantasmas mais recorrentes e explícitos com que ainda
temos de lidar incessantemente. Enfrentá-los a todo instante na tarefa de eliminação das barreiras
que temos de superar o tempo inteiro também no âmbito da atividade jurisdicional do Estado é o
que nos cabe para a construção efetiva e permanente de uma sociedade realmente justa e iguali-
tária, por isso mesmo inclusiva, de bem-estar social a todos os cidadãos.
Sobre isto, muitos ainda imaginam que incluir é simplesmente integrar, mantidas as bases
sociais e antropológicas da exclusão vigente no passado de degredo e sofrimento, de “apartheid”.
197
Sobre isto, veja-se o gráfico a seguir sobre o quê parece a Inclusão Social11:

Conforme o que ressaltei em Palestra que tive a oportunidade de proferir no último mês de
setembro, em Brasília, em matéria de inclusão a ordem é descolonizar. Para tanto e a fim de que se
garanta o Acesso à Justiça das PcD, em particular, não se divisa uma forma mais eficaz de desco-
lonização, senão ocupando espaços, assim horizontal quanto verticalmente, nas esferas do Poder
Judiciário, sobretudo, por efeitos de exemplaridade e multiplicação de condutas.
Para se promover o “desenho universal” idealizado pela causa inclusiva, parece indispen-
sável eliminar os “senões”, as questiúnculas de somenos importância, os receios de avançar de-
cididamente, mediante uma experimentação crescente e afirmativa de possibilidades reais que
realmente preencham o que se considera uma agenda positiva, em face de uma estrutura como

11 Fonte: What inclusion looks like?, Sarantsetseg Otgonlkhagva (Facebook)


198
que esvaziada de partícipes positivamente comprometidos com os fundamentos da própria Ordem
Constituída.
Insiste-se: por que, afinal, o Brasil jamais conheceu um Ministro (Juiz) PcD na sua Supre-
ma Corte? Por acaso, um país continental como o nosso não dispõe de quadros ajustados a esse
exercício honorabilíssimo? Somos, enfim, uma espécie de categoria social inferior? Evidente que
não, mas isso tudo parece servir, à saciedade, para esclarecer o estado em que nos encontramos na
atualidade de desenvolvimento social e político. De um lado, são cerimonialmente reconhecidos
direitos às PcD; de outro, desgraçadamente, transparece histórico que essas pessoas vem sendo
ignoradas.
É preciso superar a fase diagnóstica acerca dos problemas da exclusão. É preciso fundamen-
talmente oferecer a resposta que os Direitos Humanos são de fato e de Direito inegociáveis, nem
restringíveis e nem se prestam a eufemismos de ocasião, no sentido uma sua relativização que se
mostra simpática no trato, mas discriminatória na ação.
A questão do Acesso à Justiça integra esse fenômeno histórico e é imprescindível que esse
quadro se desconstrua o quanto antes, no Brasil e em toda parte em que essas restrições idio-
páticas estejam acontecendo em detrimento dos direitos das PcD, bem assim como de todos os
cidadãos em geral. A propósito, o sofrimento de um só cidadão repercute de um modo deletério
e alargado nos quadros sociais que refletem instabilidade. A sociedade é uma estrutura de vasos
comunicantes e a violação que se perpetra aqui, degenera acolá ainda mais e, assim, sucessiva-
mente. A metáfora cabível é que o preconceito é um câncer metastásico!
Agora, com apoio em registros históricos clássicos pode-se afirmar que desde quando a força
cedeu lugar à razão para que por meio de normas as relações humanas pudessem ser reguladas
efetivamente, e a partir de quando, outrossim, o Estado também chamou a si o monopólio da
Jurisdição, o Acesso à Justiça tornou-se uma variável altamente problemática, além de contradi-
tória. A eliminação dessas barreiras tampouco se presta a soluções pontuais, isoladas, haja vista
que os problemas decorrentes muitas vezes são interrelacionados socialmente (CAPPELLETTI;
BRYANT, 1988, p. 29).
Mudanças podem suscitar questões periféricas de tipo corporativo ou estratificado e é preci-
so, antes de tudo, ultrapassar paradigmas nem sempre fincados em diretivas justificáveis do ponto
de vista dos Direitos Humanos e da comunhão universal, da intergrupalidade; porque, do contrá-
rio, poderemos regressar aos conceitos pré-inclusivos, os quais, embora representando um avanço
histórico em relação à exclusão clássica, desservem, no entanto, à causa da Inclusão Social, a
exemplo do esforço de enquadrar, também preconceituosamente, as deficiências em um plano
puramente clínico ou definir a inclusão como sinônimo de mera integração social.
Bem por isso, mais se justifica que a visão dos vulneráveis possa compor as formulações
dos veredictos e, antes, das políticas públicas associadas ao fundamento substancial do Acesso à
Justiça, entendido como o direito de demandar e de obter efetivos resultados concretizadores dos
direitos em geral. Importa em exercício pleno da cidadania. No mesmo sentido, afirmam Cappe-
lletti e Garth:

O “acesso” não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconheci-


do; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística.
Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos
da moderna ciência jurídica (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 13).

É a partir desse ponto lógico que não se desconhece mais a importância dos saberes inter-
disciplinares e participativos na compreensão e na composição dos direitos das PcD, à luz do que
se erigiu em termos normativos universais com o advento da Convenção de Nova Iorque. Pode-se
chamar a isso, com um mínimo de esforço, de “aliança pró-inclusão”, conforme o superior pensa-
mento de Romeu Sassaki, a quem costumo denominar, pelo conjunto de sua obra invulgar e tam-
bém pela sua humanidade explícita e luminosa, de “Príncipe da Alteridade brasileira” (SASSAKI,
2010, p. 167-168).
De fato, garantir direitos a quem jamais os obteve não é tarefa fácil de executar na medida
em que - antes de mais nada - os preconceitos, ante a sua raiz cultural, não se eliminam por de-

199
creto, embora seja de todo importante que penalidades significativas venham a ser exemplarmente
estabelecidas e impostas por forca de leis que vinguem realmente. Integrar as PcD aos processos
de construção da Justiça, novamente, parece fundamental.
No propósito da matéria inclusiva, não há lugar para ideologismos de ocasião. A causa in-
clusiva é, sobretudo, um caminho sem volta, uma via de mão única, historicamente pavimentado,
passo-a-passo, crescentemente, pois aponta para os fundamentos mais elementares da convivên-
cia humana, para os pilares da própria humanidade, afinal revelados e reconstruídos, marcada-
mente a partir do pós-guerra. Nada obstante, esse fato histórico não esconde as contradições de
toda ordem em matéria de Direitos Humanos. A luta entre o bem e o mal persistirá durante o hiato
de existência da humanidade sobre a face da Terra, bem o sabemos. Mas, é nessa luta em que po-
demos encontrar o sentido mais adequado da perfeição humana. Valemos pelos nossos ideais, não
exatamente pela nossa corporeidade, tão bela quanto efêmera. Cumpre-nos o dever de pelejar por
um mundo mais justo para as atuais e para as futuras gerações. É a transcendência que nos afirma
como agentes de transformação social, agora e enquanto vida nos restar para ser vivida. Porque
mais definitivo que a morte física é a letargia de uma vida sem sabor, sem inspiração, sem propó-
sitos nobilitantes que haverão de marcar a nossa posteridade e o respeito das futuras gerações.
O que se divisa e objetiva no contexto histórico atual é a presença cardinalíssima do homem
diante de si mesmo e do seu semelhante. Sem discussão possível que induza algum contraponto
razoável a este passo da história da civilização.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sucede que, diante do que foi exposto, não há outro registro mais significativo a proceder do
que situar os conceitos de acessibilidade, empoderamento e cidadania, a cujo serviço se posta a
Administração da Justiça nas sociedades democráticas e sociais de Direito, como que sinonímicos,
restando semanticamente pleonástica a associação dessas palavras numa só oração, quando se
tratem de direitos das PcD, à luz da Convenção de Nova Iorque, diploma legal que marca a “era
dos direitos” para esse contingente bastante significativo da humanidade.
De tal modo que acessibilidade sem cidadania (que envolve quebra de empoderamento) é
construção inútil. Cidadania sem acessibilidade e empoderamento, disfuncional.
Assim, nos sistemas judiciários dos tipos empírico-primitivos e tecnoburocráticos que pre-
dominam na América Latina, as Supremas Cortes exercem papeis formidáveis na construção, fo-
mento e eventual controle das políticas públicas, dos direitos individuais e coletivos e da cidadania.
Cumpre destacar, sobre isto, que no caso brasileiro a Constituição Federal tem densificado a
Jurisdição do STF, mediante o estabelecimento de mecanismos jurídicos que acentuam suas com-
petências e agregam outras tantas — Ações Diretas de Inconstitucionalidade, Repercussão Geral,
Recursos Repetitivos, Súmulas Vinculantes, entre outras — concentrando-as de tal modo que o
exercício difuso da própria Jurisdição pelos demais Juízes e Tribunais acaba se transformando em
um mero exercício de chancela, em simples ritos de passagem, inteiramente burocráticos.
Nesses casos, os Juízes sequer se ocupam de produzir as próprias decisões, substituídas por
colagens. Os assessores o fazem e lhes resta a atividade de subscrever os documentos respectivos. A
lógica do devido processo legal, também uma categoria fundamental de Direito, nessas condições,
perde consistência epistemológica e também normativa. O Poder Judiciário, enquanto estrutura
de verticalidades, como que se desconstrói nesses casos e as expectativas jurídicas da população,
sob a justificativa de um suposto “neoconstitucionalismo”, quanto aos fundamentos nem sempre
sistemáticos das decisões-vetor, espécie agravada dos precedentes dos sistemas do Common Law,
de tradição saxônica, sofrem radical restrição e o espectro de previsibilidades do sistema judicial
regional, de tradição romano-germânica, igualmente.
Pode-se imaginar o cenário de instabilidades em que as pessoas em geral acabam sendo pro-
jetadas dentro em um ambiente “primitivo”, conforme locução do exponencial do jurista argenti-
no Eugênio Raúl Zafarani, constante de sua obra aqui citada (referência 3). Um tal “primitivismo”
se intensifica em relação às políticas de constituição das composições das Cortes Supremas dessas
sociedades, quando recaiam sobre atores enlaçados pelo sistema político e não por exigências
sociais clássicas de legitimidade e representação. De fato, as composições do Supremo Tribunal
Federal do Brasil são constitucional e livremente enredadas pelo Chefe(a) do Poder Executivo,
200
mediante singular sabatina do Senado Federal (atividade que se tem revelado pró-forma), entre
brasileiros natos com idade que medeia os 35 e 65 anos, além de dispor de notável capacitação
jurídica e reputação ilibada. É o que basta a um brasileiro se tornar Ministro do STF, a Corte Su-
prema do seu país.
Ora, é histórico que dificilmente o STF controverta aos interesses do Poder Executivo na-
quilo que mais se lhe afeta a ideologia de sustentação política. O instituto da reeleição para a
Presidência da República agravou esse quadro no caso brasileiro, porque composições quase que
inteiras podem ser constituídas por uma só autoridade presidencial. Por melhor que seja a autori-
dade, isso não parece republicano. É um fenômeno, no entanto, que não se declara, por revestir-
se de perturbadora insubmissão às propriedades institucionais da Suprema Corte de um Estado
soberano e à interdependência funcional dos Poderes Políticos da República.
Torna-se claro, desse modo, que uma avaliação positiva acerca da presença de uma ou mais
de uma PcD, devidamente comprometida(s) com a Inclusão Social, nos quadros das Supremas
Cortes dos Estados latino-americanos é de todo pertinente e de certo modo fundamental aos pro-
pósitos de efetivação de seus direitos, em particular, mas não apenas os deles, senão também e
principalmente o de todos, indistintamente.
Ao passo da sugestão de edição de uma espécie de Moção de Apoio a essa causa, a ser di-
rigida a quem de Direito, também parece fundamental, conforme já ressaltado anteriormente,
fomentar e preparar, no âmbito do terceiro setor das sociedades latino-americanas do qual a RIA-
DIS é pioneira, o “monitoramento internacional” das questões pertinentes à defesa dos direitos e
à emancipação política, econômica e social das PcD, sobretudo em face do Protocolo Facultativo
à Convenção de Nova Iorque, plataforma normativa de referência, regulação e fomento das ativi-
dades que nos congregam na causa comum e universal de incluir a todos nos bens da vida e na
construção de um tempo de mais felicidade e menos sofrimento para todos. Enfim, pelo bem da
humanidade e do desenvolvimento integral de nossas sociedades.
Em matéria de Inclusão Social, pois, a ordem é descolonizar e, de vez, instalar a cidadania
para todos!
No que diz respeito à processualística, cumpre destacar que a ponderação e a razoabilidade
assumem funcionalidades próprias com o objetivo de incluir para acessar à Justiça, em particu-
lar, as Pessoas com Deficiência, à luz da Convenção de Nova Iorque que, no Brasil, tem força de
Emenda Constitucional.

REFERÊNCIAS
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201
O DIREITO À MEMÓRIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: um olhar a
partir da obra Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt

Aline da Silva Machado Joaquim


Raquel Fabiana Lopes Sparemberger1

1. INTRODUÇÃO
Este texto parte da obra Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal,
escrita por Hannah Arendt a partir da cobertura jornalística do julgamento de Otto Adolf Ei-
chmann. Ao relatar o julgamento e os fatos que levaram o acusado ao tribunal, a autora estabelece
um panorama no qual o conceito abstrato de justiça se consolida na identidade de um povo e de
um Estado por meio do direito à memória. Nesse sentido, num primeiro momento o texto analisa
os fundamentos jurídicos do Direito à memória presentes na Constituição Federal de 1988. De-
monstra também que a Constituição de 1988, endossa o direito à memória ao estabelecer o acesso
à informação e o princípio democrático como direitos fundamentais. Perquirindo-se acerca da
justiça de transição e da abertura do princípio da informação ao princípio da memória, sendo este
notadamente mais amplo que aquele, pretender-se-á afirmar que o direito à memória é acolhido
pela legislação pátria.
Num segundo momento, apresenta o direito à memória como um direito Humano funda-
mental e traz a abordagem arendtiana do direito à memória, por fim, apresenta a discussão da
aplicabilidade do direito à memória no Brasil e às consequências advindas desta aplicabilidade. De
fato, cuida-se de um estudo sobre a abertura constitucional brasileira ao direito à memória e a sua
importância para o reconhecimento da identidade do Estado que formamos.

1 Pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Doutora em Direito pela Universidade
Federal do Paraná - UFPR. Mestre em Direito pela UFPR. Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1995). Professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande -FURG,
professora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande -FURG. Professora convidada
da UNESC - Universidade do Extremo Sul de Santa Catarina- UNESC. Participante dos Advogados Sem Fronteiras.
Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, Direito Ambiental
e Direitos Humanos, América latina e questões decoloniais. Professora pesquisadora do CNPq e FAPERGS. Professora
participante do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica -GPAJU da UFSC e Pesquisadora responsável pelo Gru-
po de Pesquisa Direito, Ambiente e Interculturalidade e do Grupo de Estudos da FURG sobre o Constitucionalismo
Latino-Americano.Advogada.
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2. MÉMORIA E RESPONSABILIDADE: A CONTRIBUIÇÃO DE HANNA ARENDT
Este estudo tem sua origem na apresentação da obra de Hannah Arendt Eichmann em Je-
rusalém, Um relato sobre a banalidade do mal. E todas as suas considerações são feitas tendo por
base o relato do julgamento daquele ex-oficial nazista. Trata-se de uma abordagem sucinta dividi-
da em duas partes. Na primeira, o estudo se restringe à apresentação do julgamento. Na segunda
parte, procura-se relacionar o pensamento de Hannah Arendt com os crimes cometidos contra a
humanidade.
A obra de Hannah Arendt Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal,
foi escrita com base no julgamento, perante a corte distrital de Jerusalém, de Adolf Eichmann. O
réu foi acusado e condenado por crimes cometidos contra judeus e outras minorias. A condenação
compreendeu crimes levados a efeito durante o regime nazista em diversos países do continente
europeu.
A despeito do fato de a autora professar a religião judaica, a obra referência primordial deste
estudo foi escrita com autonomia e polidez, sem qualquer sentimentalismo ou retórica vingativa
(CAMASMIE, 2007). De outra esfera, o que torna esta obra singular é a análise fria de um período
extenso em que, em nome do Estado de direito, foram cometidas atrocidades sem tamanho. Além
disto, destaca-se não somente a importância histórica de se debruçar diante do passado com ve-
racidade, mas, sobretudo, a contribuição jurídica que este olhar pode acrescentar a uma nação. A
narrativa parte do pressuposto de que, diante do tribunal, está um sujeito. Mas tal indivíduo é, de
fato, tão somente o centro de todo aparato jurídico constituído no polêmico julgamento da corte
israelense:

A justiça exige que o acusado seja processado, defendido e julgado, e que fiquem
em suspenso todas as questões aparentemente mais importantes – “Como pôde
acontecer uma coisa dessas?” e “Por que aconteceu?”, “Por que os judeus?” e “
Por que os alemães?”, “Qual o papel das outras nações?” e “Até que ponto vai a res-
ponsabilidade dos aliados?”, “Como puderam os judeus, por meio de seus líderes,
colaborar com sua própria destruição?” e “Por que marcharam até a morte como
carneiros para o matadouro?”. A justiça insiste na importância de Adolf Eichmann,
filho de Karl Adolf Eichmann, aquele homem dentro da cabine de vidro construída
para a sua proteção: altura mediana, magro, meia-idade, quase calvo, dentes tortos
e olhos míopes, que ao longo de todo julgamento fica esticando o pescoço para olhar
o banco das testemunhas (sem olhar nem uma vez para a platéia), que tenta deses-
peradamente, e que quase sempre consegue, manter o autocontrole, apesar de seu
tique nervoso que lhe retorce a boca provavelmente desde muito antes do começo
deste julgamento. Em juízo estão os seus feitos, não o sofrimento dos judeus, nem
o povo alemão, nem a humanidade, nem mesmo o anti-semitismo e o racismo.
(ARENDT, 2011, p.15).

A obra escrita por Arendt revela que, não obstante a autoridade exercida pelo governo de
Hitler no continente europeu, a alternativa de extermínio dos judeus não era a única opção. O
julgamento de Eichmann permitiu delinear a história de um povo que foi submetido a situações
extremas, à custa da obediência inescrupulosa de inúmeros agentes do Estado. De outro ângulo,
traçou um paralelo com a atitude de países que se negaram a compartilhar a oposição aos judeus.
De fato, as contribuições do julgamento não se limitaram à pessoa do condenado. Os relatos
de partes, tidas como opostas, estabeleceram um elo entre o passado e o presente. De forma tal
que, cada depoimento, foi imprescindível para que se percorresse um período da história, preen-
chendo-se aquela lacuna de forma coerente.
Nítido, ademais, na obra de Arendt, é o esforço para se abstrair daquele julgamento um rela-
to límpido, livre de toda emotividade que cercava cada depoimento. E peça por peça, a cada relato
e a cada pergunta, formava-se um panorama que possibilitou adentrar num momento separado
pelo tempo e pelo espaço. Vislumbra-se que, sob este prisma, a postura inequívoca dos juízes que
conduziram o julgamento foi primordial para a concretização daquilo a que Arendt denomina
justiça:

203
E a Justiça, embora talvez uma “abstração” para quem pensa como o sr. Ben-Gu-
rion, vem a ser um amo muito mais severo até que um primeiro-ministro com todo
o seu poder. [...] A Justiça não admite coisas desse tipo; ela exige isolamento, admite
mais a tristeza do que a raiva, e pede a mais cautelosa abstinência diante de todos
os prazeres de estar sob a luz dos refletores (ARENDT, 2011, p. 16).

Para Arendt, a função da justiça está acima de todo poder. Enquanto para o Estado de Is-
rael – representado na pessoa de seu primeiro ministro – o julgamento de Eichmann se limitava a
uma questão de honra, a justiça não cuidava tão somente de condenar ou absolver. Certamente o
veredito teria de ser imposto, mas, fundamentalmente, tratava-se de delinear os fatos partindo-se
do presente para o passado.
Quando Adolf Eichmann foi levado ao tribunal de Israel, havia uma fenda entre o passado
e o presente que se estendia por exatos dezenove anos quando do término da II Guerra Mundial.
O decorrer do tempo somente evidenciou a necessidade de se observar os fatos, não somente pelo
ângulo da defesa ou da acusação, mas, sobretudo, com o objetivo de traçar a história com precisão.
O que se denota, da leitura de Arendt, é que o julgamento de Eichmann permitiu que se delineas-
se a história com a ausência de qualquer equívoco.
De fato, trazer à tona elementos do passado indicou que a formação do Estado Democrático
perpassa, inevitavelmente, pela identificação de seus indivíduos e pela relação advinda de seus
atos. O julgamento de Eichmann não se deteve a figura do acusado. De outra tangente, a partir
dos relatos de Eichmann, da sua relação com o outro, se configurou a história e o pensamento
coletivo de um Estado.
As considerações feitas por Arendt acerca do julgamento de Eichmann partem justamente
da identificação da pessoa do acusado:

Otto Adolf, filho de Karl Adolf Eichmann e Maria, em solteira Schefferling, captura-
do num subúrbio de Buenos Aires na noite de 11 de maio de 1960, voou para Israel
nove dias depois, foi levado a julgamento na Corte Distrital de Jerusalém em 11 de
abril de 1961, objeto de cinco acusações: “entre outros”, cometera crimes contra o
povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, durante o período do
regime nazista e principalmente durante o período da Segunda Guerra Mundial.
[...] A cada uma das acusações, Eichmann declarou-se: “Inocente, no sentido da
acusação”. (ARENDT, 2011, p. 32).

Dentre inúmeros nazistas, o que tornou a figura do acusado ímpar foi o fato de ter sido ele
o responsável pelo problema dos judeus durante grande parte do governo de Hitler. Com base nos
seus relatos, observa-se que ele foi conduzido inclusive pela filosofia judaica, ainda que mediante
uma interpretação errônea:

Em resumo, quando Eichmann começou seu aprendizado em assuntos judeus, nos


quais, quatro anos depois, seria reconhecidamente um “perito”, e quando fez os
primeiros contatos com funcionários judeus, tanto sionistas como assimilacionistas
falavam em termos de uma grande “ressurreição judaica”, um “grande movimento
construtivo do judaísmo alemão” e ainda discutiam entre eles em termos ideológi-
cos se a emigração judaica era desejável, como se isso dependesse de suas vontades.
[...]
Cada um dos Escritórios Centrais da SS, em sua organização de guerra, era dividi-
do em seções e subseções, e o RSHA acabou tendo sete seções principais. A seção
IV era o departamento da Gestapo, chefiado pelo Gruppenfuhrer (major-general)
Heinrich Muller, cuja patente era a mesma que tinha na patente bávara. Sua tarefa
era combater “oponentes hostis ao Estado”, que eram divididos em duas categorias,
tratadas por duas seções: a Subseção IV-A cuidava dos “oponentes” acusados de
comunismo, sabotagem, liberalismo e assassinato, e a Subseção IV-B cuidava das
“seitas”, isto é, católicos, protestantes, maçons (o posto continuava vazio) e judeus.
Cada uma destas seções tinha um escritório próprio, designado por um número
204
arábico, de forma que Eichmann acabou sendo nomeado, em 1941, para a mesa
IV-B-4 no RSHA. (ARENDT, 2011, p. 82-84).

Diante da corte de Jerusalém estava, portanto, aquele que foi reconhecido como perito na
questão judaica. Justamente por esta característica, manteve contato com representantes do ju-
daísmo e do nazismo por todo o período que compreendeu o Holocausto. Esta peculiaridade do
acusado desencadeou, durante todo o julgamento, mais de um lado da moeda.
Pelo o que se depreende da narrativa de Arendt, Eichmann tornou-se mais um dos quais
realmente achavam que o regime nazista e suas façanhas tiveram algo de decente:

[...] “Ter chegado ao topo e, a não ser pelas exceções causadas pela fraqueza huma-
na, ter permanecido decentes, isso é que nos enrijeceu. Essa é uma página gloriosa
da nossa história que nunca foi escrita e jamais será reescrita”. [...] O que afetava
a cabeça desses homens que tinham se transformado em assassinos era simples-
mente a idéia de estar envolvidos em algo histórico, grandioso, único. [...]. Isso era
importante, porque os assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao
contrário, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que faziam
prazer físico com o que faziam. (ARENDT, 2011, p. 121).

Para a autora, o indivíduo que estava sob julgamento, de certa forma, perdera a capacidade
de pensar. Estava fadado a absorver toda convicção nazista sem estabelecer qualquer entrave ao
que lhe era proposto. E, neste aspecto, destaca que esta não era uma peculiaridade do réu:

Bastava Eichmann relembrar o seu passado para se sentir seguro de não estar se
enganando, pois ele e o mundo em que viveu marcharam um dia em perfeita har-
monia. E a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a rea-
lidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos auto-engano,
mentira e estupidez que agora se viam impregnados na mentalidade de Eichmann.
(ARENDT, 2011, p. 65).

E foi, talvez, na averiguação da fatal normalidade do acusado que residiu um dos pontos
primordiais deste julgamento. Uma vez que não se trata de uma mente diabólica, é inevitável a
constatação de que todo homem está sujeito a cometer atrocidades, quando a consciência coletiva
encontra-se corrompida:

Eles sabiam, é claro, que teria sido realmente muito reconfortante acreditar que
Eichmann era um monstro; se assim fosse, a acusação de Israel contra ele teria so-
çobrado ou, no mínimo, perdido todo o interesse. Não é possível convocar o mundo
inteiro e reunir correspondentes dos quatro cantos da Terra para expor o Barba Azul
no banco dos réus. O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram
como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são
terrível e assustadoramente normal. Do ponto de vista de nossas Instituições e de
nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante
do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito insistente-
mente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados – que esse era um tipo novo
de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em cir-
cunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está
agindo de modo errado. (ARENDT, 2011, p. 299).

E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo
mundo dita “Não Matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural
sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava a consciência de to-
dos: “Matarás”, embora os organizadores soubessem muito bem que o assassinato
era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro

205
Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maioria das pessoas o reconhecem – a
qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esma-
gadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar
seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam
sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabi-
do dos detalhes terríveis), a não se tornarem cúmplices de todos os crimes tirando
proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação.
(ARENDT, 2011, p. 167).

Diante da narrativa de Arendt, não há como negar que levar Eichmann a julgamento foi de-
terminante para que fosse concedida identidade aos personagens protagonistas do período em que
era propósito do governo alemão tornar a Europa livre de todos os judeus. Naquele cenário mon-
tado para que o réu recebesse a sentença da corte, colidiram interesses diversos. Inclusive, em
cada um destes interesses, ficou demonstrada a necessidade de se propiciar a busca da verdade:

Desde o começo, não há dúvidas de que é o juiz Landau quem dá o tom, e de que
ele está fazendo o máximo, o máximo dos máximos, para evitar que este julgamento
se transforme num espetáculo por obra da paixão do promotor pela teatralidade.
Entre as razões pelas quais ele nem sempre consegue isso está o simples fato de
que as sessões ocorrem em um palco diante da platéia, com o esplêndido grito do
meirinho no começo de cada sessão produzindo o efeito de uma cortina que sobe.
[...] Evidentemente, este tribunal não é um mau lugar para o espetáculo que David
Ben-Gurion, primeiro ministro de Israel, tinha em mente quando resolveu mandar
raptar Eichmann na Argentina e trazê-lo à Corte Distrital de Jerusalém para ser
julgado por seu papel na questão da “solução final”. E Ben-Gurion, adequadamente
chamado de “arquiteto do Estado”, é o diretor da cena do processo. Não comparece
a nenhuma sessão; no tribunal, fala pela voz de GideonHausner, o procurador-ge-
ral que, representante do governo, faz o que pode para obedecer a seu senhor. E
se, felizmente, seus esforços nem sempre atingem objetivo é porque o julgamento
está sendo presidido por alguém que serve à Justiça com a mesma fidelidade que o
sr.Hausner serve ao Estado de Israel. (ARENDT, 2011, p. 14-15).

Ele [Eichmann] contou ao juiz Halevi como estava “contente com essa oportunida-
de de separar a verdade das inverdades que haviam sidos despejadas em cima dele
durante quinze anos” e como estava orgulhoso de ser submetido a um interrogató-
rio mais longo que qualquer outro conhecido antes. (ARENDT, 2011, p.244).

Outra peculiaridade demonstrada por Arendt reside na forma como relata a história dos
judeus que, durante aquele período, descobriram que nem todos foram vítimas daquele regime.
Muitos se colocaram ao lado dos opositores:

O maior “idealista” que Eichmann encontrou entre os judeus foi o dr. Rudolf Kast-
ner, com quem negociou durante as deportações judaicas da Hungria e com quem
firmou um acordo: Eichmann permitiria a partida “legal” de milhares d e judeus
para a Palestina (os trens eram, de fato, guardados pela polícia alemã) em troca de
“ordem e tranquilidade” nos campos de onde centenas de milhares eram enviados
para Aushwitz. Os poucos milhares salvos por este acordo, judeus importantes e
membros de associações jovens de sionistas, eram, nas palavras de Eichmann, “o
melhor material biológico” (ARENDT, 2011, p. 54).

Se o julgamento indicou a participação “eficiente” dos judeus em cada passo em direção ao


Extermínio, também revelou outra face alemã. Tratava-se de uma postura singular. Ao tempo em
que tal atitude enobreceu a sociedade alemã, indicou o quanto à história das vítimas daquele go-

206
verno poderia ter sido distinta se o pensamento coletivo não estivesse deturpado:

Durante os poucos minutos que Kovner levou para contar sobre a ajuda recebida de
um sargento alemão, baixou um silêncio sobre o tribunal; era como se a multidão
tivesse espontaneamente decidido observar os costumeiros dois minutos de silên-
cio em honra de um homem chamado Anton Schmidt. E nesses dois minutos, que
eram como uma explosão de luz em meio à impenetrável, insondável escuridão, um
único pensamento se recordava claro, irrefutável além de qualquer questão – como
tudo teria sido tão absolutamente diferente nesse tribunal, em Israel, na Alemanha,
em toda Europa, e talvez em todos países do mundo, se mais dessas histórias pu-
dessem ser contadas. (ARENDT, 2011, p. 253).

Possível abstrair daquele momento de grande relevância que o julgamento se consolidou


como marco na reconstrução da história de todo o povo judeu. À medida que se traça a identidade
de um indivíduo, está-se, inevitavelmente, atribuindo identidade a um povo. Em outras palavras,
concede-lhe reconhecimento:

Essa história não levou mais de dez minutos para ser contada, e quando terminou –
a destruição sem sentido, sem necessidade, de 27 anos em menos de 24 horas – era
de pensar que todo mundo, todo mundo deveria ter seu dia na corte. (ARENDT,
2011, p. 251).

Em suma, o julgamento de Eichmann não se limitou tão somente à atribuição de responsa-


bilidade a determinado sujeito. No caso em apreço, a submissão do acusado ao julgamento perante
a corte investida de poderes para condenar ou inocentar foi um passo essencial para se preencher
inúmeras lacunas. Ao definir a verdade dos fatos, a retrospectiva dos fatos consubstanciou o di-
reito à memória – independentemente de qual fosse a verdade, importava estabelecer a memória
daquele Estado.
Para este estudo, pertinente avaliar o quanto a análise da Arendt foi abrangente. Isto no sen-
tido em que, tendo acompanhado as infindáveis sessões do julgamento, indicou em sua obra mais
do que a história daquele homem, ou de suas vítimas. De fato, para a autora, aquele episódio foi
crucial para estabelecer a postura dos Estados que aderiram ou se opuseram ao regime nazista.
O julgamento de Eichmann tornou evidente a essência do pensamento que predominou na
Alemanha nazista. As vítimas eram tratadas de forma tão indiferente, como se não mais fizessem
parte da humanidade, como se estivessem alheias ao corpo coletivo, formado, inclusive, por cada
deles:

Além disso, em julho do mesmo ano [1941], poucas semanas depois do chamado
de Heydrich, ele recebeu um memorando de um homem da SS estacionado no
Warthegau, dizendo que “os judeus não mais poderão ser alimentados no próxi-
mo verão”,e acrescentando a sua consideração uma proposta que perguntava se
“não seria uma solução mais humana matar por meios mais rápidos aqueles judeus
incapazes de trabalhar. Isto, de toda forma, seria mais agradável do que permitir
que morressem de fome”. Numa carta adjunta, endereçada ao “Caro camarada
Eichmann”, o autor admite que “essas coisas às vezes soam fantásticas, mas são
bastante realizáveis”. (ARENDT, 2011, p. 111).

Sob este prisma, permitir que se trouxessem à tona elementos do passado, não só conferiu
reconhecimento àquele período, como consolidou a memória da humanidade. E é neste sentido
que o julgamento de crimes que afrontaram a humanidade está intimamente ligado ao direito à
memória:

A grande vantagem de um julgamento centrado no crime contra o povo judeu era

207
fazer emergir a diferença entre crimes de guerra, como fuzilamento de guerrilhei-
ros e assassinatos de reféns, e “atos desumanos”, como “expulsão e aniquilamento”
de populações nativas para permitir a colonização por um invasor, mas também
que se esclarecia a diferença entre “atos desumanos” (realizados com algum propó-
sito conhecido, embora criminoso, como a expansão pela colonização) e o “crime
contra a humanidade”, cujo intento e propósito eram sem precedentes (ARENDT,
2011, p. 298).

Coexiste ainda outra conclusão extremamente pertinente apontada por Arendt. Conferir a
culpa dos crimes cometidos contra a humanidade ao coletivo, ao Estado, sem denominar o papel
de cada individuo é, em sentido prático, o mesmo que não atribuir responsabilidade a ninguém.
Logo, percebe-se que, no que tange aos crimes contra a humanidade, responsabilidade e identida-
de estão consubstancialmente ligados entre si:

Você disse também que seu papel na Solução Final foi acidental e que quase qual-
quer pessoa poderia ter tomado o seu lugar, de forma que potencialmente quase
todos os alemães são potencialmente culpados. O que você quis dizer foi que onde
todos são, ou quase todos, são culpados, ninguém é culpado. (ARENDT, 2011, p.
301).

Por fim, importa salientar que, no que toca aos crimes cometidos contra a humanidade, não
há que se falar em uma política de esquecimento. Porquanto os crimes que afrontam o status hu-
mano deixam pendentes uma pergunta para a humanidade, cuja resposta, inevitavelmente, passa
pela reconstrução da memória do período em que os crimes foram cometidos:

Os buracos do esquecimento não existem. Nada humano é tão perfeito, e simples-


mente existem no mundo pessoas demais para que seja possível o esquecimento.
Sempre sobra um homem para contar a história. Portanto, nada pode ser “pratica-
mente inútil”, pelo menos a longo prazo. Seria uma grande utilidade prática para a
Alemanha de hoje, não meramente para o seu prestígio no estrangeiro, mas para a
sua condição interna tristemente confusa, se houvesse mais dessas histórias para
contar. [...] Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a maioria
das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma que a li-
ção dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela “poderia acontecer
na maioria dos lugares”, mas não aconteceu em todos os lugares. Humanamente
falando, não é preciso nada mais, e nada mais pode ser dito dentro dos limites do
razoável, para que este planeta continue sendo um lugar próprio para a vida huma-
na. (ARENDT, 2011, p. 254).

De outro modo, crimes de proporção tal, que ultrapassam a pessoa da vítima e passam a
afrontar a humanidade em seu todo, não estão, em nada, sujeitos ao esquecimento. Assim, tendo
por base a obra arendtiana, possível a afirmação de que permitir a construção da memória, em
oposição ao esquecimento, é um direito inerente ao sujeito, à nação e ao Estado.
Diante de crimes que afrontam a humanidade, persiste a pergunta: estaria a problemática
do esquecimento e da memória encerrados na questão ética? Importa, agora, compreender em
que medida a memória encontra-se presente no ordenamento jurídico brasileiro, dirigindo a aná-
lise para a Constituição Federal de 1988, a fim de se estabelecer se a memória, aqui, configura-se
como um direito.

3. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO À MEMÓRIA


Da análise da obra de Arendt constata-se que os crimes que afrontam a humanidade não
estão condicionados ao esquecimento. Verifica-se, ainda, que a atribuição de responsabilidade a
determinado sujeito, por condutas cometidas contra a humanidade, permite que se caracterize
208
a identidade do próprio Estado. Porquanto, na medida em que se reestabelece a memória de um
Estado, está-se corroborando com a ideia de democracia e de cidadania.
Com base nas averiguações advindas do estudo da obra de Arendt, este texto lança seu foco
para a Constituição de 1988. Indubitável, como premissa, entender em que cenário foi adotada a
Constituição em questão. Neste sentido, este item tem sua base pautada no período de transição
política entre o regime ditatorial e o regime democrático brasileiro, e seu ápice na análise do texto
constitucional.
A Constituição da República de 1988 é marcada pelo seu caráter democrático. O seu surgi-
mento rompeu com o período em que, no Brasil, vigorava um regime de exceção em que direitos
humanos fundamentais foram suspensos. E quando se fala naquele período ditatorial, inevitavel-
mente, está-se falando em graves violações de direitos humanos.
De fato, entre os anos de 1964 e 1985, em nome da Segurança Nacional, o país foi governado
pelos militares. Ocorre, no entanto, que a população não detinha exata noção dos mecanismos de
governo adotados por aquelas autoridades.
Mas aquele regime teria o seu fim - por razões econômicas, pela frágil empatia com a po-
pulação, pela pressão internacional tangente às violações aos direitos humanos. E as autoridades
passaram a dar indícios de uma possível transição para o governo democrático. Sinalizavam, con-
tudo, que a transição determinante para a democracia brasileira teria de ser adquirida mediante
uma política de compensação.
Sob este prisma, a transição democrática brasileira pode ser conceituada como uma tran-
sição negociada. De fato, a manutenção do poder se deu entre as forças predominantes, sem a
participação eficiente da sociedade:

A transição democrática brasileira caracteriza-se por dois fatores importantes: em


primeiro lugar, trata- se de uma transição negociada, ou seja, não houve ruptura
com o regime, e seus atores negociaram a manutenção de poder dentre as forças
predominantes, sem envolver o debate mais amplo com a sociedade; esta transição
é considerada, portanto, “endógena”, ou seja, por um lado, articulada com o próprio
governo, e, por outro, sem imposição de modelos específicos por atores internacio-
nais. (MCARTHUr, 2012, p.82).

No Brasil, a transição entre o regime ditatorial e o regime democrático foi articulada pelo
governo vigente àquela época. Esta peculiaridade põe em relevo a legitimidade e a intenção de tal
proposta. Uma vez que o governo ditatorial direcionava a discussão acerca da transição, indubitá-
vel a constatação de uma possível manipulação tendenciosa, visando a ocultar a face inescrupu-
losa daquele governo.
As características da forma com que se estabeleceu a transição entre o regime ditatorial e
o regime democrático no Brasil indicam que a identidade do Estado brasileiro possa ter sido ma-
quiada. Contudo, a justiça de transição, em seu cerne, exige um acerto de contas com o passado.
De fato, as medidas adotadas no período transicional merecem ser analisadas com a lente da de-
mocracia de forma imperativa.
Em suma, a justiça de transição tem seu conceito intimamente ligado às medidas adotadas
para se reestabelecer a democracia. Notadamente, a justiça de transição é oriunda da necessi-
dade, quase que urgente, de se pôr fim a um regime de exceção. Quando se fala em justiça de
transição, está-se, necessariamente, falando em uma política estatal de compensação por crimes
cometidos em nome do Estado.
É justamente neste sentido que discorrem Tavares e Angra:

A justiça reparadora, de transição ou transicional se configura naqueles procedi-


mentos que têm a finalidade de compensar abusos cometidos contra direitos hu-
manos em regimes ditatoriais, em períodos de exceção ou de situações de anomalia
constitucional. Normalmente ela ocorre em períodos de transição, quando do res-
tabelecimento do Estado de Direito. Trata-se de responder à difícil e delicada per-
gunta sobre quais as medidas a serem adotadas por um novo regime em relação aos

209
fatos ocorridos durante o regime que o precedeu, indagação especialmente difícil
quando a ditadura truculenta e sufocante sucede a democracia aberta e plena. [...]
Essa necessidade de prestar contas com o passado torna-se imperiosa como forma
de pacificar a sociedade, permitindo que ela possa evoluir sem a constante recorda-
ção das feridas abertas do passado. (apud SOARES, 2009, p.71)

Portanto, quando se pensa em justiça de transição está-se fazendo referência a uma justiça
de reparação. A justiça de reparação se constitui com fundamento no estado democrático, uma vez
que não se pode pensar em democracia sem conferir ao Estado e aos seus cidadãos identidade. A
justiça de transição pretende ser coerente com o princípio democrático assegurado pela Consti-
tuição de 1988.
Aqui, quando se fala em justiça de reparação, está-se fazendo referência as possíveis vítimas
de violações aos direitos humanos. No entanto, a chamada justiça de reparação tem seu cerne
ligado ao reestabelecimento da verdade, cujo interesse, diz respeito a toda sociedade:

As transições, que habitualmente processam-se nos circuitos políticos, passaram a


ser informadas com peso, pelas influências do direito. Outrora prospectivas, ado-
tando uma perspectiva unilateral de pacificação em detrimento da justiça, as tran-
sições passam a ser vistas também como momentos privilegiados para se olhar pro
passado e efetivar-se uma reparação tanto daqueles que sofreram diretamente as
violações dos direitos humanos, como da sociedade (QUINALHA, 2012, p. 159).

A justiça de transição, ademais, impõe ao Estado deveres advindos dos próprios arbítrios que
violaram o sujeito humano. Sob este prisma, se o Estado deixou de proteger seus cidadãos e, mais
além, se protagonizou as violações aos direitos humanos, inevitável atribuir a ele deveres com as
supostas vítimas. Tais deveres, contudo, não se limitam tão somente às eventuais vítimas, uma vez
que foi lesionado o status humano.
Desta feita, lidar com o legado advindo de um governo arbitrário é papel do Estado Democrá-
tico. A proteção aos direitos humanos é responsabilidade do Estado, porquanto foi legitimado para
tanto. Assim, não se pode falar em justiça de transição sem se procurar retificar as atrocidades
cometidas em nome do Estado.
No Brasil, a justiça de transição caminha a passos lentos. A tentativa de efetuar a transição
de forma justa, no período em que o regime ditatorial deu lugar à democracia, restou frustrada.
Neste norte, vislumbra-se que, aqui, a transição se consolidou com a promulgação da Lei de Anis-
tia (6.683), em 1979.
A Lei de Anistia brasileira repeliu o processo transicional, haja vista que autoanistiou aque-
les que cometeram crimes de lesa-humanidade. Os crimes sequer foram investigados, o perdão
advindo pela anistia abarcou crimes sem permitir que houvesse conhecimento dos atos ocorridos
naquele extenso período. Desta feita, sob o manto da Lei de Anistia, pretendeu-se apagar os atos
cometidos em nome do Estado, deixando inúmeras páginas em branco na memória de nosso Es-
tado.
No conceito de justiça de transição está intrínseca a ideia de ruptura com a ordem autocráti-
ca, dando ensejo ao surgimento do Estado Democrático. Não há como negar que a justiça repara-
dora tem o condão de por fim a prática de crimes que corrompem com a dignidade humana. Mas,
esta afirmação não abstrai o propósito de adentrar no passado com o fim de garantir a realização
da democracia.
Assim, conforme a democracia ganha corpo – pela via da justiça de transição -, adquire re-
levo o direito à memória:

[...] o principal alvo da justiça transicional não é culpar individualmente os repres-


sores. Mas, sim, ultrapassar objetivamente o estado de exceção e promover a tran-
sição para o novo regime, ao mesmo tempo em que estabelece a verdade dos fatos
ocorridos justamente para que sejam a memória de um estado de coisas ao qual não
se deve voltar (CURY, 2012, p. 301).

210
De fato, no que toca à justiça de transição, cuida-se de um desafio que visa à garantia do
Estado Democrático. Neste aspecto, importa que as concessões ao passado não corrompam com a
ordem democrática. Sobre esta perspectiva, assinala Flávia Piovesan:

A justiça de transição lança o delicado desafio de como romper com o passado


autoritário e viabilizar o ritual de passagem à ordem democrática. O risco é que as
concessões ao passado possam comprometer e debilitar a busca democrática, cor-
rompendo-a com as marcas de um continuísmo autoritário. Justiça e paz; justiça
sem paz; e paz sem justiça são os dilemas da transição democrática (2007, 204).

A problemática brasileira não reside tão somente na promulgação da Lei de Anistia, com uma
abrangência irrestrita. No que tange à justiça de transição não há como negar que a promulgação
da referida Lei consistia em um de muitos passos a serem dados. Nesta esfera, salienta Monclaire
que a transição: “era somente um dos momentos da construção democrática. Isso obrigava a ver
mais adiante, a considerar que à transição sucedia uma outra fase, rapidamente batizada pelos
transitólogos arrependidos como consolidação democrática” (2001, p. 63).
Nesta seara, vislumbra-se que a justiça de transição impõe a adoção de medidas condizentes
com o Estado Democrático que vigora no Brasil. De fato, o fenômeno da transição política no Bra-
sil deve seranalisado a partir da justiça de transição. Logo, o Estado possui o dever de se preocupar
com a promoção de reformas que conduzam à constituição/preservação da memória e da verdade,
imprescindíveis, para o rompimento do legado autoritário anterior.
Ademais, a efetiva promoção da justiça de transição no Brasil indicaria que a República
pós-88 compromete-se, terminantemente, com a alteração das instituições políticas. E, que tal
preocupação, engloba a ampla garantia dos direitos humanos.
Pelo o que se denota neste estudo, a justiça de transição parte do passado para reestruturar
a ordem social. No entanto, no Brasil, a Justiça de transição caracteriza-se como inacabada, uma
vez ser pendente uma análise responsável acerca do período ditatorial:

Dessa forma, a Justiça de Transição brasileira é considerada atrasada, “postergada”,


encontrando- se, ainda, quase 25 anos após a promulgação de nossa Constituição
Democrática, sob intenso desenvolvimento e concretização. A Justiça de Transição
no Brasil é, ademais, criticada por sua “descontinuidade lógica”, ao alternar, sem
uma maior sistematização temporal ou estratégica, mecanismos de responsabili-
zação do Estado, de reparações às vítimas, e de busca da verdade (MCARTHUR,
2012, p. 86).

A democracia exige que o Estado não legitime crimes que atentem contra a humanidade.
Incumbe ao Estado, desta feita, trazer à tona elementos do passado visando ao fortalecimento do
Estado Democrático.
O Brasil, no tocante à justiça de transição, encontra-seentre aqueles Estados que estudos
denominam de vertente minimalista. Notadamente em razão de ter adotado a anistia como forma
geral para tratar das violações aos direitos humanos ocorridas no passado. Com a anistia brasilei-
ra, somada ao aspecto de legalidade autoritária (PEREIRA, 2010) existente durante o período de
exceção, adotou-se a política do esquecimento quantoaos fatos ocorridos na ditadura militar.
O Estado democrático brasileiro manteve-se inerte por extenso período, e há de se destacar
que as suas recentes ações foram impulsionadas pelas cortes internacionais. Não obstante a exis-
tência de políticas que visam a garantir o direito à memória, não há como negar que se trata de
um direito que está sendo constituído. O direito à memória e à verdade no Brasil ainda é algo pen-
dente, uma vez que, até hoje, a história contada sobre o regime ditatorial é permeada de lacunas
lineares e narrativas fechadas e silenciosas (SILVA FILHO, 2010).
Assim, encontrando respaldo no texto constitucional, inevitável a constatação de que a jus-
tiça de transição deve ser encarada com maturidade e autonomia pelo Estado Democrático do
Brasil. Neste sentido, vislumbra-se que a efetivação de uma justiça de transição, sob a égide da
democracia, somente poderá enobrecer a nossa história. O conhecimento acerca da nossa história
211
tornará possível a superação das ofensas aos Direitos Humanos:

Ao ingressar no século 21, o Brasil se revela portador de todos os ingredientes de


uma verdadeira democracia política. Reúne, portanto, condições plenas de supe-
rar os desafios ainda restantes á efetivação de um robusto sistema de proteção aos
Direitos Humanos. Não pode temer o conhecimento mais profundo a respeito do
próprio passado. (Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008, p. 29).

Se a justiça de transição se traduz como justiça de reparação, no que toca aos atos atentató-
rios ao ser humano, levados a efeito durante o regime militar, possível se apontar uma pendência
história. Como no caso de Eichmann, constata-se que não se trata tão somente de emitir senten-
ças condenatórias ou absolutórias, mas, mais além, cuida-se de garantir o direito à memória.
Nesta esfera, a justiça de transição está intimamente ligada ao princípio democrático prote-
gido como cláusula pétrea em nossa Constituição.
Percebe-se assim que a justiça de transição, na medida em que cumpre a sua função repa-
radora, traz à tona elementos históricos desconhecidos. Tais elementos estão intimamente liga-
dos com a democracia, uma vez que não se pode pensar em democracia sem garantir aos seus
integrantes os fatos pertinentes à sua história. Nesta vertente, à medida que se restitui o passado,
está-se garantindo o direito à memória.
Em princípio, poderia se afirmar que a problemática do direito à memória está restrita à
questão ética. Ocorre, contudo, que esta afirmação não condiz com o arcabouço jurídico brasilei-
ro. A Constituição de 1988, ao estabelecer o acesso à informação como princípio fundamental da
república brasileira, respalda o direito à memória.
De fato, o rol de princípios estampados no texto constitucional não é exaustivo. E, inclusive
no que toca ao direito de acesso à informação, há de se ter um olhar ampliado:

Estamos diante de um direito fundamental quanto mais ele se aproxima da indis-


ponibilidade da pessoa humana. Isso serve para delinearmos claramente que o rol
de direitos fundamentais da nossa Constituição, como já consagrado em doutrina e
jurisprudência, não é taxativo. Outros existem, além daqueles dispostos em nosso
art. 5º, com vistas ao incremento de dignidade na vida humana. O mesmo se dá
com o direito de acesso à informação, que permeia um bom número de dispositivos
constitucionais e legais (SOUZA, 2012, p. 164).

O direito à informação está, na qualidade de direito fundamental, intrinsecamente ligado


aos direitos humanos. Conforme Nogueira Junior, o direito à informação é um direito fundamental
constituinte do Estado Democrático de Direito, pois “contém um núcleo dotado de eficácia jurí-
dico-normativa concretamente bastante e voltado à proteção dos cidadãos contra a prepotência
e o arbítrio” (apud SILVA, 2007, p. 55). Sob este aspecto, o direito à informação visa a garantir a
soberania popular frente ao possível abuso estatal.
O direito de acesso à informação foi contemplado na Constituição de 1988, sem que fosse
pacífica a sua inserção. Conforme Costa e Fraiz (1989, p. 63) as dificuldades de aceitação da no-
ção de direito de acesso à informação pela Assembleia Nacional Constituinte foram de diversas
ordens, com destaque para a tendência conservadora de alguns constituintes. Não obstante a
existência de certa resistência, o fato é que o direito à informação é um direito indissociável do
Estado Democrático Brasileiro.
Em suma, como visto, o direito de acesso à informação está presente no corpo da Constitui-
ção, consubstanciado como cláusula indissociável da democracia. Não há como afastar o direito à
memória do direito à informação. Porquanto é, inclusive, pela via da informação que se constrói
o direito à memória.
No entanto, para este estudo, necessária se faz a distinção entre o direito à memória e o
direito à informação. O direito à informação está presente no direito à memória na medida em
que permite que a sociedade consolide o Estado Democrático. Com maior amplitude se revela o
direito à memória, uma vez que este não se encerra no acesso à informação, mas se consolida na
212
sua apropriação e no rompimento com o passado.
Neste sentido, é o dizer de Petrus:

A partir daí, o direito à memória e à verdade apresenta-se como uma chave dialé-
tica que abre, ao mesmo tempo, duas portas aparentemente opostas. Conecta com
o passado, na medida que constitui, como preceitua a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, um “direito de caráter coletivo que permite à sociedade ter
acesso à informação essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos”.
Mas também rompe com o passado, medida que possibilitaria às instituições do
Estado que se envolveram na repressão converterem-se de fato à democracia, pois
mostrariam na prática cotidiana que “o que elas são agora não é completamente
ligado àquilo que fizeram no passado”. No caso brasileiro, estamos longe de abrir
ambas as portas. (2010, p. 282).

Sob esta vertente, percebe-se que, no Brasil, o advento da Lei 12.528/11 (Lei de Acesso à
informação) deflagrou um caminho em direção ao direito à memória. De fato, à luz da referida
lei surgiu a Comissão Nacional da Verdade, cuja natureza não finda no acesso à informação. O
que se constata, com razão, é que o acesso à informação efetiva o direito à memória como direito
fundamental:

Em uma primeira acepção, podemos identificar esse ponto de contato como uma
via pública de comunicação entre a Comissão Nacional da Verdade e as vítimas e
testemunhas, que permita e facilite o acesso destas à Comissão e, assim, a revelação
de dados e fatos que impulsionem o desenvolvimento dos trabalhos. A fim de possi-
bilitar o acesso da sociedade à Comissão Nacional da Verdade, a Lei no 12.528/11
(art. 4o, § 6o) confere a qualquer interessado o direito de prestar informações ou
requerê-las da Comissão.
Embora não estabeleça procedimentos ou prazos para essa troca de informações,
a Lei abre espaço para que os cidadãos, especialmente vítimas e testemunhas, rei-
vindiquem sua participação e possam contribuir com seus relatos e depoimentos.
Na medida em que a Comissão Nacional da Verdade tem como finalidade efetivar
o direito à memória, à verdade histórica e promover a reconciliação nacional, tor-
na-se imperioso que ela se mantenha aberta e, não só possibilite, como encoraje o
exercício desta prerrogativa da sociedade (CURY, 2012, p. 299).

Portanto, o direito à memória difere do direito de acesso à informação. Pode-se afirmar que
este está contido naquele. Considerando que a Constituição de 1988 não é exaustiva em seus
princípios, a previsão constitucional de um destes direitos equivale à previsão do outro.
Ademais, o direito à informação abarca o direito de informar, ser informado, ter acesso à in-
formação. O direito à memória, por sua vez, possui a função de construir a identidade histórica de
um Estado fazendo uso das informações. O direito à memória é um direito individual e coletivo,
uma vez que a memória não está limitada ao indivíduo, tampouco se restringe aos limites temporal
e espacial.

Além disso, a inércia prolongada em relação ao esclarecimento desses crimes pro-


voca um efeito negativo nas memórias, individual e coletiva. Se, por um lado, longe
do clamor dos acontecimentos, as paixões e os discursos inflamados cedem mais
facilmente lugar à razão, por outro, um lapso de tempo tão dilatado pode provocar
sensação de incerteza, distorções ou esquecimento de fatos e dados, dificuldade de
reconhecimento de agentes implicados. A memória liga o passado e proporciona a
construção de uma identidade histórica. No Brasil, o passado foi mantido por tanto
tempo desligado do presente, que a solidez de nossa identidade histórica é coloca-
da em cheque (CURY, 2012, p. 306).

213
Nesta esfera, por exemplo, quando se cogita a revisão da Lei de Anistia não se está falando
tão somente no direito de acesso à informação. Mais além, a pretensão reside na preocupação com
memória coletiva, com a identidade do Estado. Ao passo que, a reconstrução de um momento
histórico, fundado no direito de acesso à informação, implica na aquisição do direito à memória.
O direito a memória amplia o direito de acesso à informação. Se a informação contém a in-
dividualidade, o direito à memória possui o condão de trazer o individual para o coletivo:

O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da


memória coletiva. Serve a um duplo propósito: proteger o direito à memória das
vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de
tais práticas. Sob a ótica republicana e democrática, a releitura da Lei de Anistia e o
direito à verdade rompem com o pacto do silêncio e com uma injustiça continuada.
Lançam luzes à dimensão sombria de nossa história, na defesa dos direitos à justi-
ça, à verdade e à memória individual e coletiva (PIOVESAN, 2007, p. 38).

O direito de acesso à informação é uma pedra angular para a perpetuação do Estado Demo-
crático de Direito. Razão pela qual, encontra-se elencado no rol de direitos fundamentais que in-
corporam a Constituição de 1988. De igual forma, não se pode cogitar a compreensão do passado
sem a garantia fundamental do acesso à informação.
De fato, o direito de acesso à informação possui papel fundamental na reconstrução do pas-
sado. E a superação do passado perpassa, inevitavelmente, pela sua compreensão.
Logo, a previsão constitucional do acesso à informação e o princípio democrático que emana
da Constituição de 1988, conferem legitimidade ao direito à memória. Se a informação, conforme
afirmado, é elemento de justiça, o direito à memória dilata a justiça democrática até o passado.
Por fim, indubitável a constatação de que o acesso à informação é um direito fundamental,
de igual forma o princípio democrático se consubstancia como pedra angular do estado democrá-
tico fruto da Constituição de 1988. Se o direito à memória nasce do princípio democrático e traz
em seu bojo o direito de acesso à informação, poder-se-ia afirmar que também ele se consolida
como direito fundamental.

4. O BRASIL E O DIREITO À MEMÓRIA


Se, como dito, o direito à memória se encontra entre aqueles elencados como direitos huma-
nos fundamentais do Estado brasileiro, persiste o questionamento acerca da sua aplicabilidade. Os
direitos fundamentais, assim erigidos pelo constituinte, devem preponderar sobre o mero forma-
lismo e devem nortear o direito em todas as suas faces. Por esta razão, toda interpretação das leis
se fará em conformidade com a Constituição (REGLA, 2012).
A afirmação de que o direito à memória encontra respaldo no texto constitucional da Re-
pública Brasileira implica em consequências pertinentes ao passado e ao presente deste Estado.
Se um direito não se traduz em artigos, a legislação pátria necessita ser observada sob o prisma
do direito à memória. E, nesta seara, constata-se que, com o reconhecimento de que o direito à
memória faz parte do arcabouço jurídico brasileiro, advém, necessariamente, a exigência de se
reconhecer fatos levados a efeito no passado.
O direito à memória se corporifica na verificação das violações aos direitos humanos ocorri-
das ao longo da história do país. A construção da memória nacional atribui ao Estado a preocupa-
ção em agregar contornos reais à sua história. No dizer de Silva Filho, a memória do Estado está
atrelada à busca por “narrativas diferentes e todas importantes para recompor o caleidoscópio da
história, mas ao mesmo tempo é imprescindível que seja construída uma narrativa pública reco-
nhecida pelo Estado em relação aos abusos cometidos em nome dele mesmo” (2010, p. 31).
Neste campo, não basta que o sujeito reconheça as incongruências cometidas em nome do
Estado. O direito à memória substancia o dever de contar-se a história pertinente ao Estado de
forma pública (LAFER, 2005). Tal reconhecimento deve partir do Estado, isto porque o direito à
memória importa à coletividade e não somente ao indivíduo.
De fato, o princípio democrático traz em seu núcleo o papel do Estado em identificar even-

214
tuais fatos que não se coadunam com os direitos fundamentais.
As violações aos direitos humanos são de interesse do Estado, porquanto afrontam a huma-
nidade, sem a qual o Estado perderia a razão de ser. O direito à memória está previsto na Consti-
tuição de 1988 como direito fundamental, o que possibilita uma série de consequências. No que
tange aos direitos humanos, implica na obrigação de o Estado atentar-se para as violações come-
tidas, em seu nome, no passado.
Sob este prisma, admitir que o direito à memória está inserido no ordenamento jurídico-
consiste, sucintamente, naadoção de medidas pontuais: investigar e esclarecer violências levadas
a efeito pelo Estado no passado; julgar os responsáveis; conceder reparação material às vítimas;
reformar ou extinguir instituições responsáveis pela repressão política; exercer a memória das
violações. (ZYL, 2009; CIURLIZZA, 2009). Tais estratégias, no entanto, não possuem sequência
definitiva e poderão ser adotadas pelos Estados, na medida em que forem pertinentes à consoli-
dação do direito à memória.
No Brasil, o direito à memória não está restrito à norma constitucional. O Estado tem ca-
minhado na direção da construção do direito à memória, e duas notáveis posturas indicam que
o direito à memória não se finda na previsão legal. Tratam-se da anistia conferida ao marinheiro
João Cândido, por meio da Lei 11.750/2008, e da recente decisão do Tribunal de Justiça de São
Paulo que determinoua retificação do registro de óbito do jornalista Vladimir Herzog.
Seja na promulgação da referida Lei, seja na decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo,
denota-se que a reconstituição da história, sob a égide da verdade, tem se consolidado como um
legado para a democracia atual. Ademais, vislumbra-se que o direito à memória se deflagra como
uma preocupação dos poderes legislativo, executivo e judiciário com eventos pretéritos. Ambas as
posturas corroboram com a ideia de que o direito à memória está intrinsecamente ligado como
Estado Democrático Brasileiro.
O direito à memória exige do Estado uma postura ativa no que tange às violações aos direi-
tos humanos cometidas, em nome do Estado, no passado. Considerando que as posturas acima
elencadas estão fundamentadas no direito à memória, este estudo se debruçará, brevemente, nos
dois casos. Notadamente, em razão de, em ambas as hipóteses, estar explícito que a Constituição
de 1988 prevê o direito à memória e que o Estado Brasileiro, na postura de todos os seus poderes,
demonstra o interesse em consolidá-lo.
O direito à memória torna-se tangível na medida em que o Estado se apropria da sua histó-
ria. As suas consequências alcançam eventos ocorridos no passado. Assim, seguindo a premissa de
que o direito à memória encontra amparo na Constituição de 1988, importante destacar a conces-
são de anistia póstuma a João Cândido e para a determinação da retificação da certidão de óbito
de Vladimir Herzog.2

2 A concessão de anistia post mortem a João Cândido Felisberto. Admitir que o direito à memória encontra-se presente na
Constituição de 1988 significa assumir que o Estado deve rever eventos ocorridos no passado, sobretudo quando estes constituí-
rem violações aos direitos humanos. Na medida em que o Estado possibilita que sejam revistos fatos ocorridos no passado, está-se,
naturalmente, em pauta o direito à memória. É justamente neste sentido que a promulgação da Lei 11.750/2008 representa uma
das faces do direito à memória no direito pátrio. O advento da Lei 11.750 – aprovada por unanimidade no Congresso Nacional e
sancionada pelo Presidente da República em 23.7.2008 - indica que o Estado Brasileiro, tem voltado seu olhar para o passado. De
fato, o disposto em seu artigo 1º alcança eventos ocorridos em 1910. A concessão da anistia póstuma a João Cândido e aos mari-
nheiros que participaram da Revolta da Chibata revela que na democracia está intrínseca a afirmação dos direitos humanos: [...] a
história de um país é ponto chave para compreendermos o presente e prepararmos o futuro. Trazer à tona a permanência das teias
do passado (gerado, primordialmente, pelo trabalho escravo e baseado na grande agricultura monocultora de exportação) é tocar
em preconceitos, desigualdades e violências ainda hoje mal resolvidos, apesar das conquistas e melhorias. E tal escolha do tema
aponta, sobretudo, para a disposição em transformar democraticamente tal realidade, valorizando a afirmação dos Direitos Huma-
nos no Brasil em suas variadas dimensões. (MOREL, 2008, p. 9). O núcleo central da referida Lei reside na restauração dos direi-
tos assegurados pelo Decreto 2.208/1910 ao marinheiro João Cândido e aos demais marinheiros envolvidos na Revolta da Chiba-
ta. Isto porque, naquele período, o Decreto 8.400 permitiu a exclusão da Armada de todos os marujos cuja presença fosse julgada
inconveniente por seus superiores (HNB apud MANCUSO, 2007). E, dentro desta possibilidade, foi instaurada uma realidade de
repressão em massa, cuja principal característica foi a arbitrariedade. A revolta da Chibata, que antecedeu o Decreto 2.208/1910,
consistiu na manifestaçãodos marinheiros contra a forma desumana como eram tratados por seus superiores. A legislação de épo-
ca não permitia que os marinheiros fossem corrigidos por meio de pancadas de espada e de chibata.Ainda assim, os resquícios do
Brasil Colonial imputavam aos marinheiros tais afrontos. Liderados por João Cândido, que havia sido alvo das duras penas, os
marinheiros instauraram aquela que ficou conhecida como A Revolta da Chibata. O movimento tinha como objetivo acabar com
tamanha violência, visavapor um fim aos castigos corporais na Marinha e, para tanto, afirmava estar disposto a bombardear a ci-
215
dade do Rio de Janeiro (HNB apud MANCUSO, 2007). Para aquele movimento era inconcebível a forma como os marinheiros
eram tratados: “Nós que vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na Marinha brasileira
ainda o homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem” (CÂNDIDO apud MOREL, 2008, p.30). Diante da situação
ameaçadora, o Marechal Hermes da Fonseca, pelo Decreto 2.280/1910, garantiu a anistia a todos os envolvidos na Revolta da
Chibata. Os marinheiros por sua vez, devolveram os navios apreendidos e colocaram um ponto finalnaquele manifesto.No entan-
to, rapidamente, o Decreto 2.280 perdeu seu valor e todos os anistiados viram-se excluídos da Marinha brasileira. A revogação da
anistia concedida aos marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata corroborou com as violações aos direitos humanos, naquela
época, refletidas nas chibatadas desferidas contra os marinheiros. A exclusão da Marinha brasileira daqueles que se opuseram aos
castigos corporais foi uma medida que, na prática, eternizou cada uma das chibatas. Assim, com a revogação da anistia, o Estado
reiterou as ofensas ao ser humano. Atualmente, por força da Lei 11.750/2008, observa-se que é pretensão do Estado Democrático
assegurar os direitos humanos pertinentes, inclusive, ao passado. Na restauração da anistia outrora concedida aos marinheiros
envolvidos na Revolta da Chibata encontra-se consumado o direito à memória. Em suma, a observação dos fatos que ocasionaram
a Revolta da Chibata indica que os seus líderes não foram os únicos responsáveis pelo manifesto. De igual forma, não se pode
agregar as origens da Revolta tão somente às chibatadas. O que estavam em foco eram os direitos que há longo tempo estavam
sendo abstraídos pelo Estado. Assim, ao tempo em que a Lei 11.750/2008 restaura a concessão da anistia aos marinheiros integran-
tes da Revolta da Chibata, o Estado Brasileiro está assumindo a responsabilidade pelos fatos ocorridos naquele período. Trata-se
de uma postura que tem o condão de reestabelecer a verdade. A Revolta da Chibata não foi resultado tão somente da indignação
dos marinheiros, ela teve suas raízes em uma problemática na qual a responsabilidade do Estado estava devidamente inserida.
Neste sentido, enfrentar os fatos ocorridos há mais de um século permite a compreensão de problemas que dizem respeito à socie-
dade brasileira. Também aqui se verifica que o direito à memória foge dos limites do indivíduo e passa a pertencer à coletivida-
de:Relembrar João Cândido hoje significa compreender que seus gestos trazem à tona problemas ainda inquietantes para a socie-
dade brasileira, como o racismo, a desigualdade social, a violência cotidiana do Estado sobre as camadas pobres da população e a
democratização das Forças Armadas – sem esquecer o mito de que existe uma tradição ordeira e pacífica na história do Brasil.
(MOREL, 2008, p.111).Garantir o direito à memória implica na constatação de que, talvez inúmeras vezes, o Estado possa ter sido
protagonista de violações aos direitos humanos. É neste sentido que se rompe com a ideia fantasiosa de que a história do Estado
Brasileiro, necessariamente, é pautada pela tranquilidade, de que a democratização foi conquistada de forma pacífica.O direito à
memória abarca o dever estatal de assumir as suas responsabilidades, na busca pela verdade. Desta feita, pode-se afirmar que “O
direito à verdade está atrelado ao direito à memória, pois a memória é composta do aprendido e do vivenciado, é a partir dela que
construímos referenciais, nossas identidades e elaboramos nossos projetos” (RODRIGUES, 2012, p. 262). Assim, a identidade
estatal está intimamente ligada ao direito à memória.Logo, quando se garantem direitos - ainda que póstumos - a um indivíduo, o
que se está garantindo é um direito inerente à humanidade. Nesta senda, aproximar-se da figura de João Cândido, pela via norma-
tiva, possibilita adentrar no passado visando um futuro mais democrático:É responsabilidade coletiva garantir que os Direitos
Humanos sejam realidade para todos, independente de posição social, nível de instrução, gênero, religião, cor da pele, opção po-
lítica, etc. Aproximando-se o centenário da Revolta da Chibata, podemos constatar que a vida de João Cândido traz muitas lições
para aprendermos e ensinarmos: virar as páginas de sofrido passado em direção a um futuro melhor (MOREL, 2008, p.9). No
mais, percebe-se que a reparação oriunda da Lei 11.750/2008 abre a possibilidade de pagamentos de indenizações às famílias dos
marinheiros, agora, protegidos pela anistia. Este estudo não se descuida para o fato de que possíveis indenizações serão objetos de
análise do poder judiciário. Contudo, ainda que sujeitas ao controle do judiciário, não há como negar que também aqui se faz
presente uma consequência da previsão constitucional do direito à memória. Enfim, diante da análise da Lei 11.750/2008, inevi-
tável a constatação de que o direito à memória não se limita ao texto constitucional brasileiro. De outro ângulo, a sua consolidação
agrega conquistas que dizem respeito a toda sociedade brasileira. Portanto, possível afirmar que, na concessão póstuma de anistia
aos marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata, identifica-se a aplicabilidade do direito à memória. A retificação da certidão de
óbito de Vladimir HerzogNa afirmação de que o direito à memória está previsto na Constituição de 1988, como um direito funda-
mental, encontra-se a premissa capaz de substanciar a alteração de dados públicos. O direito à memória agrega ao Estado o dever
de estabelecer a verdade seja ela pertinente ao passado ou ao presente. E, sob este vértice, o formalismo deve se submeter às
consequências oriundas do direito à memória. Nesta seara, a decisão proferida nos autos do Processo autuado sob o n. 0046690-
64.2012.8.26.0100, que tramitou no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, consolida a afirmação de que o direito pátrio está
arraigado no Direito à memória. De fato, ao determinar que fosse retificada a certidão de óbito de Vladimir Herzog, o Exmo. Juiz
Márcio Bonilha Martins Filho (Juízo da 2ª Vara de Registros Públicos da Capital) fez emergir o direito à memória.Tal alteração
não se encerra na retificação da causa mortis, em seu cerne está presente a admissão de que o de cujus foi vítima de violações que
atingiram a humanidade. Para que se possa compreender a dimensão de tal decisão, necessário se faz o regresso até o ano de 1975.
Tratava-se de um período em que as prisões arbitrárias faziam parte da normalidade brasileira. Não obstante ao fim das guerrilhas,
os militares continuavam enxergando subversivos em todos os lados (JESUS, 2009). E foi neste cenário que, em outubro de 1975,
o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura foi intimado a comparecer no Destacamento de Operações e
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo. Após ter sido submetido a inúmeras lesões
corporais, Herzog sairia morto daquele ambiente em que as violências eram impetradas em nome do Estado. A versão oficial, no
entanto, acerca da causa da morte indicava que o jornalista havia cometido suicídio por enforcamento. Em hipótese alguma o
Governo Militar poderia, naquela época, admitir a prática da tortura. Tampouco faria referência à repressão, pelo uso da força e da
humilhação, aos que se eram contrários a ditadura: A morte de Vladimir Herzog ocorreu em um contexto em que muitos jornalis-
tas foram presos e torturados. Como os grupos armados de esquerda haviam sido eliminados, o foco do aparato repressivo militar
voltou-se para todos os que defendiam o fim da ditadura. Para Frota, o exército precisava continuar a ação energética que vinha
adotando, desde a edição do AI-5, para evitar que a situação voltasse àquela existente, em 1964, que motivara o golpe. (TAMAS,
216
Na medida em que o Estado regressa ao passado pretendendo restituir a verdade, alterar os
dados inverídicos, se identifica a existência do direito à memória no Brasil. Quando, impulsiona-
da pela Comissão da Verdade, a justiça determinou que no atestado de óbito de Vladimir Herzog
passa-se a constar como causa da morte:lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório
nas dependências do segundo Exército DOI-Codi, pode-se verificar a aplicabilidade do direito à
memória no Brasil.
No mais, poderiam aqui ser apontadas outras consequências nascidas da constatação de que
o direito à memória está alicerçado como premissa fundamental do Estado Brasileiro. A hipótese
deste estudo é que a mais importante das consequências encontra seu respaldo na abordagem de
Hannah Arendt acerca do direito à memória. Por tal razão, este texto encerra com a observação,
ainda que breve, acercada contribuição da autora para o tema alvo deste estudo.

5. O DIREITO À MEMÓRIA A PARTIR DE HANNA ARENDT: CONSIDERAÇÕES


Assumir que um Estado é amparado pelo Direito à memória, implica no dever de respon-
sabilidade perante o passado (AMORIM, 2008). Afirmar que o direito à memóriaestá previsto na
Constituição de 1988, como um direito fundamental, significa admitir que o Estado Democrático
Brasileiro deve adotar posturas que se coadunam com seus princípios. Assim, nascem desta afir-
mação: a declaração de direitos, a condenação ao pagamento de indenizações e, possivelmente, a
condenação dos envolvidos em crimes que afrontaram a humanidade.
No entanto, na observação das constatações de Arendt possível uma compreensão ainda
mais profunda acerca do direito à memória. É a memória que “garante o acabamento necessário
para que todo o acontecimento vivido possa transmitir seu significado” (ARENDT, 1997, p. 31).
Nesta senda, uma das maiores contribuições da consolidação da memória está presente na iden-
tidade cultural do país, que se forma a partir da reconstrução do passado.
No dever de não esquecimento da história, surge um legado para as gerações futuras. E,
nesta ótica, aproximar-se do passado permite a interrupção das violações que podem se perpetuar
no tempo:

Por meio das ações (estas que não podem ter um fim predeterminado) os eventos
interrompem os processos históricos e, na concepção de Arendt, só podem ser do-
tados de algum significado na medida em que eles se distanciam do passado, sendo
descobertos pelo historiador que, através do exercício do pensamento, enfatiza os
feitos singulares e as experiências humanas significativas (MAGALHÃES, 2008, p.
78).

Para Arendt, aproximar-se do passado é exercer o pensamento e, neste sentido, romper com
a lacuna entre o passado e o presente. Sob este prisma, salienta a autora que uma sociedade torna-
se cúmplice da demência totalitária do Estado na medida em que partilha as mentiras do sistema
não por engano, mas pela recusaem perscrutar a verdade dos fatos (HSIAO, 2007). Foi justamente

2009, p.167).O Estado não estava disposto a admitir a verdadeira causa da morte de Herzog. Afirmar que Herzog tinha cometido
suicídio era uma postura cômoda e que atribuía à vítima a responsabilidade por sua morte. Assim, foi mantida a versão de que a
morte foi causada por vontade de Vladimir Herzog e, naturalmente, no registro de seu óbito fez-se constar como causa da morte:
enforcamento por asfixia.Com o passar do tempo, pareceu que a questão estava encerrada. De fato, com a inércia do Estado,
“criou-se um fosso entre o passado e o futuro, como se para compor o futuro fosse preciso esquecer o passado” (ROLLEMBERG,
2006, p. 85). Em consequência, a discussão acerca da causa da morte de Herzog ficou suspensa até meados de 2012.Com a sen-
tença que determinou a alteração de dados públicos, ocorridos em 1975, restou vencida a frágil ideia de que é preciso virar a pá-
gina da história da ditadura militar brasileira sem que se tome conhecimento das violações cometidas em nome do
Estado. O Estado Democrático deve se sobrepor a ideia de esquecimento. Está intrínseca na democracia a oposição à
supressão da verdade no que toca às violações aos direitos humanos ocorridos no passado. O esquecimento dos cri-
mes, dos fatos e das violações cometidas no passado, foi o resquício do regime totalitáriobrasileiro. A utilização equi-
vocada da anistia, enquanto um autoperdão, uma espécie de amnésia histórica imposta, em nome de uma alegada
pacificação social, deixou no limbo da impunidade determinados delitos (PERRONE, 2002). Foram construídas nar-
rativas falsas – aqui consistentes na causa morte de Herzog – na tentativa de se manipular a verdade.

217
neste sentido que a sociedade alemã demonstrou a incapacidade de pensar, porquanto comparti-
lhou, sem barreiras, com o holocausto levado a efeito pelo governo hitlerista.
No caso emblemático do julgamento de Eichmann, constata-se que as contribuições para
àquele Estado escaparam dos limites individuais. Naquele espaço jurídico estava presente a his-
tória de todo um Estado. Diante da figura do acusado, dos seus relatos, observa-se que o Estado
pode, erroneamente, legitimar afrontas aos direitos humanos:

Talvez por sentir-se escudado na noção de indeterminação da lei Adolf Eichmann


tinha repetido, tantas vezes, que as palavras do Führer tinham força de lei. Arendt
observa que Eichmann, bem menos inteligente que seus superiores, sem nenhuma
formação, percebeu, ao menos vagamente, que não uma ordem, mas a própria lei
os havia transformado todos em criminosos (RODRIGUES, 2006, p. 167).

Ao apontar a fragilidade do acusado, Arendt aponta, inclusive, para a sociedade nele refle-
tida. Neste aspecto, para Arendt (2011) a massa assassina é assustadoramente normal, o seu pe-
rigo reside na incapacidade de pensar. Naquele julgamento “O que está em evidencia é a própria
ação moral engendrada na realidade cotidiana” (RODRIGUES, 2006, p.162). Portanto, quando o
Direito propicia o regresso ao passado, são traçadas a identidade dos indivíduos, do pensamento
coletivo e, naturalmente, do Estado.
Quando Arendt relata o julgamento do ex-oficial nazista Adolf Eichmann e se defronta com a
incapacidade de obstar as atrocidades determinadas pelo Estado, ela passa a analisar a banalidade
do mal. Em Arendt,“há um arquivo vivo, Adolf Eichmann, Mas, encontram-se nesse arquivo, os
entraves de suas próprias negativas e subterfúgios. A sua volta dezenas de testemunhas, também
arquivos vivos, concorrem para a complementação de uma história” (RODRIGUES, 2006, p.184).
Os relatos de Eichmann fizeram emergir a identidade de tantos. As suas escolhas se confun-
diram com as escolhas do Estado. E, no regresso ao passado, consubstanciado no seu julgamento,
verificam-se os traços da humanidade.
Arendt nota que o homem contemporâneo vive em um momento em que a história e a na-
tureza tornam-se alheias a ele. A essência do homem já não pode ser compreendida em termos de
uma ou de outra, mas em termos de humanidade. Assim, identificando no homem a humanidade,
o direito a ter direitos ou o direito de cada indivíduo pertencer a humanidade, devem ser garanti-
dos pela própria humanidade (ARENDT, 2004).
É nesta seara que o direito à memória se deflagra como um direito fundamental, uma vez
que o seu cerne não está ligado a um indivíduo, a um episódio isolado. De outra esfera, trata-se
de um direito que condiz com a própria humanidade. E, em Arendt, é a capacidade de pensar que
pode afastar a banalidade do mal:

Eichmann é um excelente exemplo de alguém que desistiu de compreender o sen-


tido de suas ações no mundo. Não pensar é também negar a si a responsabilidade
pelos seus atos, e é justamente quando não refletimos sobre o mal que podemos
realizá-lo, quando anestesiamos a criticidade (FERRAZ, 2009, p. 11).

O conhecimento do passado e a apropriação do direito à memória devem orientar o Estado


Democrático. E, no dizer de Arendt, somente a capacidade de pensar pode oprimir os riscos ad-
vindos dos regimes totalitários. Foi justamente na incapacidade de pensar dos indivíduos que se
deflagrou um dos maiores holocaustos da humanidade.

Arendt não acredita que exista um Eichmann em cada um de nós, mas suas ca-
racterísticas é que se multiplicariam em sociedades de massa, inclinadas ao não
exercício do pensamento e à falta de profundidade. Quanto maior a falta de pro-
fundidade, maior seria a suscetibilidade ao cometimento do mal, e, no momento
da segunda grande guerra, teria sido a sociedade de massa nazista, conquistada
por meio da propaganda ideológica, que possibilitou a banalização do mal naquelas

218
proporções (FERRAZ, 2009, p. 9).

E, se o homem deve ser compreendido na sua totalidade, na concepção de Arendt é na me-


mória coletiva que se estabelece a identidade da humanidade:

O espaço público-político, na concepção de Arendt, é o espaço correspondente à


polis grega. É o “espaço de imperecibilidade”, isto é, o espaço onde os homens jun-
tos poderiam estabelecer a memória eterna de suas ações e de inspirar às gerações
futuras a admiração, fazer parte no devir em forma de lembrança. Esse espaço se
constitui enquanto espaço de aparência permitindo que os atos e palavras ganhas-
sem permanência na lembrança da posteridade (MAGALHÃES, 2008, p. 93).

A memória tem seu locus consubstanciado no espaço público, o espaço por excelência do
exercício da política, que preserva a ação do esquecimento. Da mesma forma, a construção do
mundo comum, portanto, a construção da história, depende da memória.
Em suma, o Estado deve se preocupar em estabelecer o direito à memória. A humanidade
inerente a cada indivíduo deve ser consolidada através do direito à memória. E, é pela égide do
conhecimento, da investigação do passado, que se formará a identidade do estado brasileiro:

Transmitir conhecimentos é imprescindível, mas educar para o pensamento – com


abertura, imprecisão e sem garantias – parece ser uma urgência para os nossos tem-
pos difíceis. Apesar de a atividade do pensamento lidar com o invisível e ser fora da
ordem, talvez ela seja a possibilidade de favorecer um ambiente que nos proteja da
banalidade do mal; talvez seja a possibilidade de construção de um ambiente des-
favorável para as intolerâncias assassinas de tempos tão sombrios. Educar na pers-
pectiva do pensamento, então, seria despertar a si mesmo e os outros do sono de
irreflexão, abortando nossas opiniões vazias e irrefletidas. Educar para o pensamen-
to seria uma atitude consciente de abrir nossas janelas conceituais para o vento do
pensamento. Quiçá sejamos capazes de formar mais Sócrates do que Eichmanns,
mas com uma única convicção: educar para e no pensamento é colocar-se no cam-
po das possibilidades, e não das certezas (ANDRADE, 2008, p. 124).

Não se pode pensar em Estado Democrático sem que se eduque na perspectiva do pensa-
mento. E este passo só será dado na medida em que seja possibilitada a reconstrução do passado.
“Arendt nos legou uma herança sem testamento, para que olhemos para o passado e captemos os
fatos históricos, os ensinamentos para que vivamos num mundo melhor, dando nossa parcela de
contribuição neste, pois a história se repete” (HSIAO, 2007, p. 218).
Assim, a construção do direito à memória abarca responsabilidades do Estado. Revela o
pensamento coletivo. E, se não garante um futuro melhor, possibilita um presente mais autêntico,
democrático e verdadeiro.

6. CONSIDERAÇÕS FINAIS
O estudo de uma das obras mais polêmicas da autora Hannah Arendt propiciou a constata-
ção de que nunca é tarde para se reconhecer as infrações aos direitos humanos. Os crimes que
afrontam a humanidade fogem aos interesses da suposta vítima e, enquanto penderem de respon-
sabilização, estarão perpetuando a ofensa à humanidade. Os crimes levados a efeito em nome do
Estado, por sua vez, indicam o risco advindo da incapacidade do sujeito em obstar, se consolidan-
do naquilo que a autora denomina de banalidade do mal.
É justamente neste ângulo que a figura de Eichmann representa inúmeros agentes do Es-
tado que foram incapazes de reconhecer a dimensão dos seus atos. Quer parecer que, por esta
razão, o direito à memória deve aproximar-se desta mácula a fim se ser coerente com o princípio
democrático amparado pela Constituição de 1988.

219
De fato, o indivíduo está atrelado ao Estado e a sua identidade, inúmeras vezes, se confun-
de com a identidade do próprio Estado. O brevíssimo estudo acerca do julgamento de Eichmann
trouxe à tona a constatação de que o indivíduo reflete a vontade do Estado e o pensamento coletivo
se traduz nas suas ações. Nesta senda, ao tempo em que se fala em direito à memória, necessaria-
mente, está-se falando em um direito pertinente ao homem, ao Estado e à humanidade.
Diante da abertura principiológica da Constituição de 1988, este estudo constatou que o
direito à memória está previsto no ordenamento jurídico pátrio. Ademais, a concessão de anistia
póstuma a João Cândido e a alteração do registro de óbito de Vladimir Herzog indicam que o di-
reito à memória está sendo aplicado pelo Estado brasileiro. Portanto, verifica-se que o direito à
memória está além da previsão moral ou ético.
O direito, notadamente no que toca aos direitos humanos, há muito rompeu com os limites
territoriais, no entanto, ainda resiste em romper com os limites temporais. A contagem do tempo,
diriam os filósofos e os matemáticos, é uma invenção humana, e, se assim o for, a história do Es-
tado desconhece o início e o fim. O estudo do direito à memória faz emergir a conclusão de que
um Estado é formado pelo seu passado, e que, adentrar no pretérito nada mais é do que assumir
o presente com a responsabilidade indissociável da democracia.
Por derradeiro, constata-se que as leituras e releituras necessárias à elaboração deste es-
tudo fazem crer que o tema abordado, sem sombra de dúvidas, não se encerra nos limites deste
trabalho. O tempo previsto para a realização da pesquisa revelou-se insuficiente e, neste trajeto,
fizeram-se necessários recortes, abreviações, ponderações. No entanto, tal aspecto não retira a
profundidade deste estudo, apenas indica o quanto o direito à memória é amplo, é relevante, e
merece, pelas portas da academia, ser amadurecido.
De fato, seria uma incongruência a tentativa de esgotar o estudo do direito à memória nas
páginas desta pesquisa. O reconhecimento do direito à memória, como um direito fundamental
do Estado brasileiro, se traduz na constatação de que as escolhas do Estado não dizem respeito
tão somente à sua história, são pertinentes aos seus indivíduos e, fundamentalmente, não estão
sujeitas ao esquecimento.Em suma, nunca foi pretensão desta monografia limitar um direito que,
dada a sua magnitude, não deve ter um alfa ou um ômega.
Este trabalho se encerra com a certeza de que, se todo passo deve ser dado com responsabili-
dade, ainda mais prudentes devem ser aqueles percorridos em nome do Estado. Os direitos huma-
nos se dissociam da ideia de passado, presente ou futuro. Por esta razão, o Estado possui o dever
para com os seus de - ao assumir seus erros, ao reconhecer suas responsabilidades, ao regressar ao
passado de forma autêntica -, garantir a democracia, garantir o acesso à informação e, mais além,
constituir o direito à memória do Brasil e da própria humanidade refletida nasescolhas e nos atos
do Estado Brasileiro de hoje e de outrora.

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222
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: DESA-
FIOS DA LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO E DA LÓGICA “WIKILEAKS”
NA RESTAURAÇÃO DAS DEMOCRACIAS EM TRANSIÇÃO

Alexandre Henrique Tavares Saldanha1

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho parte de uma questão geral a respeito de haver ou não limites para o direito à
informação quando se trata de documentos estatais ou documentos sob a tutela do poder público.
O debate versa sobre se o direito do cidadão de ter acesso à informação restringe-se a informações
pessoais, individuais e não-estatais, ou se não há documento estatal sigiloso e estes devem ser
acessados por qualquer interessado, instituição ou pessoa isolada.
Esta discussão torna-se ainda mais complexa quando contextualizada na denominada era
da informação, também chamada sociedade da informação, uma vez que os comportamentos
típicos da cibercultura estão normalmente associados com valores como transparência, abertura
de informações, livre acesso a cultura e ideias etc. Em outros termos, é possível argumentar que
a cibercultura, como característica de uma época ou como tendência de comportamento, redi-
mensiona o direito fundamental da liberdade de comunicação, ou ao menos propõe uma reanálise
diante de novos fenômenos e novos atores sociais, tais como a rede mundial de computadores, as
redes sociais e o compartilhamento de material digital.
Especificando ainda mais a abordagem realizada neste trabalho, a proposta é voltada para
analisar o direito à informação na cibercultura nas democracias em transição. Em breves termos,
as democracias transicionais ocorrem em Estados que, em passado recente, tiveram experiências

1 Bacharel em Direito pela UNICAP. Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor das Facul-
dades Integradas Barros Melo em Olinda/PE. Advogado e Consultor Jurídico.
223
com governos ditatoriais e, consequentemente, um histórico de censura, perseguições políticas,
asilos e outras práticas que terminam por fazer parte da formação cultural da nação, mas não
possuem todos os seus contornos devidamente delimitados. O tema, porém, será abordado em seu
aspecto generalizado, sem analisar especificamente experiências isoladas como as da Alemanha,
África, América Latina etc.
Em Estados com esta experiência foram formadas espécies de comissões cujo objetivo é o
de buscar informações que retratem fatos ocorridos no contexto do governo ditatorial. Tudo isto
como uma espécie de “jornada pela verdade” dos fatos. Daí então o retorno à questão de se os
documentos estatais devem ser liberados para análise, se ainda podemos falar em sigilos oficiais
nos idos da segunda década do século 21 ou se a cibercultura veio com a proposta de ampliar os
limites do direito fundamental de acesso às informações.

2. CIBERCULTURA E LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO


Neste idos de terceiro milênio, convive-se numa época de acesso à quantidade inigualável de
informações em comparação a contextos históricos passados, fazendo, inclusive, com que alguns
autores nomeiem o tempo presente como a “era da informação”, a da “sociedade informacional”
ou qualquer expressão semelhante, que represente o redimensionamento e aumento da comple-
xidade do acesso à cultura.
Esta busca por informação, ou busca pelo acesso a ela, é uma característica da chamada ci-
bercultura, sendo esta uma expressão que representa os impactos socio-culturais das tecnologias
digitais na sociedade. Pierre Lévy usa a expressão “dilúvio de informação” na contemporaneidade,
defendendo inclusive que trata-se de um caminho sem volta, característica da qual os tradicionais
institutos sociais devem ficar acostumados e assim saber conviver (LÉVY, 2010, p. 163). Certa-
mente, um dos atores sociais que mais precisa se adequar às características da cibercultura é o or-
denamento jurídico, acostumado com pretensões à estabilidade e controle, que deve então convi-
ver com algo bastante efêmero como as alterações comportamentais nesta “ciber-era”. A ausência
de estabilidade inerente ao domínio da virtualização das relações sociais e digitalização da criação
artística aumenta consideravelmente a dificuldade de compreensão dos impactos causados pelas
tecnologias da informação (LÉVY, 2010, p. 24).
Dentre as tensões do ordenamento jurídico em se compatibilizar com a cibercultura, pontos
de alta complexidade residem no controle das mídias, no acesso à informação e na tutela da pro-
priedade intelectual no meio digital. A relação conflituosa entre evolução do acesso à informação,
bem como a influência das mídias na divulgação de informações, e a preservação de direitos in-
dividuais ou coletivos constitucionalmente garantidos, vem sendo ponto de preocupação na con-
temporaneidade (VENERAL, 2012, 66). Hoje, cada pessoa tem direito a acessar a rede mundial de
computadores, recebendo a oportunidade de entrar em contato com um mundo de informações e
bens culturais incabíveis numa biblioteca física. Considerando que o acesso aos meios de acesso
à rede (microcomputadores, tablets, smartphones etc.) cresce consideravelmente de importância,
teórica e prática, nos comportamentos sociais, este mundo de informações passa a ser acessível
em qualquer hora e em qualquer local. Daí então a questão: é possível especificar quais são os
limites para o acesso a informações?
Inicialmente era mencionada apenas a liberdade de expressão como direito fundamental
que garante a livre manifestação do pensamento, das ideias, artes etc. Porém, o desenrolar dos
comportamentos sociais e das revoluções tecnológicas provocaram releituras e derivações deste
direito fundamental no intuito de compatibiliza-lo com novas exigências e circunstâncias. Daí hoje
falar-se em liberdade de comunicação e liberdade de informação, além da de expressão. E ainda
há quem use a expressão liberdade de expressão e comunicação “para representar o conjunto dos
direitos, liberdades e garantias relacionadas à difusão das ideias e das notícias” (FARIAS, 2007, p.
156). Apesar do argumento de juntar as expressões ser interessante, pois no fundo é possível achar
uma intersecção entre elas, é típico do trabalho do Direito diferenciar expressões próximas para
poder achar aplicações distintas mais facilmente.
Sendo assim, quando fala-se em liberdade de expressão quer se apresentar o direito que to-
dos têm de livremente manifestar suas ideias, pensamentos, posições religiosas, ideológicas etc., o
que é diferente da liberdade de comunicação, concedendo esta o direito de divulgar informações
224
tais como fatos e notícias. Ainda assim a questão não é resolvida, uma vez que a liberdade de co-
municação envolve sujeitos diversos e uma diversidade de direitos em consequência. Evidente
que a comunicação propriamente dita não é sujeito de direitos, mas a diferença entre o emissor do
objeto comunicado e o receptor da comunicação repercute em dimensões diferentes desta liber-
dade, daí surgindo a liberdade de informação também como direito fundamental.
Basicamente, a liberdade de informação é uma decorrência da liberdade de comunicação,
porém dando ênfase aos direitos fundamentais de informar algo, de se informar e de ser infor-
mado (FARIAS, 2007, p. 172). Destes, o que interessa para a proposta sugerida neste trabalho é a
última das dimensões deste direito, a liberdade para ser informado.
Esta dimensão do direito à informação não é novidade desde que na própria declaração
universal dos direitos humanos, em seu artigo 19, já há uma manifesta previsão da liberdade de
receber informações por quaisquer meios e sem limitações. A questão está em associar informação
com exercício de cidadania, com o direito de todos serem informados sobre o que está acontecen-
do na sociedade, sobre fatos relevantes e, principalmente sobre conteúdos que transcendam as
esferas do público e do privado, e atinja o nível de interesse geral (FARIAS, 2007, p. 175). Uma
vez informados, os cidadãos terão condições de melhor participar da sociedade civil, de melhor
interagir com o poder público e, de certa forma, melhor compreender as próprias características
culturais de sua sociedade.
Diante disto, torna-se possível criar uma linha de raciocínio e defender que no atual pano-
rama cultural trazido pela cibercultura, ou pela sociedade da informação, o direito fundamental
de ser informado, ou de ter acesso a informações, possui mais meios de encontrar plenitude de
eficácia. Em outros termos, pela quantidade de meios disponíveis para acessar redes infindáveis
de informação, o direito de ser informado pode ser melhor satisfeito do que em outras circunstân-
cias nas quais os indivíduos não possuíam instrumentos tecnológicos suficientes para buscar tal
acesso. Resta ainda a indagação quanto ao limite das informações, ou, por outro ângulo, sobre a
possibilidade de alguém, indivíduo ou instituição, limitar acesso a informações.
Quanto a este ponto, diante dos argumentos de que a declaração universal dos direitos hu-
manos prevê o direito de obter informações, de que os comportamentos sociais da cibercultura
se voltam para acesso a informações e de que tais informações são necessárias para criação de
cidadania e identificação de traços culturais, soa fora de razoabilidade qualquer limitação a in-
formações de natureza pública. Informações quanto às vidas privadas são protegidas pelo próprio
direito fundamental de privacidade, o que não pode ser relativizado por mais “informacional” que
seja a sociedade contemporânea. Porém, quanto a informações públicas, estatais ou não, estas
não devem sofrer quaisquer qualidades de bloqueios de acesso, por representarem ofensa a direito
fundamental expresso. Em época de comunicação de massa, mídias oficiais e não oficiais, rede
mundial de computadores e informações, qualquer pretensão normativa de inibir o acesso a infor-
mações será aclamada inconstitucional por força da própria sociedade civil (VENERAL, 2012, p.
73). Resta analisar se em qualquer contexto democrático, ou em qualquer dimensão da expressão
democracia, esta afirmativa permanece podendo ser sustentada, o que passa a ser analisado.

3. DOCUMENTOS ESTATAIS EM JUSTIÇAS DE TRANSIÇÃO


A expressão justiça de transição é própria de Estados que sofreram recentes experiências
com regimes autoritários e ditatoriais. Tais Estados, hoje organizados como democracias, lidam
com a dúvida sobre como lidar com o passado recente, mais especificamente, como lidar com a
memória do regime ditatorial e fortalecer as instituições democráticas. É comum defender a ideia
de que é necessário enfrentar os desafios de como lidar com as consequências do regime autoritá-
rio e com seus responsáveis, porém não há uniformidade quando a questão se trata do como isto
será feito (GALINDO, 2012, 199). Evidente que pontos como responsabilidade dos responsáveis
pelo regime, punição por crimes contra direitos humanos, resgate de informações estatais devem
ser enfrentados por uma questão de “satisfação histórica”, mas também por valores associados à
democracia, tais como transparência, verdade e senso comum popular. Porém, as medidas, ma-
nobras e instrumentos a serem usados para alcance de tais fins variarão conformes os contextos
socio-político-culturais de determinado Estado.
Apontam-se ao menos quatro dimensões ou fases que devem estar presentes nos processos
225
de justiça de transição: a reparação, a informação da verdade e construção de uma memória, a
regularização da justiça institucionalizada e a garantia de igualdade perante a lei, e por fim a re-
forma das instituições violadoras de direitos humanos inerentes aos regimes autoritários (ABRÃO
e TORELLY, 2011, p. 215). Destes, para os fins deste trabalho e da sua proposta de analisar a li-
berdade de informação, será melhor analisada a questão do resgate de informações que criem uma
sensação de verdade sobre fatos ocorridos no tempo do governo totalizante, bem como o acesso a
informações necessárias para sedimentação de uma memória da época para construção de uma
identidade cultural da nação em democracia de transição.
Por mais que haja dificuldades em conceituar justiça de transição e traçar objetivamente
suas características, há uma compreensão mínima de quais seriam providências mínimas para
alcance dos objetivos que estão ao fundo das acima mencionadas fases do processo de transição.
Dentre elas há a necessidade de esclarecimentos de verdades históricas, o que traz a ideia da ne-
cessária abertura de documentos oficiais produzidos no período, e a necessidade de criar espaços
que mantenham a memória da fase autoritarista para que futuras gerações saibam do ocorrido
(GALINDO, 2012, p. 204). Já com esta breve abordagem sobre as providências da justiça de tran-
sição percebe-se o quanto é necessário o acesso irrestrito a documentos e informações sobre fatos
ocorridos na circunstância do poder autoritário.
Alguns exemplos de medidas práticas podem ser identificadas como providências para infor-
mação e memória em estados que possuem contexto de justiça de transição. Exemplos como as
audiências públicas realizadas na África do Sul e como o memorial do Holocausto na Alemanha
concretizam estas providências. No Brasil, medidas também vêm sendo tomadas para alcance das
exigências democráticas associadas como o reconhecimento e superação das violações a direitos
humanos ocorridas na oportunidade do governo militar autoritário. No que diz respeito ao forne-
cimento da verdade e construção de memória, alguns avanços são identificados na democracia
brasileira, projetos do ministério da justiça, audiências públicas, financiamento de projetos e ações
da sociedade civil e publicação de obras sobre a memória da época ditatorial são exemplos de me-
didas de justiça de transição brasileira (ABRÃO e TORELLY, 2011, p. 224).
Tais medidas expressam a ideia de que a justiça de transição no Brasil está em ação e com
força suficiente para produzir avanços no que diz respeito a políticas de reparação, mas, isto não
significa que está tudo indo bem e que não haja pontos a serem enfrentados, tais como o forne-
cimento de narrativa do poder público de fatos da época sem quaisquer desvios (ABRÃO e TO-
RELLY, 2011, p. 230). Quanto a este ponto os avanços são bastante tímidos, por mais que tenham
sido criadas comissões associadas com a verdade, uma vez que o poder público silencia quanto a
alguns fatos, às vezes arguindo pelo perecimento de documentos, ou pela sua natureza sigilosa, o
que representa um argumento no mínimo incoerente considerando os fins em jogo.
Práticas como indenizações reparatórias por violações a direitos humanos e como conces-
sões de anistias retoricamente consideradas sociais e humanistas camuflam uma espécie de “es-
quecimento oficial” (GALINDO, 2012, p. 200) do poder público quanto à responsabilidade de
conceder informações necessárias para reconstrução da memória da época. Este esquecimento,
aparentemente bem mais proposital do que fortuito, em si já é uma violação de direitos humanos,
uma vez lembrado do direito humano à liberdade de informação, já acima discutida. Violação esta
que se torna ainda mais grave se inserida no contexto da justiça de transição.
Em outros termos. Havendo o reconhecimento de uma liberdade de informação como di-
reito humano, o poder público fica obrigado a fornecer informações de natureza pública seja qual
for o contexto da exigência. Tratando-se de Estado em justiça de transição, este direito de ser
informado fica redimensionado, ganhando uma força possivelmente superior, considerando as
características e fases da justiça de transição. E se ainda for levado em conta que vive-se em pleno
século 21, numa sociedade taxada de informacional, a ideia de sigilo estatal e não fornecimento
de informações soa ao menos anacrônica e inadequada aos parâmetros da cibercultura. Por fim,
resta associar estes temas (direitos à informação e cibercultura) com características da justiça de
transição, no intuito de arguir pela total transparência dos dados estatais, não somente por satisfa-
ção de um direito, mas também para restauração cabível nas sociedades que vivenciaram recentes
experiências com regimes autoritários. O que passa a ser feito no ponto a seguir.

4. FORNECIMENTO DE INFORMAÇÕES EM ESTADOS COM JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA


226
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Em tempos de digitalização das interelações sociais e da inclusão da máquina de computa-
dor como ator social, a governança sofre efeitos da cibernética no sentido de dever se adaptar a
novos comportamentos e exigências sociais. O espaço virtual (ou ciberespaço) ao mesmo tempo
que permite acesso a quantidades infindáveis de informação útil para conhecimento, pesquisa e
cultura, permite também uma espécie de maior transparência nas relações pessoais entre indiví-
duo e indivíduo, e entre indivíduo e poder público. Entrando numa rede social, por exemplo, qual-
quer pessoa tem acesso a informações sobre quaisquer outros, seja sobre cotidiano, preferências,
família etc. Esta transparência levada para as atividades das instituições públicas cria uma nova
dimensão para a relação entre público e privado, uma vez que as força a trabalhar com a hipótese
de livre acesso a informações e dados estatais.
Aparentemente frias, as ações praticadas no ciberespaço podem refletir fortes emoções e
clamores, uma vez que o virtual não exclui responsabilidades e opiniões individuais, nem se torna
isento de julgamentos pela opinião pública (LEVY, 201, p. 130). Exigências públicas por verdades
e transparência podem ser instrumentalizadas pela internet e rede mundial de computadores,
demonstrando, por exemplo, que cidadãos estão insatisfeitos com determinadas políticas públicas,
ou com posturas dos representantes do poder a respeito de pontos diversos. Os princípios de pu-
blicidade que regem a administração pública fazem com que a rede virtual funcione como canal
de comunicação que serve para divulgação de fatos realizados pelo Estado, bem como para esta-
belecer contato direto entre este e cidadãos (PINHEIRO, 2009, p. 216). Isto torna a tecnologia da
informação uma interessante aliada na reivindicação de direitos pela sociedade civil e seu controle
do que vem sendo feito pelo poder público, pois a digitalização dos dados traz maior transparência
e acesso (PINHEIRO, 2009, p. 217).
Independente de Estados possuírem características de democracia em transição, a ciber-
cultura e a transparência própria de seus comportamentos trazem efeitos significativos na forma
como poder público e sociedade civil “se examinam”. Explicando melhor. Praticamente, hoje to-
dos os dados de uma pessoa estão armazenados em bancos de dados digitai, não havendo controle
pessoal de quem tem e quem não tem acesso a tais informações. O que facilita ao Estado buscar
informações numa investigação criminal, buscando-se um exemplo que possa ser visto sob uma
ótica positiva. Por outro lado, a “governança digital” é capaz de promover para a sociedade civil
acesso a informações estatais. O problema está nas instituições estatais fornecerem ou não os
dados.
Esta discussão encontra-se concretizada em casos envolvendo, por exemplo, o Wikileaks,
que é uma “organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, que publica, em sua
página, postagens de fontes anônimas, documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de
governos ou empresas, sobre assuntos sensíveis”2. Esta organização promoveu, e ainda promove,
alterações na forma como se interpreta o conceito de publicidade das informações sobre o poder
público. Sem contar a alteração na própria forma como a mídia se relaciona com os dados estatais.
Palavras de jornalistas que cobriram o início das atividades da organização deixam bem claro que:

O desafio que o Wikileaks representou para os veículos de comunicação de modo


geral (sem falar nos Estados, empresas ou corporações globais sujeitos ao escrutínio
indesejado) não era confortável. O instinto inicial do site era publicar quase tudo e,
no início, eles estavam profundamente desconfiados de qualquer contato entre seus
colegas nos jornais e qualquer tipo de autoridade. Falar com o Departamento de Es-
tado, o Pentágono ou a Casa Branca, como o The New York Times fez antes de cada
etapa da publicação, era um campo minado em termos de manutenção de uma
relação tranquila com o Wikileaks. Na época da publicação do Cablegate, o próprio
Assange, consciente dos riscos de causar danos não intencionais aos dissidentes ou
outras fontes, ofereceu-se para falar com o Departamento de Estado – oferta que foi
recusada (LEIGH, 2011, p. 21)

2 Esta definição é apresentada pela Wikipédia quando é colocado o próprio verbete “Wikileaks”.
227
Apenas para melhor ilustrar como as práticas do Wikileaks estão relacionadas com as discus-
sões a respeito do direito fundamental de liberdade de informação na era digital, pede-se a licença
de transcrever mais o seguinte trecho:

De modo geral, parece-me que o Wikileaks e organizações semelhantes são admi-


ráveis em sua visão obstinada da transparência e da abertura. Notável é como o
céu não caiu, apesar da enorme quantidade de informação liberada durante meses.
Os inimigos do Wikileaks fizeram repetidas declarações sobre os danos causados
pela divulgação do material. A julgar pela resposta que tivemos de países sem as
vantagens de uma imprensa livre, houve uma considerável sede pelas informações
dos telegramas – uma fome de conhecimento, que contrastava com os ocasionais
bocejos bem informados de pessoas sofisticadas das metrópoles que insistiam em
dizer que os telegramas não traziam novidades. Em vez de uma reação instintiva
por mais sigilo, essa poderia ser a oportunidade para refletir sobre as vantagens e
desvantagens da transparência forçada (LEIGH, 2011, p. 22)

A lógica que está por trás do Wikileaks, a de transparecer ao público geral informações dos
Estados e seus governos, pode ser transferida ao contexto das justiças de transição para melhor
alcance das etapas da restauração democrática.
Como visto, nos Estados em democracia de transição um dos elementos essenciais para
restauração e reparação é a informação, seja para uma questão de satisfação da verdade, seja para
construção de uma memória fiel que seja inserida nos traços culturais da sociedade.
No processo de transição no Brasil, como exemplo, vem sendo possível revelar verdades
históricas tendo acesso a documentos, registros públicos, e realizando debates públicos, havendo,
inclusive, sido criada uma comissão responsável pela busca das verdades (ABRÃO e TORELLY,
2011, p. 242). Há de se reparar como as ferramentas e comportamentos da cibercultura podem
reforçar bastante o alcance a tais informações em busca de uma narrativa credível dos fatos ocor-
ridos. Por meio da rede é possível promover uma interação social ao ponto de permitir que cada
cidadão narre suas experiências com o governo autoritário, narre seu conhecimento dos fatos,
bem como é possível que a sociedade civil por meio da rede pressione os responsáveis e autorida-
des que trabalham nesta etapa de restauração.
A maior interação da sociedade no processo de transição encontra justificativa já em âmbito
moral, por permitir maior amplitude nos debates e promover participação na solução de divergên-
cias, sem que os temas fiquem sendo resolvidos apenas por autoridades competentes (BAGGIO,
2011, p. 259). Se já é possível justificar a participação da sociedade na transição democrática do
ponto de vista moral, o direito humano fundamental de liberdade de informação apresenta justi-
ficativas jurídicas para a liberação de documentos, registro e quaisquer informações necessárias
para a restauração da memória e identidade cultural. E ainda, a transparência no acesso às infor-
mações democratiza o próprio processo. Ou melhor:

É exatamente disso que se trata a luta por reconhecimento, principalmente, no


âmbito da comunidade de valores. Enquanto houver espaço para a reversão de de-
terminadas realidades, é preciso tornar o mais público possível os valores éticos en-
volvidos nos debates sobre a justiça de transição para que a disputa valorativa junto
à sociedade torne-se uma possibilidade concreta de progresso moral e, consequen-
temente, de melhora das relações sociais, o que, em matéria de justiça transicional
no Brasil, significa a melhora das condições democráticas em sociedade (BAGGIO,
2011, p. 275).

A participação da sociedade civil não somente é útil para a justiça de transição, ao ponto que
fornece elementos de informação essenciais para a construção de um retrato fidedigno de uma
época, como também é eficaz como ferramenta de pressão.
Se o que está em questão é a verdade de fatos necessários para criar uma memória de uma
época que deve estar inserida na identidade cultural de um povo, a sociedade deve pressionar não

228
somente pela sua participação, mas pela própria atuação das comissões e autoridades competen-
tes para tal. Por mais que seja bastante complicado falar em identidade cultural em tempos de
pós-modernidade, o resgate de fatos que caracterizam uma nação faz parte de sua identificação
(HALL, 2011, p. 47). As identidades culturais são delineadas por meio das identidades nacionais,
que por sua vez são formadas por representações de fatos (HALL, 2011, p. 49), daí a relação entre
a restauração de uma identidade com a transparência e com a participação da sociedade neste
processo.
É preciso então oferecer meios para que os cidadãos participem da transição, não somente
confiando naqueles que compõem as comissões, mas tendo acesso às discussões travadas sobre
pontos complexos e informações analisadas em busca das verdades. E a informática, o ciberes-
paço e algumas práticas sociais contemporâneas podem servir como importantes ferramentas de
eficácia da transição, bem como a lógica apresentada pelo Wikileaks em busca da transparência
dos documentos estatais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da proposta de analisar a liberdade de informação em dois contextos específicos,
um o da cibercultura e da chamada era digital, outro o dos Estados em transição democrática,
chega-se a alguns pontos neste trabalho. Mais pontos de partida para novas discussões do que
pontos finais conclusivos, porém:
- As variações históricas da compreensão das liberdades, fizeram com que a liberdade de ex-
pressão fosse redimensionada para expressão e comunicação. Liberdade de comunicação que por
sua vez foi também remodelada para outras liberdades, dentre elas a liberdade de ser informado,
o que cria em paralelo o direito de ter acesso a informações;
- Este direito fundamental de ter acesso a informações encontra hiperdimensão uma vez
inserido no contexto da era da informação, expressão usada para identificar traços da sociedade
contemporânea caracterizados pela cibercultura e comportamentos relacionados com a vida em
rede virtual e a amplitude de dados disponíveis nela;
- A discussão sobre liberdade de informação na era digital já é em si complexa, mas torna-se
ainda mais quando trazida para Estados em justiça de transição. Esta justiça de transição expressa
políticas, medidas, determinações que ocorrem em sociedades que vivenciaram experiências com
regimes autoritários em passado recente, e que ainda precisam lidar com a memória desta fase
de sua história para poder reparar injustiças e perpetuar a memória da época no intuito de que
as próximas gerações saibam dos fatos e não cometam os mesmos erros. A questão está então em
haver, ou não, limites para as investigações sobre os fatos e em que ponto o cidadão deve participar
deste processo de restauração de traços de identidade cultural.
- É possível então criar uma linha de raciocínio e argumentação no sentido de defender
ausência de limites para as investigações, bem como defender ampla participação social neste
processo. O exemplo atual da organização Wikileaks é simbólico pela luta por transparência de
documentos oficiais, denunciando irregularidades ou, no mínimo, fornecendo informações de in-
teresse geral, o que revela que a internet e demais ferramentas da tecnologia da informação serve
bastante para democratizar o processo de transição, ampliando o acesso a dados, impedindo sigilos
inadequados e abrindo espaço para participação popular na criação de uma memória cultural.
Tudo isto sob a justificativa de satisfação de direitos humanos próprios da contemporaneidade.

REFERÊNCIAS
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da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiça.In: PAYNE, Leigh A., ABRÃO, Paulo e
TORELLY, Marcelo D (organizadores). A anistia na era da responsabilização: O Brasil em perspec-
tiva internacional e comparada. Oxford: Oxford university, Latin America Centre, 2011. Páginas
212 a 248.
BAGGIO, Roberta Camineiro. Anistia e Reconhecimento: o processo de (des)integração social da
transição política brasileira. In: PAYNE, Leigh A., ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo D (organi-
229
zadores). A anistia na era da responsabilização: O Brasil em perspectiva internacional e compara-
da. Oxford: Oxford university, Latin America Centre, 2011. Páginas 250 a 276.
FARIAS, Edilsom Pereira de. Estatuto teórico da liberdade de expressão e comunicação. In: LOIS,
Cecília Caballeros e BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto (coordenanores). A constituição como
espelho da realidade: interpretação e jurisdição constitucionais em debate: homenagem a Silvio
Dobrowolski. São Paulo: LTr, 2007. Páginas 156 a 180.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Ed. DP&A, 2011.
GALINDO, Bruno. Justiça de transição na América do Sul: possíveis lições da Argentina e do Chile
ao processo constitucional de transição no Brasil. In: FEITOSA, Enoque (Et. Al.). O Judiciário e o
discurso dos direitos humanos: volume 2. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. Páginas 197
a 240.
LEIGH, David. Wikileaks: a guerra de Julian Assange contra os segredos de Estado. Campinas:
Ed. Verus, 2011.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 2010.
PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2009.
VENERAL, Débora. Liberdade de expressão e direito à informação: um contraponto à violação dos
direitos e garantias fundamentais e a à preservação da dignidade da pessoa humana. In: AFFOR-
NALLI, Maria Cecília Naréssi Munhoz e GABARDO, Emerson (Coordenadores). Direito, informa-
ção e cultura: o desenvolvimento social a partir de uma linguagem democrática. Belo Horizonte:
Ed. Fórum, 2012. Páginas 64 a 84.

230
O SISTEMA JURISDICIONAL NORTE-AMERICANO: ANÁ-
LISE COMPARATIVA SOBREO DIREITO, O PROCES-
SO E A CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES NOS EUA

Alexandre Freire Pimentel1

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS: DA ORIGEM DO DIREITO NORTE-AMERICANO E A ADO-


ÇÃO DO SISTEMA DA COMMON LAW

No início da colonização norte-americana houve uma concomitante aplicação de sistemas


jurídicos derivados de diferentes países nas respectivas áreas das suas colônias. Os ingleses fica-
ram responsáveis pelas colônias da Virgínia (1607), Plymouth (1620), Massachussetts (1630),
Maryland (1632). A Pennsylvania foi inicialmente colonizada pela Suécia e Nova Iorque pelos
holandeses. Além disso, a França colonizou parte do Canadá (Quebec) e dos EUA (Louisiana). E
a Espanha ocupou a parte sul dos EUA. O direito aplicável nas colônias inglesas, para os ingleses,
era o da commom law, por conta do princípio do Calvin´s Case.2

1 Professor Adjunto da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Juiz
de Direito.
2 A situação era inicialmente confusa, tanto que René David, sobre o assunto, vai, primeiro, indagar para, depois,
esclarecer o seguinte: “A que direito estão submetidas estas colônias inglesas? Se se exigir de Londres a resposta a esta
pergunta, essa resposta, em conformidade com o Calvin´s Case, julgado em 1608, será a seguinte: a commom law in-
glesa é, em princípio, aplicável; os súditos ingleses levam-na com eles, quando se estabelecem em territórios que não
estão submetidos a nações civilizadas. As colônias inglesas da América incluem-se nesta situação. Por consequência,
a commom law foi em princípio admitida nelas, e com a commom law as leis (statutes) que, anteriormente à coloni-
zação da América, podiam tê-la modificado ou completado, a data tomada em consideração neste aspecto é, segundo
Kent, para todas as colônias americanas, o ano de 1607, data em que foi fundada a primeira colônia” (DAVID, 1998,
231
O Calvin´s Case ficou conhecido como o Case of the Postnati e foi estabelecido na Inglater-
ra, durante o início do século XVII, quando um tribunal real decidiu favoravelmente a um esco-
cês chamado Robert Calvin, que herdou propriedades em solo inglês, mas teve os seus direitos
contestados por não ser inglês. A aplicação desse precedente nos EUA, no entanto, serviu para
estabelecer que todos os ingleses nascidos em solo norte-americano teriam os mesmos direitos
que os ingleses possuíam, aplicando-se-lhes a commom law. Sobre esse precedente, Williams, Jr.
acrescenta que:

The English Crown had historically based its privilege to charter colonies and con-
trol the lands of North America on the theory that is Norman-derived prerogative
rights of conquest attached immediately to infidel-claimed territories discovered by
English subjects. As Lord Coke had clearly articulated in Calvin’s Case in the early
seventeenth century, the Crown was presumed to be at perpetual war with infidels,
who were, in turn, presumed incapable of conforming their laws or conduct to nat-
ural law (1990, p. 269).

Acontece que a commom law não se adequava bem à realidade norte-americana, pois pres-
supunha a aplicação de um processo judicial arcaico e pensado para uma realidade inglesa-feudal,
diferente, portanto, do que ocorria no novo mundo. Além do mais, muitos dos problemas surgidos
nos EUA não haviam sido abordados nos precedentes ingleses, de modo que a commom law não
agradou, sobretudo, aos colonos.3 Nessa fase da colonização norte-americana a commom law não
vigorou na maior parte dos casos e a ignorância foi o principal fator de formação de novos direitos.
Foi assim, que em algumas colônias houve a aplicação do direito baseado na bíblia, caracterizado
pelo forte arbítrio dos juízes. Tal como se deu na França, também na América iniciou-se a etapa
de reação ao arbítrio dos magistrados. Em seguida, começam as tentativas de codificação. Em
Massachussetts e na Pennsylvania, respectivamente em 1634 e em 1682, surgem dois códigos que
demonstram a preferência dos colonos pelo direito legislado (DAVID,1998, p. 360).
É realmente interessante esse dado: os ingleses preferiram a commom law porque, dentre
outros motivos, temiam que o direito legislado acarretasse o arbítrio dos juízes.4 Mas os colonos
norte-americanos, a exemplo dos cidadãos franceses, preferiram o direito legislado pelo fato de o
direito costumeiro haver gerado abusos e autoritarismo judicial, pelo que o direito codificado ser-
viria para limitar a atuação do juiz em conformidade com a lei.5
Acontece que a prosperidade ocorrida no século XVIII alterou essa tendência à codificação,
com a melhoria nas condições de vida dos colonos a commom law passou a ser-lhes útil, desta
feita contra o autoritarismo da Coroa inglesa, servindo-lhes de defesa das liberdades públicas in-
dividuais, sobretudo porque, a essa altura, a Inglaterra já dominava a praticamente a totalidade
do território dos EUA. Apesar de o número de juristas ser, ainda, escasso, os tribunais passaram
a adotar várias leis inglesas na resolução de conflitos de interesse surgidos na América (DAVID,
1997, p. 13-15). Outro fator importante favorável à aceitação da commom law, foi a divulgação nos
Estados Unidos dos Commentaries on the laws of England, de Blackstone, pois neles havia um
didático esclarecimento acerca das leis que deveriam ser aplicadas nas colônias inglesas, vejamos:

Besides these adjacent islands, our more distant plantations in America, and else-
where, are also in some respect subject to the English laws. Plantations or colonies,

p. 359).
3 “... em muitos casos ele foram obrigados a emigrar porque eram perseguidos, e estão pouco preparados para ver
nesta commom law, como os juristas ingleses, o baluarte das liberdades do indivíduo”. (DAVID,1998, p. 360).
4 O fator de proteção das liberdades inglesas é visto por Radbruch na instituição do tribunal do júri inglês: “El
tribunal es la ‘garantía de la libertad inglesa’, ‘el baluarte de Constitución inglesa’. Como el Parlamento inglés ha sido
un modelo para el mundo liberal. Y, sin embargo, fue en su origen ‘más francés que inglés, más real que popular, más
bien el signo del sojuzgamiento que el distintivo de la libertad” (RADBRUCH, 1958, p. 103).
5 “Observa-se aí, desde a origem, uma divergência entre os pontos de vista inglês e americano, e uma orientação dos
americanos para as fórmulas que não são aquelas que gozam de bom acolhimento junto aos juristas ingleses”(DAVID,
1998,p. 360).
232
in distant countries, are either such where the lands are claimed by right of occu-
pancy only, by finding them desert and uncultivated, and peopling them from the
mother-country; or where, when already cultivated, they have been either gained
by conquest, or ceded to us by treaties. And both these rights are founded upon the
law of nature, or at least upon that of nations. But there is a difference between
these two species of colonies, with respect to the laws by which they are bound. For
it hath been held, that if an uninhabited country be discovered and planted by En-
glish subjects, all the English laws then in being, which are the birthright of every
subject,(m) are immediately there in force. But this must be understood with very
many and very great restrictions. Such colonists carry with them only so much of
the English law as is applicable to their own situation and the condition of an infant
colony; such, for instance, as the general rules of inheritance, and of protection
from personal injuries (BLACKSTONE, 1893, p. 107-108).

Outro fator favorável à adoção do sistema da commom law nos Estados Unidos foi o fim da
ameaçada francesa, que se constatou com a anexação do Canadá pela Inglaterra em 1763, e pela
aquisição do Estado da Louisiana em 1803, fez desaparecer um severo óbice à adoção da commom
law, sobretudo porque a França passou à condição de aliada dos EUA (BLACKSTONE, 1893, p.
107-108).
O sistema da common law foi, enfim, explicitamente adotado pelos Estados Unidos em sua
Constituição. Na sétima emenda, de 1791, inscreveu-se que “In Suits at common law, where the
value in controversy shall exceed twenty dollars, the right of trial by jury shall be preserved, and
no fact tried by a jury, shall be otherwise re-examined in any Court of the United States, than
according to the rules of the common law”.6Essa consagração em norma constitucional foi uma
decorrência da fundação do federalismo americano em 1787, e ainda hoje continua em vigor, ba-
seando-se na supremacia da lei. A partir de então, determinou-se a submissão de todos à jurisdição
ordinária (commom law).7 Malgrado isto, deve ser obtemperado que os EUA possuem tribunais
administrativos, mas suas decisões não excluem o reexame pelo Poder Judiciário (DAVID, 1998,
p. 337). À exceção do estado da Louisiana e de Quebec, os direitos norte-americano e canadense
inspiraram-se e inspiram-se no modelo inglês, mas com a inclusão de elementos novos.8
Um marco importantíssimo no direito processual dos EUA foi a declaração de direitos da
Virginia. Em 1776, foi declarada a carta da Virgínia, que continha dezoito artigos e, sobre matéria
processual, garantiu, no artigo 10o, o princípio do contraditório e do devido processo legal esti-
pulando que nos processos de pena capital os acusados tinham direito: a indagar sobre a causa
e a natureza da acusação, de ser acareado com as testemunhas de acusação; de apresentar suas
testemunhas; de exigir a agilidade no processo; e que fossem julgados por júri imparcial de sua cir-

6 “Nos processos de common law em que o valor em litígio exceda vinte dólares, o direito a um julgamento por júri
será mantido e nenhum facto julgado por um júri poderá ser submetido ao novo exame de um outro Tribunal dos Es-
tados Unidos, a não ser de acordo com as regras do common law”. O texto, no original, encontra-se em: GUY, Warner
W. Secret proceedings and debates of the convention – Assembled at Philadelphia , in the year 1787 for the purpose of
forming the Constitution of United States of America. California: Alston Mygatt, 1838, p. 291.
7 A propósito da exportação do sistema inglês, de jurisdição única, Hely Lopes Meirelles anota que: “Esse sistema de
jurisdição única transladou-se para as colônias norte-americanas e nelas se arraigou tão profundamente que, procla-
mada a Independência (1775) e fundada a Federação (1787), passou a ser cânone constitucional (Constituição dos
EEUU, art. III, seção 2ª). Pode-se afirmar, sem risco de erro, que a Federação Norte-Americana é a que conserva na
sua maior pureza o sistema de jurisdição única, ou do judicial control, que se afirma no rule of law, ou seja, na supre-
macia da lei” (MEIRELLES, 2014, p. 52).
8 No sentido de que a Louisiana e Quebec inspiraram-se em fontes romanas veja-se GILISSEN, op. cit. p. 206. Mas
em René David encontra-se maiores detalhes dessa influência, vejamos: “Triunfo da commom law. Contudo, os Esta-
dos Unidos acabaram finalmente por se manter no sistema da commom law, a exceção do território de New Orleans,
que se tornou em 1812 o Estado da Louisiana. Os outros territórios anexados à União podiam, em teoria, ter sido sub-
metidos às leis francesas, espanholas ou mexicanas: na realidade, estas leis eram aí desconhecidas; o Texas, a partir
de 1840, e a Califórnia, a partir de 1850, adotam, em princípio, a commom law inglesa, conservando apenas a tradição
anterior no que se refere a certas instituições particulares (regimes matrinomiais, regime fundiário). Por toda a parte
se impõe a preponderância das concepções admitidas nas antigas colônias e estas continuam fundamentalmente
ligadas à commom law” (DAVID, 1998, p. 362).
233
cunvizinhança de modo que se o júri não deliberasse à unanimidade, quanto à sua culpa, ele não
poderia ser considerado culpado. Este artigo estabeleceu ainda que ninguém poderia ser obrigado
a produzir prova contra si mesmo e, também, que ninguém poderia ser privado de sua liberdade,
a não ser através de julgamento pelos seus pares e segundo as leis do país. O artigo 13 estabeleceu
que nas ações referentes à propriedade e negócios pessoais a antiga forma de processo através de
jurados era preferível a qualquer outra e foi considerada como sagrada. Protegeu ainda a liberdade
de imprensa (ALTAVILA, 1989, p. 216-842).
Mas, apesar da adoção expressa na Constituição Federal dos EUA, a recepção do regime
da commom law não foi plena, e nem pura.9 Note-se que a afirmação feita acima de que os EUA
inspiraram-se no direito inglês não quer significar que o direito ali existe coincida integralmente
com o direito inglês. As estruturas sistemáticas não eram as mesmas e a consciência jurídica tam-
bém diferia.10 A ideia de um direito federal convivendo harmonicamente com direitos estaduais,
por exemplo, não existe na Inglaterra. No entanto, as semelhanças sobressaem-se às diferenças.
Ambas as estruturas sistemáticas baseiam-se numa concepção jurisprudencial do direito. A pro-
cessualização é o fator que lhes confere cientificidade jurídica, tanto que existem, em ambos, inú-
meras leis, mas a consciência dos juristas ingleses e norte-americanos não permitem que sejam
tidas como a regra jurídica natural, normal, do direito. É por isso que a integração completa da
lei ao sistema jurídico norte-americano somente vai acontecer quando um tribunal a tiver inter-
pretado e aplicado. A referência de validade e, sobretudo, de eficácia normativa não pertence à lei
exclusivamente, ao contrário, lastreia-se no precedente jurisprudencial que aplicou a norma. A
ausência do precedente importa, como observa Alan Watson, na conhecida expressão: “There is
no law on the point”(WATSON, 2001, p. 93). Nessa senda, só há que se falar em direito sobre a
questão quando houver o precedente.

2. JUÍZES LEGISLADORES: A QUESTÃO DOS PRECEDENTES ESTÁTICOS E DINÂMICOS


O direito processual norte-americano, à semelhança do inglês, mas com as restrições e di-
ferenciações acima consignadas, pressupõe a atuação dos magistrados primeiramente em confor-
midade com a Constituição, depois com a lei e com a observância dos precedentes firmados pelas
cortes superiores. Os precedentes, por sua vez, subdividem-se em estáticos, pertinentes ao direito
material, e dinâmicos, referentes ao direito processual.11 Se a atividade judicial no sistema fran-

9 Exemplo disso nos é dado por Guido Soares: “Os EUA receberam a Equity no momento histórico em que as
oposições Commom Law v. Equity já se encontravam esmaecidas. Nos EUA inexistem commom lawyers e equity lawyers
e, a partir da última unificação, em 1938 (na justiça federal), na atualidade, as actions at law e os suits in equity se
encontram reunidos no que se denomina civil actions”. SOARES, Guido Fernando Silva. Common law. Introdução ao
direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 36. Mais adiante, na p. 73 e seguintes, o autor acrescenta
o dado da influência que a doutrina possui nos EUA, demonstrando tratar-se de um sistema jurídico verdadeiramente
misto.
10 “Não são unicamente as regras dos dois direitos que diferem. Os próprios conceitos se tornaram muitas vezes dife-
rentes e os dois direitos inglês e americano, já não se identificam pela sua estrutura”. (DAVID, 1998, p. 365).
11 CARDOSO, Benjamin Natan. A natureza do processo judicial. Tradução de VIEIRA, Silvana. São Paulo: Martins
Fontes, 2004, p. 105. Mas a ideia de um substantive e procedural law já era mencionada numa excelente obra publicada já
em 1936, na Inglaterra, onde Buckland e McNair registraram o seguinte: “To many persons, especially to those theorists who
maintain that there are no rights but rights of action, the Law of Procedure, or, rather, the Law fo Actions, is the most
important part of the system. It is not easy to think of it as merely the machinery by which the real law, the substantive
law, is put into operation. Thus it comes about that our earliest legal text-book of any importance, Glanvill’s, though
called a Treatise Laws and Customs of England, is mainly concerned with procedure. In modern times J. D. Mayne
states a great part of the substantive law in a treatise on Damages, i.e., he regards a man’s right as, essentially, what
can be recovered by litigation. So too Henry Roscoe in the same way satates a great mass of substantive Criminal Law
in a work entitled The Law of Evidence and Pratice in Criminal Cases. There is nothing new in this: it is indeed the
primitive way of looking at law. (...) ‘substantive law has at first the look of being gradually secreted in the interstices
of procedure’, the XII Tables begin with, and appear to deal must fully with, procedure. The Edict and Digest follow
dis plan. It is only in the institutional books that procedure takes its place as an instrumental or adjective law. In Jus-
tinian’s law the old forms of action are gone: the plaintiff states his case in the way which seems most convenient to
him. Nevertheless the Byzantine lawyers still think in terms of actions: in considering what must be proved in any
claim, what is involved in any legal relation, they talk of the natura actionis. With them, as with us, though the forms
of action are dead, ‘they still rule us from their graves’”. (BUCKLAND; MCNAIR, 1936, p. 315).
234
cês e no dos países que se filiaram à família romano-germânica é terrivelmente prejudicada pela
adstrição da atuação jurisdicional em conformidade estrita com a lei, no sistema norte-americano,
por decorrência da influência do inglês, a situação é inversamente proporcional. Nestes, há um
verdadeiro judge made law, pois os tribunais gozam de liberdade criativa do direito, guiando-se,
obviamente, primeiramente pelas normas e princípios constitucionais, pelas regras legais (no sen-
tido acima esclarecido) e costumeiras, mas, também, pela lógica da equidade e, até mesmo, pelo
direito natural, nas situações de ausência ou inadequação de regra costumeira ou jurisprudencial.
Mas, como explica Benjamin Cardoso, tal sistema deriva do exercício pleno do ius imperium, que
tem no direito pretoriano romano sua fonte mais longínqua, e não se consubstancia numa espécie
de ditadura jurisdicional, porquanto:

O sistema de criar o Direito por meio de decisões judiciais que fornecem a norma
para transações realizadas antes do pronunciamento da sentença seria de fato in-
tolerável em seu rigor e em sua opressão se o Direito natural, no sentido em que
empreguei o termo, não fornecesse a principal regra de julgamento ao juiz quando
o precedente e o costume faltassem ou estivessem deslocados (CARDOSO, 2004,
p. 105).12

Impende refrisar, no entanto, que nos Estados Unidos a atuação jurisdicional queda-se,
inexoravelmente, estabelecida e limitada pela Constituição. Não há, como registra Owem Fiss,
uma espécie de legitimação dos juízes para agirem em nome da sociedade na criação de normas
jurídicas gerais e abstratas, tal função é exclusiva do parlamento. Segundo Fiss, a função judicante
norte-americana não tem a prerrogativa de “... falar pela minoria ou aumentar sua expressividade,
mas dotar os valores constitucionais de significado, o que é feito por meio do trabalho com o texto
constitucional, história e ideais sociais. Ele procura o que é verdadeiro, correto ou justo, não se
tornando um participante nos interesses das políticas de grupo” (FISS, 2004, p. 36).
Noutra ponta, e sem desconsiderar as limitações das atribuições jurisdicionais acima re-
gistradas, não se pode negar que o direito processual na Inglaterra e nos EUA confere uma inco-
mensurável gama de poderes ao poder judiciário. E isso se explica em razão de os ingleses, que
passaram mais quinhentos anos sob o domínio de Roma, quando criaram o sistema da commom
law, inspiraram-se na figura do praetor romano como standard para os seus juízes, diferentemen-
te dos franceses que se inspiraram na figura do iudex, também, romano. A distinção logra sentido,
quando percebemos que os praetores atuavam com ius imperium ao passo que os iudex agiam
com fulcro na iurisdictio desprovida de imperium. Os pretores romanos, além de exercitarem a
jurisdição com poderes coercitivos explícitos, também tinham a prerrogativa de criarem norma ju-
rídica nova no ordenamento romano, desde que não confrontasse com o ius civile. Nesse sentido,
Buckland e McNAIR asseveram que: “The Praetor, however, seems to have had a free hand than
the Clerk’s of the Chancery. If he wished he could definitely introduce what was in fact a new rule
of law by creating a formula” (1936, p. 324-325). Foi esse modelo de jurisdição que se desenvol-
veu na Inglaterra e que, mais tarde, foi exportado para os Estados Unidos.
Pelo judge-made law,13 pode-se, inclusive, afastar a incidência do conteúdo normativo da
regra emanada do parlamento, na verdade as normas jurídicas inglesas e norte-americanas têm
como principal fonte criativa a atividade jurisprudencial, não a parlamentar. A propósito, Dicey
extirpa qualquer dúvida sobre os limites de tal sistema, vejamos:

The Special Characteristics of Judicial Legislation in Relation to Public Opinion.


As all lawyers are aware, a large part and, as many add, the best part of the law of
England is judge-made law – that is to say, consists of rules to be collected from

12 Note-se que de acordo com Henry Sumner Maine também o praetor romano baseava-se no direito natural para
criar a regra jurídica específica permitida pelo ordenamento romano: “La parte del derecho que la razón natural di-
cha a todo el género humano es el elemento que se suponía haber introducido el pretor en la jurisprudencia de aquel
pueblo” (MAINE, 1893, p. 41).
13 “Decisão que se afasta do conteúdo estrito da norma escrita; norma jurisprudencial; norma derivada dos prece-
dentes judiciais” (MELLO, 1994,p. 358).
235
the judgments of the Courts. This portion of the law has not been created by Act
of Parliament, and is not recorded in the statute-book. It is the work of the Courts;
it is recorded in the Reports; it is, in short, the fruit of judicial legislation (DICEY,
1948, p. 361-362).

Em conclusão, a teleologia do direito processual civil norte-americano parece bem resumida


por Benjamin N. Cardoso, que foi membro da Suprema Corte dos EUA, e para quem interessa
menos a demarcação da linha divisória entre os sistemas da commom law e o do direito legislado
romano-germânico, e mais a ideia de efetivação da justiça através do processo.14 Esta, aliás, era,
também, a opinião de Carlos Cossio, pois já demonstrara que só há mesmo uma única natureza de
norma jurídica: aquela que se aplica através de sentença, como complementa Julio Gottheil: “La
verdad de las normas se alcanza en su vigencia”.15
Mesmo partindo do ponto de vista das normas gerais existentes nesses distintos sistemas
jurídicos, é sim possível distinguir a amplitude de poderes jurisdicionais, até porque os poderes de
imperium exercidos pelos juízes ingleses e norte-americanos não se originam, mediatamente, de
cada sentença aplicada em concreto, mas do ordenamento genérico (antecedente) que permite
aos magistrados assim atuarem. O que queremos é realçar a gama de poderes que os juízes pos-
suem nesses diferentes sistemas, no tocante à efetivação de suas decisões judiciais. E, quanto a
isto, as teorias jurídicas de cada sistema levaram em conta uma tentativa de fugir da concentração
do poder numa das funções estatais: ora no executivo; ora no judiciário. Como vimos, os ingleses
e norte-americanos optaram pela commom law porque entendiam, dentre outros motivos, que
melhor lhes servia para limitar os poderes do governante e garantir as liberdades públicas. Os fran-
ceses, temerosos com a hipertrofia do judiciário, ao contrário, trataram de limitá-lo ao máximo,
resumindo sua atuação à de um mero tradutor das palavras da lei e sem permitir o controle do
poder executivo pelo poder judiciário (MONTESQUIEU, 1992, p. 193). E foi na esteira da ideia
liberal-francesa que a teoria geral do processo brasileiro foi construída.
Bem a propósito, Cossio ensinava que a generalidade deve ser entendida a partir da indivi-
dualidade.16 Mas se considerarmos os sistemas jurídicos regidos pela civil law, iremos concluir
que esse papel criativo do judiciário é menor do que nos sistemas regidos pela commom law. E é
exatamente do ponto de vista do direito material que se pode comparar a atividade criadora do
juiz à do legislador.
Obviamente que isso merece ressalvas, pois como adverte Cappelletti, apesar de a criativida-
de jurisdicional do direito representar uma vicissitude dos tempos atuais e de corresponder a exi-

14 “Não farei qualquer tentativa de dizer onde estará localizada, um dia, a linha divisória. Estou convencido, porém,
de que sua localização, onde quer que seja, será regida não por concepções metafísicas acerca da natureza do Direito
criado pelos juízes, nem pelo fetiche de algum preceito implacável, como o da divisão dos poderes governamentais,
mas por considerações de conveniência, de utilidade e dos mais profundos sentimentos de justiça”(CARDOSO, 2004,
p. 110).
15 Embora pareça-nos cabalmente possível distinguir os sistemas em questão pelas peculiaridades das normas gerais
de cada um. Diferentemente, Julio Gottheil entende que: “Es imposible perseguir las modalidades que tipifican un
sistema jurídico a partir de las normas generales, que parecen ser su verdadera base, ya que las normas generales
carecen de todo sentido si non puestas en contacto con la realidad social, mediante la creación e impresión de normas
individuales. Sucede que generalmente los jueces siguen las determinaciones normativas de la ley o del precedente,
dando así impresión a las estructuras básicas de cada sistema en estudio. (...) El hecho, de todas maneras, permite
descalificar todo estudio que se haga sobre la base del punto de vista que ofrecen las normas generales” (GOTTHEIL,
1960, p. 64-65).
16 Como lembrava Cossio, apesar de a lei de certo modo demarcar a atuação do juiz e de circunscrever o seu campo
de atuação a priori, nada obstante isto, a sentença é o ato que concretiza o direito, e, portanto, que lhe dá existência,
verbis: “La ley entendida de esta manera, es, evidentemente, a-priori a la sentencia; está dada al Juez por antecipado.
La ley, además, prefigura o predetermina en algún grado lo que la sentencia dirá, pues encauza la resolución judicial
demarcándole un círculo cerrado de posibilidades a las que el juez tiene que acomodarse. La ley es, pues, el ámbito
de la sentencia; y, en tal sentido, contiene toda su estructura. Pero como la ley es un pensamiento que enuncia cosas
generales para indefinidos casos, resulta que la ley es formal respecto de la sentencia que es concreta. O dicho de
otra manera: la ley no es la forma sensible que va a tener la sentencia en concreto, sino que es la forma pensada de
esa experiencia jurídica que va a resultar existente en la sentencia y solo en ella”(COSSIO, 1964, p.148). A saliência
é nossa.
236
gências não só jurídicas, mas econômicas, políticas e sociais, isso não significa dizer que os juízes
possam atuar exatamente na mesma medida dos legisladores. Se pelo aspecto material realmente
criam o direito, há que se adstringir essa criatividade ao caso concreto. Além disso, quanto ao as-
pecto procedimental as duas atividades (legislativa e jurisdicional) são integralmente distintas.17
No entanto, em ambos os sistemas o fenômeno da individualização e concretização da nor-
ma de direito material ocorre de maneira semelhante, isto é, através de um processo no qual a
questão central é resolvida pela sentença, e não com as normas genéricas (lei e precedente). Seja
por meio do uso do silogismo com subsunção ou por argumentação retórico-entimemática, a solu-
ção dos conflitos individuais e coletivos será sempre dada e delimitada pelos princípios jurídicos e
pelas regras genérico-sistemáticas antecedentes que orientam a atuação dos juízes, sobretudo pe-
los princípios e regras constitucionais. Nos EUA, por exemplo, ao interpretar o artigo 3º da Consti-
tuição, Edward Corwin bem esclarece que o exercício do poder jurisdicional resta delimitado pela
norma maior: “Judicial power” is the power to decide “cases” and “controversies” in conformity
with law and by the methods established by the usages and principles of law. Like “legislative”
“and executive power” under the Constitution, “judicial power,” too, is thought to con-not certain
incidental or “inherent” attributes....”18
Se um juiz inglês pode julgar com a imposição de ordem, porque lastreado pelo ius imperium,
e se o juiz brasileiro apenas podia resolver a lide dizendo o direito (iurisdictio) a ser aplicado no
caso concreto, mas sem prerrogativa de – no processo de conhecimento regido pelo procedimen-
to comum, antes da vigência da lei nº 10.444/02 – ordenar, isso era uma decorrência do próprio
sistema, que representava um controle prévio dos poderes da jurisdição brasileira, cujo standard
adotado foi o do estado liberal, com uma tutela cognitiva meramente ressarcitória. Por isso, no pro-
cedimento comum (CPC, art. 272), não era permitido ao juiz brasileiro, por exemplo, impor pena
pecuniária ao réu, nas obrigações para entrega de coisa, simplesmente porque, antes da vigência
daquela lei alhures mencionada, elas somente eram passiveis de aplicação às obrigações de fazer
e não-fazer. E é lógico que isso consistia num estabelecimento genérico-antecedente (CPC, art.
461), que se revelava existente na ora da prolatação da sentença. No entanto, uma sentença que,
nada obstante isso, aplicasse um direito contrário ao previsto pelo ordenamento estatal era passível
de anulação ou reforma pelo tribunal ad quem, conforme o caso concreto, que tanto se dá através
de recurso ou de ação anulatória de sentença.
Assim, à obediência procedimental à lei processual é uma garantia comum às partes e à
sociedade civil. Sobre isso Marshall já advertia que: “O poder judicial nunca é exercido com o pro-
pósito de fazer cumprir a vontade do juiz; é sempre com o propósito de fazer cumprir a vontade da
legislatura; ou, em outras palavras, a vontade da lei”.19
17 Dissertando sobre a atividade dos juízes, Cappelletti esclarece: “Efetivamente, eles são chamados a interpretar
e, por isso, inevitavelmente a esclarecer, integrar, plasmar e transformar, e não raro a criar ex novo o direito. Isto não
significa, porém, que sejam legisladores. Existe realmente, como me proponho a agora demonstrar, especial diferença
entre os processos legislativo e jurisdicional. Certamente, do ponto de vista substancial, tanto o processo judiciário
quanto o legislativo resultam em criação direito, ambos são “law-making processes”. Mas diverso é o modo, ou se se
prefere o procedimento ou estrutura, desses dois procedimentos de formação do direito, e cuida-se de diferença que
merece ser sublinhada para se evitar confusões e equívocos perigosos. O bom juiz bem pode ser criativo, dinâmico e
“ativista” e como tal manifestar-se; no entanto, apenas o juiz ruim agiria com as formas e modalidades do legislador,
pois, a meu entender, se assim agisse deixaria simplesmente de ser juiz”(CAPPELLETTI, 1999, p. 74). Sem negrito,
no original.
18 Em continuação, acrescenta o autor: “One of theses is the ability to interpret the standing law, whether the Cons-
titution, acts of Congress, or judicial precedents, with na authority to wich both the other departments are constitu-
tionally obliged to defer” (CORWIN, 1948,p.117).
19 Esta citação foi retirada da obra de CARDOSO, Benjamin Natan, acima citada, p. 126. Mas, melhor nos parece a
conclusão deste, que também invoca um trecho de discurso do Presidente Roosevelt dirigido ao Congresso dos EUA,
que melhor traduz nosso entendimento sobre a matéria, vejamos: “Os principais legisladores de nosso país talvez
sejam, e muitas vezes são, os juízes, pois é neles que assenta a autoridade final. Toda vez que interpretam contratos,
propriedades, direitos adquiridos, o devido processo legal e a liberdade, eles necessariamente convertem em lei partes
de um sistema de filosofia social; e como essa interpretação é fundamental, eles direcionam todo o processo de cria-
ção das leis. As decisões dos tribunais sobre questões econômicas e sociais dependem de sua filosofia econômica e
social; e, para o progresso pacífico do nosso povo durante o século XX, estaremos principalmente em débito com esses
juízes que defendem uma filosofia econômica e social do século XX e não uma filosofia há muito superada, produto
ela própria de condições econômicas primitivas”.ROOSEVELT, ap. CARDOSO, Benjamin Natan, op. cit. p. 127. É
237
Isso não significa, porém, que o juiz sempre aplicará a regra de direito material em confor-
midade com a vontade do parlamento, ou da própria norma, da mens legis. Kelsen já havia expli-
cado, na sua teoria pura do direito, que uma sentença confrontante com a norma jurídica material
estatal que regula a hipótese concreta podia até vir a transitar em julgado. Neste caso, a norma
jurídica individual dissociar-se-ia da norma genérica antecedente, mas, ainda assim, seria válida
e eficaz. Contudo, esse fato não desconstrói a teoria pura e também não afeta nosso propósito
acima infirmado. Isto apenas retrata uma entropia sistemática: exceção incapaz de anular a regra.
Esta, como é cediço, pressupõe a atuação dos juízes conforme o padrão adotado previamente pelo
Estado: due process of law.
No tocante ao direito processual constitui dever jurisdicional a obediência aos princípios
processuais relativos ao procedimento conforme a lei, independentemente da vontade pessoal do
aplicador do direito; ademais, a decisão judicial deve manter uma relação de pertinência com os
valores médios otimizados em normas principiológicas do grupo social ao qual pertence, mormen-
te às normas jurisprudenciais uniformizadas, pois que estas já passaram pelo processo de filtragem
dos variados entendimentos e debates sobre o assunto e o valor nela contido traduz a “ vontade
da média contemporânea”, que, iniludivelmente, supera possíveis excentricidades individualizan-
tes.20
Em suma, a norma jurisprudencial detém um peso altíssimo no vetor decisional a ser adota-
do em casos futuros, pois já contém em si mesma o processo de depuração e de discussão judicial
que lhe conferem caráter democrático. Não porque o juiz deva a ela obedecer por imposição da
vinculação do precedente, mas porque ela traslada uma atividade jurisdicional da qual a sociedade
civil participa nas mais variadas instâncias judiciais, legitimando, portanto, os respectivos conteú-
dos, sobretudo porque a norma jurisprudencial detém um inegável conteúdo de justiça, na medida
em que trata a todas as pessoas que estão em situação idêntica, de forma idêntica. Nos Estados
Unidos, em especial, esse objetivo é facilitado através das class actions, pelas quais ocorre uma
irradiação dos efeitos da coisa julgada para atingir terceiros não participantes da demanda, mas
que se encontram na mesma situação jurídica.

3. O GRAU DA (IN)DEPENDÊNCIA DOS JUÍZES NORTE-AMERICANOS


Um dos pressupostos do constitucionalismo norte-americano é, precisamente, a indepen-
dência dos seus juízes. Owem Fiss trata do assunto contrapondo algumas restrições em face dos
seguintes aspectos: 01- em relação às partes envolvidas no litígio; 02- quanto à autonomia fun-
cional; 03- quanto à separação de poderes; 04- quanto à independência política; 05- quanto à
possibilidade de impeachment dos juízes; 06- pela dependência de reajuste remuneratório dos
vencimentos em face do Congresso; 07- a limitação da competência das cortes federais por ato do
Congresso; 08- a manutenção do número de juízes frente a inflação processual.
No tocante às partes envolvidas, a independência do juiz consiste no fato de ele ser impar-
cial, isto é, de não manter nenhuma relação com os envolvidos capaz de permitir a existência de
influências, que nos parecem alopoiéticas, e que redundariam num direcionamento, ainda que
inconsciente, na decisão da causa. Dentre elas, destacam-se: a possibilidade de suborno; afinida-

curioso, mas esta referência a Rossevelt além de nos parecer importante, daí a sua transcrição, bem como a Benjamin
N. Cardoso, também o foi para Cappelletti, tanto que em seu Juízes Legisladores?, traduzido por Carlos Alberto Álvaro
de Oliveira, ela vem destacada logo após o título e antes do sumário. Vide: CAPPELLETTI, Mauro.Juízes legisladores?
Porto Alegre: Fabris Editor, 1999.
20 Impassível de retoque é o magistério que se extrai da seguinte e brilhante lição de Benjamin Cardoso: “Não me
indisponho, portanto, com a doutrina de que os juízes devem estar em sintonia com o espírito de sua época. (...) A
cada dia, porém, nasce em mim uma nova convicção acerca da inevitável relação entre a verdade de fora de nós e a
que vem de dentro. O espírito da época, tal como se revela em cada um de nós, muitas vezes nada mais é que o espí-
rito do grupo no qual os acasos do nascimento, da educação, da profissão ou da comunhão de interesses nos deram
um lugar. Nenhum esforço ou revolução da mente destronará, completa e definitivamente, o império dessas lealdades
subconscientes. (...) As excentricidades dos juízes se equilibram. Um juiz examina os problemas do ponto de vista da
história; outro do de vista da filosofia; um terceiro, do ponto de vista social; um é formalista; outro, tolerante; um tem
medo de mudanças; outro está insatisfeito com o presente. Do atrito entre diversas mentes cria-se algo que tem uma
constância, uma uniformidade e um valor médio maiores do que seus elementos componentes” (CARDOSO, 2004,
p. 128-132).
238
des ideológicas ou culturais, dentre outras. Considera a doutrina norte-americana que constitui
paradigma difícil de ser alcançado, em especial no pertinente às identificações culturais e ideo-
lógicas.21 A questão da independência funcional dos juízes norte-americanos refere ao relaciona-
mento mantido pelo juiz com os demais membros componentes do poder judiciário, de modo que
as decisões individuais não devem ficar sujeitas a pressões da própria corporação.22 Contudo, a
partir de 1980, com a lei da reforma dos conselhos judiciais, a independência dos juízes distritais
de primeira instância ficou severamente ameaçada, pois se passou a permitir que grupos de juízes
federais pudessem desviar-se dos procedimentos recursais ordinários e formar comitês com o de-
siderato de investigar e de impor sanções aos juízes distritais (FISS, 2004, p. 154).
Quanto à separação de poderes, a independência judicial norte-americana coincide com o
aspecto da imparcialidade concebido em relação às partes envolvidas. Mas isso só vai se verificar
de fato quando um dos outros dois poderes forem parte numa determinada demanda. Para evitar
ingerências indevidas dos outros poderes sobre o judiciário, os juízes federais norte-americanos
possuem a garantia constitucional da vitaliciedade e da irredutibilidade de vencimentos. Mas a
legitimação do sistema norte-americano se evidencia na medida em que as partes e os advogados
participam da formação dos precedentes, os quais se formam da base para o topo da escala judi-
ciária hierárquica, consoante Catherine Elliot e Frances Quinn: “In deciding a case, a judge must
follow any decision that has been made by a higher court in a case with similar facts The rules
concerning which courts are bound by which are know as the rules of judicial precedent, or stare
decisis. As well as being bound by the decisions of courts above them, some courts must also follow
their own previous decisions; they are said to be bound by themselves” (2000, p. 8).
Porém, quanto à independência política,o judiciário norte-americano sofre a interferência
direta do Presidente da República que se alastra perante todo o judiciário federal, embora fique
sujeita ao controle do Senado.23 Mas o fato de as promoções dos juízes também dependerem de
ato do Presidente da República representa indisfarçável interferência política na gerência jurisdi-
cional, pois que, obviamente, as nomeações e promoções na carreira irão coincidir com as prefe-
rências político-ideológica dos juízes.24
Na magistratura federal, os juízes são nomeados pelo Presidente da República,25 enquanto

21 Como diz Fiss: “Tal exigência tem como objetivo afastar graves ameaças à imparcialidade, como, por exemplo, o
suborno e a existência de laços estreitos de parentesco entre juízes e litigantes. Todavia, muitas violações menos os-
tensivas, como afinidades culturais e identificações ideológicas, entre outras, na prática não podem ser prevenidas.A
independência do juiz, portanto, no que tange às partes litigantes, é um ideal que só pode ser parcialmente alcançado”
(FISS, 2004, p. 153-154).
22 “Ela requer que o juiz seja limitado por pressões corporativas ou institucionais ao decidir questões de fato e de
direito. De acordo com essa regra, as decisões judiciais são questões concernentes à consciência e responsabilidade
individual do juiz. Esse aspecto da independência do juiz, de caráter individual, tem suas raízes em padrões culturais
abrangentes e é reforçado pela prática norte-americana de recrutar juízes entre indivíduos bem-sucedidos na prática
do direito ou na política. (...) Assim, como a neutralidade judicial, a autonomia funcional é um ideal apenas parcial-
mente realizado” (FISS, 2004, p. 154).
23 “Uma das principais limitações impostas à independência política do Judiciário é o processo de nomeação. Em
alguns países o Poder Judiciário é dotado de autoridade para selecionar seus próprios membros, como uma forma
de intensificar sua independência política. Nos Estados Unidos, o Presidente é investido do poder de nomear juízes
federais e esse sistema necessariamente introduz um elemento de controle político sobre a composição do Poder
Judiciário. Os Presidentes naturalmente tenderão a selecionar juízes cujo conceito de justiça aproxime-se do seu, os
quais tenderão a apoiar as políticas de suas respectivas administrações” (FISS, 2004, p. 156).
24 No âmbito do judiciário norte-americano, isso fica esclarecido por Fiss, nos seguintes termos: “Mesmo após a rea-
lização do juramento do juiz, o controle do Presidente sobre as promoções pode servir como uma fonte de influência
contínua. Aqueles que almejam uma posição superior na hierarquia judicial, ou, talvez, um outro posto no governo po-
dem evitar decisões passiveis de desagradar ao Presidente ou impor obstáculos a sua confirmação no cargo. Ademais,
é provável que os juízes se considerem em débito com o Presidente que o nomeou. Esse sentimento de gratidão pode
produzir uma orientação judicial tendenciosa, favorável à Administração. (...) Em algumas situações memoráveis, tal
como aquela que envolveu o juiz Louis Brandeis e o Presidente Franklin Roosevelt, os juízes em sessão agiram como
conselheiros do Presidente, comprometendo, de forma extremamente grave, sua independência” (FISS, 2004, p.
156-157).
25 Los Magistrados de la Corte Suprema, los jueces federales de primera instancia, de los Tribunales de Apelación y
los jueces del Tribunal de Comercio Internacional son nombrados según dispone el Título III de la Constitución Polí-
tica. Ellos son designados y nombrados por el Presidente de los Estados Unidos y [la nominación] debe ser ratificada
239
a carreira dos juízes estaduais varia de Estado para Estado, em alguns deles se dá por indicação do
governador ou pelo parlamento e, noutros, ocorre através de eleição direta pela população.
Quanto à possibilidade de impeachment dos juízes,a Constituição estabelece no seu artigo
3º que a permanência dos juízes em seus cargos estará a depender de comportamento “adequa-
do”.26 Não se trata de norma inibidora da independência dos juízes, mas apenas de imposição de
um comportamento pessoal, de caráter ético generalizante. Entretanto, foi com base nela que o
Congresso norte-americano, no século XIX, chegou a invocar esse poder de impeachment somen-
te porque discordou, isto é, desaprovou determinada decisão judicial. Mesmo não tendo havido
precedente de afastamento de juízes pelo Congresso por este motivo, a ameaça remanesce, apesar
de o consenso ser no sentido de que sua aplicação restringir-se-ia a casos de alcoolismo crônico,
condenação criminal e corrupção.27
A questão da dependência de aumento remuneratório em face do Congresso, nos EUA, é
uma realidade, pois o reajuste dos vencimentos dos juízes federais dependem de ato do parlamen-
to. Isso leva Fiss a concluir que a independência dos juízes fica abalada na exata medida em que
as decisões judiciais não tenderiam a desagradar o pode legislativo, que, por seu turno, não está
obrigado a reajustar os valores remuneratórios dos juízes na mesma medida da perda decorrente
da inflação, assim como também pode interferir na manutenção dos serviços judiciais acessórios.28
Quanto à limitação da competência das cortes federais por ato do Congresso, é fato que as deci-
sões judiciais que interpretam a Constituição norte-americana só podem ser afastadam através de
emenda constitucional, que nos EUA além de quorum diferenciado no parlamento ainda encon-
tra a possibilidade de veto pelos Estados-membros, o que significa dizer que as decisões judiciais
encontram fortíssimo lastro de substância constitucional. Contudo, quando a decisão refere-se à
lei, o Congresso pode reverter o seu conteúdo interpretativo. Para tanto, basta recorrer à edição
de atos legislativos.29 Problema maior é que o Congresso pode limitar e alterar a competência das
cortes federais, podendo mesmo determinar o encaminhamento de processos a cortes estaduais
ou outros órgãos federais, inclusive da administração pública.30 Enfim, quanto ao problema da
por un voto mayoritario del Senado. Los magistrados y jueces nombrados bajo el amparo del Título III ejercen sus
funciones de carácter vitalicio y sólo pueden ser destituidos por el Congreso mediante el processo de impugnación
que dispone la Constitución Política. El Poder Judicial no toma parte en el proceso de nominación o ratificación. El
criterio principal para ser nombrado como juez federal son los éxitos académicos y profesionales. A los candidatos a
la judicatura no se les administran pruebas. Más bien, quien aspira a una judicatura debe completar un formulario
muy extenso que establece detalladamene las cualificaciones y éxitos profesionales, incluyendo aspectos tales como
el trasfondo académico, la experiencia laboral, artículos publicados, actividades intelectuales, causas legales que haya
gestionado, y actividades extracurriculares. Los candidatos serán objeto de entrevistas, investigaciones y preguntas
complementarias minuciosas”. El sistema federal judicial en los Estados Unidos. Presentación para jueces y personal
administrativo del ramo judicial en países extranjeros. Washington: Thurgood Marshall Federal Judiciary, 2000, p.
13.
26 “’Article III – This article complets the framework of the National Government by ‘the judicial power of the United
States’. ‘Section I’. ‘The judicial power of the United States shall be vested in one Supreme Court, and in such inferior
courts as the Congress may from time to time ordain and establish. The judges, both of the Supreme and inferior cour-
ts, shall hold their offices during good behavior, and shall, at stated times, receive for their services a compensation
which shall not be dismissed during their continuance in office’ (CORWIN, 1948, p.117). Aqui o autor elucida que os
juízes norte-americanos devem decidir em conformidade com a Constituição, com as leis emanadas do Congresso ou
com os Precedentes, mas, sempre, respeitando os princípios constitucionais.
27 Mas, como frisa Fiss, a ameaça ainda existe: “De fato, nenhum desses procedimentos específicos resultou no afas-
tamento de juízes e formou-se um entendimento geral no sentido de que os juízes só podem ser impedidos se viola-
rem as mais elementares tarefas decorrentes do cargo (...) Ainda assim, a ameaça de impeachment, frequentemente
externada por ideólogos que não têm esperança de êxito, pode ter uma influência inibidora” (FISS, 2004, p. 157).
28 “Não obstante a Constituição ofereça uma garantia contra a redução de vencimentos, o direito atualmente assen-
te nos Estados Unidos desobriga o Congresso de aumentar os salários dos juízes federais de acordo com a variação
inflacionária. Juízes preocupados com a manutenção do valor real de seus vencimentos podem, portanto, adaptar suas
ações para não desagradar os demais Poderes. Ademais, o juiz fica vinculado a certos benefícios acessórios do cargo,
como secretárias, assistentes e motoristas, podendo produzir-se um efeito semelhante, posto que esses benefícios
também são controlados pelo Congresso e pelo Presidente” (FISS, 2004, p. 158).
29 “Esse poder tem sido exercido inúmeras vezes, não obstante o fato de ser limitado por uma norma que nega ao
Congresso o poder de prescrever ou alterar a norma aplicável a um caso concreto já pendente” (FISS, 2004, p. 158).
30 “Nos últimos anos, ocasionalmente, o Congresso tem procurado controlar a adjudicação de ações constitucionais
240
manutenção do número de juízes frente à inflação processual,a doutrina norte-americana consi-
dera que o fato de o aumento do número de juízes depender de ato do Congresso constitui mais
um fator a pesar contra a independência do judiciário. Essa possibilidade de controle tanto pode
constatar-se na tentativa de manter o número de juízes, para que o trabalho da máquina judiciá-
ria emperre, quanto na de aumentá-lo, para fazer superar determinada corrente de pensamento
existente nas cortes contrária aos interesses do governo, tal como já tentou fazê-lo o presidente
Roosevelt.31 É interessante o fato de a Constituição norte-americana não estipular o número de
juízes componentes da suprema corte, e nem mesmo das cortes inferiores.32
O sistema jurisdicional brasileiro encontra-se em estágio bem mais avançado que o norte-
-americano, quanto às garantias legais e, sobretudo, constitucionais preservadoras da imparcia-
lidade e independência jurisdicional, inclusive de ordem administrativa e financeira. Perceba-se
que a imparcialidade, que não significa necessariamente neutralidade, do juiz em face das partes
envolvidas vem garantida nos artigos 134 e 135 do código de processo civil, que impõem ao juiz
a vedação de manter com as partes litigantes qualquer vínculo relacional limitador de sua par-
cialidade, sejam os de índole parental ou de amizade íntima, ou inimizade, ou de atuar como
juiz em processos que já tenha atuado como advogado da parte, etc. Enfim, garante a lei brasi-
leira que as decisões judiciais sejam imparciais, mas, assim como nos EUA, esse postulado é de
dificílima constatação quando refere aos defeitos de amizade, não só com as partes, mas com os
seus advogados,33 quando diz respeito aos aspectos de suspeição, posto cingirem-se a questões de
ordem subjetiva que não são demonstráveis de plano, como os são os defeitos de impedimento,
que trazem restrições objetivas, e, portanto, mais fáceis de serem demonstráveis. Mas, quanto à
independência constitucional-funcional, as garantias brasileiras são mais abrangentes que a dos
juízes norte-americanos. Não apenas os juízes federais logram garantias de irredutibilidade de
vencimentos (subsídios) e não só estes são vitalícios. Todos os juízes togados brasileiros, isto é,
todos que ingressam na carreira de juiz estadual, do trabalho, militar, federal, nos termos preconi-
zados pela Constituição Federal, são vitalícios. Todos são inamovíveis, ressalvada a possibilidade de
os tribunais, só os tribunais, procederem com a remoção compulsória com quorum de dois terços,
garantido, mesmo assim, o direito ao contraditório e à ampla defesa. Veja-se que esta garantia não
é consagrada aos juízes norte-americanos no texto da Constituição.
Outra questão cinge-se à impossibilidade de interferência do poder legislativo no direciona-
mento de processos em tramitação, como acontece nos EUA. No Brasil, essa possibilidade consti-
tui afronta à independência jurisdicional brasileira e não se compadece com o modelo de separa-
ção de poderes instituído na Constituição Federal de 1988. Depois, perceba-se que no Brasil não
apenas os juízes federais são os legítimos intérpretes da Constituição, como se dá nos EUA, mas
qualquer juiz investido de jurisdição tem poder para declarar, no caso concreto, a inconstituciona-
lidade da lei ou de ato normativo (emanado de qualquer dos poderes da República). Em resumo,
no Brasil, não há diferenças de garantias entre juízes federais e estaduais, o que favorece um po-
der judiciário nacional ainda mais independente. Diferentemente, nos EUA, só os juízes federais

por meio do estabelecimento de limitações às medidas judiciais, em vez de buscar a modificação da competência
das cortes federais sobre tais ações judiciais. Com relação à segregação escolar, por exemplo, o Congresso limitou
as condições sob as quais o transporte escolar pode ser organizado. Além disso, empregou, recentemente, estratégia
semelhante para interferir em um processo em trâmite perante uma corte federal que tinha por objeto a reforma das
condições das penitenciárias” (FISS, 2004, p. 159).
31 “Durante o século XIX o Congresso por vezes manipulou a quantidade de juízes da Suprema Corte como forma
de influenciar o curso das decisões judiciais. Contudo, desde a malograda tentativa do Presidente Franklin Roosevelt
no sentido de alterar a composição da Corte na década de 30 - um esquema que previa o acréscimo de um novo juiz
para todo aquele que ultrapassasse setenta anos de idade, de modo a minar as decisões contrárias aos programas do
New Deal -, uma norma informal surgiu nos Estados Unidos desfavorecendo esse tipo de manipulação” (FISS, 2004,
p. 160).
32 Mas, como anota Fiss: “Essas formas de exercício do controle legislativo são mais viáveis no que tange às cortes
federais de grau inferior, pois não há normas gerais sobre o número adequado de juízes para essas cortes (diversamen-
te da Suprema Corte, cujo número de nove juízes parece ter sido fixado pela imaginação popular) e elas raramente
despertam grande atenção por parte do público” (FISS, 2004, p. 160).
33 Que no nosso sistema não constitui fator de parcialidade.
241
detêm o reconhecimento da doutrina como tendo mitigada independência.34 E neste aspecto, no
Brasil verifica-se mais fortemente o fenômeno pelo qual quanto mais democrático for um Estado,
mais ele conferirá poderes ao judiciário para garantir o exercício da jurisdição sem vinculação ou
dependência da própria sociedade civil, controlando, inclusive os outros poderes, que, paradoxal-
mente, são exercidos através da escolha do voto.35 Outra, porém, é a questão dos poderes proces-
suais dos juízes. Vejamos o caso dos EUA.

4. PODERES PROCESSUAIS JURISDICIONAIS NO PROCESSO CIVIL NORTE-AMERICANO:


CONTEMPT POWER, CONTEMPT OF COURT; ADJUDCATION; INJUNCTION; E REMEDIAL
PHASE
Já vimos acima, que os juízes norte-americanos exercem a jurisdição com ius imperium.
Essa prerrogativa foi-lhes transpassada pelo sistema de processo civil inglês, que se instalou nos
EUA. Atuam, portanto, no processo, com a possibilidade constante de recorrerem ao contempt
power, isto é, podendo enquadrar as partes e os advogados que praticarem atos atentatórios à dig-
nidade da jurisdição, que atuarem em contempt of court, à submissão de sanções pecuniárias.36
De acordo com Hazard Jr e Tarufo, o sistema processual norte-americano sofreu uma grande
reforma em 1938, quando foi adotado o Federal Rules fo Civil Procedure, o qual sofreu sucessivas
reformas visando ao aperfeiçoamento do acesso à justiça. O velho sistema da commom law vinha
sofrendo críticas de diversos matizes, dentre os quais destaca-se “... among other deficiencies the
plaintiff was given little access to evidence in the hands of a suspected wrongdoer”. O Federal
Rules de 1938 simplificou o sistema probatorio para ampliar radicalmente as oportunidades pelas
quais uma parte pode ter acesso às provas pertencentes à parte adversa (HAZARD; TARUFO,
1993, p. 205).
Além disso, através da sistemática da adjudcation,37 os juízes exercitam a jurisdição dando
significado a valores públicos, sobretudo aos pertinentes ou inseridos na Constituição. Pela adju-
dcation os juízes podem reestruturar a organização estatal visando à eliminação de ameaças aos
valores constitucionais. E o meio pelo qual essas diretivas jurisdicionais de reestruturação são
efetivadas denomina-se: injunction, ou seja, uma ordem judicial que impõe ao réu determinado
comportamento, seja impondo a prática de certa conduta consistente numa obrigação de fazer ou
numa imposição de omissão, inibição para que deixe de fazer, ainda que o réu seja o próprio poder

34 “Os juízes federais gozam de certa independência no que se refere às partes litigantes e a outros membros do Ju-
diciário, mas essa independência está longe de ser absoluta. (...) eles não são, de maneira nenhuma, completamente
independentes dos demais poderes. Uma vez que a Constituição norte-americana concede aos Poderes Executivo e
Legislativo as prerrogativas de fazerem nomeações, decidirem se os salários devem ser reajustados de acordo com
a inflação e definirem a jurisdição e estrutura do Judiciário, o que é agravado pelo fato das cortes precisarem, com
frequência, de tais Poderes para a implementação de suas decisões, eles podem exercer uma influência significativa
sobre elas. Os juízes são independentes, mas não tanto quanto, na verdade, é apropriado em uma democracia” (FISS,
2004, p. 161).Salientamos.
35 Como registra Fiss: “A despeito de sua importância, a separação dos poderes impõe um certo dilema à teoria de-
mocrática: quanto mais independente estiver o Judiciário em relação às instituições governamentais controladas pelo
voto popular, maior será a sua capacidade de interferir em suas políticas e, consequentemente, de frustrar a vontade
popular”(FISS, 2004, p. 155-156).
36 Sobre esse instituto, Carlos Alberto de Salles esclarece: “O contempt of courtconsiste, de maneira geral, “em um
ato ou omissão perturbando ou obstruindo o processo judicial em um caso em particular”. SALLES, Carlos Alberto
de. Vide anotações à obra de FISS, especificamente, a nota de nº 07, p. 161.
37 O termo “adjudicação” no processo civil dos EUA denota, na prática, significação totalmente distinta da existente
no processo civil brasileiro, embora não incompossível. Aqui, a expressão designa uma das formas pela qual a jurisdi-
ção efetiva a expropriação do patrimônio penhorado do réu no processo de execução (artigo 647 do CPC), bem como
nas ações que versam sobre o domínio. Nos EUA, como esclarece Salles: “Adjudcation é a forma usual na literatura
de língua inglesa para designar a atividade realizada pelo Judiciário na solução de conflitos. Não obstante o vocábulo
correspondente em português seja mais utilizado nas relações de posse e propriedade (e. g., a “adjudicação compul-
sória”), é correta na sua extensão para o sentido utilizado na língua inglesa. O juiz, ao julgar em determinado caso,
aplica a norma ao caso concreto adjudicando – isto é, atribuindo uma solução, entre outras possíveis, para controvér-
sia em questão”. SALLES, Carlos Alberto de, op. cit. p. 26.
242
público, sob ameaça de prisão, inclusive, no caso de descumprimento.1 Mas essa extraordinária
gama de poderes jurisdicionais foi conquistada pela atuação da suprema corte dos EUA, a partir
da reforma estrutural empreendida nos anos 50 e 60, do século passado, quando foi determinada
a extinção do sistema educacional dual, que segregava crianças negras de brancas.2
Nos EUA a execução da sentença não é dependente de processo autônomo e distinto do cog-
nitivo. No entanto, a remedial phase, isto é, a execução do julgado ou o enforcement of judgments
não atendido espontaneamente pelo réu, mas pode não ser procedida nos mesmos autos da ação
originária. Exigem, em certas situações, a instauração de um procedimento acessório geralmente
conduzido por uma autoridade policial ou um master cujo escopo é o de aplicar a medida estipu-
lada no processo principal. Diferente é a situação quando o processo tem por objeto a eliminação
de ameaças a valores constitucionais, como, por exemplo, a adequação de instituições destinadas
à prestação de serviços de saúde mental às normas constitucionais ou legais aplicáveis, em tais
casos a execução dá-se nos próprios autos.3 Mas, semelhantemente ao sistema processual civil

1 Tecendo comentários sobre a classificação das ações cíveis nos EUA, Guido Soares adverte que no processo civil
norte-americano: “... uma primeira (classificação) se baseia na espécie dos remédios judiciais administrativos: se
forem reparações monetárias compensatórias (compensatory moneydamages), trata-se de um suit at commom law e,
no caso de não serem cabíveis, portanto, se forem ordens dirigidas contra a pessoa de alguém, expedidas sob a sanção
de desobediência à ordem da corte (contempt to court), penalizadas com multas (fines) ou a prisão (imprisonment),
trata-se de um suit in equity, cujas exteriorizações mais conhecidas são o decree of specific performance (ordem de
fazer determinados atos ou de dar determinadas coisas, portanto insusceptíveis de transformação em compensação
monetária) e os writs of injunction, que serão analisados logo mais. O segundo tipo de classificação das ações no pro-
cesso civil dos EUA consistiria em distinguir o que poderíamos denominar de ritos ordinários, de um lado e de outro,
as de rito especial (estas, atualmente nos EUA, denominadas no seu conjunto writs of prerrogatives)...”. SOARES,
Guido Fernando Silva, op. cit. p. 109, onde o autor anota a existência de quatro espécies de ações ordinárias, são elas:
01- as actions in personam, que visam compensar com indenização financeira um dano específico; 02- as actions
in rem, incidentes sobre direitos reais gerando a produção de efeito erga omnes, podem ser manejadas por qualquer
pessoa; 03- as actions quase in rem, pelas quais se obtém uma declaração de um direito que será exercido em relação
à determinada coisa;04- as actions declaratory judgements, que se assemelham às nossas ações condenatórias do pro-
cesso de conhecimento, posto que nos EUA não se conhece de ações meramente declaratórias sem que exista questão
jurídica controvertida. As ações de rito especial incluem os writ of certiorari (similar do nosso recurso extraordinário),
writ of habeas corpus (que se assemelha ao nosso e é cabível nas esferas estadual e federal), writ of injunction (tutela
de urgência), writ of prohibition (assemelha-se a um mandado de segurança impetrado contra ato do juiz, além de
também possuir caráter recursal), writ quo warrant (parece-se com a nossa ação popular) e, segundo Guido Soares,
também serve para: “ ... solicitar determinação judicial no sentido cassar uma concessão de serviço publico, licença
ou permissão ou ainda relacionado à demissão de funcionário publico...”, ibidem.
2 Como esclarece Owem Fiss, toda essa possibilidade e extensão do poder jurisdicional nos EUA decorreram da
reforma estrutural, verbis: “Essa injunction é o meio pelo qual essas diretivas de reconstrução são transmitidas. Como
um gênero de litígio constitucional, a reforma estrutural tem suas raízes nos anos 50 e 60 do século passado, quando a
Suprema Corte norte-americana estava sob a presidência de Earl Warren e realizou-se um extraordinário esforço para
colocar em prática a decisão no caso Brown vs Board of Education. Esse esforço exigiu das cortes uma transformação
radical da realidade social. As cortes tiveram de superar a mais intensa resistência e, ainda mais problematicamente,
precisaram intervir e reestruturar organizações de grande porte, os sistemas de educação pública. O imaginário era
rural e individualista – a criança negra entrando em uma escola composta inteiramente por crianças brancas -, mas a
realidade era claramente burocrática, especialmente em meados dos anos 60, quando o foco, e a nação, de um modo
geral, mudou para os centros urbanos. Brown exigia nada menos que a transformação dos “sistemas duais de escolas”,
com escolas separadas para negros e brancos, em “sistemas unitários de escolas não-raciais”, o que implicava em uma
reforma organizacional profunda (...) Após receberem da Suprema Corte seus mandados para agirem, os juízes fede-
rais de instâncias mais baixas descobriram o que a tarefa exigia e ajustaram as formas de procedimento tradicionais
para atender às necessidades existentes. A legitimidade foi igualada à necessidade e, nesse sentido, o procedimento
tornou-se dependente da substancia. Um compromisso primordial com a igualdade racial motivou a inovação proce-
dimental, constituindo a justificativa para os distanciamentos da tradição”.FISS, Owem, op. cit. p. 28-29.
3 “A medida judicial é destinada a corrigir ou prevenir um evento isolado e, geralmente, a função judicial exaure-
se quando a decisão é anunciada e o total de danos calculado ou quando a decisão referente a determinado evento
isolado é proferida. Sob essas considerações, o processo judicial tem quase uma dramática unidade aristotélica, um
começo, um meio e um fim. Nos casos envolvendo réus que oferecem grande resistência pode haver mais espaço
para a fase de execução – por exemplo, sequestro e venda de bens ou um processo de aplicação do contempt of court.
Porém, essas medidas com relação ao réu que oferece resistência são a exceção, não sendo consideradas parte inte-
grante do procedimento principal. Elas geralmente envolvem um procedimento acessório conduzido por diferentes
pessoas, uma autoridade policial ou um master, para a implementação da medida judicial concedida no processo
inicial”( FISS, 2004, p. 63).
243
brasileiro, o norte-americano não permite que o juiz instaure a execução de ofício, como anotam
Hazard Jr e Tarufo “Thus, a judgment for damages obliges the defendant to pay the amount spe-
cified; a judgment against a plaintiff usually involves an award of court costs that creates a similar
obligation. However, the obligation created by a judgment is not self-enforcing, and the court does
not provide enforcement on its own initiative” (HAZARD; TARUFO, 1993, p. 194).
A doutrina classifica as ações norte-americanas, primeiramente, em: administrativas e ju-
risdicionais. São consideradas administrativas aquelas nas quais o juiz profere ordensa ser cum-
prida pela parte ré, são uma nítida evolução dos interditos romanos que foram trazidas pela ex-
portação do direito inglês para os EUA. Mas no âmbito do direito inglês, há que se distinguir ações
que radicam na commom law das que se originam da equity. Derivam, pois, da commom law as
demandas que requerem compensações monetárias, e da equity aquelas ordens judiciais expedi-
das em decorrência da desobediência jurisdicional e que impõem multas ou mesmo a prisão dos
que agridem a dignidade da jurisdição.1 A bem da verdade, a classificação doutrinária que impõe
às ações que objetivam a concessão de ordem a ser atendida pela parte ré a mecha de procedimen-
tos administrativos, decorre de uma comparação com o direito romano clássico, especialmente da
atividade do pretor com a dos juízes na atualidade. Contudo, hodiernamente constitui ideia supe-
rada a de não conceber natureza jurisdicional aos procedimentos que importam na determinação
de ordem, seria o mesmo que, no Brasil, não conferir caráter jurisdicional às ações mandamentais.
Ações jurisdicionais stricto sensu. A doutrina subdivide essa classe de ações, em: ordinárias
e de rito especial. Há, pelo menos, quatro espécies de ações ordinárias, são elas: 01- as actions in
personam, que visam compensar com indenização financeira um dano específico; 02- as actions
in rem, incidentes sobre direitos reais gerando a produção de efeito erga omnes; 03- as actions
quase in rem, pelas quais se obtém uma declaração de um direito que será exercido em relação
à determinada coisa;04- as actions declaratory judgements, que se assemelham às nossas ações
condenatórias do processo de conhecimento, posto que nos EUA não se conhece de ações me-
ramente declaratórias sem que exista questão jurídica controvertida. As ações de rito especial
incluem: os writ of certiorari, similar do nosso recurso extraordinário; writ of habeas corpus, que
se assemelha ao nosso e é cabível nas esferas estadual e federal; writ of injunction, que, como já
visto, cuida detutelas de urgência; writ of prohibition, assemelha-se a um mandado de segurança
impetrado contra ato do juiz, além de também possuir caráter recursal; writ quo warrant, que se
parece com a nossa ação popular.2

REFERÊNCIAS
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BLACKSTONE, William. Commentaries on the laws of England. Vol. 1. Philadelphia: J. B. Lippin-
cott Company, 1893.
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1 Tecendo comentários sobre a classificação das ações cíveis nos EUA, Guido Soares adverte que no processo civil
norte-americano: “... uma primeira (classificação) se baseia na espécie dos remédios judiciais administrativos: se fo-
rem reparações monetárias compensatórias (compensatory money damages), trata-se de um suit at commom law e,
no caso de não serem cabíveis, portanto, se forem ordens dirigidas contra a pessoa de alguém, expedidas sob a sanção
de desobediência à ordem da corte (contempt to court), penalizadas com multas (fines) ou a prisão (imprisonment),
trata-se de um suit in equity, cujas exteriorizações mais conhecidas são o decree of specific performance (ordem de
fazer determinados atos ou de dar determinadas coisas, portanto insusceptíveis de transformação em compensação
monetária) e os writs of injunction, que serão analisados logo mais. O segundo tipo de classificação das ações no pro-
cesso civil dos EUA consistiria em distinguir o que poderíamos denominar de ritos ordinários, de um lado e de outro,
as de rito especial (estas, atualmente nos EUA, denominadas no seu conjunto writs of prerogatives)...” (SOARES,
1999, p. 109).
2 Esta última, segundo Guido Soares, também serve para: “... solicitar determinação judicial no sentido cassar
uma concessão de serviço publico, licença ou permissão ou ainda relacionado à demissão de funcionário publico...”,
ibidem.
244
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LA POLÍTICA MIGRATORIA DE LOS ESTADOS DESARROLLADOS COMO


FACTOR FACILITADOR DE LA TRATA Y DEL TRÁFICO HUMANO

Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso1

1. INTRODUCCIÓN
En cualquier comentario sobre el tema de la migración se debe tener en consideración la
complejidad que exige el tema, ya que el referido fenómeno es protagonizado por personas que, a
su vez, poseen su propia forma de vida, su cultura, expectativas, etc.

La historia enseña que raza no es un dato biológico-natural o aun un concepto po-


lítico-ideológico (...) la ideología racial, toma como base un punto de vista etnocén-
trico del mundo que retiene el propio origen superior a los otros, extendiendo ideas
de desigualdad y de una equivocada dignidad de los seres humanos (LUDWIG,
1999, p. 185).2(traducción libre)

1 Pos-doctoranda en Ciencias Sociales por la Fundación Centro Internacional de Educación y Desarrollo Humano
(CINDE) y Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO). Dra. en Derecho Penal por la Universidad
Complutense de Madrid (España). Profa. de Derecho Penal de la Universidade Católica de Pernambuco e de la Fa-
culdade Boa Viagem (Brasil).
2 “La storia insegna che “razza” no è un dato biologico-naturale quanto un concetto politico-ideologico (...) l’ideo-
246
Por otro lado, hay que tener en cuenta que además de estos factores y del elemento de la
economía de mercado hay que observar el tratamiento jurídico y político que los Estados prestan
al referido fenómeno en su legislación y políticas internas (VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 28).
Incluso, conviene percibir que la migración es un proceso y como tal se puede invertir su
posición en cualquier momento, sino véase que el emigrante puede regresar a su país y/o, aún,
los Estados considerados de origen (VICTAL ADAME, 2004, p. 12) en un determinado momento
pueden cambiar a la condición de países de transito y, después al status de países de destino en
otro momento determinado (VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 29)3 o quizá en un mismo momento,
yá que un país de salida para un puede ser de entrada para otro.
Hay, aún un otro hecho que fundamenta la complejidad no sólo del fenómeno de la mi-
gración, sino también, del estudio de esta circunstancia y es la cantidad de datos e informaciones
no fiables y completas que se manejan, ya que las encuestas e investigaciones realizadas en este
tema no tienen carácter continuado. Lo que proporciona una inadecuación de las respuestas en
el ámbito de las políticas (VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 29).
Todos estos, son factores que demuestran la gran complejidad que es tratar del tema de la
migración, pues como se puede notar el referido fenómeno trae consigo una cantidad infinita de
variables. Es por esta razón que se considera más importante para este momento observar el mo-
vimiento migratorio desde una perspectiva actual, es decir, la movilidad como un rasgo sistémico y
estructural de la globalización o, mejor, de la ideología globalista (DE LUCAS, 2004, p. 24). Hecho
que no disminui su complejidad, ya que la globalidad es heterogénea. Sino, nótese que la mani-
festación de la migración consiste en un proceso donde “varían los presupuestos, las necesidades,
las condiciones y las causas de los desplazamientos migratorios, y, con ello, (...) los factores de im-
pulso (desde el origen) y de atracción (desde el destino)” (DE LUCAS, 2004, p. 26). Sin embargo,
ayuda a puntuar un determinado momento histórico.

2. EL MOVIMIENTO MIGRATÓRIO
Integralmente se debe comprender el hecho de que la inmigración consiste antes que nada
en un fenómeno que además de político es también social, ya que los desplazamientos de personas
a nivel internacional se fundamentan en diferentes causas que dependen del momento histórico y
así son ejemplos los movimientos migratorios debidos a causas políticas, bélicas o religiosas (MAR-
TÍN Y PÉREZ DE NANCLARES, 2002, p. 17; GARCÍA ESPAÑA, 2001, p.25; GUARDIOLA LAGO,
2007, p.18), y más recientemente ambientales aunque tradicionalmente la causa económica es la
que siempre estuvo presente tras la migración.
Para Saskia Sassen4 el proceso migratorio actual presenta múltiples características que pro-
ceden de la reunión de las circunstancias que están presentes en nuestros días, es decir, las jerar-
quías formales del poder centradas en el Estado y que a su vez, es formada por el surgimiento de
nuevas instituciones globales que van desde los mercados electrónicos financieros a los regímenes
de derechos humanos.
Estas instituciones globales, a su vez, han permitido una multiplicación de dinámicas y

logia razziale, basandosi su una visione del mondo etnocentrica, che ritiene la propia origine superiore alle altre, dif-
fonde idee di diseguaglianza e di una differente dignità degli eseri umani”. Basado en esta idea el autor añade que la
discriminación de los seres humanos en lo que atañe la atribución de su etnia ha cumplido una larga y triste tradición,
que ya fue prácticada desde el Medievo contra los hebreos y gitanos, retomando su auge con la ¨doctrina de la raza¨
en el siglo XIX (...). De acuerdo con esa doctrina, la legislacion de la raza en la forma de gobierno ¨nacionalsocialis-
mo¨ declaróo la realización de la eugenía por las vias formales del Estado (...) siguiendo ulterior y sistematicamente
entre otras formas, por las afro-americanas en los Estados meridionales de Norte America y la política sudafricana del
apartheid. “La discriminazione di eseri umani per la loro appartenenza etnica ha una lunga e triste tradizione. Già
praticata nel Medievo contro gli ebrei e gli zingari, ritornò in auge, con la ¨dottrina della razza¨, nel XIX secolo (...).
Conformemente a tale dottrina, la legislazione razziale del regime nazionalsocialista dichiarò l’eugenetica compito
dello Stato (..) seguito ulteriori e sistematiche discriminazioni razziali, fra le altre, quella degli afro-americani negli
Stati meridionali del Nordamerica e la política sudafricana dell’apartheid.
3 Ver apartado sobre migración en el Estado español.
4 SASSEN, Saskia. Inmigrantes en la Ciudad Global. Página electrónica: http://www.nodo50.org/tortuga/article.
php3?id_article=4093 (Acceso: 19 de julio de 2008).
247
actores políticos informales en un espacio que la autora denomina de “ciudades globales”5(-
SASSEN, 2006). En estas “ciudades globales” existe lo que se considera un espacio parcialmen-
te desnacionalizado que permite la promoción diaria y simultánea de políticas subnacionales y
transnacionales, puesto que lo político se implanta y se reinventa a partir de un amplio espectro
de intereses particulares de los actores críticos – las grandes empresas globales, las minorías y los
inmigrantes – de este nuevo orden territorial (SASSEN, 2006).
Por otro lado, nótese que mientras estas “ciudades globales” o mejor dicho, estas grandes
metrópolis congregan los sectores líderes del capital global y un número considerable de grupos
vulnerables que congrega, también, un terreno estratégico para una cantidad innumerable de
conflictos y contradicciones. Sin embargo, el conflicto más importante es aquel que gira entorno
de la estratificación del trabajo inmigrante.
En este contexto, la observación de estas “ciudades globales” lleva a la clara evidencia de
una reestructuración de la demanda laboral en estos núcleos, separada en tres diferentes grupos,
el primero sería un grupo con alto grado de especialización y que por lo tanto reciben los ingresos
más elevados o, aún medianos, un segundo grupo formado por los trabajos de poca remuneración,
que poseen escasa calificación, pero tienen total dominio del idioma y, por fin el grupo de los in-
migrantes que producen servicios de todo y cualquier orden (SASSEN, 2000, p. 503-524).
Lo que se puede decir es que el mundo actual presenta una verdadera estratificación mun-
dial del mercado de trabajo, ya que la globalización económica propicia todo un conjunto de con-
diciones específicas de inserción laboral de los inmigrantes a través de los empleos de baja calidad
- aquellos “‘trabajos serviles’ siempre rechazados por los ciudadanos” (CARUSO, 2001, p. 243) o,
aún, como aduce Claudia Pedone: “empleos inestables, precarios y estaciónales donde acude la
mano de obra migrante extracomunitaria en condiciones de irregularidad jurídica que favorece la
explotación de trabajadores y trabajadoras con débiles pautas de contratación” (PEDONE, 2003,
p. 56), ya que tales inmigrantes son una mano de obra barata, no sindicalizada y abundante.
Esta convivencia a partir de la asociación de los segregados actores con la intención de pro-
mover el provecho de una existencia común para los mismos, es más evidente cuando el mercado
de trabajo inmigrante va destinado a la mujer también inmigrante, como veremos a continuación.

3. DE LA FEMINIZACIÓN DE LA MIGRACIÓN
De todos son conocidas las tristes historias donde

el hombre, fuente de ingresos de su familia, emigra hacia otra ciudad o país, con
la finalidad de ganar algún dinero ya que, donde ellos viven, prevalecen las condi-
ciones inherentes a la pobreza o pobreza extrema y es imposible obtenerlo por la
falta de oportunidades de trabajo. En un principio, la mujer/familia recibe envíos de
dinero del hombre que se fue quien, a cambio, le pide que se quede viviendo en el
mismo lugar, para esperar a que regrese el jefe de família (LOPÉZ GARACHANA,
2008, p. 150).

Así se pudo observar en toda la historia delas sociedades tradicionales, donde las mujeres
no eran estimuladas a abandonar su hogar, ni a moverse más allá de los límites de la unidad fami-
liar, puesto que su responsabilidad consistía en el cuidado de los hijos y, en algunas pocas socie-
dades, al cuidado de los padres mayores. La búsqueda de una vida mejor más allá del horizonte
que determina el hogar siempre ha sido un privilegio de los varones(SKROBANEK; BOONPAKDI;

5 “Las ciudades globales son una especie de nueva zona fronteriza tanto para el capital global como para los nuevos
actores políticos informales. No sólo el nuevo capital global, sino también los inmigrantes que trabajan y luchan en
estas ciudades emergen como actores críticos en hacer la historia contemporánea postcolonial. (…) la ciudad global
ha surgido como un lugar estratégico precisamente gracias a estas innovaciones y transformaciones en múltiples
dominios institucionales. Factores claves de la globalización y digitalización económica se establecen en este tipo de
ciudades y producen dislocaciones y desestabilizaciones de los órdenes institucionales y los marcos legales, regulato-
rios y narrativos vigentes para manejar las condiciones urbanas. Es justamente esta elevada concentración de nuevas
dinámicas en estas ciudades lo que genera innovaciones y respuestas creativas. Se trata, muy probablemente, de un
proceso que requiere cruzar un cierto umbral en cuanto a concentración y diversidad de condiciones”.
248
JANTHAKEERO, 1999, p. 46-47)6, pues la migración cuanto al hecho migratorio considerada un
mero elemento de elección y decisión familiar ya que la migración femenina es consecuencia de
la agrupación familiar.
Este prejuicio cuando sumado a los intereses de los Estados centrales estableció a partir del
Consejo Europeo de Tampere, en 1999

una política migratoria común basada en un sistema de migración ordenada en


función de las necesidades laborales y económicas, diseñando plataformas sexua-
das (y sexistas) de entrada y residencia regular: el trabajo formal masculinizado y
la reagrupación familiar para esposas dependientes (...) hemos construido y con-
solidado una ciudadanía laboral que reconoce derechos al trabajador, previamente
definido como hombre y cabeza de família (MESTRE I MESTRE, 2008, p. 212).

Por esta razón, la explotación laboral internacional hay mostrado de manera general una
preferencia por los trabajos realizados por los hombres. Por otro lado, este pensamiento encuentra
algunas fronteras en la actualidad, ya que es posible observar en materia de migración algunas
transformaciones estructurales en las sociedades de origen y de llegada.
Sino, cumple observar que el 49% de los migrantes en 2005 eran mujeres. En tiempos ac-
tuales las mujeres representan la mayoría de los migrantes a los Estados considerados desarrolla-
dos, pues suman 52,2%. Sin embargo, son solamente 45,5% cuando se refiere a la migración para
Estados subdesarrollados(VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 34).
La feminización de los flujos migratorios es un hecho constatado hace poco tiempo y el
punto de partida para su análisis, generalmente, encuentra fundamentación en la idea de que la
mujer pasa a ser parte, es decir, no consecuencia, de un proyecto familiar estructurado en deci-
siones de socialización entre género y generaciones(GARCÍA CANCLINI, 1990, p. 10). Es en otras
palabras afirmar que, muchas son las mujeres que pasan a encabezar una familia monoparental y
por esta razón ellas pasan a intervenir de manera decisiva en el fenómeno migratorio ya que ellas
mismas pasan a poner en marcha la referida cadena migratoria.
Pero, hay que reflexionar sobre cual es el elemento que pasó a cambiar ese modo de en-
frentamiento en el tema de la migración. Es verdad que muchos son los factores, sin embargo, un
ejemplo claro de elemento de atracción para el establecimiento de la migración femenina es la
incorporación de la mujer en el mercado de trabajo asalariado en los Estados considerados cen-
trales.
Sino, véase que determinada demanda, es decir, la feminización del mercado de trabajo
aún que en condiciones de desigualdad en todos los países del mundo, cuando auxiliada por los
problemas estructurales y económicos de los países periféricos, termina por determinar los flujos
migratorios femeninos de los países subdesarrollados hacia los Estados desarrollados (SASSEN,
1984, p. 1150), formando un proletariado feminizado en estos centros.
Dicha afirmación encuentra apoyo en los datos estadísticos, ya que estos revelan que fue
desde mediados del decenio de 1980 cuando un número cada vez mayor de mujeres se desplaza-

6 No se pretende un análisis detallado de la cuestión del género en este trabajo, porque este no es el objeto con-
creto de estudio, pero se reconoce la necesidad de tocar el tema de manera tangencial y en este sentido para poder
definir de manera muy sucinta lo que viene a ser género, podríamos decir que “género hace referencia a los roles,
responsabilidades y oportunidades asígnados al hecho de ser hombre y ser mujer y a las relaciones socioculturales
entre mujeres y hombres y niñas y niños. Estos atributos, oportunidades y relaciones están socialmente construidos
y se aprenden a través del proceso de socialización. Son específicos de cada cultura y cambian a lo largo del tiempo,
entre otras razones, como resultado de la acción política. En la mayor parte de las sociedades hay diferencias y desi-
gualdades entre mujeres y hombres en las actividades que realizan, en el acceso y control de los recursos así como en
las oportunidades para tomar decisiones. El género es parte del contexto sociocultural. Otros importantes criterios del
análisis sociocultural incluyen la clase social, la raza, el nivel de pobreza, los grupos étnicos y la edad”. E añade, “ese
conjunto de roles, responsabilidades y oportunidades asígnados al hecho de ser hombre y ser mujer forma parte de la
identidad de los sujetos, de su concepción del mundo y de su propia subjetividad. Tienen una gran fuerza porque (...)
están en la base de la identidad de género de todas las personas y de las identidades sociales Asígnadas y reconocidas
al resto de las personas (...). Si algo es indiscutible para las personas, es el significado de ser mujer o ser hombre, los
contenidos de las relaciones entre mujeres y hombres y los deberes y prohibiciones para las mujeres por ser mujeres y
para los hombres por ser hombres” (LÓPEZ MÉNDEZ; SIERRA LEGUINA, 2001, p. 2-3).
249
ron por su cuenta para asumir puestos de trabajo en otros países (MORENO FONTES-CAMMAR-
TIN, 2007, p. 2).7 Es decir que los cambios de la demanda laboral en los países de llegada pueden
de una manera o de otra transformar la oferta inmigrante.
Sin embargo, se percibe que la idea de un estatus de menor rechazo social y una supuesta
igualdad social traída con la posibilidad de acceso al trabajo asalariado en los Estados considerados
de destino consiste, en la mayoría de las veces, en una gran falacia, puesto que tales conceptos
cuando son aplicados al paradigma de la feminización de la inmigración, encuentra su fundamen-
tación en la pertenencia y sujeción de estas mujeres emigrantes a dos grupos de trabajos. El prime-
ro, sigue el camino de los servicios domésticos8, venta callejera, personal de bares y/o restaurantes
o los trabajos donde se realizan actividades productivas y el segundo grupo se refiere a la industria
sexual, sea para el ejercicio de la prostitución propiamente dicha o más específicamente para el
tráfico ilegal de mujeres9 para su posterior explotación sexual comercial (SASSEN, 2000, p. 504).
Así, es posible afirmar que los instrumentos estructurales de exclusión social típicos de
los contextos neoliberales de globalización actuales encuentran refuerzo cuando se aplican hacia
los más débiles y en este caso hacia la discriminación del trabajo feminino (MAQUEDA ABREU,
2008, p. 187).
Esa circunstancia encuentra refuerzo en el hecho de que las pautas migratorias de la pobla-
ción femenina difieren de las de los hombres, ya que las mujeres no poseen los mismos antece-
dentes sociales y sus razones para emigrar son diversas, como diferente son, también, sus recursos
para viajar y sus destinos (SKROBANEK; BOONPAKDI; JANTHAKEERO, 1999, p. 34). Hechos
que, a su vez, generan un tipo de rede informal de ayuda a esta migración considerada discrimi-
natoria y, por lo tanto, marginal.

3.1. Redes informales de ayuda versus el pánico popular de las “esclavas sexuales”
En un primero momento, cumple preguntar: ¿qué se puede considerar como redes infor-
7 Añade que las tendencias indican que las mujeres que emigran son jóvenes, solteras, viudas o divorciadas, y que
estas trabajadoras no siempre tienen hijos y, de tenerlos, rara vez los ven.
8 Según Emma Martín Díaz el servicio doméstico constituye para las mujeres migrantes de la actualidad la más
importante fuente de trabajo con carácter legal. Hecho que a su vez exige de los Estados centrales un verdadero cam-
bio de sus legislaciones, regulación y reconocimiento de esta actividad laboral. En el caso español, las peculiaridades
de la Ley de Extranjería y de la Ley que regula el servicio doméstico establece un conglomerado de preceptos que
dificulta el reconocimiento social del servicio doméstico para las inmigrantes (CASAL; MESTRE I MESTRE In DE
LUCAS; TORRES, 2002, p. 123). Hoy, en España, muchas son las mujeres inmigrantes que mientras se incorporan
al servicio doméstico, se ven sometidas a una doble limitación, pues como inmigrantes que son ven una significativa
disminución de sus derechos, y como trabajadoras están sujetas a una legislación laboral discriminatoria con respecto
a otros sectores de la actividad. Pero, estos no son los únicos abusos a que están sometidas las mujeres migrantes. Hay
también aquellos abusos frutos de condiciones demandadas por un nuevo pensamiento racista que se fundamenta
en elementos étnicos. Y asi cabe destacar que “En general, se tiende a buscar alguien que pueda suplantar al “ama
de casa”, creándose una escala de preferencias basada en elementos étnicos, y no en saberes y experiencias profesio-
nales, que carecen de reconocimiento formalizado”. Además, se percibe que la idea de inferioridad étnico-nacional
de las domésticas inmigrantes bajo sus empleadoras aún está muy extendida. El nuevo significado del papel de “ama
de casa” y el reconocimiento de las trabajadoras migrantes como “domésticas” supone una peligrosa reformulación
de los modelos de género imperantes, ya que por un lado, el poder de las empleadoras se centra en el control sobre
la persona empleada y no sobre las actividades realizadas; y por otro, el papel de las “domésticas migrantes” de países
periféricos acentuando una doble desigualdad en tanto que encargadas de realizar las actividades “sucias” del hogar.
“Su origen cultural distinto fomenta un racismo implícito que pone en duda el supuesto ideológico sobre el género
femenino: a saber, que todas las mujeres son capaces y saben realizar “bien” las tareas domésticas. La puesta en duda
de los conocimientos, las relaciones intergénero, marcadas por la desigualdad en el poder en la que se enmarca este
empleo y los problemas que generan los conflitos entre empleadoras-empleadas, son signos del nuevo eurocentismo
colonial en el que estamos incertos”(MARTÍN DÍAZ, 2008, p. 198/200).
9 Nótese que a pesar de la autora reconocer la existencia de la trata de hombres y/o niños para la posterior explo-
tación sexual comercial. El trabajo solamente tendrá atención a las mujeres víctimas de referido hecho. En lo que
atañe la explotación de niños véase: RODRIGUES MESA. María José. “Explotación sexual y pornografía infantil. Un
análisis de la regulación penal en España a la luz de los requerimientos internacionales y comunitarios”, en ÁLVAREZ
GARCÍA, F. Javier. (Dir); ÁLVAREZ GARCÍA, F. Javier; MANJÓN-CABEZA OLMEDA, Araceli y VENTURA PÜS-
CHEL, Arturo. (coords). La adecuación del derecho penal español al ordenamiento de la Unión Europea: La política
criminal europea.Tirant lo Blanch. Valencia, 2009, p. 321/339.
250
males de ayuda a la migración femenina? De pronto se puede afirmar que estas redes son lo que
vulgar, mediática y criminológicamente se conoce como poderosas mafias internacionales que
mediante engaño explotan las pobres mujeres10 víctimas de la trata. Sin embargo, nótese que en
realidad estas redes de tráfico esconden una multiplicidad de distintas organizaciones (e incluso
fenómenos de carácter familiar) que no siempre coinciden con esta imagen estereotipada(BAU-
CELLS LLADÓS; CUENCA GARCÍA apud GARCÍA ARÁN, 2006, p. 143).
De esta manera se observan los casos de mujeres víctimas del engaño de una amiga cer-
cana y/o, también, de las mujeres vendidas por sus familiares, y en esta coyuntura no se habla de
“red de apoyo” a la facilitación del ejercicio de estos trabajos desregularizados, privatizados y fe-
minizados ofrecidos de manera estratificada en los países centrales. La gran mayoría de las veces
esos contactos forman parte de un conjunto de las “redes sociales” con caracteres, sobre todo, de
parentesco, de amistad o vecindad.
Coincidimos con Carmen Gregorio Gil en el sentido de que no se puede olvidar el hecho de
que esos contactos se encuentran implicados, de una manera o de otra, en relaciones casi siempre
profesionalizadas en el seno de organizaciones que están orientadas a proveer de medios necesa-
rios a quienes se proponen emigrar y no pueden hacerlo de otra manera (GREGORIO GIL, 1998,
p. 39), es en otras palabras sostener que aunque de manera indirecta estas “redes sociales” de la
emigración están envueltas por las “redes marginales” de inmigración.
De esta manera, resulta interesante destacar la reestructuración global a partir de lo que
Sassen llama “contrageografías de la globalización”. El término es utilizado por esa autora para
designar aquellos elementos directos o, también indirectos que a pesar de, en principio, no presen-
tar conexiones con los procesos de la globalización, pueden resultar asociados a las circunstancias
que posibiliten estructurar el núcleo de la economía global (SASSEN, 2003, p. 34).
Lo que la autora trae a discusión es la necesidad de observar en el mundo económico ac-
tual una tendencia a la facilitación de los flujos migratorios - sean ellos internacionales o locales
- auxiliados a la promoción de un carácter marginal, que, a su vez, une elementos de la economía
formal a los elementos de la economía sumergida y convierten a los ciudadanos – hombres y mu-
jeres – en apenas migrantes.
Es en otras palabras decir que la feminización de la migración bajo la aplicación del mode-
lo actual trae como consecuencia una autonomía de la mujer cuando de su elección del proceso
migratorio. Sin embargo, tal movimiento tras el difícil acceso de las políticas discriminatorias y
crecientemente restrictivas que dominan las reglamentaciones migratorias genera un movimiento
de personas al margen de la autorización y reglamentación del Estado (AZIZE, 2004, p. 167).
Por otro lado, importante tener en cuenta que tal fenómeno, es decir, la trata es digna de
cuidado por parte del Estado que debe prevenir y punir su práctica. Pero, no se puede observar tal
circunstancia bajo el prejuicio formado entorno de la idea de que el flujo de explotación del trabajo
femenino tiene carácter marginal y que solamente, es posible acceder a estos trabajos a través de
las redes informales de ayuda, pues que tal hecho genera en las comunidades periféricas un punto
de vista de la migración femenina fundamentado en la explotación de la mujer migrante por parte
de los Estados centrales.
Para Maqueda Abreu, esta observación solamente favorece la representación de un “recur-
so que se ha evidenciado muy específicamente a la hora de alentar políticas públicas represivas
y de control de los movimientos migratorios”(MAQUEDA ABREU, 2008, p. 185) de cualquier
orden, pues que:

se trata de una estrategia interesada que oculta prejuicios étnicos y de clase y, des-
de luego, de género frente a la temida autonomía de las mujeres, especialmente su
autonomía sexual. Bajo ella, se silencian las raíces económicas, legales, sociales y

10 Nótese que a pesar de la autora reconocer la existencia de la trata de hombres y/o niños para la posterior explota-
ción sexual comercial y también para otras prácticas. El trabajo solamente tendrá atención a las mujeres víctimas de
referido hecho. En lo que atañe a la explotación de niños véase: RODRIGUES MESA. María José. “Explotación sexual
y pornografía infantil: Un análisis de la regulación penal en España a la luz de los requerimientos in terncionales y
comunitarios”. En: ÁLVAREZ GARCÍA, F. Javier (Dir.); ÁLVAREZ GARCÍA, F. Javier; MANJÓN-CABEZA OLMEDA,
Araceli y VENTURA PÜSCHEL, Arturo (Coords.). La adecuación del Derecho penal español al ordenamiento de la
Unión Europea: La política criminal europea. Tirant lo Blanch. Valencia, 2009, p. 321/339.
251
políticas de una inmigración legítima que buscan ser ignoradas a toda costa.

Así, añade la autora que “las verdaderas perdedoras son las mujeres que quedan a merced
de pánicos populares – como ‘esclavas sexuales’ - y de la falta de reconocimiento de su capacidad
de agencia y de la realidad de sus proyectos emancipadores”(MAQUEDA ABREU, 2008, p. 185).11

4. LEYES PARA EXTRANJEROS O MANIFIESTO PODER SOBERANO DEL ESTADO DE DES-


TINO?
Es verdad que el tema de la migración está casi siempre fundamentado en los elemen-
tos de expulsión en los países periféricos e atracción (GUARDIOLA LAGO, 2007, p. 24; PÉREZ
CEPEDA, 2004, p. 33; LEÓN VILLALBA, 2003, p. 24)12 en los Estados centrales. Sin embargo,
nótese que el fenómeno migratorio constituye toda una heterogeneidad de causas, características,
instrumentos y en fin, de elementos que, a su vez, promueven una cantidad infinita de problemas
en el establecimiento de las acciones de política migratoria, puesto que “conduce a un modelo
holístico, de aproximación global a su tratamiento, en el que todos los instrumentos, incluidos los
convencionales y dentro de ellos tanto los multilaterales como los bilaterales, pueden ciertamente
resultar útiles”(VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 70).
En este estado de la cuestión aparece la problemática alrededor de una política de inmi-
gración que se fundamenta en la negación del inmigrante, puesto que se le niega la libertad en su
proyecto migratorio ya que no se le reconoce el derecho a inmigrar13 del que todos son merecedo-
res y que debería ser asegurado por todos los poderes públicos.
A ese respecto es interesante traer las palabras de Ruiz Castillo cuando aduce que existe un
derecho a emigrar, pero no existe un correlativo derecho de inmigrar (RUIZ CASTILLO, 2003,
p. 33)14, es en otras palabras afirmar que el derecho otrora reconocido difícilmente es puesto en
práctica, puesto que en la realidad lo que se ejerce es el derecho de soberanía de las naciones
en imponer restricciones o denegar la entrada a extranjeros (SKROBANEK; BOONPAKDI; JAN-
THAKEERO, 1999, p. 43).
Por eso, se dice que el fenómeno de la inmigración en Europa pasa en la actualidad, por un
cambio de conceptos, ya que de cuantitativo que era anteriormente pasa a ser cualitativo, es decir,
el derecho de migrar asume una naturaleza discriminatoria, que hace distinción entre buenos y
malos inmigrantes. La política migratoria actual asume una posición favorable entre los que se

11 Es lo que se considera “enfoque trafiquista”, que consiste en la simplificación de la realidad entre los malos y
los buenos, es decir, de una parte estan las mafias criminales que engañan y explotan y de otro las pobres víctimas
engañadas y explotadas. De manera que no se admite prueba en contrario, ni de lo uno ni de lo otro, puesto que se
trata de una estrategia interesada de raíces económicas, legales, sociales y políticas de una inmigración que busca ser
ocultada a toda y cualquier costa (MAQUEDA ABREU In SERRA CRISTÓBAL, 2007, p. 299).
12 Los primeros, generalmente consisten en la necesidad vital de mejores condiciones para su desarrollo personal
y social; ya los segundos son establecidos por la buena marcha de la economía en los Estados centrales ayudado por
la disminución de la natalidad y necesidad de cubrir algunos sectores laborales. Dictamen del Comité Económico
y Social sobre Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo sobre una política comunitaria de
inmigración COM (757) final.
13 Derecho reconocido a nível internacional en el art. 13 de la Declaración Universal de los Derechos Humanos de
10 de diciembre de 1948. “art. 13. 1. Toda persona tiene derecho a circular libremente y a elegir su residencia en el
territorio de un Estado. 2. Toda persona tiene derecho a salir de cualquier país, incluso del propio, y a regresar a su
país”. Así mismo estos derechos considerados fundamentales son reconocidos en el art. 12 del Pacto Internacional de
Derechos Civiles y Políticos. Adoptado y abierto a la firma, ratificación y adhesión por la Asamblea General en su reso-
lución 2200 A (XXI), de 16 de diciembre de 1966 y con entrada en vigor en 23 de marzo de 1976. También reconoce
los referidos derechos el art. 5 apartado D ii) de la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las formas
de discriminación racial de 21 de diciembre de 1965 y art. 22 del Protocolo núm. 4 del Convenio Europeo para la
Protección de los Derechos Humanos y de las libertades fundamentales.
14 Con relación a ello es curioso percibir que el mismo art. 12 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos
que garantiza el derecho de emigrar establece, también, límites a referido derecho. Si no, véase que el apartado 3 de
este mismo artículo aduce que dicho derecho no será “objeto de restricciones salvo cuando éstas se hallen previstas en
la ley, sean necesarias para proteger la seguridad nacional, el orden público, la salud o la moral públicas o los derechos
y libertades de terceros, (...)”.
252
ajustan a lo que se considera inmigrantes necesarios ya que estos se encuentran adecuados a la
coyuntura oficial del mercado formal de trabajo y rechaza otros tantos por realizar actos de delin-
cuencia, o aún por seren considerados imposible aceptarlos (DE LUCAS In REMIRO BROTÓNS;
MARTÍNEZ CAPDEVILA, 2004, p. 27).
Castles, ha sintetizado el concepto de estos flujos de la siguiente manera: la inmigración
necesaria consiste fundamentalmente en la entrada de capital financiero especulativo a través de
la propiedad intelectual, trabajadores cualificados y/o necesarios para los nichos laborales que han
de localizarse en el Norte15, ya la inmigración innecesaria o mejor dicho, no deseada hace men-
ción a los “trabajadores de baja calificación, inmigrantes forzosos, refugiados, modos de vida alter-
nativos, valores culturales no occidentales o definido sin más como particularistas” (CASTLES,
2002 apud MARTÍNEZ DE PISÓN; GIRÓ, 2003, p. 23).
Así, es posible decir que consiste en un grande engaño asegurar que el discurso de los go-
biernos europeos se fundamenta en una política restrictiva al ingreso específico de los inmigrantes
extracomunitarios. No, pues la referida política se ocupa de establecer la “inmigración necesaria”
o, también, “legal” de la cual los Estados desarrollados reciben con gran facilidad y la “inmigración
innecesaria” del extranjero preterido por los Estados considerados centrales.
Es el aumento de esta inmigración innecesaria que despierta en los Estados desarrollados
la preocupación de controlar ese determinado flujo, puesto que la referida inmigración promueve,
por otro lado, un déficit en las cuentas públicas de los Estado considerados centrales como ya se
ha apuntado anteriormente.16
Es también por la inmigración innecesaria que se manifiesta el poder soberano del Estado
de destino en permitir o no permitir el acceso de los no nacionales en su territorio, estableciendo
por lo tanto el cierre de las fronteras de los Estados a través de complejas y restrictas “leyes para
extranjeros” que más que protegerlos de tratamientos xenófobos, protege a sus nacionales del
contacto con lo que les parece diferente.
Nótese, que en lo que atañe a las materias de reagrupación familiar o de salvaguarda del
derecho de asilo y refugio – materias referentes a las obligaciones internacionales – parte de la
doctrina afirma que actualmente se han desarrollado legislaciones más restrictivas, fruto de una
política fundamentada en el control de los flujos (DOMÍNGUEZ AMORÓS; OLIVELLA, 2000, p.
234) o en otras palabras, de los malos flujos.
El establecimiento de una política que segrega los migrantes – hombres y/o mujeres - antes
de su entrada genera la búsqueda por las redes informales de ayuda a la entrada en los Estados
de atracción. Las víctimas de esta migración por medio de las redes informales – para no decir
clandestinas - de ayuda, generalmente, son mujeres víctimas de la trata. El hombre, a su vez, casi
siempre llegan hasta esas redes via el tráfico humano. Sin embargo, no hay duda que en esta inmi-
gración las personas son, generalmente, sometidas a medios que evitan el tratamiento digno que
todo ser humano es poseedor por derecho.
De ahí la idea que la universalidad de los derechos humanos no tiene que está bajo el
concepto de las fronteras de los Estados o, aún, la protección de los límites geográficos y de la so-
beranía de un país no justifican la utilización de políticas que posibiliten la explotación futura de
cualquier persona, hombre o mujer; nacional o extranjero.
Entonces, cual será la acción ideal para la contención del referido flujo? Para algunos auto-
res “la tolerancia pluralista es la medida más eficaz tanto en la prevención de explosiones étnicas

15 Dicha circunstancia se fundamenta en el panorama del mercado laboral europeo, donde aquellas plazas antes
designadas a los naturales de los países desarrollados se quedan vacantes, ya que existe una escasez de la mano de
obra cualificada en Europa para el sostenimiento de la economía europea. Esta cuestión se refleja en la propuesta
presentada por la comisión europea de instituir la ¨tarjeta azul¨ para inmigrantes de terceros países con alta califica-
ción profesional.
16 Importante percibir que la autora no está de acuerdo con la idea de Guardiola Lago en lo que atañe al hecho de
que el cierre progresivo de fronteras a través de normativas cada vez más complejas y estrictas para los extranjeros
encuentra fundamento en la circunstancia del aumento significativo de la inmigración, puesto que este pasa a ser
percibido como un fenómeno de “alarma social”, de “amenaza” para los Estados receptores (CASTLES, 2002 apud
MARTÍNEZ DE PISÓN; GIRÓ, 2003, p. 25). La autora, a su vez, afirma que el fenómeno migratorio presenta dos
tipos esenciales de migración; la “buena” y la “mala” y es esta ultima la que promociona todo el malestar para la es-
tabilidad social y económica del Estado, mientras que la inmigración buena sólo promociona la inversión financiera
y recauda impuestos para el Estado.
253
reactivas como en la integración a largo plazo de los inmigrantes a la vida urbana”(PORTES In
MORENTE MEJÍAS, 2000).
Mejor es afirmar que los Estados centrales y, por lo tanto, considerados de destino conside-
ren la existencia de los elementos de expulsión de los Estados considerados periféricos, de manera
que vengan a establecer una colaboración con estos países, puesto que así garantizarían el derecho
de los nacionales de estos países subdesarrollados de no verse obligados a ejercitar su derecho a
emigrar (PEREZ CEPEDA, 2004, p. 11) y cuando así elijan, es decir, cuando elijan migrar que esta
elección sea libre de factores económicos, por lo menos.

5. CONCLUSIÓN
El fenómeno migratorio fundamentado en la concentración económica de los Estados cen-
trales genera en estos países la necesidad del establecimiento de una política migratoria que, a
su vez, se presenta como una política de identificación y acepte de los extranjeros considerados
necesarios y el cierre de las fronteras a los demás, ya que son considerados innecesarios.
Esta circunstancia, auxiliada por los medios de comunicación y por el poco conocimiento
sobre la relación de la economía versus fenómeno migratorio produce un verdadero aumento de
la xenofobia de los ciudadanos centrales, además de generar las “redes informales de ayuda” a la
esclavitud de los ciudadanos periféricos en los grandes centros económicos.
La esclavitud promovida en razón del fenómeno migratorio se realiza a través de dos espe-
cies esenciales: el comercio de personas representado por la trata y que consiste en la marginali-
zación de los inmigrantes para diferentes actividades delictivas o no y el cruce ilegal de fronteras
que puede ser realizado a través de las modalidades tráfico ilegal e inmigración clandestina.
Tal esclavitud es muy evidente en el proceso de feminización de la inmigración, ya que es-
tas mujeres emigrantes (innecesarias) generalmente están subordinadas en los países de destino
a los grupos domésticos o a la industria del sexo a través de la prostitución propiamente dicha o
más específicamente en razón de la trata de mujeres para la explotación sexual comercial.
Nótese que no se pretendió en ningún momento victimizar a estos inmigrantes innecesa-
rios, tampoco estereotipar estas redes ilegales o informales de ayuda a la inmigración irregular,
pero analizar como funciona el mercado laboral global de la inmigración y sus reflejos para estos
inmigrantes.
Por lo todo dicho, lo cierto es que el fenómeno de migración está acompañado de muchísi-
ma tensión, conflicto y desorden que termina por causar un cierto daño en el proceso de cambio
social. De ahí, se puede decir que la transformación estructural por la que pasan los Estados
desarrollados solamente será de gran relevancia para el futuro de la sociedad mundial si funda-
mentada en la reordenación de las fronteras, es decir, de las diferencias y esta es una tarea para
los países desarrollados, ya que el éxito de este proceso de migración es dependiente de ellos, de
sus acciones, de la manera de pensar e intervenir en esta cuestión17.

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