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Etimologicamente, a palavra cultura vem do latim "culturae", origem também de

termos como "cultivo" e "culto". "Culturae", por sua vez, deriva de "colere", que
significa plantar ou desenvolver atos agrícolas. O ser humano é como um grande campo
pronto para ser cultivado; logo, o conjunto de conhecimentos, hábitos, artes, leis, morais
e crenças é a semente disposta cuidadosamente sobre este campo.
Primeiramente, é preciso compreender que a cultura patriarcal, no Brasil e em
vários outros países ao redor do mundo, é estruturada na suposição de que o homem é
naturalmente superior à mulher e, portanto, deve assumir o papel dominante nos mais
diversos âmbitos: social, político, econômico ou familiar. Apesar de essa nem sempre
ter sido a forma como a sociedade foi estruturada, a globalização e o colonialismo
tornaram tais crenças errôneas especialmente difundidas. Hoje em dia, é essa cultura
que legitima a violência em tantas facetas diferentes, ignorando a voz, os desejos, as
habilidades e os direitos das mulheres.
Entre tais agressões que sofrem, uma das mais prejudiciais é, sem dúvida, a
sexual. Em 1974, o termo “cultura do estupro” foi registrado pela primeira vez no livro
“Rape: The First Sourcebook for Women” (editado por Noreen Connel e Cassandra
Wilson), e como em qualquer cultura, ele denota uma normalização e até mesmo um
estímulo, usualmente implícito, ao ato criminoso da violência sexual. Em análise do
termo, pode-se dizer que esta condescendência se mostra por meio da culpabilização das
vítimas e da desconfiança gerada todas as vezes que uma mulher ousa denunciar a
agressão que sofreu.
Assumir a existência de uma cultura do estupro não implica afirmar que todos os
homens são estupradores ou que os atos terríveis cometidos por eles são inocentes por
serem fruto de uma estrutura; na verdade, essa definição indica que as respostas ao
problema devem visar igualmente desconstruir tal sistema e proteger as mulheres de
algo muito maior do que alguns casos isolados. Significa que, por mais que medidas
imediatas sejam necessárias e eficazes, desenvolver leis e registrar ocorrências não é
suficiente.
Assim sendo, é importante verdadeiramente buscar compreender como as
meninas, em especial as jovens, são afetadas por esta cultura e procurar maneiras de
combatê-la pela raiz. Segundo o 8º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, realizado
em 2013, apenas 35% das vítimas de estupro notificavam o ocorrido. Além disso, o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) realizou um estudo, em 2014, que
indica que somente 10% das tentativas e consumações do ato criminoso em questão são
reportados à polícia. Esta é, talvez, a mais sutil e uma das maiores consequências que
pode ser citada: a subnotificação. O fato de que um número tão relativamente pequeno,
mas tão absolutamente grande e perigoso de pessoas (especialmente mulheres) relata
esse tipo de ocorrido é problemático tanto no que diz respeito às causas quanto aos
efeitos.
De parte das causas, sabe-se que a cultura do estupro reforça e reproduz
constantemente a ideia de que a vítima é mais culpada pelo que aconteceu com ela do
que o agressor. Portanto, não apenas a sociedade como também a mulher violentada
passam a acreditar que “se não estivesse usando aquela roupa”, “se não estivesse fora de
casa tão tarde” teria evitado o que ocorreu. Conforme uma pesquisa realizada pelo
Datafolha em 2016, 42% dos homens brasileiros acreditam que se a mulher “se der ao
respeito”, não será estuprada. Esse tipo de crença está intrinsecamente ligado ao receio
que muitas garotas sentem em compartilhar suas histórias e demandar justiça.
Além disso, o Mapa da Violência Contra a Mulher de 2018 mostra que 43% das
vítimas meninas possuem menos de 14 anos, o que as configura como vulneráveis.
Outrossim, entre tais casos, 96,8% foram cometidos por alguém de confiança da
família, de companheiros a parentes. Já é difícil para essas crianças reconhecer uma
situação de abuso sexual, e quando reconhecem, a relação que a família possui com o
abusador deixa a vítima em uma posição extremamente sensível e intimidadora.
Destarte, a vergonha e a desconfiança voltadas às mulheres são razões
primordiais pelas quais as denúncias deixam de ser feitas. Obter a garantia de
segurança, de credibilidade e de imparcialidade é crucial para elas na hora de notificar o
estupro. Ademais, a compreensão e o apoio da família e dos amigos são, se não
igualmente, ainda mais importantes.
Quanto aos efeitos, são diversos a serem enumerados, a maioria deles
prejudicando o âmbito prático do combate ao crime sexual; isto é, com a subnotificação,
índices de vários estados não condizem com a realidade, em conformidade com o que
mostra o Grupo de Estudo de Subnotificação de Estupros em Mulheres (GESEM):
muitos municípios brasileiros possuem indicativos nulos de estupro. Consequentemente,
se torna um trabalho complicado saber quais locais precisam de atenção especial, ou se
o país inteiro demanda um cuidado muito maior.
Para mais, o fato de que poucas mulheres falam sobre o abuso que as ocorreu
significa que muitas delas não têm acesso ao tratamento psicológico do qual usualmente
precisam. O silêncio as machuca e as sequelas do acontecido são duradouras. Isso quer
dizer que além de perpetuar crimes tão hediondos como este em questão, essa cultura
também afeta diretamente a saúde mental de milhares de garotas e as mantêm caladas,
quietas, quando tudo o que elas querem é ter sua voz ouvida.
A cultura do estupro emudece, mata e precisa ter um fim. Quebrá-la a partir da
educação dos homens, e não da privação das mulheres, é urgente; desafiá-la a partir do
estudo é fundamental; escutar e respeitar as vítimas é básico e muitas vezes pode salvar
uma vida. Finalmente, é preciso visualizar a verdadeira origem do problema e lidar com
ele sem tabus ou preconceitos. Esta estrutura possui raízes muito profundas que apenas
a discussão do tema e a ação contra o machismo formador da sociedade podem arrancar.

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