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Universidade Federal do Pará

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Faculdade de Ciências Sociais

Anais do V Encontro Amazônico sobre


Mulheres e Relações de Gêneros
https://doi.org/10.29327/527231.5

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

V Encontro Amazônico sobre Mulheres e Relações de Gêneros; (2019 nov, 19,


20 e 21: Belém, PA) Anais do V Encontro Amazônico sobre Mulheres e
Relações de Gêneros [recursos eletrônicos] / Grupo de Estudos e Pesquisas
“Eneida de Morais” sobre Mulher e Relações de Gênero – GEPEM/UFPA –
Dados eletrônicos. – Belém: Grupo de Estudos e Pesquisas “Eneida de Morais”
sobre Mulher e Relações de Gênero – IFCH/UFPA, 2020.
https://doi.org/10.29327/527231.5

Modo de acesso: World Wide Web. Disponível em:

http://encontroamazonico.org
Ciências Sociais; 2. Relações de Gênero; UFPA.

Os conteúdos dos textos são de totais responsabilidades dos seus respectivos autores.

Belém, 2020
Anais do V Encontro Amazônico sobre Mulheres e
Relações de Gêneros

Comissão Organizadora do Evento

Maria Luzia Miranda Álvares- FCS/IFCH/GEPEM


Maria Cristina Maneschy - PPGSA/GEPEM
Maria Antônia Nascimento (PPGSS/UFPA)
Adriane Raquel Santana de Lima – ICED/GEPEM
Maria Angelica Motta-Maués – PPGSA/IFCH/GEPEM
Telma Amaral Gonçalves – FCS/IFCH/GEPEM
Adelma Pimentel- PPGP/GEPEM
Denise Machado Cardoso - FCS/GEPEM
Maria Lucia Chaves Lima- PPGP/IFCH/GEPEM
Leila Cristina Leite Ferreira - GEPEM
Carla Cilene Siqueira Moreira – ICED/GEPEM
Benedito Nazareno dos Santos- GEPEM
Maira Bianca Sodré da Silva Sarmanho – GEPEM
Thais Pinheiro – GEPEM
João Santiago Lisboa – GEPEM
Elcione da Silva e Silva - GEPEM
Joyce Grasielle Chaves Fonseca – GEPEM
Evelyn Neves de Souza – GEPEM
Sumário
Apresentação ..................................................................................................................................... 10

Área Temática 1: Gênero, identidade e cultura ................................................................... 11

Conquista do espaço feminino no ensino superior: Um Olhar Sobre O Curso De


Educação Física - CRUZ, Beatriz Lorena Macedo ................................................................... 12

Racismo Institucional Contra Mulheres Negras Na Assembleia De Deus: Notas Sobre


Aspectos Gerais - SOUZA, Alef Monteiro de Souza; CAMPELO, Marilu
Marcia ..................................................................................................................................................... 22

Relações de gênero no ambiente escolar: um debate necessário - FONSECA, Luana


Nery; SILVA, Lana Claudia Macedo da ...................................................................................... 36

A Matriarcalidade na constituição da memória social do Quilombo do Rosa - SILVA,


David Junior de Souza ......................................................................................................................47

"Ser feminista é... ": As representações sobre o feminismo na imprensa paraense


(1912-1922) - RODRIGUES, Bárbara Leal; ZENI, Maurício .................................................65

Abigail: protagonismo feminino em contexto patriarcal, a partir de uma personagem


bíblica - MANESCHY, Maria Cristina ...........................................................................................82

Mulher e escrava: uma análise do trabalho de ganho em Belém do Grão-Pará de 1840


a 1860 - BRITO, Adria da Silva; LEAL, Luiz Augusto Pinheiro ............................................ 96

Telenovelas, gênero, interseccionalidade e relações de poder: análise das


representações sobre trabalhadoras domésticas na TV Globo - ESTEVES, Lorena;
LEAL, Camila Fagundes; CAL, Danila Gentil Rodriguez ..................................................... 115

Entrando na roda: relações de gênero no Movimento Capoeira Mulher em Belém- PA -


PENA, Luana de Nazaré Pinto; ABREU, Rachel de Oliveira .............................................135

“Nova Capoeiragem Da Mulher”: A Atuação Feminina Na Prática Da Capoeira Em


Belém No Final Do Século XIX E Início Do XX - PASSOS, Lucenilda dos Santos;
LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. ....................................................................................................... 154

#Naomerotule: Juventude, Identidade E Diferença Em Belém/Pa - FERREIRA, Kirla


Korina Anderson; BARATA, Bruna Conceição de
Souza .................................................................................................................................................. 173

Área Temática 2: Gênero, Cidadania e Participação Política...................................... 183

Desigualdade e Representatividade Feminina: Uma análise sobre as repressões e


representatividades femininas no jogo Free Fire - SILVA, Aline Fernanda Pereira da;
MAIA, Maria Bernadete Reis.........................................................................................................184

Existe Gestão Social Na Marcha Das Vadias? - ARAÚJO, Déborah; MAIA,Natália


Lima; STEWARD, Angela May..................................................................................................... 203

4
“O suplício de mundanas”: uma carta à primeira dama de Belém - SILVA, Jhenifer
Denise Souza da; LACERDA, Franciane Gama......................................................... 212

Protagonismo e formação política de mulheres: caminhos para superar a sub-


representação - FERREIRA, Maria Mary.................................................................... 221

“Driblando a natureza”: práticas e percepções de jovens (mulheres) em torno da


contracepção e do aborto em uma escola da rede pública de Belém do Pará - SOUZA,
Lucas Oliveira de; PANTOJA, Ana Lídia Nauar; ALVES,
Lucivaldo.....................................................................................................................237

Colonialidade do saber, poder e ser: um ensaio sobre a idosa marajoara, a cidadania,


os silenciamentos e suas memórias - BARBOSA, Rodolfo Cunha; SANTOS, Ana Maria
Smith; PELEGRINI, Pâmela Beatriz
Ferreira........................................................................................................................249

“Outras lutas além do fogão”: o movimento de mulheres negras da região Guajarina-


PA, na década de 1990 - ANDRADE, Antonia Lenilma Meneses de; LEAL, Luiz
Augusto Pinheiro .........................................................................................................268

Representação política, gênero e estereótipos: análise de aspectos discursivos da


atuação das vereadoras de Belém e de Manaus no Facebook - KAHWAGE, Nathália
Lima; CAL, Danila Gentil Rodriguez ............................................................................282

Cidadania Alcançada pela torneira ou pelo poço? relatos de mulheres marajoaras e


suas dificuldades para acessar a água em Breves-PA - SANTOS, Ana Maria Smith;
LIMA, Elizandra Gomes de ..........................................................................................302

PEC das Domésticas no jornalismo paraense: tensões entre gênero e classe na


ampliação dos direitos das trabalhadoras - CAL, Danila Gentil Rodriguez; LOPES,
Maria Luiza; REZENDE, Thaís Cavalcante .................................................................316

A Luta Política de Iza Cunha na construção da cidadania e garantia dos direitos


humanos no Estado do Pará - TEIXEIRA, Sandra Regina
334
Alves............................................................................................................................

Mulheres e direito à cidade - FREITAS, Gizelle Soares de......................................... 349

Área Temática 3: Gênero, comunicação, arte e literatura..................................... 359

Marias da Castanha (1987): produção audiovisual amazônida e feminina nos anos 80 -


CARMO, Amanda Passos do ......................................................................................360

Uma Releitura da Narrativa de Inglês se Souza sob a Perspectiva do Feminino -


AMORIM, Joyce Cristina Farias de .............................................................................379

Vozes Negras e Indígenas na Literatura Latino-Americana Contemporânea: uma


questão de identidade - ABREU, Francelina Barreto de .............................................394

Mulheres Compositoras em Belém, da Belle Époque até a Primeira Metade do Século


XX - SOUZA, Dione Colares de; FURTADO, Marli
Tereza.........................................................................................................................406

5
Não somos Iracema: vozes indígenas femininas – dos estereótipos à resistência -
SILVA, Jairo da Silva e ................................................................................................................... 417

As Faces da Mulher Amazônica: a negritude em Dalcídio Jurandir - SANTOS, Alinnie


Oliveira Andrade. .............................................................................................................................. 432

A Representatividade Negra como Construção de Identidade: uma análise do conto


Lumbiá, de Conceição Evaristo - CAMPELO, Cristiane de Jesus Cordeiro; RESQUE,
Jorge Haber ........................................................................................................................................ 448

Área Temática 4: Mulher, Relações de Trabalho, Meio Ambiente,


Desenvolvimento............................................................................................................................ 467

Desenvolvimento e equidade de gênero? Experiência de um projeto de geração de


renda para mulheres em Bragança-Pará - SILVA, Ana Patrícia Reis da; MANESCHY,
Maria Cristina .................................................................................................................................... 468

Implicações sobre desigualdade ambiental presente na cartilha “O dia em que a mata


sumiu” - PESSOA, Cláudia de Fátima Ferreira; MOREIRA, Carla Cilene Siqueira;
RIBEIRO, Tânia Guimarães ..........................................................................................................480

As parteiras ribeirinhas do Amapá: a arte de partejar e o racismo epistêmico - LUZ,


Maria das Neves Maciel da; SILVA, David Junior de Souza. ............................................. 492

Percepção de Mulheres sobre Impactos Socioambientais na RESEX Marinha


Cuinarana, Magalhães Barata-PA - SOUSA, Fernanda Vale de; ALMEIDA, Ruth
Helena Cristo. .................................................................................................................................... 508

Uma Reflexão Sociológica Do Desemprego Entre As Mulheres No Brasil - AMARAL,


Ivanete Modesto do. ........................................................................................................................ 526

Juventude rural no trabalho da agricultura familiar na comunidade do Espírito Santo do


Itá, Santa Isabel – PA - BOTELHO, Matheus Gabriel Lopes; ALMEIDA, Ruth Helena
Cristo. ...................................................................................................................................................546

Geografia, Gênero E Injustiças Socioambientais: reflexões sobre a comunidade de


Piquiá de Baixo em Açailândia/MA - SILVA, Jordânia da Conceição; SOUSA, Jailson
Macedo de. ......................................................................................................................................... 565

Mulheres no comando: uma análise acerca dos desafios e perspectivas de mulheres


em cargo de gestão - NEVES, Larissa da Cruz; SILVA, Lana Cláudia Macedo da.
580

Etnoconhecimento e conservação da agrobiodiversidade pelas mulheres camponesas


no Projeto de Assentamento Mártires de Abril/Pará - SILVA, Regina Oliveira da;
MARTINS, Cyntia Meirelles; ALMEIDA, Ruth Helena Cristo.............................................. 590

Uso De Recursos Naturais Com Enfase Em Gênero No Salgado Paraense -


CARVALHO, Thaís Mayara da Silva; SILVA, Regina Oliveira da. ....................................605

6
Modificações do papel das mulheres na pesca artesanal no município de Marapanim-
Pa - COSTA, Layse Rosa Miranda da; REIS, Samanta Conceição da Silva; FURTADO,
Lourdes de Fátima Gonçalves. .................................................................................................... 614

Mulher e divisão sócio/sexual do trabalho no contexto da Política de assistência social


brasileira - BARACHO, Gessyca Anne da Silva. .................................................................... 623

As Relações Geografia, Gênero E Trabalho: uma abordagem a partir das expressões


e significados do trabalho feminino rural no município de Imperatriz-MA - GOMES,
Micaela Brito; SOUSA, Jailson de Macedo; SILVA, Hayllana Alves da ..........................640

Área Temática 5: Gênero, Saúde e Violência ..................................................................... 651

O perfil das vítimas de feminicídio na região metropolitana de Belém do Pará a partir


das reportagens do caderno policial do Jornal “Diário do Pará”, no período de 2006 a
2015 - DIAS, Ana Doroteia Santos ............................................................................................. 652

Mulheres Em Situação De Rua: o perfil das mulheres acolhidas no Abrigo João de


Deus - Belém – PA - RAMOS, Adriana Clícia Ferreira; SOUSA, Jessica da Silva
de;SOEIRO, Maria Goreth dos Santos...................................................................................... 671

A romantização do abuso pelas histórias de ficção - AMARANTE, Alice Cáritas


Almeida. ............................................................................................................................................... 688

O Empoderamento feminino no processo de rompimento do ciclo de violência


doméstica - BEZERRA, Mariana Ferreira; SALDANHA, Carla Figueiredo Marinho.
706

Doença falciforme, ancestralidade e aconselhamento genético: relações de gênero e


direitos reprodutivos no Estado do Pará, Amazônia - SILVA, Ariana Kelly Leandra Silva
da; OLIVEIRA, Roseane Bittencourt Tavares; FILGUEIRAS, Lígia Amaral. ................. 719

A Implementação de Políticas Públicas no Combate à Violência contra a Mulher no


Pará (2014-2018) - RAMIREZ, Carla; ELMESCANY, Raquel Serruya. ..........................732

As Principais Demandas De Cuidado Na Assistência A População LGBTI+ - SANTOS,


Marcio Yrochy Saldanha dos; PANTOJA, Ana Lídia Nauar; QUEMEL, Glenda Keyla
China. ...................................................................................................................................................748

Uma aparência sã e florescente: representações da saúde feminina nos jornais


paraenses (1910 - 1920) - NOGUEIRA, Yasmin Carina Nunes; LACERDA, Franciane
Gama. ................................................................................................................................................... 757

Políticas públicas de atendimento às mulheres vítimas de Violência no Estado do Pará:


da proposta orçamentária à implementação dos serviços - SILVA, Elcione da Silva e;
ÁLVARES, Maria Luzia Miranda ................................................................................................. 772

Caracterização dos delitos contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar em Belém-


Pará - CAR, Alethea Maria; RAMOS, Edson Marcos Leal Soares; ALMEIDA, Silvia dos
Santos de. .......................................................................................................................................... 792

7
Litigância Estratégica em prol da descriminalização do aborto: usos, sentidos e
práticas na clínica de atenção à violência - CARMO, Maura Sabrina Alves do ........... 801

Relações De Gênero E Território: considerações sobre as violações de direitos


humanos de meninas ribeirinhas do Arquipélago do Marajó - CARVALHO, Letícia
Costa de; GUIMARÃES, Jacqueline Tatiane da Silva; MEDEIROS, Nilza de
Sousa .................................................................................................................................................. 820

Área Temática 6: Gêneros, Corpos, Sexualidades .......................................................... 828

Arco-Íris Em Prosa: Representações das homossexualidades e de travestis na


Ditadura Civil-Militar em reportagens dos periódicos da década de 1970 - CASTRO,
Alana Albuquerque de; CANCELA, Cristina Donza. ............................................................ 829

Erotização e sexualização do corpo: representações sociais da mulher brasileira -


MIRANDA, Dábila de Cássia Brito de; MARTINS, Carmentilla das Chagas. ................ 848

A garota dinamarquesa: fuga ao padrão dicotômico de homem e mulher no século xx -


PAIVA, Flamilda De Moares; BASTOS, Sandra Nazaré Dias............................................ 867

Territorialidades homossexuais na cidade de Imperatriz/Ma: reflexões a partir da


realidade social vivenciada no bar “Imigrantes” - SOUSA, Jackson Santos de; SOUSA,
Jailson de Macedo. .......................................................................................................................... 881

Para além do arco-íris: a relação dos homens gays com a cultura material na 18º
Parada do Orgulho LGBTI de Belém - ROSA, José Carlos Almeida da; GONTIJO,
Fabiano de Souza. .......................................................................................................................... 900

Mulher-artesã do miriti: entre a esfera pública e produção da diferença - LOBATO,


Lídia Sarges; RIBEIRO, Joyce Otânia Seixas. ....................................................................... 918

O aborto e as interpretações kantianas frente à concepção gestacional -


NASCIMENTO, Lorena de Paula Ferreira do; SILVA, Katherine Vitoria Damásio;
SOUZA, Luanna Tomaz de. ..........................................................................................................933

Gênero e sexualidade integrados às bases conceituais e teóricas da educação


profissional e tecnológica - GEMAQUE, Robelania Dos Santos; CAVALCANTI, Natália
Conceição da Silva Barros. ...........................................................................................................943

Corporeidades e Identidades: Hip-hop e Mulheres que dançam Break - SOUSA,


Sabrina Figueiredo ...........................................................................................................................962

Binaridade de Gênero: percepções sobre corporeidades entre um grupo jovens em


Belém, Pará - SILVA, Vic Argôlo da Silva; ALVES, Lucivaldo Almeida; PANTOJA, Ana
Lídia Nauar ......................................................................................................................................... 974

Área Temática 7: Feminismo, Gênero e Interseccionalidade ..................................... 984

Gestoras e os Casos De Sexismo, Machismo E Invisibilidade Nas Escolas Do Campo -


SANTOS, Alandienis Souza; LINHARES, Anna Maria Alves............................................. 985

8
A Subalternização Na Vida Mulheres Negras Como Empregadas Domésticas No
Mercado De Trabalho De Belém Trajetórias De Vida No Século Xxi - BEZERRA,
Alessandra Viviane Vasconcelos; SILVA, Danielle Silva da .............................................. 997

“Que Mulher Capoeira!”: Trajetórias de resistência feminina na Capoeira no Pará do


Século XXI - CAMÕES, Luciane De Sena............................................................................. 1007

9
APRESENTAÇÃO
A Coordenação e demais pesquisadoras/es associadas/os do GRUPO DE
ESTUDOS E PESQUISAS ―ENEIDA DE MORAES‖ SOBRE MULHER E
RELAÇÕES DE GÊNERO – GEPEM convidam professoras/es,
pesquisadoras/es, estudantes, especialistas, profissionais, movimentos sociais
e integrantes dos diversos Grupos e Núcleos, Centros e Programas de
Pesquisas e Estudos sobre a questão de gênero e mulheres das diversas
Regiões para participarem do V ENCONTRO AMAZÔNICO- MULHERES
AMAZÔNIDAS: DEMOCRACIA, RESISTÊNCIAS, CONSTRUÇÃO DE
SABERES, intencionando avaliar o impacto, no campo acadêmico (ensino,
pesquisa e extensão), dos estudos sobre mulheres e relações de gêneros na
Amazônia. O Encontro objetiva: a) reforçar a rede de
pesquisadoras/pesquisadores, estudantes, profissionais e membros de
movimentos sociais voltados à pesquisa das relações de gênero e a suas
aplicações na região amazônica; b) identificar áreas que necessitam atenção
de pesquisa, de formação de recursos humanos e de fundamentação de
políticas públicas promotoras de equidade de gênero; c) dar visibilidade
acadêmica e na sociedade mais ampla ao tema da diversidade de gênero na
Amazônia; d) fortalecer a teoria crítica feminista latino-americana que tem
fomentado estudos sobre as mulheres com base na interseccionalidade,
perspectiva esta que interage em níveis múltiplos nas questões de gênero,
classe, raça, capacidade, orientação sexual, religião, idade e demais eixos de
identidade; e) construir parcerias com as organizações de mulheres da
Amazônia, visando ao intercâmbio de saberes para contribuir nas demandas de
políticas sociais; f) estimular a linha de publicações já iniciada nos encontros
anteriores, prevendo a difusão, maior alcance e circulação dos estudos
realizados na Região Norte sobre essas questões. O V Encontro reveste-se de
especial importância por duas razões principais. De um lado, pela crescente
relevância da temática, quando as demandas sociais por crescimento
econômico inclusivo e respeitoso dos limites ambientais incluem, em ampla
medida, a atenção às injustiças baseadas nas relações sociais de gênero. De
outro lado, o evento marca os 25 anos de existência do GEPEM, cuja trajetória
acumula vasta produção de pesquisa, extensão e ensino, este último com
presença de docentes em diferentes cursos de graduação, pós-graduação e de
outros níveis no âmbito da UFPA e, também, em instituições de outras regiões.

10
AT 1 - Gênero, Identidade e Cultura
Coordenação

Maria Angélica Motta-Maúes - UFPA

Avelina Castro – FEAPA

Socorro Amoras -UFPA

Proposta da Área temática

Esta área temática propõe-se a desenvolver estudos abrangendo a


investigação e discussão do processo de construção das relações sociais,
marcadas nas imagens e representações das relações de poder culturalmente
estabelecidas no sistema patriarcal dominante. Esses estudos tendem a
focalizar a produção social da diferença, articulando as categorias de gênero,
raça, classe, sexo e idade, marcadores sociais que configuram os sistemas de
classificação social relativo às identidades coletivas e compõem o processo de
interseccionalidade.

11
V ENCONTRO AMAZÔNICO SOBRE MULHERES E GÊNEROS – GEPEM
19 a 21 de novembro de 2019
Universidade Federal do Pará (UFPA)
At1 gênero, identidade e cultura

A CONQUISTA DO ESPAÇO FEMININO NO ENSINO SUPERIOR: UM OLHAR SOBRE O


CURSO DE EDUCAÇÃO FÍSICA.
https://doi.org/10.29327/527231.5-1

Autora: Beatriz Lorena Macedo Cruz -Universidade do Estado do Pará (UEPA)


Co-autor: Ms. Celso Michiles Barreto - Faculdade FACI/WYDEN

RESUMO
O trabalho de pesquisa teve como objetivo demonstrar o processo de conquista do espaço
feminino nos Cursos de Educação Física do Brasil, apresentando as questões de gênero
existentes em relação ao feminino, a partir de publicações científicas da língua portuguesa na
área da educação física no ensino superior. Para o levantamento de dados utilizou-se de revisão
sistemática com as palavras-chave representatividade, empoderamento feminino, gênero,
educação física; foram utilizadas ao final do processo 8 obras que atenderam aos critérios de
inclusão e exclusão. Após o estudo, concluiu-se que a representatividade das mulheres que
frequentam o curso de educação física ainda não é equivalente à dos homens, por uma série de
motivos já mencionados. Entretanto, as estimativas são de que o nível de representatividade
destas mulheres cresça progressivamente nos anos que ainda virão.

Palavras-chave: Representatividade. Empoderamento feminino. Gênero. Educação Física

ABSTRACT
The research work aimed to demonstrate the process of conquering the female space in
Physical Education Courses in Brazil, presenting the existing gender issues in relation to the
feminine, from scientific publications of the Portuguese language in the area of physical
education in higher education. For data collection, we used a systematic review with the
keywords representation, female empowerment, gender, physical education; eight works that
met the inclusion and exclusion criteria were used at the end of the process. After the study,
it was concluded that the representation of women attending physical education is not yet
equivalent to men, for a number of reasons already mentioned. However, it is estimated that
the level of representativeness of these women will grow progressively in the years to come.

Keywords: Representativity. Female empowerment. Genre. Physical education.

12
1 INTRODUÇÃO

O trabalho a seguir corresponde a uma revisão sistemática que tem como objetivo
mostrar como foi dada a conquista do espaço feminino no ensino superior, especificamente
nos cursos de educação física do Brasil. Além do mais, busca relatar as questões de gênero
existentes em relação ao feminino, a partir de publicações científicas da língua portuguesa
na área da educação física e ciências a fim, que abordam temas sobre a presença de
mulheres nos cursos superiores e como aconteceu o processo histórico de inserção dessas
mulheres. Para que a pesquisa fosse realizada, houve a imprescindibilidade de utilizar da
internet para encontrar as publicações científicas que contivessem características as quais
se adequassem aos critérios de inclusão e exclusão que foram estabelecidos ao início desta
pesquisa, a fim de apresentar levantamentos sobre o assunto, constatar fatos e refletir sobre
o processo histórico do feminino no ensino superior e também sobre as questões de gênero
existentes. Inicialmente foram encontradas, a partir de palavras chaves selecionadas
(representatividade, empoderamento, feminina, mulher, gênero, educação física, ensino
superior), 59 publicações científicas e ao fim foram utilizadas 8 obras para propiciar
embasamento à construção deste trabalho.

13
2 DADOS QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS

Historicamente, ocorrem discriminações de gênero advindas do período


patriarcal, no qual os homens eram detentores do poder sobre as
mulheres. Segundo Ribeiro (2003, p. 79), no período colonial, de 1500 a
1822, ―tanto as mulheres brancas, ricas ou empobrecidas, como as
negras escravas e as indígenas não tinham acesso à arte de ler e
escrever‖ (...). (VIANA, SOUZA, NETA, 2017, p.4)
A realidade vivida pelas mulheres no período colonial é muito diferente da que a mulher
atual vive, pois lhe eram negados seus direitos e não podiam ter acesso a conhecimentos da
época que eram destinados apenas aos homens, como por exemplo a educação básica e
principalmente a educação superior. As mulheres eram limitadas ao ambiente doméstico,
atarefada com os afazeres do lar, cuidados com marido e filhos, por serem julgadas como o
―sexo frágil‖, que supostamente seria delicado e frágil, sendo posto em situação de
inferioridade.
Beltrão e Alves (2009, p. 128) mencionam que o ―decreto imperial
que facultou à mulher a matrícula em curso superior data de 1881.
Todavia, era difícil vencer a barreira anterior, pois os estudos
secundários eram essencialmente masculinos, além de caros e os
cursos normais não habilitavam as mulheres para as faculdades‖(...).
Apesar da divergência nas informações, todas confirmam que o
acesso da mulher ao ensino superior só ocorreu nos anos de 1880
no Brasil. (PEREIRA, FAVARO, 2017, p.5532)
Graças a desinquietação das mulheres que queriam ter os seus direitos de estudar, ter
conhecimento de mundo, independência intelectual e financeira para que não fossem
restringidas ao lar e tudo aquilo que a sociedade culturalmente sempre impôs ao gênero
feminino, foi o ponto de partida para que houvessem mudanças. Essas mudanças iniciaram
quando mulheres foram à luta e conquistaram seu espaço que vem crescendo
gradativamente de forma apreciável.
Entre as modificações sociais de gênero que ocorreram na sociedade brasileira nas
últimas décadas, a inserção da mulher na universidade tem se mostrado uma das mais
significativas. (ROMANELLI, 2000 apud ÁVILA, PORTES, 2009, p.92)
A mulher brasileira contemporânea conquistou e continua conquistando seu lugar na
sociedade, principalmente no que diz respeito ao ensino superior que é um intermédio para
a proporção da melhora de vida, pois insere estas mulheres no mundo do mercado de
trabalho, gerando a elas a independência e o empoderamento que há anos atrás não existia.

Por muitos anos a educação superior foi considerada um privilégio


masculino e a presença das mulheres nas universidades brasileiras
era bastante reduzida. Tal situação apenas começa a se alterar na
década de 1970, com o início de questionamentos a respeito da
posição social e econômica da mulher e o maior acesso do
contingente feminino às universidades. (VENTURINI, 2017, p.1)

14
A partir da década de 70, onde houveram estas indagações a respeito do lugar da mulher na
sociedade, as mulheres almejaram conquistar o seu maior grau de educação e partiram para a
investida de obterem vagas nas Universidades, cursar e concluir os cursos escolhidos ainda que
existissem grandes dificuldades tanto pelo gênero quanto pela sociedade.
O conceito de gênero, construído inicialmente nos anos de 1960 se
consolida no movimento feminista na década de 1980, a partir de
autores como Scott (1990) e Nicholson (2000) que ajudam na
compreensão de que as diferenças observadas entre mulheres e
homens são construções sociais e históricas e devem ser
dimensionadas como hierarquias de poder. Para Scott (1990, p. 75)
―gênero é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado‖.
(ARTES, CHAGAS, 2017, p.1)
Por décadas o gênero feminino foi julgado e discriminado pelo que o patriarcado
estipulou, pela visão do corpo da mulher, visto como instrumento sexual de reprodução e
incumbido das responsabilidades domésticas. A partir do movimento feminista em 1980,
esses padrões de visão sobre o corpo feminino começaram a mudar pois as mulheres
estavam cansadas de serem vistas como apenas um corpo destinado a satisfação dos
homens e da sociedade como um todo.
A tentativa de equidade entre os sexos é a grande questão da nova era, uma vez que as
mulheres estão alcançando a sua educação a nível superior que por tempos lhes foi negado,
ficando claro que o sexo feminino pretende estar no mesmo nível acadêmico que os homens
e que futuramente o percentual quantitativo de mulheres dentro das salas de aula de
universidades seja igual ao percentual quantitativo de homens.
Metade da população potencialmente interessada em ingressar no
ensino superior é constituída por mulheres. Diante da crescente
expansão desse grau de ensino, principalmente a partir de 1967 –
1968, cabe indagar até que ponto esse fato vem redundando em
maior abertura das oportunidades de acesso para os elementos do
sexo feminino (...). Num momento em que os papéis sexuais
tradicionais estão sendo questionados e redefinidos em diferentes
sociedades, e em que a situação de inferioridade social e econômica
da mulher já não é pacificamente aceita, seu acesso às
oportunidades de formação universitária pode ser considerado como
um objetivo intermediário importante para atingir maior igualdade
entre os sexos no mundo do trabalho e na organização social em
geral. (BARROSO, MELLO, 1975, p.47)
Dados do Censo Demográfico do IBGE indicam que em 1970 as mulheres representavam
26,6% da população com nível universitário, proporção esta que subiu para 45,5% em 1980
(GUEDES, 2008, p. 124 apud VENTURINI, 2017, p.2).
Estes dados mostram o quanto o quantitativo de mulheres aumentou naquele ano e estes
números não pararam de crescer no decorrer do tempo, pois as mulheres estão dominando
as universidades e mostrando para a sociedade machista brasileira onde também é o lugar
delas.

15
O aumento da participação feminina no ensino superior é reflexo da
consolidação de direitos adquiridos pelas mulheres ao longo do tempo,
neste sentido, as políticas públicas voltadas para a democratização do
acesso, contribuíram efetivamente para que estes resultados fossem
atingidos. As reformas e programas governamentais são instrumentos
facilitadores da promoção da igualdade de oportunidades entre os
gêneros. (VIANA, SOUZA, NETA, 2017, p.8)

Mesmo que as políticas e ações asseguradoras da equivalência de gênero sejam


iniciantes no Brasil e que ainda não sejam capazes de evitar a discriminação sexista sofrida
pelas mulheres, não pode ser negado que existe esse amparo mínimo para estas questões.
Ao conquistar seus direitos como cidadãs, as mulheres buscaram usufruir do que lhes foi
concedido da melhor forma possível, buscando progredir educacionalmente, socialmente e
humanamente.
Em 1998, a Unesco promoveu uma conferência que resultou na Declaração Mundial
sobre Educação Superior no século XXI, que destacava a necessidade de aniquilar todos os
estereótipos de gênero da educação superior, eliminando as diferenças de gênero que
existem durante o período de graduação, fortificando a presença de mulheres nas várias
áreas do conhecimento ofertadas pelas universidades, sobretudo nos cursos onde estas
mulheres ainda não estão tão representadas.
Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP) sobre a mulher na educação superior
brasileira, no período compreendido entre os anos 1991-2005
(RISTOFF et al., 2007), revelam, também, que ao longo do período
estudado, as mulheres não só representam a maior parte dos
inscritos nos vestibulares como a maioria dos ingressantes no ensino
superior e a maior parcela dos concluintes, tendo obtido mais
sucesso acadêmico que os homens. (ÁVILA, PORTES, 2009, p.94).
Observa-se que o sexo feminino possui mais interesse na introdução ao ensino superior,
em função disso que as informações oferecidas pelas pesquisas na área consolidam as
mulheres como as que mais se inscrevem no vestibular e ingressam nas universidades. A
consequência disto é que boa parte da área acadêmica hoje está sendo representada pelas
mulheres e o sucesso destas está se tornando real.
Em 2005, as mulheres representaram 55,5% dos inscritos nos vestibulares, 55% dos ingressantes e
62,2% dos concluintes nos cursos superiores. Nesse mesmo ano,
observando-se a dependência administrativa das instituições de
ensino superior, as estatísticas apontam que 45,2% das mulheres
matriculadas nesse nível de ensino encontram-se na rede privada e
42,6% na rede pública. O estudo apresenta apenas os dez maiores
cursos de graduação do país por número de matrícula. Em 2005, as
mulheres foram maioria em cinco deles: Pedagogia (91,3%),
Comunicação Social (56,6%), Letras (80%), Ciências Contábeis
(50,7%) e Enfermagem (82,9%). Nos cursos de Administração (com
49,2%), Direito (48,9%) e Educação Física (43,1%), embora as

16
mulheres não sejam maioria, a distância com relação à porcentagem
de homens é pequena. (ÁVILA, PORTES, 2009, p. 94-95)

Gráfico 1: Mulheres Gráfico 2: Representação


interessadas no ensino feminina nos dez maiores
superior em 2005: cursos de graduação do
Mulheres Homens país por número de
matrícula:
55,50% 55% 62,20%
44,50% 45% Rede pública Rede privada
37,80%
45,20%
42,60%
Inscritos nos Ingressantes Concluintes
vestibulares Dependência administrativa

Gráfico 3: Quantitativo de Gráfico 4: Dados de


mulheres nos maiores representatividade no
cursos de graduação do curso de educação física
56,90%
país por número de
matrícula: 43,10%

Pedagogia
43,10%
48,90% 91,30% C. social
Letras
49,20% 56,60%
Representatividade nos cursos de
C. Contábeis
educação física
82,90% 80% Enfermagem
50,70% Mulheres 43,10%
Administração Homens 56,90%

Como consta nos referenciais de 2005, os cursos de educação física, tanto de


Universidades públicas quanto de particulares, já haviam conquistado 43,1% de
representatividade feminina em si, quase metade do quantitativo de alunos ingressos. Este
valor percentual não estava longe do percentual masculino na época que era de 56,9%,
subentendendo que as mulheres estavam se equiparando aos homens que frequentavam o
curso desde aquela época.

17
Dados do Censo da Educação Superior divulgados pelo INEP indicam que em 2015 as
mulheres representaram 59,88% dos estudantes que concluíram cursos de graduação
presenciais no Brasil. (VENTURINI, 2017, p.3)
Segundo informações do Censo da Educação Superior, divulgado
em 2016, o perfil do discente da graduação no Brasil demonstra que
há uma predominância de mulheres tanto na modalidade presencial
quanto à distância. Além disso, o turno noturno é o que possui mais
estudantes matriculados na modalidade presencial. (VIANA, SOUZA,
NETA, 2017, p.8)
Se tratando de todas as ciências ofertadas pelo ensino superior, as mulheres
ultrapassaram a somatória de homens existentes nas universidades tanto na modalidade
presencial quanto à distância, equivalendo mais da metade de das vagas ofertadas.
Infelizmente dentro dos cursos de educação física esta realidade ainda não é um fato, por
a profissão ainda ser considerada mais voltada para homens, pelo seu cunho educacional
prático-corporal. Isto está ligado claramente a uma questão de gênero que ainda é vigente
nos dias atuais, por influência da cultura discriminatória enraizada na sociedade brasileira.

Além de considerar gênero como uma categoria de análise, é


importante considerá-lo uma categoria histórica. Pois não há
sociedade que não elabore imagens vinculadas ao masculino e ao
feminino, e essas construções são datadas e contextualizadas. As
ações humanas não são apenas fruto de decisões racionais, mas se
estruturam a partir do imaginário social com seus simbolismos que
subsistem nas culturas. (ZUZZI, SAMPAIO, KNIJNIK, 2008, p.128)

Diversos procedimentos repetidos no cotidiano evidenciam a


construção das matrizes de gênero sobre o sexo anatômico, a
exemplo das cores, o cor-de-rosa para as meninas e o azul para os
meninos. Ou então, os brinquedos bonecas e panelinhas para as
meninas, carrinho e ferramentas para os meninos. O tipo de trabalho,
o ―pesado‖ é para homem, o ―leve‖ é para mulher e, comumente, na
prática esportiva, futebol e basquete são para os meninos, enquanto
ginástica e dança para as meninas. (ZUZZI, SAMPAIO, KNIJNIK,
2008, p.128)
Com base nessas informações, percebe-se o por que o curso de educação física tem matriz
patriarcal, um certo machismo disfarçado, visto que desde o princípio a visão social do sexo
feminino é determinado como pouco apto a realizar atividades pesadas, práticas esportivas e o
alto rendimento. Entretanto as mulheres vêm comprovando que esta percepção sobre elas está
completamente errônea, porque progressivamente estas estão cada vez mais ativas nas práticas
corporais que demanda a educação física, encaminhando-se para a formação desta área
científica que é rica em conhecimento e consequentemente quebrando paradigmas.
As diferenças existentes entre os sexos não podem sustentar
discriminações e desigualdades sociais, como se os ―órgãos
genitais‖, entre outros fatores fisiológicos, fossem um meio pelo qual
pudéssemos esclarecer os processos de subordinação e dominação

18
historicamente construídos. O preconceito não se encontra no ―corpo
anatômico‖, mas no ―corpo culturalizado‖. (ZUZZI, SAMPAIO,
KNIJNIK, 2008, p.128-129)
As mulheres ainda enfrentam grandes obstáculos na introdução e permanência no ensino
superior, principalmente na educação física, por todas as situações que foram expostas ao
longo deste estudo. Porém são barreiras que podem ser superadas em virtude do
empoderamento feminino.

19
3 CONCLUSÃO
Este estudo teve como objetivo apresentar como ocorreu o processo de conquista do
espaço feminino no ensino superior, com um olhar voltado para o curso de educação física.
Pôde ser observado que existiram várias dificuldades ao longo deste percurso, iniciando-se
com a negação dos direitos educacionais as mulheres no período colonial, seguindo pela
discriminação do corpo feminino, do ―sexo frágil‖, da prevalência de homens no ensino
superior e favoritismo masculino em determinados cursos; assim como o preconceito sobre
a capacidade feminina em determinadas atividades.
Fez-se claro o interesse feminino em ingressar neste nível educacional, em busca dos
seus direitos, introdução ao mercado de trabalho e conquista da melhoria de vida, apesar
dos obstáculos. As mulheres deste século estão ocupando mais da metade das vagas
ofertadas pelo ensino superior do Brasil, em universidades públicas e privadas, tanto na
modalidade presencial quanto à distância.
Contudo, a representatividade das mulheres que frequentam o curso de educação física
ainda não é equivalente à dos homens, por uma série de motivos já mencionados.
Entretanto, as estimativas são de que o nível de representatividade destas mulheres cresça
progressivamente nos anos que ainda virão.

20
REFERENCIAS

VENTURINI. A PRESENÇA DAS MULHERES NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS: UM


PANORAMA DE DESIGUALDADE. 2017. Disponível em:
http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1500230828_ARQUIVO_Ann
aCarolinaVenturini_Texto_completo_MM_FG.pdf. Acesso em: 06.06.2019

ARTES, CHAGAS. A PRESENÇA DE MULHERES NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO:


UMA MAIORIA SEM PRESTÍGIO. 2017. Disponível em:
http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1496748817_ARQUIVO_faze
ndogenero_final.pdf. Acesso em: 06.06.2019

BARROSO, MELLO. O ACESSO DA MULHER AO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO.


1975. Disponível em: http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/1813. Acesso
em: 06.06.2019

ZUZZI, SAMPAIO, KNIJNIK. NÃO É PRECONCEITO, É? UMA ANÁLISE DE GÊNERO DO


DISCURSO DISCENTE NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM EDUCAÇÃO FÍSICA. 2008.
Disponível em:
http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/remef/article/viewFile/1508/1127. Acesso em:
06.06.2019

VIANA, SOUZA, NETA. DISTRIBUIÇÃO E REPRESENTATIVIDADE FEMININA: UM


ESTUDO SOBRE A UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA –UESB.
2017. Disponível em: http://periodicos2.uesb.br/index.php/recuesb/article/view/3584. Acesso
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PEREIRA, FAVARO. HISTÓRIA DA MULHER NO ENSINO SUPERIOR E SUAS


CONDIÇÕES ATUAIS DE ACESSO E PERMANÊNCIA. 2017. Disponível em:
https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/26207_12709.pdf. Acesso em: 06.06.2019

ÁVILA, PORTES. NOTAS SOBRE A MULHER CONTEMPORÂNEA NO ENSINO


SUPERIOR. 2017. Disponível em:
http://revista.uemg.br/index.php/malestar/article/viewFile/13/41. Acesso em: 06.06.2019

COSTA, SARDENBERG. TEORIA E PRÁXIS FEMINISTAS NA ACADEMIA: OS NÚCLEOS DE


ESTUDOS SOBRE A MULHER NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS. 1994. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16171. Acesso em: 06.06.2019

21
RACISMO INSTITUCIONAL CONTRA MULHERES NEGRAS NA ASSEMBLEIA DE
1
DEUS: NOTAS SOBRE ASPECTOS GERAIS

https://doi.org/10.29327/527231.5-2 Alef Monteiro


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
Universidade Federal do Pará

Marilu Marcia Campelo


Universidade Federal do Pará

Resumo:

A comunicação sintetiza parte dos resultados de uma pesquisa sobre a relação entre racismo e
pentecostalismo, realizada entre os meses de outubro de 2016 a março de 2017. Os dados aqui
analisados dão conta do racismo institucional contra mulheres negras na Assembleia de Deus, e
o objetivo é elucidar aspectos gerais da incidência do racismo institucional assembleiano na vida
das mulheres negras que integram a comunidade religiosa lócus do estudo. A investigação
consistiu em um estudo de caso em uma congregação no município de Castanhal, Região
Metropolitana de Belém, e a metodologia empregada foi a observação participante, realização de
entrevistas e pesquisa documental. Os resultados apontam que a lógica de organização da
Assembleia de Deus é racista e os ―usos e costumes‖ (estratégias de branqueamento que se
encaixam no que Fanon chamou de ―máscaras brancas‖) se configuram em ferramenta central
de regulação do acesso desigual aos cargos de liderança. As mulheres negras são afetadas de
várias formas por essa regulação racista.
Palavras-chave: Racismo institucional. Pentecostalismo. Gênero e Raça. Mulheres negras.
Assembleia de Deus.

Abstract:
The communication summarizes part of the results of a search on the relationship between
racism and Pentecostalism, realized from October 2016 to March 2017. The data analyzed
here illustrate the institutional racism against black women in the Assembly of God, and the
purpose it is to elucidate general aspects of the incidence of institutional assembly racism in
the lives of black women who are part of the locus religious community of the study. The
investigation consisted of a case study in a congregation in the municipality of Castanhal,
Belém Metropolitan Region, and the methodology employed was participant observation,
interviews and documentary research. The results point out that the organizational logic of
the Assembly of God is racist and the ―customs and practices‖ (bleaching strategies that fit
what Fanon called ―white masks‖) are a central tool for regulating unequal access to
positions. Leadership Black women are affected in many ways by this racist regulation.
Keywords: Institutional racism. Pentecostalism. Gender and Race. Black women. Assembly
of God.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

22
1 INTRODUÇÃO

Em um dos mais recentes e relevantes trabalhos sobre relações étnico-raciais no


pentecostalismo evangélico brasileiro, Marco Davi de Oliveira (2015) desfaz uma suposição
muito comum do imaginário popular do pais: a ideia de que as religiões de matriz africana
(Candomblé, Umbanda, Tambor de Mina, Catimbó, etc.) são as religiões com o maior
número de negros, seja em termos percentuais ou absolutos. Segundo os dados levantados
pelo autor, as igrejas pentecostais são, e não é de hoje, a principal opção religiosa da
população negra do país a partir do segundo quartel do século XX, e esse é um cenário que
não tende a mudar nos próximos anos, a pesar da expansão do pentecostalismo para as
classes sociais mais altas e, portanto, mais brancas.

Não obstante o grande quantitativo de negros nas fileiras do pentecostalismo, falar de


2
assuntos como racismo, políticas de ação afirmativa, culturas negras, territórios de negritude e
outros temas caros aos movimentos sociais negros e estudiosos das populações afro-brasileiras
por resumirem situações-problemas dessas populações é algo raro, quase inexistente, nas
igrejas pentecostais (OLIVEIRA, 2015). Eu mesmo, em minha pesquisa de mestrado que
investiga a conversão ao pentecostalismo em comunidades quilombolas do Nordeste do Pará,
tenho verificado, na prática, essa realidade do distanciamento das igrejas pentecostais das
situações-problemas das comunidades quilombolas.

Embora os quilombos do Pará (na verdade, do Brasil) passem por inúmeras


adversidades como conflitos territoriais com grileiros, fazendeiros, e toda sorte de empresas
do capital agrário, energético e mineral; além de falta de saneamento básico, falta de
atendimento adequado à saúde e educação escolar, e muitos outros problemas
semelhantes, as igrejas pentecostais, que têm crescido consideravelmente nos quilombos,
ainda permanecem institucionalmente afastadas das situações-problemas dessas
comunidades negras; situações que se ligam intimamente à identidade quilombola que
depende da territorialidade, sem a qual os quilombos não podem existir.

A ausência da reflexão – e eu diria autorreflexão – dos pentecostais sobre a situação da


população negra também foi verificada por mim em pesquisa anterior, orientada pela Prof.ª Dr.ª
Marilu Marcia Campelo, que assina esta comunicação como coautora. Comprovei a

Negritude é um conceito polissêmico. Cada segmento da população negra tende a dar ênfase a
aspectos diferentes e a adotar posturas políticas distintas a partir de suas próprias realidades, o que
se configura em um modo próprio de negritude, todavia, podemos dizer que negritude é um ideal de
ser negro que envolve aspectos culturais, históricos, fenotípicos, políticos e identitários centrados na
valorização dos valores civilizatórios das culturas africanas (MUNANGA, 1988).

23
ausência da reflexão dos pentecostais sobre a situação da população negra na ocasião do meu
Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais, na UFPA. Naquele momento, realizei um
estudo de caso em uma congregação da Assembleia de Deus na periferia urbana do município
de Castanhal, Região Metropolitana de Belém, entre os meses de outubro de 2016 a março de
2017, com o intuito de verificar em que medida e de que maneiras o pentecostalismo, no caso
estudado, contribuia ou não com o racismo (MONTEIRO, 2017).

Os dados gerados em minha pesquisa de campo mostram que a discriminação racial


entre os pentecostais é igual àquela da sociedade brasileira: no discurso o racismo é
reprimido, mas na prática ele é naturalizado e por isso não é percebido. Nas entrevistas, as
respostas dadas a mim foram contraditórias. Ninguém entre os meus interlocutores se
declarou racista, mas todos confessaram ter presenciado práticas de racismo no dia a dia. A
maioria disse nunca ter presenciado racismo na igreja, mas depois que eu dei exemplo do
que é uma discriminação racial me disseram ter sim presenciado fatos parecidos na
congregação. Todos os negros a quem entrevistei me disseram não terem sido vítimas de
discriminação racial na igreja, mas me relataram diversos sofrimentos que passam por
destoar dos padrões estéticos da religião e reconheceram que seriam ou foram excluídos de
cargos específicos se não seguissem, ou porque não seguiram meticulosamente os "usos e
costumes". Não é que o racismo não exista, eles apenas não percebem que tudo o que
3
passam é racismo . A cognoscibilidade dos pentecostais é que está condicionada a não
perceber as práticas racistas, é o que Maldonado-Torrez (2007) e Lander (2005) chamam de
colonialidade do ser e do saber.

Em minha pesquisa observei várias dimensões do racismo e os modos como ele


afeta homens e mulheres de acordo com sua aproximação ou distanciamento do ideal de
ego pentecostal, a saber, o Arquétipo do Deus Branco (MONTEIRO, 2017). Entorno desse
arquétipo, os pentecostais qualificam cada membro da igreja e assim organizam a
comunidade e distribuem todos os cargos que, por sua vez, são hierarquicamente
organizados. Essa organização resulta em uma estrutura institucional em que os negros, por
estarem mais distantes do ideal de ego organizador, são preteridos, configurando um
racismo institucional.

Por racismo compreendo o conjunto de ideais coletivos e individualizados, bem como as ações
deles resultantes baseados na crença da existência de raças. E, no sentido sociológico em que uso o
termo, "raças são discursos sobre a origem de um grupo, que usam termos que remetem à
transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc. pelo sangue‖
(GUIMARÃES, 2008, p. 66).

24
Nesta comunicação, trabalho apenas com os dados concernentes às maneiras pelas
quais as mulheres negras assembleianas são atingidas pelo racismo institucional da igreja.
O objetivo é elucidar os aspectos gerais que as afetam, considerando o princípio
organizador do racismo institucional assembleiano: o Deus Branco. A metodologia
empregada na geração do material que aqui discuto foi a observação participante,
realização de entrevistas, e pesquisa documental. Minhas análises não possuem caráter
exaustivo, na verdade, são apenas notas acerca dos dados gerados naquele momento e
que pretendo aprofundar com um novo retorno a campo.

2 A NATURALIZAÇÃO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO RACISMO NA ASSEMBLEIA


DE DEUS

Antes de falar especificamente sobre o racismo institucional contra as mulheres


negras, considero importante fazer uma breve exposição da naturalização e
institucionalização do racismo na Assembleia de Deus. Sobre isso, é importante que se
saiba que o racismo como item estrutural da plausibilidade de mundo construída pela
4
religião pentecostal no Brasil não se dá por meio de explicitas teodiceias oficiais, como
aconteceu em vários momentos na história do Cristianismo, e isso já foi percebido por
Burdick (2001) no final da década de 1990. Na pesquisa realizada pelo autor, os
pentecostais desconheciam qualquer interpretação bíblica para legitimar o racismo. Quando
citou a leitura dos batistas supremacistas brancos do Sul dos Estados Unidos – a marca do
pecado colocada por Deus em Caim e seus descendentes foi a cor negra – os pentecostais
brasileiros não só desconheciam essa interpretação como também a consideraram incorreta
ou superficial, e o mesmo verifiquei em campo nos anos de 2016 e 2017, em Castanhal.

Mas, apesar do pentecostalismo assembleiano brasileiro não ter um discurso


explicitamente racista não significa que sua teodiceia não o seja. Na realidade, por
contingencia histórica, o racismo foi naturalizado no pentecostalismo. A racialização da
cosmovisão pentecostal no brasil ocorre a partir da soma de dois fatores: em primeiro lugar,
a colonialidade pentecostal trazida dos Estados Unidos ao Brasil e, em segundo lugar, o
peculiar ―racismo à brasileira‖ que se desenvolveu no país.

De acordo com Berger (1985), teodiceias são explicações de fenômenos anômicos em termos de
legitimação religiosa que seja de qualquer grau de sofisticação teológica. ―Uma das funções sociais
muito importantes da teodiceia é, com efeito, a sua explicação das desigualdades de poder e
privilégio que prevalecem socialmente‖ (Idem, p. 71).

25
Sobre o primeiro fator, o pentecostalismo, em sua origem, possui estreita relação
com o racismo segregacionista estadunidense. Charles F. Parham, conhecido como o ―pai‖
do reavivamento pentecostal do século XX por ter criado a teoria do ―batismo com o Espírito
Santo‖, era um dos apoiadores da Ku Klux Klan (CAMPOS, 2005). Toda a primeira geração
de grandes líderes pentecostais foi por ele formada, inclusive William Joseph Seymour,
pastor da igreja onde Daniel Bergue e Gunnar Vingren, fundadores da Assembleia de Deus
no Brasil, se pentecostalizaram. Por ser segregacionista, Parham proibiu Seymour (que era
negro) de assistir as aulas de teologia dentro da sala de aula com os demais alunos
brancos, assim, Seymour recebeu sua formação teológica assistindo as aulas através da
porta, em uma cadeira que era colocada no corredor (CAMPOS, ibidem).

Diferente de Parham, quando abriu sua famosa igreja na Rua Azusa, em Los
Angeles, Seymour acolheu pessoas de todas as ―raças‖ ―sem distinção‖, porém, mesmo
abandonando o segregacionismo, ele não se livrou de uma das principais marcas da
teodicéia pentecostal, em seu tempo, recentemente inventada pelos segregacionistas
5
brancos: o eurocentrismo e a branquitude que negam a estética e demais símbolos
culturais africanos. Observo, porém, que esse movimento de ruptura total com a teodiceia
racista do pentecostalismo não seria instantaneamente possível a Seymour que foi educado
6
em meio à colonialidade que apregoa que ser Humano é ser branco.

A colonialidade forja nos indivíduos um seu ser, um modo de conhecer e de saber tão
imbricados à personalidade que mesmo depois de consciente da existência do racismo, não
fácil para um indivíduo se reconstruir em oposição àquele modo de ser e de saber nele
introjetado desde a infância, então, para alguém que não é consciente do colonialismo e da
colonialidade – como era o caso de Seymour, isso é impossível. Seymour morreu sem ter
consciência do sistema-mundo colonialista, para ele, os padrões culturais em que fora educado
eram naturais e é isso que pensava o senso comum do protestantismo que, seguindo
7
o modus operandi do pensamento religioso , reificou a cultura europeia transplantada para
as terras outrora coloniais.

A conversão na igreja da Rua Azuza implicava a assimilação de padrões culturais


eurocêntricos e mesmo aqueles reconhecidos como nitidamente afro-americanos (a música,
por exemplo) só tinham espaço no meio pentecostal porque eram folclorizados, isto é, eram

5
Segundo Sovik (2004), branquitude é a identidade racial construída a partir de ideias de
branqueamento que mantém os privilégios ou direitos adquiridos. No sistema racial, são traços
culturais típicos dos brancos e por isso ligados à sua identidade.
E no entendimento pentecostal, alguém que é a imagem e semelhança de Deus.
Mito-lógica, conforme Lévi-Strauss (2012).

26
despidos de sua historicidade não possuindo, assim, qualquer alusão valorativa à África ou a
uma identidade negra contrastante à branquitude estadunidense. Ser pentecostal nos
Estados Unidos no final do século XIX e início do XX era possuir uma moral burguesa
vitoriana, vestir-se com roupas sociais e negar qualquer traço de negritude.

Foi esse modo de ser pentecostal que foi trazido ao Brasil pelos missionários Daniel
Bergue e Gunnar Vingren, mas aqui ganhou outro contorno: o ―racismo à brasileira‖. A
Assembleia de Deus brasileira nunca proibiu alguém não-branco (afro-brasileiro ou indígena)
de fazer parte da instituição, mas, sempre manteve, em termos institucionais, sua
cosmovisão e padrão de cultura eurocêntricos. Esta característica não apenas da
Assembleia de Deus, mas do pentecostalismo, fez com que ela, assim como outras igrejas
pentecostais na história recente, fosse responsável por massivos etnocídios entre
comunidades tradicionais no país (CALDAS e BRITO, 2013; NASCIMENTO e ABIB, 2016).

Como um ―fato dado‖, a branquitude entre os pentecostais se reafirmava sem menção


cor ou raça. Ela é naturalizada, invisível, na maioria das vezes não lança mão dessas
categorias, pois já está embutida na vestimenta, no tratar do corpo e na cosmovisão como
um todo e no próprio funcionamento da instituição. Na mentalidade dos pentecostais, como
mostro, em minha monografia (MONTEIRO, 2017), Deus é homem, idosos e branco. É essa
imagem que os pentecostais negros e brancos têm como Ideal de Ego a ser seguido e que
serve de parâmetro para selecionar quem deve ou não ocupar os cargos de liderança na
comunidade.

Assim organizada entorno de um princípio racializado e racializante, a discriminação


8
racial na Assembleia de Deus ultrapassa a dimensão individual, mistura-se com a própria
estrutura da instituição e se configura como racismo institucional. Como observa Valter Silvério
(2002), o racismo institucional acontece quando a estrutura de uma instituição é organizada de
tal modo a discriminar e excluir os sujeitos que pertencem a uma determinada raça,
especificamente as não-brancas. No Brasil, diz o autor, até muito recente era comum aparecer
nos anúncios de empregos a exigência de ―boa aparência‖, na prática, essa exigência excluía os
negros de várias possibilidades de emprego independentemente de sua competência
profissional ou grau de escolarização, pois o que se exigia era a posse de um fator racial: a ―boa
aparência‖, que era a branquitude expressada, se não pela cor, pelo menos

Falo em discriminação racial no mesmo sentido apresentado no Estatuto da Igualdade racial: ―toda
distinção, exclusão ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica
que tenha por objetivo anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de
condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social,
cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada‖ (BRASIL, 2015, p. 13).

27
pela adoção de tratos com o corpo e com indumentária que refletissem um padrão ―europeu
ocidental‖.

Na Assembleia de Deus a lógica é a mesma, não importa a competência ou o grau de


escolarização, quanto tempo se é convertido, ou o quanto se conhece da doutrina religiosa (o
quanto se ―saiba de Bíblia‖), para ter acesso aos cargos de liderança, o crente deve ter ―boa
aparência‖, deve buscar ser alguém que expresse ―o bom cheiro de Cristo‖, que ande como um
―cidadão do céu‖, como ―príncipe ou princesa do Senhor‖; o crente salvo é alguém que na sua
vestimenta, corte de cabelo, e modo se portar é ―perfeito como o Pai Celeste é perfeito‖.

Ora, e como o Pai Celeste é perfeito? A resposta que obtive foi: Deus é branco e
adotar a branquitude é ser igual a Deus. Logo, ainda que o crente seja negro (ou pelo
menos não-branco), para ter acesso aos cargos de liderança ele deve usar o que Fanon
(2008) chamou de ―máscaras brancas‖, isto é, os objetos de branquitude que mascaram a
negritude estampada nos corpos. Essas máscaras são, no pentecostalismo clássico, os
―usos e costumes‖ – meticulosas regras de ornamento e indumentárias ensinadas e exigidas
pela igreja.

3 ASPECTOS GERAIS DO RACISMO INSTITUCIONAL CONTRA AS MULHERES


NEGRAS NA ASSEMBLEIA DE DEUS

Membro da Convenção de Ministros e Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no


Estado do Pará (COMIEADEPA), um dos três principais grupos das Assembleias de Deus
no estado e que é reconhecido pela tentativa de perseverança na guarda da clássica
identidade assembleiana, a Assembleia de Deus castanhalense tem os usos e costumes
previstos no seu estatuto. Para as mulheres, no documento está previsto a obrigatoriedade
do uso de saias, cabelo comprido, o não uso de pinturas de unha, alisamento ou pintura
capilar; é proibido o uso de maquiagem, batom, brincos e calça comprida; as mulheres
devem se vestir ―decentemente‖, estabelece o texto, mesmo que na prática cotidiana essas
regras sejam, em parte, burladas. Não é raro o uso de maquiagem e pintura de unhas,
alisamentos e pinturas capilares, mas, desde que não seja ―extravagante‖ a ponto de
provocar ―escândalo‖, dizem as mulheres à boca pequena.

Com efeito, quer se siga ou não à risca o estatuto da igreja, uma regra implícita é
evidente ao olhar atento: o padrão estético é marcado pela branquitude. Há um padrão paras as
mulheres assembleianas que nada mais é que a adaptação feminina da imagem do Deus
Branco. As mulheres, caso queiram corresponder à imagem feminina de Deus, devem parecer

28
em indumentária e fenotipicamente com mulheres do Oeste europeu. É claro que, para as
mulheres negras, assumir completamente essa aparência é impossível, porém, delas é
exigido a máscara branca das roupas e, também, já que a pele não pode ser encoberta, pelo
menos o mascaramento do cabelo crespo. A não adoção dessas máscaras resulta no não
aceso aos cargos de liderança. Assim, o racismo institucional contra mulheres negras na
Assembleia de Deus que opera através dos ―usos e costume‖ as afeta de duas formas:
fenotipicamente (o corpo negro é o alvo), com foco no cabelo e na cor da pele; e no uso de
indumentárias e adereços, com tendência de rejeição a tudo que reme à África (a cultura é o
segundo alvo).

No pentecostalismo assembleiano clássico, as mulheres devem usar o cabelo


9
cumprido porque o cabelo foi dado por Deus às mulheres em lugar do véu . Usar a cabeça
coberta é sinal de respeito ao poderio divino – a mulher que usa véu está debaixo de uma
autoridade, nesse caso, a autoridade de Deus. Mas, se perguntarmos que tipo de cabelo é
esse que fica como um véu que encobre a cabeça e desce sobre os ombros e costas
certamente esse não é o cabelo de parte considerável das mulheres negras, e aqui aparece
uma das mais elementares desigualdades entre as mulheres brancas e negras no
pentecostalismo: grande parte das mulheres negras não se encaixam nesse padrão que é
tido como aquele que agrada a Deus (a mulher que tem o cabelo em forma de véu), logo,
uma mulher negra de cabelo crespo nunca será uma ―mulher de Deus‖ completa, fato que
lhes causa grande sofrimento emocional (MONTEIRO, 2019). Essa desigualdade não tem
como causa os indivíduos em si, mas sim o próprio discurso institucional. Essa desigualdade
é institucionalmente gerada e reforçada.

Em geral, uma mulher branca que deixe seu cabelo natural comprido tenderá a tê-lo
em formato de véu. Ela será reconhecida por todos como genuína ―serva de Deus‖, porém, a
mulher negra que deixe seu cabelo crespo natural crescer, não terá o mesmo resultado. Seu
cabelo, ao contrário da mulher branca, não desce, ele sobre. Mas, se deixar subir e usá-lo
em estilo Black Power, por exemplo, enfrentará rejeição. Mariane, ex-regente do grupo de
jovens, passou por essa situação:

Eu comecei a ter problemas na igreja, por causa da minha aparência, ainda na


época em que eu era regente. Eu sempre mantive meu cabelo bem baixinho e
quando tinha festa na igreja, que a gente [as mulheres] fazia penteados, eu
geralmente fazia chapinha. Mas aí eu comecei a me incomodar com isso. Eu
queria ter meu cabelo grande, vi várias fotos de mulheres com cabelos grandes
que usam lenços e outras coisas no cabelo, e ai decidi que ia deixar ele crescer
e sempre mantive ele bem hidratado. Mas quando meu cabelo tava bem
grande, o nosso líder me chamou pra conversar sobre meu

O texto de Romanos 11.15 é usado para embasar essa ordenança.

29
cabelo [...] não aceitei cortar, daí ele não me tirou da regência, mas disse
que enquanto eu mantivesse minha rebeldia eu não iria mais reger [...] ai
até que eu não aguentei mais ficar no banco entreguei o cargo [...] vou
ainda pra igreja, mas isso me entristeceu muito sim.

Por usar seu cabelo natural e grande (em estilo Black Power), Mariane foi
compulsoriamente suspensa do cargo de regente, até que no impasse entre ter que escolher
seu cabelo natural e a regência, fez a opção por seu cabelo e entregou o cargo de regente
do grupo de jovens. Perguntei se ela não pensou em procurar o dirigente da congregação,
mas Mariane disse que não acreditou que isso adiantaria. Muitos irmão (inclusive seus
familiares) apoiaram a atitude do líder. Ao falar sobre a importância simbólica do cabelo das
mulheres negras e como ele é um dos principais alvos do racismo, Nilma Lino Gomes (2017)
nos ajuda a entender a fixação para com o cabelo das mulheres: ao contrário da roupa, o
cabelo é o próprio corpo, mudá-lo é tornar o corpo negro mais branco.

De semelhante modo à adoção do cabelo crespo natural sem o cuidados de mantê-lo


baixo com o uso de grampos ou mesmo por meio de corte, a mulher negra que queira usar
tranças jamais será escolhida para assumir a liderança do círculo de oração. Ao entrevistar
Joselina, mulher negra de cabelo crespo, que já liderou várias vezes círculos de oração em
diversas congregações, pois seu marido foi dirigente durante anos, ela me revelou:

Sim, eu já desejei botar aquelas cordinhas [tranças], só não tive coragem


por causa das críticas. O ambiente onde a gente vive existe essa
discriminação, aí a gente sempre tem medo de ser mal vista, aí a gente
deixa assim. Também tem o Mário [marido de Joselina, é diácono da
igreja]... Não só eu, mas ele também ficaria mal falado... É melhor evitar. [...]
jamais eu seria líder das irmãs [se referindo ao círculo de oração feminino]
se eu botasse as cordinhas no cabelo.

A fala de Joselina contém dois dados interessantes: é uma dupla prova que reforça a
constatação do racismo institucional assembleiano contra mulheres negras, uma vez que o
racismo institucionalizado condiciona seu acesso ao cargo de liderança do círculo de oração
rejeição de um símbolo da resistência negra (o cabelo trançado) que já foi objeto de
desejo de Joselina, e, também, revela a desigualdade instituída entre mulheres negras e
brancas, quanto ao acesso de seus maridos a cargos de liderança.

Ocorre que no pentecostalismo as mulheres podem prejudicar moralmente seus maridos


caso não sigam os usos e costumes ou as doutrinas da igreja. Moralmente reprovados, eles
ficam impedidos de acessar cargos de liderança. Isto porque é cobrados dos homens casados
10
que desejam cargos de liderança o ―bom governo de suas casas‖ , que implica em ter suas
mulheres e filhos publicamente de acordo com o que a igreja pede. Assim,

1 Timóteo 3.4-5 é o texto que dá sentido a essa ação social dos pentecostais.

30
a mulher que são segue as regras da igreja prejudica o seu marido – por isso a preocupação
de Joselina com Mário, mas, o contrário não ocorre com os homens. Maridos ímpios não
trazem prejuízos morais às mulheres. Frente essa regra, as mulheres negras estão
institucionalmente em desvantagem: além de ter que cumprir tudo o que é exigido das
mulheres brancas, as mulheres negras devem rejeitar sua negritude ou prejudicarão não
apenas a si, mas também os seus maridos.

O racismo relacionado à cor também é muito presente. Uma das regentes do círculo
de oração, a irmã Eliana (que é uma mulher preta de pele bastante acentuada), sem entrar
em detalhes, em alguns de seus testemunhos falou que diversas vezes foi humilhada e
preterida para o trabalho de liderança das irmãs do círculo de oração por causa da sua cor.
O interessante é que todos a quem eu perguntei sobre a irmã Eliana faziam a pergunta ―A
irmã Eliana, a negona? / a irmã Eliana Negona?‖ quando eu apenas dizia ―a irmã Eliana,
regente do círculo de oração‖. Certamente a irmã Eliana sabe que assim é conhecida, como
―irmã Eliana Negona / irmã Eliana, a negona‖, mas infelizmente quando soube o motivo do
meu interesse em conversar com ela, quando expliquei a minha pesquisa, ela se recusou
me conceder uma entrevista.

Para além do corpo negro feminino, o racismo institucional assembleiano ainda


oprime as mulheres negras por causa do uso de indumentárias e adereços que fogem do
padrão da branquitude estabelecida. Genice me contou que a líder dos jovens tinha pedido a
todos que fossem ao culto bem arrumados como príncipes e princesas que ali todos eram,
pois tinham por pai o ―Rei dos reis e Senhor dos senhores‖, o ―Rei da Glória‖ e, portanto,
deveriam se vestir como tal: ―príncipes e princesas do Senhor‖. Mas, sendo universitária e
tendo adquirido consciência do racismo através de seu curso, Genice arrumou-se de modo
bastante questionador: pôs uma saia longa de cor forte e estampas em estilo africano,
completou o conjunto com uma blusa, também de cor forte e quente, contrastando com a
saia. E não apenas isso, Genice pôs um turbante em sua cabeça ladeado por argolas
penduradas em suas orelhas e foi ao culto.

Mal pôs o pé na nave do templo e a líder, ante que Genice chegasse ao assento
destinado aos jovens veio ao encontro da jovem e a interrogou acerca dos motivos pelos quais
ela havia ido à igreja assim vestida. Genice contou-me que então respondeu à sua líder: ―não foi
a senhora que disse para virmos pro culto vestidos como príncipes e princesas? Então...
Eu vim vestida de princesa africana!‖. Ao me contar o episódio, Genice me fez a seguinte
observação: ―ela não disse [a líder], mas sei que ficou espantada, como muita gente que tava no
culto, por causa do racismo. Pensam que só tem princesas igual àquelas dos contos de

31
fadas da Disney ou como os da Inglaterra [referindo-se aos dias atuais] e acham que ser
príncipe e princesa do Senhor é ser igual os europeus‖.

Genice é o exemplo de um tipo cada vez mais comum no pentecostalismo: as


mulheres negras que, concientes do racismo e empoderadas, questionam as normas da
tradição que foram construídas a partir de um passado repletos de racismo e sobre o qual a
maioria dos pentecostais desconhece. Genice, enfrentou a Líder, sentou no assento do
grupo de jovens, mas depois teve uma discussão com a líder quando foi seriamente
repreendida. Vestir-se como uma rainha africana é uma atitude intolerável ao racismo
institucionalizado na Assembleia de Deus.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Volto a salientar o caráter desta comunicação, como o título mesmo sugere, ela não
é um trabalho final, tampouco exaustivo. Trata-se apenas de algumas notas sobre o racismo
institucional que afeta as mulheres negras na Assembleia de Deus. Porém, a despeito do
presente material ser constituído somente por notas, acredito que nele é possível vislumbrar
o princípio geral do racismo institucional assembleiano que não está assentado em uma
teodiceia oficial, mas sim em uma teodiceia residual: o arquétipo do Deus Branco que, em
sua adaptação feminina, exclui as mulheres negras, nega seus corpos, nega a possibilidade
da adoção de símbolos da cultura negra, enfim, nega a negritude submetendo-as ao uso de
―máscaras brancas‖ para serem aceitas causando-lhes, com isso, sofrimento emocional. O
impasse é nítido: ou a mulher negra usa as máscaras brancas, ou será excluída do acesso
aos cargos de liderança, em prejuízo não apenas de si, mas também de seus maridos.

Na década de 1960, Roger Bastide chegou a afirmar que era inevitável a adesão do
negro ao protestantismo sem a asfixia de sua identidade e herança cultural (BASTIDE,
1971). Ao findar minha comunicação, não quero que se tenha a impressão de que reforço a
tese de Bastide que há muito foi abandonada pelos estudiosos do pentecostalismo. Minhas
notas se centram apenas no racismo institucional de uma vertente assembleiana (que
apesar das variações é uma das maiores do país) e não abordo as ações de resistência das
mulheres negras que não são nenhum pouco passivas nesse processo, como deu para
perceber no exemplo de Genice.

Há também parcela do seguimento evangélico pentecostal que luta para por fim à
omissão e passividade da população evangélica diante do racismo. Um dos mais expressivos é
o Movimento Negro Evangélico (MNE) que, em termos de impacto no campo religioso

32
evangélico, ainda é pequeno, mas aponta para mudanças nessa parcela religiosa da
população brasileira (SILVA, 2011).

Como cheguei a dizer em um de meus trabalhos (MONTEIRO, 2017), o racismo é


uma realidade no pentecostalismo, isso porém, não significa que ele seja o destino dessa
religião. O pentecostalismo é racista por contingência histórica – ele foi construído em meio
à colonialidade racista – mas, além de ações como o MNE, recentes transformações na
sociedade brasileira têm causado modificações no imaginário social pentecostal e na forma
como os negros se enxergam e vivem sua fé no interior deste movimento religioso. Por
exemplo, conscientes do racismo por causa da educação formal, os negros pentecostais
têm ressignificado suas cosmovisões e forjado uma identidade negra pentecostal com uma
negritude própria. As mulheres negras despontam nesse processo, e questionam o lugar
que lhes impuseram e as estruturas institucionais racializada, mas isso é assunto para outro
momento.

33
REFERÊNCIAS

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interpretação de civilizações. São Paulo: Livraria Pioneira Editora; EDUSP, 1971.

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35
RELAÇÕES DE GÊNERO NO AMBIENTE ESCOLAR: UM DEBATE NECESSÁRIO
https://doi.org/10.29327/527231.5-3 1
Luana Nery Fonseca
2
Orientadora: Lana Claudia Macedo da Silva
RESUMO
O artigo objetiva analisar a importância da temática das relações de gênero no ambiente
escolar, em contraposição as desigualdades existentes nesse espaço ao longo de seu
processo histórico e social. O delineamento metodológico do estudo consiste de pesquisas
bibliográficas. Constata-se que a escola tem sido espaço de reprodução de desigualdades
ao reforçar as diferenças entre as categorias de gênero, no modo como a menina e o
menino deveriam ser e se construírem socialmente. Desse modo, é imperioso o debate
sobre gênero com vistas a desconstrução de preconceitos e pré-noções que favorecem a
construção de ambientes hierárquicos e violentos nas relações entre os gêneros.

Palavras-chave: Relações de Gênero, Desigualdade, Diferença, Relações de Poder,


Ambiente Escolar.

ABSTRACT

The article aims to analyze the importance of the theme of gender relations in the school
environment, in contrast to the inequalities that exist in this space throughout its historical
and social process. The methodological design of the study consists of bibliographic
research. It can be seen that the school has been a space for reproducing inequalities by
reinforcing the differences between gender categories, in the way the girl and boy should be
and be socially constructed. Thus, the debate on gender is imperative in order to deconstruct
prejudices and preconceptions that favor the construction of hierarchical and violent
environments in relations between genders.

Key-word: Gender Relations, Inequality, Difference, Power Relations, School Environment.

INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado de uma mesa redonda com a temática de Diversidade


de Gênero, realizada na Semana Acadêmica do Campus X, em Igarapé-Açu/PA. Mediante
as discursões realizadas, surgiu o interesse para realizar o estudo, por ser um assunto de
grande relevância a ser desenvolvido no ambiente escolar, e por meio disso, fomentar em
contribuições na desconstrução de preconceitos e pré-noções de gênero. Nesse sentido, o
estudo tem o foco de discutir as relações de gênero na educação.

1
Graduanda no Curso de Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Pará.
luananerys3@hotmail.com
2
Diretoria de Desenvolvimento de Ensino/DDE. Professora Adjunta IV da Universidade do Estado do
Pará/UEPA. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Feminismos e Sexualidades/GEFES. Vice-líder
do Núcleo de Extensão, Trilhas Investigativas e Práticas Sociais/NETRILHAS

36
Mediante isto, é importante ampliar a discussão em torno das disparidades existentes
nas relações de gênero e sua construção história que permeiam a sociedade, na qual em
muitos momentos reforçaram nas desigualdades em função do sexo, seja por meio de
discursos e símbolos legitimados em várias esferas sociais que precisam emergir nos
debates na educação.
Deste modo, esse estudo tem por objetivo analisar a importância da temática das
relações de gênero no ambiente escolar, em contraposição as desigualdades existentes
nesse espaço ao longo de seu processo histórico e social, para assim, incluir políticas
educacionais que represente as pluralidades, promovendo estudos e discussões que
evidenciem essa representatividade, com direitos sociais à diferença.
No delinear do estudo, metodologicamente foi utilizado na elaboração da pesquisa
levantamentos bibliográficos, para maior embasamento teórico de autores que contribuíram
para a construção do artigo, como SCOTT (1995), SIMONE (1967), PISCITELI (2009),
LOURO (1997), DINIS (2008), BOURDIEU (1999) e entre outros, para assim, ter subsídios
da temática proposta.
Na estrutura do artigo, tem-se no seu desenvolver a presença de tópicos, para
desencadear um maior entendimento da temática proposta. Dessa forma, o primeiro se
intitula ―Gênero: uma construção histórica‖ sendo realizado uma breve discussão em torno
do gênero e seu delinear histórico. Enquanto que, no segundo a ―construção de gênero nas
escolas: relações de poder‖ discorrendo da análise histórica desses espaços enquanto
produtores de padrões de gênero e no terceiro e último ―relações de gênero: sua importância
no ambiente escolar‖, visualizando essa temática das relações de gênero a serem
ampliadas e discutidas nesse espaço.
Deste modo, contatou-se que se faz necessário discutir as relações de gênero no
ambiente escolar, para apresentar formas de combater as desigualdades que foram
desencadeadas nesse espaço por um processo histórico e social, para desenvolver
ambientes livres de preconceitos, hierarquias e violências nas relações estabelecidas entre
os gêneros.
Assim, é imprescindível ampliar debates na educação sobre as relações de gênero,
como debate imperioso com vistas a desconstrução de preconceitos e pré-noções que
favorecem a construção de ambientes hierárquicos e violentos nas relações estabelecida.
Pois, somente com esses enfoques, serão desenvolvidas outras formas de pensar em
estratégias nas políticas públicas e educacionais, a contribuir em uma formação escolar
emancipatória entre os sujeitos.

37
GÊNERO: UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
O termo gênero passa a ser utilizado pelas teorias sociais a partir da década de
1970, como mecanismo a propor novas formas de pensar as noções do feminino e
masculino, além das relações biológicas que reforçavam em diferenças nas relações de
poder e ganhando força por meio do movimento feminista que discutiam as inquietações das
mulheres, estas na qual fazem partem de uma construção social, que de acordo com
Simone de Beauvoair (1967, p. 9), em seu livro ―O segundo sexo: a história vivida‖ elenca
que ―ninguém nasce mulher: torna-se mulher‖, frase que ganhou muita visibilidade.
Nessa perspectiva, a Antropóloga Adriana Piscitelli (2009) em seu capitulo ―Gênero:
a história de um conceito‖, pontua:
O termo gênero, em suas versões mais difundidas, remete a um
conceito elaborado por pensadoras feministas precisamente para
desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o
qual as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são
consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as
desigualdades entre uns e outras são percebidas como resultado
dessas diferenças. (PICITELLI, 2009, p. 119)

Nesse sentido, a referida autora discorre que decorrente esse motivo, as autoras
feministas utilizavam o termo gênero para se referir ao caráter cultural das distinções entre
homens e mulheres (PISCITELLI, 2009), na qual anteriormente muito era expresso o
conceito de sexo e reforçava nas diferenças biológicas e inatas.
Remetendo-se a isto, o gênero transpassa de uma perspectiva naturalista de
distinções biológicas, na qual reforçou historicamente em desigualdades e diferenças, nas
esferas sociais entre homens e mulheres. Dessa maneira, de acordo com a Joan Scott
(1995) em ―Gênero: uma categoria útil de análise histórica‖ traça grandes contribuições a
pensar a categoria gênero além de uma perspectiva biológica, em que ―indicava uma
rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como "sexo" ou "diferença
sexual", que está implicado fundamentalmente em distinções sociais que reforçavam tais
diferenças. (SCOTT, 1995, p. 72)
Mediante isto, para Scott (1995), essa categoria é um elemento que está inserido nas
relações sociais fundadas nas diferenças que se percebem socialmente e reforçaram em
relações de poder. Dessa forma, as desigualdades são reflexo de uma construção histórica
construída e reforçadas social e culturalmente.
Recorrendo a essas análises, o conceito de gênero surge da necessidade de
desconstrução de uma visão binária dos sexos, despertando assim, a possibilidade de
perceber a inclusão de diferentes modos de feminilidades e masculinidades presentes na
sociedade.

38
Decorrente estes fatores ―Gênero, portanto, remete a construções sociais, históricas,
culturais e políticas que dizem respeito a disputas materiais e simbólicas‖ (BRASIL, 2007, p.
16), e definem assim, identidades, distinções de papeis e funções sociais que
proporcionaram em disparidades entre esses sujeitos e permeiam a sociedade.
Relacionando as disparidades legitimadas em torno do ser homem e mulher, uma
ordem social funcionava como uma máquina simbólica que ratificava a dominação
masculina, pontuado por Bourdieu (1999), em seu livro ―A dominação masculina‖. Dessa
maneira, a dominação masculina se reforça simbolicamente na manutenção de diferenças e
desigualdades, na qual, questiona-se sobre sexo-gênero se torna importante na
desmistificação de noções históricas, políticas e socais, em torno dessas relações.
Dessa maneira, o gênero é um elemento importante pensando-o como um
instrumento analítico e político na esfera social. Por meio de uma maior profundidade de
compreensão em torno do gênero e da reafirmação da heteronormatividade, passou-se a
perceber a necessidade de serem adotadas políticas específicas em contraste a esse
mecanismo histórico da dominação masculina, seja ela na saúde, escola e no trabalho.

CONSTRUÇÃO DE GÊNERO NAS ESCOLAS: RELAÇÕES DE PODER


O ambiente escolar é um espaço marcado historicamente por reflexos das
desigualdades desencadeadas nas relações de gênero, classe e raça. Nesse aspecto, a
escola não apenas transmite conhecimento, mas também fabrica sujeitos, identidades de
gênero, classe e étnicas, identidades estas sendo produzidas nas relações de
desigualdades na sociedade (LOURO, 1997)
Neste contexto, a instituição escolar vai contribuir nas diferenciações dos corpos dos
sujeitos, por meio das representações de gênero. Dessa maneira, ―a escola delimita
espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode)
fazer, ela separa e institui. Informa o ―lugar‖ dos pequenos e dos grandes, dos meninos e
das meninas‖ (Idem, 1997, p. 58). Dentro desse ambiente escolar, os corpos dos sujeitos
estavam em constante vigilância e disciplina.
Desta forma, ―a disciplina "fabrica" indivíduos; ela é a técnica específica de um poder
que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu
exercício‖ (FOUCAULT, 1987, p. 142). Nessa perspectiva, as fabricações nos corpos dos
sujeitos são continuadas, muito sutil e quase que imperceptível e estavam presentes nas
instituições sociais, ou seja, também pertencentes no espaço escolar.
Neste contexto, de acordo com Louro (1997, p. 88):
―se as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos
gêneros (e também os constituem), isso significa que essas
instituições e práticas não somente ―fabricam‖ os sujeitos como

39
também são, elas próprias, produzidas (ou engendradas) por
representações de gênero‖.

Dentro desta análise, a escola assume um papel, tendo ela um gênero, classe e
raça. Nesse sentido, é importante indagar-se a compreender como essa educação escolar
foi pensada e para quem foi pensada, pois como ―tanto em termos de educação como de
instrução, meninos e meninas eram tratados de forma distinta‖ (MAUAD, 2013, p. 151).
Por meio disto, a escola legitimará uma identidade nos sujeitos, instaurando nos
corpos, marcas da identidade. Marcas essas que serviram para incidir na proliferação de
uma única identidade como correta e aceita, contudo, elas não são fixas e permanentes,
mas estão em constante mudança pelos sujeitos imersos no meio social e cultural.
Desta forma, as identidades são construídas pelo sujeito e ―afirmar a identidade
significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica de dentro e o que fica
de fora‖ (SILVA, 2003, p. 82). Logo, promover uma identidade é marcar diferenças e
normatizar uma identidade em relação às demais que serão avaliadas e hierarquizadas.
Nessa perspectiva, as identidades necessitam está em constante controle, para
mantê-las estabilizadas. Este que está em meio às distinções e dicotomias entre o ser
menina/menino, homem/ mulher em determinada sociedade. Portanto, ―questionar a
identidade e a diferença como relações de poder significa problematizar os binarismos em
torno dos quais elas se organizam‖ (Idem, 2003, p. 83).
Mediante isso, a escola é um elemento contribuinte para reafirmar as identidades
desde o momento da infância. A inscrição de gênero nesses corpos é feita sempre no
contexto de uma determinada cultura e vai traçar marcas dela. ―Nesse sentido, cabe
enfatizar que a perpetuação da ordem dos gêneros esteve, até pouco tempo, garantida
fundamentalmente pela ação conjunta de instituições como a família, a igreja, a escola e o
Estado, sobre estruturas inconscientes‖ (GOMES, 2005, p. 36).
Assim, refletir sobre o espaço educacional, faz pensar nas desigualdade presentes
nesse espaço, na qual como pontua Lins, Machado e Escoura (2016) se pararmos para
pensar quando criança, na escola, foram realizadas atividade e se passam por situações
que supõe diferenças, ao pedir para fazer as filas de menino e de menina, nas aulas de
educação física, sendo estes divididos para os meninos e meninas, percebendo assim, que
o mundo é dividido entre o masculino e feminino e aprendendo nesse contexto em qual lado
devia estar‖

RELAÇÕES DE GÊNERO: SUA IMPORTÂNCIA NO AMBIENTE ESCOLAR


A dimensão escolar é marcada por diversidades, seja no modo de pensar, ser e agir,
entre os sujeitos que constituem esse espaço. Nesse sentido, a escola tem em quanto papel

40
social de desenvolver o respeito às diferenças e estimular os direitos na promoção de
cidadania entre os sujeitos.
Dentro deste cenário social, faz-se necessário pontuar o que seria essas relações de
gênero, referindo-se ―às maneiras como os sujeitos constroem a si mesmo a partir de
estereótipos, normas de comportamento e expectativas sobre o que é ―ser homem‖ e ―ser
mulher [...] e quanto as diferenças de gênero são produtos da história e da educação em
nossa sociedade‖ (LINS; MACHADO; ESCOURA, 2016, p. 23).
Desta forma, a instituição escolar é parte integrante da sociedade, na qual reproduz
mecanismos de desigualdade entre homens/mulheres; brancos/negros;
heterossexuais/homossexuais e outras formas plurais de identidades dos sujeitos. Mas a
escola pode e deve atuar no combate às desigualdades e diferenças estabelecidas, na
medida em que objetiva promover uma educação de qualidade e emancipatória a seus
alunos de forma crítica.
No arranjo das relações, ―o gênero é também uma forma social de produzir posições
de desigualdade entre as pessoas, coisas, espaços e emoções‖ (LINS; MACHADO,
ESCOURA 2016, p. 24) e nesse cenário de desigualdades de gênero, estão as relações de
poder, hierarquias e privilégios sociais que se constituem a partir das diferenças que se
percebem entre homens, mulheres e masculinidades, feminilidades.
Nessa perspectiva, as políticas educacionais precisam levar em consideração a
função social da escola em contribuir na ampliação de noções de masculinidades e
feminilidades que estejam em contraposição ao modelo heteronormativo, branco e de classe
média, possibilitar também discussões acerca das disparidades entre homens/mulheres e as
relações de poder, violência e desigualdades entre os sujeitos.
Nesse sentido, não podem ser invisibilizados e ignorados os efeitos que os
processos de construção de identidades femininas e masculinas, produziram e produzem
sobre a permanência escolar, o rendimento nesse espaço e a qualidade de interação em
momentos de socialização entre os sujeitos pertencentes à escola, suas trajetórias
profissionais e educacionais (BRASIL, 2007).
Ao que concerne à educação, é essencial implementações de políticas educacionais
desenvolvendo temáticas de gênero com suas evidencias históricas e atuais que denunciem
as desigualdades que permanecem na sociedade, visibilizar as diversidades e promover o
direito a diferença. Nesse sentido:
A perspectiva adotada pela Secad/MEC, segundo a qual os temas
gênero, identidade de gênero e orientação sexual devem ser
considerados pela política educacional como uma questão de direitos
humanos, repercute nas estratégias escolhidas e no desenho das
ações. (BRASIL, 2007 Secretária de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, p. 35)

41
Além disto, abordar esses assuntos e suas esferas de diferenças nela imbuída,
promove oportunidades didático-pedagógicas, voltadas a garantir igualdade de
oportunidades e direitos independente da identidade de gênero, no qual se fazem imersos
nas relações estabelecidas também no ambiente escolar.
Mesmo com avanços, a abrangência de assuntos de gênero ainda são temas
ausentes no tocante dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Contudo, é existente a
necessidade de ressaltarem não apenas como um tema transversal, na qual se tem pouca
menção em especifico do tema (DINIS, 2008). Desse modo, a temática é desenvolvida como
tema transversal, sendo critério da professora ou professor sua interpretação do assunto.

No entanto, sabe-se da importância de estar incluindo debates e assuntos


contemplando as relações existentes entre os gêneros, de forma a garantir e romper com
formas naturais de ver as concepções de bináridades e as relações que se estabeleceram e
se estabelecem no campo das desigualdades na desvalorização salarial, violências e
discriminações, na qual são pautas constantes nas lutas por igualdade.

Nas escolas, as relações de gênero também ganham pouca


relevância entre educadores e educadoras, assim como no conteúdo
dos cursos de formação docente. Ainda temos os olhos pouco
treinados para ver as dimensões de gênero no dia-a-dia escolar,
talvez pela dificuldade de trazer para o centro das reflexões não
apenas as desigualdades entre os sexos, mas também os
significados de gênero subjacentes a essas desigualdades e pouco
contemplados pelas políticas públicas que ordenam o sistema
educacional. (VIANNA e UMBEHAUM, 2004, p.79)
Nesse sentido, visualiza-se também como emergente a temática gênero no ambiente
acadêmico, visto que é o espaço de formação dos profissionais, na qual irão intermediar
conhecimentos na educação. É importante assim, em sua formação, que essa educadora e
educador tenha a preparação de perceber a relevância de serem trabalhadas essas
temáticas em sala de aula. Mediante isso:
Sabe-se que a instituição escolar, de forma explícita ou implícita,
através do currículo, dos procedimentos de ensino, das teorias, das
linguagens, do material didático etc., ainda é um espaço que
contribui para a produção e reprodução das desigualdades entre os
gêneros. Nesse contexto, a falta de conhecimento sobre a questão
de gênero por parte dos profissionais da educação acaba
contribuindo para que a escola não desenvolva o seu papel de
combate a toda e qualquer atitude e comportamento que revele
preconceito com relação aos gêneros. (DANTAS, MORAIS, COELHO
2009-2010, p. 152)

Em relação a isto, a intersecção nas relações de gênero e educação ganhou maior


visibilidade nas pesquisas educacionais nos anos de 1990, com grandes avanços de

42
reinvindicação que visavam à superação no âmbito do Estado e das políticas públicas,
medidas contra a discriminação da mulher. Mediante aos fatores de persistência da
discriminação contra mulher na educação, poucos são as investigações abordando essa
descriminalização de gênero nas políticas públicas e isso são reflexos visíveis nos livros
didáticos e currículos, havendo assim uma limitação do acesso e permanência na escola
(VIANNA e UMBEHAUM, 2004).
Neste cenário, pode-se visualizar a importância das relações de gênero serem
discutidas no ambiente escolar e suas esferas educacionais, incentivando pesquisas que
abordem essa temática no ambiente acadêmico, frente a ambientes hierárquicos entre os
gêneros. Sendo dessa forma, imprescindível educar e transformar esse espaço de
socialização em uma importante ferramenta de desenvolver a igualdade, frente às
diversidades na qual compõem a sociedade.

METODOLOGIA
Metodologicamente para a elaboração do artigo, foi utilizada a pesquisa bibliográfica
de autores que discutiam a temática abordada, para assim, dar base teórica por meio da
consistência de autores e propiciar um aprofundamento no assunto, contribuindo para a
temática e análise da discussão proposta e por meio disso, enriquecer o debate na
pesquisa. Desta maneira ―a principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de
permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que
aquela que poderia pesquisar diretamente‖ (GIL, 2002, p. 45).
Por meio disto, a pesquisa bibliográfica ocorreu no período de dois meses, para a
compreensão de autores e livros que discutiam a temática. Desencadeando assim, em um
diálogo com os mesmos e suas contribuições para analisar o processo das relações de
gênero e suas abordagens com ênfase educacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisar o processo social e cultural é reconhecer as desigualdades existentes nas
relações entre os gêneros. Nesse sentido, com base nas análises realizadas, pode-se
perceber que a temática gênero é um tocante que precisa está sendo discutido no espaço
escolar, para sua promoção de direitos e desenvolver formas de combater as
desigualdades, desencadeadas por um processo histórico, e proporcionar analisar as
relações sociais além das dicotomias de masculinidade e feminilidade.
Desta forma, constata-se que a escola tem sido espaço de reprodução de
desigualdades, ao reforçar as diferenças entre as categorias de gênero, no modo como a
menina e o menino deveriam ser e se construírem socialmente e posteriormente enquanto
homem e a mulher nas relações estabelecidas hierarquicamente.

43
Pode-se também verificar que essa temática ainda sofre com lacunas e falhas ao
momento que se coloca como assuntos ausentes, transversais e não obrigatórias para
serem desenvolvidas e discutidas em sala de aula, e também ao não serem vistas com
relevância nos espaços acadêmicos nas disciplinas que orientaram os educadores.
Neste sentido, a escola não é um ambiente isolado dos fatores que as rodeiam, mas
reflexo de desigualdades, na qual em muito momento atuaram na manutenção entre os
gêneros e as reproduzindo. Comprometeu o rendimento, a permanência escolar e a
qualidade de interação com os outros sujeitos naquele espaço que deveria ser de
socialização, mas que (re)produziu diferenças.
Além disto, é recente discussões no espaço acadêmico a investigar as relações de
gênero, da qual suas pesquisas podem proporcionar grande relevância ao trazer a
visibilidade a essas atoras e atores e suas interpretações sobre essas relações com a
educação e atuais reinvindicações. Desse modo, faz-se relevante estar ampliando esses
debates que denunciem a importância em conquistar políticas públicas, na qual sanem os
fatores de desigualdades.
Sendo assim, pode-se notificar que este artigo foi de suma importância, na medida
em que viabilizou um olhar para as relações de gênero, como um debate imperioso com
vistas a desconstrução de preconceitos e pré-noções que favorecem a construção de
ambientes hierárquicos e violentos nas relações estabelecidas. Ampliando assim, nos
espaços escolares, a análise crítica de pessoas que percebam a relevância cientifica e
social de novas pesquisas, políticas públicas e pedagógicas que desenvolvam estratégias a
contemplar o ser diverso pela educação.

44
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46
A MATRIARCALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL DO QUILOMBO DO
ROSA
https://doi.org/10.29327/527231.5-4

David Junior de Souza Silva


Universidade Federal do Amapá – UNIFAP
Doutorado em Geografia
Pós-Graduação em Estudos Culturais e Políticas Públicas – PPCULT/UNIFAP
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4265076306351873
E-mail: davi_rosendo@live.com

Resumo

O Quilombo do Rosa iniciou, como muitas comunidades quilombolas no Amapá, o processo


de reconhecimento quilombola e titulação territorial no início do século XXI. O objetivo da
pesquisa e interpretar o significado da memória social da comunidade na sua
contemporânea mobilização por reconhecimento de sua cidadania. Busca-se assim
interpretar o lugar do passado na construção do futuro da comunidade. A metodologia
adotada foi a da etnografia junto à comunidade. Concluo que o passado e fonte de força
política da comunidade, no sentido de dele emanar a legitimação do direito reivindicado,
também de dele emanar a motivação, o sentido e a força moral para a luta. É o eixo de força
da comunidade não alcançado pelas forças colonizatórias; misto de saber, sentido e
memória, a memória social, que a comunidade soube proteger do colonizador,
contextualizando inclusive sua etnogênese quilombola.

Palavras-Chave: Reconhecimento; Movimento Quilombola; Direitos étnicos;


Interculturalidade.

ABSTRACT

Quilombo do Rosa began, like many quilombola communities in Amapá, the process of
quilombola recognition and territorial titling in the early 21st century. The aim of the research
is to interpret the meaning of the community's social memory in its contemporary mobilization
by recognition of its citizenship. This seeks to interpret the place of the past in shaping the
future of the community. The methodology adopted was that of ethnography with the
community. I conclude that the past is a source of political power for the community, in order
to emanate from it the legitimation of the claimed right, as well as the motivation, the
meaning and the moral force for the struggle. It is the axis of force of the community not
reached by the colonizing forces; mixed of knowing, meaning and memory, the social
memory, which the community knew how to protect from the colonizer, contextualizing even
its quilombola ethnogenesis.

Keywords: Recognition; Quilombola Movement; Ethnic rights; Interculturality.

Introdução
A comunidade remanescente quilombola do Rosa localiza-se na zona rural do
município de Macapá, capital do estado do Amapá, na parte oriental da Amazônia Brasileira,
e desenvolve, neste início de século, assim como outras comunidades quilombolas do
estado, um processo de territorialização específico, envolvendo reconhecimento identitário,

47
demarcação e titulação de seu território. A etnogênese, na forma do auto-reconhecimento
como comunidade remanescente quilombola, emerge como uma das estratégias
fundamentais deste novo processo de territorialização. É a etnogênese do quilombo do
Rosa, no início do século XXI, que será tema de reflexão neste artigo.
A etnogênese aparece como estratégia possível no contexto da compreensão
mundial contemporânea do que são as comunidades tradicionais – expressa por exemplo na
convenção 169 da OIT -, incluso os quilombos, da legislação internacional decorrente desta
compreensão, da legislação brasileira sobre direito quilombola, produto da síntese entre
legislação internacional e ativismo negro e quilombola nacional, e do trâmite real do
processo jurídico e burocrático para acesso à cidadania quilombola no contexto nacional
brasileiro e regional amazônico e amapaense - este trâmite sendo por seu turno síntese da
relação de forças travada na sociedade brasileira contemporânea, na qual atuam, dentre
outros elementos, o racismo, a luta pela terra, as personificações do capital interessadas na
mercantilização da terra, movimento negro e movimento quilombola, e a luta diária cotidiana
das comunidades tradicionais pelo direito à vida e à própria reprodução social.

Etnogênese, identidade étnica e mobilização política


As etnogêneses são os processos de construção identitária nos quais os povos
tradicionais constroem-se como sujeitos coletivos com base em uma tradição cultural
preexistente, objetivando sustentar a ação coletiva e a mobilização por direitos. Este
fenômeno foi até agora estudado relativamente aos povos indígenas; todavia, é um
fenômeno que vivem também as comunidades quilombolas.
Conforme teorizado pelo antropólogo mexicano Miguel Alberto Bartolomé (2006), as
etnogêneses tratam-se de processos protagonizados pelos povos nativos no qual se
reapropriam de sua identidade étnica, uma vez tendo sido obrigadas a abandonar esta
identidade nos processos de colonização. Nas palavras do autor, ―Trata-se da dinamização
e da atualização de antigas filiações étnicas às quais seus portadores tinham sido induzidos
ou obrigados a renunciar, mas que se recuperam combatentes, porque delas se podem
esperar potenciais benefícios coletivos‖ (BARTOLOMÉ, op. cit., p. 45).
Sua natureza de processo social, cultural e identitário é evidente; porém é distintivo
também seu conteúdo político: a ―etnogênese apresenta-se como processo de construção
de uma identificação compartilhada, com base em uma tradição cultural preexistente ou
construída que possa sustentar a ação coletiva‖. (Idem, p. 44).
É, pois, a reapropriação de uma identidade, com vistas à sustentação da ação
coletiva, em geral frente ao Estado. Neste processo os povos nativos objetivam ―se
constituírem como coletividades, como sujeitos coletivos, para poderem se articular ou se
confrontar com seus Estados em melhores condições políticas‖. (Idem, loc. cit.).

48
A propulsão do processo pode estar, já prevista por Bartolomé, na existência de
novas legislações, que garantem atualmente direitos antes negados. ―Em certas
oportunidades isso se deve à desestigmatização da filiação nativa, mas frequentemente
também às novas legislações que conferem direitos antes negados, como o acesso à terra
ou a programas de apoio social ou econômico‖ (Idem, p. 45).
No caso das comunidades remanescentes quilombolas brasileiras, as políticas
públicas oficiais de reconhecimento de comunidades remanescentes quilombolas,
notadamente o Programa Brasil Quilombola, no Brasil no início do século XXI,
desempenharam papel de primeira importância para a etnogênese do Rosa e de outras
comunidades quilombolas do Amapá - o que não quer dizer necessariamente que não
ocorreriam de outra maneira.
Para caracterizar esta relação no Brasil contemporâneo, do movimento social
quilombola com o Estado, o direito e as políticas públicas, Amanda Lacerda Jorge (2015)
define a condição do movimento social quilombola no Brasil como realizando um ―caminho
inverso‖:

Isto porque, até a existência do dispositivo constitucional em 1988, tal


movimento era incipiente e não se articulava prioritariamente a partir da
denominação „quilombola‟. Neste sentido, o artigo 68 do ADCT abriu o
caminho para que esse movimento nascente ganhasse robustez e trilhasse
novos caminhos, com o fortalecimento de suas reivindicações. (JORGE, op.
cit., p. 146).

Inclusive na reapropriação da identidade étnica quilombola – isto é, na etnogênese.


Muitos/as militantes estavam nos movimentos negros e/ou rurais. Se reconheciam negros e
ligados ao passado africano e ao histórico de escravismo e liberdade (RATTS, 1996). Muitas
comunidades eram denominadas de ―terras de pretos‖ ou expressões semelhantes.
Para análise do processo que nos propomos aqui, a produção da etnogênese,
distinguimos os processos fundantes, que são facilmente localizáveis, e processos de
consolidação. Igualmente, identificamos também que etnogênese não é um evento, mas um
processo, longo no tempo, repleto de dialeticidades, de idas e vindas.

A produção da etnogênese
Antes de entrarmos propriamente nos fatos históricos particulares próprios da história
do Rosa que produziram sua etnogênese, devemos situar os elementos contextuais macro-
históricos e globais que, se não determinaram diretamente, deram condição de possibilidade
para a etnogênese do quilombo.
Estes elementos de diferentes escalas, oriundos da agência de outros atores sociais
e outros processos históricos, deram condição de possibilidade para a etnogênese do Rosa

49
e forneceram boa parte de sua semântica e de sua sintaxe, à medida em que a comunidade
foi convocada – e teve que se sujeitar – a aderir à linguagem disponibilizada e exigida pelas
instâncias da esfera pública detentoras do poder de legislar sobre a questão e conferir o
acesso aos direitos universal e regionalmente conquistados e estabelecidos, e pelo campo
intelectual e simbólico envolvido na disputa simbólica sobre a temática. São eles a
Convenção 168 da Organização Internacional do Trabalho, do ano de 1988; a Constituição
da República Federativa do Brasil, de 1988, especialmente os artigos 216 e 217, bem como
o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT 38); e, mais recentemente, o
Programa Brasil Quilombola, de 2003.
Direitos construídos e conquistados na mobilização internacional por direitos das
comunidades tradicionais, sua incorporação no Direito Constitucional brasileiro, e sua
materialização em políticas públicas fazem parte do contexto político, simbólico e jurídico
que fez parte da etnogênese do Rosa como comunidade remanescente de quilombo, no
Amapá no início do século XXI, devendo ser considerados analiticamente como marcos da
etnogênese do Rosa.
Na esfera da história particular da comunidade, a mobilização empreendida pela
comunidade contra uma mineradora que intencionava depositar rejeitos tóxicos de
mineração em seu território, e a defesa contra um morador que estava vendendo terras da
comunidade, foram fatores que desencadearam a busca por respaldos eficazes e mais
fortes para defesa do território e da vida da comunidade.
A título de contextualização, sobre as políticas públicas favoráveis, no estado do
Amapá, estas políticas propiciaram o início do processo de reconhecimento de uma
quantidade considerável das comunidades quilombolas no estado, algumas vindo a fechar o
ciclo, com a titulação definitiva de suas terras, como é o caso das comunidades Conceição
do Macacoari, São Raimundo do Pirativa e Mel da Pedreira. A exceção fica por conta do
Quilombo do C-riaú, cujo processo de reconhecimento, certificação e titulação ocorreu na
década de 1990.
Analiticamente, distingue-se aqui os eventos fundantes ou que dispararam a
etnogênese do Rosa, daqueles que vieram na sequência e tiveram o efeito de consolidar
esta etnogênese.

Eventos fundantes
Para a produção da etnogênese em si, quatro processos históricos fundantes foram
identificados.
O primeiro, a mobilização, em 2002 contra uma mineradora, a ICOMI - Indústria e
Comércio de Minérios S.A., quando esta estava a depositar arsênio, rejeito tóxico de
mineração, nas terras da comunidade.

50
Diante desta ameaça, a comunidade do Rosa articulou-se com outras comunidades
quilombolas, acionou a prefeitura municipal, acionou uma deputada federal, acionou outras
comunidades da região, e realizaram uma grande mobilização que durou uma semana, na
qual lograram expulsar a empresa do local e frustrar seus planos de despejar os rejeitos no
território da comunidade.
Esta mobilização, malgrado não tenha trazido ainda a identificação como quilombola
para a comunidade, acentuou fortemente seu sentido de comunidade, e interpôs na
consciência da comunidade a certeza da necessidade de defender-se.
A Icomi habitualmente levava seu rejeito de manganês ao Porto do município de
Santana, e lá embarcava-o para o descarte necessário em outro lugar. Todavia, com o
tempo, a demora no embarque ocasionou o acúmulo desse rejeito no porto, ocasionando
diversas doenças nos moradores do entorno, revelando sua toxicidade.
Como alternativa para descarte, que estava inviável via porto de Santana, a ICOMI
estava iniciando o descarte desse rejeito em uma seção das terras do Rosa. O processo foi
descoberto pela comunidade quando suas obras já estavam avançadas. A mineradora já
havia montado uma estrutura grande, que incluía escavação e preparação do solo para
depósito desse rejeito, extensão do trilho do trem até o local do despejo e soterramento do
rejeito, postes de luz para transmissão de energia elétrica ao local e acampamento dos
trabalhadores. Joice Ester, uma das primeiras a chegar ao local e se deparar com a obra,
descreve como ―uma enorme engenharia‖ a que estava montada.
Na última semana de novembro de 2012, voltando do Encontro de Tambores em
Macapá, Joice e Sonia, duas das filhas de Maria Geralda, matriarca da comunidade,
regressaram antes de todos para a comunidade, onde havia ficado apenas Maria Eleanor,
irmã de Geralda, logo após o término da festa em Macapá. Logo ao chegar, ouvindo o
barulho do trem, estranharam este parar tão perto da comunidade, onde habitualmente não
havia trilha ferroviária.
Ao aproximarem-se do local de parada do trem naquela noite, para saber a razão de
o trem parar ali, avistaram toda a estrutura montada pela ICOMI. Imediatamente entraram
em contato com o restante da família que estava ainda em Macapá para informar o que
acontecia. Ao saber do acontecido, a família pediu ajuda às demais comunidades e
movimentos próximos.
As comunidades, reunidas na UNA na ocasião do Encontro dos Tambores, celebrado
na semana da consciência negra em novembro, lotaram dois ônibus e dirigiram-se para o
Rosa para impedir a mineradora. A esta altura, das doze células preparadas para receber o
rejeito de manganês a ser depositado, uma delas já havia sido completamente enchida pela
ICOMI.

51
O que se desenrolou foi um autêntico confronto físico da comunidade e aliados
contra a ICOMI; na mesma noite conseguiram expulsá-los.
Na sequência, comunidade e aliados acamparam no local onde a ICOMI pretendia
depositar o rejeito, e seguiram dez dias acampados, enquanto corria o judicialmente o
processo para impedir juridicamente a ICOMI de sua intenção.
Maria Geralda narra os dias de acampamento, nos quais não saiu de lá em nenhum
momento. Os acampados recebiam comida que os parceiros traziam de Macapá. Durante as
noites, para amenizar a dureza do acampamento, tomavam gengibirra e reuniam-se os
tambores e caixas para tocar marabaixo.
O marabaixo tocado todas as noites do acampamento fazem pela festividade o
fortalecimento da comunidade na penúria da ação que foi obrigada a tomar. Como se no
momento mais extracotidiano possível, o ser do Rosa fosse mais expressado e implodisse
no marabaixo. Como se liberto das amarras do cotidiano, inclusive, pode se supor, aquelas
impostas pela disciplina necessária do trabalho, seu ser mais interno se revelasse no
impulso à dança e à música do marabaixo.
Nesta comunhão revela-se a imanência entre resistência e tradição cultural, na qual
uma chama a outra, e ambas se fortalecem; conexão imanente que é o substrato do ser
quilombola.
No décimo dia de acampamento, sai a decisão judicial favorável ao Rosa, impedindo
a ICOMI de prosseguir seu plano; e encerra-se o acampamento.
Como resistência à ICOMI, além do acampamento, comunidade do Rosa e aliados
fizeram manifestação em frente à Polícia Federal para exigir as providências jurídicas
necessárias; ocasião em que contra os manifestantes foram chamadas Polícia Civil e Polícia
Militar, e alguns quilombolas chegaram mesmo a serem detidos. Segundo Joice, o intuito da
manifestação era chamar atenção de autoridades que pudessem auxiliar a luta da
comunidade.
Josielson relembra o episódio da luta contra a ICOMI, em que ele tinha apenas 15
anos de idade. Na época, ele e as crianças menores, Marcela, Bruno e Ítalo, estavam com
todos na cidade, onde foram deixados pelos adultos para se manter em segurança durante a
mobilização contra ICOMI.

Eles (os adultos) largaram todos nós lá [na cidade] e vieram lutar contra a
ICOMI. Não sabiam se iam voltar vivo ou morto. Colocamos o colchão no
mesmo quarto e dormimos todos juntos. Eu era mais velho, ficava imaginando o
que estava acontecendo, mas não falava nada para as outras crianças para não
assustar elas. Era vinte e quatro horas você ligava na Difusora [rádio estatal]
estava falando disso. O negócio estava feio, mano, estava feio‖.

52
Depois desse episódio, e especialmente diante da gravidade dele, os moradores do
Rosa fundaram a associação da comunidade. Como conta Joice Ester, até o momento não
sabiam a razão de ser de uma associação e os procedimentos para criar uma. No entanto,
buscaram se informar para criá-la, como forma de buscar maiores possibilidades de
representação e defesa jurídica.
A ICOMI até então nunca havia tentado depositar seu rejeito de manganês nas terras
de nenhuma comunidade. Escolheu o Rosa em primeiro lugar porque se associou a alguém
dentro da comunidade, que lhe ofereceu espaço dentro da comunidade para depósito desse
1
rejeito. N negociou com a ICOMI a disposição do local para o depósito em troca de
retribuições materiais.
Esta ação da Icomi não teria sido possível, pois, sem a ação de um sujeito, que por
ser morador nas terras da comunidade, manipulou a legitimidade que esta condição lhe
conferia para negociar com a Icomi o espaço interno ao Rosa para seus propósitos.
O segundo processo, a defesa contra a ação de N.
Sobre N. Veio de outra comunidade, São Pedro do Caranã, brigado com a família. O
motivo de sua desavença com os pais foi que loteou e vendeu parte do terreno e da roça da
própria família em sua comunidade de origem. Vendeu essas terras em troca de uma
caminhonete. Quando o comprador chegou para se apossar da terra comprada, o pai de N,
verdadeiro proprietário do terreno, ficou sabendo e expulsou o comprador. O comprador foi
até N e tomou-lhe o carro que tinha dado em troca da terra. Em seguida, N foi expulso de
seu pai da casa deste.
Chegou e estabeleceu-se no Rosa, em torno do ano 2000, aproveitando-se da
ausência momentânea do núcleo familiar de Geralda, e manipulando o fato de sua mãe ser
prima de segundo grau de Geralda. Ao chegar, iniciou atividades que não tinham nenhum
lastro na história do Rosa e contrárias à territorialidade da comunidade: começou a cercar
lotes e vendê-los para terceiros, pessoas de fora da comunidade.
Ao saber da situação, Geralda e seu esposo, Benedito, sentiram-se ameaçados e
ficaram preocupados com essa atitude de N. Este passou a constituir um evidente problema
e uma ameaça para a reprodução social e territorial da comunidade.
Geralda conta que teve de fazer sucessivos enfrentamentos a este senhor. Geralda
narra um episódio em que pela primeira vez se deparou com uma cerca - elemento inédito
na comunidade, e símbolo de uma territorialidade incompatível com a da comunidade – feita
por N nas terras do Rosa. Lembrando o momento, ela diz ―quem vive em cerca é boi, aqui
não tem boi‖, e sua atitude foi de pegar um aliciante e cortar toda a cerca.

Nome fictício.

53
Três dias depois fez o primeiro boletim de ocorrência contra N. Na audiência
decorrente, ele tentou amenizar a situação dizendo que gostava dela e que eram amigos, ao
que ela respondeu que ele não gostava de ninguém, que tinha vendido a terra da própria
família.
Hoje, N, continua loteando e vendendo partes do terreno. O Rosa espera o INCRA
realizar a etapa da desintrusão, na qual ele será expulso.
N é um sujeito portador de uma ética de condução da vida capitalista, individualista e
predatória; e sua territorialidade correspondente, a propriedade particular baseada na
compra da terra. Este sujeito, por si só, é um vetor de expansão de uma territorialização
capitalista-individualista.
Não se ignora, evidentemente, a contribuição dos dois processos acima descritos, a
luta contra a Icomi e contra a atuação desagregadora de N, também para a configuração
identitária do Rosa, naquilo que deve ser o mais evidente nesse escopo: na produção de um
forte sentido de comunidade. Todavia, há um processo ao qual não pode não ser ligada a
produção da identidade de comunidade remanescente quilombola: a chegada do Programa
Brasil Quilombola, o qual trouxe a categoria jurídica e a categoria identitária de
remanescente quilombola. Este é o terceiro processo.
A identidade de comunidade remanescente quilombola, no Amapá, não pode não ser
ligada à existência desse programa. Este programa, realizado por meio do INCRA, foi que
trouxe a categoria jurídica e identitária de remanescente quilombola, com a qual a
comunidade se identificou atrelando-a a seus antecedentes ex-escravos.
O Programa Brasil Quilombola é uma política pública do governo federal para as
comunidades negras rurais, com o objetivo de propiciar as condições para o auto-
reconhecimento destas comunidades como remanescentes quilombolas e o consequente
acesso aos respectivos direitos.
Criado em 2003 na esfera federal, o programa chegou ao Amapá em 2004, através
do INCRA local. Na ocasião a superintendência do INCRA se encontrava sob gestão de
Cristina Almeida, conhecida militante do movimento de mulheres negras local.
Até então a única comunidade quilombola que havia no estado era o Quilombo do C-
riaú – que foi nada menos do que o segundo quilombo a ser titulado no Brasil. Cristina
Almeida, na condição de superintendente do INCRA, atuou, na esteira do Programa recém-
criado, no sentido de difundir os direitos quilombolas às comunidades negras rurais do
estado e assim incentivar o auto-reconhecimento e a titulação. A presença desta militante do
movimento de mulheres na direção do INCRA é localizada como fato autônomo de
contribuição para o processo em pauta. Assim se expressa Geralda sobre a chegada do
Programa Brasil Quilombola ao Rosa.

54
O pessoal do INCRA vinha e conversava muito com a gente sobre o que é
ser quilombola. Traziam mapas, ficavam explicando os mapas pra gente. A
gente aceitou porque a gente precisava de uma força a mais. Então tornar-
se quilombola foi bom para dar essa força a mais para defender-se contra
ameaças [que naquele momento eram ICOMI e N].

Até então, conforme Joelma Meneses, havia certo misticismo, como ainda há hoje,
em relação à categoria jurídica quilombola e ao tornar-se quilombola. Segundo ela, ―o
pensamento de muitos é „eu vou virar quilombola, não vou poder fazer isso, não vou poder
aquilo‖. Havia, portanto, razoável desconhecimento quanto ao direito quilombola e
desconfiança quanto ao ser e tornar-se quilombola.

A intencionalidade da etnogênese
Um dos fatores para a intencionalidade da comunidade do Rosa em direção ao auto-
reconhecimento como quilombola e o amparo respectivo da lei foram as ameaças reais ao
território da comunidade, experienciadas no período. A ameaça concreta ao território, assim,
foi fator disparador da materialidade da etnogênese, o sentimento de comunidade, ainda que
sua exterioridade, especificamente como remanescente quilombola, tenha advindo depois,
de outra fonte, a atuação histórica do movimento negro, materializada no ADCT 68 e no
Programa Brasil Quilombola.
Nas palavras de Joelma, o auto-reconhecimento como quilombola e o posicionamento
público como tal foram decisivos para assegurar o território do grupo face estas ameaças
externas do período. Joelma rememora principalmente o episódio descrito na seção anterior de
tentativa da ICOMI de depositar rejeito de manganês no terreno da comunidade como um fator
decisivo para a tomada de decisão rumo à auto-identificação como quilombola.

Já tinha acontecido da ICOMI querer depositar o rejeito de manganês. Hoje


elas reconhecem que foi muito importante. Senão só teriam hoje o lugar das
casas onde moram. Por conta de nossa resistência, principalmente por
conta da atuação de mamãe, que sempre foi a cabeça. (Joelma Meneses,
11-05-2017).

Sem a auto-identificação e o posicionamento público como quilombola, como vemos,


a análise da comunidade é que seu território já teria se perdido.
Auto-identificar-se como quilombola, assim, ou atualizar a identidade de remanescente
de quilombo, significou o que Bartolomé coloca em sua análise como constituição ―como
coletividades, como sujeitos coletivos, para poderem se articular ou se confrontar com seus
Estados em melhores condições políticas‖. (BARTOLOMÉ, op. cit., p. 44).
O Programa Brasil Quilombola na prática é o Estado como promotor ou disparador de
uma territorialidade específica. Lembrando que o Programa só existe graças ao movimento
negro nacional. Desse modo, como conquista, o movimento negro nacional é o responsável

55
pela propulsão desta territorialidade, bem como pela criação das condições da possibilidade
de sua propulsão. Esta territorialidade disparada é conquista do movimento negro nacional.
A visão de mundo de onde emana, ou o propulsor de racionalização é o movimento da ética
antirracista.
A chegada desta política pública, o Programa Brasil Quilombola, não obstante sua
importância decisiva, precisa ser relativizada: sozinha não produziria o efeito que teve, sem
a atuação das lideranças do movimento negro local – o quarto fator na etnogênese do Rosa.
A atuação do movimento negro regional – novamente, leia-se: o movimento de
mulheres negras – deve ser colocada, se não como causa, como um dos antecedentes
imediatos da etnogênese do Rosa.
O futuro é espaço da incerteza. Atuar no futuro é sempre um risco. É atuar sem
referências por onde situar a própria ação, atuar no espaço do inexistente, onde a ação
territorializadora tem de ser a da criação.
Todavia, mesmo com a informação disponível e com a atuação de lideranças
parceiras, a assunção como quilombola é um passo na incerteza para a comunidade.
Envolve risco e coragem para arriscar entrar num campo desconhecido.
Sobre o passo decisivo em direção ao auto-reconhecimento como quilombola.
Josielson assim o define:
Não sabíamos as consequências, são sabíamos o que ia dar, mas entramos de
cabeça. Muitas pessoas militavam, pessoas que tinham respeito, renome, defendiam essa
bandeira, militavam por esses ideais. Pessoas boas. Isso ajudou a não ter dúvidas. Ainda
mais que quem estava à frente coordenando tudo era a Cristina, que veio pessoalmente nas
comunidades. Ela sonhava com uma coisa além do que ela podia. Lá na frente ela não sabia
o que podia acontecer (Josielson)
A atuação militante e comprometida de pessoas, portanto, que tinham prestígio e
legitimidade entre as comunidades foi fator importantíssimo nesse momento crucial de
resolução da dúvida quanto a iniciar o processo o processo de auto-reconhecimento.
Nesta seção buscamos mapear e analisar os elementos envolvidos no processo de
etnogênese do Rosa. Na seção seguinte, analisaremos o desenvolvimento dessa
etnogênese no tempo.

Consolidações
A etnogênese não é um evento, mas um processo, longo no tempo, e repleto de
dialeticidades. Para a consolidação, pois, da identificação como quilombola, outros
processos atuaram. Cabe citar dois especificamente: a elaboração do mapa cartográfico da
comunidade, realizada em parceria com a Universidade Estadual do Amazonas; a
certificação do Rosa como comunidade remanescente quilombola, pela Fundação Palmares.

56
Estes dois processos contribuíram até o momento para a consolidação da
etnogênese, ou seja, da auto-identificação e do reconhecimento da comunidade do Rosa
como comunidade remanescente quilombola.
Sobre a elaboração da cartografia, cabe acrescentar algumas palavras apenas sobre
o primeiro: a realização do mapa cartográfico da comunidade, em 2013, em parceria com a
Universidade Federal do Amazonas, no Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.
Na ocasião, a comunidade foi convidada a realizar uma cerimônia de lançamento
também na Assembleia Legislativa. Nesta ocasião, a comunidade denunciou as invasões e
conflitos decorrentes que estava sofrendo em seu território. A projeção alcançada por estas
denúncias levou as autoridades a tomar medidas imediatamente em relação a tais conflitos.

Antagonismos internos
O processo da etnogênese não é homogêneo nem puramente consensual. É um
processo dialético, e não raro conflitivo, no interior das comunidades, e assim também para
o Rosa.
Como expressão das contradições presentes no processo de etnogênese, o Rosa
teve de enfrentar a resistência interna à auto-identificação como quilombola por membros da
própria comunidade; resistência em parte vencida, pelos processos de produção de
consenso próprios do grupo, em parte presente ainda hoje, na consciência de moradores da
comunidade ainda contrários à auto-identificação e titulação do território como quilombola.
Na comunidade do Rosa havia o caso de Josefa, tia de Joelma e irmão de Maria
Geralda, que não queria no início tornar-se quilombola, porque entendia que fazendo isso ela
não poderia continuar com hábitos que tinha como caçar, e caçar e vender o produto da caça.
Josefa também tinha receios quanto ao tornar-se porque ouvia de outras pessoas,
que eram contra o reconhecimento quilombola, palavras pejorativas, como ―que ser
quilombola era um atraso‖.
Josefa só mudou de posição conforme Joelma e Geralda explicaram para ela como
era o processo. Sobretudo lhe esclarecendo sobre as interdições que haveriam, que não
incidiriam nos hábitos alimentares ou de reprodução econômica; as interdições incidiriam
apenas sobre a proibição de vender ou alugar.
Mesmo assim, é muito difícil falar que um processo de convencimento esteve em
curso. O Rosa tem uma ética própria quanto à prescrição do posicionamento correto em
relação às decisões que cada um toma na vida. Conforme expresso num dado momento por
Josielson, o ato de convencer alguém de algo ou seu inverso, desaprovar decisão de
alguém, são atitudes que não têm sentido no universo da comunidade.

57
Ninguém influencia ninguém. Cada um é dono de sua consciência. Aqui o que a
mamãe fala a gente segue. E ela esteve decidida desde o começo. Eleanor
disse „se a minha comadre Geralda quer, eu também quero‖. Josefa esteve
inicialmente em dúvida, porém depois juntou-se às irmãs. Aí só depois que as
três vieram e bateram o martelo, que a gente foi atrás. (Josielson).

Não há o trabalho de convencimento de uns sobre outros, porém isto não exclui a
influência do prestígio de uns sobre as decisões dos demais. No caso, especialmente o
prestígio de Geralda é decisivo. A ―obediência‖ se dá por iniciativa dos demais em torno da
incontestável sabedoria das decisões de Geralda.
Há algo ainda a dizer sobre as dúvidas e hesitações da comunidade. Tanto o
desconhecimento do direito e da lei pelas classes populares quanto a produção intencional
de informação falsa, movida pelos detratores do movimento quilombola e do movimento
negro, alimentada não só por interesses contrários à titulação quilombola como pelo
racismo, foram, no período de auto-reconhecimento do Rosa, e ainda são no Amapá
obstáculos a serem enfrentados no sentido do exercício pleno da cidadania das
comunidades remanescentes quilombolas locais.
No Brasil, na luta simbólica as elites produzem deliberadamente conhecimento falso – ou
desconhecimento – sobre a constituição e as leis em geral do país, objetivando afastar as
classes populares da luta por seus direitos e do exercício pleno de seu direito e sua cidadania.
O efeito sobre a vida da comunidade desse obscurantismo produzido é assim
expresso por Josielson: ―Não sabíamos o que era quilombo. Naquilo que a gente estuda na
escola não fala nada disso. Fala só dos bandeirantes atrás dos pretos. A gente foi saber o
que era isso só agora, após muita luta, e que o INCRA teve essas atuações‖.
Esta produção de desconhecimento e obscurantismo é fator pois adverso às
etnogêneses quilombolas. Superado, todavia, pelo Rosa. Sua superação, como vemos,
exige um intenso trabalho educativo pelas instituições e movimentos sociais ligados à causa.
um trabalho educativo e também luta simbólica, uma vez que não se trata apenas de
oferecimento da informação correta, como também de combate ao preconceito produzido
em torno da questão.
Dentro da comunidade do Rosa há ainda hoje uma pessoa especificamente que não quer
ser quilombola, e que age no sentido de tentar influenciar as outras. Não quer ser quilombola
porque tem interesse em vender os terrenos que ocupa dentro da comunidade. Já vendeu várias
partes da área. Há vários processos contra ele na Polícia Federal, no Ministério Público Federal
por conta de estar vendendo partes da terra. Na etapa de desintrusão, esta pessoa é uma das
que está para ser expulso da área. Maria Geralda fez vários boletins de ocorrência contra ele.
Ele, por sua vez, já ameaçou Geralda e irmã de morte.

58
A comunidade do Rosa enfrenta, assim, como outras comunidades, obstáculos
internos no processo de etnogênese. No qual sujeitos vivendo no território da comunidade
opõem-se ao processo de titulação, por alimentar interesses diversos da comunidade; e
agem obstruindo o processo de titulação como podem, e tentando influenciar outros
moradores a se opor à titulação.
Apenas a título de comparação, a dialeticidade presente os processos de etnogênese
descrita também por Ratts (1999), ao analisar a configuração do território
indígena Almofala dos Tremembé.
O autor, apesar de não trabalhar com o conceito de etnogênese, analisa um
processo de afirmação étnica como o das etnogêneses, no qual a comunidade afirma sua
identidade étnica, e, numa situação de contato adversa aos direitos étnicos, tem de criar
mecanismos para consolidar e legitimar esta identidade face aos seus adversários.
Uma conflitualidade interna à comunidade na construção do processo é assim
identificada por Ratts: ―As vozes dos índios, captadas em contexto recente, plenas de
metáforas de sua continuidade, indicam também processos de mudança e até mesmo a
dificuldade de dar sequência a certas tradições‖ (op. cit, p. 76).
No bojo de um processo de etnogênese, pois, as vozes da comunidade expressam
ao mesmo tempo continuidades com o passado e mudanças no presente: este a primeira
conflitualidade; a segunda, a dificuldade manifesta em manter dadas tradições, o que,
desnecessário dizer, no plano mais superficial, depõe contra a própria etnogênese.
O segundo elemento da dialeticidade, mais profundo por assim dizer, trata-se do que
Ratts (loc. cit.) denomina sobreposição de ritmos. ―É fundamental tentar interpretar essa
sobreposição de ritmos para não correr o risco de encapsular os Tremembé (e outros povos
indígenas [e comunidades em geral, incluso quilombolas] em situação semelhante) em duas
temporalidades: antes e depois da emergência [ou da etnogênese]‖.
A etnogênese, ou a emergência na linguagem de Ratts, não é feita de modo
estanque, nem com uma única ruptura absolutamente definitiva; não sendo linear, neste
processo há uma sobreposição de temporalidades e de ritmos.
O processo, por constituição, e não por acaso, é dialético.

Considerações finais: etnogênese e território


Tanto o desconhecimento do direito e da lei pelas classes populares quanto a
produção intencional de informação falsa, movida pelos detratores do movimento quilombola
e do movimento negro, alimentada não só por interesses contrários à titulação quilombola
como pelo racismo, foram, no período de auto-reconhecimento do Rosa, e ainda são no
Amapá, obstáculos a serem enfrentados no sentido do exercício pleno da cidadania das
comunidades remanescentes quilombolas locais.

59
Não obstante a dialeticidade interna do processo, e as inúmeras forças externas
contrárias à efetivação da cidadania quilombola, o Rosa tem se firmado como quilombo.
Uma força motriz decisiva para a intencionalidade da comunidade do Rosa em
direção ao auto-reconhecimento como quilombola e o amparo respectivo da lei foram as
ameaças reais ao território da comunidade, experienciadas no período. No que concerne à
relação entre etnogênese e território, o auto-reconhecimento como quilombola e o
posicionamento público como tal foi decisivo para assegurar o território do grupo face estas
ameaças externas do período.
Pela análise deste processo recente protagonizado pelo Rosa sou levado a discordar
de alguns supostos da literatura sobre etnogênese. Gostaria de observar que a etnogênese
um fenômeno territorial, não identitário. Ninguém duvida que seja sempre uma
transformação identitária; porém como sempre traz consigo uma pretensão territorial, é
plausível questionar se a dimensão visível da etnogênese não seja apenas a consequência
ou o invólucro de uma transformação – esta sim, verdadeira motriz do processo – de ordem
territorial. A essência da etnogênese é, pois, territorial, não identitária. Isto se confirma
também pela sua negação. As comunidades que têm assegurado seu território por outras
vias, não iniciam processos de etnogênese na esfera simbólico-cultural.
Sobre a relação entre comunidade e identidade gostaríamos também de acrescentar
algo que parece que não foi discutido na literatura sobre o tema.
A comunidade não é sua identidade. A comunidade, com sua história, sua tradição e
sua ancestralidade, é uma totalidade muito maior que sua identidade. A identidade não
define a comunidade. Aquela é apenas um elemento na totalidade desta.
Ficar buscando reduzir a comunidade a sua identidade, ou definir a comunidade por
sua identidade, é uma busca equivocada do ponto de vista conceitual, e de má fé do ponto
de vista político. Compreender que a comunidade é uma entidade muito maior do que a
identidade que apresenta, com que se apresenta ao exterior, no contexto multiétnico de
contato, e com que o exterior a lê, é o passo necessário a ser dado neste momento para
compreensão científica das comunidades quilombolas, de sua ontologia e de sua
historicidade real.
Considerando a especificidade da etnicidade na criação de códigos culturais e visões
de mundo singulares, incorpora-se a reflexão sobre a especificidade da etnicidade na
produção das diferentes configurações socioespaciais e nas dinâmicas inter-societárias. Nos
contextos multiétnicos de contato, a existência de comunidades tradicionais, indígenas e
quilombolas, tem – e sempre deve ter, nas regiões coloniais - caráter e substância
profundamente política, sob pena de seu desparecimento. A mobilização política
permanente torna-se cotidiano destas comunidades.

60
A territorialidade contemporânea do Rosa somente se compreende dentro do novo
processo de territorialização do grupo, ou, se se preferir, dentro de seu movimento social
pela garantia de sua cidadania e efetivação de seus direitos étnicos, incluso os territoriais. O
processo de territorialização recente do Rosa, pela primeira vez como comunidade
quilombola, é dependente do estabelecimento e efetivação de uma territorialidade nova. A
territorialidade contemporânea do Rosa constitui-se de alianças de caráter social e político.
A formação destas alianças da condição de possibilidade para ações políticas de
maior envergadura, maior força e maior impacto político. Sobre estas alianças, temos a
participação das lideranças do Rosa em assembleias políticas e deliberativas formadas por
segmentos da sociedade civil no Amapá e na Amazônia, como as reuniões do Conselho
Consultivo do Mosaico da Amazônia Oriental, bem como o SAPEG – Seminário de Áreas
Protegidas do Escudo das Guianas.
No âmbito das alianças precisa ser posto o acesso aos serviços de órgãos
especializados no atendimento às comunidades quilombolas, como é o caso da Fundação
Palmares, responsável dentre outras coisas pelo reconhecimento oficial e certificação da
comunidade como remanescente quilombola; e o INCRA, que no momento inicial da
mobilização do grupo, teve papel decisivo na informação à comunidade quanto aos direitos
quilombolas e ao processo de titulação.
No escopo da dimensão social das alianças que o grupo forma com outros atores,
existe também o inverso das alianças, os adversários do grupo, contrários à efetivação de
seus direitos, que não participam da territorialidade do grupo senão no sentido de constituir
os limites desta territorialidade. Nesse sentido, no período histórico analisado, o INCRA, pela
demora no andamento do processo de titulação do Rosa, apareceu - em um momento
específico - como adversário do grupo, e, portanto, uma limitação e obstáculo a sua
territorialidade.
Na mesma linha, o Programa Terra Legal, programa de regularização fundiária
liderado pelo governo do estado do Amapá, constituiu limitação à territorialidade e ameaça
concreta ao território do grupo. Assim, a exploração anterior de pinho, pela AMCEL, a
estrada de ferro da exploração mineral da ICOMI, e atualmente o interesse externo na
plantação da soja, são ameaças ao território e limitações à territorialidade da comunidade.
Marcos para a autorreconhecimento do Rosa como comunidade quilombola foram a
garantia do direito na Constituição de 1988, o ADCT 68, que impulsionou a auto-
identificação o reconhecimento social público das comunidades quilombolas no Brasil; a
criação de políticas públicas, especialmente o Programa Brasil Quilombola, com vistas
materializar este reconhecimento; e a mobilização empreendida pela comunidade contra
uma mineradora que intencionava depositar rejeitos tóxicos de mineração em seu território.

61
Nas palavras das lideranças, o autorreconhecimento como quilombola e o
posicionamento público como tal foram decisivos para assegurar o território do grupo face
estas ameaças externas do período. Sem a autoidentificação e o posicionamento público
como quilombola a análise da comunidade é que seu território já teria se perdido.
necessário contextualizar que este fortalecimento político somente se torna um valor no
contexto dos processos vividos pelas comunidades quilombolas da Amazônia e do Brasil no
início do século XXI, que englobam processos de afirmação étnica, de titulação do território, de
conquista da educação e da saúde diferenciada, de efetivação de políticas públicas (de moradia,
educacionais, de valorização e preservação do patrimônio cultural), e de luta contra o racismo e,
mais recentemente no Amapá, de defesa do território contra invasores, tanto invasores
individuais, quanto atividades econômicas de grande porte, como a monocultura e a mineração;
contexto, diga-se de passagem, no qual estas comunidades têm de se relacionar e confrontar
diretamente o Estado brasileiro, tanto na ameaça que este representa por vezes
sua integridade, quanto na luta pela efetivação de seus direitos étnicos.
O universo simbólico e a autorrepresentação da comunidade é muito maior do que a
identidade que esta assume no contexto multiétnico de contato. Este aspecto de sua
identidade, a de remanescente quilombola, é levado a primeiro plano para viabilizar a
comunicação com a sociedade nacional brasileira.
A etnogênese, assim, tem o sentido de uma estratégia territorial, porém não resume
todo o universo de significados da ancestralidade, memória e tradição da comunidade. A
ação descolonizatória, neste caso, tem como objeto o território comunitário, e é realizada
mediante uma concessão simbólica - a ação comunicativa - ao Estado e sociedade
colonialista brasileiro.

62
Referências

BARTOLOMÉ, M. (2006). As etnogêneses: velhos atores e novos papéis no cenário


cultural e político. Mana, 12, 39-68

JORGE, A. L. (2015). O movimento social quilombola: considerações sobre sua origem


e trajetória. Vértices, 17, 3, 139-151.

RATTS, A. (1996). Conceição dos Caetanos: memória coletiva e território negro.


Palmares em Revista, 1, 97-115.

______. (1999). Almofala dos Tremembé: a configuração de um território indígena. Cadernos


de Campo, 8, 61-81.

63
“SER FEMINISTA É...”: AS REPRESENTAÇÕES SOBRE
O FEMINISMO NA IMPRENSA PARAENSE (1912-1922)
https://doi.org/10.29327/527231.5-5

Bárbara Leal Rodrigues (UEPA)


Maurício Zeni (UEPA)

Resumo: A pesquisa tem como objetivo analisar as representações ao feminismo nos


impressos paraenses, no período entre 1912-1922, por reconhecer como um momento de
mudanças sociais e políticas em relação à emancipação e participação pública feminina.
Essas representações, grosso modo, configuram-se como positivas e negativas ao
feminismo. Para fazer tais atribuições, foi necessário compreender o modelo de mulher-mãe
e o processo contínuo de inserção pública das mulheres. Para esses resultados, foi
empregada a análise de jornais e revistas, a partir de métodos qualitativos, buscando
encontrar regularidades nos dados. A partir disso, compreendemos as diversas
representações na imprensa, como um reflexo da sociedade paraense do período, sobre o
feminismo e as mudanças que estava e poderia causar.

Palavras-chave: Feminismo; mulheres; representações; imprensa paraense; emancipação


feminina.

Abstract: This research aims to analyze the representations of feminism in Pará


publications, during the period from 1912 to 1922, as it is recognized as a moment of social
and political changes in relation to emancipation and female public participation. These
representations, roughly speaking, are positive and negative for feminism. To make such
attributions, it was necessary to understand the woman-mother model and the continuous
process of women's public insertion. To obtain results, it was used the analysis of
newspapers and magazines, using qualitative methods, seeking to find regularities in the
data. Furthermore, we understand the various representations in the press as a reflection of
the Para society of the period on feminism and the changes it could cause.

Keywords: Feminism; women; representation; Para press; female emancipation.

64
Introdução
As condições impostas às mulheres sempre foram, de alguma forma, questionadas,
seja individualmente ou coletivamente. Tais questionamentos direcionam-se sobre a ordem
estabelecida, as posições e obrigações das mulheres na sociedade, e são consideradas
como ações feministas ou precursoras do feminismo, esta última para aqueles/as que
possuíam uma perspectiva emancipatória, como é o caso das Preciosas na França do
1
século XVII .
Assim, configura-se o que é comumente chamado de ―Ondas Feministas‖, sendo a
Primeira Onda a partir do século XIX até meados do século XX, surgindo com maior
intensidade na Inglaterra e nos Estados Unidos. O movimento feminista brasileiro,
fortemente influenciado pelo feminismo euro-americano, configura-se nessa mesma linha de
tempo, a partir disso, as reivindicações são similares: por direitos, principalmente o direito ao
voto, participação nos espaços públicos, como também poder administrar bens e fortunas,
ou seja, ―o movimento feminista brasileiro induziu à elaboração de uma legislação não
2
reclamada por extensas áreas da população feminina‖ . Para além da questão política-

pública, há as problematizações aos papéis designados, como submissos, passivos e


maternais às mulheres.
Uma das primeiras manifestações pelo sufrágio feminino brasileiro é o jornal A
Família, publicado pela professora Josefina Álvares de Azevedo desde dezembro de 1888,
recebendo posteriormente ajuda das sufragistas e escritoras Júlia Lopes de Almeida e Inês
Sabino. No início do século XX, Leolinda Daltro e Bertha Lutz podem ser consideradas como
as principais líderes na luta por direitos e pelo voto feminino.
Tal movimento, com as principais manifestações no eixo Rio-São Paulo, alastrou-se
para as outras regiões do país, como Pernambuco, Minas Gerais e no Pará. No caso do
estado paraense, houve a publicação em seus impressos de diversos artigos, colunas,
enquetes direcionadas às reivindicações emancipatórias femininas, como o voto, a
educação e o trabalho, muitos desses sendo relacionados, por seus autores/as, ao
feminismo.
O período entre 1912 e 1922 é delimitado por dois marcos importantes, com fortes
influências no contexto paraense. O ano de 1912 é caracterizado pela instalação das Ligas

As preciosas, ou no francês ―précieuse‖, foi usado para designar tanto um fenômeno de corrente
literária, como um movimento feminino que ―afrontava temas que iam muito além do âmbito da
cultura‖ e também para ―designar as mulheres que reivindicavam acesso ao conhecimento e à
autonomia‖. GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 32-
33.
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p.
357.

65
3
Femininas Laurista e Lemista , a segunda com presença mais efêmera do que a primeira,
ambas com objetivo de fortalecer a política de seus candidatos. As suas ações passaram a
ser noticiadas nos jornais locais, como ―as reuniões de trabalho, as sessões lítero musicais,
as festividades que promoviam em torno do patrono, ou para angariar numerário para as
suas práticas beneficentes e de auxílio mútuo‖, também realizaram passeatas e comícios.
Assim, mesmo que algumas integrantes recriminassem ―a mulher política/mau feminismo‖,
tais Ligas não deixam de ser importantes, já que constitui em um marco na história
paraense, na inserção e participação de mulheres no processo político e partidário,
marcadamente como um espaço masculino, podendo ser considerada como uma ―prática
4
feminista‖ .
Por conseguinte, no ano de 1922 há a instalação da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino (FBPF), uma das principais, se não a principal, organização no
processo de luta pelo voto feminino, que passa a ter diversas filiais e associações em todo o
Brasil, realizando, dentre as ações, pressão sobre o Congresso para a discussão de projetos
favoráveis ao sufrágio. A partir disso, a imprensa paraense passa a ficar atenta as diversas
discussões e as ações do movimento ao longo da década de 1920, noticiando na primeira
5
página com títulos chamativos , o que demonstra uma mudança no cenário impresso

paraense, já que no período anterior, a qual estamos propondo analisar, o termo, as práticas
e ações em torno do feminismo são pontuais, com algumas colunas, enquetes e menções.

Assim, o presente artigo irá tratar inicialmente das perspectivas em torno da ―mulher
ideal‖, regendo o modo de vida das mulheres brasileiras, para assim compreendermos as
rejeições em torno da emancipação feminina; posteriormente iremos apresentar uma breve
trajetória histórica da presença feminina nos espaços públicos e suas reivindicações, como
um processo contínuo; para enfim analisar as representações proferidas nos impressos
paraenses entre 1912 e 1922, tendo em perspectiva o contexto e as mudanças sociais que o
feminismo ocasionou na sociedade brasileira. Tais trechos dos jornais, na maioria feito por
homens, configuram-se tanto como respostas temerosas as consequências do movimento
feminista, tendo, por exemplo, a saída da mulher do privado para o público, quanto
favoráveis, demonstrando os benefícios, e reivindicando uma emancipação feminina, que
começa a atingir espaços masculinizados e exigindo uma igualdade sócio-política.

3
As Ligas Femininas são organizações partidárias ligadas aos políticos Lauro Sodré e Antônio
Lemos.
ÁLVARES, Maria Luzia. Memórias e imagens do feminismo e das ligas partidárias no Pará: 1910 a
1937. IN: ÁLVARES, Maria Luzia; D’INCAO, Maria Angela (orgs.). A mulher existe? Uma
contribuição ao estudo da mulher e gênero na Amazônia. GEPEM/GOELDI: Belém-PA, 1995.
ÁLVARES, Maria Luzia. Orminda e Eneida: duas versões do feminismo paraense. IN: ÁLVARES,
Maria Luzia; SANTOS, Eunice dos (orgs.). Desafios de identidade: espaço-tempo de mulher. Belém:
CEJUP; GEPEM; REDOR, 1997.

66
6
“Si a mulher vencer os homens Quem dos bêbês vae cuidar ...”
Para compreender a subversão do movimento feminista, se faz necessário perpassar
o papel das mulheres na sociedade brasileira. As mesmas eram vistas como inferiores e tal
perspectiva passou por diversos tipos de comprovação, da religião à ciência, e lhe foi
designada características inatas como ternura e piedade, sua domesticidade, dependência e
dissimulação que marcam sua inferioridade, impedindo até mesmo um pleno
desenvolvimento físico, intelectual e pessoal.
Nesse sentido, as mulheres eram designadas para o espaço privado, ou seja, para a
7
casa, para os filhos e para o marido. Como bem ressalta Heleieth Saffioti , para que haja
felicidade da mulher, se faz necessária a presença do casamento, consolidando sua posição
social e sua estabilidade/prosperidade econômica, configurando uma dependência e
submissão tradicionais, econômica e social ao homem.
Relacionando a presente perspectiva, juntamente com o processo de modernização
que as principais cidades brasileiras passavam, Margareth Rago sinaliza que há
uma representação simbólica da mulher, a esposa-mãe-dona-de-casa,
afetiva, mas assexuada, no momento mesmo em que as novas exigências
da crescente urbanização e do desenvolvimento comercial e industrial que
ocorrem nos principais centro do país solicitam sua presença no espaço
público das ruas, das praças, dos acontecimentos, da vida social, nos
8
teatros, cafés, e exigem sua participação ativa no mundo do trabalho.
A partir disso, percebe-se a influência do desenvolvimento econômico na
configuração social das mulheres, setores industriais que demandavam o emprego
preferencial feminino, como também se pode depreender disso uma distinção de classe.
Enquanto que para as mulheres mais abastadas estão os espaços de lazer e as
reivindicações nas escolas; para as mulheres pobres, cabem as indústrias e as lojas
comerciais. Mesmo estando, por vezes, nesses trabalhos públicos para complementar a
renda familiar, as mulheres da classe operária sofriam as exigências burguesas dentro de
sua própria classe, ou seja, o movimento operário reproduzia a concepção de ideal feminino,
como ―vigilante do lar‖, e dificultava a sua inserção e participação nas entidades de classe,
9
sindicatos e nas indústrias .

Nessa conjuntura, cabe enfatizar que as mulheres negras e pobres sempre estiveram
presentes nos espaços públicos dentro do cenário brasileiro. Trabalhando em diversos
setores, sendo, por vezes, o único sustento da casa, chefes de família, tais mulheres, ao seu
modo, já subvertiam a ordem estabelecida e passaram por um processo

O Estado do Pará, 29/04/1913. Seção: Pontos & Pospontos.


SAFFIOTI, Heleieth. Op. Cit. p.63.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. São Paulo: Paz e
Terra, 2014. P. 88.
RAGO, Margareth. Ibidem, p. 89.

67
de invisibilização, seja por uma perspectiva progressista e modernizadora que implementou
políticas de ―limpeza‖ nos centros urbanos no início do século XX, seja pelo movimento de
mulheres, da classe média e alta, que não se voltaram e nem agregaram em suas pautas,
políticas direcionadas para a realidade dessa parcela feminina.
Outro ponto que merece destaque, considerando-se o período inicial da República, é
a influência do Positivismo não somente no cenário político, como também no social. Assim,
cabe ressaltar dentro dessa perspectiva, os papéis designados aos homens e as mulheres.
Aos homens caberia uma superioridade de caráter, inteligência analítica e o instinto
sexual; enquanto que às mulheres caberia uma superioridade afetiva, inteligência sintética e
o instinto materno. Para o positivismo, o instinto materno seria um instinto egoísta, já que a
mulher-mãe se prende ao que produziu, como também juntamente com o altruísmo e a
bondade, se resulta no amor materno. Tendo todas essas atribuições, a mulher-mãe passa
a ser moralmente e socialmente superior ao homem, pois ela ―abre mão de seus interesses
10
pessoais em favor da família‖ .

O mito do amor materno também é reforçado pelo discurso médico-sanitarista, a


partir de meados do século XIX, que pretende fundar, convencer e legitimar um modelo
normativo de feminilidade que a mulher deve seguir. Nesse discurso, a mulher é conduzida
a vida doméstica, devido seu instinto natural e o seu sentimento de sua responsabilidade na
sociedade. Assim, aquelas que não fossem mães, não amamentassem e nem fossem
esposas estariam desobedecendo a ordem natural, como também colocando em risco o
11
futuro da nação .

A partir disso, a República apresenta uma imagem de mulher, inspirada no


positivismo e no higienismo, passando a ser um modelo a ser seguido e exigido. Tais
argumentos passaram a ser difundidos e vinculados a uma imprensa periódica educacional
e feminina, rejeitando as teses do movimento feminista que se disseminava. Assim,
passando de colunas para jornais e revistas, surgiram as imprensas femininas, tendo tanto
aquelas que reivindicavam educação de qualidade para as mulheres, quanto aquelas que
veiculavam os valores burgueses, como também revistas que pregavam um meio termo
entre ambas. Sobre as que foram escritas e dirigidas por/para senhoras ricas, podemos
perceber o ideal mulher-mãe, ao combater o feminismo, classificando-o como um fator de
12
desequilíbrio social, e ao reforçar uma função materna biológica, social e patriótica .

MENDES, Raimundo Teixeira. A preeminência social e moral da mulher, segundo os ensinos da verdadeira
ciência positivista. Rio de Janeiro: Tipografia do apostolado positivista do Brasil, 1908. Apud. SOIHET, Rachel.
Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1989, p. 111-112.
RAGO, Margareth. Op. Cit. p.109.
ALMEIDA, Jane Soares. Imagens de mulher: a imprensa educacional e feminina nas primeiras
décadas do século. Revista Estudos Pedagógicos, Brasília, v.79, n.191, jan./abr. 1998.

68
13
“a mulher tudo invade”
A partir da análise de ideal de mulher, podemos perceber o quanto o discurso
feminista torna-se ameaçador à sociedade tradicional brasileira. Com as reivindicações e
inserção pública, as mulheres passam a alterar as concepções vigentes, contradizendo a
moral e o decoro do período, sendo refletida nos impressos da época, em representações e
discursos que tanto difama quanto enobrece a causa.
Entretanto, antes de adentrarmos nessa análise, se faz necessário pontuar que,
apesar de organizações e movimentos terem surgido a partir do século XIX, há situações
individuais e coletivas de participação de mulheres na esfera pública reivindicando direitos e
melhorias em períodos anteriores. Desde a luta pela independência, mulheres como Hipólita
Jacinta Teixeira de Mello, se fizeram presente na Conjuração Mineira, promovendo reuniões
secretas, incentivando e até financiando as ações dos conjurados; Bárbara Alencar,
participando de diversas revoltas em Pernambuco; e Maria Quitéria de Jesus, ingressando
disfarçada no Regimento de Artilharia, exemplificam algumas mulheres subversivas aos
papéis que lhe era atribuído.
Na luta pela educação, uma das pioneiras pela alfabetização das meninas e jovens,
e também considerada a primeira feminista brasileira, é Nísia Floresta. Compreendendo as
diferenças entre os sexos como construções sociais e vinculadas a disparidade educacional,
Nísia Floresta defendia a educação como primeiro passo para a emancipação da mulher, é
também responsável por traduzir livremente e publicar o livro ―Direitos das Mulheres e
14
Injustiças dos Homens‖, de Mary Wollstonecraft .
Outra esfera pública que as mulheres participaram foi a luta abolicionista, criando
sociedades e se organizando, como a Sociedade de Libertação (1870) e a Ave Libertas
(1884). Nesse cenário,
a luta abolicionista feminina sinalizou o início do fim da escravidão da porta
para dentro e a afirmação das mulheres da porta para fora. Ainda que
pedindo emancipação não para si, mas para os escravos, as abolicionistas
puseram as mulheres brasileiras na política, coletivamente e de maneira
15
inédita .
Assim, podemos perceber a participação feminina, seja individual ou coletiva em
algumas questões políticas na sociedade brasileira. A despeito do movimento feminista
brasileiro cabe pontuar suas formas de manifestação, organização e atuação.
Uma das primeiras formas de manifestação foi a imprensa alternativa feminina, ou
mais especificamente, os jornais feministas iniciados em meados do século XIX,
possibilitando o registro das causas e lutas travada pelas mulheres, como a disseminação

13
O industrial, 08/05/1902. Matéria: O reinado das mulheres.
GARCIA, Carla Cristina. Breve histórico do Movimento Feminista no Brasil. Disponível: <
http://flacso.org.ar/wp-content/uploads/2015/08/Capitulo-brasil-historia-do-feminismo.pdf>, p.6.
Ibidem, p.7.

69
16
da campanha pelo voto feminino . Constituindo-se um dos principais países latino-
americanos na propagação de jornais feministas, para citar alguns exemplos: O Jornal das
Senhoras (1852), O Sexo Feminino (1873), o Echo das Damas (1879) e o Jornal das Moças
(1914).
Nessa perspectiva, a imprensa feminina torna-se importante para os estudos dos
hábitos, costumes, reivindicações e também, como as mesmas reagiam diante de
acontecimentos e das normas sociais. A partir disso, a imprensa feminina pode ser
caracterizada como um ―conjunto de publicações voltadas para as mulheres‖, ou seja, o que
determina é o seu público leitor, já que a maior parte desses periódicos era escrito por
17
homens .
Esses periódicos do século XIX, e podemos considerar também os do início do
século XX, tinham como uma das principais pauta a educação, visando uma melhoria do
sistema de ensino, necessárias ao progresso da nação, contribuindo também para que as
mulheres trabalhassem e se emancipassem, como podemos ver no escrito de Josefina
Álvares:
[...] A primeira condição essencial de emancipação das pessoas é a
instrução. Instruída a mulher, todos os direitos se lhe antolham como da
posse razoável de todos os seres da espécie. [...]
E a mulher será instruída e emancipada, com todos os direitos inerentes às
personalidades humanas, ou não será instruída, e, por conseguinte, torná-
la-ão inferior pelo egoísmo dos seus semelhantes, o que é uma
monstruosidade.
Repito: a emancipação da mulher é um direito concernente à sua
18
instrução .
Sobre suas organizações e atuações, faz-se necessário pontuar que, apesar de
receber uma influência euro-americano ideológica, isso se difere nas ações práticas. Os
movimentos feministas ingleses e alguns grupos norte-americanos realizavam grandes
movimentações, dirigindo-se para ações e estratégias mais radicais, acabando por serem
presas e muitas mortas defendendo seus ideais. No caso das feministas brasileiras, foram
alinhados seus discursos ao ideário republicano, ou seja, que a mulher teria que ser
19
―instruída para a formação de cidadãos responsáveis pelo desenvolvimento nacional‖ ,

argumentando e convencendo homens e mulheres que a educação feminina traria


16
BANDEIRA, Ana Paulo. Jornalismo feminino e jornalismo feminista: aproximações e
distanciamentos. XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Rio de Janeiro,
nov.2015.
17
NASCIMENTO, Kelly. Entre a mulher ideal e a mulher moderna: representações femininas na
imprensa mineira 1873-1932. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2006.
AZEVEDO, Josefina Álvares de. A mulher moderna: trabalhos de propaganda. Brasília: Senado
Federal, 2018. P. 27. O Senado Federal iniciou em 2018 a Coleção Escritoras do Brasil, que visa
divulgar o trabalha de escritoras, para promover o conhecimento e a leitura dessas mulheres pouco
conhecidas em um contexto geral. Assim, inicia a coleção com a obra de Josefina Álvares de
Azevedo, publicada inicialmente em 1891.
GARCIA, Carla. Op. Cit. p. 11.

70
benefícios. A partir disso, podemos perceber quais eram as mulheres, nesse período, que
integravam o movimento: letradas, da classe dominante e consequentemente com acesso a
imprensa.
Nessa conjuntura, podemos perceber que a sociedade paraense não difere do
contexto nacional, tendo assim, grosso modo, duas concepções: os pronunciamentos
feministas, atrelados a luta reivindicatória com o papel ―mulher educadora-civilizadora‖;
como também um discurso antifeminista, com rejeições e argumentações contrárias a
alguns direitos exigidos, principalmente ao voto e a inserção nos espaços públicos.

20
“Estamos em vespera da catastophe, salve-se quem puder”
Notícias reportando o feminismo já são encontradas nos jornais paraenses desde
1893, principalmente reportando o progresso do movimento em outros países, como por
21
exemplo, o jornal Correio Paraense , que menciona o avanço do feminismo na Alemanha;
ou o jornal A Republica, que considera a abertura de escolas para mulheres como avanço
22
do feminismo, pelo governo turco , como também reporta a criação de lei para votação
municipal sem distinção de sexo no estado do Kansas, EUA, fruto do movimento
23
feminista . A partir disso, compreendemos que as reivindicações emancipatórias não são
mais novidade na sociedade paraense no período analisado.
Assim, as crescentes mudanças ocorridas no cenário público com o movimento de
mulheres, ao reivindicar esse espaço como seu também, faz com que haja uma reação de
insegurança quanto ao futuro, um medo que é causado pela ―desestabilização das fronteiras
simbólicas entre os sexos, ou seja, pela alteração nos padrões de masculinidade e
24
feminilidade vigentes‖ . Reflexo das mudanças nos papéis socialmente construídos para
homens e mulheres, na qual terá reações contrárias, seja em instituições quanto em jornais
para impedir com que tais alterações ocorram.
Como, por exemplo, no caso das vestimentas, que exposto no jornal Estado do
25
Pará , na seção ―Coisas dos Outros‖, sobre São Paulo, há a prescrição da Ordenação,
Livro Quinto, Título 31, onde diz: ―Defendemos que nenhum homem se vista, nem ande em
trajes de mulher, nem mulher em trajes de homem‖. O que torna interessante é o comentário
sobre tal prescrição na coluna, sem autoria, que diz: ―a mulher poderá ser pedreira, tabeliã,
deputada, carpinteira e usar fraque, cartola, ceroilas, calças, bigodes e até mesmo fazer... a
barba. O século é outro, senhora Ordenação, e o melhor que vossa mercê faz é queimar-se,
20
O industrial, 8/5/1902. Matéria: O reinado das mulheres.
Correio Paraense, 20/07/1893.
A Republica, 7/10/1893. Matéria: As filhas de Allah.
A Republica, 27/10/1893. Matéria: O suffragio feminino.
MARSON, Melina. Da feminista ―macha‖ aos homens sensíveis: o feminismo no Brasil e as
(des)construções das identidades sexuais. Cadernos AEL, n.3/4, 1995/1996.
Estado do Pará, 03/07/1911. Coluna: Coisas dos Outros.

71
entendeu‖. Tal Ordenação e comentário simplificam o cenário encontrado: ações de
manutenção da norma e manifestações contrárias, que já anunciam as transformações
sociais.
Partindo para a análise dos discursos antifeministas nos impressos, encontramos
comumente comentários como: ―O feminismo de hoje parece ter tomado por tarefa
transformar as mulheres tanto quanto possível similhante aos homens. [...] Ellas têm muito
26
que perder com isso e nós também‖ . Assim, podemos perceber que as reivindicações
feministas começam a desestruturar a identidade masculina e redimensionar a feminina,
evidenciado no medo e insegurança, como também uma concepção equivocada do
movimento.
Para evidenciar todos esses anseios, são diversos os meios e os discursos
utilizados, além dos jornais, há o registro de peças de teatro ou filmes que têm em seu título
a palavra ―feminismo/feminista‖ e são classificadas como ―comicas‖, por exemplo, ―Viva o
27
feminismo‖, que foi em exibição no Cinema Alhambra, no dia 11 de junho de 1912 e no
28
Cinema São João, em 22 de junho de 1912 . Como também conferências para tratar o
feminismo, tal a qual ocorreu em Belém, no dia 02 de junho, ás 9 horas da manhã no
29
Theatro da Paz, sendo o conferencista identificado pelo pseudônimo de Luciano d’Avila .
Além disso, as opiniões emitidas a respeito das feministas e do feminismo
demonstram ―palavras de louvor ou desdém, configurando-se em uma espécie de tribunal
social que se encarregava de julgar a conveniência, ou não, de qualquer ato proveniente das
30
mulheres‖ . Tal afirmação pode ser percebida na coluna ―Ao inverso do costume‖, onde o
autor, Alves de Souza, diz sobre o voto feminino: ―Não devo, não quero ter opinião sobre um
problema perigoso, que passou do campo da propaganda social para o campo da imposição
31
violenta, que derivou da palavra escripta e falada para a bomba e para o incendio‖ .
Apesar de afirmar que não irá se posicionar, ele já infere características em relação a
reinvindicação, e também infere como deveria ser o movimento, ―escrito e falado‖, como
também ser cordial, amável, gentil e gracioso; e não ser ―bomba e incêndio‖, violento,
atribuindo tais ações ao sufragismo britânico, caracterizado como aberração monstruosa,
repulsiva e degradante.
Assim, podemos perceber que os homens não eram neutros quando o assunto era a
emancipação feminina, seja com declarações mais ofensivas ou mais amenas, eles eram os
juízes desse processo. Quando não eram totalmente contrários ao feminismo, inferiam

Estado do Pará, 01/09/1911. Matéria: A educação das moças.


Estado do Pará, 11/06/1912. Coluna: Chronica theatral.
Estado do Pará, 22/06/1912. Coluna: Chronica theatral.
Estado do Pará, 01/06/1912. Matéria: Conferencia.
OSTOS, Natascha. A questão feminina: importância das mulheres para a regulação da população brasileira.
Cadernos Pagu (39), jul./dez. 2012.
Estado do Pará, 05/05/1914. Coluna: Ao inverso do costume.

72
sobre como o movimento deveria ser, agir e reivindicar; e no momento em que as mulheres
não agiam como deveriam, eram condenadas.
Nessa perspectiva negativa, várias são as atribuições às mulheres, reduzidas a
atitudes violentas e desequilibradas, consideradas feias e não-femininas. É o que Melina
32
Marson analisa, onde na busca por uma nova identidade, as feministas acabam por
serem vistas como não-mulheres, mal-amadas, que por isso se envolviam em assuntos
masculinos.
Além disso, as mulheres são acusadas de ―ocupar os espaços dos homens‖ e isso
ocasionaria o ―fim dos tempos‖. Para demonstrar tal concepção, utilizaram-se até de
poemas:
O feminismo ! É por isso
Que eu me ponho a matutar;
 Si a mulher vencer os homens
Quem dos bêbês vao cuidar  ...

Si as mulheres conseguirem
Nos vencer em toda a linha,
Só nos assiste o direito
De trabalhar... na cosinha!...
[...]
E, os homens, para o futuro,
Parece que viverão
Na mais cruel dobadoura,
Pois, como dizem, terão
Em vez do livro – as panellas,
33
E, em vez da pena, - a vassoura!...
Nesse poema, pode ser interpretado o medo masculino de ter os ―seus‖ lugares
trocados com os das mulheres. Já que os papéis sociais são fixos e justificados por uma
natureza inata, torna os versos do poema absurdo e até risível para a época.
Ademais, aqueles favoráveis às causas feministas também era satirizados, como é o
caso de Felippe Camarão, autor das colunas ―Feminismo Triumpha‖ e ―Feminismo Vencerá‖
no jornal Estado do Pará:
[...] E a mania que ele tem
De engrossar o feminismo,
Não pôde ser muito bem
Um caso de chaleirismo ?
Se fôr assim, - novo rumo
Procure em bandas fagueiras,
Pois eu de raiva me espumo
34
Contra todos os chaleiras!
Assim, podemos compreender que todas e todos favoráveis as mudanças e
reivindicações emancipacionistas eram alvos na sociedade paraense, que utilizava diversos
mecanismo para desmerecer a causa. A partir disso, é interessante refletir que tal prática de
satirizar, menosprezar e degredar as mulheres que invadem os espaços masculinizados
32
MARSON, Alison. Op. Cit. p. 6.
Estado do Pará, 29/04/1913. Seção: Pontos & Pospontos.
Estado do Pará, 08/08/1913. Seção: Pontos & Pospontos.

73
configura-se como um ato nacional e internacional, além de contínuo, visto que gravuras
europeias do século XVIII já retratavam essas mulheres como ―megeras sexualmente
35
agressivas‖ ou como ―putas‖ e ―bruxas‖ .
Entretanto, os impressos desse período não só divulgavam reações negativas e
contrárias ao feminismo, mas serviam também aqueles e aquelas que queriam a
emancipação feminina. No qual, com o avançar dos anos e as novas conquistas passam a
se tornar mais frequentes.

36
“Ser feminista, enfim, é amar a independencia, a liberdade, a luz e a sciencia”
Refletindo o cenário brasileiro, os impressos paraenses também estavam atentos em
todos os assuntos pertinentes a emancipação da mulher e aos avanços conquistados no
contexto nacional e internacional.

Em relação a inserção feminina no espaço escolar, discursos como o da Srt. 37


[...] A mulher é então chamada para collaborar, dentro dos moldes de sua
fraqueza, nessa obra restauradora de engrandecimento moral e intellectual.
Dadas as proprias condições da natureza, a alma feminina é propensa a
esse mister [...], um elemento que contribue para a sua grandeza!
E continua, citando uma frase da escritora espanhola D. Concepcion Gimeno:
Se alguns insensatos, contudo, se oppõem a que a mulher se instrua e a
declaram inepta para adquirir ilustração, outros homens, sabies e discretos,
entendem que educar um homem é formar um individuo, emquanto que
educar uma mulher é formar as futuras gerações.
Tal discurso mesmo sendo favorável a inserção das mulheres nas instituições
escolares, tanto como estudante quanto professoras, ela não deixa de reforçar certos
estereótipos em relação a mulher, e a ressignificação que o Estado e a Igreja fizeram da
instrução feminina. A imagem é de que elas seriam as principais responsáveis pela
moralização da família e da Pátria, as características ditas femininas, comentadas
anteriormente, contribuíram para aceitação social das mulheres que trabalhassem como
professoras.
Entretanto, não deixa de ser uma vitória a causa feminista, já que o estudo sempre
foi uma reivindicação, que possibilitaria o acesso ao trabalho e consequentemente sua
independência. Esse ideal espalhou-se, e mesmo em textos que não mencionam o
feminismo, propagam a mesma concepção, como podemos ver:
[...] Para se ganhar a vida, não basta ter vontade de trabalhar. É preciso
saber do seu officio. Todos nós devemos ter uma occupação util, por
mais...ricos que sejamos. A ociosidade é a mãe de todos os males da
família e das nações.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017. P.
189-190.
Estado do Pará, 31/03/1914. Coluna: O feminismo.
O Ensino, n.9-10, mar.-abr., 1919, p. 106-109.

74
Seja se homem, ou mulher, devemos procurar processos de empregarmos
o tempo sem ser em futilidades. A instrucção, com fim proveitoso, a
educação, com objectivo utilitario e tanto serve para um sexo como para o
outro.
preciso que as mulher se eduquem fora do regimen de servirem só de
38
encantamento para o homem [...]
Mesmo que de certa forma já se tenha a presença mais constante de mulheres nos
espaços educacionais, como podemos ver nas fotos divulgadas na revista A Semana, de
39 40
meninas em institutos , em curso de datilografia e em uma turma de formandos
41
normalistas , se formar ainda era um vitória e motivo de emoção, tal como é narrado:
―Mademoiselle Z, na occasião de receber o seu diploma, commoveu-se tanto, que os seus
olhos pestanudos, lacrimaram. [...] Seria porque mademoiselle tinha, alfim, em mãos, o
42
premio das suas luctas com o Saber [...]‖ .
Outra reivindicação feminista, e nesse período podemos pontuar como a principal, foi
o voto feminino. Visto como importantíssimo para a inserção política das mulheres,
acreditava-se que votar e ser votada contribuiria e ocasionaria para que outros direitos
fossem conquistados. Em relação à imprensa, mesmo que em colunas pequenas, algumas
conquistas sufragistas em outros países foram noticiadas, podendo ser interpretada como
um incentivo ao sufrágio brasileiro.
A conquista pelo voto feminino no Brasil possui uma longa trajetória, desde o século
XIX, deputados como Francisco Souza e José de Alencar, já defendiam o sufrágio universal
na imprensa, e passaram a discutir projetos de reforma eleitoral, como é o caso da Lei
Saraiva (Decreto n° 3.029/1881) que abria a possibilidade de mulheres diplomadas votaram,
entretanto, tal como a Constituição de 1891, não deixa explícito esse viés, resultando na
rejeição aos pedidos de alistamento eleitoral feminino.
Assim, passaram a confrontar-se nesse período dois argumentos: um contrário,
afirmando que o legislador não tinha a intenção de conceder o voto feminino; e outro
favorável, que argumentavam conforme a letra da lei, ou seja, de que haveria
gramaticalmente a inclusão do feminino no plural masculino: ―... são eleitores os cidadãos
43
maiores de 21 anos...‖ . Tal disputa continuou durante os anos, e as organizações
femininas passaram a aumentar e se fortalecer em prol dos seus diretos, juntamente com os
44
projetos de lei favoráveis a causa, para enfim, ser conquistado apenas em 1932 .

Folha do norte, 08/09/1911. Matéria: Para triumphar no mundo.


A Semana, n.49, v.1, 1919. Foto: Pela instrucção.
A Semana, n.51, v.1, 1919. Foto: Nos dominios da dactylographia.
A Semana, n.54, v.2, 1919. Foto: As novas professoras.
A Cigarra, n.1, v.3, 1921.
ALVES, Branca Moreira. A luta das sufragistas. IN: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.).
Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
Para compreender o processo público e político na trajetória para a conquista do voto feminino no Brasil, recomendo
o pequeno livro: MARQUES, Teresa Cristina Novaes. O voto feminino no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, 2018.

75
Enquanto isso, os impressos paraenses divulgavam matérias com o título ―O
45
Suffragio Feminino‖ , que pontua alguns países que legitimaram o voto feminino, além de
afirmar:
Quando terminar a conflagração européa, está fóra de duvida que o
feminismo de nossos dias, se tornará em absoluto uma realidade. [...] Será
o mais notavel facto da historia do mundo, pois consagrará a aptidão da
mulher para todos os actos da vida comum, reconheceno a sua absoluta
capacidade, sem resticções, declarando que, perante o direito, não ha
diferenças de sexo.
Demonstrando que algumas matérias e colunas na imprensa paraense já eram
otimistas enquanto o avanço do feminismo e a conquista do voto, outro exemplo é o jornal
do Estado do Pará, com suas colunas, já citadas anteriormente, como ―Feminismo
Triumpha‖, que teve doze números; o ―Feminismo Vencerá‖, com cinco números; como
também ―O Feminismo‖ e ―Feminismo‖; além de pequenas reportagens com o título ―As
conquistas do feminismo‖. Outras, como a revista A Semana não são tão explícitas no seu
posicionamento, mas não deixam de publicar imagens de mulheres formadas, professoras,
diretoras, fazendo matérias sobre o trabalho de atrizes e cantoras que se apresentaram em
Belém, como também reportando a dualidade na sociedade frente o avanço da conquista do
voto em outros países:
TIC-TAC
possivel que em breve tambem ás mulheres américas do norte seja
concedido o direito sagrado do voto.
Commentando essa alviçareira nova, trazida até nós pelas columnas
telegráficas dos jornais diarios, dois cavalheiros a uma esquina de rua
discutiam.
Bem que um disse: - ―nós, brasileiros, deviamos suspirar por que esse estão
de cousas não nos atringisse. Meu amigo, minha mulher alegrou-se com a
46
noticia mas minha sogra quase endoidece de satisfeita‖ .
Apesar de que tais reportagens são pontuais na revista e não entram no debate,
parecem deixar claro, de maneira geral, a quem interessa as conquistas do feminismo, às
mulheres e não aos homens. Podemos perceber tal conjuntura, na seção ―Reportagens
47
Confidenciaes‖ , da Revista O Record, onde é feito perguntas similares para um homem e

para uma mulher. Enquanto que o entrevistado se demonstra evasivo nas respostas, sem
demonstrar tanto interesse, a entrevistada aproveita a oportunidade para fazer menção a
inserção da mulher no espaço público: nas perguntas ―A minha principal qualidade ?‖ e ―O
meu principal defeito?‖, a resposta para a primeira é ―Desejar a felicidade para todos e ter
espirito pendente para a revolução‖ e para a segunda é ―Não guardar desaforo de ninguém
e pugnar sempre pelos direitos a mulher, até serem equiparados aos do homem na vida
civil‖, interessante perceber que mesmo configurando ―ser pendente para revolução‖ uma
qualidade, quando a mesma torna-se mais especifica e fala dos direitos das mulheres, a

Estado do Pará, 26/07/1916. Matéria: O suffragio feminino.


A Semana, n.62, v.2, 1919. Matéria: Tic - Tac
O Record, n.10, v.2, 1918. Seção: Reportagens Confidenciaes.

76
enquadra em um defeito, mas aparenta deixar claro que não pretende mudar. Tal panorama
pode representar o reflexo da sociedade paraense nesse contexto, que não considera
pertinente a mulher lutar por esses direitos.
Por conseguinte, cabe analisar como era conceituado o feminismo, tendo como base
principalmente o jornal Estado do Pará e as colunas de Felippe Caramarão. Ele irá
caracterizar o feminismo da seguinte forma:
O feminismo não é a rebellião dum sexo contra leis absolutas e immutaveis,
nem tão pouco um sentimento de rivalidade doentia ou de inveja absurda. É
uma reacção espontanea contra mentiras e prejuizos originarios, a
aspiração de vivier em liberdade, de viver como collaboradora e não como
48
escrava do homem.
Podemos perceber que ele não compactua com a ideia de conflitos e rebeliões,
características que são enquadradas, como já mencionamos, ao sufragismo britânico, no
qual o mesmo chega a criticar. Mas compactua com um ideal liberal, contra injustiças, a
favor da liberdade, utilizando-se até de analogia a escravidão. Em outros artigos, reafirma
essas questões, e acrescenta que é ―uma felicidade egual para os dois sexos – tal como a
49
vida nol-a podia offerecer – nem mais, nem menos‖ , onde o feminismo não só beneficiaria
as mulheres como também os homens, e estariam em plena igualdade. Os benefícios tragos
está relacionado com a ideia de ―mulher colaboradora‖, onde ela contribuiria a favor da
pátria, a partir da educação e do trabalho como fortalecedores do lar.
relevante ressaltar que as concepções de Felippe Camarão refletiram na
sociedade paraense, quando vemos na enquete ―Os inqueritos de Sonia‖, a pergunta ―Qual
a sua opinião, leitora, sobre o feminismo?‖, e uma das respostas, de autoria de Josepha L.
50
Castro , dizer: ―A minha opinião sobre o feminismo é exatamente a do collaborador d’esse
jornal sr. Felippe Camarão, que durante longos mezes defendeu com logica a causa
feminista [...]‖. Podemos supor que seus artigos no jornal contribuíram para a disseminação
do feminismo na sociedade paraense, as proporções e de que forma foram interpretadas
não podemos afirmar.
Sobre os textos escritos por mulheres, para compreendermos sua posição e
percepção em relação feminismo, são mais escassas nos impressos do que os textos
escritos por homens. A partir disso, queremos deixar claro que estamos cientes dos artigos
sem nomeação, da prática do uso de pseudônimos, entre outras variáveis, que não deixam
ter certeza sobre a autoria do texto. Entretanto, gostaríamos de mencionar aqueles escritos
que possuem em sua autoria nomes femininos.

Estado do Pará, 04/08/1913. Coluna: O feminismo triumpha IX.


Estado do Pará, 07/08/1913. Matéria: O peso do cérebro.
Estado do Pará, 27/07/1916. Seção: A vida mundana.

77
Durante esse período, em relação as colunas direcionadas à questão do feminismo
no jornal Estado do Pará, houve poucas escritoras, dentre elas Maria Olympia, que
caracteriza ser feminista da seguinte forma:
Ser feminista é pedir trabalho. Pedir que nos seja facultada a concorrência a
todos os logares e que seja o valor e não o sexo que nos admitta ou pretira.
Ser feminista é pedir para todos os mesmo deveres cívicos e moraes, as
mesmas responsabilidades. Ser feminista, enfim, é amar a independencia, a
51
liberdade, a luz e a sciencia.
Há a ênfase ao trabalho e a reafirmação da ideia de igualdade entre os sexos,
reforçada pela mesma concepção liberal própria do período, devido o momento inicial da
República. Uma questão interessante é o termo ―pedir‖, que infere a ação de solicitar a
alguém, nesse contexto, ao homem, cabendo a ele conceder ou não; conferindo a mulher o
lugar de sujeito que recebe a ação, e podendo reforçar seu espaço social atribuído, já
analisado.
Outra concepção evidenciada é a distinção entre feminismo e sufragismo,
contribuindo para a percepção de um ―feminismo leve‖:
Suffragismo não é feminismo. [...] A feminista não pretende votar, não quer
ser eleita, não deseja legislar, nem governar, nem dirigir. O que ella almeja,
o que ella quer vêr são os seus direitos de ente humano perfeito e natural
egualados aos do homem em face da Lei. [...] Ser feminista é querer a
liberdade de agir sem constrangimento, e tornar-se moral e socialmente
52
egual do homem.
Tal perspectiva foi relatada por Maria Mercedes, nos ―Inqueritos de Sonia‖,
percebemos que apesar do sufrágio ser uma das principais pautas no período, ela não é
aceita por todos e todas simpatizantes ao feminismo, como também há o ideal negativo em
torno do sufragismo, já mencionado, fazendo com que não fosse benquisto. O interessante
nesse depoimento é a desvinculação na participação política, que se configura até hoje
como um espaço majoritariamente masculino, além disso, é reforçada apenas uma
igualdade social, tal como os homens, considerados seres humanos normais, sem as
concepções de inferioridade, fragilidade, pouca inteligência, que por vezes era atribuído às
mulheres. Assim, caracterizando esse ―feminismo leve/moderado‖, que não desejava mais
do que uma liberdade social.
Em outros impressos, o feminismo é relacionado a todas as questões femininas, e
quando os homens passam a se interessar por tais assuntos eles ―tem decerto meio
53
caminho andado para o feminismo‖ . Tais depoimentos, como um todo, possibilita que os
homens façam parte do movimento e possam juntamente com as mulheres reivindicar a
emancipação feminina.

Estado do Pará, 31/03/1914. Coluna: O feminismo.


Estado do Pará, 29/07/1916. Seção: A vida mundana.
A Semana, n.56, v.2, 1919. Coluna: A moda.

78
A partir de tais representações percebemos, desde o início, que não há uma
hegemonia em torno do que seria o feminismo, caracterizado até hoje como um movimento
plural, que visa atender a diversidade dos sujeitos e suas demandas.

Considerações Finais
Frente às mudanças sociais, econômicas e políticas nos anos iniciais do século XX,
concepções sobre a condição feminina permanecem baseados pelo cientificismo. Na qual se
volta para a confirmação tanto da feminilidade quanto da masculinidade, a um cabe o
privado e ao outro o público, e ambos não podem se misturar ou ―trocar‖ devido a sua
―natureza‖.
Mesmo com tais restrições, algumas mulheres transgrediram as normas
estabelecidas: as mulheres de classe baixa, sempre se utilizaram da sua mão-de-obra para
sobreviver e nesse momento, insere-se nas fábricas e organizam-se para reivindicar
melhorias nas suas condições de trabalho; as mulheres letradas da classe dominante,
incorporando ideais euro-americanos reivindicam uma educação, trabalho e direitos
igualitários, e nelas recai a denominação de ―feministas‖. Tal denominação pressupõe um
movimento e organização, na qual difere daquele que foi a influência para o movimento no
Brasil, mas não deixa de ter sociedades e instituições femininas, como é o caso do Partido
Republicano Feminino (1910) e da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (1922),
que buscaram colocar em evidência essa luta emancipatória. A partir desse pressuposto de
mudanças e organizações no cenário referente às mulheres, uma reação contrária tornou-se
evidente, percebidas na dificuldade de se adquirir o voto feminino, depois de vários projetos
54
barrados , como também em discursos proferidos em jornais.

Esses discursos oposicionistas permanecem ao longo da história brasileira, quando


55
encontramos folhetos de cordéis contrários a emancipação feminina em 1947 , ou até
mesmo inseridos em congressos sobre o problema da previdência sócio-criminal no ano de
56
1941 , atribuindo ao feminismo o fato das mulheres trabalharem e sua saída dos lares
contribuírem ao desamparo familiar e à delinquência infantil. Tais concepções chegam até
os dias de hoje, evidenciadas principalmente nas redes sociais, e intensificadas com a crise
política brasileira nos últimos anos.
Nessa mesma conjuntura, o movimento feminista e seus ideais também avançaram,
conquistando cada vez mais espaços, direitos, e reconhecimento, como o Dia Internacional

Em 1891 foi apresentado uma emenda pelo deputado Sá Andrade; 1917, o deputado Maurício de Lacerda
apresentou um projeto de lei que mudava a legislação eleitoral; esses são algum dos exemplos. VER:
MARQUES, Teresa. Op. Cit.
JUNIOR, Mota. A emancipação da mulher. Belém: Guajarina, 1947.
Primeiro Congresso de Brasilidade: sobre o problema da previdência sócio-criminial, 1941.

79
57
das Mulheres e o Ano Internacional das Mulheres, em 1975. Passando por um processo
de reestruturação e de massificação, incorporando outras pautas como violência,
sexualidade, gênero, raça, classe e etnia, ocasionando nos diversos tipos de feminismo,
procurando agregar todas as mulheres em sua diversidade. Além de organizar
movimentações grandiosas como greves trabalhistas e passeatas tal qual ―Nem uma a
menos‖ e ―Ele Não‖.
A partir disso, pretendíamos analisar e evidenciar como as mudanças sociais
advindas do movimento feminista alteraram algumas questões nos papéis sociais em voga,
e como as representações favoráveis e contrárias ao feminismo foram propagadas pelos
jornais paraenses entre 1912 e 1922. Por fim, percebemos um medo na ocupação dos
espaços públicos pelas mulheres, como também uma ―troca de papéis‖ temido pelos
homens, além de um apoio intensivo ao feminismo, apesar de serem encontradas algumas
restrições, não deixam de demonstrar os benefícios e reivindicar a emancipação feminina.

Fontes:
Livro: AZEVEDO, Josefina Álvares de. A mulher moderna: trabalhos de propaganda.
Brasília: Senado Federal, 2018.
Jornal A Republica: 07/09/1893; 27/10/1893.
Jornal Correio Paraense: 20/07/1893.
Jornal Estado do Pará: 03/07/1911; 01/09/1911; 01/06/1912; 11/06/1912; 22/06/1912;
29/04/1913; 04/08/1913; 07/08/1913; 08/08/1913; 31/03/1914; 05/05/1914; 26/07/1916;
27/07/1916; 29/07/1916.
Jornal Folha do Norte: 08/09/1911.
Jornal O Industrial: 08/05/1902.
Revista A Cigarra: n.1, v.3, 1921.
Revista A Semana: n.49, v.01, 1919; n.51, v.1, 1919; n.52, v.2, 1919; n.54, v.2, 1919; n.56,
v.2, 1919.
Revista O Ensino: n.9-10, mar.-abr., 1919.
Revista O Record: n.10, v.2, 1918.

Referências:
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primeiras décadas do século. Revista Estudos Pedagógicos, Brasília, v.79, n.191, jan./abr.
1998.
ÁLVARES, Maria Luzia. Memórias e imagens do feminismo e das ligas partidárias no Pará:
1910 a 1937. IN: ÁLVARES, Maria Luzia; D’INCAO, Maria Angela (orgs.). A mulher existe?
Uma contribuição ao estudo da mulher e gênero na Amazônia. GEPEM/GOELDI: Belém-PA,
1995.
ÁLVARES, Maria Luzia. Orminda e Eneida: duas versões do feminismo paraense. IN:
ÁLVARES, Maria Luzia; SANTOS, Eunice dos (orgs.). Desafios de identidade: espaço-
tempo de mulher. Belém: CEJUP; GEPEM; REDOR, 1997.
ALVES, Branca Moreira. A luta das sufragistas. IN: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.).
Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo,
2019.

57
Instituído no dia 8 de março, originalmente em 1914, sugerido pelas alemãs, e celebrada pela
primeira vez na Alemanha, Suécia e Rússia. VER: GONZÁLEZ, Ana Isabel Álvarez. As origens e a
comemoração do Dia Internacional das Mulheres. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

80
BANDEIRA, Ana Paulo. Jornalismo feminino e jornalismo feminista: aproximações e
distanciamentos. XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Rio de
Janeiro, nov.2015
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017. P. 189-190.
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p.13.
________. Breve histórico do Movimento Feminista no Brasil. Disponível: <
http://flacso.org.ar/wp-content/uploads/2015/08/Capitulo-brasil-historia-do-
feminismo.pdf>. MARQUES, Teresa Cristina Novaes. O voto feminino no Brasil.
Brasília: Câmara dos Deputados, 2018.
MARSON, Melina. Da feminista ―macha‖ aos homens sensíveis: o feminismo no Brasil e as
(des)construções das identidades sexuais. Cadernos AEL, n.3/4, 1995/1996.
NASCIMENTO, Kelly. Entre a mulher ideal e a mulher moderna: representações
femininas na imprensa mineira 1873-1932. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
OSTOS, Natascha. A questão feminina: importância das mulheres para a regulação da
população brasileira. Cadernos Pagu (39), jul./dez. 2012.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. São
Paulo: Paz e Terra, 2014. P. 88
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidades. São Paulo:
Expressão Popular, 2013, p. 357.
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem
urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

81
ABIGAIL: PROTAGONISMO FEMININO EM CONTEXTO PATRIARCAL, A
PARTIR DE UMA PERSONAGEM BÍBLICA
https://doi.org/10.29327/527231.5-6
Maria Cristina Maneschy
Universidade Federal do Pará
PPGSA/GEPEM

RESUMO

Reflexão sociológica sobre protagonismo de mulheres em contexto patriarcal, pela análise


da personagem bíblica Abigail, retratada no livro de Samuel (1Sm 25, 1-43). Nos limites do
papel ―esposa‖, ela impediu um massacre, episódio crucial na trajetória de Davi, rei de
Israel. A abordagem inspira-se em teólogos sobre cristianismo e a posição das mulheres e
em teóricas feministas sobre gênero e poder. Detectou-se que duas leituras sociológicas são
possíveis. 1) A narrativa enfatiza o padrão tradicional, com mulheres e homens nos papéis
convencionais, havendo espaços de reação. 2) Mulheres desconstruíam na prática a ordem
de gênero. Abigail, sem exércitos e cargos, reverteu decisão de conflito com argumentos de
paz e perdão. Conclui-se que ela questionou as relações de gênero para além de seu
tempo, mas persiste silêncio histórico do poder que teve sobre homens e armas.

Palavras-chave: gênero; poder; mulher; patriarcado; Abigail.

Abigail: female protagonism in a patriarchal context, from a biblical character

ABSTRACT

Sociological reflection on the protagonism of women in a patriarchal context. It focus a


biblical character Abigail, portrayed in the book of Samuel (1Sm 25, 1-43). Within the bounds
of the ―wife‖ role, she prevented a massacre, a crucial episode in the trajectory of David, king
of Israel. The approach draws on theologians on christianity and the position of women, and
on feminist theorists on gender and power. Two sociological readings are possible. 1) The
narrative emphasizes the traditional gender pattern, with women and men in conventional
roles; nevertheless, there is scope for reaction. 2) Women in practice deconstructed the
gender order. Abigail, without armies and positions, reversed a conflict decision with
arguments of peace and forgiveness. It follows that she has questioned gender relations
beyond her time, but a historical silence about her power over men and weapons remains.

Keywords: gender; power; woman; patriarchy; Abigail

82
Abigail: protagonismo feminino em contexto patriarcal, a partir de uma
personagem bíblica

Introdução

Propõe-se aqui uma reflexão sociológica sobre o protagonismo de mulheres em


sociedades de forte desigualdade de gênero e presença de um sistema patriarcal, que
legitima a dominância dos homens sobre as mulheres em diferentes instituições sociais. O
foco central deste artigo é a personagem bíblica Abigail, retratada em um episódio que
1
compõe o livro de Samuel (1Sm 25, 1-43), no Antigo Testamento . Abigail viria a ser uma
das esposas de Davi, monarca do Reino Unificado de Judá e Israel. O período de seu
reinado situa-se entre os anos 1003-970 a.C., conforme os relatos bíblicos e, também, com
2
apoio em dados arqueológicos. Davi é uma das grandes figuras do Antigo Testamento,
aquele que quando jovem derrotou o gigante Golias com uma pequena pedra e, ainda, a
quem se atribui a autoria de grande parte dos Salmos.

Considera-se aqui a passagem do livro na qual Davi e Abigail se conhecem, com o


objetivo de desenvolver uma reflexão sociológica sobre relações de gênero naquele
contexto. Toma-se o texto bíblico como texto clássico, fazendo uma analogia com o sentido
3
que o sociólogo Robert Nisbet (2000) atribui ao termo ao se referir aos clássicos da

Sociologia, comparando-os com obras de arte. Ou seja, trata-se de um texto antigo cuja
importância para o conhecimento da vida social vai além de uma contribuição para a história
das ciências que se voltam para o humano. Textos clássicos, na acepção de Robert Nisbet,
merecem a leitura, pois são sempre suscetíveis de gerar conhecimentos válidos sobre a
sociedade da época e, por extensão, são capazes de inspirar a produção de conhecimentos
sobre sociedades de outros tempos e lugares, estimulando ainda a criatividade. É nesse
sentido que, em caráter inicial, lanço-me a esta reflexão construída sobre a pequena
passagem que apresenta a personagem Abigail e o episódio no qual ela exerceu um poder
ativo que deixou marcas na vida de Davi. A longa história de Davi está narrada nos livros 1 e
2 de Samuel. Considero que o episódio com Abigail lança luzes críticas sobre o tema do
poder inscrito nas relações de gênero e sobre o protagonismo de mulheres em ambientes de
forte desigualdade nessas relações.

Este texto começa com a interpretação dada por alguns teólogos e teólogas sobre o
entendimento cristão a respeito da posição social das mulheres. Essas abordagens

Todas as referências bíblicas neste texto foram extraídas da “Nova Bíblia Pastoral”, Ed. Paulus, 2014.
2 Verbete “David”, em Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/David. Consulta em 08 de
novembro de 2019.
A Sociologia como uma forma de arte. Originalmente publicado em 1962.

83
teológicas descortinam possibilidades de interpretação que interessam também no plano
sociológico. Em seguida, apresenta os conceitos sociológicos básicos empregados na
análise: gênero e patriarcado. Descreve-se, então, o episódio em foco. Enfim, indicam-se
duas leituras sociológicas possíveis sobre o protagonismo da personagem.

Abordagem teórico-metodológica

Uma primeira observação faz-se necessária. Os textos bíblicos são, em primeiro lugar,
material de fé e não testemunhos histórico-documentais comprovados por dados objetivos
conforme os padrões da ciência da História. Muitos textos são reuniões de tradições orais,
inclusive de culturas diferentes, e escritos em épocas posteriores. Há, como se sabe, toda
uma ciência que faz a exegese dos textos bíblicos. Os textos bíblicos são alvo de estudos
que os situam no quadro dos processos que diferentes povos do Oriente Médio viviam, em
primeiro lugar os judeus. São processos políticos e econômicos, migrações, exílios, contatos
e trocas interculturais, aculturações, expansionismos e subjugações de povos etc. São
processos que marcaram as histórias concretas das quais emergiram os textos que
compõem a Bíblia. Muitos textos foram escritos por escribas, para rememorar tradições e
manter viva a identidade cultural judaica.

Frisando os limites de meu conhecimento na matéria, esclareço que para a análise aqui
proposta, é bastante lembrar que os textos bíblicos são também expressões culturais das
sociedades em que foram produzidos. E, sobretudo, eles são fontes de valores e visões de
mundo que fazem parte do legado cultural judaico-cristão que embasou a formação da
cultura ocidental, em suas compreensões de natureza versus cultura, concepções de
humanidade, de direitos, as formas de conceber trabalho e futuro etc. É, portanto, nesse
sentido de expressão de valores e padrões culturais, que uma leitura sociológica como a
aqui proposta encontra justificativa.

A abordagem sobre o episódio de Abigail considera os personagens no quadro das


relações sociais de gêneros vigentes então, isto é, relações moldadas pelas construções
sociais acerca de masculino e feminino e dos papéis que correspondiam a homens e
mulheres em sua sociedade. Parte-se da conceituação de Joan Scott sobre gênero:

... o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder.


Seria melhor dizer que o gênero é um campo primeiro no seio do
qual ou por meio do qual o poder é articulado. O gênero não é o
único campo, mas parece ter constituído um meio persistente e
recorrente de tornar eficaz a significação do poder, no Ocidente, nas
4
tradições judaico-cristãs e islâmicas. (SCOTT, 2019, p. 69)

O artigo de Scott foi originalmente publicado em 1986.

84
O gênero, portanto, é um campo muito importante na estruturação do poder, em
especial do poder político. Scott reforça sua argumentação recorrendo à análise do
sociólogo Pierre Bourdieu, que destaca a força peculiar de todo poder que assenta sobre
percepções culturais de diferenças biológicas entre categorias de pessoas. Com efeito,
gênero tem a ver com papéis e identidades conferidos pela cultura aos sexos masculino e
feminino, com base em atributos biológicos. Assim, gênero refere-se também à existência de
fronteiras no interior do corpo social. Fronteiras legitimadas por elementos da natureza são
muito resistentes. Elas vão se manifestar em diferentes esferas da sociedade, nos campos
da produção e da reprodução social, nas atividades realizadas no plano público, no plano da
política, assim como no plano mais privado da domesticidade e do parentesco. Em cada
uma dessas esferas, também operam outros eixos de classificação social, como as classes,
as etnias e as raças. As formas históricas de construção das fronteiras são variadas. Elas
não são apenas separações, pois comportam desigualdades sociais.

A leitura feminista sobre as relações de gêneros, por sua vez, vai focar na crítica das
discriminações e opressões de gênero. A filósofa Silvia Federici (2019) assim argumenta,
agregando ainda a ideia de que a leitura feminista busca um melhor entendimento sobre o
trabalho reprodutivo – os cuidados com as pessoas, suas comunidades e o ambiente do
qual dependem – que é atribuído precipuamente às mulheres. Federici cita Peter Linebaugh,
para quem o trabalho reprodutivo ―é a pedra sobre a qual a sociedade é construída e pela
qual todo modelo de organização deve ser testado‖ (FEDERICI, 2019, p. 381). Na linha de
pesquisadoras feministas como Nancy Fraser (2016), Federici está propondo a análise
crítica das fronteiras de gênero e de suas desigualdades. E, também, propondo uma
inversão da ordem hierárquica com que as essas fronteiras são justificadas ideologicamente,
isto é, a primazia da produção sobre a reprodução social e dos assuntos das esferas
públicas sobre as domésticas. Os estudos elucidam a artificialidade de todas as separações
socialmente construídas e como, ao mesmo tempo, estão ancoradas.

O conceito de patriarcado considera que os elementos de separação entre masculino e


feminino enraízam-se nas principais instituições de uma sociedade, reforçando a posição
social subalterna das mulheres. Segundo Walby (1990), referida por Giddens (2012, p. 444),
o patriarcado é ―um sistema de estruturas e práticas sociais no qual os homens dominam,
oprimem e exploram as mulheres‖. Walby identifica que essas estruturas são
independentes, mas interagem para reproduzir o sistema como um todo (Citada por
Giddens, 2012, p. 444). Dentre as estruturas estão as relações de produção no lar, o Estado
patriarcal, a violência masculina e as instituições culturais patriarcais, tais como a religião e
a educação.

85
As fronteiras de gênero, a despeito de sua fixidez, são desafiadas pelas mudanças
históricas. Gênero e poder se constroem reciprocamente, diz Scott (2019, p. 74). E essa
construção é dinâmica. As próprias categorias ―homem‖ e ―mulher‖ conhecem variações.
Isso significa que são ―categorias transbordantes‖, pois apesar de parecerem fixadas, ―elas
contêm ainda em si definições alternativas negadas ou reprimidas‖ (SCOTT 2019, p. 75).

Portanto, a história política das sociedades se dá também em termos de gênero, uma


vez que os espaços de exercício da política são espaços sexuados. Na sociedade de
Abigail, são espaços masculinos por excelência. É preciso ter em mente que esse campo é
palco de contestações, como demonstram Scott (2019), Fraser (2016) e Federeci (2019),
entre outras. As categorias homem e mulher contêm em si, como diz Scott, definições
alternativas. Portanto, mesmo onde há forte restrição à mobilidade e à voz das mulheres nos
espaços coletivos e nas esferas públicas da coletividade, há reações ao afastamento das
mulheres do exercício do poder formal, à violência masculina etc. Nessa perspectiva é que
se desenvolve aqui a análise do episódio envolvendo Abigail.

Dentre as perguntas de pesquisa histórica sobre gênero que Scott levanta, algumas têm
especial interesse para os objetivos deste artigo.

Por que (e desde quando) as mulheres são invisíveis como sujeitos


históricos, quando sabemos que elas participaram dos grandes e
pequenos eventos da história humana? (...) Já houve conceitos de
gênero realmente igualitários sobre os quais foram projetados ou
mesmo baseados sistemas políticos? (SCOTT, 2019, p. 75).

Em suma, a análise aqui empreendida toma os personagens em suas posições e


relações de gêneros. Leva em consideração a força do gênero na estruturação das relações
sociais, pois se trata de uma sociedade patriarcal. Ao mesmo tempo, indaga-se em que
medida a narrativa expressa a existência de visões alternativas sobre a categoria mulher,
ainda que fossem visões reprimidas. E, portanto, indaga-se se a narrativa aponta para um
conceito de gênero igualitário e capaz de influenciar no sistema político, na linha da
pergunta de Scott (2019).

Tanto o episódio em si, como é narrado no Livro de Samuel, quanto o fato de os autores
do texto – escribas de Jerusalém – o terem incluído no livro são interpretados como
indicadores dessas duas possibilidades que o referencial teórico sobre gênero indica. A
primeira é de que naquela sociedade havia visões alternativas às da tradição sobre a
categoria mulher. A segunda remete ao ideal de um conceito mais igualitário de gênero que
também estava presente. Um ideal igualitário de gênero contempla as capacidades sociais

86
de homens e mulheres nos diferentes campos e vislumbra mais intercâmbios de
conhecimentos, práticas, valores, conexões etc.

2. Elementos da perspectiva cristã sobre as mulheres e seu lugar social

A ideia de desenvolver esta reflexão partiu de uma pregação que ouvi em outubro de
2019. O autor é um pastor e teólogo batista, brasileiro. A pregação data de junho de 2015 e
5
se intitula ―Celebrar por ser Mulher – Superbonita‖. Tece considerações acerca de um
conjunto de mulheres retratadas em diferentes passagens da Bíblia, dentre as quais está
Abigail. A fala do pastor objetivava prestar homenagem à ―sabedoria das mulheres‖ e, de
modo particular, ressaltar que elas ―engrandecem a mensagem do Evangelho‖ (Kivitz, 2015).
Ou seja, as mulheres não estariam lá apenas como partícipes, mas através de suas
experiências de vida como mulheres, de seus dizeres e espiritualidade, elas imprimiram uma
marca muito importante no desenvolvimento da fé, argumenta o autor.

A explanação de Kivitz (2015) despertou-me para esta reflexão sobre relações de gênero
e protagonismo feminino a partir de Abigail, personagem notável, menos conhecida fora do
meio religioso do que outras figuras femininas de destaque na Bíblia. Evidentemente, em
primeiro lugar a mulher mais conhecida é Maria, mãe de Jesus. Mas há, também, Maria
Madalena, uma das mais fiéis seguidoras de Jesus, dentre outras. Como dito acima, o
episódio que Abigail protagonizou é descrito em poucas páginas. Contudo, considero que Ed
René Kivitz (2015), ao falar de Abigail, destacou o poder momentâneo, mas eficaz, que ela
exerceu sobre homens prontos para o que seria um conflito sangrento, evitando tal
desfecho. Que poder foi esse? Como ele foi possível no quadro cultural do judaísmo antigo,
que limitava tanto a mobilidade quanto a voz das mulheres, independente da classe social?
Eram sociedades marcadas pelo patriarcado, no sentido de legitimarem a submissão
feminina em diferentes esferas da vida coletiva.

Há uma literatura importante que explora, do ponto de vista teológico, como o


cristianismo renovou o conceito de mulher, ao renovar o próprio conceito de humano. A
visão sobre a mulher teve um significado peculiar na grande transformação que o Evangelho
pretendia representar. Dentre os teólogos que destacaram o tema da nova visão da mulher,
tem-se Timothy Keller (2013), pastor e teólogo presbiteriano americano, que frequentemente
em suas falas lembra como no judaísmo tradicional o testemunho de uma mulher pouco
valia em um tribunal, de maneira justamente a sublinhar a novidade da perspectiva
evangélica naquele mundo patriarcal. Em um sentido que avalio similar, o teólogo russo e

5 Kivitz, Ed René (2015). Celebrar por ser Mulher – Superbonita. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=aMOM62HYoZU. Publicada em 22 de junho de 2015. Consulta em 10 de
outubro de 2019.

87
sacerdote cristão ortodoxo, Alexandr Mien, assim se expressou, tendo por base o
contexto judaico, romano e grego dos tempos bíblicos:

No mundo pré-cristão, as mulheres quase sempre não passavam de


servas mudas, cuja vida só conhecia o trabalho extenuante e as
obrigações de casa. Não é à-toa que uma oração judaica dizia:
„Agradeço-te, ó Deus, por não me teres feito mulher‟... (MIEN, 2002,
p. 105).

Por outro lado, Timothy Keller ressalta em suas análises sobre o Antigo Testamento, que
o Deus do judaísmo, em suas intervenções, muitas vezes havia revirado o sentido das
instituições humanas. Interpretando o sentido das Escrituras, Timothy Keller argumenta que
suas páginas contêm muitas críticas às instituições humanas, apontando suas limitações a
partir de dentro, isto é, dos próprios princípios culturais que as legitimavam. Segundo
Timothy Keller, instituições como a escravidão, o casamento, a religião e as práticas
políticas foram frequentemente abordadas em sua relação com o transcendente. Dessa
maneira, evidenciaram-se injustiças que elas continham, ainda que não se rompessem as
instituições na prática. É assim que, em sociedades fortemente hierarquizadas, muitos
textos bíblicos destacaram deveres de justiça social. E, em muitas passagens, apontou-se
para o caráter transitório dos poderes humanos, com suas iniquidades (KELLER, 2013)

Pode-se tomar como exemplo o próprio livro de Samuel (1Sm), que inicia com uma
breve passagem da vida de Ana, mulher que influenciaria indiretamente a história de Davi,
pois ela seria mãe do profeta Samuel, aquele que por orientação do próprio Deus
identificaria o jovem Davi e o escolheria para reinar sobre Israel. Ana era uma das duas
esposas de um homem chamado Elcana. Ela era estéril e, portanto, duplamente frustrada,
vivendo uma culpabilidade pessoal e social por não preencher o papel esperado de mãe. O
marido, no entanto, ―a amava‖ (1Sm, 1-8) a ponto de despertar ressentimento da outra
esposa, mãe de vários filhos, que é descrita como provocando e humilhando Ana. Em uma
das visitas anuais da família ao Templo, Ana fez a promessa de que se tivesse um filho, o
consagraria a Deus. Ela finalmente engravidou e, por ocasião da entrega da criança ao
guardião do Templo para que fosse criado para o serviço de Deus, o texto narra a oração
em forma de cântico que Ana fez para agradecer. Além de alegria e louvor, suas palavras
precisamente exaltam o poder divino revertendo os poderes e as hierarquias terrenas,
situando-as em plano secundário diante dos desígnios divinos. Eis algumas frases
elucidativas, ditas por uma mulher, que há pouco ―vivia amargurada‖:

(...)
Javé faz o pobre e faz o rico,
Ele pode humilhar e também exaltar.
Levanta da poeira o fraco,

Tira do lixo o indigente


E faz que se assentem com os príncipes,
88
dando-lhes em herança um trono glorioso.
(...)
Pois não é pela força que o homem triunfa.
(1Sm 2, 1-10)

Justamente a parte supostamente mais frágil daquela família, Ana, entoaria esse cântico
que ficou registrado no texto bíblico e que fala bem mais do que dela própria. A notar a
crítica do poder que se alcança pelo emprego de força. Seu filho Samuel veio a ser um
poderoso líder religioso, junto a quem Davi iniciou sua longa carreira. Em suma, essa
narrativa bíblica, seguindo-se o argumento de Timothy Keller, desvela no interior daquele
universo cultural elementos de crítica às instituições e aos costumes; na linguagem religiosa,
o cântico de Ana expressa clamores por justiça existentes.

Essa argumentação merece atenção, uma vez que os textos da tradição bíblica também
expressam a cultura patriarcal, apresentam as mulheres e os homens em seus lugares
tradicionais e atribuem virtudes a essas divisões, em desfavor das mulheres. É o que bem
destaca a teóloga feminista brasileira Ivone Gebara, que se engaja em um ―trabalho de
desconstrução da teologia patriarcal‖. Essa teologia, segundo ela, é marcada por uma
simbologia masculina:

Sabemos também o quanto o mundo simbólico do cristianismo, e


particularmente da teologia escrita, é dominado pela simbologia
masculina. Deste ponto de vista, a teologia, em todos os seus
aspectos, também se torna um lugar privilegiado de ação em vista de
uma revolução do simbólico. É exatamente esta a razão pela qual as
teólogas feministas se engajam num trabalho de desconstrução da
teologia patriarcal e de construção de uma teologia mais inclusiva.
(GEBARA, 2000, p. 112)

Nesse mesmo sentido, a teóloga feminista romena Elisabeth Schüssler Fiorenza


refere-se à emergência, há pouco mais de três décadas, dos ―estudos bíblicos feministas‖
como uma nova área de pesquisa. A autora indica que apesar das grandes diferenças entre
eles, a maioria dos estudos concorda que a Bíblia é escrita em linguagem androcêntrica e
que ela se origina de sociedades, culturas e religiões patriarcais. Porém, ela também
destaca que, graças ao processo interpretativo feminista, abre-se outro potencial: ―a bíblia
pode funcionar como uma visão espiritual e como recurso em lutas por emancipação e
libertação‖ (FIORENZA, 2009, p. 24). Evidentemente, ela reconhece que tal sucesso não
pode obscurecer o ―reverso negativo dessa façanha‖ (FIORENZA, 2009, p. 24).

89
3. A ação de Abigail

Durante sua juventude, Davi comandou muitas expedições militares, envolveu-se em


batalhas por território, sobretudo entre israelitas e filisteus. Várias dessas expedições estão
6
traçadas em Sm1. Em um de seus deslocamentos, Davi acampou com a tropa de cerca de
600 homens em um deserto próximo à localidade de Carmel. Aí morava Nabal, rico criador
de ovelhas e cabras, homem apresentado como ―muito poderoso‖ e, também, ―rude e mau
em obras‖. Abigail era a esposa de Nabal. Ela é apresentada como ―sensata e muito bonita‖.

Precisando de víveres, Davi enviou mensageiros até Nabal, que se encontrava nas
redondezas por ser época de tosquia das ovelhas. Foram pedir-lhe mantimentos, lembrando
na mensagem que pastores que trabalhavam para Nabal haviam estado próximo das tropas,
tendo sido bem tratados e recebido proteção. No entanto, o pedido foi negado com
veemência por Nabal, com a justificativa de que ele desconhecia quem era Davi e
suspeitava que pudessem ser aproveitadores: ―Será que vou pegar meu pão, minha água e
as ovelhas que abati para meus tosquiadores, e entregar a homens que nem sei de onde
vêm?‖ (1Sm 25, 10-11). Os mensageiros retornaram e relataram o ocorrido a Davi, cuja
reação foi convocar 400 de seus homens para ir até a propriedade de Nabal e lá matar todos
os homens que encontrassem.

Contudo, um dos rapazes que presenciaram o encontro avisou Abigail do que ocorrera.
O texto descreve, então, a pronta e meticulosa reação de Abigail, tomada sem que o marido
soubesse.

... Abigail pegou duzentos pães, dois odres de vinho, cinco ovelhas
preparadas, cinco medidas de trigo tostado, cem cachos de uvas
passas, mais duzentos doces de figo, e carregou tudo sobre os
jumentos. Depois disse a seus rapazes: „Vão na frente, que eu irei
em seguida‟. (1Sm 25, 18-19).

Durante a viagem, ela encontrou justamente com Davi e seus homens em marcha
rumo a sua casa. O texto narra a atitude e os argumentos dela para dissuadi-lo, que podem
ser interpretados como uma diplomacia de paz.

Prostrada aos pés de Davi, ela disse: Meu senhor, a culpa é minha.
Deixe que sua serva lhe fale (...) Agora, meu senhor, pela vida de
Javé e pela sua: é Javé que o impediu de derramar sangue e de

Na introdução aos livros de Samuel, na edição da Bíblia aqui utilizada, consta a seguinte informação quanto
ao contexto histórico dos livros. Tratava-se de um período em que os reis de Jerusalém buscavam ampliar seu
território e domínio na região. É, também, o período em que nasce de fato um Estado em Jerusalém e em que
se faz necessário respaldar as conquistas e dar uma identidade a esse Estado. Nesse movimento insere-se a
iniciativa dos escribas de Jerusalém de reunir tradições da região, orais e escritas. Os livros de Samuel são
frutos dessa iniciativa (p. 302).

fazer justiça por suas próprias mãos. (...) Esta benção que sua serva
lhe trouxe seja dada aos rapazes que o acompanham. Eu lhe peço:
perdoe a falta de sua serva, que Javé não deixará de lhe dar uma
90
casa estável. Porque meu senhor combate as guerras de Javé e
nada de mal lhe acontecerá em toda a sua vida. (...) Quando Javé
cumprir tudo o que prometeu a meu senhor, o bem sobre você, ele o
constituirá chefe sobre Israel. Então meu senhor não há de ficar
perturbado nem com remorsos por ter derramado sangue sem
motivo, ou por ter feito justiça com as próprias mãos. Quando Javé
tiver feito o bem a meu senhor, você se lembrará de sua serva. (1Sm
25, 24-31)

O resultado imediato foi a anuência à demanda de Abigail. Nas palavras de Davi:

„Bendita seja a sua sabedoria! Bendita seja você que me impediu de


derramar sangue, fazendo justiça com minhas próprias mãos!‟ (...)
„Volte em paz para casa. Veja, eu ouvi sua voz e atendi ao que você
pediu‟. (1Sm 25, 33-35)

Assim interveio Abigail, mudando o curso de um episódio sangrento e interferindo


positivamente na trajetória do futuro rei. Abigail misturou humildade (―sua serva‖), atribuição
a si própria da culpa, pedido de perdão, dádiva e, sobretudo, apelo à racionalidade de Davi,
alertando para que zelasse por sua biografia, sem derramar sangue inútil, ele que estava
destinado a ser rei de Israel em concordância com o plano divino.

Eis, pois, o exercício efetivo do poder por uma mulher sobre um conjunto de homens
armados para o conflito, sobre o comandante, bem como sobre seu marido, que ignorava a
própria vulnerabilidade diante do ataque que se avizinhava. Abigail lançou mão de
argumentos e posturas de paz e concórdia, que interpreto como uma diplomacia da paz.
Uma leitura teológica permite discernir na atitude de Abigail a característica concepção cristã
de poder como serviço, como diálogo e reconhecimento do outro e não como domínio
sujeição.

Sobre protagonismo feminino em contexto patriarcal: leituras sociológicas

Abigail tornou-se uma das esposas de Davi após a morte de Nabal. E ela deixa, então, a
cena principal do livro. Duas leituras sociológicas são possíveis a partir do episódio. Na
primeira leitura, considera-se que a narrativa enfatiza o padrão tradicional de relações
sociais de gênero, com mulheres e homens atuando dentro dos papéis convencionais.
Registra, no entanto, a iniciativa de uma mulher fazendo-se ouvir pelo poderoso interlocutor.
Na segunda, pode-se interpretar uma mulher desconstruindo, na prática, a ordem
hierárquica de gênero, mesmo que de modo temporário. O registro de sua história no texto
bíblico já é um sinal de uma desconstrução possível. Sugere a possibilidade de outro
modelo de relações sociais de gênero, com novos entrecruzamentos das fronteiras do
feminino e do masculino e favorecendo novos intercâmbios de saberes, habilidades e
maneiras de agir.

De fato, olhar a sociedade sob o prisma das relações sociais de gênero significa tratar de
fronteiras socialmente construídas, como se discutiu acima (Fraser, 2016). O encontro entre
Abigail e Davi deu-se nos marcos dessas fronteiras. Mas, Abigail avançou além do papel
91
feminino de então. Em um momento de conflito, ela agiu sozinha perante um exército para
defender a casa e a família, lançando mão de uma inteligência política que se mostrou
superior à prática que seria adotada por Davi, que era a resposta bélica a um gesto
ofensivo. Sem armas ou posição pública reconhecida, reverteu uma decisão de combate
com argumentos de paz e perdão. É lícito concluir, portanto, que ela questionou a estreiteza
das relações de gênero para além de seu tempo, desconstruindo-a em certo sentido.

Seguindo o entendimento de Scott (2019) sobre a dinâmica das relações de gêneros,


a narrativa aponta um transbordamento do sentido tradicional dado às categorias de mulher
e homem e seus papéis e poderes. A narrativa aponta, indiretamente, para a possibilidade
de superação dos estreitos limites das fronteiras de gênero. Mostra a diplomacia de Abigail e
seu contra poder, exercido sob a forma do reconhecimento de seu interlocutor e do colocar-
se à disposição para servi-lo em suas necessidades. Não estaria esse texto abrindo
caminho para a construção de conceitos de gênero mais igualitários, conforme uma das
indagações de pesquisa de Scott (2019)? Junto com os conceitos, aponta para novas
práticas também. Abigail tratou a ofensa sob um ângulo mais abrangente que o
convencional. Além disso, o próprio fato de os autores do texto registrarem o episódio
aparentemente diminuto no livro de Samuel é também, sociologicamente falando, uma
expressão da dinâmica concreta em que gênero e poder se constroem. Não é processo
linear de dominação e sujeição. O espaço atribuído ao feminino encontra algum espaço em
uma teologia masculina, como disse Gebara (2000).

Abigail iluminou essas possibilidades. Ela mostrou a validade da voz da mulher e de sua
abordagem do problema. Abigail induziu um chefe a aquiescer a outra forma de resposta:
entendimento no lugar da lógica das armas. Desse modo, ela atuou segundo um protocolo
coerente com anseios de justiça mais ampla. Em suma, no encontro entre Davi e Abigail
mantiveram-se os campos separados de gênero. Mas, nas palavras de Pierre Bourdieu,
referidas por Joan Scott (2019), o caráter de ―ilusão coletiva‖ dessas divisões ficou
momentaneamente claro. E, portanto, abria-se o caminho para sua desconstrução.

Antes de concluir, vale fazer referência a outra breve passagem do Antigo Testamento
que tem interesse para uma análise crítica das relações de gênero em contexto patriarcal.
Trata-se do livro Provérbios, cuja conclusão apresenta o que seria um tipo ideal feminino. O
texto enaltece a figura da mulher ―de valor‖, isto é, virtuosa (Pr 31, 10-31). Os atributos que
caracterizam sua virtude inscrevem-se todos na posição social da esposa, mãe e cuidadora
da família. Todavia, o texto dá à personagem tamanha força pessoal – e social – que
também possibilita uma leitura crítica das relações de gênero naquele contexto. Com efeito,
as virtudes da mulher de valor estão como que a transbordar os limites da posição e,
portanto, das hierarquias sociais ligadas ao gênero.

92
Em primeiro lugar, fala-se uma mulher à frente dos negócios da família, não apenas
gerenciando as atividades de produção, inclusive a mão de obra, como também
comercializando os produtos e sendo ela mesma artesã. Ela é, ademais, previdente e
generosa.

Ela procura a lã e o linho, e suas mãos realizam o trabalho com


dedicação. Ela é como navios mercantes, que de longe lhe trazem o
alimento. É noite ainda quando ela se levanta, para preparar o
alimento de sua família e para dar ordens às criadas. Ela examina
um terreno e o compra (...) Ela sabe que seus negócios vão bem, e
mesmo de noite sua lâmpada não se apaga. (Pr 31, 13-20)

Ela fabrica tecidos para vender, e fornece cinturões para os


comerciantes. (Pr 31, 24)

A notar a bela metáfora que compara a mulher a ―navios mercantes‖, a sublinhar sua
capacidade de multiplicar recursos que beneficiam, em última instância, a toda a cidade. É o
que sugere esse trecho: ―Dêem a ela o fruto de seu trabalho, e que suas obras a louvem nos
portões da cidade‖. (Pr 31, 31) Ela também pratica a caridade, virtude central naquela
cultura, pois ela ―abre a mão para o pobre e estende o braço para o indigente‖ (Pr 31, 20).

Cabe ao marido exercer função pública no conselho de anciãos. Mas, o texto


sublinha ser ela a fonte do prestígio de que dispõe o cônjuge na função: ―Seu marido é
respeitado nas reuniões, quando se assenta com os anciãos da cidade‖ (Pr 31, 23).

Assim como na história de Abigail, a descrição elogiosa da mulher de valor está quase
que a denunciar a estreiteza da ordem social de gênero que divide e hierarquiza, pois a
sabedoria se constrói em todo o tecido da sociedade. A mulher ideal tem uma posição na
cidade, um papel na educação. O homem ocupa a função política, mas é reconhecidamente
apoiado pela força da mulher que cuida não só das tarefas domésticas no sentido
contemporâneo, mas das tarefas da produção e da reprodução nas quais, de fato, ela é
descrita como grande protagonista. A sabedoria ultrapassa as fronteiras entre espaço
público e privado, está no masculino e no feminino.

93
5. Conclusões

O que significam esses registros, o que dizem aquelas ações e pensamentos de


mulheres milênios atrás, sobre dominação e resistência? E, sobretudo, o que ainda dizem
elas sobre a construção de mundos novos? Por novo, pode-se concordar com a proposta da
filósofa Nancy Fraser (1997): sociedades em que a equidade de gênero seja um
componente essencial da justiça.

O olhar sociológico aqui proposto enfoca o contexto institucional da época de Abigail, em


que operavam barreiras especificas sobre as mulheres. A ação de Abigail pode ser lida
conforme lentes tradicionais de relações de gênero enfatizando, todavia, seu notável
protagonismo dentro dos papéis socialmente definidos de mulheres casadas, conforme sua
posição social. Ela desafiou barreiras de gênero, sem que necessariamente os papéis
sociais fossem revolucionados. E teve influência decisiva no desfecho sereno da situação.

A narrativa de Abigail pode ser lida como desconstrução do gênero? Sim. Ela trouxe
para a negociação habilidades sociais que se mostraram adequadas na produção de uma
saída pacífica para o conflito. Sua racionalidade falou mais alto e evitou mortes injustas e o
peso que isso teria na carreira de um rei que havia sido escolhido por orientação divina.
Suspendendo as fronteiras da convenção, Abigail aplicou uma inteligência política moldada
por valores de paz e serviço ao outro.

Abigail evidenciou no mundo antigo os limites da exclusão feminina dos espaços da


política. A exclusão empobrece mais do que enriquece a condução dos assuntos públicos e,
por conseguinte, a promoção da qualidade da vida para todos. Na linguagem de hoje, a
exclusão das mulheres opõe-se ao desenvolvimento das sociedades, dos países. Essa lição
da narrativa aponta na direção da desconstrução do gênero, naquilo que ele tem de
sujeição, de separação e de silêncio. Lição válida e mais do que necessária no presente!

94
Referências Bibliográficas

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de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro, Bazar do
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Sociologia. Porto Alegre, Penso, 2012. 6. ed.

95
MULHER E ESCRAVA: UMA ANÁLISE DO TRABALHO DE GANHO EM BELÉM
DO GRÃO-PARÁ DE 1840 A 1860

https://doi.org/10.29327/527231.5-7
Adria da Silva Brito

Universidade Federal do Pará (UFPA)

Dr. Prof. Luiz Augusto Pinheiro Leal

Universidade Federal do Pará (UFPA)

Resumo: O presente artigo apresenta os resultados da pesquisa sobre as escravas de


ganho que apareciam nos jornais de Belém do Grão-Pará durante os anos de 1840 a
1860. O objetivo principal é analisar e compreender as atividades das escravas de
ganho que circulavam pelas ruas de Belém. A metodologia utilizada foi a pesquisa
documental baseada nos métodos e procedimentos adotados pela micro história. As
escravas de ganho tiveram papel relevante na sociedade escravocrata no Brasil do
século XIX. Na Província do Pará o trabalho de ganho proporcionou as mulheres
escravas a mobilidade social uma vez que transitavam pelas ruas praças e até nas
festas da igreja, e assim mantinham contatos sociais com outros sujeitos, e até certa
liberdade, liberdade essa restrita pelo controle das autoridades, leis e decretos.
Palavras chaves: Gênero. Escravas. Trabalho de Ganho. Grão-Pará. Jornais.
Abstract: This paper presents the results of research on gain slaves that appeared in
the newspapers of Belém do Grão-Pará during the years from 1840 to 1860. The main
objective is to analyze and understand how activities of gain slaves that circulate in the
streets of. Belém. The methodology used was a documentary research used in the
methods and procedures adopted by the micro history. As slaves of gain they played a
relevant role in nineteenth-century slave society in Brazil. Pará Province or gain work
provided as women slaves in social mobility, as they pass through the streets and even
church parties, and thus maintain social contacts with other individuals, and even some
freedom, freedom and restricted by the control of the authorities, laws and decrees.
Keywords: Gender. Slaves. Gain work. Grand Pará. Newspapers.

Introdução

Este trabalho pretende abordar questões relacionadas ao gênero, mais


especificamente sobre o universo social das mulheres negras escravizadas, que eram
alugadas vendidas ou preteridas nas páginas dos jornais que circulavam em Belém do
Grão-Pará nos anos de 1840 a 1860. Nas primeiras décadas do século XIX, houveram
uma série de mudanças administrativas, econômicas, sociais, populacional e espacial, que
tornaram a vida na província do Pará mais dinâmica, principalmente no comércio e nas
ruas, já que Belém funcionava como entreposto comercial (REIS. A, 1978, p. 243).

Durante a primeira metade do século XIX, a província do Grão-Pará passou


por mudanças e agitações próprias do processo que ocorriam no império brasileiro.
Nos anos de 1840, no período pós cabanagem, o Pará se reestabelecia do movimento

96
cabano, e dava início ao processo de ―pacificação‖ (BEZERRA NETO, 2001, p. 100), a
província do Pará ainda ressentia os abalos na produção e na comercialização de
gêneros, e a falta da população indígena, negra e branca, de todas as ―classes‖,
causada pela devastação e mortandade da revolução cabana, muitos foram obrigados
a fugir de seus lugares (MOURA, 2009, p. 107). Na fala do presidente Soares d‟ Andrea
(1838), a Província se encontrava em um estado lamentável, certamente pela
desestruturação da economia, afetado pelo ambiente violento e inseguro que os
conflitos gerariam. Os conflitos que espalharam pelo Grão-Pará e Amazônia causaram
inúmeros transtornos à produção e ao comercio paraense, sendo necessários alguns
anos para que a província se recuperasse dos abalos sofridos.

O comércio somente se reestabelecerá no início da segunda metade do século


XIX, com a importação da borracha e de outros gêneros alimentícios (BATISTA, 2009, p.
128 a 129), esse reflorescimento na economia, proporcionará ao Grão-Pará grandes
mudanças, como construções, pavimentações e urbanizações, não só no aspecto
econômico, mas também quanto ao número populacional. Em 1832, ano que antecede a
cabanagem a população total, de acordo com Baena (2004), contava com 12.467
habitantes, e a população escrava significava quase metade desse contingente, com 5.715
escravizados, as mulheres escravas eram cerca de 2.463, enquanto os escravos do sexo
masculino possuíam 3.252. Já no período pós movimento cabano, no 1848, podemos
verificar, a população escrava pouco aumentará. No relatório de Jerônimo Francisco
Coelho, apresentado a sessão ordinária da 6ª Legislatura, 1° de outubro de 1848, a
população de Belém, das três freguesias (Sé, Santa Ana, e Santíssima Trindade), continha
16.092 habitantes, entre os quais havia 5.085 escravos, contando com 2.496 homens e
2.589 mulheres escravizados. O que chama atenção para os dados, é de que a polução
escrava pouco cresceu, em relação aos anos anteriores, mas ainda constituíam um terço
da população urbana de Belém.

No meio de todas essas mudanças âmbito, encontravam-se as escravizadas, que


desempenhavam várias funções e atividades nos setores da economia escravista, e
estavam presentes nos espaços do trabalho, deixando fortes marcas e estabelecendo
laços com as várias camadas da sociedade, seja através dos trabalhos de cunho mais
―domésticos‖ como também na qualidade de ―escravas de ganho‖ (PALHA, 2001, p. 20).
―Os escravos de ganho eram aqueles que após fazerem alguns serviços na casa de seus
senhores iam para as ruas em busca do trabalho. Alugavam seu tempo a um outro, e
deviam no final de determinado período entregar a seus senhores uma quantia
previamente estabelecida‖ (ALGRANTI,1988, p. 49). A escravidão de ganho era bastante
diversificada, e ao circularem pelas ruas de Belém, mantinham contato com diversos
sujeitos, sejam livres ou escravizados, formavam suas redes de relacionamentos, as quais

97
eram tão temidas pelas autoridades que estavam a frente do governo do Grão-Pará,
especialmente no pós- cabanagem (PALHA, 2001, p. 19). Segundo Vicente Salles (1971),
o negro que estava presente na cidade gozava de maior liberdade, pois ele extrapolava a
vida doméstica, devido muitas das vezes ter que trabalhar fora para sua própria
subsistência, além de possibilitarem ao senhor uma vida completamente ociosa e estéril,
como escravos de ganho ou de aluguel, estavam pelas ruas da cidade de Belém. Deste
modo este trabalho procura entender, quais funções e atividades as escravizadas
ocupavam na cidade de Belém durante o período de 1840 a 1860? Quais eram as
condições a quais a negra eram submetidas no Brasil escravista?

No Brasil os estudos sobre a mulher são muito recentes. Se a mulher, de


modo geral, é objeto de um campo novo de estudos, o que dizer da mulher negra? O
estudo sobre a mulher no Brasil, vem se renovando desde dos anos 1970, apesar dos
primeiros trabalhos terem priorizado a mulher pobre e marginalizada como agente de
transformação, revolucionando o pensamento dominante do homem, aproximados dos
debates da história social, optou por também por um conceito de cultura feminina.
Durante esse mesmo período, alguns trabalhos aproximados dos pensamentos
foucaultianos de micro poder e o rompimento do sujeito, aproximaram-se da categoria
gênero (ALVES., 2017, p. 13).

Uns dos primeiros trabalhos sobre a mulher negra no Brasil, foi o de Maria
Odila Leite da Silva Dias (2005), Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX,
publicado em 1984, Dias analisa o cotidiano das mulheres durante a escravidão, e as
estratégias de sobrevivência das padeiras, lavadeiras e vendedeiras, bem como
relação entre senhoras e ganhadeiras. Outro trabalho publicado na mesma década, é
o de Sonia Giacomini (1988), MULHER E ESCRAVA: uma introdução histórica ao
estudo da mulher negra no Brasil, ela ressalta a forte exploração que as mulheres
negras sofriam, e olhar estereotipado dos viajantes sobre o corpo da mulher negra,
além de criticar as análises de Gilberto Freyre.

A discussão sobre gênero no Brasil, será ampliado a partir da década de


1990, nas principais universidades brasileiras, as quais deram frutos a diversos
trabalhos sobre os mais variados temas, incluído o estudo do cotidiano, laços de
solidariedade, estratégias de sobrevivência escravista urbana e rural, mobilidade
social, alforrias, abolição e no pós - abolição. É a partir desta década que a mulher
negra será vista com um olhar mais especifico, incluídas no contexto da escravidão,
de dominação e resistência, e nas relações de poder. (ALVES., 2017, p. 14).

A história das mulheres, foi excluída da historiografia tradicional por muito tempo,
no entanto muitas mulheres começaram a lutar por seus direitos de escrever e de se ver

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representadas na história, já que sempre se valorizou a história dos homens, feitas por
homens e para homens, enquanto ás mulheres ficaram a margem da história. Desafiando
um sistema patriarcal, as mulheres lutavam pelo alargamento das temáticas e inovação
nas produções intelectuais que demonstrassem que, as contribuições femininas para a
história são necessárias para compreensão dos acontecimentos que envolvem a
história em todo seu complexo. Margareth Rago (1995, p.81) em seu texto diz que é
necessário refletir sobre a História, pois segundo ela, ―esta não narra o passado mas
constrói um discurso sobre este, trazendo tanto o olhar quanto a própria subjetividade
daquele que recorta e narra, à sua maneira, a matéria da história.‖, Rago (1995) critica
a história escrita somente por historiadores, e se revermos a historiografia tradicional
do Brasil colonial, pouco se ver sobre a mulher, ou seja, a perspectiva da participação
da mulher é quase pequena, se comparada à outros temas, que narram as ações
individuais e coletivas marcadamente masculinas, como se a história nos contassem
apenas dos ―homens e suas façanhas‖.

O homem foi objeto de vários estudos, principalmente o homem branco, seja pela
quantidade de fontes existente sobre eles, ou seja pelos que escreveram a história sempre
estiveram interessados em ressaltar as trajetórias, a vida, o trabalho, os fatos heroicos, as
contribuições masculinas, ou seja, pelo fato de ocultar, o que não lhes interessa, que são:
as mulheres, as negras, os negros, indígenas, crianças, trabalhadores rurais, entre outras
infinidades de sujeitos que fazem e sempre fizeram parte da história, mas que estiveram
oculto dela até recentemente (MOTT, 1988, p. 11).

Na história há um duplo um silêncio, há um silêncio sobre as classes exploradas,


pois a história é das classes dominantes, soma-se ao silêncio das mulheres em geral, já
que a história é masculina, assim este trabalho, pretende abordar uma reflexão sobre a
mulher escravizada, levando em conta as experiências, as atividades por elas
desempenhadas, a mobilidade social traçada por estas mulheres, e assim contribuir para a
história das mulheres negras, pois, ―a miséria, a opressão, a dominação, por mais reais
que sejam, não bastam para contar a sua história‖ (PERROT, 2005, p. 152). Por isso, se
torna necessário, contribuir e matizar a compreensão acerca do papel social das escravas
de ganho em Belém do Pará 1840 a 1860.

A metodologia utilizada neste trabalho foi a pesquisa documental, tendo como


fonte primária os anúncios de jornais do século XIX da província do Grão-Pará sobre as
negras que trabalhavam na função de escravas de ganho. De acordo com Schwartz
(1987), este tipo de fonte de caráter documental, podem trazer diversas informações
acerca do enunciado, pois é possível compreender diversas dimensões, e diferentes
significados a partir de um mesmo artigo, e que os jornais constituem importantes fontes

99
de análises, e devem ser entendidos ―enquanto „produto social‟, isto é, como resultado de
um oficio exercido e socialmente reconhecido, constituindo-se como um objeto de
expectativas, posições e representações especificas‖, mas que carregaram em si vários
―pedaços de significação‖ que ao serem juntados podem nos oferecer pistas
importantes para nossos temas (p. 14,15). Baseada nos métodos e procedimentos
adotados pela micro história, sendo esta uma redução na escala de observação, em
uma análise microscópica, baseada em um estudo intensivo do material documental
(LEVI, 1992, p. 138,139).

Assim, a seguinte pesquisa tem como base os anúncios de jornais do período


de 1840 a 1860, que são fontes essenciais para compreender o universo das escravas
de ganho, já que estes tratam da venda e aluguel das escravas de ganho, bem como
as atividades praticadas por elas, são estes: O Publicador Paraense (1841-1853), O
planêta (1849-1853), o Paraense (1843), o Gazeta Oficial (1859) e principalmente O
Treze de Maio (1840-1862).

O trabalho de ganho das mulheres negras de 1840 – 1860.

Bando de mulheres negras vistosamente trajadas, enfileiram-se


ao longo do caminho, que vai desembocar na entrada da igreja,
com suas barraquinhas de bebidas, doces e cigarros (BATES,
1979, p. 45).

Na primeira metade do século XIX, a presença das escravas nas ruas de


Belém, foi um fenômeno muito comum, que impressionou os viajantes estrangeiros
que visitaram a cidade, pois estas se aglomeravam nas ruas com suas cestas de
vendas e até em ―barraquinhas‖ para vender doces, bebidas e cigarro, como observou
o naturalista Henry Bates (Ibidem). Nas ruas os escravos possuíam uma maior
liberdade, podiam transitar pelo mercado, igarapés e fontes de água, ruas e até nas
igrejas. Desenvolvendo as mais diversas atividades, que iam desde das atividades de
ambulantes, até as atividades domésticas. (PALHA, 2001. p.)

As escravas de ganho eram trabalhadoras características da cidade urbana, que


extrapolavam o convívio senhorial, e podiam até „pernoitar‟ fora das casas dos seus
senhores, ou alugar casas, desenvolvendo assim relacionamentos sociais com outros
cativos, libertos ou livres (SALLES, 1971, p.174), segundo Katia Mattoso (1988, p. 111) ―o
escravo urbano, circula nas ruas, estabelece vínculos com os homens livres e humildes,
seus irmão trabalhadores, e sente-se, sem dúvida, menos prisioneiro de sua condição do
que do que escravo rural‖, o escravo da cidade tinha uma certa autonomia, se comparados
aos escravos do espaço rural. Vicente Salles (1971, p.174), ao se referir aos negros de

100
ganho, diz que eles se tornaram um tipo característico da cidade colonial, e que era muito
comum os negros exercerem atividades comerciais no mercado urbano.
Os negros da cidade, ―(...) gozavam de maior liberdade. Extrapolavam a vida
doméstica. As vezes tinham que trabalhar para sua própria subsistência, além de
possibilitarem vida completamente ociosa e estéril aos senhores‖ (Ibidem p. 114).
Muitos senhores viviam às custas do trabalho de ganho dos seus escravos, pois
alugavam a sua força de trabalho, à um terceiro para auferir lucros e quando estes não
eram alugados, ao final do dia eram mandados as ruas para venderem, e deviam no
final da jornada, entregar aos seus senhores uma quantia previamente estabelecida,
sistema chamado de jornal, é importante frisar que mesmo que a quantidade não
fosse atingida, e nem mesmo ultrapassada, o importante era pagar e não faltar com o
acordo, para evitar punições (ALGRANTI, 1988, p.49). Segundo Marilene Silva (1988,
p.118), os senhores estipulavam a renda diária, que acordo com sexo, a idade, e
atividade desenvolvida pelo escravo na cidade.

As escravas de ganho, foram figuras marcantes de diversas cidades


brasileiras no início do século XIX. Em Salvador, por exemplo, Soares (1994, p.22),
registrou que havia um grande número de negras de ganho que realizavam serviços
para terceiros fora da residência senhorial, eram ―vendedoras ambulantes, lavadeiras,
engomadeiras‖. Em minas gerais, Liana Reis (1988, p. 76), constatou que as mulheres
negras realizavam as mais diversas atividades, além de trabalharem nos serviços
domésticos, eram vendedoras ambulantes e quitandeiras, que vendiam doces e
comestíveis nas minas de ouro. E no Rio de Janeiro, segundo Luís Carlos Soares
(1988, p. 112), ―O comercio ambulante carioca apresentava uma grande variedade e
quase todas as mercadorias eram vendidas por escravos de ganho pelas ruas da
cidade(...)‖, os cativos ficavam pelas praças, praias e porta da igreja, com seus cestos
e tabuleiros ou com suas pequenas barracas improvisadas, constatou também que
havia a presença de escravos de ambos os sexos.

Através dos anúncios presentes nos periódicos paraenses das décadas de 1840
a 1860, podemos perceber não só as diversas atividade que as escravas de ganho eram
empregadas, mais também a modalidade – alugadas, vendidas e pretendidas – e ainda a
idade que possuíam, as qualidades, o valor do serviço, e o lugar de negociação. Por
exemplo, no anúncio abaixo, se evidencia casos de sujeitos que se propunham a alugar
mulheres escravas, para empregá-las nas atividades de ganho.

Precisa-se de uma preta para vender na rua e para lavar roupa,


que seja de boa conduta e fiel para uma casa de pequena
família, declara-se que também pode dormir em casa de seu
senhor, vindo às 6 horas da manhã e indo às 7 ou 8 da noite,
não excedendo de 320 réis, por dia, quem a tiver dirija-se a

101
esta tipografia que se dirá quem precisa (Treze de Maio, ano 6,
n° 289, 7 fevereiros de 1854, p. 4).

O anuncio acima se trata de uma pessoa, que desejava alugar uma escrava
para vender na rua, ou seja, para empregá-la na atividade de ganho. De acordo com
Mott (1988, p.23), as escravas da cidade, além dos serviços domésticos, efetuavam
outra jornada de trabalho fora da casa, ―alugavam seus serviços para terceiros; faziam
serviços diversos, como lavar ou até mesmo prostituir-se; ou então, e principalmente,
vendiam todo tipo de mercadorias – arranjando desta forma o necessário para
subsistência daquela família‖. A maioria dos pequenos proprietários – caso do anunciador
acima ―casa de pequena família‖ – quando não viviam do aluguel de serviços
dos escravos, viviam da renda obtida do serviço de ganho dos escravos,
principalmente esses que eram pequenos e médios proprietários, segundo Maria Odila
Dias (1988, p.124) viver dos serviços de ganho dos escravos, era costume no Brasil
colonial, desde do século XVII, especialmente entre as mulheres mais pobres, assim
também como outros segmentos sociais, que almejavam obter lucros. Para Dias:

Viver dos jornais de seus escravos era costume enraizado nas


vilas do Brasil colonial, que veio se intensificando através do
século XVIII; era um meio de sobrevivência preferido por viúvas
remediadas e pequenos funcionários da administração pública,
que alugavam caro os seus escravos de ofício, acirrando os
interesses das autoridades do fisco (DIAS, 1988, p.124).

Sobre o que pesquisou da escravidão urbana em São Paulo, Dias (ibidem)


informa que a atividade do comércio era comum entre as mulheres africanas, carregavam
consigo conhecimentos culturais de seus locais de origem e, de acordo com tais tradições,
às mulheres eram delegadas as tarefas de alimentação e circulação de gêneros
alimentícios. Em contrapartida, da habilidade das escravas usufruíam as proprietárias
empobrecidas e os pequenos proprietários dos jornais ganhos.

Nos próximos três anúncios abaixo dos periódicos – O planeta (1850),


Publicador paraense (1849) e Treze de maio (1845), podemos observar a modalidade
com a qual elas eram empregues, aluguel ou venda.

Vende-se uma escrava de nação, de idade de 36 anos pouco


ou mais ou menos, boa vendideira e compradeira, cozinha, lava
e faz todo e qualquer arranjo de casa de família: quem
pretender comprar, dirija-se a João Valente de almeida Feijão,
na rua de S. Vicente para tratar dos ajustes (O Planeta, ano 2,
n° 95/96, 5 de dezembro de 1850, p. 8).

Vende-se uma mulata de idade 35 a 40 anos, que sabe coser,


lavar, engomar, cozinhar e também ganhar na rua; quem a quiser
comprar venha a esta tipografia que se endereçará à casa do
vendedor. Deseja-se vender esta mulata pelo desgôsto com

102
que serve o senhor (Publicador paraense, ano 1, n° 64, 24 de
dezembro de 1849, p.4).

Vende-se, ou aluga-se se üa preta lavadeira, gomadeira,


cozinheira, costureira, e rendeira muito própria para os arranjos
de üa caza e tractar de qualquer couza que dela lhe seja
confiada: que precise dirija-se a rua do Espirito Santo caza N°
6. (Treze de maio, n° 506, 14 de maio de 1845, p.4)

Com relação a venda ou aluguel das escravas na província do grão Pará, foram
encontrados anúncios que descreve que as escravas haviam entre 35 a 40 anos. Nos
anúncios de venda ou aluguel, elogiavam demasiadamente as qualidades das escravas,
por exemplo, diziam que eram „boa lavadeira‟. Segundo Mattoso (1988, p. 111), quando
se tratava de vender um escravo, não se economizava os elogios às suas qualidades,
e os periódicos descreviam os como ―indivíduos estimáveis e capazes‖. Era comum
ainda dar destaque ao enunciado as qualificações das escravas, isto é, aos trabalhos
que elas poderiam realizar. No primeiro anúncio a escrava de nação era vendedeira e
compradeira, além de cozinhar e lavar, sabia cuidar de todos os arranjos de uma casa.
Nos outros anúncios, as escravas também haviam mais de uma qualidade, a exemplo
a mulata de 35 a 40 anos, além de realizar quase todo serviço da casa sabia „ganhar
na rua‟, e a preta lavadeira que sabia costurar e rendar. No entanto seria um equívoco
considerar somente como escrava de ganho, o trabalho chamado ganho de rua
(vendedoras), para Mattoso (1988):

(...)os escravos domésticos tornam-se facilmente indispensáveis


aos seus senhores, aos quais se devotam cotidianamente ou lhes
proporcionam o fruto do trabalho que executam fora, além das
tarefas de casa. Grande números de escravos domésticos saem
com seus tabuleiros de doces e rendas que vedem nas ruas para
seu senhor, proporcionando-lhes lucros suplementares não-
desprezíveis (MATTOSO, 1988, p. 111).

Geralmente o aluguel de escravas para o serviço doméstico, tinham por


objetivo o aumento da renda dos seus senhores, quando não eram alugadas, eram
mandadas as ruas para efetuar a venda, e muitos senhores obtinham lucros adicionais
com esse tipo de serviço. Esbara-se aí, a dificuldade encontrada em detalhar o dia-a-
dia dessas negras, devida a carência de fontes.

As escravas destinadas ao trabalho doméstico, executavam mais de uma


tarefa, não havia por exemplo escravas especializadas somente em um ofício, eram
cozinheiras, costureiras, lavadeiras, engomadeiras, rendeiras e vendedoras, elas
podiam ocupar uma ou mais tarefas, dependendo da necessidade da casa do senhor
(Soares, 1994, p. 26). Os anúncios dos jornais paraenses dos anos de 1840 a 1860,

103
anunciavam pessoas que queriam alugar, comprar ou vender negras que
soubessem realizar o „arranjo‟ de uma casa. Vejamos nos anúncios abaixo:

Vende-se três escravas, boas lavadeiras, engomadeiras e


cozinham sofrivelmente e ordinário de caza (...). Quem
pertender procure na travessa de S. Matheus caza n° 15
(Treze de maio, n° 673, 3 de fevereiro de 1847. p. 4).

Vende-se uma preta de 23 annos com uma cria de 10 mezes,


bôa lavadeira, sofrível cozinheira, e apta para todo serviço de
uma casa, quem pretender a comprar dirija-se a Santiago Orsy
(Treze de maio, n° 617, 4 de julho de 1846, p. 4).

Precisa-se de uma negra ainda moça, e sadia que saiba lavar,


engomar e cozinhar o diário de uma caza, quem a tiver e a
queira vender dirija-se á Rua trindade N° 101 para se ajustar
(Treze de maio, ano 9, n°870, 27 de fevereiro de 1849, p. 4).

―Vende-se uma mulata, por nome de Izidoria, de idade de 24


anos, boa engomadeira e costureira, e optima quitandeira, sem
vícios conhecidos, quem pretender compra-la falle com
Francisco Pereira de Brito, no Porto do Sal, que tratará do seu
ajuste‖ (Treze de Maio, n° 499, 19 de abril de 1845, p.3)

José Fernandes de Souza, tem para vender huma preta em


boa idade, a qual entende de cozinha e sabe lavar, e então se
alugará em quanto não vender. (...), quem pertender, dirija-se
ao anunciante na Escadinha para tratar do ajuste (Treze de
maio, n° 315, 03 de junho de 1843, p. 4).

―Vende-se uma preta de idade de 26 annos, pouco mais ou


menos, lavadeira, rendeira e trabalha do arranjo de casa, quem
pretender comprar, dirija-se a Rua Nova caza N° 11 que se dirá
a quem a vende‖ (Treze de Maio, n° 545, 4 de outubro de
1845, p. 4).

As informações presentes nos anúncios acima, evidenciam que as escravas


domésticas possuíam várias habilidades, eram cozinheiras, lavadeiras, engomadeiras
e costureiras, grande parte dos anúncios revela que as escravas se encontravam
ligadas as atividades domésticas, assim como se evidência o uso da mão de obra no
aluguel, ―e então se alugará em quanto não vender‖, a maioria das famílias que viviam
em casas pequenas, não precisavam de tantos escravos para o serviço doméstico
logo optavam pelo aluguel diário, quando se precisava. Foi muito regular nos anúncios
apresentação de trabalhadoras com mais de uma habilidade, ou com habilidades
especificas para certos tipos de trabalhos, como é o caso da Mulata Izidoria vendida
por Francisco Pereira de Brito que era além de costureira e engomadeira, era ótima
quitandeira, assim também como a preta de 26 anos que além dos arranjos da casa,
sabia rendar. Barbara Palha (2011, p.96), analisando os jornais da primeira metade do

104
século XIX, identificou: cozinheiras, doceiras, costureiras, tecedeiras, passadeiras e
outras. Eram essas habilidades particulares que diferenciavam algumas escravas no
mercado urbano.

Da mesma forma que era comum o anuncio de venda e aluguel das escravas,
era hábito também solicitar os serviços das escravas, ou ainda solicitar a compra, e
neste caso, o requerente delimitava que tipo de habilidade que a escrava deveria
possui. No anúncio abaixo, se preferia uma mulata que tivesse idade entre 12 a 16
anos, que soubesse costurar, fazer doces e engomar, vejamos:

―Quem quiser vender uma mulatinha recolhida de 12 a 16 anos


com princípios de costura, doces e goma, dirija-se a esta
tipografia, que se dirá com quem deve tratar‖ (O planeta, n°
104, 1 de fevereiro de 1851, p. 4).

Nos anúncios já evidenciados acima neste trabalho, podemos constatar


várias características dos anúncios que não podem deixar passar despercebidas. Por
exemplo, o trabalho das escravas domésticas, não as excluía do espaço rua, além dos
serviços da casa, percebemos que eram vendedoras, ganhadeiras, compradeiras e
quitandeiras. Logo, estas funções colocavam elas nos espaços públicos, e até as
escravas que eram alugadas diariamente mantinham contato com espaços públicos,
uma vez que elas tinham que ir e voltar para a casa dos seus senhores.

Assim também, como as lavadeiras, que saiam da casa dos seus senhores
para os igarapés, rios e fontes de água, visto que em Belém não possuía um sistema
de agua canalizada. Henry Battes (1979, p.14), realizando um passeio pelas
Mongubeiras, descreveu que ―as terras vão novamente em declive até se tornarem
pantanosas, e é aí que ficam situados os poços públicos‖, e se deparou com um grupo
de trabalhadoras, ― Nesse local é lavada toda a roupa da cidade, trabalho esse que é
feito por um bando de tagarelas escravas negras‖, logo se supõem que as lavadeiras
também transitavam pelas ruas das cidades, pois estas passavam o dia lavando e
esperando a roupa secar, e quando voltava com as roupas já limpa e seca, ainda
tinham que engomar, mesmo que ―sofrivelmente‖ e cozinhar, como a preta Roza, que
estava sendo anunciada para venda pelo Capitão Francisco de Almeida da Costa
Soutto Maior. A historiadora Conceição Maria Rocha de Almeida (2010, p.189) informa
sobre o árduo trabalho das lavadeiras em Belém:

(...) a lavagem de roupas dependia das saídas das lavadeiras até


os lugares de lavagem das roupas, o que poderia demandar o dia
inteiro, pois era preciso também, esperar a roupa secar, retirá-las
das cordas, arrumá-las e transportá-las cuidadosamente pelas
ruas, até o local onde seriam passadas e

105
engomadas. O cuidado no transporte da roupa lavada poderia
evitar momentos de desassossego e contrariedade as
lavadeiras, pois caso as peças fossem alvejadas com
respingos de lama e similares indesejáveis, elas precisariam
repetir todo o processo da lavagem.

Portanto, as negras lavadeiras, saiam das casas dos seus senhores para
lavar as roupas, nos igarapés, rios e poços, ou seja, fora do convívio senhorial,
configurando-se a mobilidade como uma característica essencial as atividades
desenvolvidas no espaço urbano belenense, como a de lavagem de roupas.

Nos anúncios, também era frequente, destacar as qualidades e as vantagens


de adquirir tal escrava. Ressaltavam nesses casos as qualidades – ―Boas lavadeiras‖,
―boa engomadeira‖, ―boa vendideira e ganhadeira‖, ―boa idade‖, de acordo com Lilia
Schwartz (1987, p.134), não se economizavam os atributos positivos aos cativos, tanto
que se expõem às suas qualidades profissionais como as características físicas e
mesmo as morais. E em outros casos ressaltava-se que as escravas não eram tão
boas em determinadas funções ou habilidades, no anuncio abaixo podemos observar
que a preta Rosa engomava ―sofrivelmente‖:

Vende-se uma preta de nome Rosa, cozinha, lava e engoma


sofrivelmente; quem a pretender comprar dirija-se ao Capitão
Francisco de Almeida da Costa Soutto Maior. (Treze de maio, n
° 575, 28 de janeiro de 1846, p.4)

Engomar sofrivelmente, como a preta Rosa engomava, queria dizer que o


trabalho não era tão bom, quanto se pretendia, porem era tolerável. Assim como a
Rosa, havia outras escravas que também efetuavam algumas tarefas sofrível, como
cozinhar. Além dessas características costumava se evidenciar nos anúncios que não
possuíam vícios e que eram confiáveis.

Constatamos ainda nos anúncios, o local no qual vendedor ou o comprador


estava negociando, era comum cita a rua, travessa e o número da casa, por exemplo –
―quem a tiver e queira vender dirija-se a Rua trindade N° 101‖, ―dirija-se a Rua Nova
caza N° 11 que se dirá a quem a vende‖, ―Quem pretender procure na travessa de S.
Matheus caza n° 15‖ –, costumava também citar o nome do negociante, como – João
Valente de Almeida Feijão, Santiago Orsy, Francisco Pereira Brito, José Fernandes de
Souza e o Capitão Francisco de Almeida da Costa Soutto Maior – estes são os nomes
de pessoas que aparecem nos anúncios, os seja que estavam comprando ou
vendendo as escravas.

Outra característica que aparece constantemente nos anúncios é a idade das


escravas, geralmente possuíam uma média de 23 a 35 anos, as escravas nestas idades

106
eram as que mais tinham ofícios e sabiam realizar diversas tarefas pelo que pode
analisar, mais também existiam anúncios que almejavam moças entre 12 a 16 anos de
idade, de acordo com Soares (1994, p. 27), preferiam-se as moças novas, pelos laços
de submissão e dependências que se formaria o quanto antes, já que os serviços da
casa requeriam uma maior intimidade, preferiam meninas novas para educar conforme
os costumes dos seus senhores.

Outra ocupação que exigia uma maior intimidade com a famílias, eram as
amas-de-leite, apareciam nos anúncios na modalidade de aluguel e venda, porém nem
todas as escravas eram aptas para essa atividade, dependia se as escravas estavam
em tempo de lactação ou não, ou se estavam dentro dos critérios exigidos (SOARES,
1994, p.31). No período colonial, as mulheres brancas não tinham por hábito
amamentar seus filhos, devido muitas das vezes estarem fora das condições, ou até
mesmo por gestações com pouco intervalo de tempo (MOTT, 1988, p.22), em Portugal
o costume de relegar a amamentação era uma questão de moda ou status (FREYRE,
1988, p.359), já no Brasil as amas de leites serviram para atender a uma necessidade
higiênica, período este que não havia mamadeiras, leite em pó, podemos avaliar a
importância que amas de leite adquiriram neste contexto.

Vende-se uma escrava de idade de 16 anos a 18 anos própria


para Ama de leite, por lhe ter morrido o filho na ocasião do parto,
também lavar roupa. Quem a pretender dirija-se a travessa do S.
Matheus casa n° 65, próxima a rocinha do senhor Jaime Bricio.
(Treze de maio, n° 555, 12 de novembro de 1845, p.4).

Aluga-se para Ama de Leite, huma crioula com cria, e muito


sadia, por 320 réis diários, quem pretender dirija-se a Rocinha
que foi do Sr. Lagos. (Treze de maio, n° 499, 19 de abril de
1845).

Precisa-se de huma Ama de Leite fora ou escrava, que seja


bem sadia, e se for sem cria não se duvidará pagar melhor,
quem se achar nessas circunstâncias dirija-se a Rocinha que
foi do falecido Coronel Joaquina Felippe para tratar do ajuste.
(O paraense, n° 24, 10 de agosto de 1843, p.4).

Com relação as amas de leite, trouxemos para a análise três anúncios, de venda,
aluguel e procura. Nos anúncios era corriqueiro descrevem a idade da escrava e o motivo
pela qual ela teria leite, geralmente se anunciava o motivo, principalmente quando elas
teriam perdido o filho, pois escravas com filhos, eram mais difíceis de ser vendida como
amas de leite, e quando possuíam filhos, no caso do anúncio de aluguel, o anuncio
destacavam outros atrativos ou qualidades – ―muito sadia‖ –, era recorrente destacar que a
escrava era jovem e sadia, e, portanto, era adequada para amamentar. Além da venda e
aluguel, nos anúncios dos jornais, havia a procura pelos serviços, e

107
sempre procuravam por amas sadias e sem filhos – ―que seja bem sadia, e se for sem cria
não se duvidará pagar melhor‖ – o motivo da escrava não possui filho, era uma das
exigências do comprador, e que por este motivo, poderia até pagar melhor. Segundo
Soares (1994, p. 31), ―As crias eram consideradas um peso para muitos senhores, pelo
menos até crescerem e poderem ser lançadas no mercado de trabalho‖.

Como nos anúncios das escravas domésticas, nos anúncios das amas de
leite também apresentam local no qual o comprador deveria se dirigir, e com quem
deveria falar. Assim podemos perceber que havia uma semelhança entre quase todos
os anúncios, geralmente seguia se uma ordem, onde se anunciava primeiramente
quem estava a aluguel ou a venda, segundo as qualidades seguidas de elogios, e por
último o local e o nome do negociador.

Os anúncios a seguir publicados no jornal Treze de Maio (1854) e no Gazeta


Official (1859), mostra que amas de leites se diferenciavam das demais escravas,
devida a outras especialidades que estas poderiam realizar. No anúncio abaixo se
observa essa diferença, pois a escrava, além de ama de leite sabe realizar todo
serviço de casa: “Aluga-se uma escrava, sem filho, para ama de leite, sabe fazer todo
o serviço de uma casa, quem pretender, dirija se a rua do Espirito Santo, casa n° 7”
(Gazeta Official, 12 de julho de 1859, n° 152, p. 4). Havia nos anúncios a prescrição de
outros serviços que amas de leite poderiam fazer. “Preciza-se alugar huma ama de
leite sem cria, será preferida, assim como, que saiba engomar; nesta tipografia se dirá
o pretendente” (Treze de Maio, 25 de abril de 1854, n° 322, p. 4). A procura por
mulheres negras que poderiam realizar outras tarefas, além de ser ama de leite, era
corriqueiro, no anuncio acima a pessoa precisava de uma de ama, que também
soubesse engomar. Além do mais, nos anúncios há outras referências, informações
sobre a saúde, idade, se ela tem filhos, além de informações sobre o local a onde seria
feita tratado a compra ou venda.

Damiana Guimarães Gutierres (2013), realizou um estudo sobre as amas de


leite na cidade de Belém no século XIX, e constatou que no momento da escolha da
ama, algumas características eram importantes – ―escolhiam-se, dentre as negras
escravas da senzala, as mais limpas, bonitas, sadias, robusta e principalmente as que
demostrassem jeito carinhoso para lhe dar com as crianças‖. E que ama de leite nos
anos oitocentos, foi sem dúvida, muito importante dentro do contexto social, uma vez
que elas, foram a única ―alternativa encontrada por muitas famílias para atender a
incapacidade de muitas mães em amentar seu filho em decorrências de sucessivas
gestações‖ (Ibidem, p. 152, 153). Assim a escrava, quando mãe, podia se tornar
escravas de ganho e gerar lucros para seus senhores.

108
Das atividades aqui já citadas praticadas pelas trabalhadoras escravas, e
comprovadas através dos anúncios de jornais, podemos concluir que as escravas de
ganho efetuavam tais atividades, e em muitos casos possuíam mais de uma
habilidade, não foi um dos nosso objetivos quantificar quantas vezes as escravas
apareciam nos anúncios dos jornais, mas sim analisar os tipos de trabalhos que
realizavam enquanto escravas de ganho, e de acordo com anúncios analisados, as
mulheres negras ocupavam as atividade de: lavadeira, cozinheira, engomadeira,
costureira, vendedora, compradeira, doceira, rendeira e ama de leite. Grande parte
dos anúncios revelam que as escravas estiveram ligadas as atividades do lar, e nem
por isto foram excluídas do âmbito das ruas.

Tais anúncios, se encontravam fartamente nos periódicos do período pós


cabanagem, principalmente no Treze de Maio, que era um jornal de caráter comercial,
sendo que as vezes em um mesmo jornal continha três ou mais anúncios de venda e
aluguel de escravos, que se misturavam com as outras ofertas, ofertas de objetos,
comidas, aluguéis, etc., nesse sentido os escravos recebiam o mesmo tratamento que
os objetos que eram vendidos juntamente. Segundo Lilia Schwartz (1987), os escravos
eram descritos como objetos em liquidação.

Geralmente a venda, o aluguel e a procura das escravas de ganho, estavam


localizadas na terceira ou quarta página do jornal, na coluna de ―AVIZOS‖, nesses
anúncios os escravos eram exibidos como ―coisa‖ que estavam sendo anunciadas, para
quem interessasse, e se misturavam a outros anúncios de venda, como a venda peixe, de
café, de objetos, alugueis de casas e salas, percebemos que as escravas recebiam o
mesmo tratamento, ao nível da linguagem. Nesses anúncios, ofereciam se as escravas,
com afirmações positivas sobre as suas atividades ou qualidades, isso se dava, de certa
forma, como uma maneira de chamar atenção dos interessados em adquirir os serviços da
escrava, os anunciantes, portanto exaltavam as características positivas e morais dos
cativos oferecidos, para garantir a excelência das ―mercadorias‖.

Entre a “liberdade” e o controle.

A negra de ganho, ao sair do convívio senhorial, para efetuar os serviços, se


afastava do controle dos seus senhores, o que não significou se livrar de outros tipos
de controle, a escrava ao pisar fora da casa do seu senhor, o controle sobre ela só
aumentava, e estava regulamentada por leis, posturas, decretos, que infringidas se
transformariam em multas, prisão e chicotadas (ALGRANTI, 1988).

Conforme o contrato verbal que havia entre senhor e a escrava, a escrava sairia
da propriedade do seu senhor para trabalhar no âmbito da rua, realizar seu trabalho,

109
voltar ao final do dia, ou no final da semana se caso dormisse fora, e lhe pagar a
quantia previamente estabelecida entre eles. Na rua, na praça, ou no mercado sem
controle ou supervisão direta, por parte do seu senhor, as escravas não tinham tão
livre arbitro, como imaginamos. Vicente Salles (1971, p.174) ao mencionar que os
negros de ganho ―gozavam de relativa liberdade‖, refere-se a liberdade do escravo
poder sair do lar do senhor, e realizar seu trabalho para fora, pelas ruas, e não a uma
liberdade da qual o escravo estaria livre do controle do senhor, e das autoridades.

Em Belém, assim como em outras cidades do Brasil, as circulações de


escravos pelas ruas eram controladas pelas autoridades do estado, e estabelecidas
por Leis e decretos que regulamentavam a ida e vinda desses trabalhadores, e
estabeleciam muitas das vezes o que eles podiam vender. Em São Paulo, Odila Dias
(1988), observou que o escravo de ganho, que circulava livremente pela cidade, eram
alvos das ocorrências policiais, e que devido a agitação da cidade urbana, havia uma
dificuldade em controlar essas atividades. Devido a isso, as atividades de venda das
mulheres negras eram controladas por licenças e impostos, e que não cumpridas,
resultavam em multa.
As escravas mulheres apareciam profusamente nos registros
de multas municipais, a grande maioria envolvida no pequeno
comercio de rua, vendendo gêneros alimentícios sem
almotaçar, ou gêneros de estanco, sem devidas guias, licenças
impostos(...). Sucediam-se as denúncias contra as escravas
que atravessavam peixe pelas estradas ou toucinho fora das
casinhas (...). Entre 1834 e 1871, sucediam-se, posturas que
dificultavam a livre circulação de escravos no comércio
ambulante; foram reiterados vezes proibidos de vender sem
bilhetes e licenças expressas dos proprietários, elevando se a
multa. (DIAS, 1988, p. 145).

Os códigos de posturas que regulamentavam o trabalho dos escravos nas


ruas de São Paulo, segundo Dias (Ibidem), proibiam os escravos de vender sem
bilhetes, de estarem vendendo após o toque de recolher, além disso, eles teriam que
está devidamente bem vestidos e com suas quitandas bem varridas e limpas. Em São
Paulo, muitas das proprietárias de escravas indisciplinados, se endividaram e até
empobreciam, devidas as multas ou taxas cobradas pelos escravos presos.

Na cidade de Belém não foi diferente, o trabalho de ganho, era


regulamentado por Leis e decretos. Em 1838, Baena escrevia que:

(...)a conduta de uma grande parte dos chefes de família, que por
segurar o ganho de meia pataca diurna dos seus escravos não
restejam os meios de que estes servem para adquirir o salário;
mas antes permitem que eles consumam o tempo à sua vontade;
que pernoitem fora das casas, e vaguem pela cidade,

110
deste modo os mesmos senhores são a causa de todas a
possibilidade de comunicar com foragidos militares e
marítimos, e escravos, e até com flagiciosos, que cobertos da
treva da noite lhes trazem todas as suas aquisições pela maior
parte depredatórias para permutar opor farinhas, tabaco,
sabão, armas de fogo, pólvora, chumbo etc.; de cuja traficância
sórdida, e grangearia criminosa provém aos escravos e não
sómente o que precisam para satisfazer a seus senhores, mas
muito principalmente o que basta para nutrir o seus vícios, e
seus dissolutos costumes com que depravam os outros da sua
condição, e circunstâncias, empregando noites e dias em os
iniciar o mistério dos nefários projetos (BAENA, 1969, p. 331) .

Baena falava, que devido os senhores viverem do trabalho de ganho dos seus
escravos, e estes ficarem até tarde na rua, elas causavam desordens na cidade, e isto
deu início aos ―nefários projetos‖, que fez com que medidas mais severas fossem
tomadas pelo estado. Uma vez que, o comércio estabelecido por escravos, começou a
se mostrar prejudicial a ordem da cidade, foram introduzidos os Códigos de posturas
Municipais, artigo que proibia os escravos de vender mercadorias e de alugar casas.

Art. 105. Ninguém poderá alugar casas para nelas morarem


escravos, sem que obtenhão licença por escripto de seus
senhores, sob pena de incorrer o infractor na multa de dez mil
réis, ou quatro dias de prisão.
Art. 106. Os escravos que forem encontrados de noite desde o
toque de recolher até o d‟ alvorada, a mandado, e assignado
com declaração do nome do escravo, ou sem laterna, facho, ou
archote, seráõ conduzidos debaixo de prisão á presença da
autoridade competente e os senhores incorreráõ na multa de
dois mil réis ou hum dia de prisão. (Fonte: Coleção das leis da
província do Gran-Pará, tomox, 1848 (1ª parte), capitulo 12, art.
105, 106, p. 73)

A legislação que regulamentou a atividade de ganho na cidade de Belém foi o


código de posturas municipais, do ano de 1848, retificado e estabelecido novamente
em 9 de abril de 1851, especialmente nos artigos 105 e 106. No artigo 105, do
vigésimo segundo capitulo: “Dos jogos proibidos e escravo”, era proibido alugar casa
para escravos, salvo se estes tivessem licença dos seus senhores, e que alugasse
casa para escravos sem licença podiam ser multados em dez mil réis, ou em quatro
dias de prisão. Já no artigo 106, proibia os escravos de permanecerem nas ruas após
o toque de recolher, e se fossem pegos sem bilhete de licença assinado pelos seus
senhores, contendo o nome escravo, eram levados para a prisão e seus senhores
multados em dois mil réis, ou ainda passavam um dia na prisão. Na figura abaixo,
podemos observar os artigos que tratam da proibição.

A atividade de ganho era regulamentada em leis e códigos, mais também no


Regulamento do Mercado Público no artigo 54 – ―não serão admitidos prêtos<sic> de

111
ganho demorado dentro da praça, e os escravos que ali forem mandados por seus
senhores fazer compra não deveram demorar-se além do tempo necessário para
efetuá-las” (C.L.P.G.P., t. 24, parte 2.). Não somente os escravos que iam realizar as
comprar estavam sobre o controle das autoridades, os escravos que eram
compradores também eram vigiados e controlados pelo estado.

A circulação de escravos e escravas nas ruas de Belém, preocupavam as


autoridades que tinham por objetivo limitar os espaços de circulação, ocupação e
autonomia dos cativos. Umas das medidas tomadas foram as leis que proibiam os
escravos de permanecerem na rua, uma vez que as autoridades temiam o
―ajuntamento‖, principalmente dos escravos. A explicação se encontra, na memória,
pois a Cabanagem ocorrida anos antes, ainda trazia lembranças recentes na memória
da elite, da mesma forma que poderia alimentar as ideias entre a população cativa.

Desse modo, a dita ―liberdade‖, dos trabalhadores cativos de Belém, não


estava restringida das limitações. ―Moradia, jornada de trabalho, mobilidade,
vestimenta, conversas de esquinas despretensiosas ou não, acesso a bebidas,
determinadas atividades laborais, tudo isso era controlado quando os sujeitos
envolvidos eram os escravos‖. (PALHA, 2001, p. 119). Em suma podemos observar
que as referidas leis que proibiam os ajuntamentos tratavam, ao mesmo tempo, da
regulamentação de algumas atividades na cidade, por mais que estas tivessem um
tempo para serem efetuadas, a exemplo a venda e a compra, eram regularizadas
pelas mesmas leis que proibiam a permanência deste após o toque de recolhida.

Considerações finais

Durante este trabalho evidenciou a presença marcante da escrava feminina


na cidade de Belém, principalmente no período pós cabanagem quando se intensifica
o número da presença escrava nos anúncios dos periódicos de maior circulação no
Grão-Pará, durante esse período pode observar que as escravas de ganho, eram
anunciadas constantemente em diversas modalidades, desde do aluguel, venda e até
compra, exibiam-se nos anúncios as suas funções elogios as qualidades, idade, nome
do vendedor ou do comprador, e a rua onde morava o negociante. Constatei ainda,
através destes anúncios, as funções nas quais as escravas eram empregadas, que na
maioria das vezes não se limitava a único tipo de trabalho, principalmente quando
eram destinadas ao serviço da casa, realizavam diversas atividades que iam desde
dos serviços da casa a lavagem de roupas, e em alguns casos, entravam a noite para
realizar suas vendas de ganho, e durante esse trajeto que realizavam pelas ruas,
possuíam certas mobilidades, por mais que fossem vigiadas pelas autoridades e

112
controladas pelas Leis e pelos Códigos de postura que regulamentavam a sua
presença na rua e no mercado, elas não deixaram de traçar esses laços de
relacionamentos e sociabilidades.

Essa perspectiva da história das mulheres entrelaçada com a história da


escravidão foi possível devido aos estudos de gêneros e da história social da
escravidão dos anos de 1980, que passou a estudar o processo da escravidão a partir
da visão dos próprios escravizados, enquanto ao gênero possibilitou trazer o olhar a
própria subjetividade para história das mulheres negras. Concluo então que pretendo
contribuir para a história da escravidão e principalmente para a historiografia das
mulheres negras na Amazônia durante os anos de 1840-1860.

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(1845 a 1849), Gazeta Official (1859), O Planeta (1849,1859, 1851), Treze de Maio
(1840-1842) e O publicador Paraense (1849)

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Sousa Franco, presidente da Província do Pará quando abriu a Assembleia Legislativa
Provincial no dia 15 de agosto de 1839. Pará, Typ. De Santos & menor, 1839.

Falla dirigida pelo exmo. Sr. Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, presidente da
Província do Gran-Pará, a Assembleia Legislativa Provincial na abertura da sessão da
sexta legislatura no dia 1º de outubro de 1848. Pará, Typ. De Santos & filhos, 1848.

Legislação Provincial: Coleção das Leis da Província do Gram Pará, tomox, 1848 (1ª
parte), artigo 105 e Regulamento do mercado público, artigo 54.

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114
V ENCONTRO AMAZÔNICO SOBRE MULHERES E GÊNEROS – GEPEM
19 a 21 de novembro de 2019
Universidade Federal do Pará (UFPA)
AT1 - Gênero, identidade e cultura

TELENOVELAS, GÊNERO, INTERSECCIONALIDADE E RELAÇÕES DE PODER: ANÁLISE DAS


1
REPRESENTAÇÕES SOBRE TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NA TV GLOBO

https://doi.org/10.29327/527231.5-8

2
Lorena Esteves
3
Camila Leal
4
Danila Cal
Universidade Federal do Pará

Resumo

Investigamos as representações de trabalhadoras domésticas em telenovelas da TV Globo, antes e após a


promulgação da PEC das Domésticas (66/2012). Analisamos as novelas “Avenida Brasil” (2012), “A
regra do Jogo” (2015) e “A Dona do Pedaço” (2019), identificando como são construídas as personagens
das trabalhadoras, os contextos sociais, bem como, as relações de poder e questões interseccionais,
considerando que as novelas são centrais na tematização das realidades socioculturais brasileiras
(HAMBURGUER, 2011). Como aporte teórico, trabalhamos com mídia, gênero e classe (BIROLI;
MIGUEL, 2015), interseccionalidade (HOOKS, 2015; DAVIS, 2016; CRENSHAW, 2004) e a situação
da mulher na sociedade brasileira (GONZALEZ, 1984; CARNEIRO, 2015). Os resultados apontam para a
reprodução de estereótipos, invisibilidade interseccional e tensionamentos nas relações de poder entre
patrões e trabalhadoras.

Palavras-chave: Telenovelas; Gênero; Interseccionalidade; Relações de Poder; Trabalhadoras


Domésticas.

Este trabalho possui o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ, por
meio do projeto de pesquisa “Mídia, debate público e negociação de sentidos sobre o trabalho doméstico” e da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, por meio de bolsa auxílio de demanda
social.
2
Doutoranda do Curso de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia, da Universidade Federal do Pará
(PPGCOM/UFPA), bolsista Capes. Integrante do grupo de pesquisa Comunicação, Política e Amazônia (Compoa) e
do grupo de pesquisa Observatório de Comunicação, Culturas e Resistências na Pan-Amazônia. Email:
estevesjornalismo@gmail.com.
3
Estudante do curso de Comunicação Social, Jornalismo, da Universidade Federal do Pará (UFPA), bolsista do
Projeto de pesquisa “Mídia, debate público e negociação de sentidos sobre o trabalho doméstico”. Integrante do
grupo de pesquisa Comunicação, Política e Amazônia (Compoa). Email: leal.jornal@gmail.com.
4
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM) e da Faculdade de
Comunicação (FACOM), da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do grupo de pesquisa Comunicação,
Política e Amazônia (Compoa) e membro do grupo de pesquisa Observatório de Comunicação, Culturas e
Resistências na Pan-Amazônia. Email: danilagentilcal23@gmail.com.

115
Abstract

We investigated the representations of domestic workers in soap operas by TV Globo, before and after the
promulgation of PEC Households (66/2012).We analyzed the soap operas “Avenida Brasil” (2012), “A
Regra do Jogo” (2015) and “A dona do pedaço” (2019), identifying how the domestic workers are built,
the social contexts, as well as the relationships of power and intersectional issues, considering that soap
operas are central in the thematization of Brazilian sociocultural realities (HAMBURGUER, 2011). As a
theoretical contribution, we work with media, gender and class (BIROLI; MIGUEL, 2015),
intersectionality (HOOKS, 1984, 2015; DAVIS, 2016; CREENSHAW, 2004) and the situation of women
in Brazilian society (GONZALEZ, 1984; CARNEIRO, 2015). The results point to the reproduction of
stereotypes, intersectional invisibility and tensions in the power relations between bosses and workers.

Keywords: Soap operas; Gender; Intersectionality; Power relations; Domestic workers.

Introdução

A PEC das Domésticas (PEC 66/2012) foi resultado da árdua luta e reivindicação de um grupo
subalternizado desde o Brasil-Colônia: as mulheres, sobretudo, mulheres negras. Segundo dados da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2015, 88,7% das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os)
entre 10 e 17 anos no Brasil eram meninas e 71% eram negras(os). Em 2016, o Brasil tinha 6,158 milhões
5
de trabalhadoras(es) domésticas(os), dos quais 92% eram mulheres . Até chegar a sua forma definitiva em
2016, garantindo todos os direitos previstos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que desde
sua consolidação em 1943 exclui a classe trabalhadora doméstica, foi um longo caminho de lutas por
reivindicações mínimas de direitos, como por exemplo o direito ao aviso prévio, depois de um período de
prova de seis meses, instituído pelo decreto- lei n°3.075 de 27 de fevereiro e 1941 (PALUDETTO, 2017,
p.151).
Uns dos marcos da reivindicação foi a Lei n° 5.859 de 1972 que reconheceu o trabalho
doméstico como função e estabeleceu a assinatura da carteira profissional para a categoria e também a
Constituição Brasileira de 1988 que trouxe benefícios como assegurar aos (às) trabalhadores(as)
domésticos(as) o direito a salário mínimo, 13º salário, repouso semanal remunerado, férias, licença
maternidade e aposentadoria. Mas só recentemente Com a Lei Complementar 150/2015, foi possível
chegar à uma equiparação entre as demais categorias (PALUDETTO, 2017, p. 182) validada em 2016
pela presidenta Dilma Rousseff.
Ainda que no papel tudo esteja regulamentado, no cotidiano a realidade é outra. Segundo a OIT,
no Brasil apenas um terço das trabalhadoras(es) domésticas(os) possuem carteira assinada. A relutância

5
Disponível em: PNAD Contínua Trimestral do IBGE. Organização internacional do trabalho.
<https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-domestico/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 08 Nov 2019.

116
na garantia de direitos para um grupo majoritariamente feminino que tem como profissão o trabalho
doméstico, visto também como trabalho feminino e que se consolidou sob a base de um pensamento
escravocrata e a insistente subalternização sob a qual esse grupo ainda é colocado mostra a necessidade da
discussão sob a perspectiva de gênero e sobretudo racial, que edifica seu sistema político brasileiro a
partir de um pensamento machista e eurocêntrico, colocando o homem superior à mulher e o branco
superior ao negro.

A trabalhadora doméstica na sociedade brasileira

Para compreender a condição da mulher trabalhadora na sociedade brasileira, é necessário


entender o processo de colonização do território, baseado na exploração de recursos, racialização,
escravização e construído, segundo a pesquisadora dominicana Ochy Curiel (2007), com base na
homogeneização, a partir de uma perspectiva eurocêntrica, ou seja, adotando um padrão de cultura
eurocêntrico, patriarcal e generificado.
Para justificar esse processo, criou-se uma ideologia da mestiçagem que propunha a reprodução
“entre raças” com o objetivo de “melhorar a raça” (CURIEL, 2007). Porém, para Curiel (2007), esse
discurso de suposta democracia racial que muitos intelectuais instalaram como matriz civilizatória, tem
sido uma ideologia de dominação para manter as desigualdades entre brancos, indígenas e negros/as,
mesmo após a descolonização do Brasil.
De acordo com Curiel (2007), a ideologia da mestiçagem se criou com base na exploração e
violação de mulheres indígenas e negras, o que a intelectual negra brasileira, Lelia Gonzalez, chamou de
estupro colonial, por meio do qual as mulheres negras e indígenas foram objetificadas e escravizadas para
satisfazer o apetite sexual dos homens brancos e assegurar a “mistura das raças”, em uma política de
branqueamento.
As heranças do colonialismo e da escravização - o sexismo, o patriarcalismo, o racismo e o
capitalismo em suas formas atualizadas - repercutem estruturalmente nas relações sociais e instituições,
permanecendo no cotidiano da sociedade brasileira (CARNEIRO, 2011). Esse processo histórico nos
ajuda a compreender as bases das desigualdades de gênero, raça e classe.
Segundo Biroli e Miguel (2015), “o sexismo, atualizado cotidianamente na forma da divisão
sexual do trabalho e da dupla moral sexual, impacta as mulheres, mas as impacta de formas diferentes, em
graus variáveis e com efeitos que precisam ser analisados contextualmente” (p. 40). As identidades de
raça e classe são fatores fundamentais que demarcam as diferenças “em qualidade de vida, status social e

117
estilo de vida que prevalecem sobre a experiência comum que as mulheres partilham” (HOOKS, 1984, p.
4).
Em outras palavras, a opressão de gênero é comum a todas as mulheres, mas na conjugação com
as intersecções de raça e classe, são produzidas hierarquias que colocam mulheres negras em posição de
maior desvantagem (SAFFIOTI, 1987; CARNEIRO, 2011; GONZALEZ, 1984). O trabalho doméstico é
um caso exemplar da conjugação da discriminação interseccional: a força de trabalho é recrutada entre
mulheres, as quais geralmente provêm daquelas camadas mais pobres e com índices menores de
escolaridade, características sobrepostas por uma forte marca de racialização (BRITES, 2013, p. 428).
Lélia Gonzalez (1984), ao falar, na década de 1980, sobre o lugar da mulher negra na cultura
brasileira, identifica três representações, oriundas do processo de escravização/colonização: a mulata, a
doméstica e a mãe-preta. Lelia explica que o mito da democracia racial exerce sua violência simbólica de
forma especial sobre a mulher negra. Ela explica que no período do carnaval, a mulher negra transforma-
se na mulata “rainha do samba”, “deusa da Marquês de Sapucaí”, fora desse período é a doméstica. A
mulata e a doméstica são figuras provenientes da mucama (a escrava que era vista como prestadora de
bens e serviços, entre eles, os sexuais).
“Quanto à doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e
serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas. Daí ela ser o lado
oposto da exaltação; porque está no cotidiano” (GONZALEZ, 1984, p. 230). A outra figura da negra na
sociedade brasileira é a mãe-preta, vista pelos brancos como exemplo de amor incondicional pelos filhos
das mulheres brancas. Lélia, no entanto, afirma que elas são simplesmente as mães, afinal, são elas que
dão banho, limpam cocô, colocam pra dormir, ensinam a falar e a outra é a branca que pariu os filhos do
senhor. A mãe-preta, portanto, passou os seus valores para a criança brasileira e essa criança é a dita
cultura brasileira que, segundo a autora, fala o “pretuguês”.
Essa sociedade brasileira vive, segundo Gonzalez (1984), uma neurose cultural, neurose porque
nega os sintomas do racismo e do sexismo, acreditando em uma suposta democracia racial e, com isso,
nega aos negros - a mulher, seus irmãos, pai e filhos - o estatuto de “sujeito humano”, trata-os como
objeto e isso repercute em todos os âmbitos sociais, são alijadas/os de sua intelectualidade, desrespeitados
em seus direitos básicos, segregados socialmente por uma divisão racial dos espaços.
Lelia afirma que desde a época colonial até os dias de hoje, há uma evidente separação dos
espaços físicos entre brancas/os e negras/os. O lugar do grupo branco são moradias saudáveis, situadas
em belos recantos da cidade ou do campo, cercadas por policiamento. Já o lugar do negro é o oposto: da
senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais”, os quais também têm a
presença de policiamento, mas, no intuito de reprimir e amedrontar (1984, p. 232).

118
O lugar ocupado pelas trabalhadoras domésticas reflete essa lógica. Estudos do arquiteto e
antropólogo Alecsandro Ratts (2003, citando Lemos, 1976) demonstram que os porões semi-habitáveis,
as dispensas e as cozinhas eram os espaços nos quais as mulheres trabalhadoras domésticas dormiam.
Ratts também fala do surgimento das edículas, casas pequenas, construídas no fundo da casa principal
destinadas às empregadas no período pós-abolição.
comum observarmos que essas lógicas se reproduzem por meio da mídia. “Nas novelas, nas
peças de teatro, as trabalhadoras domésticas são, quase sempre, representadas por atrizes negras”
(SAFFIOTI, 1987, p. 53). A propaganda também contribui para perpetuar estereótipos sobre as mulheres
pobres e racializadas (CRENSHAW, 2002, p. 178).
Contextualizando a telenovela como representação e construção da sociedade,

A telenovela, ao mesmo tempo que se trata do principal fenômeno social e


elemento central na construção do cenário de representação política, também
articula esta dimensão política ao cotidiano, pois trata-se de uma história
ficcional centrada em tramas do cotidiano das personagens. As
identificações/projeções que o público constrói a partir das personagens/valores
apresentados pelas telenovelas implica na absorção de modelos de
comportamentos políticos e posturas em relação aos conflitos propostos pelas
telenovelas. No caso das relações raciais, a telenovela, longe de negar a
existência do racismo, apresenta diversos modelos de comportamento – que
implica em formas de absorção, enfrentamento e transcendência” (OLIVEIRA,
PAVAN, 2004, p.07).

Não obstante o fato de que muitos temas de importância social podem aparecer como pano de
fundo de diversos enredos ficcionais, muitas vezes, não há a “tentativa de enfrentamento de determinada
questão”, O tema de importância social serve apenas como recurso dramático, como aspecto de
composição de um dos personagens, não há “qualquer tentativa de evidenciar e trabalhar tal tema na
dimensão social” (OLIVEIRA, PAVAN, 2004, p. 10).
Com base no exposto, escolhemos analisar as novelas “Avenida Brasil” (2012), “A regra do
Jogo” (2015) e “A Dona do Pedaço” (2019), identificando como são construídas as personagens das
trabalhadoras, os contextos sociais, bem como, as relações de poder e questões interseccionais,
considerando que as novelas são centrais na tematização das realidades socioculturais brasileiras.

Objetos analisados: novelas Avenida Brasil, A Regra do Jogo e A Dona do Pedaço

Sabendo que o trabalho doméstico no Brasil é um retrato do sistema político brasileiro, surge
então o objetivo deste trabalho: Analisar as relações de poder, interseccionais e raciais que perpassam a

119
questão do trabalho doméstico nas telenovelas brasileiras a fim de identificar como se dá o debate a
respeito do trabalho doméstico em períodos distintos e decisivos na reivindicação dessa classe
trabalhadora, sabendo que as telenovelas, como tantos autores relatam (FARIA; FERNANDES, 2007;
MOTTER; JAKUBAZKO, 2007; RONDELLI,1997; OLIVEIRA; PAVAN, 2004; BORGES,2007;
LOPES, 2002; HAMBURGER, 2011), são um retrato sociocultural brasileiro e também contribuinte para
a construção de novas realidades.
Para tanto, vamos partir da metodologia da ingenuidade consentida, proposta por Motter e
Jakubaszko (2007), que consiste em pensar, sentir e ver a telenovela pela perspectiva do telespectador-
observador, como num processo de pesquisa da observação participante (p. 57).
Foi feita a análise das três novelas da Rede Globo, por ser a campeã de audiência televisiva,
estando elas situadas nos seguintes períodos históricos brasileiros, relacionados à PEC: “Avenida Brasil”,
quando iniciou o debate a respeito da PEC das Domésticas (66/2012); “A Regra do Jogo”, de 2015,
quando a discussão sobre trabalho doméstico estava em alta, com a Lei complementar 150 e “A Dona do
Pedaço”, de 2019, por ser a mais atual e num período posterior a discussão das domésticas.
Para termos entendimento maior a respeito das personagens, além das descrições das novelas
catalogadas nos sites Memória Globo, Gshow e Teledramaturgia, Analisamos as cenas das empregadas
disponiveis no Globo Play, site que disponibiliza as obras produzidas pela Globo, dentre outras. A busca
foi feita a partir das palavras-chave: “Nome da empregada - Novela”, onde conseguimos catalogar e
assistir 26 cenas de a Dona do Pedaço; 45 cenas de Avenida Brasil; 13 cenas de A Regra do Jogo. Além
do Globo Play procuramos também no Youtube.

Enredo das novelas

Avenida Brasil (2012) conta a história de uma jovem que, desde os 11 anos, planeja um acerto de
contas com a madrasta. Rita, órfã de mãe, era criada, com muito amor, pelo pai Genésio. Tudo muda
quando ele se casa com Carmen Lúcia, a Carminha, uma mulher ambiciosa e dissimulada. Com Genésio,
6
ela se passava por esposa doce e dedicada; com Rita, era uma madrasta má .
A Regra do Jogo (2015) narra a história de Romero Rômulo, um bandido que finge ser herói do
povo. Ele integra a maior facção criminosa do país. Apesar de enganar as pessoas, o mau-caráter é
ludibriado por Atena estelionatária com quem vive um relacionamento conturbado. A trama gira em torno

6
Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/avenida-brasil.htm>. Acesso em:
09/11/2019.

120
de um crime não solucionado, uma chacina, que envolve todo o elenco principal. Os efeitos da chacina
7
movem a trama que também fala de virgindade, traição e violência doméstica .
Em A Dona do Pedaço (2019) Maria da Paz vem de uma família de justiceiros profissionais, os
Ramirez, da cidade de Rio Vermelho, Espírito Santo. Desde pequena ela gosta de fazer bolos, essa rotina
a seduz mais do que as atividades impostas pelo pai, Ademir, que quer transformá-la em uma justiceira.
Ela acaba se apaixonando por Amadeu, advogado formado em Vitória, porém membro do clã rival nos
negócios dos Ramirez, os Matheus. Seu romance é impedido pelas famílias que não aceitam e provocam
uma tragédia que acaba com o casal impedido de ficar juntos e as sobrinhas de Maria sequestradas. Ela
começa uma nova vida com a promessa de reencontrar as sobrinhas e grávida de sua filha Josiane, que
8
diferente da mãe tem um caráter duvidoso .

Categorias de Análise

Objetivando identificar como se deu a trama em torno das empregadas das novelas, possíveis
estereótipos de gênero, raça e classe que colocassem as trabalhadoras domésticas em posições de
subalternidades, foram analisadas as personagens Zezé e Janaína, Avenida Brasil; Dinorah e Conceição,
de A regra do Jogo; e Edilene, A Dona do Pedaço sob as categorias : a) A construção das personagens,
para identificar quem são, onde moram, qual a história dessas personagens; b) Interseccionalidade, para
identificar como são abordados os sistemas discriminatórios que criam desigualdades que estruturam as
posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes; c) Relações de Poder, para identificar as tensões
entre empregadas e patrões e de que maneira se dá, qual discurso é reproduzido nas novelas.

7
Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/a-regra-do-jogo.htm>. Acesso em:
09/11//2019
Disponível em: <http://teledramaturgia.com.br/a-dona-do-pedaco/>. Acesso: 09/11/2019.

121
Quadro 1 - Imagem das personagens analisadas
Janaína e Zezé - Avenida Brasil Dinorah - A regra do jogo

Conceição - A regra do jogo Edilene - A dona do Pedaço

Fonte: Gshow.com.

A construção das personagens


A partir das informações coletadas nos sites memória Globo e Teledramaturgia e, com base nas
sequências das cenas observadas no Globo Play, foi possível elaborar um resumo das personagens, com
mais detalhes da história de cada uma: Zezé, Janaína, Edilene e Dinorah, porém não foi possível
identificar maiores características sobre a história de Conceição, por não ter grande participação na trama.

122
Janaína (Avenida Brasil) trabalha na casa de Tufão há anos na esperança de dar um futuro melhor
para o seu filho, Lúcio, aguentando, inclusive, os maus tratos de Carminha. Porém, tudo muda quando
descobre que a patroa seduziu seu filho e o está utilizando para acobertar seus crimes.
Zezé (Avenida Brasil) é a outra empregada da mansão de Tufão. É muito fiel a sua patroa
Carminha, embora a trate mal na maioria das vezes, criticando os seus serviços. A participação de sua
personagem na novela se resume ao que a família de Tufão está fazendo ao longo da novela. Ela serve de
ponte para o drama principal. Costuma fazer o sinal da cruz e pedir ajuda a Deus quando a patroa está de
mal humor. Inclusive, Carminha já chegou a mandar a doméstica ir fazer as compras rolando, em
referência ao sobrepeso de Zezé.
Zezé e Janaína estão juntas na maioria das cenas. Vivem falando da vida dos patrões. Janaína é
fofoqueira assim como Zezé, contudo possui sua própria história, seu amor por Lúcio, seu filho e o medo
de que ele acabe se desvirtuando, principalmente a partir do momento em que se apaixona por Carminha.
Ao final da novela Zezé continua trabalhando para a família e Janaína vai embora com o filho Lúcio.
Dinorah (A regra do jogo) é a empregada de Feliciano e trabalha na cobertura do patrão há anos
sem ser paga. É a empregada que destoa das outras já analisadas. Por não ser paga, Dinorah age como
qualquer outro membro da família, senta e assiste tv, dá sua opinião sobre a vida dos patrões e é bastante
debochada. Não usa farda. A relação entre ela e Feliciano é outro fator interessante, porque ambos
demonstram ter um carinho muito grande um pelo outro. Ela faz questão de fazer as coisas para ele e ele a
trata de maneira carinhosa, chamando-a de querida, várias cenas mostram os dois jogando baralho,
xadrez, enquanto conversam.
A história de Dinorah se passa toda entre o núcleo familiar dos patrões e o ponto alto da sua
trajetória é quando finalmente o patrão paga os salários atrasados. Mesmo ficando rica, ela prefere
continuar a ser empregada. Foi a única novela que retratou de maneira bem aberta a importância e os
direitos e benefícios que as empregadas têm assim como qualquer outro trabalhador de carteira assinada.
Apesar do papel, Dinorah não chega nem a ser citada entre os personagens no portal memória globo.
Conceição (A regra do jogo) é a empregada da mansão Stewart. É casada com Nonato, o
motorista da família para quem trabalha. Descobre que ele teve um caso com uma das patroas, mas
perdoa. Aparece pouco na trama, por isso não foi possível identificar muito a respeito da trabalhadora.
Diferente de Dinorah, que tinha seu núcleo fixo e aparecia na maioria dos episódios, seu ponto alto de
participação na novela é quando revela que seu marido é pai dos filhos da patroa, porque a patroa está a
ponto de se casar. Aparentemente, ela não podia contar, porque estava sendo chantageada pelo noivo da
patroa. Ela é branca e usa uniforme.

123
Edilene (A dona do Pedaço) é uma jovem pobre filha do motorista Cosme, que trabalha na casa
de Otávio e Beatriz, uma família rica. Ela teve a oportunidade de trabalhar como empregada na casa dos
patrões do pai, que fica emocionado por ter a filha perto de si. Porém Otávio, velho rico que figura a
imagem do homem mulherengo, fica interessado pela beleza da jovem de 21 anos e começa a trocar
olhares com ela. No início, ela fica receosa, mas acaba cedendo e se torna amante do patrão. Ela gosta
dele, mas mais que isso, vê nele uma oportunidade de deixar de ser pobre e mudar de vida. Acredita que
dar um filho para ele o fará largar a esposa e ficar com ela. Ela sempre encontra com ele em motéis e
enquanto ele toma banho fura as camisinhas. Até que fica grávida. Quando conta para ele não recebe a
reação que esperava, ele exige que ela aborte o bebê e ela chora dizendo que não quer, mas acaba
cedendo. Depois de pedir indicação à uma amiga, vai a uma clínica clandestina, sofre hemorragia e morre
no hospital. Seu patrão esconde de todos sua participação na morte da moça.
Para visualizar a importância das personagens na trama, tentamos identificar o caráter pedagógico das

telenovelas proposto por (LAROSSA, 1999) e discutido por (MOTTER; JAKUBASZKO, 2007).

Ora, se a telenovela é mais um dentre os diversos discursos que povoam a


realidade e se ela, enquanto gênero, apóia-se no cotidiano, deve-se lembrar que,
como este, ela desdobra-se em múltiplos discursos. O que mais interessa neste
momento é o discurso de caráter pedagógico. Entretanto, faz uma ressalva, uma
distinção entre dois tipos possíveis de encarnação do logos pedagógico. O
primeiro seria aquele que convida o leitor à reflexão. Quando o diálogo é um
convite ao pensar, leva o leitor a uma experiência, uma vivência, que se realiza
em última instância como aprendizagem e transformação. O segundo, ao
contrário, assume uma forma monológica, unívoca e dogmática, de maneira a
fechar qualquer possibilidade de reflexão, portanto, de transformação
(MOTTER; JAKUBASZKO, 2007, p. 58).

A partir desse caráter pedagógico, é possível visualizar que a personagem Edilene, leva à reflexão
sobre o tema “aborto” e Dinorah o tema dos “direitos trabalhistas das domésticas”, mas esses temas são
trabalhados na novela a base de reprodução de estereótipos de raça e classe e gênero, que pouco são
trabalhados como temas centrais. Por exemplo, trabalhar a questão racial entre Zezé e Carminha
implicaria numa mudança da personagem Zezé e o enfrentamento da empregada com Carminha, pela
forma como a patroa a trata, mas isso não acontece em nenhum momento da novela.
Ao observar as personagens e suas histórias, de forma geral, pode-se compreender que a vida
delas geralmente gira em torno da trama dos patrões. A personagem Dinorah, por exemplo, tem sua
trajetória de vida invisibilizada, parece não ter família, nem amigos, o mesmo acontece com Zezé.
Quando ganham destaque, há algum fato ligado à história dos patrões. Ou seja, elas não têm história
própria, vivem em função dos personagens principais.

124
Quanto às questões de direitos, há invisibilização da temática nos discursos das novelas. A
temática é abordada num único episódio de A Regra do Jogo, com Dinorah em que seu chefe finalmente
paga seus salários atrasados, explicando ao que equivale cada pacote. Feliciano está no quarto da
empregada com pacotes de dinheiro na mão e diz, “Então aqui está: 2002, esse é o décimo terceiro de
2003, 2004, 2005, 2006. Tá tudo aqui. Agora tem as férias atrasadas de cinco anos, quatro anos! 2007,
2008, 2009, 2010. Isso aqui é férias, não confunde. E aqui tem as horas extras que eu não te pago há tanto
tempo. Você pode conferir que estão todos os recibinhos aqui”, diz Feliciano. Dinorah emocionada
responde, “Não precisa de hora extra não seu Feliciano!”. Ele diz, “Claro que precisa, pelo amor de Deus.
Depois você vai me processar porque a lei das domésticas manda pagar as horas extras.Agora, presta
atenção que aqui eu retirei do banco só para você vê que o dinheiro existe. Ficou com o olho arregalado,
sabe o que é que é? Isso tudo aqui é fundo de garantia. Agora isso vai ficar comigo, porque eu vou
depositar no banco, fica tranquila. E agora tem uma coisinha aqui é o mais importante. Teu salário
atrasado de todos os anos que você trabalhou aqui em casa. Tá tudo contado.
Em momentos pontuais, o assunto é tratado na novela A dona do Pedaço, sem grandes
tensionamentos, como no caso da patroa de Edilene (Avenida Brasil) que fala que seus empregados tem
um bom convênio, devido ao fato de Edilene estar passando mal. E em outro momento o pai de Edilene
questiona que ela tem trabalhado muito, mas ela responde dizendo que a patroa paga hora extra. O tema
não é tratado em Avenida Brasil. Atrelamos a discussão sobre o trabalho doméstico na novela “A regra do
Jogo” à grande repercussão da discussão do tema em pauta no ano de 2015 e 2016, como pode ser visto
no quadro:

Quadro 2 - Dados gerais das novelas analisadas e repercussão da PEC no período


Novela Direção Ano Repercussão da PEC no período

Avenida Brasil João Emanuel 26/03/2012 Emenda Constitucional nº 66/2012 - Altera a redação do
Carneiro - parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal para
20/10/2012 estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os
trabalhadores domésticos e demais trabalhadores urbanos e
rurais.

A regra do Jogo João Emanuel 31/08/2015 Lei Complementar 150 -Dispõe sobre o contrato de
Carneiro - trabalho doméstico. Alguns benefícios : Adicional noturno,
12/03/2016 FGTS, Indenização em caso de dispensa sem justa causa,
seguro - desemprego, salário - família, auxílio creche e pré
escola, seguro contra acidentes de trabalho.

125
A dona do Pedaço Walcyr 20/05/2019 Sem discussão
Carrasco -
Presente
Fonte: Autoria Própria.

partir da análise, percebe - se que não há entre as personagens o que Motter e Jakubasko (2007)
chamam de “tematização”, que seria “quando uma telenovela tematiza uma questão de importância social,
quer dizer que ela assume a discussão de determinado tema de modo frontal, ocupando ele grande espaço
e importância dentro da trama; torna-se, durante toda a telenovela, ou em grande parte dela, o foco
central. Nesta categoria podemos ter certeza da existência de uma temática dentro da ficção. Às vezes
pode estar numa trama secundária, mas percorre toda a duração da narrativa, sendo discutido com
propriedade pelo autor” (2007, p. 61).
As novelas não assumem caráter pedagógico em relação às empregadas, com exceção de Edilene
e o tema do aborto. As personagens são secundárias, destituídas de uma discussão mais profunda a
respeito de suas posições na sociedade e identidades enquanto mulheres e mulheres negras,
principalmente enquanto trabalhadoras domésticas, trabalho que deixa aparente as distinções de classe,
raça e gênero continuamente perpetuadas nas novelas, que quase sempre às colocam numa posição de
subserviência aos patrões e patroas e não as tratam como indivíduos com vida e histórias próprias que vão
para além da casa dos patrões.

Interseccionalidade

Para não corrermos o risco de trabalhar de forma monocategorial, com a categoria genérica de
mulher e homogeneizar diferentes experiências, ou mais arriscado ainda, tomar como referência as
mulheres brancas e ocidentais, utilizamos a interseccionalidade como um dos critérios de análise.
Compreendemos que a discriminação contra as trabalhadoras domésticas, especialmente no Brasil, é
interseccional (HIRATA, 2016; BIROLI, MIGUEL, 2015; DANTAS, 2016). As experiências de
opressão, especialmente quando estamos falando de mulheres negras, não podem ser enquadradas
separadamente, ou seja, serem mutuamente exclusivas (GONZALEZ, 1984; DAVIS, 2016; HOOKS,
1984, 2015).
Segundo Kimberlè Crenshaw (2002), a interseccionalidade refere-se a associação de sistemas
múltiplos de subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a
opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as

126
posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. “Além disso, a interseccionalidade trata da
forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo
aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento” (p. 177).
As trabalhadoras domésticas sofrem o que Crenshaw (2002) denomina de discriminação
estrutural, pois são as mais afetadas pelas políticas governamentais, em decorrência da sua posição na
estrutura socioeconômica. Na ausência do Estado para atender as demandas de saúde e cuidado, são as
mulheres, sobretudo as negras, que se veem forçadas a assumirem serviços que deixam de ser prestados,
como o de cuidar de idosos, doentes e crianças.
Na análise das novelas, podemos observar que as questões de gênero, raça e classe se atravessam,
repercutindo estereótipos que recaem diretamente sobre as trabalhadoras domésticas. Todas são mulheres,
a maioria é negra e oriunda de classes menos abastadas, conforme quadro abaixo.

Quadro 3 - Marcas de interseccção das personagens


Cor
Personagem Uniforme
Branca Negra

Zezé x sim

Janaína x sim

Dinorah x não

Conceição x sim

Edilene x sim
Fonte: Dados da pesquisa.

Os estereótipos de gênero, raça e classe evidenciam-se fortemente na escolha das personagens,


todas mulheres, reproduzindo uma divisão sexual e racial do trabalho que, segundo Brites (2000) e Biroli
e Miguel (2015), é fruto de uma desigualdade ontológica entre homens e mulheres, ativando restrições e
desvantagens pautadas pela diferenciação sexual e racial.
A objetificação sexual é outro marcador de estereótipos encontrados, por exemplo na personagem
da Edilene que se relaciona com o patrão Otávio. Em diálogo, Otávio exige que Edilene interrompa a
gravidez, porque não quer destruir sua família e ela questiona o que vai ser na vida dele “uma
empregadinha que você transa todo dia?” (A dona do pedaço, episódio 14/06/19), reiterando a condição

127
histórica de mulheres, sobretudo as domésticas, como escravas sexuais, que estão sexualmente
disponíveis (GONZALEZ, 1984).
A temática do aborto, tratada em A dona do pedaço também é uma marcador de gênero, classe e
raça. Edilene engravida de Otávio, seu patrão, e ele a obriga a abortar, mobilizando o poder que exerce
sobre ela e seu corpo, como fica claro no capítulo em que ele diz que arranja um carro, um flet, uma boa
mesada para ela, mas ela recusa. Ele diz que depois que a Vivi [sua filha] casar, eles se resolvem, manda
ela “pegar” o dinheiro e “consertar a situação”. Ela diz “e se eu não quiser consertar?”, ele diz “eu vou
ficar muito bravo com você”, ela chora e diz que não quer tirar o filho, mas, acaba realizando o
procedimento e morre. A trama mostra que o aborto continua acontecendo, a partir das clínicas
clandestinas, e matando mulheres. A novela trouxe à tona a discussão da legalização do aborto, que é um
tema caro às militantes feministas, especialmente as negras, por defenderem que são as mulheres negras e
pobres as maiores vítimas de mortalidade em procedimentos clandestinos (CARNEIRO, 2003).
Sobre a questão racial, evidencia-se em vários momentos, a começar pelo fato de a maioria das
personagens ser negra (Zezé, Dinorah e Edilene),reproduzindo um estereótipo social que as subalterniza e
as coloca em condição de trabalhadoras braçais, alijadas de intelectualidade e restritas a serviços
considerados de menor valor, assim como, naturaliza a divisão sexual/racial do trabalho (GONZALEZ,
1984; CARNEIRO, 2003; DAVIS, 2016).
Dinorah (A regra do jogo) é um exemplo de reprodução de estereótipos sociais, pois, é uma
mulher negra que, apesar de não ser paga pelo patrão, um homem branco, se mantém submissa a ele,
chegando inclusive a dispor de recursos próprios para atender a regalias do patrão, como comidas e
bebidas caras. Apesar de ter condições econômicas, ela se mantém submissa ao trabalho, demonstrando
que aquele era o “lugar natural” daquele corpo negro ocupar, o papel de servir.
Em contraposição, todos os patrões, nas três novelas são brancos, reproduzindo um imaginário
social de superioridade branca, demarcando lugares sociais hierarquizados. Importante ressaltarmos neste
espaço que A regra do Jogo e Avenida Brasil são do autor João Emanuel Carneiro e A Dona do Pedaço,
de Walcir Carrasco. Os três autores são homens e brancos, um indício de falta de representatividade de
gênero, raça e classe em espaços de poder e tomadas de decisão, como são os ocupados pelos autores das
novelas e que se refletem na reprodução de estereótipos nos personagens.
A classe é uma categoria que emerge em diversas situações nas novelas, não no sentido do
enfrentamento de um imaginário social constituído, mas, mais uma vez reproduzindo estereótipos. Com
base na análise, algumas cenas entre as patroas e as empregadas também deixam clara a mensagem da
superioridade entre ricos e pobres. Por exemplo, quando Janaína (Avenida Brasil) passa a falar com
Carminha da mesma forma que a patroa fala com as empregadas, Carminha à desmoraliza e humilha por

128
sua posição, como se Janaína não fosse boa o bastante para que ela se desse ao trabalho de dar ouvidos ao
que a empregada estava falando.
Quanto à moradia, todas as personagens reproduzem o imaginário social do status de uma pessoa
de classe baixa. Zezé, Janaína e Conceição moram em bairros de periferias nas favelas e quando não estão
de uniformes, vestem roupas simples. Dinorah e Edilene moram na casa dos patrões onde possuem um
pequeno quarto para si. Enquanto seus patrões moram em mansões ou grandes casarões, como o caso dos
patrões de Edilene, Zezé, Janaína e Conceição e coberturas luxuosas como os patrões de Dinorah. Essa
distinção de espaços reitera a evidente separação dos espaços físicos entre brancos e pretos, ricos e pobres
(GONZALEZ, 1984), reafirmada pelas novelas que continuam naturalizando essas distinções de classe e
raça.
O uso do uniforme, marca de diferença e desigualdade em relação aos patrões (DANTAS, 2016),
foi utilizado por 4 das 5 personagens. O uniforme demarca que aquele corpo que circula pelos espaços da
casa não faz parte do cenário, é externo a ele, transita por entre os cômodos com a finalidade de estar em
serviço. Sinaliza uma diferença de classe social. “Marcadas pelo uniforme, pelo „quarto de empregada‟,
ou pelos espaços em que circulam e utilizam da casa percebemos a dinâmica do trabalho e a
desigualdades das trabalhadoras em relação aos patrões (DANTAS, 2016, p. 136-7).
Observa-se, com base neste critério, a reprodução de estereótipos e invisibilidade interseccional
(CRENSHAW, 2002), universalizando e naturalizando a divisão sexual/racial do trabalho doméstico, que
hierarquiza as relações sociais, entre ricos e pobres, homens e mulheres, negros e brancos,
subalternizando as mulheres que conjugam a intersecção das opressões.

c) Relações de Poder

Segundo Borges (2007), o uso dos meios de comunicação na modernidade tem possibilitado
novas formas de ação, interação e exercício do poder, trazendo implicações para a vida social e política
(p. 03). Sabendo que aos negros foram destinados, em sua grande maioria, papéis que representavam
posições subalternas ou consideradas de segunda classe pela sociedade, no que se refere a complexidade
dos personagens nas telenovelas (ARAÚJO, 2004; FARIA; FERNANDES, 2007, p.11), nesta categoria
buscamos identificar como se dão as relações de poder entre empregadas e patroas/patrões. Nesse sentido,
buscamos identificar se as novelas estão contribuindo para uma modificação das relações de poder entre
empregadas e patrões de maneira mais respeitosa e igualitária ou reproduzindo a relação de poder baseada
na desigualdade interseccional?

129
A partir das cenas das novelas, percebemos que em Avenida Brasil Carminha, a patroa, trata as
empregadas Zezé e Janaína em condições análogas às de escravizadas. Zezé, apesar de ser a mais fiel das
empregadas, é a que mais sofre maus tratos pela patroa, como em uma cena em que a empregada é
obrigada a pegar na tampa de uma panela quente, porque a patroa diz que não precisa de pano para pegar.
Mesmo sofrendo tantos maus tratos e escutando coisas terríveis, ela se mantém fiel à patroa, em posição
de submissão.
Janaína é branca e Zezé, negra, apesar de as duas serem pobres, fica perceptível como a história
de Janaína é mais desenvolvida. Quando não estão na casa dos patrões, Zezé bate a porta da casa de
Janaína para contar as fofocas e assim o público fica sabendo que Janaína também possui uma empregada
chamada Zumira, negra, que não usa uniforme e que é tratada da mesma forma como Carminha trata
Janaína, desferindo palavras grosseiras à doméstica. Porém, Zumira não aceita com passividade, rebate as
falas da patroa e fala com ela “de igual para igual”.
As cenas entre as duas, Zumira e Janaína, são tratadas como um dos alívios cômicos da novela.
Por trás do humor, a mensagem passada ao público é de que é hilário uma empregada ter outra
empregada, utilizando a estratégia da ridicularização para aliviar a temática (GONZALEZ, 1984). Além
disso, ainda que não possamos dizer que a intenção do roteirista foi dar destaque à personagem Janaína ou
que isso tenha relação com a cor, é perceptível o desenvolvimento da personagem ao longo da história,
que até mesmo passa a bater de frente com a patroa, enquanto Zezé permanece a empregada submissa e
maltratada pela patroa do início ao fim, até que Carminha seja desmascarada.
Em A Regra do Jogo, é possível perceber um comportamento diferenciado da empregada
Dinorah, que responde e trata de “igual para igual” os membros da família para quem trabalha, com
exceção de Feliciano por quem aparenta ter muito carinho. Faz tudo por ele, guarda sua comida e cuida de
suas roupas. À isso, atrelamos o fato de que Feliciano também a trata bem. Em dado momento porém,
Dinorah recebe seu dinheiro, o que a deixa rica, mas prefere continuar como empregada da casa por
carinho à família que enxerga como se fosse sua, refletindo relações comuns entre domésticas e patrões,
envoltas entre a contradição de tensão e afeto (BRITES, 2000; DANTAS, 2016).
Em a Dona do Pedaço, percebe-se que a família nutre um carinho muito grande por Cosme,
motorista da casa e pai de Edilene, a empregada. Em dado momento, se dispõem a custear uma bolsa de
estudos para a empregada, também pelo envolvimento com o patrão. Porém, vemos uma decaída com a
reprodução do estereótipo da mulher pobre inconformada com sua posição que tenta subir na vida às
custas de um relacionamento com um rico.
Após a análise das novelas, fica perceptível que se perpetuam a superioridade do rico sobre o pobre

nas três novelas no tratamento de Carminha com a empregada, na objetificação do corpo de Edilene

130
por Otávio e que recai também na questão da superioridade do branco sobre o negro, quando Dinorah
mesmo rica, decide continuar como a empregada da casa de Feliciano.
Segundo (OLIVEIRA; PAVAN, 2004, p.07) “ao avocar para si o espaço dos conflitos político-
ideológicos, a mídia se transforma no palco central das representações políticas, que apresentam várias
possibilidades interpelativas, mas uma delas se sobressai e se apresenta como hegemônica. A partir das
relações de poder analisadas, é perceptível a hegemonia branca e/ou elitista.
A característica de submissão é intrínseca às atitudes das personagens, elas aceitam maus tratos
ou ordens, sem questionar, como o caso de Janaína e Zezé com relação aos assédios de Carminha ou
Edilene que se submete a um procedimento de aborto por ordem do patrão Otávio. No entanto, em alguns
momentos, há sinais de resistência, como a Janaína que a partir de determinado momento da novela, não
aceita mais o tratamento de Carminha ou Conceição que revela que seu marido é pai dos filhos da patroa.
Fica óbvio também o maior desenvolvimento da empregada branca, que possui uma empregada negra e
perpetua até mesmo na classe média baixa o padrão de superioridade do branco sobre o negro. Aqui vê-se
também o que (CRENSHAW, 2002) chamou de subordinação estrutural:

Em decorrência da sua boa condição socioeconômica, algumas mulheres conseguem contratar


a mão-de-obra de outras mulheres para assumirem esses serviços de cuidados. As contratadas,
em geral, são mulheres economicamente marginalizadas, que, por essa razão, são também
socialmente marginalizadas, situadas na base da pirâmide socioeconômica. Essas mulheres
acabam trabalhando de 18 a 20 horas por dia, cuidando primeiramente de suas famílias e,
depois, das famílias e necessidades das patroas. É isso que eu chamo de subordinação
estrutural, a confluência entre gênero, classe, globalização e raça (CRENSHAW, 2002, p.14).

Em relação a sociabilidade, observa-se que as trabalhadoras domésticas “devido a essa intensa


convivência desenvolveram pelos donos das casas sentimentos de afeto, mas também de mágoa,
decorrentes dos arranjos aos quais estavam envoltas que, na prática, misturava relações de afeto e
trabalho” (DANTAS, 2016, p. 25). Como podemos observar na relação entre Dinorah, que poderia ter
mudado de vida, mas permaneceu com Feliciano; Zezé que mantinha-se fiel a patroa má e Edilene, que
recusou as ofertas de Otávio pelo sentimento que tinha por ele.

Considerações finais

Ao analisar as histórias nas três telenovelas, de forma geral, observamos que a construção das
personagens, bem como, suas relações sociais reproduzem estereótipos de gênero, raça e classe,

131
naturalizando uma divisão sexual e racial do trabalho que é fruto de uma desigualdade estrutural entre
homens e mulheres, especialmente em países com histórico de colonização como o Brasil.
A superioridade do rico sobre o pobre e do branco sobre o negro também é naturalizada e
algumas vezes ridicularizada, perpetuando preconceitos existentes no seio da sociedade brasileira. A
objetificação dos corpos das mulheres, vistos como disponíveis para o sexo ou para o trabalho é uma das
maiores críticas aos papéis desempenhados pelas trabalhadoras domésticas.
A ausência de tematização a respeito de questões importantes e que poderiam assumir destaque
nas tramas, é outra grave crítica às telenovelas, quando assumem pontualmente o caráter pedagógico em
relação às empregadas.
As personagens são secundárias, destituídas de uma discussão mais profunda a respeito de suas
posições na sociedade e identidades enquanto mulheres/negras, principalmente exercendo a função de
trabalhadoras domésticas. A vida delas geralmente gira em torno da trama dos patrões e só ganham
destaque quando há algum fato ligado à história dos patrões.
Quanto às relações de poder e de direitos, vê-se um avanço a respeito do cuidado com o qual as
empregadas são tratadas: em 2012, com Avenida Brasil, as empregadas foram tratadas como seres
inferiores, humilhadas e subalternizadas por sua patroa; em 2015, com A Regra do Jogo, Dinorah era
tratada com respeito por seu patrão, apesar de pouco se discutir a relação contraditória de tensão e afeto
entre eles; e em 2019, o tratamento dado aos empregados da casa também era respeitoso, levantando os
direitos trabalhistas de maneira positiva em momentos pontuais, apesar de haver tensionamento na relação
entre o patrão e a empregada.
Observamos que as telenovelas, apesar de possuírem o caráter de entretenimento, também
deveriam assumir o papel crítico e pedagógico de trazer à tona questões pertinentes ao cotidiano da
sociedade. No entanto, é necessário avançar muito nas discussões sobre o tratamento dispensado às
empregadas domésticas nas telenovelas para que revelem os tensionamentos sem naturalizar ou
reproduzir estereótipos, fomentando a reflexão e posterior, aprendizagem e transformação, principalmente
após a provação de a Lei que amplia e equipara os direitos das trabalhadoras domésticas.

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134
ENTRANDO NA RODA

RELAÇÕES DE GÊNERO NO MOVIMENTO CAPOEIRA MULHER EM


BELÉM-PA
https://doi.org/10.29327/527231.5-9
1
Luana de Nazaré Pinto Pena –
Universidade da Amazônia
2
Drª Rachel de Oliveira Abreu –
Universidade da Amazônia

RESUMO

A pesquisa analisa o papel das mulheres participantes do Movimento Capoeira


Mulher, e busca compreender as relações de gênero ali existentes. O movimento
foi idealizado para dar visibilidade à participação feminina na capoeira
do estado do Pará, visto que, desde sua formação existem disparidades entre
homens e mulheres no ambiente desta prática, como ausência de ―Mestras‖. A
pesquisa apresenta a arte cultural e o início da participação feminina na
capoeira belenense, apresentando as relações de gênero assimétricas nas rodas
e as relações de poder envolvidas neste universo, remontando a
trajetória do Movimento Capoeira Mulher e sua importância para construção de
representatividade feminina nas rodas de capoeira.

Palavras-Chaves: Gênero. Capoeira. Movimento.

ABSTRACT
This works analyzes the role of women in the Capoeira Mulher Movement, and
tries to understand and explain the gender relations existing there. The
movement was designed to give visibility to female participation in capoeira of
the state of Pará, Brazil, considering there are gender disparities between men
and women in the capoeira environment, as well as a lack of "Mestras" (female
master teachers). This research presents the cultural art of this practice and the
beginning of female participation in capoeira in Belém, capital of Para State,
presenting the asymmetrical gender relations in the Rodas de Capoeira
(capoeira's round dance style) and the power relations involved in the capoeira
universe, dating back to the trajectory of the Capoeira Mulher Movement and its
importance for female representativeness in the Rodas de Capoeira.
Keywords: Capoeira. Gender.Movement

Luana de Nazaré Pinto Pena é bacharela e licenciada em Ciências sociais (UNAMA). Email:
luanappena@gmail.com
Drª Rachel de Oliveira Abreu (UNAMA). Email: rachelufpa@gmail.com

135
INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo apresentar a etnografia realizada por mim como parte
de minha pesquisa para o trabalho de conclusão de curso em Bacharelado e
Licenciatura em Ciências Sociais apresentado à Universidade da Amazônia, onde
meu objeto de pesquisa foi o Movimento Capoeira Mulher existente no estado do
Pará há 16 anos. Porém, a participação da mulher nesta atividade vem sendo
registrada desde o século XIX na cidade de Belém

Para Mauss (1974) em seu texto ―As técnicas do corpo‖ enumera essas
técnicas de acordo com as fases da biografia do ser humano, passando pela
infância, adolescência e vida adulta. Na seção da infância ele a divide em três
partes: Criação e alimentação da criança, desmama e a criança após a
desmama, e ele afirma que ela passando por todas essas fases aprende
técnicas de relaxamento e de respiração. Já na seção da adolescência o autor
afirma que é a fase essencial para aprender as técnicas de conservação do
corpo para a vida adulta. Por fim, na seção onde fala sobre a vida adulta, o
autor divide-a em técnicas do sono, técnicas da vigília, técnicas do corpo em
movimento, técnicas dos cuidados do corpo, técnicas do consumo, técnicas da
reprodução e por fim, técnicas da medicação.

Este panorama que corresponde ao ―programa social‖ para mulheres da


época pode ser percebido no trecho abaixo correspondente à uma parte de um
artigo publicado em abril de 1898, em Belém do Pará, no Diário de notícias:

[...] a mulher é formosura que em tudo sofre a caridade que tudo cura, a fé que
comunica perpetuamente com o céu, a virtude benéfica, a
santa poesia do lar, o anjo que se inclina sobre o berço e sobre
o leito da dor, e deposita com suas lágrimas o orvalho do céu
em nossa vida, o espírito de ordem, de economia, e de
consolação de todas as dores, o sorriso celeste, o bálsamo que
tira todo o veneno às feridas da existência, a oração que de
contínua levanta a família a Deus, e enche de harmonia e
virtude todo o lar, é o pensamento e o amor, a razão e a fé, a
ciência e a poesia. (DIÁRIO DE NOTICIAS. Belém, 14 abr.
1898. P.1. Sob a epígrafe A família apud OLIVEIRA et. al 2009,
p. 139).

Qualquer mulher que fugisse desse programa era vista como desordeira
pela sociedade. Muitos artigos de jornais da época retratavam os ditos maus
comportamentos de mulheres, incluindo as praticantes de capoeira; em

136
produções literárias os já citados comportamentos também podem ser
encontrados, como pode ser visto no trecho abaixo, retirado da obra Belém do
Grão Pará, do autor paraense Dalcídio Jurandir:

[...] e avançando pelo beco, deu com aquela mulher escura, magra, descabelada que
gesticulava e distratava. Logo aparecia outra, meio velhusca,
que tentava acalmar a magra, nas boas palavras, nos bons
modos. Qual! A descabelada passou a saltar na frente do outra
como jogador de capoeira. E não é que de repente levanta o
vestido sujo e roto, que era a sua única roupa? Tropeçou, caiu,
se ergueu, legeira, para fazer o mesmo cinema, repetidamente
[...] (JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão Pará. São Paulo:
Martins, 1960. P. 36 – 37).

Na contemporaneidade, a presença mulher deixou de ser vista como


novidade nos grupos de capoeira e nas rodas, a novidade é o fato da sua atual
representação numérica e qualitativa: ou seja, o fato delas representarem hoje
boa parte dos praticantes de capoeira, indica, que tanto os grupos, mestres,
contra-mestres não podem ignorá-las, ou mesmo em reduzir seus papéis, e na
participação das práticas e atividades dessas organizações.

Esta pesquisa se faz necessária, pois é perceptível a massividade


masculina nos diversos grupos de capoeira existentes na cidade de Belém, em
detrimento da participação feminina. A partir desta inquietação, com a ajuda de
dados históricos se terá o diálogo com o presente papel da mulher na capoeira
na cidade de Belém, onde se perceberá se a visão da sociedade perante esta
prática exercida pelo gênero mudou ou não dentro e fora das rodas.

No estado do Pará não existia mestra de capoeira até que em 22 de


novembro de 2016 em uma roda de conversa realizada no Iphan sobre gênero
na Capoeira, Rosângela Costa Araújo (Mestra Janja) nomeou a idealizadora do
Movimento Capoeira Mulher como a primeira mestra de capoeira do estado.
Por qual motivo, entretanto, esse título nunca havia sido conquistado por uma
mulher, já que o título de mestre se consegue com o reconhecimento do mestre
mais antigo do grupo? Aqui reside minha inquietação para a realização desta
pesquisa.

Para a realização desta pesquisa foram utilizados métodos das ciências


sociais como a pesquisa bibliográfica e a etnografia, onde como auxilio utilizei a

137
pesquisa de campo e a história oral, já que este trabalho é pioneiro na
historiografia do Movimento Capoeira Mulher.

No que consiste a pesquisa bibliográfica Marconi e Lakatos (2003)


afirmam que ela abrange toda bibliografia já tornada pública em relação ao
tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros,
pesquisas, monografias, teses, material cartográfico etc., até meios de
comunicação orais: rádio, gravações em fita magnética e audiovisuais: filmes e
televisão. Sua finalidade é colocar o pesquisador em contato direto com tudo o
que foi escrito, dito ou filmado sobre determinado assunto, inclusive
conferencias seguidas de debates que tenham sido transcritos por alguma
forma, quer publicadas, quer gravadas.

A etnografia, método também utilizado nesta pesquisa foi definida por


Malinowski, que realizou um importante trabalho de campo na Nova Guiné de
1914 a 1918 e assim revolucionou a questão metodológica nas Ciências
Humanas. É importante ressaltar que diferentemente do que foi realizado por
Malinowski, fiz uma etnografia urbana que para Guber significa:

A etnografia urbana olha, assim, „de perto e de dentro‟ tentando captar, mediante a
experiência do trabalho de campo prolongado ou da
„frequentação profunda‟, a perspectiva dos próprios nativos
urbanos (transeuntes, moradores, usuários, sujeitos políticos
como associações de bairro etc.) em relação a como transitam,
como usufruem, como utilizam, como estabelecem relações.
Então, os resultados da etnografia urbana (e suas narrativas)
são muito diferentes das realizadas a partir apenas da
observação (mesmo que se trate de uma ―observação
encarnada‖), porque usar tão somente a observação gera um
discurso subjetivo, enquanto que fazê-lo através da
observação-participante produz intersubjetividade. O que a
etnografia urbana reflete é esta intersubjetividade, este
discurso a partir de uma relação, como bem expressou Viveiros
de Castro, e não a subjetividade do pesquisador, isto é, as
revelações intimistas do autor, suas próprias sensações, seu
Eu. O trabalho de campo é concebido como uma experiência
de imersão subjetiva, produtora de uma intersubjetividade.
(GUBER, 2005 apud URIARTE, 2012, p. 181)

Como auxilio para a realização desta etnografia utilizei o método da


história oral já que não há documentos escritos sobre o movimento. Essa
história oral será coletada através de entrevistas gravadas com roteiro definido

138
e perguntas semi estruturadas para que não haja indução nas respostas
dos sujeitos. A história oral pode ser compreendida como:

Um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica)


que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que
participaram de, ou testemunharam acontecimentos,
conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do
objeto de estudo. Trata-se de estudar acontecimentos
históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais,
movimentos, etc. (ALBERTI, 1989, p.52).

Sendo assim, neste artigo, apresentarei o Movimento Capoeira Mulher,


seu histórico, objetivos e o trabalho alcançado por esses 16 anos de luta, onde
me embasei no projeto escrito por Silvia Leão, idealizadora do movimento e
nas entrevistas realizadas durante a pesquisa. Segundamente apresentarei a
etnografia realizada por mim neste período de pesquisa onde pontuarei minhas
observações e considerações sobre a participação feminina na capoeira
belenense.

1. O Movimento Capoeira Mulher

O Movimento Capoeira Mulher foi idealizado por Silvia Maria Santana Leão,
conhecida pela alcunha de ―pé de anjo‖ devido ao tamanho de seus pés, assim
como foi relatado por Cristiane Silva por áudio no ―Whatsapp‖, sua amiga e
uma das primeiras integrantes do movimento; entretanto, apesar do apelido
evocar delicadeza, dentro da roda ―pisava era forte‖. Silvia nasceu no ano de
1975. Em sequência, apresentarei um registro de Silvia jogando capoeira em
seu grupo Dandara Bambula:

Foto. 1: Silvia Leão jogando capoeira

Fonte: Página da Pé de anjo no Facebook

139
Além de capoeirista era bailarina, atriz, estudante de Letras da Universidade
Federal do Pará (UFPA) e aluna da escola de dança da mesma universidade.
Silvia gostava muito do Carnaval belenense, chegou inclusive a participar no
ano de 2000, aos 25 anos de idade, do concurso Rainha das Rainhas,
representando o clube dos advogados.

Sua irmã, Cristina Leão, em perguntas respondidas pelo ―Whatsapp‖


revelou que Silvia, por mais que não participasse de movimentos feministas,
lutava pelos direitos das mulheres dentro e fora da capoeira, por isso sempre a
considerou feminista. Era uma mulher à frente do seu tempo: antes da criação
do movimento, mulheres não podiam participar das rodas de grupos diferentes
dos quais faziam parte sem a permissão de seu Mestre, devido à existência de
uma hierarquia e rivalidade entre os grupos. Silvia, diante desde quadro,
enxerga a problemática da rivalidade entre mulheres, sente falta da existência
de professoras e Mestras, e tem a ideia de formar um movimento somente para
mulheres.

A pesquisa recebeu a ajuda de Cristiane Silva e Karen (Não foi possível


descobrir seu sobrenome, pois nenhuma das interlocutoras desta pesquisa
lembrou nome completo), suas colegas do grupo Dandara Bambula. Possuiu
também a ajuda de sua irmã, anteriormente citada, que na época coordenava o
mandato da vereadora Sueli Oliveira do Partido dos Trabalhadores (PT), o que
lhe conferia a experiência administrativa que lhe permitiu escrever o projeto do
Capoeira Mulher e a organizar os encontros que aconteceriam a partir dali. Já
que visitar outros grupos não era visto como ―coisa de mulher‖, Silvia, Karen e
Cristiane passaram, então, a visita-los muitas vezes escondidas de seu Mestre.

Desde o seu nascimento e construção, os objetivos do movimento


sempre foram embasados na organização das mulheres praticantes de
capoeira do Estado do Pará (como foi supracitado), estimulando o intercâmbio
entre grupos e o reconhecimento de Mestres e Mestras, professores e
professoras, todos que usam a capoeira como ferramenta educacional. O
projeto também traz como pautas o desenvolvimento da organização feminina
e a união destas às crianças e jovens contra a violência sofrida por crianças e

140
mulheres, seja ela física ou verbal. Consequentemente, o projeto desenvolve
trabalho no combate ao machismo, trabalhando a autoestima e defesa pessoal.

A fim de botar estes propósitos em prática, as integrantes realizam suas


atividades da seguinte forma: em um primeiro momento são identificadas as
dificuldades presentes nos grupos com os quais trabalham para que, a partir
disso, sejam realizadas apresentações das rodas femininas e do Maculelê, com
o intuito de resgatar a origem da capoeira. Atualmente o Movimento, conta com
a participação de muitas mulheres, sua coordenação é dividida em:
coordenação aberta e coordenação fechada. A fechada conta com a
participação de 13 mulheres, Gisele figueira, interlocutora desta pesquisa faz
parte da coordenação fechada do movimento.

Já a coordenação aberta do movimento conta com a participação de 30


mulheres somente, capoeiristas ou não, em eventos e encontros do
Movimento, e para a realização desses eventos cada uma dessas 30 mulheres
possuem funções especificas, como participar da organização estrutural do
evento, vender água ou comida para a estrutura financeira do evento, organizar
palestras e oficinas, dentre outras.

O primeiro encontro foi realizado entre os dias 10 e 12 de janeiro 2003,


este marca a estreia oficial do movimento. O primeiro dia do evento se deu na
Praça Waldemar Henrique com rodas simultâneas dos grupos convidados, que
juntas totalizaram um número de dez. Às 19 horas, marcando a abertura do
encontro, ocorreram shows e apresentações.

O segundo dia teve como palco a Aldeia Cabana, a partir das 9 horas,
com conferências e debates contando com a participação do então prefeito de
Belém, Edmilson Rodrigues. Participaram também a vereadora Suely Oliveira,
Dalva Sampaio (conselheira das mulheres do Congresso da Cidade), Fátima
Matos (Conselho da Condição Feminina de Belém), Professor Augusto Leal
que palestrou sobre a mulher na história da capoeira, professora Leila Melo
que falou sobre a educação feminina e a capoeira, Professora Erica Cabral
cuja palestra se deu acerca da Capoeira e mulher na atualidade e, por fim, a
então Deputada Araci Lemos que levou para o debate sua contribuição sobre a
Mulher na Cabanagem., Neste dia ainda foram ministradas oficinas de

141
Capoeira Angola, Capoeira Regional e a realização de uma roda ao final do
dia.

No último dia do evento, dia 12 de janeiro aconteceu a grande roda de


mulheres, no ver-o-peso, a partir das 9 horas da manhã, até então a maior roda
de capoeira já vista, fechando complexo em pleno aniversário da cidade e
contando com a presença de um trio elétrico. Apesar de todos os eventos
serem organizados por mulheres, a presença masculina não foi proibida. Em
seguida será apresentada uma foto registrada durante a grande roda realizada
no Ver-O-Peso no ultimo dia do primeiro encontro:

Foto 2: Roda de mulheres no ver-o-peso em 2003

Fonte: Folder do 2° encontro do Movimento Capoeira Mulher

O segundo encontro foi realizado nos dias 10 e 11 de janeiro de 2004. No


primeiro dia as atividades se realizaram na galeria da SUDAM, onde ocorreu
uma mesa de abertura com Silvia Leão, novamente a participação de Suely
Oliveira, Mestre Ferro do Pé (Presidente fundador da Associação Capoeira
Vitória Régia), Ana Lídia (Doutora em Antropologia) e Augusto Leal. Nesse
mesmo dia foram ministradas oficinas de Capoeira Angola, Capoeira Regional
e Maculele. No segundo dia o evento se realizou na Praça da República das 9
da manhã às 13 da tarde. Começou com rodas simultâneas e a grande roda
feminina de capoeira, depois houve shows com várias atrações até as 13 da
tarde.

No final do ano de 2004 no dia 11 de novembro, o Movimento Capoeira


teve uma grande perda, Silvia Leão, idealizadora deste projeto, faleceu de
câncer no pulmão. Uma falta que abala o Movimento e seus familiares até hoje.

142
O terceiro encontro ocorreu em janeiro de 2005, na escola de Educação
Física e na Praça da República e foi dedicado em homenagem à memória de
Silvia Leão. Durante o evento, as integrantes do movimento tocaram no
berimbau duas músicas que evocavam a memória de Silvia. Foram realizados
também uma espécie de ―aulão‖ de capoeira, uma apresentação de dança afro,
organizada pela cunhada de Silvia. A letra da música ―Moleque Atrevido‖ do
cantor Jorge Aragão, tendo substituído o substantivo ―moleque‖ por ―moleca‖,
foi recitada por Dileuza Correa, integrante do movimento. Em mais uma
homenagem à ―Pé de Anjo‖, uma grande televisão foi levada pra exibir suas
fotos.

O quarto encontro aconteceu no dia 11 e 12 de março de 2006 no


Ginásio Abacatão em Ananindeua e contou com a participação na mesa de
abertura de Cristina Leão, Deputada Araci Lemos; houve depoimentos dos
colabores e convidados do encontro, que ocorreu às 14 horas. As 14 horas e
30 minutos ocorreram shows de capoeira de grupos convidados e uma
apresentação da orquestra de berimbau do Movimento Mulher Capoeira.
Diversas oficias de instrumentos e musicalização, Maculelê, capoeira angola e
regional foram ministradas, e este dia contou ainda com rodas simultâneas. O
segundo dia, por sua vez, ocorreu no anfiteatro da Praça da República e contou
com a apresentação da orquestra de berimbau e de Maculelê. O evento foi
finalizado com rodas simultâneas.

O quinto encontro aconteceu nos dias 25 e 26 de agosto de 2007 na


Praça do Carmo, na Cidade Velha com o tema ―Respeitando as Diferenças‖.
Para a abertura do evento, houve os depoimentos e agradecimentos dos
patrocinadores. Houve rodas simultâneas, maculele livre e rodas mistas. O
segundo dia ocorreu no teatro Waldemar Henrique e houve apresentações das
orquestras, oficina de berimbau ministrada pelo Mestre Ferro do Pé, rodas
femininas organizadas e comandada pelo movimento e as rodas masculinas
coordenadas pelo movimento e comandadas pelo Mestrando John na época.

A respeito do sexto e sétimo encontro, tive dificuldades de obter


informações devido à falta de tempo da interlocutora da pesquisa, onde não
pude ter acesso ao portfólio, que está em suas mãos, no qual constam
informações sobre o Movimento. No momento em que nos encontramos para a

143
realização da entrevista, a mesma não possuía as informações sobre os
encontros memorizadas.

O oitavo encontro foi realizado nos dias 9 e 10 de janeiro de 2015 no


Colégio Triunfo. No primeiro dia aconteceu a abertura do encontro às 19:00
com uma roda livre de capoeira e um passeio de ônibus pela cidade de Belém
intitulado ―Luzes da Cidade‖. No segundo dia ocorreu oficinas de lenço com o
tema ―Contra o câncer de mama‖, oficina de capoeira com o Mestre piauiense
FU-PAGÔ do grupo Raízes do brasil e oficina de Maculelê com a professora
cearense Bia do grupo Cordão de ouro. Às 19:00 ocorreu a roda de capoeira
com o tema ―SE TOQUE, para salvar sua vida. E por fim, as 21:00 o
encerramento do encontro com os parabéns pelos 13 anos do Movimento.

O 9° encontro do movimento aconteceu nos dias 11 e 12 de março de


2017 em comemoração aos 15 anos do Movimento, e tinha como tema ―15
anos de resistência: pelo empoderamento da mulher, na arte, na luta e na
sociedade‖. O primeiro dia aconteceu a partir das 14:00 na quadra do CIC
(Centro de integração e cidadania) onde ocorreu a oficina de primeiros
socorros que foi ministrada pelo Mestre Chaguinha, logo após ocorreu o
momento ―Fala Mulher‖ onde as mulheres da coordenação faziam perguntas
para pessoas pré selecionadas, depois ocorreram vivências de capoeira,
primeiramente com professora pernambucana Gabi do grupo Angoleiros do
Sertão e depois com a monitora Elainy do grupo Dandara Bambula de
Parauapebas e por fim a grande roda de capoeira para encerrar o primeiro dia
de evento.

O segundo dia foi enfim a festa de comemoração dos 15 anos. Foi


realizada às 12:00 no sítio Rainbown. Foi uma festa à fantasia, com feijoada e
muita diversão. As mulheres da coordenação do Movimento entram em acordo
quanto ao traje que usaria na festa: roupa de Cabaré. Fariam então uma crítica
ao modo como foram chamadas por anos. Em entrevista, Gisele Figueira
(Tsunami) explica:

que nos vestimos de cabaré? Porque todas nós escolhemos uma roupa de cabaré?
Todo mundo. As meninas da coordenação tinha que ser com roupa de cabaré, cada
uma com a sua roupa. Acabou que todas foram na mesma vibe. Porque, por muitos e
muitos e muitos e muitos anos, fomos taxadas de putas, de prostitutas, de o termo
vulgar, sapatão, tudo o que tu possas imaginar já chamaram a gente entendeu? Então

144
a gente pôs uma crítica né? Usando roupa de cabaré. É simples! Pra gente, pelo
menos falando por mim, por algumas, a palavra puta designa a outra coisa. Não nos
ofende. Não ofende a gente. A gente utilizou as fantasias, representativo né? Pra dizer
tá aqui ó ―15 anos de cabaré‖. Entendeu? (Informação verbal)

Eu, enquanto pesquisadora, participei do primeiro dia do 9° encontro, porém,


neste primeiro momento preferi apresentar apenas os dados de data, local e
programação de todos os encontros. Minhas observações serão relatadas no
decorrer deste artigo.

A interlocutora afirma que o retorno que o Movimento recebeu com este


trabalho não foi financeiro, mas social. De que forma? O primeiro ganho foi um
fato já citado anteriormente. Unir mulheres que eram rivais, pois seus grupos
também eram rivais, unir mulheres que não se toleravam nas rodas de
capoeira. O movimento mostrou que é possível lutar pelo mesmo ideal sem
desrespeitar a hierarquia da capoeira, que é possível lutar juntas pelo respeito
e reconhecimento da mulher.

Outro ponto que o trabalho do Movimento conseguiu foi fazer com que
as mulheres na capoeira conseguissem se impor e falarem o que pensam.
Esse exercício é feito nos próprios eventos do Capoeira Mulher. Hoje, ao
menos nos eventos as mulheres conseguem comandar os instrumentos, coisa
que não era feita em seus grupos de origem. A mulher, hoje, consegue
escrever músicas e fazer eventos femininos em seus grupos.

Quando em entrevista perguntei como ela observa o machismo na capoeira ela


respondeu que:

eu percebo? Quando um cara chega pra mim, um professor chega assim pra mim
―vem cá! É... você namorou com um instrutor então você tem que ficar com um
professor. Namorou com um instrutor porque tu não fica com um corda mais alta?‖
Não é machismo não? Entendeu? Quando um Mestre chega pra ti e fala que ele quer
teu corpo. Então eu digo assim ―Mestre me respeite!‖ Né? ―E aí minha nega, tô
brincando mas se você aceitar...‖ Né? E assim... brincadeiras a parte e a gente dá
limites pra algumas pessoas. E pra outras não, mas tipo, você não... eu nunca dei
esse tipo de liberdade pra ninguém, entendeu? O machismo da capoeira, está quando
um cara chega num grupo de Whatsapp e coloca assim... ―O que vocês acham dessas
meninas que ficam com os capoeiristas? Quem ficam namorando com os capoeiristas
por aí? O que vocês acham dessas mulheres?‖ Eu acho que... cada um vive a sua
vida?! Entendeu? (Informação verbal)

145
Nesta fala acima podemos perceber o tipo de machismo existente na
capoeira onde os Mestres e os outros homens tentam controlar as mulheres
através do assédio sexual e verbal. O Movimento Capoeira Mulher luta
diariamente contra esses tipos de machismo dentro dos grupos de capoeira.

Começa a etnografia

Nesse segundo momento, irei tratar dos passos que fiz durante a minha
pesquisa, os que deram suporte para que eu realizasse minha etnografia, a
qual será tratada aqui. Primeiramente tratarei do dia 07 de setembro de 2016, o
meu primeiro encontro com o objeto de pesquisa. Em segundo momento,
relatarei minhas observações realizadas na mesa redonda sobre a mulher na
capoeira, a qual fazia parte da programação do I Colóquio sobre Patrimônio,
Gênero e Saberes Tradicionais do IPHAN. Em terceiro momento, será tratada a
roda de capoeira realizada pelo movimento em comemoração à maestria de
Silvia Leão e ao aniversário do Movimento. Por fim abordarei minhas
observações do 9° encontro do Movimento Capoeira Mulher.

2.1 7 de setembro: O primeiro contato

Nacionalmente conhecido, o dia 7 de setembro foi marcado pela


independência do Brasil. Por esse motivo todos os anos ocorrem desfiles
militares por todo o país e em Belém não é diferente. Paralelamente a eles
acontece o Encontro Municipal de Capoeira, na Praça da República, em
comemoração à primeira roda de capoeira em Belém que ocorreu no dia 7 de
setembro de 1975.

Sendo assim, escolhi o dia 7 de setembro de 2016 para enfim começar o


campo desta pesquisa, pois sabia que na praça estariam reunidos vários
grupos da cidade e que assim escolheria, a partir da observação, qual se
encaixaria melhor no objetivo da minha pesquisa, já que no inicio meu objetivo
era escolher um grupo misto de capoeira e comparar seu trabalho com o
trabalho exercido pelo movimento, para assim perceber as relações de gênero.

Cheguei à Praça da República às 9 da manhã com um caderno de caderno


de campo para registrar minhas observações. Caminhei pela praça e não

146
demorou muito para que eu encontrasse a primeira roda de capoeira, na qual
instantaneamente percebi a assimetria de gênero: as mulheres estavam em pé
batendo palma e cantando enquanto os homens estavam na orquestra da roda
comandando e jogando. Logo, uma apareceu na roda para jogar, deu uns
golpes em um rapaz e logo foi cortada para dar lugar a outro homem. Na
orquestra da roda não havia nenhuma mulher e isso também me chamou a
atenção. Fiquei observando esta roda por mais uns 15 min e então continuei
caminhando em busca de outros grupos.

Caminhei e continuei encontrando vários grupos de capoeira. Percebi que o


encontro se tratava de vários grupos espalhados por toda a praça e não
somente concentrados em um só espaço dela. A respeito deste ponto, tomo
liberdade para inferir, que esta configuração espacial pode remeter a um traço
da rivalidade existente entre esses grupos. Logo encontrei a roda do grupo
Norte Brasil, no qual Gisele Figueira é instrutora. Como já a conhecia de fotos
da rede social Facebook, rapidamente a identifiquei. Esperei que saísse da
roda um instante para que eu pudesse chama-la para conversar. Quando saiu,
me aproximei e perguntei se ela era Gisele Figueira do Movimento capoeira
Mulher. Como já havíamos mantido contato através da supracitada rede social
um dia antes do evento, para que eu soubesse onde se encontraria o
movimento, fui reconhecida e recebi sua confirmação. Depois disso, Gisele
disse que me levaria para conhecer alguém. Andamos até encontrarmos
Solange Godinho (Batatona) e Maria Zeneide Gomes conversando. Gisele me
informou que Solange era integrante do grupo Abadá capoeira e fazia parte do
movimento, já Maria Zeneide havia sido capoeirista e também estava
pesquisando tema semelhante ao meu.

Gisele voltou para a roda do Norte Brasil e fiquei conversando com Solange
―Batatona‖ e Maria Zeneide. Enquanto conversávamos contei para elas do que
se tratava a minha pesquisa e então Solange ―Batatona‖ comentou sobre sua
importância por tratar da questão de gênero que remete a situações como, por
exemplo, mulheres precisarem sair da capoeira quando engravidavam para
que pudessem cuidar da família ou, muitas vezes, serem chamadas de
―sapatão‖ por jogarem capoeira. Quando ela também foi para a roda do grupo

147
Abadá capoeira fui caminhar um pouco com Maria Zeneide para observarmos
juntas as rodas na praça.

Enquanto caminhávamos, ela me apontou o que eu também já havia


percebido, a disparidade de gênero nas rodas, e me disse que o evento não
tinha hora para terminar, pois a capoeira é assim. Ela me orientou quanto à
minha pesquisa, me sugerindo que talvez eu não devesse estudar um grupo
misto somado ao movimento, o que tornaria meu objetivo amplo demais.
Zeneide aconselhou que eu trabalhasse apenas com o Movimento, pois em 16
anos de existência, nenhum estudo havia sido desenvolvido a seu respeito.
Apesar de temáticas semelhantes e mesmo objeto de estudo, teríamos visões
diferentes. Ficamos caminhando até as 14:00 pois estávamos cansadas, e
como ela mesma disse ―capoeira não tem hora pra acabar‖. Então seguimos
para casa.

2.2 A participação no I Colóquio sobre Patrimônio, Gênero e Saberes


Tradicionais

O I colóquio sobre Patrimônio, Gênero e Saberes Tradicionais foi


organizado e realizado no Instituto de Patrimônio, Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) nos dias 22 e 23 de novembro de 2016. A mesa de conversa da qual
participei como ouvinte, intitulada ―a mulher na capoeira‖, ocorreu no dia 22 às
18:00. Quando cheguei ao local encontrei logo com Zeneide, que me fez sentar
nas primeiras cadeiras para que eu gravasse as falas e tirasse fotos. Ficamos
esperando por Gisele, que faria parte da mesa. Quando ela chegou, a mesa
estava pronta, que abordou sua pesquisa a respeito da mulher na capoeira
bem como a história dessa nesta prática no município de Belém. Também
discursou sobre o sistema patriarcal no século XIX, que punia essas mulheres
por lutarem, prática que persiste até os dias atuais. Chamou-me a atenção na
fala de Zeneide o que expôs acerca do significado do nome do grupo Dandara
Bambula, no qual jogou capoeira por anos, ―Olha só, Dandara Bambula, é um
nome extremamente significativo, sem preme chamou a atenção, Dandara, a
esposa de zumbi, Bambula, a preferida. Né? Ele tinha outras! Sempre né?‖

148
Logo depois, a fala passou para Gisele Figueira que, representando o
Movimento Capoeira Mulher, relatou a sua experiência em participar deste
Movimento e os preconceitos que enfrentou. Com o intuito de abordar o início e
a fundação do movimento, Gisele iniciou seu discurso falando a respeito de
Silvia Leão, o que a emocionou bastante. Terminada esta etapa, fez uma
espécie de resumo dos 16 anos de existência do Movimento.

A terceira a falar foi Andreza Barroso (Miudinha), do grupo Menino é


bom, que contou um pouco sobre a sua história na capoeira e o machismo que
ali sofreu, como ser chamada de ―tia macho‖ pelos seus alunos nesta prática e,
por fim, revelou ter sido a primeira mulher paraense campeã na capoeira fora
do estado.

A quarta, Jamile Andrade (Pretta), do Grupo Berimbau Brasil, que hoje


faz parte do movimento. Contou sua experiência na capoeira e revelou que no
início não concordava com o Movimento por não conseguir entender seus
objetivos, mas que atualmente participa e com as outras mulheres, resiste.

Por fim, a convidada baiana Mestra Janja, do grupo Nzinga de Capoeira


Angola, contou sua experiência como a terceira Mestra de capoeira mulher do
Brasil e quantas barreiras sociais e de gênero teve que quebrar para que
continuasse na capoeira. Hoje ela, além de ser capoeirista, é pesquisadora de
gênero nesta prática.

No final das falas das participantes da mesa, foi aberta a sessão de


perguntas e nas respostas, Mestra Janja percebeu o quanto o nome de Silvia
Leão estava presente. Desta forma, a mestra levantou-se e disse: ―Vocês já
tinham uma Mestra de Capoeira no estado e nem perceberam! ‖. Neste
momento, perguntou se todos ali concordavam que Silvia Leão fosse nomeada
Mestra de Capoeira, em memória, por toda a bagagem deixada para o
Movimento e para todas as mulheres capoeiristas do estado. Dando início a
uma espécie de votação, pediu para que se levantassem de suas cadeiras
todos aqueles que concordassem com sua sugestão. A maioria dos presentes
se levantou, mas teve pessoas que ficaram sentados e de acordo com o que vi,
eram homens. Tendo concordado a maioria, Mestra Janja nomeou Silvia Leão
como a primeira Mestra de Capoeira do estado em memória. Todos os

149
presentes aplaudiram e se emocionaram bastante. No segundo dia de evento,
no qual eu não estava presente, foi entregue o certificado de Mestre de
Capoeira de Silvia Leão ao seu irmão, Marco Apolo.

Após o evento as mulheres do Movimento sofreram bastante repressão


pelos outros Mestres, ocasionada pela nomeação de Silvia Leão. Muitos deles
não estavam presentes na ocasião e, consequentemente, não puderam votar,
fato este usado como justificativa para tal ato. Entretanto, é perceptível que a
resistência oferecida se devia ao episódio de uma mulher ter se ―atrevido‖ a
nomear outra como Mestra.

2.3 Roda à Silvia Leão

A roda em comemoração à nomeação de 1° mestra de Capoeira do


estado, foi realizada no dia 15 de janeiro de 2017 no anfiteatro da Praça da
República. Cheguei ao local às 9h15 da manhã e apesar de o evento estar
marcado para as 9h, poucas mulheres do Movimento estavam presentes.
Abracei Gisele assim que a vi e fui muito bem recebida pelas demais. Sentei-
me e esperei o evento começar. Logo depois, Zeneide chegou ao local, e
começamos a registrar os acontecimentos e um dos exemplos é a foto a seguir

Passados quinze minutos, algumas meninas presentes começaram a testar


os instrumentos tocando músicas de capoeira em uma espécie de
aquecimento para a orquestra da roda. Aos poucos, os convidados foram
chegando e a roda enfim se iniciou com a fala das meninas do Movimento
para explanar seu significado. Em seguida, a grande roda se iniciou com jogo
entre homens e mulheres.

Foto 4: Registrando a roda

Fonte: Maria Zeneide Gomes

150
Houve um momento em que a roda fez uma pausa e as participantes do
movimento leram a letra de uma música em homenagem à Silvia; após esse
momento, as meninas concederam a fala a quem quisesse se pronunciar sobre
a nomeação em questão. A irmã de Silvia, Cristina, bastante emocionada,
discursou sobre o acontecimento e alguns Mestres também discursaram se
posicionando a favor da nomeação.

A roda de Silvia Leão foi encerrada com uma apresentação de Maculelê


das mulheres do Movimento e um samba de roda. Após o fim, fiquei para
observar mais um pouco o encerramento. Percebi que todos ajudaram a
guardar os instrumentos e muitas pessoas parabenizavam as organizadoras do
evento.

2.4 O olhar etnográfico no 9° Encontro do Movimento Capoeira Mulher

Quando cheguei à quadra, mais ou menos 10 moças já estavam


presentes organizando o evento. As cumprimentei gentilmente, entregando o
barbante que havia levado para ajuda-las na organização do evento, elas
agradeceram e disseram que eu poderia ficar à vontade. Fiquei em pé
observando a movimentação até que chegou Maíla Mescouto, outra
pesquisadora que também possui o objetivo de pesquisa semelhante ao meu.
Não demorou muito para que minha amiga, Crislene Ribeiro, chegasse ao local
para me levar sua máquina, que me ajudaria a realizar os registros do evento.
Alguns minutos depois, Zeneide também chegou para prestigiar o evento.

A programação começou com a oficina de primeiros socorros do Mestre


Chaguinha, que foi uma oficina importante, mas que gerou críticas motivadas
pelo fato de um homem estar ministrando uma oficina em um evento de
mulheres e por ter se estendido, tomando um bom tempo do evento que já
estava com a sua programação atrasada. Em seguida, ocorreu um momento
que intitulado ―Fala mulher‖, sobre o qual fiz uma prévia anteriormente. Neste
momento elas fizeram uma pergunta direcionada para um Mestre que consistia
em: ―Por que você acha que é mais fácil manter um homem na capoeira do que
uma mulher?‖. Durante sua resposta ele afirmou que a mulher sai da capoeira

151
muitas vezes, o marido a tira por ser bonita e afirmou concordar com esta
colocação pois ―mulher bonita não pode jogar capoeira‖. Após a sua resposta
todos que estavam presente se entreolharam assustados. Gisele respondeu
pelo Movimento afirmando que nenhum homem iria tirar qualquer mulher
daquele movimento da capoeira e foi aplaudida. Outro Mestre, em uma
pergunta seguinte, afirmou que não é possível ensinar questões de gênero
para crianças. ―Mana‖ Josy, pedagoga e uma das convidadas presente no
evento, afirmou que seria possível esta atitude dentro da capoeira e que ela
poderia inclusive doar materiais para ele para que pudesse tratar dessas
questões em suas aulas.

Após este momento, as vivências na capoeira se iniciaram e durante


duas delas consegui perceber bastante domínio das ministrantes e interesse
dos alunos, independente do gênero. Entretanto, durante a vivência da
professora Gabi não foi possível perceber a interação de Mestres e alunas no
exercício de duplas, apenas de Mestres com Mestres.

Considerações finais

Através da pesquisa bibliográfica e de campo pude perceber o papel do


movimento que é o de visibilizar a mulher na capoeira paraense e para além
dela, trabalhando as questões de autoestima e defesa física e mental contra o
machismo presente nesta prática e na sociedade desde o passado.

importante ressaltar que o trabalho realizado pelo Movimento Capoeira


Mulher se torna um tipo de bagagem cultural para essas mulheres, por isso
quando por algum motivo elas precisarem sair da capoeira levarão os
ensinamentos adquiridos para a vida. Me agrada o fato de perceber os avanços
que o trabalho deste movimento causou na história das mulheres que
participam ou não dele, como o fato de não precisarem deixar a capoeira para
cuidar da família, ou deixar a capoeira por conta de algum assédio moral ou
verbal. A mulher na capoeira hoje consegue enfrentar os preconceitos fora e
dentro da capoeira sem precisar desmerecer algo ou alguém, é perceptível que
o movimento ainda precisa ser amadurecido em muitas questões, mas é
notável os resultados de seus objetivos.

152
Referencias

ALBERTI, V. O fascínio do vivido, ou o que atrai na história oral. Rio de


Janeiro, CPDOC, 2003. Disponível em <link>. Acesso em: 19 jan. 2007.

DIÁRIO DE NOTICIAS. Belém, 14 abr. 1898. P.1. Sob a epígrafe A família apud
OLIVEIRA et. al 2009, p. 139.

GUBER, 2005 apud URIARTE, 2012, p. 181.

JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão-Pará. São Paulo: Martins, 1960. p.


271-2.

LAKATOS, Eva Maria. MACONI, Marina de Andrade. Fundamentos


de metodologia. 5 ed. São Paulo : Atlas 2003.
MAUSS, Marcel. “As Técnicas Corporais”. In: Marcel Mauss, Sociologia e
Antropologia, vol. 2. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974.
OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. LEAL, Luiz Augusto Pinheiro.
Capoeira, identidade e gênero. Salvador. EDUFBA, 2009.

URIARTE, Urpi Montoya. Podemos todos ser etnógrafos? Etnografias e


narrativas etnográficas urbanas. Pontourbe11. Revista do Núcleo de
Antropologia Urbana USP. Ano 6. Dezembro de 2012. Disponível em:
http://www.pontourbe.net/edicao11-artigos/248-o-que-e-fazer-etnografia-para-
os-antropologos. Acesso em 05/05/17.

153
“NOVA CAPOEIRAGEM DA MULHER”: A ATUAÇÃO FEMININA NA
PRÁTICA DA CAPOEIRA EM BELÉM NO FINAL DO SÉCULO XIX E
INÍCIO DO XX
https://doi.org/10.29327/527231.5-10
Lucenilda dos Santos Passos/UFPA

Luiz Augusto Pinheiro Leal/UFPA

RESUMO
O presente trabalho trata da atuação das mulheres na capoeira no final do século XIX e
inicio do XX em Belém. Através dos relatos jornalísticos, a literatura e os Códigos de Postura
e Penal. Sendo analisadas ações desempenhadas por elas nos espaços públicos; como o
trabalho no meretrício, e o envolvimento delas na capoeira, logo, essas práticas segundo o
poder público tinham ligação direta com a vagabundagem, portanto, consideradas perigosas
para os esplendores moral da cidade, sugeridas pelas camadas privilegiadas que almejam o
progresso e a civilização. Desse modo, será feita uma abordagem envolvendo autores como
SALLES e LEAL para desenvolver o debate em torno da história social da capoeira no Pará
republicano, tecendo uma relação com autoras como PERROT, RAGO, SOIHET, SAFFIOTI,
HOOKS, GONZALEZ, ARAÚJO, FOLTRAN entre outras que contribui no debate de gênero
e na construção das narrativas femininas na historiografia, dando visibilidade a elas como
sujeitos históricos.

Palavras chaves: Mulher na Capoeira. República Paraense. Códigos de Postura.

ABSTRACT
This paper deals with the performance of women in capoeira in the late nineteenth century to
the twentieth in Belém. Through journalistic reports, literature and the Posture and Penal
Codes. Being analyzed actions performed by them in public spaces; as the work in the
harlotry, and their involvement in capoeira, so these practices according to the public power
were directly linked to vagrancy, therefore, considered dangerous to the moral splendors of
the city, suggested by the privileged layers that crave progress and civilization. . Thus, an
approach will be made involving authors such as SALLES and LEAL to develop the debate
around the social history of capoeira in republican Pará, weaving a relationship with authors
such as PERROT, RAGO, SOIHET, SAFFIOTI, HOOKS, GONZALEZ, ARAÚJO, FOLTRAN
among others contribute to the gender debate and the construction of female narratives in
historiography, giving visibility to them as historical subjects.
Keywords: Woman in Capoeira. Paraense Republic. Posture Codes.

154
“NOVA CAPOEIRAGEM DA MULHER”: A ATUAÇÃO FEMININA NA PRÁTICA DA
CAPOEIRA EM BELÉM NO FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX

―NEW CAPOEIRAGEM OF WOMEN‖: THE FEMALE PERFORMANCE IN THE


PRACTICE OF CAPOEIRA IN BELÉM IN THE LATE NINETEENTH AND EARLY
TWENTIETH

Lucenilda dos Santos Passos/UFPA

Luis Augusto Pinheiro Leal/UFPA

INTRODUÇÃO

O presente trabalho analisa a questão da atuação das mulheres capoeiras na cidade


de Belém no final do século XIX e início do XX. Esse período corresponde a chamada época
do ―Ouro Negro‖ no Pará devido ao progresso decorrente da economia gomífera na
Amazônia, e as significativas transformações nas áreas da economia, cultura e urbanização.
Portanto, as pessoas pertencentes às camadas privilegiadas de Belém, aspiravam ao
modelo comportamental baseados em princípios eurocêntricos. Logo, essas mudanças iriam
além das transformações na arquitetura da cidade, portanto, implicaria diretamente nos
hábitos sociais e morais dos seus moradores, sejam eles dos segmentos privilegiados ou
não.

Um breve contexto de Belém na virada do século XIX para o XX

O período que consiste no final do século XIX e inicio do XX em Belém, foi marcado
pela economia da borracha amazônica. A renda gerada pela comercialização do produto
teve grande impacto no que consistiu o processo de reordenação da cidade, principalmente
no que diz respeito à estética, higienização, cultura e a economia dessa urbe. Essas
transformações ocorreram com mais força no governo do Intendente Antônio José de Lemos
que se deu do ano de (1897 – 1911), que foi considerado um dos principais responsáveis
pelo processo de modificações da capital paraense.

Segundo a autora Almeida;

[...] No decorrer da segunda metade do século XIX a cidade vivenciou mais


intensamente o processo de modernização e urbanização, sob o impulso do
desenvolvimento da economia da borracha.

Inúmeras casas foram edificadas, desde a Alfandega até o Forte do


Castelo. Ruas passaram por melhoramentos. A cidade modificava-se sob o
impulso de um imaginário de progresso semelhante ao que se verificava
nos chamados centros avançados do Brasil e do mundo. (ALMEIDA, 2003,
p. 1)

155
Segundo Leal (2008, p. 31), nessa virada do século XIX essas modificações
transformaram as cidades de Belém e Manaus, isso por conta do processo da
comercialização da borracha Amazônica, sendo Belém um centro de exportação do produto
através de seu porto.

Nesse momento, Belém entra em uma nova fase de transformações que estavam
contidas em componentes estruturantes nas ideias europeizadas, onde as modificações
tanto na arquitetura quanto nos hábitos culturais paraenses deveriam se encaixar no que
consistia ser civilizado para a construção de uma Belém moderna aos olhos dos grupos
privilegiados. Por isso, o Intendente do Pará Antônio Lemos, desenvolveu politicas de
reordenamento. Durante sua gestão, ele pontuou parâmetros ligados com a concepção
higienistas, logo, esse modelo urbanístico foi baseado em um conjunto de ações que
modificariam a forma de vida da população. Sobre isso, Dias e Chaves, escreveram que:

Observa-se que toda essa mudança de dinâmica não se relacionava


somente a tectônica das obras, tampouco a sua reorganização logística
interna. A mentalidade popular, sob a égide lemista, passou por uma
padronização higienista e civilizatória que artificializou diversas interações
sociais e formas de consumo e comércio. (DIAS, CHAVES, 2017, p. 6).

Com isso, essas transformações no cenário urbano da capital paraense possui sua
gênese com o impulso da economia da borracha. Cria-se então, novas fisionomias que
implicaram nas construções e reformas na área de edificações de Belém. A seguir, veremos
2 espaços que estavam contidos no processo de modificação, que visava o embelezamento
da cidade, segundo os parâmentos dos segmentos privilegiadas.

Imagem 1- Mercado de Ferro e Doca do Ver-o-Peso

Fonte: Belém. Intendente Municipal (1898-1911: A. J. de Lemos). Álbum de Belém: 15 de novembro


de 1902. Paris: P. Renourd, 1902.

156
Imagem 2- Mercado Municipal

Fonte: BELÉM DA SAUDADE: a memória da Belém do início do século em cartões postais. Belém,
Secult, 1996. (B.S.).

A escolha por esses espaços como o Mercado de Ferro e Doca do Ver-o-Peso


(imagem 1) e o Mercado Municipal (imagem 2) não foram propositais; a seleção delas, esta
relacionada porque esses lugares passaram pelo processo de reforma baseada nos
princípios de modernidade e também foram os espaços ―mais frequentado pelos praticantes
de capoeira‖ (LEAL, 2008, p. 74).

As reformas e a construção desses lugares davam uma nova cara para as capitais
brasileiras. Por isso, ―ao mesmo tempo em que construções consideradas modernas eram
elevadas os casebres populares, na maioria das vezes feitos em barro e palha, eram
removidos em nome da civilização e do progresso‖ (LEAL, 2008, p. 33) essas mudanças
seriam necessárias para demostrar que Belém estava inserida no modelo proposto por uma
elite que visava à modernidade. Sobre isso, Leite descreveu que:

Em nome dos ideais modernizadores, desprezou-se qualquer preocupação


com a preservação do passado, negou-se o convívio entre o velho e o novo,
empreendeu-se uma verdadeira reforma demolidora. Sempre que se
mostrou necessário, os trechos mais antigos das cidades foram
inteiramente destruídos e transformados, dando lugar as novas
construções, então erguidas seguindo os preceitos idealizados pelas elites e
em perfeita consonância aos modernos estilos arquitetônicos. (LEITE, 1996,
p. 13).

Precedido de tal, esses fatos levaram Belém a se transformar não somente na parte
arquitetônica da cidade, a vida das pessoas foi simultaneamente afetada, principalmente
daquelas que eram pertencentes das camadas populares. A exemplo disso, em virtude do
processo de reordenação de Belém, espaços que antes eram habitados pelos populares,
acabaram sendo valorizados, logo, essas pessoas tiveram que ―ir morar cada vez mais
longe do centro da cidade. Passaram a ocupar áreas alagadas que até então não eram
valorizadas como morada burguesa‖ (LEAL, 2008, p. 32). Isso ocasionou um inchaço
demográfico em bairros considerados periféricos, como Jurunas e Umarizal (LEAL, 2008).
Como podemos ver no mapa I, os bairros como a Cidade Velha, Umarizal, Jurunas e
Canudos que até aquele período eram vistos como periferias.

157
Imagem 3- Mapa I: Principais Bairros de Belém em 1905

Legenda

01- Cidade
Velha
02- Umarizal
03- Jurunas

Fonte: Planta da cidade de Belém com base na planta original feita na administração do intendente
Municipal Antônio Lemos- Por José Sydrim, desenhista municipal, 1905 (Belém da Saudade, 1996).

Além desses transtornos relacionados à moradia, as práticas como as heranças


culturais negras e indígenas ou mesmo trabalhos considerados informais exercidos nas
ruas, foram vistos como inapropriados para a modernidade burguesa que se estabelecia.
Pois, nesse momento, as pessoas deveriam se enquadrar nos critérios que eram
considerados civilizados para os novos hábitos que estavam surgindo. Viagens ao
estrangeiro, idas a cafés chics, passeios em praças, cinema, teatros, eram algumas das
programações consideradas civilizadas segundo a elite vigente. Dessa maneira, ―a vida na
cidade normatizada, distinguir-se por gosto e práticas elegantes [...]‖ (LEITE, 1996, p. 43).

Mas algo que deve ser questionado refere-se ao progresso e modernidade, para
quem? Sendo que todo esse esplendor não envolveu todas as pessoas pertencentes dessa
urbe.

Portanto, respondendo essa pergunta, esse projeto de desenvolvimento, viria a


responder os interesses da camada privilegiada de Belém, que ―buscavam legitimar as
relações tradicionais de exploração da maioria trabalhadora da população‖ (LEAL, 2008, p.
31). Logo, o controle das práticas como a capoeira, o meretrício, o batuque, etc. sofreram
com as intervenções do governo, sendo essas ações condenadas em nome do progresso.
Segundo, os ideais de civilização elitista deveriam ―ser combatidos os males da civilização‖
(OLIVEIRA, 2003, p. 166).

Além dessas práticas já mencionadas as chamadas ―profissões duvidosas‖, termo


esse utilizado para designar ofícios como o meretrício ou ―qualquer atividade de

158
subsistência praticada por mulheres‖ (LEAL, 2008, p. 48) também passaram por
arraigadas perseguições.

A seguir veremos como as pessoas das camadas populares foram tratadas


nos periódicos da época.

Código Penal de 1890 e a Impressa: A perseguição aos


capoeiras, meretrizes e vagabundos (as)
A impressa belenense noticiou no ano de 1890 no jornal A Semana uma passagem
direcionada ao Desembargado Chefe de segurança, que designava a ele o combate das
práticas consideradas perigosas para a manutenção da ordem pública. Dessa forma, o
Desembargador Gomensoro deveria ficar atento com a malta de vagabundos, vadios e
bêbados de profissão que segundo o articulista infestavam a cidade.

O Sr. Chefe de Segurança, desembargador Gomensoro, já reparou para a


malta de vagabundos que infesta a nossa capital?

Depois daquele pega-pega, ainda no tempo da monarquia, ninguém quis


mais reparar nos vadios, bêbados de profissão, que se reúnem pelas
tascas, a provocar desordens e a insultar a gente séria. Que proteção é
essa? [...] (A Semana 17 mar. 1890. p. 2 apud SALLES, 2015, p. 133).

Essas advertências eram constantes em periódicos da época. Algo que resultaria no


ápice da perseguição desses sujeitos estavam contido com a promulgação do Código Penal
de 1890. Logo, a politica da capoeiragem segundo esse, caracterizava-se pela prática da
destreza e agilidade corporal, na qual os capoeiras poderiam esta portando algum tipo de
instrumento que pudesse causar ferimentos corporais em outras pessoas, como evidenciou
o artigo 402 da constituição dizendo que:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza
corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras,
com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal,
provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou
incutindo temor de algum mal. (Código Penal da Republica dos Estados
Unidos do Brasil (Decreto nº 847 de 11/10/1890)).

A legislação proibia e criminalizava as pessoas que praticassem a capoeiragem,


sendo que a pena para quem se enquadrasse nesses quesitos poderia variar de dois a seis
meses de prisão, é mais o art. 403, ressalta que no caso de ―reincidência‖ o individuo,
poderia sofrer o ―grau máximo‖ do Art. 400 que consiste na prisão por três anos em colônias
penais.

Portanto, ao se falar sobre o que foi a politica da capoeiragem, e de toda a dimensão


que essa estava inserida, as maltas de vagabundos e vagabundas, vadios, bêbados de
profissão, meretrizes, correspondiam bem mais do que foi citado pela legislação de 1890. A
capoeiragem está ligada às práticas de resistência de pessoas que foram condenadas por

159
não estarem inseridas em um modelo proposto como civilizado. Suas vidas e hábitos
correspondiam a valores diferentes daqueles propagados pela camada privilegiada. Esses
populares buscavam nas ruas de Belém no inicio da República, meios para a sua
sobrevivência, pois, aquela sociedade pouco dava oportunidades concretas para a inserção
da população negra.

Nesse viés, as práticas de agilidade e destreza corporal fizeram parte da defesa de


homens e mulheres dos segmentos populares de Belém, que resistiram a diversos tipos de
mazelas sociais. Portanto, a capoeira foi um escudo contra as intervenções do Estado e
suas campanhas de controle socioculturais.

Em relação aos jornais esses salientavam em seus títulos, ações que teriam sido
cometidas por essas pessoas que atuavam nas ruas ou nas zonas de meretrício. Porém,
algo recorrente nos recortes desses noticiários, esta relacionado com o tom moralizante
dirigido as práticas da vagabundagem e do meretrício, onde cabia às autoridades tomar as
devidas providências para que essas práticas fossem combatidas, pois, segundo os
enunciados, elas desrespeitavam as famílias, a ordem e a moral pública da cidade. Logo,
esses periódicos tinham diversas funcionalidades nessa sociedade, que iria desde
informações sobre a economia, noticias estrangeira, entre outras e também a imprensa
nesse momento empreendia o papel de divulgadora de campanhas moralista para as
pessoas pertencentes aos segmentos populares.

Vejamos a forma que o articulista do jornal Diário de Notícias do ano de 1896 se


direcionava as meretrizes e vagabundos.

Repetidas são as queixas que nos que nos chegam ao escritório contra
meretrizes e vagabundos que tem o mau hábito de formar roda nas
calçadas, impedindo o trânsito público e ofendendo a moral com palavras
de baixo cuturno.

As autoridades e as praças de polícia no entanto, nada vêem e nada


ouvem!!

Ainda ante-ontem, à noite, vimos na rua das flores, quase no canto da


travessa passarinho, um dos tais acampamentos de desordeiros e ébrios,
tomando o passeio n‟uma extensão de três e quatro metros!

Queixamo-nos a patrulha de cavalaria que ali rondava, e esses soldados


nenhuma providência tomaram, continuando as famílias por ali passavam, à
pé ou a bond, a ouvir palavras obscenas e avinhadas de cachaça que
aquela gente baixa esfera pronunciam em tom bastante alto para as escutar
um surdo.

Na rua da Trindade, esquina da do Carlos Gomes, fomos testemunhas das


mesmas cenas de desrespeito à moral, e assim por quase todas aquelas
que transitamos.

160
Ao conhecimento do sr. Ferreira Teixeira chefe de segurança pública,
levamos as nossas queixas esperando enérgicas e sérias providências que
o caso exige e que os seus auxiliares até hoje não tomaram, por provada
myopia e comprovada surdez. (Diário de Notícias, 14 de agosto de 1896).

A imprensa era atribuída a uma missão de civilidade, onde esta possui uma atenção
redobrada com as condutas das mulheres (FERREIRA, 1994, p. 100). Desse modo, ao se
falar dos populares de Belém, em especifico as mulheres que atuavam nas ruas, esses
periódicos constantemente divulgavam nomes de sujeitas que estavam inseridas em
práticas como a capoeira, a desordens a vagabundagem e a prática do meretrício. Sendo
isso, os jornais que aqui serão analisados consistem em: A Constituição, Diário de Notícias,
Folha do Norte, A República e A Semana. Através desses jornais notaremos modelos
comportamentais dirigidos às mulheres, os lugares e as atividades nos espaços públicos e a
resistência delas frente ao modelo comportamental imposto.

Ao analisar a atuação feminina na capoeira em Belém nesses jornais, nota-se nomes de


mulheres que se destacaram como sujeitas ativas no universo da capoeiragem, exercendo
um papel predominante em meio a um espaço de censuras.

A capoeira, por muito tempo foi vista, assim como o espaço das ruas, como algo restrito
ao ―universo masculino‖, todavia ações de mulheres quebram com essa ideia, e demostram
a atuação ativas das mesmas em várias atividades, em espaços não domésticos.

Dessa forma, essas mulheres revelam ―como elas possuem uma historicidade com
relação às ações cotidianas, aos posicionamentos políticos, às relações entre os sexos e as
múltiplas dimensões da realidade histórica e social‖ (OLIVEIRA, LEAL, 2009, p. 160).
Portanto, o envolvimento delas por meio do meretrício, brigas, ou pela prática da capoeira,
retratam um pouco sobre suas vidas nos espaços públicos da capital paraense, fazendo
assim seu protagonismo em meio a esses espaços.

Nos becos, nos botequins, nas zonas de prostituição, nas sombras das
embriagadas noites se encontrava o universo dessas mulheres pobres.
Protagonistas das arruaças e desordens, habilidosas com suas navalhas
e seus cacetes, lá estavam as famosas vagabundas. (ARAS, OLIVEIRA,
2003, p. 169).

As famosas ―vagabundas‖ eram mulheres que foram tidas como sinônimos de


perturbação dos termos moralizantes, por terem desempenhado diversas ações como
arruaças e desordens. Como resultado desses feitos, os jugos dos Códigos Penais e as
ações policiais, entravam em vigor para que essas façanhas desempenhadas por elas
fossem disciplinadas. Segundo Lina Aras e Josivaldo Oliveira, em relação ao discurso
jurídico que recaiam sobre as mulheres dos segmentos populares:

161
Todos esses crimes, segundo o discurso jurídico, poderiam ser evitados se
combatido, de forma eficiente, o elemento causador das transgressões: a
vagabundagem. Eram essas mulheres consideradas vagabundas, um caso
de polícia. Nos conceitos estabelecidos no Código Penal, como reflexo da
compreensão que tinha aquela sociedade sobre as mulheres pobres que
viviam do labor das ruas, seriam elas as ―degradadas sociais‖ (ARAS,
OLIVEIRA. 2003, p. 166).

O Código Penal é apresentado com um mecanismo de punição para as ações dessas


mulheres. Logo, variadas formas punitivas eram apresentadas para que fossem freadas as
condutas que não estavam contidas nos parâmetros normativos para aquilo que teria sido
atribuído as mulheres como um comportamento aceitável.

Dessa forma, ao se estudar o comportamento feminino que fugia do que seria o


―adequado‖, segundo Raquel Barreto, os ―grupos hierarquizados, sexualizados e
racializados mantiveram ao longo da história inúmeras práticas de resistência, em alguns
casos com releituras dos elementos da opressão‖ (BARRETO, 2005, p. 40).

Dessa maneira a seguir, será feita uma releitura sobre a atuação das mulheres
envolvidas com a prática da capoeira e as que exerciam as chamadas ―profissões
duvidosas‖ que foram por muito tempo consideradas transgressoras das práticas modernas
e civilizadas. Portanto, ao se referir a essas populares de Belém elas quebram com diversos
mecanicismos comportamentais que foram atribuídos a elas principalmente sobre seus
corpos.

Atuação das mulheres capoeiras e de “profissões duvidosas” na


República paraense
As noticias envolvendo, brigas, discussões, bate-bocas, protagonizado por mulheres no
cotidiano de Belém foram comuns de serem retratados nos jornais. Esses comportamentos,
pode se designar ao envolvimento das mulheres no mundo da capoeira, no fragmento do
jornal A Constituição do ano de 1876 intitulado: Que mulher capoeira! Conta à história da
―cafuza Jerônima, escrava de Caetano Antônio Lemos‖ que foi presa às ―7 horas da noite,
por praças do 4º Batalhão de Artilharia‖ (A Constituição, 21 de novembro de 1876. Apud.
OLIVEIRA, LEAL, 2009. p. 122). O titulo do artigo do jornal associou Cafuza Jerônima com a
prática da capoeira. Nesse viés, esse periódico permite-nos analisar que no ano de 1876, a
presença feminina estava ativa nesse meio. Portanto, esse fato trará a abertura para outras
abordagens de passagens de outros jornais que possuem relatos semelhantes sobre essas
mulheres capoeiras em Belém.

Dessa maneira, veremos a seguir mais um artigo do jornal Diário de Notícias do ano de
1896, onde dessa vez estavam envolvidas, Conrada Garcia, e sua irmã Antônia Garcia e
Leopoldina Gonçalves, que moravam na travessa do Atalaia, e foram levadas à Estação

162
Policial, acusadas de ―fazerem desordens, sobressaltando as famílias‖ (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 23 ago. 1896. p. 2.apud OLIVEIRA, LEAL, 2009.p. 144). Portanto, essa noticia
induz consideramos que as ações dessas mulheres estavam sobre uma vigília das
autoridades que buscavam regulamenta os termos da moral pública nos espaços das ruas.
Sendo o jornal um mecanismo utilizado para divulgar esses ocorridos, logo, a ideia de que
esses atos feitos por essas mulheres causavam sobressalto a seguranças das famílias
paraense, era bastante pertinente nesses artigos, tal ideia, estava carregada de uma
complexa idealização de moralidade comportamental, onde essas ações eram vistas como
ruins.

Outro relato de incômodo que atingia os bons costumes das tradicionais famílias de
Belém foi evidenciado no jornal Diário de Notícias do ano de 1897, onde uma mulher
chamada de Maria Meia Noite foi acusada por conta das ―imoralidades que prática essa
mulher quase diariamente‖, assim as, ―autoridade obrigasse a mesma a mudar-se d‟ali, pois
já não é a primeira vez que as famílias nos fazem essa reclamação‖ (DIÁRIO DE NOTÍCIAS,
28 set. 1897. p. 1). Tal episódio enfatiza que as autoridades tomassem de imediato uma
atitude que mudasse Maria Meia Noite daquele local, pois a mesma cometia imoralidades
diárias. O jornal não deixa claro quais seriam as imoralidades que essa mulher cometia ali.
Essas mulheres que foram mencionadas nas passagens do jornal acima são
repreendidas por seus comportamentos considerados inadequados. A acusação de
sobressaltar as famílias paraenses com suas ações tornam-se um dos motivo para que elas
fossem perseguidas pelas autoridades.
Elas foram consideradas: ―Tão perniciosas quanto os capoeiras”, essa frase retirada do
jornal A República, do ano de 1890; direcionada ao desembargador chefe de polícia
Gomensoro para que ele desse caça aos vagabundos. Vejamos abaixo a passagem do
jornal A República do ano de 1890.

Já que o honrado desembargador chefe de polícia está dando caça aos


vagabundos que infestam esta cidade, lembramos-lhe a necessidade de
estender suas redes até esses botequins indecentes que, à noite,
regorgitam de prostitutas e desordeiras que vivem no deboche e na
embriaguez.

Essas vagabundas, que por aqui andam aos montes desrespeitando as


famílias honradas, são tão perniciosas quanto os capoeiras.

Será um serviço de grande merecimento que prestará o Sr.


Desembargador Gomensoro à famílias paraense, mantendo para o
mesmo destino dos vagabundos as vagabundas.(A REPÚBLICA. 11 de
setembro de 1890, p. 1).

A prática da vagabundagem, a embriaguez e o meretrício foi representada pelo


articulista como causadora da ―desordem‖ da cidade, uma vez que o ideal republicano,

163
―estava em consonância com o surto modernizante e tinha como objetivo preparar o espaço
público para o livre tráfego das famílias‖ (FERREIRA, 1994, p. 66). Portanto, a ênfase sobre
as mulheres que atuavam no meretrício foi exposta com um enfoque bastante grande, pois,
mais uma vez, elas eram acusadas de serem indisciplinadas e isso prejudicava os valores
das famílias que faziam parte das camadas privilegiadas paraenses. Além disso, que eram
tão perigosas quanto os capoeiras segundo o articulista do jornal. Consequentemente, ―o
comportamento irregular das mulheres pobres era constantemente noticiado‖ (FERREIRA,
1994, p 100). Essas notícias cabiam denunciar essas condutas dessas mulheres, por serem
vistas como agravadoras do processo modernizador da cidade, sendo esse modelo baseado
em princípios das classes privilegiadas.

Em nome das virtudes desse modelo, o papel atribuído ao chefe de polícia no


combate dessas práticas para a manutenção de ordem pública burguesa, estava pautado
em ―estabelecer efetivamente as normas necessárias para o respeito e moralidade pública‖
(LEAL, 2008, p 50). Em síntese, cabia a polícia o papel de reprimir as ações dos populares
que não estivessem dentro do aceitável para os princípios republicanos.

Assim, observa-se a perseguição àquelas pessoas que exerciam ―'atividades


econômicas pouco valorizadas‖, por muitas vezes nas ruas ―da cidade, circulavam
personagens urbanos incompatíveis com o progresso e a civilização‖ (LEITE, 1996, p. 130).
Portanto, o trabalho com o meretrício, entre outros, eram atividades vistas como ―ilícitas‖,
logo, sofriam com a proibição do seu exercício, primeiro porque Belém passava pelo
processo de reordenamento da cidade, onde a politica de embelezamento era uma das
pautas principais desse processo, segundo esses ofícios eram considerados não dignos de
serem praticados, pois, para a estética da capital, isso sairia do processo normativo de
modernidade que essa capital buscava, terceiro esses pessoas das camadas populares que
geralmente eram negros carregavam em suas heranças marcas do processo escravista,
logo, os hábitos desses sujeitos eram vistos com negativos, marcas essas deixadas pelo
processo de escravidão.

Os espaços de atuação desses trabalhadores (as) tiveram papel essencial: ―Na


conquista do espaço público, as mulheres pobres tiveram um papel fundamental. Ágeis,
versáteis, econômicas, politicas, as libertas foram no contexto da cidade exemplares mais
significativos dos que venceram o desafio da rua‖ (FERREIRA, 1994, p. 99). Na luta diária,
para a conquista desses espaços, esses não estavam escapes de brigas gerados por algum
desentendimento entre as pessoas que transitavam por eles.

164
Veremos abaixo, uma passagem que mostrando a ação de mulheres envolvida em
um confronto, no ano de 1893 na Travessa Bom Jardim, onde ocorreu uma briga entre uma
lavadeira e sua rival que passavam por aquele local.

Dizem-nos que Maria da Conceição, lavadeira, encontrando ontem de


manhã uma rival cujo o nome ignoramos, a travessa Bom Jardim,
provocou-a e travou com ela grande luta, com os competentes puxões
de cabelos e bofetadas, sendo finalmente acalmado o animo das
beligerantes por alguma companheira que nessa ocasião passavam.

A policia não apareceu, o que concorreu para que o barulho


terminassem em família. (Diário de Notícias, 27 outubro de 1893. p. 1).

A situação relatada demostra que Maria Conceição, que era lavadeira provocou a
sua rival, por algum motivo não aparente no jornal e travou com ela grande luta, portanto,
verifica-se que essas mulheres envolvidas na briga não seguiam os modelos de
comportamentos que eram impostos a elas.
O Jornal Boa Nova do ano de 1877 apresentou uma diferença entre a mulher ―cristã‖
e a mulher ―mundana‖, segundo o jornal, ―não tem por fim precisamente formar a mulher
mundana, mas educar a mulher cristã, cuja vida deve ser ditada pelos ditames da lei
evangélica.‖ (A Boa Nova 3 fev. de 1877, p. 2). Observa-se na citação os ditames cristãos e
da família que foram dirigidos as mulheres cristãs, para as mundanas, essa educação cristã
não deveria ser direcionada, o jornal não enfatiza o porquê, porém existiam regras sendo
―As mulheres de elite estavam submetidas a regras que envolviam aspectos diferenciados
daqueles às quais se submetiam as mulheres pertencentes a grupos sociais subalterno‖.
(ARAS, OLIVEIRA, 2003, p. 164).
Dessa forma, no que tange as mulheres negras, segundo Bell Hooks,
[...] no século XIX o público branco retratou a mulher negra como
personificação de todos os traços negativos que eram usualmente
atribuídos ao sexo feminino como um todo, enquanto a mulher branca
era a personificação de todos os traços positivos, no século XX o público
branco continuava esta prática. (HOOKS, 2014, p. 129).
Nesse sentido, essas diferenças entre as mulheres brancas e negras refletem os
vestígios de uma sociedade recém-saída do período escravocrata. Consequentemente a
isso, uma das formas que essas mulheres desenvolveram para garantir sua sobrevivência
em meio a uma sociedade desigual e que não dava alternativas para garantir seu sustento,
foi a utilização do seu corpo como forma de ganhar seu sustento em meio a uma sociedade
que pouco se importavam com a vida dos negros e negras. Nesse viés;
Nos primeiros tempos após a Abolição interferia também no processo de
prostituição a degradação moral a que tinha sido reduzida a mulher negra.
Desmistificava-se, entretanto, com a universalização do salariato, o
fundamento econômico da prostituição. (SAFFIOTI, 1974, p. 96).
O autor Oliveira ao abordar sobre os trabalhos desenvolvidos por mulheres pobre
verificou que:

165
[...] atividades produtivas, como era o caso das ganhadeiras, cuja atividade
econômica de venda de seus produtos dependia quase que exclusivamente
da sua circulação pelas ruas em busca dos compradores de suas
mercadorias. Outras mulheres também circulavam pelas ruas em busca de
seus afazeres, outras ainda, para o oferecimento de seus serviços, como
era o caso das prostitutas. (OLIVEIRA, LEAL, 2009, p. 118-119).
Portanto, os trabalhos considerados ―ilícitos‖, foram uma forma encontrada para
driblar as dificuldades do dia-a-dia e garantir sua sobrevivência. Dessa maneira, a
passagem abaixo demostra a perseguição a malta de vagabundos e as mulheres de
―profissões duvidosas‖. Vejamos na citação do jornal Correio Paraense do ano de 1892
sobre o assunto.
Não é a primeira vez que a impressa do Pará chama a atenção do digno Dr.
Chefe de segurança para a malta de vagabundos e mulheres de profissões
duvidosas que reúnem-se à rua de Belém, em um frege fronteiro ao
trapiche da companhia do Amazonas, e ai, com palavras indecentes,
disputam, resultando muitas vezes em sérias brigas.
Não há famílias que possa passar por aquele lugar sem que não seja
ofendida em seu pudor. Reproduzem-se sempre essas cenas porque,
dizem-nos, não tem patrulha n‟aquele local. (CORREIO PARAENSE, 8 de
novembro de 1892)
Existia uma ―missão civilizacionista‖ onde ―a imprensa teve olhares atentos para o
comportamento moral das mulheres‖ (FERREIRA. 1994, p. 100). Dessa forma, segundo
LEAL, uma sequencia de artigos publicados pelo Diário de Notícias entre abril e maio de
1893, sob a epígrafe Fatos e Boatos, ―também segue o mesmo estilo de denúncias contra o
comportamento feminino e a relação com a política‖ (OLIVEIRA, LEAL. 2009, p. 148).
Nesse viés, os documentos que apontam para o envolvimento das mulheres,
resultaram em publicações constantemente direcionadas ao governo para garantir a
segurança da República como veremos na citação a seguir.
Seria conveniente que o governo tomasse qualquer medida em ordem para
garantir as instituições republicanas na PRATINHA: há ali tantas mulheres,
o sexo forte é coisa tão diminutamente respeitada ali, que não será para
admirar o vermos qualquer dia as referidas mulheres aclamarem d‟entre si
uma soberana, revivendo por esse modo o domínio da rainha Crinoline.
(DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 13 março de 1892)
O artigo intitulado O Reinado das Mulheres publicado no ano de 1892 pelo jornal
Diário de Notícias apela para as autoridades no sentido que eles tomassem as devidas
medidas contra as mulheres do Bairro da Pratinha, pois, ali havia mulheres do sexo forte
que poderiam prejudicar a ordem das instituições republicanas.
Outro artigo que evidência a ocorrência de um conflito envolvendo mulheres, foi
publicado no ano de 1893 sob a epígrafe (Fatos e Boatos) que trata da história de uma
mulher nomeada como ―Joana Maluca‖ que segundo o articulista era ―monarquista de papo
vermelho‖ Joana, entra em confronto com sua rival chamada de ―Boneca de Acapú‖.
Segundo Leal: ―o articulista não podia deixar passar a ocasião de associar à maluquice de
Joana a sua opção política‖ (OLIVEIRA, LEAL. 2009, p. 148).

166
Em outro relato no dia 27 de abril de 1893 o nome de ―Joana Maluca‖ aparece
novamente, nesse caso, envolvida em uma reunião na Rua do Rosário.
A Joaninha mais conhecida como Joana Maluca, ontem às 8 horas da
manhã, fez reunir muita gente na Rua do Rosário quando fazia uma
conferencia sobre Floriano.
Quando aproximei-me do grupo ela dizia ao meu primo Ouro Preto, há de
acabar com estes republicanos de meia pataca antão é que quero ir no Rio
de Janeiro pá capá o sem vergonha do Floriano. O Floriano que se livre de
Joana.
Que sentença! (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 27 abril de 1893. p. 1).
Nota-se nessa passagem, a resistência de Joana frente ao Regime republicano,
sendo que ela menciona que o seu „Primo‟ Ouro Preto, que ficou conhecido como Visconde
de Ouro Preto, uma figura politica do regime monárquico, que seria responsável, segundo a
visão de Joana Maluca, por acabar com os republicanos de ―meia pataca‖. Joana também
ressalta a sua vontade de ir até o Rio de Janeiro ―pá capá‖ o sem vergonha de Floriano,
sendo esse, um militar político que foi vice-presidente e depois o segundo presidente do
Brasil já no Regime da República.
Há ainda nesse mesmo dia e no mesmo jornal a história de:
Uma mulatinha de cabelinho nas ventas e chinelinha nos meios dos pés
escovou maravilhosamente a lata dum condutor de bonde, ante-ontem às 8
horas da noite no largo de Nazaré por que este queria beijá-la. Mau negocio
é o de pedir beijos e receber bofetadas até chorar.
E dizem que pancada de amor não doe safa? (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 27
abril de 1893. p. 1).
Ao se examinarem a citação acima se verifica que essa mulher que foi apenas
mencionada como ―mulatinha‖, ela escovou maravilhosamente a lata dum condutor de
bonde, ou seja, ela bateu nesse condutor, pois, ele tentou beijá-la sem seu consentimento,
essa mulher deu tantas bofetadas nele até fazer ele chorar. O articulista do jornal expõe de
forma sarcástica esse fato dizendo que: e dizem que pancada de amor não doe safa?
Em 1893, o Jornal Diário de Noticias relata a história de Maria das Dores entrou que
em um confronto com Maria Galinha às 8 horas da manhã por conta de ―um trovador de
esquina que era o Romeu d‟aquela‖ (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Belém, 30 abril de 1893).
Em virtude dos fatos mencionados nas passagens de jornais nota-se nelas posição
política e também forma referente ao comportamento feminino, sendo esse ultimo algumas
vezes mencionado de maneira pejorativa, pois, quando a passagem faz menção às
mulheres de alguma forma elas são retratadas como ―maluca‖, ―mulatinha‖, ―boneca de
Acapú‖, sendo esses, termos usado para chamara atenção com uma forma sensacionalista
para esses jornais, e que acabam reproduzindo de forma preconceituosa as narrativas
referentes a essas mulheres.
Porém, mesmo com essas visões hostis, lançadas sobre elas, podem-se observar as
posições tomadas por essas mulheres, em determinadas situações do dia-a-dia. Vejamos
mais um desses casos.

167
Amor, golada e faca

Ontem ao meio-dia, à avenida almirante Tamandaré, em frente a rua Bom


Jardim, houve um espetáculo de luta, em que faziam de gladiadores duas
saias.

Liduína Alves Mascarenhas, uma cor de café com leite que tem roxa paixão
por um indivíduo vagabundo, foi encontrá-lo em serviços com Maria José da
Conceição.

Não se conteve a amante travar e começou por um discurso, depois passou


a afogar o ciúme nuns copitos da branca e acabou por espalhar-se, na porta
do cortiço n° 5, em jogos de capoeiragem, tentando, afinal por abaixo a
porta do quarto da rival.

Ninguém se lhe podia encostar que não levasse uma rasteira.


Mas... repentinamente, abre-se a porta do quarto e a Maria José descasca
uma faca e passa dois golpes na adversária, sendo um na cabeça e outro
no sobr‟olho esquerdo.
Houve reboliço e intervenções, sendo as duas separadas. A polícia
compareceu e recambiou as lutadoras para o xadrez; indo também fazer-lhe
companhia uma pitonista discursadeira Odorica Maia conhecida por
Barriguda, que na ocasião, batia palmas. (FOLHA DO NORTE. Belém, 28
fevereiro de 1911).
A história a acima, foi relatada no jornal Folha do Norte no ano de 1911, sobre a
epígrafe: ―Amor, golada e faca‖, sendo que esse espetáculo de luta ocorreu na Rua Bom
Jardim, onde se faziam presentes gladiadores duas saias, ou seja, duas mulheres travaram
uma luta pelo motivo ocasionado por ciúmes, pois, Liduína Alves Mascarenhas, era
apaixonado por um indivíduo cujo jornal o chamou de vagabundo e que estava tendo um
caso com Maria José da Conceição. Desse modo, Liduína Mascarenhas pegou ele no fraga
com sua amante, assim, uma discursão foi travada e tempo depois jogos de capoeiragem
entraram em cena, portanto, ninguém podia encostar nessa briga, pois, levaria rasteiras,
facas foram utilizadas nessa luta sendo ela usada para dar golpes na cabeça e sobre os
olhos. Em relação à rasteira, esse é um golpe característico em jogos de capoeira e a
utilização de instrumentos como facas eram comuns de se utilizar nessa arte/luta. ―No Brasil,
os negros não só aprimoraram sua técnica. como ampliaram seus recursos de agressão - ou
defesa-, incluindo navalhas, facas, paus e cacetes‖. (SALLES, 2015. p. 122).
Por fim, o desfecho da história acaba com a presença da polícia ocasionando a
prisão das duas mulheres que foram parar no xadrez e ficaram na mesma cela de uma
pitonista discursadeira Odorica Maia conhecida por Barriguda, que na ocasião, batia palmas.
Essa história protagonizou mais um caso de mulheres na prática da capoeira.
Analisando os elementos que o articulista utilizou para descrever esse fato os movimentos
corporais são de suma importância para se comprovar ainda mais as habilidades de
mulheres no universo da capoeiragem. Onde, nesse ―espetáculos de saia‖, rasteiras e facas
foram utilizadas como mecanismos de defesas, quebrando com a ideia que por muito tempo
dizia que a capoeira era espaço exclusivo dos homens.

168
Outro relato que contem passagens sobre a participação de mulheres na capoeira foi
publicada no jornal Diário de Notícias do ano de 1893, sobre a manchete intitulada: História
pândega.

Era uma vez um bombeiro muito metido a sebo e que tinha vontade de
prender um pequeno que levava na cabeça um tabuleiro quando passava
junto do palacete.

Uma mulher ia atrás, e o menor, vendo a intenção do bombeiro, pôs-se de


atalaia, resmoneando: - se tu fores capaz de encostar, encosta, cabra!
O bombeiro armou o bote e num abrir e fechar de olhos botou os gadanhos
no pequeno, que assustou-se e deixou cair o tabuleiro da cabeça.

A mulherzinha, que estava com a pulga na orelha, cresceu com uma fúria
para o bombeiro, e quando este quis botar valentia levantando a mão para
aplicar-lhe um trunfo, ela estranhou o corpo, fez uma pequena pirueta e
uma tremenda bofetada estrendeou na cara do bombeiro.
Nova menção de valentia. Nova capoeiragem da mulher e... zás! Tome
bolacha na cara, seu bombeiro...
Aí o cabra fraquejou. Vendo que não era mulher pra homem, tirou o
capacete da cabeça, fez a pontaria e arremessou-o contra a mulher.
Errou o alvo ainda desta feita.

A bichinha abaixou-se, torceu o corpo, deixou o capacete passar e,


enquanto este rolava pelos paralelepípedos, ela botava de novo os 5
mandamentos na cara do bombeiro.

A luta era desigual. O valente conheceu a sua fraqueza; pôs sebo às


canelas e azulou para o quartel, debaixo de tremenda vaia.

Isto aconteceu ao lusco-fusco de terça-feira desta semana.

O mulherzinha badeja”. (grifos do autor). (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Belém, 12


janeiro de 1893).

A história relata o caso de uma mulher cujo nome não foi evidenciado, e que deu
uma tremenda bofetada em um bombeiro que estava querendo bater em um menino que
levava um tabuleiro na cabeça. Nota-se que crianças trabalhavam nos espaços das ruas da
cidade, algo visto como comum nesses espaços urbanos. Assim, ―o trabalho de menores,
sob orientação feminina, fazia parte do cotidiano das trabalhadoras de Belém‖ segundo
(PANTOJA, 2001 apud OLIVEIRA, LEAL. 2009, p. 155) outro ponto importante, consiste nos
movimentos corporais que a mulher desempenhava ao se defender e atacar o bombeiro.
Pirueta, bofetada e torção no corpo, essas agilidades corpóreas exultadas por essa mulher
mostra que o corpo servia como o elemento principal de sua defesa para se proteger dos
ataques que ela esteve sujeita. SALLES escreveu que ―o negro escravo organizou seu
próprio sistema de defesa. E começou usando o próprio corpo‖ (SALLES, 2015, p. 121).
Outro aspecto que se destaca na passagem acima refere-se à valentia da mulher em
relação à situação que ela se encontrava, onde se falou sobre uma nova menção de valentia
e mais, sobre uma nova capoeiragem de mulher.

169
No Pará, a experiências das mulheres dos segmentos populares nas ruas de Belém,
foi motivo de atenção do poder público, pois, elas representavam uma ameaça para o
processo normativo da manutenção da ordem, logo, deveriam seguir um modelo
comportamental. Nesse viés: ―O corpo se expressava no comportamento social e este, para
ser aceito, deveria seguir normas específicas‖ (OLIVEIRA, LEAL. 2009, p. 138) como foi o
caso das mulheres que frequentavam as zonas de meretrício e as capoeiras. E para que
isso fosse legitimado, a criação de Códigos de Posturas foi decisiva para tratar ―da
regulamentação dos variados aspectos de vida social e cultural da cidade‖ (LEAL, 2008, p.
51), ou seja, os indivíduos, principalmente aqueles que integravam a camada popular, que
não se enquadrassem nesses códigos seriam repreendidos e muitas vezes presos por
condutas que desmoralizavam a moral pública e cívica das cidades.
Dessa maneira, quando se fala em capoeira deve-se ter em mente que essa prática
tinha como participantes tanto homens quanto mulheres, logo, a ideia de que a capoeira era
exercida somente pelo público masculino, não é verídica. Portanto, mulheres estiveram
presentes há muito tempo no exercício da capoeiragem nas ruas da capital paraense.
Assim sendo, contar a história dessas paraenses das camadas populares da cidade
de Belém, que foram excluídas por muito tempo dos relatos históricos, evidência a
construção e o fortalecimento dessa prática cultural afro-brasileira que é a capoeira. Desta
forma, a: ―Liberdade que o negro começou a conquistar e a defender com o próprio corpo.
Com a capoeira‖ (SALLES, 2015, p. 148), é visível nos indícios dessas mulheres paraenses.
A capoeira vem destacar o protagonismo que elas desempenharam ao longo do tempo, na
construção da história da capoeira no Pará. As mulheres estavam presentes nessa
sociedade mostrando o quanto a força feminina resistia às mazelas sociais as quais elas
foram submetidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As experiências de mulheres na capoeira marcaram o cotidiano da República paraense.


Essas mulheres atuaram em meio a um espaço repleto de censuras direcionadas a elas.
Porém, isso não impediam-nas de atuarem como protagonistas no universo da capoeira. As
experiências diversas retratadas pelos jornais republicanos paraense permitiram visibilizar
algumas dessas sujeitas que resistiam as mazelas sociais que a elas foram submetidas.
Dessa forma, as experiências delas nas ruas de Belém revelaram as práticas sociais e as
estratégias e sua sobrevivência. Em suma, as mulheres capoeiras quebram totalmente com
as condutas que foram dirigidas a elas sobre um padrão de comportamento, seus corpos
foram um dos principais elementos de resistência em meio a essa sociedade.

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REFERÊNCIAS
Fontes

A. IMPRESSA

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Diário de Notícia. Belém, 27 abril 1893.
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Diário de Notícias. Belém, 27 outubro 1893.
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B. Álbuns Fotográficos

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SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis- RJ:


Vozes 1974.

172
#NAOMEROTULE: JUVENTUDE, IDENTIDADE E
DIFERENÇA EM BELÉM/PA
https://doi.org/10.29327/527231.5-11
Kirla Korina Anderson Ferreira – IFPA
Bruna Conceição de Souza Barata – IFPA
Resumo

O objetivo principal consiste em compreender antropologicamente os significados dos


marcadores sociais da diferença, em especial gênero e sexualidade, na trajetória de vida de
22 jovens estudantes do ensino médio, de 17 e 18 anos, na cidade de Belém/PA. Para isso,
busca entender como falam das próprias identidades, em como elas são atravessadas por
tais marcadores e como família e a escola aparecem nesse contexto. Os jovens foram
ouvidos em dois momentos principais: 1) na realização da atividade Linha da Vida, em que
escreveram os acontecimentos e pessoas mais importantes (de maneira positiva e/ou
negativa) na formação de suas identidades; 2) na apresentação para a turma dos resultados
da referida atividade. Identidade de gênero, orientação sexual, bullying, cobranças da
família e da escola são alguns dos temas que aparecem nas trajetórias, quase sempre
acompanhadas de casos de conflitos (velados ou não).

Palavras-chave: Juventude, Gênero, Sexualidade, Identidade.

Introdução

O presente artigo consiste em compreender antropologicamente os significados dos


marcadores sociais da diferença, em especial gênero e sexualidade. Para isso buscamos
entender como falam das próprias identidades, de modo a perceber como elas são
atravessadas por tais marcadores e como a família e a escola aparecem nesse contexto.

Os personagens principais são 22 jovens, de 17 e 18 anos, que cursam o ensino médio


técnico no Instituto Federal do Pará – campus Belém. Para a coleta dos dados, utilizamos
uma atividade, na disciplina sociologia II, que consistia em pontuar cronologicamente os
principais eventos que marcaram suas trajetórias de vida, bem como as pessoas que
consideram mais importantes em suas vidas.

Dentre o que o foi relatado pelos alunos, destacamos quatro categorias principais que são
família, educação, namoro/amizade e expectativa/frustração, que são uma noção mais
ampliada das formas de socialização na juventude. A partir destas categorias iniciamos a
discussão acerca do tema. Neste sentido, procuramos compreender os processos que
norteam a construção da identidade dos jovens na sociedade.

173
Resultados e Discussão

1. Gênero, Identidade na trajetória de vida

A atividade linha da vida, que inspirou as reflexões que apresentamos neste trabalho, foi
desenvolvida no contexto da discussão do Eixo Temático Cultura e Identidade, em uma turma de
segundo ano do ensino médio, em uma instituição de educação profissional e tecnológica. Em
linhas gerais, este eixo busca pensar criticamente o particular e o universal acerca da cultura nas
sociedades humanas. Na antropologia, o conceito de cultura é apresentado em contraposição à
ideia de erudição e refinamento do senso comum e serve para se referir à humanidade como um
todo (todos têm cultura), mas que precisamos observar suas especificidades em cada contexto
social (DAMATTA, 1981; LARAIA 2011 [1983]).

Para abordar as temáticas desse eixo, procuramos sair da aula expositiva, e utilizamos, então, a
metodologia de roda de conversa, para que se sintam a vontade para falar do assunto. Na roda
de conversa, o ponto de partida costuma ser o que compreendem acerca dos conteúdos, o que
auxilia na proximidade professora-alunos, à medida que provoca um exercício de compreensão
mais ampliada de nossas experiências pessoais e nossa relação com o mundo.

Em se tratando do que entendem por feminino e masculino, eles apresentam uma


multiplicidade de situações em casa, daquilo que é colocado como sendo atribuição de
homens e mulheres, e também de gerações, mostrando que cada casa representa um caso,
uma forma de pensarmos sobre as atribuições de gênero (ANDERSON, 2013). Sobre este
assunto, eles contaram que:

―Professora, eu sou o irmão mais velho e sei cuidar sozinho de uma


casa. Não tenho nenhum problema com isso‖ (Bruno, 17 anos)

―Quem manda na minha casa é a minha mãe (...). Ela colocou meu
pai para fora quando descobriu que ele tinha outra mulher. A mulher
pequena, mas muito braba. Ela bate bem aqui em mim [ele aponta
a altura um pouco abaixo de seu ombro], mas até eu tenho medo de
deixar ela com raiva.‖ (Sérgio, 17 anos)

―Ah, professora! Claro que só existem dois sexos: o homem e a


mulher. Essas outras coisas, que a gente nem sabe direito definir,
está tudo errado.‖ (Marcelo, 16 anos).

174
―Mulher tem que ser obediente para o marido, sim. Isso está na
Bíblia. Minha mulher vai ter que ser assim comigo, minha mãe é
assim lá em casa.‖ (Felipe, 15 anos).

―As coisas estão mudando, mas ainda não penso em casar, não.
Quero mesmo é estudar engenharia e ganhar o meu dinheiro. Meu
pai me dá o maior apoio nisso (...). Ele disse que é até melhor eu
nem namorar ainda, para não me atrapalhar.‖ (Natália, 17 anos).

As falas nos dão um pouco a dimensão de como percebem gênero e sexualidade, tendo
como referência, muitas vezes, aquilo que ouvem em suas famílias, na igreja que costumam
freqüentar, entre os amigos. Ademais, eles demonstram interesse pela diversidade nas
relações humanas, principalmente no que se refere à identidade de gênero e sexualidade.
Acontece, ainda, de um ou outro deixar claro que não se interessa pelo tema, ou não queira
tratar dele – em um clara referência à desqualificação das pesquisas acadêmicas na área
sob o rótulo de ―ideologia de gênero‖, que reforçam o conservadorismo de grupos políticos e
religiosos do país (MISKOLCI e CAMPANA, 2017; REIS e EGGERT, 2017).

Como forma de contextualizarmos a discussão sobre identidade, pedimos para que


escrevessem sobre como se identificam, em uma atividade chamada linha da vida. Em
forma de desenho, pedimos para que destacassem eventos/pessoas importantes de suas
vidas e que contribuíram para serem quem são hoje, cujos principais assuntos estão
listados no quadro a seguir:

175
Quadro 1: Principais assuntos destacados na linha da vida
CATEGORIAS PRINCIPAIS EVENTOS CITADOS
Família - Relação com os irmãos
- Separação dos pais
- Orientação sexual e identidade de gênero
- Viagens e/ou mudança de endereço
- Falecimento de pai, mãe, avô e/ou avó
- Animal de estimação
Educação - Ingresso no IF
- Mudança de escola
- Curso de línguas/Intercâmbio
- Curso de teatro
- Artesanato
- Prática de esportes/competições esportivas
- Sofreu bullying
- Eventos na igreja/ação social
Namoro/Amizade - Primeiro beijo
- Conhecer pessoas novas
- Início e/ou término e namoro
- Fazer amizade/Conhecer melhor amigo/a
- Morte de um amigo
- Decepção com amizade ou namoro
- Primeiro porre
Expectativas/Frustrações - Ir a uma festa ou show
- Virar fã de um artista
- Sentem-se fracos e inseguros
- Cobrança para ser um/a bom/boa aluno/a e
também um/a bom/a filho/a
- Depressão
- Medo do fim do mundo/copa do mundo
Fonte: Atividade de sala de aula, 2016 a 2018.

Procuremos agrupar em quatro categorias principais os assuntos presentes em todas as


linhas que foram entregues e, na coluna ao lado, as principais referências que fizeram sobre
tais assuntos. A vida deles com a família é sempre contada, em momentos bons como
viagens, passeios, mudança de endereço, assim como nos ruins também, a exemplo da
separação dos pais, morte de algum ente querido, e a aceitação quanto à orientação sexual.
Chamou nossa atenção nesta atividade o quanto eles se abriram, das cobranças que
recebem em casa por serem ―o único homem da casa‖, ou ainda, pela família depositar uma
grande expectativa neles, o que acaba mostrando tensões (e, em alguns momentos,
conflitos e desentendimentos abertos mesmo) acerca da percepção do „outro‟ em casa.
Ademais, a dinâmica linha da vida contribuiu para que percebêssemos algumas dimensões
simbólicas nas trajetórias de vida, de coisas que se identificam ou que precisam se identificar por
serem jovens (DAYRELL, 2010). Além disso, é possível perceber que a identidade juvenil

176
está num campo de representações, símbolos e rituais, que esse mesmo autor classifica
como mundo da cultura.
O momento da aula está longe de ser algo técnico, pronto e acabado, em que se discutem
mecanicamente conteúdos, teorias, disciplinas, mas um universo relacional, em que
estranhamento e alteridade estão presentes, como nomes importantes da antropologia nos
tem chamado atenção (MALINOWSKI, 1978; DAMATTA, 1987; GEERTZ, 1989; CARDOSO
DE OLIVEIRA, 2006). O que emerge da relação de alteridade em sala de aula, sob o ponto
de vista antropológico, é a figura do professor como um interlocutor, e que os jovens querem
ser ouvidos em suas identidades, expectativas, frustrações, sonhos.
Carvalho Filho (2014) mostra que o ensino de sociologia no ensino médio é um problema que diz
respeito à construção e transmissão de um saber e está ligado à sua institucionalização no meio
acadêmico e de seu ensino. Implica também considerar sua função social, sua razão de ser.
Assim, dada a natureza de produção do conhecimento das ciências sociais, nossa disciplina está
diante dessa aproximação entre professor e aluno, uma aproximação necessária no atual
contexto de fluidez das relações sociais na sociedade moderna.

2. Apresentação da linha da vida

A tabela abaixo representa o número de vezes que cada evento foi citado pelos alunos,
tendo como ênfase aos eventos citados no quadro 1 do tópico 1.

Quadro 2: Número de vezes que cada evento foi citado

EVENTOS CITADOS Nº DE VEZES


Relação com os irmãos 3
Separação dos pais 5
Orientação sexual e identidade de 1
gênero
Viagens e/ou mudança de endereço 10
Falecimento de pai, mãe, avô e/ou avó 2
Animal de estimação 3
Ingresso no IF 14
Mudança de escola 10
Curso de línguas/Intercâmbio 3
Curso de teatro 2
Artesanato 1

177
Prática de esportes/competições 4
esportivas
Sofreu bullying 4
Eventos na igreja/ação social 5
Primeiro beijo 6
Conhecer pessoas novas 3
Início e/ou término e namoro 8
Fazer amizade/Conhecer melhor 7
amigo/a
Morte de um amigo 4
Decepção com amizade ou namoro 2
Primeiro porre 2
Ir a uma festa ou show 3
Virar fã de um artista 3
Sentem-se fracos e inseguros 1
Cobrança para ser um/a bom/boa 2
aluno/a e também um/a bom/a filho/a
Depressão 1
Medo do fim do mundo/copa do mundo 4
Fonte: Atividade de sala aula, 2016 a 2018

Ao analisarmos as linhas da vida percebemos que os alunos não tiveram timidez para descrever
os acontecimentos que marcaram as suas vidas, principalmente quanto aos episódios que
estavam relacionados a namoro, emoções, família e sobre suas personalidades. A percepção
deles acerca da construção de sua identidade está relacionada
forma com eles interagem com o meio e com as pessoas que fazem parte deste
momento. Segundo eles:

―[...] Hoje sou uma pessoa totalmente diferente do que eu era em


2015, 2016, 2017, felizmente amadurecer não se relaciona com
idade, e isso e muitas coisas que aconteceram contribuíram para o
que eu sou hoje‖. (Italo, 17 anos).

―Bem, essa pequena retrospectiva da minha vida mostra um pouco


sobre as coisas que marcaram e ajudaram a forma meu caráter e
minha personalidade, e tudo isso por causa dos maravilhosos
ensinamentos minha mãe, ela ajudou a construir quem eu sou‖.
(Maria, 17 anos)

178
A ideia que eles construíram sobre si mesmo é interessante, quando começamos a ler o que
foi escrito por eles percebemos o quanto eles enfatizavam a palavra amadurecimento, para
eles esta ideia estaria vinculada a acertos e erros. A família e os amigos têm um papel
importante neste amadurecimento. Não há uma necessidade de estarem entrelaçados em
um grupo só, mas sim de estar em um ambiente diversificado, que possibilite um número
infinito de experiências, que estariam vinculadas a expectativas e frustações.

Devemos destacar também as expectativas que sentiram com relação ao ingresso no IFPA
como um marco importante na sua vida, que estão ligadas à possibilidade de construir
novas amizades, de ascensão social e de novas experiências. Muitos relataram a alegria da
família por terem conseguido passar no processo seletivo e das expectativas que os
familiares criaram sobre eles.

Quando encontramos os alunos para falar sobre a linha da vida e o queríamos fazer com
estas informações, os alunos ficaram felizes e demostraram interesse em saber mais sobre
aquilo que nós estávamos apresentando. No momento em que nós estávamos conversando
com eles, muitos até brincaram, que queriam adivinhar de quem seria aquela história.
Aquele encontro formal se tornou um momento de descontração, onde foi permitido falar
sobre diversas coisas.

A turma começou a relatar outros episódios. Naquele momento eles (sem nenhuma timidez)
contaram às frustrações que eles sentiram quando ingressaram no instituto, e que mesmo
que eles tivessem vivenciado momentos bons com os amigos e com curso em si, sentiam-
se muitas vezes desrespeitados e que as cobranças exacerbadas da instituição os
deixavam desmotivados. Alguns alunos relataram que muitas vezes tentaram pedir o apoio
dos órgãos de assistência do instituto, mas não tiveram retorno algum e, segundo eles, não
foram levados a serio.

A partir do relato dos alunos podemos pensar que educação estamos oferecendo aos
jovens? Será que a valorização do sistema de avaliação seria realmente algo eficaz? Que
consequências ela pode causar ao jovem? Seria necessário montar um currículo
humanizado?

As frustrações relatadas pelos alunos iam além do âmbito escolar, pois muitos descreveram as
dificuldades que enfrentam para lidar com a família e com os amigos. O sentimento de não
aceitação da família, fazia com que cobrassem de si ao máximo. Alguns jovens relataram que o
seu ingresso no IFPA foi uma forma de aliviar a pressão da família com relação aos estudos.
Como formar de provar que eles eram diferentes da ideia que os familiares tinham sobre eles.

179
A presença da família não está em todas as linhas da vida, mas muitos apresentam algo em
comum, como por exemplo o divórcio dos pais. Os alunos contaram como foi este processo
de separação e como os amigos acabaram sendo importantes neste momento. Dentre os
relatos alguns acabaram indo morar na casa de parentes devido ao ocorrido. Um jovem
contou que durante o período em que estava morando com os parentes, sentia-se
pressionado a voltar para a casa da mãe. Ele afirma que foi morar com mãe em decorrência
dos conflitos dos tios com a mãe.

―Fui morar em Marituba, junto com a minha mãe e meu irmão, já que o
meu padrasto ainda estava desempregado na época não tinha como
eu ir morar com a minha mãe, mas de tanto os meus tios acusarem
que a minha mãe tinha me abandonado, com tudo que tava
acontecendo quis morar com ela‖ (Marcos, 17 anos)

Este relato não foi somente do Marcos, mas sim de outros que sentiam-se pressionados a
sair de casa em decorrência de conflitos familiares. Em relação às pressões da família, elas
são mais contadas pelos rapazes. Essas pressões estão ligadas à expressão de
sentimentos, ao comportamento, a beijar (ou ―pegar‖ alguma menina, como um deles
relatou), a ser um bom aluno, todos eles relacionados a uma determinada ideia de
masculinidade. Quanto às falas das meninas, podemos também perceber pressões quanto
ao sucesso nos estudos principalmente. Nessas situações muitos apresentaram uma
maturidade diante das situações, pensando nas consequências que isso poderia ocasionar.

Os jovens eram extrovertidos e que buscavam lutar por aquilo que almejavam, não se
reprimindo as injustiças. Sempre buscando de alguma forma colocar para fora suas opiniões
acerca de determinadas situações do cotidiano.

Considerações Finais

Diante desses relatos, qual é a importância do professor em sala de aula? Como a sociologia
contribui para a discussão de assuntos da vida na história dos jovens da EPT? Neste sentido,
emerge a importância de se refletir sobre da relação entre professor e ALUNOS no contexto das
aulas de sociologia no ensino médio, com o objetivo de compreender antropologicamente a aula
como um momento de encontro etnográfico, em que estamos muitas vezes confrontando
subjetividades nas discussões dos temas da disciplina.
Tratar gênero e sexualidade em sala de aula é uma temática longe de unanimidades, que
desperta muita curiosidade entre os jovens e costuma se confundir com a experiência pessoal

180
de alguns deles, o que se reflete em um sistema de classificações (hierarquizantes) que
eles acionam para falar de si e dos outros durante as aulas.
Entretanto, neste mesmo contexto de discussão, há também opiniões quanto à dificuldade
de se compreender comportamentos que não se ―encaixam‖, como eles disseram, nas
definições binárias de gênero e, menos ainda (se for para seguir por esta linha de
raciocínio), quando se inclui na análise o que se entende por orientação sexual.
Ademais, o trabalho oferece subsídios para se entender a juventude como um momento
presente na vida dos estudantes de ensino médio, marcada por processos de
experimentações, curiosidades, e com demandas na escola e fora da escola, que precisam
ser ouvidas e atendidas. Por toda esta pluralidade apresentada nas linhas da vida discutidas
aqui, um dos significados mais importantes acerca da juventude (se é que podemos falar
assim) diz respeito a não aceitarem uma definição vinda de fora, um rótulo, que não leve em
consideração as vivências e experimentações pelas quais estão passando.

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Belém/PA. Belém/PA: UFPA, 2013. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. 221 fls.
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São Paulo: Editora UNESP, 2006.

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epistemológico e sociológico. EDUCAÇÃO & REALIDADE, v.39, n.1, jan.-mar. 2014. P.
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DAMATTA, Roberto. Relativizando; uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro:


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GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Zahar, 2011.

MALINOWSKI, Bronislaw. Tema, método e objetivo desta pesquisa. In: Argonautas do


Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril, 1978. (Coleção Os Pensadores).

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(Orgs.). Ciências Sociais na Atualidade: resistência e invenção. São Paulo: Paulus, 2004.
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MISKOLCI, Richard; CAMPINA, Maximiliano. ―Ideologia de gênero‖: notas para a genealogia


de um pânico moral contemporâneo. REVISTA SOCIEDADE E ESTADO, vol. 32, n. 3, set-
dez, 2017.

REIS, Toni; EGGERT, Elda. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de
educação brasileiros. EDUC. SOC. Campinas, v. 38, n. 138, jan-mar-2017. P. 9-26.

182
AT 2 - Gênero, Cidadania e Participação Política
Coordenação

Maria Luzia Miranda Álvares – UFPA

Josinete Pereira Lima - UEPA

Nilson Sousa Filho - UFPA

Proposta da Área temática

Esta área temática propõe-se a estimular o debate sobre as várias questões


discutidas mundialmente evidenciando: as relações sociais de gênero como
relações de poder; a diversidade como um valor nas relações humanas,
representando um princípio básico de cidadania, com efetivo direito à
diferença, possibilitando ações de acordo com os valores individuais e
eliminando condutas discriminatórias; as desigualdades sociais pela tardia
cidadania feminina nas sociedades democráticas tendentes às representações
e práticas assimétricas entre os gêneros; os direitos humanos incluindo-se os
direitos fundamentais das mulheres como sejam os direitos culturais, sociais,
econômicos, civis e políticos em suas várias intercessões - geracionais, étnico-
raciais, de classe e geográfica.

183
V ENCONTRO AMAZÔNICO SOBRE MULHERES E GÊNEROS – GEPEM
19 a 21 de novembro de 2019
Universidade Federal do Pará (UFPA)

AT2: Gênero, Cidadania e Participação Política.

184
185
DESIGUALDADE E REPRESENTATIVIDADE FEMININA: UMA ANÁLISE SOBRE
AS REPRESSÕES E REPRESENTATIVIDADES FEMININAS NO JOGO FREE

https://doi.org/10.29327/527231.5-12 FIRE

Aline Fernanda Pereira da Silva – Universidade do Estado do Pará


Dra. Maria Bernadete Reis Maia- Universidade do Estado do Pará
Resumo

Assim como ocorre discriminação de mulheres na vida real, o meio virtual pode ser marcado
também por essas características, e quando o assunto é sobre jogos, grande parte da sociedade
ainda ver o mundo gamer voltado para o público masculino. Partindo dessas questões, o
presente trabalho tem como fim demonstrar a representatividade feminina no jogo Free Fire, bem
como tratar das represálias que o público feminino sofre nos jogos digitais. Para isso, foi utilizada
a abordagem qualitativa, com entrevistas semidirigidas realizadas de forma presencial e virtual,
sendo assim, não há como delimitar um espaço geográfico para a pesquisa, tendo em vista que
a pesquisa ocorre em boa parte no ciberespaço. Feita a análise de dados, se observou a
presença de diversas posições das interlocutoras, tendo como a mais semelhante o sentimento
compartilhado de um orgulho dessas mulheres por estarem em um meio considerado masculino
e ainda assim terem um bom desempenho, mas apesar dessa sensação de empoderamento, se
constatou que o meio gamer, e especificamente o jogo Free Fire continua sendo um espaço
marcado por opressões e discriminações voltadas para o público feminino, o que leva a reforçar
ainda mais uma luta em busca de respeito e reconhecimento para com meninas e mulheres
gamer‟s.

Palavras-chave: Violência; Mulheres; Representatividade; Jogos on-line.

Abstract

Just as real-life discrimination against women occurs, the virtual environment can also be
marked by these characteristics, and when it comes to games, much of society still sees the
gamer world geared toward the male audience. Based on these questions, this paper aims to
demonstrate the female resultativeness in the ―Free Fire‖ game, as well as to addressing the
reprisals that the female audience suffers in digital games. Thereunto, the qualitative approach
was used, with semi-directed interviews conducted in person and online, so there is no way to
delimit a geographical space for research, given that the research takes place largely on the
cyberspace. After analyzing the data, we observed the presence of different positions on the
interlocutors, the most similar being the shared feeling of pride between these women for being in
a mostly male environment and having great performances as players, however, despite their
feeling of empowerment, it has been found that the gamer environment, and specifically the ―Free
Fire‖ game remains a space marked by oppressions and discriminations aimed at the female
audience, which leads to further reinforcement to the fight for respect and recognition
towards gamer‟s girls and women.

Keywords: Violence; Women; Representativeness; Online Games

186
Introdução

A era informacional no qual a sociedade se encontra promove diversos tipos de


comunicação e facilidades no cotidiano das pessoas, desde meios educativos até os
recreativos; dentre estes meios, não se pode desconsiderar os jogos digitais que tem a se
expandir cada vez mais ao logo de tempo, e ganhando mais força e representatividade,
principalmente entre os jovens.

O jogo em si já é executado historicamente pelos indivíduos ao longo dos anos, utilizados


e criados de diversas maneiras com os mais variados fins. Huizinga (2000), busca explicar em
seus estudos a origem e a importância dos jogos não apenas como algo pertencente a cultura,
mas como algo que vai além, que transcende a noção de racionalidade do indivíduo. O que se
percebe é que o jogo possui uma grande importância na vida de um ser, usando tal meio como
forma de divertimento, prazer, e até mesmo como uma maneira de socialização e
disciplinarização, como é citado no próprio texto de Huizinga (2000) ao se referir a construção
social de um indivíduo. ―Segundo uma teoria, o jogo constitui uma preparação do jovem para as
tarefas sérias que mais tarde a vida dele exigirá, segundo outra, trata-se de um exercício de
autocontrole indispensável ao indivíduo‖. (HUIZINGA, 2000, p. 4).

Os jogos digitais atuais, principalmente os jogos online como o Free Fire, que é um
jogo considerado novo no cenário gamer, não se distancia totalmente dessas características
demarcadas por Huizinga (idem) ao tratar do jogo, tendo em vista que os jogos online estão
presentes na cultura digital e no cotidiano – como já mencionado – principalmente dos
jovens. Kikuch, Schimiguel e Silva (s/d) abordam tais questões salientando a expansão dos
jogos, tendo eles não apenas como formas de divertimento ou passa tempo, mas como um
esporte em construção, os denominados e-sportes ou esportes digitais que geram grandes
campeonatos, megaeventos, e com isso uma expansão também no mercado financeiro e,
tudo isso afeta de alguma forma o meio sociocultural, como eles próprios têm a dizer que a
―imersão dos games, traz-se elementos que interferem de forma significativa no meio
sociocultural, sejam elas boas ou ruins, mas sempre significativas aos jogadores emergidos‖.
( KIKUCH, SCHIMIGUEL e SILVA, s/d, p. 9).

Com essa variedade de percepções e utilizações dos meios digitais, com ênfase nos
jogos, se leva a pensar também nas desigualdades e preconceitos sociais que podem
promover, tendo em vista a vivência em uma sociedade onde se tem esses diversos fatores
que intensificam as desigualdades, dentre elas a elucidada por este texto, a saber: a
desigualdade de gênero. A relevância deste debate apresenta-se nos recorrentes dados
divulgados sobre os altos índices de violência contra mulheres, chegando a 79.661 mil

187
1
denúncias no Brasil em 2018 , o que faz com que seja inegável a coexistência de uma
sociedade patriarcal, onde as desigualdades de gênero se apresentam de uma maneira
gritante, o que se destaca também no meio digital.

Metodologia

Goldemberg (2004) trata da pesquisa científica como necessário, e passível de grande


criatividade do pesquisador para atingir seu objetivo, além da disciplina, organização e
humildade ao abordar o objeto de pesquisa, e cita que mesmo nas pesquisas quantitativas,
querendo ou não, a subjetividade do pesquisador vai estar presente, seja na escolha do tema,
nas perguntas escolhidas para o roteiro, na forma de análise do material, em tudo isso irá existir
a subjetividade do pesquisador, impedindo que haja uma pesquisa realmente neutra.

Nas Ciências Sociais, se tem uma característica bem específica que é a busca
incansável de entender os diversos casos, e o ciberespaço não se distancia, pelo contrário,
se torna um grande objeto de pesquisa por conter nele diversas formas de interações
sociais. Segata e Rifiothis (2016) destacam a etnografia no ciberespaço, um meio que leva a
elaboração de novas metodologias.

O lócus de estudo, em construção, possui um diferencial, ocorrendo tanto no meio


real quanto no virtual, tendo em vista o tema do projeto que aborda as temáticas dos jogos
digitais, ou seja, o ambiente do ciberespaço. Assim, não há como delimitar um espaço
geográfico para a pesquisa, uma vez que, o ciberespaço, a internet em si, não se prende a
um único lugar, ciente das conexões existentes no ato de comunicar via interação no meio
virtual, constituído por máquinas e pessoas. Nas palavras de Segata e Rifiotis (2016), ao
buscar descrever tais conexões, ―uma atividade eminentemente interpretativa para se tornar
uma descrição das conexões em actantes ―humanos‖ e ―não humanos‖ (SEGATA e
RIFIOTIS, 2016, p. 15).

Tendo ciência de tais questões, o presente trabalho é um estudo de caso, o que


possibilita uma maior fonte de informações detalhadas sobre o tema, utilizando um método
fenomenológico, pois a fenomenologia busca alcançar mais a fundo as vivências e
possibilidades de análises sobre determinado assunto. O estudo utiliza uma abordagem
qualitativa, tendo a aplicação de entrevistas a oito mulheres por meio de vídeo chamadas e
de forma presencial, com perguntas semi-estruradas, focalizadas, possibilitando uma maior

MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. MDH divulga dados sobre feminicídio. [2018]
Brasília. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/agosto/ligue-180-recebe-e-
encaminha-denuncias-de-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 11 nov de 2019.

188
liberdade para as interlocutoras em expressar suas vivências e com intuito de alcançar o
objetivo do trabalho, tendo bases teóricas de uma revisão bibliográfica.

O despertar para pesquisar sobre o tema

O meu interesse por investigar e estudar sobre o tema partiu de diversos fatores,
iniciando com o tema do meu trabalho de conclusão de curso que aborda os jogos digitais e
seus processos de socialização, o que me levou até mesmo a jogar o jogo Free Fire por um
período. Outro ponto importante por me instigar a realizar tal pesquisa foi ter contato
cotidiano com uma amiga também que joga o Free Fire e ouvir sempre suas reclamações
sobre a falta de credibilidade no jogo diante do público masculino pelo simples fato de ser
mulher, com isso, comecei a curiosidade científica por entender um pouco mais as relações
de gênero no meio concreto e relacionar com o meio digital – sendo a área que mais me
motiva em relação a pesquisa –, que não se difere da realidade do dia a dia, muito pelo
contrário, reflete e está intrinsicamente ligado com o cotidiano de cada indivíduo.

Assim como as redes sociais da internet, os jogos digitais permitem esse contato
com o outro por meio de vídeos chamadas, chats durante as partidas, comunidades games,
o que demonstra uma grande forma de socialização, mas também pode ser uma maneira de
promover uma segregação com alguns públicos, inclusive com o feminino. Araújo e
Castilhos (2017) tratam em seus escritos sobre o preconceito direcionado as mulheres no
meio gamer, marcado por uma cultura machista que vem sendo enraizada ao longo dos
anos e naturalizada com a formação da sociedade patriarcal. ―Pode-se afirmar que a
comunidade dos esportes eletrônicos está demasiadamente infectada pela cultura
machista‖. (ARAÚJO, MENTI e CASTILHOS, 2017, p. 81).

Mas, apesar da grande repressão do público feminino que algumas autoras


demonstram em seus textos, o jogo também pode ser visto como uma maneira de
resistência e empoderamento, que é o que me causa grande empolgação ao pesquisar tal
questão. Bristot, Pozzebon e Frigo (2017) destacam que ―a representatividade da mulher
nos games é uma forma de quebrar os paradigmas atribuídos a sua imagem e
comportamento a fim de dar opções de escolha às meninas, mostrando que elas podem
pertencer e explorar esse mundo‖. (BRISTOT, POZZEBON e FRIGO, 2017, p. 863).

Uma revisão teórica

Quando se aborda a questão dos meios digitais e jogos em uma análise sociológica, se
torna necessário ressaltar o que venha a ser essa sociologia digital. Para Miskolci (2016), a
sociologia digital é vista como um campo de análise emergente, outros dizem ser um meio que
possa ser capaz de explicar as relações midiatizadas, e ainda há também os que dão seu

189
parecer sobre a possibilidade da criação de novos conceitos que sobre essa temática,
modificando assim a disciplina, dando um novo ar metodológico na forma de analisar.

A ideia de sociologia digital abarca a noção de interatividade e sociabilidade entre os


indivíduos, tendo os usuários das mídias não apenas como receptores de informações, mas
também criadores, o que lembra a interpretação de Santaella (2003) ao compreender que o
meio digital, as mídias, são apenas meios de informações, mas quem cria essas
informações são as pessoas, ou seja, as pessoas que comandam e disseminam discursos,
utilizando as mídias apenas para a transmissão, e produção de conexão.

Os aparatos tecnológicos facilitaram bastante as relações sociais, como as


plataformas e as mídias. As relações face a face vão dando lugar as relações mediadas por
meios tecnológicos, que mesmo não substituindo as relações presenciais, passam a dar
espaço para novas formas de conexão, levando assim a uma cultura da conectividade.
Fatores como faixa etária, nível socioeconômico, nível educacional, entre tantos outros,
afetam na construção da conectividade e interações sociais na rede digital.

interessante saber que as relações mediadas pelas mídias continuam existindo


mesmo no modo off-line, ou seja, as relações no meio digital não são relações à parte, mas
sim integradas no meio real, tendo assim a construção de sujeitos digitais, e é justamente
esse meio que a sociologia digital busca estudar.

Como sociólogos, direcionamos nosso interesse às relações sociais, o que


nos leva a não estudar computadores, softwares ou plataformas eletrônicas
de comunicação, antes a pesquisar como os sujeitos usam a tecnologia em
sua vida cotidiana (MISKOLCI, 2016, p. 290).

Os jogos digitais são uma das diversas maneiras de interação e conectividade por
meio dos aparatos tecnológicos. Moita (s/d) em suas pesquisas aborda bastante esse meio
gamer, destacando como o jogo está presente na vida dos indivíduos, algo que já é uma
característica da espécie humana, sendo desenvolvida de uma forma física e mental, uma
complementando a outra, gerando ainda mais atratividade do ser humano para a ação do
jogar. A referida autora menciona que os games surgiram e criaram um novo padrão
advindo dos meios tecnológicos, se tornando um padrão universal encantando e fascinando
cada vez mais pessoas.

O jogo, segundo Moita (s/d), leva o indivíduo para um meio onde se tem a presença
de variadas possibilidades em um piscar de olhos, ao alcance do jogador, movidos pela
emoção que os tomam de conta, expressando também suas visões de mundo no espaço
dos jogos, atribuindo tal meio ao significados que também são utilizados em seu ambiente
concreto da vida real, levando também um contato com visões e identidades de muitas

190
pessoas ao mesmo tempo, juntando assim ―um novo conjunto de saberes, numa arena onde
estão as diferentes visões de mundo de quem joga, às quais se juntam as representações,
as narrativas e os significados que cada um atribui‖. (MOITA, s/d. p. 3).

A noção de jogo se configura desde as sociedades antigas.Segundo Huizinga (2000),


os jogos estão implicados na cultura dos indivíduos, não tendo amarras e conceitos que o
expliquem por completo, mas que fazem parte do dia a dia do ser humano. O jogo não se
prende a uma lógica racional, é uma ação livre, que transita entre os diversos âmbitos,
tomando grandes proporções na vida de um grupo social, de um indivíduo. Apesar dos jogos
serem livres, possuem algumas características como a tensão, a competição, o que torna o
jogo mais atrativo, o que pode relacionar com os jogos digitais atuais, que se inserem em
tais características, aumentando dia após dia seu público.

Dentre os meios de sociabilidade, interatividade, se tem também a presença de


alguns fatores negativos, como a violência, a discriminação, que ocorre tanto na vida real
quanto no meio digital, e uma dessas violentações presentes é a violência de gênero. Moita
(s/d) explica como os jogos digitais estão presentes no dia a dia dos indivíduos e quando se
coloca a questão da cultura machista nos games, se tem a presença de uma disseminação
desse pensamento patriarcal; os games tem esse poder de disseminar valores, ideias,
saberes, comportamentos, sensações, ajudando e influenciado na construção da identidade
do indivíduo, e infelizmente o machismo se apresenta como um desses.

Foucault (2002) aborda a questão dos discursos, do poder que os discursos


possuem em um determinado espaço, e como podem ser promulgados, ganhando
proporções gigantescas. E é por meio dos discursos que em muitas das vezes se consegue
desenvolver o processo de dominação, disseminando uma ideia, principalmente quando se
refere a áreas sensíveis como da etnia, política, religião e sexualidade. Dependendo do que
o autor do discurso pode discorrer, sua postura pode ser vista como de alta inteligência até
mesmo a total descrença de um ser; e dependendo também da utilização do discursos, o
mesmo pode está implicado em valores como poder e desejo, levando assim a situações de
isolamentos e exclusão de grupos sociais, como as mulheres nos jogos digitais.

Um discurso, segundo Foucault (2002), na maior parte das vezes busca impor algo,
seja uma ideia de adoção ou exclusão. Entre os variados tipos de discurso, ressalto o
discurso machista, criado e promulgado sob uma óptica da sociedade patriarcal, na qual se
tem uma dominação masculina, visando assim, a submissão feminina.

Em suma, pode suspeitar-se que há nas sociedades, de um modo muito


regular, uma espécie de desnível entre os discursos: os discursos que ―se
dizem‖ ao correr dos dias e das relações, discursos que se esquecem no
próprio actos que lhes deu origem; e os discursos que estão na origem de um

191
certo número de novos actos de fala, actos que os retomam, os transformam ou
falam deles, numa palavra, os discursos que, indefinidamente e para além de
sua formulação, são ditos, ficam ditos e estão ainda por dizer. Sabemos da sua
existência no nosso sistema de cultura‖. (FOUCAULT, 2002, p. s/n).

Quando se aborda questões sobre desigualdades de gênero, violência contra


mulheres, é interessante ressaltar os escritos de Hollanda (2009) e Duarte (2009) tratando
sobre o Pensamento feminista brasileiro, onde demonstram uma história de luta e
resistência feminina diante de uma sociedade patriarcal, com o objetivo de libertar cada vez
mais mulheres e incentivarem a continuarem resistindo, apesar das diversas represálias que
acometem a população feminina dia após dia.

Pode-se dizer que a vitória do movimento feminista é inquestionável quando se


constata que suas bandeiras mais radicais se tornaram parte integrante da
sociedade, como o direito de a mulher frequentar a universidade, escolher sua
profissão, receber salários iguais e candidatar-se ao que quiser. Tudo isso, que
já foi um sonho utópico, faz parte do dia a dia da mulher brasileira e ninguém
pode imaginar um cenário diferente. (DUARTE, 2009, p. 25)

Casarino, Quevedo e Gervagoni (2014) também realizam uma análise histórica sobre a
discriminação contra a mulher, fazendo todo um aparato histórico desde a Grécia antiga, idade
média, até os dias atuais, ressaltando sempre a submissão feminina diante dos homens. Apesar
de muita coisa ter mudado no cenário atual, mulheres ainda sofrem diversas repressões,
havendo ainda um pensamento de inferioridade diante do público masculino, esse pensamento
se manifesta de diversas maneiras como por violência física, sexual, moral, econômica e
psicológica, tendo assim uma violação a todo o momento dos direitos humanos.

Segundo as autoras Casarino, Quevedo e Gervagoni (2014), a Constituição Federal


de 1988 destina que deve haver equidade e igualdade entre homens e mulheres, mas
apesar do texto constitucional, a sociedade brasileira ainda possui índices altíssimos de
violência e discriminação feminina. Com isso, a partir do momento em que mulheres buscam
sua independência e se enveredam por meios considerados masculinizados, repressões
ainda maiores passam a existir, levando a mulher a uma posição de resistência ainda maior.

Percepção das jogadoras sobre o jogo e serem mulheres games

A partir das entrevistas realizadas com oito meninas de idades entre 16 a 26 anos, pude
entender melhor o que o jogo simbolizava para elas e quais dificuldades essas mulheres
encontravam no meio gamer, principalmente sobre o fato de ser mulher e gamer ao mesmo
tempo, levantando questões de uma sociedade patriarcal, extremamente machista, e que
perpassa também os limites do real e virtual. Concretizei como verdade essas questões por meio
dos relatos dessa mulheres, que se propuseram a dedicar alguns minutos do seu tempo

192
para realização dessa pesquisa, o que me causa felicidade por perceber que mulheres estão
ocupando seus espaços sociais, mas que me entristece também por constatar que há
muitas repressões e amarras do preconceito presentes ainda. Para manter a integridade das
minhas entrevistadas, a proposta é manter o anonimato e usar codinomes para cada uma.

A primeira entrevistada tem 16 anos, a entrevista foi realizada por meio de redes
sociais que facilitaram a comunicação. Iniciei a entrevista fazendo perguntas que
contextualizassem o jogo e que ela pudesse responder qual o significado do jogo para ela, a
mesma respondeu que era uma maneira de se distrair e se divertir com seus amigos; a
interlocutora afirmou que joga desde de fevereiro de 2018 – é importante ressaltar aqui que
o jogo Free Fire é um jogo considerado novo, com seu início por volta do segundo semestre
de 2017 – e continua até o momento; mas adiante perguntei também se ela acreditava que o
jogo tivesse desempenhado algum impacto na sua vida e ela respondeu:

Olha depende muito da situação, dependendo do resultado do jogo, de


como tá sendo a partida, de como as pessoas estão se comportando
contigo, na maioria das vezes não é nem o comportamento das pessoas
contigo, e sim o resultado dos jogos; tu pode ficar muito estressada, mas
também pode ficar muito feliz, pode ser um amor com todo mundo. Eu
quando consegui uma certa meta que eu tinha no jogo que era pegar uma
certa patente, um certo nível, eu fiquei muito feliz, meu Deus do céu, mas
eu acho que só isso também, e ah, e em relação a convivência aqui dentro
de casa, eu quase não saía do meu quarto, ficava só jogando, jogando, e a
mamãe achava ruim, aí, eu também era muito ignorante, porque, porque eu
queria jogar e a mamãe ficava falando, enfim, acho que foi mais isso, foi em
questão de exclusão sabe? De ficar excluída dentro de casa, mas não uma
exclusão das pessoas me excluindo e se eu me excluindo pra poder jogar,
me isolando. (Artemis, 16 anos).

Até esse momento meu objetivo era entender como a minha interlocutora se
relacionava com o jogo e de que forma o jogo a influenciava, porém, a pesquisa enveredou
para outros caminhos e outras contribuições. Aos poucos fui adentrando no assunto da
participação feminina no jogo, e passei a questioná-la se já havia ouvido ou sentindo alguma
repressão por ser mulher e jogadora, e ela respondeu:

Já, já, bastante, bastante mesmo. Eu já percebi comportamentos do tipo


―ah, não deixa ela jogar pra li sozinha, vai alguém com ela‖, tipo assim, eu
me afastava, no joguinho assim, eu me afastava da minha equipe e ia pra
outros cantos do mapa do jogo e ficavam, ―ah, acompanha a menina aí, vai
que ela morre‖, eu também já percebi comportamentos tipo ―mano, até a
menina matou mais que tu, até uma menina matou mais que tu‖, mas o que
eu mais percebo mesmo é o comportamento de achar que só porque eu sou
menina, eu não jogo bem. Mas também assim, tem uma minoria que se
salva, eu tenho uns amigos que não é assim, mas a maioria, a maioria vai
dar em cima de ti, a maioria pede teu número, a maioria fica tipo assim,
elogiando toda hora pra pegar teu número. (Artemis, 16 anos).

193
Assim como presenciei, na fala de Artemis, diversos ataques sofridos, percebi
também posteriormente nas demais entrevistadas. Com os depoimentos o preconceito,
discriminação e violentação do ―ser mulher‖, manifesta os limites impostos pelo domínio de
espaços destinados para homens e espaços destinados a mulheres, indícios e
características da sociedade patriarcal. Além dos ataques constatados, perguntei a Artemis
sobre a presença de Mulheres líderes de comunidades games, no caso do Free Fire, as
chamadas guildas, e entrevistadas relatou que na guilda na qual fazia parte só havia uma
líder feminina, e na composição do restante do grupo admite que,

sempre, sempre, sempre, a maioria dos membros sempre foi masculino,


sempre, sempre, e no total de líderes, eram uns 10 e só tinha uma menina;
tipo assim, na guilda mesmo eram menos de 10 meninas, e uma era líder e
uma vice-líder, mas a vice -líder saiu. Na minha guilda tinha umas 50
pessoas, e umas 10 eram meninas (Artemis, 16 anos).

interessante relacionar esse relato com alguns escritos de Moita (s/d) ao utilizar de
conceitos demonstrados por Elias (2000), no qual elabora a teoria sobre os estabelecidos e
os outsiders, tendo os outsiders como aqueles que possuem uma visão de si e do restante
da sociedade como inferiores a determinadas pessoas, são os excluídos, os marginalizados,
enquanto os estabelecidos são os que dominam determinado meio, os que são
considerados melhores. No texto, a autora relaciona os outsiders com a figura feminina no
jogo que a todo momento sofre repressão e incredibilidade enquanto os estabelecidos são
os homens, aqueles que acreditam serem os donos de tal meio, e considerados
representantes do meio gamer também diante da sociedade.

Onde quer que sejam jogados os games parecem ser um espaço de


relações de poder que são justificadas pelas diferenças entre homens e
mulheres atribuindo aquelas habilidades diferenciadas, ao mesmo tempo
em que valorizam um grupo, menosprezam o outro, levando este a sua
própria desqualificação. [...] Ou seja, os meninos como estabelecidos se
auto intitulam como os que jogam melhor, como os que sabem, defendem
aquele espaço como só deles. As meninas são constituídas pelo grupo novo
que está entrando naquele espaço que se constitui como ameaça ao poder
dos já estabelecidos. (MOITA, s/d. p. 5-6).

A teoria é expressa na fala da interlocutora que expressa incredibilidade,


principalmente quando cita a realidade da falta de visibilidade e reconhecimento de
mulheres no jogo:

Assim, o que eu percebo é que o público feminino, as meninas que jogam


não são muito reconhecidas, as que jogam bem no caso, e são poucas
entendeu? Porque as pessoas não dão o devido valor, não dão o devido
reconhecimento pra elas, mas dão muito valor pro público masculino, que é
bem maior, tipo, se tu pegar, se tu jogar 10 partidas, e três femininas é
muito, e em questão de reconhecimento nacional, poucas meninas são
reconhecidas, mas se tu for pegar, fazer uma comparação entre o tanto de

194
meninas reconhecidas e o tanto de meninos conhecidos é uma diferença
enorme, tu pode citar vários, vários, eu tiro por mim, eu sei muitos meninos
que jogam, mas eu não sei muitas meninas que jogam, até por conta do
reconhecimento que eu te disse. (Artemis, 16 anos).

Praticamente todas as meninas que contribuíram com a pesquisa apresentaram


esse posicionamento como podem observar a seguir.

Acho que eles deviam exaltar mais o lado feminino, até porque, se tu não
sabe, só tem Pro league com os meninos, e isso faz com que muita gente
ache que nenhuma é competente, fora que eles só exaltam os homens que
jogam, os youtubes, sendo que tem muitas meninas que jogam também.
(Tóquio, 22 anos).

Em outras interlocutoras, a realidade vivenciada por Artemis e Tóquio se confirma: ―Tanto


em campeonatos que são exclusivos para meninos por conta de considerarem a
jogabilidade feminina inferior, sendo que nem sempre é, vai das pessoas e de treino e com
isso, exclui muito a gente‖. (Arhi, 16 anos).

Verifica-se que os campos são delimitados, destinando à gamer um lugar marginal


que a exclui dos grupos formados por homens: ―Assim, os meninos quando é pra jogar sério
mesmo, eles dão preferência pra jogar com homens, eles querem jogar com a gente quando
é mais pra brincadeira, mais pra tá falando besteira, entendeu?‖ (Yuka, 19 anos).

Isso aí é o que mais a gente ouve entendeu? Tipo, tem meninos que, tipo,
2
tu ver que tem vamos supor duas, três mulheres no squad , a gente chama,
não jogam entendeu, porque pensam que a gente não tem a mesma
jogabilidade, que a gente não sabe jogar, só de tu ser mulher eles já acham
que a gente não sabe jogar. (Nia, 20 anos).

Todas elas demonstraram, em seus depoimentos sua vivencia enquanto jogadoras, e


com isso, nosso diálogo foi se estreitando e eu, enquanto pesquisadora, conheci um pouco
mais de cada uma. A entrevista com Nia foi bastante interessante por ela destacar logo de
início que jogava em campeonatos, que demonstrava sua habilidade de jogadora para várias
outras pessoas que não fosse apenas o squad na qual fazia parte – o squad é o grupo que
cada jogador faz parte, um grupo de quatro pessoas. Nia joga há dois anos, e reclama
bastante dessa falta de visibilidade referida aos campeonatos femininos, como eles não
ganham força nem incentivo por parte da comunidade gamer, o que lhe causa certa
desmotivação por não ver ―portas se abrirem‖, diferente do que acontece nos campeonatos
masculinos.

Além de Nia, Yuka e Arhi também já participaram de campeonatos, mas ambas


possuem as mesmas reclamações que Nia. No caso de Yuka, foi apenas um campeonato,

Equipe de jogo formado por quatro pessoas.

195
ela relatou que estava bastante nervosa por jogar com pessoas de patentes mais altas.
Ressaltou ainda da falta de visibilidade por ser um campeonato pequeno, pois o squad que
participava tratava-se do segundo da guilda e não o principal, o principal participava de
campeonatos maiores formado apenas por homens.

A maioria das entrevistadas não tinham filhos, a não ser por Lana, o que trouxe uma
nova representação para a pesquisa, não eram apenas meninas que jogam, mas uma
mulher, mãe, jogadora, com ótimas habilidades de jogadora e líder de guilda, mas ressaltou
que infelizmente a liderança feminina nessas comunidades não se apresenta com facilidade.

Olha, eu conheço guildas femininas, mas a minha guilda é mista, eu sou a


criadora, eu sou a líder, mas eu tenho um outro líder que tem o mesmo
papel que o meu, que eu coloquei bem depois, mas hoje nós dois somos os
líderes, mas a criadora fundadora, sempre fui eu, entendeu? E ainda sou,
mas eu tenho um outro que tem a mesma responsabilidade e o mesmo
papel que eu, [..] nunca vi outras mulheres e outras meninas que fossem
líderes de guilda feminina, não tô dizendo que não existe, apenas
desconheço. (Lana, 26 anos).

Quando indaguei Lana sobre a questão da jogabilidade e de grande parte da sociedade


associar o bom desempenho no jogo com a figura masculina, Lana respondeu que:

O jogo vai do treino, qualquer coisa que a gente faz na vida é assim, vai do seu
esforço, do treino; eu conheço meninas que jogam muito mais que meninos e
conheço meninos que jogam muito mais que meninas, eu acho que isso vai
muito do dia, muito do tempo, mas taxar que um menino joga melhor que uma
menina, isso não existe, não existe mesmo, eu particularmente sou uma ótima
jogadora de free fire, na minha equipe eu sou líder da minha guilda entendeu?
Tenho ótimas jogadoras de free fire, conheço ótimas jogadoras de free fire e
inclusive na minha guilda eu tenho uma menina que eu garanto que ela dá show
em qualquer menino. (Lana, 26 anos).

possível fazer interlocução com a teoria exposta pelas autoras Bristot, Pozzebon e
Frigo (2017), ao abordarem a representatividade das mulheres nos games em suas
pesquisas. As autoras compreendem que o crescimento da indústria gamer encontra-se em
ascensão, uma vez mais, se tornando maior do que até mesmo a indústria cinematográfica,
onde seu público-alvo se torna o masculino, por toda uma construção social criada onde a
figura do homem é vista como pertencente ao meio gamer, e isso leva a uma
3
desqualificação e falta de reconhecimento de mulheres enquanto gamer .

A luta por reconhecimento, segundo as referidas autoras, é uma realidade, tendo em


vista a sociedade baseada em padrões sociais pré-estabelecidos, em que se tem uma
construção social do que é pertencente ao gênero masculino e ao gênero feminino, e essa
organização do meio social reflete e se insere nos próprios games como diz as autoras.

Pessoa que joga muito bem determinado jogo e pode também se profissionalizar neste meio.

196
Consideram que ―os games não são livres de conteúdos ideológicos e refletem como a
sociedade se organiza transpondo em seus personagens principalmente no designer gráficos e
jogabilidade, os seus aspectos culturais. (BRISTOT, POZZEBON e FRIGO, 2017, p. 863).

Tal questão de ideologia pode ser analisada também desde a década de 80, na qual
não havia a presença de um grande público feminino nesse meio, o que levou a indústria
gamer criar jogos que fossem considerados de meninas, ou que tivesse um enredo que
fosse atrativo para as meninas, como por exemplo o jogo Pac Man, onde se tinha presença
de um casal romântico, o que para o restante da sociedade era algo que atraia o público
feminino, a partir daí, foram criados diversos games com nomes bem específicos sendo
―jogos para meninas‖, os famosos Pink games. (Idem).

Ao passar do tempo meninas, mulheres, já não se sentiam atraídas por jogos que
fossem considerados apenas para ―meninas‖, e é isso que vem gerando uma mudança nos
padrões, porque as mulheres não estão mais se contentando com esse espaço secundário
no mundo dos jogo on-line, e desejam participar dos outros jogos que são direcionados em
maior parte para o público masculino. Tal realidade é visível em jogos como o Counter-
Strike, o próprio Free Fire, que são jogos de tiros. No caso o Counter-Strike do gênero First
Person Shooter que é o tiro em primeira pessoa e o Free Fire que é do gênero Battle Royale
que também envolve tiro, mas se joga em uma arena com dezenas de pessoas sobrando
apenas um no fim do jogo

A participação das mulheres no meio gamer é uma maneira de resistir e se empoderar,


mostrando seu protagonismo diante da sociedade, e demonstrando também que não são
minorias enquanto quantidade nos games, pelo contrário, as autoras Bristot, Pozzebon e Frigo
(2017) dizem que o público feminino gamer ultrapassa o masculino no Brasil. Mas, apesar de
haver esse grande público, as autoras elucidam que há sim uma contribuição das indústrias
games para reforçar ainda mais essa incredibilidade feminina, reforçando alguns estereótipos.
―Em uma sociedade onde a mulher ainda sofre muito preconceito e luta diariamente por
reconhecimento, direitos iguais e segurança, é frustrante que algumas mídias como os games
ainda reforcem certos estereótipos‖. (BRISTOT, POZZEBON e FRIGO, 2017, p. 1).

Mais uma vez a teoria dialoga com a realidade e expressa-se em uma das falas das
interlocutoras.

Várias vezes, assim, eu acho que já foram tão repetitivos os comentários que
eu nem me surpreendo mais, é do tipo que „aaa, ela é mulher mas ela joga
bem‟ ‟tu é mulher e joga melhor que o teu namorado‟ „o teu namorado tá
perdendo pra ti‟, são esses comentários entendeu? Aí questão de assédio
também, ficar pedindo o número, eu tava jogando com um squad aleatório aí

197
4
caiu homens, aí eu ia e matava um cara, tipo, papava a kill do cara, aí
começavam a me xingar de gostosa de isso e aquilo, de puta, essas coisas,
aí ―bora matar essa vagabunda‟, esse foi o mais chocante que eu escutei‖(
Yuka, 19 anos)

Assim como Yuka, Artemis e Tokio também destacaram os comentários que mais se
sentiram desvalorizada e relata o que já ouviu dos outros gamers: ― „Oxe, cê é menina, fica
quieta aí!‟. Eu acho que foi esse aí, faz tempo, mas eu lembro dele porque eu fiquei chocada
sabe?‖ (Artemis, 16 anos).

Já aconteceram muitas coisas que eu fiquei com raiva, mas eu só apago (...),
deixa eu tentar lembrar, „mulher é um lixo jogando‟, ouvi isso de um cara que
uns amigos chamaram, fiquei bem chateada, pq ele ficou me xingando sem eu
fazer nada, só que eu nem revidei como devia, porque ele fazia parte da guilda
que tava, aí eu levei pro líder e ele meio que resolveu com ele. Fiquei mais
chateada porque o meu amigo não disse nada; parei até de falar com ele, não
que eu precisasse de ajuda pra colocar ele no lugar, mas pow, era 2 contra 1 e
eu claro que saí perdendo. (Tokio, 22 anos)

O jogo Free Fire assim como outros jogos possuem avatares femininos
extremamente sexualizados, explicitando o corpo dos avatares femininos, e até nesse
quesito pode se perceber a presença do machismo e da predominância masculina, dos
discursos e retóricas que estão sendo transmitidos e que acabam por reforçar e propiciar
atos como os sofridos pelas meninas destacadas na pesquisa.

O meio gamer infelizmente ainda é marcado por pouca representatividade feminina,


tendo poucos personagens femininos, e quando tem, normalmente são extremamente
estereotipados, com designer super sexualizado. Bristot, Pozzebon e Frigo (2017), também
retratam em seus textos a interatividade desenvolvida com os games, tendo toda uma
organização com regras, onde se tem também uma retórica transmitida e nem sempre é
uma retórica positiva, como a retórica de gênero. ―A retórica de gênero pode se manifestar
no designer das personagens e na narrativa. Ela comumente reforça os aspectos culturais
da sociedade ao objetificar, hipersexualizar e não dar protagonismo a elas no jogo‖ (p. 2),
nesse sentido, a narrativa do jogo se desenvolve e interfere no processo ideológico,
principalmente quando reforça a ideia de um gênero dominante, o que leva a dificuldade da
construção de uma retórica de empoderamento feminino, de representatividade, tendo em
vista a sociedade vigente.

Apesar de todas essas repressões destacas pelas interlocutoras, as mesmas se


apresentaram orgulhosas por estarem conseguido ocupar lugares que até então eram vistos
– e muita das vezes ainda são – como masculinizados, tal fato se evidenciou em uma pergunta
que fiz para todas as entrevistadas. Perguntei como elas se sentiam por serem mulheres e

Jogadores abatidos e os kits que cada um deixa ao morrer na partida.

198
estarem jogando um jogo que é considerado pela sociedade como masculino e que medidas
poderiam ser tomadas para que essa discriminação diminuísse? E elas responderam que:

Olha, eu assim, eu não vou mentir pra ti, eu tenho meio que orgulho de
dizer que eu jogo e de dizer que eu jogo bem, tem umas coisas legais e tals,
e eu gosto de dizer que jogo. Mano, eu sou dima I, mas eu já peguei
mestre. Eu acho que uma atitude, que viesse da própria garena, a criadora
do jogo, fizesse um campeonato ao mesmo nível de reconhecimento da pro
league, a pro league é uma campeonato nacional com os melhores
jogadores de free fire do Brasil, tivesse esse campeonato, só que só pro
lado feminino, pra que tivesse mais um reconhecimento, tivesse mais
meninas e tudo mais, na proleague tem meninas, mas tipo assim, são
poucas sabe? (Artemis, 16 anos).

Eu me sinto ainda mais poderosa (risos), e sempre procuro ser melhor e


fazer as outras se acharem e verem o quanto são. Acho que eles deviam
exaltar mais o lado feminino, até porque, se tu não sabe, só tem pro league
com os meninos, e isso faz com que muita gente ache que nenhuma é
competente, fora que eles só exaltam os homens que jogam, os youtube,
sendo que em muitas meninas que jogam também. (Tóquio, 22 anos).

Eu acho que a gente enquanto mulher jogando um jogo que aparentemente


era pra ser dominado por homens é uma questão de representatividade e
de como é que eu posso dizer? De ir contra desses padrões que são
estabelecidos, tipo de homem só que pode jogar. A gente como mulher
inserida nesse jogo, jogando bem, mostrando que a gente tem habilidade
também, e pode ser igual ou melhor que esses homens é uma questão de
luta também, demonstrar que a gente pode sim, que a gente tem uma total
capacidade e que questão de representatividade mesmo. Acho que é
reconhecimento, porque tem muitas mulheres que não reconhecem isso, da
gente ter voz pra dizer que há sim o machismo dentro dessa comunidade,
que os homens tem que perceber isso, a gente tem que conversar, orientar
e dizer também que a gente tem total capacidade pra essas coisas. (Yuka,
19 anos).

A violência vista não se configura como física – mas pode haver casos em exceção
quando se remete a algumas perseguições reais que as jogadoras sofrem –, mas uma
violência moral, psicológica e simbólica como Freitas (s/d) destaca, partindo do princípio da
ideia de uma superioridade e masculinidade do ser homem, exercendo essa dominação
sobre o feminino, e essa violência simbólica pode ser transmitida por meio de instituições,
estado, a escola, e as mídias, onde se encaixam os jogos digitais, utilizando uma maneira
de oprimir e desvalorizar certos indivíduos, onde se salienta então a figura da mulher.

A violência simbólica é uma forma injusta de dominação social, injusta porque


ganha „as mentes e os corações dos dominados‟ sem eles perceberem; é uma
forma de violência que parece suave, pois não é física, mas, ainda sim,
reproduz uma forma de pensar e uma visão de mundo que pode dar suporte
formas de agir que desmoralizam e deslegitimam a mulher.
(FREITAS, s/d, p. 4).

Essa violência pode ser observada também nas pesquisas de Fortim e Grando (s/d),
nas quais ressaltam os obstáculos encontrados nas comunidades games, quando destacam

199
as questões de gênero e participação feminina, grifando que há vários obstáculos impostos
pelas comunidades games, com atitudes de aversão e desrespeito direcionados as
mulheres sejam em forma de assédio ou qualquer forma de preconceito, e ainda também o
fato de grande parte dos homens atribuírem as falhas nos jogos a figura feminina.

E isso foi exatamente o que foi relatado pelas entrevistadas como nas falas mais
marcantes especificamente para mim, que foi a da Ártemis e da Yuka ao se referir as
comunidades que participam, as chamadas guildas e a falta de credibilidade e
desvalorização das jogadoras pelo público masculino, buscando demonstrar que o domínio
daquele espaço não pertence a elas, mas sim ao homens, aos jogadores, aqueles que já
exercem uma certa dominação na sociedade fora do meio virtual, mas que buscam dar
prosseguimento também no meio gamer, um lugar no qual contém uma história marcada
pela publicidade voltada para a comunidade masculina.

Conclusão

Diante das informações obtidas ao longo da pesquisa, constatou-se que a presença da


violência direcionada para o público feminino ainda é uma realidade, uma luta na qual várias
mulheres no mundo real, e no meio virtual como no caso dos jogos, traçam todos os dias,
buscando reafirmar seus direitos e espaços, demonstrando que não há uma delimitação
biológica que segregue alguém por ser uma mulher ou homem no cenário gamer, o espaço
destinado para todos, mas a sociedade com suas amarras e naturalizações misóginas
tendem a se comportar de uma maneira extremamente preconceituosa e machista. Quando
se refere a essas questões, é interessante relacionar com o que Fortim (s/d) aborda,
tratando de mulheres e games, destacando que a construção social relacionada ao gênero
também se direciona aos espaços e meios, como os próprios jogos digitais que acabam
tendo essa característica de construção social, delimitando ou buscando delimitar o que
venha a ser jogo de menino e um jogo de menina.

Apesar de todas essas represálias que as interlocutoras salientaram, algo importante


e que também me enche de esperança e felicidade, foi perceber a representatividade
feminina, demonstrando suas habilidades, jogabilidades e contestando uma teoria de que
apenas os homens jogam bem. A maioria das meninas entrevistadas estão em níveis altos
do jogo como Mestre e Diamante – as patentes consideradas com um status de respeito –,
isso demonstra que as mulheres estão sim, ocupando seus espaços e refutando paradigmas
estabelecidos por uma sociedade machista.

extremamente reconfortante para mim, enquanto mulher, pesquisadora de jogos e


até jogadora nas horas vagas – não uma jogadora como as que tive a honra de conhecer

200
durante a pesquisa, com altas habilidades –, perceber o orgulho que minhas entrevistadas
sentem ao se auto intitularem jogadores de Free Fire, conquistando seus espaços,
quebrando as amarras sociais da construção do que e ser mulher ou homem. Infelizmente
ainda há muito por se fazer, muitos discursos e ideologias por quebrar, muito desrespeito
por derrubar e denunciar, muita conscientização a se realizar, mas a presença feminina nos
jogos digitais é real, a jogabilidade feminina é incontestável, por isso digo, continuem
jogando, representando, se empoderando e acima de tudo, jogando como mulheres.

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202
EXISTE GESTÃO SOCIAL NA MARCHA DAS VADIAS?

Déborah Araújo; Natália Maia; Angela Steward


Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF/UFPA)
https://doi.org/10.29327/527231.5-13

Resumo
O artigo tem como objetivo principal analisar a incidência da gestão social nas ações protagonizadas
por mulheres inseridas na marcha das vadias, partindo do pressuposto de que a gestão social
valoriza a participação da sociedade nas tomadas de decisões sociais e políticas. Este trabalho é de
cunho qualitativo e consiste na revisão bibliográfica de artigos já publicados sobre teoria da gestão
social, pelos movimentos sociais e feministas e da marcha das vadias. Os principais resultados são: i)
a gestão social não incide na marcha das vadias, e ii) a gestão social busca o empoderamento no
sentido de resgatar o interesse político da sociedade. Consideramos que o tema
Ā ฀ Ā ฀ Ā ฀ Ā ฀ Ā ฀
mportante para os debates acadêmicos através de uma visão interdisciplinar, principalmente porque
a participação política das mulheres está presente em todas as áreas do conhecimento.
Palavra-chave: Marcha das Vadias, Gestão Social, Participação Social e Política.

Abstract
The article aims to analyze the incidence of social management in actions spearheaded by
women inserted. The study assumes that concepts of social management value society’s
participation in making social and political decisions. This work uses a qualitative approach
and consists of bibliographic review of articles published on the theory of social
management, social movements and feminism and the movement called Slutwalk. Main
results include: i) social management does not address the Slutwalk movement, and ii) social
management seeks empowerment in order to bring back society’s political interest. We argue
that the issue is important to academic debates due to its interdisciplinary approach given
that the political participation of women is present in all areas of knowledge. Keyword:
Slutwalk, Social Management, Social Participation and Policy.

INTRODUÇÃO

A partir da redemocratização do país, após a Constituição Federal – CF de 1988,


novos mecanismos de controle do poder público surgiram, redefinindo os conceitos da
administração pública. Com essa redefiniçao a sociedade passou a participar de forma mais
assídua nas ações da administração pública, emergindo um novo modelo de participação
conhecida como gestão social, que vem sendo discutida por diversos autores. Esse modelo
valoriza a participação da sociedade nas tomadas de decisões sociais e políticas,
fomentando a emancipação de cada indivíduo e proporcionando o empoderamento da
sociedade através dos conhecimentos e práticas dessas ações, a fim de serem os
verdadeiros protagonistas da história.
Para que houvesse uma maior representatividade da sociedade, os movimentos
sociais surgem como agentes de promoção das lutas sociais e coletivas através das 203
demandas existentes, quer seja por melhores condições de vida, direitos sociais, acesso a
moradia, serviços públicos eficientes, entre outros (GOHN, 2008). Nesse sentido, a gestão
social promove as mobilizações nas redes de movimentos sociais favorecendo a criação e
implementação de políticas públicas, através da participação social.
Dentre a gama de movimentos sociais existentes mundialmente, há os movimentos
de mulheres, que surgem a partir dos anos 70 com o objetivo de buscar o respeito,
igualdade, inserção da mulher no mercado de trabalho entre outros. Desde o ano de 2011
um movimento feminista específico vem ganhando força, a marcha das vadias. Tendo seu
início no Canadá, esse movimento tem se disseminado por outros países defendendo o
direito de autonomia e liberdade, destacando um posicionamento político contra a cultura de
estupro (Rape Culture), mobilizando a sociedade através das redes sociais, tornando esta
ferramenta importante para a promoção desse movimento. Diante dessa mobilidade de
movimentos envolvendo mulheres, nos questionamos: a gestão social incide nas ações
protagonizadas por mulheres inseridas na marcha das vadias?
Buscando responder esse questionamento, o artigo tem como objetivo principal
analisar a incidência da gestão social nas ações protagonizadas por mulheres inseridas na
marcha das vadias, partindo do pressuposto de que a gestão social valoriza a participação
da sociedade nas tomadas de decisões sociais e políticas. Como forma de organização do
artigo, ele está divido em duas partes: a primeira esta relacionada com a discussão teórica
da gestão social e do objeto de estudo; e, na segunda parte relacionamos a teoria com o
objeto estudado.
A abordagem metodológica deste trabalho é de cunho qualitativo, e consiste na revisão
bibliográfica de artigos já publicados sobre teoria da gestão social, perpassando pelos
movimentos sociais e feministas e culminando na marcha das vadias. A coleta e análise de
dados foi realizada no intuito de conhecer mais sobre o assunto, sendo fundamental para
construir os resultados e identificar como esta participação social e política tem sido
trabalhada dentro da abordagem feminista.

GESTÃO SOCIAL: percepções iniciais

A Administração Pública pode ser analisada através de três modelos, a saber: (1)
Modelo Patrimonialista guiado pelos interesses pessoais dos gestores nas tomadas de decisões;
considerada uma gestão pouco eficiente para as políticas públicas, não havendo empenho
para com os interesses da sociedade; (2) Modelo Burocrático nasceu com o objetivo de proteger
o Estado contra a corrupção e o nepotismo que existia no modelo anterior; e, o
Modelo Gerencial que nasce com as ideias de descentralização e flexibilização
administrativa tendo como características ―a orientação para o cidadão, busca pela obtenção
dos resultados, descentralização do poder decisório entre outros‖ (SANTOS, 1994).
A evolução do processo democrático na sociedade brasileira embasa este estudo
por ser um tema de grande valia para os debates teóricos. Sendo assim, a participação
204
social na esfera pública movimenta e proporciona ao cidadão a exercer seus direitos e
deveres na sociedade em que está inserido.
Partindo desse entendimento, na década de 1990 o professor Fernando
Guilherme Tenório insere no âmbito científico a relação com gestão social e menciona:

― (...) a pessoa, ao tomar ciência de sua função como sujeito social e não
adjunto, ou seja, tendo conhecimento da substância social de seu papel na
organização da sociedade, deve atuar não somente, eleitor, mas como uma
presença ativa e solidária nos destinos da sua comunidade‖ (TENÓRIO,
1998).

Ou seja, o cidadão, seja ele de que gênero for, deveria participar ativamente e
efetivamente nas ações protagonizadas pelos demais sujeitos sociais pertencentes a
sociedade como forma de desempenhar seu papel de sujeito político.
A gestão social é um termo em grande discussão, por este estar sendo empregado
em diversas situações e contextos distintos. Nesse sentido, Pimentel e Pimentel (2010)
elencou sete princípios para a formação da gestão social, onde: (1) o objetivo é o interesse
coletivo; (2) o valor da gestão social é o interesse público; (3) a lógica instrumental é
subordinada ao processo decisório deliberativo; (4) o protagonismo é da sociedade civil
organizada, envolvendo todos os atores sociais envolvidos em determinada ação; (5) o
processo deve ser participativo, dialógico e consensual; (6) através da argumentação livre é
que a deliberação coletiva acontece; e, (7) as formas de pensar e operacionalizar é através
das redes e parcerias.
Muito embora Pimentel e Pimentel (2010) mencionem várias categorias teóricas para a
formação de um conceito, Pinho (2009) critica a gestão social, uma vez que na prática
chega-se a um consenso, enquanto que na teoria não há acordo sobre sua
representatividade entre vários autores. De acordo com Pinho (2009) e Cançado (2011) a
gestão social não consegue chegar a uma concordância teórica gerando ambiguidade no
termo, podendo ser denominada de ―gestão do social‖ (PINHO, 2009). No sentido de Pinho
(2009), entende-se que quem controla as ações, através das articulações e mobilizações, é
a própria sociedade. O que na prática não acontece.

Boullosa e Schommer (2008) trabalham a Gestão Social voltada para o social, mas
possui um sentido amplo, gerando ambiguidade conforme comenta Pinho (2009), pois
diversas práticas sociais estão inseridas, apesar do sentido abrangente a sociedade ainda é
protagonista.
Para haver gestão social é preciso um lugar físico, público, onde as pessoas se
encontrem para deliberar sobre as necessidades e o futuro da localidade ou grupo
específico. Porém, muitos não entendem que a democracia não se limita ao espaço e ao
direito de participar, mas em participar efetivamente, onde há o dever de participar
(CANÇADO, PEREIRA; TENÓRIO, 2015).
Há uma ressalva quanto a participação, deve-se observar se de fato ocorre a
205
cidadania deliberativa ou se a representativa prevalece, nesse último caso a qualidade da
ação é questionada (CANÇADO, PEREIRA; TENÓRIO, 2015), pois em determinada
situação pode ocorrer de o número de pessoas ser grande, tornando-se necessário um
representante para expor as ideias do todo. A representatividade pode não ser o reflexo
completo do grupo que se está representando.
O protagonismo social é a essência da gestão social e permite que parcelas da
sociedade se articulem e mobilizem-se em prol de uma causa. Os movimentos sociais,
invertendo a lógica do poder dominante, onde claramente notava-se uma verticalização por
parte do poder político que existia por volta dos anos 1980 (HAMEL, 2009) é o retrato de
formação de grupos, onde classes menos favorecidas e/ou oprimidas ganharam vez e voz
nas discussões oriundas de suas manifestações.
Nesse contexto, Pinho (2009) mostra que o grande desafio para haver participação
social é a falta de conhecimento técnico da sociedade, perpetuando a desigualdade da classe
mais baixa que é a grande maioria no Brasil. O autor menciona ações que devem ser tomadas,
como a capacitação de entidades, movimentos, grupos e não somente o representante do
movimento, porque a rotatividade deste é grande dentro dessas organizações civis.
Santos (1994) faz uma dura análise sobre o indivíduo que não se insere em grupos
sociais. Esse indivíduo tenta fugir das malhas organizacionais de partidos, movimentos,
sindicatos buscando refúgio no isolamento tentando retornar ao estado de natureza, conduzindo
ao enfraquecimento dos direitos conquistados de um todo através da participação. Desta forma,
torna-se difícil promover um diálogo igualitário entre sociedade-Estado inviabilizando o
desenvolvimento da gestão social.

Movimento de Mulheres
A sociedade ao longo da história vem passando por diversos problemas sociais, e a
partir desses problemas surge diversos movimentos sociais com objetivos de sanar essas
questões e assim obter a inclusão social. Na visão de Hamel (2009) através dos movimentos
sociais é promovida a democracia participativa, uma vez que os movimentos é uma forma
de reivindicar seus direitos.
Direitos esses que por anos não foram concedidos para as mulheres, um exemplo disso
ocorreu na idade média onde as mulheres não exerciam sua cidadania, pois não tinham direito a
voto. Para Silva e Camurça (2013), na década de 70 iniciaram os movimentos de mulheres que
lutavam contra as desigualdades sociais, exploração, opressão entre outras desigualdades e
problemas sociais, iniciando uma luta árdua pela busca de seus direitos.
Através desses movimentos sociais há uma quebra na visão de uma sociedade
patriarcal, onde esses movimentos de mulheres começam a ganhar força no Brasil,
favorecendo o público feminino quanto aos direitos de igualdade, respeito e justiça (HAMEL,
2009; SILVA; CAMURÇA, 2013).
No entanto, é notável a existência de conflitos de ideias em relação aos movimentos de
mulheres e movimentos feministas, onde na percepção das autoras Silva e Camurça (2013) um
complementa o outro, uma vez que os movimentos feministas são 206
formados por mulheres. Um exemplo de movimento feminista é a marcha das vadias, que de
acordo com Galetti (2014), teve início em 2011 e lutavam contra atos machistas e diversas
violências, buscando o engajamento de mulheres em prol dessas causas.
A marcha das vadias começou no Canadá e hoje atinge vários países. Essa
denominação ―vadia‖ é um singular ao estereótipo de culpar as mulheres agredidas, devido
a sua forma de se vestir (GALETTI, 2014; VALENTE; MARCINIK, 2014). Esse movimento
surgiu como resposta ao comentário de um policial, que defendia a ideia que mulheres com
vestimentas provocantes, são responsáveis pelos abusos e assédios sofridos (GALETTI,
2014; MARTINI; PUHL, 2015).
Para Silva e Camurça (2013) os movimentos feministas propõem a transformação
da vida das mulheres e a sociedade como todo. No entanto Gomes (2013) relata que alguns
movimentos de mulheres negras não participam da macha das vadias, devido obterem
visões diferentes, pois assumirem-se vadias nos protestos tem um impacto negativo maior,
do que para as mulheres brancas. Uma vez que, para as mulheres brancas o termo vadia é
reconfigurado em liberdade e autonomia enquanto que para as mulheres negras o termo é
totalmente o contrário, devido a sua longa história de submissão aos senhores desde o
período colonial escravista.
Por isso as críticas de alguns movimentos de mulheres negras quanto à marcha
das vadias ter objetivos universais, quando na verdade esse movimento é formado em
grande parte por mulheres brancas e de classe média, sem levar em consideração a
interação de raça e gênero e como isso irá afetar negativamente as mulheres negras.
Nesses movimentos, existe uma participação mínima do sexo masculino em prol da
causa feminina (GOMES, 2013; SIMONETTI, 2013). Dessa forma, a maior incidência nesses
movimentos é com participação de mulheres. Então, no que tange a essa causa ainda há
muito o que fazer, principalmente ter o apoio masculino que é fundamental e trabalhar
coletivamente, com objetivos universais para que esses movimentos venham obter êxito.

A gestão social incide no movimento marcha das vadias?


Conforme análise realizada, a gestão social incide no movimento de mulheres, pois
este encontra-se organizado, articulando e mobilizando ações em prol de objetivos que
beneficiarão o coletivo. Entretanto, a gestão social não incide no grupo feminista marcha das
vadias, tendo em vista que estes grupos não participam de forma amistosa em ações
promovidas pelo Estado. Reiteramos que a gestão social privilegia a tomada de decisão
coletiva, afim de proporcionar o bem coletivo sem eliminar ou descriminar qualquer outro
grupo.
Para Brito (2014) os processos do papel social da mulher, quanto à participação na
vida política e econômica vêm acontecendo gradativamente, para a consolidação desses
direitos é necessário a participação de diversos atores sociais, que busca igualdade e
equidade, dando origem aos movimentos sociais feministas voltadas para a questão de

gênero. 207
Em uma mobilização que ocorreu durante muito tempo, em Rio Branco no Acre,
promoveu a implantação da ―Casa Rosa Mulher‖, local que atende mulheres vítimas de
violência. Conforme Farah (2004), o processo iniciou na década de 1980 com a constituição
de um movimento de mulheres, em 1992 o movimentou formulou propostas para que fosse
criado o abrigo. Após todo o processo, em 1994 foi criado a ―Casa Rosa Mulher‖.
De acordo com a abordagem realizada por Farah (2004) isso só foi possível pelo
fato de ter ocorrido mobilizações de movimentos e organizações de mulheres. Observa-se a
importância de haver mobilizações através da organização social de representação para
alcançar objetivos para o coletivo, neste caso a incidência de um movimento é perceptível.
Dessa forma, reiteramos que no grupo da marcha das vadias não ocorre incidência da
gestão social, haja visto que de acordo com Gomes (2013) esse grupo não está inserido e nem
pretende possuir vínculo com qualquer tipo de coletivo. Para que ocorresse a incidência seria
necessário que os objetivos fossem em benefício do coletivo (incluindo todos os grupos de
mulheres, seja ele de negras, evangélicas ou qualquer outro), pois se as ativistas se
autodenominam ―autônomas‖ não há como ocorrer gestão social.
Já na visão de Salloum e Valente (2014) a macha das vadias, traz uma nova visão
da figura mulher, onde as mesmas têm direitos a proteção e autonomia, direito estes
constituído em lei. Um exemplo é o caso da lei Maria da Penha, que foi uma grande
conquista na luta das mulheres, lei que levou a discussão e elaboração de políticas públicas.
No entanto a luta é constante e é através da gestão social somada a utilização de mídias
sociais nos movimentos de mulheres que os debates se potencializam.
Em uma versão da marcha das vadias em Belém do Pará, ocorreu algo incomum.
O objetivo geralmente é a extinção do pensamento machista, mas nessa edição o objetivo
foi alterado para um pensamento que respondesse as demandas mais práticas. Ocorreu na
versão belenense trabalhos de conscientização nas escolas retomando o que geralmente é
incumbido ao Estado realizar, destacando que na democracia participativa a sociedade
também é gestora, atuando junto ao governo (ALMEIDA, 2011).
O caso relatado, que ocorreu em Belém, citado no trabalho de Almeida (2011) não
garante que o pós-marcha irá acontecer desse modo, relembrando que a marcha é de
caráter mobilizador, mas que não possui estrutura suficiente para manter ações após as
realizações das marchas.
Brito (2014) ao participar de uma marcha pode observar algumas reações da parte
da sociedade, pois enquanto algumas apoiavam com aplausos, outros vaiavam mostrando
uma indignação a suas ideologias. A macha das vadias, não trabalha com documentos,
reivindicando suas ideologias, pelo contrário seu foco é chamar a atenção das autoridades e
sociedade através de cartazes e mensagens pelo corpo (BRITO, 2014).
A autora faz uma análise quanto à manifestação de ideias pela marcha das vadias
no estado da Bahia, onde manifestar ideias não é algo simples, pelo contrário isso é
complicado porque vai além de apresentar e reivindicar, envolve o convencimento de toda

uma sociedade inclusive o sistema político. No entanto, em outras cidades como no Rio de 208
Janeiro a macha das vadias, em algumas ocasiões agiram de forma ilegal, ao realizarem a
manifestação quebrando imagens da igreja católica, indignados com os dogmas da igreja.
Arenas públicas devem ser espaços acessíveis a todos, sem restrição, e sem oposições,
onde os atores trabalham conjuntamente.
Muito embora a marcha das vadias seja um grupo e não um coletivo, conforme
Gomes (2013) esclarece, e mesmo assim querem lutar contra a violência sexual e de gênero
isso dificilmente ocorrerá. A relação horizontal e a inflexibilidade desse grupo e o fato de não
instituírem uma liderança central pode custar caro as idealizadoras da marcha, pois só é
possível garantir a legitimidade de algo se este possuir uma relação solidificada com uma
base para promover articulações e fortalecer o movimento.
Portanto, é preciso que se forme novos arranjos com a sociedade para que
movimentos sociais, como o movimento de mulheres, possam estar presentes e permitam
um diálogo com o governo para que através desse contexto os limites e as possibilidades de
atuação desses movimentos ocorram, assim como pesquisas comprometidas a garantia de
direitos sociais fortalecendo a gestão social (FERNANDES; MACIEL; CLOS, 2012).

CONCLUSÃO
Este trabalho propôs de forma sintética abordar o tema da participação social nos
debates políticos, partindo do pressuposto de que a gestão social valoriza a participação da
sociedade nas tomadas de decisões sociais e políticas. A gestão social busca o
empoderamento no sentido de resgatar o interesse político da sociedade, tornando cidadãos
protagonistas nas causas sociais. Diante disso, a mesma influencia na política brasileira
consolidando a democracia participativa, promovendo o desenvolvimento social e político do
país.
Um dos meios a promover a gestão social é através dos movimentos sociais que
lutam em prol de uma causa, um exemplo desses movimentos é o das mulheres que busca
conquistar seu espaço na sociedade. Uma novidade que vem acontecendo é o movimento
feminista marcha das vadias que acontece em várias cidades do Brasil, seu maior aliado são
as redes sociais, no entanto esse movimento traz muitas polêmicas quanto suas ideologias,
por outro lado esse movimento ganha força entre mulheres jovens que defende a autonomia
e liberdade do seu corpo.
A partir da análise, é notável a incidência da gestão social no movimento de
mulheres, pois existe uma estrutura organizada articulando e mobilizando ações em prol de
objetivos coletivos, onde há parceria entre organizações privadas e o Estado. Entretanto
essa incidência não acontece na macha das vadias, de forma que não existe e nem se
pretende vincular-se a instituições públicas e privadas.
Para uma visão mais ampla e aprofundada é necessário à aplicação desse tema
em uma região especifica, pois, a partir de então será mensurado com mais precisão de que
outra forma podemos detectar a incidência da gestão social em movimentos feministas.
Consideramos que o tema é importante para os debates acadêmicos através de uma visão 209
interdisciplinar, principalmente porque a participação política das mulheres está presente em
todas as áreas do conhecimento.

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B3rgia%20Grube.pdf>. Acesso em 07 ago. 2016.bbb

211
1
“O suplício de mundanas”: uma carta à primeira dama de Belém
https://doi.org/10.29327/527231.5-14
Jhenifer Denise Souza da Silva – UFPA
Franciane Gama Lacerda – UFPA

Resumo

No ano de 1970, período de intensa repressão direcionada a mulheres prostitutas, a


zona da Campina, em Belém (PA), foi interditada, sob a ordem do então governador,
Alacid Nunes. A consequência disso foi o fechamento de diversas casas e o
deslocamento de muitas mulheres para regiões periféricas da cidade. Este trabalho se
atém a esta zona de meretrício analisando a luta dessas mulheres por um espaço de
moradia e trabalho, a partir de uma carta publicada no jornal paraense Folha do Norte
escrita por prostitutas à esposa do então governador, em que percebe-se uma
audaciosa estratégia por parte destas mulheres, suplicando favor e piedade a outra
mulher pra que a situação mudasse.

Palavras-chave: Cidade, prostituição, conflitos, Belém/PA, Século XX.

Abstract

The year of 1970, period of intense repression targeted prostitutes women, the
Campina district, at Belém (PA), was interdicted by order of then governor
Alacid Nunes. The consequence was the closure of several houses and
displacement of many women to peripheral regions of the city. This work
reviews the red-light district, analysing the women's struggle for a living and
working space, from a letter published in the paraense newspaper Folha do
Norte written by prostitutes addressed to then governor’s wife, which is
noticeable a bold strategy by these women, asking for benefits and mercy to
another woman, so the situation would change.

Keywords: City, Prostitution, Conflicts, Belém/PA, 20th century.

1
O presente texto é parte de pesquisa em andamento para o trabalho de monografia final do
curso de Licenciatura em História sob a orientação da Profa. Dra. Franciane Gama Lacerda.

212
No ano de 1970, período de intensa repressão direcionada às mulheres
prostitutas a zona da Campina, em Belém do Pará, foi interditada. Naquele ano sob a
ordem do então governador, Alacid Nunes, diversas casas de prostituição tiveram suas
portas fechadas. Ao lado disso, muitas mulheres que viviam nessa área central da
cidade tiveram que se retirar para regiões periféricas de Belém. Antes do fechamento
da zona, no entanto, as prostitutas que ali residiam escreveram uma carta de súplica à
2
então primeira dama do Pará, a Sra. Marilda Nunes. Essa missiva foi publicada no

jornal Folha do Norte, dando visibilidade a múltiplos problemas enfrentados pelas


mulheres que remetiam a carta que chegou à redação do periódico. Este trabalho se
atém a uma breve análise dessa carta, enfatizando as solicitações e anseios que
essas mulheres tiveram ou tentaram ter diante da intensa repressão que o Estado
direcionava para elas. Segue um trecho da referida carta:

Exc. Sra. Marilda da Silva Nunes, D. D. Primeira dama do Estado.

Temos a liberdade de solicitar vosso consentimento em poder


cumprimentá-la. Nós, abaixo assinado, apesar de pertencermos a uma
classe detestada da sociedade, com domicílios e residências em zonas
inacessíveis à sociedade. Vimos, com a devida vênia e máximo
acatamento, rogar ao vosso generoso coração, a maior dádiva que
talvez possamos alcançar, com a interferência de V. Excia. Junto ao
vosso ilustre esposo e D. d. Governador do Estado e oficial do Exército
Sr. Alacid da Silva Nunes, o pedido que ides ler nessas mal traçadas
linhas, neste momento de aflição em que nos encontramos, sem saber
para onde poderemos ir residir (FOLHA DO NORTE, 1970).

Seguindo um padrão de escrita da época em que o remetente se colocava de forma


humilde diante do destinatário as mulheres falam de si mesma enfatizando que sabiam que
pertenciam ―a uma classe detestada da sociedade‖. Mas que apesar disso, apelavam ao ―generoso
coração‖ da esposa do governador, visando a mudança da sua situação que implicava na perda de
espaço de moradia e de trabalho para um grande número de mulheres. Desse modo, por meio
dessas ―mal traçadas linhas‖, podemos adentrar nos significados que essas mulheres davam a sua
vida e ao seu local de moradia naquele momento de mudanças urbanos e disciplinadoras dos
espaço que era considerado pelas mulheres prostitutas, segunda a carta como um ―momento de
aflição‖, uma vez que não sabiam para onde poderiam vir a residir.

No trabalho de José do Espírito Santos Dias essa mesma carta é apresentada. Cf. DIAS, José do Espírito Santo Júnior. Entre
Cabarés e Gafieiras: Um estudo das representações boêmias em Belém – 1950-1980
– São Paulo: [S. n.], 2014.. Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em História,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pp.285-286.

213
Tomando como ponto de partida a historiografia vemos que Michelle Perrot em
Os excluídos da História, no capítulo ―Mulheres‖, aponta os meandros da participação
da mulher no cenário histórico e político na Paris do século XIX. A construção da
relação de poder, lugar de fala, exclusão política, matriarcado, patriarcado, a cultura
do corpo, trabalho nas fábricas, trabalho doméstico, público x privado, são pontos que
reforçam que a invisibilidade ou negação da mulher na história está apenas no modo
de análise do objeto histórico.

A História das mulheres sempre foi escrita por homens, e antes de lançar-se sobre
essa escrita, era necessário primeiro que se desconstruísse do senso comum ao invés
de simplesmente incluí-las na história. Segundo Michelle Perrot:

As mulheres são mais imaginadas do que descritas ou contadas, e


fazer a sua história é, antes de tudo, inevitavelmente, chocar-se contra
este bloco de representações que as cobre e que é preciso
necessariamente analisar, sem saber como elas mesmas as viam e as
3
viam como faziam. (PERROT, 2005, p. 11).

Dessa forma, os estudos sobre mulher, sua participação na política, no


trabalho, nos movimentos sociais, ganharam prestígio, e possibilitaram novos
espaços, em particular após a incorporação de gênero como categoria de análise
histórica. Segundo Mary del Priore, duas características foram importantes para
marcar o início das produções sobre o feminino: fazer emergir a mulher no cenário de
uma história pouco preocupada com as diferenças sexuais e demonstrar a exploração,
a opressão e a dominação que a vitimava. (DEL PRIORE, 1989)

Assim, no caso do Brasil durante muito tempo as mulheres não foram


consideradas sujeitos da história e, dessa forma, estiveram excluídas das narrativas dos
historiadores. O cenário começou a mudar por volta dos anos 80 do século XX,
demonstrando a presença de novos sujeitos, tal qual a mulher e sua (in)visibilidade.
Sidney Chalhoub (2009), em seu trabalho Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e
trabalhadores na historiografia brasileira desde 1980, utiliza tanto a historiografia sobre
escravos quanto a historiografia sobre trabalhadores para evidenciar a mudança de
paradigma nas produções historiográficas do Brasil a partir da década de 80. Conforme o
autor, antes dessa década, prevalecia o ―paradigma da ausência‖, isto é, um ocultamento
e exclusão de sujeitos históricos como operários, negros e também mulheres na
historiografia. Após a década de 80, houve um ruptura com esse paradigma

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc, 2005.

214
desde então passou a predominar o ―paradigma do agente‖, em que estes
marginalizados da história, passaram a ser abordados pelos historiadores.

Pobres em geral, trabalhadores, mas também ―desclassificados


sociais‖, excluídos e marginalizados, tais como criminosos, prostitutas
e loucos, passaram todos a povoar as pesquisas acadêmicas. Aqui, de
novo, as formas de controle social exercidas sobre esses grupos
sociais e suas práticas de resistência viraram temas da historiografia.
4
(CHALHOUB, 2009, p. 42)

Segundo Margareth Rago em As mulheres na Historiografia Brasileira (1995),


no Brasil, a história das mulheres toma como ponto de partida a história social
marcada pelo viés marxista a partir da década de 1970. Preocupados em identificar as
marcas da opressão masculina e capitalista a partir da análise da entrada das
mulheres no mercado de trabalho e as péssimas condições de trabalho a que estavam
submetidas, a escrita relacionada às mulheres as faziam aparecer nos estudos como
vítimas do sistema, desprovidas de direitos políticos, por meio das diferenças de
classes e seus interesses, mas pouco mencionadas como sujeitos históricos, a partir
de suas experiências cotidianas para além do ambiente de trabalho.

Como dito anteriormente, a partir da década de 1980 se percebe uma


preocupação da produção historiográfica em registrar a presença das mulheres na
história enquanto ser social. Agora não mais estudadas somente pela vertente
econômica tão valorizada pelo marxismo, a nova produção historiográfica começava a
dar um caráter social à história das mulheres.

Portanto, se a história das mulheres, no Brasil, nasce no interior de uma


historiografia do trabalho, em 1970, é importante lembrar que esta sofre
profundas mudanças ao longo desta década, abandonado o interesse
exclusivo pela história dos partidos políticos e sindicatos, para incorporar
outros temas que abrangem desde o cotidiano das fábricas até a vida no
interior da família, passando pelos valores, crenças e hábitos que
5
marcaram a classe trabalhadora. (RAGO, 1995, p.84).

Maria Izilda S. de Matos afirma que: ―Como nova categoria, o gênero vem
procurando dialogar com outras categorias históricas já existentes, mas vulgarmente

CHALOUB, Sidney; Silva, Fernando T. da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na
historiografia brasileira desde 1980. Cadernos Arquivos Edgar Leuenroth, Campinas, v. 14, n. 26, 2009.
RAGO, Margareth. As mulheres na Historiografia Brasileira. In: SILVA, Zélia Lopes (Org.).
Cultura Histórica em Debate. São Paulo: UNESP, 1995.

215
ainda é usado como sinônimo de mulher, já que seu uso teve uma acolhida maior
6
entre os historiadores desse tema.‖ (MATOS, 1998, p. 64).

O livro História das mulheres e as representações do feminino, de Losandro


Antonio Tedeschi, publicado em 2008, é mais uma contribuição aos que se ocupam
em entender as mulheres na história o autor busca compreender como em diferentes
momentos históricos a sociedade enxergava o comportamento feminino e criava
representações para as mulheres. Eram discursos legitimadores da inferioridade
"natural" das mulheres. Nas palavras do próprio autor,

Esses discursos recorrentes exerceram influência decisiva na elaboração


de códigos, leis e normas de conduta, justificando a situação de
inferioridade em que o sexo feminino foi colocado [...] Assim, a
desigualdade de gênero passa a ter um caráter universal, construído e
reconstruído numa teia de significados produzidos por vários discursos,
como a filosofia, a religião, e educação, o direito, etc. perpetuando-se
7
através da história, e legitimando-se sob seu tempo (p. 123).

Nessa perspectiva, Tedeschi utiliza-se das articulações entre história e gênero


para demonstrar as inter-relações socialmente construídas entre os sexos. Sobre os
estudos de gênero, o autor adverte serem importantes, na medida em que possibilitam
a análise "das relações entre os sexos, buscando principalmente contribuir para os
estudos sobre a condição feminina e a vida familiar na sociedade" (p. 10).

O desafio ao escrever sobre a história das mulheres muitas vezes reside na


ausência de fontes escritas deixadas pelas próprias mulheres. Daí porque os historiadores
muitas vezes acabam investigando documentos que tratam indiretamente das mulheres.
No caso da pesquisa apresentada, ainda que não saibamos exatamente como a carta em
análise foi feita, sabemos que esta tem como remente as mulheres da zona da Campina
que se sentiam prejudicadas com as reformas higienistas que o governo estadual visava
implementar na capital paraense nos anos de 1970. Desse modo, vindo a pública as
mulheres que viviam e se sustentavam na zona do meretrício deixam de ser invisíveis
chegando às páginas da Folha do Norte, não pelos conflitos e confusões que vez por outra
se viam envolvidas, mas pela reivindicação de um lugar para viver . Conforme destaca
Tedeschi, muitas vezes a história das mulheres se revela

MATOS, Maria Izilda S. de. Estudos de gênero: percursos e possibilidades na historiografia


contemporânea. Cadernos Pagu, n. 11, p. 67 – 75, 1998.
TEDESCHI, Losandro Antonio. História das mulheres e as representações do feminino. Campinas: Curt Nimuendajú,
2008. 144 p.

216
a partir de vestígios de sua existência cotidiana como correspondências, diários,
autobiografia, objetos pessoais, jornais do cotidiano nos quais elas aparecem e
afins.(TEDESCHI, 2008)

Apesar desse silenciamento das mulheres nas fontes, o estudo das mesmas
atualmente de tornou mais fácil. Há diversos estudos que buscaram trazer à tona o
protagonismo das mulheres em diversos contextos sociais e políticos. No caso deste
trabalho, aborda-se a mulher prostituta constantemente marginalizada dentro do
contexto da Ditadura Civil Militar.

Diante das circunstâncias do AI-5, homologado no final da década de 60, o


Brasil viveu uma série de restrições, censuras e controle do Governo que interferiam
de forma direta em diversas manifestações de cunho artístico, ideológico, acadêmico,
político e comportamental de diversos segmentos sociais acarretando uma série de
8
restrições traduzidas na privação das liberdades individuais, de expressão e afins.
Esse conjunto de medidas repressivas se fizeram presentes em todo o país chegando
cidade de Belém, enviesando em seu debate questões de ordem político e social,
9
bem como questões de ordem moral e comportamental.

Os movimentos de questionamento à ditadura e o feminismo emergiram em um


contexto onde não havia igualdade jurídica nem formal entre homens e mulheres. O
Código Civil da época colocava as mulheres em uma posição de cidadãs de segunda
categoria e dava aos maridos e pais poderes de decisão sobre elas. Possivelmente, a
repressão nesse contexto intensificou-se ainda mais quando se tratava das mulheres
de classes mais baixas, como prostitutas. Desse modo, voltando à carta enviada pelas
mulheres da Zona do meretrício à Dona Marilda Nunes estas diziam ser ―pobres
mulheres que aqui vivem [zona do Meretrício], desprezadas pela assistência social e por tudo
mais‖. Por essa afirmação de um lado vemos certa docilidade e humildade, mas ao mesmo
tempo expressa-se a ideia de que estas são desassistidas pelo Estado nas suas necessidades.
Igualmente estas não deixam de dizer que precisavam de ―outra moradia‖ além de ―higiene,
médica-assistência‖. Segue um trecho da carta:

Ocorre, entretanto, como julgamos estar


cientificada pela imprensa deste estado, o que, contra nós, pretende
executar a polícia civil, determinando a retirada total de todas as
ocupantes que residem na ―faixa livre‖, proibitiva as famílias.

DIAS, José do Espírito Santo Júnior. Entre Cabarés e Gafieiras: Um estudo das representações boêmias em Belém
– 1950-1980 – São Paulo: [S. n.], 2014. Orientadora: Yvone Dias Avelino. Tese (Doutorado) – Programa de Pós
Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
PETIT, Pere.; VELARDE, Jaime Cuéllar. O golpe de 1964 e a instauração da ditadura civil-militar no Pará: apoios e resistências.
Estud. hist. (Rio J.) vol.25 no.49 Rio de Janeiro Jan./June 2012.

217
Isso, seria ideal, se (…) dessem outra moradia em local arredio da ―urbe‖
higiene médica-assistência, casa, (…) um custo de vida ao nosso
alcance.
Estamos de acordo se isso for, ou venha ser concretizado em benefício as
pobres mulheres que aqui vivem, desprezadas pela assistência social e por
tudo mais, se obtivermos ganho de causa, pela vossa interferência, juntos
aos Poderes máximos deste Estado, e a quem decoramos graças rogamos
ao nosso Bom Pai, pela saúde de toda a Exma.e Ilustrada
família Alacid Nunes. Com elevados espíritos de gratidão eterna, aqui
ficamos orando pela saúde e bem estar de Vossa Excia.

10
Dezenas de assinaturas.

Esse trecho da carta evidencia o desespero de mulheres prostitutas residentes


zona. Havia uma preocupação delas com coisas imediatas, como moradia, higiene,
assistência de saúde e social, e lazer. Lazer, também, pois a zona onde elas sempre
moraram ficava no centro da cidade, ficando perto de tudo e dando acesso com mais
facilidade ao comércio da cidade. Agora, como seria? Segundo José do Espírito Santo
na tese de doutorado ―Entre Cabarés e Gafieiras: Um estudo das representações
boêmias em Belém – 1950-1980‖, tais mulheres ―sabedoras que seu destino seria o
subúrbio da cidade, onde a estrutura urbana era precária, talvez tivessem consciência
11
de que seria vetado o direito e a dignidade deste tipo de lazer‖ .

Um ponto a ser questionado na notícia é: por que uma carta para a primeira dama?
Como dito anteriormente, o período analisado era é marcado por intensa repressão assim
fica a impressão de que consciente ou inconscientemente, a mulheres da zona da
Campina acreditavam que pedir ajuda a uma mulher seria mais fácil de ser ouvida, por se
tratar de outra mulher, que talvez pudesse entender suas demandas por moradia, por
exemplo. À primeira dama, por motivos óbvios, que possivelmente era a mulher próxima
mais influente sob o governador Alacid Nunes justamente por ser sua esposa. A estratégia
das prostitutas revela protagonismo por parte delas, mas de desespero também. Não
sabemos o desfecho dessa história, uma vez que não há uma

BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARÁ – CENTUR – SETOR DE MICROFILMAGEM - Polícia agora vai fechar os bordéis do
subúrbio de Belém. Folha do Norte. Belém, 2 de abril de 1970.
DIAS, José do Espírito Santo Júnior. Entre Cabarés e Gafieiras: Um estudo das representações boêmias em Belém –
1950-1980 – São Paulo: [S. n.], 2014.. Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em História, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

218
resposta na imprensa sobre a solicitação das mulheres. Segundo Dias, que também
12
pesquisou a mesma carta, Dona Marilda não teve acesso a referida carta.

Ainda que a súplica, não tenha gerado os efeitos esperados pelas mulheres
uma vez que a zona foi fechada a carta não deixa de trazer à tona os anseios de
grupos marginalizadas. Segundo Dias, com o fechamento desse espaço muitas
mulheres passaram a viver no bairro da Condor. Com o fechamento da zona, houve
uma migração da prostituição para áreas mais periféricas de Belém, não por vontade
própria, mas pela própria sobrevivência das prostitutas. Apesar disso, as ações
repressoras aplicadas pelo Estado durante a Ditadura Civil Militar não surtiram os
efeitos desejados, que eram expurgar as prostitutas e a zona de prostituição do centro
da cidade. Pelo contrário, a boemia e a prostituição se ramificaram por outras áreas,
expandindo as expressões boêmias das periferias e as mulheres vítimas das
desigualdades sociais se prostituindo pela sobrevivência própria. A carta das mulheres
da zona do meretrício de Belém, revela a lutas dos grupos menos privilegiados por um
espaço em uma capital amazônica que crescia marcada por desigualdades sociais.

Idem, p.287.

219
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TEDESCHI, Losandro Antonio. História das mulheres e as representações do feminino.


Campinas: Curt Nimuendajú, 2008. 144 p.

220
PROTAGONISMO E FORMAÇÃO POLÍTICA DE MULHERES: caminhos
para superar a sub-representação
1
Maria Mary Ferreira /UFMA
https://doi.org/10.29327/527231.5-15 E-mail: mmulher13@hotmail.com

Resumo:
A sub-representação das mulheres na política é fruto da cultura patriarcal que perpassa o mundo
público e o mundo privado, que ao determinar papéis sexuais para mulheres e para os homens,
excluiu as mulheres dos espaços de poder. A necessidade de estudar estratégias de intervenções
que possam transformar as relações de gênero na política se constitui como filosofia da Pesquisa
Mulheres Relações de Gênero e Protagonismo Político: estudo, formação feminista e
informação como estratégica de mudança na sociedade patriarcal. Este projeto de pesquisa teve
como desdobramento a Capacitação de Mulheres na Política visando contribuir com o processo
de empoderamento de mulheres por meio de informações, troca de conhecimentos e produção
de dados que pudesse permitir as mulheres dos Municípios maranhenses criar mecanismos de
fortalecer seus protagonismos. Nesta comunicação apresentamos a experiência desenvolvida
nos cursos de formação que foi parte da pesquisa foi financiada pela FAPEMA, envolvendo um
público de 618 mulheres em sete municípios maranhenses, com aulas teóricas dialogadas
apoiadas por material pedagógico construído pelas integrantes da pesquisa a partir dos dados
colhidos na investigação.

Palavras-chave: Sub-representação; Gênero; Formação Política; Maranhão.

INTRODUÇÃO

O tratamento discriminatório que as mulheres enfrentam na sociedade e,


principalmente, nas estruturas historicamente masculinas (sindicatos, partidos, igrejas,
judiciário, entre outros), é fruto da educação patriarcal que ainda permanece na sociedade e
que tem como resultado a dominação masculina que retrata as hierarquias das inter-relações
sociais contribuindo para transformar as diferenças sexuais em desigualdades. Estas
desigualdades, por sua vez, reforçam os papéis de gênero que, dadas a educação e a
socialização diferenciadas de meninos e meninas repassadas na escola e reproduzidas na
família, pela mídia e pelas estruturas sociais ao veicularem a cultura dominante, não
favorecem a formação das mulheres para assumirem lugares de decisão.
Ao pensar estes dados que nortearam este estudo, buscamos com estas reflexões
ora apresentadas construir mecanismos que ultrapassassem os caminhos da investigação
formal imbricando-os com ações de extensão capazes de interferir mais diretamente na
vida das mulheres, sujeitos e objeto deste estudo em cinco municípios maranhenses.

Professora Associada III do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e do Departamento de Biblioteconomia da


Universidade Federal do Maranhão. Mestra em Políticas Públicas – UFMA. Doutora em Sociologia UNESP/FCLAr. Pôs
doutora em Comunicação e Informação pela Universidade do Porto/Portugal.

221
Os dados das últimas eleições nos âmbitos municipais, estaduais e federal
desnudam a contradição da democracia brasileira ao apontarem que dos 57.337
candidatos a vereador na eleição de 2012, apenas 7.648 mulheres foram eleitas, contra
49.689 homens. (FERREIRA, 2015). As mulheres representam 13,3% dos vereadores
espalhados nas 5.568 câmaras dos municípios do Brasil. Houve um aumento simbólico
em relação à eleição de 2008, porém esse aumento não superou os 19%, fato que aponta
os muitos desafios para construir paridade de gênero na política.
No Maranhão, os resultados eleitorais de 2016 reforçam a ideia de que as
mulheres não se interessam ou não são afeitas à política, como afirmava Rousseau no
século XVIII, tendo em vista que o total de candidaturas femininas para vereadores e
prefeitos foi de 5.282 de mulheres, contra 11.532 candidaturas masculinas. Nos
Gráficos 1 e 2 pode-se observar que o número de eleitos foi de 447 mulheres (17%) e
2.140 homens (83%) para as câmaras e prefeituras do Maranhão.
Gráfico 1: Candidatos (prefeitos Gráfico 2: Candidatos
e vereadores) Eleitos (prefeitos e vereadores)

Total de Candidatos Total de Candidatos


Feminino Masculino Eleitos
Feminino Masculino
31%
17%

69%
83%

Os dados apontam que a relação entre o ´número de mulheres que se candidata e


que são eleitas é desproporcional. Percebe-se pelos números que proporcionalmente os
se elegem mais homens que mulheres, os dados apontam ainda que as mulheres se
candidatam, fato que denota seu interesse em participar da política formal.
A proposta desta pesquisa foi de refletir sobre esses dados, trazendo-os para a
realidade do Maranhão, buscando deste modo construir referenciais que reflitam a sub-
representação feminina neste Estado e assim contribuir para superá-los. Importante destacar
que a pesquisa “Mulheres, Relações de Gênero e Protagonismo Político: estudo, formação
feminista e informação como estratégica de mudança na sociedade patriarcal”, foi
financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico e

222
Tecnológico no Maranhão – FAPEMA, através do Edital FAPEMA nº 007/2016
Igualdade de Gênero, com o objetivo de:
Investigar, mapear e articular através de pesquisa e extensão estudos e
formação capazes de refletir a situação da sub-representação feminina na
perspectiva de contribuir com o processo de empoderamento de mulheres
por meio de informações, troca de conhecimentos e produção de dados que
permita às mulheres de sete municípios maranhenses construírem processos
de mudanças e protagonizarem ações intervencionistas visando
transformação das relações de gênero e étnico raciais
no Maranhão.(FERREIRA, 2016, p. 7)

Nesta comunicação apresentamos os dados referentes a parte de extensão


prevista no edital que tinha como exigência devolver as comunidades onde se deram a
investigação os resultados da pesquisa. Para melhor compreensão do trabalho
desenvolvido dividimos este texto em três momentos a começar pela introdução onde
são apresentados os propósitos do trabalho em seguida uma rápida discussão sobre o
percurso metodológico e em seguida o resultado dos cursos de formação que envolvem
sete municípios maranhenses.

2 A PROPOSTA DE FORMAÇÃO POLÍTICA PARA MULHERES

O edital da FAPEMA previu como atividade da pesquisa a realização de ações


de extensão como forma de devolver aos grupos envolvidos na pesquisa os resultados
da investigação contribuindo desta maneira com a reflexão dos sujeitos envolvidos. É
importante destacar que na pesquisa foram envolvidas 59 lideranças femininas dos
cinco municípios, todas indicadas a partir da pesquisa de campo que envolveu um total
de 494 pessoas, sendo 366 mulheres e 128 homens. Os Cursos de Formação envolveram
além dos cinco municípios que fizeram parte da pesquisa: São Luís, Morros, Turiaçu,
Duque Bacelar e São João dos Patos, foram incluídos ainda os municípios de Paço do
Lumiar e Pinheiro por insistência das organizações de mulheres destas localidades,
quando começaram a ser divulgados os cursos nas redes sociais.
Em todos os municípios que fizeram parte da pesquisa, com exceção São João
dos Patos, foram realizadas visitas de mobilização pelas integrantes da pesquisa aos
municípios investigados a fim de garantir maior participação das organizações de
mulheres e em especial as mulheres citadas na pesquisa, indicadas como protagonistas
nos municípios investigados. Em São João dos Patos não foi possível fazer mobilização
em virtude da distância e dos custos de viagem, entretanto, a coordenação do projeto se

223
deslocou a cidade desde o dia 28 de agosto e durante dois dias visitou diversas
organizações da sociedade civil convidando as mulheres para participarem do curso que
foi realizado nos dias 30 e 31 de agosto.
Na tabela abaixo listamos as datas de realização de cada curso, seus respectivos
municípios e número de participantes:
LOCALIDADE DATA DE REALIZAÇÃO NÚMERO DE MULHERES
DO CURSO PARTICIPANTES
Morros 03 e 04/08/2019 19
São Luís 07 e 08/08/2019 145
Turiaçu 24 e 25/08/2019 82
São João dos Patos 30 e 31/08/2019 91
Duque Bacelar 05 e 06/09/2019 51
Paço do Lumiar 27/09/2019 154
Pinheiro 04 e 05/10/2019 56
TOTAL 598

No processo de mobilização foram convidados sindicatos, pastorais religiosas


diretoras de escolas, movimentos de mulheres e feministas, partidos políticos, e as
câmaras municipais de todos os municípios envolvidos no Curso. Além disso foram
contatadas as secretarias da mulher e ou departamento da mulher dos citados municípios
em busca de parceria, fato que viabilizou o curso na maior parte dos municípios. A
partir deste contato foi garantido almoço nos Municípios de São Luís, Turiaçu, Duque
Bacelar, Paço do Lumiar e Pinheiro. No restante dos municípios os cursos tiveram apoio
exclusivo do projeto.
Os cursos tiveram a presença das professoras/pesquisadoras envolvidas no
Projeto de Pesquisa que ministraram os conteúdos e garantiram que fossem ministrado
de acordo com a temática do projeto e levando em conta as demandas indicadas pelas
lideranças femininas. Também foram convidadas especialistas que contribuíram com o
desenvolvimento de temas de interesse das mulheres manifestadas no decorrer da
pesquisa. Entre as convidadas para ministrar a formação destacamos a assistente social
Luiza Mendes que discutiu a questão da economia solidária, a Dra. Joana Coutinho e
Silvane Magali Vale Nascimento que fizeram a parte da análise de conjuntura, a
advogada Mari Silva e Silva e Berenice Gomes que discutiram Legislação Eleitoral.
Desse modo conforme pode ser observado nas programações de São Luís, São João dos
Patos e Duque Bacelar, os conteúdos ministrados cumpriram os objetivos do projeto.

224
Apresentamos a seguir o perfil das participantes do Curso por Município, bem
como a expectativa das mulheres em relação aos conteúdos ministrados.

10.1 Curso de Formação Política em Morros

Em Morros o Curso foi realizado nos dias 3 e 4 de agosto, após o trabalho de


mobilização realizada no período de 18 a 20 de julho. O curso teve o apoio da Prefeitura
através da Secretaria da Mulher, porém, o número de participantes foi aquém do esperado, o
fato de não ter sido liberado almoço para as participantes contribuiu para a dispersão de
grande parte das interessadas. O público maior que se inscreveu no curso foi mulheres que
atuam no Município de Icatu, que fica a 10 minutos de Morros. Esse interesse se deve em
virtude da Secretaria da Mulher daquele Município estar acompanhando o trabalho e ter
mobilizado as mulheres de Icatu, além disso foi realizado em maio uma reunião com

225
mulheres lideranças em Icatu, fato que contribui para despertar o interesse entre as
mulheres que participaram. Ao todo participaram 19 mulheres, cujo perfil apresentamos
nos gráficos a seguir:

Raça/Etnia Idade (anos)

15 a 25 26 a 35
Branco Negro Pardo 36 a 45 46 a 55

Religião Escolaridade

Ens. Fundamental Inc. Ens. Medio Comp.


Catolica Evangelica Ens. Superior Comp. Ens. Superior Inc.
ND Protestante ND

Como se observa nos gráficos apresentados as participantes do Curso são a maioria


mulheres jovens, que se reconhecem negras e com ensino médio. Observa-se que em termos
de escolaridade as mulheres dessa região possuem curso superior ou estão cursando, fato
que pode ser considerado positivo. Mas, embora demonstrem interesse no tema de
protagonismo político para mulheres, nome dado ao curso, entretanto poucas das
participantes estão filiadas a um partido político, conforme demonstra o gráfico abaixo.

Filiado ao Partido

Sim Não

Esse se constitui um dos maiores problemas para a articulação das candidaturas


femininas, tendo em vista que os partidos fazem pouco investimento no credenciamento
das mulheres, fato que ficou bem evidente na pesquisa realizada em Morros quando as

226
lideranças femininas afirmam desconhecer qualquer tipo de ação realizada pelos
partidos para credenciar mulheres nos partidos.

10.2 Curso de Formação Política em São Luís

O curso em São Luís foi realizado nos dias 5 e 6 de agosto no Convento das
Mercês com a presença de 145 mulheres. A realização do curso contou com o apoio da
Secretaria de Estado da Mulher e do Fórum Maranhense de Mulheres. O perfil das
participantes demonstra que a maioria são mulheres já atingiram a maturidade, tem mais
de 55 anos, fato comprova o fato de que as mulheres se interessam mais pela política já
na fazer mais madura, é quando se lançam como candidatas em geral após os 40,
quando de alguma maneira cumpriram com as responsabilidade de criar os filhos.

Idade (anos)

15 a 25 26 a 35 36 a 45
46 a 55 acima de 55

A maioria das participantes se identifica como negra, fato que demonstra como
as relações étnicas raciais vem sendo alteradas, principalmente nas grandes cidades em
virtude da luta dos movimentos negros que tem discutido de forma muito positiva a
importância de os negros assumirem sua cor. Em São Luís a ação dos Grupos feministas
Mãe Andresa e Maria Firmina tem contribuído para ampliar o debate sobre
reconhecimento da cor.

Raça/Etnia

Amarelo Branco Negro Pardo ND

A maioria das participantes do curso se identificaram como católicas, embora


conforme pode ser observado no gráfico 9 muitas se identificaram como evangélicas ou
preferiram não responder.
No que se refere a escolaridade mais de 60 % das participantes declarem ter
curso superior e um número também razoável está concluindo o curso superior, fato que

227
demonstra que em São Luís as mulheres que se interessam por formação política tem
uma escolaridade elevada, o que denota que tem consciência da participação e da
representação política.

Religião Escolaridade

Ens. Fund. Inc. Ens. Fund. Comp.


Adventista Agnostico Ateu
Protestante Budista ND Ens. Medio Inc. Ens. Medio Comp.
Catolica Crista Espirita
Ens. Superior Inc. Ens. Superior Comp.
Evangelica Matriz Africana Neo Paganismo
ND

Ao questioná-las se estavam filiadas a algum partido, observamos que em torno


de 46 %, indicaram serem filiadas. Embora este seja um número bastante relevante,
entretanto, quando se trata de pensar candidaturas de mulheres é importante atentar para
a filiação, considerado um dos primeiros passos para o processo de eleição.

Filiado ao Partido

Sim Não

Curso de Formação Política para Mulheres em Turiaçu

Em Turiaçu o curso foi realizado nos dias 24 e 25 de agosto de 2019 com o


apoio da Prefeitura, do Fórum Turiense de Mulheres coordenado por Gisele Ribeiro e do
Fórum Maranhense de Mulheres que contribuiu com a presença de várias militantes que
trabalharam como facilitadoras e monitora do Curso. Participaram 82 mulheres, em sua
maioria negras e com idade adulta com ensino médio completo. Observamos que 27%
possuem curso superior ou está concluindo, fato considero relevante tendo em vista que
Turiaçu ressente-se de universidades e somente bem recente criado cursos superiores
através da Universidade Estadual do Maranhão.

228
Idade (anos) Religião

15 a 25 26 a 35 36 a 45 Catolica Crista Evangelica


46 a 55 acima de 55 Protestante ND

Raça/Etnia Escolaridade

Primario Ens. Fund. Inc.


Ens. Fund. Comp Ens. Medio Inc.
Ens. Medio Comp. Ens. Superior Inc.
Branco Negro Pardo ND Ens. Superior Comp. ND

Os dados acima são relevantes para mostrar o perfil das participantes do Curso
de Formação Política para Mulheres, curso realizado com o apoio do Fórum Turiense de
Mulheres, que se responsabilizou pela mobilização das mulheres no referido Município.
Embora o curso tenha obtido grande êxito dado o número elevado de participantes, fato
que demonstra o interesse das mulheres em participar, discutir e aprender os conteúdos
que envolveram o curso, entretanto, observamos a partir das respostas que apenas 9 %
das participantes filiadas a algum partido, fato que deve ser trabalhado pelo Fórum
Turiense de Mulheres, futuramente. Este deverá ser um tema a ser discutido nos
próximos cursos de formação realizados neste Município.

Filiado ao Partido

Sim Não

O dado também reflete a falta de debate político por parte dos partidos que não
tem pautada a questão da sub-representação e nem das cotas para mulheres na política
conforme enfatizaram várias mulheres entrevistada na pesquisa.

229
Curso de Formação Política para Mulheres em São João dos Patos

Em São João dos Patos o Curso foi realizado com o apoio da Secretaria
Municipal da Mulher no período de 30 a 31 de agosto de 2019. O trabalho de
mobilização foi realizado pela Secretaria Municipal da Mulher e pela coordenação do
projeto que chegou a Cidade dois dias antes do Curso. Mesmo com pouca mobilização
participaram do Curso 91 pessoas, em sua maioria jovens, tendo em vista que o Curso
foi realizado em uma Escola Municipal e na ocasião a diretoria da escola liberou as
turmas dos períodos mais avançadas para participar. Desse modo este curso foi o que
contou com o público mais juvenil (60%) conforme pode ser observado no gráfico. Foi
também o público com maior índice de católicos 67%.

Grafico Idade (anos) Religião

Adventista Agnostico Ateu


15 a 25 26 a 35 36 a 45 Candomble Catolico Crista
46 a 55 acima de 55 Deista Evangelico Protestante
ND

Neste curso diferente dos outros seis municípios teve a participação de homens,
em torno de 20%, isso se deu em virtude de ter sido realizado em uma escola pública e
pelo convite formulado pela Secretaria da Mulher para que os jovens participassem. As
participantes se identificaram como pardas (30%), brancas (25%), negras (20%) e 19%
não respondeu. No que se refere a escolaridade das/os participantes 45% responderam
não ter concluído o ensino médio, fato explicável em virtude da maioria está ainda
cursando o ensino fundamental e médio.

230
Raça/Etnia Escolaridade

Ens. Fund. Comp. Ens. Medio Inc.


Amarelo Branco Negro
Ens. Superior. Comp. Ens. Medio Comp.
Pardo ND
Ens. Superior. Inc ND

No que se refere a filiação partidária, observamos que foi o Município com a


maior incidência de pessoas sem filiação partidária, ou seja, 85% não estão filiados em
nenhum partido, índice superior a Morros que teve 74% de não filiados e Duque Bacelar
que teve 68 % de não filiados. Em São Luís o número de participantes do curso não
filiadas representa 57%.

10.5 Curso de Formação Política para Mulheres em Duque Bacelar

O município de Duque Bacelar foi um dos Cursos que contou com o apoio da
Prefeitura. Neste município a Secretaria de Assistência Social garantiu toda a
infraestrutura para que o curso se realizasse. Foi realizada antes um trabalho de
mobilização nos municípios de Coelho Neto, Buriti e Duque Bacelar, ocasião em que
muitos grupos manifestaram interesse em participar. O Curso em sua abertura
cumprimentou várias ex-vereadoras que participaram do primeiro dia do Curso e
parabenizaram a iniciativa do Curso.
Participaram 51 mulheres em sua maioria na faixa etária de 26 a 45 anos. São
mulheres que professam em sua maioria a religião católica (82%), mas se percebe a
presença de outros religiões, como as evangélicas e as umbandistas.

Idade (anos) Religião

15 a 25 26 a 35 36 a 45 Catolica Evangelica Umbanda


46 a 55 acima de 55 ND Protestante IPB

231
Os gráficos produzidos a partir das fichas de inscricão indicam que a maioria das
participantes se consideram pardas e negras (68%)e apenas 10% se identificou como
branco, 22% não soube ou preferiu não se idenficar, fato hoje comum, dada a
dificuldade se construir identidade negra neste País.

Raça/Etnia Escolaridade

Ens. Superior Comp. Ensino Médio Comp.


ND Ens. Superior Inc.
Pardo ND Branco Negro
Ens. Fundamental Inc. Ens. Médio Inc.

Em Duque Bacelar, município que durante décadas foi dominado pela família
Bacelar, somente na década de setenta foi eleita uma prefeita fora do grupo que
dominou por muitas décadas o município. Observamos que há forte presença de
mulheres no município e muitas se identificaram como partidárias, porém no que se
refere a filiação apenas 32% declararam estar filiada a algum partido. Este fato deve ser
tema de pauta dos partidos locais.

Filiado ao Partido

Não Sim

Curso de Formação Política para Mulheres em Paco do Lumiar

Em Paco do Lumiar a realização do curso se deu em virtude da pressão dos


movimentos de mulheres que ao tomarem conhecimento da proposta nas redes sociais,
entraram em contato com a coordenação do projeto para poder levar o curso para este
município. O Curso contou com o apoio da Secretaria de Assistência Social de Paço do
Lumiar que garantiu a infraestrutura para que o curso se realizasse.

232
Participaram do Curso 174 pessoas, entre os quais alguns homens, que insistiram
para participar do curso e receber certificado de participação. O Curso teve a presença
de várias professoras da Universidade Federal do Maranhão entre as quais a Profa. Dra.
Joana Coutinho, Profa. Dra. Iran Nunes Rocha, doutoranda Berenice Gomes, que
discorreram sobre conjuntura política, educação de gênero e legislação eleitoral.
Os debates suscitados no decorrer de cada conteúdo demonstraram o interesse
das participantes que levantaram muitos questionamentos sobre eleição e sobre
conjuntura política. O perfil das participantes aponta para mulheres na maioria na faixa
etária de 36 a 45 anos (30%) e 46 a 55 anos (31%), são mulheres que professam em sua
maioria a religião católica. Mas percebe-se um número considerável de evangélicas. São
mulheres que com grau de instrução que denota a qualificação elevada (58 %) tem curso
superior ou estão cursando. A maioria se identificou como parda e negra.

Idade (anos) Religião

Adventista Ateu
Budista Catolico
15 a 25 26 a 35 Crista Espirita
36 a 45 46 a 55 Evangelica Kardecista
acima de 55 Matriz Africana Messianica

Escolaridade Raça/Etnia

Ens. Fund. Comp. Ens. Fund. Inc.


Ens. Medio Inc. Ens. Medio Comp. Amarelo Branco Negro
Ens. Superior Inc. Ens. Superior Comp. Pardo ND

A escolaridade elevada, porém, não reflete na filiação partidária uma vez que
a maioria das participantes do curso declararam não estar filiadas em nenhum partido.

233
Filiado ao Partido

Sim Não

10.7 Curso de Formação Política para Mulheres em Pinheiro

Em Pinheiro o curso foi realizado na Universidade Federal do Maranhão através


do setor de Assistência Social. Participaram do Curso 56 pessoas, em sua maioria
mulheres jovens e estudantes da UFMA e do IFMA. O fato deste curso ter sido
realizado em um Campus Universitário favoreceu a participação de alguns homens,
embora o curso tenho sido pensado exclusivamente para fortalecer o protagonismo das
mulheres. Vale destacar que a Universidade Federal do Maranhão arcou com as
despesas de deslocamento das professoras que participaram da formação através de
diárias que garantiram pagamento de hospedagem e alimentação.
O curso foi realizado nos dias 04 e 05 de outubro com uma programação que
envolveu diversos professores, alunos, comunidade, organismos de políticas para
mulheres de Pinheiros e candidatas a vereadoras na próxima eleição, interessadas em
fortalecer suas campanhas.
O perfil dos/das participantes mostra que a maioria das interessadas são jovens
na faixa etária de 15 a 25 anos. Professam a religião católica e 66% se consideram
pardos. Observa-se também 88 % estão matriculados em um curso superior. ap

Idade (anos) Religião

15 a 25 26 a 35 acima de 55 Catolica Protestante

234
Raça/Etnia Escolaridade

Branco Pardo Ens. Fundamental Comp. Ens. Superior. Inc.

O que foi surpreendente foi os dados referentes a filiação partidária, quando foi
detectado que apenas 1% dos entrevistados pertencem a algum partido político.

Filiado ao Partido

Sim Não

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desdobramento do Projeto de Pesquisa “Mulheres Relações de Gênero e


Protagonismo Político: estudo, formação feminista e informação como estratégica de
mudança na sociedade patriarcal”, foi a realização de Cursos de formação política para
mulheres. Os cursos foram realizados em sete municípios com a participação dos
professores envolvidos na pesquisa e outras professoras envolvidas na pesquisa.
O resultado aponta o interesse das mulheres por este tipo de formação e pelos
temas abordados, entre os quais enumeraram os temas: Participação e Representação
Feminina na Política, Violência doméstica e sexual e geração de emprego e renda como
os mais relevantes abordados no Curso.
A partir dos instrumentos foi possível identificar que embora interessadas em
discutir as temáticas que envolvem a participação política das mulheres na sociedade,
entretanto a maior parte das participantes não estão filiadas a nenhum partido. O único
município onde os dados foram equilibrados foi no município de São Luís.
REFERENCIAS

FERREIRA, Maria Mary. As Vereadoras de Senador La Roque (Ma): ação política,


bandeiras e estratégias de luta com enfoque de gênero. Disponível em: Congresso
Democracia e Participação Política. Anais... 2017. P. 115-128. Disponível em:
http://www.sinteseeventos.com.br/site/anaispdpp17/st2.pdf. Acesso 24 mar. 2019.

235
FERREIRA, Maria Mary et al. Direitos iguais para sujeitos de direito: empoderamento
de mulheres e combate a violência doméstica. São Luís: EDUFMA, 2016.

FERREIRA, Maria Mary. Igualdade de gênero e participação política. In: SOUZA,


Cristiane de Aquino. In: Democracia, Igualdade e Liberdade: perspectivas jurídicas e
filosóficas. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2015. p.211-228.

_______. Mulher e políticas públicas: reflexões sobre como pensar políticas públicas de
igualdade de gênero. In: FERREIRA, Maria Mary. (Org.). Políticas públicas de gênero:
o pensar e o fazer em Imperatriz. Imperatriz: Ética, 2014.p.15-30.

________. Vereadoras e prefeitas maranhenses: ação política e gestão municipal com


enfoque de gênero. São Luís: EDUFMA, 2015.

236
―Driblando a Natureza”: práticas e percepções de jovens (mulheres) em
torno da contracepção e do aborto em uma escola da rede pública de
Belém do Pará
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-16 Lucas Oliveira de Souza/UEPA
2
Lucivaldo Alves/UEPA
3
Drª: Ana Lídia Nauar/ UEPA

Resumo
Este artigo visa discutir sobre uma pesquisa realizada ao longo de 2018 em
uma escola pública de Belém do Pará. Será tecida uma reflexão em torno do aborto e
de que maneira os estudantes elaboram suas práticas de contracepção, por meio de
oficinas estruturadas e de questionários quantitativo e qualitativo e com a observação
acerca do cotidiano escolar dos alunos e alunas, além de visitas ao Ver-o-Peso, a fim
de descobrir remédios naturais abortivos e como as erveiras lidam comercializam seus
produtos, sem indica-los a quem esteja grávida, pois temem represália, já que se trata
de um crime. A realização do aborto não é algo recente na história do Brasil, mas
recorrente, tendo suas origens no período colonial, em que as mulheres recorriam a
essa alternativa como uma forma de realizarem um controle da natalidade, pois não
tinham nenhum amparo em prosseguir, já que não contariam com o apoio dos pais dos
filhos e por se encontrarem em uma situação de pobreza. No entanto, nos últimos
anos, há tentativas de controlarem os corpos das mulheres, com projetos legislativos
de proibirem o aborto alegando uma defesa à vida, que não protege as mulheres, as
quais são submetidas às violências física e psicológica ao recorrerem a clínicas
clandestinas para a realização da interrupção da gravidez.
Palavras chaves: gravidez, contracepção, aborto, escola,
violência Abstract

This article aims to discuss a research conducted throughout 2018 in a public


school in Belém do Pará. A reflection will be made around abortion and how the
students elaborate their contraceptive practices, through structured workshops and
quantitative and qualitative questionnaires and with the observation about the students
daily school life, in addition to visits to the Ver-o-Peso, in order to discover natural
abortifacient medicines and how the erveiras sell their products, without indicating them
to those who are pregnant, because they fear reprisals, since it is a crime. The
performance of abortion isn´t something recent in the history of Brazil, but recurrent,
having its origins in the colonial period, in which women resorted to this alternative as a
way to perform a birth control, because they had no support in proceeding, since they
would not count on the support of the parents of children and for finding themselves in
a situation of poverty. However, in recent years, there have been attempts to control
women's bodies, with legislative projects to prohibit abortion on the grounds of a
defense to life, which doesn´t protect women, who are subjected to physical and
psychological violence when they go to clandestine clinics for the termination of
pregnancy.
Key words: pregnancy, contraceptive, abortion, school, violence

Graduando do 6º semestre de licenciatura plena em história na Universidade do Estado do Pará


Graduando do 8º semestre do curso de enfermagem na Universidade do Estado do Pará
Professora de antropologia da Universidade do Estado do Pará

237
Introdução
A discussão sobre aborto na nossa sociedade, às vezes, é tomada como um tabu,
sendo tratado como algo privado às famílias, dentro de suas casas, sempre considerado
como proibido, pois também é um evento que está inserido no contexto da sexualidade
construída ao longo dos anos, pela família, igreja e escolas, principalmente.
Segundo Foucault (1988), desde o século XVIII, criou-se um discurso
repressivo sobre a sexualidade na sociedade ocidental, sendo a escola uma das
instituições repressoras, as quais, na França separavam os rapazes e as moças. Por
isso, essa visão sobre a sexualidade como algo proibido é tão predominante até hoje.
Assim sendo, observamos uma dificuldade em se discutir o aborto nas escolas, as
quais deveriam ser espaços de debates sobre diversos assuntos, o que não ocorre, já
que se prefere tratar em segredo a fim de não contrariar a ordem vigente.
A prática do aborto, embora atinja diretamente às mulheres, não é uma pauta
que, apenas, a elas recaia. Ao contrário, é necessário pensar essa prática como um
elemento construtor da masculinidade, à medida que, nos espaços legislativos e
também, no judiciário, há um predomínio de homens, os quais, majoritariamente, são
brancos, héteros, de classe média, acabam legislando em torno dos corpos femininos.
Assim, ao longo da pesquisa pudemos perceber uma série de fatores, nos
quais a presença masculina é imprescindível ao aborto, por exemplo, ao
prosseguimento ou não da gravidez. Por isso, o apoio do companheiro às mulheres é
essencial, já que ele ajuda nas construções dos laços de solidariedade que se
estabelecem em torno dessa prática.
No Brasil, apesar da mídia começar a discutir recentemente o aborto por meio
de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (ADPF), a qual
argumenta que os artigos do Código Penal que proíbem o aborto afrontam preceitos
fundamentais da Constituição Federal.
No entanto, no Brasil, a violência dos homens sobre as mulheres foi constituída
pelos marcadores de diferença. Dessa maneira, essas distinções físicas transformam-
se em estereótipos sociais, em geral de inferioridade, e assim produz preconceito,
discriminação e violência (Schwarz, 2019).
Neste trabalho, busca-se pontuar que, apesar de escritos por homens, não se
denota um impeditivo para a realização do mesmo, uma vez que se reconhece essas
diferenças e ao apontá-las pretende-se, com isso, subverter a epistemologia
hegemônica que inferioriza as mulheres, silenciando-as ao longo dos anos. Dessa
maneira, homens e mulheres estão em constante troca de saberes, para a construção
do trabalho.

238
Ademais, objetiva-se neste trabalho interpretar de que maneira são
constituídas as práticas em torno da contracepção dos estudantes e do aborto das
jovens mulheres de uma escola pública em Belém do Pará. Assim, entender como a
escola molda as práticas contraceptivas dessas estudantes. Não obstante, avaliar
como essas jovens têm seus direitos reprodutivos violados.
Metodologia
Buscou-se para atender à proposta dessa pesquisa, o método a etnografia,
seguindo os moldes de uma pesquisa antropológica. Assim, o método da observação
participante foi fundamental em todos os momentos em que estivemos na escola em
contato com o grupo pesquisado. De acordo com Malinowski (1978) a observação
participante consiste em avaliar todos os fenômenos que circundam aquele ambiente,
no qual o pesquisador se insere, antes de realizar sua pesquisa. Decerto, a
familiarização ajuda a entender as ―peculiaridades‖ daqueles sujeitos. Neste caso, são
alunos e alunas que estudam no ensino médio, no período matutino.
Segundo Geertz (1989), a etnografia depende de uma descrição densa, ou seja,
necessário notar, ao máximo, os detalhes dos estudantes que pesquisamos. Dessa
forma, na sala trabalhada, percebe-se um maior número de negros e negras. Além
disso, o contato com métodos contraceptivos é distante, uma vez que, embora os
conheçam, não os debatem com familiares nem no espaço escolar. Mas, por meio de
―pesquisas realizadas por um amigo na internet‖ conforme relatou uma estudante
no questionário.
De Oliveira (2000) baseia-se em três etapas, isto é, olhar, ouvir e escrever,
quando se afasta do campo de pesquisa, a fim de não se influenciar tanto pelo objeto
de pesquisa. Desse modo, o processo de aproximação e familiarização com o universo
da pesquisa foi constituído a partir de visitas à escola Vilhena Alves, de modo a nos
familiarizarmos com os estudantes conhecendo e eles com nós, inicialmente por meio
de conversas informais no espaço escolar.
Ademais, foram realizadas oficinas, nas quais se introduziu, de maneira expositiva
e dialogada o assunto do projeto. Assim, seria possível mensurar o nível de conhecimento
dos alunos e alunas. Em seguida, foram entregues questionários qualitativos e
quantitativos, os quais serviram para identificar a opinião deles em relação ao aborto.
Nesses questionários, os participantes deveriam informar onde moram, idade, profissão e
religião, para que traçássemos um panorama mais completo deles.
O longo caminho do Aborto no Brasil
No entanto, de acordo com Boltansky (2012) as diferentes sociedades, da
antiguidade até a modernidade praticam o aborto, mas ao mesmo tempo em que é
praticado e reconhecido como prática social, há reprovação por aquelas que fazem ou

239
ajudam a fazê-lo. Embora condenado, não se expressa quase nunca posições sobre o
fato em si, apenas o condena, uma vez que o simples fato de se discutir sobre isso
cria um constrangimento em quem fala, a qual teme a reação do outro, normalmente,
crítica de quem ouve, pois não compreende (ou não quer) entender os motivos sociais
que levam as mulheres a tomarem essa decisão sobre os seus corpos negando,
inclusive, a desigualdade entre as praticantes.
O aborto era recorrente no período colonial, conforme relatado por Del Priore
(2009), mais do que, inclusive a prostituição no que tange ao controle exercido pela
igreja. Qualquer prática sexual que não tivesse como objetivo a gravidez era vista
como pecado.
Assim, o aborto era uma forma de controle da natalidade, pois o aborto
consistia em muitas dores às mulheres causando febre, mal-estar, fluxos. Apesar do
alto risco havia uma dupla preocupação, com a boca de mais uma criança para criar,
bem como o estigma de criar os filhos sem o auxílio do companheiro que desaprecia,
ao saber da notícia. Logo, os corpos outrora instrumento de prazer e de vida passava
ser ferramenta de morte e luta.
A despeito disso, Rodhen (2003) indica como a divulgação do aborto, por meio
dos jornais na década de 30 ajudava a normalizá-lo perante a opinião pública, porque
nos anúncios não havia nenhuma intenção em deixá-lo implícito. Ao contrário, o que
havia era uma divulgação em massa das qualidades das parteiras.
No Brasil, a prática do aborto é frequentemente condenada pela sociedade, assim
como o aborto e as mulheres na qual praticam são penalizadas pelos seus atos previstos
no Código Penal vigente, decretada em 1940. A partir desse contexto, houve um aumento
da produção científica em torno do aborto, subsidiando a necessidade do fortalecimento
das políticas públicas em saúde reprodutiva (DINIZ e MEDEIROS, 2010). A interpretação,
comum ao censo comum, nesses estudos mais recentes, como da ―gravidez indesejada‖
passa a ser questionada. Assim, conforme Menezes e Aquino (2009) esses estudos
articulam questões centrais da saúde reprodutiva, desde as relações de gênero e os
processos de decisão na esfera reprodutiva até a provisão de assistência e a garantia dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. No âmbito das políticas públicas, segundo
Biroli (2014) o aborto vem sendo motivo entre diversas correntes religiosas, as quais,
como justificativa, utilizam-se de uma preservação à vida.
Este grupo, por sua vez, consegue influenciar na produção de legislações, que
tornem o direito ao aborto ainda tão restritivo, pois ocupam cargos nos legislativos do país.
Na maioria, são homens e brancos, os quais alegam a preservação da saúde da mulher.
Por outro lado, a diversidade entre as mulheres não é levada em consideração.

240
medida que o aborto é negado, assume-se que todas as mulheres desejam
ser mães, com base na sua condição ―natural‖, isto é, frágil, dócil, preparada para ser
mãe o que as opõem as que não se identificam dessa maneira e são taxadas de
―loucas, agressivas ou violentas‖.
Nesse sentido, o aborto legal restringe-se em apenas três situações: salvar a
vida de uma mulher, no caso de estupro e para gravidez anencefálica. Observa-se que
o aborto seguro é realizado por mulheres de alta renda e para outras indicações, por
meio de clínicas privadas, no entanto as mulheres de baixa renda e adolescentes, as
quais dependem da assistência do sistema público de saúde, sujeitam-se a métodos
inseguros, em condições precárias e, acima de tudo, clandestinamente (MITCHELL et
al., 2014). Por conseguinte, existe um contexto no qual impõe as mulheres
oportunidades desiguais de evitar uma gravidez ou de escolher seu desfecho.
No estudo de Pilecco, Knauth e Vigo (2011) é evidenciado a relação entre
coerção sexual e a pratica do aborto em mulheres jovens como determinantes
socioculturais, principalmente, em adolescentes as quais são mais vulneráveis as
coerções, sexo não planejado e desprotegido do que em relação aos adultos. Embora
apenas 9% dos abortos provocados no Brasil são em adolescentes, 22% delas
necessitam de cuidados pós-aborto de emergência (MITCHELL, et al., 2014).
Além disso, é interessante perceber de que modo as percepções de masculinidade
e a feminilidade são construídas no espaço escolar, a partir das experiências cotidianas de
jovens estudantes (homens e mulheres). Decerto, evidencia-se como ―os papéis‖ de
homens e mulheres são influenciados pelas redes de amizade tecidas em torno desses
estudantes. O contato com métodos contraceptivos, conforme percebido ao longo da
pesquisa, é gerado a partir disso, moldando ou não, como lidam com os anticoncepcionais,
levando-os, na maioria das vezes, a não os utilizarem.
Assim, Connel (2017) demonstra o papel de algumas atividades esportivas,
tidas como restritas aos meninos, uma vez que, nesses esportes seria estimulado a
demonstrar sua virilidade, já que, por meio deles mostraria capacidade de enfrentar a
dor e superá-la. Característica que é levada ao longo de sua trajetória.
Segundo Moreno (1999), é na escola que se marca uma diferença entre homens e
mulheres, ainda que no discurso institucional haja uma neutralidade entre os conteúdos
didáticos, na prática, como sabemos, essa suposta neutralidade não existe, uma vez que,
a forma como se ministram determinados temas na sala de aula, é responsável por
reproduzir modelos que inferiorizam as mulheres, como restrita ao ambiente doméstico.
Um exemplo disso é quando se aborda povos da antiguidade (Grécia e Atenas) em que se
aponta os homens como referência. Em contrapartida, não se aponta as mulheres, o que
colabora, por meio do ensino de história se perpetuam

241
visões preconceituosas, as quais estimulam o machismo, ao estimular o silenciamento
das mulheres. Em suma, utiliza-se a ciência, a fim de justificar violências impostas às
mulheres, como o aborto, em que homens, quase sempre, legislam os corpos das
mulheres. Este fato possibilita que as demandas femininas, na escola, sejam cada vez
mais negligenciadas, o que reforça a necessidade de se ampliar a participação
feminina no cenário político.

Participação política feminina e o aborto


O direito ao voto feminino, no Brasil, só foi obtido a partir de 1932. Esta demora
gerou um déficit na cidadania das mulheres, já que, ao não ocuparem os espaços, seja
no legislativo ou no judiciário, não conseguem pautar uma agenda que, de fato, leve
em consideração suas demandas, como as creches que possibilitam às mulheres não
terem que optar entre trabalhar a fim de terem autonomia econômica ou cuidar dos
seus filhos. Isso se sustenta por conta do longo processo de subordinação ao qual as
mulheres foram submetidas. Mas, nos últimos anos, esse cenário vem se alterando.
Embora em 2010 tenha chegado à presidência da república uma mulher, o debate
político ainda continuou permeado por machismo e misoginia. Decerto, adjetivos como
―puta, vaca ou louca‖ são recorrentes para desqualificar mulheres políticas.
Assim, no segundo turno da eleição presidencial, o debate em torno do aborto
foi marcado por um conservadorismo, o qual impediu de se estabelecer uma
discussão em padrões mais humanitários, ainda que essa seja uma tese defendida por
quem impede às mulheres de acessarem esse direito. Uma consequência disso pode
ser percebida nas eleições legislativas seguintes.
Entre 2014 e 2018 houve um aumento de 52,6% da bancada feminina no
Congresso Nacional. Essa medida é desencadeada por intermédio da Lei nº 12.304,
aprovada em 2009, que estabeleceu uma cota de 30% nas candidaturas ao legislativo.
Porém, essas mulheres eleitas não são homogêneas, assim como nada é. Há uma clara
divergência entre direitos individuais e direitos sociais. Sobre o primeiro, essa legislatura
mais conservadora do que a anterior. Há um percentual entre congressistas que
concorda com a possibilidade de tornar o aborto em crime hediondo, a qual continua
em tramitação (PL 478/2007).
Em contrapartida, sobre projetos que possibilitem ampliação da licença
paternidade para um mês sofre rejeição, sobretudo, dos homens. Assim como a
ampliação da licença maternidade para 6 meses, desde que assegurada a
estabilidade da gestante, mantém um certo equilíbrio, entre favoráveis e contrários.
No entanto, há um longo caminho a ser percorrido até se alcançar a plenitude
da autonomia dos corpos femininos. Ademais, destaca-se que, em 2018, chegou à

242
presidência um representante dos defensores da ―ideologia de gênero‖ o que acarreta
em um silenciamento em torno de temas que perpassem pela temática do gênero,
quando o ministério das mulheres é ocupado por alguém que acredita na
determinação biológica dos papéis sociais, exemplificado pela vestimenta de cada um.
Desse modo, o direito à vida, assegurado pela Constituição Federal em seu 5ª
artigo, é utilizado por grupos conservadores, para criticarem os grupos favorável ao
aborto, alegando que as mulheres, ao optarem por isso estão matando uma pessoa, a
qual não teria o direito a escolha.
No entanto, essa visão é simplista demais, pois relega à vida um papel
somente biológico, desconsiderando em que condições essas mulheres terão
condições financeiras e familiar para cuidar dessa criança. Destarte, Pantoja (2007)
considera fundamental a formação de uma rede de solidariedade, a qual comportaria o
companheiro, mas, sobretudo família e amigos (as) dessa jovem mulher. Essa rede
possibilita que a decisão pela continuidade da gravidez seja tomada, sem temor.
Em contrapartida, quando não há presença de um companheiro, esse processo
fica mais difícil, pois, às vezes, o avô da moça tem uma rejeição ao namorado da sua
filha, o que acaba refletindo na criança. Além disso, nesse caso, a família pode rejeitar
a participação nessa rede que é tecida. Então, a escolha pelo aborto torna-se
aceitável, pois o impacto psicossocial da gravidez deixa a mulher vulnerável, sem
colaboração. Para tanto, opta pelo aborto por acreditar na sua permanência na família,
o que não é assegurado com o prosseguimento da gestação.

Resultados
princípio, foram realizadas visitas ao Ver-o-Peso para buscar informações
com as erveiras sobre como é a procura acerca de remédios que tem como objetivo
evitar a gravidez ou provocar a sua interrupção. Assim sendo, notou-se um temor
delas ao falar sobre o assunto. Alegavam que era crime e que, por isso, não deveriam
tocar nesse assunto.
Por outro lado, mostraram um certo conhecimento sobre o assunto, ou seja,
apesar de uma concordância em aprofundar conhecimento em torno do assunto.
Havia uma discordância sobre a presença ou não de remédios com essa finalidade.
Outra opção era o silêncio. Às vezes, os remédios eram vendidos, embora com
características abortivas, estas não eram enunciadas às clientes.
Porém, as que se mostraram abertas a discutir com a gente esse assunto
evidenciaram que esses produtos são bastante procurados. As garrafadas são vendidas
em garrafas de 1 ou 2 litros. No entanto, as ervas abortivas, como a cabacinha,
barbatimão, verônica são vendidas em pacotes, que podem chegar até R$12. No

243
entanto, esses remédios não são indicados a quem está com a barriga à mostra, de
acordo com os relatos.
Esse fato, por sua vez, denota como as estratégias para a realização do aborto
são tecidas, uma vez que, neste caso, a participação e colaboração do companheiro,
da família e das amigas é imprescindível, pois são estes os agentes para que a mulher
grávida consiga acessar as formas abortivas, tidas como ―naturais‖.
Foram realizadas oficinas estruturadas ao longo dos anos de 2018, cujos temas
giravam em torno de gravidez, adoção, família como forma de introduzir o assunto de
nosso interesse, isto é, aborto sem assustar os estudantes com um tema tão delicado.
Desse modo, ao desenvolver a pesquisa na escola pública Vilhena Alves, com
o decorrer da observação ao longo dos meses. Mas, ficou a critério da direção a
seleção das turmas para realizarmos as oficinas. Cabe frisar que, no começo do
trabalho, houve uma resistência por parte da direção, a qual se negava a dialogar
conosco. A despeito disso, ao longo do ano de 2018, a escola passou quase 4 meses
sem funcionar, em decorrência de uma greve iniciada em abril com fim em agosto.
Além disso, não se mostravam abertos a conversarem a respeito da ausência
de debates abordando gênero, sexualidade e afins. Essa postura se justifica, a nosso
ver, pela persistência da resistência a esses assuntos, os quais não são vistos como
prioritários. Outrossim, é possível perceber uma continuidade dos corpos femininos,
uma vez que são elas as maiores vítimas dessa postura repressora.
As oficinas consistiram em uma breve apresentação de 30 minutos sobre o
panorama da gravidez da adolescência no país, apresentando a turma dados sobre
abandono parental, adoção de crianças Brasil, bem como discutindo de que maneira
as jovens mulheres enfrentam dificuldades ao levarem adiante sua gravidez.
Em seguida, apresentou-se um documentário intitulado clandestinas, de 2014,
o qual versa sobre o panorama do aborto das mulheres no Brasil, em que relatam as
dificuldades enfrentadas por quem escolhe isso, pois correm risco de vida, já que não
contam com clínicas de saúde adequadas para tal. Além disso, apontam como são
recriminadas por abortarem.
Assim, não houve uma obrigatoriedade aos discentes em permanecerem em
sala. Dessa maneira, apenas 11 estudantes, com idades entre 15 e 18 anos
participaram das 2 oficinas, realizadas em setembro daquele ano. Apresentam um
perfil, majoritariamente composto por negros e negras. São moradores (as) de bairros
periféricos de Belém, como Pratinha, Coqueiro, Cabanagem, Cremação, Terra Firme e
Canudos.
Foram entregues questionários, um de maneira quantitativa, com perguntas sobre
religiosidade, bairro, idade, se há discussão sobre gênero na escola. Em seguida,

244
um de base qualidade, na qual deveriam escrever suas opiniões, em torno da
liberdade dos corpos, que as mulheres teriam. Se são favoráveis ao aborto ou não e o
motivo disso.
Além disso, havia um questionamento sobre métodos contraceptivos, como os
conheceram e se usam ou não. Nesse caso, houve apesar de conhecerem uma
decisão pela não utilização dos mesmos. Desse modo, ilustra-se como a visão, tão
comum ao senso de que os jovens ―erram‖ quando ocorrem uma gravidez não
encontra amparo na realidade, uma vez que é uma escolha consciente do casal.
Houve um predomínio das religiões católica e evangélicas. Isso, contudo, não
significou um alinhamento automático com os dogmas dessas religiões. Entretanto,
existiu uma avaliação de que o aborto deve ser entendido como um direito. Embora
não seja uma opção para elas. 4 mulheres se mostraram favoráveis, enquanto 5 se
opuseram. Entre as que opunham, houve uma percepção de era um crime ou que
havia outras opções, tais como, a doação a quem teriam condições financeiras
melhores para cuidarem das crianças.

Conclusão

A pesquisa ainda não está encerrada, mas alguns elementos podem ser
extraídos do que já foi avaliado. A principal dificuldade se encontra no receio que se
tem quando se aborda um assunto como o aborto, embora seja uma prática recorrente
ao longo da história. Ela não é falada com frequência e isso exigiu um certo cuidado
ao trabalhá-la. A princípio, para não assustar a direção da escola, o que poderia
implicar em um obstáculo ao desenvolvimento do trabalho. Em seguida, com os
estudantes, pois eles apresentam uma faixa etária menor que a nossa, o que pode
acarretar uma dificuldade em se abrir conosco, em decorrência do estranhamento
desencadeado por isso.
Além disso, o público escolar possui uma faixa etária diversificada o qual viu a
necessidade em realizar uma abordagem geral sobre contracepção e o aborto, visto
que na posição de pesquisador é necessária uma aproximação, para obter um diálogo
de confiabilidade, discrição e respeito às opiniões.
Percebe-se pelos relatos dos alunos que predomina uma visão, na qual o apoio
dos parceiros é visto como essencial, haja vista que cabe a ele prover a ―sustentabilidade
no futuro, pois sem ajuda do homem é muito difícil criar um filho‖, essa visão ilustra como,
desde a infância homens e mulheres são condicionados a exercerem funções na sua vida
adulta. São tão legitimados, que passam a ser normalizados, entretanto, carregam consigo
uma carga de violência simbólica, pois, ao recair sobre a mulher, quase que de maneira
exclusiva a responsabilidade pela criação, ela acaba

245
tendo dificuldades para se inserir no mercado de trabalho. À medida que se insere,
recebe menos, para as mesmas funções.
A despeito disso, tanto homens, quanto mulheres alegam ausência de
planejamento como causa para a gravidez. Embora, segundo eles, existam métodos e
remédios que a evitem, mas não o usam e, por isso, quando vem uma criança, não
optam pelo aborto, pois alguns alegam justificativas religiosas, outros, por outro lado,
preferem apontar para essa falta de cuidado como desencadeadora da gravidez.
Portanto, o uso da religiosidade assume relevância alegando tratar-se de
pecado. Entretanto, o que nos chamou atenção foi o fato de homens sentirem um
certo desconforto ao serem provocados a refletirem sobre o aborto. Mostraram,
inclusive, um estranhamento, como se esse debate não os atingissem também na
construção de suas paternidades, por exemplo.
Não entraram em detalhes acerca de como têm conhecimento sobre remédios
abortivos. Mas, em contrapartida, a maioria alegou uma ausência de debates no ceio
familiar em torno de métodos contraceptivos, o que nos sugere, por sua vez, que esse
conhecimento foi construído, sobretudo, no espaço escolar, conquanto não haja
discussões em torno dessa temática, ou seja, evidencia-se que esse saber é obtido
por meio de conversas com amigos e amigas.
Logo, percebe-se como a construção da cidadania do grupo é incompleta, uma
vez que o acesso à educação, embora assegurado na Constituição Federal de 1988,
não é respeitado como deveria, pois, lhe são negados a existência de debates em
torno de temáticas essenciais. Este é o caso do aborto no Brasil. Apesar da recorrente
execução desse fato, sua existência é negada. Alguns elementos ajudam a entender
esse quadro.
A invisibilidade das violências que vitimam a população negra nesse país.
Conforme Biroli (2018), Diniz e Medeiros (2010) as mulheres negras são as que mais
sofrem nas clínicas clandestinas com a criminalização do aborto. No entanto, as
mulheres de classes mais altas têm a possibilidade pagam para realizar o aborto de
maneira mais segura. Além disso, conforme apontado anteriormente, no legislativo
nacional há um predomínio de homens, os quais não tem interesse ou, quando
possuem, optam por uma discussão superficial em torno do assunto, alegando uma
defesa à vida que não protege cidadãs.

246
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248
COLONIALIDADE DO SABER, PODER E SER: UM ENSAIO SOBRE A IDOSA
MARAJOARA, A CIDADANIA, OS SILENCIAMENTOS E SUAS MEMÓRIAS

https://doi.org/10.29327/527231.5-17

Rodolfo Cunha BARBOSA - UFPA/CUMB Ana Maria Smith


SANTOS UFPA/CUMB Pâmela Beatriz Ferreira
PELEGRINI UFPA/CUMB
RESUMO

A Modernidade/Colonialidade, fenômeno no qual sobrevivem aspectos subjetivos do extinto


Colonialismo no ―Sul‖ mundial, silencia e subalterniza grupos alheios à sua dinâmica. O texto
objetiva abordar a Colonialidade e seus rebatimentos no reconhecimento e garantia da
cidadania de mulheres idosas marajoaras do município de Breves (Marajó, Pará), com base
em narrativas, saberes e memórias na relação com políticas públicas. Informações extraídas
da tese de doutorado de uma das autoras e de relatos colhidos em entrevistas
semiestruturadas durante a realização de projetos de extensão destinados a idosas
participantes da política de assistência social municipal. Evidenciou-se, com a pesquisa, a
(re)construção de trajetórias de (re)existências, ―bordas e agências‖ (SMITH-SANTOS,
2019) convergindo a debates decoloniais sobre o lugar social de indivíduos periféricos
subjugados pela Modernidade.

Palavras-chave: Decolonialidade; Saberes e memórias; Amazônia Marajoara; Cidadania e


Políticas Públicas; Assistência Social.

ABSTRACT

Coloniality is a phenomenon in which subjective aspects of extinct colonialism in the world


―South‖ survive, silences and subordinates groups unrelated to its dynamics. The text aims to
approach Coloniality and its consequences in the recognition and guarantee of citizenship of
Marajoaras elderly women of Breves (Marajó, Pará), based on narratives, knowledge and
memories in relation to public policies. Information extracted from the doctoral dissertation of
one of the authors and reports collected in semi-structured interviews during the actions of
extension projects aimed at elderly participants of the municipal social assistance policy. The
research evidenced the reconstruction of trajectories of (re) existences, ―borders and
agencies‖ (SMITH-SANTOS, 2019) converging to decolonial debates about the social place
of peripheral individuals subjugated by Modernity.

Keywords: Decoloniality; Knowledge and memories; Amazon Marajoara; Citizenship and


Public Policy; Social assistance.

249
1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo desenvolver um ensaio sobre a memórias de


mulheres idosas marajoaras, articulando uma discussão teórica que abrange os eixos de
modernidade/colonialidade, decolonialidade de gênero, cidadania, participação social e
políticas públicas. Buscamos apreender, interpretar e discutir registros de memórias à luz de
diferentes questões que se encontram incidindo na sociedade moderna sobre o viver de
mulheres idosas, marajoaras, formulando também discussões com eixos característicos do
pensamento decolonial, tais como a ideia de raça, representações sociais de silenciamento
e subalternidade que foram construídas na colonização da latino américa e ainda hoje se
apresentam, tendo sobrevivido ao fim dos tempos do colonialismo, e manifestando-se ainda
cotidianamente de forma subjetivas em diversas dimensões da vida humana.
Nesse sentido, autores cruciais como Walter Mignolo e Anibal Quijano
desenvolveram nos últimos anos, por meio do grupo de estudos denominado
Modernidade/Colonialidade, um debate de caráter sócio-histórico e interdisciplinar no
sentido de desmistificar um conjunto de relações que foram construídas junto aos processos
de colonização do continente denominado como América. Suas reflexões evidenciam que a
sociedade é marcada por relações de exploração e de poder fincadas no racismo, na
subalternização de colonizados, além do silenciamento de culturas, de memórias, das
práticas e saberes de minorias, tendo tais traços permanecido alcançando e fundando a
essência do pensamento moderno e eurocêntrico.
A construção da modernidade, para tal pensamento, se deu através de um preço,
que não foi pago por aqueles que colonizaram, mas sim pelos sujeitos que por eles foram
alcunhados como os ―outros‖, sujeitos de descendência indígena e negra, no versar dos
autores base, mas também considerando as relações de gênero, no que tange as
considerações de pensadoras feministas decoloniais que também desenvolvem temáticas
relacionadas ao citado grupo de estudos, tais como Rita Segato e especialmente Maria
Lugones. Tais autoras, ao reconstituir algumas considerações formuladas nos inícios dos
estudos decolonias, evidenciaram algumas lacunas no que se refere ao lugar dado ao
gênero em interrelação com concepções raciais.
Em consonância com essa discussão, buscamos também traçar um debate com
base em autores que discutem questões referentes à sabedoria, conhecimento, participação
social e representatividade em espaços de decisão, dentro da sociedade contemporânea,
que tem na base de sua construção este caráter de colonialidade, seja no poder, no saber
ou no ser, entre diferentes sociais.
Consideramos que ao recorrermos a estas considerações torna possível estabelecer
ligações com a visão da sociedade e do Estado sobre a mulher idosa, sobretudo em relação

250
ao contexto marajoara, lócus do estudo e da atividade de extensão desenvolvidos pelos
autores deste texto. Partimos da compreensão de que há indícios de subalternidade e
silenciamento na vida das mulheres idosas do marajó, mais especificamente da cidade de
Breves.
Foi por meio das narrativas de suas memórias, que se evidenciou como se deu a
relação das interlocutoras com as políticas públicas de seu município. Suas considerações
denunciaram as suas exclusões em diferentes espaços da sociedade, pelo fato de estarem
na condição de mulheres, atoras sociais pertencentes a grupos historicamente posicionados
1
nas bordas , por serem idosas, negras, portadoras de ancestralidade ribeirinha e
afroindígena. Seus relatos, contribuem para perpetuar um cabedal infinito de agências e
memórias ligadas a processos de migração, (re)existências, enfrentamentos, manifestações
culturais e reprodução da existência.
Deste modo, aliando a pesquisa bibliográfica relacionada aos eixos como a
colonialidade do poder, do ser, do saber e de gênero, nos ocupamos na tentativa de traçar
elos com o campo de estudos do envelhecimento, para que, através de leitura de seus
relatos, pudéssemos trazer o debate sobre subalternização, cidadania e a perpetuação de
modos ―outros‖ de viver, que se posicionam na contramão da lógica metonímica moderno-
ocidental e eurocêntrica, pois este pensar e existir nas bordas é o que revela a força contida
em mulheres que lutam, rememoram, reconstroem cenas do passado e marcam seu espaço
na sociedade de hoje.
Os relatos a serem aqui discutidos foram extraídos da tese de doutoramento de um
dos autores e de conversas e observações captadas no decorrer de ações de projetos de
pesquisa e extensão da Faculdade de Serviço Social do Campus Universitário do Marajó -
Breves, uma das unidades representantes da abrangência da Universidade Federal do Pará.
Este trabalho se subdividirá em cinco seções de discussão, a contar com a presente
introdução, um capítulo articulador dos eixos de decolonialidade e relações de gênero, uma
seção seguinte tocante à discussões entre geração, saberes, modos de vida e cidadania,
bem como uma seção que evidencia os relatos colhidos junto às idosas interlocutoras da
pesquisa, seguido pelas considerações finais.

Decolonialidade e Gênero: um debate sobre a construção da Modernidade no


Sul Global.

Termo debatido na tese de doutorado de Smith-Santos (2019, p. 32) no qual explicita: ―Estou considerando, a
partir deste estudo, que as bordas são dadas por inúmeras práticas, ações, silenciamentos, imposições sociais,
condições materiais e falta de acesso à determinadas políticas públicas. (...) Os silenciamentos destinados às
muitas mulheres, bem como as relações de subalternidades, foram percebidos, implícita e explicitamente, em
meio a tantos desrespeitos e ceticismo referentes aos direitos das mulheres no Brasil‖.

251
O pensador decolonial Walter Mignolo (2017) caracteriza a colonialidade como ―o
lado mais escuro da modernidade‖, tratando do processo de construção da América sob as
diretrizes da colonização europeia, e neste processo introjetou-se aos povos originários a
marca de ser o ―outro‖, ou seja, serem o grupo não reconhecido em suas práticas, saberes e
relações sociais enquanto parte de um cânone que o próprio colonizador inventou, com base
na ideia da raça.
A colonialidade, então, pode ser entendida, com base nos autores do grupo latino
americano de estudos Modernidade/Colonialidade, como um conjunto de processos de
caráter subjetivo que continuam a se manifestar em nossas relações contemporâneas,
sendo uma herança que contraria a ideia de que estariam absolutamente extintas as marcas
de um regime colonial. Sabe-se que oficialmente o período histórico conhecido como
colonialismo, característico dos projetos de colonização de metrópoles do autointitulado
―velho mundo‖ sobre as colônias do também por elas denominado de ―Sul Global‖,
considera-se como ultrapassado. No entanto, relações de caráter colonial se manifestam,
segundo os pensadores fundantes do grupo Modernidade/Colonialidade, em diversas
dimensões da vida humana, sendo elas o poder, o saber e o ser, a nível primordial.

O pensamento da Modernidade supõe a superação de padrões de poder


fundados pela dominação colonial, em diversos âmbitos da vida social. A
Colonialidade é a representação de que esses padrões não foram
superados, e continuam sendo perpetuados pelo apagamento que a
universalização de práticas e conceitos que a modernidade traz. Os
pensadores da Colonialidade buscam identificar, informar e criticar esses
padrões de dominação que continuam presentes nas relações sociais,
políticas, ecológicas, internas e internacionais, fundadas pelo sistema-
mundo moderno. A modernidade está ligada à colonialidade, e não pode
existir sem que esta exista (DIAS, 2014, p. 3-4).

Encontra-se, entretanto, também imbricada nestas relações de subalternização


historicamente construídas entre as figuras de colonizador e colonizado, o que posteriormente
pensadoras feministas decoloniais, a partir do pensamento de Maria Lugones, denominam como
colonialidade de gênero, reparando algumas lacunas apontadas no pensamento inicial de
Quijano quanto às manifestações da colonialidade. Mignolo cita questões referentes à
dominação na esfera das relações de gênero, como se pode notar em seus escritos sobre a
obscuridade trazida pelos processos de construção da modernidade na América, ao anotar

Uma hierarquia de gênero/sexo global que privilegiava homens em


detrimento de mulheres e o patriarcado europeu em detrimento de outras
formas de configuração de gênero e de relações sexuais [...]. Um sistema
que impôs o conceito de ―mulher‖ para reorganizar as relações de
gênero/sexo nas colônias europeias, efetivamente introduzindo
regulamentos para relações ―normais‖ entre os sexos, e as distinções
hierárquicas entre o ―homem‖ e a ―mulher‖ [...] (MIGNOLO, 2017, p. 11).

252
A crítica traçada por Maria Lugones explicita de forma mais acentuada que as
dimensões de gênero citadas pelo primórdio do pensamento decolonial de certa forma
deixaram às escuras, quanto ao gênero feminino, a ideia de raça que foi debatida como fator
essencial na compreensão dos processos de colonialidade. Porém, como situa Lugones,
não se trata de eleger alguma primazia para as questões de gênero ou raça na abordagem
do pensamento decolonial, mas sim de trazer à tona a existência de um entrecruzamento
entre tais questões quando se analisa o processo de construção da
modernidade/colonialidade, ideias que não podem ser dissociadas e consideradas de forma
isolada uma em relação à outra.
Lugones versa que inicialmente as teorias decoloniais não davam evidência a como
estava implicado o gênero nestas relações de poder, buscando tornar nítido o lugar do gênero na
discussão traçada pelo grupo. Conforme Dias (2014), Maria Lugones ―acrescentou o conceito de
colonialidade de gênero às formas de colonialidade, do ser, do poder e do saber [...] e também a
intersecção das categorias raça, gênero e colonialidade‖ (p. 02).
Dessa forma, aos preceitos básicos relacionados à manifestação do legado social
colonial, o poder, o saber e o ser, foi adicionada, a partir de Lugones, a dimensão da
colonialidade de gênero, Evidencia-se, por seu pensamento, como foram utilizadas as
concepções de gênero dentro deste processos de silenciamentos das sujeitas compreendidas
pelo europeu como sendo o ―outro‖. Foram varridas identidades diversas, fazendo com que
subjetivamente o colonizado carregasse para si a ideia de que viver conforme os padrões da
modernidade seria a única alternativa válida e possível. Ainda nas palavras de Dias (2014),

importante também para fazer-se uma reflexão sobre as sociedades


atuais, para compreender o quanto de colonial ainda existe nessas
sociedades, o quanto esses conceitos são naturalizados e até que ponto as
crenças e sistemas atuais são realmente válidos e livremente construídos
(DIAS, 2014, p. 12).

Visa-se, dessa forma, compreender como estes processos são reproduzidos na


contemporaneidade de nossas relações, enxergando como a colonialidade manteve também
como um de seus legados o patriarcalismo nas relações de gênero, o qual, para Lugones
(2012 apud DIAS, 2014, p. 12) só se faz possível de ser desconstruído quando decoloniza-
se o ser e o saber, com base nas postulados do feminismo decolonial. Dessa forma,
entende-se que a desconstrução da colonialidade do gênero tem estrita ligação com
processos de (re)existência praticados por mulheres na sociedade atual.
De acordo com Gomes, (2018) falar sobre a categoria gênero em uma análise decolonial
significa visualizar que a ideário social sobre o gênero ―foi construído no performativo da
colonialidade, tendo a raça e o racismo como informadores dessa construção‖

253
(p. 77), ao que consideramos pertinente somar o ato de tratar sobre processos de
(re)existência à esta colonialidade através das práticas cotidianas do viver.

3. Geração, sabedoria e cidadania: considerações sobre a mulher idosa

A construção da modernidade/colonialidade, na medida em que deixa marcas ainda


hoje latentes na sociedade quanto as relações sociais anteriormente citadas referentes a
origens, identidades e gênero, relegou também, em um nível mais geral, a subalternização
da sabedoria dos sujeitos da terceira idade. É aqui que se localiza nossa tentativa de traçar
o elo entre os eixos de decolonialidade e geração, visto que a colonialidade é intrínseca à
modernidade, processo que gerou consequências que se projetam nas questões de raça,
gênero e classe pela marcha da colonização, e da mesma forma, com a construção e um
cânone moderno ocidental e científico de razão, tomando-a como único padrão possível nas
linhas abissais de poder, promoveu uma separação de elos que ligavam o saber dos idosos
ao que era considerado como conhecimento.
Nas palavras de De Paula (2016), ―a partir da modernidade, os laços que uniam
conhecimento, sabedoria e velhice foram se perdendo com o tempo, à medida que o capitalismo
avançava‖ (p 262). Neste sentido, entendemos que o processo de construção da modernidade,
que significa também a consolidação do capitalismo, irradia suas consequências sobre a questão
da geração, visto que a valorização da ciência eurocêntrica como padrão promoveu uma
invisibilização do que outrora era, em várias sociedades, concebido como conhecimento válido: a
sabedoria dos mais velhos como experiência de vida.
Simultaneamente à opressão e gênero, a qual Laura Segato (2012) aponta ter se
intensificado com a modernidade, ao anotar que ―a crueldade e o desamparo das mulheres
aumentam à medida que a modernidade e o mercado se expandem e anexam novas regiões‖ (p.
108), vemos se caracterizar neste período histórico uma opressão e a impossibilidade de figurar
como aceito pela estrutura social hierárquica o saber da pessoa idosa.
Adentrando um pouco mais na discussão traçada por De Paula (2016), observa-se que
na contemporaneidade já não há uma expressiva associação dos idosos com a concepção e
sabedoria, além de que, embora os avanços na ciência e prevenção à saúde tenham permitido
que a expectativa de vida subisse e continue em ritmo crescente, configura-se uma problemática
ao termos um quadro social onde a pessoa idosa vive por mais tempo, entretanto isso não
significa que viva de uma forma melhor, acontecendo, na verdade, o contrário em muitos casos.
―Atualmente, os idosos já não são associados à sabedoria e alguns indicadores sociais sugerem
que, embora vivam mais tempo, a população idosa vive pior‖ (DE PAULA, 2016, p. 262). Tal
quadro diverge, inclusive, da tendência histórica de que a sabedoria sempre

254
esteve ligada à ―busca da melhor maneira possível de viver‖ seja consigo mesmo ou com os
outros.

A modernidade vem trazer a quase impossibilidade de qualquer sabedoria,


mesmo na idade avançada. Na modernidade ocorre algo inquietante no
campo do saber. A entrada em cena do conhecimento científico vai
determinar uma separação que antes não havia: a separação entre
conhecimento e erudição, de um lado, e sabedoria, de outro, sendo que
esta ocupará agora um lugar muito menor no universo cultural (DE PAULA,
2016, p. 269).

Faz-se necessário reafirmar que todo este processo não teve apenas bases
epistêmicas e filosóficas no campo do saber, mas também forte base no campo econômico,
uma vez que o advento do capitalismo moderno passou a dar prestígio ao conhecimento
apenas ―na medida em que pode contribuir para o „progresso‟, para o desenvolvimento do
capital.‖ (DE PAULA, 2016, P. 271).
As consequências deste processo foram a configuração de um quadro cada vez
maior de exclusão social, que afetou simultaneamente vários segmentos sociais, dentre os
quais destacamos a mulher idosa. Conforme discute Bilac (2014), nossa sociedade ainda se
faz carregada de concepções errôneas sobre o envelhecimento, tendo trocado sua
associação com a sabedoria pela representação de invalidez, de doença, de solidão e de
improdutividade, cujo senso comum aplicado sobre eles é da imagem de ―peso social‖.
Complementando essas considerações, Silveira e Nader (2014) visualizam que esta
representação sobre a velhice tem fortes raízes na constituição da globalização capitalista,
―marcado pela instantaneidade e descartabilidade‖ (p. 03).
Scott (2010) pontua que ―Gênero e Geração [...] implicam em hierarquias e
reciprocidades horizontais que são constituídas como relações de poder entre pessoas de
sexos e idades diferentes‖ (p. 16). Nesse sentido, a discussão de políticas públicas e
cidadania, evidencia um campo onde se relativiza a presença da equidade. Seus avanços e
recuos estão embasados ao atendimento de interesses sociais diversos. Dependendo do
grupo social em que localiza um ser, isto pode até mesmo se caracterizar com um fator de
estímulo à negação de sua condição de ser, devido às implicações trazidas pelo cotidiano.
Como exemplo disso, os autores supracitados pontuam também o fato de idosos não
quererem ser enxergados como tais, devido a perceberem a visão que a sociedade tem
sobre sua figura.
Nesse sentido, podemos compreender que além da já existente visão diferenciada
direcionada á geração idosa, dentro desse recorte ainda se visualizam diferentes papéis
sociais entre homens e mulheres relacionados ao acesso a recursos, acesso a emprego,

255
educação, moradia e renda, além a autonomia decisória. Considerando este panorama
desigual, Nunes-Rocha (2010) afirma que

as mulheres brasileiras [...] se ao mesmo tempo demandam políticas


públicas universais, relativas ao acesso à saúde, educação, justiça,
trabalho, entre outras esferas; há também que se considerarem as
especificidades de cada segmento feminino, como por exemplo, para as
mulheres negras (...), idosas. Políticas universais e políticas específicas ou
setoriais não são contraditórias como muitos assim as definem; ao contrário,
interagem e se complementam. (NUNES-ROCHA, 2010, p. 149)

Podemos visualizar um cenário relativo quanto ao pleno exercício da cidadania e


acesso a direitos através das políticas públicas, visto que estas, ao longo de seu
desenvolvimento no Brasil, caracterizam-se, no versar de Mattei (2012) por permanecem
concentradas aos interesses de uma parcela da população. Ferreira, Leeson e Melhado,
(2019) suscitam que devido ao crescimento populacional e o aumento da longevidade, a
questão da velhice fez com que surgissem ―desafios e dilemas às políticas públicas‖ (p. 02).
Considerando que as mulheres idosas são um grupo social que demanda políticas públicas
específicas, nos cabe questionar qual é o lugar dado a este grupo no que tange ao
direcionamento de políticas pelo Estado.
Conforme Motta (2011), a sociedade delega às mulheres mais jovens o exercício dos
papéis mais dinâmicos e socialmente esperados, afirmando ainda que as políticas sociais
mais básicas (relativas a educação, trabalho, saúde, proteção à violência) são pensadas
primordialmente para a mulher jovem, visualizando relações de gênero em um caráter
limitado, tendo como base apenas a dimensão patriarcal. (p. 14).
Diante disso, a autora busca evidenciar que ―as velhas também existem‖, e sua
existência contemporânea contraria muitos dos estereótipos socialmente criados sobre elas
e sobre as gerações anteriores. Reforça ainda o caráter heterogêneo, multifacetado e plural
do termo ―mulher idosa‖, pondo em foco as diferenças entre idosas ―pobres, ricas e
remediadas; brancas pretas e pardas; mais velhas, menos velhas, conservadas; bem
femininas, ou, até, parecendo homens‖ (p. 02). Faz um destaque para os conceitos de
gênero e geração como elementos fundantes de sociabilidades as quais estão imbricadas
relações de poder, dominação e subordinação. A condição tradicionalmente dada à mulher,
ainda segundo a mesma autora, tem como características:

Domesticidade e repressão social e sexual, desestímulo ou dificuldade de


acesso e permanência no mercado de trabalho, desigualdade de formação
e de condições de trabalho em relação Às dos homens, negação aparente
de interesse e capacidade para a política e uma apropriação social do seu
corpo expressa no controle familiar e na medicalização das funções
reprodutivas. Em resumo, a expectativa obrigatória de uma feminilidade que
significava obediência e conformismo (MOTTA, 2011, p. 02).

256
Compreende-se assim, ser este o padrão orientador da vida das mulheres que hoje
são idosas, sobretudo nas relações sociais construídas pela modernidade no chamado ―Sul
Global‖. Em face a um cenário que herda tantas desigualdades outros autores contribuem
com o debate de como se configuraram as políticas públicas referentes a intersecções de
gênero e geração, sem deixar de levar em conta o recorte étnico-racial, que também se
localiza num expressivo quadro de desigualdades em nosso tempo. Essas considerações
também evidenciam que se trata de um cenário de lutas, avanços e recuos, pois coexistem
olhares que se voltam à emancipação em simultaneidade com as marcas desiguais que a
modernidade instalou sobre direitos, cidadania e participação social.
Avançando neste sentido, tomamos como base algumas proposições de Bilac
(2014), ao anotar que para que houvesse uma preocupação maior com o processo de
envelhecimento dentro das políticas do Estado brasileiro, foram necessárias pressões da
sociedade civil, visto que, por muito tempo tais questões estiveram alijadas de um caráter
social mais amplo, relegadas aos âmbitos específicos da saúde e da previdência social.
Desse modo, destaca a autora, de modo geral, que ―apesar das políticas sociais de atenção
às pessoas idosas brasileiras assegurarem as necessidades básicas e a proteção dos
direitos humanos, elas não foram eficientemente aplicadas‖ (BILAC, 2014, p. 67).
Frente a isso, as lacunas que marcam o desenvolver de políticas públicas no Brasil
para este grupo social, deixam sobreviver traços de vulnerabilidade social e processos de
discriminação historicamente herdados. A mulher idosa sofre diversas discriminações
simultaneamente, seja por sua idade, por seu gênero, por sua classe social ou por sua raça.
Assim, junto a questões de vulnerabilidade, observamos, com base em Renk, Badalotti e
Winckler (2010, p. 378) as formas de violência que recaem sobre mulheres idosas são
percebidas em diversos contextos, como o ―cerceamento e vigilância estrita em relação às
viúvas, com restrição e pressão familiar visando impedimento de estabelecer novo
casamento‖ e questões de ordem de alienação de benefício econômico. ―O direito à
aposentadoria [...] tornou-se o mecanismo de exploração de muitas mulheres‖ (RENK,
BADALOTTI E WINCKLER, 2010, P. 378).
Ainda nos direcionando a processos discriminatórios quanto aos modos de vida e
práticas sociais de mulheres idosas, cabem as colocações de Pereira e Lozano (2012, p.
afirmando que contexto amazônico, em diversos momentos, ―o trabalho da mulher não
é reconhecido, apesar de fundamental dentro da organização familiar‖, pois algumas são
vistas de maneira como se estivessem ―apenas „ajudando‟ seus maridos ou seus pais‖,
demonstrando uma visão machista que se nega a visualizar os papéis desempenhados pela
figura feminina e idosa em diversos espaços, tais quais os afazeres domésticos.
Voltando a reflexão sobre a problematização das políticas públicas direcionadas à mulher
idosa, evidencia-se que este campo, assim como o dos direitos para as mulheres, são

257
também arenas de lutas por espaços de poder (OLIVEIRA, 2012). As estratégias de
participação feminina tornam-se combates árduos ―contra a hegemonia do poder masculino
que impera na sociedade brasileira, ainda patriarcal, neoliberal e racista‖ (p. 123).
Recorrendo a Avelar (1996), Oliveira reforça que sendo a estrutura opressora de gênero
fundada no Estado, é relativizado o lugar das políticas para mulheres, visto também
derivarem da mesma estrutura.
Caracterizando o estado do Pará, a autora aponta a existência de um expressivo
número de mulheres chefes de família, o que demanda geração de políticas voltadas ao
trabalho e renda. As chefes de família geralmente lidam com a falta de acesso a crédito,
titulações de moradia e terra, dificuldades no acesso à água, além da divisão sexual do
trabalho, que é ainda um entrave para o exercício da cidadania das mulheres amazônicas.
Nesse sentido, ―a mulher é sujeito importante e estratégico na implementação de políticas
públicas‖ (OLIVEIRA, 2012, p. 125) visando também uma assistência social que viabilize sua
autonomia frente à vulnerabilidade social. Questionando sobre o futuro das mulheres ao
precisarem da previdência social e da aposentadoria, Oliveira aponta esses fatores como
―relevantes para a implementação de políticas públicas‖ (p. 136).
Ao visualizar este cenário dinâmico que abriga uma série de lutas por direitos e
cidadania, frente ao quadro ainda desigual que marca as vidas de mulheres idosas, podendo
pensá-los na realidade Amazônica, é possível traçar conexões com a importância de evidenciar
as narrativas das sujeitas que vivenciam historicamente o desenrolar das subalternizações até
aqui retratadas. Somado a isso, ao trazer seus relatos, trajetórias de vida e memórias
relacionadas à cidadania, à participação e à presença nos diversos espaços sociais,
desenvolvendo diferentes práticas, relacionadas ao trabalho, educação, acesso a recursos,
lazer, dentre outros eixos, significa também evidenciar os outros modos de vida, que muitas
vezes podemos caracterizar como processos de (re)existência, pois trazem, além de uma
2
história de bordas e agências , a perpetuação de seus saberes, suas culturas, suas concepções

sobre a vida, suas crenças e práticas ancestrais. Todo este conjunto de elementos é o que forma
o cabedal infinito da memória das mulheres idosas marajoaras.
Tomando como metodologia a coleta de relatos com mulheres idosas marajoaras,
podemos reforçar que a cultural intergeracional se retroalimenta, destacando-se aí a cultura da
conversa. Neri e Oliveira (2018), recorrem a Mota-Neto (2008), para explicar que essa cultura
tem a ver com o ―saber experiencial aprendido no cotidiano social, através da oralidade‖ (p. 667),
sendo elo de perpetuação das diferentes gerações, expressando e transmitindo vivências,
saberes, valores e hábitos, enraizando culturas. Suas memórias sobre

O termo agência também foi empregado na pesquisa de tese de Smith-Santos (2019, p. 35): ―a agência que me
refiro está relacionada à resistência, as vezes planejada, outras vezes realizada em virtude de se proteger de
determinados posicionamentos da sociedade local, ou mesmo da sua família, bem como para se resguardar das
diversas violências vividas no âmbito familiar‖ .

258
o trabalho, quando nos permitem visualizar a realização de funções igualmente atribuídas a
homens, contrariam o ―discurso biológico que associa a anatomia do corpo feminino a uma
insana fragilidade física‖, realizando atividades ―consideradas masculinas‖ para sobreviver
(p. 668-669).
Ademais, o fato de o pensamento decolonial em sua essência nos deixar cientes de
que o preceito fundamental sobre o qual se fundou a colonialidade foi a ideia da raça, tal
3
qual coloca o grupo Colonialidade/Modernidade , já nos pareceria bastante para enveredar,
no recorte de nossa pesquisa, também pela questão étnico racial ao discutir sobre mulheres
idosas, sobretudo no contexto amazônico, atravessado como é por uma ancestralidade de
identidades afroindígenas.
Cabe-nos reforçar mais nitidamente a justificativa para este direcionamento. Assim,
destacamos que, para Lugones (2014), ―a modernidade organiza o mundo ontologicamente em
termos de categorias homogêneas, atômicas, separáveis‖ (p. 935). E, por isso, afirmar uma
análise sobre mulheres negras, fazendo uma intersecção de gênero e raça, somando-se aqui ao
recorte geracional cujo elo aos demais eixos visamos, além de se contrapor e este caráter
separador da modernidade, evidencia e denuncia, justamente nessa intersecção, ―a ausência
das mulheres negras‖ (LUGONES, 2014, p. 935) nos escritos de influências eurocêntrica. Tal
contraposição permitiu a Lugones direcionar seu olhar a organizações sociais que resistem e
enfrentam a lógica da modernidade capitalista, e é neste mesmo sentido que buscamos neste
texto evidenciar os saberes e memórias relativas às trajetórias de vida de mulheres idosas
marajoaras, sobretudo negras ou afroindígenas, visualizando experiências ―outras‖ que
evidenciem (re)existências firmadas por bordas e agências.

4. Narrativas de Memórias e Saberes: o retrato do silenciamento

Refletir sobre a cidadania atualmente torna-se fundamental junto aos idosos. A


metodologia para a elaboração deste texto deu-se por meio de entrevistas semiestruturadas
e os dados da etnografia realizada no momento da escrita da tese de um dos autores. O
projeto de extensão ―Memória de Idosos: oralidade, cinema e fotografia na interface com o
direito ao envelhecimento‖ também permitiu colher narrativas de mulheres idosas. Tudo por
considerar que as experiências vivenciadas por elas são importantíssimas para o
reconhecimento de suas contribuições para a história do município, bem como para retratar
as diversas nuances dos silenciamentos e subalternidades das quais são alvo. Para este
artigo, selecionamos duas mulheres participantes do projeto de extensão e duas que foram
acompanhadas na etnografia da pesquisa de tese, a escolha ocorreu levando em

Segundo Barbosa e Maso (2014), este grupo é formado por intelectuais, em sua maioria, latino-americanos. Em 2002,
Arturo Escobar batizou o grupo com este nome.

259
consideração por serem mulheres negras e expuseram fatos relacionados aos
4
silenciamentos e violações de direitos .
A dinâmica de organização do projeto de extensão foi pensada para articularmos
momentos culturais com debates a respeito dos direitos e experiências de vida numa tentativa de
trabalhar com as narrativas das memórias vividas no município. Na primeira atividade que
denominamos de ―Tarde de Cinema‖, reunimos em torno de 60 idosos participantes do CRAS.
Ao final da exibição do vídeo e da mostra de fotografia de lugares públicos antigos, abrimos
espaço para a escuta dos idosos. Tanto as mulheres, quanto os homens foram ouvidos e nos
relataram com nostalgia as lembranças dos tempos em que eram jovens e sua ligação com o
município, bem como as famílias ou empresas as quais mantinham relação empregatícia, as
escolas e os espaços mais frequentados nos tempos das décadas de 1950, 1960 e 1970.
Através desses relatos que conseguimos identificar algumas relações de exploração
da mão de obra feminina e o descaso do poder público com as necessidades das mulheres.
D. Serafina de 70 anos, rememora as dificuldades que os ribeirinhos tinham para acessar os
serviços médicos:

5
Eu lembro, assim, que a gente morava em Corcovado ... eu, desde criança
sou de lá. Então, quando a gente vinha... todos os portos, tinha locais aí,
onde todo mundo saía... era que encostava aqueles barquinhos. As
pessoas que tinham recurso é que tinham um motor (...). Então, encostava
tudo no porto municipal (...). Eu tenho muitas pessoas que, quando vinham
nos barcos, tinham bebê dentro dos barcos, porque não dava tempo de
chegar aqui no hospital. Quando, também, a minha cunhada teve dois
[filhos] dentro do barco e um perto da prefeitura - um filho. Não deu tempo
de chegar no hospital. Tinha que pegar a maca [...] carregar e levar lá pro
hospital. Essa [foto] aí, que me lembro (D. SERAFINA, 2019).

Nesse depoimento a ausência do Estado em promover política pública de saúde é


sentida com mais frequência pelas mulheres devido necessitarem do atendimento pré-natal e
durante o parto. Isso mostra a falta de estrutura no hospital e, ao mesmo tempo, a não
sensibilização das gestões públicas quanto aos problemas pelos quais as mulheres marajoaras
mais sofriam e ainda hoje estão expostas. Tanto as localidades mais distantes, quanto as mais
próximas do núcleo urbano, é visível o não atendimento adequado para o pré-natal e, nos partos,
nesses casos as mulheres são obrigadas a realizarem deslocamentos para locais com mais
estruturas, como os centros urbanos mais próximos de suas residências.
Um outro relato colhido durante a atividade de extensão, D. Madalena de 82 anos
refere-se aos tempos em que se mudou para Breves, foi chamada por uma família de bons
recursos materiais no município, o agravante desta situação é devido ter sido recrutada
ainda na infância.

Os nomes da idosas são fictícios a fim de preservar suas identidades.


Localidade do meio rural de Breves.

260
Eu era empregada na casa do pai do seu Giuliano, do Vitor. Eu era ama do
filho dele. Aí, nós vínhamos buscar água aqui na frente do hospital velho. Aí,
tinha outros moradores, tinha a outra rua. Tinha os funcionários. (...) Quando
dava 9h, eu fazia merenda pro menino e eu vinha trazer aqui. Todo dia, a
gente vinha buscar água aqui na frente. Era só uma torneira que tinha. Aqui
[apontando para a foto], era em fileira de baldes. Aqui saia muita confusão do
pessoal por causa de água... um botava o balde, outro tirava...
aí, eu tinha 11 anos. Às vezes, quando eu terminava do trabalho, eu me
lembrava da água, aí, a outra empregada, a gente trabalhava só numa
casa, eu era babá e ela trabalhava na casa... aí, a dona Selma era
6
empregada não lembro aonde (D. MADALENA, 2019).

D. Madalena é uma idosa negra, seu relato nos remete ao debate de raça e gênero
para a compreensão dos porquês sobre os processos de exploração de mão de obra são
mais agravantes para as meninas negras, como foi o seu caso. Nesse sentido, Smith-Santos
(2019) cita Marta Machado e Márcia Lima (S/D, p, 2).

De fato, as autoras remetem a necessidade de ao interpretar a exploração


de mulheres negras nos trabalhos domésticos, é preciso ter a compreensão
deste ―conjunto de questões‖ em torno da raça, de gênero e da diferença de
classes que produzem ―efeitos sociais e históricos, em especial para as
mulheres negras, ocupantes "privilegiadas" desses postos de trabalho‖.
Quanto as empregadas domésticas que residem no emprego, há outros
aspectos apontados pelas autoras: ―a falta de limites entre local de trabalho
e casa; entre público e privado; entre relação patrão-empregado e a
construção de afetos em relações tão desiguais‖ (MACHADO e LIMA S/D,
p. 2 apud SMITH-SANTOS, 2019, p. 175)

No caso de D. Madalena, em seu relato é possível identificar o problema de se


demandar responsabilidades à uma menina para cuidar de outra criança, o fato de ser uma
criança negra que ali ocupava esse posto nos mostra a naturalização deste tipo de prática
em muitas famílias brasileiras que se ancoram nessas relações de ―afetos‖ construídas entre
si. Ao mesmo tempo, percebemos uma maior responsabilidade por também ter sido
conduzida a assumir tarefas domésticas.
Quanto à pesquisa de tese, uma das interlocutoras participantes da pesquisa foi D.
Jesus, mulher negra de 81 anos, é separada, teve dois filhos e hoje vive sozinha. Conta com
a ajuda de sua vizinha que também é idosa em caso de emergência, seu filho reside em
Breves, mas já é casado. Identificamos que sua trajetória de vida foi constituída de muitos
deslocamentos: os motivos são variados, em busca de trabalho quando jovem. Ao todo fez
nove deslocamentos em busca de educação e trabalho, ou devido ter se casado.
Sua primeira experiência de trabalho ocorreu quando se mudou para casa da sua
madrinha em Belém, em torno dos seus oito anos de idade. Inicialmente a intenção era de

Todos os nomes citado pela interlocutora foram alterados para preservar o sigilo da identidade.

261
estudar, porém aos poucos foi obrigada a realizar tarefas domésticas. Na ocasião não foi
matriculada em uma escola, só assistia aula particular o que a ajudou apenas aprender a
escrever seu nome. A mãe de sua madrinha que mais fazia pressão para não permitir seu
estudo uma vez que a ensinaria a escrever cartas para possíveis namorados.
O emprego doméstico em muitos casos é a solução para algumas famílias em
vulnerabilidade social que não tem como promover o sustento dos filhos, daí o recurso seria
enviar suas filhas às famílias abastadas a fim de ter um lar para morar e poder se alimentar,
porém tais famílias encaram este arranjo como uma facilidade para conseguir mão de obra
barata e submissa. A subserviência vem muito dos vínculos de possível parentesco que estas
meninas têm juntos de seus patrões/parentes. Smith-Santos (2019) cita Sabóia (2000):

No mundo todo, milhões de crianças trabalham na obscuridade de casas


fechadas, como empregadas domésticas. O trabalho doméstico é uma das
formas de exploração mais difundidas e menos pesquisadas, envolvendo
muitos riscos para as crianças. De cada dez, nove são meninas, presas em
um ciclo de tarefas extenuantes, praticamente, em regime de escravidão.
Há crianças trabalhando como domésticas na África, na Ásia, na América
Latina, no Oriente Médio e em regiões do sul da Europa. (SABOIA, 2000, p.
3 apud SMITH-SANTOS, 2019, p. 174)

A naturalização da ideia de que à mulher cabe o trabalho no lar tem perdurado por
longos anos e continua fazendo com que meninas, a nível nacional e internacional, sejam
ensinadas a darem continuidade aos serviços domésticos. Elas são condicionadas a
aprenderem inúmeras tarefas desde cedo, bem como são conformadas a agirem de forma a
subordinar-se, principalmente quando moram no lar em que trabalham.
Ainda nos direcionando à questão do trabalho doméstico, notamos que Martins, Luz
e Carvalho (2010), alicerçados em Bourdieu (1995), ressaltam que a ―dominação masculina
e a submissão feminina foram construções sociais que se naturalizaram‖, como resultantes
de uma transposição de diferenças sexuais biológicas em diferenças sociais (p. 02). Nesse
sentido, o quadro que relega às mulheres as tarefas domésticas tem por base ―relações de
poder assimétricas‖ entre os gêneros. Evidencia-se, então, a ―reprodução da tradicional
divisão sexual do trabalho‖ no que permanecem parâmetros laborais retrógrados (p. 03).
O processo de envelhecimento em nosso tempo histórico infelizmente não é devidamente
compreendido por grande parte da sociedade. Junto a isso, há uma série de discriminações, bem
como estereótipos e estigmas sobre a figura dos mais velhos. Brunnet et al (2013) anotam que a
fase da velhice ainda é socialmente visualizada como sinônimo de ―decadência física, perda de
papéis sociais e com a associação de outras imagens culturalmente negativas, como o
comprometimento cognitivo, o deterioramento emocional e o empobrecimento econômico‖ (p.
101). Por vezes, ocorre de a visão negativa carregada pelo senso comum sobre o que é ser
idoso(a) exercer influencia na visão que os próprios sujeitos

262
da terceira idade têm de si mesmos, acreditando numa suporta invalidez que o mundo do
trabalho moderno aponta nas idades mais avançadas. Ouvindo o que tiveram a dizer as
interlocutoras de nossa pesquisa, pudemos refletir sobre estas considerações. O relato de
D. Jesus chega a ser tocante sobre o significado do envelhecimento em sua vida:

A velhice para mim, eu acho assim, é uma doença. É porque eu tenho vontade
de fazer as coisas, hoje em dia tudo é pago, porque antes quando eu estava
mais nova eu roçava o meu quintal, eu limpava, queimava lixo, fazia tudo. Agora
eu não posso mais porque dói o meu braço. O osso da gente fica frágil, a gente
quer pegar um peso assim, mas não dá para arriar, o meu principalmente, eu
acho. E tem dia que a gente amanhece fraca [ênfase na palavra]. Hoje em dia
eu amanheço e digo: ―Oh meu Deus, me dê força, coragem, disposição para eu
viver a minha vida, até o dia que eu deva viver. Não me deixe esmorecer, não
me deixe perder a memória‖ [termina o tom de oração], que eu tenho medo
assim de perder a memória. Esquecida eu sou um pouco, mas tem gente que
perde a memória, eu não quero ser assim. Se for para ficar assim, Deus que
sabe, eu entrego não mãos d‟Ele. Eu sempre digo, a velhice para mim é
doença, porque se fosse ficar velho e ficasse forte para fazer tudo o que
quisesse, mas a gente fica frágil [dá ênfase nessa palavra]. Muitas vezes já fica
esperando que os outros façam para ti. Eu subia na caixa d‟água, limpava,
lavava, hoje em dia eu não posso mais [lamenta], quem faz é meu neto (D.
JESUS, 2018 apud SMITH-SANTOS, 2019, p. 62).

A modernidade, que tem como um de seus pressupostos os constantes rearranjos e


reconfigurações, exigindo que os sujeitos estejam continuamente se adequando a novos
padrões, sobretudo no que diz respeito a processos produtivos, emprega uma
supervalorização da faixa etária jovem, em detrimento da velhice, pois a primeira é em
senso comum entendida como estrita indicadora de produtividade, enquanto que a segunda
permanece sendo associada à dependência, descartabilidade e à ausência da realização de
papeis sociais requeridos pela lógica ocidental do mercado.
Na narrativa de D. Jesus, aparece uma preocupação com o estado da velhice,
associada à questão da perda de suas forças e, até mesmo, a ansiedade em preservar as
suas faculdades mentais e continuar sendo ativa para ser independente. Acreditamos que
isso possa ser explicado pelo fato desta idosa residir sozinha desde o casamento de seu
filho, uma vez que é separada do esposo, quando seus filhos ainda estavam pequenos.
A etnografia realizada para a pesquisa de tese nos fez conhecer também D. Rosa,
idosa negra de 72 anos. Vive em um bairro de periferia, mora com seu esposo de 89 anos
que possui deficiência visual. Esta senhora cuida sozinha de seu esposo, apesar de residir
ao lado de seus filhos. Nas visitas realizadas em sua residência foi possível identificar o
cuidado redobrado que esta senhora tinha que ter com seu marido, apesar de sua idade.
Um exemplo do retrato do descaso, ou mesmo, silenciamento vivido por D. Rosa é o
fato de ser analfabeta, porém não se sente em condições de aprender a ler, como é
retratado na seguinte narrativa:

263
eu quero aprender a ler, mas é que ainda não consegui. Minha mana eu
conheço todo o tipo de letra, mas eu tenho medo de juntar e não dar certo.
7
O meu nome eu sei escrever sim, eu fico reinando porque é que eu
conheço as letras, mas não sei juntar (D. ROSA, 2017 apud SMITH-
SANTOS, 2019, p. 240).

Sua dificuldade em ler é externalizado nessa narrativa, procura explicar que isto está
associado ao fato de ter sido a irmã mais velha e, por tal razão, recebia a responsabilidade
desde criança de cuidar dos irmãos mais novos. Ao sair da infância, assumiu um trabalho
doméstico na adolescência e, ao mesmo tempo, seu pai de criação via como desnecessário
aprender a ler por ter risco de escrever cartas para namorado.
Entretanto um fator alarmante quanto à dificuldade de aprendizagem diz respeito aos
anos já vividos participando do Centro de Referência e Assistência Social - CRAS, porém não
houve um resultado efetivo para sua vida. Levando em consideração ao que foi observado em
campo, a idosa provavelmente vai continuar tendo dificuldades de aprender, esse quadro só
poderia mudar se a gestão municipal se empenhasse em destinar profissionais capacitados para
atender a demanda desses idosos, o que não tem ocorrido atualmente neste município.
A construção do modelo de sociedade moderno ocidental apenas reforça a
característica de considerar infância e juventude como fases majoritariamente, ou mesmo,
exclusivamente propícias a estarem participando do ambiente escolar. Peres (2011),
evocando Philippe Ariès (1981), pontua que ―o surgimento da sociedade moderna industrial
e a universalização da educação escolar seriam os principais determinantes da delimitação
da infância como fase diferenciada da vida adulta‖ (p. 631). Assim, nossa educação visa
formar aquele que no futuro será o trabalhador considerado produtivo, e, portanto, adotou
métodos adaptados às idades iniciais, num projeto que alijou fortemente a pessoa idosa, a
qual não era mão de obra interessante à produção, por estarem próximos ou já acessando à
aposentadoria.
Pensar uma educação voltada ao idoso, seria ―desperdício‖ a partir da visão
capitalista, o que explica a falta de uma educação específica para a pessoa idosa no atual
contexto. Peres (2011) ainda destaca o surgimento de educação para adultos como
derivada da necessidade de especializar a classe operária, que portava modos de trabalho
considerados primitivos e ignorantes pela lógica do moderno ocidental ligada ao trabalho,
tornando possível visualizarmos a relação com a colonialidade nos âmbitos da educação e o
trabalho da vida humana.

5. Considerações Finais

Segundo o dicionário Papa Chibé, reinar significa irritar, porém o termo empregado pela interlocutora pode estar
relacionado a pensar. Cf: https://artepapaxibe.wordpress.com/dicionario/

264
O texto que aqui foi apresentado teve por objetivo desenvolver uma pesquisa sobre
as experiências de mulheres marajoaras da terceira idade, buscando, por meio na análise
de relatos, memórias e lembranças, suscitar um debate a nível teórico que fosse capaz de
alcançar o pensamento decolonial, suas ramificações quanto ao recorte de gênero, bem
como discussões a respeito dos espaços ocupados por tais mulheres na sociedade e sua
relação com as políticas públicas do lugar de vivência.
Nesse sentido, procuramos traçar elos de ligação nas intersecções das relações de
gênero com dimensões étnico-raciais, subalternidade e relações de poder, bem como a
dominação que recaem sobre a mulher na contemporaneidade. Este cenário desigual é lido
como consequência do processo de construção da modernidade, que traz consigo, na leitura dos
pensadores que nos embasaram, a colonialidade, a qual sobrevive até hoje e se manifesta de
diversas formas. Recorrer a pensadoras feministas decoloniais foi crucial, visto que elas realizam
uma abertura teórica para eixos antes não explorados por tais estudos, dando novas
perspectivas para visualizarmos os processos que fundam a estrutura social do hoje.
Adotamos, enquanto metodologia para a construção do trabalho, a pesquisa
bibliográfica que buscou abranger a formação social dos povos da América Latina, através
do Colonialismo e como as influências dessa estrutura social se perpetuaram até hoje nas
relações protagonizadas pelas mulheres idosas, mais especificamente amazônicas, negras
ou afroindígenas.
Para que pudéssemos ampliar nosso norte de discussão, adotamos a metodologia
de entrevistas semiestruturadas que nos permitiu ouvir relatos das mulheres interlocutoras
da pesquisa, bem como utilizamos relatos que já haviam sido colhidos na construção da
tese de doutorado de um dos autores. Com base nisso, pudemos refletir de modo teórico e
empírico sobre a vivência de mulheres que empreendem no seu cotidiano processos
contínuos de (re)existência e agências, que lhes permitem reproduzir sua existência frente a
um cenário que a elas relegou a figura de ser o ―outro‖, como mulheres que não se situam
dentro da lógica moderno ocidental.
Os referidos relatos que pudemos coletar no desenvolver dessa pesquisa, se
realizaram em consonância com ações extensionistas de projetos pertencentes à Faculdade
de Serviço Social do Campus Universitário do Marajó-Breves, da Universidade Federal do
Pará. Tais projetos, em conjunto, constituem o que pretendemos desenvolver para um
programa de pesquisa e extensão, referente às Memórias de Idosos no Marajó, tendo como
eixos centrais a valorização de saberes, a interpretação e estudo em caráter antropológico e
da História Oral sobre trajetórias de vida marcadas pelo contato ou pela ausência da
abrangência de políticas públicas, bem como as dificuldades enfrentadas por mulheres
idosas no acesso a recursos básicos, como por exemplo, água tratada para o consumo.

265
Somado a isso, também se desenvolve o eixo que busca por meio de atividades
audiovisuais, como o cinema e a fotografia, apreender histórias e memórias dos sujeitos
idosos e suscitar a discussão de políticas públicas, exercício da cidadania e o direito ao
envelhecimento junto aos idosos que frequentam serviços públicos da Assistência Social do
município lócus da pesquisa.
A importância de se debater sobre gênero, cidadania, raça e envelhecimento é dar
visibilidade à discussão sobre grupos sociais que historicamente sofreram e, ainda hoje,
sofrem um expressivo conjunto de opressões e violações, que incluem também o acesso
aos direitos. Com este ensaio, buscamos pontuar sobre o papel da modernidade como uma
tendência a promover a invisibilização através da aplicação de concepções isoladas no que
tange aos diferentes grupos, como, por exemplo, tratar sobre as questões de gênero
pretendendo uma falsa universalidade da figura feminina, ignorando os aspectos étnico
raciais e especialmente o aspecto da geração, que nas abordagens do trabalhos científicos
que discutem sobre representatividade, cidadania e direitos, ainda configuram uma certa
lacuna a ser preenchida.
Neste, sentido, o que visamos com esta pesquisa foi traçar rumos que possam
conectar os eixos aqui citados, mesmo que de maneira prematura, para uma melhor
compreensão, sobretudo no espaço da Amazônia marajoara. Pudemos, portanto, iniciar uma
reflexão sobre qual é o lugar social dado ao idoso na modernidade, considerando gênero,
raça, classe, relações intergeracionais, saberes e modos de vida.

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Antropologia, 2019.

267
“Outras lutas além do fogão”:
O Movimento de Mulheres da Região Guajarina-Pa, na década de 1990.

1
https://doi.org/10.29327/527231.5-18 Antonia Lenilma Meneses de Andrade – GHISCAM/UFPA
2
Luiz Augusto Pinheiro Leal – GHISCAM/UFPA

Resumo: O espaço de atuação feminina foi, por muito tempo, limitado ao espaço doméstico, em
oposição ao espaço público. O lar, a família e, em resumo, ―o fogão‖ constituíam o único
horizonte de ação para as mulheres. Contrariando essa perspectiva, especialmente pela
iniciativa de mulheres oriundas do meio rural, nasceu o Movimento de Mulheres da Guajarina, na
região Nordeste do Pará, nos anos de 1990, após muitas lutas e articulações em favor das
questões do campo. Portanto, o objetivo deste artigo
descrever e analisar o processo de formação do Movimento de Mulheres da Guajarina,
demonstrando como o mesmo se tornou um marco na organização de Lideranças femininas na
região nordeste paraense. Como metodologia para o desenvolvimento da pesquisa, utilizamos a
História Oral (Thompson, 2002). A pesquisa aponta o processo de ampliação da participação das
mulheres em espaço de poder, como associações, partidos políticos, coordenação comunitária e
liderança local (Scott, 1996).

Palavras chave: Mulher negra, Sociabilidade feminina, Gênero, Movimento Social.

―FIGHTS BEYOND THE STOVE‖:


THE MOVEMENT OF BLACK WOMEN IN THE GUAJARINA-PA REGION IN THE
1990.

Abstract: The female acting space was, for a long time, limited to the domestic space, as opposed
to the public space. Home, family and, in short, ―the stove‖ constituted the only horizon of action
for women. Contrary to this perspective, especially by the initiative of women from rural areas, the
Guajarina Women's Movement was born in the Northeast of Pará, in the 1990s, after many
struggles and articulations in favor of rural issues. Therefore, the purpose of this article is to
describe and analyze the process of formation of the Guajarina Women's Movement,
demonstrating how it has become a milestone in the organization of female leaders in the
northeastern region of Pará. As methodology for the development of the research, we use the
Oral History (Thompson, 2002). The research points to the process of increasing women's
participation in power spaces, such as associations, political parties, community coordination,
and local leadership (Scott, 1996).

Keywords: Black woman, Female sociality, Gender, Social Movement.

http://lattes.cnpq.br/5014221585367267
http://lattes.cnpq.br/7967678999713659

268
INTRODUÇÃO

O espaço de atuação feminina foi, por muito tempo limitado ao espaço doméstico em
oposição ao espaço público. O lar, a família e, em resumo, ―o fogão‖ consistiam nos únicos
meios de ação para as mulheres. Contrariando essa perspectiva, especialmente pela iniciativa
de mulheres oriundas do meio rural, nasceu o Movimento de Mulheres da Guajarina, na região
Nordeste do Pará, nos anos de 1990. O movimento surgiu diante de uma conjuntura opressiva
no meio rural e da organização da Comissão Pastoral da Terra - CPT, que atuava junto às
comunidades da região, desde o início dos anos 1960.
O movimento refletia os anseios e os esforços das mulheres do campo para se manifestar
nos espaços políticos de decisões. As dificuldades eram imensas, mas não apenas em relação
ao inimigo comum, o agronegócio. Internamente aos movimentos sociais, embora as mulheres
estivessem sempre ao lado dos homens, na luta pela manutenção e organização dos territórios,
nos momentos de decisão ou de representação, eram sempre os homens que ficavam com os
cargos de visibilidade. As mulheres ficavam limitadas ao espaço privado (PATEMAN, 1992). No
intuito de construir espaços para a atuação das mulheres, o movimento ergueu bases para
várias reivindicações sobre a realidade vivida por mulheres dos municípios de Concórdia do
Pará, Bujaru, Tailândia, Moju, Tomé-açu, Acará e Abaetetuba.
A articulação por outra forma de luta, fez com que mulheres de diversas comunidades rurais
dos vários municípios da região Guajarina, se unissem, criando o Movimento de Mulheres da
Guajarina, como espaço de mobilização e discursões de lutas como territorialidade, cidadania,
sindicalização, educação, violência no campo e violência doméstica, religião, cuidados com a saúde
da mulher e relações gênero. Portanto, o objetivo deste artigo é descrever e analisar a história de
formação do Movimento de Mulheres da Guajarina, demostrando como o mesmo se tornou um
marco na organização de Lideranças femininas na região nordeste paraense. Como

269
metodologia para o desenvolvimento da pesquisa, utilizamos a História Oral (Thompson, 2002),
visando à valorização da oralidade presente nos movimentos sociais.
Além disso, também fizemos análise de documentos escritos (folders, relatórios dos
encontros, atas dos encontros e congressos) dos anos de 1997, 1998 e 1999, 2000 e 2002. O
resultado desta pesquisa revela um processo de ampliação da participação das mulheres em
espaços de poder, como associações, partidos políticos, coordenação comunitária e liderança
local. As histórias das mulheres no Movimento de Mulheres da Guajarina, nos permite
reconstruir alguns dos limites e rupturas da formação destas mulheres enquanto sujeitos sociais
ativos. Suas ações repercutiram dentro de vários espaços de luta e organização social.
Alguns exemplos, de espaços de luta, são os movimentos exclusivamente de mulheres,
participação em movimentos quilombolas, em associações, igrejas e na própria comunidade de
origem. Tal como os movimentos sociais dos anos de 1980/90, o movimento de mulheres
contribuiu para a conquista de direitos sociais novos. Segundo GONN (2003), os movimentos
sociais no Brasil, nas últimas décadas, caracterizam-se por uma complexidade crescente e por
uma linha de pluralidade organizativa. Dentre as inúmeras organizações, destacam-se as
articulações políticas de comunidades tradicionais, tais como ribeirinhos, assentados da
reforma agrária, mulheres agricultoras e quilombolas.
Esses movimentos sociais têm se consolidado fora dos marcos tradicionais do controle
clientelista dos grupos dominantes. Reconhecem, no momento atual, certos desdobramentos,
cujas formas de associações e lutas extrapolam ao sentido estrito de uma organização sindical
3
e as formas de enquadramento urdidas pelo Estado . Possuem um caráter libertário e
autogestionário em suas ações.
Os movimentos sociais do espaço rural eram ocupados majoritariamente por homens.
Contudo, as lutas, além de influenciarem na redução das desigualdades entre o espaço rural e
o urbano, também tiveram efeitos positivos sobre a vida do conjunto dos/as trabalhadores/as do
campo e favoreceram o acesso das mulheres a direitos e a políticas públicas. Entretanto, a
presença e a participação das mulheres, no movimento, só foi lentamente conquistada. Elas,
com o tempo, ―saíram do anonimato, do não reconhecimento como agricultoras para iniciar sua
inserção nas políticas públicas governamentais‖ (PORTELLA, 2004)
A formação de movimentos das mulheres de forma geral, assinalou a participação das
mulheres nos movimentos sociais, o que significou a entrada das mulheres num espaço
tradicionalmente representado pelos homens. As mulheres agricultoras ganharam maior
visibilidade no espaço social e político brasileiro, transformando-se por este modo em ―sujeitos
políticos no cenário nacional‖ (NOBRE, 2002).

Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Quilombos e Novas etnias. Manaus UEA 2011.

270
Segundo Cintrão (2006) os movimentos de mulheres rurais da década de 1980, são
ainda embrionários e limitados geograficamente, mas contribuíram nas mobilizações populares
na assembleia Constituinte de 1988. Cintrão, cita, ainda que nesse período os movimentos
ganharam força e se ampliaram com estímulos e o apoio de organizações de âmbito nacional
como a Confederação Nacional de Trabalhadores na agricultura (CONTAG), Central única dos
trabalhadores (CUT), os conselhos Estaduais de direitos das mulheres e a cooperação
Internacional.
Através da Constituição de 1988, pela primeira vez foi colocada, em nível nacional, uma
negociação de políticas públicas que considerava a questão das mulheres rurais. A partir de
então, os movimentos de mulheres rurais ganham visibilidade e têm um impulso para a sua
nacionalização. Sob influência das mobilizações da Constituinte, acontece, em 1988, o I
Encontro Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da CONTAG (SILVA, 2006). O encontro
desencadeou a organização nacional das mulheres dentro do movimento sindical de
trabalhadores rurais, permitindo grande ampliação geográfica, graças à presença de sindicatos
de trabalhadores rurais em todos os estados e em grande número de municípios. A partir daí
ocorreu um aumento progressivo da participação feminina nos movimentos.

Movimento de Mulheres da Guajarina: Quando mulheres se organizam

Em meados da década de 1990, se consolidou vários coletivos de mulheres na região


nordeste do Estado do Pará. Mais especificamente nos municípios de Concordia do Pará,
Bujaru, Tailândia, Acará, Abaetetuba e Moju. Esse movimento surgiu diante de uma conjuntura
de organização da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e de ações dos sindicatos dos
trabalhadores e trabalhadoras rurais, que atuam na região desde o início dos anos 1960.
Ambos estavam preocupados em discutir as situações de violência no campo e trazer os
sujeitos, mulheres e homens, para as discussões de luta pela terra e organização política.

Na época, a equipe da CPT era constituída por Padre Sergio Tonneto, Irmã Rosa
Figueiredo, Irmã Adelaide, Irmã Ivódia, padre Amadeu e padre Santiago. Estes eram párocos
4
em Bujaru . Na frente sindical, contava-se com Socorro Gomes, Gaida Silva, Lucia Lima, irmã
5
Ivodia, Cristina, (secretária da FETAGRI). Segundo Irmão Rosa Figueiredo :
Os homens participavam dos Sindicatos, já tínhamos um trabalho
com os jovens, clubes de mães em quase toda comunidade, então,
era necessário fazer um trabalho mais político com as mulheres, já
havia pressão de organismos internacionais para que isso
acontecesse. No triênio que iniciou em 1990, nós tínhamos a meta,

Estatuto do Movimento de Mulheres da Guajarina-1992.


Freira da Congregação Sagrado Coração de Jesus, Coordenadora geral da educação de
Jovens e Adultos da Comissão Pastoral da Terra na região Guajarina.

271
como linha de ação organizar as mulheres da região, criar um
movimento que as reunisse, mas não podia ser homens a
organizar. Então quem ia começar? E foram a Socorro Lima,
Gaída Silva que tomaram a frente, e foram muito importantes no
processo de organização do Movimento. Foi feito uma espécie de
proposta de desenho da criação do movimento. Foi identificado e
mobilizado mulheres de vários municípios da região que tinham
uma consciência crítica mais aprofundada. Reunimos com elas e
começamos a discussão para formar uma coordenação provisória.
A CPT, não atuava só no Bujaru. Era no Acará, Moju, Abaetetuba,
6
Tailândia, já em Concórdia foi só depois(...) .

Para a Irmã Rosa, então coordenadora da CPT/Guajarina, no processo de organização e


participação dos trabalhadores rurais da região havia uma grande ausência das mulheres nas
discussões. As mulheres ficavam em casa, cuidando da família, para que os homens
pudessem participar. Considerando que as causas das lutas eram para ambos, a ausência
chegava a ser grave. Nos casos em que as mulheres já se faziam presentes em vários setores,
como no Sindicato dos Trabalhadores Rurais, associações e cooperativas, elas tinham uma
participação muito tênue, sem expressão ou voz nas tomadas de decisão e sem participação
nos cargos de chefia.

Essa situação pode ser observada no texto de um folder do congresso de 1998.

Fonte: arquivo CPT. (2016).

possível observar, na poesia da chamada do folder, uma consciência de luta, de


busca por direito para todas as mulheres. É importante ressaltar que o Movimento de
Mulheres da Guajarina, era um movimento composto por mulheres do espaço rural e da
cidade, porém na cidade não conseguiu se firmar tanto quanto no meio rural. Também no

Excerto da entrevista com Irmã Rosa Figueiredo- CPT/Guajarina, 2016.

272
folder podemos notar que as lutas não estavam desconectadas dos contextos políticos
que permeavam o cenário internacional na américa Latina.

(...)O movimento surgiu como uma demanda regional quando as


mulheres se organizavam para terem direitos à sindicalização. A
CPT foi uma boa parceira nisso. Era preciso se organizar e
7
conscientizar as mulheres do seu papel nos seus espaços .

Historicamente, se observa que os movimentos sociais têm contribuído para organizar e


conscientizar a sociedade, considerando os conjuntos de demandas e uma via práticas de
pressão e mobilização, têm certa continuidade e permanência de ação mobilizadora. Eles não
são apenas reativos, movidos somente por necessidades imediatas.
De acordo com Gohn (2006), os Movimentos Sociais são empreendimentos coletivos
para estabelecer uma nova ordem de vida, eles surgem de uma inquietação social,
consequência de situações de insatisfação e do desejo de novas formas e oportunidades
de vida, isso também era o desejo das mulheres naquele momento; participar do
movimento social, sindicatos, associação, como seus maridos, e também ter acesso a
bens e serviços que melhorassem as suas condições de vida e trabalho.
As ações do Movimento de mulheres da Guajarina, propiciou um processo de
inserção em espaços coletivos não institucionalizados, gerando transformações na vida
pessoal e das localidades em que moram as mulheres nele inseridas. As ações
decorrentes dessa organização balizam interesses, identidades e projetos de grupos
específicos, da geração de trabalho e renda à formação político-social. De acordo com
Gohn (2004), o Movimento possui pode ser definido como de caráter sócio-político e
cultural numa conjuntura específica de relações.
A mulher pobre trabalha muito, mas não possui dinheiro. Ela é
explorada pelos opressores e muitas vezes em sua própria casa.
Outras vezes é explorada como empregada por outra mulher, a
patroa.
É, mulher sofre mais do o homem, porque é obrigada pela
necessidade trabalhar na olaria, em casa, na roça, fazendo paneiro,
caeira (...). Para ajudar o marido e não ver os filhos com fome.
A mulher tem muito saber e muito valor. É importante quando o
homem sabe reconhecer isso e então cuida de sua mulher com
carinho. Eu acho muito bonito quando a mulher é unida com seu
marido. Mas tem muitas mulheres oprimidas, desvalorizada pelo
próprio marido, e não tem liberdade nem para sair de casa, de
participar da Comunidade e do estudo.
O sistema capitalista e neoliberal desvaloriza a mulher de vários
modos e quer que ela se cale e não lute por nada. Eles, os
capitalistas, não querem que a mulher pare para pensar nos seus
direitos porque têm medo que elas descubram que são exploradas
e assim se organizem para lutar. E tem mulher que obedece
direitinho ao SISTEMA e ―se enterra‖ na casa, na olaria, na roça.

Irmã Rosa Figueiredo- CPT/Guajarina, 2016.

273
Mas um dia nós mulheres vamos conseguir o que queremos.
Vamos ocupar o nosso lugar na família e na sociedade.
Uma esperança de mudança é a participação em nosso Movimento e
em outras organizações. É juntar com as companheiras e os
companheiros para enxergar mais longe, se organizar e lutar pela
vida. É ter consciência de seu saber e de seu valor. É ter coragem de
sacudir as cinzas do fogão, do nosso corpo e entra de cheio no
8
Movimento para transforma a sociedade

As mulheres do Movimento da Guajarina, foram encorajadas a se posicionar, utilizar


um discurso de igualdade de gênero e oportunidades, foram despertadas também para um
novo tipo de ação política, questionando o seu status subordinado em razão do sexo na
família, dentro da igreja e no interior dos sindicatos de esquerda em que participavam. Na
origem a participação das mulheres ocorreu tanto pelo estímulo como pela vontade e
necessidade de participação em um movimento específico da categoria, como observado
na narrativa: ‖Nasceu quando nós mulheres percebemos nossa marginalização na
9
sociedade, na família, no sindicato e sentimos quando era necessário buscar outra luta”.

Portanto, o Movimento de mulheres, surge com a finalidade de dar visibilidade ás


demandas especificas das mulheres, no interior do Estado do Pará, e garantir a
participação delas nas decisões políticas e de direito à terra.

Quando mulheres lançam a rede: O sentido do Movimento

A questão de compreender o momento em que surge uma demanda social está


localizada na leitura do contexto em que esse fato se encontra. Quando se trata do Movimento
de mulheres da Guajarina, estamos nos reportando a uma questão de luta pela terra, e
também estamos diante da luta pela igualdade de gênero, na qual, homens e mulheres em
alguns momentos têm exercido papéis diferentes na sociedade. Nesse sentido:
Entendemos por imagens de gênero configurações das identidades
masculina e feminina, produzidas social e culturalmente, que
determinam em grande parte, as oportunidades e a forma de inserção
de homens e mulheres no mundo do trabalho. Essas imagens são
―prévias‖ a essa inserção, ou seja, são produzidas e reproduzidas
desde as etapas iniciais da socialização dos indivíduos e estão
baseados, entre outras coisas, na separação entre o privado e o
público, o mundo familiar e o mundo produtivo, e na definição de uns
como territórios de mulheres e outros como territórios de homens
(CAPPELIN, 2000, p.130).

Antologia do círculo de Cultura- CPT/Guajarina. Círculo de Cultura da Comunidade do Cravo,


Timboteua Cravo e Dona.
Depoimento de Antonina Borges retirado da Cartilha do Círculo de cultura CPT- O POVO TEM
QUE SABER Comunidade do Cravo- 1999.

274
Cappelin (2000), coloca que a questão de gênero perpassa por subjetividades,
englobam o social e o cultural produzindo identidades do homem e da mulher, onde homens e
mulheres se localizam em suas funções desde tenra idade. Portanto, seus espaços são
diferenciados. Temos em Scortt (1995) dentro de suas analises o seguinte conceito:
O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado
nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder. As mudanças na
organização das relações sociais correspondem sempre à mudança
nas representações de poder, mas a direção da mudança não
segue necessariamente um sentido único. Como elemento
constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças
percebidas entre os sexos, o gênero implica elementos
relacionados entre si. (SCOTT, 1995. P. 60)

Diante desses apontamentos, a importância de entender as relações de gênero no


espaço rural se dá na perspectiva de perceber que essas relações variam de acordo com
os diferentes espaços e escalas. Para Silva (2009), há diferenças entre o privado e o
público significa espaços de submissão e poder. Com relação à mulher trabalhadora rural,
o espaço público está mais distante de sua atuação, reservando-se ainda em muitos casos
ao espaço privado. Nesses espaços temos o conceito de espaço vivido que se constitui em
uma vivência cotidiana que é conceituada pelo Frémont (1980, apud MENESES E GAMA,
2012) como uma experiência de vida que não acaba, mas está em constante movimento.

O espaço vivido é uma experiência contínua. [...] O espaço vivido é um


espaço movimento e um espaço-tempo vivido. [...] O espaço vivido é
também, desde a mais tenra idade, um espaço social. [...]. Mais temos
de constatar que, se o espaço vivido acende às conceitualizações
racionais da inteligência, ao raciocínio num espaço cartesiano e
euclidiano, também se revela portador de cargas mais obscuras, em
que se misturam as escórias do afectivo, do mágico, do imaginário
(FRÉMONT, 1980, apud. MENESES E GAMA, 2012, P. 5).

Como esclareceu Fremont (1980 apud MENESES e GAMA, 2012) o espaço vivido
possui um caráter particular a cada pessoa, está também ligado ao imaginário, e ao
espaço social. Ele é construído por uma série de acontecimentos, onde homens e
mulheres estão posicionados de maneiras diferentes. Logo, ainda segundo este autor, no
mesmo plano, o espaço vivido das mulheres distingue-se dos homens, pois o espaço é
constituído por encaixes de células fechadas e solitárias umas das outras, porém
cuidadosamente distinta: a cidade, a casa, o quarto etc. as mulheres vivem em espaço
muito restritos quase secretos entre a casa e poucos espaços públicos.
Nesse espaço vivido, é que se encontram algumas mulheres do campo que como
relata o autor, possivelmente estão localizadas em um espaço menor, no foro íntimo, na
casa, quintal, na lavoura. Não obstante ela assume uma série de tarefas que lhes são

275
ensinadas desde muito jovens. Mesmo dentro desse contexto, algumas mulheres se
destacaram com sua forma de lidar com essas diferenças, nesse caso podemos destacar
as mulheres que lideram o Movimento de Mulheres, como as mesmas lutaram renegando
uma condição de não lugar por serem mulheres e camponesas. Ainda sobre as mulheres,
Gohn afirma:

As mulheres estão nas redes associativas e de mobilização


estruturadas em organizações não-governamentais, nas
associações e bairro e associações comunitárias, em entidades
assistenciais, nas organizações criadas por empresas a partir de
políticas de responsabilidade social, em organizações populares
que atuam junto a mediadores, como entidades articuladoras e os
fóruns, nos movimentos sociais propriamente ditos e nos diversos
conselhos de gestão públicas compartilhadas existentes (GOHN,
2008, p. 133).

Tem crescido de forma favorável o número de mulheres que querem sair do anonimato e
protagonizar suas conquistas, elas estão em diversos espaços. Tem mostrado sua força e
capacidade de liderança nos processos decisórios. Seja como líder sindical, como ministra ou
presidente da república, as mulheres de um modo geral estão saindo da invisibilidade.

Ações do movimento: momento de semear


Os Movimentos de Mulheres trabalhadoras rurais no cenário nacional são recentes,
o marco histórico acontece a partir da década de 1980, conhecida como a Década da
Mulher. Os primeiros movimentos específicos de mulheres rurais datam do início dos anos
1980, muitos deles foram motivados ou nasceram nos espaços da Igreja Católica
Progressista, outros pelos movimentos sindicais e por partidos políticos. Esses
movimentos tiveram visibilidade a partir das realizações de encontros, congressos,
passeatas, caminhadas e marchas.
Um dos eventos aconteceu em 1982 no Rio Grande do Sul, que foi o 1º Congresso
da Mulher Camponesa, em 1983 o 1º Encontro de Líderes Trabalhadoras, celebração do
dia 08 de março em 1984, que reuniu mais de mil trabalhadoras rurais e, em 1985, o 1º
Estadual de Trabalhadoras Rurais com a participação de mais de 10 mil mulheres. E mais
caminhadas rumo a Brasília que eram as mobilizações para a constituinte, registramos a
Caminhada das Mulheres da Roça em 1986. Na Região Nordeste foi realizado dois
grandes eventos, um em 1984 no Estado de Pernambuco, que foi o 1º de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Sertão Central de Pernambuco e, em 1986, o 1º Encontro das
Trabalhadoras Rurais da Paraíba. (MENESES e GUSMÃO, 2012).
Esses processos regionais, foram decisivos para a criação de dois grandes movimentos:
Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste-MMTR-NE, fundado em 1986 e o
Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Rio Grande do Sul – MMTR-RS,

276
fundado em 1989 e fomentar os movimentos menores que se consolidavam no Norte,
estado do Pará, como Movimento de Mulheres da Guajarina.
As questões de pauta da luta das mulheres nesses movimentos, passavam
primeiramente pelo reconhecimento da profissão como agricultora, para que constassem
em seus documentos que eram trabalhadoras rurais ou agricultoras (e não como
doméstica ou dona de casa). A luta por direitos sociais, em especial a aposentadoria e o
salário maternidade; o direito de sindicalização e as questões da saúde da mulher. Ainda
nessa década, foram feitas as primeiras reivindicações, como a titulação da terra em nome
do casal, ou em nome da mulher chefe de família, e o direito das mulheres solteiras ou
chefes de famílias serem beneficiárias da Reforma Agrária.
Na Constituição de 1988, as mulheres rurais tiveram duas importantes conquistas: a
menção explícita ao direito das mulheres a terra, e sua inclusão como beneficiárias da
previdência social, com direito à aposentadoria, à licença-saúde e à licença-maternidade,
tudo isso na condição de seguradas especiais. E para implantação como política pública
para esse segmento, são necessárias outras mobilizações e a ampliação de outros
movimentos do campo. (MENESES e GUSMÃO, 2012).
Nos últimos anos de 1990, podemos considerar que foi o período que as mulheres
rurais aparecerem publicamente como produtoras rurais propriamente ditas. Agora já
reivindicando o direito de serem beneficiárias de políticas produtivas, e exigindo tratamento
diferenciado por parte da sociedade e do Estado.

Os congressos como espaço de organização e coletivização das lutas.

Nos anos de 1996, 1998, 2000, 2001, 2003, 2006, 2007,2011 foram realizados
congressos, onde reuniram-se todos os municípios que fazem parte da Guajarina. Nesses
congressos focalizou-se questões estruturais e conjunturais e aquelas específicas das
trabalhadoras do campo, todas buscando a superação da pobreza e da violência no
campo, o desenvolvimento sustentável, a igualdade de gênero assim como um reforço a
identidade de mulheres rurais (CPT, 2012).
Organizadas por um conjunto de ações coordenadas pela Comissão Pastoral da
Terra. Paralelamente, avançaram também no aprofundamento da discussão das relações
de gênero e do seu papel dentro das famílias e na sociedade, reivindicando mudanças na
divisão sexual do trabalho, questionando sua falta de poder dentro de casa e denunciando
a violência de doméstica (SILIPRANDI, 2008).
Em março de 1996 ocorreu em Mãe do Rio primeiro Congresso regional, nele foram
definidas as diretrizes do Movimento as estratégias, considerando que a maioria das
mulheres pertencia. Segundo o relatório da CPT, a uma classe trabalhadora oprimida que

277
vivia do suor do trabalho, acreditavam de verdade que as mulheres têm importância na
sociedade, que só elas podem assumir (CPT, 1996). Também foram definidos os objetivos
que norteariam a vida do movimento, dentre os quais a libertação das mulheres, violência
contra a mulher e luta pela terra.
Outro congresso regional, ocorreu em 1999 em Abaetetuba/PA, entre os dias 11 e
14 de novembro. Esse congresso tinha como objetivo reunir todos os municípios que
fazem parte do movimento de mulheres na região da Guajarina participou Concórdia do
Pará, Moju, Abaetetuba, Acará, Barcarena, Tomé- Açu e Tailândia. O tema: Mulher: Uma
força construindo o Brasil, objetivos principal era apontar a importância das mulheres rurais
na construção da nação brasileira.
Em 2000, ocorreu um novo encontro de formação, dessa vez na cidade de Tailândia.
Com o tema central ―Mulheres em busca de direitos‖ e o lema ― Mostrando com capacidade
que tem outras lutas além do fogão‖, que nomeia esse artigo. Nesse encontro a pauta estava
em torno da oficialização do movimento. Bem como trazer mais mulheres para o movimento.

Fonte: arquivo CPT. (2016)

Em 2001, foi a vez da cidade de Acará sediar o congresso de mulheres. Nesse


10
congresso o tema era ―mulher resgatando nossas lutas, nossa história‖ . Nesse congresso

contou com a presença de representantes da CPT, Padre Sergio Tonetto, Maria do Socorro
Lima, coordenadora do Movimento de Mulheres Transformadoras do Campo e da cidade
(MMTCCB), Antonina Borges, Coordenadora do Movimento de mulheres do campo e da cidade
Concórdia do Pará (MMCC), Lucimar do Socorro Costa, (representante da articulação de
Mulheres rurais da Guajarina), Raimundo Francisco (representante do sindicato dos

10Relatório do Congresso de Mulheres no Acara. 2001.

278
trabalhadores rurais de Acará), Raimundo Lucas e Claudio (representantes do Partido dos
11
trabalhadores) e o vereador, Eduardo Lima .
Nesse congresso, foi feito uma retrospectiva da história da mulher nos movimentos
sócias e políticos. Alguns dos temas abordados diziam respeito as ações doo movimento
feminista no século XX.
No que se refere à violência, esse foi um tema especial nos três congressos de mulheres
de 2000, 2003 e 2007. Seguindo ainda a temática da violência, via-se nos movimentos uma
preocupação especial, por causa das condições em que as mulheres agredidas ficam, sem
nenhum acesso aos equipamentos públicos que possibilitem a elas ter algum tipo de ajuda.
Assim, nesses três últimos congressos, a pautas estavam direcionadas a formação e
12
informação sobre a lei Maria da Penha. (CINTRÃO e SILIPRANDI, 2011).

Depois do primeiro congresso aconteceram os de 2003 contou com a presença de


2500 mulheres, em 2006 com mais de 300 mulheres e por último em 2011 com cerca de
Nesses congressos municipais e regionais, as trabalhadoras rurais apresentaram
todas suas pautas de reivindicações, de todos os municípios e comunidades da região
Guajarina, microrregião de Tomé-Açu/PA que, futuramente, serviam para se transformar
ou se efetivar como política pública, Estadual ou municipal.
Os Congressos que aconteceram tiveram um forte caráter de denúncia, porém, as
trabalhadoras rurais também apresentaram uma pauta de reivindicações para negociação com
o governo. Grande parte dessas reivindicações voltou a integrar a pauta dos congressos
seguintes, realizadas nos anos 2006 e 2011. Atualmente, as mulheres do Movimento da
Guajarina, estão em diversos setores e podem contabilizar algumas conquistas. Contudo,
ainda se percebe que elas não foram suficientes para acabar totalmente com as desigualdades
de gênero. Algumas dessas conquistas já estão dando seus frutos e mudando a realidade de
várias mulheres na região. Abaixo, seguem algumas delas:
  
Documentação civil e trabalhista para todas as mulheres rurais
  Acesso à terra, apoio às mulheres
assentadas e políticas de apoio a produção na
agricultura familiar através das Emates;
 no Programa Nacional de
Inserção de todas as mulheres da Guajarina
Documentação da Mulher Trabalhadora Rural – PNDTR.

Apoio ao protagonismo das mulheres trabalhadoras nos territórios rurais;
  
Criação do Conselho Municipal de Mulheres;

A sindicalização de 98% das mulheres do meio rural;

Relatório do III congresso de mulheres no Acará,2001.


Em vigor desde o dia 22 de setembro de 2006, a Lei Maria da Penha dá cumprimento à
Convenção para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Convenção de
Belém do Pará, da Organização dos Estados Americanos (OEA), ratificada pelo Brasil em
1994, e à Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher (Cedaw), da Organização das Nações Unidas (ONU).

279
Tendo em conta o rompimento e conquistas advindas da organização das mulheres
rurais na região nordeste do Pará, podemos dizer, que reconhecidamente, o movimento de
Mulheres Transformadoras do Campo, vem contribuindo como um instrumento na luta para
a conquista de direitos que lhes foram negados historicamente.

Conclusão
O Movimento de Mulheres da Guajarina pode ser analisado como marco na
fomentação de lideranças femininas na região, forjando a base de sustentação para a
participação efetiva das mulheres frente aos espaços de decisões e concretização de
conquistas sociais. As histórias dessas mulheres, nos permitem reconstruir alguns dos
limites e rupturas no tempo histórico e sua formação em enquanto sujeitos sociais ativos,
que envolve suas ações dentro de vários espaços, sejam no movimento somente de
mulheres, ou movimento quilombola, associações, igreja e na própria comunidade.
O Movimento de Mulheres do Campo e da cidade, representou acima de tudo um desejo
de mudança das condições de milhares de trabalhadoras rurais da Microrregião de Tomé-Açu
(Região Guajarina). Assim, ficou como uma semente plantada para o futuro. Representa o
desejo de muitas mulheres que querem ver uma sociedade mais justa, para ambos os gêneros.
O processo de luta ainda continua, pois em muitos espaços a violência contra as mulheres
rurais ocorre com frequência. Espaços que, considerando a trajetória do Movimento de
Mulheres do Campo e da Cidade, vão, sem dúvida, ―muito além do fogão‖.

280
REFERÊNCIAS
CAPPELIN, Paola; DELGADO, Didice; SOARES, Vera (Org.). Mulher e trabalho: experiências
de ação afirmativa. São Paulo: Boitempo, 2000.

CINTRÃO, Rosângela. SILIPRANDI, Emma. O progresso das mulheres rurais. In: BARSTED,
Leila Linhares; PINTANGUY, Jacqueline. (Orgs.). O progresso das mulheres no Brasil 2003-
2010. Rio de Janeiro: CEPIA: Brasília: ONU Mulheres, 2011.

DUARTE, R. Entrevistas em pesquisas qualitativas. Educar, Curitiba, n. 24, p. 213-225, 2004.


Editora UFPR. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/er/n24/n24a11.pdf.

FRÉMONT, Armand. A região, espaço vivido. Trad. Antônio Gonçalves. Reivão & Antônio G.
Mendes. Coimbra: Livraria Almeida, 1980.
GOHN, M. da G. (Org). Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos atores
sociais. Petrópolis: Vozes, 2008.

MENEZES, Elisangela Ferreira e GAMA, Andrea Nogueira, A busca pela visibilidade: A


Marcha das Margaridas e a trajetória de conquistas para mulheres rurais. Anais do V
NEER, UFMT, 2012. Site. www.geografia.ufmt.br/.../eixo%202%20GT2%20artigo%20.

SCOTT, J. W. ―Gender: A Useful Category of Historical Analysis‖. The American Historical


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<http://www.jstor.org/stable/1864376.

SILIPRANDI, E. Mulheres e Agroecologia: a construção de novos sujeitos políticos na


agricultura familiar. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília, Centro de Desenvolvimento
Sustentável, Brasília, 2009.

SILVA, Maria Evaneide Pantoja. Socialização de Agricultoras do Movimento de Mulheres


do Nordeste Paraense, 2008 (Dissertação de mestrado).
SILVA, Fabiane Ferreira; RIBEIRO, Paula Regina Costa. Diferenças de gênero no campo da
Ciência: um ensaio de análise sobre a presença feminina no CNPQ. In: VIII Seminário
Internacional Fazendo Gênero: corpo, violência e poder. Florianópolis: Mulher, 2008.

THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1992.

281
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA, GÊNERO E ESTEREÓTIPOS: ANÁLISE DE
ASPECTOS DISCURSIVOS DA ATUAÇÃO DAS VEREADORAS DE BELÉM E DE
MANAUS NO FACEBOOK

POLICY REPRESENTATION, GENDER AND STEREOTYPES: ANALYSIS OF


DISCURSIVE ASPECTS OF BELEM AND MANAUS COUNCILORS 'ACTION ON
FACEBOOK

https://doi.org/10.29327/527231.5-19
1
Nathália Kahwage
2
Danila Cal

Resumo: A sub-representação feminina na política formal é um dos reflexos das


desigualdades de gênero que marginaliza a presença feminina (MIGUEL; BIROLI,
2011, 2013, 2014, 2015; BIROLI, 2018). Considera-se o conceito ampliado de
representação política, com a adesão de outras formas de fazer política
(MANSBRIDGE, 2003; GARCÊZ, 2017) discursivamente, inclusive em ambientes
comunicacionais como as mídias digitais. Objetiva-se compreender como as
vereadoras de Belém e de Manaus utilizam os estereótipos para ressignificar o
exercício da atividade política por meio dos vídeos postados em seus perfis pessoais e
fanpages no Facebook. O corpus é composto por 210 vídeos analisados, por meio de
análise de conteúdo, entre 2015 e 2018. Conclui-se que o estereótipo central foi o de
Mãe que se relacionou, principalmente, com temas da área social como Educação,
Cidadania e Deficientes.

Palavras-chave: Representação política discursiva; Gênero;


Estereótipos; Mídias digitais; Facebook.

Abstract: Female under-representation in formal politics is a reflection of gender


inequalities that marginalize women's presence (MIGUEL; BIROLI, 2011, 2013, 2014,
2015; BIROLI, 2018). The broad concept of political representation is considered, with
the adhesion of other forms of politics (MANSBRIDGE, 2003; GARCÊZ, 2017)
discursively, including in communication environments such as digital media. It aims to
understand how both the councilors of Belém and Manaus use stereotypes to redefine
the exercise of political activity through the videos posted on their personal profiles and
Facebook fanpages. The corpus consists of 210 videos analyzed through content
analysis between 2015 and 2018. The conclusion points to the central stereotype of
Mother, which was mainly related to social issues such as Education, Citizenship and
Disabled People.

Keywords: Discursive political representation; Gender; Stereotypes;


Digital media; Facebook.
1
Mestra do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade
Federal do Pará (PPGCom/UFPA), integrante do Compoa, nathalia.kahwage@gmail.com
2
Docente do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade
Federal do Pará (PPGCom/UFPA), líder do Grupo de Pesquisa Comunicação, Política e
Amazônia (Compoa), danilagentilcal23@gmail.com

282
INTRODUÇÃO
3
Existe um conjunto de mecanismos institucionais causadores da distorção

política de gênero, e que estão ligados a questões estruturais, como a divisão sexual
do trabalho (OKIN, 2008; BIROLI, 2018). As barreiras de caráter extralegal, e não
perceptíveis formalmente, dificultam a carreira política feminina (PINTO; SILVEIRA,
2018; MATOS, 2018; PANKE; IASULAITIS, 2016; PANKE, 2016; MIGUEL; BIROLI,
2013; OKIN, 2008) e criam uma rede de privilégios para os homens legitimarem sua
atuação na política formal. Afinal, embora eleitas, ainda enfrentam diversos
constrangimentos e desigualdades de gênero nesse campo. Porém, tal contexto não
pressupõe um lugar de passividade e de submissão às mulheres, ainda que o contexto
de dominação se demonstre tão presente. A ação individual e coletiva de grupos
marginalizados, como o das mulheres, pode levar à expansão do ―espaço discursivo‖
(BIROLI, 2018), e à abertura para experiências diferenciadas (PINTO; SILVEIRA,
2018), em ambientes hegemônicos, e predominantemente masculinos – como é o caso
da política institucional -, ressignificando as relações de poder compreendidas, neste
artigo, para além do sentido de dominação (power over), e sim também como
empoderamento (power to), resistência (power to) e solidariedade (power with)
(ALLEN, 2013, 1998; CAL, 2016). Os estereótipos entram, nessa dinâmica, como
atalhos comunicacionais (BIROLI, 2011), e estratégias de comunicação política
(PANKE, 2016), capazes de promover, em certa medida, mais mobilidade aos sujeitos
e grupos.
O alargamento na definição de representação política pode ser realizado sob
uma perspectiva comunicacional, ou seja, discursivamente, pelas trocas entre os
sujeitos, nos diferentes ambientes comunicacionais. Pode ser reconfigurada a partir de
um relacionamento a ser investido entre as partes, ao longo do tempo, e capaz de
ocorrer por vieses menos convencionais - como o discursivo -, e em ambientes menos
comuns - como o online. É o que objetiva este artigo: compreender como as
vereadoras de Belém e de Manaus utilizam os estereótipos para ressignificar o
exercício da atividade política por meio dos vídeos postados em seus perfis pessoais e
fanpages no Facebook. Panke (2016) organizou os três principais estereótipos
femininos na política: Mãe, Guerreira e Profissional. Eles serão guias na busca pela
solução do problema de pesquisa e também analisados, sob as diferentes relações de
poder. O corpus é composto por 210 vídeos das vereadoras de Belém da 18ª

3 Para Miguel e Biroli (2014), a sub-representação é causada, fundamentalmente, por três fatores: o
isolamento da mulher na vida doméstica, que influencia em uma rede de contatos mais reduzida; a dupla
jornada de trabalho feminina, que reduz o tempo livre para outras atividades; e o padrões de socialização
(papéis de gênero), que inibem a participação das mulheres na esfera política por se entender,
socialmente, que é um ambiente masculino.

283
Legislatura (2017-2020): Blenda Quaresma (MDB); Marinor Brito (PSOL) e Simone
Kahwage (PRB); e das vereadoras de Manaus (AM), da 17 ª Legislatura (2017-2020):
Glória Carratte (PRP); Joana D’arc (PR); Professora Jacqueline (PHS); e Professora
Therezinha (Democratas). Desse total, 86 são das parlamentares de Belém e 124 são
das parlamentares de Manaus. O recorte incluiu as postagens a partir do dia
04.08.2015 (data da primeira postagem que foi da vereadora Simone Kahwage) até o
dia 08.03.2018 (Dia Internacional da Mulher). O método utilizado foi o de análise de
conteúdo.
Destaca-se que as sete vereadoras estão situadas geograficamente na
Amazônia, um locus periférico em nível nacional, onde vivem a realidade da região e
possuem experiências marcadas por particularidades locais, sejam elas vivências de
opressão ou de enfrentamento. São elas: 1) Blenda Quaresma: do Movimento
Democrático Brasileito (MDB), partido do espectro político centrista. Tem 32 anos,
nasceu em Belém, é profissional liberal (bacharel em Direito e empresária) e ocupou,
pela primeira vez, um cargo público, em 2017, ao assumir uma das cadeiras da
Câmara Municipal. Possui atuação política voltada, principalmente, para o esporte e a
saúde. Realiza, com certa frequência, ações sociais, em bairros periféricos da cidade,
e possui grande vínculo com a figura do pai, o deputado estadual Dr. Wanderlan
Quaresma (MDB); 2) Marinor Brito é líder do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL),
legenda de extrema-esquerda. Professora, assumiu um cargo público, pela primeira
vez, em 1996, quando foi vereadora. Ela tem 62 anos, nasceu em Alenquer, município
no Baixo Amazonas, no Pará. É atuante como parlamentar, principalmente, em
questões culturais, direitos humanos, melhorias na estrutura urbana da cidade e
questões de gênero; 3) Simone Kahwage é do Partido Republicano Brasileiro (PRB),
legenda de centro-esquerda. Ocupou, pela primeira vez, um cargo público, em 2017,
ao assumir uma das cadeiras da Câmara Municipal. Tem 41 anos, nasceu em Belém,
casada, profissional liberal (administradora) e segue a linha conservadora. Na
atuação anterior à eleição, desenvolvia trabalhos na área social da igreja evangélica,
da qual faz parte – os quais permanecem também, durante o mandato parlamentar; 4)
Glória Carratte é líder do Partido Republicano Progressista (PRP) na Câmara
Municipal de Manaus. Mantém posicionamento partidário de apoio à gestão municipal
de Arthur Neto (PSDB). O primeiro cargo público foi ocupado em 2004, como
vereadora. Está no quinto mandato. Tem 57 anos, é natural de Rondônia, e casada
com o ex-deputado estadual Miguel Carratte; 5) Joana Darc Protetora, é do Partido
Republicano (PR), legenda de centro-direita. Assumiu, pela primeira vez, um cargo
público, em 2016, como vereadora da CMM. Tem 29 anos, nasceu em Manaus, é
casada, ativista dos direitos dos animais, advogada e servidora pública concursada até

284
sua eleição, em 2017. Foi a vereadora mais jovem de toda a história da CMM. A
atuação em defesa da causa animal tem sido sua principal bandeira e slogan político
antes mesmo de tornar-se vereadora; 6) ―Professora Jacqueline‖, é do Partido
Humanista da Solidariedade (PHS), legenda de centro-direita. Seu primeiro mandato
político foi para o cargo de Vereadora de Manaus, durante o período 2013-2016, pelo
Partido Humanista da Solidariedade (PHS). Tem 55 anos, é casada, mãe e bacharel
em Direito e em Pedagogia. Antes de se tornar vereadora, atuava como professora,
fato que a motivou a defender, principalmente, a pauta da Educação pública, em
Manaus; 7) Professora Therezinha é do Democratas, partido de centro-direita com
filosofia conservadora-liberal. Tem 66 anos, é natural de Manaus, viúva e formada em
Letras. Foi eleita, pela primeira vez, como vereadora, em 2012. Professora por
formação, atuou na área de Educação por mais de 30 anos. Defende pautas da
educação e deficientes.

MULHERES NA POLÍTICA: ENTRE ESTEREÓTIPOS E RELAÇÕES DE PODER


A sub-representação feminina nos cargos eletivos da política formal, no Brasil,
reflete bem a ideia de que a equivalência de direitos legais conquistados não
necessariamente se traduz, na prática, em igualdade política. Alguns teóricos já
observaram essa distorção de gênero (MIGUEL; BIROLI, 2011; MIGUEL; BIROLI,
2014; BIROLI, 2018; AUGUSTA, 2018), que também é identificada historicamente e
estatisticamente. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as mulheres
4
corresponderam a 52% dos eleitores nas eleições de 2018 . Ainda assim,
5 6
representam apenas 43% dos filiados dos partidos , 30% dos candidatos , 10% dos
7
eleitos e possuem apenas 30% dos recursos disponibilizados pelos partidos políticos
para as campanhas femininas.
Trazendo para uma perspectiva regional, recorre-se ao ano de 2016, nas
eleições municipais no Pará. Os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostraram
que, em todo o Estado, dos 20.208 registros de candidatura, a maioria (13.885) foi de
homens, o equivalente a 69%; enquanto que as mulheres eram pouco mais de seis mil
do total de candidatos, isto é, 31% – dentro do mínimo de 30% que, por lei, os partidos
8
políticos devem reservar às candidaturas femininas. As estatísticas do Tribunal
4
Disponível em: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Marco/mulheres-representam-52-do-
5
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/02/porcentagem-de-filiadas-supera-a-de-
6
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/02/porcentagem-de-filiadas-supera-a-de-

Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-10/apenas-12-das-


mulheres-candidatas-foram-eleitas-para-prefeituras. Acesso em: 24.08.2018.
Disponível em: http://www.tre-pa.jus.br/. Acesso em 20.10.2017.

285
Regional Eleitoral (TRE-PA) apontam ainda uma grande discrepância entre homens e
mulheres eleitos: do total de 12.614 vereadores concorrendo, 1.494 se elegeram;
enquanto que, das 6.003 candidatas, apenas 240 se tornaram vereadoras. Na Câmara
Municipal de Belém, no mandato 2017/2020, eram três as representantes mulheres:
Marinor Brito (PSOL), Simone Kahwage (PRB) e Blenda Quaresma (MDB). As
referidas parlamentares são as únicas no total de 35 vereadores. Já na Câmara
Municipal de Manaus, são quatro mulheres do total de 41 cadeiras na Casa: Glória
Carratte (PRP); Joana D’arc (PR); Professora Jacqueline (PHS) e Professora
Therezinha (Democratas).
Alguns autores compreendem essa dificuldade das mulheres de entrar no
campo da política como um contexto de ―exclusão democrática‖ (MATOS, 2018) que
ocorre ―repetidamente‖ (PINTO; SILVEIRA, 2018, p. 180). Para Biroli (2018), reflete
um cenário na esfera pública de ―desvantagem‖ que não, necessariamente, exclui as
mulheres, mas que cria uma rede de privilégios para os homens no campo político.
Sob qualquer uma dessas perspectivas, há um elemento comum: a presença de
mulheres formalmente eleitas é imprescindível para a democracia representativa
devido à estreita relação entre a ampliação do sentido de democracia e a participação
de mulheres (BIROLI, 2018), ainda mais quando se tratam de representantes que
atuam com tanta proximidade do povo, como é o caso dos vereadores. Contudo, as
barreiras de caráter extralegal, e não perceptíveis formalmente, dificultam a carreira
política feminina (PINTO; SILVEIRA, 2018; MATOS, 2018; PANKE; IASULAITIS, 2016;
PANKE, 2016; MIGUEL; BIROLI, 2014; BIROLI, 2013; OKIN, 2008). A produção de
gênero enquadra as mulheres em um lugar não-pertencente às carreiras políticas.
Para as teóricas feministas, a divisão sexual do trabalho é a organizadora das
relações sociais, de maneira a associar os estereótipos femininos ao espaço privado,
menos valorizado sob a ótica capitalista neoliberal: a família, a vida doméstica, o
cuidado; e com características consideradas, também, socialmente ―inferiores‖, como a
docilidade, a fragilidade, a submissão, a emotividade. O espaço público – onde está
a política institucional -, em contrapartida, configura-se em um locus de protagonismo
masculino favorável à lógica patriarcal, relacionando os estereótipos desse espaço aos
homens: trabalho, prestígio, produção; além de assumirem enquanto gênero
características de prestígio, como liderança, virilidade, racionalidade, força, autoridade.
Os grupos com maior vulnerabilidade social são aqueles mais afetados pelos
estereótipos, na medida em que têm as oportunidades restringidas. Paralelamente, as
imagens tipificadas desses grupos permitem que os constrangimentos e as violências
contra eles sejam socialmente toleráveis (BIROLI, 2011). É o que ocorre com as
mulheres, por exemplo, nas instituições políticas.

286
Ora, quem vem à mente quando se imagina a figura de uma autoridade? Ou a
de um agente político? A tendência é recorrermos a estereótipos masculinos para
tanto. Isto porque as imagens padronizadas de representações simbólicas (de
pessoas ou ideias) fazem parte da dinâmica em que as identidades sociais e valores
se definem. Biroli (2011) indica as vivências das relações sociais como recursos
(matéria-prima) para a ocorrência dos estereótipos. E não fatores posteriores a elas.
Dessa forma, se, tradicionalmente, as figuras masculinas são apontadas como as
legitimadoras do espaço político, são essas que, comumente, virão à mente ao pensar
em estereótipos de agentes políticos. Já às mulheres, no âmbito da política formal, em
contrapartida, costumam ser associadas como ―Primeira-dama‖, no estilo ―bela,
9
recatada e do lar‖ .

Ora, se ―(...) gênero é uma construção simbólica, estabelecida sobre dados


biológicos de diferença sexual‖ (LAMAS, 2013, p. 12), refere-se, então, a valores,
convenções e crenças interpretados, e repetidos ao longo do tempo, por meio de
códigos, símbolos e representações do binarismo sobre o que é o masculino e o que é
o feminino. Em Biroli (2011), os estereótipos são compreendidos como artefatos
morais e ideológicos inseridos nas relações de poder, em aspectos distintos: na
confirmação ou na demonstração de que os interesses entre dominantes e
subordinados podem não coincidir. Por serem artefatos ideológicos, acabam por
beneficiar grupos hegemônicos, pois as caracterizações desses indivíduos costumam
ser vantajosas.
Contudo, apesar de serem comumente associados a aspectos negativos, os
estereótipos são também utilizados pelas mulheres como estratégia de comunicação e
podem influenciar nos resultados eleitorais (PANKE; IASULAITIS, 2016). Na verdade,
eles podem ser vantajosos quando correspondem à imagem que o público espera de
um representante. É o que foi verificado por Panke e Iasulaitis (2016) na análise da
campanha das três latino-americanas concorrendo à Presidência da República, em
10
2014. A campanha de Dilma Rousseff foi a que mais se utilizou de estereótipos.

Contudo, vale lembrar que são tipologias bem-sucedidas, pois se alinham ao ideal
―feminino‖ do padrão heteronormativo, limitando-se a papéis de submissão, docilidade

9 Refere-se à famosa matéria da revista Veja sobre Marcela Temer, apresentada como ―bela, recatada e
do lar‖. Muito embora não faça menção expressa à Dilma, a revista se utiliza de estereótipos de gênero
para descrever Marcela como o modelo "ideal" de mulher. Isto é, bonita, passiva, maternal e na posição
política de Primeira-dama. Uma contraposição à Dilma, que não se encaixaria em tais naturalizados
atributos sobre o ―ser mulher‖. Disponível em: http://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-
e-do-lar/. Acesso em: 6 jul. 2017
10
Nela, a então candidata do PT conseguiu ―perfeitamente articular os preconceitos do eleitorado‖ ao se apresentar, publicamente, como

"gerentona eficiente e entendida de energia" e, paralelamente, utilizou expressões e simbologias que remetiam à "mãe do PAC, mãe dos pobres,
avó e coração valente" (PANKE; IASULAITIS, 2016, p. 412). Os estereótipos como fatores de seleção e de organização de sentidos compuseram
as narrativas eleitorais organizadoras de temas e personagem

287
e beleza. Além disso, Panke (2016) traçou as três principais tipologias das campanhas
11
eleitorais de mulheres, na América Latina: a Guerreira, a Mãe e a Profissional . De
acordo com a autora, nenhuma pessoa pertence unicamente a apenas uma das
tipologias. As imagens são propostas de acordo com a personalidade, o contexto e a
estratégia. Há ainda um ponto em comum: ―(...) os papéis da mulher na sociedade são
muito parecidos em todos os países analisados” (2016, p. 115) sejam elas as próprias
candidatas, as personagens ou as figurantes dos spots. Essas tipologias servirão de
guia no nosso percurso metodológico, a ser discutido mais à frente, quando será
detalhada a definição de cada categoria de análise.
Assim, os estereótipos, ainda que considerados dispositivos com teor
ideológico e de estratégia eleitoral, não funcionam apenas como legitimadores da
ordem social de dominação masculina. É possível identificar, em um mesmo contexto,
nuances na mobilização de estereótipos, dada a dinâmica e a complexidade da sua
produção: ora a favor de pessoas e ideias hegemônicas, ora como elementos de
"subversão das hierarquias" (BIROLI, 2011, p. 81). Por esse ângulo, reforça-se que os
estereótipos são mecanismos das relações de poder com caráter flutuante, e se
moldam a determinada perspectiva, contexto, afetação, presentes no episódio de troca
entre indivíduos e grupos.

REPRESENTAÇÃO POLÍTICA: DEBATES CONTEMPORÂNEOS


As relações de poder não giram em torno apenas de questões
institucionalizadas (Estado), ao contrário, estão capilarizadas por toda a nossa
organização social. O número e a diversidade de atores que atuam como
representantes ampliou recentemente, ganhando reconhecimento social e
governamental, além de força para intervir na atividade do representante ou denunciar
erros da política formal (ALMEIDA, 2018). Observa-se que novos atores exercem
representação por meio de arenas de tomada de decisão transnacionais; na luta por
reconhecimento de grupos historicamente marginalizados, que levam ao debate
público temas como gênero, raça, sexualidade; e, ainda, na presença de organizações
defensoras de uma causa: educação, animais, paz (ALMEIDA, 2018). São atividades
de representar que não são legitimadas via eleitoral ou por consentimento, e sim por
representarem em nome de interesses coletivos, ideias, valores.
11
A análise de Panke (2016) envolveu 216 spots de oito campanhas nas quais as candidatas
conseguiram vencer: Cristina Kirchner (Argentina); Dilma Rousseff (Brasil), Michele Bachelet (Chile), e
Laura Chinchilla (Chile). + Argentina (2011), Brasil (2010), Chile (2013), Colômbia (2010), Costa Rica
(2010), Guatemala (2011), México (2012) e Panamá (2009). Para chegar às tipologias femininas, a autora
também realizou entrevistas com as candidatas desses países e com os seus consultores.

288
Mansbridge (2009) nos mostra que o processo político em que essas decisões
são tomadas também pode ser realizado por cidadãos comuns e em vários espaços
de deliberação, tanto formais quanto informais: assembleia representativa; assembleia
pública; esfera pública; contextos mais informais de conversação cotidiana. Para a
autora, a política também opera fora dos cargos decisórios e fora da representação
formal, sendo discutida publicamente nas conversas do dia a dia. A ―conversação
cotidiana‖ é fundamental no sistema deliberativo, não havendo diferença de grau entre
ela e o processo de tomada de decisão numa assembleia, por exemplo. A única
distinção é o tipo de deliberação. Mansbridge define aquilo que é político como ―o que
o público deve discutir‖ (2009, p. 212) e, portanto, reforça a união das conversações
cotidianas e do ativismo cotidiano como primordial para o melhor funcionamento do
sistema deliberativo e para maior participação política. As reflexões de Mansbrige e
Almeida abrem caminho para compreendermos a representação política de forma
ampliada, sob o viés comunicacional, no qual se constrói um ―relacionamento‖
(ALMEIDA, 2018) configurado também, discursivamente, e em ambientes não-
convencionais. A representação política se fundamenta no agir, ou seja, o que o
representante faz, durante determinado período de tempo. É o que Garcêz entende
como uma atividade comunicacional e discursiva, focada nos percursos constituintes
da dinâmica representativa, e não nos resultados.
As premissas são fundamentais para compreendermos a representação como
um processo político discursivo, pois é por meio da comunicação que se configura o
exercício de representar, as interações simbólicas, as trocas de opiniões e razões, os
julgamentos e a fiscalização por parte dos representados. A abordagem da
configuração discursiva das vereadoras de Belém e de Manaus é relevante em um
espaço criativo e não convencional, como o Facebook, e pelo qual se observa, após a
análise dos vídeos, a possibilidade de estabelecer outros discursos que não apenas o
hegemônico, indicando o dinamismo das relações de poder e dos sujeitos cujas
opressões, injustiças e desrespeitos sofridos, dentro do âmbito da política formal
puderam, em certa medida, ser ressignificados. Compreende-se o Facebook como um
ambiente onde as vereadoras gozam de maior autonomia na produção de conteúdos,
pois voz e falas possuem maior espaço, e há ainda maior liberdade na organização de
narrativas. Diferentemente do que ocorre quando submetidas às rotinas produtivas do
jornalismo (no âmbito da mídia tradicional) e seus embaraços, ou até mesmo, nos
canais institucionais. Nos ambiente formais, o cidadão precisa ser convocado a falar, e
as regras da enunciação dependem de processos de produção mediados por
terceiros.

289
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Dentre a variedade de opções nas mídias digitais (são mais de 200 sistemas
12
de redes disponíveis na internet), o Facebook foi escolhido como ambiente

comunicacional, palco do nosso objeto de pesquisa. Isto porque é uma plataforma com
intenso fluxo de informação e com maior tráfego de acesso no mundo (CONTREIRAS,
2012). Já a escolha dos vídeos do Facebook como objeto foi impulsionada tanto pelo
caráter de autonomia das vereadoras de Belém e de Manaus na produção e
veiculação do conteúdo, quanto pelo fato da plataforma se mostrar bastante relevante,
na junção de interatividade do ambiente virtual com a força da imagem (vídeos), tão
importantes para a comunicação política. É possível, ainda, haver uma série de
formatos de mídia para atingir o público-alvo no Facebook por meio de: webinars;
infográficos; montagens; quizzes; transmissões ao vivo. É um espaço de forte caráter
discursivo e interativo, com características que facilitam a interação nos ambientes de
mídias digitais, o que abre espaço para possíveis trocas argumentativas (MAIA et al.,
2016).
Observaram-se, ainda, as mídias digitais como possíveis alternativas à
divulgação de conteúdos e para a expressão discursiva de agentes políticas, em
virtude da reduzida visibilidade midiática das mulheres na grande mídia e, ainda, em
canais institucionais. A primeira versão da pesquisa Global Media Monitoring Project,
realizada em mais de 70 países, com análises de jornais, rádio e televisão, constatou
que apenas 15% dos sujeitos das notícias eram mulheres; em 2015, o número passou
para 24% (um aumento de 3% em 20 anos). Além disso, os estudos conduzidos
demonstram que, também na política, as mulheres alcançam menor visibilidade
midiática, e que a maioria dos assuntos
relacionados às mulheres era
13
predominantemente sobre saúde e temas sociais . Ademais, há baixa visibilidade

das mulheres na política nos canais institucionais oficiais, como o portal de notícias da
Câmara Municipal de Belém. A pesquisa realizada por Kahwage et al. (2019) analisou
o conteúdo de 45 matérias publicadas no canal oficial da CMB, tendo como ponto de
partida o contexto de sub-representação feminina institucional, constatada por dados
oficiais e pela teoria política feminista, além do cenário de baixa visibilidade midiática.
Identificou-se, então, que a representação política das parlamentares na Câmara
Municipal de Belém (Marinor Brito, Blenda Quaresma e Simone Kahwage) refletiu o
12
Criado, em 2004, por Mark Zuckerberg, o Facebook possui mais de um bilhão de usuários ativos
mensalmente. Conforme dados do SocialBakers, de outubro de 2012, o Brasil é o 2º maior país em
número de usuários do Facebook, e tem mais de 60 milhões de usuários ativos. É importante ressaltar
que a rede social agrega vários serviços, como Chat, Videoconferências, Galeria de Imagens, Anúncios,
Aplicativos, Games, Feeds, Páginas Empresariais, etc. (FRANCO; CALAÇA, 2014, p. 159), mostrando a
multiplicidade de ferramentas para o usuário interagir e compartilhar conteúdos online.
13
Disponível em: http://cdn.agilitycms.com/who-makes-the-
news/Imported/reports_2015/highlights/highlights_en.pdf. Acesso em: 02.04.2017.

290
contexto político de sub-representação feminina devido a alguns resultados
encontrados, como: a baixa referência às vereadoras nas matérias; o reduzido
conteúdo sobre questões femininas; as poucas vozes femininas (fontes) ouvidas nas
matérias em detrimento das masculinas, majoritárias; e a voz institucionalizada das
mulheres entrevistadas nas reportagens.
14
O objetivo geral deste artigo é compreender como as vereadoras de Belém

e de Manaus utilizam os estereótipos para ressignificar o exercício da atividade política


por meio dos vídeos postados em seus perfis pessoais e fanpages no Facebook. O
método é o de análise de conteúdo. O corpus é composto por 210 vídeos das
vereadoras de Belém da 18ª Legislatura (2017-2020) Blenda Quaresma (MDB);
Marinor Brito (PSOL) e Simone Kahwage (PRB); e das vereadoras de Manaus (AM),
da 17 ª Legislatura (2017-2020): Glória Carratte (PRP); Joana D’arc (PR); Professora
Jacqueline (PHS); e Professora Therezinha (Democratas). Desse total, 86 são das
parlamentares de Belém e 124 são das parlamentares de Manaus. O recorte incluiu as
postagens a partir do dia 04.08.2015 (data da primeira postagem que foi da vereadora
Simone Kahwage) até o dia 08.03.2018 (Dia Internacional da Mulher). Para chegarmos
15
ao recorte final , realizamos o cálculo amostral, mas mantendo o nível de confiança

no método:

Tabela 1 - Amostragem dos vídeos (sorteio)


Total % Total Quantidade
Vereadoras corpus de vídeos a ser analisada
BLENDA
QUARESMA 39 8,5 18
MARINOR BRITO 112 24,3 51
SIMONE KAHWAGE 38 8,3 17
JOANA D'ARC 154 33,5 70
GLÓRIA CARRATTE 4 0,9 2
PROFESSORA
JACQUELINE 52 11,3 24
PROFESSORA
THEREZINHA 61 13,3 28
TOTAL GERAL
(VIDEOS
ANALISÁVEIS)
460 100,0 210
AMOSTRA
(5% de erro
amostral// 95% de
confiança) 210

14
Vale ressaltar que este artigo compreende a um desmembramento da dissertação de mestrado
de Nathália Kahwage, defendida no 1º semestre de 2019, pelo PPGCom∕UFPA.
Os vídeos selecionados foram identificados após criarmos uma tabela com numeração para cada um deles, bem
como o link de acesso.

291
Com o material empírico preliminarmente explorado e ordenado, recorreu-se
aos conhecimentos da literatura levantada sobre os principais conceitos trabalhados:
representação política; gênero; estereótipos; mídias digitais. Um livro de códigos foi
desenvolvido com informações básicas e categorizadas para ser guia na análise de
conteúdo dos vídeos. Criamos também dois quadros metodológicos com definições
fundamentais sobre as teorias levantadas, e que serviram de apoio para o exame do
material empírico, pois condensaram as ideias norteadoras e as marcas textuais a
serem apreendidas nos vídeos. O livro e os quadros correspondem a duas temáticas:
Relações de poder; 2) Estereótipos. Finalmente, desenvolvemos um formulário para
a análise de conteúdo. A categorização e a sistematização do material de análise
foram realizadas com auxílio do app online Formulários Google. Criamos as categorias
na sua interface e preenchemos as lacunas com as informações apreendidas na
visualização e no exame dos vídeos. Em seguida, os dados obtidos nos formulários
foram exportados para o Excel, em formato de planilhas, facilitando assim, a
observação do panorama geral de dados, a análise e o cruzamento dos mesmos.
Buscamos, neste trabalho, realizar um mapeamento de recorrências e
regularidades nos vídeos do ambiente comunicacional online, englobando tanto os
pontos que mais chamaram a atenção, e foram expostos diretamente nas imagens e
na verbalização, quanto aqueles compreendidos simbolicamente ou por interpretação
contextual. Examinamos a fala pública das vereadoras, levando em consideração,
principalmente, marcas textuais que fizessem explícita, ou implicitamente, referência
16
aos estereótipos de Mãe, Guerreira e Profissional ; e também, da mesma forma,

que sinalizassem elementos indicativos das relações de poder: power to; power over e
power with. Para tanto, foram levadas em consideração algumas marcas textuais
como o uso de pontuação ou de recursos da oratória e da retórica das parlamentares;
referências a situações e habilidades específicas; posturas de questionamento, de
concordância, de valorização e/ou de análise dos contextos em que estão inseridas na
disputa de poder. Também observamos outros aspectos discursivos nos vídeos, por
exemplo, o cenário, a trilha sonora, a roteirização, os recursos de arte e de edição de
vídeo, as legendas, a presença ou não de personagens e/ou outros atores, a presença

16
As tipologias criadas por Panke (2016) são referentes a padrões femininos em campanhas eleitorais
para presidenciáveis. Contudo, utilizamos esse referencial teórico por entender que é uma valiosa
contribuição para a comunicação política e os estudos de estereótipos, constituindo-se em um dos poucos
trabalhos nessa linha. Em especial, a tipologia Mãe é problemática, e reconhecemos isso, pois ao acioná-
la, corre-se o risco de cair na armadilha que a própria estereotipia cria, de aprisionamento, na qual
características como solidariedade, gentileza, suporte, apoio e cuidado, ligam-se intimamente à figura
maternal, por exemplo. Compreendemos que esses não são aspectos ligados obrigatoriamente às mães
(mas que são frequentemente mobilizados pelo senso comum para fazer referências sobre o feminino),
ainda assim, optamos por fazer uso da tipologia, pois se trata de um esquema metodológico já construído
e organizado por Panke, e que nos auxiliou no percurso metodológico.

292
masculina, a aparência física, os atributos morais, o tempo de vídeo, o número de
visualizações, etc.
Ao todo, foram criadas 13 categorias: informações gerais; formato do vídeo;
função do vídeo; projetos de autoria; onde está a vereadora; atual gestão municipal;
gestão estadual; temática central; partido político; estereótipos (principal e
secundário); relações de poder (principal e secundária). Para os fins deste artigo,
descreveremos apenas três: 1) Informações gerais: dados sobre a autora do vídeo; a
data da postagem; a duração do vídeo; o tempo do vídeo; e o número de
visualizações; 2) Estereótipos da candidata: embasada nas tipologias identificadas
para mulheres na política na América Latina, pela autora Luciana Panke (2016),
incluindo a Guerreira; a Mãe; a Profissional ou nenhuma (esta acrescentada por nós).
O objetivo é identificar quais as características observáveis nos vídeos (discursos) que
direcionam o enquadramento de cada vereadora em um estereótipo, levando em
consideração aspectos centrais tipificadores e marcas textuais perceptíveis nas
imagens e na linguagem. Um segundo tópico, com mesma temática, foi elaborado,
mas apontando a tipologia com segundo maior peso; 3) Relações de poder: Qual a
principal? Com base nas formulações de Danila Cal (2016) e Amy Allen (1998, 2013)
sobre poder, objetiva-se identificar as seguintes definições para o termo: Power over
(dominação); Power to (resistência e empoderamento); Power with (solidariedade).
O primeiro quadro metodológico desenvolvido envolveu as marcas discursivas
para a identificação de relações de poder em produtos audiovisuais, incluindo o tipo de
relação de poder (power over, power to, power with); o aspecto central (dominação,
resistência e subversão, solidariedade); as ideias norteadoras (CAL, 2016, p. 153); as
marcas nos produtos audiovisuais; as marcas simbólicas (nos atributos físicos,
vestimenta, gesticular, tom de voz, oratória). Já o segundo dispõe das tipologias
femininas mais frequentes, em campanhas eleitorais (spots), de candidatas à
Presidência da República, na América Latina, e que foram formuladas por Panke
(2016). O aspecto central, as ideias norteadoras e a as marcas nos vídeos, dispostos
abaixo, foram propostas da teoria da autora, cujas formulações foram adaptadas,
nesta pesquisa, para mulheres já eleitas, em âmbito do legislativo municipal, do
contexto amazônico. Os aspectos gerais dos estereótipos são: 1) Guerreira (liderança
e luta); 2) Mãe (afeto e cuidado); 3) Profissional (especializada e incansável).

ANÁLISE DE RESULTADOS
Os dados gerais referentes à quantidade de vídeos analisados no Facebook
das sete vereadoras somadas, e ainda os vídeos explorados por cada parlamentar,
estão conforme o quadro disposto abaixo:

293
Tabela 2 - Vídeos analisados

BELÉM MANAUS
Blenda Marinor Simone Glória Joana Prof.ª Prof.ª
Quaresma Brito Kahwage Carratte D’arc (PR) Jacquelin Therezinh
(MDB) (PSOL) (PRB) (PRP) e (PHS) a (DEM)

Nº total 18 51 17 2 69 25 28

% total 8,6% 24,3% 8,1% 1% 32,9% 11,9% 13,3%

GERAL 86 124
(40,9%) (59,1%)

Examinamos o estereótipo que as vereadoras de Belém e de Manaus


acionaram, com mais frequência, nos vídeos postados nos perfis e fanpages do
Facebook, e como o posicionamento das parlamentares combate, neutraliza ou reforça
os estereótipos de gênero. Isto porque estereótipos associam-se com as relações de
poder baseadas na hierarquia de gênero, já que possuem uma dimensão moral e,
portanto, costumam ter impacto negativo na imagem das mulheres na política formal.
Contudo, podem ser ressignificados. Os dados gerais das sete vereadoras, dentro do
corpus de 210 vídeos, apontaram o estereótipo central entre todas as vereadoras é o
de mãe, com 96 ocorrências (45,7%); seguido do profissional, com 65 (31%); e
guerreira, com 44 (21%). Não se enquadram na categoria cinco vídeos (2,4%). Já a
tipologia secundária mais recorrente nos vídeos foi a profissional, com 51 ocorrências
(25%); mãe, com 39 (19,1%) e guerreira, com 22 (10,8%). Em termos comparativos
entre as Câmaras Municipais, os resultados de 86 vídeos, apenas de Belém, sobre a
principal tipologia são: mãe 39 vídeos (44,3%); guerreira 28 (31,8%); profissional 18
(20,4%); nenhum três (3,4%). Já para os 124 vídeos apenas de Manaus, as
ocorrências são: mãe 57 (45,9%); profissional 49 (39,5%) e guerreira 16 (12,9%).
Além disso, 98 (46,6%) vídeos não se enquadram em nenhum estereótipo. A
constatação demonstra similaridades com os resultados encontrados por Panke
(2017), que identificou que apenas dois papéis estão em todos os países analisados
da América Latina por ela analisados: Mãe e Guerreira. Panorama que se aproxima,
também, dos dados obtidos apenas com as vereadoras de Belém, e com a soma de
todos 86 os vídeos postados pelo grupo. A principal tipologia foi a de Mãe, com 39
ocorrências (44,3%); seguida da Guerreira, com 28 vídeos (31,8%); e da
Profissional, com 18 (20,4%). Três vídeos (3,4%) não se enquadraram em nenhum
estereótipo principal. No caso das vereadoras de Manaus, a análise é um pouco
distinta. Dos 124 postados pelo grupo, 57 vídeos (45,9%) foram identificados com a

294
tipologia central de Mãe; seguida de Profissional, com 49 ocorrências (39,5%); e
Guerreira, com 16 (12,9%). Já 98 vídeos (46,6%) não se enquadraram nos itens
dispostos na categoria.
Referindo-se, ainda, apenas ao grupo belenense, duas das três vereadoras
possuem a tipologia Mãe como a principal entre os vídeos analisados: Blenda
Quaresma (MDB) e Simone Kahwage (PR). Marinor Brito (PSOL) teve resultado
diferente, o de Guerreira, que será comentado logo mais. As vereadoras de Belém
com o estereótipo materno possuem em comum o forte discurso social, a proximidade
com pessoas de comunidades, além da existência de um cenário, nos vídeos, agindo
como componente fundamental do conjunto de ―marcas‖ a guiar quem assiste, levando
ao entendimento de determinados aspectos ou estruturas cognitivas de expectativas
sobre o grupo Mãe. Ambas as parlamentares possuem, ainda, semelhanças em
elementos da ―feminilidade‖, como o uso frequente de maquiagem, de roupas com
estampas floridas e em tons de rosa. Todavia, a tipologia Mãe se manifesta com
algumas peculiaridades para cada uma: Blenda, apesar de ser mãe, não mostrou o
lado maternal em si como uma característica pessoal, isto é, surgindo com a filha, ou
abraçando e cuidando de crianças. O ―maternar‖ veio como uma característica
fundamental na constituição de uma narrativa sobre si mesma como ―boa moça‖, que
faz ações sociais e ―ouve‖ a comunidade, ou seja, a mãe que ―cativa‖. A principal
temática, abordada nos vídeos postados no perfil social do Facebook dela, foi o
Assistencialismo. Apresentou, ainda, grande simpatia, desenvoltura para lidar com o
público e se mostrou também expansiva nos gestos e demonstrações de afeto. Traços
que não são marcantes em Simone Kahwage, já que seus atributos envolvem mais a
discrição e o tom de voz suave e calmo, mas que ainda assim, buscam transmitir
liderança. A vereadora do PRB recorre à tipologia Mãe, para ―contar histórias‖, nos
vídeos analisados no Facebook, sobretudo, aquelas emotivas, tentando marcar
postura como aquela que ―lidera‖, e representa os interesses das mulheres. Uma
perspectiva alinhada com a principal temática debatida nos vídeos: Mulheres.
Algumas produções são roteirizadas e pós-finalizadas, agregando mais elementos à
narrativa maternal como a trilha sonora, as imagens de insert com mães e crianças; os
depoimentos, etc.

Já entre as vereadoras de Manaus, três das quatro parlamentares recorrem à


tipologia Mãe como a principal entre os vídeos analisados: Joana D’arc (PR);
Professora Jacqueline (PHS); Professora Therezinha (Democratas). Glória Carratte
(PRP) teve resultado distinto, o de Profissional, que comentaremos mais à frente. De
maneira geral, os vídeos apostam na pós-produção e, portanto, possuem melhor
―acabamento‖ visual, principalmente o conteúdo de Joana D’arc e Professora

295
Therezinha. As parlamentares de Manaus apresentam similaridades quanto ao
discurso social, a ―marca‖ mais básica relacionada ao estereótipo materno, mas
também características como o cuidado, a defesa de determinados grupos e a postura
atenciosa. Possuem ainda em comum o enaltecimento da própria experiência como
qualidade presente na tipologia e, consequentemente, no agir político. No entanto,
mobilizar a imagem de Mãe se configurou com nuances próprias a cada candidata.
Joana D’arc (PR) focou na experiência como ativista para compor a figura materna que
―cuida‖, principalmente dos animais e do meio ambiente, e, portanto, devido à
militância, carrega no conteúdo divulgado nos vídeos analisados aspectos
progressistas da representação política; Professora Jacqueline (PHS) ressalta a
experiência como educadora e pedagoga para simbolizar a mãe que ―educa‖,
utilizando-se desse ―combo‖ Mãe x Educação, principalmente, em um contexto
eleitoral; por fim, Professora Therezinha (Democratas) recorre ao estereótipo materno
para reforçar o quanto é experiente e apta para ―gerenciar‖, principalmente, tratando-se
de educação. É válido ressaltar que, de forma complementar ao discurso social, as
vereadoras da capital amazonense também recorreram a elementos sonoros e visuais,
que estimulam a subjetividade por se associarem ao universo ―feminino‖.
Na comparação dos vídeos analisados das vereadoras de Belém e os das
vereadoras de Manaus, que utilizam a tipologia Mãe, percebeu-se que os elementos
sonoros e visuais, relacionados à ―feminilidade‖, estão mais presentes nas postagens
das vereadoras de Manaus (que realizaram produções audiovisuais mais sofisticadas).
Os casos mais marcantes, ou seja, aqueles verbalizados em palavras ou na
vestimenta, por exemplo, são pontuais. É o contrário do observado nas parlamentares
de Belém, que apresentaram traços mais marcantes visualmente, tanto no uso de
palavras como ―empoderamento‖, ―minha amiga‖, ―fora da mulher‖, ―lugar de mulher
também é na política‖ etc., quanto na simbologia da roupa (florida, justa, cor de rosa) e
na aparência (batom vermelho, maquiagem pesada, cabelos escovados). As
parlamentares de Belém fizeram uso de elementos sonoros e visuais nos vídeos,
porém, não de forma tão enfática quanto a verbalizada. Além disso, as vereadoras de
Belém também foram as que, sob a tipologia Mãe, mostraram mais proximidade
corporal com a população, na participação de eventos com as comunidades e na
―ajuda‖ a esses grupos. Já as vereadoras de Manaus investiram mais na atuação
institucional, dentro da Câmara, defendendo maior diversidade de temas e
apresentando propostas e soluções. Outro aspecto é que as duas únicas ocorrências
do tema Religião foram associadas à figura de Mãe, e em vídeos das parlamentares
de Belém, que surgiram em eventos evangélicos: Blenda Quaresma e Simone
Kahwage.

296
São trazidos ainda os dados gerais sobre as relações de poder presentes nos
210 vídeos das vereadoras de Belém e de Manaus, postados nos perfis pessoais e/ou
fanpages Facebook, que revelaram 122 vídeos (58%) com a relação de poder central
sendo mobilizado power to; 47 de power over (22,3%); e 42 power with (20%). Já a
segunda relação de poder de maior recorrência é também a power to, com 36
ocorrências (17,1%); seguida de power over, com 5 (2,3%); e power with, com 1
(0,4%). Em termos comparativos entre as Câmaras Municipais, os resultados de 86
vídeos, apenas de Belém, indicaram que a principal relação de poder nesse grupo é:
power to, com 46 ocorrências (53,4%); seguida de power over, com 23 (26,7%); e
power with, com 17 (19,7%). Já para os 124 vídeos, apenas de Manaus, as
ocorrências são: power to, com 73; power with, 25 e power over, 24. Ao examinar os
dados gerais nos vídeos do Facebook para as sete vereadoras, constatou-se a relação
de poder power to como a principal associada à tipologia de Mãe, no tratamento da
temática central Cultura e Meio Ambiente, contexto bastante impulsionado por
Marinor Brito (PSOL) e Joana D’arc (PR), que se destacaram nas temáticas, e nessa
forma de poder por terem sido as que mais fizeram referência, e em maior quantidade
de vídeos. Na combinação de empoderamento com power with, observa-se mudança
no estereótipo, que passa a ser o de Profissional para discorrer sobre Meio
Ambiente. Já a segunda relação de poder de maior ocorrência, depois de power to,
foi a de power over, também movida pela tipologia Mãe só que, dessa vez, para
abordar o assunto Assistencialismo.
As relações apresentadas demonstram o caráter oscilante dos estereótipos
(imagens negativas ou positivas) dentro das relações de poder. Elas também são
fluidas devido ao constante reajustamento de posições dos sujeitos a depender do
recorte. Isto é, ainda que haja uma forma de poder que chame mais a atenção, em
determinada situação, ela não finaliza em si mesma. A depender dos dispositivos
(estereótipos, papeis sociais, etc.), dos códigos (linguísticos, culturais, institucionais e
práticos), da posição social dos indivíduos e dos diferentes níveis de autonomia, o
―episódio interacional‖ (BRAGA, 2017) é singular dentro da própria pluralidade. Como
já mencionado, a tipologia Mãe foi mobilizada em episódios diferentes e, apesar de ser
o mesmo estereótipo, provocou impressões distintas quando na abordagem de
temáticas divergentes. Foi opressora ao tratar de Assistencialismo e, em
contrapartida, revelou-se tipologia de empoderamento quando se alterou o foco para
Cultura e Meio Ambiente. Ademais, o olhar sob outra perspectiva demonstrou, ainda,
que a imagem materna também pôde ser deixada de lado, ainda que no mesmo
contexto de empoderamento, para seguir no debate do mesmo tema (Meio
Ambiente). Nesse caso, o estereótipo recorrido foi o da Profissional, que acabou por

297
operar junto à outra forma de poder: power with. Os vídeos em questão, boa parte,
são de autoria de Joana D’arc que, além de vereadora, é ativista, e liga-se ao aspecto
central da ―luta‖ de power to, e da ―ação coletiva‖ do power with.
Relembra-se a premissa de que toda a relação de dominação gera resistência.
Portanto, mais da metade das relações de power over presentes nos vídeos do grupo
de Belém, foi atravessada por power to, mudando o estereótipo principal para Mãe, e
enviesando o tema central, dessa vez, para Eleições. A demonstração, nesse cenário,
de que a dominação surgiu como sujeição das vereadoras Blenda Quaresma (MDB)
e Simone Kahwage (PR), no cenário político formal. Os vídeos, dentro desse
cruzamento de dados, eram referentes ao período de campanha eleitoral de ambas ao
Parlamento Municipal. Em todos, há concordância com acepções naturalizadas da
marginalização da mulher na esfera pública (CAL, 2016), pois são silenciadas, nas
próprias campanhas, por vozes masculinas. Porém, essa é uma perspectiva, já que o
fato de concorrerem a uma vaga de vereadora e perseguirem projetos de vida que
incluem a carreira política são formas de empoderamento. Em relação aos vídeos
analisados do Facebook das vereadoras de Manaus, a principal relação de poder foi
também power to, porém, as parlamentares utilizaram estereótipos diferentes das de
Belém. Mãe e Profissional tiveram o mesmo número de ocorrências para essa forma
de poder, e vieram acompanhadas de duas temáticas com o mesmo número de
registros: Meio Ambiente e Educação. Isso significa que elas mobilizaram
características maternas como a atenção, a escuta, a empatia e a sensibilidade, bem
como marcas profissionais, associadas à disposição para trabalhar, para aprender, e
que são incansáveis. Detalhando ainda mais o contexto, identificou-se, conforme com
as vereadoras de Belém, power to associado à power with, mas para isso, assumiu-
se apenas a tipologia Profissional, e manteve-se somente a temática Meio Ambiente.
É um reflexo, boa parte, em função dos vídeos de Joana D’arc (PR) que é militante da
causa animal e, em suas postagens, está sempre trabalhando, ativa, prestando contas,
fiscalizando serviços, visitando espaços diferentes, chamando os seguidores para
ajudarem. São aspectos relativos ao perfil profissional, ao empoderamento e à
solidariedade.
Acrescenta-se ainda que, em comparação com as vereadoras da capital
paraense, as da capital amazonense mostraram mais mobilidade na relação de
dominação, no que diz respeito ao reposicionamento de lugar como sujeito
agente/paciente, ou seja, mostraram-se tanto dominadas quanto dominantes,
discursivamente, nos vídeos do Facebook, de forma quantitativa; enquanto que o
grupo de Belém mostrou-se nas relações de poder power over x power over, de
forma mais frequente, incluso na posição de dominadas. Além disso, o estereótipo

298
Mãe foi o mais utilizado, seguindo o mesmo padrão identificado nas pesquisas de
Panke (2016), com os spots para campanhas eleitorais de candidatas à presidência,
na América Latina. Além disso, de maneira geral, apresentou-se como o estereótipo
mais flutuante nas relações de poder, indicando que Mãe, o ―principal papel da mulher
latino-americana‖ (PANKE, 2016, p.135), o mais sacralizado e um dos mais limitadores
identidade de gênero da mulher, pôde ser ressignificado na ―teia de relações nas
quais se inscrevem esses sujeitos‖ (CAL, 2016, p. 86). Isto, claro, no ambiente
comunicacional do Facebook.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo teve como objetivo compreender como as vereadoras de Belém e de
Manaus utilizam os estereótipos para ressignificar o exercício da atividade política por
meio dos vídeos postados em seus perfis pessoais e fanpages no Facebook. Os
estudos sobre representação política discursiva, teoria política feminista, relações de
poder, estereótipos, comunicação e mídias digitais nos auxiliaram no debate, e em
tensionamentos importantes para a compreensão da problemática. Destaque para o
estereótipo central, recorrido pelas parlamentares nas postagens do Facebook: o de
Mãe. Seis das sete vereadoras em questão tiveram os vídeos classificados na
tipologia e, em termos comparativos entre os grupos de Belém e de Manaus, o
estereótipo maternal também se sobrepôs sobre os demais de Guerreira e
Profissional. É um padrão já indicado por Panke (2016): Mãe é a ―imagem ideal‖ mais
comum entre as mulheres da América Latina. Coincidentemente, todas as vereadoras
a apresentarem o estereótipo de Mãe como tipologia principal dos vídeos analisados
apresentaram temas relacionados à área social.
Percebeu-se ainda a mobilidade existente na utilização dos estereótipos e seus
sentidos, ainda que se refiram à mesma tipologia. As parlamentares de Belém e de
Manaus acionaram, com frequência, o estereótipo Mãe, porém com nuances distintas.
As vereadoras da capital paraense mostraram, nos vídeos, mais proximidade corporal
com a população, na participação de eventos com as comunidades e na ―ajuda‖ a
esses grupos. Já as vereadoras de Manaus investiram mais na atuação institucional,
dentro da Câmara, defendendo maior diversidade de temas e apresentando propostas
e soluções. Mais instigante, ainda, foi observar a fluidez e o caráter oscilante dos
estereótipos (imagens negativas ou positivas), dentro das relações de poder, as
quais também são móveis, devido ao constante reajustamento de posições dos
sujeitos, nas próprias relações, e dos seus diferentes níveis de autonomia. São
aspectos que demonstram o ―episódio interacional‖ (BRAGA, 2017), entre grupos e
indivíduos, como sendo singular, ainda que, agindo dentro de contexto plural.

299
Os dados gerais da análise sobre as relações de poder presentes nos 210
vídeos das vereadoras de Belém e de Manaus, postados nos perfis pessoais e/ou
fanpages Facebook, revelaram que a relação de poder central, mobilizada por elas, foi
power to – é esse conceito, associado à empoderamento e resistência, que
destacamos, pois também foi central quando analisadas, isoladamente, as vereadoras
de Belém e de Manaus. O cruzamento com o estereótipo de Mãe foi o mais revelador.
Ainda que seja umas das imagens mais ―aprisionadoras‖ da mulher no ideal de
feminilidade, e que, em todos os casos analisados, teve em comum as emoções e o
afeito como centrais, é uma tipologia capaz de ser ressignificada, como ocorreu entre
as vereadoras dos dois municípios. Ao ser mobilizada, em episódios diferentes, Mãe
ora foi opressora, ao tratar de Assistencialismo; ora foi utilizada como ferramenta de
empoderamento; ora como mecanismo de solidariedade, quando alterava-se o foco
para temáticas como Cultura e Meio Ambiente, por exemplo.
Estudar as relações de poder e os estereótipos, sob diferentes nuances,
contribuiu para percebemos que as vereadoras, ainda que estejam em cargos
decisórios, e sejam consideradas mulheres que ―chegaram ao poder‖, ainda assim,
são passíveis de dominação, em um espaço considerado a última instância do poder
masculino (SARMENTO, 2017): a política formal. Porém, não se limitam a apenas um
contexto. Complexificar as relações de poder e o uso dos estereótipos, para além do
usual, move as mulheres do lugar de vítimas ou passivas e as identifica também como
sujeitos políticos capazes de praticar outras formas de poder: resistência,
empoderamento, solidariedade.

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301
CIDADANIA ALCANÇADA PELA TORNEIRA OU PELO
POÇO? RELATOS DE MULHERES MARAJOARAS E SUAS
DIFICULDADES PARA ACESSAR A ÁGUA EM BREVES-PA

https://doi.org/10.29327/527231.5-20

Ana Maria Smith Santos – UFPA/CUMB


Elizandra Gomes de Lima – UFPA/CUMB
RESUMO:

Este ensaio objetiva refletir sobre as dificuldades das mulheres marajoaras residentes no núcleo
urbano de Breves-PA de acessar a água compreendendo tal problema como parte do não
alcance de uma cidadania plena. É resultante do estudo realizado na tese de doutorado em
Antropologia Social de uma das autoras e do projeto de pesquisa PIBIC – Prodoutor. As
metodologias aplicadas foram a Etnografia e a História Oral, respectivamente, realizadas junto
às idosas participantes dos Centro de Referência e Assistência Social municipais nos anos de
2014 a 2018 e em 2019. O debate interpreta que o acesso à água é um direito humano e que as
mulheres de periferia são as que mais sofrem com a água de péssima qualidade em suas
residências. Foi possível identificar, nas pesquisas, as estratégias diárias para adquirir água e
realizar suas tarefas, constituindo-se numa problemática constante em suas vidas.

Palavras – Chave: cidadania, acesso à água, mulheres marajoaras

ABSTRACT:

This essay aims to reflect on the difficulties of Marajoaras women living in the urban core of
Breves-PA to access water understanding this problem as part of the failure to achieve full
citizenship. It is the result of a study carried out in the doctoral thesis in Social Anthropology
of one of the authors and the research project PIBIC - Prod Doctor. The applied
methodologies were Ethnography and Oral History, respectively, carried out with the elderly
participants of the municipal Reference and Social Assistance Center in the years 2014 to
2018 and 2019. The debate interprets that access to water is a human right and that
Outsourced women suffer the most from poor quality water in their homes. It was possible to
identify, in the research, the daily strategies to acquire water and perform their tasks,
constituting a constant problem in their lives.

Key words: citizenship, access to water, marajoaras women

Introdução:

302
O acesso à água no Marajó tem sido pauta de debate no meio acadêmico, porém
com poucas produções. Durante a tese e a execução do PIBIC/PRODOUTOR, iniciado em
agosto de 2019, nossas hipóteses foram confirmadas. Identificamos que o público mais
afetado na dificuldade em acessar a água de qualidade tem sido as mulheres. Neste artigo,
mostraremos as experiências de quatro idosas residentes no núcleo urbano de Breves-PA,
mesorregião do Marajó e suas pelejas na busca pela a água na região.
Os relatos colhidos trouxeram uma realidade vivenciada pelas depoentes que, por
vezes, estavam cheias de emoções, lembranças remotas de um cotidiano tão próximo de
muitos brevenses. Reviver suas estratégias para adquirir a água também permitiu conhecer
um pouco do passado na qual a cidade foi estruturada.
Para a escrita do artigo, tivemos como referências autores que nos possibilitaram
compreender a correlação entre a água e a mulher, bem como analisá-la observando que a
sua negação pode afetar diretamente pessoas de classe subalterna e de um determinado
gênero, como no caso as mulheres no usufruto da cidadania. São eles: Gallo e Navarro:
2018; Filho e Oliveira (S/D).
O texto está dividido em três itens, além desta introdução. O primeiro traz um diálogo
entre a questão de gênero e o debate a respeito da água para o alcance da cidadania. O
segundo apresenta um contexto de Breves e o Marajó em sua parte ocidental, o terceiro exibe
relatos e reflexões quanto às dificuldades das mulheres brevenses em acessar a água.

1. Gênero e o debate sobre a água e cidadania

Os direitos humanos e o debate da cidadania podem ser associados ao acesso às


políticas públicas. Um estudo desenvolvido pelo Instituto Trata Brasil (2016, p. 2) aponta que
ter acesso à água tratada e ao saneamento faz parte dos direitos humanos defendidos pelas
Nações Unidas já de longos tempos.
Ainda segundo este texto, o tema passou a ser associado ao debate de gênero e
teve como um marco a Assembleia da ONU em 2016. Assim: ―a igualdade de políticas
públicas requer que se considere as necessidades materiais e estratégicas das mulheres‖ o
que diz respeito à questão de cuidado com o seu ciclo menstrual e às responsabilidades
atribuídas às mulheres de ter que realizar as tarefas domésticas, além do zelo com os
membros da família.
O estudo, ao mesmo tempo, aponta que devido a essas responsabilidades com a
limpeza doméstica e, até mesmo, por suas ocupações que estejam atreladas aos serviços
domésticos as mulheres são mais propícias às contaminações por uma água com dejetos
humanos, por exemplo.
Gallo e Navarro (2018, p. 170) explicam as representações construídas ao longo da
história entre a mulher e a água, para isso cita Fortes Junior (2006) tecendo as seguintes

303
considerações: ―O autor discute que a associação entre o corpo e a água é tema de
formulações poéticas dentro da história da arte, quer seja como simbologia da água como
elemento fundamental para a vida‖. A título de exemplo aludem as figuras mitológicas
femininas ligadas à água como: a Iemanjá, as sereias e as ondinas.
Em seguida referem, os significados atribuídos na relação entre a mulher e a água não
se restringem aos papéis sociais: ―Por conseguinte, a água está presente na vida da mulher não
apenas (...) [nos]: afazeres domésticos, beleza ou parto (...) [elas] se completam, na
literatura, cultura, na religião e até na arte.‖ Continuam mostrando os avanços no debate de
gênero, entretanto existem dados da ONU em 2016 os quais apontam o tempo gasto pelas
meninas e mulheres na coleta deste recurso.
Assim, ―em 2016, durante a Semana Mundial da Água, em Estocolmo, na Suécia, o
Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) declarou que mulheres e meninas do
mundo gastaram 200 milhões de horas por dia coletando água‖ (Gallo e Navarro, 2018, p.
173), o que em determinados lugares pode ser perigoso devido ao percurso longo
caminhado quase diariamente.
A partir destes dados, reforça-se o debate sobre a íntima relação entre as necessidades
da família e a naturalização dada pela sociedade de que isto deve ser tarefa feminina.
Observando a realidade brasileira e seus déficits quanto ao acesso ao saneamento, os impactos
negativos podem ser mais sentidos pelo sexo feminino, incluindo as meninas, as adultas e as
idosas. Fato que será debatido com mais profundidade nos próximos itens.

2. O Território e Suas Contradições

Uma cidade cujos habitantes são pouco mais de 100.000, estimativa do IBGE para
2019. O acesso à cidade dá-se por meio hidroviário. A distância calculada em média é de 12
horas de navio de Belém-PA e 12 horas de Macapá-AP. Situa-se às margens do Rio
Parauaú, porém apesar da facilidade em acessar a água, nem todas as localidades dispõem
deste recurso de forma potável.
No quesito território e ambiente do IBGE, o município apresenta dados com marcas
de desamparo social: ―6.1% de domicílios com esgotamento sanitário adequado, 13.6% de
domicílios urbanos em vias públicas com arborização e 2.9% de domicílios urbanos em vias
públicas com urbanização adequada (presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-
fio).‖ (IBGE, 2019)
Breves é um município do arquipélago do Marajó (parte ocidental) cercado por água,
porém em boa parte, contraditoriamente, não é apropriada para o consumo. Existem áreas
no bairro centro e na periferia que não há possibilidade de se ter poço artesiano devido a

304
ferrugem presente na água. A companhia de abastecimento, por sua vez, não tem cumprido
com a obrigação de realizar a distribuição de água nos bairros mais afastados do centro.
Smith-Santos (2019, p. 26):

Para adquirir água, muitas famílias brevenses, principalmente as mulheres,


precisam agir logo cedo. Isso depende do bairro, pois atualmente há uma
1
certa regularidade de distribuição no bairro centro pela Companhia de
Saneamento do Pará - COSANPA (que não é de boa qualidade), porém em
áreas de periferia as famílias usam água fornecida por carro pipa (da
prefeitura e de um político influente na cidade), também utilizam água de
córregos poluídos, ou ainda, procuram casas em que os vizinhos lhes
concedem a retirada de seus poços artesianos.

Rocha (2017) possui um estudo contemporâneo a respeito do abastecimento de água em


Breves-PA, com base no relatório do Movimento pelo Direito ao Uso da Água – MDUA de 2015
revela as dificuldades diárias dos moradores locais: ―o abastecimento de água é restrito aos
moradores do bairro Centro e no bairro Riacho Doce, porém a distribuição de água ocorre em
período máximo de três horas por dia, e nos bairros mais afastados do centro este período
diminui menos de uma hora‖ (Rocha 2017, p. 81 apud Smith-Santos, 2019, p. 104).
Ainda de acordo com Rocha (2017, p. 75): ―apesar de existirem oito bairros na área
urbana de Breves, e existirem redes de água passando por todos eles, o sistema de
abastecimento de água de Breves atende apenas os bairros centro e riacho doce.‖ Segundo
a autora, a população dos demais bairros ―utiliza soluções próprias‖ para conseguirem água.
Smith- Santos (2019, p. 103) aponta:

No Plano Municipal de Assistência Social triênio 2013-2016, as informações


do abastecimento de água mostram a precariedade do serviço público: ―de
acordo com a companhia de Saneamento do Pará – COSANPA o número
de ligações ativas de água na cidade é de 5.423 e as clandestinas 1.800
aproximadamente‖ (SEMTRAS 2013: 14). Esse número significativo de
ligações clandestinas parece ser o resultado de uma não priorização do
serviço aos mais empobrecidos.

Durante a pesquisa de doutorado e a pesquisa do PIBIC na medida em que


realizávamos a incursão em campo nos bairros de periferia, era possível observar a
população realizando a tarefa de fazer as ligações clandestinas da rede pública. Pode-se ter
como explicação o fato de que as famílias vão crescendo ou se mudando e necessitam da
água, porém a Companhia de Saneamento do Pará (COSANPA) não supre essa
necessidade tão fundamental no dia a dia de uma família.
Foi possível identificar casos de bairros em que o abastecimento não satisfaz a
necessidade de todos. Fato relatado por algumas idosas residentes antigas do Riacho Doce

Dizemos certa regularidade por ser relativa a oferta de água, uma vez que no mês de setembro de 2018 o núcleo urbano
passou por um racionamento de água por aproximadamente cinco dias, pois ocorreu problemas com a bomba de distribuição
afetando a grande maioria dos bairros brevenses.

305
2
e da Cidade Nova que são obrigadas a buscar água em outras residências ou em escolas
com poço artesiano.

Já na pesquisa do PIBIC, em uma das visitas em campo percebemos um movimento


cedo da manhã mulheres idosas em frente às suas casas entendendo roupas ou varrendo
seus quintais. Parte do seu tempo diário está destinada à dedicar-se aos afazeres
domésticos e no cuidado com seus familiares, isso implica utilizar a água em diferentes
tarefas.
Nos bairros de Breves, atualmente, a distribuição de água pela Companhia de
Saneamento do Pará – COSANPA é bastante falha. Torna-se comum ao transitarmos pela
cidade vermos pessoas em motos ou carros de mão transportando galões de água para
consumo ou para venda, além dos carros pipas que abastecem alguns bairros de periferia.
Há também escolas municipais ou espaços públicos fornecedores de água aos
populares residentes em suas proximidades. Ao mesmo tempo, algumas famílias com mais
condições financeiras costumam deixar torneiras acessíveis aos seus vizinhos ou aqueles
que buscam tal recurso.
Os moradores de bairros em que são supostamente amparados pela Companhia de
abastecimento enfrentam duras rotinas em busca de armazenar este bem, como por
exemplo ter que acordar de madrugada para encher suas caixas d’água. Assim, em busca
de compreender melhor os problemas que as mulheres enfrentam, fizemos as entrevistas
em suas residências.

3. Água da Torneira ou do Poço: Relatos de Dificuldades e Exclusão

As idosas acompanhadas na pesquisa nos relataram fatos em suas vidas os quais


são marcas do descaso praticado há anos no município. Os brevenses, outrora jovens
recém chegados no núcleo urbano, foram crescendo com o encargo de uma rotina dura na
providência por este bem precioso.
Na pesquisa de tese, foi possível identificar casos de bairros em que o abastecimento
não satisfazia a necessidade de todos. Para este artigo, foram selecionadas três idosas
acompanhadas na elaboração da tese, acrescida de outra que foi entrevistada durante a
3
pesquisa PIBIC/PRODOUTOR 2019 . São elas: D. Vera de 71 anos, D. Jesus de 81, D. Rosa de
71 anos e D. Mara de 73 anos. São mulheres moradoras no núcleo urbano do município há mais
20 de anos, aproximadamente, todo esse tempo residindo em bairros periféricos.
Para compreendermos as dificuldades e desafios enfrentados ao longo da vida
dessas mulheres foi necessário ouvir e registrar seus relatos orais, a fim de analisar as

Bairros de periferia do município.


Este projeto está sob o título: ―A LUTA PELO ACESSO À ÁGUA EM BREVES MARAJÓ-PA: um
estudo pautado na história de mulheres idosas e suas narrativas‖.
306
formas de violação de direitos a qual estão submetidas e transcrever o que nos foi
transmitido por meio dos sentidos. Para Queiroz (1987,) ―(...) o relato oral se apresentava
como técnica útil para registrar o que ainda não se cristalizara em documentação escrita o
não-conservado, o que desapareceria se não fosse anotado; servia, pois, para captar o não-
explicito, quem sabe mesmo o indizível.‖
Em meio a esse processo, se faz necessário conhecer a história contada por elas,
sabendo que por intermédio desta obteremos conhecimento de como a dificuldade de
acesso a água se reatualizou ao longo dos anos. Assim, através das narrativas das
mulheres que contribuíram para este trabalho será possível evidenciar as formas de
exclusão a qual estão sujeitas.
A partir dos relatos, nas falas de uma das entrevistadas, verificamos as dificuldades
enfrentadas pelas mulheres marajoaras em obter acesso à água, conforme salienta D. Mara
quando se mudou definitivamente para o núcleo urbano teve os seguintes problemas:

(....) A gente pegava água nos baldes, era eu, meus filhos, meu primeiro
marido pegava água lá. Até inclusive que tem uma mulher que se chama
Maria para ela (...). A gente ia, era ela que morava lá numa casinha velinha
sabe igual a minha, aí a gente pegava água lá, com muitos meses depois aí
conseguiram passar a água (...) (D. Mara, 2019)‖

Antes de ter acesso por meio de sua vizinha aos serviços da Companhia de
Saneamento do Pará - COSANPA há aproximadamente uns dezessete anos, D. Mara e sua
família dependiam do que ela denomina por ―ajuda‖ de pessoas conhecidas para conseguir
água, haja vista estar em situação de extrema pobreza e não ter condições de pagar para
perfurar um poço. Continua relatando as suas pelejas e a de seus vizinhos: ― nós saíamos
três horas da madrugada, todo mundo tinha que ir, chegava lá a gente fazia três filas com os
baldes, tinha casa que davam dois bardes, de lá tinha que beber, lavar tua roupa, o dia todo
(D. Mara, 2019).‖
Outro fator a ser destacado é a quantidade que lhes era fornecida ser limitada a dois
baldes por pessoa, levando em consideração que a água é utilizada para várias funções
domésticas e consumíveis, logo é impossível suprir todas as necessidades humanas com
esta pequena quantia em litros. É importante evidenciar que além da disponibilidade de
água ser pequena e da dificuldade enfrentada em adquiri-la, há a possibilidade de ter riscos
relacionados à saúde quando não há uma política de planejamento da gestão municipal de
perfuração de poços ou mesmo de distribuição adequada de água aos munícipes.
A matéria on-line intitulada ―Estudo evidencia os impactos da falta de saneamento
básico na vida das mulheres brasileiras” publicada no site do Instituto Trata Brasil, explica-
se:

307
(...) a falta de acesso à água tratada e ao esgotamento sanitário é uma das
principais causas de incidência de doenças diarreicas, que levam as
mulheres a se afastarem 3,5 dias por ano, em média, de suas atividades
rotineiras. O afastamento por esses problemas de saúde afeta
principalmente o tempo destinado a descanso, lazer e atividades pessoais.
Meninas de até 14 anos são as maiores vítimas desse quadro, com índice
de afastamento por diarreia 76% maior que a média em outras idades
(132,5 casos de afastamento por mil mulheres contra 76). Já no caso da
mortalidade, o déficit de saneamento é mais perigoso para a mulher idosa,
que corresponderam a 73,7% das mortes entre as mulheres sem acesso ao
4
saneamento (TRATA BRASIL, S/D)

Sem água, uma família inteira pode sair prejudicada, entretanto, os impactos
visivelmente se apresentam nas mulheres, como mencionado anteriormente, em especial às
idosas, que possuem mais incidência a adoecer por conta da inexistência de saneamento
básico e o acesso precarizado a uma água que pode não ser potável, provocando patologias
que ocasionam a mortalidade senil.
Atualmente, D. Mara reside às margens do Igarapé do Bairro Cidade Nova II, no
município de Breves (PA), furo utilizado pelos moradores da localidade para retirar a água
que será armazenada para o consumo diário.

(...) A água entra suja no igarapé porque vem da margem do rio que é
pertinho. Todo mundo bebe daqui [sua família e vizinhos]. Muitos daqui
puxam pra terra a água daqui, tem cano aqui na beira dessa minha casa,
imensidade de cano que o pessoal puxa. Eles vêm, ligam a bomba aí nas
vizinhanças. E aí é a mesma coisa, aí que é a levantada tudo de água
[aponta para o igarapé] e aqueles que não podem botar bomba carregam na
cabeça quando enche [a maré], porque a gente só enche água aqui na
enchente, na vazante só se for pra lavar uma casa, botar num chiqueiro de
porco, porque ela vem descendo, essa água vem descendo, ela vem lá de
cima e esse igarapé que passa aqui ele faz fundo lá no cemitério. Aí então é
por isso que a gente só enche na enchente porque vem normal do rio aí a
gente enche tudo os baldes (..) (D. Mara, 2019).

As pessoas residentes em torno do Igarapé do bairro Cidade Nova II enfrentam tais


dificuldades, haja vista necessitarem da água para infinitas funções, inclusive para consumo.
Mulheres como a D. Mara realizam as técnicas que conhecem de tratamento dessa água em
casa. Apesar de possuir poucos locais de armazenamento, improvisa para não ficar sem água.

4 Cf: http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/pesquisa-mulher/release.pdf

308
(...) A dificuldade que eu tenho, porque eu tenho pouca vasilha, eu ainda
não comprei uma caixa pra mim depositar né, aí eu só coloco nos balde,
mas eu limpo eles e o balde que eu deposito coo água pra beber, pra fazer
comida tá separado, quando tá sentando que é pra fazer a alimentação do
outro lado. (...) (D. Mara, 2019).
Outro obstáculo enfrentado é a inexistência de bomba elétrica em sua residência,
haja vista ser necessário a realização do trabalho braçal, como D. Mara menciona nos
relatos abaixo ao perguntarmos sobre a forma utilizada para captação da água: ―Não tenho
bomba, eu encho no braço mermo. É no braço, eu encho lá os baldes e carrego pra dentro
de casa (Risos). É assim. (D. Mara., 2019)‖.
Em relação aos serviços prestados pela prefeitura municipal de Breves (PA) em seu
bairro, ela relata estar insatisfeita tanto com a situação da água, quanto com as demais
políticas públicas inacessíveis aonde reside: ―(...) Não, não tá bem completo, aí então é isso
minha filha que eu acho, né? Eu acho uma dificuldade nisso, pra nós que somos carentes
nós precisamos de tudo (...) (D. Mara, 2019)‖.
Em seguida relata as problemáticas que sua filha passa por residir no mesmo bairro,
mas num local mais afastado da beira do igarapé, consternada a interlocutora expressa-se:
―muitas das vezes, a minha filha, pra ela não morrer de sede ela compra um garrafão de
água. Quando não, ela se envergonha a ir lá naquela escola a pedir de lá (...). Então é por
isso que eu digo, será que esse prefeito não enxerga que as pessoas tão quase morrendo
de sede? (...) (D.Mara, 2019)‖.
No município, a situação da água é precária, não havendo estratégias municipais de
intervenção na não efetivação da política de saneamento básico e apesar de existirem os
serviços da COSANPA, porém a empresa não atende nem a metade da população que
reside na zona urbana do município. De acordo com informações do Relatório Final
nomeado de Levantamento da Rede de Atendimento à Criança e ao Adolescente em Breves
– PA (2013-2017) encaminhado ao Ministério Público do Pará em 2018.

A sede do município de Breves, segundo a Lei nº 2.195/2009, é composta por


sete bairros: Cidade Nova, Santa Cruz, Riacho Doce, Jardim Tropical, Parque
Universitário, Castanheira e Centro, e conforme os dados acima é possível
perceber que na área urbana apenas 9,4% dos domicílios possuíam
saneamento adequado, concentrando-se percentual elevado, 87,3% com
saneamento semi-adequado. Ainda segundo dados do Censo, apenas 42,9%
desta população tinham acesso à água potável em pelo menos um cômodo da
residência; com relação à rede de esgoto adequada (geral ou fossa séptica),
apenas 11,7% possuíam acesso ao serviço (MPPA, 2018: 12).

Os dados acima apontam que o município além de não efetivar a política de saneamento
básico de maneira adequada, 42,9% da população tinha acesso a água potável,

309
ou seja, a maioria da população não tem acesso a essa água, estando à margem da
sociedade, em situação de vulnerabilidade social e econômica. Sabendo que as principais
atingidas são as mulheres marajoaras, as quais estão mais expostas à desigualdade social
e a múltiplos problemas sociais.
Em um material disponibilizado on-line pelo BRK Ambiental e do Instituto Trata Brasil
com o titulo ―Mulheres e Saneamento‖, tem-se ricas informações a respeito da
desigualdade de gênero e o direito a água, como bem sintetizado no trecho a baixo:

As desigualdades de gênero ocorrem em todos os estágios da vida da


mulher, da sua infância à sua velhice. Por isso é tão importante dar atenção
às necessidades especiais das mulheres com relação ao direito
água e ao esgotamento sanitário nas diferentes fases de sua vida. É
fundamental observar que a desigualdade de gênero no acesso aos
serviços de água e de coleta de esgoto afeta também outros direitos
humanos, como o direito das mulheres à saúde, segurança, moradia
adequada, educação e alimentação.

Dessa forma, a mulher é brutalmente violada em relação a todos os âmbitos de sua


vida, pois o não acesso à água e as dificuldades enfrentadas para se ter esse bem
acarretam prejuízos às outras áreas da vida, pois o tempo em que ela poderia estar
estudando, trabalhando, saudável, é ocupado com a busca e aborrecimentos por algo que
deveria ser fornecido mediante a efetivação da política de saneamento básico.
possível notar que os conhecimentos ribeirinhos da moradora lhe auxiliam no que
ela denomina de ―prática da água‖, momentos exatos e adequados em que ela pode
armazenar a água em seu momento de enchente. Essa é uma das estratégias utilizadas ao
consumir a água do igarapé, como também as demais mencionadas abaixo:

(...) Quando ela enche é mais quem fica tomando banho, a criançada vem
tomar banho aí, só também que nós fazemos isso, nós não aceitamos
sanitários na beira do igarapé, nós não aceitamos jogar muito lixo no
igarapé, [Os vizinhos já tem um acordo?] Já toda a vizinhança. Quando
começam a jogar saca no rio, a gente sai para procurar as pessoas, aí pra
reclamar e chamar a polícia, os conselheiros pra ir lá pra eles ajuntarem, ou
jogar pra terra, queimar, ou então juntar e jogar no carro do lixo. Por causa
que a água aqui a gente pertence aqui pra beber, e a gente toma também, a
gente trata e toma também (D. Mara, 2019).

Desse modo, é notório no relato da entrevistada o sentimento de pertencimento


comunitário, em que os moradores possuem um acordo coletivo de proteger e preservar a
água do igarapé, um bem comum usufruído por todos. Como também é possível identificar o
quanto estas águas são importantes para a vida local.

310
D. Vera, uma senhora de 66 anos residente no bairro Riacho Doce nos concedeu
5
suas entrevistas ,. A rede de abastecimento chega até a sua casa, porém não existe uma
regularidade nos horários de fornecimento, bem como, essa água é de péssima qualidade.
Assim, conta com a boa vontade de vizinhos ou conhecidos donos de poços artesianos.
Seus filhos já adultos, ao se casarem procuraram morar em locais mais estratégicos
a fim de evitar uma dura rotina. Em seu depoimento, citou receber conselhos de uma filha
para que busque se mudar para outro bairro devido a necessidade diária de água, contudo
não pretende sair do bairro cujas raízes foram criadas ao longo dos anos residindo lá.
Justifica-se com a seguinte frase: ―Eu não sei o que eu vou encontrar em outro lugar‖
(D. Vera, 2018). Parece estar descrente de que em outros bairros estejam melhores que
onde reside. O problema de abastecimento da água em Breves vem de longas datas, a este
respeito Smith – Santos cita Dione Leão (2018):

Com relação ao fornecimento de água, em 1954, documentos da Câmara


Municipal de Breves apontaram para um preliminar levantamento
topográfico para a construção do abastecimento de água encanada na
cidade, pois até então a água consumida pela população para beber e
cozinhar vinha, na sua maioria, de um poço existente no hospital da cidade,
que cedia diariamente para os moradores porções (latas) de água. (Leão,
2018, p. 72-73 apud Smith-Santos, 2019, p. 104).

A partir do descrito pela autora, evidencia-se que a dura rotina encarada pelos
moradores foi constituída na história do município. O trecho extraído de sua obra mostra
também o costume forçado aos munícipes em conseguir com o fracionamento da água em
seu cotidiano. E assim continua:

Parte da população amontoava-se em moradias precárias, em cima de


terrenos alagadiços no centro da cidade e nas periferias, praticamente sem
água tratada, sem condições sanitárias satisfatórias, ficavam vulneráveis às
contaminações e à possibilidade de expansão de epidemias (Leão, 2018, p.
72-73 apud Smith-Santos, 2019, p. 104).

De certo que ocorreram melhoras no saneamento em solo brevense desde os anos


50, porém essas melhoras não são suficientes para atingir todos os moradores. Outro relato
de D. Vera mostra como era a paisagem do bairro Riacho doce nos idos de sua mudança
6
para o núcleo urbano: ―Nesse tempo do Gervásio , eles retiraram em massa (...) era só um
caminhozinho, só Igapó, um bocado de mulheres tirou terreno‖ (D. Vera, 2016 apud Smith-
Santos, 2019, p. 108).

No contexto da elaboração da tese de uma das autoras.


Gervásio Bandeira Ferreira exerceu o cargo de prefeito de 1996 a 2000 e era filiado ao PMDB, atual MDB.

311
A interlocutora compreende minimamente a correlação entre a ausência de
planejamento e os fatores que levaram seus vizinhos a se mudarem do bairro em que
presenciou seu crescimento. Assim relata:

Muitos se foram (...). Se mudam e vão embora, trocaram muitos, aqueles


vizinhos de lá, só nós que seguramos lá, por causa da água, mais por causa
da água [se mudaram] (...) Tem tempo que dá, passei muito tempo pegando
água e nunca que dava água, pois receberam o papel que não pagou e não
vinha, agora que começou a dar de novo. (D. Vera, 2016 apud Smith-
Santos, 2019, p. 108)

Tanto na etnografia realizada na pesquisa de tese, quanto na pesquisa do projeto


PRODOUTOR, identificamos que a necessidade da água pode contribuir para fortalecer os laços
comunitários entre os moradores, quando as famílias com mais dificuldades conseguem ser
amparadas por outras que dispõem de poço artesiano, tanto por razões econômica quanto pelo
problema no solo de seus bairros ao serem inapropriados para a perfuração de poços.
Em contrapartida, ouvimos casos de rivalidades, algumas idosas relataram situações
de precisar solicitar água para pessoas não muito amistosas. A exemplo de D. Jesus,
residente há mais de 30 anos no núcleo urbano de Breves, no bairro Cidade Nova.

Quando vim para cá, para a rua Gurupá era tudo feio, tudo cheio de
serragem, só ponte. Não tinha muita casa como tem agora, com o tempo foi
melhorando, né? Quem viu antes e quem vê agora, né? Aqui era poço
mesmo para pegar água, mas não era da minha casa. Quando a minha mãe
morava aqui, eu precisava trabalhar, a gente se acordava três horas, quatro
da manhã, se levantava, eu pegava umas vasilhas que tinha e ia encher
água apara deixar para a mamãe, porque se deixasse para de manhã eles
trancavam o poço. Aí quando foi um dia eu disse para mim mesma: ―eu
ainda vou fazer um poço para mim para acabar com esse sofrimento‖ (D.
Jesus, 2018 apud Smith-Santos, 2019, p. 113).

Na sua última entrevista, fez questão de mostrar seu poço conhecido como de ―boca
aberta’. Ela usa bomba d’água para encher sua caixa, porém relatou não servir para beber e
fazer comida. Quando consumia a água de seu poço, sofria de crises intestinais, por essa
razão passou a buscar água em uma escola localizada em frente à sua casa.
Outra idosa acompanhada na etnografia foi D. Rosa, quando indagamos a respeito do
acesso à água, nos explicou indignada, comparando o tempo em que está na cidade e a
condição que ainda se encontra a esse respeito. Para ela, só conseguiu ter acesso quando
buscou, por conta própria, adquirir a tubulação para ligar a rede de distribuição até a sua
residência. A narrativa a seguir aponta outro problema vivenciado com a falta de saneamento:

a nossa casinha era velha, velha. (...) Era só eu com o velho e o outro filho,
quando dava água lançante vinha tudo no fundo, peixinho chega ficava

312
7
boiando no jirau . Aí nós pelejamos, pelejamos: ―vamos embora velho,
consertar nossa casa!‖. Compramos telha, compramos tábua, o velho ainda
8
enxergava , a telha aproveitamos, compramos tudo, daí mandei fazer por
cima da casa velha. Daí levantamos a casa, agora não enche mais, só lá no
quintal. (D. Rosa, 2018 apud Smith-Santos, 2019, p. 114)

Considerou este feito realizado junto com seu esposo como uma vitória com a
melhoria da vida. Queixa-se apenas do lixo que seu próprio filho costuma jogar na água,
pois reside ao seu lado e D. Rosa se vê obrigada a limpar o quintal no período não chuvoso.
As diferentes narrativas nos remetem que os problemas de abastecimento de água
não se restringem à região marajoara. Luciana Fernandez (2018) em seu artigo: ―Água: um
olhar feminino‖, alude as diversas exclusões pelas quais mulheres da América Latina
sofrem, o que levou as bolivianas e as mexicanas a iniciarem guerras em seus respectivos
países em prol da água. Na Bolívia a insurreição ficou conhecida como: ―Guerra del Agua de
Cochabamba‖, já no México o movimento foi liderado pelo: ―Exército Zapatista de Mulheres
em Defensa da Água‖.
Para a autora, o protagonismo dessas mulheres impulsionou outras mulheres latino
americanas a seguir na luta pela água. Assim, foi registrado na Agenda 21 Global (1992) em
seu capítulo 18. ―O manejo dos Recursos Hídricos baseia-se na consciência da água como
parte do ecossistema, recurso natural e bem econômico e social‖ (Agenda 21 Global, 1992
apud Fernandez, 2018, p. 191) Isto significa o olhar que as gestões devem ter quanto a este
recurso tão precioso à população.

4. Considerações Finais

Os relatos orais e a experiência etnográfica nos possibilitaram compreender parte do


problema enfrentado pelas mulheres marajoaras. O exercício desenvolvido permitiu às
pesquisadoras visualizarem a importância na promoção de estudos os quais possam
desvelar a realidade local brevense.
Nos esforçamos em reproduzir as narrativas das idosas e tentamos respeitar seus
entendimentos e considerações quanto ao seu cotidiano, suas vivências e impressões sobre
seus problemas sociais. Tais narrativas são reveladoras do descaso histórico pelos quais os
moradores locais enfrentam, ao mesmo tempo, nos mostram que pouco tem sido feito pelos
gestores municipais em ações de políticas públicas.

Jirau significa: ―estrado de grade de varas sobre forquilhas cravadas no chão e que serve para guardar utensílios‖.
www.dicio.com.br.
Atualmente seu marido é deficiente visual.

313
O título do ensaio traz uma pergunta inicial: ―cidadania alcançada pela torneira ou pelo
poço?‖ A intenção do questionamento foi de podermos refletir sobre que tipo de cidadania a
sociedade marajoara está com dificuldades em alcançar? Diante do observado, foi possível
constatar que este bem fundamental para o cotidiano acaba sendo um dos empecilhos para o
alcance pleno da cidadania uma vez que, mesmo pela torneira (rede de abastecimento) ou pelo
poço, há inúmeras dificuldades para os brevenses da classe subalterna adquirirem.
O texto não tem a intenção de dar por encerrada a discussão, pelo contrário, inicia
um debate necessário que precisa de aprofundamento sobre o que ocorre em solo
brevense. Com o que foi observado e narrado, identificamos que as mulheres são alvo desta
exclusão pela íntima relação que possui com a água desde a tenra idade até a sua velhice.
Suas queixas são fundadas nos longos anos vividos na mesma peleja.
A cidadania, portanto, precisa ser ampla, compreende-se que o acesso básico de
suas necessidades inclui também conseguir usufruir todos os dias de água potável, algo que
pelos seus relatos, não é fácil adquirir. Todas as idosas presentes nessa pesquisa
expressam o desejo por uma água que poderia ser um dos meios para contribuir com
melhorias de suas vidas e de suas famílias. Caberia aos gestores estenderem suas ações
em prol de facilitar a vida destas cidadãs ansiosas por uma vida menos pesada.

5. Referências:

FERNANDEZ, Luciana. Água: um olhar Feminino. In: Labor & Engenho, Campinas [SP]
Brasil, v.12 n.2, p.182-196, abr./jun. 2018. Disponível em: <DOI:
http//dx.doi.org/10.20396/labore.v12i2.8652742. > Acesso em: 08 de Nov. de 2019.

GALLO, Nathalie Cristine e NAVARRO, Anna Carolina L. Mulher e Água: definições e novas
representações. In: Labor & Engenho, Campinas [SP] Brasil, v.12 n.2, p.166-181, abr./jun.
2018. Disponível em: <DOI: http//dx.doi.org/10.20396/labore.v12i2.8652742. > 08 de Nov. de
2019.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Breves: Panorama.


Disponível em:< https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/breves/panorama. Acesso em: 15 Nov.
2019.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos Orais: ―Do indizível ao Dizível‖. Centro de
Estudos Rurais e Urbano. Departamento de Ciências Sociais. F.F.L.C.H. – U.S.P:
1987.Fonte:<http://www.sbsociologia.com.br/portal/index.php?option=com_docman&task=do
c_download&gid=38>. Acesso em 09 de Nov. 2019.

MINISTÉRIO PÚBLICO. Levantamento da Rede de Atendimento à Criança e ao


Adolescente em Breves – PA (2013/2017): relatório final / Brenda Corrêa Lima Ayan,
Danielly Laurentino Damásio, Mônica Rei Moreira Freire. Belém: Ministério Público do
Estado do Pará. Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude, 2018. Disponível

314
em:<https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/14/Relatorio%20de%20Breves.p df>.
Acesso em 09 de Nov. 2019.

FILHO, Rubens. OLIVEIRA, Gabriela. Estudo evidencia os impactos da falta de


saneamento básico na vida das mulheres brasileiras. Trata Brasil: Saneamento e
Saúde/SD. Disponível em:<http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/pesquisa-
mulher/release.pdf>. Acesso em 09 de Nov. 2019

BRK AMBIENTAL e INSTITUTO TRATA BRASIL/SD. Mulheres e Saneamento. Disponível


em:<https://mulheresesaneamento.com/>. Acesso em 10 de Nov. 2019

SMITH – SANTOS. Mulheres Idosas Entre Bordas e Agências: Migração, Política Pública de
Assistência Social e Sociabilidade (Marajó-PA). Tese de Doutorado. Universidade
Federal do Pará. Instituto de Filosofia e Humanas. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia, 2019.

315
PEC DAS DOMÉSTICAS NO JORNALISMO PARAENSE: tensões entre
1
gênero e classe na ampliação dos direitos das trabalhadoras
2
Maria Luiza Lopes Goes, UFPA
3
https://doi.org/10.29327/527231.5-21 Thaís Cavalcante Rezende, UFPA
4
Danila Cal, UFPA

RESUMO
Analisa-se como são construídas no jornalismo paraense as representações e os lugares de
trabalhadoras domésticas, antes e após a promulgação da PEC das Domésticas (66/2012). A
ampliação de direitos gerou tensões, já que o trabalho doméstico é marcado pela subalternidade
e atravessado por questões de gênero, raça e classe (DAVIS, 2016; CAL, 2016; CARNEIRO;
ROCHA, 2009). Consideramos que o jornalismo participa da construção social da realidade e é
um ator fundamental no debate público (CARVALHO, 2009; MAIA, 2008). Por meio de análise
de conteúdo, examinamos as matérias jornalísticas sobre a PEC veiculadas no Diário do Pará e
O Liberal de 2010 (início da tramitação) a 2016 (regulamentação). Concluímos que os jornais se
preocuparam mais em manter os patrões informados a respeito dos novos gastos oriundos da
PEC do que em dialogar e produzir conteúdo que contemple a trabalhadora doméstica. Palavras-
chaves: trabalho doméstico, comunicação, gênero, raça, classe.

ABSTRACT
It analyzes how the representations and the places of domestic workers are built in paraense
journalism, before and after the promulgation of the Household PEC (66/2012). The expansion
of rights created tensions, as domestic work is marked by subordination and crossed by issues of
gender, race and class (DAVIS, 2016; CAL, 2016; CARNEIRO; ROCHA, 2009). We consider
that journalism participates in the social construction of reality and is a fundamental actor in the
public debate (CARVALHO, 2009; MAIA, 2008). Through content analysis, we examined the
journalistic articles about PEC published in the Diário do Pará and O Liberal 2010 (beginning of
processing) to 2016 (regulation). We conclude that the newspapers were more concerned with
keeping their employers informed about the new expenses coming from the PEC than in
dialoguing and producing content that contemplates the domestic worker. Keywords: domestic
work, communication, gender, race, class.
Versão preliminar do texto para discussão durante o evento.
Graduanda em Ciências Sociais, bolsista PIBIC-CNPq do Projeto “Mídia, Debate Público e Negociação
de Sentidos sobre o Trabalho Doméstico”, financiado pelo CNPq (Edital Universal 2016), integrante do
COMPOA – Grupo de Pesquisa Comunicação, Política e Amazônia. E-mail: malulopesgoes@gmail.com

Jornalista, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da UFPA e integrante


do Projeto “Mídia, Debate Público e Negociação de Sentidos sobre o Trabalho Doméstico”, financiado pelo CNPq
(Edital Universal 2016), integrante do COMPOA. E-mail: thaiscrezende@gmail.com

Doutora em Comunicação Social (UFMG), Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e


Amazônia da UFPA e coordenadora do Projeto “Mídia, Debate Público e Negociação de Sentidos sobre o Trabalho
Doméstico”, financiado pelo CNPq (Edital Universal 2016), uma das líderes do
COMPOA. E-mail: danilagentilcal23@gmail.com

316
INTRODUÇÃO

Apenas a partir de abril de 2013, por meio da Emenda Constitucional nº 72, os


trabalhadores domésticos tiveram, no Brasil, a garantia legal de direitos trabalhistas
básicos, como jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais, garantia de
um salário mínimo, férias remuneradas de 30 dias, entre outros. Por meio da Lei
Complementar 150, promulgada em junho de 2015, outros direitos foram assegurados
como, por exemplo, adicional noturno, obrigatoriedade de recolhimento do FGTS,
seguro-desemprego, multa no caso de rescisão sem justa causa. Tanto a discussão
sobre a aprovação da PEC quanto a implementação da lei geraram repercussão social
e midiática, sobretudo, a respeito das mudanças nas relações trabalhistas e, de certo
modo, sobre o lugar que as empregadas domésticas ocupam nas famílias no cenário
contemporâneo.
Em pesquisa anterior (CAL, 2016), investigamos como ocorreu ao longo dos
anos 2000 o debate público a respeito de uma forma específica de trabalho doméstico:
o infantil, realizado por crianças e adolescentes e combatido por organizações sociais.
Naquele momento, descobrimos que o lugar de fala nos media atribuído a
trabalhadoras e ex-trabalhadoras infantis domésticas é prioritariamente marcado pela
subordinação, vitimização e dominação (CAL, 2016). Essa construção simbólica
repercutia na configuração política do trabalho infantil doméstico, encabeçada por
organizações não-governamentais e organismos internacionais, ―representantes auto-
autorizados‖, portanto, que atuavam ―em nome de interesses e valores que acreditam
que devem ter um impacto‖ ainda que sem autorização prévia dos concernidos
(URBINATI; WARREN, 2008, p. 243).
Nesse sentido, considerando o potencial dos media para generalização de
processos de debate público e de pré-estruturação da esfera pública (HABERMAS,
2003; MAIA, 2008), a discussão ampliada sobre o trabalho infantil doméstico como um
problema público acabou por marginalizar a capacidade de atuação política das
próprias afetadas na definição de quais posturas e políticas deveriam ser adotadas em
relação ao trabalho infantil doméstico. E essa situação foi influenciada pela percepção
de que elas estavam sujeitas a um processo de dominação que não as permitia ter
clareza sobre o que estava acontecendo no trabalho infantil doméstico. A dimensão
crítica naquele ambiente coube aos especialistas e atores sociais. Essas conclusões
dizem respeito, como dissemos, a um tipo específico de trabalho doméstico que é o
realizado por crianças e adolescentes. Contudo, as investigações que empreendemos
anteriormente contribuem para construção de um novo problema de pesquisa a partir

317
do cenário de ampliação dos direitos dos trabalhadores domésticos adultos: como são
construídos no cenário jornalístico-midiático as representações e os lugares das
trabalhadoras domésticas?
Apesar de significar um avanço acerca do modo como domésticas são vistas
pela nossa sociedade, a equiparação de direitos é acompanhada por uma série de
exigências, de tal forma que cumprir rigorosamente o contrato pode desfavorecer as
domésticas. Como já questionava Brites em 2003, ―até que ponto pode uma
empregada doméstica cumprir aviso prévio de 30 dias, ou pagá-lo, quando a natureza
do serviço as coloca numa relação tão direta com seus patrões? (...) Quem define as
noções de bom cumprimento das tarefas domésticas estipulado implicitamente no
contrato?‖ (BRITES, 2003, p. 77). Além disso, como essa nova conjectura interfere na
construção de hierarquias sociais de valor? Carneiro e Rocha (2009), ao analisarem a
história de uma doméstica chamada Leninha, reconhecem a conquista de alguns
avanços do ponto de vista dos direitos, entretanto, afirmam que há um silenciamento
acadêmico e social em relação aos dramas e aflições aos quais essas mulheres são
submetidas. Segundo os autores, esse silêncio repercute até mesmo entre as próprias
envolvidas, que parecem ―não articular com clareza e consequência a sua própria
condição, pelo simples fato de que essa condição encerra uma realidade intragável
(...). Nenhum ser humano suportaria viver da verdade de tamanho desvalor social
objetivo‖ (CARNEIRO; ROCHA, 2009, p. 142).
Em termos geográficos, situamos nossa pesquisa na Região Norte do país,
especificamente Belém, capital do Pará. Essa região enfrenta sérios desafios
relacionados ao trabalho doméstico, como, por exemplo, a proporção de trabalhadoras
domésticas que não possuem carteira assinada, o salário médio menor que o mínimo e
do que a média nacional. Segundo Pinheiro, Fontoura e Pedrosa (2012), a partir de
dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, ―na comparação
regional, impressionam as desigualdades verificadas e as situações de extrema
exclusão e precarização do emprego doméstico vivenciado por estas mulheres‖
(PINHEIRO; FONTOURA; PEDROSA, 2012, p. 102). De acordo com as autoras, no
Sul e no Sudeste a taxa trabalhadores domésticos com carteira assinada era de 32% e
33% respectivamente. No Nordeste era de 13,8% e no Norte 12,5%. ―Isto significa que
apenas 12 em cada 100 trabalhadoras nortistas são registradas e contam com a
proteção do Estado frente a situações de vulnerabilidade permanente ou temporária‖
(FONTOURA; PEDROSA, 2012, p. 102). O trabalho doméstico, portanto, apresenta
feições distintas de acordo com a região do país onde é realizado e, por isso, voltamos

318
nossa investigação para esse contexto regional onde há uma forte violação dos
direitos da trabalhadora doméstica.
Optamos pela análise de jornais impressos locais para apreender o processo
debate público sobre a PEC das Domésticas num contexto regional desafiador para as
trabalhadoras domésticas, como citado na primeira seção. De acordo com Habermas
(2009), o jornalismo é a espinha dorsal da democracia pela possibilidade de publicizar
vozes e argumentos. Consideramos que o perfil argumentativo do jornalismo impresso
proporcionará uma apreensão mais ampla do debate público a respeito do tema em tela.
Os jornais investigados no período de 2010, início da tramitação da PEC, a 2016,
um ano após a regulamentação da lei, foram Diário do Pará e O Liberal. O Liberal é mais
antigo – remonta ao ano de 1940 –, porém está sob o comando da família Maiorana, que o
administra desde 1966. Passou por um grande processo de modernização e havia se
tornado liderança absoluta no jornalismo diário paraense, razão pela qual exercia forte
influência na sociedade e nas elites paraenses (Veloso, 2008). O jornal compõe, junto com
emissoras de rádio, emissora de TV (filiada à Rede Globo), um jornal popular, um portal de
notícias na internet e empresa de TV a cabo as Organizações Rômulo Maiorana. O Diário
do Pará foi criado em 1982 pela família do ex-governador do Pará e atual senador Jader
Barbalho (PMDB). Faz parte também de um conglomerado midiático que reúne portal de
notícias na internet, emissoras de rádio e uma de TV (filiada à Rede Bandeirantes). Nos
anos 2000, o Diário do Pará conseguiu alcançar a liderança de O Liberal, segundo
pesquisa do Ibope (VELOSO, 2008).
Este artigo apresenta resultados ainda preliminares e se vincula a outra de
maior fôlego, o projeto ―Mídia, Debate Público e Negociação de Sentidos sobre o
Trabalho Doméstico‖, financiado pelo CNPq (Edital Universal 2016).

MÍDIA E DEBATE PÚBLICO


Para o Habermas (2003), somente por meio do debate de ideias e exposição
de pontos de vista é possível chegar a um entendimento mútuo. O autor compara a
esfera pública a uma caixa de ressonância, em que os problemas que chegam até ela
são amplificados pela comunicação. O debate sobre a PEC das Domésticas discutiu
como ficaram os direitos das trabalhadoras e os desdobramentos sobre a vida de
patrões e trabalhadores. E essa visibilidade do tema colocado em debate foi
fundamental para que o assunto ganhasse status de "interesse público" e pudesse
formar opiniões públicas e vontade política sobre o assunto.
Nesse sentido, o debate nos media é fundamental para tornar públicos assuntos
que antes eram tidos como privados. Em termos ideais, o perfil argumentativo do

319
jornalismo impresso pode proporcionar uma apreensão mais ampla do debate público
a respeito do trabalho doméstico e da PEC das Domésticas, pois tem a capacidade de
dialogar de diferentes formas com o público. Na sociedade moderna, o jornalismo é
uma ferramenta fundamental para a interação humana e assume papel essencial de
―ator social‖ quando dá conhecimento, a públicos diversificados, sobre temas variados,
de interesses múltiplos por meio de seus veículos de comunicação, sejam eles
falados, impressos ou informatizados (CARVALHO, 2009).

O jornalismo, propõe-nos Adelmo Genro Filho (1987), é uma das


estratégias mais importantes que as sociedades modernas possuem
para dar a conhecer, a elas mesmas, o que em seu interior acontece,
nas mais diversas áreas das atividades humanossociais. Nessa
perspectiva, a cobertura jornalística é reveladora das contradições
sociais, dos jogos de poder, da diversidade de visões de mundo
(culturais, científicas, comportamentais, éticas, morais, religiosas e
tantas outras) e dos múltiplos interesses em disputa (CARVALHO,
2009, p.1).

Carvalho destaca ainda o que chama de ―contradições‖ do jornalismo e


considera que o é um campo social e uma prática marcados por contradições,
silêncios, recortes da realidade social (CARVALHO, 2009). Essa situação pode ser
observada quando, por exemplo, uma reportagem não considera as diferentes partes
envolvidas no assunto, mostrando apenas uma das versões de uma história. A
exemplo da PEC das Domésticas, o esperado seria um jornalista ouvir tanto patrões
como empregados em sua reportagem, mas, muitas vezes pelo perfil político do
veículo de comunicação, esse tipo de conduta não é executada, o que pode
comprometer o processo de debate público sobre o assunto.
O jornalismo, em geral, tem o poder de influenciar as pessoas a discutirem
determinado assunto ou mesmo persuadir nas tomadas de decisões. E os chamados
―operadores jornalísticos‖ (repórteres, editores, etc.) é quem vão decidir o que vai ser
publicado e, consequentemente, ganhar as arenas de debates sobre o que é melhor
para milhares de pessoas.
Para Carvalho, o papel do jornalismo vai muito além de um mero registro da
realidade, o jornalismo participa da construção social da realidade e é um ator social
de grande importância (CARVALHO, 2009). A forma como um texto é escrito, a
posição dele na página, os títulos, legendas, cores, são escolhas estratégicas que
dependem dos profissionais que fazem o jornalismo, que por sua vez têm seus
repertórios próprios ou da linha editorial.

320
Outro aspecto importante que deve ser levado em consideração no jornalismo
são os ―enquadramentos‖ - análise de como cada sujeito se envolve em uma situação
- em como o jornalismo se relaciona com os atores sociais.

Narrar um acontecimento transformado em notícia, dando-lhe um


enquadramento, consiste, à primeira vista, na seleção de aspectos
que deem à narrativa sobre ele inteligibilidade, a partir de estruturas
cognitivas e quadros de referência que conduzirão a uma
determinada visão, dentre uma série de outras possíveis,
relativamente ao que é apresentado ao fruidor da informação daí
resultante. (CARVALHO, 2009, p.5).

Portanto, analisar o modo com os media tematizam publicamente uma questão,


como no nosso caso a da ampliação dos direitos dos trabalhadores domésticos, dizem
dos modos de legitimação da nova norma em nossa sociedade. Importante ressaltar
elementos sociais que atuam também no processo de invisibilização das
desigualdades relacionadas ao trabalho doméstico e influenciam, portanto, o modo
como os novos direitos dessas trabalhadoras – no feminino, já que é uma atividade em
que as mulheres representam a grande maioria dos trabalhadores – são apresentados
e discutidos na sociedade brasileira.
Fatores como gênero e raça contribuem para que a situação das trabalhadoras
domésticas seja precarizada e seus direitos tensionados. De acordo com pesquisa do
IPEA, em 2014, cerca de 5,9 milhões de mulheres eram trabalhadoras domésticas no
país. Sendo que, entre as mulheres negras, é a principal ocupação. No caso das
mulheres brancas, as principais ocupações são o comércio e a indústria (IPEA, 2016).
Além disso, há lógica de uma divisão sexual do trabalho (OKIN, 2008; BIROLI, 2013)
alimenta a ambiguidade em torno do exercício por mulheres do trabalho doméstico
remunerado.
A partir desse contexto, então, os media tem o potencial de contribuir para
cristalização ou questionamentos de práticas sociais enraizadas social e culturalmente.
Maia (2012) afirma ainda que os media são responsáveis por boa parte das
informações e dos discursos que alimentam contextos comunicativos. Segundo a
autora, as audiências refletem acerca dos materiais dos media e os utilizam em
processos de discussão (MAIA, 2012). ―Os media criam novas oportunidades, novas
opções e novas arenas para que os sujeitos produzam sentido de si mesmos, da
relação com os outros, o que frequentemente se entrelaça com as instituições e os
padrões culturais arraigados‖ (MAIA, 2008, p. 209, grifo no original).

321
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para realização desta pesquisa, utilizamos o método da análise de conteúdo


(BARDIN, 2011), que consiste na sintetização e compreensão, especificamente neste
caso, do conteúdo jornalístico encontrado nos jornais de maior circulação do estado do
Pará, a respeito do trabalho doméstico e da PEC das Domésticas, implementada
durante o governo Dilma.
Selecionamos para análise as matérias jornalísticas produzidas entre 2010 e
2016 e publicadas nos jornais O Liberal e Diário do Pará. Não foi possível, contudo,
trabalhamos unicamente com a totalidade de matérias sobre trabalho doméstico
publicadas nesse período porque ambos os jornais não possuem mecanismos de
busca por palavras-chaves nas versões digitais dos jornais impressos. Desse modo,
criar uma forma de selecionar as edições a serem analisadas de acordo com nossos
objetivos. Assim, optamos por construir uma amostra de edições a partir de datas
importantes a respeito da tramitação da legislação estudada, de aspectos de sua
regulamentação e também considerando dias comemorativos ao trabalho doméstico.
Coletamos matérias ainda do dia anterior e posterior a cada uma dessas datas de
referência, que foram organizadas em uma tabela.
De modo complementar, fizemos uma busca através do acervo virtual do jornal
O Liberal, que possui uma ferramenta de busca por palavra, assim foi possível
estabelecer com mais facilidade e precisão em quais datas subjacentes poderíamos
encontrar conteúdo relativo ao assunto. Após a complementação da tabela, com as
datas sobressalentes indicadas pela pesquisa virtual na plataforma de O Liberal,
partimos para a coleta manual, executada tanto nos acervos online dos dois jornais
quanto na Biblioteca Pública Arthur Vianna, localizada no CENTUR, pois não
encontramos algumas edições nos acervos dos jornais.
Após a finalização da coleta, procedemos com a sistematização dos dados,
que primordialmente consistiu na criação de um livro de códigos (conjunto de variáveis
a serem investigadas). O livro de códigos foi inspirado no construído por Cal (2016) e
por Cal Esteves e Nery (2018), ampliado, revisado e passou por uma série de
discussões entre as integrantes do projeto de pesquisa. Após a definição do livro de
códigos, realizamos um treinamento de codificação e um teste de confiabilidade na
codificação com a participação de duas das bolsistas de iniciação científica do projeto.
O livro possui um total de 15 variáveis optativas e 5 variáveis discursivas e
complementares. Nos propomos a categorizar as matérias encontradas em: a) Editoria,
que diz respeito a qual caderno se encontra o conteúdo, a fim de constatar quais editorias
abordam mais o assunto; b) Capa, variável dicotômica, que aponta quais

322
conteúdos possuíram destaque em notas na capa do veículo; c) Formato, consiste na
categorização do tipo de conteúdo, além de onde foi produzido, se é regional ou não; d)
Assunto Principal, é a categoria responsável pela determinação da temática
central abordada pelo conteúdo, com objetivo de agrupar matérias semelhantes como
pertencentes do mesmo grupo; e) Dados Estatísticos, se a matéria possui dados
estatísticos, seguida de uma variável discursiva complementar para colocar a fonte dos
dados; f) Fontes Consultadas, tem como função listar todos os personagens que auxiliam
na elaboração do conteúdo com suas falas, de forma direta, entre aspas, ou indireta com o
jornal o fazendo referência; g) Assunto Abordado pela Trabalhadora Doméstica,
enquanto fonte. Quando uma ou mais fontes presentes na categoria citada anteriormente é
uma empregada ou ex-empregada doméstica nos certificamos de analisar qual o ponto
central da sua fala (quais as expectativas geradas pela mudança da lei, como é sua rotina,
as dificuldades do trabalho…); h) o Gênero da Trabalhadora enquanto fonte, partindo do
princípio de que os trabalhos domésticos a serem executados e abarcados pela lei são
diversos, buscando quebrar o paradigma estabelecido de que funções domésticas são
naturalmente femininas, ainda que elas sejam maioria; i) quando o conteúdo refere-se a
respeito do trabalho doméstico, se o apresenta ao leitor como uma função naturalmente
feminina, como um serviço essencial ou como um trabalho digno que merece mais direitos;
Também, a respeito da mudança da lei, como se refere a PEC como a correção de uma
injustiça, uma possibilidade de melhorar a vida delas ou ainda como fonte de problemas
financeiros e logísticos para os patrões; k) Se há menção a Desigualdades de Gênero,
Racial e Social; l) O posicionamento dessa trabalhadora, se são apresentadas como
vítimos, sujeitos políticos ou outros; m) Os Tipos de Falas da Trabalhadora doméstica,
se direta, indireta ou ambas, seguida de uma variável discursiva complementar onde são
adicionadas as aspas ou trecho indireto; n) O Direcionamento da Matéria, com quem ela
se dispõe a abrir diálogo, considerando que, há uma ausência de interesse, por parte do
governo e das mídias, de explicar, de forma simples e sem termos complexos ou
dificultosos, os direitos e efeitos da PEC na realidade das T.D.

Em seguida ao processo de testagem do livro de códigos, iniciamos a


construção do banco de dados. Dissecamos um total de 45 conteúdos, entre eles
reportagens e notícias locais e de agências, colunas, charges, entre outros. Ao passo
que fomos analisando-os, os resultados foram sendo computados na plataforma Excel.
Com a conclusão de todas as inserções, migramos os dados para a plataforma SPSS
para propiciar a criação de tabelas e de construção de matrizes analíticas.

323
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da análise das tabelas foi possível extrair resultantes satisfatórias e que
contemplam nossa pesquisa. Analisamos um total de 45 matérias, dos anos 2010 a
2016, 53,3% no O Liberal e 46,7% delas publicadas no jornal Diário do Pará. O Liberal
publicou mais conteúdo referente a pesquisa na capa do jornal do que o Diário do
Pará, nos dois períodos divididos: Até 2013 e Após 2013.
Ao executarmos uma comparação minuciosa a respeito dos resultados obtidos
referentes ao período anterior e posterior a PEC, nos deparamos com certas
discrepâncias. A começar pela quantidade dos conteúdos a respeito do assunto,
64,4% deles são referentes ao período de 2010 a 2013, enquanto os referentes ao
período de 2014 a 2016 são apenas 35,5% do total. A respeito de qual jornal publicou
mais a respeito do tema nos dois períodos indicados, ocorreu uma inversão, no
período até o ano da implementação o jornal Diário liderou, 62,1% do total, já, no
período que se inicia no ano de 2014, o jornal O Liberal passou nafrente do
concorrente, com 62,5% dos conteúdos.

Tabelas 1 e 2 – Distribuição de matérias por jornal e por período


Até 2013 Após 2013
Jornais Frequência % Jornais Frequência %
Liberal 11 37,9 Liberal 10 62,5
Diário 18 62,1 Diário 6 37,5
Total 29 100,0 Total 16 100,0

Fonte: Dados da pesquisa.

Os formatos de conteúdo que mais trouxeram informações a cerca do tema foram as


notícias, entre 2010 e 2013, 41,4% delas eram de agências nacionais, de fora do
estado, dado que demonstra que a mídia do estado produziu pouco material que
contemplasse as trabalhadoras paraenses.

Já no período posterior à implementação das novas regras, as notícias locais são


maioria, 50% do total. Ressalta-se, também, que no tempo pré-PEC a variedade de
formatos que abordavam o assunto foi consideravelmente maior, devido à alta
demanda, houve colunas de opinião e charges, entre outros, já o período pós-PEC
detém, reportagens e notícias, tanto locais, como de agências.

Tabelas 3 e 4 – Distribuição de matérias por formato por período

324
Até 2013 Após 2013
Formato Frequência % Formato Frequência %
Notícia Local 1 3,4 Notícia Local 8 50,0
Notícia 12 41,4 Notícia 3 18,8
Agência Agência
Reportagem 9 31,0 Reportagem 2 12,5
Local Local
Reportagem 3 10,3 Reportagem 3 18,8
Agência Agência
Coluna 3 10,3 Total 16 100,0
Charges 1 3,4
Total 29 100,0

Fonte: Dados da Pesquisa.

Os jornais dialogaram igualmente, ambos em 50%, a respeito das características da


lei, da relação entre patrão e empregada, da vivência da trabalhadora doméstica e de
orientações ao empregador, no entanto, o jornal Diário foi o único que abordou
conteúdo a respeito do papel da mulher tanto no trabalho doméstico, como no
mercado de trabalho, enquanto O Liberal, dentro do período analisado, não fez
menção ao assunto. Em contrapartida, o jornal O Liberal apresentou mais fazer
denúncias a respeito da não efetivação da lei. Se tratando do E-social (plataforma
criada em 2015 pelo governo para cadastro de trabalhadores domésticos e pagamento
de impostos) esse foi abordado apenas uma vez, no jornal Diário do Pará.

Tabelas 5 e 6 – Distribuição de matérias por temática por período

Até 2013
Após 2013
Assunto Principal Frequência %
Características da 7 24,1% Assunto Principal Frequên %
Lei cia
Orientações ao 1 3,4% Características da Lei 3 18,8
Patrão %
Impactos na 1 3,4% Orientações ao Patrão 3 18,8
Economia/Mercado %
Vantagens da Lei 3 10,3% Não cumprimento da lei 4 25%
Desvantagens da 2 6,9% Impactos a 2 12,5
Lei Economia/Mercado %
Relação Patrão X 2 6,9% E-social 1 6,3%
Empregada Vivência da T.D. 1 6,3%
Tramitação 6 20,7% Vantagens da Lei 1 6,3%
Vivência da T.D. 5 17,2% Outro 1 6,3%
Mulher no Mercado 1 3,4% Total 16 100
de Trabalho %
Mulher no Trabalho 1 3,4%
Doméstico
Total 29 100%

Fonte: Dados da Pesquisa.

325
Durante os quatro primeiros anos, o assunto mais abordado e com mais capas foram
as ―Características da Lei‖, com 24,1% das representações, seguido por tramitação,
20,7%, e vivência da trabalhadora doméstica com 17,2%. Consideramos importante
ressaltar que os assuntos ―Mulher no mercado de trabalho‖ e ―Mulher Negra no
trabalho doméstico‖ foram citados apenas uma vez.
Passado esse tempo, após a implementação, o assunto principal mais assíduo nas
capas foram as ―Orientações ao Empregador‖, que, no total compõem 18,8%. Já o
assunto mais abordado foi o ―Não cumprimento da lei‖ (25%), que representa falta de
efetividade da nova legislação, sobretudo, em razão da pouca fiscalização, já que
muitas trabalhadoras permanecem sem receber salários equivalentes, sem carteira
assinada, permanecem marginalizadas.
A análise sobre o direcionamento das matérias, se consideramos o total da amostra,
observamos que 11,1% do material jornalístico apresentado se dirige à trabalhadora
doméstica, desses nenhum possui destaque na capa do jornal. Os assuntos que mais
são direcionados as empregadas domésticas são, antes da lei: vivência da doméstica,
tramitação da lei; E, depois dela: as vantagens da lei. Durante o tramite da PEC, houve
quatro matérias consideradas direcionadas às T.D., 13,8%, comparada a 6,3% do
período seguinte. Chama atenção ainda o fato de que, após a regulamentação da
nova lei, os patrões são o público prioritário da abordagem dos jornais.

Tabela 7 - Distribuição de matérias por público direcionado por período

Após 2013
Direcionamento Frequência %
Indeterminável 7 43,8%
Empregada 1 6,3%
Patrão 6 37,5%
Ambos 2 12,5%
Total 16 100%
Até 2013
Direcionamento Frequência %
Indeterminável 18 62,1%
Empregada 4 13,8%
Patrão 3 10,3%
Ambos 4 13,8%
Total 29 100%

Fonte: Dados da Pesquisa.

326
Entre todas as fontes presentes, as trabalhadoras e ex-trabalhadoras domésticas
representam 19,7%. Dentre elas, 70% estavam presentes nos conteúdos do jornal
Diário.

Tabela 8 - Distribuição de fontes por quantidade de matérias

Geral
Fontes Frequência %
Não há 14 21,2%
Executivo 5 7,6%
Legislativo 10 15,2%
Judiciário 2 3%
Partido 1 1,5%
Político
ONGs 8 12,1%
Especialista 11 16,7%
Cidadão 1 1,5%
Comum
Trab. 10 15,2%
Doméstica
Ex-doméstica 3 4,5%
Patrão 1 1,5%
Total 66 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.

Tabelas 9 e 10 - Distribuição de fontes por quantidade de matérias por período


Até 2013 Após 2013
Fontes Frequên % Fontes Frequência %
cia Não há 7 36,8%
Não há 7 14,9% Executivo 1 5,3%
Executivo 4 8,5% Legislativo 2 10,5%
Legislativo 8 17% Judiciário 2 10,5%
Partido 1 2,1% ONG’s 2 10,5%
político Especialista 4 21,1%
ONG’s 6 12,8% Ex- 1 5,3%
Especialista 7 14,9% doméstica
Cidadão 1 2,1% Total 19 100%
comum
Trab. 10 21,3%
Doméstica
Ex-doméstica 2 4,3%
Patrão 1 2,1%
Total 47 100%
Fonte: Dados da Pesquisa

327
Constatamos que, antes de 2013, o número de fontes era mais expressivo, 71,2% do
total, podemos considerar com base nessa informação que o conteúdo, portanto, é
mais denso, pois, havia mais pessoas sendo ouvidas. Há cidadãos comuns,
empregadores e partidos políticos (2,1%), especialistas (14,9%), e ainda, 21,3% de
trabalhadoras atuando como fonte e 4,5% de ex-trabalhadoras. Antes da lei, elas
falaram em sua maioria (41,7%) sobre as dificuldades do trabalho doméstico, de suas
expectativas positivas em relação aos novos direitos, e da rotina.
Enquanto isso, o período posterior teve apenas uma (5,3%) trabalhadora como fonte.
Ela falou das dificuldades de seu emprego, posicionando-se como vítima -
trabalhadora representada como sofredora, aquela que vivencia, até mesmo,
passivamente, as dificuldades do trabalho doméstico -, as fontes mais assíduas nesse
período foram ONG’s e especialistas, seguido por representantes do legislativo e
judiciário, todos esses à frente delas.
Um resultado encontrado a partir da nossa pesquisa, legitimada por dados da PNAD e
do DIEESE-PA, encontrados enquanto analisávamos as matérias, foi a do gênero da
trabalhadora doméstica, 100% das fontes eram mulheres. Não há, portanto, em
nenhuma matéria, um homem sequer dialogando a respeito da função que exerce
enquanto trabalhador doméstico, isso porque o trabalho doméstico é visto como uma
função dotada de feminilidade e, por isso, a própria nomenclatura é, por muitas
pessoas, automaticamente vinculada ao gênero feminino, devido as opressões
culturais, muitas vezes interseccionadas, de gênero e raça.

Tabela 11 - Distribuição de fontes por abordagem em relação ao trabalho


doméstico

Geral
Abordagens a respeito Frequência %
do T.D.
Não menciona 11 23,9%
Atividade Feminina 4 8,7%
Serviço Essencial 2 4,3%
Relação de Confiança 3 6,5%
entre Patrão e
Empregada
Trabalho Digno 14 30,4%
Dificuldades com a Nova 12 26,1%
Lei
Total 46 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.

328
O trabalho doméstico, como função, é retratado pela maior parte das matérias (30,4%)
como um trabalho digno, que merece direitos como qualquer outro, no entanto, a
segunda maior porcentagem dessa variável (26,1%) diz respeito a eventuais
dificuldades com o cumprimento das leis trabalhistas, antes ou depois da
implementação da PEC. Assim como a quantidade de matérias a respeito do ofício
doméstico entre os anos 2010 e 2013, a construção de abordagens a respeito do
trabalho, nesse núcleo, também é de maior quantidade, ainda mais, se for comparado
com o período adiante, 2014 a 2016.

Tabelas 12 e 13- Distribuição de fontes por abordagem em relação ao trabalho


doméstico por período

Até 2013
Abordagens a respeito Frequência %
Após 2013
do T.D.
Não menciona 5 16,7% Abordagens a Frequência %
Atividade Feminina 4 13,3% respeito do T.D.
Serviço Essencial 2 6,7% Não menciona 6 37,5%
Relação de Confiança 3 10% Trabalho Digno 3 18,8%
entre Patrão e Dificuldades com a 7 43,8%
Empregada Nova Lei
Trabalho Digno 11 36,7% Total 16 100%
Dificuldades com a Nova 5 16,7%
Lei
Total 30 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.

Antes de 2013, o trabalho doméstico como uma atividade feminina, um serviço


essencial, uma relação de confiança, que possui dificuldades e como um trabalho
digno, na maioria dos casos. A partir de 2014, é abordado a partir da dificuldade
quando se trata da garantia dos direitos.

329
As abordagens referentes à mudança da lei, consideram a PEC como uma
possibilidade de melhorar as condições trabalhistas em 26,1% dos casos. Em 19,6%,
a Emenda Constitucional foi considerada como a correção de uma injustiça. Porém,
não foi interpretada, em sua totalidade, positivamente, em 15,2% apontou-se que ela
trouxe problemas financeiros para os empregadores.

Tabela 14 - Distribuição das matérias por abordagem em relação à mudança na lei

Geral
Abordagens Relativas à Mudança Frequên %
da Lei cia
Não Menciona 11 23,9%
Correção de uma Injustiça 9 19,6%
Possibilidade de Melhorar as 12 26,1%
Condições da T.D.
Problemas financeiros para o patrão 7 15,2%
Problema logístico para o patrão 1 2,2%
Prejuízo para a Relação Patrão e 1 2,2%
Empregada
Interferência exagerada do estado 1 2,2%
Pouco Efetiva 4 8,7%
Total 46 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.

Até 2013, fala-se da PEC, em 31% dos conteúdos, como uma possibilidade de melhorar as
condições da doméstica e, em 27,6%, como a correção de uma injustiça que acometia
àquelas classe de trabalhadores, em 6,9% como fruto de problemas financeiros para os
empregadores, por fim, em 3,4% cada, fruto de problemas logísticos para a família,
prejuízo para a relação entre empregador e assalariada e como interferência exagerada do
estado. Após o ano de 2013, a Emenda Constitucional, já em vigor, é vista como: 29,4%
fonte de problemas financeiros para empregadores, 23,5% pouco efetiva, por não garantir
totalmente os direitos prometidos, 17,6% como a possibilidade de melhorar a situação
dela, 5,9% a correção de uma injustiça.

Tabela 15 – Frequência de marcadores de gênero, raça e classe nas matérias


Geral
Desigualdades de Frequência %
Gênero, Raça e Classe
Não 29 64,4%
Gênero 6 13,3%
Sociais 3 6,7%
Raça e gênero 1 2,2%
Sociais e gênero 5 11,1%
Sociais, gênero e raça 1 2,2%

330
Total 45 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.

Tabela 16– Frequência de marcadores de gênero, raça e classe nas matérias por
período

Até 2013
Desigualdades de Frequência %
Gênero, Raça e Classe
Não 17 58,6%
Gênero 5 17,2%
Sociais 2 6,9%
Raça e Gênero 1 3,4%
Sociais e Gênero 3 10,3%
Sociais, Gênero e Raça 1 3,4%
Total 29 100%
Após 2013
Desigualdades de Frequência %
Gênero, Raça e Classe
Não 12 75,0
Gênero 1 6,3%
Sociais 1 6,3%
Sociais e Gênero 2 12,5%
Total 16 100%

Fonte: Dados da Pesquisa.

Na variável responsável por medir a frequência com que são citadas desigualdades
nas matérias jornalísticas, identificamos que maioria não faz citação a questões de
gênero, raça e classe. Ainda assim, a mais citada é a de gênero, afinal, as mulheres
são maioria, 90,86%, segundo a Pnad 2014, e, ainda que 79,3% dessas sejam negras,
a desigualdade racial não foi pauta central de nenhuma matéria, em nenhum dos
veículos escolhidos, sendo citada apenas uma vez, dentre todo o corpus analisado,
por meio de dados estatísticos, não houve texto direto disposto sobre o tema. Dessa
forma, podemos constatar a urgência de abrir caminho para a conscientização e
empoderamento dessas trabalhadoras negras, que mesmo sendo maioria são quase,
para não dizer totalmente, ignoradas pelas mídias de maior destaque do estado.

331
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste texto foi apresentar de modo preliminar os resultados da pesquisa


sobre a cobertura jornalística paraense a respeito da ampliação dos direitos
trabalhistas de empregadas domésticas. Nossa intenção é investigar como se deu o
debate público na cena midiática local sobre esse assunto, considerando o potencial
dos media de pré-estruturar a esfera pública e de pautar assuntos e abordagens para
que sejam discutidos pela sociedade.
O trabalho doméstico apresenta raízes sociais e culturais muito fortes que legitimam
em grande medida uma cultura da servidão e também uma divisão sexual do trabalho,
marcada não apenas por questões de gênero, mas também, e principalmente, de raça
e de classe.
Os resultados apresentados, apesar de serem um esforço inicial de trabalho com o
banco de dados, mostram diferenças significativas na cobertura jornalística antes e
após a aprovação da emenda constitucional 72, como, por exemplo, em relação à
presença da trabalhadora doméstica como fonte das matérias. Também chamou
nossa atenção a ausência de discussão sobre as desigualdades sociais e os
marcadores de gênero e raça, apesar o trabalho doméstico remunerado ser a principal
ocupação das mulheres negras no Brasil, de acordo com o IPEA. Relevante notar que,
quando foi possível identificar o direcionamento do conteúdo jornalístico, ele se voltava
principalmente aos patrões como interlocutores.
Será necessário ainda maior aprofundamento teórico e de análise dos dados, para
aprimorar a relação entre as várias e possibilitar melhor compreensão do fenômeno
estudado.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.


BRITES, Jurema. Serviço Doméstico: elementos políticos de um campo desprovido de
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CAL, Danila. Comunicação e Trabalho Infantil Doméstico: política, poder,
resistências. Salvador: EDUFBA/Compós, 2016.
CAL, Danila; ESTEVES, Lorena; NERY, Erick Matheus. Jornalismo, gênero e
desigualdades: análise das notícias sobre a ampliação de direitos das trabalhadoras
domésticas no Brasil e na Argentina. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos
de Jornalismo / INTERCOM – São Paulo, SP: Life Editora, 2018.

332
CARNEIRO, Maria T.; ROCHA, Emerson. Do fundo do buraco: o drama social das
empregadas domésticas. In: SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive?
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009, p.125-142.
CARVALHO, Carlos Alberto de. Algumas reflexões sobre a dimensão epistemológica
do jornalismo. In: CARVALHO, Carlos Alberto; BRUCK, Moazahir Salomão. (Org.).
Jornalismo, cenários e encenações. 1ed.São Paulo: Intermeios, 2012, v. 1, p. 43-58.
HABERMAS, Jürgen. Europe: the faltering project. Cambridge: Polity Press, 2009.
HABERMAS, Jürgen. O papel da sociedade civil e da esfera pública política. In:
Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Volume II. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003, p. 57- 123.
MAIA, R.C.M. Deliberation, the media and political talk. New York, NY: Hampton
Pres, 2012
MAIA, Rousiley C. M.(org.). Mídia e deliberação. Rio de Janeiro, RJ: Editora FGV,
2008.
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v.16, nº2. Maio/2008.
PINHEIRO, Luana; FONTOURA, Natália; PEDROSA, Cláudia. Situação das
Trabalhadoras Domésticas do País. In: Castro, Jorge; ARAÚJO, Herton (orgs).
Situação Social Brasileira: monitoramento das condições de vida 2. Brasília:
IPEA, 2012, p. 81-92
PORTAL BRASIL. Trabalho doméstico é a ocupação de 5,9 milhões de
brasileiras. Publicado em: 17 mar 2016. Atualizado em: 23 dez 2017. Disponível
em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/03/trabalho-domestico-e-a-
ocupacao-de-5-9-milhoes-de-brasileiras>. Acesso em 12 mai 2018.
URBINATI, N; WARREN, M. The Concept of Representation in
Contemporary Democratic Theory. Annu. Rev. Polit. Sci. 2008 p. 387-412.

333
A LUTA POLTÍCA DE IZA CUNHA NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E
GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DO PARÁ.
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-22 Sandra Regina Alves Teixeira

Este trabalho analisa o perfil social feminino concernente a participação política no


espaço público da História da Amazônia na perspectiva biográfica sobre uma das
principais mulheres que destacaram-se na militância social e política: Isabel Marques
Tavares da Cunha- ISA CUNHA, de codinome “Maria”, que através da luta clandestina
na Ditadura Militar atuou em organizações populares e de trabalhadores, movimentos
sociais e de mulheres, pautando-se como uma grande liderança feminista, na formação
política e principal referência nos Direitos Humanos. A metodologia será quali-
quantitativa examinando matérias veiculadas em alguns periódicos tais como:
“RESISTÊNCIA” (o qual Isa Cunha escrevia em algumas colunas), localizado no
Laboratório de Antropologia e CENTUR; alguns documentos institucionais da FASE,
CEPEPO, CPT, SPDH e 10 questionários aplicados aos que conviverarm
cotidianamente com ISA CUNHA. Historicamente, os homens dominaram o público e
atribuíram a ele a sua própria condição de existir (ARENDT, 1991), posteriormente as
mulheres passam a ocupar espaços público-políticos nos movimentos sociais e partidos
políticos, na luta por direitos sociais, econômicos e políticos das mulheres, em todo o
Brasil, em especial no Pará, destacando-se alguns perfis sociais históricas mulheres
militantes, políticas, sindicalistas, consolidando a luta pela efetivação dos Direitos
Humanos, através da organização do Movimento Social de Mulheres Campo e Cidade e
Movimento Feminista na década de 60, 70 e 80. Portanto, a História e Memória de Isa
Cunha devem ser preservadas como amazônida debatendo gênero nas organizações
populares, político-partidária em um contexto de outrora pautada em trajetórias de lutas
e resistências das mulheres proporcionando a emancipação política.

PALAVRAS-CHAVE: Feminismo, Política e Movimentos Sociais.

INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa o perfil social feminino concernente a participação política


no espaço público da História da Amazônia na perspectiva biográfica dialogando com a
História Social e Cultural, sobre uma das principais mulheres que destacaram-se na
militância social e política: Isabel Marques Tavares da Cunha, conhecida como Iza

Mestre em Direitos Fundamentais (UNAMA). Esp. Processo Penal, Civil, Constitucional e Trabalho.
(MAURICIO DE NASSAU) Esp. Planejamento e Gestão de Políticas Públicas para as Mulheres na
Amazônia (ESMAC). Esp. em História Social da Amazônia (UNAMA). Esp. em Docência no Ensino
Superior na Amazônia (UFPA). Conselheira Estadual dos Direitos das Mulheres (SECULT). Comissão de
Direitos Humanos/ Colaboradora (OAB-PA). Historiadora. Bacharel em Direito. Docente
SEDUC/ESMAC. Técnica em Gestão Cultural (SECULT). Docente do Curso de Graduação em Direito e
História da Faculdade ESMAC

334
Cunha de codinome “Maria”, que através da luta clandestina na Ditadura Militar atuou
em organizações populares e de trabalhadores, movimentos sociais e de mulheres,
pautando-se como uma grande liderança feminista, na formação política e principal
referência dos Direitos Humanos na Amazônia.
A metodologia utilizada foi na abordagem qualitativa examinando 30 matérias
veiculadas em alguns blog s e sites; periódicos tais como o jornal “Resistência” (15
matérias referente ao período de 1979 a 2013), o qual Iza Cunha era colaboradora em
algumas colunas, localizado no Acervo da Biblioteca Arthur Vianna da Fundação
Cultural do Estado do Pará, popularmente conhecido como CENTUR; alguns
documentos institucionais da FASE, SPDH, 15 questionários dos 40 aplicados aos que
conviveram cotidianamente ou indiretamente com Iza Cunha, além de 03 entrevistas
2
realizadas (2 na SDDH) e dezenas de fotografias e iconografias , em uma análise
descritiva e historiográfica das diversas fontes.
Historicamente, os homens dominaram o público e atribuíram a ele a sua própria
condição de existir (ARENDT, 1991), posteriormente as mulheres ocuparam espaços
público-políticos nos movimentos sociais e partidos políticos, na luta por direitos
sociais, econômicos e políticos das mulheres, em todo o Brasil, em especial no Pará,
destacando-se alguns perfis sociais, históricas mulheres militantes, políticas,
sindicalistas, consolidando a luta pela efetivação dos Direitos Humanos, através da
organização do Movimento Social de Mulheres Campo e Cidade e Movimento
Feminista na década de 60, 70 e 80.
Portanto, o trabalho é proeminente do ponto de vista científico e social, para a
conclusão desta Pós Graduação em Planejamento e Gestão de Políticas Públicas para as
Mulheres na Amazônia (ESMAC), pois além de Iza Cunha ter contribuído na
organização das mulheres, na discussão e formulação de políticas públicas, na
implementação do debate dos Direitos Humanos na Amazônia, a História e Memória
desta protagonista devem ser preservadas como amazônida debatendo a categoria
gênero nas organizações populares, político-partidária em um contexto de outrora
pautada em trajetórias de lutas e resistências das mulheres proporcionando o
empoderamento e emancipação política.

2
O arcabouço de fontes coletadas estão sistematizadas em dossiê sobre a história e memória de Iza
Cunha, não foram esgotadas neste breve ensaio de perspectiva biográfica e serão direcionadas para o
Projeto de Doutoramento.

335
IZABEL MARQUES TAVARES DA CUNHA – IZA CUNHA

Adentrar no universo da pesquisa sobre a trajetória de uma militante política do


período militar brasileiro na sociedade paraense, é uma tarefa árdua, por inúmeros
motivos: 1- existem poucas notícias/reportagens/produções acadêmicas sobre sua
história de vida veiculadas nas redes sociais; 2- raríssimas matérias jornalísticas no
3
próprio periódico intitulado: “Jornal Resistência” no qual Iza Cunha era colaboradora e
escrevia esporadicamente; 3- muitos homens e mulheres que conheceram Iza Cunha
recusaram-se a responder os questionários ou conceder entrevistas e 4- outros (as)
desconheciam o perfil sócio-político da militante dos Direitos Humanos na Amazônia,
nem ao menos eu, que tenho a mesma formação acadêmica, social e política de Iza
Cunha, pois em minhas memórias estive em seu velório e posteriormente ganhei de
presente uma camisa com sua foto em uma das inúmeras homenagens em atos políticos
que recebeu pós seu falecimento no ano de 2003.
Neste sentido, percebi a importância da História Cultural e Social, considerando
as experiências sociais de uma mulher amazônida, protagonista nas discussões de
Gênero e Direitos Humanos, na preservação de sua memória, além do desafio de
escrever um ensaio na perspectiva biográfica, pois conforme asseverou Benito Schmidt:
“é uma das tarefas fundamentais do gênero biográfico na atualidade é [exatamente o de]
4
recuperar a tensão, e não a oposição, entre o individual e o social”
O periódico Resistência publicado em março de 1981, veiculou uma extensa
reportagem intitulada: “Tortura O Inferno de Iza Cunha”, no qual a Historiadora e
coordenadora do CIPES-Centro de Intercâmbio de Pesquisas e Estudos Econômicos e
Sociais, relatou em forma de denúncia inúmeras torturas e atrocidades cometidas
durante a repressão militar, vivenciada no período em que esteve presa de 30 de
dezembro de 1971 a outubro de 1972, sendo que durante 04 meses na cela do DOP‟S,
considerado um período de alta tensão porque constantemente ouvia gritos e surras a

3
Segundo o jornalista Paulo Roberto Ferreira “Foi para contrapor ao discurso único, imposto pela
ditadura, que surgiu também, em Belém, o jornal Resistência, órgão da Sociedade Paraense de Defesa dos
Direitos Humanos (SPDDH), em fevereiro de 1978. O periódico assumiu um lado, o lado que não tinham
vez e nem voz. Por isso mesmo recebeu marcação cerrada dos órgãos de segurança e informação. Seus
integrantes eram espionados em 1977 (quando foi fundada a SPDH), pelo Serviço Nacional de
Informações (SNI) e pelo Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa)” In: FERREIRA Paulo Roberto.
A Censura no Pará. A mordaça a partir de 1964 (registros e Depoimentos). Belém Pará Paka-Tatu. 2015.
p. 165.
4
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias. Historiadores e Jornalistas. Aproximações e
afastamentos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. CPDOC/FGV, n.19, 1997.p.12.

336
presos comuns. Em outubro de 1973 Iza Cunha encontrava-se grávida de 02 meses,
sendo intimada para um julgamento em Juiz de Fora no qual teve uma condenação de 6
meses, porém já tinha sido cumprida pena de 10 meses e segundo ela “sobravam 4
meses”, voltando para Belém sem o marido Humberto Cunha, que ficou em Juiz de
Fora para cumprir a pena de mais de 3 meses e meio, uma vez que sua condenação foi
de 18 meses de prisão.
Na reportagem Iza Cunha descreve os inúmeros tipos de torturas vivenciadas nas
dependências do DOI CODI tais como: “pau de arara, choques elétricos (nos dedos e
mãos com descarga de mais e 60 volts, “estendendo-se pelo ânus, língua, vagina e no
corpo todo”), tapas, telefones (tapas no ouvido com as mãos em forma de concha,
socos, câmara de tortura”. Além das atrozes ameaças de ser “currada por 5 homens em
um Volks”, hodiernamente intitulado de estupro coletivo, e com o possível
desaparecimento do seu corpo, Iza Cunha relatou que foi torturada pelo Sargento Davi,
conhecido como Dr. Sócrates que:
Despida, apertava o bico dos meus seios, como quem queria arrancá-
los; depois sentou-me a força em um vaso sanitário onde jogava água
gelada dentro dos meus órgãos genitais. Parecia um louco,
desesperado, os olhos a saltar, parecia transtornado, Olhei firme para
ele e mandei-o fazer isso com a mãe dele. Ele respondeu que a mãe
dele não era uma subversiva era uma santa mulher. Era um sádico e
tenho quase certeza que chegava ao orgasmo quando fazia isso. Ficava
irritadíssimo e nervoso quando fitava-o, firme nos olhos; voltava a
5
torturar-me.

site intitulado: “Brasil Nunca Mais Digital- Sumário do BNM 054”, traz
informações gerais sobre a Primeira Fase do Processo e Recurso ao Superior Tribunal
Militar. A organização/partido ou setor social a ser atingido era a Ação Popular
conhecida como AP que Izabel Marques Tavares militava clandestinamente, sendo
denunciada pelo Ministério Púbico Militar sob a acusação de “Agrupamento perigoso à
Segurança Nacional. Classificação do crime alterada na sentença por agrupamento
prejudicial à Segurança Nacional. Fundamento legal da acusação Artigo 43, do Decreto-
Lei nº 898, de 1969. Classificação do crime alterada na sentença para art. 14, do mesmo
6
Decreto-Lei”

CARVALHO. Luiz Maklouf. Tortura. O Inferno de Iza Cunha. Resistência. Março de 1981. Ano IV. n.
Disponível em: www.fcp.pa.gov.br/2016-12-13-19-41-20/resistencia-mensario-da-sociedade-paraense-de-
defesa-dos-direitos-humanos-belem-mitograph-v-4-n-22-mar-1981-20-p. Acesso em: 06 mar 2019.
BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72. Apelação nº STM
188. Disponível em: bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/100/054.html. Acesso em: 10 mar 2019.

337
A denúncia foi realizada em 13 de abril de 1972, processo tramitou na Justiça
Militar Minas Gerais- Auditoria da 4ª CJM- Juiz de Fora e da data da sentença foi em
09 de outubro de 1973 com o resultado do Julgamento:
Foi reconhecida a litispendência quanto a Jussara Lins Martins, José
Milton Ferreira de Almeida, Luiz Antonio Duarte e Marcos José Burle
de Aguiar, para o fim de excluí-los da ação penal. Condenação de
Zoraide Gomes de Oliveira, Alanir Cardoso, Claudio Fernandes
Arabal, Humberto Rocha Cunha e de Edesio Franco Passos à pena de
1 ano e 6 meses de reclusão; de Salvio Humberto Penna à pena de 1
ano de reclusão; e de Izabel Marques Tavares, Ana Lucia Penna e
de Maria Rosângela Batistoni à pena de 6 meses de reclusão.
7
Absolvição dos demais acusados. (grifo meu)

Em 26 de outubro de 1973 Humberto Rocha Cunha e Izabel Marques Tavares


entraram com apelação ao egrégio Superior Tribunal Militar, pois estavam
8
“inconformados com a sentença que os condenou a um ano e seis meses” . Dentre as
razões finais apresentadas em 13 de novembro de 1973, o argumento central foi na
desistência voluntária (“daquela filiação do grupo subversivo”) o qual relatava que:
Isto posto considerando a insuficiência de provas dos autos e
considerando que houve a desistência voluntária dos possíveis atos de
filiação e que nenhum outro ato delituoso foi imputado a apelante,
espera-se a reforma da Sentença com sua absolvição por ser de
9
JUSTIÇA.

Neste sentido, analisar o referido Processo da Justiça Militar, é relevante para a


construção de campos de possibilidades para o conhecimento histórico na perspectiva
da História Cultural e Social, pois conforme analisou Carlo Ginzburg possibilita aos
10
pesquisadores adentrar no universo de determinados sujeitos sociais , tais como as
mulheres, antes excluídas na História, pois funcionam como „fio do relato, que nos
11
ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade” .
Destarte sobre o poder simbólico dos processos no campo jurídico Pierre
Bourdieu analisa que:

BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72. Apelação nº STM
188. Disponível em: bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/100/054.html. Acesso em: 10 mar 2019.
BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72. Apelação nº STM
188. Disponível: bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/docreader.aspx?bib=BIB_01&PagFis=9036. Acesso
em: 10 de mar 2019.
BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72. Apelação nº STM
188. Disponível em:bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/docreader.aspx?bib=BIB_01&PagFis=90386.
Acesso em:10 mar 2019.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição: São Paulo, Companhia das Letras, 2006. p. 205.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, Falso, Fictício. Tradução de Rosa Freire d‟aguiar e
Eduardo Brandão. São Paulo. Companhia das Letras. 2007.p.7

338
O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se
opera a transmutação de um conflito direto entre as partes diretamente
interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que
atuam por procuração e que tem em comum o conhecer e o reconhecer
de regra do jogo jurídico, quer dizer, as leis escritas e não escritas do
12
campo .

Dessa forma, ao analisar o depoimento no processo de Iza Cunha contestando o


seu algoz, torturador e violador de seus direitos fundamentais, conforme asseverou
Michelle Perrot: “Por sua falta de respeito, sua ironia, sua espontaneidade, a palavra das
mulheres é cheia de subversões. Ela mantém esta reserva, esta distância que permite aos
13
humildes preservar a sua identidade. Salvar sua memória” , logo é importante dar voz
a essa mulher Iza Cunha, que sofreu violações concernente ao princípio da dignidade da
pessoa humana, analisando seu perfil social, suas experiências e vivências sociais,
políticas e culturais na sociedade paraense da década de 70 a 90, tornando-se referência
na militância política em defesa dos Direitos Humanos na Amazônia.
14
Em entrevista concedida para Historiadora Edilza Fontes, Humberto Cunha
marido de Isa Cunha afirmou que na época em que eram namorados deslocaram-se para
Minas Gerais a convite da Direção Nacional AP (em São Paulo, para reorganizar ao
Partido na região de Belo Horizonte uma vez que todos foram presos (a organização
abrangia os estados de Minas Gerais, Brasília e Goiás), Iza Cunha acompanha o futuro
marido atuando na clandestinidade.
Humberto Cunha relatou em entrevista que foi deslocado para São Paulo e ficou
preso, fez greve de fome por melhores condições na cadeia e foi levado para o
Carandiru, em reclusão até abril de 1973, depois” voltou para Belém e teve uma luta
para voltar a cursar agronomia na FICAP” e em outubro de 1973 foi intimado para o
julgamento em Juiz de Fora, sendo condenado a um ano e meio de reclusão, cumprindo
o restante da pena por mais 3 meses. Logo somente teve permissão de voltar ao curso de
Agronomia no segundo semestre de 1974 e colou grau em 1976, segundo ele “Iza
Cunha ficou em um presídio separado e saiu antes, pois ficou apenas 10 meses presa”.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Elementos para uma sociologia do campo jurídico. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 229.
PERROT Michele. A Mulher Popular Rebelde, In: As Mulheres e os silêncios da História. Bauru. SP,
EDUSC. 2005. p. 217.
14
FONTES, Edilza Joana Oliveira A UFPA e os Anos de Chumbo: memórias, traumas, silêncios e
cultura educacional (1964-1985) – Entrevista com Humberto Rocha Cunha. Disponível em:
http://www.multimidia.ufpa.br/jspui/handle/321654/1277. Acesso em: 04 mar 2019.

339
Diante disso, o casal se “sustentava com aulas particulares e montaram uma escolinha
15
de alfabetização” sustentando os dois filhos .
Em 1978 Iza Cunha participou junto com Humberto Cunha em uma atividade da
FASE no RJ e foram convidados para a participação do Comitê Brasileiro da Anistia,
trouxeram para Belém que fez parte de um núcleo da Anistia dentro da SPDDH com
dupla vinculação, discutindo a anistia em assembleias na SPDDH e com apresentação
da carta de princípios da SPDDH, o que possibilitou fundar depois de 10 anos o
Movimento Nacional dos Direitos Humanos.
A partir dos relatos de Humberto Cunha sobre Iza Cunha compreende-se o
processo da trajetória política da mulher militante pois conforme afirmou Vavy Pacheco
Borges “os problemas de interpretação de uma vida são riquíssimos, pois nos defrontam
com tudo que constitui nossa própria vida e a dos que nos cercam (...) Atualmente a
biografia, como aliás quase tudo mais, é vista como parte da história. Fala-se em um
16
retorno da biografia”.
Desse modo ao analisar as diversas fontes sobre a vida de Iza Cunha constatou-
se que a mesma era professora formada em História, foi militante política de
organizações clandestinas e diversos partidos tais como: APML (Ação Popular Marxista
Leninista), PCdoB (Partido Comunista do Brasil), PRC (Partido Revolucionário
Comunista), e PT (Partido dos Trabalhadores) sendo candidata ao parlamento no início
da década de 90, coordenadora do CIPES Centro de Intercâmbio de Pesquisas e Estudos
Econômicos e Sociais, foi fundadora do Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade
(MMCC) e SDDH (Sociedade Paraense em Defesa dos Direitos Humanos), no qual
posteriormente ocupou o cargo de Presidente.
Também atuou na implementação do Conselho Municipal da Condição
Feminina de Belém sendo posteriormente Presidente, “o principal papel de Isa Cunha na
Amazônia foi na organização das mulheres trabalhadoras rurais por seus direitos
trabalhistas e pelo direito à terra. Nessa tarefa foi primordial, também, sua defesa do
meio ambiente, contra a primeira proposta de construção da usina Belo Monte, contra os
grandes projetos que destruíam a floresta e os rios, e defesa dos povos indígenas(...).

\emdash FONTES, Edilza Joana Oliveira A UFPA e os Anos de Chumbo: memórias, traumas, silêncios
e cultura educacional (1964-1985) – Entrevista com Humberto Rocha Cunha. Disponível em:
http://www.multimidia.ufpa.br/jspui/handle/321654/1277. Acesso em: 18 mar 2019.

\emdash
BORGES Vavy Pacheco. Desafios da Memória e da Biografia Gabrielle Brune-Sieler, uma
Vida (1874-1940). IN: BRESCIANI Stella e NAXARA Márcia (org.) Memória e (Res) sentimento
Indagações sobre uma questão sensível. Campinas SP. Editora da Unicamp. 2004. p.288.

340
Como Historiadora, feminista e ativista dos Direitos Humanos foi uma mulher à frente
do seu tempo, fazendo múltiplas palestras contra o machismo e em defesa dos direitos
17
reprodutivos das mulheres com os trabalhadores do campo e da cidade ”
A partir do relato acima mencionado compreende-se que Iza Cunha rompe com
18
o modelo de perfil social feminino vigente nas décadas de 70 e 80 e início dos anos
90, no qual a mulher deveria estar inserida apenas no espaço privado doméstico
cuidando da casa, marido e filhos, no entanto ao ocupar o espaço público no campo
político e social era representada por muitos de seus companheiros (as) de militância
19
política como “uma mulher à frente do seu tempo” , logo Iza Cunha desconstrói a
naturalização dos papéis sociais de gênero no qual “ a Igreja, e o Estado apostavam no
sucesso do papel feminino. Dentro de casa, a mulher poderia comandar alianças,
20
poderes informais e estratégias. Mas apenas dentro de casa. Na rua era outra coisa”
Segundo o jornalista e amigo de militância política Pedro César Batista que
conviveu com Iza Cunha no final dos anos 70 “quando a SPDDH estava sendo fundada
durante a realização das reuniões na Igreja da Aparecida, na Pedreira em Belém. Depois
convivemos por um período, durante a articulação da Tendência Popular do PMDB, que
reuniu candidaturas populares, com reuniões na Livraria Jinkinks, sendo que Humberto
Cunha companheiro de Iza, foi candidato a vereador, tendo sido eleito em 1982 (...) Um
quadro dos movimentos de esquerda paraense, tendo tido destaque na construção do PT,
de movimento populares, do Movimento do Campo e da Cidade (MMCC), da Comissão
dos Bairros de Belém (CBB) e junto a inúmeras lutas do povo e da classe
21
trabalhadora”

SOLIMÕES. Neide Rocha Cunha. Entrevista aplicada através de Questionário respondido por email em
de novembro de 2018 às 11:11h A Farmacêutica Servidora Pública Federal argumenta que conheceu
Iza Cunha “em meados de 1968 (..) em plena efervescência das lutas estudantis contra a ditadura militar”,
tornando-se posteriormente cunhada de Iza Cunha, pois a mesma casou-se no civil com seu irmão
Humberto Cunha.
MATOS, Maria Izilda. Outras Histórias: as Mulheres e estudos de gênero-percursos e possibilidades
(org). Gênero em Debates. São Paulo. Edusc. 1997, p. 84-113. A autora se detém na análise dos novos
perfis de comportamentos masculinos e femininos através da categoria analítica de gênero.
CAREPA. Ana Júlia. A ex Governadora do Estado do Pará (a primeira e única mulher a governar o
Pará) afirma que: “ Iza Cunha teve um papel social muito relevante na Amazônia. Foi uma mulher à
frente do nosso tempo. Foi uma liderança que influenciou positivamente muitas pessoas, mulheres
especialmente”. Entrevista aplicada através de Questionários respondidos por email em: 25 de janeiro as
13:51 h .
PRIORE Del Mary. Histórias e conversas de Mulher. 2ª ed. São Paulo. Planeta. 2014.p.19.
21
BATISTA. Pedro César. Entrevista aplicada através de questionário respondido por email em 23 de
janeiro de 2019 às 16:22 h. O Jornalista e coordenador do Movimento Cultural de Olho na Justiça
asseverou que; “na organização do MMCC ela teve papel fundamental. Atuando na mobilização de
camponeses e trabalhadoras urbanas”.

341
O Blog intitulado “Resistência” publicou no dia 02 de abril de 2012, sob o título
“Resistência à Ditadura: o embrião da luta por Direitos Humanos no Brasil”, as palavras
da própria Iza Cunha concernente ao papel social e político da SDDH na ocasião sendo
Presidente e comemorando 10 anos de fundação:
A SDDH nasceu nesse clima (de Ditadura Militar) e teve o papel de
aglutinar toda a oposição de esquerda à ditadura militar, lutando por
anistia ampla, geral e irrestrita, pelas liberdades políticas, pela reforma
agrária radical e imediata, e por eleições livres e diretas em todos os
níveis, luto contra a Lei de Segurança Nacional e contra os órgãos do
22
aparelho repressivo e contra a tortura, principalmente .

A Historiadora Elisete Veiga Maia, companheira de militância política de Iza


Cunha, argumenta que a militante política atuou na “organização das operárias da
Castanha para participação no Sindicato da categoria, com realizações de reuniões,
pautas reivindicatórias de trabalho, passeatas e muitas mobilização das mulheres que
tinham uma concentração nos bairros da Condor e Jurunas”. Relata que Iza Cunha
“participou da equipe do IPAR (Instituto Pastoral Regional, ministrava cursos através
da teologia da libertação, fez parte da MLPA (Movimento pela Libertação dos Padres
do Araguaia), da Comissão Pastoral da Terra, com formação de trabalhadores (as)
rurais, onde acompanhei algumas de suas viagens e diálogos, e tinha uma boa inserção
23
política dentro desses movimentos” .
Para Rosana Moraes Assistente Social que atuou como técnica no Projeto de
Combate a Violência Contra a Mulher 1999 a 2000, período em que Iza Cunha foi
Presidente do CMCF- Conselho Municipal da Condição Feminina afirma que:
Isa sabia transitar nos corredores dos movimentos sociais e da política
uma militante do PT que não se escondia, sabia dialogar e trazer
ganhos para às políticas ao segmento feminino. Uma mulher
incansável. Morreu lutando, posso afirmar! Era uma pessoa benquista,
carismática.
Ela fez parte da luta, resistência e conquista das mulheres amazônidas.
Isa militou. Pensava às conquistas das mulheres em todos os campos
urbano, rural, ribeirinho, comunidades, tradicionais... trabalhava na
perspectiva HUMANISTA dos DIREITOS! Viajou muito por aí,
construiu pautas e agendas políticas.
Iza trabalhou nos dois lados: militância nos movimentos e servidora
pública nos cargos comissionados que assumiu. Sabia diferenciar
atuando com ética e respeito. Era uma boa articuladora!!

É JORNAL RESISTÊNCIA. Resistência à ditadura o embrião da luta por Direitos Humanos no Brasil.
02/02/2012. Disponível em: https://jornalresistenciaonline.blogspot.com. Acesso em 17mar 2019.
É
MAIA. Elisete Veiga. Entrevista aplicada através de Questionário respondido por email 30 de janeiro
de 2019 às 03:53 h.

342
De viés socialista, Isa primava pela liberdade, igualdade justiça social.
24
Tinha um olhar marxista-crítico sobre o mundo .

Dessa forma percebe-se uma preocupação de Iza Cunha no que que se refere
organização das mulheres, dos movimentos populares e sociais dentro da abordagem
marxista dialogando com as primeiras discussões de gênero, feminismo, violência
contra a mulher e direitos humanos dentro do espaço acadêmico promovido pelo
GEPEM/UFPA conforme relata a coordenadora e cientista política Dra Luzia Miranda
Alvares:
O feminismo de Isa Cunha tendia a uma radicalidade sem fronteiras,
quando a situação se inclinava a constatar a violência contra a mulher.
Mas ela ia mais além, mostrando que se deixássemos de lado o
companheiro sem as informações pontuais sobre a violência praticada,
não mudaríamos nada, não chegaríamos a desenvolver o pleito maior
que era a mudança social. E essa posição dela me fascinava, pois
sempre foi esse o meu ponto de vista.
Desta sintonia, extraíamos a argumentação necessária para a revisão
de algumas versões que não levavam a quase nada. Nossas conversas
eram sempre para a definição de posições dos temas sobre a questão
da mulher, nos textos teóricos que surgiam e também na prática,
quando ela via que estas posições tendiam a excluir algum ator social
do processo. Eram sempre para planejar alguma oficina, curso ou
palestra que levasse informação às mulheres.
Por isso, Isa sempre estava presente nos eventos promovidos pelo
GEPEM/UFPA dando sua contribuição às novas gerações. Esta
parceria se não alcançou mais o presencial, seu rastro tem estado
presente entre nossas companheiras de movimento e isto é muito bom
saber. Mas aquela ternura de Isa Cunha de comentar a mudança na
vida da mulher e tratar com radicalidade a justiça social para humanos
e humanas vai ficar na diretriz de nossas vidas.
O movimento dos direitos humanos ficou pobre ao perder Isa Cunha,
que foi ferida de morte no emprego que mantinha há muito tempo,
onde não foi tratada por alguns com o instrumento que fazia dela a
25
grande militante: os direitos humanos .

Nesse sentido, a importância da consolidação da trajetória política e social de Iza


Cunha como mulher e militante está representada simbolicamente na Comenda Iza
Cunha normatizada pela Resolução nº 22 de 11 de agosto “que homenageia com
26
medalhas outorgadas em 2004 e nos anos seguintes paras personagens femininas , que

MORAES Rosana Ribeiro. Entrevista aplicada através de Questionário respondido por email: 06 de
fevereiro de 2019 às 22:14 h
ALVARES Luzia Miranda, “Oração por uma companheira de lutas”. Blog do Paulo Fonteles Filho.
Verdade, Memória e Justiça na Amazônia. 10 jun 2016. Disponível em:
paulofontelesfilho.blogspot.com/2016/06/luzia-miranda-alvaresassic. Acesso em: 17 mar 2019.
26
CUT-PARÁ.“Mulheres recebem a medalha Isa Cunha na ALEPA e reivindicam medidas para a
calamitosa situação da grande maioria das mulheres no Pará”. 12/03/2014. Disponível em:
https://cut.pa.org.br Acesso em 17 marc. 2019.

343
prestam serviços relevantes à sociedade paraense, em Solenidade Especial na
Assembléia Legislativa do Pará e na Câmara dos Vereadores de Belém no Dia
Internacional da Mulher, contudo valorizando a memória de uma mulher que deixou um
legado de luta e exemplo nos Direitos Humanos no Estado do Pará.27 Nada mais do que
justo tal comenda pois conforme preconizou Michelle Perrot
As Mulheres têm uma história (...) A história das mulheres mudou.
Em seus objetos, em seus pontos de vista. Partiu de uma história do
corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma
história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da
política, da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres
vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas
interações que provocam a mudança. Partiu de uma história das
mulheres para tornar-se mais especificamente uma história do gênero,
que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade.
28
Alargou suas perspectivas espaciais, religiosas, culturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

A Especialização foi direcionada para a área de Planejamento e Gestão de Políticas


Públicas para as Mulheres na Amazônia, diante disso procurou-se analisar dentro de
uma perspectiva da Biografia (ensaio biográfico) através da História Social e Cultural
das Mulheres na Amazônia dialogando com diversas fontes e bibliografias adentrando
no universo da trajetória política de Iza Cunha, que tinha uma “visão marxista, o
29
materialismo histórico e dialético, no entendimento da opressão da mulher”
contribuindo para o debate e implementação de políticas públicas direcionadas para as
mulheres na sociedade paraense tais como: “ moradia digna, memorável campanha em
defesa da educação com a reivindicação da criação das creches e a garantia de vagas
30
para zerar o déficit por meio da ampliação da rede de escolas públicas”

27
EDMILSON RODRIGUES DEPUTADO ESTADUAL DO POVO.” Ex Deputada Araceli recebe
medalha do Legislativo”. Disponível em: http://www.edmilsonbritorodrigues.com.br/ex-deputada-araceli-
recebe-medalha-do-legislativo/ Acesso em: 17 marc 2019. O site informa que : A ex Deputada do PSOL
Araceli Lemos, também Historiadora homenageada pelo atual deputado estadual Edmilson Rodrigues do
PSOL, ela foi presidente do Sindicato em Educação Pública do PARÁ (SINTEPP) e teve dois mandatos
como Deputada Estadual pelo PT e PSOL entre os anos de 1998 e 2007, tendo sido representante das
Mulheres Parlamentares da União Nacional dos Legisladores e Legislativos Estaduais por dois mandatos,
o discurso do Deputado Estadual Edmilson Rodrigues, concernente a homenagem, fez referência a
atuação de Iza Cunha
PERROT Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo. Contexto. 2017. p.15-16.
TOLEDO, Cecília. Gênero e Classe. Org Alicia Sagra. São Paulo Sundermann, 2017.p.16.
ALVES. Edivânia Santos. Historiadora e Professora da UFPA/IEMCI. Entrevista aplicada através de
Questionário respondido por email: 12 março de 2019 às 00:39 h.

344
Dessa forma, Iza Cunha com o conhecimento histórico, político e social, contribuiu
para a efetivação dos Direitos Humanos, organização dos movimentos sociais,
participação política partidária (como candidata e assessora parlamentar) e de gestão
(cargos comissionados, Presidência/Coordenação), além da militância na sociedade
civil, (movimentos socais, populares, organizações, associações e sindicatos). Eliana
Fonseca argumenta que: “Iza foi uma mulher de uma identidade feminina impar,
aparentemente frágil, delicada, e de uma vasta humildade, expressa a cada exemplo de
mulher forte destemida, aguerrida, sem temer, sem dar passo para trás a não ser por
31
estratégia, para dar um passo em seguida” , logo era representada por muitos, como
“uma mulher à frente do seu tempo”.
Neste sentido, além de sua memória ficar registrada em Comenda (medalha) para
homenagear perfis femininos com relevância político-social, econômica, cultural e de
gestão na sociedade paraense, Iza Cunha também foi homenageada no meio ambiente
cultural urbano tais como: Praças (Belém-Bengui), Bibliotecas (Diretório Estadual do
PT), Centro de Medidas sócio-educativas Feminina (Ananindeua), Núcleo de Assessoria
Jurídica Universitária Popular, Unidade de Educação Infantil de Belém Isa Cunha,
Cursinho Popular entre outros, configurando o registro de uma memória feminina
presente na urbes do centro e periferia de Belém e do Estado do Pará.
Em entrevista no Jusbrasil em 2010, Regina Barata afirmou que: “Isa Cunha foi uma
mulher guerreira que sofreu a insanidade da tortura que lhe arrancou gritos, lhe fez
32
expor medo, mas não tirou os sonhos” .

Portanto, a sua História e Memória devem ser preservadas como mulher amazônida
em um contexto de outrora pautado em imagens de trajetória de lutas e resistências das
mulheres proporcionando a emancipação política em um cenário público político
(SALOMÂO & VIDAL, 2009, p.29), uma militante política dos Direitos Humanos que
lutava contra a opressão, por uma justiça social vislumbrando “uma sociedade melhor e
33 34
mais igualitária” , “na defesa dos silenciados, humilhados e esquecidos” .Pois

FONSECA. Eliana. Educadora Popular, Conselheira Municipal dos Direitos Humanos, Coordenadora
do MMCC- Movimento de Mulheres Campo e Cidade e ex Ouvidora de Segurança Pública do Estado, foi
amiga pessoal de Iza Cunha atuando com a mesma na SPDDH e MMCC. Entrevista concedida no dia 06
de fevereiro de 2018 na SDDH (15 as 17 hs)..
JUS BRASIL. “Legislativo comemora Dia Internacional da Mulher”. 08/03/2010. Disponível em:
https://al-pa.jusbrasil.com.br Acesso em 14 set 2018.
GUERRA, Jureuda Duarte, Psicóloga aproximou-se de Iza Cunha a militância do PcdoB SDDH e
movimento feminista. Entrevista aplicada em questionário respondido por email em: 13 de maro as 13:24
CARVALHO Angêlo. Geógrafo e Professor. Conheceu Iza cunha nas manifestações estudantis e
sindicais. Entrevista aplicada em questionário respondido por email em: 05 de maro as 18:19h.

345
conforme a própria Iza Cunha em entrevista concedida como forma de denúncia no
Jornal Resistência sobre a sua tortura relatou que: “Apesar de tudo isso, continuo
achando o mesmo que achava: que o povo tem o direito de ter melhores condições de
vida, lutando por todas as formas ao seu alcance, inclusive contra a lei, quando ela
35
favorece apenas aos poderosos”

REFERÊNCIAS

ALVARES Luzia Miranda, “Oração por uma companheira de lutas”. Blog do Paulo
Fonteles Filho. Verdade, Memória e Justiça na Amazônia. 10 jun 2016. Disponível em:
paulofontelesfilho.blogspot.com/2016/06/luzia-miranda-alvaresassic. Acesso em: 17
mar 2019.
ARENDT Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Ro de janeiro:
Forense. Universitária, 1991.
BORGES Vavy Pacheco. Desafios da Memória e da Biografia Gabrielle Brune- Sieler,
uma Vida (1874-1940). IN: BRESCIANI Stella e NAXARA Márcia (org.) Memória e
(Res) sentimento Indagações sobre uma questão sensível. Campinas SP. Editora da
Unicamp. 2004. p.288.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Elementos para uma sociologia do campo
jurídico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 229.
BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72.
Apelação nº STM 40.188. Disponível em:
bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/100/054.html. Acesso em 10 mar 2019.
CARVALHO. Luiz Maklouf. Tortura. O Inferno de Iza Cunha. Resistência. Março de
1981. Ano IV. n. 22. Disponível em: www.fcp.pa.gov.br/2016-12-13-19-41-
20/resistencia-mensario-da-sociedade-paraense-de-defesa-dos-direitos-humanos-belem-
mitograph-v-4-n-22-mar-1981-20-p. Acesso em: 06 mar 2019.
CUT-PARÁ.“Mulheres recebem a medalha Isa Cunha na ALEPA e reivindicam
medidas para a calamitosa situação da grande maioria das mulheres no Pará”.
12/03/2014. Disponível em: https://cut.pa.org.br Acesso em 17 marc. 2019.

CARVALHO. Luiz Maklouf. Tortura. O Inferno de Iza Cunha. Resistência. Março de 1981. Ano IV. n.
Disponível em: www.fcp.pa.gov.br/2016-12-13-19-41-20/resistencia-mensario-da-sociedade-paraense-de-
defesa-dos-direitos-humanos-belem-mitograph-v-4-n-22-mar-1981-20-p. Acesso em: 06 mar 2019.

346
EDMILSON RODRIGUES DEPUTADO ESTADUAL DO POVO.” Ex Deputada
Araceli recebe medalha do Legislativo”. Disponível em:
http://www.edmilsonbritorodrigues.com.br/ex-deputada-araceli-recebe-medalha-do-
legislativo/ Acesso em: 17 marc 2019.
FERREIRA Paulo Roberto. A Censura no Pará. A mordaça a partir de 1964 9registros e
Depoimentos). Belém Pará Paka-Tatu. 2015. p. 165

FONTES, Edilza Joana Oliveira A UFPA e os Anos de Chumbo: memórias, traumas,


silêncios e cultura educacional (1964-1985) – Entrevista com Humberto Rocha Cunha.
Disponível em: http://www.multimidia.ufpa.br/jspui/handle/321654/1277. Acesso: 04
mar 2019.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro


perseguido pela inquisição: São Paulo, Companhia das Letras, 2006. p. 205.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, Falso, Fictício. Tradução de Rosa
Freire d‟aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo. Companhia das Letras. 2007.p.7.
JORNAL RESISTÊNCIA. Resistência à ditadura o embrião da luta por Direitos
Humanos no Brasil. 02/02/2012. Disponível em:
https://jornalresistenciaonline.blogspot.com. Acesso em 17mar 2019.
JUS BRASIL. “Legislativo comemora Dia Internacional da Mulher”. 08/03/2010.
Disponível em: https://al-pa.jusbrasil.com.br Acesso em 14 set 2018.
MATOS, Maria Izilda. Outras Histórias: as Mulheres e estudos de gênero-percursos e
possibilidades (org). Gênero em Debates. São Paulo. Edusc. 1997, p. 84-113. A autora
se detém na análise dos novos perfis de comportamentos masculinos e femininos
através da categoria analítica de gênero.
PERROT Michele. A Mulher Popular Rebelde, In: As Mulheres e os silêncios da
História. Bauru. SP, EDUSC. 2005. p. 217.
PERROT Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo. Contexto. 2017. p.15-16.
PRIORE Del Mary. Histórias e conversas de Mulher. 2ª ed. São Paulo. Planeta.
2014.p.19.
SAMOLÃO Mirian da Silva & VIDAL Josep Pont. A participação das Mulheres no
espaço público-político: Algumas reflexões. In: ALVARES Maria Luzia Miranda;
SANTOS Eunice Ferreira; CANCELA Cristina Donza (orgs.).Mulheres e Gênero. As
faces da Diversidade. Belém: GEPEM, 2009. p.23-34.

347
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias. Historiadores e Jornalistas.
Aproximações e afastamentos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. CPDOC/FGV, n.19,
1997.,p.12.
TOLEDO, Cecília. Gênero e Classe. Org Alicia Sagra. São Paulo Sundermann,
2017.p.16.

348
Mulheres e Direito à Cidade

https://doi.org/10.29327/527231.5-23

Gizelle Soares de Freitas


Universidade Federal do Pará

RESUMO: Este artigo faz uma breve e ainda inicial aproximação acerca da temática
―Mulheres e Direito à Cidade‖, numa perspectiva interseccional para trabalhar vetores
de opressão que são: gênero, raça e classe. A construção dos espaços urbanos das
cidades, historicamente, obedecem uma lógica capitalista-patriarcal, de grande
segregação e invisibilidade de segmentos que constroem cotidianamente esse espaço,
que são: mulheres, na sua grande maioria negras; LBT‟s; pobres, moradoras das
áreas periféricas. Nas cidades é nítido a segregação sócioespacial desses segmentos,
estas que apresentam espaços construídos para famílias de renda alta, comandadas
por homens, cis, brancos e heteronormativos, é este perfil que direciona a contrução,
planejamento e implementação das políticas sociais. Reconhecer que a sociedade
brasileira tem uma estrutura machista, altamente racista, e lgbtqifóbica, desde a sua
formação, contribui para mudanças de comportamento, contudo é urgente que os
planos diretores das cidades, que pensar a construção de espaços públicos nessa
cidade, tenha um caráter acolhedor e inclusivo aos diferentes segmentos,
considerados pelo capital e pela grande mídia, como minoria. Uma cidade onde as
mulheres tenham voz ativa e decisiva no planejamento, desenho, produção, uso e
ocupação do espaço urbano. Onde o processo de planejamento urbano coloque as
necessidades, usos e desejos das pessoas no centro das agendas, em excluir as
mulheres e outras identidades.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Cidade; Direitos; Patriarcado; Capitalismo; Política


Social.

SUMMARY: This article makes a brief and still initial approach on the theme ―Women
and the Right to the City‖ in an intersectional perspective to work vectors of oppression
that are: gender, race and class. The construction of urban spaces of cities, historically,
obeys a capitalist-patriarchal logic patriarchal capitalist, with great segregation and
invisibility of segments that daily build this space, which are: women, mostly black;
LBT's; poor people living in peripheral areas. In cities it is clear the socio-spatial
segregation of these segments, which present spaces built for high-income families,
run by men, cis, whites and heteronormative, is this profile that directs the construction,
planning and implementation of social policies. Recognizing that Brazilian society has a
chauvinistic, highly racist, and lgbtqphobic structure since its inception contributes to
behavioral changes, however it is urgent that the city's master plans, that think of the
construction of public spaces in that city, have a character welcoming and inclusive to
the different segments, considered by the capital and the mainstream media, as
minority. A city where women have an active and decisive voice in the planning,
design, production, use and occupation of urban space. Where the urban planning
process puts people's needs, uses and desires at the center of agendas, in excluding
women and other identities.

KEYWORDS: Gender; City; Rights; Patriarchy; Capitalism; Social Policy.

349
ESPAÇO URBANO E ESTADO CAPITALISTA

A ação de ocupar um lugar no espaço, habitar, faz parte do desenvolvimento


histórico da humanidade. A produção das cidades se diferencia de acordo com as
circunstâncias históricas, econômicas, políticas, sociais e espaciais em cada etapa do
desenvolvimento da humanidade. Portanto, produzido socialmente pelo trabalho
humano.
O homem sente o desejo de uma cidade, como escreve Calvino (1990) em sua
história fantástica Cidades Invisíveis. Marco Polo, viajante, encontra-se com Kublai
Khan, imperador do Oriente, e assume a missão de descrever em detalhes os lugares
do domínio Khan, até então desconhecidos. As cidades descritas nesta história são,
para Calvino, uma metáfora da experiência humana e, através da voz do nosso
viajante, afirma que jamais devemos confundir uma cidade com o discurso que a
descreve (CALVINO, 1990, p. 38).
O que se propõe nas páginas seguintes é uma inicial e breve reflexão teórica
sobre a cidade numa perspectiva de gênero. Mas, não qualquer cidade perdida no
espaço e no tempo. Trata-se da cidade capitalista patriarcal.

A FORMAÇÃO DAS CIDADES E O ESPAÇO URBANO CAPITALISTA

A passagem do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista


ocorrida entre os séculos XVIII e XIX é o momento histórico no qual surgem as noções
elementares da cidade capitalista. Harvey (2015), ao tratar das mudanças ocorridas na
Paris de 1848 desconstrói o mito de que a modernidade constituiria em si uma ruptura
radical com o passado. Apoiando-se na teoria da modernização, inaugurada por Saint-
Simon e levada a sério por Marx, Harvey afirma que ―[...] nenhuma ordem social pode
conseguir mudanças que já não estejam latentes dentro de sua condição existente‖
(HARVEY, 2015, p. 11).
Conta-nos Harvey (Ibid., p. 13) que o ano de 1848 fora dramático para toda a
Europa e particularmente para Paris. Havia fome, desemprego, miséria e
descontentamentos por todos os lados. Tudo convergia para a capital francesa, visto
que as pessoas migravam do campo para cidade em busca de sustento. Até então a
visão urbana tocava superficialmente os problemas de infraestrutura urbana medieval.
Com o argumento da ―ruptura radical‖ na economia política, na vida e cultura
parisiense o novo vai se consolidando sem o velho. A cidade assume a modernidade:
nas artes; nas indústrias que, de dispersas e artesanais, passam à modernização com
o advento da maquinaria; no comércio com suas imensas lojas de departamento, etc.

350
Capital e modernidade se uniram transformando o funcionamento da cidade, sua
organização e as relações sociais. A cidade capitalista concentra e consolida, nestas
circunstâncias, a divisão do trabalho e a apartação entre campo e cidade. A cidade
passa a centralizar a população, os instrumentos de produção, o capital, as
necessidades básicas, o lazer, etc. O campo passa a ser sinônimo de solidão e
isolamento.
Segundo Lefebvre (2008), a cidade é o local onde as relações de produção se
universalizam, na perspectiva da concorrência, onde se acelera a circulação de
capital.
Em ―A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra‖, Engels (2008) descreve
a precária situação vivida pela classe trabalhadora inglesa, que se aprofundou a partir
da industrialização, evidenciando os horrores vivenciados por trabalhadores e
trabalhadoras no período do capitalismo concorrencial. As condições de moradia da
classe trabalhadora inglesa eram locais totalmente insalubres que chegava a gerar
doenças nas famílias, em especial nas crianças. O autor demonstrava não somente a
escassez de habitação, mas a total falta de condições de habitabilidade, as quais
somente poderiam ser resolvidas com a superação do sistema capitalista.

O operário é constrangido a viver nessas casas já arruinadas porque


não pode pagar o aluguel de outras em melhor estado, porque não
existem moradias menos ruins na vizinhança das fábricas ou porque,
ainda, elas pertencem ao industrial e este só emprega os que aceitam
habitá-las. É óbvio que a duração média assinala de quarenta anos
não é rígida: se as construções se situam num bairro de alta
densidade populacional e se, apesar do aluguel do terreno ser caro,
há sempre a possibilidade de encontrar locatários, os construtores
fazem algo para conservá-las em condições de relativa habitabilidade
por mais tempo – mas o que fazem é sempre o mínimo indispensável
e as reparações cobrem especialmente as casas em piores
condições. De quando em vez, diante da ameaça de epidemias, a
sonolenta consciência dos serviços de higiene é despertada: então,
empreendem-se incursões aos bairros operários e interditam-se
inúmeros porões e casas [...], mas isso dura pouco, porque logo as
mesmas casas voltam a ser ocupadas por novos inquilinos e os
proprietários, de novo com os imóveis alugados, têm uma vantagem a
mais: sabem bem que a vigilância sanitária não voltará tão cedo!
(ENGELS, 2008, p. 101).

1
Para Lojkine (1997), a segregação espacial , no âmbito urbano, pode ser
observada a partir da infraestrutura material disposta em cada espaço, destacando a
moradia como o elemento mais importante na configuração da segregação. Assim, em

1
Lojikine (1997) identificou três tipos de segregação: 1- uma oposição entre o centro e a periferia; 2- uma
separação cada vez mais acentuada entre as áreas ocupadas pelas moradias das classes mais populares
e aquelas ocupadas pelas classes mais privilegiadas; 3- uma separação entre as funções urbanas, que
ficam contidas em zonas destinadas a funções específicas (comercial, industrial, residencial, etc.).

351
última instância, o Estado representa os interesses do capital monopolista, mesmo que
contraditoriamente, em certos aparelhos locais, a ação estatal possa refletir os
interesses da classe dominada. Nesse sentido, Lojkine reafirma a tese defendida por
Engels (2008), segundo a qual a cidade é o espaço dos conflitos, mas igualmente da
2
política .
A cidade capitalista contemporânea é um fenômeno recente e se difere
substancialmente das outras experiências na história (LEFEBVRE, 2008). Importante
ressaltar que antes da ascensão do capitalismo como modo de produção hegemônico,
os espaços dascidades possuíam características específicas. Com o desenvolvimento
do capitalismo, do monopolismo ao sistema financeiro globalizado, a cidade também
acompanhou e passou a se reinventar sempre que necessário (LEFEBVRE, 2008).
Conforme Harvey (1980, p. 34), deve-se ―[...] considerar a cidade como um
sistema dinâmico complexo no qual a forma espacial e o processo social estão em
contínua interação‖. Logo, deve-se compreender o espaço urbano, juntamente com
sua dinâmica, bem como seu arranjo espacial, primeiramente, como resultado de um
produto social que, por conseguinte, é fruto das ações acumuladas através do tempo.

A urbanização sempre foi, portanto, algum tipo de fenômeno de


classe, uma vez que os excedentes são extraídos de algum lugar ou
de alguém, enquanto o controle sobre o uso desse lucro acumulado
costuma permanecer nas mãos de poucos (como uma oligarquia
religiosa ou um poeta guerreiro com ambições imperiais). Essa
situação geral persiste sob o capitalismo, sem dúvida, mas nesse
caso há uma dinâmica bem diferente em atuação (HARVEY, 1980, p.
30).

A divisão campo e cidade é um elemento central para o modo de


produção capitalista. Sobre isso, afirma Lefebvre (2008, p. 49):

Não há a menor dúvida de que a separação entre a cidade e o campo


mutila e bloqueia a totalidade social; ela depende da divisão do
trabalho material e intelectual que encarna, que projeta sobre o
território. Nessa separação, compete ao campo o trabalho material
desprovido de inteligência; à cidade pertence o trabalho enriquecidoe
desenvolvido pelo intelecto, compreendendo as funções de
administração e comando.

Vale destacar que em relação aos capitalistas (proprietários dos meios de


produção) apesar de se apresentarem enquanto frações de uma mesma classe
(industrial, comercial, financeira, serviços, etc.), possuem o mesmo objetivo
estratégico: o lucro através da mais brutal exploração.

2Esses argumentos são corroborados por Maricato (2001, p. 51), quando afirma, no caso do Brasil, que:
―É impossível esperar que uma sociedade como a nossa, radicalmente desigual e autoritária, baseada em
relações de privilégio e arbitrariedade, possa produzir cidades que não tenham essas características‖.

352
A reprodução do capital passa pelos processos de urbanização em
inúmeras formas. Mas a urbanização do capital pressupõe a
capacidade do poder da classe capitalista em dominar o processo
urbano. Isto implica a dominação da classe capitalista não só sobre
aparatos estatais, mas também sobre populações inteiras - seu estilo
de vida, bem como sua força de trabalho, o seu valor cultural e
político, bem como suas concepções mentais do mundo. (HARVEY,
1980, p. 65).

Até aqui foi necessário esse apanhado histórico, ainda que resumido, sobre a
formação das cidades capitalistas, contudo vale frisar que diferentes segmentos fazem
uso desse espaço urbano, que a classe trabalhadora não é homogênea, não existe um
perfil de sujeito social, apesar da construção social nos impor essa narrativa. O uso
que as mulheres fazem do espaço urbano é bem diferente daquele que o homem faz.
Diante dessa problemática enfatiza-se a necessidade do espaço urbano ser
planejado, projetado, a partir de uma perspectiva de gênero, é inegável que o direito à
cidade não é garantido plenamente à classe trabalhadora, nos marcos da sociedade
capitalista não é possível, porém dentro desse conjunto há que se pensar em cidades
mais inclusivas às mulheres trabalhadoras, pobres e negras, visto que há uma classe,
raça e gênero que é alvo da ineficácia das políticas sociais, dentre elas o direito à
cidade.

MULHER E DIREITO À CIDADE

Fundamental essa discussão, a questão de gênero deve fazer parte da


elaboração de toda política pública, porque sim, há especificidades, segundo a PNAD
do início do ano de 2019, 28 milhões de famílias são chefiadas por mulheres.
necessário que o poder político, econômico, reconheça a necessária e
intrínseca relação entre as mulheres, seu papel social e as cidades.
O território urbano é visivelmente construído sob o olhar masculino, percebe-se
nas estruturas físicas, nos terrenos vazios, que para as mulheres representa um risco
de sofrer violência, na quase inexistência de creches públicas, nas ruas mal
iluminadas, nos transportes públicos pouco seguros às mulheres, vide o alto índice de
assédio sexual e até estupro. As cidades são construídas no seu cotidiano por
diversos segmentos como: as mulheres, negros e negras, lgbtqis, indígenas,
quilombolas, pessoas com deficiência, e etc
Segundo dados do governo federal, as mulheres brasileiras são responsáveis
pelo sustento de 37,3% das famílias, possuem expectativa de vida de 77 (setenta e

353
sete) anos de idade, equivalendo a 51,4% da população brasileira atual. Portanto, não
é possível pensar num planejamento urbano sem levar isso em consideração.
São gritantes as desigualdades territoriais, vive-se em cidades que concentra
infraestrutura urbana e serviços públicos (de qualidade) nas áreas ocupadas por
famílias com alta renda, o espaço urbano não é neutro, é permeado por tensões
advindas dos interesses antagônicos dos diferentes atores sociais que a compõe, ou
melhor, a questão de classe é indissociável de cada experiência de vivência nas
cidades.
Uma cidade democrática, realmente inclusiva precisa ser pensada para a livre
circulação das mulheres, visto que terrenos baldios, ruas mal iluminadas, precariedade
do transporte público, ônibus que não pára em qualquer lugar para que as mulheres
desçam, por conta do horário, são limitadores para esse segmento. São cidades sem
acessibilidade, pessoas com deficiência tem também circulação bastante limitada
devido esses complicadores.
O direito à cidade deve contemplar os diversos segmentos, logo as dimensões
de gênero, raça, orientação sexual e geração atravessam a vivência que se tem do
espaço urbano, e podem somar marcadores de opressão, estes que se interligam a
segregação econômica de alguns sujeitos, a luta por cidades verdadeiramente
acolhedoras deve ser construída a partir de um olhar interseccional, é um desafio que
precisa ser encarado com urgência.
O planejamento urbano não pode mais ser construído levando em
consideração somente um perfil de: homem, branco, de renda média/alta, cis e
heterossexual. Esse é um modelo padrão de pessoa que é tido como base para a
construção de todas as políticas públicas nessa sociedade, não leva em consideração
as especificidades de segmentos que não são minoria, como é a ideia comumente
massificada, tanto pelo poder público quanto pela grande mídia. As mulheres são
3
51% da população brasileira. Há uma tendência grande a periferização e

criminalização da população negra e de baixa renda, no planejamento territorial. Essa


conformação das cidades que está entrecruzado pelo aspecto econômico tem uma
possível explicação na formação histórica social, não dá pra esquecer que o Brasil foi
o país que mais viveu a escravidão, foram 388 anos, portanto a questão racial aliada a
questão de classe é a base da segregação sócioespacial no Brasil, alguns autores,
como Moura (1983) denominam de ―colonialismo escravista‖. Essa hipótese não é
difícil de ser confirmada caso seja visualizada a ocupação profissional dessas famílias

3Segundo dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de 2018, o
número de mulheres no Brasil é superior ao de homens. A população brasileira é composta por 48,3% de
homens; e 51,7% de mulheres.

354
empurradas para as áreas periféricas, a grande maioria compõem o mercado informal
e precarizado de trabalho, bem como o mercado informal de moradia também. As
periferias se tornaram esse espaço de sobrevivência e convivência da população
negra, pobre, e lgbtqi. Mulheres de baixa renda e baixa escolaridade, mães que criam
seus filhos sem a presença do pai, segmentos com pouco acesso à educação de
qualidade, à saúde, à moradia digna. Se o objetivo é o planejamento urbano social
esses elementos precisam configurar como prioridade, incluir os até então
historicamente excluídos.
Pensar em direito à cidade é também pensar na divisão sexual do trabalho,
existe, é uma realidade. Historicamente, aos homens é atribuído o trabalho produtivo,
enquanto que o reprodutivo, ou melhor, a reprodução social, relegado quase que
exclusivamente, às mulheres. O cuidado da casa, dos idosos, o cuidado do outro,
inclusive desse homem que sai ao mercado de trabalho, que sai para vender sua força
de trabalho, só o consegue fazer em boas condições devido haver a retaguarda
imprescindível da reprodução social feminina, este que é um dos pilares de
sustentação do sistema capitalista. O espaço da rua, o espaço público é
essencialmente ocupado pelos homens, enquanto que o espaço privado, do lar,
doméstico, de corpos femininos.
O capitalismo certamente não inventou a subordinação das mulheres.
Esta existiu sob diversas formas em todas as sociedades de classe
anteriores. O capitalismo, porém, estabeleceu outros modelos,
notadamente „modernos‟, de sexismo, sustentados pelas novas
estruturas institucionais. Seu movimento fundamental foi separar a
produção de pessoas da obtenção de lucro, atribuir o primeiro trabalho
às mulheres e subordiná-lo ao segundo. Com esse golpe, o capitalismo
reinventou a opressão das mulheres e, ao mesmo tempo, virou o mundo
de cabeça para baixo. A perversidade se torna nítida quando
relembramos o quanto o trabalho de produção de pessoas é, na
verdade, vital e complexo. Essa atividade não apenas cria e mantém a
vida no sentido biológico, ela também cria e mantém nossa capacidade
de trabalhar – ou o que Marx chamou de „força de trabalho‟ (ARRUZZA,
BHATTACHARYA, FRASER, 2019, 51-52). .

As mulheres desafiam a imposição da conformação das cidades e passam a


ocupar os espaços das ruas, contudo isso traz tristes consequências, como a violação
4
dos corpos dessas mulheres, como os casos de importunação sexual sofrido dentro
dos transportes públicos, uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
observou que no ano de 2017, 29% das entrevistadas relataram ter sofrido algum
tipode violência, em especial as mais jovens (faixa etária entre 16 e 24 anos), que são
45% desse número, e as mulheres negras, as quais são 31% desse número. Quando
perguntadas sobre o local dessas violências, 51% responderam terem sofrido a

4A partir da aprovação da Lei 13.718/18 a importunação sexual é crime. Tem crescido as ocorrências
de assédio sexual dentro do transporte público.

355
mesma em algum espaço público. A última pesquisa do 13° anuário brasileiro de
segurança pública mostrou que em 2018 foram 66.041 vítimas de estupro. Dessas
50,9% são mulheres negras. 81,8% das vítimas são mulheres. A maioria desses
crimes é cometido contra meninas de 10 a 13 anos. Em 96,3% dos casos o estuprador
homem. 75,9% do agressor é conhecido da vítima. O Brasil atingiu o nefasto recorde
de estupro em 2018. Apesar do alto índice ainda são dados imprecisos, devido a
subnotificação dos crimes. Já uma pesquisa mais recente realizada pelo Instituto
Patrícia Galvão em junho de 2019, revelou que 97% das mulheres entrevistadas já
sofreram assédio sexual dentro do transporte público.
Portanto, um dos serviços essenciais para a garantia do direito das mulheres à
cidade, que também permite sua circulação pelo espaço e acesso a outros serviços, é
o transporte público. Como visualizado nas pesquisas existentes (como acima), este
também é o local em que um número considerável de mulheres já ouviu e já relatou ter
sofrido algum tipo de violência. Na pesquisa Chega de Fiufiu, realizada no ano de
2014 pela ONG Think Olga, 64% das mulheres relataram ter sofrido algum assédio no
transporte público. Dados que complementam essa pesquisa aparecem em um
levantamento feito pela Agência É nois – Inteligência Jovem, em parceria com os
institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, mostram que o espaço público é visto,
pela maior parte das entrevistadas, como um local em que não há segurança ou
respeito: 94% delas já foram assediadas verbalmente e 77%, fisicamente, como a
―encoxada‖ no transporte público ou o beijo forçado e a passada de mão em casas
noturnas. Os números, a triste realidade vivenciada pelas mulheres nos transportes
públicos, revelam que este serviço (como toda a estrutura da sociedade) não é
pensada na perspectiva de gênero o que resulta em maiores dificuldades de circulação
dessas, quando comparadas aos homens, e em restrições no acesso à cidade como
um todo.
No Estado do Pará, segundo dados da Divisão Especializada no Atendimento à
5
Mulher (DEAM) , neste ano de 2019 foram registradas 123 ocorrências de crimes de
importunação sexual no transporte público, sabe-se que a realidade é de casos
subnotificados, portanto possivelmente este índice é maior.
Tendo como referência a mobilidade das mulheres, é urgente que as políticas
públicas sejam elaboradas, implementadas e avaliadas, levando em consideração a
questão de gênero. Já existem iniciativas nesse sentido em algumas cidades, como:
Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e Distrito Federal, com o vagão rosa; e também

Dados colhidos do Jornal Amazônia do dia 20 de abril de 2019. A Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa
Social (SEGUP), consideram o período entre os meses de janeiro a março de 2019.

356
a chamada Lei da Parada Segura, que já foi implementada em São Paulo, Caruaru
e Porto Alegre.
Para além das políticas imediatistas, porém valorosas, do ponto de vista da
questão da segurança contra assédios às mulheres em transportes públicos, deve-se
pensar propostas de implementação de políticas públicas mais educativas, no sentido
de campanhas que promovam formação de consciência, de tentativa de mudança da
estrutura social e cultural misógina, que disseminem informação para a construção de
medidas efetivas pelo fim dos assédios e violências sexuais contra as mulheres.
Propagandas informativas, cartilhas, cartazes, livros didáticos para educação básica,
fundamental e média que perpassam a temática, curta-metragens informativos, enfim,
diversas medidas podem ser pensadas para formação de uma nova consciência social
que promova, efetivamente, o rompimento com o machismo.
Bem, a vivência que se tem da cidade varia de acordo com a classe social,
gênero, orientação sexual e raça. É fato que uma mulher branca, cis, heterossexual,
da classe alta, tem uma percepção diferente de uma mulher negra e pobre, se for LBT,
os marcadores de opressão somam numa escalada de muita violência e segregação.
O planejamento urbano precisa ser construído nessa perspectiva, as cidades são
territórios racistas, misóginos, lgbtqifóbicos, mas precisam ser diferentes, daí a luta
dos movimentos sociais, daí a necessidade de discutir direito à cidade de forma
interseccional, e da urgência de ter cidades inclusivas, democráticas, para as pessoas,
e não para os aglomerados empresariais.
As periferias se apresentam, portanto, como uma faceta não tão oculta dos
significados e significações do que é em si a propriedade privada no Brasil, distante da
sua função social, agregando apenas aos interesses dos proprietários.
Sendo assim é urgente compreender que a experiência das mulheres das
ocupações e das mulheres periféricas de uma forma geral é atravessada pelas
categorias: gênero, classe e raça. Fazendo com que vários sistemas de opressão se
cruzem afetando diretamente as suas vidas (SAFFIOTI, 2013).
Para que as cidades sejam acessadas especialmente, pelas mulheres,
democraticamente, é necessário e urgente que se deixe de conceber, planejar e
executar a infraestrutura e os serviços urbanos a partir de um ponto de vista único ou,
ainda, a partir de um discurso tecnicista que defende uma suposta neutralidade ao
olhar para a totalidade da população e, dessa forma, nega a multiplicidade de
experiências e necessidades de diferentes grupos no cotidiano das cidades. São
muitos os desafios experimentados pelas mulheres nos espaços públicos e no acesso
aos serviços; não à toa, é a minoria em posições de poder e espaços de tomada de
decisão. Contudo, como coloca Maricato (2001, p. 120) ―embora essa assertiva seja

357
central, não podemos tomá-la de forma absoluta, porque pode levar profissionais
dessa política a uma paralisia e falta de perspectiva de ação coletiva‖.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Titchi; FRASER, Nancy. Feminismo para os


99%: um manifesto. Tradução Heci Regina Candiani. – 1ª ed. – São Paulo: Boitempo,
2019.

CALVINO, Ítalo. Cidades Invisíveis. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo:


Editorial Presença/Livraria Martins Fontes, 2008. (Coleção Síntese).

HARVEY, David. Justiça social e a cidade. São Paulo: Editora Hucitec, 1980.

HARVEY, David. Paris Capital da Modernidade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

LEFEBVRE, Henry. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

LOJKINE, Jean. O Estado Capitalista e a Questão Urbana. São Paulo: Martins


Fontes, 1997.

MARICATO, Hermínia. Brasil, Cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis:


Vozes, 2011.

MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. Série Fundamentos. Editora Ática,


1983.

SAFFIOTI, Heleieth. A Mulher na Sociedade de Classes. Mito e Realidade. Editora


Expressão Popular, 2013.

358
AT 3 - Gênero, Comunicação, Arte e Literatura
Coordenação

Eunice Ferreira dos Santos - UFPA

Carla Marinho – UFPA

Proposta da Área temática

A área temática tende aos estudos e pesquisas sobre a identificação do lugar


das mulheres nas atividades das Artes, Comunicação e da Literatura,
procurando recuperar suas práticas e seu estatuto ou não aos cânones
artístico-literários clássicos; recuperação do acervo desconhecido existente no
Pará, na imprensa e arquivos pessoais de poesias, artigos, partituras musicais;
recuperação da obra e identidade dessas mulheres desde um período histórico
em que se iniciam as demandas pela mudança de regime, no Brasil de 1870,
até o período contemporâneo.

359
MARIAS DA CASTANHA (1987): PRODUÇÃO AUDIOVISUAL AMAZÔNIDA E
FEMININA NOS ANOS 80
https://doi.org/10.29327/527231.5-24

Amanda Passos do Carmo (UFPA)

RESUMO: Marias da Castanha (Edna Castro e Simone Raskin, 1987) aborda a vida de mulheres
operárias em uma fábrica de castanha do Pará, na periferia de Belém. É aqui considerada uma
produção audiovisual pioneira: além de ser o primeiro filme escrito e dirigido por uma mulher no
Pará, seu enfoque nas perspectivas socioculturais das vivências das mulheres inova ao
apresentar seu cotidiano fora de espaços fabris. Essa perspectiva relaciona-se muito com a
historiografia vigente no período, que começa a trazer à tona questões antes marginalizadas.
Castro e Raskin, ao realizarem Marias da Castanha, pensam o feminino dentro do trabalho fabril,
constroem representações das vivências de mulheres amazônidas através de relações de
trabalho, relacionamentos amorosos e sociabilidades apresentadas no documentário. De início,
se discute a utilização do cinema documentário como fonte e objeto histórico, assim como
métodos utilizados para tal, tomando como pertinente a questão da decolonialidade. Em seguida,
o documentário em si é explorado, contextualizando o sujeito mulher no cinema, assim como o
cinema amazônico, para depois discutir sua produção, recepção e impacto nacional e
internacional. Depois, discute-se a necessidade de entender o cinema periférico partindo de uma
perspectiva transcultural. Por fim, apresenta-se a análise de elementos que integram a narrativa
do média-metragem.
Palavras-chave: mulheres, cinema, Amazônia, documentário, audiovisual

ABSTRACT: Marias da Castanha (Edna Castro and Simone Raskin, 1987) addresses the
lives of women workers in a Pará nut factory in the periphery of Belém. It‟s here considered a
pioneering audiovisual production: besides being the first film written and directed by a
woman in Pará, its focus on the sociocultural perspectives of women's experiences innovates
by presenting their daily life outside of factory spaces. This perspective is very much related
to the historiography of the period, which begins to raise issues that were previously
marginalized. Castro and Raskin, by doing Marias da Castanha, are approaching the
feminine within the factory work, building representations of the experiences of Amazonian
women through work, relationships and sociabilities presented in the documentary. At first,
the use of documentary cinema as a source and historical object is discussed, as well as the
methods used to do so, taking decoloniality as pertinent. Then, the documentary itself is
explored, contextualizing the woman in the cinema, as well as the Amazonian cinema, to
then discuss its production, reception and national and international impact. Then we discuss
the need to understand peripheral cinema from a transcultural perspective. Finally, we
present the analysis of elements that integrate the narrative of the medium-lenght film.
Key-words: woman, cinema, Amazon, documentary, audiovisual

360
Imagens de uma fábrica vazia. Uma melodia suave, contrastando com ruídos da
fábrica em pleno funcionamento. Transição tênue do teto da fábrica para o topo de árvores,
seguido pelo canto de pássaros. Um homem caminha pela floresta colhendo frutos da
castanha. Em seguida, imagens do rio, acompanhadas de uma música melancólica. Tem
início o depoimento de uma mulher, até então sem nome... é assim que se inicia Marias da
Castanha (Edna Castro e Simone Raskin, 1987), documentário cujo seguinte artigo se
debruça. De início, se discute a utilização do cinema documentário como fonte e objeto
histórico, assim como métodos utilizados para tal, tomando como pertinente a questão da
decolonialidade. Em seguida, o documentário em si é explorado, contextualizando o sujeito
mulher no cinema, assim como o cinema amazônico, para depois discutir sua produção,
recepção e impacto nacional e internacional. Depois, discute-se a necessidade de entender
o cinema periférico partindo de uma perspectiva transcultural. Por fim, apresenta-se a
análise de elementos que integram a narrativa do média-metragem.

A relação entre cinema e história vai muito além de sua utilização como recurso
pedagógico, se entendermos o audiovisual como agente direto na ―construção de
1
identidades e lugares sociais‖ , pois ele constrói representações sociais, ricas para uma
historiografia cultural e análise social. Diante dessas representações, é possível pensar as
intencionalidades que as permeiam, consagrando o cinema como uma construção diante
dos interesses que movem sua produção. Portanto, enxergar essas produções audiovisuais
como fontes e objetos históricos é pensá-las como fruto de intencionalidades e discursos.
2
Marcos Napolitano traça duas principais vertentes em que os materiais audiovisuais
3
costumam ser encaixados pelas pesquisas históricas: subjetivista e objetivista . A primeira

corresponde a pesquisas que dão total atenção ao aspecto subjetivo da fonte, principalmente
aquelas de autoria assumidamente artística, como músicas, tomando seus significados como
fruto de especulação. A segunda denota à fonte um ―efeito de realidade‖, as colocando como
testemunho direto. Os filmes documentários estão muito ligados a essa segunda perspectiva,
pois costumam ser lidos como fidedignos ao acontecido, desconsiderando suas subjetividades e
construções. Para Napolitano, ambas perspectivas são prejudiciais para realizar uma análise
histórica, pois falham em perceber os mecanismos de representação presentes nessas fontes. A
observação desses mecanismos deve se dar através da observação de seus códigos internos e
contextos externos. Dessa forma, o foco da análise

Segundo Rodrigo de Almeida Ferreira, ao estabelecer relações entre cinema, história e memória
coletiva, a cultura audiovisual possui um importante papel na compreensão da história e na
construção de identidades. FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema-Memória: reflexões sobre a
memória coletiva e o saber histórico. O Olho da História, n.º 11, 2008, p. 3.
NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes históricas. Editora
Contexto, 2006.
Ibidem, p. 236.

361
deve pautar o entendimento das linguagens adotadas pelo material para realizar
adaptações, omissões e outras estratégias para a construção de um discurso.

Um filme necessariamente está ―além de sua esfera de exibição e entretenimento, e


que está inserido em uma estrutura ideológica reforçada por diversos interesses coletivos e
4
privados‖ , logo é necessário atentar-se à sua realidade circunscrita, pois assim ele ―supera
5
o seu status de produção cinematográfica e adquire um valor como fonte histórica‖ . Um
trabalho historiográfico sobre audiovisual se possibilita através de uma análise que extrapola
os limites do discurso por ele construídos; explora seus autores, sua produção, distribuição e
6
recepção, e o contexto em que isso se deu. Manuela Penafria aponta que a análise interna
se concentra na obra audiovisual enquanto uma produção individual e singular, enquanto a
externa ―considera o filme como o resultado de um conjunto de relações e constrangimentos
nos quais decorreu a sua produção e realização, como sejam o seu contexto social, cultural,
7
político, econômico, estético e tecnológico‖ . Dessa forma, embora diferenciadas, ambas
análises são fundamentais.

Através do levantamento da metodologia desenvolvida por estudiosos da área, é


possível notar que grande da análise histórica do cinema se pauta em teorias que possuem
como referência experiências iniciais da sétima arte nos séculos XIX e XX, o que auxilia na
construção de uma metodologia marcada pelo eurocentrismo. Como quaisquer outras
formas de arte, a produção cinematográfica é atravessada pelas relações de poder de uma
sociedade, constituindo instrumento social e político. Isso se materializa, por exemplo,
8
através do conceito de ―hollywoodcentrismo‖ , que remete à dominação da estética do

cinema pela produção hollywoodiana, reforçando a ideia de superioridade dos centros e


colocando outras nações na posição do ―outro‖, vinculando-os ao exotismo.

A escolha de pensar o cinema feito na Amazônia utilizando como referência estudos


decoloniais parte da necessidade da incorporação de elementos que não apenas reproduzam as
narrativas coloniais. Isso não significa a eliminação de apontamentos metodológicos pautados
em narrativas eurocentradas, mas entender de onde partem, contextualizando-as

4
AMÉRICO, Guilherme de Almeida; VILLELA, Lucas Braga Rangel. O Cinema na perspectiva da
História Social: uma reflexão teórico-metodológica. IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem.
Londrina, 2013.
Ibidem, p. 1354.
PENAFRIA, Manuela. Análise de filmes - conceitos e metodologia(s). In: VI Congresso Sopcom, 2009.
Ibidem, p. 7.
O conceito trata ―do que Stam e Shoah chamam de „hollywodcentrismo‟ (2014), que não se refere
apenas ao domínio do cinema comercial estadunidense, mas sim de sua estética impositiva. As
diversas culturas são apenas incorporadas neste cinema pelo meio do ―ventriloquismo‖, que autoriza
a voz dos subalternos apenas pelo veículo e falas dominantes (Spivak, 2014).‖ SANTOS, Paula
Cristina Menezes; SANTOS, Clarissa Tagliari. Cinema e sociologia: crítica e descolonização da
imagem. Perspectiva Sociológica: A Revista de Professores de Sociologia, n. 18, p. 3-12, 2016. p.6.

362
em seus berços. Se o objetivo é a crítica ao eurocentrismo nesses estudos, é preciso
entender que o modo de analisar sujeitos que estão à margem desse processo hegemônico,
não precisa – ou não deve – ser apontado por sujeitos hegemônicos. Suas discussões
embora pertinentes, devem ser postas em combinação com pensamentos e críticas de
estudiosos que quebram com a falsa noção de objetividade presente nas teorias pautadas
pelo domínio europeu, produto da colonialidade. Esses saberes precisam ser reestruturados,
se quisermos subverter a hierarquia que condiciona os estudos das ciências humanas a
9
uma colonialidade do saber , vinculando-os aos parâmetros dos centros mundiais e

ignorando vivências do chamado ―terceiro mundo‖. Afinal, a produção cinematográfica se


constitui como um campo de embates, onde é possível construir resistências.

Uma pesquisa que pensa a agência e representação feminina no audiovisual


amazônico precisa atentar-se a essas questões. Estudos decoloniais objetivam a
descolonização do saber científico, partindo de contextos históricos geográficos não
hegemônicos, pautando a insurgência de sujeitos subalternizados, indo além da perspectiva
estruturalista e tratando de identidades. Um dos eixos a partir dos quais isso se dá é a
transdisciplinaridade, capaz de abarcar uma nova maneira de produzir conhecimento,
fugindo das amarras de uma ciência dividida. O saber transdisciplinar objetiva ir além de
saberes pautados pela colonialidade, repensando a subalternidade de sujeitos como
mulheres, indígenas e negros ao dar conta de suas experiências. Esse trabalho se
fundamenta em pesquisas de estudiosos da história, do cinema, da comunicação e áreas
afins com a perspectiva decolonial. Para dar continuidade a essa discussão, agora é
necessário adentrar no objeto de estudo em si: o documentário.
10
―Marias da Castanha‖ , realizado pela Prof.ª Dr.ª Edna Maria Ramos de Castro e
pela cineasta paulista Simone Raskin, aborda a vida de mulheres em uma fábrica de
beneficiamento e processamento de castanha do Pará na periferia de Belém. Castro é
socióloga e professora titular da Universidade Federal do Pará (UFPa), pesquisando
processos de desenvolvimento urbano, relações de trabalho e meio ambiente na Amazônia,

A colonialidade do saber se insere no conceito de colonialidade do poder, desenvolvido por Aníbal


Quijano, e ―exprime uma constatação simples [...] de que as relações de colonialidade nas esferas
econômica e política não findaram com a destruição do colonialismo‖, visto que, ―a colonialidade se
reproduz em uma tripla dimensão: a do poder, do saber e do ser‖. Dessa forma, a noção de colonialidade
do saber está associada a uma noção eurocentrada de conhecimento. In: BALLESTRIN, Luciana. América
Latina e o giro decolonial. Revista brasileira de ciência política, n. 11, p. 89-117, 2013.
MARIAS DA CASTANHA. Direção: Simone Raskin, Edna Castro. Produção executiva: Zita
Carvalhosa, Simone Raskin. Roteiro: Edna Castro, Simone Raskin. Direção de fotografia: Chico
Botelho. Fotografia: Mário Cravo Neto. Direção de produção: Rubens Xavier, Moisés Magalhães. Som
direto: Marian Van de Ven. Trilha sonora: Roberto Ferraz. Montagem e edição de som: Saulo Silveira.
Belém. 30 min. 1987. Filmado em 16mm.

363
11
e integrante do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPa) . Sua pesquisa de

doutorado, realizada entre 1979 a 1983 na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais
(EHESS), em Paris, foi base para o desenvolvimento do roteiro do média-metragem com Simone
Raskin, cineasta que também partilha a direção. Castro afirma que o filme busca ―retratar, na
cidade, os bairros onde as trabalhadoras moram, e as lutas urbanas que travam [...]. A vida das
operárias na fábrica e a briga por um lugar no bairro, no Jurunas, cidade que se fez pela
12
ocupação. São mulheres que lutam pela terra, para ter a casa onde morar.‖ .

Marias da Castanha é aqui considerada uma produção audiovisual pioneira: além de ser
o primeiro filme realizado e dirigido por uma mulher no Pará, seu enfoque nas perspectivas
socioculturais das vivências das mulheres inova ao apresentar seu cotidiano fora de espaços
fabris. Essa perspectiva relaciona-se muito com a historiografia vigente no período, que começa
13 14
a trazer à tona questões antes marginalizadas . A chamada ―nova história‖ , no seu interesse

pela experiência das pessoas comuns, caracteriza uma aproximação com a antropologia social e
colabora na renovação das questões socioculturais. Castro e Raskin, ao realizarem Marias da
Castanha, pensam o feminino dentro do trabalho fabril, constroem representações das vivências
de mulheres amazônidas através de relações de trabalho, relacionamentos amorosos e
sociabilidades apresentadas no documentário, um dos pioneiros a trazer para a cena paraense
as questões do que se chamava a época, condição feminina. Ocorre, a partir da década de 70, a
15
emergência de trabalhos que tratam dessa ―condição‖, a exemplo dos trabalhos de Castro e

―Do cabaré ao lar‖, onde Margareth Rago analisa o movimento operário brasileiro, dando ênfase
16
à participação feminina.

Disponível em: < https://cpdoc.fgv.br/cientistassociais/ednacastro>. Acesso em 15 de dezembro de 2018.

Trajetória acadêmica e interdisciplinariedade: reflexões sobre a (des)construção das matrizes


conceituais do desenvolvimento na Amazônia. Entrevista Edna Maria Ramos de Castro. Revista Terceira
Margem Amazônia, vol. I n. 2-3. p. 233.
13
Um exemplo dessa produção é Costumes em comum, de E.P. Thompson. Também pode-se citar
O Vapor do Diabo, de José Sergio Leite Lopes, que estuda operários de uma fábrica de
processamento da cana-de-açúcar, relatando suas dificuldades, insatisfações e diferenciações
internas no ambiente de trabalho fabril.
Segundo Peter Burke, ―[...] a base filosófica da nova história é a idéia de que a realidade é social ou culturalmente
constituída. O compartilhar dessa idéia, ou sua suposição, por muitos historiadores sociais e antropólogos sociais ajuda a
explicar a recente convergência entre essas duas disciplinas [...]. Este relativismo também destrói a tradicional distinção entre
o que é central e o que é periférico na história.‖ In: BURKE, Peter. A escrita da história. Unesp, 1992, pp. 11-12.

Dentre os trabalhos de Castro, existe uma ênfase nos estudos urbanos, trabalho, populações
tradicionais, meio ambiente e divisão sexual do trabalho. Pode-se citar as obras Territórios em
Transformação na Amazônia (2017), Cidades na floresta (2014), Atores sociais, trabalho e dinâmicas
territoriais (2007) e o artigo Del Castañal a la fábrica: división sexual del trabajo y persistencia de patrones
tecnológicos en Brasil (1995).
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e terra, p. 1890-193, 1985.

364
O documentário utiliza depoimentos de mulheres operárias e imagens do seu dia-a-
dia em suas casas, no espaço fabril e em momentos de sociabilidade para construir a
narrativa da vida de uma ―Maria da castanha‖. O objetivo desse artigo não é fazer uma
análise fílmica em sua totalidade técnica, mas consagrar-se como uma tentativa de abordar
uma história social do cinema amazônico, intercruzando dados externos com representações
construídas no documentário. Para tal, é necessário tratar brevemente da conjuntura que o
permeia, do cinema amazônico e do cinema realizado por mulheres.

A consolidação do cinema documentário no Brasil data de 60, conectado com o Cinema


17
Novo. Karla Holanda destaca o crescimento de uma preocupação social e consciência

histórica nos cineastas no período. Utiliza o conceito de ―tipos sociológicos‖ de Jean-Claude


Bernardet, pautados como representantes da realidade retratada. suas individualidades eram
deixadas de lado, ou seja, a ausência do indivíduo a serviço do modelo sociológico. Holanda
chama atenção para a coletividade nos documentários: os sujeitos aparecem totalizados em uma
18
―experiência comum‖, a partir da ―síntese da experiência de grupos, classes, nações‖ . Essa

vinculação à coletividade começa a se modificar a partir de Cabra marcado para morrer


(Eduardo Coutinho, 1984). A autora relaciona essa nova forma de retratar os sujeitos em suas
individualidades nos documentários com a tendência micro-histórica, a partir dos anos 70. A
então a individualização do sujeito, caracterizado pela personagem Elizabeth, marca uma novo
percurso na trajetória do documentário brasileiro.

19
No contexto regional, Keyla Negrão discute como a representação do feminino no
audiovisual paraense começa a ganhar novas características a partir dos anos 80, citando
Marias da Castanha como exemplo de produção que desloca os sentidos do feminino,
pautada nesses apelos coletivos. Pedro Veriano, pesquisador que se debruçou na trajetória
20
do cinema paraense, cita em sua obra Cinema no Tucupi o filme de Castro e Raskin
como uma das produções audiovisuais importantes na década de 80 no Pará.

Marias da Castanha reivindica uma identidade social: mulher ribeirinha que vem para a
cidade e trabalha em uma fábrica de castanha. Um ―tipo sociológico‖ de Bernardet, a totalização
desse sujeito, indicado pelo seu título. Como aponta Negrão, o filme de Castro apresenta a
transição de sentido de identidades femininas: ilustra suas vivências, discute seus

HOLANDA, Karla. Documentário brasileiro contemporâneo e a micro-história. DEVIRES-Cinema e


Humanidades, v. 2, n. 1, p. 86-101, 2016.
Idem, p. 88.
19
NEGRÃO, Keyla. Depois do super-homem, a mulher maravilha? Produção de sentidos de identidades
femininas no cinema paraense. In: OLIVEIRA, Relivaldo Pinho de (Org). Cinema na Amazônia: textos sobre
exibição, produção e filmes. Belém: UFPA/CNPq, 2004.
VERIANO, Pedro. Cinema no Tucupi. Belém: SECULT, 1999.

365
processos de migração e desenvolvimento, não mais através do olhar masculino (male
21
gaze ). Dessa forma, materializa a tematização das preocupações da época.
Em 1992, Edna Castro produz e dirige um filme sobre o Projeto Grande Carajás, que
destina uma área de 900 mil km no Norte para extração mineral. O documentário aborda o
cotidiano dos moradores atingidos por esse projeto, demonstrando o crescimento acelerado
da região e os problemas enfrentados. O média metragem foi exibido em diversos festivais
nacionais e conquistou o prêmio de Melhor fotografia no Festival de Brasília.

Embora pouco proferida, é um fato que a trajetória cinematográfica das mulheres é


simultânea ao desenvolvimento do cinema em si. A estadunidense A origem do cinema,
recorrentemente associada a invenção do cinematógrafo data de 1895, e em 1896 Alice Guy
Blanché já havia gravado sua primeira ficção, sendo uma das primeiras a utilizar o
cinematógrafo para contar histórias. Marginalizadas na abordagem historiográfica, são
resgatadas apenas quando se faz necessário pensá-las como mulheres, não como
cineastas. Além do mais, a vinculação de sua presença apenas na direção leva a esquecer
como mulheres sempre estiveram presentes nesses espaços, nas mais distintas posições; é
tardio seu reconhecimento em posições de poder, condicionados a homens. Ao falar de
mulher, é necessário refletir que essa não é uma categoria homogênea, possuindo
atravessamentos de raça, classe, sexualidade: enquanto Cleo de Verberena dirige um filme
(a primeira no Brasil) em 1930, a primeira mulher negra a ter um longa-metragem
comercialmente distribuído no país é Adélia Sampaio, em 1984.

Dados da Ancine apontam que dos 142 longas-metragens brasileiros exibidos nos
cinemas em 2016, 75,4% dos diretores são homens brancos, 19,7%, mulheres brancas, 2,1%
homens negros e mulheres negras não dirigiram nenhuma dessas produções, apontando para o
fato de que mulheres negras estão evidentemente mais subjugadas do que as brancas nessa
área de produção. Mulheres indígenas cineastas, como Patrícia Ferreira (Para Reté, 2015),
22
tampouco possuem visibilidade no mercado. Segundo Marina Sartório Faria , desde Cleo de

Verberena até os anos 60, estão registradas nove mulheres como diretoras no país. Segundo a
autora, o surgimento de mulheres atuando nesse campo está vinculado ao período

Male gaze ou olhar predador masculino, em tradução livre, é um conceito desenvolvido por Laura Mulvey, ao
analisar o prazer visual oferecido pelo cinema através da psicanálise. Segundo Mulvey, o cinema dominante ou
hollywoodiano é determinado pelo olhar masculino, com mulheres sendo representadas de forma fetichizada e
condicionadas a exibição, para satisfação do olhar predador. Dessa forma, o prazer visual se divide entre
ativo/masculino e passivo/feminino. Ler mais em: MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER,
Ismail (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.
FARIA, Marina Sartório. A participação feminina na direção do cinema documentário brasileiro
(dissertação). Universidade Federal da Bahia, 2013, p. 55.

366
de eclosão no cinema nacional nas décadas de 70 e 80. Nesse segundo momento se
alcança vinte e quatro produções encabeçadas por mulheres.

Marias da Castanha (1987) surge nesse contexto: emergência de filmes que buscam
captar experiências de pessoas comuns. Ele percorre uma trajetória em premiações
internacionais e dentro do espaço acadêmico, muito por ter sido fruto de uma pesquisa de
doutorado, mas também por ter apoio de órgãos de fomento, por trazer características
regionais da formação de bairros da cidade de Belém e da ―identidade amazônica‖. Contou
com a produção da Cinematográfica Superfilmes e apoio do C.R.A.V.A., ligado a Empresa
Brasileira de Filmes (Embrafilme). A produtora paulista Cinematográfica Superfilmes foi
23
fundada em 1983 e segundo o acervo da produtora, Marias da Castanha fora seu sétimo

filme, o segundo dirigido por Simone Raskin, e primeiro em 16mm. Seu foco é viabilizar
produções independentes. Outro órgão importante para a gravação do média-metragem foi
24
o Centro de Recursos Audiovisuais da Amazônia (C.R.A.V.A.). Segundo Silva , ele surge

no período de fortalecimento da Embrafilme, responsável pelo financiamento do cinema


nacional. O coletivo forneceu equipamentos importados para a gravação do curta e uma
série de profissionais participantes do centro integrou a equipe de filmagem, como Chico
Botelho. Esses órgãos foram parte da produção, financiamento, fornecimento de materiais
técnicos e distribuição de Marias da Castanha. Verbas da Embrafilme para o fomento do
audiovisual paraense e apoios culturais como o da Secretaria de Cultura (Secult) se
baseavam no interesse pelo fomento de produções que investissem no patrimônio da cultura
brasileira, como o média-metragem.

Em 2 de outubro de 1987, o Diário do Pará noticia sua pré-estreia no Teatro Margarida


25
Schiwazzappa, afirmando que 50 ―Marias‖ foram entrevistadas para o documentário . Através
dos jornais, constatou-se que o documentário obteve uma ampla recepção em eventos
26
acadêmicos e mostras culturais, com temáticas ambientais e ecológicas e discussões sobre a
27
mulher , corroborando sua relevância nas questões que aborda.

Em: <http://www.superfilmes.com.br/v2/superfilmes.php> acesso em: 8 de novembro de 2019.


SILVA, Ramiro Quaresma da. O site cinematecaparaense.org e a preservação virtual do patrimônio audiovisual: uma
cartografia de vivências cinematográficas. Programa de pós-graduação em Artes, 2015.
Diário do Pará, 2 de outubro de 1987, Caderno D, p. 7.
Exibido no XXXIX Congresso Nacional de Botânica, em 1988 (Diário do Pará, 26 de janeiro de 1988.
Caderno D, p. 5), no Colóquio Internacional ―Ecologia, Desenvolvimento socio-econômico e cooperação
científica na Amazônia‖ no ano de 1989 (Diário do Pará, 29 de setembro de 1989. Caderno A, p. 10; O
Liberal, 28 de setembro de 1989. Caderno Cidades, p. 4) e recentemente no II Seminário Imagem e
Pesquisa na Amazônia Visualidades Urbanas e Regionais em 2007 (Portal ORM. Mostra de curtas
paraenses é destaque em Belém, 23 de maio de 2007), denotando sua relevância através dos anos.
27
Como o ―Cinema mulher‖, do Cinema Líbero Luxardo, em 1988 (Diário do Pará, 10 de março de 1988.
Caderno D, p. 7) e uma exibição na Biblioteca Pública Arthur Vianna em 1989 (Diário do Pará, 9 de março
de 1989. Caderno D, p. 3; O Liberal; 10 de março de 1989, p. 4), programações realizadas em razão do
Dia Internacional da Mulher.

367
N‟O Liberal, em balanço da produção cinematográfica de 1987, afirma-se que o destaque
28
regional foi para um ―vídeo feito para ilustrar tese de mestrado [sic]‖ . O termo ―vídeo‖ é

utilizado como alusão ao cinema documentário, em evidente contraponto ao cinema de ficção,


abrindo margem para se pensar o entendimento do cinema documentário e apreender a
associação do documentário à produção acadêmica de Castro: grande parte das matérias
jornalísticas encontradas afirma que o documentário ―reflete‖, ―descreve‖, ―mostra‖ o modo de
vida das operárias, e no caso desta matéria, ―ilustra‖ a pesquisa de Castro. O termo ―vídeo‖
remete a uma alusão da realidade, excluindo a perspectiva de discurso criado e construído pelo
audiovisual, o âmbito da criação. Poucas notícias mencionam Simone Raskin.

O Diário do Pará noticiou a seleção de Marias da Castanha no festival francês


29
Cinema du Réel (Cinema do Real) . Marias da Castanha também foi exibido em pelo
30
menos outros cinco estados do país e recebeu o Tatu de Bronze de Melhor Som de
31 32
1987 , na XVI Jornada Internacional de Cinema na Bahia . Na cidade de Belém, para
além dos festivais, suas exibições frequentes foram em espaços fora do circuito comercial,
como na Sessão das quartas (realizada no museu da UFPa em conjunto com o C.R.A.V.A.)
33
no cinema Líbero Luxardo e em cineclubes realizados pela Associação de Críticos de
Cinema do Pará (ACCPA) no Cinema Olympia.

Marias da Castanha obteve certo prestígio regional, nacional e internacional, mesmo fora
dos circuitos comerciais. Muitos dos lugares em que fora exibido estão vinculados a projetos
acadêmicos, restritos a quem está dentro desse círculo social. Nesse caso, pesa a dificuldade
em encontrar fontes que atestem a sua exibição em outros contextos. Em 1990, ocorre a
realização do ―UFPa vai à praça‖, realizado na Praça da República com o objetivo de levar
produções acadêmicas para contato direto com a população. Dentro do projeto, ocorre

28
O Liberal, 1 de janeiro de 1988. Caderno D, p. 1.
Dedicado a documentários, nesse ano o festival selecionou três filmes latino-americanos. O Liberal,
26 de julho de 1989. Caderno dois, p. 5. A seleção também foi noticiada pelo Jornal do Comércio
(AM) sob o título de ―Latino-americanos em alta‖ (Jornal do Comércio, 15 de março de 1988, p. 21) e
pelo carioca Tribunal da Imprensa (Tribunal da Imprensa, 17 de março de 1988, p. 6).
Como a Mostra Paranaense do Filme Antropológico em Curitiba (Correio de Notícias, 21/22 de
novembro de 1987, p. 14); III Rio-Cine Festival, no Rio de Janeiro (Tribunal da Imprensa, 8/9 de agosto de
1987), cineclube em Brasília (Correio Braziliense, 27 de janeiro de 1988, p. 26) e em festivais em Brasília e
São Luís, além do Festival Internacional de Curtas de São Paulo (2001) – festival que se distancia décadas
do período de lançamento do filme, atestando sua relevância ao longo dos anos.
Diário do Pará, 25 de setembro de 1987. Caderno D, p. 8.
Tal festival possuía imensa importância na divulgação e discussão de diretrizes para o
desenvolvimento do cinema nacional, tornando-se internacional nos anos 80. É na II Jornada em
1973 que surge a Associação Brasileira dos Documentaristas (ABD). MELO, Izabel de Fátima Cruz.
Jornada Internacional de Cinema da Bahia: espaço de reflexão e resistência (1972-1975). O olho da
história: revista de história contemporânea. Salvador. Copyright–2004. pg, v. 8, 2004.
33
Diário do Pará, 1 de março de 1988, Caderno D, p. 6; Diário do Pará, 30 de junho de 1988; Diário
do Pará, 2 de março de 1988, Caderno D, p. 5.

368
34
a exibição do documentário no Teatro Waldemar Henrique. Este é um dos exemplos de
eventos que visa contato da produção com pessoas que estão fora do circuito universitário.

Retomando a discussão do cinema que ultrapassa as fronteiras do hegemônico, na


4º edição do Festival Internacional Amazônida de Cinema de Fronteira – FIA-CINEFRONT
(2018), a prof.ª Edna Castro foi homenageada. Conforme a programação oficial do festival:

Professora da Universidade Federal do Pará, Edna Maria Ramos de Castro


foi a primeira mulher paraense a dirigir um filme sobre a realidade de vida e
luta de populações pobres na fronteira amazônica. Alimentados pelos
conteúdos de suas pesquisas acadêmicas, seus filmes se tornaram
clássicos do cinema paraense e do cinema de fronteira: ―Marias das
Castanhas‖ (1987) e ―Fronteira Carajás‖ (1992), filmes que colocam em
debate a realidade vivida por populações pobres e a integração da
Amazônia à um projeto de desenvolvimento nacional. Filmes e realidade
que serão trazidos ao debate pela diretora no 4º FIA CINEFRONT.

Por colocar em debate a vida das populações amazônicas, as produções de Castro


são vistas como clássicos do cinema paraense e de fronteira. Mas o que é cinema de
fronteira? O festival objetiva a propagação, através de mostras e debates, de produções
cinematográficas que abordam a realidade de regiões periféricas e fronteiriças,
homenageando realizadores ―cujo conjunto de suas obras represente contribuição
cinematográfica para reflexão da realidade vivida nas „fronteiras-periferias‟ de nossa
sociedade, na Amazônia e no mundo‖, para demonstrar por meio do audiovisual que

existe uma dinâmica social própria que envolve vida, trabalho, cultura, modos
singulares de existir e de se relacionar com o mundo e com o meio em que se
vive, independentemente daquilo que é engendrado pelos interesses dos
chamados ―centros‖. É em nome do ―desenvolvimento econômico‖ dos ―centros‖
que as periferias – fronteiras – são drasticamente impactadas.
O conceito de cinema de fronteira é próximo ao cinema periférico: a noção de refletir a
realidade da vivência desses povos que estão à margem dos centros de desenvolvimento, ou
seja, em regiões periféricas e fronteiriças, com o objetivo de construir uma memória, além de
35
chamar a atenção para a existência de uma dinâmica social independente. Andrea França

historiciza o conceito de cinema periférico: compartilhar o conceito nos dias de hoje consagraria
o discurso que ―vê nesse cinema a expressão geográfica de territorialidades miseráveis e à
margem da ordem capitalista global, a expressão da própria situação coletiva de atraso e
opressão, situação essa que forneceria a base histórica para a construção (potencial) de uma
arte política‖, o que reduz o cinema a enunciados sócio históricos, quando deveria pensar a
cultura como misturas e hibridismos, e não como territórios cristalizados: ou seja, numa
perspectiva transcultural, diante da atual integração da produção midiática.

Diário do Pará, 8 de junho de 1990. Caderno A, p. 10.


35
FRANÇA, Andrea. Cinema de terra e fronteiras. In: MASCARELLO, Fernando (Org.).
História do cinema mundial. Papirus Editora, 2015, p. 395.

369
36
Assim, busca-se entender essa produção através do conceito de transculturalismo .
O prefixo trans, que significa ―para além de‖, remonta à necessidade de ir além do conceito
tradicional de cultura, enxergando-a diante de seus fluxos transformacionais, hibridismos e
diversidades. Diante disso, as referências de estudos pós-coloniais e decoloniais auxiliam
tanto na prática como na análise crítica das narrativas imagéticas e audiovisuais, para
37
entender de que maneira o chamado ―cinema periférico‖ se relaciona com essa narrativa.
nesse sentido que se historiciza o conceito de cinema de fronteira, reconhecendo a
importância de eventos como o FIA-CINEFRONT, cuja protagonista é a produção audiovisual
periférica, mas compreendendo a urgência de pensá-lo para além das ―fronteiras‖ culturais e em
formas, segundo França, ―translocais‖ de pertencimento. Ao conceituar a obra de Castro como
cinema de fronteira, o evento dá visibilidade ao cinema com as características supracitadas (que
apresenta a vivência de lugares de fronteira/periferia cujas dinâmicas ocorrem
―independentemente‖ do centro). Porém, é necessário pensá-lo para além desse conceito, visto
que a produção é tangenciada por influências, por exemplo, europeias, diante da sua pesquisa
realizada na França e escolhas estéticas, que partem de centros culturais como São Paulo –
local de origem da diretora Simone Raskin e da produtora do filme. Numa perspectiva decolonial,
vemos a produção periférica para além de ―fronteiras culturais‖ e os diversos atravessamentos
entre as dinâmicas, que sim, são singulares, mas não isoladas.
38
Um ―poema documental‖: é assim que Negrão descreve o filme, consolidando a
modificação de representação feminina a partir dos anos 70 e 80: ―a estética mudou, a
dramaticidade estava dada pelo rosto delas e não mais mediadas por lembranças de
39
homens‖ . O documentário não faz uso de voice-over (narração sobre); apenas as vozes das
mulheres, dando seus depoimentos de vida. A escolha desse recurso tem como consequência a
impressão de realidade nos relatos e conversas entre elas, de forma com que a voz dessas
mulheres parece guiar a narrativa. No entanto, é preciso lembrar que um filme possui um roteiro
base, e é posteriormente montado na fase de pós-produção. Dos depoimentos foram

WELSCH, Wolfgang. Transculturality: The puzzling form of cultures today. Spaces of culture: City, nation,
world, p. 194-213, 1999.
―Nos anos 1960, falava-se em „cinema periférico‟ quando se queria levar em conta a experiência histórica do
país de origem, quando se pretendia ver em certos filmes uma contrapartida estética e política para o impasse do
subdesenvolvimento no Terceiro Mundo, perceber na linguagem do homem oprimido a imagem do "colonizado"
[...]. O cinema periférico, ou o Terceiro Cinema (Solanas 1995), remetia a uma geografia específica, a uma
situação econômica de atraso e opressão que constituía a base sobre a qual nasceria uma arte política
comprometida e transformadora.‖ In: FRANÇA, Andrea.
Cinema de terra e fronteiras. In: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema
mundial. Papirus Editora, 2015, p. 395.
NEGRÃO, Keyla. Depois do super-homem, a mulher maravilha? Produção de sentidos de identidades
femininas no cinema paraense. In: OLIVEIRA, Relivaldo Pinho de (Org). Cinema na Amazônia: textos sobre
exibição, produção e filmes. Belém: UFPA/CNPq, 2004. Disponível em: <
https://cinematecaparaense.wordpress.com/fontes/cinema-na-amazonia/>. p. 87.
Ibidem.

370
cortadas informações como que perguntas foram realizadas a elas para que fizessem os
relatos, ou se as conversas entre elas foram espontâneas ou não. Fica evidente que a
espontaneidade fora um elemento objetivado, de forma que a voz do documentário fosse
consagrada como a voz dessas mulheres.

Nos primeiros minutos, a trajetória das próprias castanhas se confunde com as das
mulheres: estão sendo transportados para o outro lado do rio. A atmosfera inicial – o idílico
das matas amazônicas, ao som de pássaros e pequenas embarcações, o embalo dos rios –
oposta ao que se verá mais a frente, dentro das fábricas. O relato da ―primeira Maria‖ tem
início. Não sabemos o seu nome, pois não é informado, assim como o das outras que virão
a falar. Vinda do interior (também não informa de onde, ou nada que a individualize) conta
que resolveu vir sozinha – pois o marido a abandonou – com os filhos para Belém. O relato
conecta a história que está prestes a ser contada com a vinda de outras ribeirinhas para a
cidade: muitas em busca de melhores condições de vida, embora tivessem medo e
saudade, como citado por ela. A vinda para Belém foi ―parece um sonho‖:

―Eu já tô aqui há dezesseis anos. Meus filhos já estão todos grandes. As meninas
já têm marido, umas. Outras tão solteiras, tão comigo. Depois elas ficaram moças,
estão trabalhando em fábrica, quatro filhas, trabalhando em fábrica de castanha.
Na safra da castanha. E eu tomo conta dos filhos, dos netos. É a minha safra
também.‖ (Marias da castanha, 1987)
Essa fala se relaciona com uma das principais problemáticas mostradas no
documentário: a dupla jornada. Além do trabalho nas fábricas de castanha, muitas possuem
filhos, cuja criação correntemente depende apenas delas. Tanto na imagem quanto no áudio,
constante a presença infantil: são veiculadas imagens de crianças no colo das
mulheres ou brincando, e ouvimos suas vozes ao fundo dos depoimentos.

Outra questão muito presente é o processo de desenvolvimento do que é hoje o bairro


do Jurunas. O documentário em sua narrativa coloca essas mulheres como sujeitos ativos nesse
processo, através da ―invasão da Radional‖, como chamado por elas e pelos jornais do
40
período . Relatam que o terreno foi ocupado pelas moradoras e moradores, e as tentativas de

desapropriação pelos ―soldados‖, de forma violenta. A forma como é representada essa


conversa entre quatro Marias é casual: sentadas em uma mesa, conversam sobre os
acontecimentos que desaguaram na conquista de suas casas. A câmera se posiciona como uma
observadora da história das comadres, caracterizada pela frase: ―a senhora se lembra, vizinha
[...]?‖. A observação é comum em vários momentos: ao fazerem

Embora também usem termos como ―ocupação‖ e ―posse‖, são encontradas notícias que falam da ―situação de
invasão em que se encontra a área da Radional‖ (Diário do Pará, 31/05/85); ―área de invasão conhecida como Radional
II‖ (O Liberal, 11/10/89). Relatado por Manoel Ribeiro, morador da área, na notícia de O Liberal de 27 de novembro de
1989: ―Antes da invasão essa área já era conhecida como Radional. „Era chamada assim por causa das antenas da
Rádio Clube, que ficavam bem próximas a esse terreno‟, recordou Manoel.‖

371
seus afazeres domésticos, durante o trabalho fabril. A intenção é naturalizar os eventos
registrados pela câmera, o que decorre no documentário visto como ―a descrição do
cotidiano dessas mulheres‖, como aparece nos jornais. É recorrente a utilização de termos
como luta, vencer, e ganhar ao falarem sobre o processo de ocupação das terras. Dessa
forma, apesar de utilizarem o termo ―invasão‖, ao assistirmos a conversa supostamente
casual entre essas mulheres através do olhar de Castro e Raskin, é presente nas Marias a
consciência da luta que por elas foi empregada para a conquista dessa terra.

Há uma incerteza sobre a época em que as ocupações da área têm início, mas é
sabido que a luta corria durante as gravações do documentário e posteriormente ao
lançamento. Jornais relatam como moradores e moradoras lutam para conseguir o título de
posse assistência devida ao bairro, de infraestrutura precária ou inexistente. Enquanto o
41
Diário do Pará menciona que essa luta urbana começa em meados de 1985 (embora

apresente notícias a respeito em 84), O Liberal cita que os conflitos têm início em 71 e o
processo de ocupação se inicia antes, já que nesse ano a área está saturada. Em 1986, ano
em que são realizadas as filmagens, eles a conquista dos primeiros títulos de posse. Esses
conflitos também aparecem em Marias da Castanha (1987) no discurso não verbal através
de imagens refletem as condições de vida das operárias: moram em barracos de madeira,
sem saneamento básico e com salários precários. Queixas a respeito desse último
aparecem quando questionam o valor recebido pelos serviços. As mulheres encarregadas
de quebrar a castanha recebem por peso, sendo necessário obter 18 caixas de castanha por
semana para conseguir um salário mínimo.
42
Jane Felipe Beltrão , que realiza excelente pesquisa sobre a relação entre trabalho e

corpo com castanheiras, descreve detalhadamente o processo de quebragem desde sua


chegada até as bancas das quebradeiras, onde com o auxílio de uma máquina manual, a
castanha é quebrada e alocada em uma das quatro caixas: castanha inteira, em pedaços,
castanha podre e cascas, processo que aparece em grande parte do documentário. Após a
separação, apenas as castanhas inteiras são pesadas, de forma que a quebradeira recebe de
forma proporcional ao peso apenas dessa parte, embora as outras também sejam aproveitadas
pela fábrica. No documentário, as mulheres reclamam o recebimento devido ao trabalho que
realizam, expondo a injustiça no pagamento parcial. Uma das Marias chega a

―A luta no Jurunas começou em meados de 1985 quando os moradores pressionaram o governo para libertar
a ―Radional II‖, que até então, tinha como proprietária a Polícia Militar do Estado, sem que nenhuma benfeitoria
fosse feita, encontrando-se portanto, completamente ociosa.‖ (Diário do Pará, 25/05/1987).
BELTRÃO, Jane Felipe. Mulheres da castanha: um estudo sobre o trabalho e o corpo (dissertação).
Trabalhadoras do Brasil. Brasília: Universidade de Brasília, 1979.

372
afirmar que é a falta de pagamento devido é o maior desgosto de trabalhar na fábrica. Anita
43
Eleonora Fonteles de Lima caracteriza esse processo como ―mais valia absoluta‖.

O beneficiamento da castanha é sendo constituído de outras etapas além da


quebragem, muitas também executadas por mulheres, como crivagem e inspeção,
processos que não aparecem de forma constante no documentário. Beltrão aponta que a
quebradeira goza de certo reconhecimento dentro da fábrica, pois é indispensável ao
processo de beneficiamento, o que auxilia no entendimento dos motivos pelos quais esse
processo é privilegiado na narrativa.

Para além das entrevistas, o documentário também utiliza recursos visuais e da edição
para passar mensagens. Um exemplo é uma montagem de cenas das operárias nas fábricas,
executando seu serviços com as castanhas é serviços de casa como cozinhar, lavar e passar
roupas, lavar louças, costurar, junto com imagens das crianças. Essa transição fábrica/trabalho
doméstico denuncia a dupla jornada de trabalho a que essas mulheres estão sujeitas. Outro
exemplo é o trabalho masculino nas fábricas, que não é citado, mas aparece na narrativa visual
de forma bem distinta da maneira da figura feminina: carregando pesos, lidando com pesado
maquinário, transportando castanhas em carrinhos de mão. É nítida a separação entre o trabalho
masculino e feminino dentro do espaço fabril. Beltrão afirma que o trabalho masculino não é com
44
as castanhas, mas um trabalho de ―carregá peso‖ . Os homens estão em setores como o

depósito, secagem, cozimento, e serviços de contato direto (separação, crivagem, inspeção,


quebragem) são dedicados às mulheres. A lógica vigente é que o trabalho direto com a castanha
é feito tradicionalmente por mulheres.

Outro recurso visual utilizado é o close-up (plano próximo) nos rostos, mãos, pés, nos
seus colos com crianças e em elementos das casas, como televisões, móveis e fotografias
antigas, trazendo a sensação de intimidade e detalhe: ao aproximar-se da mulher, conseguimos
ver sua pele escura, as manchas de suor em suas costas; ao aproximar-se dos seus rostos, é
possível ver seus traços indígenas e negros, suas marcas de expressão. Ao aproximar-se dos
elementos de suas casas, são apresentadas as condições de vida dessas mulheres de baixa
renda, apontando dimensões de suas ―identidades‖.

Além disso, as operárias estão propensas a adquirir diversas doenças diante da


insalubridade do serviço. Uma das Marias relata que após o fim da safra, ―15% das tarefistas
tá todo mundo com problema de peito‖ por submeter-se ao vapor das castanhas quentes
recém-cozidas. Para além dos respiratórios, Beltrão descreve inúmeros problemas de saúde

43
LIMA, Anita Eleonora Fonteles de. As operárias da castanha e a construção do seu cotidiano
em Belém (monografia). Belém: Universidade Federal do Pará, 1990.
44
BELTRÃO, Jane Felipe. Mulheres da castanha: um estudo sobre o trabalho e o corpo (dissertação).
Trabalhadoras do Brasil. Brasília: Universidade de Brasília, 1979. p. 22.

373
45
que elas desenvolvem . Nas palavras de Beltrão, ―falar do trabalho na castanha é falar das
condições de trabalho que implicam em longas jornadas, acidentes, doenças, etc. Enfim, da
46 47
destruição do próprio corpo.‖ Outro depoimento recorrente é o da maternidade solo ou
monoparentalidade. Uma das Marias relata que ―80% das mulheres são sozinhas e com
muitos filhos‖, ou seja, inteiramente responsáveis pela criação e sustento das crianças –
dificultado pela ausência de uma creche fabril, que ―por lei, devia ter‖. Uma delas atribui a si
o papel da maternidade e da paternidade: ―[...] eu sou pai e sou mãe dos meus filhos‖. Esses
relatos desembocam na vida dessas mulheres para além do trabalho fabril. As Marias
começam a falar de suas sociabilidades e liberdades:

―[...] e é melhor a gente morar sozinha. A gente sai, eu saio, chego a hora que eu
quero [...], se eu quiser chegar no outro dia eu chego, não dou minha satisfação da
minha vida a ninguém. Agora eu sou muito diferente, muito mesmo, do que eu era
antes quando eu vivia com meu marido. Eu não sou mais aquela pessoa que eu
era, sou de confiança, sou uma pessoa forte mesmo, eu saio, eu aproveito a
minha liberdade que Deus me deu.‖ (Marias da Castanha, 1987)
Elas discorrem sobre os aspectos positivos em ser chefe de seu lar: poder sair,
dançar, beber, arrumar namorado... e esses momentos são representados. O lazer e a
diversão aparecem como elemento da identidade da ―Maria da Castanha‖: quando elas
estão se arrumando para sair, dançando e flertando em uma festa estão dizendo, através do
olhar de Castro e Raskin, que apesar dos duros labores nas fábricas e dentro de suas
casas, aqui estamos, e podemos nos divertir. O retorno ao trabalho é simbolizado pelas
Marias saindo de seus lares ao amanhecer, uniformizadas, se dirigindo à fábrica. Não há
mais depoimentos orais, apenas suas imagens. O silêncio das Marias dá espaço para o
retorno a rotina fabril. O ruído de uma sirene encerra o filme. Nas partes finais, chamam a
atenção dois elementos: embora não tenham sido nomeadas individualmente ao longo de
seus depoimentos, são creditadas como participações 14 mulheres, grande parte com o
nome Maria. É importante lembrar que cerca de 50 mulheres foram entrevistadas,
implicando que a construção final do documentário contou com imagens e depoimentos de
14 dessas. O segundo elemento é a colocação final:

No momento em que encerrávamos a finalização desde filme, morria na fábrica,


sem assistência, Maria Justina, 52 anos, quebradeira de muitas safras. É esta a

Aleijamento, reumatismo, sinusite, problemas de visão, varizes, perda de unhas, dor nos rins, fígado, bexiga, útero,
falta de ar, cegueira e ―doidice da cabeça/leseira‖. In: Idem, pp. 42-43.
Idem, p. 22.
O termo maternidade solo surge em contraponto a ―mãe solteira‖, desvinculando maternidade ao estado civil.
No entanto, existe uma série de termos que podem ser utilizados, sendo uma discussão ainda presente. Angela
Marin e Cesar Augusto Piccinini discutem a questão da família uniparental através do uso da expressão ―mãe
solteira‖ na literatura: ―Na antropologia, os estudos de Fonseca
(1997, 2002) se destacam ao examinar a questão da maternidade solitária. A autora rejeita o termo
mãe solteira por esse carregar conotações de julgamento moral que seriam de pouca relevância [...].‖
MARÍN, Angela; PICCININI, Cesar Augusto. Famílias uniparentais: a mãe solteira na literatura. Psico,
40, n. 4, p. 12, 2009. p. 426.

374
primeira vez que as operárias e os operários da castanha entram em greve e
reivindicam melhores condições de trabalho. (Marias da Castanha, 1987)

Em 28 de novembro de 1986, dia seguinte ao fato, noticia-se no Diário do Pará que ―a


48
greve dos motoristas de ônibus causou uma vítima fatal‖ , pois Maria Justina precisou

locomover-se a pé da Terra Firme, onde residia, para a fábrica. Ao mesmo tempo em que
culpabiliza a paralisação dos motoristas pela morte, atribui à fábrica Jorge Mutran Exp. Ltda. o
comportamento adequado, evidenciando que a firma se dispôs a ajudar, paralisou os trabalhos e
se responsabilizou pelos gastos funerários, discurso que vai diretamente contra o do
documentário. A respeito desse impasse, entra uma notícia posterior, também do Diário do Pará,
de 7 abril de 1987, que aponta uma denúncia proferida por testemunhas do caso ao gerente da
fábrica, que teria se negado a prestar socorro à vítima e disponibilizado um revólver para
49
ameaçar às funcionárias que se indignaram com a situação e reivindicavam ajuda .

Maria Justina dos Santos falece sem amparo de seus patrões, mas com o apoio
incondicional de suas companheiras, ameaçadas de morte ao exigir o mínimo de dignidade à
sua colega de trabalho. A veiculação da notícia no jornal indica que as mulheres foram a frente
com a denúncia, abrindo um inquérito policial. O reconhecimento do Estado é importante pois
atesta o acontecimento de maus tratos sofridos pelas operárias no espaço fabril, para além das
explorações cotidianas relatadas. O documentário também afirma que as operárias e operários
se unem após a fatalidade para realizar, pela primeira vez, uma paralisação de suas atividades.
As informações veiculadas no documentário e no jornal, embora não levem a nenhum
apontamento direito de uma melhoria nas condições de trabalho dessas operárias, implicam a
50
agência direta no contexto em que se encontram. Lima que sim, houve vitórias da paralisação,

que durou 4 dias e garantiu às operárias uma pequena porcentagem referente aos subprodutos
51
da castanha, as podres e os pedaços, que antes nada recebiam .

Desde se levantar contra ameaça de morte com uma arma até as suas sociabilidades
representadas no documentário, beber e dançar nos períodos de folga, além de cuidar dos filhos
e da casa sozinhas: as Marias da Castanha se apresentam – ou são apresentadas a

Diário do Pará (PA), 28 de novembro de 1986, caderno 2, p.1.


Diário do Pará, 7 de abril de 1987.
LIMA, Anita Eleonora Fonteles de. As operárias da castanha e a construção do seu cotidiano em Belém
(monografia). Belém: Universidade Federal do Pará, 1990.
Dentre outras reivindicações estavam: ―posto médico [na fábrica] e melhorias das condições de trabalho:
salários, melhor pagamento de cozimento da castanha que impeça-a de ficar dura e quebrar, modificação
do horário de entrada da 4:00 hora para as 6:00 horas, creche e não demissão da comissão de
negociação. [...] A reivindicação quanto ao auxílio creche foi vitoriosa. No entanto vinculada a valores fixos‖
(pp. 58-59). Em 88 ocorre o Encontro de Mulheres Castanheiras, surgimento do Movimento de Mulheres de
Castanha e uma segunda greve. Para além das paralisações e as lutas sindicais, as operárias possuíam
outras formas de reivindicar direitos ou protestar, como o bate-latas, e as participações de operárias da
castanha na denúncia de problemas no trabalho fabril ocorriam desde 1932. In: Ibidem, p. 60.

375
nós por Castro e Raskin – por meio das nuances do dia-a-dia, mas estão envoltas em uma
complexidade muito mais ampla de agência do que o sistema estrutural em que estão imersas.

Marias da Castanha se consagra como uma importante produção audiovisual


amazônida, cujos desdobramentos nacionais e internacionais foram evidentes. Sua
representação das mulheres operárias da fábrica de castanha perpassa por sociabilidades foras
do espaço fabril, apontamentos em consonância com as novas abordagens historiográficas e
sociológicas que se configuram a partir dos anos 70, dando luz à sujeitos antes marginalizados.
Reivindica uma identidade social: a da Maria da castanha, mulher que nasce da totalização dos
sujeitos (ou sujeitas) ali apresentados, parte da ilustração das suas vivências numa perspectiva
de não-individualidade, no que abdica da narração e adota apenas a voz das mulheres, que não
são individualmente diferenciadas, consagrando um discurso geral. Conforme Castro, a trajetória
dessas mulheres é mais social do que individual.

Na reivindicação dessa identidade coletiva, Castro e Raskin estabelecem pautas


significativas nas lutas urbanas travadas por essas mulheres, como suas péssimas condições de
trabalho e de vida diante do abandono estatal, e suas redes de solidariedade, que ao encerrar
com o falecimento de Maria Justina, estabelece a agência das trabalhadoras e trabalhadores ao
realizar sua primeira paralisação. Essa agência, sabemos, é muito anterior
paralisação e ao documentário, conforme as pesquisas de Castro, e se executa de
diversas maneiras diante da obstinação de mulheres como as Marias Justinas, Marias do
Carmo, Marias da Conceição, e não-Marias também. É significativo o surgimento do
interesse em relatar essas agências em pesquisas e no audiovisual.

O período de renovação das temáticas abordadas pelas ciências humanas e sociais


também pauta a agência feminina em outros âmbitos, como produções à margem dos processos
hegemônicos do cinema, e as encabeçadas por mulheres. Marias da Castanha se consagra
como uma produção amazônida, de temática amazônida e de realização por uma mulher
amazônida. Seu apoio estatal, sua pesquisa de base da tese em Paris, sua produção e co-
direção paulistas são elementos que partem da lógica da integração e distribuição da produção
da mídia, levando a discutir o termo cinema de fronteira e entendendo a importância de
reivindicar a cultura audiovisual amazônica como uma única, proscrita diante de uma conjuntura
mais ampla – logo, pensar o cinema periférico numa perspectiva transcultural, culturas como
elementos híbridos que se entrelaçam e dão origens a novos espaços de ação.

Estudos que investiguem como a produção audiovisual paraense de mulheres se deu


após esse período são necessários, pois um marco inicial não expressa desenvolvimento
progressivo. Nesse sentido, a existência de workshops, leis de incentivo e eventos que
estimulem a produção de novas audiovisualidades são importantes para o estímulo dessa

376
52
produção . Jorane Castro, filha de Edna Castro, lançou o longa-metragem ―Para ter onde ir‖ em
2018. Simone Bastos, paraense radicada em Florianópolis, estreou seu curta ―Epílogo‖ na Short
Film Corner (Canto de Curta Metragem), mostra paralela ao Festival de Cannes. Entre os
desafios enfrentados por mulheres que trilham esse caminho, o caminho é mais árduo para ―o
53
outro do outro‖ : a mulher negra. O curta ―É coisa de preta‖ (2017) da paraense Joyce Cursino
reivindica a presença de realizadoras negras, discutindo os desafios atravessados pela mulher
54
negra no audiovisual . Mulheres indígenas, mulheres que estão fora do circuito dos grandes
centos, que não participam da circulação de capital, também são grupos que estão atravessados
por várias problemáticas ao adentrar na produção audiovisual.

Luzia Miranda Álvares, crítica de cinema, professora e pesquisadora da área,


constata a pouca presença de mulheres paraenses no audiovisual, mas consagra a ebulição
55
da área . As barreiras estruturais que favoreceram sujeitos hegemônicos a tomar conta

das produções das ciências humanas, sociais e da produção audiovisual começam a ser
repensadas e aos poucos colhem-se os frutos dessas renovação. Evidentemente, a
resistência feminina não tem início a partir de suas representações nas telas, ela vem de
longa data, encontrando formas de persistência diante das estruturas machistas, racistas e
classistas impostas pela colonização e colonialidade, como atestado pela (r)existência das
mulheres em situações de exploração nos ambientes fabris. A força de manter-se de pé foi,
e talvez ainda seja atribuída à sua ―condição‖ feminina. Para reverter essa ordem, é preciso
ir mais a fundo.

FONTES UTILIZADAS

MARIAS DA CASTANHA (Edna Castro e Simone Raskin, 1987)

Como o I Workshop de Realização Cinematográfica Paraense (1999), que contou com oficinas que resultam no curta
Shot da Bôta (Flávia Alfinito, 1999) e o prêmio Estímulo para Produção de Curta-Metragem, realizado pela Fundação
Cultural do Município de Belém (Fumbel) que premiou três roteiros, como o Quero ser anjo (Marta Nassar, 2000)
(PARANHOS, Alna Luana Mendes; ALVES, Moema de Bacelar. A produção paraense de curtas e a prática de ensino.
XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. Fortaleza, 2009, p. 3). Em âmbito nacional destaca-se o Concurso de
Curta-Metragem realizado pelo Ministério da Cultura, que premiou dois selecionados da região Norte, sendo um destes
Jorane Castro por Mulheres choradeiras (2000).
―Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o ―outro‖ do homem branco, pois
são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem
possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres
negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o
―outro‖ do outro.‖ KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of Everyday
Racism. p.124.
O curta foi premiado no Festival paraense Osga de vídeos universitários, além de participar das Mostra de
Cinema Negro (ÉGBE) em Pernambuco e a Mostra Lugar de Mulher é no Cinema, da Bahia. Em: Mulheres
diretoras começam a vencer barreiras no machista mundo do cinema. O Liberal,
de março de 2019.
Ibidem.

377
Correio Braziliense (1988); Correio de Notícias (1987); Diário do Pará (1986); (1987); (1988);
(1989); (1990); Jornal do Comércio (1988); O Liberal (1988); (1989); Tribunal da Imprensa
(1987); (1988)

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

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da História Social: uma reflexão teórico-metodológica. IV Encontro Nacional de Estudos da
Imagem. Londrina, 2013.
BELTRÃO, Jane Felipe. Mulheres da castanha: um estudo sobre o trabalho e o corpo
(dissertação). Trabalhadoras do Brasil. Brasília: Universidade de Brasília, 1979.
CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias
Thomé (Orgs.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo:
Alameda, 2011.
FARIA, Marina Sartório. A participação feminina na direção do cinema documentário
brasileiro (dissertação). Universidade Federal da Bahia, 2013, p. 55.
HOLANDA, Karla. Documentário brasileiro contemporâneo e a micro-história. DEVIRES-
Cinema e Humanidades, v. 2, n. 1, p. 86-101, 2016.
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em Belém (monografia). Belém: Universidade Federal do Pará, 1990.
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15. São Paulo, 2009.
MELO, Izabel de Fátima Cruz. Jornada Internacional de Cinema da Bahia: espaço de reflexão
e resistência (1972-1975). O olho da história: revista de história contemporânea. Salvador.
Copyright–2004. pg, v. 8, 2004.
MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; KORNIS, Mônica Almeida. História e
documentário. São Paulo: FGV, 2012.
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OLIVEIRA, Relivaldo Pinho de (Org.). Cinema na Amazônia: textos sobre exibição, produção
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PEREIRA, Ana Catarina. Quando elas começam a filmar: feminismos, cinema e direitos
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patrimônio audiovisual: uma cartografia de vivências cinematográficas. Programa de pós-
graduação em artes, 2015.
Trajetória acadêmica e interdisciplinariedade: reflexões sobre a (des)construção das
matrizes conceituais do desenvolvimento na Amazônia. Entrevista Edna Maria Ramos de
Castro. Revista Terceira Margem Amazônia, vol. I n. 2-3. p. 233.
WELSCH, Wolfgang. Transculturality: The puzzling form of cultures today. Spaces of culture:
City, nation, world, p. 194-213, 1999.

378
UMA RELEITURA DO CONTO ACAUÃ À LUZ DOS ESTUDOS SOBRE
GÊNERO SOB A PERSPECTIVA DO FEMININO
1
Joyce Cristina Farias de Amorim (Unama)
https://doi.org/10.29327/527231.5-25 2
José Guilherme de Oliveira Castro (Unama)

Resumo
O presente artigo se propôs a realizar uma análise, à luz da concepção de gênero, do conto Acauã,
do livro Contos Amazônicos (1893), do escritor Inglês de Souza. O intuito foi observar como se dá
e/ou se constrói a representação do feminino na narrativa de Inglês de Sousa. A análise se baseia na
observação do dito e do não dito sobre as personagens femininas ao longo da tecitura literária, sob o
olhar do contemporâneo e da ideia sobre dominação masculina que, segundo Bordieu, está de tal
maneira ancorada no inconsciente das pessoas. A presente análise se construiu e se constituiu com
base em pressupostos teóricos que pudessem contribuir com o diálogo proposto entre o conto e a
atualidade, como Bordieu (2012), Hall (2006), Bauman (2005), Butler (2003), Borrillo (2010), Spivak
(2010), Beauvoir (1970), analisando as figuras femininas do conto sob a égide atual da relação tempo
e espaço, a sexualidade e as identidades femininas, subalternidade e empoderamento, entre outros
aspectos. O objetivo também foi propor uma discussão sobre como o feminino é representando, de
acordo com as principais referências sobre a temática, tendo como objeto de estudo a narrativa
literária do final século XIX, sem deixar de ressaltar a importância do conjunto da obra de Inglês de
Sousa no âmbito literário brasileiro de expressão amazônica.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Representação. Gênero. Feminino.

Abstract
The present study aims to analyze the Acaua narrative, in the perspective of gender studies, the
narrative is on Contos Amazonicos book (1893) by Ingles de Souza writer. The intention was to
observe like how was constructed the feminine representation in the literary narrative by Inglês de
Sousa. The analysis is based in the observation it was said and it wasn't said about feminine
characters over the literary narrative, from a temporary perspective and conception about male
domination by Bordieu, because as he says this impregnated in people‟s mind. The present anslysis
was constructed and was constituted with base in the theoretical assumptions can talk between the
fictional narrative and the present time, like Bordieu (2012), Hall (2006), Bauman (2005), Butler
(2003), Borrillo (2010), Spivak (2010), Beauvoir (1970), analysing the female figure under the auspice
of relation time and space, sexuality and the feminine identities, subalterrnity etc. The aim, too, was
propose a discussion about how the feminine is represented in the narrative by Ingles de Sousa in the
end of century XIX, without ignoring the importance of the collection of work by Ingles de Sousa in the
ambit brazilian literature of amazon expression.

KEYWORDS: Literature. Representation. Gender. Feminine.

1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história é possível observar o papel e o lugar da mulher sendo
invisibilizados e/ou subalternizados nos mais diversos (não) registros, e na Literatura não foi
muito diferente. Seja na condição de autora, seja na condição de personagem. Dessa forma,
a presente análise se constrói e se constitui a partir desses pressupostos, tomando como
objeto de estudo o conto Acauã do escritor Amazônico, Inglês de Sousa. Enfatizando que a
intenção não foi explorar o contexto regional e imaginário amazônico, porém sem

1
Mestra em Comunicação, linguagens e cultura. Discente de Doutorado do PPGCLC (2019) – Unama.
Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Diversidade e Inclusão – GEPIDI e do Grupo de Pesquisa
Interfaces do Texto Amazônico - GITA. E-mail: joyce.crisamorim@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/4653194728338812
2
Orientador. Docente vinculado ao PPGCLC – Unama. Doutor em Teoria Literária.
379
desconsiderá-lo, mas propor reflexões para um patamar mais amplo de discussão, com
base nos pressupostos teóricos utilizados como referência para a construção deste artigo.
As diferentes representações do feminino na literatura brasileira revelam, em termos
de linhas gerais, uma face da história de opressão e subalternização das mulheres a partir
do conservadorismo sócio-histórico na cultura das relações de gênero. Por isso a relevância
da discussão.
Geralmente, a produção literária de autoria feminina apresentam características
muito próximas e/ou próprias da literatura de testemunho. Escritoras narram, na maioria das
vezes suas próprias histórias de vida, de maneira real e/ou fictícia. Elas, as vozes femininas,
narram, dão testemunho, sobre dores, sofrimentos, traumas. Muita das vezes, exercem o
papel de narradora de si, em outras dão vozes a personagens. Em relação a isso, nota-se
que ―os estudos acerca do testemunho na literatura têm crescido consideravelmente
(SALGUEIRO, 2012, p.291). E

Esse crescimento se liga, sem dúvida, à onda (multi)culturalista. Em principio,


alias, „literatura‟ seria oposto de „testemunho‟ – e vice-versa. Este
um ponto nodal do debate. Por isso mesmo, as considerações acerca da
„literatura de testemunho‟ envolvem questões de gênero, de valor, de
saberes, que, mais uma vez, tensionam os limites entre estética e ética,
entre verdade e ficção, entre realidade e representação. O debate em torno
do testemunho na literatura requer acercar-se não só de estudos literários
(Seligmann-Silva, 2005; Ginzburg, 2011), mas de boas doses de Filosofia
(Gagnebin, 2006), Psicanálise (Caruth, 2000), Direito (Agamben, 2008),
Sociologia (Bauman, 1998), História (Ricoeur, 2007) etc. (SALGUEIRO,
2012, p. 291).

Mesmo partindo do princípio de que ―a noção fundadora de testemunho vem da


chamada „literatura do Holocausto‟, emblematizada pelos relatos de sobreviventes da
Segunda Guerra Mundial‖ (SALGUEIRO, 2012, p. 291), sabe-se que essa concepção inicial
se ampliou a outros entendimentos, pode-se dizer, inclusive que

Há, em suma, inúmeras modalidades de testemunho, seja em relação a


situações, eventos, períodos (Shoah, Gulag, genocídios, guerras, ditaduras,
tortura, miséria, opressão etc.), seja em relação a formas de expressão do
testemunho (memória, romance, filme, depoimento, poema, quadrinhos,
canções etc) (SALGUEIRO, 2012, p. 284).

E com base nisso, e também levando em consideração que o período de maior


discussão sobre a literatura de testemunho se dá num momento que se distancia do tempo
do conto em questão, a intenção neste se dá em especial pela observação da dor, do
sofrimento de uma das personagens. Dores que se traduzem na voz de um narrador que
testemunha a história de vida de uma das personagens fictícia, a Aninha. Mas não só sobre
ela, mas especialmente.
Sobre o autor de Acauã, Herculano Marcos Inglês de Sousa, conhecido como
Inglês de Sousa, destacou-se tanto na literatura, na política, na docência, como na
área jurídica. Nasceu em Óbidos, estado do Pará, em 28 de dezembro de 1853, mas
380
foi embora do estado ainda na infância, faleceu aos 65 anos no Rio de Janeiro, em 6
de setembro de 1918.
Inglês de Sousa realizou seus primeiros estudos ainda no Pará, porém

A vida profissional e literária de Inglês de Sousa foi ela desenvolvida no Sul


do país, não sendo muito difundida no Pará, onde só era conhecida nos
meios culturais, mas, é interessante assinalar, quase todos os seus
romances e contos giram em torno da Amazônia, de seus costumes, de
suas gentes, o que imprime um sabor todo especial à descrição envolvendo
o comportamento das pessoas [...] (MEIRA, 1990).

Inglês de Sousa marcaria não só o início do Naturalismo no Brasil, mas marcaria um


espaço para a literatura de expressão amazônica no contexto nacional. No âmbito da
literatura, o conjunto da obra de Inglês de Sousa não prima pela quantidade, mas pela
qualidade, pois publicou somente cinco obras literárias, quatro romances O Cacaulista
(1876), História de um pescador (1876), O Coronel Sangrado (1877) e O Missionário (1891),
e o autor encerraria sua produção literária com um livro de contos intitulado Contos
Amazônicos (1893), do qual faz parte o conto em questão.
O discurso apresentado na obra de Inglês de Sousa é aquele formado a partir do
imaginário local, na cultura do entre-lugares em que os sujeitos estão inseridos para
moldarem sua identidade, já que é preciso está inserido no espaço para se compreender o
mesmo (BHABHA, 2013). Isso se constata na própria formação de vida do próprio escritor
Inglês de Sousa. Que nasceu no Pará, e escreveu sobre a Amazônia, mesmo não residindo
grande parte de sua vida neste lugar.
Retomando a discussão o presente artigo discute inicialmente a figura e a condição
feminina diante de uma cultura patriarcal, permeada por um discurso dominante, à luz dos
pressupostos sobre o ser feminino, vias de regra, o de ser mulher. E num segundo
momento, analisa-se, dialogicamente a partir dos pressupostos teóricos, a representação do
feminino no conto Acauã de autoria masculina.

2 A (IN)SUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER... FEMININO: UMA BREVE DISCUSSÃO


TEÓRICA E HISTÓRICA
por meio de uma referência conotativa à obra de Milan Kundera (1985) que se
intitula este tópico, e que, assim como a emblemática trama de Kundera, entranha-se pela
profundidade e pela complexidade, bem como em torno de conceitos que sugerem leveza e
peso, mas enquanto Kundera propõe reflexões sobre o amor e suas vicissitudes, este artigo
caminha para a discussão do que é ser feminino, ser mulher.

381
Ao pensar e discutir sobre as questões que envolvem o que é ser mulher ao longo
do tempo, e perceber pensamentos/comportamentos que se propõem como ruptura contra a
dominação masculina, logo surge um dos nomes mais representativos dessa mudança de
pensamento, o de Simone de Beauvoir. Ela foi considerada uma das maiores teóricas do
feminismo moderno, autora de frases que marcariam o seu nome na história, e a faria
necessariamente presente nas discussões sobre os estudos de gênero, em especial com a
frase ―ninguém nasce mulher, torna-se‖. E para esta discussão, os pressupostos de
Beauvoir (1970) e de Butler (2003) se fazem importantes.
No livro de Butler (2003), Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade, que se divide em três capítulos, a escritora discorre sobre uma genealogia crítica
das categorias de gênero em campos discursivos muito distintos. E inspirada nos discursos
de Beauvoir (1970), Kristeva, Irigaray, Foucault e Witting, Butler (2003) fala o quão é
melindrosa a questão de tentar definir uma identidade do ser mulher e/ou do ser feminino,
pois depende de muitas outras questões, como o contexto histórico, político, ideológico,
entre outros. Uma definição num determinado contexto, não necessariamente caberá em
outros, mas é possível presumir uma identidade:

Em sua essência, a teoria feminista tem presumido que existe uma


identidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, que não só
deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu próprio
discurso, mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação
política é almejada (BUTLER, 2003, p. 17-18).

O que sugere que ser feminino e o ser mulher, não necessariamente, carregam o
mesmo sentido.
Beauvoir (1970), em seu livro, O segundo sexo: fatos e mitos, inicia uma intensa e
reflexiva indagação sobre o que é ser mulher, proporcionando as mais sugestivas e diversas
compreensões e olhares, sejam do ponto de vista biológico e/ou social, os sentidos
imbricam-se e se (con)fundem. A compreensão se dá pelos questionamentos e pelas
possibilidades, não pela exatidão de respostas, se é que é possível, assim, defini-la.

Que é uma mulher? „Tota mulier in utero: é uma matriz‟, diz alguém.
Entretanto, falando de certas mulheres, os conhecedores declaram: „Não
são mulheres‟. Embora tenham um útero como as outras. [...] Todo ser
humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher [...]
(BEAUVOIR, 1970, p.7).

Segundo a própria escritora e filósofa, ligada ao pensamento existencialista, ―o


próprio enunciado do problema sugere uma resposta‖ (Beauvoir, 1970, p.9). Pois, conforme
Beauvoir (1970) um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular

382
que eles ocupam na humanidade, mas se for uma mulher, sim. Se do ponto de vista da
autoria, não resta dúvida de que é isso que ocorre, e do ponto de vista em que o autor e/ou
narrador de uma narrativa literária fala sobre a figura/personagem feminina, como ele a
descreve? Qual a representação feminina aos moldes do olhar masculino? Embora,
previsível, as respostas são as mais sugestivas possíveis, e geralmente são permeadas por
um olhar misógino, e é por esse viés de discussão que se envereda esta analise.
A ideia que se tem neste artigo, não é propor respostas, mas reforçar os
questionamentos, as reflexões já propostas por grandes teóricos, e talvez com a força
destas indagações fragilizar, dirimir, desconstruir e reconstruir o discurso hegemônico e
romper com o pensamento da dominação masculina/patriarcal ainda resistente e
insistentemente instituída.
Outro nome importante é o de Bordieu (2012) que em seu livro A Dominação
Masculina, disserta sobre a necessidade de se pensar no trabalho histórico de des-
historicização

Realmente, é claro que o eterno, na história, não pode ser senão produto de
um trabalho histórico de eternização. O que significa que, escapar
totalmente do essencialismo, o importante não é negar as constantes e as
invariáveis, que fazem parte, incontestavelmente, da realidade histórica: é
preciso reconstruir a história do trabalho histórico de des-historização, ou, se
assim preferirem, a história da (re)criação continuada das estruturas
objetivas e subjetivas da dominação masculina, que se realiza
permanentemente, desde que existem homens e mulheres, e através da
qual a ordem masculina se vê continuamente reproduzida através dos
tempos (BORDIEU, 2012, p. 100-101).

O teórico que discute sobre violência simbólica, não descarta o quão emblemático é
esse processo

Ao trazer à luz as invariantes trans-históricas da relação entre os „gêneros‟,


a história se obriga a tomar como objeto o trabalho histórico de des-
historicização que as produziu continuamente, isto é, o trabalho constante
de diferenciação a que homens e mulheres não cessam de estar
submetidos e que os leva a distinguir-se masculinizando-se ou
feminilizando-se. Ela deveria empenhar-se particularmente em descrever e
analisar a (re) construção social, sempre recomeçada, dos princípios de
visão e de divisão geradores dos „gêneros‟ e, mais amplamente, das
diferentes categorias de práticas sexuais (sobretudo heterossexuais e
homossexuais), sendo a própria heterossexualidade construída socialmente
e socialmente constituída como padrão universal de toda prática sexual
„normal‟, isto é, distanciada da ignonímia da „contranatureza‟ (BORDIEU,
2012, p.101-102).

Bordieu (2012) afirma que a história deveria se empenhar e se aprofundar nos


estudos de gênero sugerindo que tudo o que está ligado a ideia que se tem sobre homem e

383
mulher, e necessariamente a heterossexualidade foram construído e instituído social e
historicamente, e aceitos como padrão, como natural, como normal, e que tudo que foge
disso é entendido como não aceitável. O que sugere ser necessário se fazer uma
(re)construção social, histórica, de conceitos, entre outros. Mas Bordieu (2012) aponta uma
pequena luz no fim do túnel, não como saída, mas como possibilidade para iluminar o
caminho das discussões, afirmando que

Uma verdadeira compreensão das mudanças sobrevindas, não só na


condição das mulheres, como também nas relações entre os sexos, não
pode ser esperada, paradoxalmente, a não ser de uma análise das
transformações dos mecanismos e das instituições encarregadas de garantir
a ordem dos gêneros (BORDIEU, 2012, p. 102-103).

Ainda segundo Bordieu (2012, p.106)

A maior mudança está, sem dúvida, no fato de que a dominação masculina


não se impõe mais com a evidência de algo que é indiscutível. Em razão,
sobretudo, do enorme trabalho crítico do movimento feminista que, pelo
menos em determinadas áreas do espaço social, conseguiu romper o
círculo do esforço generalizado, esta evidência passou a ser vista, em
muitas ocasiões, como algo que é preciso defender ou justificar, ou algo de
que é preciso se defender ou se justificar (BORDIEU, 2012. p.106).

E por entender ser um tema predominantemente, porém não necessariamente


exclusivo, de preocupação de teóricas e ativistas femininas/feministas, Bordieu (2012,
p.138) se justifica ao engendrar pelo assunto

Se me aventurei, pois, depois de muita hesitação e com a maior apreensão,


por um terreno extremamente difícil e quase que inteiramente monopolizado
hoje pelas mulheres, é porque eu tinha o sentimento de que a relação de
exterioridade na simpatia em que eu me havia colocado poderia permitir-me
produzir, com o apoio do imenso trabalho estimulado pelo movimento
feminista, e também dos resultados de minha própria pesquisa a respeito
das causas e dos efeitos sociais da dominação simbólica, uma análise
capaz de orientar de outro modo não só a pesquisa sobre a condição
feminina, ou, de maneira mais relacional, sobre as relações entre gêneros,
como também a ação destinada a transformá-las (BORDIEU, 2012, p. 138).

Entende-se aqui a necessidade de se estender essa preocupação. Bordieu (2012,


p.138) concorda que ―o movimento feminista contribuiu muito para uma considerável
ampliação da área política ou do politizável, fazendo entrar na esfera do politicamente
discutível ou contestável‖, mas alerta, segundo sua própria compreensão de que

[...] o movimento feminista não deve mais deixar-se encerrar apenas em


formas de luta política rotuladas de feministas, como a reivindicação de
paridade entre os homens e as mulheres nas instâncias políticas [...] estas

384
lutas correm o risco de redobrar os efeitos de uma outra forma de
universalismo fictício, favorecendo prioritariamente saídas das mesmas
áreas do espaço social que os homens que ocupam atualmente as posições
dominantes (BORDIEU, 2012, p.139).

Essa é uma questão tênue dentro do movimento feminista, discutida também por
Butler (2003).
A questão do ser mulher/ser feminino perpassa por diversas discussões que
envolvem também discussões sobre identidade, o que culmina sutilmente para o campo da
indissociabilidade.
Identidade é um tema de interesse das mais diversas áreas do conhecimento, o que
reforça seu caráter polissêmico. Difícil até mesmo defini-la ou delimitá-la. Por isso, este
envereda pelas concepções de Bauman (2005) e Hall (2006) que asseguram que o conceito
de identidade é demasiadamente complexo, mas imprescindível para a compreensão do ser,
do sujeito, do ponto de vista de suas subjetividades e coletividades.
Bauman (2012, p.44) diz que ―a atenção intensa que hoje se dá ao tema da
identidade é em si mesma um fato cultural de grande importância‖, e isso é que também
sustenta a importância desta pesquisa no campo da literatura e do social. E como o intuito é
propor reflexões e observar os processos de construção do feminino, tais considerações se
fazem importante. O objetivo é oferecer uma pesquisa contínua, mostrando possibilidades
diferentes de reflexão.

Estamos observando, nos últimos anos, uma verdadeira explosão discursiva


em torno do conceito de ―identidade‖. O conceito tem sido submetido, ao
mesmo tempo, a uma severa crítica. Como se pode explicar esse paradoxal
fenômeno? Onde nos situamos relativamente ao conceito de ―identidade‖?
está-se efetuando uma completa desconstrução das perspectivas
identitárias em uma variedade de areas disciplinares, todas as quais, de
uma forma ou outra, criticam a ideia de uma identidade integral, originária e
unificada (HALL, 2006, p. 103)

Não há identidade una, singular, e muito menos estática. Pelo contrário, é múltipla e
efêmera. E isso ajuda a entender de certo modo a complexidade que gira em torno da
definição do ser feminino e/ou do ser mulher.

3 OS DIFERENTES FIOS REPRESENTATIVOS DO SER FEMININO NA TECITURA


LITERÁRIA ACAUÃ
luz da concepção da literatura de testemunho, o narrador, em Acauã, seria um tipo
de testemunha testis, seria aquele que vê e registra os fatos (BRITO JUNIOR, 2013, p. 61).
A personagem Aninha seria a superstes que é aquela que dá, dentre outros, o testemunho
da superação da morte e da resiliência da vida (BRITO JUNIOR, 2013, p. 63), no caso de

385
Aninha, embora um sofrimento visível, descrito pelo narrador, ela permanece em silêncio, e
o seu silêncio também fala. E a ideia que se tem sobre o testemunho da superstes é que
este leva o fatual ao nível da sobrevivência (BRITO JUNIOR, 2013, p. 63).
Não se trata de uma história real, mas uma narrativa tecida por fios míticos que se
realizam no imaginário amazônico. E inclusive

[...] é por conta da imaginação que muitas acusações são feitas contra o
testemunho. Ou seja, antes de se criticar a literatura (com seu evidente
compromisso com a imaginação), a própria narrativa testemunhal, que se
quer „primeira‟, atestação, fonte original da realidade, mesmo esta narrativa
descartada por muitos historiadores, como não sendo fonte fidedigna para
o historiador (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 71).

E é nesse contexto literário que se dá esta discussão.


No universo amazônico, de acordo com Loureiro (1995), as pessoas encontram
explicações e justificativas para tudo o que acontece, por meio do imaginário local que se
construiu e se constrói da relação do homem com a natureza e com os outros. Algo explícito
na narrativa de Inglês de Sousa, um espaço social motivado, explicado e vivido a partir da
existência de uma mitologia que não desapareceu no decorrer da história e da evolução do
pensamento humano, na verdade se transformou. E que por ventura permite a análise que
se faz a seguir.
Assim, a análise da representação do feminino no conto se dá por meio de um olhar
do contemporâneo sobre as personagens, sem explorar intensivamente o regional e ao
mesmo tempo sem desconsiderá-lo. A intenção foi observar o processo de construção
identitária das personagens femininas na narrativa inglesiana do final do século XIX,
trazendo a discussão para tempos recentes em que muitas (des) (re) construções estão
ocorrendo e num contexto em que a luta por uma desejada equidade tem se intensificado.

3.1 O feminino em Acauã: um olhar sobre as personagens para além das fronteiras
literárias de expressão amazônica
Hegemonicamente, ao longo da história a mulher foi/é considerada como sendo
inferior ao homem, seja do ponto de vista do social, político e até mesmo estético. Em
termos gerais, foi subjugada, silenciada, excluída, estereotipada. Mas, atualmente, observa -
se que em diversos campos, a mulher tem conseguido se firmar, adentrando em espaços
em que durante muito tempo lhe fora negado.
Na literatura é notório que muitas obras de autoria feminina vêm ganhando mais e
novos espaços e conceitos, e as que foram excluídas no passado, passaram a ganhar
(maior) visibilidade e reconhecimento, mesmo que tardiamente. O presente estudo procura
mostrar aqui a figura feminina, necessariamente a representação do feminino, não enquanto

386
autoria, mas enquanto personagens, e sob a visão masculina, levando a discussão a partir
de um determinado contexto literário, atravessando as experiências das vozes, dos olhares
e da vida de quem produz este trabalho, levando para um nível de reflexão nos/dos dias
atuais.
Este artigo toma como objeto de análise a narrativa Acauã do livro Contos
Amazônicos (1893), cuja narrativa se dá no entrelace de dois campos distintos, o do real e o
do imaginário cotidiano da vida amazônica, ou seja, trata-se da vida de ribeirinhos
amazônidas movida/permeada por lendas e mitos que movem o seu cotidiano, suas
crenças, seus valores e, também suas relações sociais. A Amazônia que não é singular,
mas pluri merece um foco maior e mais significativo, tanto quanto a sua importância nas/das
mais diferentes áreas de estudos. Até porque há outras formas de conceber, de ver, de
definir a Amazônia, e por isso a lógica de entender não só uma Amazônia, mas várias.
Segundo Loureiro (2002)

A margem do rio, entre o rio e a floresta, é o lugar privilegiado dos enigmas


da Amazônia transfigurados em enigmas do mundo. Oferece interrogações
sobre origens e destinos. É quando o rio deságua no imaginário. Onde se
pode ler a multiplicidade dos ritmos da vida e do tempo, observar as
indecisões da fronteira entre o real e o imaginário, o espontâneo
maravilhamento diante dos acasos. O sentido privilegiado da contemplação
conduz ao jogo estético, pela quimera de olhar as coisas ante o mistério que
delas emana e pelo que nelas se exprime, nesse vago e gratuito prazer da
imaginação que não busca um porto, embora numa viagem de vagos
destinos. Uma viagem que não precisa levar a nenhuma parte. A margem do
rio não existe lógica para ser coerente. Nela estão os mais preciosos
arquivos culturais do mundo amazônico, os manguezais simbólicos de nossa
cultura, as raízes submersas da alma cabocla (LOUREIRO, 2002, p.165).

Fugindo deste desafio de desbravar a enigmática Amazônia, descrita por Loureiro,


este estudo segue por outra margem. O foco é dado às personagens, um olhar dado à
narrativa como o de quem busca informações outras, sentidos outros, sem mexer nos
detalhes da obra, mas de quem observa à paisana, metaforicamente sentado(a) à margem
de um rio, o movimento, as vozes, as descrições, as características presentes e insinuadas,
e porque não, insinuantes.
Butler (2003) ao longo dos seus escritos vai fazendo diversas indagações que de
certa forma confirma e identifica problemas/falhas dentro da concepção do pensamento e da
prática do movimento feminista, em especial na própria definição de seus sujeitos,
considerando a distinção entre sexo e gênero, e embora levante todos esses
questionamentos, Butler (2003), concomitamente, reconhece a importância e a necessidade
do feminismo, mas enfatiza que um dos maiores problemas está em torno dos sujeitos.

387
Segundo, a filósofa francesa, Simone de Beauvoir ―não se nasce mulher, torna-se mulher‖, o
gênero é simplesmente um processo de construção (BUTLER, 2003, p. 26).
Em relação ao conto Acauã, a trama gira em torno de um homem viúvo, Jerônimo,
que mora com sua filha legítima, Aninha, e que encontra um bebê, Vitória, num certo dia e
num contexto enigmático, e a adota como filha. A história se desenrola num contexto típico
do imaginário amazônico, numa comunidade ribeirinha, permeada por mistérios
surpreendentes. Mas a análise se ancora, principalmente, nas entrelinhas dos
comportamentos e das atitudes das personagens Aninha e Vitória, e na relação com o pai,
Jerônimo.
Havia entre Aninha e Vitória uma relação enigmática/misteriosa que causa
estranhamento e sugere as mais diferentes impressões e entendimentos. Conforme pode
ser notado na fala do narrador

As duas companheiras afetavam a maior intimidade e ternura recíproca,


mas o observador atento notaria que Aninha evitava a companhia da outra
ao passo que esta a não deixava. A filha do Jerônimo era meiga para com a
companheira, mas havia nessa meiguice um certo acanhamento, uma
espécie de sofrimento, uma repulsão, alguma coisa como um terror vago,
quando a outra cravava-lhe nos olhos dúbios e amortecidos os seus
grandes olho negros (SOUSA, 2005, p. 67).

As personagens que foram criadas como irmãs, ao longo da narrativa, pela voz do
narrador, aparentam ter uma relação algumas vezes conflituosa, outras vezes amistosa. Em
algumas situações se observa características de subalternidade, de Aninha em relação à
Vitória. O que sugere um comportamento misógino desta última. Há de certa forma,
também, uma implícita e sugestiva possibilidade de uma relação amorosa entre elas. E
considerando o contexto histórico da obra, é possível sugerir explicitamente que tal relação
pudesse suscitar polêmica à época, pois possivelmente, seria mais aceitável entender a
relação somente pelo sentido mítico, explicável e justificável pela lenda do pássaro Acauã,
do que uma relação homoafetiva. Algo semelhante a uma situação de gravidez indesejada,
cuja responsabilidade é atribuída ao boto, outro símbolo mítico, e tal aceitação seja visto
como natural pelo imaginário amazônico. No caso, da homossexualidade, esta seria menos
aceitável (ou de forma alguma) que a gravidez de um amante e/ou na adolescência, por
exemplo. Isso, considerando o pensamento patriarcal que se instaurou social e
historicamente.
Trazer esta discussão para o atual contexto se faz necessário dizer que, é ainda
lidar com fortes preconceitos. O que Bordieu (2012) alerta para se pensar a (re)construção
do pensamento, do ponto de vista social e histórico, em torno da questão de gênero e de
suas práticas/orientações sexuais. Conforme Borrillo (2010, p. 30), ―a homofobia é

388
inconcebível sem que seja levada em consideração a ordem sexual a partir da qual são
organizadas as relações sociais entre os sexos e as sexualidades‖. Pois, ―à origem da
justificativa social dos papeis atribuídos ao homem e à mulher, esta se encontra na
naturalização da diferença entre dois sexos‖ (BORRILLO, 2010, p.30), ou seja, a dita ordem
natural dos sexos é o que determina uma ordem social em que o feminino deve ser
complementar a do masculino, inclusive pela lógica da subordinação, tanto psicológica,
quanto cultural. E ainda segundo, Borrillo (2010, p.30) ― [...] a dominação masculina
identifica-se com essa forma específica de violência simbólica que se exerce, de maneira
sutil e invisível‖, até porque tal violência é apresentada pelo dominador e natural, inevitável e
necessariamente aceita pelo dominado. De acordo com o escritor, sobre a definição de
sexismo, este carateriza-se, precisamente, por uma constante objetificação da mulher, bem
como acrescenta P. Bordieu (1998, p.73 apud BORRILLO, 2010, p.30):

[As mulheres] existem, em primeiro lugar, pelo e para o olhar dos outros, ou
seja, enquanto objetos acolhedores, atraentes e disponíveis. Espera-se que
elas sejam ―femininas‖, ou seja, sorridentes, simpáticas, atenciosas,
submissas, discretas, reservadas e, até mesmo, invisíveis. E a pretensa
―feminilidade‖ não passa, na maior parte das vezes, de uma forma de
complacência em relação às expectativas masculinas, reais ou supostas,
particularmente em matéria de ampliação do ego. Por conseguinte, a
relação de dependência para com os outros (e não só dos homens) tende a
tornar-se constitutivo de seu ser (BORRILLO, 2010, p. 30).

No que diz respeito à condição subalterna de Aninha, esta condição é percebida pelo
comportamento de medo e de subserviência em relação à Vitória e, também em algumas
situações, em relação ao pai, e isso é bastante claro na fala do narrador que diz que ―nas
relações de todos os dias, a voz da filha da casa era mal segura e trêmula; a de Vitória,
áspera e dura. Aninha, ao pé de Vitória, parecia uma escrava junto da senhora‖ (SOUSA,
2005).
Em seu livro Pode o subalterno falar?, Spivak (2010) tem como uma de suas
preocupações centrais a de desafiar os discursos hegemônicos e também as crenças dos
(seus) próprios leitores e produtores de saber e conhecimento (pesquisadores, como os que
vos fala). E ao concluir a sua interrogativa inicial, a teórica se refere ao fato de a fala do
subalterno e do colonizado ser sempre intermediada pela voz do outro. Como ocorre na
narrativa Acauã, Vitória era a„dona‟ das vontades de Aninha. Decidia por ela.
A obra de Spivak (2010) é uma referência não apenas para os estudos pós-coloniais,
mas também para os estudos culturais e para a crítica feminista, principalmente ao indagar
as formas de repressão dos sujeitos subalternos, interrogando, até mesmo, a própria
cumplicidade dos intelectuais contemporâneos, nessa questão. É comum encontrar
cumplicidade de condições subalternas de personagens femininas em diferentes narrativas

389
literárias. Spivak (2010, p.85-86) confirma que „a questão da „mulher‟ parece ser a mais
problemática nesse contexto e que se faz necessário ―acolher também toda recuperação de
informação em áreas silenciadas‖.
Nos seus escritos, Spivak (2010) discorre no seu último tópico sob a égide da crítica
feminista, propondo questionamentos de cunho reflexivo em torno do discurso dos suicídios
sancionados e a natureza dos rituais para os mortos. Seus estudos giram em torno desses e
de outros diversos questionamentos, e deixa claro que não trás respostas objetivas, mas
nos propõe discussões outras.

Evidentemente, meu tratado não é exaustivo. Minhas leituras são, mais


propriamente, um exame interessado e imperito, de uma mulher pós-
colonial, sobre a fabricação da repressão – uma contranarrativa construída
da consciência da mulher e, portanto, do ser da mulher, da mulher com um
ser bom, do desejo da mulher boa e, assim, do desejo da mulher.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo, testemunhamos o lugar móvel da
mulher como um significante na inscrição do individuo social (SPIVAK, 2010,
p.98).

Embora sob uma égide diferente à discutida e exemplificada nos escritos de Spivak
(2010), no conto Acauã, a personagem Aninha no dia do seu casamento passa por uma
espécie de ritual de transformação. Não fora uma escolha de Aninha. Sugere sacrifício. E,
assim, ao ver Vitória

Aninha soltou um grito de agonia e caiu com estrondo sobre os degraus do


altar. [...] A pobre noiva, toda vestida de branco, deitada sobre os degraus
do altar-mor, estava hirta e pálida. Dois grandes fios de lágrimas, como
contas de um colar desfeito, corriam-lhe pela face. [...]
Então convulsões terríveis se apoderaram do corpo de Aninha. Retorcia-se
como se fora de borracha. O seio agitava-se dolorosamente. Os dentes
rangiam em fúria. Arrancava com as mãos o lindo cabelo. Os pés batiam no
soalho. Os olhos reviravam-se nas órbitas, escondendo a pupila. Toda ela
se maltratava, rolando como uma frenética, uivando dolorosamente.
De repente, a moça pareceu sossegar um pouco, mas não foi senão o
princípio de uma nova crise.
Inteiriçou-se. Ficou imóvel. Encolheu depois os braços, dobrou-os a modo
de asas de pássaro, bateu-o por vezes nas ilhargas, e, entreabrindo a boca,
deixou sair um longo grito que nada tinha de humano, um grito que ecoou
lugubremente pela igreja:
– Acauã! (SOUSA, 2005, p. 79).

Embora seja uma referência clara sobre a lenda do Acauã, uma cuidadosa (re)leitura
pode (re)abrir outras discussões, além das que aqui se fazem. E também perceber, de certa
forma, nas duas personagens, exemplos de duas representações distintas do ser feminino,
do ser mulher. Se por um lado Aninha representa a imagem frágil, vulnerável, suscetível,
submissa, entre outros estereótipos já instituídos historicamente à imagem da mulher, por
outro lado Vitória é a representação da própria luta feminista, a força, o vigor, a

390
independência, e embora a personagem pareça representar uma mudança do
comportamento e do pensamento feminino e reforçar a ideia de ressignificação nas relações
de gênero, percebe-se que o preconceito e os estereótipos também se ressignificaram, no
sentido de que ao passo que Vitória representa um ser feminino, porém o seu vigor e a sua
força é comparada a atributos que, hipoteticamente, apenas homens podem ter, e isso faz
dela uma aberração, a serem observadas no trecho a seguir

Vitória era alta e magra, de compleição forte, com músculos de aço. A tez
era morena, quase escura, as sobrancelhas negras e arqueadas; o queixo
fino e pontudo, as narinas dilatadas, os olhos negros, rasgados, de um
brilho estranho. Apesar da incontestável formosura, tinha alguma coisa de
masculino nas feições e nos modos. A boca, ornada de magníficos dentes,
tinha um sorriso de gelo. Fitava com arrogância os homens até obrigá-los a
baixar os olhos (SOUSA, 2005, p.60).

Tais características propõem/sugerem uma ideia de demonização da mulher. Aquela


que foge dos princípios da mulher submissa, instituída pelo patriarcado, é considerada a
própria representação da bruxa dos tempos da idade média, que era contrária à igreja.
Inclusive as características, atribuídas à Vitória, fazem uma sugestiva comparação à figura
mítica Medusa.
Em suma, embora o ser feminino e o ser mulher se mantenham sob uma linha tênue
de diferença, é aqui usado de certo modo como sinônimo. Aninha representa a imagem do
ideal do que se espera sobre a mulher numa visão e discurso instituídos social e
historicamente pela dominação masculina, conforme discutido em Spivak (2010) e Bordieu
(2012), mas em contrapartida Vitória trás uma representação do que contraria o
pensamento/discurso misógino e a partir dele é vista como uma aberração, um monstro,
metaforicamente sugerido na narrativa, inclusive tais atribuições podem ser feitas à crítica e
à luta feminista, se se seguir a lógica do pensamento misógino.
Percebe-se ainda muito forte e presente, que a visão que se tem sobre o ser
feminino ao longo do tempo tem obtido novas concepções, visões, percepções, enfim, tem
ganhado força e voz, percorrendo contra a correnteza dos estereótipos arraigados, mas
percorrendo. E não se pode negar a importância que os estudos sobre gênero e o
movimento feminista têm alcançado nos mais diferentes espaços, e o que outrora se
estagnava no campo do silêncio e da invisibilidade, hoje se fazem ouvir e, cada vez mais, se
fazem presente.

391
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como fora dito, explícita e/ou implicitamente ao longo deste trabalho, a intenção não
foi apresentar respostas exatas ou verdades absolutas sobre ser feminino e/ou ser mulher,
mas suscitar novos questionamentos, outras reflexões.
Butler e Beauvoir revelam a complexidade que gira em torno da definição do gênero
feminino, que não necessariamente possa ser ou ter o mesmo sentido que ser mulher,
embora um não anule o outro, mas se entende que há situações a serem revistas,
analisadas, e que podem ou não serem substitutos entre si. Aqui foram usados, de certa
forma, como sinônimos, mas é bom lembrar de que não se trata de uma regra. Embora
preferencialmente se optara na maioria das vezes pelo termo feminino.
Há uma série de discussões feitas à questão do feminino subersivo e feitas à crítica
feminista em torno da tentativa de compreender melhor as questões de gêneros, em
especial o feminino, embora as análises e as (re) leituras de narrativas literárias, como esta,
não possibilitem respostas de caráter definitivo, elas possibilitam algo muito maior, que
todos os teóricos que embasam este artigo, (in)diretamente alertam, de que é preciso
entender o que acontece(u) para que a caminhada/luta continue e se ressignifique no
presente. As lutas feministas, segundo o próprio Bordieu, trouxeram essas questões para o
campo do politicamente discutível, e isso por si só representa um significativo avanço.
Acrescenta-se ainda que muitas vozes passaram a ser ouvidas, mas reconhece-se que há
muito a se fazer. Mas de certa forma olhar e discutir o processo de mudanças que tem
ocorrido proporciona hoje muitos outros questionamentos importantes e necessários, trazem
novas experiências e reflexões, o que mostra que questionar move, sugere continuidade, e
repostas indicam que acabou. Por isso a relevância deste estudo.

REFERÊNCIAS

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393
VOZES NEGRAS E INDÍGENAS NA LITERATURA LATINO-AMERICANA
CONTEMPORÂNEA: UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE

https://doi.org/10.29327/527231.5-26
1
Francelina Barreto de Abreu

RESUMO: O presente artigo, se propõe a tecer um olhar sobre a construção da identidade


feminina na atual conjuntura da literatura latino-americana. O trabalho faz um recorte na
figura feminina representada pela mulher negra, em Victória Santa Cruz no poema Me
gritaron Negra, e na indígena, por Eliane Potiguara na obra Metade cara, metade máscara
(2019). A escolha destas obras se deu em função do caráter de enfrentamento ao
preconceito e ao racismo como marca constante de resistência ao silenciamento associado
ao contexto histórico e aos fatores sociais que contribuem para a visão de inferioridade e
exclusão a que estiveram submetidas e o enfrentamento ao sofrimento que passaram essas
mulheres reafirmando sua identidade. Como aporte teórico-metodológico para a pesquisa
foram escolhidos os autores Maldonado-Torres (2007), Quijano (2005), Bosi (2002), Perrot
(2007), que corroboram com este estudo.
Palavras-chave: identidade; mulher negra/indígena; racismo; literatura latino-americana.

ABSTRACT: This article proposes to take a look at the construction of female identity in the
current conjuncture of Latin American literature. The work cuts in the female figure
represented by the black woman, in Victória Santa Cruz in the poem Me scitaron Negra, and
in the indigenous, by Eliane Potiguara in the work Half Face, Half Mask (2019). The choice of
these works was due to the character of confronting prejudice and racism as a constant mark
of resistance to silence associated with the historical context and the social factors that
contribute to the view of inferiority and exclusion to which they were subjected and facing
suffering. who spent these women reaffirming their identity. As theoretical and
methodological support for the research were chosen the authors Maldonado-Torres (2007),
Quijano (2005), Bosi (2002), Perrot (2007), which corroborate this study.

Keywords: identity; black / indigenous woman; racism; Latin American literature.

INTRODUÇÃO
Este artigo foi construído tomando como base a representação do feminino na literatura
latino-americana contemporânea. Para a análise escolhemos fazer um recorte na representação
da mulher negra e da indígena, por observar o caráter histórico de exclusão e silenciamento a
que foram e são submetidas. A representante da literatura negra é Victória Santa Cruz em seu
poema Me gritaron Negra (1960), e a indígena escolhida por sua constante luta e representação
de seu povo é, Eliane Potiguara em Metade cara, metade mascara (2019). A escolha destas
obras se deu em função da necessidade de apontarmos a relevância de estudos
contemporâneos que tenham como objeto de análise a mulher negra e a indígena.

1 Mestra em Letras Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e professora substituta no
Instituto Federal de Ciências e Tecnologia do Pará (IFPA). E-mail: francymes18@gmail.com

394
Observamos nestas narrativas uma transformação na voz discursiva, para uma breve
comparação tomamos o romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, publicado em 1890. Nesta
obra, temos a representação feminina construída pela perspectiva masculina, o que inclui
toda a carga social do período histórico representado. De acordo com Perrot (2007, p. 16),
durante muitos séculos ―as mulheres são imaginadas, representadas, em vez de serem
descritas ou contadas. Eis aí outra razão para o silêncio e a obscuridade: a dissimetria
sexual das fontes, variável e desigual‖, como ocorre nesta e em muitas outras obras.
Em contrapartida, percebemos em Me gritaron negra (SANTA CRUZ, 1960) a própria
representatividade da mulher negra que sente/vive o preconceito e passa a utilizar a poesia
como ferramenta de luta contra as violências sofridas. Da mesma forma, escolhemos Metade
Cara, metade mascara (POTIGUARA, 2019) pelas denúncias sociais apresentadas contra a
mulher indígena, não somente a esta, mas a todos os povos indígenas que permanecem até os
dias atuais vítimas da colonização. Mais de quinhentos anos passaram-se desde que se iniciou
em nosso continente esse processo e como a própria autora denuncia, permanece.
2
Nos últimos dias foi noticiado o assassinato de Paulo Guajajara , líder indígena, que
lutava pela defesa da Terra Indígena Arariboia, no Estado do Maranhão. Mais uma vítima
dos constantes crimes cometidos contra indígenas no nosso país. A escolha da obra de
Eliane Potiguara, se deu devido as fortes críticas, e denúncias que a autora tece em seu
livro, apontando o descaso do governo para com a população indígena brasileira.
Desta forma, tanto na poesia de Victória Santa Cruz como no livro de Eliane
Potiguara, percebemos uma estrita relação dos relatos com as vivências das autoras.
Potiguara saiu muito cedo de suas terras e presenciou as mais diversas formas de
dominação para com seus ―irmãos‖. Por sua vez, Victória aos cinco anos sofre pela primeira
vez racismo, sem nem mesmo compreender o significado do termo, negra.
Assim, ao analisar a poesia e o livro nos determos em tecer nossa observação sobre
o processo de construção da identidade destas mulheres negras e indígenas na América
Latina contemporânea, perpassando pelo contexto sociocultural e histórico americano.

1 Minha história das mulheres negras e indígenas.


Michelle Perrot, em seu livro Minha história das mulheres (2007), apresenta um
direcionamento que nos norteia no entendimento da construção da história destas ao longo
do tempo. A autora deixa explícito desde as primeiras páginas a dificuldade de um relato
histórico temporal feminino devido ao enorme silenciamento e exclusão a que estiveram
submetidas.

2 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/02/politica/1572726281_632337.html>

395
Para escrever a história, são necessárias fontes, documentos,
vestígios. E isso é uma dificuldade quando se trata da história das
mulheres. Sua presença é freqüentemente apagada, seus vestígios,
desfeitos, seus arquivos, destruídos. Há um déficit, uma falta de
vestígios (PERROT, p. 20, 2007).

De acordo com o fragmento, as mulheres tiveram seus rastros apagados e levaram


muitos séculos para adquirir a percepção de seu espaço como ser social de igual valor ao
masculino, ―[...] elas mesmas, mergulhadas em silêncios impostos e sufocadas por imagens
distorcidas, por muito tempo desprezaram a importância de sua história‖ (PERROT, p. 10,
2007). E os fatores que contribuíram para isso são os mais variados possíveis, nas linhas
seguintes há uma síntese do percurso histórico.

No século XVIII ainda se discutia se as mulheres eram seres


humanos como os homens ou se estavam mais próximas dos
animais irracionais. Elas tiveram que esperar até o final do XIX para
ver reconhecido seu direito à educação e muito mais tempo para
ingressar nas universidades. No século XX, descobriu-se que as
mulheres têm uma história e, algum tempo depois, que podem
conscientemente tentar tomá-la nas mãos, com seus movimentos e
reivindicações. (PERROT, p. 11, 2007)

Assim, é perceptível que influenciadas pelos fatores sociais, elas se abstiveram de


construir sua história pelo preconceito a que estiveram submissas. No século XVIII, a visão
estabelecida se aproximou a da animalização, a dificuldade de falarem sobre si perdurou no
século seguinte, no qual, por fim, tiveram acesso à educação, mas apenas no século XX,
passam a tomar posse da construção do discurso feminino como meio de luta contra a
desigualdade de gênero.

Ao se tratar da mulher negra e indígena a situação torna-se um pouco mais complexa,


envolve além do fator gênero, a questão racial. Segundo Quijano (2005, p. 117) a ideia de
raça é ―uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural
de inferioridade em relação a outros‖, explica as relações entre brancos, negros e índios e
se estende para a relação de gênero. ―Em outras palavras, raça e identidade racial foram
estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população‖ (QUIJANO,
2005, p.117).

Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de


dominação social universal, pois dele passou a depender outro
igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de
gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa
situação natural de inferioridade, e conseqüentemente também seus

396
traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais.
(QUIJANO, 2005, p. 118).

sobre este início da colonização do território americano que o escritor colombiano


William Ospina produz seu romance. A obra de Ospina, foi escrito no ano de 2008, mas
retrata o período de chegada dos colonizadores espanhóis na América. O autor, apresenta
todo o cenário de destruição dos povos indígenas, demonstrando desde os primeiros anos
da colonização a submissão e o extermínio a que foram submetidos.
Na narrativa El país de la Canela (2008), temos a presença da indígena Amanei. A
personagem é descrita em situação de total submissão ao colonizador branco. Com ele teve
um filho mestiço, a quem criou como ama de leite, sendo-lhe retirado o direito da
maternidade. Silenciada, a índia passa longos anos mantendo a farsa e apenas depois da
morte do espanhol, pai de seu filho, ela se assume como mãe do narrador, ―mi madre
verdadera era ella misma: la índia de piel oscura‖ (OSPINA, 2008, p. 12).
Como se já não bastasse todo o sofrimento imposto pelo silenciamento, sofreu ainda
com a rejeição do filho, ―Toda mi infancia la había querido como una madre: bastó que
pretendiera serlo de verdade para que mi devoción se transformara en algo cercano al
desprecio‖ (OSPINA, 2008, p.12). O relato segue expondo o fim da vida da índia. ―Amaney,
mi madre india, mi madre, había muerto a solas como murió su raza sin quejarse siquiera,
porque no había en el cielo ni en la tierra nada ante lo cual pudiera quejarse, abandonada
por sus dioses y negada por su propia sangre‖ (OSPINA, 2008, p.223). Terminou morrendo
triste e solitária, pois havia sido tirada de sua tribo e rejeitada pelo único parente que lhe
restara, o filho.
Dois pontos da citação são relevantes, o primeiro, evidencia o silenciamento da
indígena, ela não tem o direito de criar o menino como seu filho e suporta tudo sem dizer
nada, deveria era permanecer calada para assim receber o merecimento de conviver com o
menino como ama de leite. O segundo, externa o mesmo tema, silenciamento, aplicado a
toda a sua raça. A quem ela poderia pedir ajuda? Todos estavam mortos, escravizados e
retirados de seu lar, por isso permaneceu calada até o momento de sua morte.
Os usurpadores, ―se apropriaram de terras indígenas, submeteram a população local a
trabalhos forçados nas minas e a serviços pessoais de vários tipos, empenharam-se em
colonizar suas mentes e sujeitaram mulheres indígenas a todas as maneiras de abuso sexual‖
(STOLKE, 2006, p.18).
O que nos aproxima das denúncias realizadas por Eliane Potiguara, atualmente. A
autora indígena, expõe todo o reflexo histórico social da conquista da América. Assim como,
critica todos os danos pela destruição e êxodo indígena. A situação não é muito diferente
mais de cinco séculos depois, como denuncia Potiguara.

397
As mulheres indígenas também vão trabalhar como operarias mal
remuneradas ou nas grandes plantações dos latifundiários, em um
sistema de cativeiro, trocando seu trabalho por latas de sardinhas e
nunca conseguindo pagar suas dívidas com o contratante. Outras
vezes, vão morar com homens sem caráter que as transformam em
objeto de cama e mesa, submetidas a agressões físicas e parindo
dezenas de filhos, para viverem, miseravelmente, nas casas de
palafitas da Amazônia, dentro e fora do Brasil, ou sobrevivem em
favelas contaminadas moral, social, política e fisicamente. Muitas
vezes, trabalham somente pelo prato miserável de comida
(POTIGUARA, 2019, p. 30).

Neste sentido, percebemos que muitos anos se passaram desde o início da


conquista, no entanto, as mazelas causadas a mulher indígena permanecem as mesmas.
Apesar das transformações ocorridas na sociedade latina a relação de dominação,
imposição de cultura e destruição física e cultual permanece.
O mesmo acontece com os negros, desde que foram trazidos da África. Sofreram
com o afastamento de suas terras, cultura e povos. Vitimados pela escravidão que se
estendeu pelo discurso conquistador de dominação e vitimou inúmeras pessoas. E o fator
cor da pele foi determinante como evidencia Maldonado-Torres:

Nuevas identidades fueron creadas en el contexto de la colonización


europea en las Américas: europeo, blanco, indio, negro y mestizo, para
nombrar sólo las más frecuentes y obvias. Un rasgo característico de
este tipo de clasificación social consiste en que la relación entre sujetos
no es horizontal sino vertical. Esto es, algunas identidades denotan
superioridad sobre otras. Y tal grado de superioridad se justifica en
relación con los grados de humanidad atribuidos a las identidades en
cuestión. En términos generales, entre más clara sea la piel de uno, más
cerca se estará de representar el ideal de una humanidad completa.
(MALDONADO-TORRES, 2007, p. 132).

O grau de humanidade das pessoas passa a ser estabelecido pela tonalidade da


pele, quanto mais clara a pele do ser humano, mas humano ele seria no período colonial.
Dado interessante se considerarmos que as piores atrocidades cometidas neste continente
foram praticada por brancos. Nossa intenção não é corroborar no sentido de qual a raça é
―superior‖, mas deixar claro o nível de preconceito e injustiças sociais a que índios/as e
negros/as estiveram sujeitos.
Sobre a relação de gênero no sistema escravocrata Ângela Davis (1992, p.10) afirma ―o
sistema da escravatura define os escravos como bens móveis. As mulheres eram olhadas não
menos que os homens, eram vistas como unidades rentáveis de trabalho, elas não tinham
distinção de gênero na medida das preocupações dos donos de escravos‖. Em momento
algum houve um tratamento diferenciado para as escravas negras, ao contrário, a

398
preocupação era o benefício da força de trabalho. Amanei conseguiu acompanhar o crescimento
do filho na condição de ama de leite, no entanto, inúmeras escravas negras foram brutalmente
separadas de seus filhos que foram vendidos a terceiros como ―bens rentáveis‖.
Neste breve percurso, observamos a preocupação de Perrot (2007), na
construção/recuperação da história das mulheres ao longo dos séculos, o que nos permitiu
observar o tratamento recebido, os espaços e as possibilidades de representação ao longo
dos séculos. Seguindo com uma breve explanação da chegada da escravidão na América,
na qual foram vitimados e dizimados negros/as e índios/as. A situação de escravidão pelo
viés raça, demonstrou sucintamente as mais variadas situações de violência e exploração a
que estas mulheres estiveram submetidas. No tópico seguinte, adentraremos nas obras de
Victória Santa Cruz e Eliane Potiguara, para observarmos a construção histórica da
identidade destas mulheres na literatura latino-americana contemporânea.

2 Vozes Negras e indígenas na literatura latino-americana: uma questão de identidade


A proposta de demonstrar as vozes negras e indígenas nas obras contemporâneas
latino-americanas se deu em função de que ―a literatura atua como um elemento de
transgressão ao poder da língua [...], mas também opera como uma forma de subversão às
esferas do poder institucionalizado [...] por figurar como um espaço de denúncia contra a
injustiça social‖ (BRAGA, 2009, p. 1) Propiciando que estas mulheres passem a se
representar.
Em obras como Iracema (1991) e O Cortiço (1890) por exemplo, temos a tentativa de
uma representação do feminino que é benéfica no sentido de nos apresentar um caminho,
uma direção. No entanto, a perspectiva e a sensibilidade mudam quando elas próprias,
mulheres negras e indígenas utilizam a própria voz para representar a si mesmas, a seus
povos, a suas dores. A crítica apresentada por quem sentiu na pele o racismo é diferente, é
intensa e comovente, é um contrapor as esferas de poder, um reconhecimento de si.
Em Iracema (1991) de José de Alencar, temos a idealização da mulher indígena e da
valorização do indianismo e nacionalismo referentes ao período romântico em vigor. A índia
representada como a ―virgem dos lábios de mel‖, o caráter romantizado da narrativa
aponta esta percepção. A construção da personagem pelo autor não escapa da estrutura
literária clássica adquirida do conquistador.

Mesmo heroicizado romanticamente, com a marca impressa da valentia,


estava sempre sob a mira do olhar determinante do colonizador. Não
possuía a validade da natureza pura, pois sua valentia fora herdada da
influência medieval, que o colonizador inseriu no contexto e o escritor
tomou para si como baliza [...] Não foi impresso, no entanto, a figura
humanizada, a exemplo das demais com as quais dividiu enredo. Foi,
antes de tudo, um emblema, cerzido

399
com as cores locais e que escondia, sob seus pontos em relevo, o
constante matiz de nativo selvagem a quem o não índio deveria
civilizar, impondo sua cultura. (SANTOS, 2009, p. 21)

Segundo Santos (2009), o romance apesar de representar com reconhecida


importância a figura indígena feminina, não consegue romper com os padrões literários
colonizadores. A forma de construção da narrativa, a apresentação da personagem, segue
os conceitos europeus sobre a técnica de produção da obra.
Em contrapartida, em Metade cara, metade mascara (2019), temos uma narrativa
que visa demonstrar a identidade da mulher indígena rompendo desde o princípio da obra
com os padrões literários por apresentar um livro composto de textos e poesias.

Minha dúvida acerca desse trabalho, passa exclusivamente pela


forma e NÃO PELO CONTEÚDO, pois este trabalho entremeia textos
e cânticos. Alguém já me criticou dizendo, como? Textos e poesia?
Mas minha poesia são choro e exaltação, são cânticos, são cantigas
que ilustram os meus textos analíticos contidos nessas histórias,
entende??? Eu analiso e choro, eu analiso e grito, eu analiso e canto.
Eu berro!!! E tenho esse direito de analisar e fazer o que quiser
depois... Não são poesias como a literatura formal baseadas nos
conceitos que os europeus querem. Quero quebrar essa forma.
(POTIGUARA, 2002, apud GRAÚNA, 2013, p. 182).

A forma como, Eliane Potiguara, constrói sua obra não a qualifica como pertencente
a um determinado gênero estudado e reconhecido por compartilhar certas características.
Ao contrário, como afirma em entrevista, sua literatura visa quebrar com as formas e
conceitos de outrora. A identidade da mulher indígena contemporânea vem sendo
apresentada desde a estrutura da narrativa.
Retomando Iracema (1991), temos uma personagem que se apaixona pelo invasor e
com ele acaba tendo um filho mestiço, o desdobramento da história termina com a morte da
personagem. Em Metade cara, metade mascara (2019), como se pode ver em Cunhantaí e
Juripiranga temos um ―casal que é separado no processo de expulsão das terras e por todos
os desdobramentos do colonialismo e neocolonialismo. (POTIGUARA, 2019, p. 23). Os
traços de luta e sofrimento pelo choque de culturas e na luta pelas terras se assemelham em
ambas as obras, o que externa personagens indígenas que lutam por seus ideais,
demonstrando uma postura de combate e não mais de silenciamento.

Ressaltamos a relevância da outra parte da narrativa de Eliane Potiguara, chamada


por ela de textos. Nesses fragmentos, a voz indígena feminina é testemunha das injustiças
sociais e todos os tipos de violência a que são submetidos atualmente os indígenas no
Brasil, e mais especificamente, a mulher indígena.

400
O processo de colonização e neocolonização dos povos indígenas do
Brasil os conduziu ao trabalho semiescravo [...] causou o desmatamento,
o assoreamento dos rios, a poluição ambiental e a diminuição da
biodiversidade local, entre outros estragos. As invasões trouxeram as
enfermidades, a fome, o empobrecimento compulsório da população
indígena. E mais: as dificuldades locais levaram muitas pessoas à
migração, a submissão ao trabalho semiescravo e a péssimas condições
de moradias (favelas, casas de palafitas na periferia dos centros
urbanos). (POTIGUARA, 2019, p.43, grifo nosso)

A situação das famílias ―desaldeadas ou desestruturadas‖ leva as mulheres indígenas a


se tornarem vítimas de ―abusos, assédio, violência sexual‖ quando não se submetem a
casamentos para ―viverem miseravelmente nas casas de palafitas‖ são destinadas a outra forma
de escravidão ―é a constatação da presença delas em prostíbulos e em zonas de meretrício,
onde vendem seu corpo por migalhas‖ (POTIGUARA, 2019, p. 31) A autora segue
denunciando que o governo não consegue desenvolver políticas que atendam aos povos
indígenas, evitando todos esses danos irremediáveis a eles. Ainda segundo a autora, a
influência do colonizador/usurpador mudou a posição social da mulher indígena na tomada
de decisões nas tribos.

[...] antes do processo de escravidão, a mulher indígena tinha o


mesmo papel de decisão que os pais, maridos, irmãos. A sua palavra
era a palavra final para decidir a guerra intertribal, uma decisão ou
uma assembleia política. Com a chegada dos estrangeiros, a mulher
passou a retaguarda e permanece até hoje servindo de mão de obra
escrava, ou submetendo-se à neocolonização como objeto sexual e
descartável (POTIGUARA, 2019, p.58).

De fato, percebemos a inversão da postura da mulher na sociedade indígena,


semelhante a todas as mulheres da sociedade colonizadora, elas tiveram sua voz e posição de
decisão retiradas, sendo destinadas ao silenciamento. No entanto, a própria autora nos revela
por meio de sua representatividade, que a mulher indígena retoma sua voz, agora não clama
apenas em sua aldeia, mas ao mundo. A sua voz está escrita na história e na literatura deste
continente, expressando sua identidade, e segundo a própria autora ―o papel da mulher na luta
pela identidade é natural, espontâneo e indispensável‖ (POTIGUARA, 2019, p.46)

Neste mesmo percurso de observação partimos para o feminino negro, representado


por Bertoleza e Rita Baiana, em O Cortiço (1890) de Aluísio Azevedo. A percepção das duas
personagens é bem distinta. Bertoleza é a “crioula trintona, escrava de um velho cego‖
3
(AZEVEDO, p.1) representando a força de trabalho.

A edição de O Cortiço escolhida para esta analise não contém ano de publicação e pode ser encontrada no site da Biblioteca
Nacional.

401
Como sempre, era a primeira a erguer-se e a última a deitar-se; de
manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta, para
descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem
domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta,
imunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de
desgostos que nunca vinham à luz (AZEVEDO, p. 81).

Efetivamente, a personagem do século XIX, evidencia a exploração das negras


escravas. Em contrapartida, há no romance uma descrição diferente para Rita Baiana. A
personagem é representada com destaque a seus atributos de beleza e sensualidade,
conduzindo ao entendimento de que a mulher negra neste período é ilustrada pela
exploração ora do trabalho, ora da sensualidade.

No século XX, em Me gritaron negra (1960), há uma inversão de valores. As marcas


do racismo permanecem enfáticas, mas a mulher que fora silenciada em Bertoleza, ou
sensualizada com Rita Baiana. Em Victória Santa Cruz, transita para o reconhecimento e
valorização de sua raça. É vítima do preconceito, mas não silencia, não se limita, não tem
medo de clamar. ―De pronto unas voces en la calle me gritaron ¡Negra!‖ (SANTA CRUZ,
1960). A surpresa inicial da personagem se dá em função
de se tratar de uma menina de sete anos que não compreende o significado de ser ―negra‖.
Mas a partir desse momento consegue perceber que este termo é utilizado de forma negativa.

¿Soy acaso negra?- me dije


¡SÍ!
¿Qué cosa es ser negra?
¡Negra!
Y yo no sabía la triste verdad que aquello escondía.
¡Negra!
Y me sentí negra,
¡Negra! (SANTA CRUZ, 1960).

Evidentemente, a personagem percebeu que ser negra era algo ruim, e nesse
instante, retrocedeu, se sentia rejeitada e se envergonhava por ser assim. A tentativa de
alisar os cabelos e passar maquiagem no rosto demonstram a negação de si e a tentativa de
uma aceitação social. Nas linhas seguintes do poema percebemos a mudança temporal e
com ela a compreensão da importância de ser negra, de se reconhecer como tal.

Y voy a reírme de aquellos,


que por evitar -según ellos-
que por evitarnos algún sinsabor
Llaman a los negros gente de color
¡Y de qué color!

402
NEGRO
¡Y qué lindo suena!
NEGRO
¡Y qué ritmo tiene!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO
Al fin
Al fin comprendí
AL FIN
Ya no retrocedo
AL FIN
Y avanzo segura
AL FIN
Avanzo y espero
AL FIN
Y bendigo al cielo porque quiso Dios
que negro azabache fuese mi color (SANTA CRUZ, 1960).

Por fim, percebe que ser negra é motivo para se orgulhar e resistir. ―Resistência é um
conceito originalmente ético e não estético. O seu sentido mais profundo apela para a força
da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força própria a
força alheia. O cognato próximo é in/sistir; o antônimo familiar é de/sistir‖ (BOSI, 2002, p.
118). A comprovação do ato de resistir está nas linhas finais do poema quando grita como
soa lindo a palavra, negro. Externando seu orgulho, as marcas de sua ancestralidade, as
lutas históricas e a resistência que o ser negro traz consigo no sague.

A mulher negra traz como marca de sua identidade o orgulho de ser, de si. Livre das
amarras da escravidão, conquistou por meio de muita luta, de muito grito o reconhecimento
e o respeito por ser que é, negra. O preconceito e o racismo ainda persistem, são batalhas
diárias, mas que nunca mais serão razão para o silenciamento.

Considerações finais

Em síntese, nessas poucas páginas traçamos um breve percurso histórico, buscando


demonstrar o estabelecimento da identidade das mulheres negras e indígenas, por meio de
suas vozes na literatura latino-americana contemporânea. Esse instrumento a que elas se
apossaram, a voz. Vem demonstrando uma transformação da representação do discurso
feminino, construído a partir de si, no livro e no poema. Como afirma Perrot (2007, p.15)
―Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas
(PERROT, p. 15, 2007) Ativas no sentido de não mais silenciar, de clamar por seus direitos,
por seu espaço, por respeito e representatividade.

403
As denúncias apresentadas por Potiguara (2019), assustam pelos relatos de todos os
tipos possíveis de violências narradas, e ao mesmo tempo, corroboram na tentativa de
transformarmos as políticas públicas de assistência aos povos indígenas, infelizmente,
comprovamos as afirmativas do descaso ao acompanhar os noticiários diariamente. A
própria autora é testemunha das injustiças a que são submetidas as mulheres indígenas e é
uma representante que prova ser possível transformar essa realidade por meio da voz que
grita contra as mazelas acometidas a seu povo.

Nos tempos atuais, é hora do desafio. Extirpar o monstro que nos


mata dia a dia é dura tarefa. Primeiro se sofre calado. Há os que se
acostumam com a dor, a opressão e a repressão social e política,
desembocando no dequilíbrio ou na loucura. Mas há os que clamam,
depois de invernos. Há os que berram! (POTIGUARA, 2019, p. 59)

A voz que retrata a violência, a intolerância, a desigualdade e as injustiças sociais


sofridas pelos indígenas desde o início da colonização é a ferramenta que permitirá as
transformações necessárias.

Referências

ALENCAR, José de. Iracema. 24ª. edição. São Paulo: Ática, 1991.

ARMELIN, Débora. Victoria Santa Cruz, a força de uma voz afro-peruana. Disponível em:
<http://www.afreaka.com.br/notas/victoria-santa-cruz-forca-de-uma-voz-afro-peruana>.
Acesso em 08 julho de 2019.

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BRAGA, Elda Firmo. Literatura, poder e contra-poder. Revista Hispanista, n. 397, 2009.

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Companhia das Letras, 2002, p. 118-135.

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PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução Ângela M. S. Côrrea. São Paulo:
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404
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro: Grumin, 3ª ed. 2019.

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SANTOS, Luzia Aparecida Oliva dos. O percurso da indianidade na literatura brasileira:
matizes da figuração. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.

STOLKE, Verena. O enigma das interseções: classe, "raça", sexo, sexualidade: a formação
dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX. Rev. Estud. Fem. [online]. 2006, vol.14,
n.1, pp.15-42.

405
MULHERES COMPOSITORAS EM BELÈM, DA BELLE ÉPOQUE ATÉ A
PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

https://doi.org/10.29327/527231.5-27
Dione Colares de Souza (UFPA)
Marli Tereza Furtado (UFPA)

RESUMO:

O presente trabalho foi elaborado a partir de dados de pesquisa doutoral em


andamento que investiga a canção de autoria feminina no período que abrange a Belle
Époque no Pará até a primeira metade do século XX. Pretende-se inventariar e
compreender essa produção musical de autoria feminina, através de uma perspectiva
historiográfica, sociológica e de gênero, buscando desvelar os processos de inserção da
mulher no âmbito das práticas culturais daquele período. A pesquisa partiu de fontes
documentais primárias (partituras manuscritas, programas de concerto e jornais), bem como
de partituras editadas. Os resultados preliminares apontam para a compreensão dessas
produções de autoria feminina por meio das práticas de consumo de bens culturais, das
relações sociais e estruturas institucionais da época.

PALAVRAS-CHAVE: MULHER; CANÇÃO; ESTUDOS CULTURAIS. BELLE


ÉPOQUE PARAENSE.

ABSTRACT:

This article was developed upon doctoral research information which investigates art songs
by women composers that artistically produced in the State of Para- Brazil from the Belle
Époque period until the first half of the twentieth century. Thus, this research intends to
accomplish an inventory of these songs, as well as understand the music composed by
women in perspective of historiographical, sociological and gender studies. Moreover, it
seeks to comprehend the processes of women participation in the cultural practices of that
period. The present research is built upon primary sources (handwritten scores, concert
programs and newspapers), as well as published scores. The first results point to the
understanding of these women productions in a perspective of cultural goods consumption,
as well as social relations and institutional structures of that time.

KEY WORDS: WOMAN; SONG; CULTURAL STUDIES; BELLE ÉPOQUE IN PARÁ.

406
INTRODUÇÃO
A pesquisa sobre a produção musical de autoria feminina, especificamente no campo
da canção lírica no Pará dentro do período proposto para este trabalho, constitui-se em
objeto de investigação acadêmica em andamento, como parte da pesquisa de tese doutoral
intitulada ―A presença da mulher na música do Pará: o texto na canção de autoria feminina
da Belle Époque até a primeira metade do século XX‖ dentro do Programa de Pós-
Graduação em Letras – PPGL / Estudos Literários, da Universidade Federal do Pará –
UFPA.
Desta feita, o presente artigo busca inventariar essas canções de autoria feminina
em dados quantitativos, bem como compreender essa produção musical no Pará, da Belle
Époque até a primeira metade do século XX, a partir de uma perspectiva historiográfica,
sociológica e de gênero, que intenciona também desvelar os processos de inserção da
mulher no âmbito das práticas culturais daquele período.
Portanto, objetiva-se discutir o presente objeto de estudo tomando por base fatores
sociais que dialogam com o grupo das autoras elencado, tecendo abordagens sobre as
ideias e os costumes do período histórico que envolve esta pesquisa, bem como sobre os
espaços por onde esses sujeitos sociais circularam.
Quanto à base teórica nos campos disciplinares da história social, estudos culturais e
musicológicos, para fins deste artigo, destacam-se, entre outros autores, Salles (1980; 2007;
2013), por pesquisar cultura e arte no Estado do Pará e Vieira (2001), por abordar o ensino
e práticas musicais no Pará;

ACERVOS MUSICAIS VISITADOS


No primeiro acervo visitado, Vicente Salles, incorporado em 1993 ao patrimônio
científico da Universidade Federal do Pará, há o relato musical presente em centenas de
partituras, além de fontes da história social, da literatura, discos, fitas, folhetos e memórias
da imprensa representadas em jornais, revistas, almanaques que circularam no Estado do
Pará desde 1878 até recentes anos da atualidade. Ressalta-se que o antropólogo,
folclorista, historiador e musicólogo paraense Vicente Salles (1931-2013) foi o responsável
por formar um valioso banco de dados, ao reunir nesse acervo, durante cinquenta anos de
atividades, informações caudalosas sobre a mulher compositora, mas que permanecem
alheias à comunidade artística e científica por não terem despertado ainda vocações.
Além do acervo, o conjunto da obra de Vicente Salles representa um legado
importante para a história artística do Pará, como A Música e o Tempo no Grão Pará (1980)
e Música e Músicos do Pará (2007; 2013), dicionário publicado pela primeira vez em 1970 e
ampliado, com a inclusão de novos verbetes, e que fornece um amplo panorama sobre as
personagens que construíram a história da mulher na música paraense, referenciando

407
diversas autoras, entre elas: Maria de Lourdes Rangel Antunes Antunes (1905-?), Simira
Bacellar (1920-?), Júlia das Neves Carvalho (1873-1969), Julia Cesarina Ribeiro Cordeiro ou
Madre Cordeiro (1867-1947), Marcelle Guamá (1892-1978) e Helena Nobre (1888-1965).

Figura 1- Foto de uma das autoras em pesquisa no Acervo Vicente Salles

Fonte: Acervo pessoal 2017.

Outro riquíssimo acervo é o do Teatro da Paz. Nele, encontram-se impressões de


programas dos concertos realizados no teatro desde 1894 até a atualidade, cujos dados
contam a trajetória histórica da música, do teatro e da literatura, os quais podem revelar
outra dimensão à expressão cultural em Belém.
Apesar da existência desses acervos, ao percorrer a bibliografia acerca de estudos já
realizados no Pará sobre a mulher compositora no período da Belle Époque até a primeira
metade do século XX, sequer há um inventário específico sobre a produção de canções
escritas por essas mulheres. A obra dessas personagens históricas encontra-se pulverizada
nos acervos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, biblioteca do Conservatório Carlos
Gomes, acervo Vicente Salles (do qual se obteve a grande maioria das obras para este
estudo) e arquivos que permanecem guardados pelas famílias das autoras aqui
representadas.

408
ESPAÇOS DE CULTURA E CIRCULAÇÃO DE CANÇÕES LÍRICAS
Para compreender o arcabouço da produção das canções de autoria feminina no
período da Belle Époque paraense até a primeira metade do século XX, as relações entre
essas representações e o contexto histórico, social e cultural amazônico, e o perfil dessas
personagens femininas enquanto autoras, torna-se imprescindível entender o ambiente
burguês social e familiar em que a mulher estava inserida, os espaços públicos em que
circulava o gênero canção, os espaços de formação e outros onde cantavam-se músicas
acompanhadas ao piano pois, convém lembrar, reporta-se aqui a uma época em que as
mulheres ―significavam um capital simbólico importante, embora a autoridade familiar se
mantivesse em mãos masculinas [...]‖ (DEL PRIORI, 2013, p.229).
As transformações sociais vividas em Belém durante a economia da borracha
tiveram efeito no processo de construção do universo musical e agiram sobre as relações
sociais, na incorporação de diferentes valores estéticos e na percepção de nossos bens
culturais. Ao observar o referido processo de assimilação de modelos estético-musicais
europeus para a cultura regional, ao referir-se ao Conservatório Carlos Gomes e ao Teatro
da Paz, Vieira (2001) afirma que
A música erudita, desenvolvida na Belém do século XIX, teve, no
conservatório, o espaço de conservação e reprodução que, por sua vez,
tomou o Teatro da Paz como lugar de exposição de seus trabalhos; ambos
espaços compuseram um universo musical erudito, dentro dos moldes
europeus (VIEIRA, 2001, p.64).

Similarmente ao Conservatório de Música, o Teatro da Paz permanece até os dias


atuais como espaço simbólico que reforçou o processo de valorização do modelo de música
erudita europeia em Belém (VIEIRA, 2001, p.74), bem como a valorização do repertório
canônico europeu de autoria masculina. Esse espaço de cultura além de ratificar a posição
de destaque ocupada pelo instrumento piano dentro de uma tradição da música erudita em
Belém atesta, por meio de seu acervo de programas de concerto ocorridos até a primeira
metade do século XX, a predominância do repertório de composições de autoria masculina e
total exclusão do repertório musical de autoria feminina. Observa-se também que a mulher
ocupava espaço artístico na qualidade de intérprete e professora, como se observa na figura
1
abaixo referente ao recital promovido pelo Instituto Carlos Gomes , realizado em 1938 no

Teatro da Paz.

Instituto Carlos Gomes refere-se ao Conservatório Carlos Gomes.

409
Figura 2- Programa de Recital no Teatro da Paz, 1938

Fonte: Arquivo de programas do Teatro da Paz.

O estudo de gênero no campo da análise sociológica e cultural incorpora diferentes


dimensões, podendo compreender para além da significação dos papéis sociais de homens
e mulheres, o sistema de relações sociais capaz de revelar um sistema de poder simbólico
definidor de uma ordem social, como preconiza Pierre Bourdieu (2017), sociólogo e
antropólogo que também recorre à história das mulheres para fundamentar suas ideias
acerca dos mecanismos simbólicos de dominação social, os quais contribuíram para a
exclusão feminina da história dita oficial, em que o Estado, a família, a religião e entidades
sociais como a escola, de forma sistemática, orientavam ideologias e costumes formadores
de uma rede de dominação e que se tornaram mecanismos simbólicos de domínio do
feminino e de exclusão da mulher enquanto seres sociais produtivos e criativos.

410
AS CANÇÕES DE AUTORIA FEMININA NO PARÁ
Para a busca do conjunto documental de partituras de autoria feminina no Pará até a
primeira metade do século XX, recorreu-se a diferentes fontes, a destacar, o Acervo Vicente
Salles, no qual se encontrou o maior número de registros em partituras de autoria feminina.
Na biblioteca do Instituto Estadual Carlos Gomes e acervos particulares pertencentes a
familiares de artistas que viveram durante a época investigada, foram verificados também
outros registros, como é o caso do acervo documental da família da compositora e cantora
2 3
Helena Nobre , que teve seus manuscritos publicados, e de Helena Souza , que deixou
4
valioso material de partituras, recortes de jornais, escritos da própria autora para jornais e
revistas da época, cartas e outros registros de sua atuação profissional, além de fotografias
e composições.
Portanto, o estudo sobre a canção de autoria feminina até a metade do século XX
partiu do levantamento de diferentes conjuntos documentais que compreendem o corpus
principal da presente pesquisa.
Durante a investigação no Acervo Vicente Salles, encontraram-se algumas
dificuldades no que tange à precisão de informações. As obras constantes no acervo são
catalogadas como um todo, tanto de autores locais, nacionais ou estrangeiros. Identificou-se
que algumas composições estão incompletas, outras apresentam imprecisões de
informações quanto à autoria e ao gênero do autor. Além disso, algumas composições
também são atribuídas a autores sobre os quais não há referência em outras fontes
bibliográficas, tornando difícil identificar a procedência desses compositores, além de obras
de autores que não nasceram, mas que viveram ou morreram em Belém, bem como
composições com o mesmo texto foram catalogadas mais de uma vez, ora com diferente
instrumentação, ora por serem diferentes transcrições da mesma música. Algumas
imprecisões na catalogação de obras também foram observadas com relação à indicação de
instrumentação.
Diante da identificação dessas imprecisões, as obras manuscritas constantes na
catalogação do acervo Vicente Salles foram analisadas e conferidas uma a uma, para
confirmação de dados como autoria, datas, instrumentação e verificação da presença ou
não de texto.
Dentre outras particularidades observadas, encontraram-se também composições de
autoria masculina, porém com texto de autoria feminina, bem como o contrário, músicas de
autoria feminina com texto de autoria masculina. Outra situação notada nas composições

BARROS, Lilia e MAIA, Gilda. Ode a uma nobre pianista. Belém, Paka-Tatu, 2011.
Pianista, professora, compositora, a primeira mulher a ocupar a cátedra de piano no então Conservatório
Carlos Gomes, e a primeira mulher a assumir a direção desta instituição de ensino.
Acervo de Helena Souza gentilmente cedido pela família da autora, com exclusividade para esta pesquisa.

411
vocais de autoria feminina foi o idioma trabalhado, nem sempre em nossa língua vernácula,
pois também eram musicados textos escritos em latim e em francês.
Em se considerando esse contexto documental, descartou-se do levantamento
quantitativo de partituras catalogadas como sendo manuscritas no Acervo Vicente Salles as
transcrições de partituras de autores estrangeiros, as que possuem referências incompletas
(indicação de autor, título e instrumentação, compositores nacionais ou sem referência
quanto a sua naturalidade). Algumas poucas duplicatas de partituras manuscritas constantes
no Acervo Vicente Salles também foram encontradas na biblioteca do Instituto Estadual
Carlos Gomes, mas que não acrescentam em número ao contingente encontrado. A partir
desses critérios, chegou-se ao seguinte quantitativo: 587 partituras manuscritas de autoria
masculina, 104 partituras de autoria feminina, sendo 59 composições escritas para canto e
piano, ou seja, canções. Essas 59 composições/ canções para canto e piano, são o foco
desta pesquisa.
Além disso, recorreu-se a outros acervos, como dito anteriormente, pertencentes a
outras bibliotecas, tais como a do Instituto Estadual Carlos Gomes, acervos de familiares
das compositoras investigadas e de outros particulares, ampliando o número de manuscritos
5
de autoria feminina em mais 4 composições das senhoras Helena Nobre , Marcelle
6 7
Guamá e Maria de Lourdes Rangel Antunes . Desta feita, adicionam-se às encontradas no
Acervo Vicente Salles, perfazendo o total de 63 canções.

Tabela 1- Canções Manuscritas de Autoria Feminina


CANÇÕES MANUSCRITAS DE AUTORIA FEMININA

Acervo Vicente Salles 59

Outros acervos e fontes 4

TOTAL DE CANÇÕES 63

Fonte: Elaboração própria, 2017.

A partir de todo o conjunto documental que compreende as partituras de autoria


feminina no Pará, para fins desta investigação, selecionaram-se as canções manuscritas e
as editadas de autoras nascidas até a década de 1920 e que, portanto, viveram sua
juventude até meados do século XX. As canções de autoria feminina atribuídas a
compositoras, sem referências biográficas e que não constam no dicionário Música e
Músicos do Pará de Vicente Salles (2007; 2013), ficaram de fora do recorte ora proposto.
Disponíveis no livro ―Ode a uma nobre pianista‖ de Lilian Barros e Gilda Maia.
Manuscrito original da Canção de Marcelle Guamá intitulada ―Pelas Estradas Silenciosas‖, encontrada
apenas no acervo particular de Helena Sousa (1906-1990) e disponibilizado pela família com exclusividade
para esta pesquisa.
Canção de Lourdes Antunes intitulada ―Maria Eunice‖, com letra de Francisca Menezes, gentilmente cedida
pela professora Lenora Menezes de Brito.

412
Dessa forma, o quantitativo total de obras manuscritas demonstrado na tabela anterior ficará
um pouco mais reduzido.
A tabela seguinte indica o nome de todas as autoras selecionadas dentro do recorte
proposto. Acrescenta-se a este o nome de outras cinco compositoras que nasceram até a
década de 1920, mas das quais só foram encontrados registros de canções editadas, como
o caso de Zilda Bacellar, Olindina Cardoso, Antônia Rocha Castro, Dora de Abreu
Chermont e Maria de Nazaré Figueiredo. As autoras estão listadas em ordem alfabética dos
sobrenomes, com respectivas referências de local e datas de nascimento e morte, ou data
de publicação da composição, bem como o quantitativo de canções encontradas por autora.
Demonstra-se também o quantitativo de obras tanto manuscritas quanto editadas de todas
as autoras selecionadas.
Tabela 2- Compositoras e suas obras
Nº COMPOSITORAS LOCAL, DATAS E Nº DE CANÇÕES
9
OUTRAS ENCONTRADAS
10
REFERÊNCIAS MANUSCRITAS EDITADAS
1 ANTUNES, Maria de Lourdes Belém,1905 2 1
Rangel
2 BACELLAR, Simira (Semírames) Manaus,1920 11 9
Viveu em Belém de
1922 a 1938.
3 BACELLAR, Zilda Data de 0 1
nascimento não
encontrada, mas
publicou na década
de 1920
4 BELTRÃO, Anita (Ana Holanda da Belém,1896-1977 1 0
Cunha Beltrão)
6 CARDOSO, Olindina Data de 0 1
nascimento não
encontrada, mas
publicou na década
de 1920
7 CARVALHO, Júlia das Neves Belém, 1873-1969 3 1
8 CASTRO, Antonia Rocha Belém, 1881- 1937 0 1
9 CHERMONT, Dora de Abreu Belém, 1886 0 1
10 CORDEIRO, Júlia Cesarina Ribeiro Belém, 1867- 12 10
(Madre Cordeiro) Recife-PE, 1947
11
11 FIGUEIREDO, Maria de Nazaré Data de 0 1
nascimento não
encontrada, mas

Em negrito, nome artístico das compositoras.


Existem referências de outras canções de autoria feminina no dicionário Música e Músicos do Pará de
Vicente Salles, mas que não foram quantificadas nesta tabela porque as partituras não foram encontradas
nos acervos e bibliotecas pesquisados.
Algumas canções editadas são as mesmas encontradas em manuscritos.
A única canção editada de autoria de Maria de Nazaré Figueiredo traz a inscrição de que a autora nasceu em Belém
do Pará e de que a obra foi publicada no carnaval de 1942.

413
publicou canção
em 1942.

12 GUAMÁ, Marcelle Corrêa


Paris-Fr,1892- 18 10
(Marcelle Gabrielle Lainiez) Rio de Janeiro-RJ,
1978
13 MORAES, Eneida do Espirito Santo Belém, 1918 1 0
14 NOBRE, Helena Belém, 1888-1965 2 1
15 PARAENSE, Dulcinéa Belém, 1918 1 0
16 PELUSO, Raquel Angélica Santarém-PA, 3
1908-São Paulo,
2005
17 RODRIGUES, Coêmia Espíndola Belém-PA, 1916 1 0
TOTAL DE CANÇÕES MANUSCRITAS E EDITADAS 55 37
Fonte: Elaboração própria, 2018.

De acordo com Vieira (2013), ―A partitura musical é o suporte gráfico de uma criação
sonora, que envolve uma infinidade de elementos e informações musicais e extramusicais,
que se relacionam a tal criação sonora, dependendo dos objetivos de cada um desses
elementos gráficos‖ (VIEIRA, 2013, p. 217).

Figura 3- Excerto manuscrito da canção “Momento” de Marcelle Guamá.

Fonte: Acervo Vicente Salles.

Após a análise de informações acerca das compositoras selecionadas, intui-se que o


acesso das mulheres à música, ocorreu inicialmente como parte de sua formação
intelectual, especialmente voltado ao aprendizado do piano. Essa dinâmica possibilitou a
profissionalização de mulheres na música.

414
Ao analisar essas produções de autoria feminina, observa-se que as composições
para piano solo e as canções para canto com acompanhamento de piano são
predominantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O universo musical, tanto no campo da produção quanto do estudo dessa produção


foi, ao longo do tempo, uma prerrogativa masculina. Somente a partir da segunda metade do
século XX, a mulher compositora irá merecer destaque como tal, embora em número
consideravelmente inferior aos homens.
Ao resgatar as produções musicais de autoria femininas, especificamente as canções
líricas, ou seja, composições possuidoras de texto, este trabalho almeja contribuir à
musicologia brasileira, à comunidade acadêmica, aos interessados pela memória histórica
na Amazônia e pelos estudos culturais e sobre a mulher nesse contexto e, principalmente, à
classe artística que poderá identificar a presença feminina na produção musical do Pará,
desconstruindo o discurso historiográfico universalizado em torno do feminino no campo da
música.
Os resultados preliminares dessa pesquisa apontam para a compreensão dessas
produções de autoria feminina a partir das práticas de consumo de bens culturais e das
relações sociais da época investigada, bem como a partir das referências histórico-sociais
que se tornam basilares para o entendimento do lugar do sujeito e da obra em contexto.
importante intuir que o domínio da história é parcial e que muitos espaços
lacunares se fazem presentes no campo historiográfico das diversas áreas de
conhecimento. A história e seus agentes se tornaram fragmentados porque se pautaram
durante séculos em uma universalidade que privilegiava, no campo das artes, por exemplo,
as realizações artísticas masculinas e excluía os feitos femininos. Evidenciar a mulher como
sujeito histórico, seja na música ou em qualquer campo do saber, é tornar pública a
materialidade de suas realizações.
Portanto, esta pesquisa sobre a mulher compositora em Belém se lança para
interrogar os paradigmas que mantêm a mulher compositora ausente da historiografia
amazônica. Assim, divergentemente das práticas historiográficas do passado, é possível
provar que a mulher teve uma história de produção musical em Belém até a metade do
século XX.

415
REFERÊNCIAS

BARROS, Lilia e MAIA, Gilda. Ode a uma Nobre Pianista. Belém, Paka-Tatu, 2011.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução Maria Helena Kuhner. 5ª ed. Rio
de Janeiro: BestBolso, 2017.

DEL PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil; 10ª Ed. São Paulo: Cotexto,
2013.

VIEIRA, Lia Braga. A Construção do Professor de Música. Belém: Cejup, 2001.

VIEIRA, Lia Braga e SOUZA, Jusamara. ―Música em Belém do Pará: um estudo sobre
fontes escritas‖. IN: VIEIRA, Lia Braga; ROBATTO, Lucas e TOURINHO, Cristina (org.)
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SALLES, Vicente. A Música e o Tempo no Grão Pará. Belém: Conselho Estadual de


Cultura, 1980. (Coleção Cultura Paraense. Série Theodoro Braga)

________. Música e Músicos do Pará. 2.ed. Belém: Secult/Seduc/Amu-PA, 2007.

________. Música e músicos do Pará; 3ª Ed. Belém: Secult/Seduc/Amu-PA, 2013.

416
NÃO SOMOS IRACEMA! VOZES INDÍGENAS FEMININAS: DOS
ESTEREÓTIPOS À RESISTÊNCIA

https://doi.org/10.29327/527231.5-28
Jairo da Silva e Silva
(UESC/IFPA)

Não somos Iracema! Vozes indígenas femininas: dos estereótipos à resistência

RESUMO: Este trabalho constitui-se como resultados parciais do projeto de pesquisa


Discurso e Redes de Memória Indígena na Região do Baixo Tocantins, desenvolvido
no Instituto Federal do Pará (IFPA/Campus Abaetetuba), cujo principal objetivo é
investigar as redes de memórias discursivas que significam a identidade indígena, sob
a perspectiva teórico-metodológica da Análise do discurso francesa; as materialidades
analisadas formam um arquivo disponível para elaboração de oficinas pedagógicas
sobre variadas temáticas indígenas. Assim, durante esse percurso, enveredou-se
pelas questões das vozes indígenas femininas, em específico, quando comparadas à
representação da mulher na obra Iracema (ALENCAR, 1965). Desta forma, pretende-
se apresentar a proposta didática Não somos Iracema, como possibilidade didática de
expressão da voz feminina indígena, a partir da literatura em interface com outras
áreas.

Palavras-chave: Proposta didática; Vozes indígenas femininas; Literatura indígena.

ABSTRACT: This work constitutes as partial results of the research project Discourse
and Indigenous Memory Networks in the Lower Tocantins Region, developed at the
Federal Institute of Pará (IFPA/Campus Abaetetuba), whose main objective is to
investigate the discursive memory networks that signify indigenous identity from the
theoretical-methodological perspective of French Discourse Analysis; The materialities
analyzed form an archive available for the elaboration of pedagogical workshops on
various indigenous themes. Thus, during this course, she took the issue of female
indigenous voices, in particular, when compared to the representation of women in the
work Iracema (ALENCAR, 1965). Thus, we intend to present the didactic proposal We
are not Iracema, as a didactic possibility of expression of the indigenous female voice,
from the literature in interface with other areas.

Keywords: Didactic proposal; Indigenous female voices; Indigenous literature.

Introdução

Se faço isso é com o objetivo de saber o que somos hoje. Quero


concentrar meu estudo no que nos acontece hoje, no que somos, no
que é nossa sociedade. Penso que há, em nossa sociedade e
naquilo que somos, uma dimensão histórica profunda e, no interior
desse espaço histórico, os acontecimentos discursivos que se
produziram há séculos ou há anos são muito importantes. (Michel
Foucault, 2012, p. 258).

Este texto trata dos desdobramentos de um projeto de pesquisa executado no


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFPA/Campus Abaetetuba).
Tendo em vista o trabalho pedagógico desenvolvido como docente na área de

417
linguagens em cursos técnicos profissionalizantes integrados ao ensino médio, neste
artigo descrevemos os resultados parciais do citado projeto, cujo principal objetivo é
investigar as redes de memórias discursivas que significam a identidade indígena, sob
os pressupostos teórico-metodológicos da Análise do discurso de vertente francesa.
As materialidades analisadas formam um arquivo disponível para elaboração
de oficinas pedagógicas sobre variadas temáticas indígenas. Assim, durante esse
percurso, enveredou-se pelas questões das vozes indígenas femininas, em específico,
quando comparadas à representação da mulher na obra Iracema (ALENCAR, 1965).
Desta forma, pretende-se apresentar a proposta didática Não somos Iracema, como
possibilidade didática de expressão da voz feminina indígena, a partir da literatura em
interface com outras áreas.
Quanto à organização deste artigo, além desta parte introdutória, este texto é
composto por outros três momentos: primeiramente, considerações sobre a opção
teórico-metodológica, a análise do discurso de escola francesa, de acordo com
estudos propostos por Foucault (2008), Pêcheux (1990, 1997), além de contribuições
dos estudos desenvolvidos por Gregolin (2001, 2003, 2006 e 2007); em seguida,
considerações sobre significados do discurso ―ser indígena, ontem e hoje‖; na seção
seguinte, apresentamos a proposta didática a partir das materialidades coletadas
durante a execução do projeto; e, nas considerações finais, apresentamos as
principais constatações, ponderações e perspectivas.

1. Análise do discurso de vertente francesa: considerações indispensáveis

Conforme já exposto, o presente artigo fundamenta-se nas perspectivas


teórico-metodológicas da Análise do Discurso de escola francesa (abreviadamente,
AD), assim, faz-se necessário situar o leitor quanto a este campo de conhecimento.
Na década de 1960, o Estruturalismo estava em tamanha evidência e a
Linguística era considerada a ―ciência piloto‖, servindo de base para outros ramos das
ciências humanas. Até então, os estudos sobre a língua eram fechados em si
mesmos, o sistema linguístico era estudado independentemente de influências
externas, pois não eram consideradas partes da estrutura. Inspirado em Saussure,
descrevia-se apenas os sistemas linguísticos, estudando a língua por ela mesma e
ignorando o falante que fazia o uso desta língua e suas condições de produção
(GREGOLIN, 2006b, p. 25-28).
Nos anos finais da década de 1960, o Estruturalismo passou a ser
questionado, pois a Semântica, que empreendia os estudos para fora da frase, já
apontava dificuldades de estudá-las dentro dos limites estruturais. Em 1969, Pêcheux
publica Análise Automática do Discurso, texto que inaugura uma abordagem

418
transdisciplinar, convocando uma teoria linguística, histórica e sobre o sujeito, onde
questiona a ―ciência piloto‖ por meio da crítica ao ―corte saussuriano‖ que operou a
separação entre langue e parole e levou à eleição da primeira como objeto de estudos
da Linguística. Portanto, a AD fundada por Pêcheux foi pensada ―como uma „negação‟
e uma „superação‟ do gesto separador de Saussure‖ (GREGOLIN, 2003, p.23).
Pêcheux não propôs uma nova linguística, mas uma maneira de compreender
a linguagem não mais fixada na língua, descontextualizada do social. Os nomes
fundamentais para sua base e influência são: Althusser com a releitura das teses
marxistas; Foucault com a noção de formação discursiva, da qual derivam vários
outros conceitos (interdiscurso, memória discursiva, práticas discursivas); Lacan e sua
leitura das teses de Freud sobre o inconsciente, com a formulação de que ele é
estruturado por uma linguagem; Bakhtin e o fundamento dialógico da linguagem, que
leva a AD a tratar da heterogeneidade constitutiva do discurso (GREGOLIN, 2003, p.
25).
Ao recorrer a estas regiões de conhecimento científico, a AD apresenta a
linguagem como não transparente, pois a relação língua-discurso-ideologia garante
sua materialidade, por isso é necessário pensar a questão da produção de sentidos e
seus efeitos, o que implica afirmar que estes são históricos e sociais (teoria marxista),
realizados por sujeitos (teoria freudiana) e realizáveis através da materialidade da
linguagem (teoria saussuriana).
Compreendemos a AD, portanto, como um campo de estudo que oferece
―ferramentas conceituais para a análise dos acontecimentos discursivos, na medida
em que toma como objeto de estudos a produção de efeitos de sentido, realizada por
sujeitos sociais, que usam a materialidade da linguagem e estão inseridos na história‖
(GREGOLIN, 2007, p. 13). Optamos trilhar por este percurso, por entender que nos
permite a compreensão da produção de sentidos (e seus efeitos) dos discursos que
permeiam nosso cotidiano sobre o que significa ser indígena, e, principalmente,
apreender como determinados discursos acontecem historicamente e produzem
efeitos na sociedade.
A fim de atender aos objetivos propostos neste capítulo, como fundamentos do
nosso gesto de análise, operamos as noções de interdiscurso e formação discursiva
segundo Foucault (2008), Pêcheux (1990, 1997), além de contribuições dos estudos
desenvolvidos por Gregolin (2001, 2003, 2006 e 2007).

Interdiscurso

Para a compreensão do funcionamento do discurso, da sua relação com o


sujeito e com a ideologia, entendemos ser fundamental o conceito de interdiscurso. É

419
por meio dele que se estabelece uma relação do discurso com outros múltiplos
discursos, pois ainda que inconsciente, ou esquecido, o sujeito utiliza já-ditos, os quais
recebem novos significados e vão possibilitar o dizer. Ao discutir a relação entre o
discurso e o já-dito, Pêcheux (1990) postula que os processos discursivos se
constituem a partir de algo dito anteriormente, em outro lugar, proveniente de outros
enunciadores.
O interdiscurso ―designa o espaço discursivo e ideológico no qual se
desenvolvem as formações discursivas em função de relações de dominação,
subordinação, contradição‖ (GREGOLIN, 2001, p. 18), ou seja, disponibiliza dizeres
que afetam a produção de sentido e seus efeitos em determinada situação discursiva.
―O objeto da teoria do discurso deve ser essa interdiscursividade, as redes de
memórias que produzem os sentidos em um momento histórico‖ (GREGOLIN, 2006b,
p. 32).
Segundo Possenti (2005, p. 365), o conceito de interdiscurso está
fundamentalmente relacionado ao conceito de memória discursiva:

A memória será evidentemente, discursiva. Talvez a melhor


apresentação desta noção esteja em Courtine (1981). A noção de
memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado
no interior de práticas discursivas. Assim, no domínio do discurso
político, a memória discursiva remete a questões como: ―do que
lembramos, e como nos lembramos, na luta ideológica, do que
convém dizer e do que não convém, a partir de uma posição numa
conjuntura dada na redação de um panfleto, de uma moção, de uma
tomada de posição?‖ (Courtine 1981: 53). Ou seja, remete ao modo
como o trabalho de uma memória coletiva permite a retomada, a
repetição, a refutação e também o esquecimento desses elementos
de saber que são enunciados.

A noção de memória discursiva cunhada por Courtine (1981) foi formulada a


partir da leitura de Foucault em sua Arqueologia do Saber (1969/2008), onde é dito que
os enunciados possivelmente possuem um ―domínio associado‖. Courtine (1981)
analisa que esse domínio associado consiste em uma ―rede de formulações‖, nas
quais o enunciado se insere e se constitui. Para Foucault, qualquer formulação tem,
em seu domínio associado, outras formulações, que são repetidas, refutadas,
transformadas ou denegadas. ―Enquanto uma enunciação pode ser recomeçada ou
reevocada, enquanto uma forma linguística (ou lógica) pode ser reatualizada, o
enunciado tem a particularidade de poder ser repetido: mas sempre em condições
estritas‖ (2008, p. 118), ou seja, para esse filósofo, nessa rede de reformulações, ―não
há enunciado que de uma forma ou de outra não reatualize outros enunciados‖
(FOUCAULT, 2008, p. 111).

420
O dizer não significa apenas pelo que se tem a dizer, mas pelo conjunto de
enunciações que o fizeram significar, pela memória de que está impregnado, mesmo
que ausente ou esquecida. O que se diz, em dado momento histórico, já foi dito. Não
somos os donos de nossos dizeres, pois significam pela história e para a língua e
podem ser apreendidos por outras vozes. É a partir da memória discursiva que surge a
possibilidade de toda formação discursiva fazer circular as ―redes de formulações‖
outrora enunciadas.

Formação discursiva

Segundo Gregolin (2006b) o conceito de formação discursiva (abreviadamente,


FD) é um lugar teórico que torna visível a relação entre Pêcheux e Foucault na
construção da teoria e análise do discurso. É central para o desenvolvimento do
edifício teórico da AD, por que sinaliza a constante refacção a que a teoria do discurso
foi submetida na obra pêcheana, já que, por meio das reconfigurações desse conceito,
ele trabalha a linha tênue entre a regularidade e a instabilidade dos sentidos no
discurso.
Formulado por Foucault (2008), como um dispositivo metodológico para a
análise arqueológica dos discursos, não deve ser entendida como a ―visão de mundo‖
de um determinado grupo social, mas como um domínio inconsistente, aberto e
instável, dado a partir da dispersão, na heterogeneidade dos lugares que enunciados
1
pelo sujeito, ressaltando-se a sua posição enquanto enunciador .
Uma formação discursiva reúne objetos, modalidades enunciativas, conceitos e
escolhas temáticas, estabelecendo o que pode e o que não pode ser dito/enunciado
em determinadas práticas discursivas, ―as modalidades de enunciação mostram a
dispersão do sujeito, isto é, os diversos estatutos, lugares, posições que ele pode
ocupar. Se alguém enunciou algo, só pôde fazê-lo mediante condições estritas que
aparecem no regime regulador dos enunciados de uma época‖. (GREGOLIN, 2007,
p.8).
As palavras podem mudar de sentido ao passar de uma FD para outra.
Concebidas como enunciado, são construções históricas atravessadas, ―produzido por
um sujeito, em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que
definem e possibilitam que ele seja enunciado‖ (GREGOLIN, 2006a, p. 42). Entender o
conceito de FD em Foucault nos esclarece o que esse filósofo entende por discurso:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão
e, no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas se puder definir
uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por
convenção, que se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2008, p.43).

421
Um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma
formação discursiva; ele é constituído de um número limitado de
enunciados, para os quais podemos definir um conjunto de condições
de existência; é, de parte a parte, histórico – fragmento de história,
unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema
de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos
modos específicos de sua temporalidade. (FOUCAULT, 2008, p. 135-
136).

Para Foucault, a noção de discurso implica a ideia de prática. Essa é a


intenção de sua arqueologia: estudar as práticas discursivas, ―um conjunto de regras
anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em
uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou
linguística, as condições de exercício da função enunciativa‖. (FOUCAULT, 2008, p.
136).
São essas condições do exercício da função enunciativa; são as regras de
formação do discurso e as condições que permitem o aparecimento de certos
enunciados e silenciamento de outros; são as relações históricas; são os lugares de
onde se falam e as posições assumidas ao dizer. Essas são as questões apontadas
por Foucault em sua arqueologia, pois entre o enunciado e o que ele enuncia, não há
tão somente uma relação gramatical ou semântica, mas uma relação que envolve
sujeitos determinados historicamente e que também envolve a própria materialidade
do enunciado. (FOUCAULT, 2008, p. 55-56).
Convém ressaltar que, ao se descrever os discursos, na perspectiva
foucaultiana, tem-se que levar em consideração as relações entre o sujeito que
enuncia e o discurso, pois o que permite uma frase ser um enunciado é o fato de se
poder assinalar-lhe uma posição de sujeito. Portanto, entender uma formulação
linguística como um enunciado exige-nos em ―determinar qual é a posição que pode e
deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito‖ (FOUCAULT, 2008, p. 109).
Desta forma, ao compreender a noção de discurso segundo a proposta
foucaultiana, apreendendo-o como prática social, determinada historicamente, é que
pontuamos o discurso nacionalista como prática discursiva e processo histórico,
motivando a análise de determinados enunciados preconceituosos, apreendendo, com
efeito, as posições assumidas pelos sujeitos e as materialidades históricas que
compõem essa prática, e, como determinados discursos acontecem historicamente e
produzem sentidos na sociedade.

Considerações sobre ser indígena ontem e hoje

Na tentativa da compreensão do que significa ser indígena na atualidade,


2
recorremos aos Estudos Culturais , em especial, relevantes reflexões propostas por
Stuart Hall (2013). Para este autor, os processos históricos e culturais são

422
reconfigurados, impulsionados principalmente pelas grandes transformações, como o
colonialismo e a globalização, por exemplo: ―as identidades formadas no interior da
matriz dos significados coloniais foram construídas de tal forma a barrar e rejeitar o
engajamento com as histórias reais de nossa sociedade ou de suas „rotas‟ culturais‖
(HALL, 2013, p. 41).
Em se tratando das diversas sociedades indígenas, as dinâmicas que
compreendem o colonialismo e posteriormente à globalização, procuram
descaracterizar as suas respectivas autenticidades, promovendo, então práticas de
dominação, de escravização, bem como de alienação intelectual, impostas por
formações discursivas de práticas eurocêntricas, que submetem a estes povos a
violentas estratégias histórico-socioculturais de apagamento, de marginalização e,
principalmente, de silenciamento; com efeito, é nessa perspectiva que o discurso
nacionalista opera e constitui significados:

O discurso nacionalista, tem funcionado para a configuração de


imagens, disfarces, relatos e processos que, ao mesmo tempo em
que ocultam uma identidade, constroem outra. Máscaras ou
maquiagens discursivas, posições de enunciação a serem ocupadas
por um conjunto de indivíduos, ou por um sujeito que desse modo,
propõe-se a ser o possuidor de um patrimônio, de uma história.
Máscara ou maquiagem que esquece e encobre outros rostos, outras
histórias, outras memórias, outras múltiplas memórias (ACHUGAR,
2006, p.161).

De acordo com Bhabha (1998), o discurso nacionalista identifica e ressignifica


os povos indígenas sob os critérios do ser exótico. Tendo como recorte a literatura
brasileira, encontramos no Romantismo, por exemplo, o indígena caracterizado pelo
instinto de nacionalidade, onde a imagem indígena:

Estava sempre sob a mira do olhar determinante do colonizador. Não


possuía a validade da natureza pura, pois sua valentia fora herdada
da influência medieval, que o colonizador inseriu no contexto e o

2
“Os Estudos Culturais não configuram uma „disciplina‟, mas uma área onde diferentes disciplinas
interatuam, visando o estudo de aspectos culturais da sociedade” (HALL, et al. 1980, p. 7). Em síntese, os
princípios que se constituem em pilares do projeto dos Estudos Culturais são: “a identificação explícita
das culturas vividas como um projeto distinto de estudo, o reconhecimento da autonomia e complexidade
das formas simbólicas em si mesmas; a crença de que as classes populares possuíam suas próprias formas
culturais, dignas de nome, recusando todas as denúncias, por parte da chamada alta cultura, do
barbarismo das camadas sociais mais baixas; e a insistência em que o estudo da cultura não poderia ser
confinado a uma disciplina única, mas era necessariamente inter, ou mesmo anti, disciplinar”
(SCHWARZ, 1994, p. 380).

423
escritor tomou para si como baliza. […] Não foi impresso, no entanto,
como figura humanizada, a exemplo das demais com as quais dividiu
enredo. Foi, antes de tudo, um emblema, cerzido com as cores locais
e que escondia, sob seus pontos em relevo, o constante matiz de
nativo selvagem a quem o não índio deveria civilizar, impondo sua
cultura (SANTOS, 2009, p. 21).

Ao conceber o indígena como um ser exótico, como o diferente, a prática


discursiva romântica, amparada pela lógica eurocêntrica, silencia a expressividade e
autenticidade destes povos, construindo, portanto, uma imagem distorcida. Para Kothe
(2000, p. 80), ―o indianismo é uma fantasia compensatória‖, pois a imagem
representada destes povos baseia-se apenas pela sua exterioridade, onde silencia-se
as marcas de interioridade destes sujeitos. Kothe (2000, p. 80) nos esclarece como
funciona a tônica da lógica romântica:

Se é preciso apresentar como antepassado uma índia linda e


maravilhosa ou índio corajoso e cavalheiresco, está-se mais no reino
da fantasia, de querer que eles tivessem sido assim (e não os
derrotados da história). […] O índio é reduzido a um valente
guerreiro, mas, quanto mais machão, mais ele é um índice da
fraqueza e do infantilismo de quem o sonha (KOTHE, 2000, p.80).

No entanto, há algumas décadas, em contraposição às práticas dominantes,


vários indígenas brasileiros adotaram estratégias de (re) construção das identidades
indígenas na contemporaneidade; entre essas estratégias, o uso do discurso literário
como instrumento de luta, conscientização (e ressignificação da identidade) das mais
variadas etnias indígenas contra as insígnias identitárias impostas pelo colonizador.
Munduruku (2014) assinala que, a partir da década de 1990, as produções
literárias de escritores e escritoras indígenas começaram a conquistar um lugar mais
acentuado no circuito literário do país. Para este intelectual indígena, atualmente, a
3
intensa produção literária indígena busca se firmar no cenário nacional :

beira uma centena de títulos. São aproximadamente quarenta


autores e autoras que lançam livros com alguma regularidade. Há
centenas de ―escritores indígenas anônimos‖ que mantêm blog, sites,
perfis nas redes sociais. Há entidades indígenas preocupadas em
utilizar a escrita como uma arma capaz de reverter situações de
conflito, denunciar abusos internos e externos, mostrando que a
literatura – seja ela entendida como se achar melhor – é,
verdadeiramente, um novo instrumental utilizado pela cultura para
atualizar a Memória ancestral (MUNDURUKU, 2014, p.181).

Importa citar que, na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano [2019], entre os cinco livros mais
vendidos na livraria oficial da organização da Feira, quatro livros são de autores negros, sendo o quinto, um
autor indígena [Ailton Krenak] Fonte: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/07/dos-5-autores-mais-
vendidos-na-flip-4-sao-negros-e-1-e-indigena.shtml>. Aces. 30 ago. 2019.

424
Portanto, no contexto da literatura brasileira contemporânea, a escrita indígena
está em constante movimentação, buscando superar a fratura colonial e se insere
como uma escrita que delineia à sua maneira peculiar quanto à forma de
representação da realidade e de sua expressão artística, sem renunciar, contudo, as
marcas da ancestralidade e, principalmente de enunciar as barbáries impostas pela
colonização.
Assim, a seção seguinte tem a intenção de analisar como ocorre essa
articulação de ressignificação das identidades indígenas não apenas na literatura
brasileira contemporânea, mas em outras formas artísticas e culturais. Para tanto,
apresentamos como resultado parcial do projeto de pesquisa Discurso e Redes de
Memória Indígena na Região do Baixo Tocantins, desenvolvido no Instituto Federal do
Pará (IFPA/Campus Abaetetuba) a proposta de oficina pedagógica Não somos
4
Iracema! , como possibilidade didática de expressão da voz feminina indígena, a partir

da literatura em interface com outras áreas.

Não somos Iracema! Vozes indígenas femininas: dos estereótipos à resistência

A literatura, assim como toda forma de arte é a grande


esperança contra a barbárie. A arte, que deve sempre causar
algum tipo de desconforto, serve para que não nos esqueçamos
nunca de que somos humanos.
(Aquino apud Nascimento, 2007, p. 19)

Com o tempo de duração mínima de duas horas, a oficina Não somos


Iracema!, tem como principal objetivo, propor possibilidades de expressão da voz
feminina, a partir da literatura e da música, tendo como ênfase, a mulher indígena;
mais especificamente, objetiva: comparar distintas vozes indígenas femininas na
literatura brasileira, a partir da obra Iracema de José de Alencar (1965/1991) e obras
indígenas atuais; apresentar mulheres indígenas que atuam em várias áreas de saber
e poder: literatura, artes visuais/plásticas, política, docência, jornalismo, cinema,
música, etc; praticar a (re) leitura e (re) escrita de vozes femininas indígenas na
escola, pensando nas demais práticas sociais.
Para realização da oficina, adotamos os seguintes procedimentos
metodológicos: apresentação da temática, realizado numa perspectiva dialógica;
apresentação dos objetivos; breve reflexão sobre as funções da literatura e demais
formas de arte enquanto grande esperança contra a barbárie; diálogos sobre os

Destinada a momentos de formação continuada de professores da rede pública; a eventos que tematizem
sobre a questão; especialmente à comunidade do próprio Instituto Federal do Pará. Oportunamente,
agradecemos aos alunos dos cursos técnicos profissionalizantes integrados ao ensino médio, Meio Ambiente
e Mecânica, que têm atuado incansavelmente com a realização deste projeto.

425
estereótipos acerca da mulher indígena a partir de leitura de dois recortes da
obra 5

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais


negros que as asas da graúna, e mais longos que seu talhe de
palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a
baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida
como a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas
do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, de grande nação tabajara.
O pé grácio e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que
vestia a terra com as primeiras águas. (ALENCAR, 1991, p.10).

Iracema arrastando o passo trêmulo [...] aí parou: quando o grito da


jandaia de envolta com o choro infantil a chamou à cabana, a areia
fria onde esteve sentada guardou o segredo do pranto que
embebera. A jovem mãe suspendeu o filho à teta; mas a boca infantil
não emudeceu. O leite escasso não apojava o peito. O sangue da
infeliz diluía-se todo nas lágrimas incessantes [...] Põe no regaço um
por um os filhos da Irara [...] os cachorrinhos famintos sugam os
peitos avaros de leite [...] Iracema curte dor [...] mas os seios vão se
intumescendo, e o leite ainda rubro do sangue de que se formou,
esguicha [...] mata a fome do filho, ele agora é duas vezes filho de
sua dor, nascido dela e dela também nutrido. (ALENCAR, 1991, p.91-
92).

Em continuidade ao diálogo, recorremos aos estudos de Santos (2009, p. 21)


que nos esclarece que mesmo heroicizado romanticamente, com a marca impressa da
valentia, o indígena estava sempre sob a mira do olhar determinante do colonizador.
Não possuía a validade da natureza pura, pois sua valentia fora herdada da influência
medieval, que o colonizador inseriu no contexto e o escritor tomou para si como baliza.
Não foi impresso, no entanto, a figura humanizada, a exemplo das demais com as
quais dividiu enredo. Foi, antes de tudo, um emblema, cerzido com as cores locais e
que escondia, sob seus pontos em relevo, o constante matiz de nativo selvagem a
quem o não índio deveria civilizar, impondo sua cultura (SANTOS, 2009, p. 21).
Sequencialmente, apresentamos várias escritoras indígenas, iniciando por
Márcia Wayna Kambeba, inclusive realizamos a leitura de um poema seu:

Ouve agora o que tenho a te falar,


Não sou ―índio‖ e venho mostrar,
A palavra certa a pronunciar,
Povo, etnia, é como deves chamar.

Iracema, a virgem dos lábios de mel: O enredo de Iracema se dá quando Iracema vai a uma caçada, e
encontra-se com os europeus, atirando uma flecha em Martim, por quem se apaixona, imediatamente
quebra a flecha selando a paz entre os dois. Martim é convidado para se hospedar em sua tribo, e acaba
por se apaixonar pela índia, destruindo o pensamento do pajé, pois ela é pura e não pode ter relações.
Acaba fugindo com Martim e tendo um filho escondido, Martim a deixa, Iracema acaba morrendo de
chorar e por ter que alimentar seu filho sozinha, amando muito o seu amado, mesmo abandonada
acaba morrendo. (ALENCAR, 1965/1991).

426
―Índio‖, eu não sou!
Sou Kambeba, sou Tembé,
Sou kokama, sou Sateré,
Resistindo na raça e na fé‖.
(Kambeba, 2019, Online).

Apresentamos Graça Graúna, Lia Minapoty Aripunãguá e Eliane Potiguara. De


Potiguara, realizamos a leitura de alguns recortes do livro Metade cara, metade
máscara, porém, não podemos deixar de destacar uma fala sua quando do momento
de sua inquietação sobre o lugar da literatura indígena na atualidade.

Minha dúvida acerca desse trabalho, passa exclusivamente pela


forma e NÃO PELO CONTEÚDO, pois este trabalho entremeia textos
e cânticos. Alguém já me criticou dizendo, como? textos e poesia?
Mas minha poesia são choro e exaltação, são cânticos, são cantigas
que ilustram os meus textos analíticos contidos nessas histórias,
entende??? Eu analiso e choro, eu analiso e grito, eu analiso e canto.
Eu berro!!! E tenho esse direito de analisar e fazer o que quiser
depois... Não são poesias como a literatura formal baseadas nos
conceitos que os europeus querem. Quero quebrar essa forma.
(POTIGUARA, 2002, apud GRAÚNA, 2013, p. 182).

Em continuidade, adentramos na seção ―Não somos Iracema‖, com a


apresentação de dois trabalhos da artista plástica Yacunã Ká Arfer Tuxá; a jornalista
Renata Aratykyra Tupinambá; a atriz Zahy Guajajara; Sônia Guajajara, a primeira
indígena a concorrer a um pleito presidencial; Joênia Wapichana, a primeira mulher
indígena a se tornar deputada federal no Brasil, e, por fim, a rapper indígena Katú
Mirim.
Para atingir os objetivos propostos, os diálogos são realizados a partir de
exposição de slides (1 ou 2 slides para cada personalidade indígena) e apresentação
de vídeos curtos (uma declamação de poesia indígena-1m e 25s, mais três vídeos da
rapper indígena Katú Mirim [9 m]). Vale frisar que, nossa perspectiva de diálogo é
conduzida teoricamente segundo a proposta de análise do discurso, compreender a
produção de sentidos e seus efeitos.
Após a parte de apresentação das mulheres indígenas mencionadas,
apresentamos técnicas simples de rimas, motivando às/aos participantes a produzirem
suas próprias rimas, tendo como foco as distintas vozes femininas indígenas. O
público é dividido em grupos, deixando-os à vontade para escolherem a quais
personalidades indígenas apresentadas serão retratadas através de suas rimas. É
importante o acompanhamento de cada pequeno grupo, com o intuito de orientá-los
quanto à elaboração de suas rimas. O próximo momento, talvez seja o mais prazeroso
de se ver: a apresentação das produções das/dos participantes. Antes do
encerramento da atividade, não podemos de deixar de realizar a avaliação da oficina,

427
pontuando conjuntamente o que aprendemos e o que ainda podemos aprender nas
próximas oficinas, e, principalmente, em nossas relações sociais, afinal de contas: ―Se
faço isso é com o objetivo de saber o que somos hoje. Quero concentrar meu estudo
no que nos acontece hoje, no que somos, no que é nossa sociedade (FOUCAULT,
2012, p. 258).

Considerações finais

Em conclusão a este momento de apresentarmos alguns resultados parciais do


projeto de pesquisa Discurso e Redes de Memória Indígena na Região do Baixo
Tocantins, destacamos, por fim, que todo o percurso trilhado é, por assim dizer,
apenas uma parte no todo que formam as lutas dos indígenas na atualidade. A oficina
Não somos Iracema! Vozes indígenas femininas: dos estereótipos à resistência, é uma
gota d‟água neste imenso oceano de combate à visão estereotipada sobre os
indígenas.
Parece que os povos indígenas ficaram paralisados no nosso imaginário. Até
hoje tem gente achando que índio é quem veste um manto tupinambá e vai ao
encontro dos portugueses, recém-chegados em suas caravelas. Um quadro típico do
século XVI.
Lembro agora de um recorte de uma reportagem da revista Índio, sobre a
resposta dada por um indígena ao ser indagado sobre o uso de vestimentas ditas do
branco. Certa vez, a antropóloga Carmen Junqueira contou uma história que retrata
bem essa questão. Ela estava na aldeia Kamaiurá, no Parque Indígena do Xingu, e
todos os jovens vestiam bermudões, em moda na época. O piloto do avião, que era
amigo deles, falou com ar de crítica: ―Ué, vocês estão vestidos, agora?‖. Aí um índio
respondeu: ―Como você, que não está usando roupa igual à do Pedro Álvares Cabral!‖
(Revista Índio, 2011, p. 09).
Nessa perspectiva, adotamos o entendimento de que o discurso contra-
hegemônico deve ser entendido como um instrumento de luta e conscientização dos
povos indígenas. A partir dos estudos discursivos, defendemos que os próprios
indígenas sejam interlocutores de suas culturas e tradições: ―[aos indígenas, a
responsabilidade de] levar adiante essa herança é sabedoria. Quais rasteiras que
devemos dar no neocolonizador, no opressor político-cultural para despertarmos a
força interior e transformá-la em sabedoria e arma para o crescimento da humanidade
e melhor qualidade de vida?‖ (POTIGUARA, 2004, p. 81). A provocação desta
intelectual indígena é um convite à consciência, no sentido de recuperar a essência de
humanidade e afastar os vícios impostos implícita ou subliminarmente pelo

428
colonizador, percebendo nas manifestações artísticas, culturais, simbólicas, históricas,
discursivas indígenas, a fala de autênticos cidadãos brasileiros.
Nessa luta diária, ―podemos usar o discurso, nossa arma principal [...]‖
(DALCASTAGNÈ, 2018, p. 15). Assim tecemos esse texto, com a esperança que
tenha ―[...] a desenvoltura de apresentar-se como discurso: simultaneamente, batalha
e arma, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível‖ (FOUCAULT,
2014, p. 08). Que nessa luta diária, nossa arma discursiva sirva ―para referendar o que
querem os poderosos (como fazem, inclusive, alguns colegas e escritores), mas
também podemos usá-lo para desmascará-los ou, mesmo, para tirar-lhes o sossego‖
(DALCASTAGNÈ, 2018, p. 15).

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431
AS FACES DA MULHER AMAZÔNICA: A NEGRITUDE EM DALCÍDIO
JURANDIR

https://doi.org/10.29327/527231.5-29 Alinnie Oliveira Andrade Santos


(UFPA)

As faces da Mulher Amazônica: a negritude em Dalcídio Jurandir

Dalcídio Jurandir é conhecido por ser o autor dos romances do Ciclo do extremo Norte. A
história central do Ciclo é a de Alfredo. Filho de uma negra, D. Amélia, e de um branco,
Major Alberto, o menino vive em constante conflito na busca de sua própria identidade, ora
entristecendo-se pela cor da mãe, ora aceitando-a e sentindo orgulho dela. A convivência,
em Belém, com a família materna, principalmente com as mulheres Mãe Ciana, Magá e
Isaura, contribuiu para que Alfredo possa aceitar melhor sua mãe. Essas personagens
negras vivem na capital com o esforço do próprio trabalho, como também auxiliam na fuga
dos bandoleiros que planejavam revoltas pelo interior. Este trabalho objetiva observar a
representação dessas mulheres negras analisando suas trajetórias, principalmente no que
se refere à postura transgressora delas diante do sistema social em que estavam inseridas.
Palavras-chave: Personagem feminina; Dalcídio Jurandir; negritude

The Amazonian Women’s faces: the blackness in Dalcídio Jurandir

Dalcídio Jurandir is known for being the author of the ―Ciclo do Extremo Norte‖ (Extreme
North Cycle)’s novels. The cycle’s central narrative is Alfredo’s. The son of a black woman,
D. Amélia, and of a white man, Major Alberto, the boy lives in a constant conflict in the
search of his own identity, sometimes getting sad because of his mother’s color, or accepting
it and being proud of it in other times. The coexistence , in Belém, with his mother’s family,
especially with women like Mãe Cigana, Magá and Isaura, has contributed to Alfredo’s best
acceptance of his mother. These black female characters live in the state capital with the
effort of their own work, and also help ―bandoleiros‖, groups of people who planned riots in
the countryside, in their scape. This work objectifies to observe the representation of these
black women analyzing their trajectories, mainly with the regard to their transgressive posture
in the social system in which they were inserted.

Keywords: Female characters; Dalcídio Jurandir; blackness

432
Introdução

Dalcídio Jurandir foi um escritor brasileiro extremamente consciente de sua escrita


e do papel desta na e para a literatura brasileira. Fugindo do retrato da região feito por
grande parte de seus antecessores e sem posicionar a natureza à frente do homem, o autor
paraense rompeu com certa tradição literária sobre a Amazônia consolidada a partir de
Euclides da Cunha e foi um grande inovador e renovador dessa literatura. Dessa forma, o
escritor produziu uma literatura empenhada nas questões sociais, tal qual a produzida na
primeira metade do século XX, em outros lugares do Brasil, e não voltada somente para o
cotidiano da região amazônica.
Os romances do chamado Ciclo do Extremo Norte, de Dalcídio Jurandir – Chove
nos Campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três Casas e um Rio (1958), Belém
do Grão Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1963), Primeira Manhã (1967), Ponte do
Galo (1971), Os Habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978) – são
ambientados na Amazônia paraense e apresentam temáticas que envolvem o homem dessa
região. As narrativas dos dez livros não são independentes entre si, mas, conforme assinala
Benedito Nunes,

integram num único ciclo romanesco, quer pelos personagens, quer


pelas situações que os entrelaçam e pela linguagem que os constitui,
num percurso de Cachoeira na mesma ilha [do Marajó] – cidade de
sua infância e de sua juventude – a Belém, onde o autor viveu antes
de transferir-se para o Rio de Janeiro. (NUNES, 2009, p. 309).

Willie Bolle considera o Ciclo como uma enciclopédia da Amazônia, ambientada


tanto no contexto rural, como no urbano, mas com uma forte marca dos hábitos e costumes
da periferia:

O cenário da ação dos romances do Ciclo é a região do delta do rio


Amazonas. Os três primeiros (Chove nos Campos de Cachoeira,
Marajó, Três Casas e um rio), passam-lhe na ilha do Marajó, nas
vilas de Cachoeira e Ponta de Pedras e em seu entorno. O quarto
romance (Belém do Grão-Pará) localiza-se na capital Belém, nos
bairros centrais. Os cinco romances seguintes (Passagem dos
Inocentes, Primeira Manhã, Ponte do Galo, Os habitantes e Chão
dos Lobos) passam-se nos subúrbios de Belém. O trânsito de
personagens, nesses livros, entre a grande cidade e a ilha do Marajó
sublinha o caráter híbrido da cultura da periferia, onde se misturam
as formas de vida urbana e ribeirinha. O local do último romance do
Ciclo Ribanceira (1978) é a vila de Gurupá, situada num ponto
estratégico de acesso ao interior da Amazônia.

433
O tempo da ação dos romances é a década de 1920 a 1930, que foi
uma época de crise. A região amazônica sofreu, então, de forma
traumática o fim do boom da borracha (1912), entrando numa longa
fase de declínio e de estagnação da economia. (BOLLE, 2012, p. 16)

Na concepção de Vicente Salles (1992), o que faz do Ciclo do Extremo Norte um


conjunto de romances que traça um painel da verdadeira realidade da Amazônia paraense é
o fato de Dalcídio ter nascido e crescido na região, o que possibilitou a ele vivenciar as
experiências, tanto no meio rural como no urbano, retratadas em sua obra:

Já se disse que sua obra se baseia, antes de tudo, numa longa


experiência pessoal sem, no entanto, carregar os seus romances
com o pitoresco e o documento exigido pelo figurino regionalista. Isto
verdade porque Dalcídio Jurandir não mergulha no seu universo
regionalista fazendo saltos ornamentais. Ele não extrai desse
universo qualquer imagem idealizada. As experiências foram vividas
e, por isso, permitiram-lhe fazer com autenticidade a literatura do
cotidiano, nos campos de Marajó, como nos bairros pobres de
Belém. Não é capaz de exprimir a tradição amena, determinada pelo
conformismo; revela-nos, a sua obra, dimensões inéditas do homem
em seu contexto rural e/ ou (sub) urbano. (SALLES, 1992, p. 368)

Em seu livro sobre Euclides da Cunha, ao falar sobre aqueles que o sucederam,
Francisco Foot Hardman menciona a produção ficcional de Dalcídio Jurandir e também o
considera como um escritor que distanciou sua obra tanto dos escritos de Euclides, como
daqueles que o homenagearam, trazendo assim estabilidade para a prosa da região:

Será, no entanto, com o escritor, jornalista e militante comunista


Dalcídio Jurandir (1909-1979), natural da Ilha de Marajó, que essa
representação romanesca na trilha realista conhecerá estabilidade
temática, equilíbrio estético e continuidade histórica. De seus onze
romances, dez versam sobre a Amazônia, constituindo o que foi
chamado de Ciclo do Extremo Norte, com narrativas em cenários
da ilha de Marajó, além do interior do Estado do Pará e de Belém,
começando com o premiado Chove nos Campos de Cachoeira
(1941) e terminando com Ribanceira (1978), intercalados, entre
outros, por Marajó (1947), Três casas e um rio (1958) e Belém do
Grão-Pará (1960). Em Dalcídio, a lentidão dos ritmos equatoriais
adquire textura, sem concessões ao pitoresco. (...). Seus
personagens possuem papéis sociais definidos. Mas seus romances
não se ―nacionalizaram‖ como os de escritores nordestinos, isto é,
permaneceram à margem, no rodapé da história literária brasileira,
como caso exemplar de um regionalismo de boa qualidade.
(HARDMAN, 2009, p. 31).

Apesar de possuir uma vasta produção como romancista, Dalcídio Jurandir é um


escritor desconhecido do grande público. Na maioria das histórias literárias brasileiras ele é

434
apenas brevemente citado e enquadrado como um escritor regionalista. Ou seja, ignorando
todos os avanços que a literatura que retrata a Amazônia adquiriu com o escritor paraense,
como a ruptura com a tradição literária amazônica, apenas levam em consideração o fato de
Dalcídio ser um escritor nascido no norte do Brasil e que ambienta as suas obras nesse local,
1
como se tais aspectos fossem mais importantes que toda a complexidade da sua narrativa .
De uma forma geral, os romances de Dalcídio Jurandir estão centrados em três
personagens masculinas. Em Chove nos Campos de Cachoeira, pontapé inicial do Ciclo
do Extremo Norte, temos o desenrolar dos dramas de Eutanázio, com sua paixão não
correspondida por Irene. Marajó conta a história de Missunga, o jovem filho do Coronel
Coutinho, herdeiro de todas as suas propriedades. Alfredo, por sua vez, aparece em nove
das dez obras do Ciclo, as quais narram a sua trajetória desde a infância até a chegada da
fase adulta.
Apesar desse protagonismo masculino, há uma quantidade considerável de
personagens femininas que auxiliam tanto no desenrolar do enredo, como no
desenvolvimento dos dramas dos homens, não se limitando a apenas essa contribuição,
mas também trazem para a narrativa as suas próprias histórias e, dessa maneira, ajudam no
retrato da Amazônia que o escritor paraense desejava apresentar por meio de sua obra.
Dessa forma, este trabalho objetiva observar a representação dessas mulheres
negras da família de Alfredo, Mãe Ciana, Magá e Isaura, presentes sobretudo no romance
Belém do Grão Pará, a fim de analisar as suas trajetórias, principalmente no que se refere à
postura transgressora delas diante do sistema social em que estavam inseridas.

O romance Belém do Grão Pará

No quarto romance do Ciclo do Extremo Norte, Belém do Grão Pará, Alfredo vai
morar na capital paraense na casa da família Alcântara para dar continuidade aos seus estudos.
Pelos aspectos históricos descritos na obra, pode-se inferir que a história se passa na década de
1920, por volta do ano de 1922, período após o Ciclo da Borracha, dos anos áureos da Belle
2
époque e dez anos depois do fim do governo do intendente Antonio Lemos .

Nesse momento, então, a cidade de Belém vive um período de declínio econômico,


o qual pode ser constatado na situação social da família Alcântara, que tinha anteriormente

Histórias Literárias como A Literatura no Brasil (1959), de Afrânio Coutinho, História Concisa da
Literatura Brasileira (1970), de Alfredo Bosi, História da Literatura Brasileira (1997), de Luciana
Stegagno Picchio, A Literatura no Brasil: origens e unidade (1999), de José Aderaldo Castello e
História da Literatura Brasileira: da carta de Caminha aos contemporâneos (2011), de Carlos Nejar
apenas mencionam as obras de Dalcídio Jurandir, enfatizando que se trata de uma produção
essencialmente regional,ignorando quaisquer outros aspectos.
Antonio José Lemos (1843-1913) foi intendente de Belém entre 1897 e 1911. Foi o administrador
responsável pelo desenvolvimento urbano da cidade de Belém.

435
uma posição elevada e de respeito naquela sociedade, frequentando a ―corte‖ do intendente, e
3
nos anos 1920, no governo de Lauro Sodré , aparece desprovida de qualquer resquício do
status social que outrora ostentara. Assim, esse romance não trata somente da primeira
experiência de Alfredo em Belém, mas também, como atesta Benedito Nunes, uma obra que
mostra a história dos Alcântaras, relacionada com a situação de ruína da cidade nesse
período:

Quem lê Belém do Grão Pará, como um romance dos Alcântara (o


casal Seu Virgílio/Dona Inácia e a filha Emilinha), lê a inteira cidade
dos anos 1920, tal como a tinham deixado, após o início da
decadência econômica, consequente à crise da borracha, que
culminara em 1912, as reformas do intendente (prefeito) Antonio
Lemos. (NUNES, 2009, p. 322).

Essa família é composta por D. Inácia, Seu Virgílio e a filha do casal, Emília. Seu
Virgílio, nos tempos de Lemos, havia sido administrador do Mercado de São Brás. Ainda no
governo do intendente, conseguiu um simples emprego de funcionário público federal na
Alfândega, o que nos aponta para a sua falta de ambição. Com essa família vivem ainda
Libânia e Antonio, empregados e crias da casa, que vivem uma situação de miséria e quase
escravidão, subjugados pelas vontades dos patrões.
Marlí Furtado defende a ideia de que em Belém do Grão Pará a capital paraense,
espaço no qual será ambientada a obra, é como mais uma personagem no romance, dado o
enorme desejo do menino em se mudar do Marajó para Belém:

E agora entra em cena, como espaço central e com força de


personagem, a cidade de Belém, primeiramente musa de Alfredo, a
quem aparecera sempre com nuanças de espaço encantado, onde
ele poderia realizar sonhos e se distanciaria do quotidiano repetitivo
e pobre de Cachoeira, especialmente aquele do quilinho de carne
comprado todos os dias no mercado. (FURTADO, 2010, p. 114)

Além do convívio com as Alcântaras, o menino Alfredo se depara com a família da


sua mãe, que vive e trabalha em Belém: são suas tias, prima e primos, os quais o ajudam a
aceitar sua origem negra e se orgulhar de ser filho de D. Amélia, como veremos no tópico a
seguir.

Lauro Nina Sodré e Silva (1858-1944) foi governador do Estado do Pará em dois momentos: de 1891 a
1897 e 1917 a 1921.

436
Isaura, Magá e Mãe Ciana: transgressão pelo trabalho e atuação social

Por meio do olhar de Alfredo, o narrador nos mostra os diferentes ofícios dos
membros dessa família. Todos, homens e mulheres, trabalham em uma atividade específica,
o que surpreende e frustra o menino simultaneamente, pois pensa que se todos os seus
parentes se dedicam a um emprego, ele, como pertencente a essa família, também deve
encontrar a sua ocupação:

Ali na Rui Barbosa, da Mãe Ciana à Violeta, todas sabiam coisas,


suas artes, suas curiosidades. Família muito bem apreciada, seu
sangue, dela ele era; tio na cana do leme dum barco, tio soldado no
Rio de Janeiro e vários ofícios e viagens, a prima na costura, a Ciana
no cheiro, a Magá na tartaruga e tacacá, os primos na mobília e no
motor, e ele, filho de branco e de preta, que ofício era pra ele, agora
naquele Barão? (JURANDIR, 1960, p. 112).

Dessa forma, trataremos neste tópico de três personagens femininas pertencentes


a essa família: Isaura, Magá e Mãe Ciana. Veremos como essas mulheres negras
transgridem o sistema social por garantirem sua subsistência por meio do seu próprio
trabalho.
Apesar de se envolver em várias atividades – como decoração, que lhe garante as
entradas para o cinema Olímpia – Isaura é costureira, muito requisitada na cidade, o que faz
com que esteja sempre indo de um lugar ao outro, atendendo suas clientes. Vejamos como
o narrador a retrata:

Isaura trazia as novidades da costura, da freguesia, da Rui Barbosa.


Tinha a boca larga, o sorriso se abrindo devagar e de repente
escancarando-se a risada um pouco desagradável para Alfredo por
ser dum assim-assim de mau modo, malineza, desfazendo das
pessoas. Seus olhos esbugalhavam num luze-não-luze de azedume,
enjoo, ressentimento. O cabelo alto de mulata, mal sentado, mal
penteado. Não raro sem pintura, por isso pálida e a deixar ver na
boca, na mão, nas faces, este e aquele sulco de contrariedade e
fadiga. (JURANDIR, 1960, p. 90-91).

interessante observar que esse excerto mescla a aparência física de Isaura, tais
como a ―boca larga‖ o ―cabelo alto de mulata‖, com certos aspectos do seu trabalho,
como ―as novidades da costura‖. Ao final, vemos que seu rosto deixa transparecer uma
―fadiga‖, o que remete ao cansaço devido ao seu trabalho excessivo.
Em muitas vezes em que Isaura aparece na narrativa, ela está sempre em
movimento, trabalhando, entregando suas costuras, ou indo até as clientes, ou costurando
vestidos na sua casa. Um exemplo disso é que ela faz as Alcântaras e Alfredo esperarem

437
por ela no cinema, pois estava com trabalhos pendentes: ―Teriam de ficar na sala de
espera porque Isaura viria com algum atraso. Acabava um vestido e teria ainda de ajeitar a
cesta de flores de uma vizinha.‖ (JURANDIR, 1960, p. 137).
Com a morte do pai, um funileiro, Isaura sentiu-se na obrigação de ajudar no
sustento da casa, de tomar para si a obrigação que era do pai. Antes de ele falecer, já moça,
a filha cuidava dos afazeres domésticos e do pai doente. Mesmo anos depois do falecimento
dele, a jovem ainda vivia de luto, sua vida mudara completamente: da alegria pela
convivência com ele à tristeza lacônica por sua ausência. O apego tanto ao trabalho quanto
às Alcântaras era uma forma de conviver com sua dor:

Era um luto permanente, surdo, cheio de silenciosas evocações de


uma camaradagem entre pai e filha durante anos, quando o velho
(...) secou o peito no sustento dos filhos (...). Foi o velho funileiro
adoecer, desenganado dos médicos, Isaura, já moça, tomava conta
da casa. O pai expirou; ―quarto‖, enterro e ela de olhos secos,
acudindo os irmãos, a calma em pessoa. Mas aos poucos, todos da
família viam-lhe o secreto abatimento, as mudanças. Aqueles seus
modos alegres, quando levava o pai ao cinema, ao largo de Nazaré
em tempo da festa, saindo de um teatrinho entrando noutro, correndo
no aeroplano e subindo na montanha russa apesar dos protestos do
velho, e o gosto em vestir, no passear, no jogar entrudo pelo
carnaval, tudo isso se acabou. A família via-lhe a magreza, os olhos
fundos, o desarranjo. os acessos de impaciência e raiva, horas e
horas na máquina, sem dizer: Violeta, me traz um caribé! A ―paixão
pelo pai‖, como diziam os irmãos, resistia aos anos. Ou já se tornava
num hábito, em que Isaura se escondia e se gastava, apegando-se,
sem saber porque e com muita contrariedade, à casa dos Alcântaras.
(JURANDIR, 1960, p. 145-146).

justamente por intermédio da amizade de Isaura com Emilinha que Alfredo vai
morar em Belém na Gentil, com os Alcântaras. Essa amizade, cheia de desavenças e
discussões, é uma parte importante do cotidiano de Isaura. Ela vivia entre brigas e
reconciliações com a amiga, o que deixa todos intrigados com esse comportamento.
Novamente, o narrador usa o olhar de Alfredo para mostrar ao leitor essa relação, sobretudo
nos momentos de confronto entre elas:

Pôde ele observar melhor a prima. Com ele, mostrava-se atenciosa,


um descanso de voz, aquele modo sempre fácil de aprovar tudo que
era o mesmo que desaprovar. (...). Não era raro gracejar, brincar
mesmo, abandonada à sua repentina alegria, a tal extremo que
parecia falsa. Se tivesse de contradizer, fazia sorrindo, num jeito
quase carinhoso. Mas daí a um acesso de raiva, não durava um
segundo e sempre provocado por Emília. Transfigurava-se, a voz
numa rispidez cortante, o branco dos olhos dilatava-se, gomoso, as
pálpebras inchavam. Gorda, com seus braços gordos e olhos
alarmados, Emília retirava-se do bate-boca. A magra encolhia o

438
peito, os olhos de boi malignos, saboreando a própria raiva. Alfredo
não sabia entender. Por vezes. tentava ver em Isaura uma pessoa
doente ou cheia dum inexplicável desprezo pelos Alcântaras a quem
estava presa não se sabia bem por quê. Por que semelhante
amizade, temperada de furor e desgosto? Ou tudo era por hábito ou
próprio das duas amigas aquele furioso e pegajoso
desentendimento? Nunca os Alcântaras na presença do primo,
atacavam a costureira. (JURANDIR, 1960, p. 103-104).

Como já mencionamos no tópico anterior, Emilinha presenteia a amiga com uma


blusa bordada. Isaura, no entanto, percebe as intenções da filha de D. Inácia com esse
agrado e, para se vingar da amiga por não ter usado o sapato novo na sua festa de
aniversário, não usa a blusa nova para ir ao cinema, mas sim a ―cerzida, com aquele suor
visível debaixo do braço.‖ (JURANDIR, 1960, p. 141).
Essa atitude deixa Emília furiosa, uma vez que ela queria que a prima de Alfredo
estivesse bem vestida, como uma das estratégias de manter as aparências sobre a
condição financeira da família Alcantâra. Como seus planos foram frustrados, as duas
iniciam uma briga no bonde, na volta do cinema.

— Não fizeste o meu pedido, Isaura, cadê a blusa?


Isaura acenou para a d. Inácia dizendo que queria sentar com ela,
trocassem de lugar. Mas aí, apertando-lhe o braço, Emília deteve a
costureira.
— E tu? Achaste que o cimento da sala de casa ia gastar o salto do
teu sapato novo? E assim, baixo, enraivecendo-se, começaram a
bater boca no bonde sem que a madrinha mãe pudesse perceber. Já
por último, Emília acusava a amiga de não ter cumprido a promessa
de fazer a festa do aniversário no 160. Sem lhe dar qualquer
explicação, fez no 72.
— Mas não foram os meus irmãos que fizeram a festa? Tu davas o
barril de chope, fazias as despesas? E por que não em minha própria
casa? Ora essa! (JURANDIR, 1960, p. 144).

Isaura tinha consciência social, tinha noção de sua origem e da necessidade de


trabalhar para se sustentar. Entendia que suas roupas não condiziam com as de Emilinha e
com as das outras mulheres que frequentavam o Cinema Olímpia. Percebia a amizade
interesseira da amiga e o incômodo de Emilinha com suas roupas mais simples. E por isso
brigavam constantemente. Isaura aproveitava sempre para ironizar a situação.
Podemos observar o tom irônico de Isaura no dia da festa de aniversário de Emília.
A festa foi custeada pela amiga e seus irmãos – apesar de a filha dos Alcântaras tentar
encobrir isso – desde o chope até o nome da moça na coluna social do jornal:

Isaura interrompeu a conversa para mostrar a parte do jornal


— comprado pelo irmão — que trazia as notas sociais:

439
Fazem anos hoje:

As senhoritas
Jovenília Soares Pinho
Sirena Sousa
Maria de Nazaré Cunha
Claudia Vasconcelos Souto Maior
Merandolina Gusmão
Emília Alcântara

Isaura, intimamente: embaixo de todas a pobre! Nem ao menos no


meio, e que crueldade! Emília enxugando o suor da valsa que
dançara, olhou para a amiga, adivinhando-lhe o escárnio. E disse
alto:
— Eu já tinha pedido para riscarem meu nome daí desse jornal.
Não quero. (JURANDIR, 1960, p. 247-248).

Emilinha sente-se ofendida e desdenha por estar em último na lista, pois o seu nome
no jornal era uma das muitas formas de manter as aparências. Isaura, por sua vez, mesmo
que intimamente, chama a amiga de ―pobre‖, termo que assombrava e amedrontava a
Alcântara, pois desejava urgentemente uma ascensão social. Há ainda um caráter dúbio no
―pobre‖, mencionado por Isaura: refere-se tanto à condição financeira de Emília, como
pode ter sido uma demonstração de pena da amiga. Em ambas possibilidades, apresentam
o desnível social de Emilinha e sua ilusão na fuga da ruína e miséria.
Enquanto Emilinha, pobre como ela, fica esperando por um casamento vantajoso
para sair do ostracismo social, Isaura trabalhava todos os dias, buscando se manter pelo
seu próprio esforço. Ela é transgressora pois, não há a menção no romance de ela estar em
busca de um casamento, mas há inúmeras descrições de seu ofício como costureira,
mostrando-nos sua autonomia e independência financeira, algo não muito comum para as
mulheres da época.
Magá, mãe de Isaura, apesar de não ter o mesmo destaque na obra que sua filha,
também é um exemplo de transgressão presente no Ciclo do Extremo Norte. Conforme a
descrição do romance, ela era uma excelente cozinheira e obtinha êxito em garantir o seu
sustento por meio desse trabalho.
Sua principal ocupação era vender tacacá – comida típica do Pará – na rua,
atividade que não agradava os filhos em função de ela já estar envelhecendo. No entanto,
ela se recusa a parar, pois não queria, de forma alguma, depender deles. Ela impõe sua
vontade diante deles e permanece com o seu trabalho:

Alfredo, uma tarde, passou pela Quintino, canto com a S. Jerônimo,


no ponto da tacacazeira. Lá estava Magá no seu ofício. (...). Esse
ofício dela de canto de rua, aos filhos não agradava tanto. Por gosto

440
deles, Magá já era pra ter deixado aquela canseira. ―Eu, mas eu,
que vou me atracar no rabo de vocês, à custa de vós? Vê la meus
formosura. Uma osga! Mas deixem ir ganhando o meu cruzado.‖
(JURANDIR, 1960, p. 110-111).

Além disso, Magá também preparava Tartaruga sob encomenda. Era unanimidade
entre todos que o prato era delicioso e essa reputação fazia com que os serviços dela
fossem muito requisitados, sobretudo pelos ―brancos‖, os mais ricos e importantes
da sociedade.

Magá ir preparar uma tartaruga numa dessas casas de branco, pra


um banquete político ou chegada dum general. A preta, os jasmins
na cabeça, cheirando a cheiro da Mãe Ciana, sua mãe, tinha entrada
de gala na cozinha, afastando de sua frente as cozinheiras da casa,
já enrolando as mangas: cadê a inocente? E lhe traziam a tartaruga.
Mas nunca ninguém arrastava ela até a boca do corredor, ao pé da
sala de jantar, para receber os parabéns. os agrados lá da mesa.
―Pra lá com essa pavulage, eras! repetia e logo entre a criadagem,
diante mesmo da dona da casa, soltava a sua adivinha bem salgada,
uma das suas de fazer toda a cozinha dizer: ―Mas ah! Mas ah!‖ e
era um alívio, agora todos rindo, pois a Magá antes, ao fazer a
tartaruga, era trombuda, ninguém piasse, que nem pajé em sessão.
A própria dona da casa, de Magá queria distância. Virgem de Nazaré
livrasse da Magá, nesta hora, ter um aborrecimento e largar tudo no
meio, indo embora, como algumas vezes fazia. (JURANDIR, 1960, p.
111-112).

Percebemos nesse excerto, o contraste entre o comportamento da mãe de Isaura e


o ambiente de onde era solicitado o seu serviço. Ela não se deslumbrava com as tentativas
de elogios, querendo apenas fazer o seu trabalho sem ser incomodada. Também não se
intimidava com o fato de estar cozinhando para pessoas ricas, se ficasse aborrecida, iria
embora sem se importar com as consequências do seu ato. Magá executava seu ofício de
forma tão eficaz que conseguiu o respeito de todos, independentemente de seu nível social
e do preconceito com sua etnia.
Mãe Ciana, por sua vez, trabalhava com papéis de cheiros e ervas aromáticas e
medicinais, que lhe conferiram a alcunha de feiticeira. Antes de se dedicar somente a esse
ofício, ela se envolveu em diferentes atividades, tais como vendas de tacacá, mingau e açaí.
Isso nos mostra que ela sempre esteve voltada a diversos trabalhos como uma forma de
sobreviver.
Algumas vezes, em suas perambulações pela cidade, Alfredo encontra com Mãe
Ciana e conversa com ela. Esses encontros com ela são também um encontro com a sua
origem negra, pois ela deixa claro para ele que toda a família descende de escravizados,
inclusive ele: ―Pensa que os escravos já acabaram? Eu venho da escravidão. Eu, tua avó,

441
tua mãe, tu também. Tu tens no sangue. Nossos parentes penaram nos engenhos. Só nos
engenhos? Hum!‖ (JURANDIR, 1960, p. 210).
Conviver com a sua família negra, faz com que o menino Alfredo crie laços e se
aproxime mais de seus parentes. Se nos romances anteriores (Chove nos Campos de
Cachoeira e Três Casas e um Rio), o menino vive um drama por ter uma mãe negra, em
4
Belém do Grão Pará, inicia-se nele um processo de aceitação tanto da sua cor , como a da
mãe. Vejamos um trecho do romance em que aparece o menino conversando com as três
mulheres: Isaura, Mãe Ciana e Magá:

A Magá soltava as suas, aqui era um nome carinhoso, ali um


cabeludo, os fiados do tacacá, e ter de encomendar um tucupi
ainda... Sacudiu a saia.
— Por que tu não vai lá tomar teu tacacá, meu corninho? Olha que a
tua parentada na cidade é nós. Aqui esta negralhona do tacacá é tua
família. E eu te quero um homem.
Entrava a Mãe Ciana, pousando a cesta do cheiro na cabeça de
Alfredo e a calombosa mão nos lábios dele, abençoando. (...).
Alfredo vai, então, estende as entradas para Isaura.
— Que é isso? Mas não, primo, é delas. Que sempre mandem
buscar. Deixo. E tu... escrevo pra tua mãe, não sai. Depois
conversamos, sim? (JURANDIR, 1960, p. 351).

Esses pequenos gestos – oferecer um tacacá, dar a benção – fazem com que o
menino sinta apreço por essa parte da sua família, que mostra um aspecto muito importante
da sua origem. Aceitar a sua cor é compreender também a sua história e ajuda o menino no
futuro a viver na periferia de Belém.
Se, pelo trabalho, Mãe Ciana transgride o sistema social, sucumbe diante de seu
Lício, companheiro de longos anos, com quem amarga um relacionamento abusivo. Quando
se conheceram, ele insistiu para que se relacionassem, porém, com o passar dos anos, seu
Lício a deixa de lado, preferindo se envolver nas manifestações populares a dar atenção
para a sua mulher. Ela, por sua vez, fazia tudo para agradá-lo para que ele passasse a
maior parte do tempo em casa:

No último romance da saga, Ribanceira, vemos Alfredo admitindo a sua negritude sem nenhum
problema, pois nesse momento aceita completamente a sua cor e a sua origem. Vejamos os trechos
em que isso ocorre:
―— Faço parte do tição. Mancha?
— Mas o senhor?
Com esse cabelo fino, a boca fina, as feições?
— Mancha?
— O senhor só está advogando a causa alheia, Secretário. Do senhor que não.
— Minha mãe. Meus tios. Não é uma pena?‖ (JURANDIR, 1978, p. 144).
―Alfredo leva na conta de gracejo, seguindo com o ramo de oliveira na mão. Na calçada do
Mercado aquela negra alta, a Nhá Barbra.
— Meu branco, tanto que eu queria um particular com o Senhor. Pode?
— Me chamando de branco, Nhá Barbra? Me repare na pele. Somos do mesmo mocambo. Sim?‖
(JURANDIR, 1978, p. 228).

442
―Ah, essa Mãe Ciana que não me sai de junto‖... Ela o procurava ou
recebia com ralho; que boca feia tinha agora a santa velha, os
beiços, revirados, reluziam e deles saía um cuspe grosso, as
mesmas recriminações, a voz ralhante. Debaixo de tudo isso,
aqueles mimos babujados para que seu Lício não desgarrasse: uma
dor de cabeça que mal falava e lá vinham chás e emplastos, mingau
quentinho ali na rede sem mesmo ele lavar o dente, a preparar-lhe o
banho e a pôr no ombro dele a toalha toda cerzidinha mas muito bem
passada e cheirosa, a curar-lhe as frieiras, e cortar-lhe a unha do pé
e sem esperar em troca este carinho, nem um só; não havia um
desejo, um suspiro, um pensamento de seu Lício que Mãe Ciana,
adivinhando, não dissesse: eu faço. Para ela, bastava a atenção dele
em se deixar servir. Mas ninguém quisesse ver em Mãe Ciana uma
humildade rastejante, aduladora, não. Ela, no seu melhor carinho,
servia sempre de cara franzida, resmunguenta, como fosse obrigada
e pronta a lhe dizer: mas, diabo, te põe daqui de dentro de casa,
preguei teu pé? (JURANDIR, 1960, p. 263).

Com esse trecho, podemos perceber que o envelhecimento de Mãe Ciana é um


dos motivos pelos quais seu Lício perde o interesse por ela. A mulher, no entanto, comporta-
se de forma submissa na presença dele, fazendo as atividades domésticas com o intuito de
servi-lo. A Mãe Ciana que se sujeita às vontades do homem amado em nada lembra a
mulher que anda pelas ruas vendendo seus papéis de cheiro, que defende a luta do povo,
pois tem consciência de ser descendente de escravizados que sofreram nas mãos dos
brancos.
Apesar de Mãe Ciana também acreditar nas revoltas do povo, não era justo a
maneira como seu Lício a tratava. Ele não era capaz de retribuir o afeto e cuidado que ela
lhe devotava. Duas situações mostram a forma grosseira como ele a tratava. A primeira
refere-se a um momento em que lembra aspectos dessa relação, quando ele lhe deu um
presente:

Sandália essa que foi assim: seu Lício viajou pro Maranhão numa
barca e logo voltou. Pensa que avisou que ia, disse assim: olha,
porcaria, vou ali e volto‖? Quando apareceu de volta, disse de cara
lambida, disse, escorrido:
— Estive na terra do camarão, te trouxe isto. Vê se
presta. (JURANDIR, 1960, p. 324).

A segunda é a rememoração de Isaura quando ele, bêbado, joga a cesta de


cheiros da mulher, fazendo ela ter um grande prejuízo no seu trabalho:

Isaura, então, para si mesma, recordou que uma vez, seu Lício, num
lance de bebedeira, lançara o cesto de cheiros no fundo do quintal,
na Bernal do Couto, espalhando aromas pela vizinhança, com os

443
pirralhos ajuntando os papelinhos. Era uma pessoa muito
contraditória, aquele seu Lício, pensou Isaura, um seu velho
pensamento. (JURANDIR, 1960, p. 343).

Seu Lício, um dos líderes do movimento popular, comunista, que defendia a


igualdade entre as pessoas, chama a sua mulher de ―porcaria‖, tratando-a com um
desprezo que, além de ela não merecer, não se ajustava com os ideais que ele tão
bravamente defendia.
Durante a Transladação, romaria que acontece na véspera do domingo do Círio de
Nazaré, Mãe Ciana ganha certo destaque na narrativa. Enquanto acompanha a procissão –
triste porque o seu amado não está lhe acompanhando – ela faz um retrospecto de toda a
sua vida, mas sempre preocupada com seu Lício, que estava levando Jerônimo para longe
de Belém, um dos líderes da revolta no Guamá e Etelvina, sua noiva. Assim como o fluxo da
transladação, era o fluxo dos pensamentos de Mãe Ciana.

A trasladação avançava. Mãe Ciana, atrás, entre as velas, a reza das


irmandades, no lado de uns pretos altos e de muito silêncio. Seu
terço na mão, a figa no pescoço, o chalé no ombro, Mãe Ciana tinha
um medo. Pensou seu Lício, no Ver-o-Peso ou Porto do Sal, podia
estar numa dificuldade, com a polícia no calcanhar, apanhado ao
embarcar escondido aqueles dois. O barco já estaria de viagem?
Nossa Senhora não castigava? Ela não mandava a polícia atrás dos
fugidos, pegar seu Lício, encafuar o pobre de seu Lício na São José?
podia, isto sim, levantar um tempo no rio, na hora a travessia,
naquelas águas, um desses feios tempos soprado por boca de
Nossa Senhora aborrecida com uma viagem daquelas nas vésperas
do Círio. Noivo e noiva, coitados, isso nunca mereciam. Que em paz
viajassem, custava? A Virgem de Nazaré ia dizer não? (JURANDIR,
1960, p. 324-325).

Mãe Ciana preocupa-se com os fugitivos, pois toda a sua família envolveu-se nessa
fuga. A primeira ajuda foi na manutenção do esconderijo em Belém e depois no
planejamento do dia perfeito para a fuga definitiva para longe da cidade. Isaura contava as
novidades para D. Inácia, demonstrando saber todos os passos da revolta:

Isaura entrara de bom humor, dizendo que as providências para a


partida do noivo iam bem. Bastava que seu Lício conseguisse uma
ocasião boa para Guamá a fim de avisar os companheiros. Contou
que Mãe Ciana estava muito exaltada contra o que diziam os jornais,
lidos em voz alta pela Gualdina. (JURANDIR, 1960, p. 243).

Dessa maneira, Mãe Ciana e Isaura são transgressoras também, pois ajudam na
fuga do bandoleiro do Guamá. Enquanto D. Inácia apenas comenta e teoriza sobre as
revoltas que estavam eclodindo no país, e como desejaria participar delas, caso fosse

444
homem, as duas, não veem o seu gênero como um impedimento e ajudam tanto a esconder
o casal fugitivo, como na fuga de Belém.
Isaura, Magá e Mãe Ciana enfrentam o sistema social em que se inserem por meio
da sua força de trabalho, pois encontram esse caminho para sobreviverem. Podemos fazer
um contraponto com as Alcântaras, mulheres brancas, que estão em uma situação
financeira desfavorável e têm em seu Virgílio o único mantenedor da casa. Em nenhum
momento, vemos algum interesse delas de também trabalhar para ajudar nas despesas,
tampouco quando o patriarca perde o emprego e a família fica sem sua única fonte de
renda. As negras, no entanto, desde muito novas exercem atividades fora de casa. Esse
quadro nos remete à citação de Angela Davis (2016) sobre o trabalho das mulheres negras:

Proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais


fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o
trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um
padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como
escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos de sua
existência ofuscados pelo trabalho compulsório. Aparentemente,
portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das
mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel
como trabalhadoras. (DAVIS, 2016, p. 24).

Como vimos, as parentes de Alfredo têm consciência de que a história das suas
vidas perpassa pela escravidão do passado e é justamente esse um dos motivos que as
impulsiona a trabalhar fora de casa e por conta própria. Na sociedade traçada no Ciclo do
Extremo Norte, eram poucas as opções para uma mulher se manter: morar com seus pais,
ainda solteira, e depender deles, ou o casamento, dependendo, assim, do marido. As que
fugiam desse parâmetro, eram, na maioria das vezes esmagadas por essa sociedade e
caíam na prostituição, como é o caso de outras personagens femininas do Ciclo.
Isaura, Magá e Mãe Ciana, por sua vez, rompem com esse sistema, em benefício
próprio e usam a força de trabalho para garantir sua sobrevivência. Essas três personagens
dentro do Ciclo se destacam por alcançar um nível de autonomia e independência incomum
para as mulheres da época. Elas seguem a trajetória de transgressão que acompanhou
grande parte das mulheres negras após a escravidão: o trabalho fora de casa para sustento
próprio e de seus familiares. Apesar disso, elas seguiram alguns dos ofícios que eram
destinados à mulher, naquela época, tais como: costureira, professora e cozinheira. é
importante mencionar que elas eram donas de seus próprios negócios, diferente de muitas
mulheres da época que trabalhavam fora de casa, o que contribuía para a maior autonomia
dessas mulheres.

445
Considerações Finais

O Ciclo do Extremo Norte, projeto literário arquitetado por Dalcídio Jurandir,


objetivava levar hábitos e costumes da Amazônia para o texto literário, sem perder o
enfoque na descrição de dramas que poderiam estar presentes em qualquer outra obra,
possuindo, assim, um caráter universal.
Ambientados na região amazônica, os romances dalcidianos narram a vida dos
sujeitos moradores da região, sem um discurso grandiloquente que oscila entre o inferno
verde e o paraíso perdido, nem tampouco mostrando o indivíduo subordinado à terra (esta
maior do que ele), mas evidenciam os dramas e problemas dos seus personagens.
Em relação aos seus personagens, como vimos, apesar de três homens ocuparem
o protagonismo das narrativas – Alfredo, Eutanázio e Missunga – as mulheres, presentes
nas obras, contribuem tanto para o enredo e os dramas dos personagens centrais, como
também colaboram para a narrativa como um todo ao trazer à cena as suas próprias
histórias.
Assim, as personagens, tais como Mãe Ciana, Magá e Isaura circulam pelas obras,
entram em contato com as centrais, incrementando seus enredos e assumindo, em certos
momentos, um papel de destaque ao evidenciar os seus próprios dramas. Em outras
palavras, elas não são apenas um suporte para os acontecimentos que envolvem os
protagonistas homens, mas também se destacam nas narrativas por meio das suas próprias
trajetórias, quer sejam elas de enfrentamento do sistema patriarcal, ou de submissão a ele.
As personagens femininas da família negra de Alfredo são um importante exemplo
de transgressão dentro da obra dalcidiana, pois elas vivem da força do seu próprio trabalho
especializado – Isaura é costureira, Magá é cozinheira e Mãe Ciana trabalha com cheiros –
de tal forma que são solicitadas a prestar seus serviços junto aos mais ricos e importantes
da cidade e, apesar de trabalharem em constante movimento pela cidade, conseguem viver
uma vida tranquila, longe da miséria. É importante mencionar que enquanto seus parentes
homens são empregados assalariados, essas mulheres são donas de seu próprio negócio,
ou seja, o lucro desse trabalho pertence a elas em sua totalidade.

446
Referências

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COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. São Paulo: Global, 1999. 6 vols.
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FURTADO, Marlí Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir.
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SALLES, Vicente. Chão de Dalcídio. In: JURANDIR, Dalcídio. Marajó. 3 ed. Belém: CEJUP,
1992, p.360-381.

447
A REPRESENTATIVIDADE NEGRA COMO CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE: UMA
ANÁLISE DO CONTO LUMBIÁ, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Cristiane de Jesus Cordeiro Campelo1


https://doi.org/10.29327/527231.5-30
Jorge Haber Resque2

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a representatividade negra como construção
de identidade a partir da leitura do conto Lumbiá, do livro Olhos d’Água (2016), da escritora
mineira Conceição Evaristo. Os procedimentos metodológicos estão pautados,
primeiramente, na leitura de textos referentes à temática do negro para, em seguida, fazer
uma análise discursiva do conto. E, como suporte teórico para a realização deste trabalho,
tomou-se os estudos de Hall (1999; 2003; 2016), Munanga (2009), Moreira (2019), Souza
(1983), Gonzalez e Hasenbalg (1982), Mbembe (2014) e M’Bow (2010), além da Lei
10.639/2003 que obriga as escolas públicas e privadas a adotarem o ensino de história e
cultura africana e afro-brasileira nos seus currículos. Desta forma, este trabalho pretende
comprovar que a representatividade negra nos espaços públicos e privados é fundamental
para a construção de sua identidade enquanto sujeito na sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Representatividade negra. Construção de Identidade. Conceição


Evaristo. Lumbiá.

ABSTRACT

This research aims to analyze black representativeness as identity construction through the
reading of Lumbiá, a short story present in the book Olhos d’água (2016), writter by the
Brazilian writer Conceição Evaristo, born in Minas Gerais. The methodological procedures
are first based on the reading of texts which refer to black people’s contents to, then, produce
a critical discourse analysis about the story. As theoretical basis, the following analysis took
not only the studies of Hall (1999; 2003; 2016), Munanga (2009), Moreira (2019), Souza
(1983), Gonzalez and Hasenbalg (1982), Mbembe (2014) and, finally, M’Bow
(2010), but also law nº 10.639/2003, which compels public and private schools to adopt
African and African Brazilian History and Culture into the school curriculum.Therefore, this
paper intents to attest that the black representativity on public and private places is
fundamental to identity construction of oneself in society.

KEYWORDS: Black representativity. Identity construction. Conceição Evaristo. Lumbiá.

Introdução

Pós-graduanda em Ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia –


FIBRA.
Mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade da Amazônia – UNAMA e professor
do curso de Letras da Faculdade Integrada Brasil Amazônia – FIBRA.

448
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a maioria da
população brasileira se autodeclara negra, entretanto, não há presença maciça dessas
pessoas ocupando as estruturas de poder. Por que isso acontece? Por que ao ligarmos a
televisão, ao folhearmos livros e revistas nota-se esta ausência? Ou quando aparecem, em
sua maioria, tem a imagem estereotipada e estigmatizada? Quais são as explicações?
Quais são as justificativas? O que levou a população negra a esse destino? Estas são
algumas inquietações que norteiam esta pesquisa. As respostas a respeito destes
questionamentos encontram-se no passado. Por isso, foi necessário visitar o passado
histórico do Brasil e do continente africano com a finalidade de identificarmos fatos que
contribuíram para a construção da imagem do negro como ser inferior, sem cultura e sem
história. E, como exemplo, podemos citar a colonização, a escravidão e as teorias racistas
postuladas pelos pensadores do século XVIII.
Para tanto, recorreu-se aos conceitos de Raça postulados pelos autores Stuart Hall
(2003), AchilleMbembe (2014), Adilson Moreira (2019) e Frantz Fanon (2014); História da
África, com MahtarM’Bow (2010); História do negro no Brasil, com Albuquerque e Filho
(2006), Del Priore e Venancio (2010) e Neuza Souza (1983); Identidade e negritude, com
KabengeleMunanga (2009) e Stuart Hall (1999); Movimentos negros, com Domingues
(2016) e Gonzalez e Hasenbalg (1982); e a Lei nº 10.639/2003, que obriga as escolas
públicas e particulares a incluírem nos seus currículos o ensino de história e cultura africana
e afro-brasileira. E, a partir deste repertório teórico, iremos analisar a importância da
representatividade negra como construção de identidade no conto Lumbiá, que faz parte do
livro Olhos d’Água (2016), da escritora negra Conceição Evaristo.

A representação do negro no contexto da colonização

Primeiramente, faz-se necessário apontar alguns conceitos sobre raça para que
possamos nos situar de como determinadas sociedades subjugaram outras.
Stuart Hall (2003, p. 69) conceitua raça como uma categoria não científica. Segundo
o referido autor, ―Raça é uma construção política e social. É uma categoria discursiva em
torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão –
ou seja, o racismo‖. Neste sentido, o racismo, como prática discursiva, possui uma lógica
própria. Ou seja, ―tenta justificar as diferenças sociais e culturais que legitimam a exclusão
racial em termos de distinções genéticas e biológicas, isto é, a natureza‖. Segundo o autor,
essa ―referência discursiva à natureza é algo que o negro compartilha com o anti-semitismo
e com o sexismo (em que também a biologia é o destino), porém, menos com a questão de
classe‖. Para Hall, o problema é que o nível genético não é imediatamente visível. Então,

449
nesse tipo de discurso, as diferenças genéticas (supostamente escondidas nos genes) são
―materializadas‖ e podem ser ―lidas‖ nos significantes corporais visíveis e facilmente
reconhecíveis, tais como cor de pele, as características físicas do cabelo, as feições do
rosto, o tipo físico, entre outros (HALL, 2003, p. 70).
AchilleMbembe (2014) pontua que se aprofundarmos a questão, a raça ―será um
complexo perverso, gerador de medos e de tormentos, de problemas do pensamento e de
terror, mas sobretudo de infinitos sofrimentos e, eventualmente, de catástrofes‖. Para
Mbembe, a raça não existe enquanto fato natural físico, antropológico ou genético. Portanto,
neste caso, a raça não passa de uma ficção útil, de uma construção fantasista ou de uma
projeção ideológica cuja função é desviar a atenção de conflitos antigamente entendidos
como mais verossímeis (MBEMBE, 2014, p. 25).
Adilson Moreira (2019) conceitua raça como uma representação cultural que
estrutura relações de poder dentro de uma sociedade. Segundo o autor, ―ela pode ser
utilizada para a legitimação de normas legais que tratam indivíduos de forma arbitrária‖, ou
ela ―pode permanecer invisível em sociedades nas quais privilégios raciais sistemáticos
tornam a discriminação direta uma forma obsoleta de manutenção de hierarquias entre
negros e brancos‖. Para o referido autor:

Aqueles grupos que possuem poder político e econômico criam sentidos


culturais que os permitem atribuir valores a certos traços a partir das quais
identidades e lugares sociais são instituídos. Portanto, o conceito de raça é
produto de um processo de atribuição de significados que expressa o poder
de grupos majoritários de construir sentidos que corroboram relações raciais
hierárquicas. Por ser uma construção cultural, a raça pertence ao mundo
simbólico, expressando sentidos que são criados com o propósito específico
da dominação. [...] Assim, o processo de racialização de grupos humanos é
um exercício de poder que proporciona os instrumentos para a dominação
de certas populações, pois elas são criadas como diferentes e inferiores.
(MOREIRA, 2019, p. 44-45)

Contra essa relação de poder e dominação apontada por Moreira, Frantz Fanon, um
renomado estudioso sobre a questão racial, entende que raça é também o nome que deve
dar-se ao ressentimento amargo, ao irrepreensível desejo de vingança, isto é, a raiva
daqueles que lutaram contra a sujeição e foram, não raramente, obrigados a sofrer um sem-
fim de injúrias, todos os tipos de violações e de humilhações e inúmeras ofensas (apud
MBEMBE, 2014, p. 26).
A partir desses conceitos apontados por autores como Hall, Mbembe, Moreira e
Fanon podemos construir um entendimento de como a Europa justificou suas conquistas
territoriais com base na invenção da superioridade racial. Cabe ressaltar, que as
descobertas de Gregor Mendel na genética, a obra de Charles Darwin, A origem das

450
espécies, e uma série de novos conhecimentos científicos foi aproveitada para sustentar as
premissas da supremacia branca (MOORE, 2016, p. 63 – grifo nosso).
De acordo com Mbembe (2014, p. 26-28):

Na sua ávida necessidade de mitos destinados a fundamentar o seu poder,


o hemisfério ocidental considerava-se o centro do globo, o país natal da
nação, da vida universal e da verdade da Humanidade. Sendo o bairro mais
civilizado do mundo, só o Ocidente inventou um ―direito de gentes‖. Só ele
conseguiu edificar uma sociedade civil das nações compreendida como
espaço público de reciprocidade do direito. Só ele deu origem a uma ideia
de ser humano com direitos civis e políticos, permitindo-lhe desenvolver os
seus poderes privados e públicos como pessoa, como cidadão que pertence
ao gênero humano e, enquanto tal, preocupado com tudo o que é humano.
Só ele codificou um rol de costumes, aceites por diferentes povos, que
abrangem os rituais diplomáticos, as leis da guerra, os direitos de conquista,
a moral pública e as boas maneiras, as técnicas do comércio, da religião e
do governo. (MBEMBE, 2014, p. 26-27)

Neste sentido, podemos compreender como o processo de colonização europeia


apagou e silenciou a história e a cultura do continente africano. Segundo o pesquisador
MahtarM’Bow (2010), durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie
esconderam do mundo a real história da África. Para o autor, as sociedades africanas
passavam por sociedades que não podiam ter história. Mesmo com pesquisas efetuadas
nas primeiras décadas do século XX, muitos especialistas de origem não africana,
sustentavam essa ideia com a justificativa de que por falta de fontes e documentos escritos
tais sociedades não podiam ser objeto de estudo científico. O autor aponta que durante a
escrita da história da África, recorria-se somente a fontes externas, ou seja, tomava-se como
referência o passado da Europa, não o percurso dos povos africanos, seus modos de
produção, suas instituições políticas ou suas relações sociais. Segundo o autor, outro
fenômeno que contribuiu negativamente para a história da África foi o aparecimento de
estereótipos raciais devido à colonização e o tráfico negreiro:

Um outro fenômeno que grandes danos causou ao estudo do passado


africano foi o aparecimento, com o tráfico negreiro e a colonização, de
estereótipos raciais criadores de desprezo e incompreensão, tão
profundamente consolidados que corromperam inclusive os próprios
conceitos de historiografia. Desde que foram empregadas as noções de
―brancos‖ e ―negros‖, para nomear genericamente os colonizadores,
considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram levados a
lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado pela
pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria entre outras, e
destinado ao trabalho forçado, o africano veio a simbolizar, na consciência
de seus dominadores, uma essência racial imaginária e ilusoriamente
inferior: a de negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história
dos povos africanos no espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história,
em cuja apreciação das realidades históricas e culturais não podia ser
senão falseada. (M’BOW, 2010, p. 21-22 – grifo do autor)

451
A partir do que foi exposto por M’Bow, entende-se que a noção de raça permite que
as outras sociedades não europeias sejam vistas como inferiores. Neste caso, o africano
devido à pigmentação de sua pele, característica visível, perde sua humanização ao ser
transformado à categoria de mercadoria. Para Burns (apud FANON, 2008, p. 110), ―o
preconceito de cor nada mais é do que a raiva irracional de uma raça por outra, o desprezo
dos povos fortes e ricos por aqueles que eles consideram inferiores‖ e ―como a cor é o sinal
exterior mais visível da raça, ela tornou-se o critério pelo qual os homens são julgados‖. Sob
essa perspectiva, MBembe (2014, p. 38), aponta que ―uma vez identificados e classificados
os gêneros, as espécies e as raças, nada resta senão indicar através de que diferenças eles
se distinguem uns dos outros‖. Neste sentido, no pensamento ocidental, o Negro

representado como protótipo de uma figura pré-humana incapaz de


superar sua animalidade [...] O Negro não existe, no entanto, enquanto tal.
constantemente produzido. Produzir o Negro é produzir um vínculo social
de submissão e um corpo de exploração, isto é, um corpo inteiramente
exposto à vontade de um senhor. [...] Mercê de trabalhar à corveia, o Negro
também nome de injúria, o símbolo do homem que enfrenta o chicote e o
sofrimento num campo de batalha em que se opõem grupos e facções
sociorracialmente segmentadas. (MBEMBE, 2014, p. 39-40)

Segundo MBembe, o termo Negro aparece no início do século XVI em um texto em


língua francesa. A partir do século XVIII, com a expansão do tráfico negreiro, o uso deste
termo tornou-se mais recorrente. No pensamento ocidental, o Negro – ou seja, as pessoas
de origem africana – foi definido como um ser humano vivo e com formas bizarras,
queimado pela irradiação do fogo celeste, dotado de uma petulância excessiva, dominado
pela alegria e abandonado pela inteligência. O Negro era, antes de tudo, o resto, um corpo,
um membro, órgãos, uma cor, um odor, carne humana e carne animal, um conjunto inaudito
de sensações (MBEMBE, 2014, p. 76). De acordo com Munanga (2009):

Na simbologia de cores da civilização europeia, a cor preta representa uma


mancha moral e física, a morte e a corrupção, enquanto a branca remete à
vida e à pureza. Nessa ordem de ideias, a Igreja católica fez do preto a
representação do pecado e da maldição divina. Por isso, nas colônias
ocidentais da África, mostrou-se sempre Deus como um branco velho de
barba, e o Diabo um moleque preto com chifres e rabinho. (MUNANGA,
2009, p. 29)

A partir dessa concepção de raça inferior categorizada pelo pensamento ocidental, e


distante do continente africano devido aos diversos tipos de diásporas como, por exemplo, a
escravidão, o negro teve como desafio a sua sobrevivência em terras desconhecidas. De
acordo com Albuquerque e Filho (2006), após uma longa travessia atlântica e do
desembarque nos portos das grandes cidades do Brasil, o negro africano teria que conviver
com o trauma do desenraizamento das terras dos ancestrais e com a falta de amigos e

452
parentes que deixaram na África. E, viver sob a escravidão significava submeter-se à
condição de propriedade e passíveis de serem leiloados, vendidos, comprados, permutados
por outras mercadorias, doados e legados. Sob o domínio de seus senhores trabalhariam de
sol a sol nos mais diversos tipos de ocupações (ALBUQUERQUE E FILHO, 2006, p. 65).

A (in)expressiva presença de negros no Brasil

Vindos de diversas regiões da África, estima-se que o número de africanos


escravizados e forçados a migrar para o ―Novo Mundo‖ varia de doze a cem milhões de
pessoas (CHRISTIAN, 2009, p. 149). Entre 1575 e 1591 foram embarcados da região de
Angola mais de 52 mil africanos para o Brasil (ALBUQUERQUE E FILHO, 2006, p. 33).
Entre 1821 e 1830 chegaram anualmente 43 mil africanos em portos brasileiros e, até 1850
– ano da proibição do tráfico negreiro – cerca de 37 mil escravos negros por ano
(DEL PRIORE E VENANCIO, 2010, p.131)
Segundo Albuquerque e Filho (2006) por mais de trezentos anos a maior parte da
riqueza produzida e consumida no Brasil, ou exportada para outros locais, foi resultado da
exploração do trabalho escravo. As atividades desempenhadas pelas mãos escravas foram
diversas: extração de ouro e diamantes das minas, plantação e colheita de cana, café,
cacau, algodão e outros produtos tropicais de exportação. Além disso, os escravos
trabalhavam na agricultura de subsistência, na criação de gado, na produção de charque,
nos ofícios manuais e nos serviços domésticos. Nas cidades desempenhavam trabalhos
como transporte de objetos e pessoas e constituíam a mão de obra mais numerosa
empregada na construção de casas, pontes, fábricas, estradas e diversos serviços urbanos.
Além destes, distribuíam alimentos, eram vendedores ambulantes e quitandeiros
(ALBUQUERQUE E FILHO, 2006, p. 65).
Quanto à libertação dos negros, o Brasil foi o último país a abolir a escravidão. E isso
aconteceu sob forte pressão da Inglaterra e de movimentos internos. Além da rebeldia dos
escravos como fugas, envenenamentos, quilombos e revoltas, Del Priore e Venancio
destacam três grupos que contribuíram para a extinção da escravatura:

Os emancipacionistas, partidários da extinção lenta e gradual da escravidão;


os abolicionistas, que propunham a libertação imediata dos escravizados; e
por fim, como seria de esperar, os escravistas, defensores do sistema ou,
pelo menos, da indenização dos proprietários caso a abolição fosse
sancionada. (DEL PRIORE E VENANCIO, 2010, p. 147)

Percebe-se que dos três grupos apenas os abolicionistas lutavam pela libertação
imediata dos escravizados. Esse grupo contribuiu para que houvesse uma mobilização
popular com o objetivo de alterar a estrutura da sociedade brasileira, como afirmam Del
Priore e Venancio (2010, p. 149):

453
Os abolicionistas também inovaram na forma de organização. Em vez de
reuniões secretas, como ocorria na maçonaria, que tanto envolveu os
políticos do Império, eles formavam clubes abertos a quem quisesse
participar, lançavam jornais, assim como organizavam palestras em teatros
e comícios nas ruas. Representavam, por assim dizer, uma nova forma de
fazer política, uma forma que fugia às rédeas dos oligarcas e poderosos
rurais. Foi por esse movimento que surgiram modernas lideranças negras,
como André Rebouças e José do Patrocínio, cuja atuação teve repercussão
nacional. Não por acaso, os abolicionistas também foram os primeiros a
defender a distribuição de terras entre os ex-escravos e a criação de escola
pública para os filhos dos futuros libertos. (DEL PRIORE E VENANCIO,
2010, p. 149)

De acordo com a citação acima, a luta pelo fim da escravidão nos apresenta duas
lideranças negras significativas: André Rebouças e José do Patrocínio. As ideias propostas
por estes abolicionistas defendiam a distribuição de terras aos ex-escravos com o propósito
de que estes se estabelecessem com algo para a própria sobrevivência. E, além disso, a
criação de escola pública com o objetivo de inserir os filhos dos futuros libertos no mundo da
leitura e da escrita. Isto seria uma espécie de reparação àqueles que tiveram sua mão de
obra explorada desde que chegaram ao território brasileiro.
No entanto, vale ressaltar, que a Lei Áurea assinada pela princesa Isabel em 13 de
maio de 1888 – sob pressão da Inglaterra e dos diversos movimentos que lutavam pelo fim
da escravidão – não beneficiou os negros. Pois, não houve políticas públicas para que essas
pessoas fossem incluídas na sociedade. Além disso, os negros teriam outro problema para
enfrentar: a cor da pele. Segundo Schwarcz e Starling (2015, p. 145-146), ―a cor se tornou
um marcador social fundamental‖. As ―pessoas de cor‖ sofriam com todo tipo de
discriminação, pois sua tonalidade de pele indicava a origem e o passado escravocrata.
Desta forma, ao transformar o africano em escravo, a sociedade escravista, definiu o negro
como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação
com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior (SOUZA,
1983, p. 19).
Nessa perspectiva, de acordo com Albuquerque e Filho (2006, p. 68-69) a
escravidão:

[...] moldou condutas, definiu desigualdades sociais e raciais, forjou


sentimentos, valores e etiquetas de mando e obediência. A partir dela
instituíram-se os lugares que os indivíduos deveriam ocupar na sociedade,
quem mandava e quem devia obedecer. Os cativos representavam o grupo
mais oprimido da sociedade, pois eram impossibilitados legalmente de
firmar contratos, dispor de suas vidas e possuir bens, testemunhar em
processos judiciais contra pessoas livres, escolher trabalho e empregador.
[...] a escravidão foi montada para a exploração econômica, ou de classe,
mas ao mesmo tempo ela criou a opressão racial. (ALBUQUERQUE E
FILHO, 2016, p. 68-69)

454
Sob essa forte pressão, a luta do negro pela sua ascensão na sociedade
brasileira opressora tornou-se, simultaneamente, lenta e contínua, como afirma Souza:

Lutando, muitas vezes, contra a maré da dominação, o negro foi, aos


poucos, conquistando espaços que o integravam à ordem social competitiva
e lhe permitiam classificar-se no sistema vigente de classes sociais. A
ascensão surgia, assim, como um projeto cuja realização traria consigo a
prova insofistimável dessa inserção. [...] E mais: retirando-o da
marginalidade social, onde sempre estivera aprisionado, a ascensão social
se fazia representar, ideologicamente, para o negro, como instrumento de
redenção econômica, social e política, capaz de torná-lo cidadão
respeitável, digno de participar da comunidade nacional. (SOUZA, 1983, p.
21)

Percebe-se como a negação da história e da cultura do negro juntamente com o mito


da supremacia racial, propagados desde o continente africano durante o período da
colonização e da escravidão, interferiu drasticamente na ascensão do negro na sociedade.
O negro via apenas o branco como modelo, como pontua Souza (1983):

[...] naquela sociedade, o cidadão era o branco, os serviços respeitáveis


eram os ―serviços-de-branco‖, ser bem tratado era ser tratado como branco.
Foi com a disposição básica de ser gente que o negro organizou-se para a
ascensão, o que equivale dizer: foi com a principal determinação de
assemelhar-se ao branco – ainda que tendo que deixar de ser negro – que o
negro buscou, via ascensão social, tornar-se gente. (SOUZA, 1983, p. 21)

A partir de Souza, percebe-se o quanto o processo de ascensão social do negro na


sociedade foi cruel, pois ele teria que negar suas origens para tornar-se um cidadão. Neste
caso, como aponta Nogueira (apud CARNEIRO, 2005, p. 43), ―o branco encarna todas as
virtudes, a manifestação da razão, do espírito e das ideias: eles são a cultura, a civilização,
em uma palavra, a humanidade‖.

A luta pela afirmação da identidade negra

Devido à colonização, à escravidão e o mito da supremacia racial impostos pelas


sociedades ditas superiores, como foi exposto anteriormente, a imagem do negro na
sociedade brasileira tornou-se estereotipada e estigmatizada. Para Frantz Fanon, ―a
civilização branca, a cultura europeia, impuseram ao negro um desvio existencial‖ (FANON,
2008, p. 31). E, a partir do momento que o negro toma consciência disso a luta pela
afirmação de sua identidade na sociedade torna-se inevitável.
Munanga (2009, p. 12-13) elenca três fatores que são essenciais para a construção
de uma identidade. O primeiro, o fator histórico, constitui o cimento cultural que une os
elementos diversos de um povo através do sentimento de continuidade histórica vivido pelo
conjunto de sua coletividade. Neste fator, o essencial para cada povo é reencontrar o fio

455
condutor que o liga a seu passado ancestral o mais distante possível. E, por meio da
consciência histórica, cada povo faz um esforço para conhecer sua verdadeira história e
transmiti-la às futuras gerações. O segundo, o fator linguístico, diz respeito à preservação e
criação das diversas formas de linguagem para que a identidade seja mantida. Neste caso,
destaca-se a linguagem esotérica nos terreiros religiosos, os estilos de cabelos, os
penteados, os estilos musicais, a conservação de estruturas linguísticas, entre outros. O
terceiro e último, o fator psicológico, entre outros, nos leva a questionar sobre o
temperamento do negro em relação ao temperamento do branco como uma marca de
identidade.
Munanga (2009) entende que, em última instância:

A identidade de um grupo funciona como uma ideologia na medida em que


permite a seus membros se definir em contraposição aos membros de
outros grupos para reforçar a solidariedade existente entre eles, visando a
conservação do grupo como entidade distinta. Mas pode também haver
manipulação da consciência identitária por uma ideologia dominante quando
considera a busca da identidade como um desejo separatista. (MUNANGA,
2009, p. 13)

Nesse sentido, para Munanga ―o conceito de identidade recobre uma realidade muito
mais complexa do que se pensa, englobando fatores históricos, psicológicos, linguísticos,
culturais, político-ideológicos e raciais‖ (MUNANGA, 2009, p. 14). Ainda de acordo com
Munanga, a recuperação da identidade negra começa pela aceitação dos atributos físicos de
sua negritude, antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e
psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade
(MUNANGA, 2009, p. 19).
Se partirmos do entendimento de Stuart Hall sobre identidade, quando ele afirma que
―as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e
transformadas no interior da representação‖ (HALL, 1999, p. 48 – grifo do autor), podemos
nos questionar: quais são as representações do negro no contexto da formação da
identidade brasileira? Automaticamente, associa-se à escravidão. Contra essa imagem
reduzida do negro, a partir do século XX, surgem no Brasil entidades (ou associações) de
negros que tinham como objetivo legitimar sua existência dentro da sociedade diante da
legislação. Essas entidades eram o resultado de uma confluência entre o movimento
abolicionista, as sociedades de ajuda e da alforria e dos agrupamentos culturais negros
(CARDOSO, 1981 apud GONZALEZ E HASENBALG, 1983, p. 21).

O (s) Movimento (s) Negro (s) no Brasil

456
Gonzalez e Hasenbalg (Idem, p. 22) apontam que as entidades negras, dependendo
da atividade desenvolvida, dividiam-se em recreativas (com perspectivas e anseios
ideológicos elitizados) ou culturais de massa (afoxés, cordões, maracatus, ranchos, blocos e
samba).Nos anos de 1931 surge a Frente Negra Brasileira3 (FNB) como o primeiro
movimento ideológico pós-abolição e reuniu os dois tipos de entidades. Esse movimento,
juntamente com a imprensa negra, tornou-se relevante ao mobilizar milhares de negros
contra o sistema opressor.
De acordo com Domingues (2016), a receptividade da população de ascendência
africana em relação à Frente Negra Brasileira foi bastante positiva. Nos anos de 1936, por
exemplo, noticiava-se que a FNB possuía sessenta delegações distribuídas no interior de
São Paulo e em outros estados (Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo). No início, a
FNB, localizava-se numa sala do Palacete Santa Helena. Entretanto, com o aumento das
adesões, a sede mudou-se para um casarão na Rua da Liberdade. Com um espaço mais
amplo, havia salas da presidência, da secretaria, da tesouraria, de reuniões, entre outros.
Além disso, ofereciam os seguintes serviços à população: salão de beleza, barbeiro, bar,
local para jogos, dentistas e alistamento eleitoral (DOMINGUES, 2016, p. 337).
Em junho de 1978, surgiu outro movimento relevante que lutava pela causa negra.
Trata-se do Movimento Negro Unificado (MNU). Este movimento, entre outras pautas, tinha
como objetivo combater o racismo. E, logo no mês seguinte, o MNU convocou a população
para um ato público contra o racismo, como podemos ver nos dois parágrafos introdutórios
do documento:

Nós, Entidades Negras, reunidas no Centro de Cultura e Arte Negra no dia


18 de junho, resolvemos criar um Movimento no sentido de defender a
Comunidade Afro-Brasileira contra a secular exploração racial e desrespeito
humano a que a Comunidade é submetida.
Não podemos mais calar. A discriminação racial é um fato marcante na
sociedade brasileira, que barra o desenvolvimento da Comunidade Afro-
Brasileira, destrói a alma do homem negro e sua capacidade de realização.
(GONZALEZ E HASENBALG, 1982, p. 43)

De acordo com Gonzalez e Hasenbalg (1982), percebe-se a consciência racial da


população oprimida como podemos constatar nas últimas linhas do documento:

Não podemos mais aceitar as condições em que vive o homem negro,


sendo discriminado da vida social do país, vivendo no desemprego,
subemprego e nas favelas. Não podemos mais consentir que o negro sofra
as perseguições constantes da polícia, sem dar resposta. TODOS AO ATO
PÚBLICO CONTRA O RACISMO
CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

3 De acordo com Domingues (2016), a Frente Negra Brasileira (FNB) foi uma associação que existiu de 1931 a

1937 e mobilizou milhares de negros e negras a lutarem por seus direitos. Abandonados pelo sistema político
tradicional e acumulando a experiência de décadas em suas associações, um grupo de “homens de cor” fundou a
FNB no dia 16 de setembro de 1931.

457
CONTRA A OPRESSÃO POLICIAL
PELO FORTALECIMENTO E UNIÃO DAS ENTIDADES AFRO-
BRASILEIRAS (GONZALEZ E HASENBALG, 1982, p. 44)

O trecho nos mostra, claramente, a indignação do Movimento Negro Unificado (MNU)


contra a discriminação e a opressão que a população negra estava sujeita. Os autores
Gonzalez e Hasenbalg (1982, p. 15), com base na teoria do ―lugar natural‖ de Aristóteles,
fazem uma reinterpretação dessa situação:

Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca e existência de uma
evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominados e
dominadores. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias
amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do
campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento:
desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas etc., até a polícia
formalmente constituída. Desde a casa-grande e do sobrado, aos belos
edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o
lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas,
cortiços, porões, invasões, alagados, conjuntos ―habitacionais‖ (cujos
modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o
critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do
espaço. (GONZALEZ E HASENBALG, 1982, p. 15)

De acordo com os autores, o MNU tornou-se uma entidade que simbolizava


resistência diante das condições precárias que as pessoas negras enfrentavam na
sociedade pós-abolição. Desta forma, buscavam por meio de suas manifestações a
valorização da história e da cultura negra, historicamente, menosprezada e vista como
inferior do ponto de vista daqueles que enalteciam o que era europeu e não eram empáticos
com a atual situação da população negra.

A Lei 10.639/2003

No que se refere ao ambiente escolar, as reivindicações e as propostas do


Movimento Negro, ao longo do século XX, foram significativas para a reconstrução, a
inclusão e a valorização da história e da cultura afro-brasileira e africana. A criação da Lei
10.639/2003, sancionada pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, torna-se
um exemplo dessa luta, pois ela obriga as escolas públicas e particulares a adotarem nos
seus currículos o ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras, como podemos
observar:

Este parecer visa a atender os propósitos expressos na indicação CNE/CP


6/2002, bem como regulamentar a alteração trazida à Lei 9.394/96 de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10.639/2003, que
estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
na Educação Básica. Desta forma, busca cumprir o estabelecido na
Constituição Federal nos seus Art. 5º, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1º do Art. 242,
Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26 A e 79 B na Lei 9.394/96

458
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à
igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual
direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do
direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros.
(BRASIL, 2004, p. 9)

No excerto acima, podemos perceber que houve uma alteração na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, justamente, para favorecer àqueles que também contribuíram
para a formação da nação brasileira e que por muito tempo ficaram à margem da história. O
parecer da Lei 10.639/03 destinava-se:

Aos administradores dos sistemas de ensino, de mantenedoras de


estabelecimentos de ensino, aos estabelecimentos de ensino, seus
professores e a todos implicados na elaboração, execução, avaliação de
programas de interesse educacional, de planos institucionais, pedagógicos e
de ensino. [...] às famílias dos estudantes, a eles próprios e a todos os
cidadãos comprometidos com a educação dos brasileiros, para nele
buscarem orientações, quando pretenderem dialogar com os sistemas de
ensino, escolas e educadores, no que diz respeito às relações étnico-raciais,
ao reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à
diversidade da nação brasileira, ao igual direito à educação de qualidade,
isto é, não apenas direito ao estudo, mas também à formação para a
cidadania responsável pela construção de uma sociedade justa e
democrática. (BRASIL, 2004, p. 10)

Desta forma, a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) estabelecia que o Estado e a
sociedade tomassem medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros dos
danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime
escravista.
De acordo com a referida lei, o reconhecimento da história e da cultura da população
negra para a sociedade brasileira, entre outros pontos, implica:

Justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como


valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos grupos que
compõem a população brasileira. E isto requer mudança nos discursos,
raciocínios, lógicas, gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras.
Requer também que se conheça a sua história e cultura apresentadas,
explicadas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia
racial na sociedade brasileira; [...] valorização e respeito às pessoas negras,
sua descendência africana, sua cultura e história. Significa buscar,
compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por
tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras,
piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços
físicos, a textura de seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz
africana. (BRASIL, 2004, p. 11-12)

Sendo assim, caberia aos sistemas de ensino seu importante papel para a
desconstrução e eliminação de todos os tipos de discriminações contra a população negra,
contribuindo positivamente para construção e afirmação de sua identidade na sociedade
brasileira, pois ―o racismo, as desigualdades e discriminações correntes na sociedade‖

459
perpassam por esse ambiente que deve ser plural dada a diversidade cultural (BRASIL,
2004, p. 14).

A autora: Conceição Evaristo

Maria da Conceição Evaristo de Brito ou, simplesmente, Conceição Evaristo, como é


conhecida, ela nasceu na favela Pendura Saia, em Belo Horizonte (Minas Gerais), no dia 29
de novembro de 1946. Graduou-se em Letras pela UFRJ, fez mestrado em Literatura
Brasileira pela PUC do Rio de janeiro (1996) e doutorado em Literatura Comparada pela
Universidade Federal Fluminense (2011). Sua estreia na literatura aconteceu em 1990 com
a publicação de seis poemas na série Cadernos Negros. Entre suas principais obras estão
PonciáVicêncio (2003), Becos da memória (2005), Poemas de recordação e outros
movimentos (2008), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) e Olhos d’Água, publicado
pela primeira vez em 2014.
A respeito de sua forma de escrita, em entrevista ao jornalista Luis Nassif, do jornal
GGN (Grupo Gente Nova), a escritora declara: ―Eu sempre tenho dito que a minha condição
de mulher negra marca a minha escrita, de forma consciente inclusive. Faço opção por
esses temas, por escrever dessa forma. Isso me marca como cidadã e me marca como
escritora também‖. Sobre essa forma de escrita, Conceição Evaristo chama de
―escrevivência‖, na qual ela define na referida entrevista como ―escrita da vivência da mulher
negra na sociedade brasileira‖.Desta forma, pode-se dizer que a escrita de Conceição
Evaristo pertence à Literatura Afro-Brasileira. E, por esse tipo de literatura, Lobo (apud
DUARTE, p. 377, 2011) explica que trata-se de uma ―Produção literária [...] desenvolvida por
um autor negro ou mulato que escreve sobre sua raça dentro do significado do que é ser
negro, da cor negra, de forma assumida, discutindo os problemas que a concernem: religião,
sociedade, racismo‖.

“Lumbiá”

Pela perspectiva do narrador, o conto narra a história de um menino que trabalha nas
ruas, juntamente com sua irmã Beba e seu colega Gunga, vendendo flores, amendoins e
chicletes para ajudar no sustento de sua família. Dos três produtos, o personagem preferia
vender flores. Para obter sucesso nas vendas, o menino inventava truques como, por
exemplo, chorar copiosamente. Entretanto, nesses choros, sempre tinha um fundo de
verdade. Havia uma data significativa para ele: o Natal. Ele gostava de apreciar o presépio
com a imagem de Jesus Cristo e seus pais. Pois, a família e a pobreza do menino Jesus
assemelhavam-se à sua. Porém menos na cor, ou seja, aquele menino, deitado na

460
manjedoura, não era negro. A empatia de Lumbiá pela imagem do menino Jesus, levou-o à
morte. Ao entrar furtivamente em um local onde havia uma exposição de um presépio e
levar consigo a imagem do Menino Jesus, Lumbiá, perseguido pelo segurança ao atravessar
a rua, foi atropelado e não resistiu aos ferimentos.
O conto narrado em terceira pessoa, no início, chama à atenção do leitor por dois
motivos: os nomes incomuns dados aos personagens (Lumbiá, Beba e Gunga) e a imagem
de crianças trabalhando nas ruas, como podemos constatar:

Lumbiá trocou rapidamente a lata de amendoim pela caixa de chicletes com


sua irmã Beba. Fazia um bom tempo que estava andando para lá e para cá,
e não havia conseguido vender nada. Quem sabe teria mais sorte se
oferecesse chicletes? E, se não desse certo também, procuraria o colega
Gunga. Juntos poderiam vender flores. (EVARISTO, 2016, p. 81)

Neste fragmento, Conceição Evaristo apresenta a realidade de muitas famílias


negras brasileiras, ou seja, crianças que precisam abandonar a escola para auxiliar no
sustento da família. Percebe-se também a falta de estrutura familiar do menino negro, que
na ausência do pai, pois este não é mencionado em nenhum momento do conto, assume
essa responsabilidade. E, para tanto, sai às ruas para vender amendoins, chicletes e flores.
Essa realidade apontada anteriormente por Albuquerque e Filho (2016, p. 65) atravessa
séculos, pois desde o tráfico negreiro a população negra sofre com esse tipo de
desorganização familiar. Ainda segundo os autores, no Brasil escravocrata, muitos negros
trabalhavam como vendedores ambulantes para os seus senhores. Séculos depois,
Conceição Evaristo, por meio da sua ―escrevivência‖, nos apresenta o personagemLumbiá
exercendo o mesmo tipo de atividade. Isso comprova o quanto a ausência de políticas
públicas, desde o período pós-escravidão, contribui negativamente para a ascensão da
população negra até os dias atuais.
A narrativa, por meio do olhar atento de Conceição Evaristo, mostra-nos os impactos
da desigualdade social. Enquanto os filhos daqueles que detém o poder ocupam seu tempo
com escola, cursos e esportes, Lumbiá recorre a truques que misturam ficção e realidade
para vender seus produtos, por isso ―ora contava sobre a surra que havia levado da mãe,
ora sobre a mercadoria que estava ficando encalhada, ou, ainda, sobre o dinheiro, fruto de
seu trabalho, que tinha sido tomado por um menino maior‖ (EVARISTO, 2016, p. 65). Assim
como no passado as pessoas escravizadas eram punidas caso não vendessem os produtos
dos seus senhores, como foi apontado por Albuquerque e Filho (2016, p. 65),
Lumbiátambém sofria punição da mãe caso não levasse dinheiro para casa.
Entretanto, o sofrimento do menino amenizava-se quando o período natalino se
aproximava. Sabe-se que nesta data costuma-se reunir a família. Mas, no caso do
personagem, que possuía uma família desestruturada, pobre e sem a representatividade da

461
figura do pai, tornava-se impossível tal acontecimento. Por isso, o único símbolo do Natal
que fascinava o menino era o presépio com a imagem do Menino Jesus:

Todos os anos, desde pequeno, em suas andanças pela cidade com a mãe
e mais tarde sozinho, buscava de loja em loja, de igreja em igreja, a cena
natalina. Gostava da família, da pobreza de todos, parecia a sua. Da
imagem-mulher que era a mãe, da imagem-pai que era o pai. A casinha
simples e a caminha de palha do Deus-menino, pobre; só faltava ser negro
como ele. Lumbiá ficava extasiado olhando o presépio, buscando e
encontrando o Deus-menino. (EVARISTO, 2016, p. 84 – grifos nossos).

No fragmento, verificamos o motivo pelo qual a cena natalina tornou-se algo


importante para o personagem. A pobreza da família do Menino Jesus representada no
presépio assemelhava-se à família de Lumbiá. Entretanto, havia algo que incomodava o
personagem, o fato daquele menino não ser negro. Desta forma, Conceição Evaristo nos
mostra o problema da ausência de representatividade negra. Como foi dito anteriormente
por Mbembe (2014, p. 26-28), o Ocidente ao constitui-se como o espelho da civilização
eliminou todas as representações dos povos não-brancos. Desta forma, a identificação de
Lumbiá com o menino Deus torna-se parcial, ou seja, semelhante na pobreza, mas diferente
na cor da pele. Essa cor, que desde o continente africano, conforme apontou M’Bow (2010,
p. 21-22) ficou marcada por estereótipos raciais devido a colonização, o tráfico negreiro e as
teorias racistas.
Outro fato curioso apontado na narrativa de Conceição Evaristo diz respeito na forma
como o rei negro é posicionado na cena natalina: ―Os Reis Magos, os dois brancos,
caminhavam um pouco abaixo da estrela-guia. O Rei Negro, aquele que parecia com o tio
de Lumbiá, caminhava sozinho um pouco atrás, mas com passo de quem tinha a certeza de
quem iria chegar‖ (EVARISTO, 2016, p. 84 – grifos nossos). Neste fragmento, o rei Baltasar
– que é negro – não caminha junto dos outros reis que são brancos. Ele também não está à
frente dos demais. Ele caminha sozinho em direção ao presépio um pouco atrás dos outros
reis que são brancos. Esta posição na qual o rei negro foi submetido simboliza, conforme
apontado por Gonzalez e Hasenbalg (1982, p. 15), o lugar do negro na sociedade. Lumbiá
também ocupa esse lugar. Ele é negro e mora no subúrbio.
Na narrativa, o personagem não questiona a posição do rei Baltasar em relação aos
outros reis – neste caso, podemos inferir o quanto a falta de consciência histórica torna-se
um agravante não somente para os negros, mas também para a sociedade como um todo.
Entretanto, a imagem de Baltasar é representativa para Lumbiá, ele enxerga o tio na figura
do rei negro. Essa semelhança faz com que o menino negro reserve flores para oferecer ao
rei caso consiga entrar na loja onde estava o presépio, como podemos constatar: ―Tinha
flores nas mãos, rosas amarelas. Havia combinado com o amigo que venderiam flores, mas
aquelas ele daria para o Menino Jesus e também poria algumas nas mãos do Rei Baltasar‖

462
(EVARISTO, 2016, p. 85 – grifos nossos).No conto, percebe-se que em nenhum momento, o
personagem deseja oferecer flores aos reis brancos. Ele escolhe aquele que se assemelha
ao seu tio negro. Neste sentido, podemos constatar a importância da representatividade
negra.
No decorrer da narrativa, o leitor acompanha todas as tentativas do menino negro no
desejo de ver o presépio de perto, como podemos constatar: ‖Tinha feito várias tentativas de
entrar no Casarão, o vigilante vinha e o enxotava‖ (EVARISTO, 2016, p. 85).Aos olhos do
vigilante, o mesmo olhar da sociedade racista, o menino negro representa o perigo. De
acordo com o que foi posto por Schwarcz e Starling (2015, p. 145-146), ―a cor se tornou um
marcador social fundamental‖. Negro e sem a companhia dos pais, Lumbiá tornou-se o
Outro, o indesejado. A este respeito, Stuart Hall (2016), pontua que ―a estereotipagem tende
a ocorrer onde existem enormes desigualdades de poder. Este geralmente é dirigido contra
um grupo subordinado ou excluído‖ (HALL, 2016, p. 192 – grifo do autor).
Diante da opressão e da rejeição, uma luta enfrentada pelos negros para a afirmação
de sua identidade enquanto sujeitos na sociedade, Lumbiá resiste. A resistência, a coragem
e a persistência do pobre menino quebraram as barreiras que o impediam de ver a cena
natalina, como podemos observar: ―Em um dado momento aproximou-se devagar. Ninguém
na porta. Mordeu os lábios, pisou leve e, apressado, entrou‖ (EVARISTO, 2016, p.
85).Conceição Evaristo nos mostra a dificuldade de ser negro na sociedade brasileira.
Lumbiá precisa do descuido do vigilante para apreciar o que também lhe é de direito, mas é
negado. Conforme apontado por Hall (2003, p. 69-70), as características visíveis do negro
legitimam sua exclusão social. E, contra esses processos de exclusão postulados desde a
colonização e a escravidão, surgem os movimentos negros na luta incansável por políticas
de inclusão e visibilidade da população negra como apontou Gonzalez e Hasenbalg (1982,
p. 43).
No fragmento seguinte, Conceição Evaristo leva-nos a refletir sobre o conceito de
raça pontuado por Moreira (2019, p. 44) quando ele afirma que ―raça é uma representação
cultural que estrutura relações de poder dentro de uma sociedade‖. A descrição do menino
Jesus ao fundir-se com a realidade do personagemmostra o quanto essa relação de poder
marca a sua condição econômica e social, como podemos constatar:

Lá estava o Deus-menino de braços abertos. Nu, pobre, vazio e friorento


como ele. Nem as luzes da loja, nem as falsas estrelas conseguiam
esconder a sua pobreza e solidão. Lumbiá olhava. De braços abertos, o
Deus-menino pedia por ele. Erê queria sair dali. Estava nu, sentia frio.
Lumbiá tocou na imagem, à sua semelhança. Deus-menino, Deus-menino!
Tomou-a rapidamente em seus braços. Chorava e ria. Era seu. Saiu da loja
levando o Deus-menino. (EVARISTO, 2016, p. 85 – grifos nossos).

463
No fragmento percebemos o significado de ser negro na sociedade brasileira
apontado por Conceição Evaristo. Em um país no qual a maior concentração de renda está
nas mãos de uma minoria branca, elitista e racista, ser negro torna-se sinônimo de
resistência. Por isso, os espaços públicos e privados precisam ser ocupados por pessoas
negras para que ―Lumbiás‖ olhem para as instituições e se veem como sujeitos
pertencentes, não excluídos. Neste caso, como foi dito anteriormente, a Lei 10.639/2003
cumpre um papel fundamental à medida que leva à sociedade a importância de conhecer a
história e a cultura afro-brasileira e africana como parte da construção da nação brasileira.
Desta forma, teremos uma sociedade menos opressora, preconceituosa e racista.

Considerações Finais

Podemos perceber que discorrer sobre a representatividade negra requer uma


visitação ao passado. Pois retornando a ele compreendemos como foi construída a imagem
do negro ao longo da história. E, para isso, foi necessário conhecermos os conceitos de raça
para entendermos como as sociedades ditas superiores – neste caso, as ocidentais –
subjugaram outras. Constatamos que o mito da superioridade racial foi fundamental para
que a colonização e a escravidão fossem naturalizadas. E, que os conhecimentos científicos
desse período, com suas teorias racistas, contribuíram para a redução, a humilhação e a
desumanização do negro. Neste sentido, podemos perceber o motivo pelo qual o negro viu -
se obrigado a assimilar os valores culturais do branco (vestimenta, alimentação, língua, entre
outros) para tornar-se um cidadão. E, essa crise de identidade fez com que o negro negasse
a si mesmo. Entretanto, a assimilação não foi suficiente pois a sociedade branca insistia em
rejeitá-lo. Então, decidido a abandonar a assimilação do branco, o negro buscou outras
estratégias para se inserir na sociedade. Então, assumir sua negritude, ou seja, reconquistar
tudo aquilo que foi rejeitado por ele – sua identidade cultural –, certamente seria o caminho
viável e correto.No conto Lumbiá, para entendermos a realidade do personagem, a autora
Conceição Evaristo nos levou a buscar os fatos que contribuíram para tal situação.
Constatamos que a história e a cultura do negro, durante muitos séculos, foram apagadas e
silenciadas. E, isso teve como propósito elevar a superioridade racial do hemisfério ocidental
em detrimento das sociedades não-brancas. Isto explica a ausência da representatividade
negra nos diversos espaços ocupando cargos elevados. Portanto, é de suma importância
que a Lei 10.639/2003 seja aplicada nas escolas não somente nas datas comemorativas, e a
mídia – que exerce grande influência na sociedade – precisa fortalecer a imagem do negro.
Pois, desconstruir a imagem estereotipada e estigmatizada do negro tornou-se urgente e
necessária, visto que todas as teorias racistas já foram refutadas.

464
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466
AT 4 - Mulher, Relações de Trabalho, Meio Ambiente e
Desenvolvimento
Coordenação

Maria Cristina Maneschy - UFPA

Ruth Helena Cristo Almeida - UFRA

Carla Cilene Siqueira Moreira – UFPA

Proposta da Área temática

A área temática pretende contribuir para o conhecimento dos processos de


desenvolvimento econômico em curso na região amazônica, com ênfase na
perspectiva de gênero. Abriga estudos sobre relações de trabalho e, em
especial, sobre relações sociedade e meio ambiente, o que implica também a
atenção aos saberes tradicionais e às práticas produtivas das comunidades
amazônicas, representativas de sua diversidade sociocultural.

467
DESENVOLVIMENTO E EQUIDADE DE GENERO? EXPERIÊNCIA DE UM
PROJETO DE GERAÇÃO E RENDA PARA MULHERES EM BRAGANÇA-PA

https://doi.org/10.29327/527231.5-31
Ana Patrícia Reis da Silva- Doutoranda do Programa
de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia. UFPA

Maria Cristina Maneschy- Professora do Programa


de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia-UFPA

RESUMO: Analisa-se a experiência da Rede de Mulheres Caeteuaras , uma organização


social e econômica na Vila do Treme, município de Bragança, nordeste paraense. O
trabalho feminino no setor informal em países em desenvolvimento é alvo de programas
de combate à pobreza. Em que medida tal via gera emancipação das mulheres e
avanços locais na equidade de gênero/ Se elas assumem desproporcionalmente os
cuidados com as pessoas, como conciliam produção e reprodução/ Por outro lado, o
grupo é parte de uma Reserva Extrativista, com pressões especificas de conservação
ambiental. A metodologia do estudo é qualitativa, com entrevistas semi-diretivas para
captar a visão das envolvidas. Inclui observação participante sobre o processamento de
caranguejos, uma base da economia local. Os relatos indicam ações de ―patrões‖ visando
desmobilizar o grupo apontando o fracasso na geração da renda.

Palavras-Chave: gênero-economia-equidade-desenvolvimento-resex

ABSTRACT: The experience of the Caeteuaras Women's Network, a social and


economic organization in Vila do Treme, municipality of Bragança, northeastern Pará, is
analyzed. Female work in the informal sector in developing countries is targeted by anti-
poverty programs. To what extent does this path generate women's emancipation and
local advances in gender equity / If they disproportionately take care of people, as they
reconcile production and reproduction / On the other hand, is the group part of an
Extractive Reserve, with specific pressures of environmental Conservation. The study
methodology is qualitative, with semi-directive interviews to capture the views of those
involved. Includes participant observation on crab processing, a base of the local
economy. The reports indicate actions by "bosses" to demobilize the group pointing to the
failure in income generation.

Palavras-Chave: gênero-economia-equidade-desenvolvimento-resex.

468
Introdução

Este artigo objetiva estudar as relações de gênero, analisando lutas e conquistas


de mulheres a partir de uma experiência local de organização social e econômica. Trata
do Projeto Mulheres Pescando Autonomia, que faz parte do que hoje se configura
como Rede de Mulheres Caeteuaras, situada na Vila do Treme, comunidade de
Bragança-Pará, no nordeste paraense.

O trabalho exercido por mulheres no setor informal tem recebido pouca atenção
nos estudos e pesquisas acadêmicos, mesmo que seja significativo e crescente o nos
países de Terceiro Mundo. Em que medida essa via tem possibilitado a emancipação das
mulheres e avanços na equidade de gênero em suas sociedades?

Os estudos sobre mulheres e trabalho na perspectiva de gênero (em particular


Helena Hirata e Uma Narayan) levantam a necessidade de se observar em que medida
fomentar o trabalho associativo para atuação no mercado informal implica em sobrecarga
de trabalho, uma vez que elas continuam aassumir desproporcionalmente o trabalho dos
cuidados, dentro e fora do lar. O trabalho associativo informal de mulheres não é a
panacéia que programas institucionais de combate à pobreza podem supor. Assim,
colocam-se as questões de: conciliação entre ambas as esferas, bem como de delegação
das atividades de cuidado quando o trabalho ou a atividade associativa requerem mais
tempo de dedicação. Por outro lado, trata-se neste estudo de uma Reserva Extrativista,
unidade territorial que tem como propósito conciliar economia e conservação ambiental, o
que levanta pressões específicas sobre o trabalho e sobre a posição social das mulheres.

A definição de cuidado dada pelo Colóquio internacional ―Teorias e Práticas do


Cuidado‖, realizado em Paris, 2013 diz que: ― O cuidado não é apenas uma atitude de
atenção, é um trabalho que abrange um conjunto de atividades materiais e de relações
que consistem em oferecer uma resposta concreta às necessidades dos outros. Assim , é
defino como uma relação de serviço, apoio e assistência, remunerada ou não, que
implica um sentido de responsabilidade em relação à vida e ao bem-estar de outrem‖.
Para a Socióloga Danièle Kergoat, socióloga do trabalho e do gênero, é preciso pensar
na complexidade do cuidado e nas relações sociais em que ele se insere, para isto uma
ferramenta importante seria a consubstancialidade. Ou seja, pensar conjuntamente as
diferentes formas da divisão do trabalho e as divisões dentro de uma mesma classe. De
acordo com Jules Falquet , em seu artigo ―Transformações Neoliberais do Trabalho das
mulheres: Liberação ou novas formas de apropriação ? Historicamente, as análises
feministas dominantes sobre as sociedades industriais afirmaram que o acesso a uma
remuneração monetária (a entrada-mesmo que parcial no mercado de trabalho) era um
avanço para as mulheres, pois permitia que elas ganhassem autonomia em relação à

469
instituição familiar , geralmente dominada por homens, desmitificando, ao mesmo tempo,
o caráter supostamente natural, portanto gratuito , das atividades que lhes eram
atribuídas. Alguns destes aspectos estão presentes do universo de pesquisa no qual
trabalho.

A situação das mulheres não privilegiadas por sua posição de ―raça‖ e de classe ,
as quais constituem a maioria da classe das mulheres e a parte dessa classe mais
afetada pela globalização, deve ser colocada no centro desta análise . Tal situação é
profundamente diferente daquela das mulheres mais privilegiadas- embora todas sejam
oprimidas nas relações sociais.

Uma Narayan discute porque o setor informal é maior nas economias do Terceiro
Mundo que no Primeiro e, nele, as mulheres têm a presença muito grande. Essa força do
setor informal seria herança do desenvolvimento desigual pelo colonialismo. A
urbanização no Terceiro Mundo foi acompanhado de um grande desemprego. A
industrialização no Primeiro Mundo criou mais empregos do que o número de artesãos e
camponeses que que ela arruinava. Na periferia, cria menos empregos do que a força de
trabalho liberada do campo e das cidades. O mundo do Trabalho nos faz pensar sobre os
desafios para a construção de equidade entre homens e mulheres, e as realidades
enfrentadas de forma diferente nos mostram que as desigualdades e relações patriarcais
continuam fortes em nossa sociedade.

Narayan tem uma preocupação com o entusiasmo quanto ao ―empoderamento


das mulheres do Terceiro Mundo via micro empreendimentos no setor informal‖. E
quanto aos supostos poderes do microcrédito. De repente, o espírito empreendedor de
mulheres pobres nesses contextos é visto como resposta a seus problemas.

Se voltarmos essa discussão para as mulheres trabalhadoras da pesca temos


várias questões pertinentes que precisam de estudos mais elaborados e aprofundados
seja na questão de equidade de gênero, seja na temática da economia, ou na
segurança previdenciária, questão que tem ultimamente gerado preocupação para as
mulheres da pesca. Já que segundo as últimas modificações na reforma da previdência
social, a mulher pescadora não tem como comprovar sua atividade, mesmo que ela
tenha envolvimento com processos de pós ou pré- captura. Notamos ainda que apesar
de terem crescido as pesquisas sobre gênero na pesca artesanal na última década, o
mesmo não pode ser constatado para o caso das RESEX e os estudos de gênero e
organização informal, conforme constado através de levantamento bibliográfico.

Por isso em um segundo momento deste artigo início uma discussão sobre

470
algumas questões sobre o processo de organização das mulheres pescadoras que
formam atualmente a Rede de Mulheres Caeteuaras, organização informal que teve
início com o projeto Pescando Autonomia do CPP- Conselho Pastoral dos Pescadores.
Entender esse processo de organização também significa entender qual a conjuntura
vigente no momento em que decidiram se fortalecer e quais os objetivos em comum que
as movia.

Outras questões instigam o cerne dessa pesquisa, são elas: como elas
respondem as exigências econômicas do mercado vigente ao mesmo tempo que
respondem as exigências ambientais? Quais eram os valores e os objetivos dos
apoiadores do Projeto? Como as mulheres lidam com os afazeres domésticos e o
trabalho no grupo (REDE) ou ainda identificar como elas fazem a combinação entre
demandas tradicionais decorrentes da divisão sexual do trabalho e as da participação
em grupo. De certo que este artigo não será suficiente para esgotar todas estas
perguntas, portanto estas dúvidas, dentre outras, serão tratadas na tese de doutorado.

Antes de tudo trago como aporte teórico o texto do Sociólogo Antônio Carlos
Diegues, ―Formas de organização da produção pesqueira no Brasil: alguns aspectos
metodológicos‖, onde o autor ressalta que por muito tempo o estudo dos pescadores e de
sua produção foi marcado, no Brasil, por uma visão folclórica e idílica. O que era
ressaltado era o modo de vida ―pacato , indolente‖ ou de outro modo exalavam a coragem
e os perigos enfrentados no mar. Segundo Diegues, 1983, ―Em alguns casos se
descreviam suas comunidades como entidades isoladas, alheias aos grandes processos
econômicos, que marcaram a sociedade como um todo em seus vários ciclos
econômicos‖.

Autores como (Diegues, 1973; 1983) , Duarte (1978), Mello (1985) e Maldonado
(1986) deram contribuições expressivas de trabalhos que mostrassem a necessidade de
se integrar a produção pesqueira ao quadro da acumulação de capital e da divisão social
do trabalho no Brasil e para combater , de certo modo, a falta de apoio à pesca artesanal.

Porém , Diegues chama atenção para a seguinte questão:

No entanto, a produção dos pescadores no Brasil, a relação entre


essas populações humanas e seu meio-ambiente marinho e de
águas interiores exigem um conhecimento mais sistemático e
aprofundado. Esse conhecimento é ainda mais necessário no
momento atual em que as comunidades de pescadores artesanais
estão sob severa ameaça por causa da especulação imobiliária e

471
da degradação ambiental, provocada por um modelo econômico
que exclui amplas camadas da população, sua cultura e suas
formas de organização. Parafraseando Marx, a expansão
capitalista sobre o espaço costeiro e marinho tem-se desenvolvido
esgotando as duas fontes de onde jorra a riqueza: o mar e os
trabalhadores. (DIEGUES, p.05, 1983)

No ano de 1990 a antropóloga Lourdes Furtado lançou um boletim sobre as


características gerais e problemas da pesca amazônica no Pará, segundo a pesquisadora
a partir da década de 70, implantou-se, no Pará, o parque industrial pesqueiro sob a
égide dos recursos oriundos da política de incentivos fiscais para a Amazônia. Assim a
pesca industrial teve seu inicio em áreas de mar aberto em locais onde os pescadores
artesanais dificilmente conseguiriam chegar por conta do tamanho de suas embarcações
e da tecnologia que detinham no momento, que inviabilizariam viagens com longa
distância. Houve então uma diversificação no Pará no que diz respeito ao setor
pesqueiro, do ponto de vista técnico-social: de um lado o artesanal e, de outro, o
industrial, ambos necessários para a economia do Estado e da região, porém,
desigualmente aquinhoados no que tange a estímulos financeiros oficialmente definidos.
(FURTADO, 1990, p. 02).

I- Análise da construção de um projeto de geração de renda e autonomia por


mulheres em uma Reserva Extrativista Marinha no Pará

As Reservas Extrativistas (RESEX) são unidades de conservação


genuinamente brasileiras e, dentre as demais categorias previstas no Sistema Brasileiro
de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC, Lei Federal Nº. 9.985 de 2000),
apresentam uma série de particularidades e diferenciais.
As RESEX representam áreas de domínio público com uso concedido às
populações tradicionais extrativistas, são geridas por um Conselho Deliberativo, permitem
o uso sustentável dos recursos naturais e a implantação de estruturas voltadas para a
melhoria da qualidade de vida das comunidades, e possuem Planos de Manejo onde são
definidas as normas de uso, o zoneamento das áreas e os programas de sustentabilidade
ambiental e socioeconômica, entre outros aspectos.

472
A Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçú é uma unidade de
conservação brasileira de uso sustentável da natureza localizada no município de
Bragança, estado do Pará. Foi criada em 20 maio de 2005 a Reserva Extrativista Marinha
Caeté –Taperaçú . Sua área de entorno é caracterizada por regiões de terra firme onde a
vegetação predominante é a capoeira entrecortada por igarapés rodeados por buritizais
(arvore nativa), campos naturais alagados e grandes faixas de manguezais, tendo seu
Plano de Manejo aprovado em dezembro de 2012 .

A RESEX Marinha de Caeté-Taperaçú está toda inserida no município de


Bragança e possui uma área aproximada de 42.068,086 ha (afetando cerca de 20% da
área total do município).

Como Bragantina e filha de Bragantinos, me interessei pela cultura e grupos que


se organizavam na cidade em que nasci e que tinham o intuito de melhorar a vida da
cidade. Sempre me perguntei , ao mesmo tempo, qual era o lugar que eu ocupava
nessas discussões e de onde eu poderia contribuir, já que por vezes ocupamos diversos
papéis sociais, em alguns momentos eu fui a agente Cáritas, a Secretária Municipal de
Pesca e em outros a pesquisadora.
Foi na tentativa de conhecer esses movimentos e suas histórias que pude
descobrir as inúmeras histórias, experiências e vivências que mostravam que a Amazônia
em que vivemos é muito mais múltipla do que contam a maioria dos livros. Cada
comunidade com suas particularidades e ao mesmo tempo com lutas em comum.
Por esse motivo acredito que hoje em dia não basta somente falar sobre a
Amazônia, é preciso dizer que nós somos a Amazônia! Nós os pesquiadores, pescadores
(as), quilombolas, estudantes, professores(as), os ativistas ambientais, os negros (as),
dentre muitos outros povos, fazemos parte desse território .
Levando em consideração que as experiências das pessoas que estudamos são
as que produzem conhecimento , a partir dos modos de ver e conceber o mundo , acho
pertinente nessmo momento descrever um pouco como foi a minha experiência até
chegar no atual tema de pesquisa do doutorado em Antropologia.
Meu tema de dissertação de mestrado foi: SABER FAZER E PODER FAZER:
construção social e política da RESEX caeté- Taperaçú, programa de Pós Graduação em
Linguagens e Saberes na Amazônia-UFPA-Bragança. O mesmo público que foi tema da
minha pesquisa de dissertação (2013) foi durante os anos de 2006 até 2008 também
tema de meu envolvimento enquanto agente voluntária da Cáritas Brasileira( organismo
da Igreja Católica que cuida parte social da Igreja), durante esse período eu me aproximei
da Associação dos Usuários da RESEX Caeté-Taperaçú- ASSUREMACATA, e assim me
aproximei também dos pescadores (as) que mais participam das reuniões e decisões
desta associação que representa todos os usuários cadastrados . Convivendo

473
quase que diariamente com este grupo pude perceber algumas aflições, dúvidas e
impasses que os incomodavam, entres estes: a falta de habilidade com o computador,
com documentos burocráticos, notas fiscais, prestação de contas, ou outras questões
mais graves como: o não entendimento do termo resex, já que muitos pescadores,
denominavam INCRA, RESEX, SEDE DA ASSUREMACATA como a mesma coisa. Foi
então que decidi ir além do trabalho voluntário e do envolvimento enquanto ambientalista
e pesquisar o que estava agitando esse território ao que se refere o processo de
identificação dos pescadores artesanais e o lugar em que vivem. Após o término dessa
etapa de pesquisa, e com um livro publicado e doado para a ASSUREMACATA , como
uma das formas de retorno da pesquisa de mestrado, continuei acompanhando algumas
ações e atividades que aconteciam na sede da ASSUREMACATA, mesmo que de forma
menos constante. Durante esse período conheci o trabalho do CPP- Conselho Pastoral
dos Pescadores voltado para as mulheres catadoras de caranguejo.

Figura FOTO-Formação de Mulheres Catadoras. Fonte:IRICINA AVIZ

474
Buscando melhor compreender as relações de gênero e seu comportamento
vivenciado nas organizações, optou-se por nesse primeiro momento de pesquisa de
campo realizar técnica de entrevista semi-diretiva, dando espaço para elas falarem sobre
a experiência de organização. Também optou-se pela observação participante na
comunidade da Vila do Treme, vila da cidade de Bragança, em alguns momentos de
atividade da catação de caranguejo. A escolha deste método justifica-se por ser
adequado neste momento entender qual o processo de organização do grupo que
atualmente se denomina Rede Caeteuara a partir das vozes e experiências destas
mulheres. Trago pro texto as conversas obtidas em campo de entrevistas feitas com duas
pessoas que se configuram como atores importantes nesse processo, são elas : Iricina
Aviz de Oliveira, assistente social e representante do CPP na região Bragantina e
Dejanira, catadora de caranguejo da comunidade do Rio Grande, esta última é umas das
lideranças do rede de mulheres Caeteuaras e uma das catadoras mais eloquentes do
grupo.
Utilizarei a transcrição das entrevistas para preservar os relatos da conversa e
possibilitar ao leitor a interação e interpretação das narrativas.
Inicio a entrevista perguntando para Iricina-CPP : Como começou o Projeto Pescando
Autonomia ?

Iricina: ―Com a atuação do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), em algumas


comunidades pesqueiras de Bragança, percebeu-se que havia um grupo considerado de
mulheres na Vila do Treme, em que a renda financeira da maioria delas era extraída
diretamente da atividade pesqueira da extração da massa do caranguejo-uçá, e que elas
não eram a dona da massa, apenas vendiam sua força de trabalho. Através de muitas
reuniões na comunidade, surgiu a necessidade de melhorar a renda financeira dessas
famílias, houve necessidade de uma capacitação profissional voltada para fortalecer a
identidade profissional de pescador/a artesanal. E ao mesmo agregar valores á massa do
caranguejo, foi então feito um projeto que viesse contribuir com a autonomia das
pescadoras onde o CPP junto á comunidade num processo participativo elegeu o nome
do projeto “pescando autonomia”.”

Patrícia: E quais atores estavam envolvidos?

Iricina-CPP: ―Mulheres pescadoras/ marisqueiras, crianças e adolescentes filhos das


participantes, pescador no apoio, comunidade escolar, Igreja Católica e Evangélica,

475
SENAI, Feira do Agricultor, Conselho Pastoral dos Pescadores e Banco da Amazônia,
Adepará, Vigilância Sanitária..”

Patrícia: Quais eram os valores e objetivos dos apoiadores ?

Iricina-CPP: ―Favorecer ás mulheres pescadoras reflexão da importância de sua


identidade pesqueira.
E também a intencionalidade de fortalecer a autonomia das mulheres trabalhadoras da
pesca da região Bragantina, auxiliando na adequação às normas legais e, favorecendo
mecanismos para a valorização e comercialização da produção.”

Patrícia: Quando foi formado, houve algum motivo especifico, algum evento, uma
conjuntura?

Iricina-CPP: Possibilitar intercâmbio entre pescadoras/marisqueiras entre as


comunidades; Treme, Caratateua e Rio Grande.
Contribuir no processo de auto-organização e fortalecimento do grupo de produção;

Auxiliar na orientação e na adequação do grupo de pescadoras/marisqueiras às normas


legais, priorizando as concepções da economia solidária; Colaborar no desenvolvimento
de alternativas na região para o combate ao grave problema da poluição por resíduos de
Caranguejo e realizar a 1ª Feira de Rede de Mulheres Caeteuaras em Bragança na feira
do agricultor.

Em um segundo momento em pesquisa de campo, converso com Dejanira, em sua


própria casa, em um breve momento de pausa de seus afazeres domésticos e do
trabalho de catação do caranguejo.

Patrícia: o que te motivou para participar do projeto?

Dejanira: ―Primeiro motivo era melhorar a renda/economia financeira mesmo. Depois


receber apoio. A gente queria fortalecer a categoria também, queria que o preço da
venda da força de trabalho fosse justa......Outra coisa criação de um espaço físico para
melhorar e valorizar a massa do caranguejo....E um Sonho de ter a Casa da Pescadora.”

Patrícia: Qual a necessidade que levou a organização das mulheres?

Dejanira: Ausência de políticas públicas voltadas para essa categoria e muitas mulheres
vivem especificamente da extração da massa do caranguejo, mas o pagamento por quilo
de baixo valor...Agregar valor á massa do caranguejo.....Dar visibilidade da mulher na
pesca e possibilitar alternativas para que as pescadoras/marisqueiras da região
pudessem sair da ilegalidade

476
São várias as análises e interpretações que podem ser feitas dessas entrevistas e
que não dão conta de serem feitas neste espaço, mas algo que chama a minha atenção
enquanto pesquisadora e que justifica a pesquisa a importância desta pesquisa de
doutorado é a forma de resistência que se criou através da Rede de mulheres
Caeteuaras. Resistencia contra o mercado que não inclui e que consequentemente não é
justo, contra a desigualdade de gênero, contra a dificuldade financeira e na luta por
melhores condições de trabalho.

Outra informação que merece ser destacada é que durante o diagnóstico do


projeto Pescando Autonomia, percebeu-se que a maioria das mulheres que trabalhavam
na catação do caranguejo, senão todas elas, não eram ―donas da massa apenas vendiam
a sua força de trabalho‖, ou seja, elas dependiam de uma atravessador para que
trouxesse o caranguejo até elas e elas fizessem a catação, diminuindo assim o valor do
seu trabalho. Este ainda é um dos pontos principais que o projeto atua e que merece ser
feita uma pesquisa mais aprofundada para ver a situação atual dessa problemática.

Durante a observação participante na Comunidade da Vila do Treme, algumas


falas demonstram que para participar das reuniões de formação do grupo de mulheres,
algumas pescadoras relataram que precisaram acordar mais cedo e ―adiantar o trabalho
de casa‖. Este é um dilema enfrentado por muitas mulheres quando decidem participar de
um processo de organização social , ou geração de renda, formal ou informal. A
delegação das atividades domésticas recai em sua maioria, sobre a mulher, seja total ou
parcial.

Em nome da autonomia das mulheres, defendeu-se que o acesso à remuneração


monetária corresponderia a um avanço. No entanto, embora as últimas décadas
evidenciem que houve mudanças, pesquisas demonstram que não temos muito a
comemorar. Dados atuais nos revelam que as mulheres são majoritárias a exercer o
trabalho do cuidado . Como explicar , por exemplo que as mulheres permanecem ampla
maioria (92,6%) no trabalho doméstico remunerado no Brasil? E nessa ocupação o
percentual de mulheres negras segue maior.

Considerações Finais

Mesmo com avanços significativos, as mulheres ainda são excluídas das decisões
em muitas nas organizações sociais (formais e informais), porque a cultura prevalecente
tende a seguir a lógica do interesse próprio, dentro de um padrão patriarcal. Por outro

477
lado, há o longo processo histórico que sustenta a necessidade de diferenciação entre
gêneros para manter uma relação de poder e hierarquia.
As componentes da Rede de Mulheres Caeteuaras enfrentaram situações de
conflito no início de seu processo de organização. Os relatos evidenciam que os ―patrões‖
de então (compradores do produto) procuravam desmobilizar as reuniões e encontros do
grupo. Por exemplo, passavam nas casas das mulheres para dizer que o projeto não iria
dar certo e que elas iriam ficar sem renda alguma e que, portanto, não deveriam
participar. Sabemos que essa estratégia utilizada desmobilizadora não é algo especifico
de uma região ou mesmo desta época em que vivemos. A força de trabalho feminina foi
ao longo do tempo utilizada pelo capitalismo, tanto em sua expansão inicial, quanto em
situações específicas, com a finalidade básica de baixar custos, tendo em vista a mística
de que a mulher, por suas características peculiares, propicia ―naturalmente‖ a ―criação
de mais valia absoluta‖. Não fosse a reação da sociedade, o empresariado teria utilizado
de forma exacerbada e vantajosa a força de trabalho da mulher menos organizada
coletivamente e, muitas vezes, dispersa nas formas de trabalho a domicílio a serviço de
contratadores, em diversos ramos de atividade.
Este artigo apresenta resultados iniciais de uma caminhada de pesquisa. Para isto
será necessário ter clareza dos elementos de desenvolvimento sustentável na
perspectiva de gênero, já que estamos falando do território de uma reserva extrativista e
da também das pressões que sofrem as mulheres para garantir sua produção e sua
própria renda em contextos desfavoráveis.
Atualizar a agenda sobre as relações de trabalho tem sido uma preocupação deve
ser uma preocupação constante um interesse que vai além das pesquisas acadêmicas,
afinal o mundo do trabalho não é só um campo de conhecimento , mas também caminho
fundamental para mudar as desigualdades entre homens e mulheres.
Isso porque o processo emancipatório só pode existir se for desenvolvido
simultaneamente no âmbito coletivo e no individual. E se esse processo, no caso das
mulheres, conseguir conjugar consciência de gênero , consciência de classe e de raça.

478
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479
IMPLICAÇÕES SOBRE DESIGUALDADE AMBIENTAL PRESENTE NA CARTILHA
“O DIA EM QUE A MATA SUMIU”

https://doi.org/10.29327/527231.5-32
Cláudia de Fátima Ferreira Pessoa UFPA
Carla Cilene Siqueira Moreira UFPA
Tânia Guimarães Ribeiro UFPA

Resumo
Este trabalho tem como objetivo analisar a cartilha O dia em que a Mata Sumiu, do
Programa de Apoio a Conservação Ambiental Bolsa Verde (PBV), a fim de verificar se há
uma dimensão socioambiental da desigualdade e como esta se manifestaria no discurso
dos formuladores da cartilha e nas implicações direcionadas à população por ela afetada,
sobretudo às mulheres, figuras centrais da política pública. A abordagem é de cunho
qualitativo baseada na leitura crítica da cartilha e da análise do discurso nela contida,
articulada com a literatura sobre desigualdade ambiental (ACSELRAD et al., 2013;
HERCULANO, 2002; MORATO e KAWAKUBO, 2007) e estudos com a perspectiva pós
colonial (MIGNOLO, 2003; DUSSEL, 2005). Utilizamos também estudos que tratam do PBV
e outras políticas afins, visando compreender a política pública que enseja a formulação da
cartilha (MOREIRA, 2017; RIBEIRO e SOUSA, 2018; SCHERER e SANTOS, 2015). Com
base nesses estudos defendemos o ponto de vista de que os riscos ambientais afetam
predominantemente grupos sociais vulneráveis, configurando a distribuição desigual das
consequências do desenvolvimento econômico. Inferimos que as dimensões da
desigualdade de saber/poder identificadas no documento são barreiras ao acesso dos
direitos sociais, afetando sobremaneira a constituição da cidadania plena dessas
populações, com importante reflexo sobre as mulheres.

Palavras-chave: Conservação. Desigualdade ambiental. Programa Bolsa Verde.


Representação de Gênero. Amazônia.

Abstract
This work aims to analyze the booklet The day in which Mata Disappeared, the
Environmental Conservation Support Program Bolsa Verde (PBV), in order to verify
whether if there is a socio-environmental dimension of inequality and how it would
manifest itself in the discourse of the primer formulators and the implications directed to
the population affected by it, especially women, who are central figures of public policy.
The approach is qualitative based on the critical reading of the booklet and the analysis
of the discourse contained therein, articulated with the literature on environmental
inequality (ACSELRAD et al., 2013; HERCULANO, 2002; MORATO and KAWAKUBO,
2007) and studies with the postcolonial perspective (MIGNOLO, 2003; DUSSEL, 2005).
We also use studies dealing with PBV and other related policies, aiming to understand
the public policy that calls for the formulation of the booklet (MOREIRA, 2017; RIBEIRO
and SOUSA, 2018; SCHERER and SANTOS, 2015). Based on these studies, we defend
the view that environmental risks predominantly affect vulnerable social groups,
configuring the unequal distribution of the consequences of economic development. We
infer that the dimensions of the inequality of knowledge/power identified in the document
are barriers to access to social rights, greatly affecting the constitution of full citizenship
of these populations, with an important reflection on women.

Keywords: Conservation. Environmental Inequality. Green Grant Program. Gender


Representation. Amazon.

480
Introdução
O Programa de Apoio à Conservação Ambiental Bolsa Verde (PBV), foi instituído
pela Lei nº 12.512, de 14 de outubro de 2011. Trata-se de uma política socioambiental
com duplo objetivo: i) a seguridade social das famílias rurais em situação de extrema
pobreza residentes em áreas destinadas à conservação ambiental; ii) contribuir para a
conservação do meio ambiente (MMA, 2019).
Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), em 2014 o PBV abrangia a nível
nacional 71.398 famílias em situação de extrema pobreza. A Amazônia é o bioma com
maior cobertura do programa, com o estado do Pará detendo a maior concentração,
com 29.903 bolsistas. O Programa, concedia a cada três meses, o valor de R$300,00
às famílias caracterizadas como extremamente pobres que residem em áreas
consideradas prioritárias à conservação ambiental.
Em 2014, três anos após a implementação do programa, o MMA elaborou uma
cartilha cujo objetivo era instruir os bolsistas sobre a importância da conservação dos
recursos naturais mediante a transferência de renda. ―O dia em que a mata sumiu‖ foi o
nome dado a cartilha.
Neste trabalho, refletimos acerca do conteúdo e de alguns elementos presentes
nesta cartilha. A abordagem é de cunho qualitativo baseada na leitura e interpretação
da cartilha em questão, junto à literatura sobre desigualdade ambiental (ACSELRAD et
al., 2013; HERCULANO, 2002; MORATO; KAWAKUBO, 2007) e estudos com a
perspectiva pós colonial (MIGNOLO, 2003; DUSSEL, 2005). Utilizamos também
estudos que tratam do PBV e outras políticas afins, visando aprofundar a compreensão
da política pública que enseja a formulação da cartilha (MOREIRA, 2017; RIBEIRO e
SOUSA, 2018; SCHERER e SANTOS, 2015).
Nesse sentido, pretendemos analisar se há uma dimensão socioambiental da
desigualdade e como esta se manifestaria no discurso dos formuladores da cartilha e
nas implicações direcionadas à população por ela afetada, sobretudo às mulheres,
figuras centrais da política pública.
O arranjo familiar predominante entre os cadastrados no PBV é o monoparental
feminino, que caracteriza 36% das famílias, seguido por casal com filhos, que
corresponde a 33% dos casos. Famílias monoparentais femininas situam-se,
predominantemente, na faixa de extrema pobreza, diminuindo a sua recorrência nas
outras faixas de renda (MDS, 2014).
A perspectiva pós colonial presente nos estudos de Mignolo (2003) como saber
subalterno e colonialidade do saber, nos estudos de Dussel (2005), nos ajuda a
compreender o discurso da cartilha como um instrumento que pode expressar visões
hegemônicas que, além de inferiorizar as populações, pode essencializá-las. A

481
colonialidade do saber configura relações de saber hierárquicas que, de certa forma,
invisibiliza a trajetória e a especificidade de povos que se distanciam da lógica que o
modelo dominante ocidental impõe.
A episteme desenvolvida em um ponto geográfico específico que se afirma como
o centro da racionalidade, subentende que haja uma periferia ausente de processos
racionais. O modelo da Modernidade que passa a vigorar nas sociedades européias é
vista por Dussel (2005) como a ―justificativa de uma práxis irracional de violência‖ (p.
29). O mito da modernidade se assenta, dentre outros aspectos, no ideal de que a
civilização moderna seja a mais desenvolvida e superior, bem como haja uma exigência
moral de ―desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes‖ (DUSSEL, 2005).
Entendemos que o teor da cartilha reflete concepções socialmente construídas,
emitidas pelo poder estatal e traduzidas em políticas públicas, que retornam ao cotidiano
dos cidadãos em questão. Reflete a visão que os idealizadores da política detêm acerca da
população alvo do programa. A assertiva de que foi o governo quem ―inventou um jeito de
cuidar da natureza‖ contida na cartilha, desvela um saber que é moldado em relações de
poder (MIGNOLO, 2003). O Estado, nesse caso, é quem tem o domínio de um saber
específico e legítimo, que reduz ou desconsidera o saber outro da população. Dessa forma,
a política pública é apresentada ao longo da cartilha, como a representação do saber e
poder que o Estado detém para resolução dos problemas apresentados.
Desigualdade Ambiental
O conceito de desigualdade ambiental aponta o fato de que o modelo de
produção vigente possibilita que os danos advindos de práticas nocivas, os riscos
ambientais, recaiam predominantemente sobre grupos sociais vulneráveis,
configurando uma distribuição desigual dos benefícios e malefícios do desenvolvimento
econômico (ACSERALD, 2011; ACSELRAD et al., 2012).
Morato e Kawakubo (2007) indicam que este conceito pode também ser analisado
sob os termos de Justiça Ambiental, que reúne os princípios que certificam que não
haja uma desproporção entre grupos sociais, das consequências ambientais negativas
de atividades econômicas, políticas e programas (HERCULANO, 2002). E injustiça
ambiental por sua vez refere-se ao mecanismo pelo qual sociedades desiguais
destinam a maior parcela dos danos ambientais a populações vulneráveis e de baixa
renda (HERCULANO, 2002).
O uso da desigualdade ambiental enquanto categoria analítica é importante, pois,
a articulação que se faz ao pensar elementos sociais e ambientais expõe as
consequências do desenvolvimento econômico que afetam os grupos sociais. Nesse
trabalho construímos a interpretação de que essa dimensão da desigualdade pode se

482
expressar, também, numa atribuição desigual da responsabilidade sobre a conservação
do meio ambiente.
No contexto brasileiro, às populações rurais, em especial as extrativistas, se
voltam novos modelos de desenvolvimento e de políticas públicas e sociais (MOREIRA,
2017). Elas prevêem a constituição da cidadania daquelas populações, que por longo
tempo foram preteridas pela agenda governamental. O MMA enquanto principal gestor
da política na época de sua execução entendia que a

transição para a sustentabilidade do rural é entendida e conduzida


como parte estruturante do projeto de desenvolvimento nacional em
curso, cujo objetivo central é assegurar o crescimento econômico com
redução das desigualdades sociais, da pobreza e da fome, com
conservação dos recursos naturais e da capacidade produtiva dos
ecossistemas‖ (MMA, 2019).

Entretanto, vários obstáculos se inscrevem na realidade social, à efetivação dos


objetivos deste novo modelo de desenvolvimento. Os dados do Cadastro Único
apontam que a região Nordeste concentra 46% do total de famílias que têm como renda
per capita até meio salário mínimo. Ademais, percebemos uma desigualdade regional,
posto que no Norte e Nordeste mais de 70% das famílias cadastradas estão na extrema
pobreza, enquanto nas outras regiões, esse percentual de pobreza não atinge nem
metade das famílias cadastradas (MDS, 2014).
No que se refere ainda às famílias cadastradas, 54% não têm acesso simultâneo
aos serviços básicos, como abastecimento de água pela rede pública, coleta de lixo,
escoamento sanitário adequado e energia elétrica. Quanto menor a faixa de renda
familiar per capita, menor o acesso simultâneo a estes serviços. (MDS, 2014).
A ideia de desenvolvimento pode ser observada na seguinte imagem e trecho
extraídos da cartilha.

Figura 1. Relação Urbano x Rural

Fonte: MMA, 2014

483
Esse trecho ilustra as consequências negativas do desenvolvimento subscrito no
termo cidade, que altera a reprodução da vida no campo, afetando modos de vida
humanos e não humanos. Ao mesmo tempo, se observa um tom de neutralidade ao não
destacar os responsáveis pelo avanço deste desenvolvimento e suas consequências -
como a devastação das áreas ambientais - às áreas que a política visa atingir.
Contudo, em um trecho seguinte, sobressai o direcionamento de parte da
responsabilidade aos bolsistas: ―Só sobrou mesmo da mata, nas terras das gentes
simples, que, às vezes, necessitada, também derrubava uma árvore, também levantava
um pasto, também passava um motosserra”. (MMA, 2014, p.7) O encargo desigual dos
custos do desenvolvimento passa a ser naturalizado. Há também uma posição ambígua
que ora afirma que a floresta é abundante em seus recursos, ora afirma que o processo
de desaparecimento da natureza foi acelerado pela ação da população.
Foi conferido, em certa medida, o reconhecimento à população, quando nos
deparamos com o trecho que alude a criação do PBV ―[..] recompensando o povo
simples que lutava com nobreza‖ (MMA, 2014, p.11). Ainda assim tal reconhecimento
pode fomentar a desigualdade, quando este se torna sinônimo de uma obrigação que
deveria ser imputada ao Estado (SCHERER e SANTOS, 2015; MOREIRA, 2017
RIBEIRO e SOUSA, 2018).
De acordo com Moreira (2017) em seu estudo sobre o PBV na Reserva
Extrativista de São João da Ponta, no Pará, além da responsabilização por parte do
Estado às populações pobres rurais com a degradação do meio em que vivem, não há
na cartilha ―informações sobre os objetivos do Programa de promoção da cidadania e
inclusão produtiva, sendo o foco voltado à conservação e a informações referentes à
transferência de renda‖ (MOREIRA, 2017, p. 115).
Ainda assim o PBV em si melhorou a perspectiva de qualidade de vida dado o
aumento de renda obtido. Para algumas famílias, por vezes o valor recebido constitui a
única ou principal fonte de renda, possibilitando especialmente maior autonomia das
mulheres que o recebem (MOREIRA, 2017; RIBEIRO e SOUSA, 2018).
Por outro lado, as especificidades sociais não são devidamente retratadas, diante
a diversidade das populações tradicionais. Essa generalização além de desconsiderar
aspectos regionais, contribui à essencialização destas populações como as únicas
responsáveis pelo meio ambiente, além de reforçar alguns estigmas, que tem como
pano de fundo a divisão sexual do trabalho que perpassa as relações de gênero.

O papel de gênero na Cartilha “O dia em que a mata sumiu”


O processo de essencialização que se constrói ao longo da cartilha evidencia o
modo com que o Estado representa as populações pobres, sobretudo as mulheres pobres

484
e rurais, que são a ponte desse tipo de política. Para Feltran (2014), o dinheiro passa a
ter o valor de mediador de conflitos entre grupos populacionais, se elevando ao papel
que a lei e a moral poderiam exercer sobre esses grupos. Dessa forma,

esquadrinhar a ―população‖ e essencializar os recortes produzidos,


objetivando-os, seria a função primeira da maquinaria de governo; a
partir dessa classificação, pode-se produzir valoração seletiva e
desigual de recortes populacionais produzidos. O valor atribuído a cada
recorte, devidamente objetivado nessas classificações, pode, em
seguida, ser monetarizado. [..] assim se faz com o solo urbano, que se
recortam os ―nichos de mercado‖; assim também se deve agora
recortar as populações, tornadas ao mesmo tempo ―público-alvo‖ de
marqueteiros e programas de governo (FELTRAN, 2014, p.497).

Embora a sua análise se concentre em outros contextos no eixo urbano, sua


contribuição é relevante na medida em que aborda a lógica de separar e classificar
populações. No caso deste trabalho, transporta-se essa análise ao papel que é
atribuído às populações que residem em áreas protegidas, objetivando-as como as
responsáveis pela conservação de recursos naturais para que assim se tornem aptas a
entrar no programa e receber uma ―quantia em grana‖ (MMA, 2014, p.13).
Fica claro que essa essencialização é possível devido à lógica de poder que se
construiu em torno do Estado na modernidade. Para Dussel (2005), um poder que se
estabelece a partir de um marco geográfico específico e que outorga a si a legitimidade
de desconsiderar saberes e práticas que fogem desse marco. Assim, para Feltran, os
"classificados como pobres estariam imersos nas franjas da incompletude de processos
estruturais da modernidade, daí a atribuição de 'atraso' que permeia as leituras [..]
acerca dos setores populares (FELTRAN, 2014, p.499)
A posição das mulheres, neste contexto, estaria no epicentro da transferência de
renda, visto que são elas as responsáveis em receber e utilizar o pagamento em prol de
práticas sustentáveis, na relação que a família estabelece com o meio natural.
Entende-se que esta configuração afeta sobremaneira as mulheres, uma vez que
a divisão sexual do trabalho ―não apenas destina os homens à esfera produtiva e as
mulheres à esfera reprodutiva, como também atrela os primeiros às funções de maior
valor social‖ (SILVEIRA; FREITAS, 2007, p. 10).
Não se trata em afirmar que este seja o principal aspecto negativo do conteúdo
da cartilha, mas é um elemento que ganha centralidade, uma vez que às mulheres é
atribuída a condição de receber o valor transferido. Assim como todos os outros
elementos ressaltados aqui, este poderia passar despercebido.
Contudo, ao longo da cartilha o que nos é apresentado são figuras de personagens
femininos realizando atividades tipificadas como atividades domésticas para a

485
manutenção familiar. Ao passo que personagens masculinos exibem atividades
econômicas, como a extração, sendo aqueles que se deslocam para além do domínio
pessoal e por isso, socialmente mais valorizados.

Figura 2. A atividade das mulheres

Fonte: MMA, 2014

O papel da mulher tem sido rotulado socialmente como uma dona de casa, figura
materna e responsável pela família e lar, enquanto o papel do homem é de garantir o
sustento material. Devido a essa divisão, por muito tempo a mulher não fez parte de
algumas questões ambientais ao qual ela é peça fundamental dentro da sociedade para
a conservação de seu ambiente (ROSA et. al, 2016).
Entretanto isto é um equívoco, posto que aproximadamente dois terços das
mulheres de países mais pobres trabalham na agricultura (SOF, 2006) e no Brasil, em
particular, várias mulheres da área rural que realizam variadas atividades econômicas,
se articulam e se organizam em movimentos sociais nacionais, como a Marcha das
Margaridas. Nesse sentido, as

camponesas, indígenas, negras, mulheres urbano-marginais que


conformam os feminismos populares do Sul são as mesmas que o
paradigma de desenvolvimento oficial percebe unicamente como
receptoras de programas, a partir da posição de subalternidade
(BARRAGÁN et al., 2017, p. 120)

Conforme dito anteriormente, a cartilha reflete e sintetiza concepções construídas


socialmente, que é parte de um discurso, de um frame, que é moldado por relações de
poder e ideologias. Dessa forma, o discurso formata identidades e relações sociais,
influenciando os sistemas de conhecimento e crença (FAIRCLOUGH, 2001). O olhar
crítico exige dos elaboradores das políticas uma visão contextualizada a fim de evitar
representações generalizadas sobre os sujeitos da política.

486
Pode-se entender que há uma diferenciação simbólica nos desenhos da cartilha, que
hierarquiza as práticas de homens e mulheres. A validade desse discurso demonstra como
o saber hegemônico além de subalternizar as populações tradicionais (MIGNOLO, 2003)
com seus saberes e particularidades, ainda agrava a desigualdade de gênero.
Torreão (2007 apud ROSA et. al, 2016) infere que considerar a igualdade de
gênero como forma de análise nas políticas públicas, revela que as questões
reivindicadas por mulheres não só devem ser vistas em sua importância política, mas
enquanto um fator estratégico para o alcance do desenvolvimento do meio ambiente e
sustentabilidade. Rosa et. al (2016) aponta que não é suficiente apenas a inserção de
mulheres em um modelo de desenvolvimento, se este processo ocorre através de
programas assistencialistas e projetos de conservação que reproduzem e corroboram
seu ―papel tradicional‖ na sociedade.
Uma crítica importante que se faz ao discurso do modelo de desenvolvimento
pode ser observada no trabalho das autoras feministas latino americanas Barragán et
al. (2017), que apresentam como os diversos feminismos formularam suas concepções
acerca da relação desenvolvimento e mulheres. Com especial atenção a produções fora
do eixo europeu e americano, essas autoras entendem a retórica do desenvolvimento
como um "discurso que tem desvalorizado sistematicamente outros saberes e
provocado importantes efeitos de dominação – entre outros, sobre o corpo e a fala das
mulheres" (BARRAGÁN et al., 2017, p.90).
Para estas autoras, as mulheres sempre operaram nos processos de
desenvolvimento, dentro de suas culturas e sociedades específicas. Apontam também
que o trabalho, doméstico ou não, foi essencial à manutenção de suas sociedades.
Estes apontamentos indicam que a desigualdade ambiental se apresenta, mesmo
que sutilmente, no discurso da cartilha do PBV ao impor o dever da conservação dos
recursos naturais apenas às famílias bolsistas e isentando outros atores, sejam do
mercado ou Estado. Ademais, compreendemos que esta dimensão da desigualdade
afeta sobremaneira a cidadania dessas populações, uma vez que o reconhecimento
obtido se traduz cada vez mais na condição de responsabilidade e obrigatoriedade.
Outro aspecto importante é o papel dúbio da mulher, que é apresentada como a
protagonista na questão da transferência de renda, contudo é diminuída na importância
de suas atividades também produtivas. A essencialização da figura feminina no
discurso da cartilha, a única a poder receber o valor, demonstra que ao mesmo tempo
que o fator renda pode gerar maior autonomia, pode também fortalecer desigualdades a
partir da responsabilidade que a política pública determina.

487
Figura 3. A mulher como ―guardiã da floresta"

Fonte:MMA, 2014

Nesse trecho, a ilustração de uma mulher segurando um cartão que dá acesso à


Bolsa, denota a questão social de renda. A árvore ao fundo, pode ser entendida como a
revitalização da natureza, proporcionada pela criação do PBV. Interessante observar a
forma com que o governo tardiamente ―inventou um jeito de cuidar da natureza‖, pois o
que se construiu ao longo da cartilha foi um imaginário que revela um processo de uma
destruição quase total da natureza.

Considerações Finais
A desigualdade de saber e de poder se apresenta, ainda que sutilmente, no
discurso da cartilha ao impor um dever apenas às famílias bolsistas, isentando outros
atores. O modelo de escrita em cordel, que chega a ter um caráter lúdico pode ofuscar
e mesmo ocultar as implicações contidas nas entrelinhas e ilustrações da cartilha.
Por outro lado, inferimos que o aumento de renda condicionado pela política
contribuiu para a maior autonomia das mulheres que o recebem, um ponto positivo, que
pode ser ressaltado em futuras produções como desta cartilha em estudo. Bem como a
política pública e seus benefícios podem e devem ser mostrados como o resultado de
processos dinâmicos que ocorrem dentro de uma arena pública, e não como uma
resolução vertical, idealizada como dádiva e convertendo direitos dos grupos sociais em
obrigatoriedade e sujeito a rígidas condicionalidades.
A atribuição da responsabilidade em receber o valor em dinheiro às mulheres, mães
de família, apresenta o aspecto negativo da essencialização feminina. A mulher continua

488
a ser idealizada como o indivíduo que deve se preocupar com a família e o lar, apenas,
não tendo suas atividades produtivas valorizadas no conteúdo do material.
No que se refere especificamente ao programa, ele mostrou potencial para a
cidadania das populações rurais e transformação da realidade, conforme se constata
em alguns estudos feitos em duas reservas extrativistas da Amazônia (MOREIRA,
2017; RIBEIRO e SOUSA, 2018).
Porém, instrumentos, como a cartilha, são entraves para a efetividade da política,
podendo sobrepor desigualdades - de gênero, de renda - e reforçando a permanência
da desigualdade ambiental (PESSOA, 2019). Os cortes e a incerteza quanto à
continuidade do programa agravaram a situação da pobreza e da desigualdade rural,
tendo em vista o retorno de índices alarmantes no país.

489
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491
AS PARTEIRAS RIBEIRINHAS DO AMAPÁ: A ARTE DE PARTEJAR E O RACISMO
EPISTÊMICO
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-33 Maria das Neves Maciel da Luz
2
David Junior de Souza Silva
Resumo

Esta pesquisa tematiza a relação entre a prática tradicional das parteiras e Estado nacional
brasileiro, concebido em suas ações pela atuação da rede pública de saúde no município de
Macapá-AP. Problematiza-se o significado atribuído ao saber tradicional das parteiras com o
processo de colonização que viveu o país, o racismo estrutural instituído, e diante de
políticas públicas de incorporação de seus saberes tradicionais na estrutura burocrática do
Estado brasileiro. De acordo com a pesquisa, no espaço urbano do Estado, essa relação
entre conhecimento tradicional e conhecimento científico, quando ―ocorre‖ geralmente se dá
em períodos oscilatórios, com objetivo de aprimorar as práticas tradicionais das parteiras por
meio de dos cursos de capacitações e troca de saberes entre os agentes envolvidos, mas
sempre com prevalência do saber médico oficial, pois o Estado não as reconhece enquanto
profissionais. Esta inserção é de forma subordinada e descaracterizadora. As parteiras, nos
espaços de saúde oficiais, não têm autonomia para realizar seu trabalho, dado o racismo –
velado e institucional – por parte dos funcionários destes órgãos e da lógica disciplinar e
eurocêntrica que os rege. As políticas públicas de inclusão das parteiras nos espaços
oficiais de promoção de saúde pública, assim, tende a descaracterizar e subordinar seu
conhecimento, atualizando o epistemicídio. Sendo políticas denominadas como de
―inclusão‖, não contestamos que façam esta autoproclamada inclusão, porém trata-se de
uma inclusão epistemicida. As políticas públicas neste caso são veículos do epistemicídio e
da efetivação completa da colonização.

Palavras-Chave: Racismo epistêmico. Racismo institucional. Etnocídio. Políticas públicas.


Comunidades Tradicionais.

ABSTRACT

This research discusses the relationship between the traditional practice of midwives and the
Brazilian national state, conceived in their actions by the public health network in the city of
Macapá-AP. The meaning attributed to the traditional knowledge of midwives with the
colonization process that lived the country, the structural racism instituted, and the public policies
of incorporating their traditional knowledge into the bureaucratic structure of the Brazilian state
are problematized. According to the research, in the urban space of the State, this relationship
between traditional knowledge and scientific knowledge, when it "occurs" usually occurs in
oscillatory periods, aiming to improve the traditional practices of midwives through training and
exchange courses. knowledge among the agents involved, but always with prevalence of the
official medical knowledge, because the State does not recognize them as professionals. This
insertion is subordinate and uncharacteristic. Midwives, in official health settings, do not have the
autonomy to perform their work, given the racism - veiled and institutional - by the officials of
these bodies and the disciplinary and Eurocentric logic that governs them. Public policies for the
inclusion of midwives in official public health promotion spaces thus tend to mis characterize and
subordinate their knowledge, updating the

1
Discente da Pós-Graduação em Estudos Culturais e Políticas Públicas – PPCULT/UNIFAP.
Licenciada e Bacharela em Ciências Sociais; Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4804952121029797; E-mail: nevesunifap@gmail.com.
Professor da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. Cientista Social; Currículo Lattes:
2
http://lattes.cnpq.br/4265076306351873; E-mail: davi_rosendo@live.com.

492
epistemicide. Being policies called ―inclusion‖, we do not dispute that they make this self-
proclaimed inclusion, but it is an epistemicidal inclusion. Public policies in this case are
vehicles for epistemicide and for the complete implementation of colonization.

Keywords: Epistemic racism. Institutional racism. Ethnocide. Public policy. Traditional


Communities.

INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tematiza a relação entre a prática tradicional das parteiras e a rede
pública de saúde no município de Macapá-AP. Problematiza-se o significado atribuído ao
saber tradicional das parteiras com o processo de colonização que viveu o país, o racismo
estrutural instituído, e diante de políticas públicas de incorporação de seus saberes
tradicionais na estrutura burocrática do Estado brasileiro.
O objetivo principal é compreender como se deu a inserção das parteiras tradicionais
na rede pública de saúde do estado do Amapá, mediada pela implementação da Política
Pública ―Resgate e Valorização das Parteiras Tradicionais no Amapá‖, lançada pelo governo
estadual em outubro de 1995. O objetivo desta política era a inserção das parteiras no
Sistema Único de saúde (SUS) no Amapá. Esta política havia sido criada dentro de um
programa maior, o Programa de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA), que
visava o fortalecimento das tradições locais do estado.
Este objetivo foi desdobrado nas seguintes linhas de reflexão: em que se baseia
cosmologicamente o saber das parteiras tradicionais? Quais os requisitos exigidos das
parteiras para participar da política e quais as ações propostas pela política tendo como alvo
as parteiras? Qual a relação das parteiras com os funcionários da rede de saúde? Qual a
relação das parteiras com o saber médico e com os operadores do saber médico (médicos e
enfermeiros)?
A pesquisa foi realizada nos anos de 2017 e 2018. A metodologia empregada foi
realização de entrevistas com parteiras tradicionais em suas residências e com funcionários
do SUS, sobre o universo formado pelas relações entre ambos no contexto impulsionado
pela política. Malgrado as parteiras geralmente tenham origem ribeirinha, ou seja, vivam em
comunidades rurais, aquelas entrevistadas nesta pesquisa são as que vivem na cidade de
Macapá, e se inseriram na política pública quando de sua implementação.
Conforme descobrimos, no espaço urbano do estado do Amapá, a relação entre
conhecimento tradicional e conhecimento científico, quando ―ocorre‖ geralmente se dá em
períodos oscilatórios, com objetivo de aprimorar as práticas tradicionais das parteiras por
meio de dos cursos de capacitações e troca de saberes entre os agentes envolvidos, mas
sempre com prevalência do saber médico oficial, pois o Estado não as reconhece enquanto
profissionais.

493
Esta inserção é de forma subordinada e descaracterizadora. As parteiras, nos
espaços de saúde oficiais, não têm autonomia para realizar seu trabalho, dado o racismo –
velado e institucional – por parte dos funcionários destes órgãos e da lógica disciplinar e
eurocêntrica que os rege. As políticas públicas de inclusão das parteiras nos espaços
oficiais de promoção de saúde pública, assim, tende a descaracterizar e subordinar seu
conhecimento, atualizando o epistemicídio. Sendo políticas denominadas como de
―inclusão‖, não contestamos que façam esta autoproclamada inclusão, porém trata-se de
uma inclusão epistemicida. As políticas públicas neste caso são veículos do epistemicídio e
da efetivação completa da colonização.

MODERNIDADE, EUROCENTRISMO E EPISTEMICÍDIO


A modernidade carrega consigo uma ideologia confirmadora para uma ―práxis
irracional‖ de violência: a ideologia do progresso e a ideologia da ciência moderna como a
única capaz de levar ao conhecimento verdadeiro da realidade natural e social. Esta
ideologia institui um mecanismo de poder absoluto do conhecimento científico sobre o
conhecimento tradicional, vitimando, pelo racismo epistêmico que institui, principalmente as
populações tradicionais e etnicamente diferenciadas sobreviventes à colonização,
detentoras de saberes ancestrais e cosmologicamente específicos.
O conhecimento científico desenvolve uma relação de anulação em relação aos
saberes locais – notadamente, em relação àqueles que não pode explorar economicamente
provocando assim, o epistemicídio de determinado conhecimento milenar. Nesta pesquisa,
problematizaremos esta relação de poder se estabelece entre a medicina obstétrica
institucionalizada e o saber das parteiras tradicionais.
A primeira etapa do trabalho científico de compreender o sentido desta relação é
entender o universo simbólico e cosmológico da modernidade e contextualizá-la como
evento histórico e visão de mundo. A Modernidade se apresenta como momento mais
avançado da história universal, onde os seres humanos têm máxima consciência e
racionalidade de si mesmos e do mundo, e tem uma postura diante da sociedade para
elevá-la às formas sociais, políticas e cognitivas mais plenas.
Dussel (2005) descontrói o discurso da modernidade sobre si mesma e
contextualiza-a no tempo e no espaço como uma produção simbólica e ideológica da visão
de mundo europeia, conectada intrinsecamente com os interesses colonizadores e
imperialistas europeus sobre o resto mundo – produção simbólica pela qual inclusive Europa
reescreve sua própria história e oculta diversos elementos de sua construção, como forma
de potencializar seus discursos de dominação sobre os demais povos.
A universalidade da modernidade e a neutralidade/objetividade do conhecimento
científico moderno são estratégias pelas quais a Europa apaga a política e seus interesses

494
econômicos de sua produção ideológica e de sua ação de conquista de territórios pelo
mundo; a universalidade da modernidade, e seu universo simbólico e ideológico, precisa ser
contextualizada sobre a localização restrita em que emerge, e sua neutralidade e
objetividade precisam ser referenciadas aos interesses que revestem, para que histórica e
geograficamente sejam visibilizados os efeitos geopolíticos desta auto-invisibilização como
estratégia.
Para esta contexto-referenciação Dussel reconta a história da formação da Europa
moderna a partir dos elementos que a ideologia da modernidade quis ocultar como forma de
potenciação de seu discurso de dominação. O autor reconstrói a história de Europa até a
transição definitiva iniciada em 1492, para explicar neste passado algumas características
do sistema-mundial que o pequeno continente tentava criar – e onde pretendia ocupar
posição de máxima superioridade.
Ao período histórico e formação social global que a Europa chama de Modernidade
(ocultando seus interesses políticos e econômicos nisso), Dussel propõe que chamemos de
―eurocentrismo‖, enfatizando o aspecto absolutamente restrito da cultura do período, com
predominância da cosmologia europeia, e ressaltando os interesses de a Europa impor seus
valores e visão de mundo.
O eurocentrismo, como ideologia que alça a Europa e sua cultura à posição de
superioridade, confunde a universalidade abstrata com a mundialidade concreta,
hegemonizada pela Europa como ―centro‖ do mundo, mais ―à frente‖ no tempo, e no ―topo‖
do sistema-mundo piramidal que ela mesma construiu.
Para estar no ―topo‖, a Europa tem de provar sua superioridade; como isto não é
possível, a ideologia da modernidade eurocêntrica desqualificou outros povos, sua cultura e
seus saberes, como forma de instituir a superioridade europeia. Criou para isso o racismo,
espalhou a desumanização que este opera, em suas diversas formas, uma delas: a do
racismo epistêmico – que desqualifica todo conhecimento que não seja produzido nos
moldes europeus e segundo seus critérios de cientificidade – que de puros e neutros não
têm nada, permeados que são de interesses econômicos e políticos.
A ideologia do eurocentrismo se relaciona com o saber/arte de partejar das
carteirinhas ribeirinhas do Amapá na forma do racismo epistêmico, pelo qual a ideologia
eurocêntrica desqualifica e inferioriza estes saberes tradicionais.
As parteiras trazem consigo saberes únicos, capazes de identificar até mesmo aspectos
anatômicos da criança na barriga da mulher tendo como técnicas o olhar, intuições, massagens
e toques na barriga da gestante. Orientam uma mulher que as procuram com dores ou quando a
criança está ―fora do lugar‖, ou seja, na posição incorreta – neste caso, as parteiras posicionam
corretamente o feto com um toque no ventre da mulher, facilitando mais tarde o nascimento do
bebê. (RAMLOV e GREVE, 2016, p. 4). Pelo racismo epistêmico,

495
todavia, a modernidade europeia e sua concepção de saber como monopólio da ciência
europeia desqualificam o saber discursivo e prático do conhecimento tradicional das parteiras.
Diante do racismo epistêmico instituído pela pretensão de monopólio absoluto do
saber e da verdade pela razão moderna, Dussel afirma a necessidade de transcender a
razão moderna, mas não como negação da razão enquanto tal, e sim da razão eurocêntrica,
violenta, desenvolvimentista, hegemônica, que nega outras formas de saber. A razão
eurocêntrica, cujo irmão gêmeo é o racismo epistêmico, apresenta-se como uma justificativa
de práxis irracional de violência sobre o saber tradicional.
O racismo epistêmico é o produto da epistemologia eurocêntrica, e caracteriza-se
pela monopolização da legitimidade epistêmica aos saberes eurocêntricos. O racismo
epistêmico estabelece o privilégio monopólico do saber ao homem branco europeu.

O racismo/sexismo epistêmico é um dos problemas mais importantes do mundo


contemporâneo. O privilégio epistêmico dos homens ocidentais sobre o
conhecimento produzido por outros corpos políticos e geopolíticas do
conhecimento tem gerado não somente injustiça cognitiva, senão que tem sido
um dos mecanismos usados para privilegiar projetos
imperiais/coloniais/patriarcais no mundo. A inferiorização dos conhecimentos
produzidos por homens e mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres
ocidentais) tem dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir
o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais. Essa
legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais tem
gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico,
desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos
projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo.
(GROSFOGUEL, 2016a, p. 25).

O racismo epistêmico, a criação de um universo simbólico propício para descaracterizar o


saber das parteiras e subalternizá-las como pessoas, é percebido pelas próprias parteiras. A
parteira reconhece a fragilidade de sua condição subalterna diante da medicina oficial. Como
afirma a parteira e curandeira Raimunda Ramos, em depoimento dado
pesquisadora Benedita Pinto: quando é no hospital que morre uma mulher ou uma criança,
nem médico e nem enfermeira leva a culpa nenhuma; agora se acontece um caso desses
com agente, que Deus, Nossa Senhora livre, a parteira sempre leva a culpa. (PINTO, 2010,
p. 278).
O final do processo é o epistemicídio, a destruição do saber tradicional e a
desestabilização completa de sua validade em suas comunidades de origem, e a negação
das condições de possibilidade do conhecimento por parte dos sujeitos vitimados pelo
epistemicídio.

Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do


conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da
indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de
qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes
mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor

496
de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência
material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de
discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível
desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem
desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos
cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o
conhecimento ―legítimo‖ ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de
morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de
aprender etc.
uma forma de sequestro da razão em duplo sentido: pela negação da
racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe
é imposta.
Sendo, pois, um processo persistente de produção da inferioridade
intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades
intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades
realiza, sobre seres humanos instituídos como diferentes e inferiores
constitui, uma tecnologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e
que tem por característica específica compartilhar características tanto do
dispositivo quanto do biopoder, a saber, disciplinar/ normalizar e matar ou
anular. É um elo de ligação que não mais se destina ao corpo individual e
coletivo, mas ao controle de mentes e corações. (CARNEIRO, 2005, p. 97)

O epistemicídio, assim, é não somente a destruição de saberes consolidados,


construídos há séculos. Mas também a retirada das condições de possibilidade de produção
do saber dos sujeitos não-eurocêntricos. Atingiu e atinge de forma direta as parteiras
tradicionais, realizando o extrativismo de seu conhecimento, para em seguida estabelecer a
desacreditação delas como detentoras do saber e deslegitimar este próprio saber.

A RELAÇÃO ENTRE CONHECIMENTO CIENTÍFICO E TRADICIONAL NA


COLONIZAÇÃO EUROPEIA DO BRASIL
Sobre o processo colonizatório no Brasil e as culturas tradicionais, Ribeiro (1986)
explica que no Brasil o processo de colonização integrado ao sistema socioeconômico
nacional moderno, provocou grandes impactos socioculturais sobre os índios, causando a
extinção de etnias inteiras e perda parcial ou total dos saberes e culturas de outros;
consequentemente seus efeitos atuaram em vários níveis de emergências, porque
concernem a determinantes que agem em planos superpostos e cumulativos.
A perda desses saberes e culturas indígenas ocorreu pelos conflitos que são
característicos do processo de colonização: conforme a expansão ―civilizadora‖ uniformiza a
diversidade da societalidade indígena, as etnias reagem de forma diferenciada, conforme
cada cosmologia interpreta a relação com este outro que se aproxima de forma violenta. Diz
o autor que no processo de colonização:

Os índios se veem submetidos a uma série de desafios, todos eles conducentes


a transformações sucessivas no seu modo de ser e de viver. Nenhuma
oportunidade lhes é dada de preservar seu substrato biológico, sua sociedade e
sua cultura em forma original. Os desafios cruciais com que se defrontam são
os de resguardar sua sobrevivência como contingentes humanos seriamente
ameaçados de extermínio; sua identidade e autonomia

497
étnica a fim de não se verem abruptamente subjugados por agentes da
sociedade nacional, a cujos desígnios tenham de submeter seu próprio
destino. (RIBEIRO, 1968, p. 220).

Segundo o autor, o processo de transfiguração e perda dos saberes e culturas das


etnias indígenas brasileiras é resultado do enfrentamento entre índios e sociedade moderna.
O primeiro processo é o conflito entre populações de distintas entidades bióticas; pois o
contato entre elas mescla racialmente e se contagiam reciprocamente, acarretando em 96%
uma redução exorbitante do contingente demográfico indígenas. A dominação pela
sociedade moderna se sobrepõe rapidamente sobre as etnias formando uma nova
sociedade nacional adotando um sistema produtivo de relações econômicas em
determinados planos. O estudo das situações de conjunção da sociedade nacional com as
populações tribais permite reconstruir o processo de transfiguração étnica como uma
sequência de efeitos dos agentes colonizadores e de respostas dos povos indígenas para
sobreviver ao extermínio e escravização impostos.
Doravante, o processo de transfiguração étnica revela o poder da violência exercido
sobre os saberes e culturas de povos indígenas que, além de usurpar seus conhecimentos e
autonomia, uma violência direcionada pelo objetivo colonial do desenvolvimento capitalista e
expansões de territórios. Por meio da relação entre sociedade nacional e etnias indígenas
processa por enfrentamentos entre entidades étnicas mutuamente exclusivas.

A reação destas consiste, essencialmente, num esforço para manter ou


recuperar sua autonomia e para preservar sua identidade étnica, seja
através do retorno real ou compensatório a formas tradicionais de
existência, sempre quando isto ainda é possível; seja mediante alterações
sucessivas nas instituições tribais que tornem menos deletéria a interação
com a sociedade nacional. (RIBEIRO, 1968, p. 442).

Diante do exposto, Ribeiro vai dizer que o processo de desenvolvimento nacional ao


longo da colonização no Brasil provoca violentos conflitos, estes que têm como efeito, a
desaparição das etnias ou a absorção destas pela sociedade nacional na forma de
aculturação progressiva que teria desembocado a assimilação plena de cultura e saberes de
tribos indígenas, por meio da miscigenação. Jamais cessado, até hoje se renovam as
violências da sociedade nacional contra os povos tradicionais, movida pela lógica, interesses
e visão de mundo dos atores que hegemonizam esta sociedade, as personificações do
capitalismo predatório em busca de expansão territorial.

AS PARTEIRAS TRADICIONAIS, O ESTADO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS NO AMAPÁ


As parteiras tradicionais são mulheres ribeirinhas ou de origem ribeirinha que detém o
conhecimento sobre a arte de partejar e a responsabilidade de realizar os partos nas
comunidades rurais; todavia a partir do momento que o Estado se apresenta como único poder

498
legítimo, impondo e estabelecendo regulações sociais ao âmbito da saúde, através de sua
institucionalidade por meio das escolas médicas, oficializando a profissão do parto, o
conhecimento das parteiras é, nacionalmente, desacreditado pelo saber médico. O saber
das parteiras não é validado institucionalmente.
No Amapá, houve uma única experiência de reconhecer o saber e a função social
das parteiras institucionalmente por meio de uma política pública específica, que buscou
reconhecer esses saberes por seu valor cultural intrínseco e pela função que representam
naqueles territórios dentro do estado onde a política de saúde oficial não chegava.
Esta política pública foi chamada de Resgate e Valorização das Parteiras
Tradicionais no Amapá, criada em outubro de 1995, teve o objetivo manifesto de fortalecer,
manter vivo saberes e fazeres das parteiras, reconhecendo a importância do conhecimento
tradicional para memória histórica e cultural do estado e tradições locais.
De acordo com Barroso (2017), o projeto teve por objetivo intermediar a articulação
entre Estado e sociedade civil a respeito da viabilização e efetivação das políticas propostas;
nesse percurso a ação principal era envolver as parteiras tradicionais buscando ―o
reconhecimento e valorização das parteiras tradicionais, com intuito de tirá-las do
anonimato, profissionalizando-as e apoiando-as em seu trabalho‖ (BARROSO, 2017, p.
126). A política almejava a regulamentação da pratica tradicional do parto, sem modificar o
estilo de fazer parto.
Esta política buscava esta regulamentação e valorização por meio da inserção das
parteiras no Sistema Único de saúde (SUS), de forma estabelecer e articular uma relação
entre saber tradicional e saber científico em consonância com o arcabouço legal do
Ministério da Saúde (MS) e com o objetivo da proteção do patrimônio cultural.
A política pública era um desdobramento também das ações do Programa de
Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA), que objetivava o fortalecimento das
tradições locais, no bojo das preocupações já com o enfraquecimento destas tradições
causado pela modernização.
A regulamentação visava atribuir oficialidade ou legitimidade institucional ao partejar
tradicional e às parteiras como detentoras de um conhecimento e uma função socialmente
válidos. Um dos elementos desta valorização era um reconhecimento financeiro por parte do
estado, o programa bolsa-parteira.
Entretanto, para viabilizar esta regulamentação do partejar tradicional e a inserção
deste no SUS, era preciso estabelecer algumas medidas para conciliar o partejar tradicional
com o regimento do Ministério da Saúde. Entre estas medidas, estava a frequência pelas
parteiras a um curso de capacitação.
O depoimento abaixo é de Dona Caridade do Rosário Sá, 83 anos, mãe de 05 filhos,
viúva, moradora de Macapá (AP). Em entrevista realizada na residência da parteira, que fez

499
o curso de capacitação e foi cadastrada no programa bolsa parteira. Em sua fala, ela
relata como recebeu o chamado do programa.

Quando cheguei a Macapá (1993), a Janete queria parteira para fazer curso
e quando ela soube que eu era parteira ela mandou me buscar aqui em
casa eu nem sabia de nada, foi quando chegou um homem bem vestido
num carrão preto me buscar para comparecer na reunião das parteiras, com
papel e tudo na mão para falar da minha história de parteira, hoje não
lembro, mas quanto parto já fiz, mas peguei uns quantos filhos no interior.
Em Macapá, fiz cinco partos, hoje não pego, mas devido minha idade 83
anos, mas puxo barriga até hoje eu puxo, e ajudo muitas mulheres não
serem cortadas. (Dona Caridade, 2017).

Conforme Barroso (2017), no primeiro encontro compareceram 62 parteiras para


reunião com a primeira dama do estado à época; o objetivo do encontro era ouvir as
necessidades e dificuldades enfrentadas pelas parteiras tradicionais. Na oportunidade, as
parteiras questionaram a realização do curso de capacitação. Na exposição, Barroso
enfatiza que as temáticas expostas para as parteiras eram um elemento novo, uma
realidade diferente dos seus costumes e práticas. Em seus depoimentos, vê-se que nesse
período as articulações e implantações desse projeto de capacitação, muitas parteiras
tinham medo de prestar assistência ao parto dentro da maternidade, porque segundo elas,
no hospital sempre tem alguém que observando seus atos, pronto a condenar seu modo de
pensar e de conduzir os partos.
Sobre isso abaixo segue o relato da parteira Dona Celeste, de 81 anos, mãe de 07
filhos, viúva, moradora da cidade Macapá. Em seu relato, em entrevista realizada na sua
casa, Dona Celeste diz que fez o curso de capacitação, foi cadastrada no programa das
parteiras e recebia meio salário mínimo; e relata o porquê do medo.

Após o curso de capacitação nós fomos fazer o teste na Maternidade Mãe


Luzia, para fazer o parto como teste, e nos parteiras tinha medo de erra,
então acontecer alguma coisa ruim dentro do Hospital, pra saber se a gente
sabia mesmo fazer parto, tinha uma enfermeira nos acompanhado, todo
tempo eu fui à escolhida do grupo, pra fazer a prática nesse dia, depois que
fiz o parto, era até, uma menina lembro como se fosse hoje, graças a Deus
deu tudo certo foi elogiada e ganhei até os parabéns da enfermeira que nos
acompanhava, e disse que eu fiz direitinho, então respondi no interior minha
mana à gente não tem como, a gente pega a criança com a graça de Deus
mesmo, e comigo nunca aconteceu nada de errado. (CELESTE, 2017).

Segundo os depoimentos das parteiras entrevistadas na pesquisa, percebe-se que


as parteiras tradicionais têm o conhecimento do saber partejar por dom; no que resulta que
algumas parteiras tinham receio de fazer as aulas práticas nos cursos de capacitação, pois o
sentido desses cursos não era ensinar a fazer parto, porque isso a parteira já sabia fazer, o
objetivo dos cursos de capacitação era a busca por reconhecimento das práticas e
habilidades do conhecimento tradicional, mediante sua colocação dentro do padrão da
vigilância sanitária conforme o Ministério da Saúde.

500
O primeiro curso de capacitação ocorreu de 09 a 13 de julho de 1996, em que foram
capacitadas 327 parteiras tradicionais. Ao término do curso as parteiras receberam bolsas
parteiras, certificados e crachá.
A política de valorização das parteiras teve outros objetivos, dos quais citamos
alguns aqui: realizar o censo das Parteiras Tradicionais, buscando identificá-las; realizar
cursos de capacitação para essas parteiras; distribuir uma bolsa kit com o material
necessário para a realização do parto domiciliar, esclarecendo a importância da utilização
deste material; difundir os conhecimentos da ―arte de partejar‖ entre os profissionais de
saúde (convencionais ou não, estabelecer um sistema de referência para gravidez de risco e
partos complicados, e reconhecimento profissional, com inserção das parteiras nos serviços
locais de Saúde, buscando assegurar assim seus direitos.
Conforme Barroso (2017), o programa de capacitação conviveu com uma forte
tendência de romantização das parteiras, romantização pela qual estas se tornam símbolos
anacrônicos ―de um passado ao qual não se pode pretender retornar‖, porém que, todavia,
ecoa na resistência à medicalização do parto, à mercantilização da saúde e à fragmentação
do ser humano. Conforme a autora, o projeto buscava a visibilidade das atividades das
parteiras, reconhecendo nele um aspecto da cultura local, sobretudo valorizar, definir e
integralizar ao sistema de saúde do Estado, a fim de garantir um atendimento ―eficaz‖ e
―contínuo‖, incorporando assim a participação e formação consciente da cidadania, voltada
para a manutenção e regularização da cultura do parto tradicional.
No arcabouço legal nacional, há já o reconhecimento da parteira. Consta na lei nº 7.498,
de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre regulamentação do exercício da enfermagem. Seu
artigo 9° define como são reconhecidas legalmente as parteiras, vinculando esse
reconhecimento ao certificado previsto no art. 1° do Decreto-Lei n° 8.778, de 22 de janeiro de
1946, observado o disposto na Lei n° 3.640, de 10 de outubro de 1959. No estado do Amapá a a
lei nº 3.308-B, de 2004 reconhecem as parteiras como profissionais do parto.
O reconhecimento profissional e da função social das parteiras conflita com esta
romantização, sedimentada em momentos pelos quais a sociedade apenas as vê sob o viés
do patrimônio cultural, em eventos esporádicos celebram sua existência em datas
comemorativas, como por exemplo, a promovida pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), datando o dia 5 de maio como dia Internacional da Parteira desde 1991.
Estas datas comemorativas realizam algum tipo de reconhecimento sem
reconhecimento, porque, apesar das celebrações, as parteiras continuam sem uma
legitimação e reconhecimento concreto no arcabouço jurídico estatal.

Esses efeitos aos povos tradicionais não ocorrem de forma esporádicas, mas
sistêmica, da omissão e negligência dos sucessivos governos. É fruto da
intolerância e do preconceito perpetuados em todos os rincões do Brasil. Por

501
ser um País pluriétnico, deveria reconhecer a existência de diversos ―grupos
participantes do processo civilizatório nacional‖, ―em prol da diversidade
étnica e regional‖, como determina a Constituição, em seus artigos 215 e
Esses grupos são indígenas, quilombolas, ribeirinhos, quebradores de
coco babaçu, peconheiros (apanhadores de açaí). Denominados de povos
ou comunidades tradicionais, são sujeitos de direitos específicos. (PONTES
JUNIOR, 2017, p. 14).

A POLÍTICA DE CAPACITAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO: CONTRADIÇÕES DA


INCLUSÃO
Esta seção discute os desafios e contradições da política de inserção das parteiras
no Sistema Público de Saúde especialmente às exigências exógenas de adequação da
atuação das parteiras às normas vigentes estabelecidas pelo Ministério da Saúde.
O caminho para viabilizar legalmente a inserção das parteiras no sistema de saúde
pública foi pelo viés da Política Nacional de Atenção Integral a Saúde da Mulher (PNAISM).
Todavia, mesmo com o diálogo possibilitado pela PNAISM, que tem como princípios
orientadores para esta inserção os conceitos de descentralização, hierarquização e
regionalização dos serviços de saúde, esta inserção realizou-se problemática na prática, por
conta das exigências de monitoramento estabelecidas por uma episteme alheia ao saber-
fazer das parteiras, aquela do saber médico. Esta inclusão resultou uma forma de
descaracterização e controle estatal do saber-fazer das parteiras, porque para serem
reconhecidas, precisavam obrigatoriamente reorganizar sua prática conforme os critérios
estabelecidos pelo poder estatal – critérios criados pelo saber médico-hospitalar.
Conforme a análise de Barroso (2017), o PNAISM recomenda determinadas medidas
para melhoria do parto domiciliar realizado pelas parteiras tradicionais, após treinamentos,
supervisão, fornecimento de material estabelecido pelos mecanismos referenciais do SUS.
Segundo Barroso, o SUS tem apresentado perspectiva positiva nesse contexto social de
políticas inclusivas dos saberes das parteiras tradicionais, sobretudo, diante do objetivo de
resgatar e apoiar o tradicional trabalho das parteiras em suas comunidades – onde não
exista rede de saúde oficial - para que elas contribuam com atenção a saúde da mulher nos
períodos da gestação, parto e pós-parto. Conforme a autora, essa atuação poderia ocorrer
nas comunidades rurais em forma de acolhimento, na rede estadual de saúde sua
participação caberia no programa saúde da família, com intuito de reduzir a mortalidade
materna dependendo da região.
Mesmo com essa possibilidade de inserção limitada, para atuação das parteiras onde
a rede de saúde estatal não chega, o saber tradicional enfrenta muitas barreiras diante do
poder-saber médico cristalizado no Estado, saber este que não permite uma relação
compartilhada entre saber científico da medicina e saber tradicional das parteiras. No estado
do Amapá, mesmo com programas de incentivos e articulações em prol do trabalho das

502
parteiras, os testemunhos das parteiras confirmam que não se estabelece uma relação de
integração com os profissionais da saúde pública. Na prática, as parteiras têm sua inclusão
negada para atuarem nos órgãos de saúde pública.
As ações educativas são peça central destas políticas de inserção e reconhecimento
das parteiras, pois ajudam no possível processo de inclusão do trabalho das parteiras no
SUS mediante o curso de capacitação. A ação educativa incidindo sobre as parteiras foi
atividade central da política, ocorrendo o lançamento do manual Trabalhando com Parteiras
Tradicionais, onde são descritos todos os mecanismos que a parteira precisa saber para
fazer um parto de forma estabelecida como segura pelo ministério da Saúde.

Algumas destas ações educativas realizavam-se como formas de


aperfeiçoar as práticas das parteiras tradicionais e melhorar as condições
de trabalho, com práticas técnicas da medicina obstetrícia. Porém a
capacitação dessas práticas aos moldes da ciência moderna evidencia uma
estratégia que reduz a complexidade da questão do saber/fazer da parteira.
(BARROSO, 2017, p. 60).

O que está em ação nesta política é um processo lento de epistemicídio do saber


tradicional das parteiras, realizado por uma política pública de inclusão e reconhecimento.
O discurso da política pública é o de que o compartilhamento de saberes e a capacitação
das parteiras para o uso de objetos e tecnologias biomédicas são efetivados para apoiar e
fortalecer suas atividades de partejar. Concordamos com Barroso (2017) que isto se constitui em
uma intervenção no modo de assistência ao parto domiciliar e vem modificando o modo de
cuidar da mulher na gestação e no parto domiciliar feito pelas parteiras tradicionais.
Este compartilhamento, advogado na política pública, realizou-se já na história das
relações entre saber médico e saberes tradicionais sobre a saúde, porém não na forma de
uma valorização recíproca, e sim na forma da apropriação dos saberes populares pela
ciência médica oficial, processo que nominamos como extrativismo epistêmico.
O extrativismo epistêmico é uma das formas da relação historicamente estabelecida
entre ciência moderna e saberes indígenas, na qual a finalidade é a exploração destes
saberes e sua incorporação ao arcabouço da ciência moderna, para fortalecer a esta e como
forma de atender ao movimento de ampliação com vistas à absolutização desta. Nas
palavras de Grosfoguel o ―objetivo del ―extractivismo epistémico‖ es el saqueo de ideas para
mercadearlas y transfórmalas en capital económico o para apropiárselas dentro de la
maquinaria académica occidental com el fin de ganar capital simbólico‖ (GROSFOGUEL,
2016b, p. 133).
Qualquer relação de paridade ou reciprocidade ou mesmo respeito está ausente do
extrativismo epistêmico.

503
No busca el diálogo que conlleva la conversación horizontal, de igual a igual
entre los pueblos ni el entender los conocimientos indígenas en sus propios
términos, sino que busca extraer idea como se extraen materias primas
para colonizarlas por medio de subsumirlas al interior de los parámetros de
la cultura y la episteme occidental. (GROSFOGUEL, 2016b, p. 132)

A consolidação da ciência médica obstétrica no Brasil efetivou-se com o extrativismo


da episteme das parteiras tradicionais, como vemos na análise de Celeste Pinto (2010).
Segundo a autora o percurso da história demonstra que no Brasil a ascendência do
conhecimento da ciência médica do cuidado da mulher se dá no século XIX, com a criação
das escolas Médicas Cirúrgicas, nos Estados da Bahia e do Rio de Janeiro, em 1808. Com a
criação destas escolas, delega-se aos médicos o papel de forma novo profissionais na arte
de partejar. Segundo a autora geralmente se buscava qualificar as próprias parteiras,
curandeiros, benzedeiras, por já exercerem esses saberes tradicionais, uma prática não
formalizada a época e que até os dias atuais elas continuam a exercer um papel informal na
profissão do parto.
Todavia, Pinto (2010) demonstra que apesar da indicação profissional dessas
mulheres detentoras do conhecimento tradicional, muitas não eram alfabetizadas ou sabiam
ler pouco, e isso se tornou um problema na profissionalização do ensino da prática das
parteiras de forma legal.
O saber médico assim se apropria monopolicamente deste domínio, impondo a
validade exclusiva da ciência moderna. O saber das parteiras, única forma conhecida pela
humanidade para realizar os partos até então, é invalidado a partir da monopolização
realizada pelo saber médico.
O efeito, conforme Pinto (2010), é que o saber tradicional das parteiras torne-se
excluído diante do saber médico. As parteiras, até então as ―aparadoras de vidas‖ e
―conselheiras do bom nascer‖, passam a ser alvo de estigmatizações; seus relicários de
simpatias massagens, chás, unguentos e banhos passam para um patamar inferior aos
olhos dos domínios das novas técnicas obstétricas das modernas maternidades do poder
público. (PINTO, 2010, p. 136). Esse processo de exclusão segundo a autora se dá,
sobretudo, pelo movimento da modernidade eurocêntrica, que por medidas de
aperfeiçoamento e novas técnicas do saber/fazer, acaba excluindo saberes locais como os
das parteiras tradicionais, que há tempos imemoriais praticam esse saber-fazer.
Tanto que para Pinto (2010) as ações e projetos governamentais, que se de um lado
apontam um caminho para legitimidade ou valorização por meio de políticas em prol das
práticas tradicionais de trabalho das parteiras, por outro lado, têm o objetivo de ―higienizar‖ a
prática destas mulheres, considerando seus ofícios errados, impróprios para uma
profissionalização diante do conhecimento cientifico hegemônico. Porém a autora ressalta
que as parteiras tradicionais resistem e insistem na preservação de seus direitos enquanto

504
práticas ancestrais buscando reconhecimento e valorização dos seus saberes tradicionais,
ao contrário do saber formal dos médicos ou agentes oficiais de saúde dirigidos pela
instituição do Estado Moderno que reconhece a legalidade exclusiva desses profissionais de
saúde. Diz a autora:

Não se pode negar o avanço da medicina nos últimos tempos e o surgimento de


instrumentos sofisticados, técnicas e medicamentos inovadores. Mas o
confronto entre o saber científico e o saber popular, o tradicional ainda persiste,
visto que, a maioria dos aparatos técnicos da moderna medicina ainda é
totalmente inacessível às populações pobres. (PINTO, 2010, p. 140).

Nesse sentido, o eurocentrismo, como uma de suas formas de colonização, carrega


a ciência moderna como instrumento de imobilização e subjugação dos povos. O
cientificismo, como monopólio absoluto da ciência europeia sobre todos os campos do
saber, realiza o epistemicídio dos saberes dos povos tradicionais vítimas da colonização.
Aspirantes ao universalismo e à neutralidade, a ciência moderna é sustentada sobre
práticas e cosmologia eurocêntrica, instituindo seus saberes e práticas como monopólicos e
realizando o epistemicídio dos saberes não-eurocêntricos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil é um país pluriétnico mas não tem um correspondente Estado Plurinacional.
Muitos direitos étnicos estão garantidos na Constituição, como direito ao território, ao modo
de vida diferenciado, à própria cultura e religiosidade; porém o problema se dá no fato
efetivação da cidadania: na enorme distância que já entre o direito instituído na Constituição
e o efetivado e reconhecido na realidade social.
O direito aos saberes tradicionais é um destes saberes garantidos na Constituição do
Brasil, pela qual os povos tradicionais estão protegidos da discriminação e do desrespeito
face a seus conhecimentos e visão de mundo. Todavia, são poucos os instrumentos
administrativos, educativos e jurídicos instituídos no Estado brasileiro para efetivar de fato
este direito e proteger os povos da discriminação – o que implica poucas ações estatais de
proteção contra violências e reparação de agressões.
Nesta seara, no Amapá houve a criação de uma política pública muito significativa
neste domínio, que objetivava formalmente o reconhecimento e valorização do saber de um
grupo tradicional específico, as chamadas ―parteiras tradicionais‖, detentoras do saber
partejar e de conhecimentos de ervas e raízes medicinais.
Neste texto avaliamos o sentido de uma política pública de inclusão realizada pelo e no
arcabouço burocrático do Estado brasileiro. O resultado é que por características estruturais e
por uma série de reveses, que incluem contrariar poderes econômicos e políticos estabelecidos
e pelo racismo estrutural (velado e institucional) a política configurou-se em

505
mais uma ação epistemicida do Estado para apagar o saber das parteiras e subalternizá-los
como grupo tradicional.
O universalismo e neutralidade/objetividade da ciência moderna converte-se em
instrumento de apagamento dos saberes tradicionais e subjugação dos outros povos. Diante
deles, realiza o racismo epistêmico, invalidando-os; quando pretexta o diálogo, realiza o
extrativismo epistêmico, do qual se alimenta dos saberes tradicionais, higienizando-os e em
seguida deslegitimando seu exercício pelos povos que os criaram.
A política pública de inclusão e reconhecimento se tornou outra tecnologia
de epistemicídio, colonialismo interno e subcidadania.

506
REFERÊNCIAS

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Doutorado, Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Brasil.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento


do Ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade de São Paulo.

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colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Conselho Latino-
americano de Ciências Sociais.

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―extrativismo ontológico‖: una forma destructiva de conocer, ser y estar en el mundo. Tabula
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GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas:


racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI.
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PINTO, B. C. de M. 2010. Filhas das Matas: práticas e saberes de mulheres quilombolas


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RIBEIRO, Darcy. 1986. Os índios e a civilização: a integração das Populações


Indígenas no Brasil Moderno. 5.ed. Petrópolis, Vozes.

507
PERCEPÇÃO DE MULHERES SOBRE IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS NA RESEX
MARINHA CUINARANA, MAGALHÃES BARATA-PA
https://doi.org/10.29327/527231.5-34
Fernanda Vale de Sousa - Universidade Federal Rural da Amazônia
Ruth Helena Cristo Almeida - Universidade Federal Rural da Amazônia

Resumo:
As mulheres da Amazônia têm papel fundamental na história, socioeconomia e conservação
dos ecossistemas da região, e podem apresentar diferentes perspectivas quanto às relações
de gênero e às questões ambientais. O objetivo desta pesquisa foi avaliar a percepção
socioambiental das mulheres residentes na comunidade Fazendinha (Magalhães Barata-
PA), sobre os impactos socioambientais na RESEX Marinha Cuinarana. Para tanto, foi
realizado um estudo de caráter quali-quantitativo, a partir de entrevistas formais e informais,
com 27 mulheres da comunidade, e análises de relatórios concedidos pelo ICMBio e
SEMMA. Os resultados demonstraram que apenas 33% das entrevistadas conhecem sobre
a RESEX, e há pouca participação de mulheres nas tomadas de decisão sobre esta. O
principal impacto socioambiental apontado foi o desaparecimento das ostras, causando
prejuízos às marisqueiras e na socioeconomia local. Assim, tornou-se imprescindível uma
organização feminina mais consolidada, e integração dos conhecimentos tradicionais e
científicos.
Palavras-chave: Unidade de conservação; Extrativismo; Impacto socioambiental;
Entrevistas; Ecofeminismo.

Abstract:
This article aims to evaluate the socio-environmental perception of women living at
Fazendinha Community, in the county Magalhães Barata-PA, about the socio-environmental
impacts in the Extractive Marine Reserve (RESEX) Cuinarana. A qualitative and quantitative
study was conducted, based on formal and informal interviews with 27 women from the
Community, and analysis of reports provided by ICMBio and SEMMA. The results showed
that only 33% of respondents know about the RESEX, and there is little participation of
women in decision-making process in the RESEX. The main socioenvironmental impact was
the disappearance of the oysters, causing damage to women clammers and local
socioeconomics. Thus, a more consolidated female organization and the integration of
tradicional and scientific knowledge became essential.
Keywords: Conservation unit; Extractivism; Socio-environmental impact; Interviews;
Ecofeminism.

508
Introdução

Nas áreas costeiras da Amazônia, o processo de ocupação teve importante


influência no modo que as comunidades tradicionais utilizam e exploram os recursos
naturais. Mesmo com os conhecimentos adquiridos ao longo do tempo, sobre os processos
e a dinâmica dessas regiões, se fazem necessárias ferramentas e estudos para auxiliar na
sobrevivência e conservação do meio ambiente e dessas populações tradicionais (Ângela
OLIVEIRA, 2012).
O desenvolvimento de áreas protegidas tem sido um mecanismo fundamental e
bastante empregado para a conservação ambiental, em que são delimitados segmentos de
áreas com restrições e controle de uso dos recursos naturais (Nurit BENSUSAN, 2006).
Segundo a Lei nº 9.985, de 18 julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação (SNUC), são verificados definições, critérios e normas para criação e
gestão de unidades de conservação (UCs) em território brasileiro. Conforme o SNUC, estão
previstas as Unidades de Uso Sustentável, onde é possível a exploração do ambiente
havendo manutenção dos recursos e da biodiversidade, sendo inclusa nesta tipologia as
Reservas Extrativistas (RESEX).
As RESEX têm um histórico de criação atrelado às lutas sociais na Amazônia.
Originadas como como ferramentas de resistência de seringueiros no Estado do Acre, as
reservas extrativistas foram propostas para auxiliar o combate ao desmatamento a partir da
década de 1970 (BENSUSAN, 2006). O extrativismo é a base das RESEX, em que as
atividades de exploração dos recursos devem ser realizadas de modo sustentável, por meio
da coleta e extração, abrangendo agricultura de subsistência e criação de animais. E são as
populações extrativistas tradicionais que têm o acesso e uso concedido à reserva (SNUC,
2000). A pesca é uma das atividades extrativistas mais conhecidas, e na região Amazônica
uma das mais importantes no que diz respeito ao extrativismo e à socioeconomia, já que
por meio dela, comunidades no meio rural podem gerar trabalho e renda (Marcos SANTOS,
2005).
Desta maneira, a criação da Reserva Extrativista Marinha Cuinarana, através do
decreto de criação de 10 de outubro de 2014, representou um avanço nos estudos acerca
do uso sustentável dos recursos naturais no município de Magalhães Barata, que se localiza
na região costeira do estado do Pará.
Como auxílio no estabelecimento da sustentabilidade dentro da RESEX Marinha
Cuinarana, são fundamentais pesquisas acerca da percepção e da participação das
populações tradicionais diante dos impactos ambientais presentes na área, tais como pesca
predatória, e a geração e destinação inadequadas de resíduos. As análises sobre a

509
diversidade de valores e visões das comunidades, a respeito das questões socioambientais
bastante relevante, visto que as diferentes perspectivas dos indivíduos contribuem para o
entendimento e a efetividade de políticas de intervenção na resolução de problemas sociais
e ambientais (João HOEFFEL et al., 2008).
Desta forma, através da percepção ambiental, pode-se verificar como a perspectiva
da comunidade e as atividades realizadas interferem nas áreas protegidas e na geração de
impactos ambientais, sendo tais ações avaliadas, a fim de se desenvolverem de maneira
sustentável. Ainda, esta percepção pode ser diferenciada para as mulheres, já que a
atuação destas está culturalmente ligada ao natural e às suas funções físicas, servindo
como base para a subordinação das mulheres, assim como ocorre a subordinação da
natureza (Sherry ORTNER, 1979).
O ecofeminismo, como pensamento que direciona a perspectiva feminina sobre
conflitos e impactos ambientais, expressa em uma de suas vertentes (construtivista) que as
interações entre o gênero feminino e o meio ambiente advém do papel das mulheres na
economia familiar (Maximiliano TORRES, 2009). Portanto, a análise da degradação
ambiental e a opressão sobre as mulheres, avaliando-se aspectos como divisão do trabalho
e distribuição de poder, auxilia no melhor entendimento das relações de gênero com as
questões ambientais (TORRES, 2009). O ecofeminismo, no qual se busca analisar e
questionar a dominação sobre as mulheres e o meio, tende a incentivar mudanças nas
relações entre mulheres, homens e meio ambiente.
Nesse sentido, buscou-se avaliar a percepção socioambiental das mulheres
residentes na comunidade Fazendinha no Município de Magalhães Barata-PA, sobre os
impactos socioambientais na RESEX Marinha Cuinarana. Ademais, foram abordados os
aspectos socioeconômicos das mulheres da comunidade, mostrando como as relações de
gênero estão presentes na comunidade e nas atividades extrativistas exercidas pelas
mulheres, bem como, suas relações frente aos conceitos ambientais e impactos
socioambientais presentes na área.

Material e Métodos

Localização e Caracterização da Área de Estudo

A Reserva Extrativista Marinha Cuinarana, é uma unidade de uso sustentável


pertencente ao SNUC. Criada em 10 de outubro de 2014, a sua administração é de
responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Em março de 2018, foi dado o início da criação do Conselho Deliberativo (CONDEL) da

510
Reserva Extrativista, para organização e administração da Reserva (ISA, 2018). Localizada
no município de Magalhães Barata/PA, a RESEX Marinha de Cuinarana encontra-se no
Nordeste Paraense, na microrregião do Salgado no Estado do Pará (Figura 1). Os rios
Marapanim e Cuinarana compõem a drenagem do município, sendo o rio Cuinarana o
principal e mais importante rio da RESEX em estudo.

Figura 1 - Mapa de Localização da RESEX Marinha Cuinarana e Comunidade Fazendinha

Fonte: Autoria própria.

Neste município existem 16 comunidades que são beneficiárias da RESEX Marinha


Cuinarana, que se localizam no entorno, não havendo presença de comunidades no interior
da unidade de conservação. Dentre elas, encontra-se a comunidade de Fazendinha que se
localiza a 2,7 km da zona urbana do município de Magalhães Barata, com população
estimada em 40 famílias, e cerca de 160 mulheres, incluindo adultas e crianças.

Procedimentos metodológicos
A pesquisa se deu pela análise quali-quantitativa da percepção ambiental das
mulheres residentes na Comunidade Fazendinha. Nesse sentido, adotou-se uma
abordagem exploratória combinada ao método quantitativo, denominada mixed-
methodology, em que se objetivou explicar e obter dados sobre tema de estudo (Wesley
FREITAS; Charbel JABBOUR, 2011).

511
Para a avaliação da percepção das mulheres sobre os impactos socioambientais na
Comunidade Fazendinha, foram realizadas entrevistas informais e formais, com elaboração
de questionários semiestruturados contendo 42 questões, que tiveram como base o
formulário Diagnóstico Socioeconômico das Famílias em Unidades de Conservação
(ICMBio, 2013). O primeiro bloco de questões abrangeu perguntas relacionadas ao perfil
socioeconômico das moradoras, o segundo e terceiro blocos contaram com questões
importantes direcionadas à perspectiva das mulheres da comunidade sobre atividades
extrativistas, meio ambiente e participação feminina.
As entrevistas foram efetuadas nos dias 11, 12 e 13 de janeiro de 2019, na
Comunidade Fazendinha, em residências de 27 mulheres, que se disponibilizaram para
conceder informações e suas perspectivas a respeito do tema. Análise visual dos impactos
ambientais e da disposição de resíduos sólidos foi feita ao longo do estudo, com auxílio de
registros fotográficos e apoio da população. Os dados coletados foram tabulados e
analisados, utilizando-se ferramenta Excel versão 2016.
O desenvolvimento da pesquisa ocorreu por meio da pesquisa bibliográfica, com
fundamentação em estudos e materiais já elaborados pelo ICMBio sobre a RESEX Marinha
Cuinarana e comunidades beneficiárias. O levantamento de informações deu-se, ainda,
através da verificação de relatórios da Secretaria de Municipal de Meio Ambiente (SEMMA)
de Magalhães Barata e reuniões do Conselho Deliberativo da RESEX Marinha Cuinarana.

Resultados e Discussão

Caracterização socioeconômica das mulheres residentes da Comunidade Fazendinha


Os resultados da pesquisa demonstraram que a comunidade é composta por
mulheres em sua maioria adultas, possuindo faixa etária entre 25 e 76 anos. Ainda, 89% das
mulheres entrevistadas são mães, com média de aproximadamente 4 a 5 filhos por
entrevistada. Quando questionadas sobre a responsabilidade familiar, 37% das mulheres se
autodeclararam como responsáveis pela família, garantindo a renda e o sustento dos
cônjuges e filhos. Enquanto, 33,3% indicaram os maridos como chefes da família, e somente
22,2% demonstraram que o casal contribui na liderança do lar de forma igualitária.
Com relação às profissões declaradas pelas entrevistadas, a agricultura foi
indicada como a principal atividade econômica das mulheres (53,1%), como se observa na
Figura 2. As principais espécies plantadas são mandioca-brava, milho e macaxeira ou
mandioca de mesa. A atividade agrícola é quase inteiramente voltada à subsistência, uma
vez que ocorre a venda de pequenas quantidades de farinha (de mandioca e tapioca), goma
de tapioca e carvão.

512
Figura 2 - Principais atividades econômicas das mulheres da Comunidade Fazendinha

Fonte: Autoria própria.

No que diz respeito aos dados educacionais coletados, o nível de escolaridade pode
ser considerado baixo, já que cerca de 59,3% das mulheres possui o ensino fundamental
incompleto (EFI), e somente uma moradora (3,7%) não concluiu o ensino superior (ESI). A
baixa escolarização das mulheres apresentada na comunidade é decorrente das prioridades
identificadas, visto que muitas delas relataram trabalhar com agricultura e pesca desde a
infância, auxiliando os pais na geração de renda, produção e coleta de alimentos.
Ademais, quanto à continuidade da educação e obtenção de trabalho, segundo os
resultados, cerca de 66% das mulheres tiveram dificuldades para estudar. De acordo com os
relatos, algumas das dificuldades para continuação dos estudos envolvem o transporte
ineficaz e as precárias vias de acesso à zona urbana. Em relação à obtenção de trabalho na
comunidade Fazendinha, aproximadamente 89% das mulheres afirmaram que têm
dificuldades para trabalhar, principalmente pelo direcionamento à agricultura e pesca na
comunidade, e poucas oportunidades de emprego no serviço municipal.
Compreendendo o papel feminino como ―donas de casa‖, e também como
agricultoras, pescadoras e marisqueiras, observou-se a ocorrência de divisão de tarefas,
entre homens e mulheres, dentro das residências e no meio de trabalho. Em torno de 52%
das mulheres alegaram não haver separação de funções em casa, e acompanhando este
dado, foi possível notar o discurso de que os homens da família ―ajudam‖ em algumas

513
tarefas do cotidiano, todavia ficam por responsabilidade das mulheres a maioria das
atividades domésticas.
Em contrapartida, cerca de 53% declararam não haver divisão do trabalho,
principalmente na agricultura, onde os serviços são feitos de forma conjunta no meio,
demonstrando equilíbrio na execução de tarefas. Durante as entrevistas informais, obteve-se
relatos sobre acordos entre famílias para realizar, juntos, ações nas áreas que forem
plantadas, incluindo homens e mulheres. E ainda, nas atividades de pesca, foi bastante
mencionada a união de mulheres, sobretudo na coleta de ostras.
A Comunidade Fazendinha não possui associação de mulheres, ou associação de
pescadoras e marisqueiras. No entanto, há uma organização de mulheres, voltada para
realização de comemorações em datas festivas, que as próprias moradoras denominam de
―Associação das mães‖. De acordo com as mulheres entrevistadas, todas participam de
alguma forma dessa organização social, a fim de promover festejos, e maior união entre os
membros da comunidade.
Todas as entrevistadas consideraram importante a figura feminina na comunidade,
quando questionadas sobre maior mobilização das mulheres e criação de associação para
elas, todas acreditam na importância de a comunidade possuir organizações sociais mais
consolidadas. Emma Siliprandi (2015) afirma que há desvalorização das funções das
mulheres na agricultura familiar, o que resulta na falta de reconhecimento e presença nas
tomadas de decisões. Portanto, é fundamental maior participação feminina, na criação de
associações de mulheres, de pescadoras e/ou marisqueiras, para alcance de mais espaço
feminino e para solução de problemáticas na comunidade.

Mulheres da Fazendinha e a RESEX Marinha Cuinarana: atividades extrativistas e


implicações na comunidade
A Comunidade Fazendinha, como uma das beneficiárias da RESEX, usufrui dos
recursos naturais da unidade para sustento e manutenção das famílias residentes,
principalmente por meio da agricultura e das atividades pesqueiras. No que diz respeito à
RESEX Marinha Cuinarana, as mulheres residentes foram questionadas sobre a concepção
de Reserva Extrativista. Os resultados apontaram que somente 33% das mulheres da
comunidade Fazendinha compreendem do que se trata uma reserva extrativista.
Em Estudo Socioambiental referente à proposta de criação da RESEX Marinha
Cuinarana realizado no ano de 2012 nas comunidades beneficiárias, incluindo a
Fazendinha, foi constatado que 50% dos entrevistados não apresentavam conhecimento
sobre o conceito e a finalidade de uma reserva extrativista (ICMBio, 2014). Vale ressaltar
que dentre os 26 atores sociais entrevistados no estudo produzido pelo ICMBio, estavam

514
compreendidos homens e mulheres, e considerou-se a divulgação de informações sobre
RESEX insatisfatória. De forma semelhante, nos resultados obtidos em 2019, no presente
trabalho, notou-se que ainda há insuficiência na abordagem de conceitos ambientais,
principalmente abordagens mais acessíveis à comunidade. Embora tenham ocorrido
eventos e reuniões sobre meio ambiente na comunidade, as entrevistadas demonstraram
interesse em novos encontros e palestras, para melhores orientações acerca da RESEX
Marinha Cuinarana.
No tocante às atividades extrativistas, a extração de camarões e mariscos, é um dos
principais meios de subsistência e fonte de renda na comunidade, especialmente das
mulheres (ICMBio, 2014), em que as 15,6% das mulheres entrevistadas consideraram-se
pescadoras (Figura 2). Embora somente esta parcela apontou ―pescadora‖ como atividade
econômica, 85,2% das entrevistadas informaram que realizam ou realizaram atividades de
pesca e coleta de mariscos ao longo da permanência na comunidade.
Localizada próxima à nascente do rio Cuinarana, a comunidade Fazendinha realiza
extração de espécies no leito e às margens do rio, no Trapiche construído pela comunidade,
em áreas de mangue, formações rochosas e troncos de árvores (Figura 3).

Figura 3 - Locais para realização de atividades extrativistas na Comunidade Fazendinha:


trapiche (a), leito do rio e embarcações (b), margens do rio (c) e área de mangue (d).

Fonte: Autoria própria.


Dentre as espécies mais extraídas, encontram-se as ostras (35,3%), siri (25,5) e
camarão (21,6%). Vale ressaltar, que de acordo com relatos, na coleta de ostras
(Crassostrea rhizophorae), a extração ocorria com maior frequência antes do ano de 2014,

515
em que o costume da comunidade consistia em reunir as marisqueiras em várias canoas,
com suas ferramentas, para em conjunto realizarem a prática extrativista. No entanto, deste
ano em diante o desaparecimento das ostras tornou-se evidente, por conta de pescadores
de outras comunidades que extraíram todas as ostras, sem respeito aos berçários e áreas
de reprodução. Diferente das marisqueiras da Fazendinha, que ao coletarem as ostras, o
cuidado era imprescindível na escolha e na abertura das conchas, sendo possível obter
cerca de 10kg de ostra em um dia, por marisqueira.
Desse modo, verifica-se que o período de desaparecimento das ostras foi anterior a
criação da RESEX Marinha Cuinarana, em 10 de outubro de 2014, com a qual houve maior
envolvimento do ICMBio e da SEMMA na gestão da unidade. Portanto, a elaboração de um
Plano de Manejo, previsto na Lei do SNUC (Lei nº 9.985/2000), se faz ainda mais
necessária, por ser um documento técnico em que são estabelecidas normas acerca do uso
da área e manejo de recursos naturais da RESEX. O manejo da RESEX implica na
elaboração de ações para promover o uso sustentável de recursos naturais, como é o caso
da extração de ostras no rio Cuinarana.
Luciene Risso (2012), em estudo sobre a importância das reservas extrativistas,
ilustra o caso da RESEX de Mandira no Estado de São Paulo, em 1970 e 1980, em que a
extração de ostras se tornou uma das atividades extrativistas mais praticadas para geração
de renda. Neste estudo, a autora apontou que a exploração e ameaça às ostras
aumentaram significativamente, suscitando a criação de um projeto de manejo sustentável
de ostras, por meio de macrozoneamento ecológico e econômico da área. Ademais, tornou-
se fundamental a criação de Plano de desenvolvimento para a RESEX, com auxílio do
Instituto de Pesca do Estado de São Paulo, para incentivar pesquisas voltadas às técnicas
exploração dos recursos e à produtividade natural e distribuição de estoques de ostras na
área da RESEX (Renato SALES; André MOREIRA, 1996).
A elaboração de pesquisas e criação de soluções, como as realizadas em Mandira
(SP), expressa a possibilidade de mitigação do impacto apresentado na Comunidade
Fazendinha. O desaparecimento das ostras próximo à nascente do rio Cuinarana, como
verificado, acarretou prejuízos ambientais e socioeconômicos à comunidade, sobretudo às
marisqueiras, as quais obtinham renda a partir da coleta de ostras. Conforme a Resolução
CONAMA nº 001, de 23 de janeiro de 1986, o desaparecimento das ostras adequa-se ao
conceito de impacto ambiental, uma vez que afetou direta e indiretamente as atividades
socioeconômicas e o ecossistema local.
vista disso, o envolvimento das mulheres nas reuniões do Conselho Deliberativo,
bem como na criação de associações (mulheres e/ou marisqueiras) são as primeiras etapas
para melhorias na gestão da RESEX e da comunidade. A criação do Conselho Deliberativo

516
(CONDEL), prevista pela Lei do SNUC, é fundamental para gestão das reservas
extrativistas, conciliando decisões de diversos agentes em benefício às reservas e
comunidades extrativistas tradicionais. No caso da RESEX Marinha Cuinarana, considerou-
se a Portaria ICMBio nº 207/2018, que discorre acerca da composição do CONDEL, que
contém representações de órgãos públicos, do setor de ensino, pesquisa e extensão, os
usuários do território, beneficiários da unidade e moradores do entorno e organizações
sociais.
O CONDEL em vigência era constituído somente por duas mulheres, sendo uma
usuária da RESEX, pertencente a Comunidade Fazendinha, e outra docente da
Universidade Federal Rural da Amazônia. Identificou-se, assim, que a participação feminina
ainda é diminuta nas deliberações da reserva. Torres (2009), explica que a partir do
ecofeminismo construtivista deve-se atentar como o papel das mulheres nas questões
ambientais está atrelado à inferioridade atribuída ao gênero feminino, devido a divisão social
do trabalho e opressão das mulheres em diversos aspectos sociais.

Percepção socioambiental das Mulheres da Comunidade Fazendinha


Para avaliação da percepção socioambiental das mulheres da Fazendinha,
questionamentos foram realizados acerca dos impactos ambientais na comunidade. Ao
serem perguntadas sobre o conceito de impacto ambiental, buscou-se uma abordagem mais
simples e acessível, em que foram citados alguns exemplos de impactos a serem indicados
pelas entrevistadas. Na Figura 4, é possível observar os principais impactos, em que a
maioria das mulheres indicou a poluição hídrica (31,3%), seguido do descarte inadequado
de resíduos sólidos no local (20%), desmatamento (18,8%) e pesca predatória (13,8%).
Figura 4 - Conhecimento das mulheres da comunidade Fazendinha sobre impactos
ambientais.

Fonte: Autoria própria.

517
Em contraponto aos dados obtidos em 2019 nesta pesquisa, o estudo socioambiental
efetuado pelo ICMBio em 2012 (ICMBio, 2014), em todas as comunidades beneficiárias,
apontou que a maioria dos entrevistados (73%) indicou desmatamento, queimadas e caça
como problemas ambientais mais ocorrentes até o ano de 2012. Nota-se que os impactos
ambientais identificados na região são diferenciados ao longo do tempo. Enquanto
desmatamento e caça estavam entre os principais impactos presentes nas comunidades, as
mulheres da Fazendinha apontaram a poluição do rio Cuinarana na maioria das respostas.
Conforme os relatos obtidos ao longo da pesquisa, constatou-se que ―poluição
hídrica‖ foi um dos impactos ambientais mais citados, por interferir diretamente na fonte de
renda e subsistência das mulheres residentes, o rio Cuinarana. Por vezes foram expostos
acontecimentos envolvendo presença de resíduos sólidos no corpo hídrico, geralmente
advindo de localidades próximas.
Com relação aos resíduos sólidos na comunidade, verificou-se que há serviço de
coleta fornecido pela prefeitura de Magalhães Barata. A coleta ocorre uma vez por semana,
recolhendo os resíduos deixados pelos moradores em frente às residências. De acordo com
as entrevistadas, o acúmulo e a destinação inadequados de resíduos sólidos resultaram em
diversos impactos na comunidade Fazendinha. Vale salientar que praticamente a totalidade
de entrevistadas indicou poluição hídrica, contaminação do solo, proliferação de vetores,
impacto visual e odores como impactos presentes na comunidade, no período anterior ao
início da coleta de resíduos efetuada pela prefeitura.
Deve-se atentar que a coleta realizada pela prefeitura tardou a ocorrer, iniciando
somente em maio de 2017, que segundo relatos das entrevistadas, se deu após um grupo
de mulheres da comunidade realizarem reuniões e exigir do poder público soluções para a
questão dos resíduos na comunidade. Por meio da iniciativa das moradoras da Fazendinha,
que foram competentes em observar e identificar os impactos socioambientais que o
acúmulo e descarte incorreto de resíduos estavam causando na comunidade, foi possível
viabilizar a coleta de resíduos e a redução de impactos. Esta perspectiva adotada pelas
mulheres reforça o conceito de percepção ambiental de Botega e Lindino (2017), que
considera a observação do meio e como este é compreendido, e como as relações de
comunidade e o meio ambiente podem ser melhor analisadas.
Embora a coleta de resíduos ocorra, quando questionadas a respeito da destinação
dada aos resíduos domiciliares, as mulheres residentes revelaram outras destinações,
conforme Figura 5. A queima foi mencionada em cerca de 36% das respostas, ficando atrás
somente da coleta realizada pelo serviço público, citado anteriormente.

518
Figura 5 - Destinação de resíduos domiciliares pelas mulheres na Comunidade Fazendinha

Fonte: Autoria própria.

Apesar de 55,5% das entrevistadas declararem conhecer o termo coleta seletiva ou


compreender o que este representa, percebe-se que as mulheres possuíram poucas
orientações acerca da gestão de resíduos sólidos dentro da comunidade. A queima de
resíduos sólidos, principalmente dos tipos papel e plástico, é comumente realizada por
constituir um hábito nas residências das famílias que compõem a Fazendinha.
O relatório ―Pró Catador – Ativação Pará‖ de Magalhães Barata, do ano de 2014,
fornecido pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SEMMA), esclareceu que foi
elaborado o Plano Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos (PGRS), previsto no Plano
Nacional de Resíduos Sólidos instituído pela Lei nº 12.305/2010, e que inclui os resíduos
coletados na Comunidade Fazendinha. Entretanto, a destinação final dos resíduos foi
considerada inadequada, sendo realizada em lixão a céu aberto, ausente de qualquer
tratamento. O gerenciamento de resíduos no município deve ser realizado da maneira
correta, abrangendo os processos de coleta, transporte, transbordo, tratamento, destinação
e disposição final ambientalmente adequadas, como previsto na legislação. Dentre os
objetivos verificados no relatório, estão a implementação do PGRS, a construção de um
aterro sanitário e introdução da coleta seletiva, o quais não foram cumpridos até janeiro de
2019.
De acordo com Bringhenti e Günther (2011), a participação social é fundamental para
implementação e efetivação de programas e projetos direcionados aos resíduos sólidos,
como a coleta seletiva. Os autores asseguram que a sensibilização das comunidades é
necessária, assim como a compreensão e integração dos conceitos nas atividades
cotidianas da população, visto que desta maneira garante-se a efetividade,
operacionalização e seguimento dos planos e práticas.

519
Quanto ao reaproveitamento de resíduos sólidos, as mulheres da comunidade
Fazendinha demonstraram conhecer sobre reciclagem e reutilização de materiais
recicláveis. Cerca de 89% das entrevistadas reconheceram que existem possibilidades de
reaproveitar materiais e ainda, obter renda a partir desses processos. Dentre alguns
exemplos mencionados durante as entrevistas, a criação de artesanatos a partir do plástico
foi bastante citado.
Já no que se referem às atividades extrativistas, as mulheres foram questionadas
sobre geração de resíduos na pesca e coleta de mariscos (ostras), bem como do
beneficiamento das espécies extraídas. A maioria das entrevistadas (78%) concordou que
são gerados resíduos, sobretudo após beneficiamento de pescado, camarões e siri. Estes
resíduos são considerados do tipo orgânico, e a destinação final adequada pode envolver
compostagem e utilização como adubo. No que tange à extração das ostras, foi relatado que
os resíduos produzidos eram referentes às ―cascas‖ ou conchas, que durante a coleta eram
retiradas e depositadas no leito ou próximo ao rio Cuinarana.
A Figura 6 mostra as destinações, mencionadas nas entrevistas, para os resíduos
das atividades extrativistas no rio Cuinarana. O lançamento no quintal obteve destaque com
28,6% de menções, local de destinação geralmente utilizado para restos de peixe e
camarão, seguido do lançamento no corpo hídrico, relativo às conchas das ostras deixadas
pelas marisqueiras. Ainda, o reaproveitamento foi citado em 14,3% das respostas, e está
relacionado ao uso dos resíduos como adubo de plantas e como alimento para animais.

Figura 6 - Destinação de resíduos das atividades extrativistas realizadas pelas mulheres


na Comunidade Fazendinha

Fonte: Autoria própria.

520
Com relação ao reaproveitamento ou reciclagem dos resíduos gerados nas
atividades extrativistas, 96,3% das entrevistadas não conhecem nenhuma prática nesse
aspecto envolvendo resíduos de pescado e camarão. Portanto, é possível verificar que as
moradoras da Fazendinha pouco conhecem acerca de outras formas de geração de renda,
principalmente a partir do reaproveitamento de resíduos de pesca. Este fato pode ser
corroborado, ainda, pelos resultados na caracterização socioeconômica sobre as atividades
econômicas desenvolvidas pelas mulheres. As funções das mulheres na comunidade estão
bastante atreladas à agricultura e ao lar, limitando a visão delas ante as novas formas de
trabalho. Além disso, a continuidade dos estudos auxiliaria na aprendizagem sobre a
destinação ambientalmente adequada e práticas de reutilização de resíduos, bem como
cursos de capacitação para estas mulheres.
Apesar da destinação final de resíduos domiciliares e de atividades extrativistas
ainda seja considerada inadequada, constatou-se que o envolvimento das mulheres foi
primordial para diminuição dos resíduos na comunidade Fazendinha. Através da mobilização
de mulheres, soluções foram propostas e medidas mais rápidas foram implantadas, como a
coleta semanal do serviço público, que tornou a comunidade mais organizada e atenta à
disposição dos resíduos na área.
No entanto, o impacto socioambiental de maior notoriedade, citado anteriormente, foi
o desaparecimento das ostras, interferindo diretamente no cotidiano de todas as mulheres
que dependiam da extração de ostras para sustento e geração de renda. De forma
semelhante, Oliveira (2012) em pesquisa realizada na RESEX de Soure, comunidade Caju-
Una, identificou como principal impacto ambiental a pesca predatória que, por meio de
tecnologias e ferramentas mais avançadas, ocasionou modificações no processo da pesca
artesanal local e no ecossistema.
Acredita-se, que em 13,8% das respostas, sobre impactos ambientais na
comunidade (Figura 4) estava presente a ―pesca predatória‖, devido maior capacidade de
percepção das mulheres no que diz respeito à extração de espécies no corpo hídrico,
principalmente as marisqueiras diretamente envolvidas com a coleta de ostras. Em
contrapartida, ainda no estudo de Oliveira (2012), os entrevistados da comunidade Caju-Una
identificaram que a falta de estabelecimento do plano de manejo e pouco uso deste por
parte dos usuários da RESEX de Soure, foram fatores que contribuíram para a ocorrência
de impactos socioambientais, no caso a pesca predatória e diminuição de espécies no corpo
hídrico.
Deste modo, os moradores da comunidade Caju-Una foram capazes de propor
medidas mitigadoras, como efetuar acordos entre comunidades beneficiárias da RESEX,
para utilização e proteção dos espaços de uso comum. Por outro lado, as mulheres da

521
Fazendinha demonstraram desconhecer os instrumentos a serem utilizados na gestão da
RESEX Marinha Cuinarana, como o plano de manejo e o CONDEL, e que seriam capazes
de auxiliar na resolução de impactos ambientais. Isto se deve à pouca participação das
mulheres nas decisões sobre a RESEX, resultante do reduzido conhecimento acerca de
conceitos, impactos e soluções socioambientais.
Dias, Rosa e Damasceno (2007) afirmam que há desvalorização do trabalho das
marisqueiras em unidades de conservação, como na Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Ponta do Turbarão (RN), e que o entendimento destas mulheres sobre meio
ambiente é imprescindível para a valorização da atividade extrativista e gestão da reserva.
Nesse sentido, a percepção socioambiental das marisqueiras referente ao desaparecimento
das ostras na nascente do rio Cuinarana, expressa que a falta de reconhecimento da coleta
de mariscos como atividade econômica, e não somente como complemento de renda,
também ocasionou a pouca relevância dada a este impacto ambiental grave.
A partir disso, as mulheres foram perguntadas sobre a importância da figura feminina
na preservação ambiental na comunidade Fazendinha e na gestão da RESEX Marinha
Cuinarana. Todas as entrevistadas afirmaram que as mulheres na comunidade podem
garantir maior proteção ao ecossistema, e principalmente ao rio Cuinarana. Este dado se
deve à união das mulheres para conversação e elaboração de propostas que objetivam
realizar melhorias na comunidade, o que foi perceptível durante as entrevistas informais e
visitas no local.
Em estudo na RESEX Acaú-Goiana (Pernambuco), Maira Lima (2016) observou que
as contribuições dos beneficiários da reserva, incluindo insatisfações sobre impactos
ambientais, obtiveram mais reconhecimento e notoriedade a partir do momento em que as
comunidades compreenderam melhor sobre meio ambiente e a gestão da RESEX. E do
mesmo modo que a movimentação feminina deu início a mudanças na comunidade
Fazendinha, em relação aos resíduos sólidos, as mulheres têm capacidade de envolver e
encorajar a comunidade, em especial as marisqueiras para resolução de impactos
ambientais como o desaparecimento de ostras às margens do rio Cuinarana.

Considerações Finais
A partir das análises realizadas nesse trabalho, pode-se verificar que as mulheres da
comunidade Fazendinha carecem de uma organização social mais consolidada, e que
atenda às necessidades das atividades econômicas que desenvolvem. Contudo, a união das
moradoras é perceptível, demonstrando a importância da mobilização das mulheres e

522
de espaço nas tomadas de decisão, principalmente no que diz respeito à gestão da RESEX
Marinha Cuinarana.
Pela avaliação da percepção socioambiental, as mulheres da comunidade
Fazendinha possuem percepção alta, visto que sabem reconhecer impactos ambientais que
afetam direta e indiretamente a comunidade. Diante disso, nota-se como a união feminina é
fundamental para garantir melhorias na comunidade e no meio ambiente, já que em 2017
obteveram a coleta de resíduos para comunidade. No entanto, o desaparecimento das
ostras na nascente do rio Cuinarana é outro impacto socioambiental que aflige a
comunidade, em especial as mulheres marisqueiras, e que requer solução. E para tal,
orientações acerca dos conceitos ambientais e das funções da RESEX são necessárias,
uma vez que a obtenção de conhecimento pode tornar as mulheres mais participativas e
empoderadas.
A criação de uma associação de marisqueiras seria o primeiro passo para
impulsionar a movimentação dessas trabalhadoras, para maior valorização dessa atividade
e exigência de maior atuação de órgãos ambientais e universidades, a fim de desenvolver
medidas necessárias, como projetos de manejo sustentável de ostras. Desta forma, os
órgãos e instituições públicas devem integrar os conhecimentos acadêmicos e das
mulheres, para gestão, planejamento e execução de ações de preservação dos recursos
naturais.
Fundamentando-se nessa ideia, o estudo sobre as mulheres da Fazendinha, sua
relação com o meio ambiente e a RESEX, pode ser utilizado na identificação e solução de
impactos socioambientais de outras comunidades, além na promoção de melhorias nas
condições de trabalho e na qualidade de vida dessas mulheres e das comunidades
tradicionais. Vale frisar, que são escassas as pesquisas que foquem na perspectiva feminina
do meio ambiente, bem como nas relações de gênero e sua correlação com a degradação
ambiental. E não se pode desprezar o papel essencial que as mulheres têm nas
comunidades tradicionais, que expressam sua força e determinação no desenvolvimento de
suas histórias, tradições, atividades econômicas e na conservação ambiental.

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525
UMA REFLEXÃO SOCIOLÓGICA DO DESEMPREGO ENTRE AS MULHERES NO
BRASIL

https://doi.org/10.29327/527231.5-35 1
Ivanete Modesto do Amaral
RESUMO

O interesse da sociologia pelos estudos do mercado de trabalho vem se intensificando nas


últimas décadas onde o desemprego tem sido cada vez mais objeto de investigação científica,
intervenção estatal e debates públicos. A desestabilização do trabalho assalariado estável é o
centro nevrálgico da crise contemporânea do trabalho e o desemprego é um dos principais
sintomas. Este artigo procura refletir o desemprego, definido inicialmente como uma categoria
social objetiva - que se materializa em dados estatísticos institucionais e oficiais – e, subjetiva -
de percepção da realidade onde este, não afeta os indivíduos de maneira homogênea no espaço
econômico da experiência de trabalho. É neste sentido que a abordagem do desemprego aqui
proposta supõe considerá-lo um fenômeno constituído pelas relações sociais, sobretudo pelas
relações de gênero. Para isso, utilizou-se como recurso metodológico as estatísticas de órgãos
oficiais como o IBGE e Ministério do Trabalho que baseados na PNAD Contínua e Caged
mostram a vulnerabilidade das mulheres como as mais afetadas entre o contingente de
desempregados no Brasil, nos anos 2017/2018. Os resultados demonstram que o maior índice do
desemprego recai sobre as mais jovens e com baixa escolaridade.
Palavras-chave: Mercado de Trabalho. Desemprego. Sociologia Econômica. Gênero.
ABSTRACT

Sociology's interest in labor market studies has intensified in recent decades where
unemployment has been increasingly the subject of scientific research, state intervention and
public debate. The destabilization of stable wage labor is the nerve center of the contemporary
labor crisis and unemployment is one of the main symptoms. This article seeks to reflect
unemployment, initially defined as an objective social category - materialized in institutional
and official statistical data - and, subjective - perception of reality where it does not affect
individuals homogeneously in the economic space of work experience. . It is in this sense that
the approach to unemployment proposed here supposes to consider it a phenomenon
constituted by social relations, especially gender relations. For this, we used as methodological
resource the statistics of official bodies such as IBGE and Ministry of Labor that based on
PNAD Continuous and Caged show the vulnerability of women as the most affected among the
contingent of unemployed in Brazil, in the years 2017/2018. . The results show that the highest
unemployment rate is among the youngest and those with low education. Keywords: Labor
Market. Unemployment. Economic Sociology. Genre.

Vinculada à Universidade do Estado do Pará (UEPA); Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

526
1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo mostrar uma reflexão sociológica do desemprego entre as
mulheres no Brasil, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes
ao último trimestre de 2017 e início de 2018. Complementarmente, serão utilizadas as
informações da pesquisa do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do
Ministério do Trabalho.
Sabe-se que a crescente ampliação do desemprego é um dos principais problemas
brasileiros, segundo argumentação de especialistas no assunto, pesquisadores e estudiosos de
um modo geral. É quase consenso de que a melhor forma para reduzir o desemprego é o
crescimento econômico com geração de empregos. Tradicionalmente, o desemprego é maior
entre as mulheres e assim como os jovens, os pretos e pardos, a população feminina é ainda uma
das mais afetadas pela falta de oportunidades no mercado de trabalho. Isso parece evidente
quando se considera a desigualdade social na inserção ocupacional, gerada a partir de padrões
distintos como, por exemplo, níveis de rendimento, níveis de escolaridade, etc.
Observa-se que o desemprego feminino é ainda duradouro, menos visível e mais
tolerado, difícil de sair desse cenário a partir dos instrumentos de medida estabelecidos visto
que as mulheres levam mais tempo desempregadas do que os homens. Isto parece não ser
considerado um problema social, motivo que desperta reflexões sociológicas no sentido de que
as mulheres continuam a ter menor representação entre a população ativa e maior entre os
desempregados, sendo este um ponto importante para estudar o tema e mostrar a relevância da
discussão.
Muito embora as mulheres venham cada vez mais ocupando um espaço significativo no
mercado de trabalho, porém, uma observação maior sobre essa crescente inserção, revela a
persistência de desigualdades em relação à condição masculina no que diz respeito às
oportunidades, aos rendimentos e à qualidade de emprego. Isto significa dizer que, para a
sociedade, ele (o desemprego feminino) parece ser menos grave, menos perturbador e menos
preocupante onde, nas políticas públicas de emprego, a luta contra o desemprego das mulheres
jamais foi colocada como prioridade (Maruani, 2011) ainda que as mulheres sejam provedoras
supostamente de 40% dos domicílios brasileiros e, em outros tantos, sua contribuição à renda
familiar seja imprescindível.
No Brasil, a categoria desemprego como categoria estatística (objetiva) é considerada
ambígua e marcada por tensões, visto o processo de categorização estatística do trabalho e do
desemprego seguir as normas internacionais definidas no âmbito da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), que orientam a construção das estatísticas oficiais. Ou seja, essas normas,
seguem elas próprias certas representações do trabalho dominante nos países desenvolvidos que

527
paralisam certo estado das relações sociais de classe naqueles países e exprimem, em termos
2
estatísticos, a norma do “emprego estável” . São essas representações muitas vezes
questionadas pelas instituições que propõem formas alternativas de medir o desemprego no
Brasil, como o próprio IBGE.
Sabe-se que, analisar o desemprego no Brasil não é algo simples se pensarmos que
órgãos oficiais como o IBGE, por exemplo, utilizam conceitos, classificações e métodos
prescritos no âmbito da OIT para medição dos níveis de emprego. Isso acaba refletindo na
complexidade que há no mercado de trabalho, até porque, leva a questionamento dos próprios
pesquisadores/especialistas de que não é possível analisar o mercado de trabalho brasileiro
apenas com o Caged, uma vez que a economia tem uma alta taxa de informalidade. Por isso, a
Pnad Contínua costuma ser mais utilizada no cálculo de desemprego.
Diante disso, surgiram questionamentos assim descritos: a) qual é a definição de
desemprego proposta pela OIT que os países devem seguir? b) Como é definida a categoria
desempregado (a) no Brasil e quais são os critérios metodológicos? e c) Qual a taxa de
desemprego entre as mulheres no Brasil e como é medido esse desemprego já que, no geral, o
termo habitualmente utilizado pelas estatísticas oficiais é de “desocupado”? Essas questões
estão no centro de discussão deste artigo e serviram de base para o objetivo que se propôs, ou
seja, analisar numa visão sociológica o desemprego das mulheres como categoria objetiva
(estatísticas oficiais) e subjetiva (enquanto construção social).
Em um país como o Brasil, marcado por uma forte precariedade do trabalho, o que está
em xeque é o próprio conceito de trabalho que, aliás, é uma problemática de consequência
global. Assim sendo, as formas de desemprego, bem como as categorias da população ativa, os
tipos de emprego, subemprego ou não empregos, são considerados elementos socialmente
constituídos e como tal, devem ser estudados.
Dessa forma, vale lembrar, sob a ótica da sociologia econômica que não é mais possível
compreender o mercado apenas como premissa da ação econômica ou, como um mecanismo
abstrato cujo estudo é feito de maneira estritamente dedutiva, mas, como resultado concreto de
formas específicas socialmente determinadas de interação social, ou seja, compreendê-lo sob o
ângulo social (estruturas sociais) onde o estudo sobre os seus mecanismos pode ser realizado de
maneira “indutiva e subjetiva”. Nesse sentido, mercado de trabalho evidencia mecanismos de
relações sociais (ABRAMOVAY, 2004).
No tocante a metodologia utilizada para a elaboração deste artigo, foram revistas fontes
estatísticas dos órgãos oficiais no Brasil que trabalham com a medição do emprego e
desemprego, isto porque, o interesse por este estudo foi despertado quando da leitura sobre os
resultados das pesquisas mostradas por esses órgãos, tais como: PNAD/IBGE, CAGED entre

Nos argumentos de Meleu e Massaro (2017) A realidade da normatização do trabalho, de caráter social, regulatório e
balizador, também, sente os reflexos do fenômeno globalizante, que empurra para a uniformização as relações entre capital
e trabalho, desconhecendo, deliberadamente, realidades diferentes entre os diversos países do mundo.

528
outros, que apresentaram índices elevados do desemprego das mulheres, no último trimestre de
2017 e início de 2018.
A partir do conhecimento desses dados estatísticos, se despertou para uma reflexão
mais aprofundada que levou a questionamentos já citados anteriormente, os quais ampliaram as
leituras e releituras de autores da sociologia econômica, da sociologia do trabalho e como
complemento teórico, da sociologia do desemprego, sendo esta aparentemente, uma perspectiva
de leitura nova para a pesquisadora, que precisou entender melhor: o que significa a categoria
social de desempregado? Justificando-se o estudo da abordagem sociológica do desemprego.
Como produto final deste estudo, o artigo estrutura-se em três seções e mais as
Considerações Finais. A primeira seção trata da Introdução que mostra uma rápida
contextualização do tema, incluindo-se a justificativa, objetivo, problema e metodologia. Em
seguida, na segunda seção, faz-se uma discussão das categorias teóricas centrais neste artigo:
Mercado de Trabalho, Emprego/desemprego, gênero (mulheres desempregadas) se apoiando
numa abordagem sociológica (sociologia econômica, sociologia do Trabalho e sociologia do
desemprego). Continuando, na terceira seção, apresentam-se os índices percentuais sobre o
desemprego das mulheres no Brasil, ilustrados através de imagens visuais gráficas (infográficos)
por órgãos oficiais, seguidos de uma breve discussão desses dados empíricos.

ELEMENTOS HISTÓRICO/TEÓRICOS DO DESEMPREGO

Nas últimas décadas do século XX e nas atuais do século XXI, o crescimento do


desemprego provocou uma retomada do debate teórico com relação às causas desse fenômeno que se
manifesta em dimensão global. Desde o início dos anos setenta com a crise do modelo econômico do
pós-guerra, alicerçado pelo pleno emprego e forte intervenção do Estado Protetor, que as taxas de
desemprego começaram a crescer rapidamente o que torna o desemprego um fenômeno durável e
aqui no Brasil, atinge parte expressiva da população trabalhadora.
Por muito tempo o desemprego foi um tema de pesquisa que ficou limitado aos
economistas, considerados os especialistas em estudar e avaliar as grandes transformações no
mercado de trabalho. Na visão dos estudiosos, o social ocupava um papel secundário o que
significa dizer, conforme as autoras Maruani & Reynaud (2004), que o desemprego permaneceu
um objeto de estudo relativamente periférico, com pesquisas sociológicas muito distantes dos
desempregados, pois mostrava estar mais próximo de temas como, por exemplo, a pobreza, do
que dos tradicionais temas relativos ao mundo do trabalho: as empresas, as relações e processos
de trabalho, a qualificação dos trabalhadores e as tecnologias, assuntos estes de grande interesse
aos sociólogos. Assim, o tema do desemprego escapava aos quadros de referência estabelecidos
pela sociologia do trabalho.

529
Contudo, foi no início dos anos 80 do século XX, que as pesquisas sobre emprego e
desemprego e, precisamente, uma sociologia do desemprego, ganharam ênfase por meio de
novos estudos e pesquisas que passaram a se consolidar em termos de categoria social. Nesse
período, surgiram propostas teórico-metodológicas que vão iniciar uma abordagem do
desemprego enquanto “categoria oficial” e “institucional” que levam a uma abordagem dos
processos subjetivos de categorização do desemprego a partir de pesquisas sobre vivências e
experiências dos desempregados.

2.1 DEFINIÇÃO DO DESEMPREGO PELA ECONOMIA E SOCIOLOGIA

Do ponto de vista econômico, o desemprego é analisado como o resultado de processos


econômicos em transformação (produção e consumo, oferta e demanda de mão-de-obra, renda,
lucro, investimentos, etc.) ou, como o resultado de um desequilíbrio, seja dos fatores
econômicos e dos preços, seja dos mecanismos de regulação. Na visão de Proni, 2015, p.1

Empiricamente, as oscilações na taxa de desemprego acompanham as


flutuações da atividade econômica: em períodos de depressão econômica o
desemprego se torna uma questão social de maior proporção; em períodos de
crescimento do nível de atividade o problema tende a diminuir. Mas, a causa
do problema pode variar de acordo com o perfil dos desempregados, sendo
necessário verificar se a privação de trabalho é generalizada ou atinge só os
grupos mais vulneráveis e medir o tempo médio que permanecem
3
desempregados

Com relação à parte teórica sobre o desemprego, o autor PRONI, argumenta:

O debate teórico sobre o desemprego exprime outro rol de preocupações, procurando


discutir se o problema resulta de mecanismos inerentes ao desenvolvimento capitalista
ou de interferências externas ao funcionamento dos mercados, se decorre de condições
estruturais ou de atributos individuais. Do ponto de vista macroeconômico, pode-se
argumentar que o desemprego corresponde a uma situação involuntária, na qual há
geração insuficiente de postos de trabalho para ocupar o conjunto da população
trabalhadora. Numa perspectiva microeconômica, pode-se supor que o desemprego
decorre de escolha voluntária motivada pela generosidade do seguro-desemprego, que
desestimula o desempregado a aceitar um salário menor (PRONI, 2015, p.1-2).

Com a fala desse autor, entende-se que a temática do desemprego para a economia é
estudada sob duas abordagens teóricas: 1) microeconômica que identifica o funcionamento do
mercado de trabalho determinado por sua própria dinâmica, onde se pode supor que o
desemprego é visto pelos indivíduos em seus comportamentos, por exemplo, “escolha

A Organização Internacional do Trabalho define o desemprego como uma situação em que o indivíduo i) não está
economicamente ocupado, ii) está disponível para trabalhar e iii) tomou alguma providência para procurar um
trabalho remunerado. Embora essa definição seja amplamente aceita, há controvérsia sobre a classificação de pessoas
que trabalham de forma esporádica, provisória e improvisada, ou que não procuram trabalho porque estão
desalentadas e sem perspectiva de contratação. Ou seja, a privação de um emprego pode se manifestar de maneiras
distintas, dificultando a mensuração do fenômeno. Mas, em geral, tais nuanças não são consideradas nas teorias sobre
o desemprego (PRONI, 2015,p.1).

530
voluntária...”. Nessa linha de raciocínio pensa-se, que o problema do desemprego visto nessa
explicação do autor, não pode supor apenas a parte dos indivíduos, também, de outros agentes
econômicos (empresas, Estado e suas agências) no sentido de serem considerados e analisados
em termos de uma racionalidade instrumental a partir da qual eles tomam suas decisões, como,
as políticas de ajuste econômico adotadas para ajuste da economia. 2) macroeconômica que
relaciona o comportamento geral do mercado de trabalho ao ritmo de expansão do conjunto da
economia como um todo.
Em se tratando de análise de desemprego, os economistas Passos e Nogami (2005),
argumentam que as causas desse fenômeno podem variar a partir de pelo menos quatro tipos de
desemprego: 1) desemprego friccional ou natural – indivíduos que se encontram desempregados
temporariamente, porque estão mudando de emprego ou, porque estão procurando emprego pela
primeira vez. Recebe esta nomenclatura porque o mercado de trabalho, segundo os autores,
opera com atrito, não combinando trabalhadores e postos disponíveis de trabalho, sendo que sua
duração vai depender dos benefícios dados aos desempregados, como o seguro desemprego; 2)
desemprego estrutural – consequência das mudanças estruturais da economia tais como,
mudanças nas tecnologias de produção ou nos padrões de demanda dos consumidores; 3)
desemprego sazonal – ocorre em função da sazonalidade de determinados tipos de atividades
econômicas tais como agricultura e turismo, e que acabam causando variações na demanda de
trabalho em diferentes épocas do ano; 4) desemprego cíclico (involuntário ou conjuntural) -
ocorre quando se tem uma recessão da economia, o que significa retração na produção. As
empresas são obrigadas a dispensar seus funcionários para cortar despesas.
Portanto, pode-se dizer que a maneira como os economistas analisam o problema, ou
seja, a dimensão do desemprego no interior do mercado de trabalho, geralmente, é vista como
resultante da insuficiência geral de demanda efetiva na economia nacional. E romper com esse
modo de pensamento em direção a uma perspectiva sociológica significa não apenas
problematizar o desemprego como categoria analítica, mas de abordá-lo como categoria prática
a partir da qual os atores sociais concretos agem no mundo social. Significa dizer que o
desemprego não deve ser olhado somente pelos dados das estatísticas oficiais, mas, adotar uma
episteme, um conhecimento metodológico/científico que possa compartilhar especificidades e
objetos de estudo diferentes do conhecimento econômico, problematizando o desemprego em
direção ao modo como este fenômeno aparece e é definido no mundo social, como uma
categoria prática dos atores sociais, situados no mundo.
A noção de crise, por exemplo, num contexto do mercado de trabalho, refere-se,
sobretudo, a uma crise de emprego. Nestes termos, as mutações no mercado de trabalho e o
déficit estrutural de empregos manifestam-se não apenas por uma escassez na geração de novos
postos de trabalho, mas também por um processo de precarização do emprego. Multiplicam-se
as modalidades de contratação até então consideradas atípicas, como o contrato de trabalho por

531
prazo determinado, o trabalho temporário, o trabalho em tempo parcial, os estágios e os
contratos relacionados à aprendizagem profissional.
Para a sociologia do desemprego, é a “norma do desemprego” que é posta em questão,
tendo em vista a implosão da representação tradicional do desemprego como privação
provisória e transitória de emprego. Na compreensão de Demazière (2003), o desemprego torna-
se não apenas um fenômeno de massa, mas também uma experiência cada vez mais recorrente e
prolongada nas trajetórias ocupacionais dos trabalhadores. É um fato que produz um efeito
importante tanto sobre as identidades desses trabalhadores privados de emprego como sobre o
“estatuto social” dos mesmos, a partir das políticas públicas de tratamento e combate ao
fenômeno.
Nas explicações de Demazière (2003), o desemprego é estudado em duas categorias: 1)
analítica - estudado pelos cientistas sociais para investigar o mundo social; 2) prática -
mobilizado pelos atores sociais para interpretar e orientar seus comportamentos nesse mundo.
Portanto, a proposta da sociologia do desemprego é pela categorização social, no sentido de que
o desemprego é uma categoria prática onde a noção de crise do desemprego produz um efeito
importante sobre as identidades dos trabalhadores sem emprego, problema crucial por parte dos
desempregados de longa duração.

2.2 DEFINIÇÃO DO DESEMPREGO PELA OIT E A CATEGORIZAÇÃO ESTATÍSTICA


NO BRASIL

Para o autor Vargas (2008), a categoria desemprego como categoria estatística é


ambígua e marcada por tensões. Por um lado, o processo de categorização estatística do trabalho
e do desemprego segue as normas internacionais definidas no âmbito da Organização
Internacional do Trabalho, por outro, tensões internas à sociedade brasileira implicam a
produção de novas formas de categorização estatística. Isto porque, a causa do fenômeno do
desemprego pode ter diferentes explicações, peculiares a cada nação. No Brasil, segundo dados
da PNAD Contínua/IBGE, referente ao quantitativo de desocupados, nos anos 2017/2018
existiam 12,5 milhões de pessoas desocupadas. Para Galeazzi (2002), o desemprego é definido
como "a ausência de trabalho acompanhada da disponibilidade de trabalhar, com a busca por
trabalho". Ou seja, uma categorização utilizada pelo IBGE a partir das normas da OIT.
Nos argumentos de Vargas (2008), as normas definidas pela OIT caracterizam o
desemprego a partir de três critérios fundamentais: 1) Estar sem trabalho remunerado durante o
período de referência da pesquisa (semana precedente); 2) Estar imediatamente disponível para
trabalhar; e 3) Procurar efetivamente um trabalho remunerado (semana ou 30 dias precedentes).
Nesse caso, ela exclui todos aqueles que ocupam um trabalho ou emprego irregular, instável ou
ocasional.

532
No Brasil, essa situação de emprego irregular é particularmente das pessoas que
realizam os chamados “bicos” e “trabalhos eventuais”. As pessoas que não estão imediatamente
disponíveis são também excluídas. É o caso, por exemplo, das mulheres que, desejando ter um
emprego, não podem procurar ou assumir um trabalho por causa de responsabilidades e
compromissos domésticos imediatos. Os desempregados mais velhos e os desempregados
desencorajados que ficam durante longos períodos sem procura e sem esperança de obter um
trabalho, são também excluídos desta categoria devido à ausência de atitudes comportamentais
concretas que atestem a procura de trabalho durante o período de referência.
Na compreensão de Vargas (2008), essa definição de desemprego proposta pela OIT, é
utilizada para fazer as comparações internacionais, porém, produz uma homogeneização e
padronização nos conceitos de trabalho e desemprego, através de um modelo normativo onde a
forma de trabalho sofre fissuras nos próprios países centrais do capitalismo mundial. É esse
modelo normativo com suas representações do trabalho e do desemprego, que é posto em xeque
por diversos especialistas e instituições encarregadas de produzir dados estatísticos no Brasil.
Como em outros países, no Brasil existem diferentes instrumentos destinados à
4
contagem do número de desempregados. As pesquisas do IBGE (PNAD Contínua) e do
Ministério do Trabalho e Emprego (Caged) constituem dois tipos distintos de metodologias
destinadas a medir o fenômeno do desemprego. As diferentes maneiras de conceber o trabalho e
de categorizar o desemprego nestas pesquisas expressam as tensões e ambiguidades das formas,
relações e representações do trabalho e da privação do trabalho na sociedade brasileira.
Importante lembrar que o IBGE não utiliza o termo “desemprego” como indicador de
“privação do trabalho” e, sim, refere-se ao termo “desocupação”. E para ser considerado
desocupado, o trabalhador precisa estar sem trabalho, à procura de trabalho e imediatamente
disponível. A aplicação desses critérios fixados pela OIT para definir o desemprego é entendida
por estudiosos (VARGAS, 2008) como bastante problemática em um país como o Brasil,
marcado pela forte presença de formas e relações de trabalho não assalariadas e altamente
precárias.
O primeiro dos instrumentos são os censos demográficos, realizados no Brasil a cada
dez anos (IBGE, 2010). Segundo o IBGE, o primeiro recenseamento da população do Brasil foi
efetuado em 1808, visando atender especificamente a interesses militares, de recrutamento para
as Forças Armadas. A periodicidade da pesquisa é decenal, excetuando-se os anos de 1910 e
1930, em que o levantamento foi suspenso, e 1990, quando a operação foi adiada para 1991.
Sua abrangência geográfica é nacional, com resultados divulgados para o Brasil, Grandes
Regiões, Unidades da Federação, Mesorregiões, Microrregiões, Regiões Metropolitanas,
Municípios, Distritos, Subdistritos e Setores Censitários. Esses censos demográficos são

O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - é o órgão oficial brasileiro encarregado do sistema
estatístico de medição do desemprego.

533
planejados para serem executados nos anos de final zero, ou seja, a cada dez anos. Dessa forma,
o último censo realizado no Brasil foi no ano de 2010. No intervalo entre dois censos
demográficos, realiza-se a contagem da população. A fase de coleta do Censo 2020, que
compreende a aplicação do questionário básico e da amostra, será realizada entre os meses de
agosto a outubro do próximo ano de 2020.
Ainda segundo o autor Vargas (2008) a partir do Censo de 2000, foram introduzidas
várias inovações metodológicas no que se refere à questão do trabalho. Essas modificações
visaram não apenas dar conta das transformações que ocorreram na sociedade brasileira nos
últimos cinquenta anos, mas também adequar as pesquisas realizadas no país às orientações
internacionais. Para esse autor, as mais importantes modificações desse Censo foram:
Definição de atividade e o conceito de trabalho. Até o censo de 1991, o cálculo da população
economicamente ativa – PEA era mais restrito, abrangendo tanto o trabalho remunerado
(em dinheiro, produtos, mercadorias ou benefícios) como o trabalho não remunerado na
ajuda de algum negócio ou estabelecimento. Porém, apenas eram considerados ocupados os
indivíduos que trabalhavam 15 horas semanais ou mais. Os que trabalhavam menos de 15
horas semanais eram considerados inativos.
O conceito de atividade e, portanto, de trabalho é ampliado. Neste sentido, passa-se a incluir na
população ativa ocupada, os indivíduos ligados à produção doméstica para o autoconsumo
e/ou que trabalham menos de 15 horas por semana sem remuneração. Tal modificação, ao
ampliar a população economicamente ativa e ocupada, afeta diretamente o cálculo das taxas
de desocupação que tendem a ser menores.
Idade de referência para definir a população em idade ativa. Antes de 2000, eram apenas
passíveis de serem considerados ativos, os indivíduos de 15 anos ou mais. A partir do censo
de 2000, esse limiar é reduzido para 14 anos de idade, o que pode acarretar em alteração no
cálculo da população economicamente ativa.
Vale ressaltar que a partir da PNAD de 1992, o conceito de trabalho abrange os seguintes
aspectos: trabalho remunerado (doméstico ou não doméstico); trabalho não remunerado
para outrem (familiar ou não); e trabalho não remunerado no domicílio.
O processo de categorização estatística do trabalho e do desemprego também está
marcado pelas ambiguidades e tensões que perpassam o conjunto da sociedade brasileira e
de seu mundo do trabalho. Isto significa dizer que, na publicação de seus indicadores, o
IBGE apresenta várias definições para o desemprego:
desemprego aberto - pessoas que procuraram trabalho de maneira efetiva nos trinta
dias anteriores ao da entrevista e não exerceram nenhum tipo de atividade nos últimos sete
dias;
desemprego oculto pelo trabalho precário - pessoas que, para sobreviver, exerceram
algum trabalho, de auto-ocupação, de forma descontínua e irregular, ainda que não

534
remunerado em negócios de parentes e, além disso, tomaram providências concretas, nos
trinta dias anteriores ao da entrevista ou até doze meses atrás, para conseguir um trabalho
diferente deste;
Desemprego oculto pelo desalento e outros: pessoas que não possuem trabalho e nem
procuraram nos últimos trinta dias, por desestímulos do mercado de trabalho ou por
circunstâncias fortuitas, mas apresentaram procura efetiva de trabalho nos últimos doze
meses.

SOBRE O DESEMPREGO DAS MULHERES NO BRASIL: Os dados dos


Órgãos Oficiais

Antes de apresentar as estatísticas do desemprego das mulheres no Brasil é importante


mencionar algumas explicações sobre a dinâmica de variáveis e de pesquisas que tratam o tema
desemprego, considerando a complexidade do mercado de trabalho.
Uma oportuna reflexão que se fez até aqui, com as leituras realizadas, é que estudar o
desemprego somente para um segmento, no caso o das mulheres, parece tornar-se algo
relativamente fechado quando se verifica que o desemprego tem uma dimensão global, atinge
todos os segmentos de trabalhadores e sua ampliação não se apresenta homogênea entre eles. É
claro, que é fato comprovado que o desemprego mostra-se mais intenso no seu crescimento,
para pessoas do sexo feminino, mais jovens, com menor escolaridade. E as mulheres que
desejando ter um emprego e não podem procurar ou assumir um trabalho por causa de
responsabilidades e compromissos domésticos imediatos, são excluídas. Porém, é importante
ressaltar que o estudo ampliou o foco de discussão sobre o fenômeno do desemprego cujos
dados estatísticos mostram índices gerais.
Do ponto de vista estatístico, a análise do desemprego leva em consideração,
inicialmente, duas dimensões fundamentais. Em primeiro lugar, o cenário econômico e os
movimentos que afetam a demanda por trabalho, a formação do que chamamos de população
economicamente ativa (PEA). O aumento da população ativa pode ser um fator importante para
explicar o aumento do desemprego. Em segundo lugar, a análise do desemprego leva em
consideração os fatores que afetam a oferta de trabalho ou emprego. Uma baixa geração de
postos de trabalho também pode ser um fator decisivo para explicar o desemprego.
Importante ressaltar que o estudo do desemprego requer acima de tudo um olhar sobre o
comportamento do mercado de trabalho inerente ao País, Região ou Estado em questão. Isso
envolve dados de órgãos oficiais de pesquisa que procuram referenciar o mercado de trabalho
no contexto de seu desempenho nos últimos anos. De um modo geral, no Brasil, para a análise
do emprego e do desemprego se utilizam dois Indicadores importantes: 1) O CAGED, que mede

535
os empregos formais (servidores públicos e trabalhadores com carteira assinada) 2)
PNAD/IBGE, que envolve tanto o mercado formal quanto o informal.
5
Os dados sofrem interferência das épocas do ano, as chamadas sazonalidades , ou seja,

o mercado de trabalho varia bastante durante o ano. Por exemplo, seja um trabalho no campo
como colheita de grãos, que acontece normalmente no início do ano; seja um trabalho nas
grandes cidades como compras de presentes no final do ano onde, culturalmente, esse
movimento costuma “aquecer” o mercado, isto vai exigir uma variação do mercado de trabalho.
Daí porque se alega que ocorreu flutuações no número de empregados ou, que há épocas e
fatores que influenciam os níveis de emprego no Brasil. Por isso, os órgãos que trabalham com
as pesquisas costumam confrontar taxas de desemprego sempre com o mesmo período dos
outros anos para evitar grandes erros estatísticos.
Além das sazonalidades, os dados sofrem interferências da situação da pessoa, ou seja,
pessoas que buscam vagas de emprego; pessoas que pararam de procurar emprego ou, que
trabalham menos do que gostariam. Isso vai refletir no seguinte: quando se fala que a taxa de
desemprego “caiu”, nem sempre é algo bom, visto que, teoricamente, a queda pode significar
que mais pessoas desistiram de buscar trabalho.
Dessa forma, observa-se que os dados são complexos e o mercado de trabalho também,
lembrando que o Brasil, por exemplo, segue diretrizes da Organização Internacional do
Trabalho, assim como outros países, França, Estados Unidos e outros. E algo que chama
atenção, são as várias denominações que o IBGE utiliza na sua metodologia para explicar as
múltiplas possibilidades do mercado de trabalho conforme o que mostra o Diagrama a seguir:

O mercado de trabalho é muito afetado pelo que os economistas chamam de efeito sazonal, ou sazonalidade.

536
Diagrama 1: Denominações do IBGE para as múltiplas possibilidades do mercado de
trabalho

Fonte: IBGE/Pnad Contínua – 3º trimestre de 2018.


Considerando a figura acima, observa-se que o termo utilizado pela PNAD Contínua
nas subdivisões do mercado de trabalho é “Desocupados” e não “Desempregados”, ao se referir
as pessoas na força de trabalho. Esse é um ponto de reflexão que revela teoricamente a categoria
de “privação do trabalho”, expressa a complexidade e extensão da problemática do desemprego
no Brasil quando se depara com essas estatísticas oficiais. Observe-se os dados sobre o
desemprego das mulheres a seguir apresentados.
Infográfico 1- Índice do desemprego por gênero no Brasil - último trimestre de 2017

Fonte: PNADC/IBGE – Gráfico ajustado a partir do Infográfico de Juliane Souza. G1, 23/02/2018.

Os dados revelam na figura1 que, entre as mulheres, o índice de desemprego encerrou o


ano de 2017 em 13,4% em comparação com 10,5% entre os homens, de um total de 12,5
milhões de desempregados no Brasil.
Ao observar essas taxas de desemprego por sexo, constata-se que as taxas femininas são
sempre superiores às masculinas. Tal indicador é um claro sinal de uma vulnerabilidade de

537
gênero que penaliza as mulheres no mercado de trabalho. O desemprego expressa, de certa
forma, o modo como às relações de gênero se constituem no Brasil. Ou seja, muitas vezes, a
inserção subordinada das mulheres no mercado de trabalho acompanha-se de uma maior
privação de emprego entre elas.
Se no final de 2017 a crise econômica se intensificava no Brasil, no segundo trimestre
de 2018, o índice de desemprego divulgado pelo IBGE cresceu no cenário econômico brasileiro
e no mercado de trabalho. Nesse momento, o país atingiu 13 milhões de desocupados,
mostrando um mercado de trabalho ainda mais precário e flexível, com um grave problema
social/estrutural onde o nível global do emprego (carteira assinada) diminuía significativamente.
Portanto, cada vez mais, o desemprego é visto como um problema central em um país marcado
por uma “velha” precariedade estrutural que se combina com um processo mais recente de
precarização das relações de trabalho (reforma trabalhista, por exemplo).
Se formos considerar a idade, os dados mostram que as taxas de desemprego dos mais
jovens são mais elevadas do que os mais velhos, conforme demonstrado na figura 2.
Infográfico 2 – Índice do desemprego por idade – último trimestre de 2017

Fonte: PNADC/IBGE – Gráfico ajustado a partir do Infográfico de Juliane Souza. G1, 23/02/2018.

Constata-se, a partir desse infográfico, a evolução diferenciada da taxa de desemprego


segundo a faixa etária dos desempregados no último trimestre de 2017. Nesse caso, a população
mais afetada pela falta de oportunidade no mercado de trabalho são as mulheres, os mais jovens
muito por conta da falta de experiência. Para trabalhadores na faixa etária entre 14 a 17 anos de
idade, a taxa de desemprego esteve bastante elevada (39,0%) no período em análise. Na faixa
etária entre 18 a 24 anos a taxa de desemprego foi de 25,3%. Entende-se que o maior índice do
desemprego atinge uma maioria de jovens mulheres.
Isto mostra que o desemprego cresceu muito mais para os jovens (entendendo-se também as
mulheres jovens) do que para as demais faixas etárias. Essa situação leva a refletir conforme Amaral
(2014) que as influências do processo global e a persistência do elevado desemprego no Brasil, aparecem
como marca importante em pleno contexto de profundas mudanças econômicas e no mercado de trabalho
o qual exige grande competição e experiência. E o jovem, por exemplo, como um segmento da sociedade
que se torna mais frágil na disputa por um posto de trabalho, encontra mais dificuldades em meio ao

538
elevado excedente de mão de obra e a ausência de oportunidades ocupacionais em empregos
regulares. Esses são alguns dos fatores decisivos na configuração desse desemprego para as
faixas de idades mais novas.
Em relação à educação, as pesquisam mostram as maiores chances de emprego para quem
tem maior escolaridade. Dados do Cadastro Geral dos Empregados e Desempregados (Caged) do
Ministério do Trabalho mostram que o momento atual do mercado de trabalho para quem tem menos
anos de estudos segue desfavorável. No ano de 2017, houve perda de 383,3 mil empregos no
conjunto de todas as faixas de escolaridade entre analfabetos e ensino médio incompleto. No tocante
ao comportamento do emprego por gênero, o CAGED constatou que os homens ganharam espaço no
mercado de trabalho com a abertura de 21,6 mil vagas ocupadas por trabalhadores do sexo
masculino. E as mulheres perderam 42,4 mil empregos com carteira assinada.
No comparativo dos anos de 2017 e 2018, observa-se que em 2018, mais vagas foram
abertas para profissionais com nível médio, superior incompleto e superior completo, conforme
demonstrativo a seguir.
Quadro 1 – Abertura de vagas de emprego por escolaridade

ESCOLARIDADE 2017 2018

Analfabeto -4.109 -4.785

Até 5ª incompleto -12.245 -9.195

5ª completo fundamental -8.651 -6.861

6ª a 9ª fundamental -24.791 -2.869

Fundamental completo -49.331 -20.908

Médio incompleto -23.382 6.672

Médio completo 106.714 266.075

Superior incompleto 10.867 26.423

Superior completo 75.978 137.909

Total 71.050 392.461


Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do CAGED/Ministério do Trabalho, 09/2018.

Percebe-se, portanto, que as mudanças no interior do mercado de trabalho se


apresentam mais desfavoráveis aos trabalhadores com menor escolaridade. Impacto direto, em
certa medida, dos setores de atividade econômica como o da construção civil e da indústria, que
mais demitiram mão de obra por força da recessão nos anos citados. No ano de 2018 o
quantitativo maior de vagas foi registrado entre os trabalhadores com ensino médio completo
(266.075 vagas), seguido pelos que têm o ensino superior completo (137.909); superior
incompleto (26.423) e médio incompleto com 6.672 vagas. Nos demais níveis de educação,
houve fechamento de vagas. Significa quem tem menos escolaridade possui mais chance de
ficar desempregado conforme registrado na figura3.

539
Infográfico 3 – Índice do desemprego por escolaridade – último trimestre de 2017

Fonte: PNADC/IBGE – Gráfico ajustado a partir do Infográfico de Juliane Souza. G1, 23/02/2018.

Observa-se no Infográfico3 que o desemprego atingiu mais fortemente as mulheres e os


indivíduos com escolaridade intermediária. A maior taxa de desemprego (20,4%) foi registrada
para quem tem ensino médio incompleto. Nesse sentido é possível refletir que atualmente, a
educação/escolaridade tem uma relação muito próxima com o mercado de trabalho/emprego. É
igualmente observável, em termos de políticas de incentivo a participação das mulheres no
mercado de trabalho, que o estímulo à escolarização, se possível, para além do ensino médio, é
de extrema importância porque as taxas de desemprego tendem a cair de forma considerável
para esse segmento.
Em se tratando de análise do desemprego, os termos Emprego X Desemprego se
entrecruzam, isto é, a dimensão que a problemática social assume no mercado de trabalho não
pode ser adequadamente investigada através da análise de variáveis isoladas, expressas de forma
linear nas taxas de desemprego aferidas pelas instituições encarregadas de produzir esses dados
estatísticos. Daí porque as variáveis, sexo, idade, escolaridade etc. aparecem, por exemplo, nas
estatísticas do emprego e do desemprego visto que essas categorias são, antes de tudo, uma
expressão dessas relações sociais nas quais os atores estão inscritos.
Lembrando novamente o último trimestre de 2017 e início de 2018, onde as taxas de
desemprego no Brasil cresceram e atingiram 13 milhões de trabalhadores é importante destacar
que este é um fenômeno notável com efeito direto na esfera social, sobretudo para segmentos
mais vulneráveis como as mulheres, jovens etc. De acordo com a PNADC/IBGE, nesse período
do ano, o Brasil atingiu 13,7% de desocupados sendo a maior taxa de desemprego já registrada.
Numa comparação com o mesmo período desse ano de 2017, no ano de 2018, a taxa também se
mantivera bastante elevada representando 12,7% de pessoas desocupadas, reforçando uma
leitura de crise econômica e crise do mercado de trabalho.
Quando se tenta identificar as taxas de desemprego por estados do Brasil, no período
crítico de elevação desse fenômeno (fim de 2017 e início de 2018), encontra-se uma constatação
de que em se tratando de desemprego, não são apenas as Regiões Norte e Nordeste as que
possuem as maiores taxas, isto porque, teoricamente essas Regiões são consideradas como as

540
que lideram a pobreza e problemas sociais no país. As taxas do desemprego são elevadas e
atingem todas as Regiões brasileiras. Se fizer um recorte por Região, a Nordeste vai aparecer
como a que lidera o “ranking” entretanto, estados da Região Sudeste como o Rio de Janeiro
estão entre as quatro maiores taxas, conforme o Infográfico a seguir.

Infográfico 4 – Índice do Desemprego por Estado- último trimestre de 2017

Fonte: PNADC/IBGE – Gráfico ajustado a partir do Infográfico de Juliane Monteiro e Karina Almeida.
G1, 23/02/2018.

Conforme o demonstrativo acima, o Estado do Brasil onde o desemprego apresentou


maior índice no fim de 2017 foi o Amapá, seguido de Pernambuco, Alagoas e Rio de Janeiro.
Em Santa Catarina, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul foram registrados os menores índices.
Como as mulheres indicaram os maiores índices de desemprego, supõe-se que em cada Estado
do Brasil elas sejam a maioria de desempregados.
No Boletim Mercado de Trabalho, nº 65, 2018, elaborado pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) informa que assim como os jovens, as mulheres negras são mais

541
vulneráveis chegando a atingir uma taxa de 50% maior. Esse estudo mostra que a cada 1 ponto
percentual a mais, na taxa de desemprego, as mulheres negras sofrem, em média, aumento de
1,5 ponto percentual. Para as mulheres brancas, o reflexo é de 1,3 pontos percentuais. Mas não
são apenas as mulheres negras que aparecem em condição de maior vulnerabilidade. Jovens
entre 18 e 29 anos também estão entre os mais afetados.
Importante lembrar que na análise do trabalho, o IPEA compara a taxa de desemprego
de cada estado com a proporção de pessoas sem trabalho há pelo menos 12 meses e com a taxa
de desemprego do grupo analisado em cada unidade da federação, apresentando também dados
por faixa etária e escolaridade. Os resultados mostram uma menor diferença de sensibilidade da
taxa de desemprego segundo o grau de instrução, com uma diferença de 0,3 p.p. entre
trabalhadores com ensino médio incompleto e completo.
Conforme a PNADC/IBGE/2018, homens e pessoas brancas também estão à frente de
mulheres e pessoas negras em relação ao rendimento mensal. No recorte por sexo feito pelo
IBGE, no fim de 2017, os homens ganharam em média R$ 2.476,00 (dois mil, quatrocentos e
setenta e seis reais) contra R$ 1.884,00 (hum mil, oitocentos e oitenta e quatro reais) das
mulheres, o que significa uma diferença de 23,9% a mais no rendimento deles. Brancos
ganharam em média R$ 2.896,00 (dois mil, oitocentos e noventa e seis reais) enquanto pretos e
pardos ganharam R$ 1.615,00 (hum mil, seiscentos e quinze reais), ou seja, uma diferença de
44% a mais para os brancos.
Gráfico 1- Taxa de desocupação por raça

PNADC/IBGE, 2017 – Adaptação do gráfico de Fábio Rodrigues Pozzebom /Agência Brasil/03/2018.

No gráfico1, observa-se uma evolução na taxa de desocupação das mulheres negras.


Além da diferença nos valores da renda (informado anteriormente), as pessoas negras também
têm desvantagem em relação às taxas de desemprego. Ou seja, conforme a figura acima, de
2012 a 2017, essas taxas aumentaram sucessivamente. Pessoas pretas atingiram 14,5%.
Significa dizer que a vulnerabilidade das mulheres negras ao desemprego é maior.

542
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme exposto no conteúdo deste artigo, considera-se o desemprego enquanto


categoria social objetiva aquele que se materializa em dados estatísticos institucionais e oficiais,
ou seja, dados que constituem indicadores importantes para analisar profundas desigualdades da
sociedade brasileira. As elevadas taxas de desemprego entre as mulheres, por exemplo, são
reveladoras de uma situação de forte vulnerabilidade desse grupo social. De outra forma,
considera-se o desemprego como categoria subjetiva, de percepção da realidade, a partir da qual
ele não afeta os indivíduos de maneira homogênea no espaço econômico da experiência de
trabalho, mas, estes, são diferentemente afetados quando se tratam de homens e mulheres,
pessoas mais ou menos escolarizadas ou qualificadas profissionalmente.
Diante das rápidas contribuições apresentadas pelos autores sobre o desemprego, tanto
do ponto de vista econômico, quanto sociológico, refletiu-se que é possível compreender os
mecanismos que tornam o segmento das mulheres e também dos jovens, dos pretos e pardos
mais vulneráveis, na medida em que se leva em consideração o modo como se estruturam os
papéis, as identidades e as relações que distribuem os indivíduos na sociedade conforme sua
posição na estrutura social. Os jovens, por exemplo, constitui um grupo social que hoje,
certamente, tem muita dificuldade de encontrar, no mundo social e do trabalho, um lugar em que
possam se sentir reconhecidos.
Foi neste sentido que a abordagem do desemprego que se propôs refletir supõe
considerá-lo um fenômeno constituído pelas relações sociais, sobretudo pelas relações de
gênero, haja vista que os dados analisados sugerem que essas relações são marcadas por fortes
tensões. De um lado, as mulheres tornam-se cada vez mais ativas, necessitando de maior
igualdade entre os sexos com maior reconhecimento na vida social e participação no mercado
de trabalho. Por outro, as mulheres continuam muito vulneráveis nesse mercado, apresentando
taxas de desemprego mais elevadas que as masculinas. Isso indica que a divisão sexual
tradicional dos papéis e responsabilidades entre homens e mulheres continua a estruturar o
mercado de trabalho e a vida social de uma maneira geral. E mostra que existe a conservação
das relações sociais de gênero, cuja mudança e resultado não se sabe ao certo qual será e quando
será. Nesse caso, volta-se a pensar que são necessárias mudanças sociais como características
importantes desse processo.

543
REFERÊNCIAS

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545
JUVENTUDE RURAL NO TRABALHO DA AGRICULTURA FAMILIAR NA
COMUNIDADE DO ESPÍRITO SANTO DO ITÁ, SANTA ISABEL – PA
https://doi.org/10.29327/527231.5-36
Matheus Gabriel Lopes Botelho (Universidade Federal Rural da Amazônia – UFRA)

Ruth Helena Cristo Almeida (Universidade Federal Rural da Amazônia – UFRA)

RESUMO
Nos tempos atuais, a sucessão geracional ainda está relacionada com a masculinização no
campo, pois, os agricultores em sua maioria, ainda possuem uma preferência de escolha
pelos filhos homens. A continuidade da agricultura familiar está associada à disposição, dos
jovens filhos dos agricultores familiares, em suceder seus pais. Dessa forma, o presente
estudo possui como objetivo identificar os fatores que levam os jovens da comunidade do
Espírito Santo do Itá (Santa Isabel do Pará) a decidirem ou não pela sucessão geracional na
agricultura familiar, enfocando suas dificuldades e perspectivas em relação às atividades
econômicas da comunidade. O trabalho foi realizado na comunidade do Espírito Santo do
Itá, que está localizada ao sul da cidade de Santa Isabel. Tal estudo envolveu pesquisa de
campo, buscando levantar dados relativos à juventude da comunidade. Segundo os
entrevistados, no processamento da farinha não ocorre divisão de tarefas por sexo. Porém,
segundo as observações da pesquisa de campo realizadas e a literatura existente, algumas
atividades são realizadas por meio da divisão de trabalho por gênero, como o processo de
descascamento realizado pelas mulheres e a etapa de torração da farinha feita por homens.
Esse contexto afirma a existência da divisão sexual do trabalho em comunidades rurais
brasileiras, abordando atividades de campo específicas para mulheres e homens. Dessa
forma, percebe-se no decorrer da pesquisa, que o processo de masculinização do campo,
não é uma realidade na comunidade, uma vez que, as mulheres jovens possuem ativa
participação nas atividades agrícolas nas casas de farinha.
Palavras-chave: Território. Ruralidades. Masculinização. Sucessão Geracional.

ABSTRACT

Nowadays, generational succession is still related to masculinization in the countryside, as


most farmers still have a preference for choosing male children. The continuity of family
farming is associated with the willingness of young children of family farmers to succeed their
parents. Thus, this study aims to identify the factors that lead young people from the
community of Espirito Santo do Itá (Santa Isabel do Pará) to decide whether or not to
generational succession in family farming, focusing on their difficulties and perspectives in
relation to economic activities. from the community. The work was carried out in the
community of Espírito Santo do Itá, which is located south of the city of Santa Isabel. This
study involved field research, seeking to collect data related to the youth of the community.
According to the interviewees, in flour processing there is no division of tasks by sex.
However, according to field research observations and existing literature, some activities are
performed by gender division of labor, such as the peeling process performed by women and
the flour roasting step by men. This context affirms the existence of the sexual division of
labor in Brazilian rural communities, addressing specific field activities for women and men.
Thus, it is clear during the research that the process of masculinization of the field is not a
reality in the community, since young women have an active participation in agricultural
activities in the flour houses.
Keywords: Territory. Ruralities. Masculinization Generational Succession.

546
INTRODUÇÃO

O conceito de juventude é uma abordagem teórica que representa um desafio para


muitos, pois como categoria social a juventude e a maturidade possuem uma fronteira
caracterizada como um jogo de lutas em todas as sociedades, uma vez que são muito
variadas as divisões de classes por idade, pois são segmentações construídas pela
sociedade (STROPASOLAS, 2006).
O estado do Pará é referência nacional no processamento de subprodutos da
mandioca em casas de farinha em comunidades rurais. Uma vez que, essas atividades são
caracterizadas pela reprodução familiar de pais para filhos ao longo de gerações, definindo
dessa forma um processo de sucessão que atende aos critérios de hereditariedade e
parentesco, de acordo com o contexto rural (FERNANDES, 2017). De acordo com Ferreira
(2019), as comunidades rurais na Amazônia, são formadas por jovens que almejam dar
continuidade às atividades agrícolas realizadas pelos pais, e por aqueles que desejam
realizar o processo de migração para as cidades por motivos específicos, como a busca de
qualificação profissional e continuidade aos estudos nos centros urbanos.

A decisão de permanência no campo ainda acontece por afinidade de realização das


atividades produtivas no meio rural. Neste sentido, a sucessão geracional no meio rural é
caracterizada pela formação de uma nova geração de jovens agricultores que se dedicam
ao controle do estabelecimento agropecuário. Porém, a decisão de permanência destes no
meio rural está relacionada a condições objetivas internas e externas ao estabelecimento
rural. Dessa forma, a sucessão geracional pode ser compreendida como um processo de
continuidade dos jovens agricultores nas atividades desenvolvidas pelos pais no meio rural.
Logo, o trabalho na agricultura familiar é de extrema importância para o desenvolvimento de
aprendizagem para a juventude rural que almeja preservar o trabalho no campo ao longo de
gerações (DINIZ, 2013). Dessa forma, a continuidade da agricultura familiar está associada
disposição, dos jovens filhos dos agricultores familiares, em suceder seus pais. O processo
do êxodo de jovens do rural para as cidades é um entrave para o desenvolvimento da
agricultura familiar (BRUMMER et al., 2005).

Até meados dos anos de 1970, o processo de sucessão entre gerações de


agricultores acontecia devido à tradição cultural que deixava as mulheres da família à
margem do processo, sendo a primogenitura ou minorato, filho mais velho ou filho mais
novo, respectivamente, as prioridades de acesso a sucessão na unidade de produção.
Porém, percebe-se que, nos tempos atuais, a sucessão geracional ainda está relacionada
com a masculinização no campo, uma vez que, os agricultores em sua maioria, ainda
possuem uma preferência de escolha pelos filhos homens para dar continuidade nas
atividades rurais desenvolvida pelos pais, pois, a recorrência do patriarcado no meio rural é
uma realidade, atribuindo culturalmente ao homem o papel produtivo; e à mulher, o papel
reprodutivo, caracterizado pelo cuidado com os filhos e a realização dos afazares
domésticos (KISCHENER et al., 2015). A reprodução da agricultura familiar ocorre de forma

547
endógena, sendo tradicionalmente, um dos integrantes da família o sucessor da unidade
produtiva (CARNEIRO, 2001; SPANEVELLO, 2008).
Portanto, o presente estudo possui como objetivo identificar os fatores que levam os
jovens da comunidade do Espírito Santo do Itá (Santa Isabel do Pará) a decidirem ou não
pela sucessão geracional na agricultura familiar, enfocando suas dificuldades e perspectivas
em relação às atividades econômicas da comunidade. Com objetivos específicos:
apresentar o perfil dos jovens da comunidade estudada; avaliar a participação dos jovens no
processamento dos subprodutos da mandioca (Manihot esculenta) nas casas de farinha da
comunidade; e levantar os principais motivos que levam os jovens da comunidade a
decidirem pela permanência ou saída do campo e nas atividades econômicas familiares.

MATERIAL E MÉTODOS

2.1 Área de Estudo

O trabalho foi realizado na comunidade do Espírito Santo do Itá, que está localizada
a aproximadamente 20 km ao sul do município de Santa Isabel, nordeste do Estado do Pará,
a 45 Km da capital Belém. A comunidade possui as coordenadas geográficas entre o
paralelo 1°22’0‖S e meridiano 48°04’31‖O (Figura 1). O principal acesso à área de estudo é
realizado através das vias rodoviárias BR-316 e a rodovia estadual PA-140, realizando a
integração das diversas localidades que existem na região (SALOMÃO, 2016).

Figura 1 - Mapa de localização da comunidade do Espírito Santo do Itá.

Fonte: Salomão (2016).


2.2 Coleta de dados

O estudo envolveu pesquisa de campo, buscando levantar dados relativos à


juventude rural da comunidade, como: problemas enfrentados, formas de lazer, acesso aos
meios de comunicação e outros fatores que possam contribuir para o entendimento dos

548
processos de decisão da sucessão geracional nas atividades rurais, condizente com a
pesquisa realizada por Ferreira (2019).

A coleta dos dados da pesquisa foi realizada na forma de um questionário, sendo


aplicado em 30 jovens, de maneira aleatória e que residem na comunidade, resultando em
15 homens e 15 mulheres, de acordo com os objetivos do trabalho. O questionário foi
composto por perguntas fechadas e abertas com opção de justificativa, para a obtenção de
dados numéricos relativos aos principais tópicos abordados na pesquisa, mas também
levando em consideração a percepção dos jovens entrevistados.

A classificação do que é ser jovem no Brasil é realizada, em sua maioria, a partir do


quesito faixa etária. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera jovem
aquele que possui idade entre 15 a 29 anos, assim como considera Golgher (2010). Porém,
nesta pesquisa considerou-se como mais relevante a faixa etária de juventude definida pelos
atores locais da comunidade, de acordo com a percepção destes, juntamente com a
realidade social que considera a categoria de juventude como sendo um grupo social que
está muito além da definição marcada pela faixa etária, de acordo com Abramovay e
Esteves (2007). A tabela 1 apresenta a percepção dos jovens da comunidade em relação à
faixa etária de juventude onde a maioria dos entrevistados afirmou que o período de
juventude é compreendido entre 10 a 25 anos de idade (53,4%) diferindo do que o IBGE
classifica. Uma vez que, de acordo com a percepção dos mesmos, a juventude pode ser
iniciada a partir dos 10 anos de idade, pois os jovens relataram que o processo de
maturidade é alcançado desde cedo para os mesmos da comunidade, com a prematura
geração de filhos e o precoce compromisso de trabalho nas atividades agrícolas.

Tabela 1 – Distribuição dos jovens entrevistados de acordo com a percepção dos mesmos
em relação à faixa etária de juventude.

Faixa etária (anos) Nº de jovens %


10 -- 24 2 6,6
10 -- 25 16 53,4
10 -- 26 2 6,6
12 -- 25 2 6,6
12 -- 20 3 10,0
12 -- 24 1 3,4
13 -- 19 3 10,0
15 -- 20 1 3,4
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

549
A tabela 2 indica a idade dos entrevistados. A faixa etária das pessoas entrevistadas
variou entre 11 a 24 anos. Sendo que a maioria dos jovens estava na idade de 17 e 23 anos,
seguido de 12, 14, 15, 19, 16, 18, 20, 11, 13, 21 e 24 anos.

Tabela 2 – Distribuição e porcentagens dos jovens entrevistados de acordo com a idade.


º
Idade (anos) N de jovens %
11 1 3,4
12 3 10,0
13 1 3,4
14 3 10,0
15 3 10,0
16 2 6,6
17 4 13,3
18 2 6,6
19 3 10,0
20 2 6,6
21 1 3,4
23 4 13,3
24 1 3,4
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

Os questionários foram preenchidos pelo entrevistador face-a-face com o


entrevistado (Figura 2), condizente com o método de Michelat (1987). Este estudo trata-se
de uma pesquisa participante que se define como uma investigação efetivada por meio da
introdução e comunicação do pesquisador na comunidade (PERUZZO, 2017).

2.3 Análise de dados

No que se refere à análise de dados, utilizou-se a quali-quantitativa. A análise


qualitativa se refere à percepção dos atores locais sobre o fenômeno social que os cercam,
e a análise quantitativa está relacionada aos levantamentos de dados numéricos relativos e
percentuais relacionados com a permanência ou à saída dos jovens do campo e suas
motivações para isso. Expressando as variáveis pesquisadas, com o foco no objetivo de
pesquisa, os dados quantitativos possuem forma numérica e percentual. Visando a melhor
ilustração de tais dados, esses foram apresentados de forma de tabelas e gráficos,
considerando sempre a totalidade dos indivíduos envolvidos. Os dados quantitativos foram
tabulados e sistematizados por meio do programa Microsoft Office Excel.

Os entrevistados assinaram um termo de autorização, para que os dados


pesquisados sejam utilizados e demonstrados publicamente, com a finalidade de uso e
divulgação do conteúdo disponibilizado pelos indivíduos envolvidos.

550
RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 O perfil dos jovens

As localidades de nascimento dos jovens entrevistados foram: Sede do município de


Santa Isabel (50,0%), comunidade do Espírito Santo do Itá (43,4% ) e Macapá (6,6%), de
acordo com a tabela 3.

Tabela 3 – Localidades de nascimentos e porcentagens dos jovens entrevistados.


º
Localidades N de jovens %
Santa Isabel 15 50,0
Comunidade 13 43,4
Macapá 2 6,6
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

No que se refere ao grau de escolaridade, constatou-se que 66,6% dos jovens


possuem o ensino fundamental incompleto, 16,7% o ensino médio incompleto, 13,3% o
ensino médio completo e 3,4% o ensino fundamental completo, como mostra a Figura 2.
Uma vez que, é válido ressaltar que a comunidade possui o grau de escolaridade até o
ensino fundamental, ou seja, os jovens que possuem o ensino médio incompleto ou
completo estudaram em escolas que residem fora da comunidade, como nas cidades de
Belém e na Sede de Santa Isabel. De acordo com Ferreira (2019), uma parcela significativa
dos jovens rurais com baixa escolaridade, anseia em dar continuidade aos estudos e ter
uma boa formação, visando a obtenção de um bom emprego e melhoria de qualidade de
vida.

Figura 2 – Porcentagens dos jovens entrevistados de acordo com o grau de escolaridade.

3,4%

13,3% Ensino Fundamental


incompleto
Ensino Médio incompleto

16,7%
Ensino Médio completo

66,6%
Ensino Fundamental
completo

Fonte: Pesquisa de campo, 2019

551
Quando os entrevistados foram questionados a respeito de suas profissões, os
mesmos afirmaram que são agricultores (93,4%), uma pessoa alegou ser jovem aprendiz
(3,3%) e um jovem afirmou não possuir profissão (3,3%) (Tabela 4).

Tabela 4 – Distribuição e porcentagens dos jovens entrevistados de acordo com a profissão


que possuem.
º
Profissão N de jovens %
Agricultor (a) 28 93,4
Jovem aprendiz 1 3,3
Não possuem 1 3,3
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

Os jovens que possuem atividades no meio rural são aqueles que estão relacionados
ao processamento de subprodutos da mandioca nas casas de farinha. Quando questionados
sobre auxiliar os pais nas atividades de campo, a maioria dos jovens afirmou que realizam
essa ajuda (86,7%) e alguns negaram, definindo 13,3% dos entrevistados (Tabela 5). De
acordo com a pesquisa de campo realizada, observou-se que a maioria desses jovens estão
inseridos em uma posição hierárquica de submissão com os pais, como afirma Castro
(2005). Por outro lado, aqueles que negaram esse auxílio se recusam a dar continuidade
aos trabalhos de campo realizados pelos pais, como aborda Spanevello (2011), não
possuindo vocação para serem potenciais sucessores.

Tabela 5 – Respostas dos jovens entrevistados e porcentagens de acordo com a prática de


auxílio nas atividades de campo com os pais.

Respostas Nº de jovens %
Auxiliam 26 86,7
Não auxiliam 4 13,3
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

Quando questionados sobre quais atividades eles realizam para auxiliar os pais no
meio rural, as principais respostas foram: ajuda na hora de plantar e colher a mandioca e
ajuda no processamento da mandioca nas casas de farinha (60,0%); Somente ajuda no
processamento da mandioca (16,7%) e somente ajuda na hora de plantar e colher a
mandioca (10,0%). Porém, alguns jovens afirmaram não realizar esse auxílio de atividades
de campo com os pais, constituindo 13,3% dos entrevistados (Figura 3).

552
Figura 3 – Porcentagens dos jovens entrevistados de acordo com as atividades de campo
que realizam para auxiliarem os pais nas atividades rurais.

Somente ajuda na hora de


plantar e colher a mandioca.

13,3% 10,0%

Somente ajuda no
processamento da mandioca
16,7% nas casas de farinha.

Ajuda na hora de plantar e


colher a mandioca e ajuda
no processamento da
mandioca nas casas de
60,0% farinha.
Não ajudam os pais nas
atividades de campo

Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

Uma quantidade significativa de jovens afirmou que recebem remuneração no auxílio


das atividades de campo com os pais (70,0%), não sendo entre eles um valor fixo a ser
pago e que pode variar de acordo com a venda dos subprodutos nas feiras da cidade de
Santa Isabel e ao período de safra da mandioca. Porém, 16,7% dos jovens entrevistados
afirmaram que não recebem qualquer remuneração neste auxílio (Tabela 6).

Tabela 6 – Respostas dos jovens entrevistados e porcentagens sobre a ocorrência de


remuneração nas atividades de campo de auxílio para os pais.

Respostas Nº de jovens %
Recebem remuneração 21 70,0
Não recebem remuneração 5 16,7
Não auxiliam os pais 4 13,3
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

3.2 A participação dos jovens no processamento dos subprodutos da mandioca nas


casas de farinha da comunidade

De acordo com todos os jovens entrevistados, existem três tipos de farinhas


produzidas na comunidade, sendo elas: farinha D’ água, mista e seca. Podendo variar entre
os subtipos: amarela e branca. Uma vez que essas variedades são obtidas por meio de
diferentes métodos de processamento. A farinha D'água é feita por meio da fermentação e

553
ao uso mais frequente da mandioca brava, ocasionando, um produto com bem granulados.
A mista é obtida mediante as misturas das massas de mandioca ralada e fermentada, antes
da prensagem. A seca é obtida de raízes de mandioca secas à temperatura moderada ou
alta. Os principais subprodutos da mandioca produzidos pela comunidade são: Goma, tucupi
e farinha D’água (Figura 4). Como afirma Fernandes (2017), o estado do Pará continua
sendo o maior produtor nacional de mandioca, realizando, principalmente, a produção de
farinha dos tipos: D’água, mista e seca.

Figura 4 – Subprodutos produzidos na comunidade e comercializados nas feiras da cidade


de Santa Isabel (PA), como a farinha D’água, goma e tucupi.

Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

No que se refere à comercialização desses subprodutos, todos os entrevistados


afirmaram que as vendas são realizadas, principalmente, nas feiras da cidade de Santa
Isabel (PA), e ocorre uma parcela pequena de comercialização dentro da comunidade, mas
também as vendas são realizadas por meio de exportação para outros estados ou países,
juntamente com os subprodutos produzidos por outras comunidades vizinhas.

Quando perguntados sobre a participação nas etapas de processamento da


mandioca nas casas de farinha, 28 jovens entrevistados alegaram participação nas
atividades de processamento, e dois jovens negaram participação. A figura 5 mostra
algumas etapas de preparação da farinha de mandioca.

554
Figura 5 – Etapas do processamento da farinha de mandioca realizadas por homens e
mulheres, adultos e jovens. A) Colheita das raízes de mandioca; B) Exclusão das raízes não
sadias.

A B

Fonte: Pesquisa de Campo, 2019.

Os jovens entrevistados alegaram participar das seguintes etapas de processamento


da farinha da mandioca: colheita (53,4%); lavagem (56,6%); descascamento (50,0%);
ralação (20,0%); prensagem (36,7%); peneiramento (93,4%); escaldamento (13,3%);
uniformização (46,7%); torração (53,4%); resfriamento (20,0%); empacotamento (26,7%) e
venda (13,3%). Cada entrevistado relatou que realiza mais de uma etapa do processamento
(Figura 6). Essas fases de produção são condizentes com as descritas por Almeida (2018),
sendo que o autor aborda que essas etapas podem variar de acordo com a comunidade
produtora. Dessa forma, observou-se que os jovens participam de todas as etapas do
processamento dos subprodutos da mandioca. As casas de farinha artesanais da
comunidade são os locais onde ocorre a maioria das fases do processamento realizadas de
forma manual com a utilização de utensílios rústicos como afirma Modesto Júnior (2016).

Figura 6 - Porcentagens dos jovens entrevistados de acordo com as etapas de


processamento da farinha de mandioca que realizam.

93.4%

53.4% 56.6% 53.4%


50.0% 46.7%
36.7%
26.7%
20.0% 20.0%
13.3% 13.3%

Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

555
De acordo com os jovens entrevistados, no processamento da farinha não ocorre
divisão de tarefas por sexo. Porém, segundo as observações da pesquisa de campo
realizadas e a literatura existente, algumas atividades são realizadas por meio da divisão de
trabalho por gênero, como o processo de descascamento realizado pelas mulheres e a
etapa de torração da farinha feita por homens (Figura 7). Esse contexto exemplifica o estudo
realizado por Kergoat (2009), pois a autora afirma a existência da divisão sexual do trabalho
em comunidades rurais brasileiras, abordando atividades de campo específicas para
mulheres e homens. Dessa forma, percebe-se no decorrer da pesquisa, que o processo de
masculinização do campo descrito por Kischener (2015), não é uma realidade na
comunidade, uma vez que, as mulheres jovens possuem ativa participação nas atividades
agrícolas nas casas de farinha.

Figura 7 – Produção da farinha de mandioca. A) Atividade de descascamento da mandioca


na casa de farinha; B) Etapa de torração da farinha.
A B

Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

63,3% dos entrevistados afirmaram que o processamento da farinha da mandioca na


comunidade é uma boa oportunidade de trabalho para os jovens, pois eles alegaram que é
um método de geração de renda e ocupação para a juventude da comunidade, por não
possuírem outras opções de emprego na localidade.

Porém, existem 36,7% dos jovens entrevistados que não consideram as atividades
das casas de farinha como uma boa oportunidade de trabalho para a juventude rural, pois
eles afirmaram que os jovens da comunidade não gostam de trabalhar nas casas de
farinhas, uma vez que, eles somente trabalham nessas atividades por não terem outra
opção de trabalho e renda. “Acho que os jovens da comunidade deveriam buscar outras
oportunidades de trabalho e renda, fora da comunidade com o objetivo de melhoria de
qualidade de vida e qualificação profissional” (Relato de um jovem de 22 anos, morador da
comunidade). Observa-se que esses jovens não possuem uma percepção de
empreendimento comercial que a cadeia da mandioca pode oferecer, como afirma
Fernandes (2017).

556
Esse contexto exemplifica a pesquisa de Vantroba (2009), que afirma que a
permanência do jovem no campo irá depender das oportunidades que lhes são
apresentadas, como opções de emprego e renda. Porém muitos jovens realizam as
atividades pelas obrigações da tradição familiar e por não terem outra oportunidade de
trabalho, principalmente, pela ausência de qualificação profissional, o que foi observado no
decorrer da pesquisa. Condizente com este contexto, Siqueira (2004) argumenta que a
decisão dos jovens de migrar para a cidade em busca de trabalhos que não sejam
relacionados ao meio rural, é proveniente do crescente desejo dos filhos e filhas de
agricultores, em não reproduzir a ocupação e as atividades dos pais no campo, dessa forma
prejudicando a sucessão geracional no campo.

3.3 O processo de sucessão geracional

Verificou-se que os jovens entrevistados afirmaram, em sua maioria, que gostam de


morar na comunidade do Espiríto Santo do Itá (93,4%), quando questionados se gostam ou
não de residir na localidade (Tabela 7).

Tabela 7 – Respostas dos jovens entrevistados e porcentagens a respeito se gostam de


morar na comunidade ou não.

Respostas Nº de jovens %
Gostam de morar na comunidade 28 93,4
Não gostam de morar na comunidade 2 6,6
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

Os jovens que afirmaram gostar de morar na comunidade abordaram os critérios de


moradia, segurança e lazer. Considerando aspectos imateriais, como a tranquilidade. “Gosto
de morar na comunidade pela tranquilidade na moradia, falta de violência e acesso ao
igarapé como minha principal forma de diversão” (Relato de uma jovem de 21 anos, que
reside na comunidade). Observa-se, neste caso, que o trabalho no campo não aparece
como um critério de afinidade pelo lugar. Segundo Godoy (2009), existem diversos fatores
que contribuem para a permanência dos jovens no meio rural, como a educação, o lazer e a
cultura. O autor não configura o emprego ou trabalho no campo como principal ou único
critério de estabilidade dos jovens no campo, mas considera um conjunto de iniciativas que
devem ser feitas para contribuir para a melhoria das condições de vida dos mesmos.

Todavia, dois jovens afirmaram não gostar de morar na comunidade por motivos
relacionados ao desejo de procurar oportunidades de trabalho em centros urbanos. “Quero
sair da comunidade para realizar os meus sonhos profissionais” (Relato de uma jovem de 23
anos, moradora da comunidade). Os mesmos não destacaram nenhum motivo de afinidade
de moradia na localidade.

557
Quando questionados, se eles gostariam de realizar um planejamento de continuar
morando na comunidade, a maioria dos jovens entrevistados afirmaram que desejariam
continuar residindo na localidade (63,3%) pelos mesmos motivos que apreciam morar no
lugar (Tabela 8). Porém, verifica-se, que o número de entrevistados que querem se preparar
para continuar residindo na comunidade é menor em relação aqueles que gostam de morar.
Ou seja, gostar e querer ficar são aspectos bem diferenciados.

Tabela 8 – Respostas dos jovens entrevistados e porcentagens a respeito se planejam


continuar morando na comunidade ou não.

Respostas Nº de jovens %
Planejam continuar morando na comunidade 19 63,3
Não planejam continuar morando na comunidade 11 36,7
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

Assim, percebe-se que tanto os jovens que querem persistir em morar na localidade,
quanto aqueles que não desejam, não apresentam a ―disposição‖ necessária, a qual o autor
Brummer (2005), enfatiza que é necessário ter para dar continuidade às atividades agrícolas
de seus pais. Uma vez que, o trabalho na agricultura familiar não é citado pelos
entrevistados como critério de planejamento de moradia.

Esse contexto pode ser comparado com a pesquisa de Ferreira (2019), que realizou
um estudo sobre jovens de algumas comunidades das ilhas do município de Abaetetuba
(PA), e constatou que uma parcela desses jovens possui o desejo de permanência por
motivos de lazer e ao desejo de viver na tranquilidade do meio rural e livre da ―agitação‖ de
quem reside na cidade. No mesmo contexto Kischener (2015) considera que apesar das
condições negativas que muitas vezes são encontradas no campo, como a exposição às
tarefas que exigem força e o desgaste muscular, alguns jovens preferem estar no campo.
Segundo o autor, a qualidade de vida no campo, na maioria das vezes, é melhor do que na
cidade, onde não ocorre garantia de melhoria de vida.

Os jovens que não planejam continuar morando na comunidade gostariam de ir


morar nas Sedes dos municípios de Santa Isabel e Belém, com o objetivo de buscar
oportunidades profissionais e a realização de "sonhos" nas cidades grandes. Da mesma
forma, o estudo de Ferreira (2019) afirma que uma parte dos jovens moradores das
comunidades das ilhas do município de Abaetetuba (PA), preferem estar na cidade e não
mais no campo, devido à falta de oportunidades profissionais no meio rural. Segundo a
pesquisa de Weisheimer (2009), os jovens realizam o processo de migração em busca de
oportunidades de emprego e carteira assinada nas cidades, pois eles possuem a percepção

558
que as ocupações urbanas são melhores nos critérios de qualidade de vida e remuneração,
em comparação às áreas rurais.

De acordo com a Tabela 9, constatou-se que os principais motivos que levam (ou
levaram), os jovens a pensarem em sair da comunidade são: Busca de oportunidade
profissional em emprego que não está relacionado com o meio rural; e busca de
independência financeira, trabalhando assalariado mensalmente (46,6%) e estudar para
mais tarde retornar para a comunidade com mais qualificação e poder (16,7%). Porém,
36,7% dos jovens afirmaram não terem o desejo de sair da comunidade.

Tabela 9 – Respostas dos jovens entrevistados e porcentagens sobre os principais motivos


que levam (ou levaram) os mesmos a pensarem em sair da comunidade.

Respostas Nº de jovens %

Busca de oportunidade profissional em


emprego que não está relacionado com o meio 14 46,6
rural; e busca de independência financeira,
trabalhando assalariado mensalmente.
Estudar para mais tarde retornar para a
5 16,7
comunidade com mais qualificação e poder
Não pensa em sair da comunidade 11 36,7
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

No que se refere à opinião dos jovens em relação à maior dificuldade encontrada


pelos mesmos que vivem na comunidade, as principais respostas foram: Falta de
oportunidade de trabalho (66,6%); falta de renda própria dos jovens (23,4%); falta de
incentivo à educação (6,6%) e a falta de incentivo dos familiares (3,4%). Dessa forma,
percebe-se que os entrevistados somente citam o trabalho como um dos aspectos negativos
relacionados às maiores dificuldades encontradas pelos mesmos, no que se refere às
oportunidades de emprego e renda. Sendo que, a falta de estímulo à educação e a carência
de encorajamento dos familiares também são citadas.

De acordo com a opinião dos jovens em relação a qual alternativa faria com que
melhorasse a vida do jovem na comunidade, todos os entrevistados abordaram a mesma
alternativa como sendo a inclusão de cursos profissionalizantes que auxiliassem a melhorar
a atividade rural, e cursos profissionalizantes que não estivessem relacionados com as
atividades rurais, como: informática, estética, entre outros. A opinião desses jovens pode ser
comparada com a pesquisa de Ruzany (2012), pois aborda que os jovens possuem o desejo
de ter acesso à educação e às outras áreas de conhecimento como a informática, sem
deixar de permanecer na localidade rural, o que permitiria uma inclusão de um
conhecimento ilimitado e desconhecido para o meio rural.

559
Quando perguntados se os jovens acreditam que a agricultura familiar irá crescer
ainda mais na comunidade e isso irá contribuir para a sua permanência, a maioria dos
jovens afirmou que ―Sim‖ (63,3%) e outra parte dos entrevistados, constituindo 36,7%,
disseram que ―Não‖ (Tabela 10). Os resultados coincidiram com as respostas dos jovens
que planejam ou não continuar morando na comunidade e com aqueles que acreditam ou
não que o processamento da mandioca nas casas de farinha é uma boa oportunidade de
trabalho, configurando dessa forma, uma concordância nas respostas. Porém observou-se
no decorrer da pesquisa, o desejo da maioria dos jovens em sair da comunidade para
buscar oportunidades profissionais nas cidades, pelo fato de não considerarem as atividades
agrícolas da localidade como uma boa oportunidade de trabalho, mesmo que a maioria as
pratique por falta de outras opções de emprego.

Tabela 10 – Respostas dos jovens entrevistados e porcentagens em relação se o jovem


acredita que a agricultura familiar irá crescer ainda mais na localidade e isso irá contribuir
para a sua permanência na comunidade.

Respostas Quantidade de jovens %


Acreditam 19 63,3
Não acreditam 11 36,7
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

Os entrevistados que afirmaram, abordaram que isso irá favorecer para a geração
de mais oportunidades de renda para os jovens que residem na comunidade, caso os
mesmos não consigam encontrar boas oportunidades de trabalho nas cidades. Aqueles que
negaram, disseram que possuem o desejo de sair da comunidade para morar nos centros
urbanos na busca de qualificação profissional. O desejo de sair desses jovens pode ser
explicado por meio da pesquisa de Brumer (2007), pois afirma que para a categoria dos
jovens rurais, os principais fatores motivadores para a saída do campo estão relacionados
às incertezas de rentabilidade, o que foi observado no decorrer da pesquisa. Ainda segundo
a autora, a preocupação no que se refere aos aspectos estruturais que definem o lugar e o
papel da juventude rural, que delimitam a liberdade de escolhas dos jovens, é recorrente na
literatura sobre juventude rural. Portanto, nota-se que o aspecto econômico está ligado aos
principais motivos que levam os jovens a permanecerem ou não no campo, uma vez que,
limitações econômicas ainda continuam a persistir no meio rural.

No que se refere às perspectivas dos jovens em relação ao futuro na comunidade, os


entrevistados abordaram as seguintes respostas: boas, irei permanecer por mais um tempo
e depois decido se continuo ou não (63,3%) e ótimas, irei continuar/voltar a trabalhar na
agricultura e dar continuidade à atividade desenvolvida pelos meus pais (36,7%) (Tabela

560
11). Observou-se que os entrevistados tiveram dúvidas nessas respostas, dessa forma
constatando uma incerteza em relação à permanência no campo.

Tabela 11 – Respostas dos jovens entrevistados e porcentagens em relação às


perspectivas dos jovens em relação ao seu futuro na comunidade.

Respostas Nº de jovens %
boas, irei permanecer por mais um tempo e
19 63,3
depois decido se continuo ou não.

ótimas, irei continuar/voltar a trabalhar na


agricultura e dar continuidade à atividade 11 36,7
desenvolvida pelos meus pais.
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

No que se refere à forma de lazer predileto dos entrevistados eles abordaram que as
principais formas de lazer são: ter acesso ao igarapé ou rio próximos da comunidade
(100%); ir em festas nas comunidades vizinhas (56,6%); ir em festas nas cidades (56,6%);
jogar futebol (60,0%); assistir televisão (56,6%) e frequentar cultos ou missas (30,0%).
Sendo que cada jovem entrevistado abordou mais de uma resposta como forma de lazer
predileto (Figura 8). Portanto, todos os entrevistados afirmaram que o acesso ao igarapé ou
rio próximos da comunidade se configura como a principal forma de lazer dos jovens da
comunidade.

Figura 8 – Porcentagens dos jovens entrevistados de acordo com as suas respostas em


relação às formas de lazeres prediletos dos mesmos.

100%

56,6% 56,6% 60,0% 56,6%

30,0%

Ir em festas nas Ir em festas na Jogar futebol Gosta de ficar Cultos / missas. Igarapé / rio.
comunidades cidade. em casa vizinhas. assistindo TV.

Fonte: Pesquisa de campo, 2019.

561
Dessa forma, de acordo com Kummer (2013), os jovens moradores de comunidades
rurais realizam uma valorização dos espaços rurais no que se refere à apreciação da
natureza local como principais formas de diversão.

CONCLUSÃO

Por meio das análises dos dados coletados, é possível afirmar que os objetivos desta
pesquisa foram alcançados. Dessa forma, observou-se que para a geração atual da
comunidade estudada, o perfil da maioria dos jovens é caracterizado pela ativa participação
nas atividades do meio rural relacionadas ao processamento dos subprodutos da mandioca
nas casas de farinha. Uma vez que a maioria desses jovens auxilia os pais nas atividades
de campo.

Outro ponto importante que foi analisado no decorrer da pesquisa, é que os jovens
entrevistados não percebem a divisão sexual de trabalho que acontece na comunidade, uma
vez que, na localidade ocorre a ausência da masculinização do campo, devido a ativa
participação das mulheres jovens nas atividades de processamento nas casas de farinha.

A maioria dos jovens entrevistados afirmam que as atividades nas casas de farinha
são uma boa oportunidade de trabalho e renda para a juventude rural, pela falta de outras
opções de empregos no meio rural. A outra parcela dos entrevistados que negaram, também
aborda que existe uma carência de oportunidades de trabalho para os jovens da
comunidade, e por isso a maioria deles realizam atividades nas casas de farinha por não
terem outra escolha. Dessa forma, todos os entrevistados possuem percepções parecidas
em relação às atividades agrícolas, por não as considerarem como prioridade de escolha.

Um dos principais motivos que levam os jovens a pensarem em sair da comunidade


a busca de oportunidades profissionais. Por outro lado, a grande maioria dos entrevistados
afirma que gostam de morar na comunidade e uma parcela significativa planeja continuar
residindo na localidade por motivos de tranquilidade, segurança e lazer. Não configurando o
trabalho de campo como motivo de permanência. Dessa forma pode-se averiguar que os
jovens da comunidade não estão dispostos a realizar a sucessão geracional das atividades
agrícolas de forma espontânea, mas sim de forma induzida ou forçada, por não terem outra
oportunidade de trabalho.

Portanto, nesta pesquisa é possível analisar a juventude rural de uma comunidade


periférica, por meio dos desejos, realidades e perspectivas para o futuro. A maioria dos
entrevistados são pessoas que almejam melhorar a qualidade de vida por meio da
qualificação profissional. Porém, muitos desafios persistem para a saída dos jovens da
comunidade. Uma das principais dificuldades apontada pelos mesmos é a falta de

562
oportunidade trabalho. Logo, por mais que a maioria dos jovens tenha afinidade de morar na
comunidade, os mesmos possuem o desejo de sair para alcançar realizações profissionais.
Pois, é notório perceber que tratam-se de jovens com muitas vontades, desejos e
perspectivas de um futuro melhor. Dessa forma, existem possibilidades de maiores estudos
no que se refere à juventude rural, como a avaliação de políticas públicas voltadas para
essa categoria social e a análise da organização dos jovens no contexto da sociedade
moderna.

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564
GEOGRAFIA, GÊNERO E INJUSTIÇAS SOCIOAMBIENTAIS:
Reflexões sobre a comunidade de Piquiá de Baixo em Açailândia-MA

https://doi.org/10.29327/527231.5-37

Jordânia da Conceição Silva Graduanda de Geografia, UEMASUL/ MA


Jailson Macedo de Sousa Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão

RESUMO

O interesse pelo tema deste artigo surgiu através de minha vivência enquanto mulher,
moradora de Piquiá de Baixo em Açailândia-MA, educadora popular ao longo de quatro anos
na comunidade em razão de ter vivenciado as injustiças socioambientais presentes na
comunidade de Piquiá de Baixo. Assim sendo, o objetivo deste trabalho é refletir sobre forte
protagonismo feminino desta comunidade frente as injustiças socioambientais. Para
desenvolver esse trabalho, além do referencial teórico, foram realizadas entrevistas
semiestruturadas com o grupo de mulheres da comunidade de Piquiá de Baixo. Pelos
estudos desenvolvidos, notou-se que a organização do trabalho feminino na comunidade de
Piquiá de Baixo além de ser um ato político na conquista de espaços na sociedade é um dos
caminhos a serem percorrido na autonomia dessas mulheres. Este Trabalho é também de
grande valia para o processo de organização e visibilidades do protagonismo feminino das
mulheres de Piquiá de Baixo e outras comunidades também impactadas por grandes
projetos de mineração, no entendimento que envolve o exercício de organização e coleta de
informações sobre as injustiças socioambientais causadas às comunidades por esses
grandes projetos de exploração, tendo em vista as dificuldades de estudos mais
aprofundados nesse âmbito.

Palavras-chave: Gênero. Injustiças socioambientais. Mulheres. Piquiá de Baixo.

565
2. JUSTIFICATIVA

A presente pesquisa se justifica no atual cenário social brasileiro, considerando os


processos de apropriação do território e os impactos socioambientais gerados pelos
grandes empreendimentos econômicos. É reconhecido que o território brasileiro tem notado,
a partir da segunda metade do século XX, intensos processos de modernização.
Os projetos modernizadores são compreendidos como um instrumento ideológico
utilizado pelo Estado brasileiro, apoiado nas ações do capital monopolista internacional.
Diante dessa lógica, muitos espaços têm sido apropriados, visando um aproveitamento
racional das riquezas naturais e sociais existentes. Este é o caso da Amazônia brasileira,
que tem testemunhado desde 1950 ritmos frenéticos de apropriação desmedida de seus
recursos.
Desse modo, esta pesquisa apresenta como objeto de estudo os efeitos
socioambientais gerados pela atividade siderúrgica instalada a partir da década de 1980 em
Açailândia – Maranhão, sendo que esta interpretação far-se-á ancorada às mulheres
residentes na comunidade de Piquiá de Baixo que ao longo dos tempos se tornou um
importante distrito industrial do município de Açailândia. Assim, o estudo também busca
entender a forma que os impactos socioambientais provocados pelos grandes
empreendimentos afetam a vida das moradoras do distrito de Piquiá de Baixo e como estas
tem resistido a esses impactos.
Este Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Geografia é de
grande valia tanto para o processo de organização das mulheres de Piquiá de Baixo e
outras comunidades impactadas por grandes projetos de mineração, no entendimento que
envolve o exercício de organização e coleta de informações sobre os impactos causados às
comunidades pelas produções siderúrgicas, tendo em vista as dificuldades de estudos mais
aprofundados nesse âmbito. Por esse contexto, a discussão orienta-se a partir do ponto de
vista dos agentes sociais atingidos pelos impactos da siderurgia.
Nesse contexto, é importante destacar as ações das mulheres inseridas nesses
espaços e o protagonismo destas no movimento. Essas mulheres contribuem fortemente
para a desmistificação dos discursos de desenvolvimentos atrelados ao Estado e as
empresas que justificam a instalação desses grandes projetos de mineração, bem como o
seu posicionamento participativo e político na atualidade. Como sujeita que cresceu e
vivenciou todo esse processo de luta da comunidade de Piquiá de Baixo, entendo a
necessidade de se fazer conhecer, escrever e dar visibilidade ao mesmo.

566
Com base no exposto é que apresentamos a seguir as principais indagações que nortearam
os caminhos desse estudo.

3. PROBLEMA

Sabe-se que o problema em uma pesquisa de natureza científica diz respeito à


elaboração de indagações sobre a realidade que está sendo investigada. Nesse estudo,
levantaram-se como principais indagações.

Questão Norteadora

De que forma pode-se compreender as injustiças socioambientais materializadas na


vida das mulheres no bairro de Piquiá de Baixo decorrentes dos empreendimentos
siderúrgicos.

Questões Específicas

Quais as origens da instalação do polo siderúrgico em Piquiá de Baixo, Açailândia-


Ma e como se configuram os impactos?

Como tem ocorrido a inserção das relações de trabalho feminino no


mundo contemporâneo?

Quais têm sido os mecanismos usados pelas mulheres para resistir a


esses impactos?

Quais as pautas femininas em Piquiá de Baixo e como se configura o movimento?

567
Com base nestas indagações, ou seja, nos questionamentos apresentados é
que elaboramos as principais finalidades (Objetivos) para a realização deste estudo.

5. OBJETIVOS

Objetivo Geral:

Compreender como se deu o processo de instalação das usinas siderúrgicas no


bairro de Piquiá de Baixo em Açailândia-MA, as injustiças socioambientais, e o
protagonismo feminino na comunidade frente aos impactos da siderurgia.

Objetivos Específicos

Analisar as formas de instalações e atuação dos GPIS, em especial no universo das


mulheres residentes no bairro de Piquiá de Baixo.

Estudar as diferentes injustiças socioambientais nas vidas das mulheres


que convivem com os grandes projetos de siderurgia.

Refletir sobre o protagonismo das mulheres de Piquiá de Baixo frente ao processo


de chegada, implantação e produção industrial.

Apresentar as relações de trabalho femininas contemporâneas como meio de

autonomia e resiliência aos padrões impostos pela sociedade ao longo dos tempos.

IMPLICAÇÕES DA MODERNIZAÇÃO DO TERRITÓRIO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

A década de 1960 apontava para significativas mudanças na região amazônica e,


consequentemente, são grandiosos os efeitos provocados por essas mudanças refletem na
região Sulmaranhense, tendo como forças motivadoras, as ações conduzidas pelo Estado e
pelo capital que objetivaram conjuntamente, a apropriação desmedida dos recursos
existentes nesta região, como sinaliza Sousa (2009)

A Amazônia, a partir da década de 1960 passou a figurar no cenário


nacional como região de excelentes oportunidades e investimentos. A
racionalidade imposta pelo capital através de suas distintas formas de
organização fez com que a fronteira incorporasse novas características,
novas formas e conteúdo. A Amazônia nesse sentido passa configurar-se

568
como espaço privilegiado para atuação ampliada do capital. (SOUSA, 2009,
P. 75).

A partir de então, o Estado e o Capital se ocuparam em difundir os grandes


empreendimentos do setor industrial e mineral nessa região e consequentemente a
expansão da agricultura moderna, como as monoculturas de soja e eucalipto, todos estes,
vinculados ao discurso de desenvolvimento local e regional.

A política de incorporar o espaço amazônico no cenário da reprodução do


capital vem sendo construída atrelada aos discursos de desenvolvimento.
Porém, essa política de desenvolvimento não se manifesta de forma difusa
e aleatória. (REIS, 2012, p.3).

Cabe ressaltar ainda os efeitos da urbanização existente na Amazônia brasileira.


Conforme Sousa (2015. p. 179) aponta ―por ser parte integrante da Amazônia oriental, a
região oeste do Maranhão onde se inserem as regiões sudoeste e sul deste estado
conheceram de perto os efeitos dinâmicos da urbanização desenvolvida na Amazônia‖.
Como elemento preponderante e estratégico do Estado para esta ocupação regional
está associado à urbanização que também se constitui como componente importante e
influente nesse cenário. Assim como aponta Sousa (2015)

A urbanização constitui o pano de fundo no conjunto das estratégias de


ocupação e povoamento presentes na região amazônica. A partir de década
1960 este processo avançou, expressando a intensa participação da população
urbana no cenário regional amazônico. (SOUSA, 2015, p. 179).

Com esse novo contexto, acontece a implantação do projeto grande Carajás que
abarca os estados do Pará e Maranhão no início da década de 1980 e paralelamente a
instalação do polo siderúrgico no bairro de Piquiá de Baixo no município de Açailândia - MA.
O município de Açailândia apresenta população de 104.047 mil habitantes de acordo
com o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010).
Para o ano de 2019 o IBGE registrou um quantitativo total de 112.445 mil habitantes, sendo
que destes 78.237 residem nas áreas urbanas e 25,810 residem nas áreas rurais. A cidade
de Açailândia teve o seu reconhecimento no dia 6 de junho de 1981, a partir do processo de
fragmentação territorial ocorrido no município de Imperatriz no início da década de 1980.
Vale ressaltar que Açailândia era vista por integrar forte disponibilidade de matéria-
prima e localização favorável para a produção mineral da região de Carajás. Sousa (2015)
esclarece muito bem este aspecto quando escreve que

569
[...] entende-se que em razão da localização privilegiada e em face dos
determinantes políticos e econômicos é que o município de Açailândia foi
escolhido como uma área prioritária para os processos de produção e
transformação do ferro -gusa, com vistas também a integrar o complexo
industrial siderúrgico do sudeste do estado do Pará. (SOUSA, 2015, p. 214)

A respeito das particularidades do cenário de atração que Açailândia teve


durante sua criação Vieira (2015) também salienta que:

A instalação das indústrias de ferro-gusa no município de Açailândia no final


da década de 1980 foi induzida por uma favorável dotação de recursos
naturais, incluindo nesse cenário o minério de ferro, principal insumo na
produção do ferro-gusa, proveniente da província mineral de Carajás,
através da recém-construída Estrada de Ferro Carajás - EFC. (Vieira, 2010,
p.62)

Percebe-se que durante o processo de implementação dos grandes projetos, o


Estado incorpora uma concepção de desenvolvimento. Trata-se de um mecanismo para a
expansão do modo de produção capitalista, que se desenvolve a partir de novos mercados
de consumo e novos territórios com capacidades de fornecer matéria prima.

O aumento de capital nas mãos dos investidores implica em impactos


ambientais e sociais que resultam na desconstrução cultural e de vivências
transmitidas por gerações, obrigando trabalhadores de outras regiões,
população local, povos tradicionais a se adequarem às novas formas de
sociabilidade que beneficiam o capital. Todo esse processo de exploração
socioambiental é legitimado pelo discurso do desenvolvimento (SANTOS,
2016, p. 33)

Fica claro nas ideias de Raffestin (1993) o quanto a apropriação do território impacta
na vida dos indivíduos habitados. ―Controlar o território significa mais que usar o recurso,
significa controlar determinada área geográfica, recursos e indivíduos ali presentes‖. O
bairro de Piquiá de Baixo existe desde os anos 1970. A primeira escola pública de
Açailândia-MA está sediada nesse bairro e foi construída nessa época antes da implantação
do pólo siderúrgido. As indústrias chegaram posteriormente, na segunda metade da década
de 1980.

A população local não tem a pretensão de desenvolver o processo de


produção/transformação do ferro gusa, porém, os seus interesses se voltam
para o espaço concreto onde estão territórializados a fauna e a flora para o
espaço simbólico dos significados histórico-culturais e também para os usos
presente e futuros do espaço geográfico que permite a reprodução do
espaço social (REIS, 2012, p.10).

570
Piquiá de baixo conta com 320 famílias (mais de mil pessoas) que residem neste,
sendo circundado por cinco indústrias de ferro-gusa e Estrada de Ferro Carajás.

Foto: Marcelo Cruz


Foto 1. Comunidade, siderúrgica e poluição.

O quadro a seguir ressalta a composição das indústrias do polo siderúrgico e ano de


instalação no município de Açailândia a partir da década de 1980. Destaca-se também a
quantidade de fornos e capacidade anual de produção.

Quadro 8: Açailândia/MA - Composição das indústrias do polo siderúrgico


Denominação Ano de Quantidade Capacidade anual Empregos previstos
Instalação de fornos de produção (ton) Direto Indireto
Companhia 1988 02 240.000 150 1350
Siderúrgica Vale do
Pindaré
Viena Siderúrgica 1988 05 500.000 192 1500
S.A
Siderúrgica do 1993 02 200.000 170 1400
Maranhão S.A
Gusa Nordeste S.A 1993 03 225.000 155 1455
Fergumar 1997 02 217.000 188 1500
Totais no polo siderúrgico 14 1.382.000 855 5750
Fonte: Asica, 2005.
Organização: Evangelista, 2008.

571
Atualmente, a empresa Fergumar está fechada e as empresas Simasa e Pindaré
foram adquiridas pela empresa Queiróz-Galvão. Além das siderúrgicas, funcionam uma
usina termelétrica, uma fábrica de cimento e uma aciaria, ainda em fase de construção, mas
já parcialmente ativa. Ou seja, o município de Açailândia abriga um dos maiores setores
indústrias do estado do Maranhão. No entanto, a modernização que se faz presente neste
município tem sido questionada constantemente em razão dos problemas socioambientais
que geram às comunidades.

O aumento de capital nas mãos dos investidores implica em impactos


ambientais e sociais que resultam na desconstrução cultural e de vivências
transmitidas por gerações, obrigando trabalhadores de outras regiões,
população local, povos tradicionais a se adequarem às novas formas de
sociabilidade que beneficiam o capital. Todo esse processo de exploração
socioambiental é legitimado pelo discurso do desenvolvimento (Santos,
2016, p. 33).

Nesse sentido, viu-se a necessidade de refletir sobre as relações de gênero ao longo


dos tempos, as relações de trabalhos como meio de autonomia das mulheres e as injustiças
socioambientais ocorridas na comunidade de Piquiá de Baixo em Açailândia-Maranhão, na
qual, desde a década de 1960 convivem lado a lado ao processo de produção siderúrgico.

Rossini (apud ENGELS, 1998, p. 7) destaca que ―a história da origem da família liga-
se, na sua base, à distribuição das tradições e das estruturas igualitárias, a partir do
momento em que os indivíduos começaram a apropriar-se do excedente de produtos
criados pelo trabalho coletivo da comunidade‖.

Assim como também reforça Rossini (1998, p. 7) ―essa posição igualitária na


sociedade primitiva era determinada pelo seu trabalho produtivo realizado coletivamente ‖. A
esse respeito, Rossini (1998) ainda enfatiza

Com o aparecimento da família patriarcal, que substituiu as estruturas


comunitárias, foi ocorrendo individualização do trabalho da mulher, o qual
progressivamente se limitou à produção de valores de uso para o consumo.
O trabalho do homem passou a ser destinado a criar riqueza, entrando na
esfera da produção de valor de troca. De acordo com a divisão do trabalho
entre os sexos, a mulher foi delegada à esfera das tarefas domesticas, isto
é, reprodução biológica, educação e cuidado com os filhos, como bases da
reprodução da forca de trabalho. (ROSSINI, 1998, p. 7)

Historicamente compreende-se que as desarmonias baseadas em diferenças entre


os sexos sempre foram explicita, como Santos também salienta que

572
Santos (apud NADER, 2016, p. 38) ―tradicionalmente, a história reservou para a
mulher um lugar pequeno, porque, por muito tempo, privilegiou os espaços e as cenas
públicas (…) os registros sobre a mulher, considerada como pertencente a uma categoria
inferior, ficaram ligados à sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade. Por isso, as
fontes de pesquisas para um estudo sistemático sobre elas são uma memória do mundo
privado, relacionada com o domicílio familiar, ao qual ela fora ligada por determinação e
convenção‖.

ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

Todo estudo de natureza científica deve-se apoiar na utilização de abordagens,


métodos e técnicas de pesquisa condizentes com a realidade a ser estudada/investigada. O
presente estudo num primeiro momento aparou-se na pesquisa bibliográfica como um dos
caminhos principais e norteadores para alcançar os objetivos estabelecidos.
Para desenvolver o este estudo a tarefa inicial objetivou fazer o levantamento do
material bibliográfico, definição da problemática de estudo e consequentemente à leitura e
fichamentos de ideias referente à temática estudada, ou seja, conhecer os principais
elementos das formas de organização e resistência feminina na comunidade de Piquiá de
Baixo e analisar o processo histórico de instalação do distrito industrial e impactos
ocasionados pelos mesmos.
Segundo Gil (2009, p.44) ―A pesquisa bibliográfica é entendida como aquela que é
desenvolvida com base em material já elaborado constituindo principalmente de livros e
artigos científicos‖.

Como já mencionado acima, o levantamento bibliográfico, fora de grande valia para


sistematizar e reafirmar os aspectos encontrados para a sistematização das ideias expostas
nesse trabalho. Conforme Lakatos e Marconi (2003).

A leitura constitui-se em fator decisivo de estudo, pois propicia a ampliação


de conhecimentos, a obtenção de informações básicas ou específicas, a
abertura de novos horizontes para a mente, a sistematização do
pensamento, o enriquecimento de vocabulário e o melhor entendimento do
conteúdo das obras. (LAKATOS e MARCONI, 2003. P.19).

Assim, na perspectiva de compreender os processos históricos, características e


transformações da comunidade, dos impactos, da luta e resistências das mulheres por uma
vida digna. De acordo Lakatos e Marconi (2003):

573
Todas as coisas implicam um processo, como já vimos. Esta lei é
verdadeira para todo o movimento ou transformação das coisas, tanto para
as reais quanto para seus reflexos no cérebro (ideias). Se todas as coisas e
ideias se movem, se transformam, se desenvolvem, significa que
constituem processos, e toda extinção das coisas é relativa, limitada, mas
seu movimento, transformação ou desenvolvimento é absoluto. (LAKATOS
e MARCONI, 2003. P.102).

Por conseguinte, com a observação direta intensiva que são aplicadas duas técnicas
a da observação, e a entrevista (padronizada e despradonizada) na qual utilizaremos in
lócus. E também a pesquisa de campo, caracterizando uma pesquisa empírica. Conforme
GIL:

Pode-se definir entrevista como a técnica em que o investigador se


apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o objetivo de
obtenção dos dados que interessam à investigação. A entrevista é,
portanto, uma forma de interação social. Mais especificamente, é uma
forma de diálogo assimétrico, em que uma das partes busca coletar dados
e a outra se apresenta como fonte de informação. (GIL, 2008, p. 109).

EFEITOS DAS ATIVIDADES SIDERÚRGICAS NO COTIDIANO DAS MULHERES


RESIDENTES NO BAIRRO PIQUIÁ DE BAIXO, AÇAILÂNDIA-MA

A leitura do referencial teórico para o entendimento da realidade escolhida


representou umas das etapas bem relevante no âmbito que possibilitou compreender alguns
dos aspectos históricos e contemporâneos das relações de trabalho feminino e de como é
necessário refletir sobre a emancipação das mulheres da comunidade de Piquiá de Baixo.
Logo em seguida das leituras das obras propostas pelo professor/orientador, foi
realizada a primeira atividade empírica em Açailândia no dia 17/10/2019, com a intenção de
manter um contato mais direto com realidade das mulheres que nos propomos a estudar.
Compreendemos que as relações de trabalho feminina ao longo da história
tiveram mudanças significativas e é extremamente importante dar visibilidades a
essas mudanças. Dai, uma das motivações para escolha das sujeitas nesse estudo.
O interesse em investigar/refletir sobre o protagonismo das mulheres da comunidade
de Piquiá de Baixo em Açailândia – Ma não é recente e se vincula à minha trajetória
como mulher, moradora de Piquiá, e educadora popular na comunidade ao longo de
cinco anos. Nesse sentido, sobre a natureza e as motivações que levaram a escolha e
utilização da pesquisa qualitativa Minayo (2010) ressalta

574
Ela se ocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não
pode ou não deve ser quantificado. Trabalha com o universo dos
significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das
atitudes. Esse conjunto de fenômenos é entendido como parte da realidade
social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar
sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade
vivida e partilhada com os seus semelhantes. (MINAYO, 2010, p. 21).

A abordagem qualitativa representa um dos instrumentos valiosos no que diz respeito


ao conjunto dos instrumentos metodológicos ligados às ciências humanas. Nesse sentido,
esta modalidade de pesquisa assumi papel bastante relevantes aos procedimentos
metodológicos deste presente estudo. Sobre a pesquisa qualitativa, Chizzoti (2003) comenta

A pesquisa qualitativa recobre, hoje, um campo transdisciplinar, envolvendo


as ciências humanas e sociais, assumindo tradições ou multiparadigmas de
análise, derivadas do positivismo, da fenomenologia, da hermenêutica, do
marxismo, da teoria crítica e do construtivismo, e adotando multimétodos de
investigação para o estudo de um fenômeno situado no local em que
ocorre, e enfim, procurando tanto encontrar o sentido desse fenômeno
quanto interpretar os significados que as pessoas dão a ele. (CHIZZOTTI,
2003, p. 221).

Sobre a adoção das técnicas de pesquisa, cumpre destacar também a realização de


entrevistas padronizadas. Conforme Lakatos e Marconi (2006) A entrevista tem como um
dos principais objetivos obter informações do entrevistado, relacionado a determinado
assunto.

[...] A entrevista padronizada ou estruturada é aquela em que o


entrevistador segue um roteiro previamente estabelecido. As perguntas
feitas aos indivíduos são predeterminadas. Ela se realiza de acordo com um
formulário elaborado e é efetuada de preferência com pessoas
selecionadas de acordo com um plano. O motivo da padronização é obter
dos entrevistados respostas às mesmas perguntas, permitindo que sejam
comparadas com o mesmo conjunto de perguntas. (LAKATOS e MARCONI,
2006, p. 198).

Como este estudo se encontra em estágios iniciais, a realização das entrevistas se


deu somente em um primeiro momento contemplando três categorias no roteiro de
entrevista.
Neste sentido, será destacado logo a baixo os questionamentos do roteiro de
entrevista direcionado as mulheres/trabalhadoras residentes na comunidade de
Piquiá de Baixo em Açailândia – Ma, que somaram-se a vários outros
questionamentos e fortaleceram nosso estudo.

575
Estruturamos o roteiro de entrevista em três categorias: identificação, trabalho
e emancipação das mulheres de Piquiá de Baixo. Compreendemos que essa
estrutura facilita e contempla as finalidades central do estudo em questão.
As indagações que justificaram a necessidade de compreender o
protagonismo feminino na comunidade de Piquiá de Baixo. São eles:

CARACTERIZAÇÃO/IDENTIFICAÇÃO DAS MULHERES



Nome e idade da residente.

 
Tempo que mora em Piquiá de Baixo e procedência.


Se gosta de morar Piquiá de Baixo e Por quê.
COMPOSIÇÃO E DINÂMICA DA RENDA

Sobre a composição da família e escolaridade das mulheres.

 
Se desenvolve alguma atividade profissional e qual.


Sobre a renda mensal da família.
EMANCIPAÇÃO DA MULHER NA COMUNIDADE DE PIQUIÁ DE BAIXO

Sobre a autonomia da mulher em relação ao trabalho.

Sobre participação das mulheres de Piquiá de Baixo na Associação Comunitária dos

Moradores/as de Piquiá de Baixo (ACMP) e outras forma de organização.

Sobre os assuntos/pautas femininas que são desenvolvidos pelas mulheres em

Piquiá de Baixo e que fatos levaram a desenvolvê-las.

Sobre as principais dificuldades/conquistas enfrentadas pelas mulheres de Piquiá

de Baixo, considerando o seu cotidiano de trabalho/lazer, etc.
As reflexões obtidas por meio deste primeiros passos neste estudo permitiram
alcançar informações relevantes acerca da emancipação das mulheres da
comunidade de Piquiá de Baixo.
válido destacar que 100% das mulheres/trabalhadoras entrevistadas moram
ha mais de 10 anos na comunidade de Piquiá de Baixo e ambas expressam

576
fortemente um sentimento histórico de acolhimento e pertencimento em relação ao
lugar.

Porque é um lugar tranquilo, mas também pela minha família


que gosta muito de Piquiá de Baixo. (Entrevista: Roseane
Nascimento, vendedora, 2019)

Adoro morar aqui, porque foi o lugar que cresci e tenho muita
afinidade. (Entrevista: Rosecleia Reis, Auxiliar de Serviços
Gerais, 2019)

No que se refere a composição das famílias e atividade profissional das


mulheres da comunidade de Piquiá de Baixo. Observa-se que as famílias são
composta de 3 a 6 pessoas, como demostra o gráfico abaixo.

Sobre a composição da família. (Número de pessoas)

6
5
4
3
2
1
0
0a3 4a6 acima de 6

O que predomina em relação as profissões é possível observar a descrição


no quadro 1 abaixo:

Quadro: 1
Profissões das mulheres de Piquiá de Baixo

Profissão Quantidade
Auxiliar de Serviços Gerais 2
Vendedora 2
Administração 1
Secretaria 1
Professora 4
Organização: Jordânia Silva, 2019.

577
Em relação a emancipação das mulheres da comunidade de Piquiá de Baixo é
possível salientar um significado maior do trabalho, para além da necessidade de manter-se.
Revela sua autonomia em relação as tomadas de decisões e a não dependência financeira
relacionada historicamente aos maridos como mantedores da família. Nas respostas das
entrevistas abaixo enfatizam esse desassossego pela dependência financeira e pela
satisfação em poder manter-se.

Porque quando a mulher trabalha, ela não depende de homem.


mais fácil para se manter. Quando a mulher depende de
homem, ela sofre um muito. (Entrevista: Rosangela Silva,
Auxiliar de Serviços Gerais, 2019)

Porque além de fazem o que eu gosto, é possível conhecer


novas pessoas. Também posso compra minhas coisas.
(Entrevista: Roseane Nascimento, vendedora, 2019)

Porque com meu trabalho eu tenho autonomia de decidir o que


eu posso fazer. (Entrevista: Joselma de Oliveira, professora,
2019)

578
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MULHERES NO COMANDO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS E
PERSPECTIVAS DE MULHERES EM CARGO DE GESTÃO
https://doi.org/10.29327/527231.5-38

Larissa da Cruz Neves (Universidade do Estado do Pará)


Drª Lana Claudia Macedo da Silva (Universidade do Estado do Pará)

RESUMO: O presente trabalho analisa a trajetória de mulheres em cargos que,


historicamente, eram ocupados por homens. Compreendendo a realidade de mulheres em
ocupações de comando e/ou gestão, analisando os desafios e perspectivas, além de
descrever como se dá o processo de inserção e atuação dessas mulheres.Desde a
revolução industrial, a diferenciação entre trabalho produtivo/masculino e trabalho
improdutivo/feminino forja a divisão sexual do trabalho. O trabalho destinado às mulheres
ficava na base da pirâmide do século XX, não tinha muitas chances de uma evolução nessa
pirâmide. A pesquisa buscou identificar os caminhos, decisões e desafios enfrentados por
elas até chegar a essa posição, se houve incentivo da família, amigos, parceiros (as), para
se chegar nesse cargo, e até mesmo se elas mesmas pensaram e/ou almejaram ocupar
essa posição. Vale ressaltar que se trata de um estudo de caráter feminista e prioriza os
discursos das mulheres e suas histórias de vida, tendo as mesmas como protagonistas da
pesquisa, de suas histórias e vivencias, consequentemente da pesquisa por meio dos
discursos. Mesmo com o avanço da mulher no mercado de trabalho, ainda existe resistência
masculina em ambientes profissionais diante dessa mudança, principalmente quando elas
exercem cargos considerados superiores à eles. Com isso, as constantes discussões a
respeito da temática são necessárias para reduzir a desigualdade de gênero no mercado de
trabalho, bem como, nas demais esferas das relações de poder onde, historicamente, há
uma relação de subserviência do gênero feminino em relação ao masculino.
Palavras-chave: Mulher; Cargo de gestão; Protagonismo feminino; Trabalho; Papéis
sociais.
ABSTRACT: This paper aims to analyze the trajectory of women in positions that have been
historically held by men. Understanding the reality of women in occupations of command
and/or management, analyzing the challenges and perspectives, and describing how is the
process of insertion and performance of these women. Since the industrial revolution, the
differentiation between productive/male work and unproductive work/female forges the
sexual division of labor. Women's work was at the base of the twentieth-century pyramid, not
likely to evolve in that pyramid. The assignment sought to identify the ways, decisions and
challenges faced by them to reach such position, whether there was encouragement from
family, friends, partners to reach this position, and even if they themselves thought and/or
wanted to occupy it such position. It is noteworthy that this is a feminist study and prioritizes
the discourses of women and their life stories, having them as protagonists of research, their
stories and experiences, consequently research through speeches. Even with the
advancement of women in the labor market, there is still male resistance in professional
environments in face of this change, especially when they hold positions considered superior
to them. Then, constant discussions on the subject are necessary to reduce gender
inequality in the labor market, as well as in other spheres of power relations where,
historically, there is a relationship of subservience of women compared to men.

Keywords: Woman; Management position; Female protagonism; Job; Social roles.

580
INTRODUÇÃO

A condição feminina, historicamente falando, sempre se deu a partir de uma


perspectiva masculina, onde as mulheres eram privadas de falar e\ou escrever sobre elas
mesmas, sendo oprimidas por uma ideologia patriarcal e machista, conforme Maria Amélia
Teles (1993). Usando de uma das justificativa a qual a sociedade utiliza para dizer o porquê
dessa submissão feminina, é o pensamento religioso cristão, onde diz que o Adão foi
induzido ao pecado por causa da Eva, que por conta disso, nada mais justo que ele (o
homem), seja sempre recebidos pelas mulheres como um soberano, como se as mulheres
estivessem pagando por uma dívida do passado cristão, o que as torna uma prática ―válida‖
e pouca debatida, sendo por vezes passada como algo naturalizado, justificando assim as
agressões e humilhações a qual as mulheres sofrem.

Joan Scott (1995), analisa o fato de que os papéis sociais são pré-determinadas para
cada gênero desde antes do nascimento, ou seja, o papel de agente passivo que é
destinado a mulher, se estabelece desde antes o seu nascimento, o que ela vai fazer, se
vestir, se comportar já está pré-determinado. Diante dessas condições sociais femininas, ao
observar que uma mulher ou que várias mulheres ocupam espaços e profissões que sejam
diferentes aos que historicamente foram impostos à elas, de agente passivo, é rica de
análise, para que assim se compreenda toda a realidade dessas mulheres, explicando e
analisando toda a sua trajetória até a sua atual posição.

Diante disso, existem diversas dificuldades enfrentadas pelas mulheres para que
trabalhem fora de casa, pelo fato de que elas são responsáveis por diversos papéis dentro
da sociedade, como por exemplo, a maternidade e o casamento, que durante gerações cabe
a mulher cuidar desse papel, sendo até muitas vezes obrigadas a escolher entre o trabalho
e/ou a família, assim como também as questão biológicas, o fato de engravidar, que com
isso sofre retaliações pelos tradicionalistas, pois ela terá que se ausentar no período de pré
natal e pós natal, como determina a lei, como aponta Amalia Sina (2005).

DESENVOLVIMENTO

Em uma observação feita na empresa privada a qual o estudo foi realizado, surgiu a
primeira vontade de entender e escrever sobre essa realidade logo ao entrar e observar a
seguinte situação, em que existia mais mulheres gerenciando os setores em relação ao
número de homens, onde eu observei que existia 15 setores ao todo, e que 11 são de
responsabilidade feminina.

Outra questão observada, é o quesito Raça, pois nessa empresa a gerente da


unidade em si, que exerce a função a 11 anos, é uma mulher negra, e ao adentrar pela

581
primeira vez no espaço onde ocorreu a pesquisa, me deparei com essa mulher, assumindo
um papel de maior cargo dentro da empresa. Assim me sentindo de certo modo
representada, tendo em vista os diversos obstáculos que as pessoas negras passam na
sociedade atual, sendo vítimas de preconceito e sendo colocadas à margem da sociedade
por muito tempo, assim sendo negados à eles posições como esta, uma herança histórica
vinda do processo de escravidão no Brasil, como relata Maria Aparecida (2002). Assim
quando pessoas negras, e sobretudo mulheres negras assumem esses espaços, tem um
grande peso de representatividade dignas de serem analisadas.

Nessa perspectiva, Djamila Ribeiro, em sua obra Lugar de fala (2017), faz referência
a Grada Kilomba, é escritora e professora de departamento de estudos de gênero de
Humboldt Universitat, em Berlim, trazendo a discursão sobre a mulher no âmbito da
concepção de Simone Beauvoir, representada dentro do ambiente social como ―o outro‖ e
nunca como ―um‖ sujeito social, ou seja, sempre vista a partir da figura masculina. É uma
oposição ao masculino! Tudo que fugia a figura do homem era caracterizada como mulher,
não tendo figura própria e concreta, como diz Beauvoir (1970), que se encaixa em uma
indagação feita por ela sobre o ―ser mulher‖, sendo ela uma das pioneiras a discutir sobre
essa temática, e que reflete sobre a mulher negra, onde diz que ela é ―O outro do Outro‖, ou
seja, fazendo um recorte também de raça, a mulher negra sofre duas opressões, de gênero
e de raça, assim Djamila Ribeiro (2017) apud Grada Kilomba,

As mulheres negras foram assim postas em vários discursos que


deturpam nossa própria realidade: um debate sobre o racismo onde o
sujeito é homem negro; um discurso de gênero onde o sujeito é a
mulher branca; e um discurso sobre a classe onde ―raça‖ não tem
lugar. Nós ocupamos um lugar muito crítico, em teoria. (DJAMILA
RIBEIRO, 2017, APUD. GRADA KILOMBA, Pg. 37).

Djamila Ribeiro (2017), considera que na sociedade existe uma hierarquia social,
onde em ordem decrescente vem primeiramente o homem branco, depois a mulher branca,
o homem negro e pôr fim a mulher negra, consolidando ainda mais essa opressão.

Uma das categorias de analise deste estudo é o gênero, então nessa perspectiva
Joan Scott (1995) aborda que:

Categoria que indica por meio de desinências uma divisão dos nomes
baseada em critérios tais como sexo e associações psicológicas. Há
gênero masculino, feminino e neutro (...) o uso mais recente, o
―gênero‖ parece ter aparecido primeiro entre as feministas americanas
que queriam insistir no caráter fundamentalmente social das
distinções baseadas no sexo. (JOAN SCOTT, 1995, Pg. 3).

A ideia de gênero surgiu a partir de uma análise social que verificou que mulheres e
homens eram tratados de forma desigual socialmente. Além de ser um termo que ganhava

582
força dentro das discussões a respeito de estudos sobre mulheres, onde se acreditava que
esses estudos acrescentariam e muito para o conhecimento cientifico na sociedade.

Com a crescente luta de mulheres por direitos, ocorre o aumento pelas discussões
relacionado a gênero, onde elas se unem em prol de um mesmo objetivo serem livres, ser e
ter o que quiserem. Com isso, surge as lutas feministas, que teve grande importância para a
libertação de mulheres em diversos âmbitos, profissional, sexual ou dessexualização do
corpo feminino, até mesmo a descoberta do clitóris na década de 60, essa era uma das
pautas dessas lutas históricas feministas, segundo Margareth Rago (2011).

No âmbito profissional, nas empresas industriais, as mulheres eram superexploradas,


ganhavam menos que os homens e trabalhavam muito, como mostra Martins:

A formação de uma sociedade que se industrializava e urbanizava em


ritmo crescente implicava a reordenação da sociedade rural, a
destruição da servidão, o desmantelamento da família patriarcal etc.
A transformação da atividade artesanal em manufatureira e, por
último, em atividade fabril, desencadeou uma maciça emigração do
campo para a cidade, assim engajou mulheres e crianças em ornadas
de trabalho de pelo menos doze horas, sem férias e feriados,
ganhando um salário de subsistência. Em alguns setores da indústria
inglesa, mais da metade dos trabalhadores era constituída por
mulheres e crianças que ganhavam salários inferiores aos dos
homens. (CARLOS MARTINS, 1982, Pg.15)

O trabalho destinado às mulheres era o que ficava na base da pirâmide do século


XX, não tinha muitas chances de uma evolução nessa pirâmide, dentro das empresas
capitalistas os postos de comando eram privativos aos homens, além de outras atividades
que eram privadas a elas, como aponta Amalia Sina (2005).

Devido a uma divisão sexual do trabalho, onde as desigualdades são sistemáticas,


ocorre uma hierarquização das profissões, o doméstico que era feito pelas mulheres, de
forma que não era considerado trabalho profissional e o industrial assalariado, e que
consequentemente, acaba por ocorrer também uma hierarquização de gênero, criando
assim um sistema de gênero dentro da sociedade, haja vista que o trabalho masculino é
considerado produtivo e o feminino se encaixa a um trabalho reprodutivo, como diz Helena
Hirata; Daniéle Kergoat (2007), em um estudo sobre gênero e trabalho na França.

Diante do crescimento das mulheres no mercado de trabalho, principalmente nas


empresas industriais, onde elas começaram a trabalhar nesses locais primeiramente porque
muitos homens não aceitavam as condições precárias de trabalho, com isso, as mulheres da
época aproveitavam para mostrar sua força de trabalho e garantir sua sobrevivência, mas
por serem mulheres seu trabalho não era valorizado, e a opressão e exploração era

583
rotina, baixos salários e grandes jornadas de trabalho, como aponta Amalia Sina (2005).
Diante dessa realidade, as ativistas feministas, lutavam para mudar esse cenário trabalhista
feminino, garantindo direitos de melhores condições de trabalho.

Mesmo com todo os avanços, devido as lutas feministas, para a conquista por
espaços dentro desse novo modelo de trabalho e organização social, as mulheres
continuavam ocupando cargos considerados menos importantes dentro dos ambientes de
trabalho, onde eram divididos a partir do que seria função inata do homem e/ou função inata
da mulher, que são reflexos dos estereótipos criados aos sexos vinculados desde a infância,
segundo Mertz (2014), assim, as mulheres não esperavam que se tornassem líderes e não
almejavam tais cargos. Com esses estereótipos as mulheres eram vistas apenas para
exercerem tarefas do lar, e\ou cuidados dos filhos, cultura patriarcal implantada na
sociedade, que faz com as mulheres sejam submissas ao sexo masculino dominante desse
meio social, utilizando de uma das justificativas dessa submissão, a biológica, onde o fato
da mulher menstruar e engravidar, o seu peso, medida, força, julgava ela como incapaz ou
como inferior ao homem, ideia explicada na obra de Simone de Beauvoir (1970). No livro de
Amalia Sina (2005), apud. Rachel Soithet contem sobre essas condições impostas ao sexo
feminino, onde ela diz que

A filosofia considerava que a interioridade da razão entre as mulheres


era fato incontestável, cabendo a elas apenas cultivá-la na medida
necessária ao cumprimento de seus deveres naturais: obedecer ao
marido e cuidar dos filhos (...) (AMALIA SINA, 2005, Pg. 21)

Com isso a ideia de que a mulher deveria gastar toda sua inteligência para seu
marido e filho, desmotivando por vezes de ascenderem socialmente, economicamente e até
mesmo sexualmente.

Ainda nessa concepção de estereótipos criados para cada cargo e/ou função, as
mulheres que assumiam funções de gestão, acabam que utilizavam de características ditas
masculinas, para poderem ganhar espaços dentro das empresas, a exemplo, a
competitividade, como relata Amalia Sina (2005)

Era a regra. Quando começaram a conquistar o poder, as mulheres


passaram a atuar como seus pares, homens. Muitas vezes até de
maneira predatória. Porque era esse o tom. As empresas prezavam a
absoluta competitividade. E como ganhar espaço no mundo dos
homens? À custa de maior competência ou jogando com as mesmas
armas, d maneira ainda mais efetiva. (AMALIA SINA, 2005, Pg. 137)

Com isso, muitas gestoras assumiram e\ou assumem essas posturas, e as que não
apresentam essas características, acabam que por vezes sendo deslegitimadas diante de
sua autoridade dentro do ambiente de trabalho.

584
A mulher, atualmente, representa 40% da população economicamente ativa no brasil,
mas apenas 14% exerce cargos de gestão\gerência, mesmo tendo escolarização superior
em relação aos homens, segundo Mertz (2014). Mulheres estudam em média 8,2 anos,
1
enquanto os homens 7,8 anos, segundo DHM , que é um fator muito importante, haja vista

que durante a primeira metade do século XIX as mulheres eram impedidas de estudar,
sendo a educação delas apenas a escola de primeiro grau, onde atingir níveis mais altos era
abertos apenas para os homens, para elas eram ensinados tarefas do lar, ao invés da
escrita ou leitura, como mostra Maria Teles (1993), apenas em 1881 ouve o primeiro
ingresso de uma mulher ao ensino superior.

A empresa a qual a pesquisa foi feita, fica localizada no município de Castanhal-Pa,


e é considerada de grande porte, pois ela está presente em muitos estados brasileiros.
Dentro dela existem os cargos de nível fundamental, médio e superior, os cargos que tem
como função assumir responsabilidades de setores, consequentemente, a função de gestão,
de nível superior, o interessante é que esses cargos não são oficializados como tal, são
ditos apenas como técnico, ou seja, é exigido nível superior, mas a contratação ou melhor
dizendo, a carteira de trabalho é assinada como técnico.

A seguinte pesquisa teve um estudo com uma abordagem qualitativa descritiva, que
segundo Gil (2008), é um tipo de pesquisa que se preocupa em investigar de forma
subjetiva um sujeito ou um grupo social, no caso as mulheres do local estudado, procurando
entender sobre sua rotina, suas atribuições dentro da empresa.

A pesquisa contou com uma abordagem do tipo etnográfica, com a técnica do tipo
observação participante, participando da rotina profissional dessas mulheres, como elas
exercem suas tarefas diárias, quais as relações que elas fazem no decorrer do dia. Esse tipo
de pesquisa faz com que haja uma maior aproximação entre pesquisador e pesquisador,
fazendo com que tenha confiança e maiores dados sejam obtidos para a pesquisa, como
mostra no texto de Vagner Silva (2015):

A observação participante, definida principalmente pelo antropólogo Bronislaw


Malinowski como a convivência intima e prolongada do pesquisador com seus
„informantes nativos‟, ao refutar a „antropologia de gabinete‟, permitiu o
estabelecimento de um determinado tipo de relação na qual o antropólogo se
colocava como um instrumento de pesquisa, propiciando à antropologia a
perspectiva intersticial (o olhar desde dentro) que é a ferramenta básica, sua
marca registrada, desde então... (IDEM, Pg. 13).

Nesse parágrafo, ele reforça a ideia de se colocar de fato na pesquisa, ou seja, não
observando de longe, mas conversando de dentro, algo que revolucionou muitas pesquisas,

Direitos humanos das mulheres, a equipe das nações unidas no Brasil. Julho, 2018.

585
que defendiam suas teses dentro de seus escritórios, salas, bibliotecas, mas nunca iam até
o local para de fato comprovar o que estavam dizendo. Julgo essa ação muito importante,
para que de fato os pesquisadores tenham coerência e veracidade no que estão falando, ou
tentando falar, é uma ação a qual utilizarei na minha pesquisa, que conviverei diariamente
com elas na hora do trabalho, observando, conversando, entendendo essas relações e
ações de chefia diária.

Um outro método utilizado foi história de vida, pois com esse método pude identificar
os caminhos, decisões e desafios enfrentados por elas até chegar a essa posição, se houve
incentivo da família, amigos, parceiros (as), para se chegar nesse cargo, e até mesmo se
elas mesmas pensaram e/ou almejaram ocupar essa posição.

Vale ressaltar que por princípio epistemológico, não utilizei de discursos masculinos,
havendo prioridade e exclusividade dos discursos das mulheres, enfatizando ainda mais que
elas são e serão protagonistas dos relatos, de suas histórias e vivencias, consequentemente
da pesquisa, por meio dos discursos. Ainda nessa mesma perspectiva, utilizei durante o
decorrer da pesquisa, nas referências o nome das mulheres com primeiro e último nome,
para dar mais visibilidade para as mulheres pesquisadoras.

Em uma conversa informal com uma das mulheres dessa empresa, que se identifica
enquanto parda, de 46 anos de idade e exerce cargo de chefia de um determinado setor a
20 anos, cuja forma de inserção no cargo foi que a antiga gerente gostou da forma como ela
trabalhava em outro local, sua forma de conversar e tratar as pessoas, fizeram com que ela
à quisesse em sua empresa.

Ela relata que enquanto criança e\ou jovem, não era incentivada a chegar em um
patamar mais alto na profissão e também a fazer um curso superior, seu pai era muito rude
para com ela em relação aos estudos, na época o ensino médio era agregado ao ensino
técnico, onde existia algumas áreas para se especializar, dentre elas tinha o magistério e a
administração, a qual o pai queria que ela fizesse o magistério, por se melhor para ela, pois
era uma mulher, entretanto, ela se opôs, e fez administração, o pai não apoiou e a proibiu
de se formar nesse curso. Lutando contra isso, ela conseguiu terminar e só após o
casamento que conseguiu adentrar na universidade. Outro ponto que a entrevistada
2
apresenta, é o preconceito sexista que sofreu em seu ambiente de trabalho, onde por dois

relatos demonstrou tais fatos, em um ela diz que por ser responsável por um setor, ela era a
única que recebia informações diretas da gerencia local e regional, sendo assim, um homem

Ato de discriminação e objetificação sexual, é quando se reduz alguém ou um grupo apenas pelo gênero ou orientação
sexual. Um dos casos mais comuns de sexismo é estipular que a cor rosa está relacionado ao gênero feminino, e o azul
ao gênero masculino.

586
a qual ela comandava apresentava uma certa dificuldade em aceitar ou acatar as ordens
que ela repassava, como ela mesma diz: ―(...) por vezes percebia que era por puro
machismo, sempre duvidava do que eu falava e não me repassava as informações (...)‖.

Outra situação relatada, foi que um outro homem quis impor suas ideias a ela em
relação a organização do espaço de trabalho, por vezes em voz alta, mas ela contornava a
situação, mostrava confiança e segurança no que estava falando, fazendo que ele à
respeitasse.

Essas situações, nos mostra como a criação da criança é fundamental, pois assim
encoraja suas filhas, principalmente, a sair dessa condição que muitas são colocadas, como
―Rainhas do lar ―, termo que a Amalia Sina (2005), retrata em sua obra. Mas, não apenas a
criação da criança de sexo feminino, mas também a criação da criança do sexo masculino,
pois assim os homens também cresceram com consciência de que se deve respeitar uma
mulher, seja no ambiente profissional ou não. Além de mostrar, que as mulheres têm que
mostrar a todo momento que é capaz de estar nessas ocupações, mostrando e
demonstrando sua eficiência a todo momento.

CONCLUSÃO

Assim, pode-se perceber que ainda existe uma resistência masculina para lidar com
mulheres em cargos superiores aos deles. Sendo muitas vezes agressivos e/ou displicentes,
até mesmo com seu próprio trabalho, pois devido a esses desvios nas atribuições, como por
exemplo, obedecer aos comandos dela e até mesmo dar satisfação das atividades
desenvolvidas, faz com que o seu desempenho caia, sendo um funcionário que vive sendo
chamado a atenção pela gerente da unidade. Como relata a mulher pesquisada, que
algumas vezes em reuniões com a gerente, ela conversa e chama a sua atenção na frente
de todos, e ele não reage muito bem, o machismo falando mais alto. Com essas atitudes,
até a relação deles, pessoal e profissional, mudou de uma forma considerável. A sociedade
dinâmica e muda constantemente, mas esses pensamentos e atitudes, muitas vezes
mudam lentamente.

Além disso, as constantes discussões sobre gênero, mulher no mercado de trabalho,


são necessárias para reduzir as desigualdades no mercado de trabalho, bem como, nas
demais esferas das relações de poder onde, historicamente, há uma relação de
subserviência do gênero feminino em relação ao masculino. Como diz Simone de Beauvoir
(1997), basta uma crise política, econômica e religiosa acontecer dentro da sociedade, que
os direitos das mulheres são contestados, assim a luta por direitos, e pela permanência
deles, assim como a luta por equidade, é constante.

587
Diante disso, levando em conta um pensamento de Amalia Sina (2005), sobre
o trabalho feminino:

O mercado de trabalho comporta desde aquela mulher que cuida dos


filhos de outra que trabalha, passando pela que trabalha no chão da
fábrica, ou em uma loja, até a que se tornou gerente de uma grande
empresa ou executiva de uma multinacional. Comporta a mulher que
trabalha no campo, com as mãos calejadas, a que trabalha duro em
casa enquanto o marido sai para trabalhar, a que vende produtos de
porta em porta, as consultoras de beleza que vivem e alimentam suas
famílias com o dinheiro que produzem. Tudo isso é trabalho, e toda
forma de trabalho é nobre. Toda mulher que trabalha é uma guerreira
forte e merece respeito. (AMALIA SINA, 2005, Pág. 10-11)

Assim, toda mulher merece respeito, seja qual for seu cargo ou ocupação, analisar
essas vidas trará voz a essas mulheres sobre suas condições, seja ela positiva ou não.

588
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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589
ETNOCONHECIMENTO E CONSERVAÇÃO DA AGROBIODIVERSIDADE PELAS
MULHERES CAMPONESAS NO PROJETO DE ASSENTAMENTO MÁRTIRES DE
ABRIL/PARÁ

https://doi.org/10.29327/527231.5-39
1
Regina Oliveira
Cyntia Meirelles²
2
Ruth Helena Almeida
RESUMO

A relação entre o etnoconhecimento e suas contribuições para a conservação da


diversidade agrícola representam um desafio no entendimento da manutenção da
segurança alimentar nas áreas rurais, atendendo a um dos princípios básicos de
qualquer projeto em desenvolvimento rural sustentável.Esta pesquisa teve como
objetivo investigar o conhecimento dos produtos da agrobiodiversidade e o papel da
mulher nas relações sociais camponesas no PAS Mártires de Abril- Belém, no Estado
do Pará. Foram utilizados métodos participativos e de Etnoecologia para mapear a
diversidade agrícola e os conhecimentos entre as mulheres agricultoras deste
assentamento periurbano, com destaque para a discussão de gênero. A aplicação de
questionários semiestruturados e o levantamento da história local contribuíram para
entender a organização no espaço social vivenciado pelas mulheres, os sistemas
produtivos e os modos de vida em um PAS Periurbano. Foram entrevistados 59,2%
assentados entre homens e mulheres. A riqueza total foi de 256 etnoespécies
distribuídas em 63 famílias botânicas cultivadas e extraídas. A produção comercial é
inexpressiva e a maior parte da produção está voltada à segurança alimentar. Por
meio das redes de troca as mulheres assumem importante papel na diversidade
agrícola do assentamento.

Palavras-chave: Assentamento Periurbano, Etnoecologia, Gênero.

ABSTRACT

This paper aimed to investigate the knowledge of agrobiodiversity products and the
role of women in rural social relations and in PAS Mártires de Abril - Belém, Pará state,
Brazil. Participatory and ethnoecology methods were used to map out agricultural
diversity and the knowledge of women farmers in this Settlement, emphasizing the
question of gender. The application of semi-structured questionnaires and a survey of
local history contributed to understanding the organization of social space experienced
by women, production systems and the lifeways of a peri-urban settlement. We
interviewed 59,2% of the settlers. A total richness of 256 ethnospecies were registered,
distributed in 63 botanical families that are cultivated and extracted. Production is not
earmarked for the market as most of it is geared towards food security. Women play an
important role in the settlement´s agricultural diversity.

Key -words: Ethnoecology, Gender, Peri-urban settlements.

Museu Paraense Emílio Goeldi


Universidade Federal Rural da Amazônia

590
INTRODUÇÃO

A relação entre o etnoconhecimento e suas contribuições para a conservação da


diversidade agrícola representam um desafio para manutenção da segurança
alimentar nas áreas rurais, atendendo a um dos princípios básicos de qualquer projeto
em desenvolvimento rural sustentável: valorização do conhecimento local e
protagonismo dos atores sociais envolvidos. Consideramos aqui etnoconhecimento
como o conhecimento produzido por diferentes grupos sociais em diferente locais
transmitidos de geração em geração, ordinariamente de maneira oral e desenvolvidos
margem do sistema social formal. Além disso, há toda uma análise a ser considerada
a partir da visibilidade das mulheres da agricultura familiar. Os assentamentos da
reforma agrária são os locais onde, em geral as mulheres adquirem certa visibilidade
em função das regras locais da organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST). No entanto, estas mulheres ainda estão invisíveis frente às políticas
públicas que tratam da temática reforçando as situações de não equidade entre os
gêneros (SILIPRANDI,1998). Deve-se considerar a importância de estudos sobre a
transformação dos sistemas agrícolas tradicionais amazônicos, nos quais estes têm
sido realizados, em geral, no contexto da abertura de estradas e da integração das
populações locais em uma economia de mercado. As atividades de produção, entre as
quais a agricultura, originalmente praticadas em contextos florestais está sendo
modelada por novos condicionantes oriundos da esfera urbana, em particular, por
novos modelos culturais e por novas condições fundiárias (EMPERAIRE;ELOY,2008).

O papel da mulher nas relações sociais camponesas são informações escassas e


geram perda de conhecimento dos produtos da agrobiodiversidade. Em geral elas
estão envolvidas na produção e cuidado das espécies cultivadas e extraídas, de
pequenos animais, assim como o conhecimento da segurança alimentar e nutricional.
Neste contexto, a utilização de recursos da agrobiodiversidade é intensa e garante a
subsistência dessas populações.

Essa abordagem vai ao encontro da consideração de que a questão ambiental não


pode ser vista somente como produto de uma relação entre homem e natureza, mas
no campo das relações que os diferentes grupos estabelecem no espaço social. No
caso de assentamentos da reforma agrária devem ser consideradas também as
estratégias elaboradas desde a apropriação da terra, os modos de uso e as diferentes
formas de manejo do ambiente. Estas, muitas vezes elaboradas a partir dos padrões
de intervenção na natureza que são reflexos das diferentes dimensões culturais e

591
sociais, econômicas e políticas que se interagem no processo de ocupação para
definir as práticas agrícolas.

Entretanto, é preciso conhecer como estas informações formam um processo de


tomada de decisão, bem como de um processo de avaliação, individual ou coletivo,
que muitas vezes tem suas raízes na formação étnica (DIEGUES;ARRUDA, 2001). A
temática da agrobiodiversidade é tida por muitos autores como um novo paradigma de
desenvolvimento agrícola, onde se procura associar conservação e manejo da
biodiversidade com desenvolvimento sustentável, incluindo a associação de vários
setores e atividades. A agrobiodiversidade, ou diversidade agrícola, constitui uma
parte importante da biodiversidade e engloba todos os elementos que interagem na
produção agrícola: os espaços cultivados ou utilizados para criação de animais
domésticos, as espécies direta ou indiretamente manejadas, como as cultivadas e
seus parentes silvestres, e a diversidade genética a eles associada (SANTILLI, 2009).

No intuito de refletir sobre o futuro das agriculturas em assentamentos da reforma


agrária a partir da conservação de diversidade agrícola e de saberes femininos, este
estudo teve como objetivo entender o conhecimento e uso da agrobiodiversidade
visando gerar subsídios para a elaboração dos planos de desenvolvimento do Projeto
de Assentamento Mártires de Abril (PAS-MA). As questões que conduziram as
discussões neste estudo foram: Como ocorre a integração de novas espécies ou
variedades em assentamentos periurbanos? E qual o papel das mulheres neste
contexto? De que forma acontece a dinâmica do uso da terra neste assentamento a
partir da lógica feminina?

Material e métodos

O Projeto de Assentamento Mártires de Abril localiza-se na Ilha de Mosqueiro, distante


77 km do centro da cidade de Belém, no estado do Pará. No PAS Mártires de Abril
foram assentadas 91 famílias distribuídas em uma área de 408 ha. Divididas entre
agrovila e o lote. A maioria das moradias localiza-se na agrovila. Os terrenos na
agrovila possuem dimensões de 20m x 30m e seus lotes de produção familiar têm em
média 3,6 ha, onde estão alguns residentes. Atualmente residem no PAS 76 famílias
inicialmente assentadas (moradores que possuem seu cadastro no Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra). E cerca de 100 famílias incluindo os
agregados (Figura.1).

592
Figura 1- Localização do Projeto de Assentamento Mártires de Abril e as áreas de uso.

Segundo o cadastro do Incra (2006), o Projeto de Assentamento Mártires de Abril


(PAS Mártires de Abril) tem como data de ocupação 3 de maio de 1998, sendo o
assentamento criado em 30 de outubro de 2001. A instituição do Assentamento foi
realizada em parceria do Incra com a Prefeitura Municipal de Belém por meio do
Projeto Casulo.

A região do PAS Mártires de Abril é caracterizada por uma vegetação secundária, ou


capoeirão (como é comumente chamada pelos assentados). No interior do PAS há o
lago Balneário das Borboletas influenciado pela maré. Alguns lotes possuem igarapés
perenes e os chamados ―olhos d’água‖ ou cacimbas. Há também uma área de pasto,
com plantação de capim quicuio (Brachiaria humidicola (Rendle) Schweickvr. Lanero)
remanescente da antiga fazenda ocupada, áreas de vegetação rasteira localmente
chamada de ―campos da natureza‖, áreas de baixios que alagam no período de
chuvas e várzea formada pelo igarapé do Sucurijuquara. No que diz respeito à fauna,

593
segundo os assentados há presença de mamíferos como macaco-prego, capivara e
cutias. Além de ofídios, répteis, quelônios e aves como tucanos e gaviões. A
distribuição espacial no PAS-MA, segundo os assentados é caracterizada como:
agrovila (local das moradias e quintais); lotes (áreas de produção familiar); área
patrimonial (locais de infraestrutura da fazenda e área de preservação); área de
projetos coletivos (locais onde se desenvolveram os projetos agrícolas coletivos) e as
áreas de sobra de terra (que são doadas ou se permite o uso para as novas famílias
que chegam ao PAS).

Além da consulta aos registros nas fontes secundárias de informação foi realizada
atividade de campo combinando técnicas de pesquisa-ação com entrevistas
semiestruturadas e observação participante. A pesquisa-ação como uma prática que
promove interação entre os pesquisadores e os sujeitos sociais e a pesquisa
participante com o objetivo de conhecer melhor as formas vida social, política,
econômica e cultural dos moradores para o estabelecimento de ações (THIOLLENT
2003; HAGUETE 2003). Nesse contexto, a pesquisa de campo teve como pressuposto
a interdisciplinaridade, sendo possível a realização de uma abordagem sob diversas
perspectivas.

Coleta e análise de dados

O trabalho de campo foi realizado nos períodos de julho de 2011, quando da visita à
coordenação local para apresentação do projeto; de 9 a 12 de agosto de 2011 quando
da aplicação dos questionários e entrevistas às pessoas-chave e reconhecimento da
área e em 24 a 29 de novembro de 2011, ocasião em que se percorreu os lotes e se
realizou levantamentos etnobiológicos. O questionário aplicado abordou temas
concernentes à identificação da família, a origem e histórico de migração dos
moradores, aspectos socioeconômicos, aspectos da produção e do uso da terra,
agrobiodiversidade, fundiários e percepção e sua relação com o meio ambiente.

Durante as atividades de campo foram identificadas as paisagens e a distribuição


espacial do PAS-MA, segundo seus moradores. A interlocução com pessoas-chave e
visitas aos lotes, e a aplicação do questionário possibilitou a obtenção dos dados
sobre as etnoespécies e etnovariedades cultivadas e extraídas na área. O terno
etnovariedade é empregado aqui no sentido da etnoclassificação e nomeação que os
assentados fazem a respeito das variedades botânicas cultivadas e extraídas. A
identificação das espécies citadas foi baseada em literaturas especializadas sobre
espécies úteis da Amazônia. O sistema de classificação utilizado para a organização
da tabela de espécies foi o AngiospermPhylogenyGroup (APGIII 2009).

594
Os dados foram sistematizados no programa Excel (versão 2007), e as análises
realizadas por meio de métodos da estatística descritiva, com auxilio de
representações gráficas e em tabelas. Para se verificar a suficiência amostral, foi
construída a curva de rarefação cujo o objetivo é estabelecer o número de espécies
conhecidas ou utilizadas por um determinado grupo humano, considerando o número
de citações de cada etnoespécie em cada entrevista que compõe uma amostra
(Hanazaki et al. 2000; Peroni et al. 2008). Para este estudo foi utilizado o estimador
Bootstrap, o qual é calculado pela fórmula:
Sobs

Sboot = Sobs + ∑(1 − pK )


m
=1

Onde:

Sobs: número total de etnoespécies observado;

pK: proporção de amostras que contém a etnoespécie K;

m: número total de amostras

Tanto a curva de rarefação quanto a curva do estimador foram geradas por meio do
programa EstimateSwin 8.20. Para se calcular a diversidade de usos dos recursos da
agrobiodiversidade, empregou-se o índice de Shannon-Wiener (BEGOSSI, 1996). A
fórmula para calcular o Índice de Shannon-Wiener é:

H’= -∑(pi )(LN pi)

Onde:

S = número de espécies;

pi = ni/N;

ni = número de citações por espécie;

N = número total de citações;

H’= Índice de diversidade.

Foram entrevistados 59,2% (N=45) dos moradores assentados, sendo a maioria


mulheres (N=38) uma vez que este grupo constitui o foco do trabalho e em sua
maioria com residência na agrovila.

Resultados e Discussão

Caracterização social dos Assentados

595
Os moradores do assentamento são na sua grande maioria emigrados das periferias
de Belém, Ananindeua e Castanhal no estado do Pará, além de Amazonas, Maranhão,
Goiás e Minas Gerais. Muitos foram arregimentados e cadastrados pelo trabalho de
base do MST. As razões da migração incluem a expulsão de suas regiões de origem,
mudança de área de assentamento, a falta de oportunidades e as dificuldades
enfrentadas para estabelecimento de condições de vida; não caracterizando todos os
assentados como oriundos da agricultura familiar. A idade dos entrevistados variou
entre 17 a 69 anos, a média de idade foi de 44 anos. A chegada dos moradores no
assentamento ocorreu em dois momentos: o primeiro quando da ocupação em maio
de 1999 e o segundo após os períodos de despejo quando algumas famílias
abandonaram o assentamento, já no segundo ano de ocupação. A maior parte dos
assentados está na área há mais de 10 anos. Os mais recentes chegaram convidados
por suas famílias ou após a saída ou falecimento de outros assentados.

O nível de escolaridade dos assentados entrevistados é desigual. No PAS-MA é


possível encontrar assentados que apenas assinam o nome e assentados com ensino
superior. A predominância dos que possuem ensino fundamental incompleto
(correspondendo a 4ª série) está entre os mais velhos. Os mais jovens buscam
capacitação nas escolas próximas ou nos cursos de formação promovidos pelo
MST.Todos no assentamento têm seus documentos civis e as crianças nascidas são
registradas. A maioria dos entrevistados 53% vivem juntos (concubinato) e 36% são
casados; os demais se declaram solteiros (6,6%) e divorciados (4,4%). No
Assentamento 48,8% declaram-se protestantes (inseridos todos os grupos religiosos)
e 42% católicos. Apenas duas pessoas declaram-se não ter religião. As doenças mais
comuns mencionadas foram: gripe, febre, verminose e tosse. Alguns citaram sofrer de
diabetes, pressão alta, problemas na coluna e colesterol. Os assentados buscam
tratamento no posto de saúde localizado no bairro de Sucurijuquara, próximo do
assentamento. São as mulheres das famílias que encaminham os doentes à busca por
tratamento. As rezadeiras/benzedeira do PAS-MA quando solicitadas, os tratam com
rezas e garrafadas produzidas localmente.

A organização social nos assentamentos é inserida desde o início da ocupação e em


geral segue as determinações do MST. As famílias recebem orientação e formação ao
longo do período de ocupação e as lideranças constituídas se estabelecem na
Coordenação do Movimento e do Assentamento. No caso do PAS Mártires de Abril
não foi diferente. Atualmente o PAS Mártires de Abril possui duas associações. A
Associação dos Produtores do Assentamento Mártires de Abril (Aproama), criada logo
após a constituição do Projeto de Assentamento para viabilizar os financiamentos e

596
organizar a produção, representando as famílias junto aos órgãos públicos; e a partir
de 2008 surge a Associação Agroecológica Familiar do Assentamento Mártires de
Abril (Aproaf), ligada a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar e que
emergiu da divisão política do MST.

Após a criação do Projeto de Assentamento, no período de 2001 a 2002 iniciou-se a


organização propriamente dita. Segundo uma liderança local, a estrutura
organizacional pensada foi composta de Coordenação do Movimento, Coordenação
do Assentamento e Coordenadores de Núcleos Familiares ou de Base e
Coordenadores de Setores. Os setores se distribuíam em educação, saúde, produção
e gênero. A inserção nas coordenações segundo os entrevistados ocorreu com ―cada
acampado se afinando com quem tinha afinidade‖, sobretudo para a composição dos
Núcleos de Base. No período inicial do assentamento foram constituídos 10 núcleos
de base para produção. Cada núcleo optou por uma ou mais linhas de produção que
variaram entre culturas permanentes, consórcio de cultivos, horticultura orgânica,
piscicultura e criação de pequenos animais.

A atividade produtiva no PAS Mártires de Abril

As estratégias de subsistência econômicas dos moradores do PAS-MA estão


baseadas principalmente na agricultura familiar, com destaque ao cultivo de produtos
oriundos dos projetos instalados. Pequenas roças de mandioca, para a produção de
farinha são mantidas e há intensa busca por outras espécies a serem cultivadas.Em
passado recente o PAS-MA manteve uma dinâmica de produção em função dos
projetos instalados com o apoio do Incra. Os projetos de curto prazo adotados com
vistas à fixação dos moradores na área foram de criação de frango, horta e barco de
pesca; em médio prazo plantio de banana e maracujá; e em longo prazo o plantio
consorciado de cupuaçu com açaí. Os recursos vieram por meio do Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf A). Os produtos eram
comercializados em nível regional, tendo como objetivo a geração renda para
manutenção das famílias e para novos empreendimentos.

Neste contexto, os assentados assumiram realizar mais de uma atividade,


principalmente as mulheres que sabem dar visibilidade ao seu papel como agricultora
e como ―dona de casa‖. A agricultura e a criação de animais foram as vocações mais
citadas com 22 e 7 menções respectivamente. As demais vocações estão entre
trabalhar no comércio local como cozinheira, garçonete, sobretudo no período de
férias e do verão quando aumenta o fluxo de turistas e moradores que possuem casas
de veraneio na Ilha de Mosqueiro. Oito outras atividades foram citadas revelando o

597
enfoque multifuncional da agricultura familiar e sua relação rural-urbana, considerando
a proximidade do PAS-MA com a Capital Belém.

Está nos quintais e lotes a maior parte dos produtos cultivados. Quintais são
considerados como um sistema agrícola tradicional muito difundido na maioria das
regiões tropicais do mundo (LAMONT et al.,1999). Ressalta-se que os quintais no
PAS-MA, estão presentes nos lotes e na agrovila, sendo o mesmo reconhecido como
a área próxima da casa. Alguns assentados mensuram e delimitam esse espaço em
seus lotes em até 100m ao redor da casa. Nele estão os criadouros de pequenos
animais, frutíferas, hortas, plantas medicinais e até produtos comercializados. Os
quintais na agrovila são utilizados de forma semelhante aos dos lotes, porém em
menor proporção, servindo como área experimental para a produção de mudas.

Riqueza de espécies da agrobiodiversidade

A riqueza global considerando todos os questionários respondidos pelos 36


assentados que declaram ter alguma produção foi de 256 etnoespécies, das quais 151
estão representadas ao nível de gênero ou espécie, distribuídas em 63 famílias
botânicas. Banana (Musa sp L.), açaí (Euterpe sp. Mart.), manga (Mangifera sp.L.),
limão (Citrus sp), cupuaçu (Theobroma grandiflorum (Willd.exSpreng) K.Schum), caju
(Anacardium occidentale L.), coco (Cocos nucifera L.), feijão (Phaseolus sp L.),
abacate (Persea americana Mill), goiaba (Psidium guajava L), ingá (Inga edulis Mart.),
macaxeira (Manihot sculenta Crantz), laranja (Citrus sinensis (L.)Osbeck), cacau
(Theobroma cacao L) e acerola (Malpighia glabra L), nesta ordem de importância
foram as plantas mais citadas. Este grupo de espécies corresponde a mais de 50% do
total das 545 citações. Lourenço et al (2009) registrou 70 espécies vegetais em estudo
realizado em quintais de três assentamentos na Amazônia Central, com
aproximadamente o mesmo período de tempo de existência que o PAS Mártires de
Abril. Oliveira (2010) registrou em um único quintal do PAS-MA mais de mil e
quatrocentas plantas cultivadas.

Com relação à riqueza botânica por família, Fabaceae foi mais representativa com
nove gêneros/espécies, seguida das famílias Lamiaceae, Arecaceae, Brassicaceae,
Anacardiaceae, Curcubitaceae com sete, seis representantes para as duas primeiras
respectivamente e as demais com cinco. A família botânica Fabaceae está
representada por espécies de importância alimentar como o feijão e o ingá, medicinal
como o jucá (Caesalpinia férrea Mart) e de recuperação de solo como a mucuna preta
(Mucuna aterrina (L.) D.C. var.utilis). Resultados semelhantes onde Fabaceae foi a
família com maior número de espécies foram encontrados por Ming; Amaral-Junior

598
(2005) e Lima et al (2011) na Amazônia e Cunha e Bortolotto (2011) em Mato Grosso,
todos com plantas medicinais.

A curva de acumulação de etnoespécies citadas (Figura 2) não apresenta estabilidade.


Observa-se que a curva gerada pelo estimador bootstrap está em ascensão indicando
que se mais assentados fossem entrevistados, provavelmente, seria registrada uma
diversidade ainda maior.

Figura 2- Curva de acumulação de etnoespécies citadas pelos assentados no PAS


Mártires de Abril. (N= 36). Fonte: dados de campo.

As espécies mais representativas do PAS-MA, principalmente devido as suas


etnovariedades, são Musa sp, Mangifera sp, Phaseolus sp, Citrus sp e Cocos nucifera.
Cabe destacar que os cocos já estavam na área desde a ocupação e as demais
espécies foram plantadas pelos assentados. Consideraram-se somente as citações
dos entrevistados, não houve mensuração de abundância (Figura 3).

A maioria das plantas presentes nos lotes e quintais do PAS-MA é cultivada, com
destaque para açaí (Euterpe sp.), produtos da roça como mandioca
(Manihotesculenta, Crantz), macaxeira (Manihotesculenta, Crantz) e feijão (Phaseolus
sp.) e frutíferas como maracujá (Passiflora edulis), acerola (Malpighia glabra L),
cupuaçu (Theobromagrandiflorum (Willd.exSpreng) e hortaliças.

599
Figura 3 - Espécies com maior número de etnovariedades e citações pelos
assentados. Em rachurado o número de etnovariedades e em traços inclinados o
número de citações.

O conhecimento adquirido através da observação da natureza, dos testes feitos com


plantios durante o período de implantação de projetos e da transmissão do
etnoconhecimento adquirido dos pais muito provavelmente contribuíram para a
diversidade agrícola encontrada no assentamento. Segundo Diegues (2000) a
transmissão do etnoconhecimento é feita dos mais velhos aos mais novos através das
gerações como na fala de Dona. Raimunda ―Aprendi sobre as plantas com minha mãe
de pegação que me deixou um livro de orientação sobre as curas e ensinou as
práticas desde criança‖. Há também integração e trocas de conhecimento entre os
assentados como afirmado por Dona dos Anjos ―Cada um aprende com o outro. São
pessoas de muitos lugares diferentes e um aprende com o outro‖ referindo-se aos
diferentes modos de cultivos e as diversas plantas cultivadas em seu quintal.

possível perceber que no PAS os assentados que estão a mais tempo residindo na
área citaram mais etnoespécies e muitos afirmaram que aprenderam com seus pais
sobre a espécie cultivada, pode-se afirmar que essa transmissão cultural é mantida
nas práticas agrícolas em seus lotes (Tabela 1).

600
Tabela 1- Número de etnoespécies citadas por tempo de moradia dos assentados
(N=36).

Tempo no PAS Nº de assentados Nº de citações


Até 1 ano 1 5
1 a 5 anos 8 80
6 a 10 anos 10 223
Acima de 10
anos 17 237
Total 36 545

A obtenção das plantas foi classificada como compradas, ganhas ou trocadas. Há uma
intensa preocupação com o enriquecimento da diversidade agrícola como constatado
durante uma entrevista ―As sementes é um vício que nós temos, por onde anda traz‖.
Com exceção das plantas que chegaram via projetos (N=18), às demais são
adquiridas no próprio assentamento onde ocorrem as trocas de sementes ou mudas
(N=92) entre os vizinhos e dos assentamentos próximos como o PAS Paulo Fontelles
e o PAS Elizabeth Teixeira. A relação familiar, reuniões e viagens são responsáveis
pela chegada de 98 das etnoespécies citadas e as feiras e os mercados por 54 das
etnoespécies.

O índice de diversidade foi usado para comparar as diferentes categorias de uso


citadas pelos assentados. Considerando a diversidade de Shannon H´=1,78, obtida no
PAS-MA, Oliveira (2008) encontrou valores inferiores (H´=1,73) para estudo realizado
em cinco comunidades na Amazônia. Ressalta-se que neste trabalho os assentados
estão utilizando a área a cerca de 10 anos apenas.

Considerando as treze categorias de uso para as etnoespécies, o consumo (N=162),


seguido do consumo e venda (N= 58) e uso medicinal (N=30) foram as categorias com
mais etnoespécies citadas. A venda de produtos agrícolas é baixa. Apenas doze
etnoespécies são comercializadas. O ingá chinelo (Inga sp.), a pimenta verde
(Capsicum sp), o cheiro verde (Coriandrum sativum L.) e o açaí são os produtos
consumidos e quando excedem são comercializados, principalmente no período de
verão. Já a alface lisa, o noni (Morinda citrifolia), o cupuaçu melhorado (Theobroma
grandiflorum cultivar), o feijão (Phaseolus sp), a pimenta de cheiro (Capsicum sp) e as
etnovariedades de coco Pará e de coco anão são categorias de uso utilizadas
exclusivamente para a venda. Cabe destacar que o número de plantas citadas como

601
ornamentais foi expressivo (N=25), há uma preocupação por parte das mulheres em
―enfeitar e perfumar‖ seus quintais.

Considerando que os quintais são os espaços de ação e experimentação das


mulheres, os cultivos encontrados nos quintais do PAS-MA são de múltiplos usos, e
onde as mulheres garantem a segurança alimentar e alguma renda.

No entanto, se comparadas à riqueza de espécies dos quintais dos assentados com a


riqueza de espécies dos quintais agroflorestais das comunidades tradicionais da
Amazônia ela está um pouco abaixo. Noda, et al. (2007) descrevem que na área dos
agricultores familiares da várzea da calha Solimões-Amazonas foram registradas 287
espécies cultivadas no sistema denominado de sítio, terreiro ou quintal.

Conclusões

O trabalho das mulheres no Assentamento Mártires de Abril mostrou-se como um dos


grandes responsáveis pelo intercâmbio de material genético e serviços ambientais,
fazendo uma associação dos ecossistemas naturais e as tradições das populações
locais. Destaca-se ainda que a manifestação destas trocas culturais ocorreu,
principalmente, nos quintais que são os espaços de experimentos, trocas e
enriquecimento da agrobiodiversidade das áreas ocupadas, sendo que na Amazônia
os quintais têm importante função tanto na vida rural como urbana (WINKLERPRINS;
2002).

As políticas para a agricultura familiar na Amazônia devem considerar que a


população dos assentamentos depende também das culturas comerciais. Para as
mulheres do PAS Mártires de Abril o etnoconhecimento parece ter contribuindo para a
diversidade agrícola e como consequência é o que tem garantido a segurança
alimentar de suas famílias.

Agradecimentos

As mulheres e as lideranças do Projeto de Assentamento Mártires de Abril por sua


participação e apoio ao estudo. Ao CNPq pelo financiamento por meio do edital de
pesquisa 020/2010, no âmbito do Projeto de pesquisa. ―Relações de Gênero e
agrobiodiversidade no campo: a figura da mulher em sistemas de produção familiar
camponeses no Projeto de Assentamento Mártires de Abril - Pará‖. Este estudo visa
ainda contribuir com o Plano Nacional de Política para as Mulheres.

602
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604
USO DE RECURSOS NATURAIS COM ÊNFASE EM GÊNERO NO
SALGADO PARAENSE

https://doi.org/10.29327/527231.5-40 Thais Mayara da Silva Carvalho


Regina Oliveira da Silva
Museu Paraense Emílio Goeldi

RESUMO

Esta pesquisa se desenvolveu durante os estudos para a criação Unidade de Conservação


de Uso Sustentável (UC) na região de Salinópolis. UC desta categoria tem como finalidade
compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável dos recursos naturais. A
divisão social do trabalho nessas localidades muitas vezes é organizada por lugares de
gênero e tal fator implica em aspectos da economia e do mercado. Caracterizou-se o uso de
recursos naturais com foco em estudo de gênero, por meio da pesquisa quali-quantitativa.
Dados secundários foram analisados com posse dos documentos institucionais de campo. A
divisão social do trabalho, para atividades de uso de recursos naturais em região de mangue
são desenvolvidas por homens e mulheres, no entanto, as mulheres estão inseridas nas
atividades de menor valor comercial, menor monetarização e menor valorização, enquanto
trabalho.

Palavras-chave: Costa Paraense, Gênero, Reserva Extrativista

ABSTRACT

This research was developed during the studies for creation of Conservation Unit for
Sustainable Use (UC) in the Salinópolis region. This UC has as porpose make nature
conservation compatible with the sustainable use of natural resources. The social division of
labor in these localities is of organized by gender end places and this factor implies aspects
of the economy and the market. The use of natural resources focused on gender studies was
characterized through qualitative and quantitative research. Secondary data were analyzed
with possession of institutional field documents. The social division of labor for natural
resource use activities in the mangrove region is developed by men and women, however,
women are inserted in the activities of lower commercial value, lower monetization and lower
valuation, while work.

Keywords: Paraense Coast, Gender, Reserva Extrativista.

605
INTRODUÇÃO

As ações antrópicas no decorrer dos anos geraram perdas e alterações da


biodiversidade. Com intuito de controlar tais perdas de biodiversidade foram criadas as
áreas protegidas que buscam como seu principal objetivo a conservação da biodiversidade,
com a possibilidade de inclusão das populações tradicionais na conservação desses
recursos. Dessa forma, as Unidades de Conservação (UC) são regidas da Lei nº 9.985 que
estabeleceuo Sistema Nacional de Conservação da Natureza (SNUC).
As UC’s são espaços territoriais com objetivo de conservação de recursos ambientais
que são instituídas legalmente pelo poder público e estão dispostas em dois grupos: áreas
de Proteção Integral o qual admite o uso indireto dos recursos presentes, apenas para fins
de pesquisa ou turismo e as áreas de Uso Sustentável onde a finalidade é a compatibilizar a
natureza com o uso sustentável dos recursos naturais, como é o caso das Reservas
Extrativistas (Resex), que são áreas utilizadas pelas populações tradicionais cuja a
subsistência se baseia na utilização de tais recursos e elas apresentam como objetivo
também proteger os meios de vida e culturas dessas populações.
Porém, mesmo com legislações existentes ainda é comum a ocorrência de conflitos
para a apropriação e uso de tais territórios prejudicando diretamente as populações
tradicionais (SILVA & SOUZA, 2013). A manutenção e a conservação dessas populações
tradicionais é de suma importância tendo em vista que elas detêm conhecimentos
tradicionaisdaquela localidade e utilizam os recursos sem causar grandes danos a natureza.
A região do Salgado Paraense é ocupada por diversas populações tradicionais as quais
apresentam relações diretas com a natureza. Além disso, segundo Ferreira (2014) é
necessário compreender a cultura dessas populações e seus Etnoconhecimentos.
De acordo com Allegretti (1989) os habitantes da floresta vivem há séculos tirando sua
subsistência da floreta, criando seus filhos durante gerações sem causar perdas para a
biodiversidade existente. Com isso, tais populações são as que lutam contra as derrubadas
e queimadas existente nas áreas, as quais afetam diretamente na biodiversidade ali
presente e nas atividades produtivas realizadas por essas populações. Dessa forma, a
autora discute que a proposta de Reserva Extrativista surge da consciência empírica desses
habitantes tendo em vista que eles dependem das atividades florestais para sua
sobrevivência. Além disso, a autora defende a criação de propostas para a exploração
racional da floresta pois ainda é necessário demonstrar a importância e viabilidade das
comunidades existentes nessas áreas.
A região do salgado paraense é ocupada por populações que tem relações diretas
com a natureza, principalmente com os rios, o mar e o manguezal, tendo em vista que é
desses recursos que as famílias realizam suas atividades econômicas. Portanto, é

606
necessário que as propostas de sustentabilidade desses recursos naturais tenham como
base o saber dessas populações e dialogando com técnicas que contribuam para o repasse
e valorização desses conhecimentos (CASTRO, 2016).
Os manguezais são ecossistemas de transição entre o continente e o mar e
apresentam grande importância econômica e ecológica, pois formam áreas de estuário que
são ambientes onde o encontro da água do mar e do rio, geram um ambiente muito rico de
nutriente e com diversas formas de vida, tais áreas servem também como berçário para
numerosas espécies tanto da fauna quanto da flora amazônica (VIEIRA et al. 2015). De
acordo com Diegues (1995) comunidades humanas que desenvolvem sua vida econômica,
social e cultural em relação com a fauna e a flora do mangue e que apresentam suas
moradias situadas perto desses estuários podem ser chamadas de civilização do mangue.
A divisão social do trabalho é marcada nessas regiões (HIRATA & KERGOAT, 2007).
Por exemplo, ao homem cabe a ir ao mangue, coletar o caranguejo e seus primeiros
tratamentos, já a mulher, é responsável no colhimento de sua carne e seu preparo para a
venda.
A relação dessas populações está fortemente organizada a lugares de gênero, dessa
forma as atividades masculinas estão predominantes ligadas a algo fora do ambiente
doméstico sendo visto como ―algo perigoso‖, já as mulheres estão intimamente ligadas a
afazeres domésticos, como cuidar da casa e dos animais capturados pelos maridos, isso
ocorre devido à estruturação social existente, a qual repassa, que a principal função da
mulher é a domesticidade. E tal fator implica no mercado e autoconsumo as mulheres
apresentam as atividades de menor valor comercial, menor monetarização e menor
valorização da atividade enquanto trabalho (VIEIRA et al. 2013).
Dessa forma, o estudo buscou caracterizar e analisar o uso de recursos naturais em
unidades de conservação do Salgado Paraense com foco em estudo de gênero

METODOLOGIA

Área de estudo

Este estudo foi realizado na região do município de Salinópolis localizado na costa


paraense latitude de 00º36'49 sul e longitude 47º21'22 oeste. A cidade de Salinópolis
localizada na zona costeira do Estado do Pará corresponde ao fragmento da Região
Amazônica em contato com o oceano Atlântico, limita-se a leste com o município de São
João de Pirabas, ao sul e a oeste com o município de Maracanã e ao norte, com o Oceano
Atlântico (Figura 1).

607
Figura 1 - Divisão municipal e as microrregiões. Fontes: Atlas de Integração Regional do
Pará/ UAS/ MPEG.
Apresenta elevado potencial ecológico e ambiental, em virtude da alta interação com
os fatores naturais (clima, geomorfologia, pedologia, hidrografia, vegetação e mar). Tais
interações, deram origem às praias e extensas áreas de campos de dunas e uma
considerável área onde predominam ambientes de manguezais (MARINHO, 2009).

Assim como grande parte dos municípios brasileiros, Salinópolis sofreu várias
transformações sócias espaciais as quais datam desde o período de colonização, ocasião
que surgiram os primeiros núcleos de povoamento formados ao longo da zona costeira.
Entretanto, a partir da década de 60 o município teve seu processo de urbanização
intensificado, dessa forma se especializou em função dos atributos paisagísticos agregados,
a criação de um polo turístico. Portanto, apresenta uma nova dinâmica na estrutura espacial
que se reflete, principalmente, no modo de vida da população local (SILVA, 2002).
De acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) em 2010, a população total do município é de 37.421 habitantes que
estão distribuídos em uma área de 237.050km². A densidade demográfica é de 157,57
hab/km² e a estimativa da população em 2018 foi de 40.424habitantes (IBGE, 2019).
Dessas, 4.030 pessoas vivem na zona rural e 33.391 na zona urbana, sendo 19.096 homens
e 18.325 mulheres. No município as atividades produtivas concentram-se na pesca, na
agricultura, na pecuária e no turismo.

Coleta e análise dos dados

Esta pesquisa foi realizada por meio de levantamentos bibliográficos e análise de


dados secundários. Os documentos institucionais utilizados foram os que determinaram os
estudos socioambientais para criação de uma unidade de conservação de uso sustentável
na região realizados pelo Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG). Foram inseridos ainda

608
levantamentos bibliográficos de artigos, de revistas científicas, dissertações e teses. Os
dados correspondentes as atividades de gênero neste território foram tabuladas e
analisadas por meio da estatística descritiva.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU, 2016) gênero é


conceituado como ―socialmente constituídos a partir do processo de socialização que
determina o que padrões sociais que são esperados em um homem e em uma mulher,
refletindo em questões sociais e oportunidades relacionadas com ser homem ou mulher‖.
Com isso, consolida o aparecimento de desigualdades sociais perante as questões de
gênero em relação as atividades que foram atribuídas para homens e para mulheres. Os
papeis de gênero exercido por homens, mulheres e crianças em relação ao uso dos
recursos naturais se diferenciam de acordo com as atividades exercidas por eles na
comunidade e tais relações se destacam em atividades ligadas tanto a subsistência como o
dia a dia de cada família (OLIVEIRA & ANDERSON, 1999).

A divisão sexual do trabalho decorre das relações sociais entre os sexos, a qual é
modulada historicamente e socialmente designando ao homem a apropriação de funções
voltadas a esfera produtiva e com maior valor social, enquanto as mulheres estão
relacionadas a esfera reprodutiva. Com isso, é notório a divisão de dois princípios para a
divisão social do trabalho, sendo eles o princípio da separação – no qual demonstra que há
trabalhos de homens e mulheres – e o princípio hierárquico – um trabalho de homem ―vale‖
mais que um trabalho de mulher (HIRATA & KERGOAT, 2007).

Entretanto, mesmo com os padrões da divisão sexual do trabalho, as mulheres


nunca deixaram de frequentar os ambientes que marcam o princípio hierárquico, como a
pesca nos rios ou a catação do caranguejo nos manguezais (MANESCHY,1995). Todavia,
as atividades desenvolvidas por elas mesmo que iguais aos homens não são consideradas
trabalho demonstrando a invisibilidade de sua mão de obra fora do ambiente domiciliar. Na
região estudada, de acordo com o diagnóstico socioambiental para a criação da Reserva
Extrativista de Salinópolis as principais atividades econômicas registradas são a pesca e
agricultura (Figura 2).

609
Figura 2 – Principais atividades econômicas declaradas pelos entrevistados. Fonte: Dados
do diagnostico socioambiental referente a criação da Resex em Salinópolis.

Dentre as atividades econômicas destacam-se a pesca, agricultura, extração de


caranguejo entre outras. Nota-se que as principais atividades produtivas declaradas pelos
comunitários de Salinópolis são semelhantes aos estudos realizados por (ALMEIDA, 2012),
na Vila de Caratateua, e (GOMES 2013) na Vila do Treme, em comunidades localizadas no
município de Bragança. Ambos autores destacam que atividade produtiva é dividida entre a
pesca no mar e a coleta de caranguejo. Assim, percebe-se que as atividades produtivas
dessas regiões estão ligadas com a dinâmica natural dos recursos biológicos. Pode-se
afirmar que as comunidades do Salgado Paraense que usam recursos do ecossistema
manguezal desenvolvem sua reprodução social (economia, cultura e divisão de trabalho)
ligada intimamente a fauna e a flora desse ecossistema (GLASER & OLIVEIRA, 2005).
Quanto às relações de gênero no exercício das atividades econômicas para este
estudo, destacam-se a agricultura, a tiração de caranguejo (extração do caranguejo direto
do mangue), pesca de camarão e a extração/criação de ostras como as realizadas tanto
pelos homens quanto pelas mulheres (Quadro 1).

A presença de homens e mulheres no mesmo ambiente, como nas proximidades dos


manguezais ou uso das águas no processo da pesca não significa dizer que as atividades
desenvolvidas por ambos têm o mesmo valor, pois muitas atividades realizadas por
mulheres – mesmo que idênticas aos dos homens – não são vistas como trabalho e sim
ajuda aos homens que estão realizando o trabalho pesado, deixando bem definida a divisão
sexual do trabalho e a invisibilidade do trabalho da mulher (VIEIRA et al. 2015)

O padrão de divisão sexual do trabalho é antigo e com ele vem a exclusão de


mulheres na pesca de mar e tal exclusão apresenta diversos mecanismo de controle em
suas vidas (MAUÉS 1993; 1994)

610
Quadro 1- Divisão sexual do trabalho.

Atividade produtiva Homens Mulheres Ambos


Pesca X
Agricultura X
Tiração de caranguejo X
Extração de mexilhões X
Pesca de camarão X
Confeccionam e vendem apetrechos X
de pesca
Cata de massa do caranguejo X
Curralistas X
Extrativismo vegetal X
Constroem barcos ou canoas X
Extração/criação de ostra X
Criação de animais X
Fonte: Dados do diagnostico socioambiental referente a criação da Resex em Salinópolis.

Nas comunidades tradicionais os papeis de gênero são demarcados, os quais


apresentam a distribuição de direitos e deveres de homens e mulheres. Na região estudada,
essa distribuição pode ser observada na atividade de beneficiamento e coleta de
caranguejo. Para chegar ao produto final que é a massa do caranguejo o trabalho é divido
em etapas e percebeu-se que em Salinópolis a função da ―tiração‖ do caranguejo é atividade
tanto de homens quanto de mulheres, sendo que tal atividade em algumas comunidades é
tida exclusivamente como trabalho masculino. Entretanto, o processo de ―catar a massa‖ do
caranguejo (beneficiamento da carne do caranguejo) é uma atividade exclusivamente
feminina. Muito provavelmente esta divisão ocorre pelo fato de que a atividade me si é
demorada, exigindo minucioso trabalho, cabendo as mulheres executá-lo.

Além disso, as mulheres possuem conhecimento ecológico local. Em estudo


realizado no Amazonas durante a elaboração do plano manejo do Parque Nacional do Jaú,
observou-se que quando os chefes da família eram indagados sobre questões relativas a
família em si como lazer, migração, idade dos filhos e consumo, elas eram consultadas
pelos esposos. No entanto, quando as mulheres foram questionadas sobre a extração de
recursos naturais como caça, coleta de frutos ou fibras, devido às mulheres serem
responsáveis pelo preparo das refeições, segurança alimentar e o uso dos alimentos, as
informações referentes ao uso de recursos naturais foram mais precisas e apresentaram o
mesmo conhecimento ecológico local que os homens tidos como bons caçadores
(OLIVEIRA & ANDERSON, 1999).

Em geral este processo aponta que as atividades exercidas pelas mulheres quando
no âmbito domiciliar podem ser categorizados como domesticidade. De acordo com Almeida
(2002), as mulheres assumem uma sobrecarga de funções sem o reconhecimento social de

611
sua importância no processo de produção, demonstrando a invisibilidade do seu trabalho.
Dessa forma, muitas vezes o trabalho feminino é ―gratuito‖ no sentindo de que elas
trabalham na elaboração, confecção e manutenção dos equipamentos, porém, não recebem
o conhecimento social necessário pois as atividades exercidas por elas apresentam menor
valor comercial, menor monetarização e menor valorização, enquanto trabalho (VIEIRA et al.
2013).

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, M. C. E. O lugar da mulher na apropriação e uso dos recursos naturais e


nas atividades produtivas em Caratateua, Bragança, Pará, Brasil. 2012. Dissertação
(Mestrado em Biologia Ambiental) – Universidade Federal do Pará, Bragança, 2012.
CASTRO, P. F. El buen vivir más que uma alternativa al desarrollo, uma forma de vida.
Revista de Geografia (UFPE). v. 32, n. 2, 2016.
DIEGUES, A. C. Povos e mares: leituras em Socioantropologia marítima. São Paulo:
NUPAUB-USP. 1995.
FERREIRA, S. D. Território, territorialidade e seus múltiplos enfoques na ciência geográfica.
Publicado na revista online CAMPO-TERRITÓRIO: Revista de Geografia Agrária, v. 9, n.
17, p. 111-135, 2014.
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GLASER, M.; CABRAl, N.; RIBEIRO, A. L. (Org.). Gente, ambiente e pesquisa: Manejo
transdisciplinar no manguezal. Bragança: MADAM/ UFPA/NUMA. p. 351-268. 2005.

GOMES, M. L. Treme: gênero e trabalho em uma comunidade extrativista da região


costeiro-estuarina do Pará. 2013. Dissertação (Mestrado em Biologia ambiental) –
Universidade Federal do Pará, Bragança, 2013.

HIRATA, H.; KERGOAT, D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Tradução


de Fátima Murad. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609, 2007.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/salinopolis/panorama. Acesso em 03 jul 2019.
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Relatório com diagnóstico
socioambiental referente a criação da Resex Salinópolis. Diagnóstico e caracterização
socioambiental das áreas propostas para criação e ampliação de Reservas Extrativistas na
Mesorregião do Relatório com diagnóstico socioambiental referente à proposta de criação
da Resex de Salinópolis. Belém, 2017.
MANESCHY, M. C. A mulher está se afastando da pesca? Continuidade e mudança no
pa-pel da mulher na manutenção doméstica entre famílias de pescadores no litoral do
Pará. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Série Antropologia. v. 11, n. 2, p. 145-
166. 1995.
MARINHO, R. S. Faces da expansão urbana em Salinópolis, zona costeira do Estado
do Pará. 2009. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Belém, 2009.
MAUÉS, M. A. ―Trabalhadeiras‖ e ―camaradas‖; um estudo sobre o status das mulheres
numa comunidade de pescadores. Belém: UFPA - Centro de Filosofia e Ciências
Humanas. 1993.

612
MAUÉS, M. A. Quando chega essa ―visita‖? in Amazônia e a crise da modernização.
Organizado por M. A. D’incao; I. M. Silveira, pp. 227-240. Belém. Museu Paraense
Emílio Goeldi. 1994.

OLIVEIRA, R.; ANDERSON, S. E. Gênero, Conservação e Participação Comunitária: O


Caso Do Parque Nacional. Gênero, Participação Comunitária e Manejo dos Recursos
Naturais. n. 2, p. 16, 1999.

Organização das Nações Unidas. Glossário de termos do Objetivo de Desenvolvimento


Sustentável 5: Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
In: Organização das Nações Unidas. Glossário de termos do Objetivo de
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VIEIRA, N. C.; SIQUEIRA, D.; GOMES, M.; VER, M. Trabalho e Gênero em comunidades
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de Gênero em Contexto Estuarino-Costeiro Amazônico. Amazônica Revista de
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http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/amazonica/article/viewArticle/1606. Acesso em: 03
jul 2019.

613
MODIFICAÇÕES DO PAPEL DAS MULHERES NA PESCA ARTESANAL
NO MUNICIPIO DE MAPARANIM-PA.

https://doi.org/10.29327/527231.5-41
Layse Rosa Miranda da Costa /Museu
Paraense Emilio Goeldi (MPEG);

Samanta da Conceição da Silva Reis/


Faculdade Integrada Brasil Amazônia
(FIBRA);

Lourdes de Fatima Gonçalves Furtado/


Universidade Federal do Pará (UFPA) /
Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG).

RESUMO

Alguns estudos sobre populações Haliêuticas no Nordeste Paraense mostram a


importância das mulheres na pesca artesanal, pois são cruciais nas decisões
familiares, sociais, na construção de saberes tradicionais, etc. Tais Estudos apontam
que em comunidades pesqueiras desta localidade, a divisão do trabalho é por gênero:
Os homens capturavam as espécies aquáticas e as mulheres, os afazeres domésticos
juntamente com o processo do trabalho da pesca, haja vista que a pesca não se
resume ao ato de capturar. A partir de pesquisas produzidas no Museu Paraense
Emilio Goeldi ligado ao Projeto RENAS em sua fase IV (Recursos Naturais e
Antropologia das Populações Marítimas, Ribeirinhas e Estuarinas: Populações
Tradicionais Haliêuticas no Contexto das Relações Interculturais) no ano de 2018,
esses modelos continuam, porém com algumas mudanças, dentre elas, a atuação
mais intensa das mulheres na captura. Portanto, este trabalho pretende mostrar sobre
as modificações que estão ocorrendo em relação ao papel das mulheres na pesca
artesanal no município de Marapanim-Pa.
Palavras-chaves: Mulheres; Pesca; Marapanim; Antropologia

ABSTRACT

Some studies on Halieutic populations in Northeast Paraense show the importance of


women in artisanal fishing, as they are crucial in family, social decisions, in the construction
of traditional knowledge. These studies point out that in the fishing communities of this
locality, the division of labor is by gender: Men captured the aquatic species and women,
the domestic tasks together with the process of fishing work, since fishing is not limited to
the act. To capture. From research produced at the Museu Paraense Emilio Goeldi linked
to the RENAS Project in its phase IV (Natural Resources and Anthropology of Maritime,
Riparian and Estuarine Populations: Traditional Halieutic Populations in the Context of
Intercultural Relations), in 2018, these models continue with some changes, among them
the more intense action of women in capture. Therefore, this paper aims to show about the
changes that are taking place regarding the role of women in artisanal fishing in the
municipality of Marapanim-Pa.

Key-word: Women; Fishing, Marapanim; Anthropology.

614
1. Introdução

Este artigo tem como proposta explanar sobre as modificações que estão
ocorrendo em relação ao papel das mulheres na pesca artesanal no município de
Marapanim, localizado no Estado do Pará. A construção do mesmo terá base nos
manuscritos já produzidos sobre esta temática no Nordeste Paraense juntamente com
experiências empíricas e pesquisa de campo realizado no ano de 2018 na localidade
por pesquisadores do Museu Paraense Emilio Goeldi vinculados ao projeto Renas na
fase IV- Recursos Naturais e Antropologia das Populações Marítimas, Ribeirinhas e
Estuarinas: Populações Tradicionais Haliêuticas no Contexto das Relações
Interculturais. Vale ressaltar que as experiências empíricas foram observadas e
analisadas a partir de vínculos pessoais com a localidade, e a pesquisa de campo que
ocorreu no ano de 2018 foi para subsidiar o Relatório Final de Iniciação Cientifica
chamado Uma arte milenar: curral de pesca na Ilha de Marudá, sendo assim, este
artigo é um dos desdobramentos que esta pesquisa possibilitou.

Certos trabalhos sobre populações Haliêuticas em alguns municípios do Nordeste


Paraense de autores como, Cristina Maneschy (1995), Edna Alencar (1993), Lourdes
Furtado (1987) e Motta-Maués (1999) constam que a divisão do processo de trabalho
1
na pesca era por gênero, ou seja, os homens estavam ligados diretamente à captura

das espécies aquáticas, enquanto as mulheres estavam mais relacionadas aos


trabalhos antes e depois da captura. Porém, observou-se que a partir de pesquisas de
campo no município de Marapanim no ano de 2018, mais especificamente nos distritos
que o compõe (Camará e Marudá) as mulheres estão adentrando ao manejo dos
recursos naturais de forma mais ativa e autônoma enquanto os homens estão se
distanciando da pesca artesanal e acabam por adentrar em outras atividades que
acreditam serem mais lucrativas e imediatas, como, praticas relacionadas ao
crescimento do Turismo na localidade, trabalhos autônomos diversos, participações no
mundo do crime e tráfico de drogas. Por conta do distanciamento dos homens, as
mulheres estão se introduzindo como líderes das práticas artesanais de manejo dos
recursos naturais aquáticos para ajudarem na renda de suas famílias.

Vale ressaltar que em comunidades pesqueiras, a importância das mulheres


transcende as atividades ligadas a pesca. Segundo Furtado (2015), em comunidades

Segundo Alencar (1993), a pesca não se resume apenas no ato de capturar espécies aquáticas, pois
consiste na confecção e conserto de materiais de pesca, a captura do pescado e venda do que foi
adquirido. Dessa forma, todo o processo antes e depois da captura relacionado ao manuseio dos
recursos aquáticos, é chamada de processo de trabalho da pesca.

615
pesqueiras localizadas no Litoral do Nordeste Paraense, as mulheres atuam nos
setores econômicos, domésticos e políticos, de modo que são tão protagonistas
quando os homens, mas ainda existe o pensamento de que estejam sempre
submissas aos seus companheiros ou homens da família. Diante da diversidade do
papel das mulheres em comunidades pesqueiras, o foco deste artigo é sobre as
modificações observadas em relação ao papel da mulher na pesca no Município de
Marapanim, Estado do Pará. Ressaltando que dentre diversos distritos existentes na
localidade, os mais evidenciados são: Marudá e Camará, pois foi onde a presença das
mulheres na pesca apresentou-se de forma mais frequente e autônoma em relação a
captura de espécies aquáticas.

Sendo assim, este artigo pretende expor sobre algumas mudanças observadas
em relação à divisão das tarefas na pesca artesanal na atualidade e quais os
possíveis motivos que ocasionaram essas modificações. Como dito anteriormente,
essas analises terão como base manuscritos produzidos nas décadas passadas
juntamente com experiências empíricas e trabalho de campo feito no ano de 2018,
pois para citar sobre o que foi proposto, o presenta e o passado não podem estar
desvinculados, pois ambos se complementam (BLOCH, 2001).

2. Área de Trabalho

O município de Marapanim é localizado no Litoral do Nordeste Paraense. O


município possui 26.605 habitantes, com território de 804,760 km² (IBGE,2010) e a
partir do decreto de 10 de outubro de 2014 criou-se a Reserva Extrativista Marinha
Mestre Lucindo, localizada no Município de Marapanim, Estado do Pará.

De acordo com o Relatório Socioambiental Referente à Proposta de Criação de


Reserva Extrativista Marina no Município de Marapanim, Estado do Pará (2014) feito
pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, é composto por 15
distritos, como, Vista Alegra, Juçateua, Ituaçu, Crispim, Bacuriteua, Camará, Retiro,
Recreio, Marudá, Livramento, Porto Alegre, Cafezal, Araticum-Mirim, Guarijubal e
Tamaruteua.

Mapa de alguns municípios do Nordeste Paraense:

616
Mapa de alguns municípios do Nordeste Paraense.

Fonte: Relatório Socioambiental Referente à Proposta de Criação de Reserva Extrativista


Marina no Município de Marapanim, Estado do Pará. Instituto Chico Mendes, 2014.

A pesca artesanal é uma das principais atividades econômicas da localidade e


para a realização desta atividade, são utilizadas diversas práticas pesqueiras
tradicionais, ou seja, passadas de geração para geração. Dentre elas estão as mais
frequentes na localidade, como, os currais de pesca e rede de pesca (ALMEIDA;
BORCEM; PALHETA; PINTO, 2011).

Pesca artesanal no Munícipio de Marapanim

A pesca artesanal no Estado do Pará é muito recorrente, principalmente no


Nordeste Paraense (ALMEIDA; BORCEM; PALHETA; PINTO, 2011). O município de

617
Marapanim, localizado no Estado do Pará, é um dos municípios da região onde a
pesca encontra-se muito evidente, a partir de práticas e apetrechos pesqueiros
tradicionais, pois ocorrem há anos e são repassadas de geração para geração. As
práticas tradicionais mais recorrentes na localidade atualmente são: currais de pesca e
rede de pesca.

Segundo Furtado (1987), os primeiros currais foram implantados em Marapanim no


ano de 1934 pela companhia Gonçalo Brandão, de Soure, na Ilha do Marajó. Dessa
forma, utilização do curral de pesca passou a ficar mais intensa na localidade, fazendo
com que a venda do pescado se tornasse mais frequente. Dessa forma, a pesca
artesanal passou a ser uma das principais fontes econômicas da região até os dias
atuais juntamente com outras práticas pesqueiras além do curral, como, a rede de
pesca. O curral consiste em uma armadilha fixa ao solo de rios, praia ou igarapés a fim
de capturar especiais aquáticas nas enchentes e vazantes das marés. Pode alcançar
até 4 metros de altura (FURTADO, 1987).

A construção é feita pelos próprios curralistas (como eles se denominam) e o


conhecimento do manejo é repassado de geração para geração segundo relatos de
alguns pescadores que utilizam esta pratica em Marapanim-Pa. Segundo o curralista
conhecido como Bodó (2018), o manejo é feito de forma gradativa, ou seja, quando a
maré está na enchente ou vazante, o curral captura os recursos e quando a maré está
„‟seca‟‟, os curralistas vão até os currais despescar o que o curral pescou e este
processo ocorre dentro de 24 horas. É importante salientar que o termo „‟despescar‟‟
é utilizado por eles, pois afirmam que quem pesca é o curral, eles apenas despescam.

Outra pratica recorrente atualmente de forma mais ativa que o curral de pesca são as
redes de pesca. Segundo Furtado (1987), as redes foram implantadas na década de
1960 e seu manuseio é mais simples e a captura de espécies aquáticas ocorre em
menor tempo que o curral de pesca. Atualmente, muitos pescadores da localidade,
principalmente os do distrito de Marudá, estão preferindo as redes de pesca.

Essas atividades ocorrem a partir de um processo do trabalho da pesca, ou seja,


não se resume apenas no ato de capturar, mas também nas ações antes e depois da
captura. Alencar (1993) afirma que geralmente, o trabalho mais ligado a captura dos
meios aquáticos estavam mais relacionados aos homens; as mulheres, estavam mais
conectadas aos trabalhos como confecção dos apetrechos pesqueiros, concerto dos
materiais utilizados na pesca, limpeza do pescado e dentre outros. Dessa maneira,
ocorria uma divisão do trabalho através do gênero, de modo que os homens eram
vistos como trabalho principal e as mulheres como ajudantes (Maneschy, 1995).

618
4. Mulheres na Pesca no Nordeste Paraense
Foi observado durante a pesquisa de campo realizada no ano de 2018 no município de
Marapanim, mais especificamente em alguns distritos da localidade, como, Guarijubal,
Araticum-Mirim, Marudá, Camará e na sede do município, que as mulheres atuam em
diversas atividades, sendo estas voltadas ou não para a pesca. Muitas são independentes
e sustentam a família sozinha, trabalhando em comércios que vendem artigos pesqueiros;
umas são lideranças de associações de pescadores; outras atuam nas tarefas domesticas
enquanto seus maridos trabalham; uma delas opera como vice presidente da Reserva
Extrativista do município de Marapanim; muitas estão liderando algumas atividades
pesqueiras. Além do mais, assim como os homens, as mulheres são responsáveis por
repassar o conhecimento tradicional. Mas em relação ao papel das mulheres na pesca, pra
elas começarem a atuar como líderes de algumas práticas pesqueiras, passaram e
passam por algumas modificações sociais na localidade.
Furtado (2015) alega sobre a percepção do papel das mulheres na pesca, pois
são vistas como „‟ ajudantes‟‟ dos homens. Isto ocorre, pois segundo Alencar (1993),
existe a visão de que a parte mais importante do processo de trabalho na pesca é o
ato de capturar espécies aquáticas, ação essa que era feita majoritariamente por
homens. Porém, tal atividade é um processo de trabalho da pesca que vai desde de a
confecção dos apetrechos até a limpeza do peixe, desempenho que era feito mais
pelas mulheres (ALENCAR, 1993). Esses pensamentos em relação as mulheres na
pesca, ou seja, de que são menos importantes que os homens, ocorrem até os dias
atuais, porém, de acordo com o que foi observado durante a pesquisa de campo no
ano de 2018 e a partir de observação empíricas praticadas em diversos momentos, em
alguns distritos do município de Marapanim, como, Camará e Marudá, foi perceptível a
autonomia das mulheres em relação ao manejo dos recursos naturais, ou seja,
algumas mulheres estão adentrando como líderes de práticas pesqueiras existentes
na localidade, principalmente a pratica curral de pesca.
Segundo relatado por alguns pescadores de Marudá, da sede do município de
Marapanim e de Camará, os homens estão se afastando da pesca, pois afirmam que
preferem atividades mais lucrativas e imediatas, dessa forma, muitos pescadores
estão preferindo trabalhar com atividades ligadas ao turismo (já que a localidade é
turísticas, principalmente no mês de Julho), outros estão migrando para os centros
urbanos com o objetivo de conseguirem emprego e por fim, muitos estão adentrando a
da criminalidade ocorrendo devido. Vale ressaltar que Furtado (1987) já alegava o
afastamento dos homens na pesca artesanal desde a década de 1980. Dessa forma,
atualmente, para ajudarem a manter a renda familiar, algumas mulheres no município
de Camará e Marudá, estão liderando práticas pesqueiras. Em consonância com os

619
dados obtidos em pesquisas de campo, mulheres curralistas que foram entrevistadas
no distrito de Marudá, relatam que utilizam o curral de pesca afim de ajudar na
2
contribuição da renda de suas residências, para garantir pelo menos a bóia do dia,
visto que segundo elas a renda não é muito boa.
Em comunidades pesqueiras as mulheres assumem as funções de manutenção da
casa e participação no processo da pesca, portanto a sua atuação como ser social é
de extrema importância no contexto das relações de gênero, sobretudo no âmbito da
pesca artesanal, evidencia Woortmann:

De uma maneira geral, os estudos de comunidades ―pesqueiras‖


tendem a privilegiar os atores sociais masculinos, e o ponto de vista
do homem. O discurso do pesquisador como que replica o discurso
público dessas comunidades, cuja identidade se constrói sobre a
atividade da pesca, concebida como masculina. Relega-se, assim, ao
silêncio, as atividades femininas, mesmo quando estas contribuem
substancialmente para a subsistência da comunidade. Isto significa
que se ignora uma parte importante das atividades econômicas
daquelas comunidades, isto é, a agricultura e a coleta. Ignora-se
também os agentes sociais dessas atividades – a metade feminina
das comunidades. (WOORTMANN, p. 31,1992).

A autora problematiza a ―invisibilidade‖ feminina no processo da pesca, o papel


feminino como uma ―ajudante" é não como ser fundamental, por uma ideologia
construída à luz do patriarcado, de que mulheres tem limitações segregadas pelo
gênero. Porém o que se compreende hoje, a partir de análise de campo no município
de Marapanim- Pa, mais especificamente os distritos de Marudá e Camará, é que cada
vez mais as mulheres exercem atividades importantes na cadeia produtiva da pesca
artesanal, principalmente no de curral de pesca, na despesca, salga e na
comercialização desse pescado, resginificando o discurso patriarcal e público, ―que a
pesca é eminentemente masculina‖.

Experiências empíricas com a localidade da Vila de Camará, subsidiaram à iniciação


em pesquisas no bojo das comunidades haliêuticas, e no que se refere a prática da pesca
artesanal de curral e a relação de gênero, a partir de conversas informais na localidade
observou-se na fala de uma moradora, um fator importante nesse processo, a atividade de
despescar o curral ficara, até então, na responsabilidade de seu esposo, porém o mesmo
aos finais de semana, fazia consumo de bebidas alcoólicas e sem condições de ir ao
curral, essa mulher foi exercer a atividade da despesca – o que portanto a mesma não
exercia, participava de forma ativa no trato e finalização do

Palavra utilizada pelos conterrâneos de Marapanim para refincarem comida, ou seja, boia significa refeição.

620
pescado e catação de caranguejo A partir desse momento a mesma começou a ser
tornar cada vez „ativa‟ no processo, por segundo ela, melhor administrar a renda da
família que é baixa, portanto viu benefícios em assumir o protagonismo de provedora
do sustento familiar.

Foto tirada por Samanta Reis, arquivo pessoal.


Curralista da Vila de Camará.

Considerações finais

Este trabalho foi um dos desdobramentos do Relatório de Iniciação Cientifica do


Museu Paraense Emilio Goeldi, para o projeto Renas na fase IV-. Recursos Naturais e
Antropologia das Populações Marítimas, Ribeirinhas e Estuarinas: Populações
Tradicionais Haliêuticas no Contexto das Relações Interculturais. Muitas questões foram
observadas e analisadas, mas acredita-se ainda terem lacunas que precisam ser mais
delimitadas, organizadas e recordadas, para que resultados mais concretos possam
existir, afim de contribuir para a valorização do papel das mulheres na pesca artesanal.

621
Dessa forma, compreende-se que este artigo servirá de direcionamento para um
trabalho futuro que se proponha a aperfeiçoa-lo da melhor forma possível.

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622
MULHER E DIVISÃO SÓCIO/SEXUAL DO TRABALHO NO CONTEXTO DA POLÍTICA DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL
https://doi.org/10.29327/527231.5-42
Gessyca Anne da Silva Baracho - Universidade Federal do Pará

Resumo:

A proposta deste artigo é evidenciar discussões quem envolvem mulher e divisão


sócio/sexual do trabalho na particularidade da política de assistência social brasileira, na
intenção de compreender como a participação do sexo feminino se configura nesta política
social. A partir do materialismo histórico dialético, com ênfase na abordagem do feminismo
marxista, serão apresentados debates com autores clássicos e contemporâneos que
articulam classe social, gênero, raça/etnia e evidenciam os estudos feministas que
incorporam e ampliam conhecimentos necessários no entendimento do movimento da
realidade. Nas conclusões aponta-se que apesar dos avanços na política de assistência
social, o sentido de cuidado com a família ainda permanece centrado na representação
social da mulher, a qual se apresenta associada na função da reprodução que perpassa por
dupla presença: usuária e trabalhadora.

Palavras-chave: Mulher. Divisão Sócio/Sexual do Trabalho. Política de Assistência social

Abstract:
The purpose of this article is to highlight discussions involving women and the socio / sexual
division of labor in the particularity of the Brazilian social assistance policy, in order to
understand how female participation is configured in this social policy. From the dialectical
historical materialism, with emphasis on the approach of Marxist feminism, debates will be
presented with classic and contemporary authors who articulate social class, gender, race /
ethnicity and highlight feminist studies that incorporate and expand the necessary knowledge
in understanding the movement of reality. . In conclusion, despite advances in social
assistance policy, the sense of caring for the family still remains centered on the social
representation of women, which is associated with the reproduction function that permeates
the double presence: user and worker.
Keywords: Woman. Social / Sexual Division of Labor. Social Assistance Policy

623
INTRODUÇÃO

A proposta de discussão desta temática iniciou-se a partir de algumas questões que se


apresentaram no projeto de qualificação de tese de doutoramento da referida autora no
Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará. O trabalho
que obteve como título: ―Ensino Superior e Primeiro Damismo: um estudo com secretárias de
assistência social no Pará‖, evidenciava uma sugestão de estudo que envolvia a formação de
mulheres gestoras da política social mencionada no contexto paraense.

A aproximação permitida mediante pesquisa exploratória apontava para um dado que


chamava bastante atenção, quer seja, a presença majoritária de mulheres no gerenciamento
de uma política social, tendência esta que acompanha a realidade nacional e a primeira vista,
parecia pressupor ao sexo feminino um espaço de conquista considerando as evidências
históricas e os estudos sobre a participação das mulheres na política.

A observação deste dado inicial, bem como alguns acúmulos adquiridos em estudos
anteriores referente a política de assistência social e o lugar das mulheres, impulsionaram a
escrita desta reflexão que, a partir do materialismo histórico dialético, com ênfase na
abordagem do feminismo marxista, irá apresentar um raciocínio que segue na construção de
três tópicos, os quais irão evidenciar discussões que envolvem Mulher e divisão sócio-sexual
do trabalho, bem como a política de Assistência Social no Brasil.

Inicialmente serão resgatadas reflexões sobre a divisão sócio/sexual do trabalho no


patriarcado e no gênero, evidenciando discussões de intelectuais feministas marxistas como
Hirata, Laborie, Doaré e Senotier (2009), Saffioti (2004), Kergoat (2009) e alguns elementos
propostos por Scott (1995) acerca dos entendimentos que envolvem a compreensão dos
aspectos de gênero e do sexo, ressaltando a mulher neste contexto da divisão sócio/sexual
do trabalho e considerando debates tratado por autoras como Cisne (2012), Saffioti (2012)e
Cisne e Santos (2018).

No segundo momento, apresenta-se a proposta de discussão sobre Mulher e Gênero no


contexto da Política de Assistência Social barsileira, a partir dos estudos de autoras como
Farah (2004), Bandeira (2005), Duque-Arrazola (2008) e Nascimento (2012) que possibilitam
reflexões relacionadas tanto a incorporação do gênero nas políticas públicas brasileiras,
quanto do lugar ocupado pelas mulheres na particularidade da política de Assistência Social.
Ao final serão destacados algumas considerações relacionadas ao debate ora proposto.

624
REFLEXÕES SOBRE DIVISÃO SÓCIO/SEXUAL DO TRABALHO NO PATRIARCADO E
NO GÊNERO

Estudos históricos sobre as sociedades antigas têm afirmado que a divisão sexual não
emergiu com a propriedade privada, antes dela homens e mulheres dividiam as tarefas, e o
trabalho desenvolvido por eles tinha o mesmo valor e reconhecimento social (SAFFIOTI,
1992), deixando claro que não é inerente à divisão sexual a desigualdade. Ela se constitui
como tal a partir de um determinado momento da história da humanidade. Nesse sentido,
algumas discussões foram fundamentais para contribuir neste entendimento e possibilitar um
conjunto de reflexões para pensar a divisão sócio/sexual do trabalho.

neste intuito de desenvolver um pensamento crítico feminista que Hirata, Laborie,


Doaré e Senotier (2009) evidenciam compreensões sobre a construção social da hierarquia
entre os sexos. Tal raciocínio é construido a partir da base teórica materialista do feminismo
francês inspirado na tradição marxista, o qual destaca inicialmente que a divisão sexual do
trabalho e as relações sociais de sexo se apresentam como conceitos conectados.

Como se observa, a divisão sexual do trabalho não se apresenta de maneira pontual ou


condicionada ao sexo, mas conectada na sociedade e nas dimensões de trabalho. Como
ressaltado pelas autoras, apesar da particularidade francesa direcionar para o uso mais
frequente do conceito de relações sociais de sexo, o vocábulo ―gênero‖ de inspiração pós-
estruturalista ainda é o mais utilizado no Brasil, o que permite problematizar a forma como
são absorvidos pelas Ciências Humanas e Sociais (HIRATA, LABORIE, DOARÉ E
SENOTIER, 2009, p. 10).

Esta observação é necessária ao entendimento de que o pensamento feminista crítico


vivencia também o plural e o diverso, portanto, perpassam por análises como: ―igualdade
e/ou diferença; universal e/ou particular; sexo e/ou gênero‖ (HIRATA, LABORIE, DOARÉ E
SENOTIER, 2009, p. 11), embora os conceitos de gênero e divisão sexual do trabalho
tenham alcançado a legitimidade científica, sua dimensão política ainda permanece
presente.

Tratando-se da divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo, estudos como


de Kergoat (2009) destacam que homens e mulheres não se configuram apenas na
observação de diferenças biológicas, mas sim de relações em que se vivenciam condições
sociais, ou seja, são produtos de construções da sociedade. Ressalta a autora, que a base
material destas relações encontra-se no trabalho, expressa na ―divisão social do trabalho
entre os sexos, chamada, conscientemente, divisão sexual do trabalho‖ (KERGOAT, 2009, p.
67).

Esta noção de divisão sexual do trabalho é mencionada de forma pioneira pelos etnólogos
que faziam referência à complementariedade de tarefas entre homens e mulheres

625
das sociedades que realizavam seus estudos. Segundo Kergoat (2009, p. 67), Lévi-Strauss
fez o uso para formular explicações acerca da estruturação das sociedades em famílias e
finalmente as antropólogas feministas se destacam como precursoras na vinculação de um
novo conteúdo que se estende não apenas ao complemento de tarefas, mas como relação
de poder dos homens sobre as mulheres.

Nesse sentido, o entendimento de que ―a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão


do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente
adaptada a cada sociedade‖ (KERGOAT, 2009, p. 67) é importante para a compreensão de
que, apesar das realidades se apresentarem com particularidades próprias, a materialidade
do trabalho no conjunto destas relações decorre da diferença de sexo sob condições
desiguais que se vinculam ao poder.

Nessa perspectiva é notório destacar a caracterização na distinção que coloca o homem


como prioridade da esfera produtiva em funções com forte valor social interligada a campos
religiosos, militares e políticos, já a mulher é atribuída para funções reprodutivas,
principalmente no trabalho doméstico, que para Kergoat (2009, p. 67) esta divisão social do
trabalho apresenta-se tanto como princípio da separação (existência de trabalho de homem
e trabalho de mulher), quanto da hierarquização (o trabalho do homem com maior ―valor‖
que o da mulher), uma reflexão fundamental para conectar elementos que se fazem
presentes no ambito de políticas sociais como a Assistência Social Brasileira, particulamente
aqueles que tendem a demonstrar papéis sociais diferentes aos sexos, principalmente
relacionado a função reprodutora.

Segundo Kergoat (2009), alguns estudiosos como Héritier-Augé (1984) afirmam que
esta divisão é válida para todas as sociedades e desde o início da humanidade. Os
princípios da separação e hierarquia podem ser legitimados mediante o que a autora
menciona como ideologia naturalista, pois ―relega o gênero ao sexo biológico e reduz as
práticas sociais a „papéis sociais‟ sexuados, os quais remetem ao destino natural da
espécie‖ (KERGOAT, 2009, p. 68), quando a teorização oposta da divisão sexual do trabalho
afirma que as práticas sociais são construções sociais.

Como advertido anteriormente, Kergoat (2009, p. 68) evidencia que apesar da divisão
sexual do trabalho, e outras formas de divisão, permanecerem com os mesmos princípios
organizadores da estrutura, suas dimensões apresentam variações de tempo e espaço, ou
seja, a percepção de trabalho produtivo, lugar das mulheres no trabalho mercantil etc. A
autora reforça que não se trata de um pensamento determinista, já que as tarefas atribuídas
aos sexos podem se diferenciar dependendo da sociedade, mas enfatiza a necessidade de
problematizar a divisão sexual do trabalho, já que:

626
Trata-se de pensar a dialética entre invariantes e variações, pois, se supõe trazer à
tona os fenômenos da reprodução social, esse raciocínio implica estudar ao mesmo
tempo seus deslocamentos e rupturas, bem como a emergência de novas
configurações que tendem a questionar a própria existência dessa divisão
(KERGOAT, 2009, p. 68).

No trecho citado é possível perceber que a análise perpassa pela compreensão do


movimento da realidade quando se trata da divisão sexual do trabalho. A perspectiva do
pensamento dialético contribui para a percepção de que os fenômenos sociais se
apresentam em cada sociedade com influências do contexto social que ora podem
demonstrar rigidez, ora podem obter variações capazes de contribuir para o surgimento de
novas configurações.

Observa-se, desta forma, a evidência de momentos importantes no contexto do estudo


da divisão sexual do trabalho: um caracterizado pela culminância da consciência de que o
entendimento se fazia necessário para a compreensão de uma determinada forma de
trabalho evidente entre as mulheres, o trabalho doméstico; e outro apontado como declínio,
momento em que o conceito passou a ser utilizado de forma mais aproximada com
abordagens descritivas acerca da constatação das desigualdades.

notória a centralidade dada nestes estudos quando trata de abordar o trabalho e suas
divisões na evidência de que as relações sociais, por significarem tensões produtoras de
fenômenos sociais, trazem a presença de grupos com interesses antagônicos, que neste
caso são grupos sociais constituídos por homens e mulheres, logo a proposta de reflexão
permite o entendimento de que, as relações sociais de sexo e a divisão sexual do trabalho
são expressões inseparáveis.

Em síntese, as reflexões de Kergoat (2009, p. 71) apontam que as principais análises


para o entendimento das relações sociais de sexo se apresentam no entendimento de que
são relações antagônicas, as construções sociais têm causa material e não apenas
ideológica e, antes de tudo, têm como base a hierarquia, o poder e a dominação. Assim,
para além das constatações da desigualdade de sexo é necessário ―articular a descrição do
real com uma reflexão sobre os processos pelos quais a sociedade utiliza a diferenciação
para hierarquizar essas atividades‖ (KERGOAT, 2009, p. 72), ou seja, não se trata apenas
de descrever, mas refletir em relações que permitam pensar o real nas suas diferentes
dimensões.

Neste sentido, as reflexões de Hirata, Laborie, Doaré e Senotier (2009) e Kergoat (2009)
enfatizam compreensões fundamentais para entender a complexidade das relações sociais
de sexo, bem como da divisão sexual do trabalho, contribuindo de maneira relevante com as
discussões que envolvem o entendimento conceitual.

627
Estas reflexões contribuem para o raciocínio de conceitos que se apresentam diante das
novas configurações advindas com a divisão sexual do trabalho e que vinculam com o
contexto, sobretudo, ideológico da sociedade capitalista. A perspectiva feminista, ligada ao
marxismo clássico, procurou desenvolver a análise dando destaque para a categoria
patriarcado, entendendo este como a tentativa de posse do homem em relação às mulheres,
ou seja, o homem socializado pelo capitalismo torna-se, também, um homem socialmente
reprodutor de desigualdades em todos os campos da vida social.

Neste aspecto, destacam-se os estudos de Saffioti (2004) que trouxeram contribuições


fundamentais para identificar e entender como a divisão sócio/sexual se traduziu no conceito
de patriarcado e na categoria de gênero, na produção sociológica brasileira e latino -
americana. A autora é uma das intelectuais brasileiras que, embora incorpore a categoria
gênero, não concorda com a crítica de que o conceito de patriarcado deve ser suprimido das
análises por entender que a opressão e exploração de homens contra mulheres no presente,
mesmo que mostre distinções em relação ao passado, não foi superada.

O patriarcado como categoria principal de análise dos estudos sobre a desigualdade


entre homens e mulheres, predominou no Brasil até meados da década de 1980. Um dos
argumentos da perda de sua centralidade deu-se a partir da crítica de que ele restringia a
desigualdade entre os sexos à questão econômica. Para a autora, o patriarcado consiste no
―regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens‖ (SAFFIOTI, 2004, p. 45).
Portanto, é datado historicamente; enquanto o gênero é transhistórico, e enquanto tal, pode
se caracterizar por normas patriarcais (relações patriarcais de gênero) ou relações pautadas
na igualdade.

Saffioti (1992, p. 184), ao estabelecer interlocução crítica com Badinter (1986) sobre a
onipresença do patriarcado, ressalta que ―a relação de dominação-exploração não presume
o total esmagamento da personagem que figura no polo de dominada-explorada. Ao
contrário, integra esta relação de maneira constitutiva a necessidade de preservação da
figura subalterna. Sua subalternidade, contudo, não significa ausência absoluta de poder.‖.

Em relação à interlocução crítica relativa ao gênero, Saffioti (1992) tem como uma das
principais expoentes a americana Scott (1995), que é responsável pela introdução e difusão
da categoria gênero no Brasil nos anos 1980. Na análise de Scott, ―o gênero é
compreendido como uma forma de classificar fenômenos, um sistema socialmente
consensual de distinções e não uma descrição objetiva de traços inerentes‖ (SCOTT, 1995,
p. 72), ou seja, uma compreensão que possibilita distinções e torna evidente o entendimento
enquanto grupos separados. Quando trata da discussão do termo entre as feministas
americanas, a autora aponta para a ênfase no caráter fundamentalmente social das

628
distinções baseadas no sexo, pois ―a palavra indicava uma rejeição do determinismo biológico

implícito no uso de termos como „sexo‟ ou „diferença sexual‟‖ (SCOTT, 1995, p. 75).

Scott (1995, p. 75) alertou para a centralidade da construção biológica do sexo negando
a dimensão social do mesmo. Nesse sentido, a autora compreende que gênero supera o
entendimento restrito dado ao sexo. Este mesmo pensamento é encontrado em Saffioti
(2004, p. 45), ao identificar um campo de consenso, ainda que limitado entre os aspectos de
gênero e do sexo, em que se considera como ―a construção social do masculino e do
feminino.‖

Para Saffioti (2004), este não é o limite da interpretação de Scott (1995), mas sua
ênfase ao discurso, a linguagem como se a representação das pessoas fosse autônoma das
relações sociais. O eixo do debate de Scott (1995), segundo Saffioti (2004), era uma noção
de poder desconectada das relações de exploração. Nesse sentido, as determinações
estruturais como classe e, por conseguinte, o patriarcado, tornam-se irrelevantes, do ponto
de vista de uma contribuição política sobre o lugar da desigualdade entre os sexos e os
modelos de gêneros no contexto da sociedade estruturada pela luta de classes.

Embora esta discussão não se limite às questões aqui evidenciadas, os debates


observados nas contribuições das intelectuais feministas marxistas, ao conferirem
visibilidade à divisão sexual do trabalho no contexto do capitalismo, possibilitam
problematizar outras determinações necessárias para compreensão da realidade social
vivenciada por homens e mulheres, já que o processo de dominação e exploração é inerente
à referida formação histórica.

Na intenção de compreender a realidade social evidenciada, particularmente pelas


mulheres buscou-se destacar estudos de autores como Cisne (2012, p. 111) que adverte
para a exploração do capital sobre a força de trabalho não acontecer apenas de maneira
diferenciada entre os sexos, mas de forma intensificada em relação às mulheres. Esta autora
resgata as reflexões de Engels (1977), em que reconhecia a família como escravidão
rudimentar exercida por homens sobre mulheres e crianças como uma primeira forma de
propriedade e ainda, reitera a tese de Keorgart e Hirata, segundo a qual a divisão sexual do
trabalho é resultado de um sistema patriarcal capitalista que ―confere às mulheres um baixo
prestígio social e as submete aos trabalhos mais precarizados e desvalorizados‖ (CISNE,
2012, p. 109).

Este elemento de reflexão apresenta-se como um dos caminhos para compreender os


lugares que as mulheres vem ocupando em políticas como a Assistência Social,
principalmente, se tratando da presença majoritária enquanto usuária e também compondo o
quadro de trabalhadores vinculados nesta área, embora seja este um dado que será

629
enfatizado no proximo item deste trabalho é importante destacar este raciocínio
considerando as discussões no campo teórico.

Em estudos conjuntos, Cisne e Santos (2018), ao se referirem ao debate do feminismo e


da diversidade sexual na atualidade, reproduzem a relevância das categorias teóricas que
permitem analisar a construção sócio-histórica e econômica das desigualdades entre os
sexos, a saber: patriarcado, divisão sexual e racial do trabalho e relações sociais de sexo.
Em relação ao patriarcado, afirmam que este, apesar de atingir estruturalmente a sociedade,
suas implicações são direcionadas de forma central às mulheres e ao que é associado ao
feminino, abrangendo neste sentido outros sujeitos como travestis e mulheres transexuais.

Nesse sentido, embora seja compreendido que o patriarcado enquanto sistema presente
nas relações sociais não esteja restrito ao sexo biológico da mulher, se faz presente na
construção social do mesmo, o qual ―se associa ao frágil, ao desvalorizado, ao subalterno e
subserviente, enquanto o „modelo‟ patriarcal do homem é o da força, virilidade, poder e
dominação‖ (CISNE; SANTOS, 2018, p. 43).

Como é possível observar, as autoras destacam quatro relações que dão base à
estrutura do patriarcado, mas que não se configuram como processos naturais e isolados, a
saber: relações sociais de sexo/sexualidade; constituição da família heteropatriarcal-
monogâmica, divisão sexual e racial do trabalho; e a violência contra a mulher e a população
LGBT. Para Cisne e Santos (2018), os estudos de gênero têm alcançado maior aceitação
nas instituições multilaterais e governamentais quando comparados aos estudos feministas
de perspectiva marxista, atualizando a hipótese de Saffioti (2004).

Como apreendido nas discussões anteriores, a abordagem da divisão sócio/sexual do


trabalho, traduzida no debate no patriarcado e no gênero, permite um campo de
compreensões mais aprofundado no que se refere à articulação entre a desigualdade de
sexo na complexidade do modo capitalista de produzir e pensar. Tratando de mulher e
capitalismo, Saffioti (2013) reafirma a necessidade de o trabalho apresentar-se como fio
condutor na análise do ―problema da mulher‖ nas sociedades competitivas.

Ao evidenciar o trabalho feminino, a autora retoma o processo histórico em que identifica


as mulheres das camadas trabalhadoras exercendo diversas atividades, sobretudo, no
decorrer da existência da família enquanto unidade de produção. O papel econômico
fundamental das mulheres era observado em diferentes países e épocas, tal como
referenciou Saffioti (2013, p. 62) ao descrever o contexto de atividades desenvolvidas por
mulheres na França e na Inglaterra ao longo do século XIX.

Para Saffioti (2013, p. 65), no modo de produção capitalista as mulheres se encontram


em desvantagens que conjugam duas dimensões localizadas tanto no plano superestrutural,

630
com a subvalorização do trabalho feminino e a supremacia masculina, quanto no plano
estrutural, em que a mulher com o desenvolvimento das forças produtivas era marginalizada
de funções no campo da produção, assim, ―torna-se clara, no novo regime, a divisão da
sociedade em classes sociais e a exploração econômica de que é alvo uma delas por parte
da outra‖ (SAFFIOTI, 2013, p. 66).

Neste contexto a autora acentua a interface com o sexo e a raça/etnia, situando estas
condições como fonte de inferioridade social da mulher, dado que interferem de maneira
positiva na atualização da sociedade competitiva, bem como no estabelecimento das classes
sociais destacando: ―O primeiro contingente feminino que o capitalismo marginaliza do
sistema produtivo é constituído pelas esposas dos prósperos membros da burguesia
ascendente‖ (SAFFIOTI, 2013, p. 67), um trecho que permite, ainda que de maneira
preliminar e resgardadas as particularidades, pensar na relação expressa hoje com o lugar e
função que muitas mulheres de governantes são convidadas a ocuparem no contexto
político considerando a figura do que se denomina com o termo primeira-dama.

Ao tratar da experiência brasileira, Saffioti (2013, p. 256) localiza também a inserção da


mulher oriunda da classe trabalhadora nas fábricas têxteis ainda no final do século XIX. O
referido setor era majoritariamente constituído da força de trabalho feminina desconstruindo
a tese de que o trabalho feminino extra-casa assalariado emergiu no século XX. Em relação
educação, a referida autora salienta que embora a educação doméstica permanecesse
conservada, a educação escolarizada apresentava-se crescente e ainda que não
significasse em termos de igualdade àquela recebida pelos homens, já era possível associar
a processos de redefinição dos papéis atribuídos as mulheres, sobretudo, tratando-se dos
centros urbanos.

Diante dessa retomada histórica, Saffioti (2013, p. 307), ressalta para o campo da
escolarização, advertindo que era bastante reduzido o número de mulheres que antes de
1930 conseguiram diplomar e a representação nas escolas de nível superior da cidade de
São Paulo era bastante divergente em relação aos homens e concentrava-se em cursos
específicos como Farmácia, que passava por um processo de desvalorização social.

A escolarização superior incorporada como requisito de ascensão social do homem não


se torna uma exigência para a mulher, já que o casamento permanecia como valor social
colocado acima da carreira profissional, dado este que, conforme Saffioti (2013, p. 327),
limita a qualificação da força de trabalho feminina, tanto no que confere a ideia da
incompatibilidade de ambos, quanto pelo papel subsidiário desenvolvido pelo trabalho da
mulher. Passado quase um século, o que se observa é uma reversão total daquele quadro.
Segundo as estatísticas oficiais, hoje as mulheres apresentam mais escolaridade do que os

631
homens e dividem sobremaneira o mercado de trabalho, ainda que, permeado de ideologias
que subvalorizam a mulher e tudo aquilo que a ela se vincula.

A teoria feminista, criada como resposta ao patriarcalismo da ciência, tem demonstrado


a complexidade das contradições que permeiam as relações entre mulheres e homens e as
orientações de gênero, pensados a partir de clivagens econômicas e desigualdades de
raça/cor que estão presentes nas mediações políticas, denunciando o Estado como uma
instituição classista, machista, racista e homofóbica.

MULHER E GÊNERO NO CONTEXTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL


BASILEIRA

A produção teórica sobre Políticas Públicas, Mulher e Gênero tem problematizado


questões relevantes para área, dentre elas, a postura patriarcal, machista e racista do
Estado, claramente expressa nas políticas públicas. Para Farah (2004), a incorporação da
perspectiva de gênero por políticas públicas desenvolvidas no país, data do final dos anos
de 1970, resultado da consolidação e fortalecimento do movimento feminista, já que neste
mesmo período ocorreram importantes transformações relativas à relação entre a classe
trabalhadora e o Estado brasileiro.

O debate da autora sinaliza que desde os anos de 1970 as mulheres organizadas já


reivindicavam um olhar do poder público articulado com o modelo de gênero adotado pelas
ações governamentais, particularmente, nos movimentos sociais urbanos que
protagonizavam as lutas e as reivindicações em torno do acesso a serviços públicos e
melhoria da qualidade de vida. Para Farah (2004, p. 4), fica em evidência uma conexão
histórica com a constituição das mulheres como sujeito coletivo à medida que passam a
conduzir suas ações para além da dimensão privada, isto é, se fazem presentes nos
espaços públicos.

Para esta autora, as mulheres se estabeleceram enquanto sujeito político de forma


inicial, mediante as mobilizações dos movimentos sociais urbanos que estavam voltadas para
as questões que atingiam os trabalhadores urbanos pobres, a exemplo, dos baixos salários,
elevado custo de vida e o acesso precário aos serviços coletivos. ―Ao mesmo tempo que
denunciavam as desigualdades de classe, os movimentos de mulheres [...] passaram
também a levantar temas específicos à condição da mulher‖. (FARAH, 2004, p. 5), Neste
caso, tratava-se de algumas reivindicações das mulheres como: direito a creche, saúde da
mulher, sexualidade e contracepção e violência contra a mulher.

632
Este contexto ressalta sobre a convergência que os movimentos sociais com
participação de mulheres tiveram com o movimento feminista, pois embora apresentassem
objetivos divergentes, considerando as vertentes do feminismo, chamavam atenção para a
necessidade de ―transformação da situação da mulher na sociedade, de forma a superar a
desigualdade presente nas relações entre homens e mulheres‖. A autora considera que
ambos os movimentos contribuíram para abranger a perspectiva de gênero na agenda
pública como uma forma de desigualdade que necessitava ser superada.

notório observar esta diferença que Farah (2004) se propõe a fazer entre estes
movimentos. Embora ambos tragam a perspectiva de lutas pelas melhorias nas condições
de vida da mulher, o questionamento de determinadas vertentes do movimento feminista,
acerca da transformação da situação da mulher na sociedade, parece ir mais além da busca
de algumas reivindicações específicas para as mulheres, permitindo a compreensão, por
exemplo, do debate que envolve a divisão sexual do trabalho.

nesta conjuntura de reivindicações que Farah (2004) sinaliza na década de 1980 as


primeiras políticas públicas com ênfase em perspectivas de gênero, principalmente no
estado de São Paulo e, posteriormente em todo o país, a saber: o primeiro Conselho
Estadual da Condição Feminina (1983); a primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher
(1985); Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (1985) e a instituição do Programa de
Assistência Integral à Saúde da Mulher (1983). Por conta dessas mobilizações, a
Constituição Brasileira de 1988 incorporou diversas propostas dos movimentos relativas a
saúde, família, trabalho, violência, discriminação, cultura, dentre outros.

Outros destaques referenciados por Farah (2004) encontram-se no fortalecimento de


tendências para a formulação de propostas de políticas públicas, como a realização de
encontros dentre estes: Encontro sobre Gênero e Políticas Públicas (São Paulo); Encontro
Nacional Mulher e Poder Local (Rio de Janeiro) e Encontro sobre Indicadores de Gênero
(Rio de Janeiro). A autora sinaliza, também, a incorporação da temática de gênero pela
produção acadêmica como um mecanismo de fortalecimento de novas demandas e
concepções de ações governamentais.

Diante disso, as mulheres seguem na luta pela sua participação não apenas como
usuárias de políticas públicas, mas também na formulação, na implementação e no controle
das mesmas. Estes indicativos, além de permitirem visualizar propostas articuladas com a
perspectiva de gênero, chamam atenção para as recomendações do Banco Mundial acerca
de políticas focalizadas no combate à pobreza, a saber: políticas de educação, saúde,
geração de emprego e renda, com ênfase diretamente nas mulheres.

633
Sobre este aspecto, autoras como Bandeira (2005, p. 5) abordam a transversalidade da
perspectiva de gênero nas políticas públicas, compreendendo-a como matriz orientadora
para que os setores públicos possam superar as assimetrias de gênero nas esferas de
governos. Nesta discussão, é dela que vem a crítica das confusões elaboradas por parte dos
elaboradores e executores da política relativa a gênero e sexo. Assim, ela chama atenção
para o uso universal do masculino que além de associar os feitos humanos às realizações
masculinas estende-se para as políticas que se direcionam ao homem como referente.

Conforme Bandeira (2005, p. 6), no Brasil as políticas públicas direcionadas às mulheres


nem sempre abrangem a perspectiva de gênero, uma vez que na sua compreensão as
políticas públicas de gênero consideram não apenas a diferenciação do processo de
socialização entre feminino e masculino, mas também, as relações interpessoais entre
homens e mulheres. As políticas públicas dirigidas para as mulheres priorizam a mulher na
sua condição de reprodutora biológica e social, aspecto possivel de ser identificado em
políticas como a Assistência Social.

Diante desta diferenciação, a autora sinaliza para a necessidade de se ter clareza, pois
ao se centrar na mulher configura-se ―numa política pública que enfatiza a responsabilidade
feminina pela reprodução social, pela educação dos filhos [...] e não necessariamente seu
empoderamento e autonomia‖ (BANDEIRA, 2005, p. 8-9). Para ela, é preciso haver uma
possibilidade de ruptura com as visões tradicionais e, por isso, as políticas para as mulheres
devem ser ao longo do tempo transformadas em políticas de gênero.

notório destacar as indicações da autora acerca da permanência em grande parte dos


países, quer sejam eles considerados desenvolvidos ou subdesenvolvidos, das
desigualdades entre homens e mulheres ainda no século XXI. Em países como o Brasil é
possível observar que, ―as mulheres constituem um grupo em desvantagem evidente, seja
no mercado de trabalho, nas instâncias de decisão, na vulnerabilidade à violência doméstica
ou no acúmulo de atividades não remuneradas‖ (BANDEIRA, 2005, p. 16).

A citação da autora remete à divisão sócio/sexual do trabalho, já que relaciona lugares e


papéis atribuídos às mulheres como produto das desigualdades e não de diferenças
naturais. Em políticas públicas direcionadas para as famílias este contexto fica evidente
diante da expressividade da presença de mulheres e a responsabilidade colocada a elas na
concepção de cuidado com o outro.

634
Este contexto também sinaliza para um debate importante que Nascimento (2012), com
base em autoras feministas, afirma ocorrer na América Latina o fenômeno da feminização da
pobreza. Nestas reflexões, ela chama atenção para os investimentos que foram realizados
no período de 2003 a 2012 em programas de transferência de renda mínima, os quais
apresentavam como sujeito principal, as famílias chefiadas por mulheres. Nascimento (2012,
p. 16) esclarece que o fenômeno da feminização da pobreza é problematizado a partir do
contexto feminista de 1970 em que nos Estados Unidos a pobreza, também, apresentava
maior expressividade nestas famílias chefiadas por mulheres.

Conforme Nascimento (2012, p. 17), no Brasil, tanto o discurso governamental quanto


os dados oficiais do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS)
confirmavam que as famílias chefiadas por mulheres correspondiam a 96% das demandas
de políticas sociais no país. Considerando que a realidade brasileira permanece marcada
por diversas formas de desigualdades, a autora chama atenção para contribuições que a
teoria feminista tem proporcionado quer seja no campo teórico-metodológico, quer nas
reflexões acerca das desigualdades sociais.

A partir de abordagens que apresentam preocupações relacionadas às políticas públicas


que propõem o enfrentamento das desigualdades de gênero, indica-se que ―a condição de
sujeito de direitos das mulheres mais pauperizadas ainda não se concretizou‖. Desta forma,
Nascimento (2012, p. 25), aponta estatísticas oficiais, como o ―Relatório da Comissão
Externa da Feminização da Pobreza‖, que vêm demonstrando situações que confirmam a
permanência das desigualdades no país, a exemplo do mercado de trabalho indicando um
número maior de mulheres em ocupações precárias quando comparadas aos homens e
tratando-se das mulheres negras o percentual é ainda maior, condições que advertem para
uma desigualdade que parece envolver classe, gênero e raça/etnia.

Com as reflexões acerca das contribuições da teoria feminista, bem como as propostas
de entendimento das políticas públicas na perspectiva de gênero, Nascimento (2012, p. 36)
sinaliza a importância da responsabilidade familiar conjunta, ou seja, com a participação de
homens e mulheres para superar o que ela considera como bipolaridade público privado, a
qual ainda se apresenta na concepção de família vigente. Assim, no tocante à participação
das mulheres no contexto das políticas públicas, quer seja como usuárias ou mesmo como
trabalhadoras, permeia o debate da divisão social/sexual do trabalho como fundamental
neste entendimento.

A particularidade da divisão sócio/sexual do trabalho e seus rebatimentos na política de


Assistência Social aparece em Duque-Arrazola (2008). Ao refletir acerca das desigualdades

635
de gênero no contexto dos anos 2000, com a proposta de identificar a condição do que
denomina de sujeito feminino nos programas da política mencionada, destacando as
inflexões que sua participação em programas de transferência monetária poderiam provocar
no interior da família e no Estado, como processo de superação da subordinação de gênero
a que elas têm estado submetidas historicamente.

A autora chama atenção para o caráter patriarcal do Estado e das políticas sociais e
adverte para a importância na discussão de alguns aspectos históricos que possibilitam
apreender as desigualdades de gênero que permeiam a sociedade, em especial no Brasil,
com expressiva presença de mulheres na esfera da política de assistência social. Neste
sentido, Duque-Arrazola (2008) discorre sobre as profundas transformações na organização
da produção e do trabalho, tanto nos países de capitalismo avançado quanto nos periféricos
que, conforme a autora, foram ocasionadas pelas medidas adotadas para conter a crise do
capital iniciada na década de 1970, a saber: as inovações tecnológicas, a flexibilização dos
processos de trabalho e o desemprego estrutural globalizado.

Ao abordar sobre a particularidade das mulheres neste contexto, a autora indica a


predominância de contratos de trabalho temporários, terceirizados e informais, não havendo
a garantia de direitos trabalhistas e sociais, que no seu entendimento ganha materialidade
diante da intensificação da pobreza que atinge de forma majoritária as mulheres da classe
trabalhadora, reiterando a feminilização da pobreza.

Duque-Arrazola (2008), ao apontar que o aprofundamento da pobreza estava afetando


sobremaneira as mulheres, principalmente, pela contenção da crise do capital naquele
período, possibilita pensar acerca da realidade que se apresenta no Brasil no início do
século XXI, onde elas correspondem a mais da metade dos brasileiros em situação de
extrema pobreza e em menores proporções no que tange ao emprego com carteira
assinada, o que permite ratificar a prevalência, nesta particularidade, da não garantia de
direitos trabalhistas e sociais.

Ao tratar sobre o sujeito feminino nos Programas de Assistência Social no Brasil,


Duque-Arrazola (2008, p. 243) também coloca a preocupação com a centralidade da família
nos anos de 1990 no âmbito destes programas e indica que o sentido de família está
centrado na representação social da mulher, a qual se apresenta associada em função da
reprodução. Assim, a autora ressalta que apesar da política de Assistência Social evidenciar
seu direcionamento para as famílias, o sujeito ativo de fato são as mulheres, principalmente,
aquela mulher-mãe-esposa-dona-de-casa e/ou a trabalhadora desempregada.

Pelo exposto, fica claro o esforço que as intelectuais têm feito no sentido de pensar a
divisão sexual do trabalho no contexto da divisão social e, por conseguinte, a elaboração

636
das políticas públicas, principalmente a Assistência Social como resultado desta
configuração maior. A radicalização do neoliberalismo no Brasil com a adoção de medidas
drásticas pelo governo federal coloca novas questões para o debate na medida em que a
bibliografia mencionada tinha como objeto de reflexão crítica políticas públicas, que
expressavam, com contradição, as reivindicações dos movimentos sociais.

As ações governamentais dirigidas para mulheres, negros e GLBTS, por exemplo, no


período de 2003 a 2015, expandiram conquistas anteriores e permitiram a criação da
Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres (SNPM), que foi substituída pelo Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ministério este que tem se posicionado
contra o movimento feminista e, por conseguinte, as reivindicações por igualdade entre
homens e mulheres, reafirmando a concepção biologista da política pública para mulher,
problematizada por Bandeira (2005).

CONSIDERAÇÕES

Diante da proposta de evidenciar discussões quem envolvem mulher e divisão


sócio/sexual do trabalho no contexto da política de assistência social brasileira, apresentou -
se alguns debates na intenção de compreender como a participação do sexo feminino se
configura nesta política social. A contribuição de intelectuais que enfatizavam a abordagem
do feminismo marxista permitiram a compreensão de determinações históricas e estruturais
fundamentais para a compreensão desta realidade social em sua essência.

Nesse sentido, os estudos que se propuzeram a compreender o entendimento teórico-


metodológico no que confere ao debate que considerava patriarcado e gênero, permitiram
resgatar elementos importantes tanto no ambito conceitual, quanto para a análise das
desigualdades de sexo presentes na realidade brasileira, não somente vivenciada nas
relações sociais da vida cotidiana, como também presente nas areas vinculadas ao acesso
dos direitos sociais, como no caso das políticas públicas.

Esse pensamento esta fundamentado, também, a partir da observação da presença


expressiva de mulheres em lugares marcados pela esfera da reprodução, quer seja no
trabalho doméstico e no cuidado com a família, amplamente difundidos como aspecto
presente no espaço do lar, que no entanto parece seguir delineações semelhantes mesmo
fora deste espaço, a exemplo do que se observa como tendência no campo de políticas
como a Assistência Social.

Apesar do reconhecimento legal em 1988, da Assistência Social como direito e não


prática social assistencialista, os governos federais pós-Constituição 1998 até 2003,

637
continuaram reproduzindo a trajetória marcada por práticas que resistiam a sua valorização
como direito, condição que muitas vezes a mantinha como segundo plano entre as políticas
públicas. A feminilização da pobreza destacada por algumas autoras, bem como os dados
acerca dos recursos humanos desta política evidenciando nas estatísticas oficiais as
mulheres como maioria dentre as/os trabalhadoras/es, são elementos que possibilitam
vincular o pensamento de que a política de Assistência Social ao ter na sua estrutura atual
um conjunto de programas, serviços e benefícios centrados na família, ainda relaciona as
mulheres com a função do cuidar, independente do lado que ela esteja nesta política social.

inegável que as contribuições do pensamento teórico feminista e seus diversos


estudos trouxeram conquistas, principalmente para o entendimento dos lugares reservados a
homens e mulheres na sociedade capitalista, no entanto a realidade social ainda
permancece em meio ao movimento de resistência para a garantir essa igualdade, pois
apesar dos avanços na política de assistência social, o sentido de cuidado com a família
ainda permanece centrado na representação social da mulher, a qual se apresenta
associada na função da reprodução que perpassa pelo que se identifica como dupla
presença nesta política social: usuária e trabalhadora.

REFERÊNCIAS

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públicas. Relatório final do projeto governabilidade democrática de gênero na américa latina
e no caribe. Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) Secretaria
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SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
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639
AS RELAÇÕES GEOGRAFIA, GÊNERO E TRABALHO: uma abordagem a partir das
expressões e significados do trabalho feminino rural no município de Imperatriz-MA

https://doi.org/10.29327/527231.5-43 Micaela Brito Gomes


Graduanda em Geografia - Licenciatura, UEMASUL.

Jailson de Macedo Sousa


Professor Adjunto em Geografia, UEMASUL.

Hayllana Alves da Silva


Graduanda em Geografia - Licenciatura, UEMASUL.

Este artigo expõe alguns resultados acerca das relações de trabalho no mundo
contemporâneo, enfatizando nesse cenário, as relações entre Trabalho, Geografia e Gênero. É
reconhecido que os temas e problemas que envolvem o conhecimento geográfico conheceram
significativas transformações, a partir da década de 1970. A geografia, enquanto área do
conhecimento humano não tem se furtado a estes debates. A renovação do conhecimento
geográfico, a partir de 1970 e a incorporação de teorias e metodologias fundamentadas na
perspectiva humanista tem confirmado estas inquietações. Nesse cenário, merece atenção os
estudos relacionados às questões de gênero, uma vez que desde 1980, as pesquisas sobre
gênero passaram a ser abordadas. Neste estudo, ressaltamos como inquietação central a
necessidade de reconhecer o protagonismo social das mulheres trabalhadoras rurais do
assentamento Vila Conceição I. Buscamos inicialmente reconhecer a produção bibliográfica
acerca desta temática, bem como através dos trabalhos de campo, procuramos identificar as
formas e modalidades de trabalho desenvolvidos no assentamento e o protagonismo social
exercido por estas mulheres. O trabalho rural feminino além de promover a visibilidade
destas, também assegura a geração de renda e emancipação. Do ponto de vista metodológico
este estudo se apoia na adoção da abordagem na geografia humanista, tendo como
fundamentos a apreensão das relações entre Geografia, gênero e trabalho. O trabalho rural
feminino no assentamento rural Vila Conceição I é utilizado como recorte para investigação
da realidade social destas mulheres. Assim, esta pesquisa busca desnudar as subjetividades
das mulheres no espaço rural de Imperatriz e as atividades rurais. Sobre os procedimentos
metodológicos desta pesquisa, utilizamos a abordagem qualitativa, fundamentada na adoção
das técnicas de observação simples e a realização de entrevistas semiestruturadas.

Palavras chaves: Geografia. Gênero. Trabalhadoras Rurais.

640
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ao longo da história da humanidade, as desigualdades de gênero vêm estabelecendo


debates acerca da diversidade e diferenças entre homens e mulheres, proporcionando a
realização de pesquisas voltadas ao enfrentamento das desigualdades de gêneros, com vistas
de reparar os danos relacionados à inferioridade da mulher.

A partir da segunda metade do século XX, esta temática vem sendo cada vez mais,
abordada pelas ciências humanas e sociais. A geografia, enquanto área do conhecimento
humano não tem se furtado a estes debates. A renovação do conhecimento geográfico, a partir
da década de 1970 e a incorporação de metodologias e teorias fundamentadas na perspectiva
humanista têm confirmado estas inquietações.

Ao considerar este contexto apresentado como inquietação central, o desenvolvimento de


uma proposta de investigação científica de modo a apreender a natureza e os significados das
relações entre Trabalho, Geografia e Gênero. Nesse processo investigativo, as relações de trabalho
no espaço rural, em particular, na zona rural de Imperatriz, ou seja, nos assentamento rurais Vila
Conceição I é que se apresenta como viés de mediação que buscará compreender, as relações de
trabalho desenvolvidas pelas mulheres trabalhadores rurais desses espaços.

Assim, buscamos refletir neste artigo sobre os processos de produção e reprodução


do espaço e, consequentemente, da vida, tendo como finalidade central compreender as
relações de entre Geografia, Gênero e Trabalho, a partir de uma abordagem realizada com
trabalhadoras rurais no município de Imperatriz.

Este objetivo geral está associado aos seguintes objetivos: Refletir sobre relações de
gênero e produção do espaço constituídas historicamente tendo como mediação as relações de
trabalho construídas por homens e mulheres; Entender os papéis desenvolvidos pelas
mulheres e a produção e reprodução do espaço que estas estabelecem no meio rural, através
das atividades laborais; Investigar, a partir das relações de trabalho desenvolvidas pelas
mulheres residentes no assentamento rural de Vila Conceição I acerca da emancipação destas.
A saber: a Vila Conceição I é um distrito do município de Imperatriz.

Trata-se de um desafio que exige diálogo interdisciplinar, uma vez que os


conhecimentos geográficos sempre pautaram as suas atenções em estudos voltados para os
aspectos da materialidade humana. No entanto, desde a década de 1980, ao incorporar a
abordagem humanista nos estudos geográficos e consequentemente, as contribuições da

641
Fenomenologia e das abordagens Culturais, observa-se uma aproximação da Geografia com as
subjetividades que permeiam os processos de produção do espaço. Do ponto de vista
metodológico, cumpre ressaltar que a pesquisa se apoia nas abordagens humanistas, conduzido
pela Fenomenologia, enfatizando também as contribuições da pesquisa de natureza qualitativa.

PÓS-MODERNIDADE E A EMERGÊNCIA DOS ESTUDOS E DEBATES SOBRE A


QUESTÃO DE GÊNERO NA CI~ENCIA GEOGRÁFICA

A década de 1970, retrata de modo incontestável, um contínuo processo de


renovação das ideias e da produção do conhecimento geográfico. As categorias, ou seja, os
conceitos eminentemente geográficos buscaram se adaptar à organização societária atual.
Desse modo, são notórias as contribuições fornecidas pela abordagem marxista e o
materialismo histórico, bem como às influências das correntes de pensamento orientadas a
partir da geografia humanista. Ao considerar as contribuições das referidas abordagens,
Roberto Lobato Corrêa (2000) enfatiza:
A década de 1970 viu também o surgimento da geografia humanista que foi, na
década seguinte, acompanhada da retomada da geografia cultural. Semelhantemente
à geografia crítica, a geografia humanista, calcada nas filosofias do significado,
especialmente a fenomenologia e o existencialismo, é uma crítica à geografia de
cunho lógico-positivista. Diferentemente daquela contudo, é a retomada da matriz
historicista que caracterizava as correntes possibilista e cultural da geografia
tradicional. (CORRÊA, 2000, p. 30).

A adoção dessas novas abordagens não apenas situaria os conhecimentos geográficos


no contexto da produção científica contemporânea, ou seja particularmente no conjunto das
ciências humanas e sociais, mas, também proporcionaria à ciência geográfica a construção
sólida de conhecimentos, buscando assim, como principal objeto diálogo e a interação de
saberes e uma produção calcada na adoção de posturas interdisciplinares.
A construção de conhecimentos geográficos inspirados nas vertentes de pensamento
marxista ou humanista, enfatizam a necessidade da crítica às abordagens antes presentes no
processo de construção dos conheciementos gegráficos. Como lembra, Corrêa (2000, p. 15), “o
surgimento da geografia crítica fundada no materialismo histórico e na dialética, confirma uma
revolução que procura romper, de um lado, com a geografia tradicional e, de outro, com a
geografia teórico-quantitativa”. Com isto, lançaram-se as bases para um processo de reconstrução
de conhecimentos e saberes geográficos, desde então, apoiados em concepções materialistas e
humanistas. Interessa, nesse estudo, considerar principalmente, as influências do humanismo na
Geografia e as suas contribuições voltadas ao conhecimento do espaço e de todas

642
as suas particularidades numa perspectiva totalizante.
Estes estudos buscam valorizar as subjetividades emanadas da sociedade, através da
construção de hábitos e valores, fundados em uma abordagem que ressalta a necessidade da
incorporação da essências nos processos analíticos do espaço. Esta é a tarefa central que se
delineia ao desenvolvimento da presente proposta de investigação, uma vez que a nova
preocupação repousa na necessidade de estabelecer reflexões pautados nas relações de gênero
e trabalho, tendo a Geografia como mediadora desse processo.

RELAÇÕES DE GÊNERO NA SOCIEDADE ATUAL: breves considerações a partir das


possíveis contribuições do conhecimento geográfico
O desenvolvimento das pesquisas sobre o gênero desfecha um golpe duro nos
conceitos tradicionais da disciplina: os geógrafos não deveriam ter se indignado há
mais tempo da dureza da condição feminina e dos mil modos usados para
menosprezá-las e evitar sua emancipação. (CLAVAL, 2010)

Estas ideias enfatizadas por Claval (2010) se apresentam como denúncia às relações
desiguais de gênero também incorporadas como uma inquietação do conhecimento
geográfico. As preocupações do conhecimento com temas que envolvem as subjetividades só
ganham fôlego em um período recente, ou seja, a partir da década de 1980, quando a
perpectiva humanista passa a figurar no centro dos estudos geográficos. A esse respeito,
Gomes (1996) destaca:
A geografia humanista, sobretudo a que privilegia as dimensões espaciais, em
particular o espaço vivido, trata exatamente das representações de ordem simbólica
que estruturam uma atitude e uma concepção dadas em relação a um espaço de
referência. A ordem simbólica não está ligada à racionalidade da mesma forma que
os comportamentos e as atitudes no espaço também não advêm desta racionalidade.
(GOMES, 1996, p. 322-323).

As abordagens conduzidas pela perspectiva humanista e cultural colocam na ordem


dos debates geográficos temas compreendidos como necessários que foram relegados por um
longo período à planos secundários. As abordagens sobre gênero se incluem nesse cenário.
Conforme notou Corrêa (2000, p. 30), “contrariamente às geografias crítica e teorético-
quantitativa, a geografia humanista, está assentada na subjetividade, na intuição, experiência,
no simbolismo e na contingência, privilegiando o singular e não o universal. Ao invés da
explicação, tem na compreensão a base da inteligibilidade do mundo real”.
Dito isto, o estudo aqui proposto sobre as relações de gênero no meio rural, através
do trabalho desenvolvido por lavradoras no campo, busca justamente, apreender os sentidos e
significados do trabalho como condição sine qua non à emancipação da mulher.

643
As relações entre geografia, gênero e trabalho, muito mais que permitir a adoção de
nova abordagem para compreender as relações espaciais, busca legitimar os direitos negados
às mulheres ao longo da história. As relações de trabalho, constituem nesse contexto analítico,
um caminho singular para apreender os sentidos e significados de produção e reprodução da
vida, a partir das concepções, dos modos de vida e todas as expressões socioespaciais
edificados pelas mulheres trabalhadoras do/no campo, ou seja, em áreas rurais de Imperatriz.
Dessa forma, por meio da presente incursão científica, buscaremos desvelar as
subjetividades de mulheres (trabalhadoras rurais) no espaço rural de Imperatriz, ou seja a
busca pela compreensão das relações de trabalho no campo, tendo o feminino como foco
central de estudo. Assim sendo, a Geografia expõe a necessidade de ampliação do temário
geográfico, quer fazer jus às desigualdades de gênero estabelecidas secularmente. Estas
desigualdades são perceptíveis e podem ser constatadas por meio dos estudos de Rossini
(1998) ainda na gênese da sociedade industrial.
Com a Revolução industrial, a incorporação da mulher no mercado de trabalho se
consolidou em função da ideologia sustentada historicamente. Preconceitos sobre o sexo
feminino na esfera do trabalho são visíveis, salários mais baixos para as mulheres,
designação para tarefas consideradas menos qualificadas, aceitação de dupla jornada de
trabalho para a mulher, trabalho doméstico e má remuneração, massas que servem para o
capital industrial são alguns dos ingredientes que norteiam as relações de trabalho e
gênero na sociedade industrial. (ROSSINI, 1998, p. 9).

Estas ideias destacadas por Rossini (1998) confirmam o caráter excludente e desigual da
mulher na sociedade hodierna. As expressões dessas desigualdades se intensificam no Brasil em
face da emergência da sociedade urbano-industrial que se edifica, a partir da década de 1940. Em
razão dessas desigualdades é que sentimos a necessidade apreender as expressões e os
significados destas, a partir de uma leitura das mulheres trabalhadoras do/no campo.
Destarte, a geografia e os conhecimentos por esta ciência edificados podem e devem
prestar contribuições com vistas a dirimir a problemática que envolve as relações de gênero na
sociedade brasileira. Tomamos como ponto de partida para esta mediação as relações de
trabalho desenvolvidas por mulheres trabalhados do campo.
Como recorte espacial, elegemos para esta interpretação as mulheres trabalhadoras rurais
de Imperatriz, enfatizando como cenários e cenas, as mulheres residentes no assentamento rural
Vila Conceição I. Trata-se de um espaço de resistência das populações rurais de Imperatriz.
Quando fazemos esta escolha corroboramos com as ideias de Joseli Silva (2016) que compreende,
“conceber a ciência, a partir do feminismo implica, portanto, constituir uma prática científica
desconstrucionista dos conceitos concebidos no campo geográfico, os quais

644
foram incapazes de produzir a visibilidade de grupos sociais que ficaram invisibilizados pelo
saber hegemônico. (SILVA, 2016, p. 509).
Assumir posturas e o desenvolvimento de práticas científicas fundadas no humanismo,
implica muito mais que reconhecer os sujeitos que foram invisibilizados por um longo período da
história das sociedades, significa colocar em volta da mesa, os sentimentos de exclusão, o silêncio
desses sujeitos e significados que foram obscurecidos de suas presenças no meio social.
esta a tarefa central que se coloca para esta pesquisa. Queremos na verdade,
apreender os significados deste silêncio, fornecendo às mulheres trabalhadoras rurais, os
direitos que competem a estas. Estes fatos elencados é que justificam a necessidade de
realização da presente proposta de investigação científica.

ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

A temática de gênero ou sobre gênero, apesar de recente no âmbito dos estudos


geográficos, demonstra sinais visíveis da visibilidade e da reparação de danos que foram
cometidos secularmente contra as mulheres, contribuindo diretamente para reparar as
desigualdades entre homens e mulheres em nossa sociedade.
reconhecido que a metodologia nos estudos científicos deve se amparar em
contribuições teóricas e metodológicas, a partir das contribuições de uma dada área do
conhecimento. Nesse sentido, o ponto de partida desta investigação se apoia na abordagem de
natureza qualitativa. A relavância desta abordagem qualitativa é demonstrada a partir da
dimensão transdisciplinar que ela abrange, dialogando entre ciencias humanas e sociais. Sobre
a importância da abordagem qualitativa conforme Chizzote (2003):
A pesquisa qualitativa recobre hoje, um campo transdicipilnar envolvendo as
ciências humanas e sociais, assumindo tradições ou multiparadigmas de análises,
derivadas do positivismo, da fenomenologia, da hermenêutica, do marxismo, da
teoria crítica e di constutivismo, e adotando multimétodos de investigação para o
estudo de um fenômeno situado no local em que ocorre, e efim, procurando tanto
encontar o sentido desse fenômeno quanto interpretar os significados que as pessoas
dão a eles. (CHIZZOTI, 2003. p. 221).

Acerca das contribuições desta abordagem, Brandão (2009) destaca:


E assim, entre espaços, cenários, cenas que os fazem interagir com e pelos seus
atores humanos, em meio a gestos ora de saudosa lembrança, ora de silenciosa
resistência, ora de luta, a geografia redescobre e, fecundamente, reinventa palavras
como: identidade, cultura, lembrança e memória. (BRANDÃO, 2009, p.16)

Refletir sobre as relações desiguais de gênero e a produção do espaço, mediatizados


pelo trabalho, com o suporte do método dilético ao privevileigiar as transformações de caráter
qualitivo implicando, segundo Gil (2008), no que tange considerar as influências do método
dialético:

645
A dialética fornece as bases para uma interpretação dinâmica e totalizante da
realidade, já que estabelece que os fatos sociais não podem ser entendidos quando
considerados isoladamente, abstraídos de suas influências políticas, econômicas,
culturais etc. Por outro lado, como a dialética privilegia as mudanças qualitativas,
opõe-se naturalmente a qualquer modo de pensar em que a ordem quantitativa se
torne norma. Assim, as pesquisas fundamentadas no método dialético distinguem-se
bastante das pesquisas desenvolvidas segundo a ótica positivista, que enfatiza os
procedimentos quantitativos. (GIL, 2008, p.14)

Para desenvolver este estudo, também trabalhamos com a observação simples que é a
técnica de pesquisa que possibilita ao investigador uma série de vantagens, dentre elas: possita
obtenção de elementos para definição de problema e favorece a construção de ideias com base
no problema estudado. Pela observação simples entende-se
aquela em que o pesquisador, permanecendo alheio à comunidade, grupo ou
situação que pretende estudar, observa de maneira espontânea os fatos que aí
ocorrem. Neste procedimento, o pesquisador é muito mais um espectador que um
ator. Daí por que pode ser chamado de observação-reportagem, já que apresenta
certa similaridade com as técnicas empregadas pelos jornalistas. (GIL, 2008, p.101).

Optou-se por realizar entrevista formais que segundo Gil (2008, p.111): “[...] o quese
pretende com entrevistas deste tipo é a obtenção de uma visão geral do problema pesquisado,
bem como a identificação de alguns aspectos da personalidade do entrevistado”. As
contribuições destas metodologias são utilizadas como a melhor formar de compreender a
realidadde a qual esta pesquisa se volta, visto que a realidade não é passível de explicações e
nem objetiva, aparando também na fenomenolgia as realidades se explicam de forma
subjetivas segundo Gil (2008. p. 14): “Do ponto de vista fenomenológico a realidade não é
tida como algo objetivo e passível de ser explicado como um conhecimento que privilegia
explicações em termos de causa e efeito”.
Entende-se que a metodologia apresentada proporcionará melhor compreensão da
problemática abordada neste estudo. Assim sendo, por meio da adoção da abordagem
humanista, amparada na pesquisa de natureza qualitativa, compreendemos ser possível
apreender a essência das relações entre Gênero e Geografia, mediatizadas pelo trabalho.

GEOGRAFIA, GÊNERO E TRABALHO: olhares e apreensões a partir do trabalho


desenvolvidos pelas lavradoras do assentamento Vila Conceição I

A Vila Conceição I pertencente a zona rural de Imperatriz-MA, sua fundação no ano


1987, as terras então ocupadas era uma fazenda denominada de Itacira, pertenciam a outros
proprietários de uma corporação multinacional denominada Sharp e dentre um dos de seus
acionistas e mais conhecidos José Sarney.

646
O quantitativo de famílias 254 de assentados. Organizado pelo Sindicato dos
Trabalhadores Rurais. Entre conflitos ocorridos no campo, algumas famílias deixaram do
assentamento. A divisão dos lotes foi para entorno de 137 famílias, por meio de sorteio cada
família tinha seu lote. Somente após nove anos de ocupação é que o assentamento passou a ter
assistência do governo, e durante esse período de não atuação do governo a organização era
feita pelos próprios membros do assentamento.
O trabalho de campo foi realizado foi realizado no dia 08 de setembro de 2019 em
um domingo visto que este dia podemos encontrar os sujeitos em suas residências. Nos
deslocamos da parte urbana da cidade de Imperatriz-MA, até zona rural Vila Conceição cerca
de 30 km de distância. 12 foram mulheres foram entrevistadas, incialmente para se ter uma
visão geral da problemática que envolve Geografia, Gênero e Trabalho a partir das
trabalhadoras rurais e caráter inicial selecionamos 3 vozes destas entrevistas.

RESULTADOS

Os resultados foram obtidos por meio das entrevistas que foram sistematizados em
dois blocos distintos, sendo que expomos a seguir o primeiro bloco de indagações traçando
um perfil socioeconômicos das trabalhadoras rurais residentes no assentamento Vila
Conceição I, para tanto buscamos identificar a idade; quanto tempo moram no assentamento;
a procedência; escolaridade; renda mensal; profissão. Assim os questionamentos serão
sucedidas das respostas das três vozes de destaques que foram entrevistadas.
Tenho 73 anos, moro aqui muito mais que 5 anos, sou de outro lugar
rural. Escolaridade analfabeta funcional. Sou aposentada e dona de
casa, mas minha profissão era lavradora. Sobrevivo com 1 salário
mínimo. (Residente 1. Entrevista realizada no mês de setembro de
2019).

Tenho 29 anos, moro acima de 5 anos, moro aqui desde meu


nascimento. Escolaridade fundamental incompleto. Minha
escolaridade fundamental incompleto, sou dona de casa. Sobrevivo
com a renda entre 1 a 3 salários mínimo. (Residente 2. Entrevista
realizada no mês de setembro de 2019).

Minha idade 55 anos, moro a mais de cinco anos, venho de outro lugar
também da zona rural. Minha escolaridade superior completo. Sou
professora. Minha renda mensal é entre 1 a 3 salários mínimo.
(Residente 3. Entrevista realizada no mês de setembro de 2019).

Terceiro questionamento sobre se gostam de morar no assentamento ambas as três


residentes afirmaram que sim

647
Continuando com quarta questão pergunta o motivo que levaram a gostarem de
morar no assentamento em síntese das três vozes.
Gosto de morar no assentamento principalmente pelas relações
sociais; e também por o lugar ser tranquilo. (residentes rurais 1, 2,e 3).

Sobre a composição familiar o quantitativo ambos as residentes apresentam entre 4 a


6 membros familiares.
O segundo bloco de perguntas se trata das questões subjetivas (9, 10 e 11) que
abrange maiores particularidade dos sujeitos sobre o assentamento. Sobre a nona questão que
indaga sobre as atividades econômicas desenvolvidas no assentamento.
Todo mundo faz um pouco dessa questão econômica. Faz um plantio
de roça (...) aqui e acolá. A realidade veio mudando a partir da
pecuária que foi mudando essa relação. (Residente 1)
Aqui o que mais tem é trabalho no campo na roça...os que mais tem
são esses (residente 2)

Por conseguinte com a décima questão que trata se existe alguma associação voltadas
para as mulheres no assentamento. Em síntese respostas similares.
Não tem. Não existe coisa específica pra mulher, a associação é pra
todo mundo. Desconheço uma associação voltada para as mulheres
(residentes 1, 2, e 3).

E por fim a décima primeira questão que que aborda as dificuldades e as conquistas
que as mulheres encontram no assentamento.
As mulheres toda vida tiveram dificuldades, ela trabalhava na roça toda
vida com o companheiro; ela nunca teve ideia nunca teve oportunidade de
optar pra venda e não venda. Então a dificuldade que toda a vida tiveram
foi de ter a sua renda. A renda mais fácil que a mulher teve na vida foi o
coco... e assim mesmo com muita dificuldade de venda, aqui nunca teve
comprador pra vender pra fora, era difícil. Ou ela tinha uma profissão e
deixava de ser trabalhadora rural; se ela costurava pra vender aí elas tinha
um pouquinho da sua autonomia financeira. Sobre as conquistas: hoje a
maioria tem profissão fora do assentamento. (Residente 1. Entrevista
realizada no mês de setembro de 2019).

As dificuldades maior que encontram é o serviço... porque tirando os


serviço de lavrador (a)... outro não tem. Sobre conquistas: por enquanto
pro lado das mulheres nenhum... eles nunca trouxeram projetos para
induzir as mulheres a fazer alguma coisa... então eu digo que não tem.
(Residente 2. Entrevista realizada no mês de setembro de 2019).

A principal dificuldades que as mulheres enfrentam no assentamento é


a falta de conhecimento. (Residente 3. Entrevista realizada no mês de
setembro de 2019).

Relatado então as vozes desta pesquisa (mulheres residentes do meio rural) apontamos
algumas divergências em questões objetivas como: idade; escolaridades; renda; profissão. Os
resultados das entrevistas apontam para algumas perspectivas inerentes aos objetivos desta
pesquisa, por mais que a contemporaneidade nas relações de trabalho tenham se transformado

648
aos poucos, a condição e emancipação da mulher referente a sua renda mensal se acha
incipiente no meio rural relacionadas questão de serviços encontrados no assentamento
estabelece relações socioespaciais no que tange as condições das mulheres.
As questões subjetivas convergem para um mesma perspectivas, de ambas as vozes
relatadas. As impressões de gênero tem grande relevância, visto que é a partir dessa relação
que o espaço é produzido. As grandes dificuldades desta emancipação está vinculada
principalmente com a relação de trabalho, por meio da qual a mulher rural ainda se acha
deficitária no sentido de que a pouca disponibilidade de trabalho existente no meio rural é um
dos principais agentes que converge para essa relação desigual de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS (PARCIAIS)

No presente estudo, apresentamos conclusões parciais, na qual as trabalhadoras rurais


em suas relações socioespaciais com o trabalho apontam as impressões de gênero como fator
de grande relevância, visto que é a partir dessa relação que o espaço é produzido. A sociedade
por ser plural, tem-se diferenciação profundas entre mulheres e homens. As relações de
gênero perpassam as questões inerentes: a política; a divisão do trabalho; ideologia;
dominação; exploração entre outras. É de suma importância o caráter de se apropriar deste
campo de pesquisa. A construção social sobre o feminino e masculino: fundamentada nas
características biológicas de mulheres naturais transcenderam para o cultural. Por isso é de
grande relevância estudar gênero enquanto fator que produz; reproduz e que modifica o
espaço geográfico. Na qual a relação de poder se faz presente.
As grandes dificuldades desta emancipação está vinculada principalmente com a
relação de trabalho, por meio da qual a mulher rural ainda se acha deficitária no sentido que a
pouca disponibilidade de trabalho existente no meio rural é um dos principais agentes que
converge para essa relação desigual de gênero. É a partir do trabalho como prática social que
contribui-se para desnudar esta organização e estruturação entre poder e gêneros. O trabalho
deve emergir como uma forma de emancipação destas. Mas a caráter inicial tem-se
demonstrado como uma relação desigual de gênero a partir desta realidade socioeconômica
encontrado no meio rural.
Assim podemos compreender a compreender as relações entre Geografia, Gênero e
Trabalho, visto que os atores sociais masculinos e feminios constroem o espaço geográfico e é
a partir do trabalho que essas relações se materializam.

649
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Carlos R. Préfácio. In: PESSÔA, Vera Lúcia; RAMIRES, Júlio Cesar.

Geografia e pesquisa qualitativa: nas trilhas da investigação. Uberlândia: Assis,


2009.

CLAVAL, Paul. Terra dos homens: geografia. Tradução Domitilia Madureira. São
Paulo: Editora Contexto, 2010.

CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço: um conceito-chave da Geografia. In: CASTRO, Iná


Elias de. GOMES, Paulo César da C; CORRÊA, Roberto Lobato. (Organizadores).
Geografia: conceitos e temas. 2 edição. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil: 2000.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 1 ed. – 17 reimpr.


São Paulo: Atlas, 2008.

GOMES, Paulo César da. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 1996.

ROSSINI, Rosa Ester. Mulher, família e meio ambiente. In: Anais do VII Encontro
de Estudos Populacionais da ABEP, 1993, p. 15-40.

_______. Geografia e gênero a mulher na lavoura canavieira paulista. Tese de Livre


Docência apresentada na FFLCH, USP, 1998. (mimeo).

SILVA, Sérgio Gomes. Preconceito e Discriminação: as bases da violência


contra a mulher. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicologia Ciência e
Profissão, 2010, 30 (3), 556-571. Disponível em:
www.scielo.br/pdf/pcp/v23n2/v23n2a02.pdf.>. Acesso em: 04/03/2019.

650
AT 5 - Gênero, Saúde e Violência
Coordenação

Adelma Pimentel/UFPA

Ana Cleide Moreira – UFPA

Maria Eunice Guedes – UFPA

Proposta da Área temática

Esta área temática desenvolve estudos sobre as correntes interdisciplinares


que focalizam a interface gêneros, saúde e violência, delimitando como eixos
de investigação: as múltiplas formas de violência que atingem as mulheres e
afetam suas relações sociais e sua saúde. As questões ligadas a dominação,
ao sexismo e a impotência que tendem a materializar-se na legitimação da
falocracia pela sociedade, e gera níveis acentuados de violência doméstica e
sexual são problemas de pesquisa na linha; bem como os direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres.

651
O PERFIL DAS VÍTIMAS DE FEMINICÍDIO NA REGIÃO
METROPOLITANA DE BELÉM DO PARÁ A PARTIR DAS
REPORTAGENS DO CADERNO POLICIAL DO JORNAL “DIÁRIO DO
PARÁ”, NO PERÍODO DE 2006 A 2015
https://doi.org/10.29327/527231.5-44

Ana Dorotéia Santos Dias


Universidade Federal do Pará

RESUMO

No presente trabalho abordarei sobre o crime de Feminicídio a partir da análise do jornal


Diário do Pará, entre os anos de 2006 a 2015. Os estudos sobre Feminicídio destacam que
esse crime faz parte do estágio final de um histórico de violência doméstica que as mulheres
sofrem ao ponto de morrerem. Sendo assim, o objetivo é traçar o perfil das vítimas
encontradas no caderno policial do jornal e relacioná-las às estatísticas computadas pelo
Mapa da Violência, visando entender como essas mulheres amazônicas são representadas
nos discursos jornalísticos e até que ponto o jornal contribui para a perpetuação das
estruturas de opressão feminina. O recorte temporal do estudo é demarcado a partir da
implantação da Lei nº 11.340 conhecida como Lei Maria da Penha em vigor a partir do dia
22 de setembro de 2006 e a Lei n° 13.104 sancionada no dia 09 de março de 2015 que
criminaliza o Feminicídio.

Palavras-Chave: feminicídio; gênero; representação; jornais; mulheres negras;

ABSTRACT

In the present paper, we will address the crime of femicide from the analysis of the
newspaper Diário do Pará, from 2006 to 2015. Studies on femicide emphasize that this crime
is part of the final stage of a history of domestic violence that women suffer to the point of
death. Thus, the objective is to track the student profile and show statistics computed by the
Map of Violence, monitor the performance of these Amazonian women, represented in
journalistic discourses and the extent to which the newspaper studies for the perpetuation of
structures of female oppression. The temporal record of the study is marked by the
implementation of Law Nº 11,340 known as the Maria da Penha Law in force from
September 22 in 2006 and Law Nº. 13,104 sanctioned on March 9 in 2015 that criminalizes
Feminicide.

Keywords: feminicide; gender; representation; newspaper; black women

652
INTRODUÇÃO
O assassinato de mulheres no Brasil tem uma característica específica categorizada
como Feminicídio Íntimo, o maior contingente de vítimas tem a vida ceifada por parceiros ou ex-
companheiros. São mulheres invisibilizadas, mortas tragicamente, espancadas, mutiladas,
violentadas cruelmente, negligenciadas pelo Estado e Instituições públicas. São mortes
1
silenciadas por uma sociedade alicerçada no patriarcado , dentro de uma construção

cultural na qual as vidas protegidas pelo Estado e pela sociedade seguem padrões
hierárquicos de poder. Nesse contexto, os assassinatos de mulheres, o genocídio da
população negra e a morte de pessoas LGBTI em função de crimes homofóbicos,
correspondem ao contingente de mortes menos valorizadas nessa hierarquia.
Os estudos sobre o Feminicídio destacam que esse crime, na maioria dos casos, é o
estágio final do histórico de violência doméstica, isso significa dizer que ―Feminicídio é uma
palavra nova, criada para falar de algo que é persistente e, ao mesmo tempo, terrível: que as
2
mulheres sofrem violência ao ponto de morrerem‖ . Assim, as mortes de mulheres no Brasil

podem ser consideradas desfechos evitáveis, tendo em vista a omissão das Instituições Públicas
responsáveis por coibir a violência contra a mulher e a naturalização do crime pela sociedade.
Nesse cenário, emerge a importância de nomear o Feminicídio e chamar atenção para a
necessidade de conhecer sua dimensão e contextos de forma mais acurada, além de
desnaturalizar concepções e práticas enraizadas nas relações pessoais e instituições que
3
corroboram a permanência da violência fatal contra as mulheres em diferentes realidades .

O estudo propõe identificar, coletar e analisar as reportagens de assassinatos de


mulheres, publicados em um dos jornais impressos de maior circulação na Região
Metropolitana de Belém, o ―Diário do Pará‖, no período de 2006 a 2015, tempo justificado
pela implantação da Lei nº 11.340 conhecida como Lei Maria da Penha em vigor a partir do
dia 22 de setembro de 2006 e a Lei nº 13.104 sancionada no dia 09 de março de 2015, que
4
criminaliza o Feminicídio (circunstância qualificadora do crime de homicídio) .
1
O patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais
simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de ―dominação masculina‖ ou de
opressão das mulheres. Essas expressões, contemporâneas dos anos 70, referem-se ao mesmo
objeto, designado na época precedente pelas expressões ―subordinação‖ ou ―sujeição‖ das mulheres,
ou ainda ―condição feminina‖. DELPHY, Christine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, H. et al (org.).
Dicionário Crítico do Feminismo. Editora UNESP: São Paulo, 2009, p. 173–178.
2 Debora Diniz, antropóloga, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e
pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. In: P.52. Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher.
Câmara dos Deputados 55ª Legislatura – 4ª Sessão Legislativa. Mapa da Violência contra a mulher.
Brasília, 2018.
3 Feminicídio: Invisibilidade Mata/ Organização: Débora Prado, Marisa Sanematsu; Ilustração Lígia
Wang; editor: Fundação Rosa Luxemburgo. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão, 2017.
4
BRASIL. Lei Nº 13.104, de 9 de Março de 2015. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm> Acesso em: 09 nov.
2018.

653
No percurso metodológico utilizado optou-se por verificar os cadernos policiais do
periódico publicados nos doze meses de cada ano, durante os 10 anos nos quais a pesquisa
se propõe analisar (2006-2015). Foram coletadas 388 reportagens do jornal ―Diário do Pará‖
retratando casos de Feminicídio na Região Metropolitana de Belém, não sendo levados em
consideração as tentativas de assassinato, as graves agressões e os casos de Feminicídio
referentes as outras Regiões do Estado do Pará. Os jornais estavam disponíveis para
consulta no acervo de periódicos da Biblioteca Arthur Vianna pertencentes à Fundação
Cultural do Estado do Pará.
O artigo trabalha com a hipótese de que o jornalismo popular auxilia na perpetuação
do discurso de dominação masculina e que essas narrativas corroboram para
desumanização das vítimas do crime de Feminicídio, não contribuindo de modo didático à
problematização desse tema controverso e de saúde pública, pois categoriza tais fatos como
crimes passionais ou como atos isolados. .

PERFIS DAS VÍTIMAS DE FEMINICÍDIO NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELÉM DO


PARÁ
O objetivo desse tópico é demonstrar o perfil das vítimas encontradas nas
reportagens do Diário do Pará e relacionar com as estatísticas computadas pelo Mapa de
violência do Brasil, visando entender como as mulheres amazônicas são representadas nos
discursos jornalísticos e até que ponto o jornal contribui para a perpetuação das estruturas
de opressão feminina.

A pesquisa dos perfis das vítimas de Feminicídio na Região Metropolitana de Belém,


que tiveram veiculação pelo jornal Diário do Pará, ocorreu com a separação de recortes
característicos desses crimes, baseados no livro Feminicídio: Invisibilidade Mata do Instituto
Patrícia Galvão e de dados estatísticos observados nos relatórios de violência contra a
5
mulher , assim, o enfoque desses dados foi direcionado para: o local do crime (casa ou via

pública), o tipo de relacionamento da vítima com o assassino (familiar, namorado/marido,


desconhecido ou ex parceiro), se houve testemunhas (familiares, filhos, vizinhos ou
transeuntes), o tipo de arma utilizada (arma branca, arma de fogo ou outros instrumentos), a
justificativa do crime pelo jornal (―ciúmes‖, ―não aceitava o fim do relacionamento‖, tráfico de
6
drogas, execução ou crueldade) e o bairro da vítima . Nesse contexto, também foram

observados, a partir das reproduções fotográficas do jornal, se a vítima e o assassino eram

5 Machado, MRA. (Coord). et al. A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no
Brasil. Governo Federal. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário; 2015.
6 Essas categorias serão especificadas, analisadas e explicadas a seguir.

654
brancos, não brancos ou negros, considerando um julgamento baseado em conceitos
7
como colorismo .

Tabela 01: Os perfis dos casos de Feminicídio (2006-2015)


Bairros
Local Assassino Testemu- Arma do Crime Justificati- Destaca-
nhas va dos
Casa Namorado 49 Família 13 Arma Branca 109 Ciúme 34 Ananin-
198 Marido 63 deua
96
Via Ex parceiro Filhos Arma de fogo Não Marituba
Pública 132 42 195 aceitava a 27
162 separação
43
Outros Desconhecido Vizinhos Estrangulamento Tráfico 55 Icoaraci
28 144 49 20 22
Total Transeuntes Lesões/espancamento Execução Castanhal
388 93 25 50 18
Pauladas 31 Crueldade Cabana-
149 gem
15
Latrocínio
21
Fonte: Jornal Diário do Pará. Disponível na Biblioteca Arthur Vianna.

Diante da tabela é possível afirmar que durante os 10 anos de reportagens


analisados, os perfis do crime de Feminicídio são parecidos, a maior parte deles cometidos
por pessoas do círculo social da vítima, em um total de 244 perpetrados por parceiros ou ex
parceiros (namorado 49, marido 63 e ex 132), no ambiente familiar, em muitos casos tendo
os filhos e familiares como testemunha, acontecendo majoritariamente em bairros periféricos
da Região Metropolitana de Belém, submetendo a mulher a extremo sofrimento e
degradação. Nos anos de 2006, 2007 e 2008 notou-se quantidades relativamente parecidas
de veiculação desses assassinatos, foram 26, 19 e 27 casos respectivamente publicados, de
2009 a 2013 a média de casos publicados foi em torno de 40 reportagens, sem considerar
as continuações de reportagens, em 2014 e 2015 ocorreu uma média de 50 casos
veiculados.
A partir disso, os perfis dos casos de Feminicídio encontrados nas reportagens do Diário
do Pará, serão analisados objetivando dar ênfase para algumas das características marcantes
do crime, as quais podem elucidar conclusões sobre as representações femininas

7 Conceito que será explicado no tópico ―Vidas negras Importam‖.

655
nos periódicos, propondo reflexões a respeito das relações encontradas nesses discursos e
destacando os agentes sociais envolvidos.
Figura 1 - Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―Homem ―despacha‖ a namorada para o
cemitério‖.

Fonte: Jornal Diário do Pará. Belém, 25 de julho de 2013. p.5.

A narrativa, no título da Figura 1, faz referência a história de Asmina Batista de


Oliveira, 19 anos, morta pelo ex namorado em julho de 2013. O jornal primeiro afirma ―uma
discussão entre um casal de namorados acaba em morte‖, depois continua ―a estudante
discutia com um suposto namorado‖, segundo as testemunhas, ―primeiro ele xingou ela,
depois ela jogou uma pedra nele e em seguida, ele sacou um revólver e efetuou três
8
disparos no peito dela‖ . A narrativa em questão recorre a esse título com o intuito de obter

atenção a notícia, é um recurso compreendido dentro da esfera sensacionalista que busca


diminuir a gravidade da morte e ridicularizar o crime, ―despachar‖ é um termo presente no
vocabulário paraense que faz alusão, em muitos casos, ao término de namoro.

8 Diário do Pará. Belém, 29 de julho de 2013. p.5.

656
Nesse contexto, emerge o debate sobre o uso da arma de fogo em crimes contra
mulheres em Belém, tendo em vista que 195 dos casos encontrados foram executados com
a arma de fogo, considerando que estes dividem-se estatisticamente entre crimes
protagonizados por parceiros ou ex-parceiros íntimos das vítimas, tráfico de drogas, casos
de execução, latrocínio e crueldade. Ainda que o maior número de mortes veiculadas no
jornal tenha ocorrido com armas de fogo, os números de mortes masculinas envolvendo o
mesmo instrumento é maior na realidade brasileira ocupando 73,2% dos casos enquanto
9
para mulheres são 48,8% .

Diante disso, outro debate pertinente pode ser apontado a partir dos dados envolvendo
arma de fogo nas reportagens, considerando que ―somente em 2015, no Brasil, 41.817 pessoas
sofreram homicídio em decorrência do uso das armas de fogo, o que correspondeu a 71,9% do
10
total de casos‖ , observa-se um cenário delicado, os Feminicídios por arma de fogo

encontrados no jornal (excluindo os que não foram executados por pessoas do círculo social da
vítima) referem-se a mortes por tráfico de drogas e execuções, essas mortes são resultados de
dívidas com o tráfico, por denúncias contra traficantes da localidade, por disputas de áreas
dessa comercialização ilegal, por vingança a algum parente da família com envolvimento no
varejo das drogas (alguns desses casos ocorrem com as mães dos traficantes) e por violência
direta contra a comunidade (quando algum traficante busca impor autoridade no local), esses
dados não foram elencados na tabela dos perfis, mas foram retirados dos discursos jornalísticos
do Diário do Pará.

Uma das grandes problemáticas em relação a estes casos é a distorção que ocorre
na veiculação dessas notícias, no caso de usuárias de drogas percebe-se em grande parte
das narrativas nota-se insensibilidade e até mesmo espetacularização dos assassinatos,
subtende-se nas reportagens que se a vítima não tivesse problemas com entorpecentes,
fosse uma ―cidadã de bem‖ o desfecho letal não aconteceria. Como ocorreu no caso de
Mariely Silva Miranda de 33 anos onde o jornal intitula ―Mulher perde a vida para as
11
drogas‖ , nesse contexto o jornal não discute a temática das drogas como problema

social, estrutural e de saúde pública, como também não ocorre nos casos de Feminicídio.

9 WAISELFISZ, Jacobo Julio. op. cit. p.39.


10 CERQUEIRA, Daniel. (Coord). et. al. Atlas da Violência 2017. Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. IPEA/ FBSP. Rio de Janeiro, jun. 2017. p. 45.
11 Diário do Pará. Belém, 01 de janeiro de 2012. p.3.

657
Figura 2: Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―Mulher perde a vida para as drogas‖.

Fonte: Jornal Diário do Pará. Belém, 01 de abril de 2012. p.3.

A espetacularização emerge quando em sua narrativa o jornal busca atrair o leitor


com o emocional, no caso de Mariely destacando a fala de seu irmão ―abraçado do corpo da
irmã, lamentava sua morte ―Eu te disse para sair dessa vida e você não me ouviu. Agora
12
estamos chorando e o que vai ser dos teus cinco filhos‖, disse Fabrício Miranda.‖ O
problema não encontra-se somente na forma como o jornal veicula as notícias ―Mulher é
13 14
massacrada a tiros na porta de casa‖ , ―Mulher é eliminada com três tiros‖.
A reflexão que deve-se fazer é que essas mulheres não foram mortas porque buscaram
esse desfecho, por serem dependentes químicas ou terem tido envolvimento com o tráfico de
drogas, elas morreram vítimas das estruturas políticas/sociais permeadas na realidade brasileira,
estruturas fundamentadas nas condições de classe, a institucionalização da droga em áreas de
periferia, o desemprego, a misoginia, as desigualdades de gênero em um mercado que emprega
menos mulheres do que homens e onde a mulher recebe menos

Ibidem. 01 de abril de 2012. p.3.


Ibidem. Belém, 07 de julho de 2014. p.3
Ibidem. Belém, 15 de julho de 2014. p.2

658
exercendo a mesma função de homens, e, por fim, racismo pois a maior parte das pessoas
que vivem na periferia são pessoas negras.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 78,5% da


população mais pobre no Brasil são negros (pretos ou pardos), inversamente a 20,8% de
pessoas brancas na mesma condição. Sendo 53,6% da população brasileira, pessoas
negras, também são maioria nos dados de encarceramento, 726.712 pessoas encarceradas
15
no Brasil em 2017, mais da metade era jovens de 18 a 29 anos e 64% eram negros ,e
nos casos de assassinato onde a cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras, segundo
os dados o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum de Segurança
16
Pública .

“O AMOR COM A CORDA NO PESCOÇO”

Nesse tópico serão tratados os casos de Feminicídio nos quais foram usadas armas
brancas como faca, terçados, martelos, pedaços de pau e a força física dos algozes no que
tange os assassinatos por asfixia, estrangulamento, lesões/espancamento. Esses casos
foram divididos com o objetivo de destacar o nível de brutalidade exercida pelo assassino
contra a vítima, isso não implica dizer que os outros desfechos letais não sejam
considerados cruéis, mas a categoria crueldade foi utilizada na pesquisa quando o jornal
não aponta uma justificativa para o crime e o mesmo ocorreu com as características de
perversidade comuns ao crime em questão.

17
―O amor com a corda no pescoço‖ retrata a morte de Cilene Pinheiro dos Anjos,
35 anos, desfecho de uma relação conturbada com o marido, ela foi asfixiada até a morte
por seu marido Sandro Melo Carneiro de 32 anos, que após o ato tentou simular suicídio
18
amarrando a vítima pelo pescoço com uma corda no telhado. ―A afiada lâmina do amor‖
noticia a morte de Maria Núbia Faria, 29 anos, assassinada com golpes de faca pelo marido,
segundo o jornal, desfecho do relacionamento de 5 anos permeados por agressões.

15
IBGE Mostra Cores da Desigualdade. Agência IBGE 2018. Disponível em: <
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-denoticias/noticias/21206-ibge-
mostra-as-cores-da-desigualdade > Acesso em: 14 jun 2019.
16 CERQUEIRA, Daniel. (Coord). et. al. Atlas da Violência 2017. Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. IPEA/ FBSP. Rio de Janeiro, jun. 2017.
Diário do Pará. 03 de junho de 2006. p. 4 e 5.
Ibidem. 21/ de janeiro de 2006. p. 4 e 5.

659
Figura 3: Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―A afiada lâmina do amor‖.

Fonte: Jornal Diário do Pará. Belém, 21 de janeiro de 2006. p. 4 e 5.

Os estudos publicados pelo Ministério da Justiça ―A violência doméstica fatal: o


19
problema do feminicídio íntimo no Brasil” , assim como o Mapa da violência de 2015,
evidenciam que os Feminicídios Íntimos na maioria dos casos ocorre com objetos cortantes,
20
na pesquisa foram identificados 109 assassinatos utilizando facas/terçados , 20 mortes
por estrangulamento/asfixia, 25 por lesões/espancamento e 31 por pauladas, além dos
números de casos serem altos, a maioria deles trata-se de casos perpetrados por parceiros
ou ex-parceiros das vítimas.
Os crimes acontecem, na grande maioria dos casos, sem a vítima conseguir se
defender, fugir, ou pedir socorro, são episódios de intenso ódio desferido pelo algoz.

MACHADO, MRA. (Coord). et al. A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no
Brasil. Governo Federal. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário; 2015.
20 É uma variante do sabre com lâmina reta ou ligeiramente curva, de ponta aguçada, usada
tanto para cortar como para perfurar, popularmente conhecida em Belém do Pará.

660
Percebe-se através das narrativas que os assassinos continuam ferindo-as mesmo depois
de mortas, as características reveladas pelos estudos desse crime demonstram que os
locais das lesões e o uso de extrema violência são comuns, as vítimas costumam ser
gravemente feridas nas regiões da cabeça, rosto, pescoço, e nos locais que identificam a
anatomia feminina como seios, ventre e vagina, buscando submeter a mulher a intenso
21
sofrimento . Nesses crimes o caráter misógino fica evidente, o assassino não se contenta

com a morte, ele expurga todo o ódio contra a vítima, conta a mulher, em muitos casos das
reportagens foi observado que as vítimas tiveram seu rosto desfigurado com a intensidade
dos golpes desferidos pelos assassinos.
Nesse contexto, a grande maioria dos casos encontrados no Diário do Pará cumpre
22
essa característica de barbaridade, ―Mulher é assassinada com 12 facadas‖ , ―Jovem
23 24
morre com 20 facadas‖ , ―Amarrada e morta com 9 facadas‖ , ―Matou a mulher com
25 26
terçado na frente dos filhos‖ , ―Namoro termina com gritos, facadas e morte‖ , ―36
27 28
facadas‖ , ―10 facadas no pescoço‖ .
A partir destes casos, pode-se enfatizar o primeiro caso de Feminicídio do estado do
Pará, após a instauração da Lei do Feminicídio, ocorrido em 20 de abril de 2015. Ingred
Cássia Israel, 28 anos, foi assassinada por seu personal trainer, com quem tinha
envolvimento afetivo/sexual, o algoz desferiu contra Ingred, 20 facadas, segundo o jornal ele
29
também utilizou uma tesoura. A vítima foi encontrada sem roupa no chão de seu quarto .

Figura 4: Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―Universitária é assassinada com 20


facadas‖.

21 Feminicídio: Invisibilidade Mata/ Organização: Débora Prado, Marisa Sanematsu; Ilustração Lígia
Wang; editor: Fundação Rosa Luxemburgo. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão, 2017. p. 38.
Diário do Pará. Belém, 03 de maio de 2012. p.2.
Ibidem. Belém, 06 de junho de 2012. Capa.
Ibidem. Belém, 30 de julho de 2012. p.7.
Ibidem. Belém, 20 de setembro de 2012. p. 9.
Ibidem. Belém, 26 de setembro de 2012. Capa.
27
Ibidem. Belém, 08 de dezembro de 2015.
28
Ibidem. Belém, 23 de setembro de 2015.
Diário do Pará. Belém, 21 de abril de 2015. p. 6 e 7.

661
Fonte: Jornal Diário do Pará. Belém, 21 de abril de 2015. p. 6 e 7.

O local do crime é outro padrão evidente dentro dos crimes de Feminicídio Íntimo,
comprovado também nas reportagens jornalísticas do Diário do Pará, diante dos 388
assassinatos veiculados, 198 foram cometidos em casa, 42 deles sendo testemunhados
pelos filhos, contexto que sinaliza essas mortes dentro do ambiente familiar, considerando
que 244 desses casos foi protagonizado por namorados, maridos ou ex companheiros.
Nesse sentido, pode-se entender que as mulheres estão inseguras em todos os ambientes
que convivem, as reportagens desses crimes, muitas vezes, fazem alusão ao amor, mas
não existe lógica entre esses excessos de ódio, menosprezo contra a mulher e o sentimento
de afetividade, o que deve ser destacado nessas reportagens é a capacidade de ferir, a má
formação da masculinidade desses algozes, o jornal deve promover o combate e
30
conscientização a respeito do crime .

―No caso do feminicídio cometido por parceiros ou ex, muitas vezes eles
matam a mulher em casa, no bairro ou no trabalho, na frente de outras
pessoas. São comuns os casos em que o autor não faz questão de ocultar o
crime de testemunhas, o que significa que exibir aquilo reforça sua
masculinidade, ele se sente autorizado pela sociedade a ter controle de vida
e morte sobre a mulher‖ , exemplifica Andrea Brochier Machado, perita
criminal do Instituto Geral de Perícias do governo do Rio Grande do Sul.
(PRADO; SANEMATSU, 2017, p. 56)

30 Feminicídio: Invisibilidade Mata/ Organização: Débora Prado, Marisa Sanematsu; Ilustração Lígia
Wang; editor: Fundação Rosa Luxemburgo. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão, 2017. p. 52.

662
A masculinidade é, nesse cenário, observada como fator primordial para a
permanência dos assassinatos de mulheres, existe uma formação cultural na sociedade que
em grande medida ainda naturaliza, tolera e legitima os excessos de violência expressos
quando o homem ceifa a vida de sua companheira por razões envolvendo ciúme, traição, fim
do relacionamento. Nesse sentido, a sociedade tende a compreender que a vítima é
culpada, como já apontando na pesquisa, esses Feminicídios lidos pelo judiciário como
―passionais‖ eram compreendidos como razoáveis, por terem acontecido em razão da honra
masculina.
Segundo a promotora Mariana Seifer Bazzo, nos casos de Feminicídio, fazem parte
do discurso popular a busca por respostas do crime nas ações tomadas pela vítima, e não
pelo autor do assassinato, existe uma afirmação implícita de que a mulher fez por ―merecer‖
31
a violência , buscou tal desfecho, talvez se ela tivesse seguido os padrões de

comportamento correto ainda estivesse viva, fato que não aconteceria, a problemática
encontra-se nas estruturas sociais impostas à formação de feminilidade e masculinidade. O
fato da mulher adquirir autonomia, não obedecer os padrões comportamentais jamais
justificará a violência da qual é vítima, se a violência contra mulher não fosse banalizada e
tolerada pela sociedade brasileira, nem negligenciada pelas instituições do Estado
responsáveis por esses crimes, muitas dessas mortes seriam evitadas, pois sabe-se que o
Feminicídio é a última fase de relacionamentos permeados pela violência em sua grande
32
maioria.

REQUINTES DE CRUELDADE

Nesse artigo a ―crueldade‖ é um termo utilizado para auxiliar a análise quantitativa,


com isso não pretende-se elencar o nível de barbaridade de cada crime, busca-se computar
os Feminicídios Íntimos e não-íntimos nos quais foi possível observar o ódio ao gênero e
quando o jornal não sugeriu uma justificativa durante a narrativa. Entram nesses casos
mortes nas quais as vítimas receberam golpes a ponto de desfigurar o rosto, sofreram
violência sexual, quando envolveu-se por uma noite com algum homem e teve sua vida
tirada, mortas com muitos tiros, diversas facadas. Nota-se nesses casos que o desfecho
poderia ser de menor intensidade, porém como o ódio ao gênero é um elemento presente
nesses crimes, pôde-se notar a crueldade mesmo quando o algoz não conhece a vítima.

São os casos de Feminicídio nos quais não foi possível identificar o assassino,
geralmente essas notícias apontavam requintes de crueldade e violência sexual. Como
exemplo desses casos foram escolhidos duas mulheres conhecidas pelos moradores da

Idem. p. 52.
Ibidem. p. 58.

663
localidade como ―Morena‖, os crimes aconteceram em Ananindeua, um aconteceu em
33 34
2013 e o outro em 2014 . A primeira ―Morena‖ era garota de programa, sem mais
identificações o jornal aponta a idade dela entre 25 e 30 anos, ―ela foi encontrada com a
35
cabeça enterrada na vala‖ , com marcas de luta corporal, a imagem que acompanha a
reportagem é chocante, demonstrando barbárie por parte do algoz.
Figura 5: Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―Garota de programa é morta com a
cabeça na vala‖.

Fonte: Jornal Diário do Pará. Belém, 02 de janeiro de 2013. p. 5.

36
A segunda ―Morena‖ foi ―torturada, assassinada e desovada em terreno baldio‖ ,

com aparentes 30 anos, sem mais identificações, ela foi encontrada ―torturada, amarrada
com arames, cordas, fitas adesivas e colocada dentro de sacos também fechados‖, a polícia
não teve pistas para encontrar o assassino em ambos os casos. A imagem que acompanha
a reportagem do assassinato de 2014 também é muito explícita e causa desconforto, em
ambos os casos a crueldade é evidenciada.

Diário do Pará. Belém, 02 de janeiro de 2013. p. 5.


Ibidem. Belém, 14 de outubro de 2014. p. 3 e 4.
Ibidem. Belém, 02 de janeiro de 2013. p. 5
Ibidem. Belém, 14 de outubro de 2014. p. 3 e 4.

664
Figura 6: Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―Mulher é torturada e morta com golpes na
cabeça‖.

Fonte: Diário do Pará. Belém, 14 de outubro de 2014. p. 3.

Os contextos nos quais os Feminicídios ocorrem são absurdamente plurais, eles


podem acontecer no âmbito privado ou público, em diversas circunstâncias e contextos, o
menosprezo em relação ao gênero feminino é a base para ocorrência desses fatos, segundo
37
a ONU mulheres são assassinatos marcados pelos requintes de crueldade, sempre
submetendo a mulher a grande sofrimento mental e físico, com a presença de tortura,
alvejando as regiões do corpo associadas ao feminino, como aconteceu com as mulheres
38
acima citadas.

VIDAS NEGRAS IMPORTAM

Tabela 02: Perfis das Vítimas e Assassinos (2006-2015)


Negra (o) Branca(o) Não Branca (o) Sem
Identificação
Vítimas 64 36 104 184
Assassinos 37 9 44 291
Fonte: Jornal Diário do Pará. Disponível na Biblioteca Arthur Vianna.
37
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Diretrizes Nacionais do Feminicídio para
Investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Brasília-
DF: ONU Mulheres Brasil. 2016.
38 Feminicídio: Invisibilidade Mata. op. cit. p. 52.

665
Interpreta-se a partir da tabela que nas reportagens nas quais puderam ser
observadas a cor das vítimas e assassinos, existe uma significativa discrepância entre
pessoas brancas e pessoas negras/não brancas. A quantidade de pessoas brancas
envolvidas nesses crimes (onde as vítimas estavam expostas) é igual a 45 casos, enquanto
que o número de pessoas negras/não brancas é de 249, envolvendo nesse cálculo as
vítimas e algozes. A identidade racial dos algozes foi verificada quando o jornal
disponibilizava fotografias deles, geralmente quando eram capturados pela polícia ou nos
casos que eles cometiam suicídio após matar a vítima. A categoria ―não branca‖ e ―não
branco‖ surge nessa pesquisa para se referir a pessoas negras de pele clara, metodologia
adotada ao perceber que em muitos casos os corpos expostos eram negros, porém não
retintos, por isso faz-se necessário explicar o colorismo como quesito de análise, essa
metodologia só foi possível em razão das imagens coletadas do ano de 2006 a 2015, com
39
vítimas e assassinatos expostos, serem coloridas no periódico.

O conceito de colorismo foi cunhado pela primeira vez na década de 80 por Alice
40
Walker no contexto norte-americano, a partir disso adaptado por algumas autoras ao
41
cenário brasileiro, a teórica Lélia Gonzalez suscita reflexões a respeito desse conceito
que está atrelado tanto a discriminações como a privilégios. O colorismo torna-se eminente
a partir do contexto de mestiçagem da população brasileira, ele situa-se nas relações sociais
determinando os níveis de violência, oportunidades, ou nos casos de Feminicídio o direito à
vida, baseados no tom de pele, quanto mais escura for a pele, mais vulnerável poderá estar
sua qualidade de vida. Evidentemente esse conceito não torna estáticas as dinâmicas
sociais, assim, excluindo as exceções dessa análise, essa perspectiva corrobora com as
estatísticas, principalmente ao enfocar as mulheres negras, entendendo aqui que as
mulheres ―não brancas‖ são também mulheres negras só que de pele clara.
Nesse contexto Giovana Nascimento conceitua, a partir de autoras norte-americanas,
o colorismo como ―o sistema de segregação intrarracial baseado na tonalidade da pele,
trazendo como consequência a ―pigmentocracia‖. Ou seja, o privilégio da pele clara (light
A categoria de análise definindo a identidade racial das vítimas e dos assassinos (não brancas e não
brancos) não estava definida pelo jornal Diário do Pará, foi um critério meu, por achar essa definição
coerente com a análise, a partir de Giovana Xavier da Conceição Nascimento em seu artigo ―Os
perigos dos Negros Brancos: Cultura Mulata, classe e beleza eugência no pós-emancipação (EUA,
199-1920)‖. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 35, nº 69, p.155-176, 2015.
Alice Malsenior Walker (Condado_de_Putnam_(Geórgia), 9 de fevereiro de 1944) é uma escritora
estado-unidense e ativista feminista. Romancista, contista, poetisa, ensaísta, feminista e ativista. Em
1983, aos 39 anos de idade, ganhou o Prêmio Pulitzer pelo aclamado romance A Cor Púrpura.
Disponível em: <https://www.geledes.org.br/hoje-na-historia-9-de-fevereiro-de-1944-nascia-alice-
walker/> acesso em: 14 jun de 2019.
Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial denunciando que o sistema
escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e
sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Disponível em: <
https://revistacult.uol.com.br/home/colorismo-e-o-mito-da-democracia-racial/> acesso em: 14 jun de
2019.

666
42
skin) em relação à escura (dark skin) no tocante às oportunidades de mobilidade social‖ .
Gonzalez aponta que os privilégios associados aos negros de pele clara no Brasil,
estabelecendo hierarquias baseadas no colorismo, advém do período da escravização,
seguido pelas teorias eugenistas em 1883 que propagavam a miscigenação como a causa
da degeneração racial e social, destacando que as capacidades humanas estavam ligadas a
hereditariedade, perpassa a imagem negativa da mestiçagem propagada desde a década de
43
1930, alcançando o mito da democracia racial brasileira.
Esse processo é diretamente influenciado pelas políticas eugênicas e pelos
valores da supremacia branca, que estimularam o colorismo negro, um
sistema de hierarquização dos sujeitos com base na cor mais clara ou
escura.‖ (NASCIMENTO, 2015, p. 157)

Nesse sentido, o uso do colorismo para apontar a diferenciação entre as mulheres


brancas e negras foi uma estratégia para dar visibilidade à realidade que as mulheres
negras estão submetidas, entendendo que ao tratar de Feminicídio mulheres negras de pele
clara ou escura são as maiores vítima, embora quanto mais escura a pele maior seja a
vulnerabilidade da mulher. Segundo o Instituto Patrícia Galvão as mulheres negras são
58,86% das mulheres vítimas de violência doméstica (Balanço do Ligue 180 – Central de
Atendimento à Mulher/2015), 53,6% das vítimas de mortalidade materna (SIM/Ministério da
Saúde/2015), 65,9% das vítimas de violência obstétrica (Cadernos de Saúde Pública
30/2014/Fiocruz), 68,8% das mulheres mortas por agressão (Diagnóstico dos Homicídios no
Brasil – Ministério da Justiça/2015), tem duas vezes mais chances de serem assassinadas
que as mulheres brancas (Taxa de homicídios por agressão: 3,2/100 mil entre as brancas e
7,2/100 mil entre as negras (Diagnóstico dos homicídios no Brasil. Ministério da
44
Justiça/2015) .

O Feminicídio é um fenômeno presente em todos os âmbitos sociais podendo


acometer todas as mulheres independentemente de sua raça, etnia, sexualidade, posição
socioeconômica, e ser executado por todos os homens considerando os mesmos
marcadores acima citados, no entanto, o recorte racial observado nas reportagens reafirma
que pessoas negras e não brancas estão mais envolvidas nestes casos do que pessoas
brancas. Como afirmam pesquisas sobre o tema, a desigualdade de gênero é um fenômeno
perversamente social e democrático, violenta todas as mulheres, mas as vulnerabilidades

42 NASCIMENTO, Giovana Xavier da Conceição. Os perigos dos Negros Brancos: Cultura Mulata,
classe e beleza eugência no pós-emancipação (EUA, 199-1920). Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 35, nº 69, p.155-176, 2015.
43
GONZALEZ, Lélia. Colorismo e o Mito da Democracia Racial. Disponível em:
<https://revistacult.uol.com.br/home/colorismo-e-o-mito-da-democracia-racial/> Acesso em: 14 jun.
2019.
44 Feminicídio: Invisibilidade Mata. op. cit. p. 39.

667
não são as mesmas para todas, os riscos e a incidência são maiores a depender de
45
categorias sociais ou identitárias .

Nesse sentido, somente o movimento de interseccionalição consegue aprofundar as


diversas realidades presentes tanto nas relações sociais, como na mentalidade que fomenta
a realidade da violência de gênero no Brasil. Assim, ao interseccionar o debate sobre
Feminicídio, destaca-se que é imprescindível romper o silêncio dessa realidade, é
necessário mostrar que a vida de pessoas negras importa, sobretudo a de mulheres negras,
entendidas como a antítese da branquitude e da masculinidade, como afirma a
pesquisadora Grada Kilomba, ―por não serem nem brancas, nem homens, as mulheres
negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade supremacista branca. [...] ocupamos
46
uma carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de ambos. ‖

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudar o Feminicídio das mulheres amazônicas e suas representações por meio do


jornal Diário do Pará, permite afirmar que a morte de mulheres desencadeadas pelo ódio ao
gênero trata-se de uma problemática social, fundamentada em um contexto histórico
marcado por relações assimétricas de poder – patriarcado - nos quais os homens são
favorecidos. Os assassinatos de mulheres não são fatos isolados, existem no mundo todo, e
são derivados da formação social das masculinidades e feminilidades baseadas em papéis
de gênero, resultantes da supremacia racial, étnica, econômica e sexual.

Nesse sentido, compreende-se que as representações jornalísticas dos assassinatos


de mulheres reflete esse cenário, entendendo o discurso/ representação como associados
às estruturas dominantes, pautadas no machismo, racismo, nas influências políticas,
garantindo a supremacia de uma classe detentora de poder, o Feminicídio em si também é
resultado dessa dominação, logo, o jornal Diário do Pará contribui de modo efetivo para a
permanência dos discursos de dominação masculina e desumanização das vítimas desse
crime.

Diante disso, essa pesquisa busca elucidar que as discussões a respeito da violência
de gênero e dos assassinatos de mulheres, envolvem definidos recordes sociais que
subalternizam grande parte da população brasileira, envolvendo diretamente o contexto
amazônico, refletindo nas representações encontradas do tema na Região Metropolitana de

45 Feminicídio: Invisibilidade Mata. op. cit. p. 60.


46 RIBEIRO, Djamila. Apud KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism.
Munster: Unrat Verlag, 2012. p. 56.

668
Belém do Pará. Dar visibilidade ao tema suscita um movimento político, ideológico
e epistemológico que poderá promover reverberação social.

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670
MULHERES EM SITUAÇÃO DE RUA: o perfil das mulheres acolhidas no Abrigo João
de Deus - Belém – PA
Adriana Clícia Ferreira
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-45 Ramos 2 3

RESUMO: Este artigo objetivou caracterizar o perfil das mulheres em situação de rua
acolhidas no Abrigo João de Deus. Realizou-se análise documental em 08 prontuários
referentes ao período de janeiro a agosto de 2019. O estudo teve abordagem quantitativa, a
partir das seguintes variáveis: faixa etária; escolaridade; uso de álcool e outras drogas,
motivos que levaram a situação de rua, tempo de institucionalização e vinculo familiar. A
análise dos dados apontou que 63% das mulheres acolhidas são idosas, 62% não são
alfabetizadas, 62% faziam uso de álcool e outras drogas, o conflito familiar com 50% dos
motivos que levaram a situação de rua, 50% estão a mais de cinco anos institucionalizadas
e 63% não possui vínculo familiar. Verificou-se que os conflitos familiares aparecem com o
principal motivo das mulheres terem vivenciado situação de rua, seguido de algum tipo
transtorno mental.

Palavras-chave: Mulheres. Situação de Rua. Acolhimento Institutional. Política Pública.

ABSTRACT: This article aimed to characterize the profile of homeless women in the João
de Deus Shelter. Documentary analysis was performed in 08 medical records from January
to August 2019. The study had a quantitative approach, based on the following variables:
age group; schooling; use of alcohol and other drugs, reasons that led to homelessness, time
of institutionalization and family ties. The analysis of the data showed that 63% of the women
received are elderly, 62% are not literate, 62% used alcohol and other drugs, family conflict
with 50% of the reasons that led to homelessness, 50% are more five-year institutionalized
and 63% have no family relationship. It was found that family conflicts appear with the main
reason women experienced homelessness, followed by some kind of mental disorder.

KEYWORDS: Women. Street situation. Institutional welcome. Public policy.

1 Assistente Social pela Universidade Federal do Pará - UFPA, Especialista em Gestão e Planejamento
de Políticas Públicas e Serviço Social pela Escola Superior da Amazônia - ESAMAZ. E-mail:
adrianacliciaas@gmail.com
Assistente Social pela Universidade Federal do Pará - UFPA, Especialista em Gestão e Planejamento de
Políticas Públicas e Serviço Social pela Escola Superior da Amazônia – ESAMAZ. E-mail:
jessica.ssufpa@gmail.com
Assistente Social pela Faculdade Pan Amazônica – FAPAN. E-mail: gorethsantos33@hotmail.com

671
1 INTRODUÇÃO

A existência de pessoas vivendo em situação de rua é uma das expressões da


―questão social‖ presentes, principalmente nas grandes capitais do Brasil, o que reflete a
desigualdade e indiferença resultantes do modo de produção capitalista, que excluí parcela
considerável da população, violando direitos básicos, como moradia (CF/88).
„‟Para Iamamoto (2004) a ―questão social‖ se manifesta atualmente, como resultado
da reestruturação capitalista, que provoca graves consequências para a classe trabalhadora
em razão das mudanças no campo do trabalho, agravada pela ausência do Estado na
garantia dos direitos daqueles que se encontram socialmente vulnerável. Para a autora a
gênese da ―questão social‖ é advinda das transformações no mundo do trabalho, pois, a
acumulação do capital cresce na mesma proporção da miséria.
Desta forma a ―questão social‖ está fortemente arrolada à População em Situação de
Rua (PSR), visto que a PSR é resultado do elevado grau de desigualdade social e
econômica presente na sociedade capitalista, que estimula a pauperização, o desemprego,
o emprego informal, entre outros problemas que contribuem para o aumento dos números
de pessoas vivendo em situação de rua.
(Silva, 2009) considera o fenômeno da PSR como ―uma expressão radical da questão
social na contemporaneidade‖, de acordo com sua analise, é necessário que se chegue aos
piores níveis de degradação humana, para que o Estado considere garantir os mínimos
necessários a esta população.
Com objetivo de conhecer o perfil dessa população no país, em 2007/2008 foi
realizada uma pesquisa censitária em 71 municípios brasileiros, que apontou a existência de
31.922 indivíduos nessa situação, sendo 82% homens e 18% mulheres.
Em Belém, uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Pará – UFPA em
2014, publicada pelo Instituto de Educação Matemática e Científica do Programa
Interdisciplinar Trópico em Movimento, sob o título: ―A População em Situação de Rua em
Belém e Ananindeua - PA‖, no ano de 2014, havia um contingente de 583 pessoas em
situação de rua em Belém e Ananindeua. Destas, 16,3% eram mulheres.
Os motivos que conduzem à situação de rua apontados na pesquisa nacional, são
condições à que muitas vezes, essas pessoas são expostas, tais como: uso de substâncias
psicoativas (35,5%); desemprego (29,8%); conflitos familiares (29,1%). Motivos que de
alguma forma estão relacionadas uns com os outros, e/ou aparecem como consequência
um do outro.
Entretanto, o que se pretende nesse estudo é dar maior atenção à situação de rua
vivenciada por mulheres, a despeito de aparecem em menor número em ambas as
pesquisas apresentadas anteriormente, elas enfrentam maiores adversidades e das mais

672
diferentes formas, destacando-se a vulnerabilidade social a que estão expostas, tanto pela
questão de estar vivenciando situação de rua, como pela questão de gênero.
Desta forma, se buscará traçar o perfil dessas mulheres que vivenciaram situação de rua
e que atualmente residem no espaço de acolhimento Institucional Abrigo João de Deus
– AJD, em Belém/PA, a partir das seguintes variáveis: faixa etária; escolaridade; uso de
álcool e outras drogas, motivos que levaram a situação de rua, tempo de institucionalização
e vinculo familiar. Para isso será realizada análise documental em 08 prontuários de
atendimento das mulheres acolhidas na Instituição no período de janeiro a agosto de 2019.

2 GENERO NO CONTEXTO DA PSR: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

De acordo com Costa (2008), quando se fala em relação de gênero, se está falando
de poder, na medida em que as relações entre masculino e feminino são relações desiguais,
assimétricas, que mantém a mulher subjugada ao homem e ao domínio patriarcal.
Na perspectiva cultural patriarcal, somos frutos da educação diferenciada, baseada na
desigualdade e na metamorfose das relações. Entende-se por patriarcado:

―Organização sexual hierárquica da sociedade tão necessária ao domínio político‖.


Alimenta-se do domínio masculino na estrutura familiar (esfera privada) e na lógica
organizacional das instituições políticas (esfera pública) construída a partir de um
modelo masculino de dominação (arquétipo viril) ―(COSTA, 2008, p.05)

Na história da formação da sociedade brasileira, especialmente no período da


colonização, o modelo de família que se estabeleceu foi o modelo patriarcal. Este modelo,
como o próprio nome indica, caracteriza-se por ter como figura central o patriarca, ou seja, o
―pai‖, que é simultaneamente chefe do clã (dos parentes com laços de sangue) e
administrador de toda a extensão econômica e de toda influência social perante a sociedade
(SARTI, 2015)
Ainda de acordo com Sarti (2015), no Brasil, esse modelo de família começou a
formar-se logo no primeiro século da colonização, século XVI, a partir da herança cultural
portuguesa, cujas raízes ibéricas estavam, nessa época, fortemente vinculadas com o
passado medieval europeu. E a família patriarcal era o mundo do homem por excelência.
Crianças e mulheres não passavam de seres insignificantes e amedrontados, e que tinham
como maior aspiração às boas graças do patriarca.
Neste sentido Borges (2009), diz que aos homens, em geral, se dispunha todos os
tipos de regalias, a começar pela dupla moral vigente, que lhes permitia aventuras com
criadas e execravas, desde que fosse guardada certa discrição, enquanto que às mulheres,
desde que não se destinasse à procriação, tudo era proibido.

673
O patriarcado construiu a visão sobre o sexo feminino de forma violenta, desde os
estágios da infância, onde este começa a se instalar na consciência de ambos os sexos
para delinear seu futuro, moldando a mente dos indivíduos de tal forma que a desconstrução
do modelo machista assimilado torna-se difícil, já que este passa a ser um traço cultural da
sociedade na qual se insere. O sistema patriarcal buscou formas de se justificar no meio
social (BORGES, 2009).
Deste modo, conforme ressalta Borges (2009), a hierarquia pautada pela condição
masculina era construída na afirmação de que este sexo era o dominante, enquanto as
mulheres foram convencidas de que seu lugar social era de subordinação sendo fortalecida
pelas instituições, a religião, a família e o próprio Estado que serviram de apoio para sua
expansão.
O debate sobre este tema tem se concentrado em diversos movimentos que
levantam variadas possibilidades de interpretação sobre, como a sociedade conduz e impõe
as relações de gênero, seja como um debate em torno das relações de poder, bem como a
questão da participação no mercado de trabalho e vida política, este discurso é encontrado
nos movimentos feministas e de masculinidades (LISBOA, 2010).
Assim, de acordo com Lisboa (2010), as relações de gênero criam padrões fixos do
que é próprio para o feminino e para o masculino e reproduzem estas regras como um
comportamento natural do ser humano criando condutas e modos únicos de se viver sua
natureza sexual. Isto significa dizer que a questão de gênero tem uma ligação direta com a
forma que está organizada na sociedade, os valores, desejos e comportamentos acerca da
sexualidade.
A discussão em torno de gênero perpassa pela observação que fazemos das relações
sociais, no trabalho, no lazer, na política e etc. convivemos permanentemente com relações
de dominação, relações de poder. Entende-se então que o gênero é ainda uma das
primeiras formas de distribuir e significar o poder, sendo que o que é classificado como
masculino tende a ser mais forte superior e poderoso, ao passo que o que é considerado
feminino é visto como mais fraco, com menos poder, e por isso deve ficar sob a esfera de
proteção e de submissão ao masculino (SARTI, 2015).
Nesse contexto, Borges (2009) assevera que, ao analisar a realidade em estudo do
ponto de vista de gênero percebe-se que irão aparecer algumas diferenças e
particularidades da situação de rua vivenciada por mulheres, que são resultantes da
construção social que permeia a questão de gênero. Contudo, homens e mulheres estão
expostos aos mesmos determinantes que conduzem a essa situação.
Para fins de melhor compreensão da PSR, se fará uso do conceito de População em
Situação de Rua utilizado pela Política Nacional para Inclusão Social da População em
Situação de Rua, que o considera como:

674
Grupo populacional heterogêneo, caracterizado por sua condição de pobreza
extrema, pela interrupção ou fragilidade dos vínculos familiares e pela falta de
moradia convencional regular. São pessoas compelidas a habitar logradouros
públicos (ruas, praças, cemitérios, etc.), áreas degradadas (galpões e prédios
abandonados, ruínas, etc.) e, ocasionalmente, utilizar abrigos e albergues para
pernoitar. (BRASIL, 2008, p. 08).
´

Para (SILVA, 2009), a problemática que envolve população em situação de rua é


composta por múltiplos fatores tanto estruturais (ausência de trabalho e renda, ausência de
moradia, etc.), quanto biográficos (doenças mentais, consumo de álcool e ou outras drogas,
ruptura com os vínculos familiares, etc.) ou ainda, fatores como os desastres em massas
(terremotos, inundações e outros).
Ainda segundo a autora a cima, outros fatores cooperam também para a produção e
reprodução do fenômeno população em situação de rua na sociedade capitalista, havendo
intrínseca relação entre si, entre eles: suas múltiplas determinações; expressão radical da
expressão social na contemporaneidade; localização nos grandes centros urbanos; o
preconceito como marca do grau de dignidade e valor moral atribuído pela sociedade às
pessoas atingidas pelo fenômeno; as particularidades vinculadas ao território em que se
manifesta e a tendência à naturalização do fenômeno.
Desta forma os determinantes que provocam tal situação estão diretamente ligados a
questão estrutural da sociedade capitalista, que se expressam na ausência de moradia,
inexistência de trabalho e renda, mudanças econômicas e institucionais de forte impacto
social. Com isso corroboram Ramos e Wanzeler:

Vale destacar que as transformações ocorridas no mundo do trabalho, por causa do


sistema capitalista, contribuem de forma expressiva para o aumento desse segmento,
uma vez que, a ausência de trabalho que se manifesta na vida dessas pessoas na
forma de desemprego, traz consequências graves, pois é por meio do trabalho que a
pessoa garante renda, para o mínimo de sua sobrevivência, o sujeito se desvincula
das relações sociais que possuía e passa a buscar outras estratégias de
sobrevivência. Quando não obtém êxito na busca de meios para sobreviver, essas
pessoas passam a ocupar locais públicos como espaço de sua moradia. Com a
dificuldade de acesso a condições mínimas de uma vida social digna, essa população
irá fazer parte de uma parcela da sociedade, que sofre com a desigualdade, com a
exclusão social e com a pobreza. (RAMOS; WANZELER 2016, p. 24,25).

Assim, as relações conflituosas que se estabelecem entre capital e trabalho, desde a


origem do sistema capitalista contribuíram de forma decisiva para ao aumento desse
seguimento populacional cada vez mais socialmente vulnerável, em especial, o objeto desse
estudo, as mulheres, que vivenciam tal situação.

3 POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

675
Historicamente a população em situação de rua sempre foi tratada pelo Estado de
forma omissa, com ações pontuais e assistencialistas. A promulgação da Constituição
Federal de 1988 instituiu o tripé da seguridade social brasileira, composta pela saúde,
previdência social e assistência social, o que representou um marco para a proteção social
no pais. Segundo o Artigo 194 da CF/88: ―a Seguridade Social compreende um conjunto
integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a
assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. ‖ No que diz
respeito a assistência social a CF/88 traz:

Art. 203 A assistência social será prestada a quem dela necessitar,


independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção
de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria
manutenção ou de tê-la provida por sua família.
Art. 204 As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas
com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art.195, além de
outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:
I - descentralização político-administrativa, cabendo à coordenação e as normas
gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às
esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência
social;
- participação da população, por meio de organizações representativas, na
formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. (BRASIL, 2012,
P. 112)

Contudo somente na década seguinte, foram realizadas algumas reformas na política


de assistência social, como homologação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) em
1993, estabelecendo normas e critérios para a organização da assistência social no país
(BRASIL, 2012, p.4). Ao mesmo tempo em que se organizavam os movimentos sociais que
buscavam introduzir nas agendas de discussão estatal grupos que não tinham direitos
legalmente garantidos como a PSR. Merecendo destaque o protagonismo da própria
população em situação de rua que começou a se organizar com a criação do Movimento
Nacional da População de Rua – MNPR, que teve participação decisiva para o início do
reconhecimento dos direitos sociais a esse segmento.
Com a instituição da Política Nacional de Assistência Social no ano de 2004, foram
estabelecidas a oferta de ações e serviços a grupos vulneráveis, estruturados pelo Sistema
Único de Saúde, com articulação de ações, serviços e benefícios e que assegurou a
cobertura da assistência social para a PSR. E no ano de 2005 foi promulgação da Lei

676
11.258 de 30 de dezembro de 2005, que alterou a LOAS e constitui a obrigatoriedade de
criação de programas direcionados à população em situação de rua.
No ano seguinte o Governo Federal criou um Grupo de Trabalho Interministerial -
GTI, com a intenção de elaborar estudos e propor políticas públicas para a inclusão social
da população em situação de rua. Em 2007/2008 foi realizada a pesquisa nacional a fim de
conhecer o perfil da PSR, e em 2009 foi instituído o Decreto 7.053 de 23 de dezembro de
2009, instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e o seu Comitê
Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento.
Desta forma foram constituídas as primeiras políticas públicas instituídas
nacionalmente, voltadas às pessoas em situação de rua, com destaque a Política Nacional
para a População em Situação de Rua e as políticas públicas formuladas especificamente
para esse público, como por exemplo, o Consultório na Rua e o Centro Pop. A Política
Nacional para a PSR tem como princípios:

I - Promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos;


- Respeito à dignidade do ser humano, sujeito de direitos civis, políticos,
sociais, econômicos e culturais;
III - Direito ao usufruto, permanência, acolhida e inserção na cidade;
IV - Não-discriminação por motivo de gênero, orientação sexual, origem étnica ou
social, nacionalidade, atuação profissional, religião, faixa etária e situação migratória;
V - Supressão de todo e qualquer ato violento e ação vexatória, inclusive os
estigmas negativos e preconceitos sociais em relação à população em situação de
rua. (BRASIL, 2008, p. 14).

Assim, por meio de muito tensionamento político e mobilização social, a PSR passa
a ser reconhecida pelo estado como um segmento com direitos de cidadania.
A PNAS divide os tipos de Proteção Social em Proteção Social Básica - PSB e
Proteção Social Especial de média e alta complexidade – PSE, que, a partir da
implementação do SUAS passa a ofertar serviços específicos a PSR na Tipificação Nacional
de Serviços Socioassistenciais.
A PSR é atendida em todos os níveis de proteções. Todavia, é por meio da PSE que
se busca dar conta das particularidades demandadas pela PSR. E tem a oferta de serviços
desenvolvidos no Cetro de Referência de Assistência Social – CREAS, por meio do Serviço
Especializado em Abordagem Social – SEAS, que atende demanda espontânea e realiza
busca ativa nas ruas que fazem parte do seu território de abrangência, para realizar oferta
de serviços sociossitenciais. E no Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua
desenvolvido no Centro POP, fazendo parte da média complexidade. O serviço e ofertado a
pessoas que moram e/ou sobrevivem de atividades desenvolvidas nos logradouros públicos.
O Serviço de Alta Complexidade irá ser demandado quando a PSR necessita de
abrigo e acolhimento institucional. Compreendendo assim: serviços de proteção integral

677
(moradia, alimentação, higienização, trabalho protegido) para famílias e indivíduos que se
encontram sem referência e/ou em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu
núcleo familiar e/ou comunitário.
Esse tipo se serviço de acolhimento institucional é ofertado pelo Abrigo João de
Deus desde a década de 1980, porém sem vínculo estatal, o que será apresentado no
próximo tópico.
Assim, embora os avanços alcançados pela Política Nacional Para a PSR se observa
que existem particularidades que merecem atenção, como a situação de rua vivenciada por
mulheres.
Sabe-se que existe todo um estigma e marginalização que permeia a PSR de uma
forma geral, porém, no caso da mulher todo esse processo é acentuado em razão da
dominação masculina. Sobre isso asseveram Sarmento e Pedroni:

O signo ―mulher‖ tem sua própria especificidade constituída dentro e através de


configurações historicamente específicas de relações de gênero. Seu fluxo semiótico
assume significados específicos em discursos de diferentes ―feminilidades‖ onde
vem a simbolizar trajetórias, circunstâncias materiais e experiências culturais
históricas particulares. Diferença nesse sentido é uma diferença de condições
sociais. (BRAH, apud SARMENTO; PERONI, 2006)

O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) é constituído por homens e


mulheres em situação de rua ou que tem trajetória de rua, e que lutam por criação e
ampliação de políticas públicas voltadas a esta população, no entanto, percebe-se uma
ausência de respostas que levem em consideração a questão de gênero, que está
associada ao menor valor e importância das mulheres, ligado ao um lugar de subordinação
numa sociedade patriarcal, impregnada de conceitos machistas que buscam a todo custo
obscurecer a necessidade dessa discussão.
Desta forma, no intento de conhecer um pouco mais sobre a realidade das mulheres
que vivenciaram situação de rua e que hoje encontram-se residindo no Abrigo João de
Deus, e ainda fomentar a discussão em torno da temática, será apresentado o perfil de oitos
mulheres acolhidas, a partir da análise dos prontuários das mesmas.

4 CARACTERIZAÇÃO DO ABRIGO JOÃO DE DEUS

Antes de apresentar o resultado dessa pesquisa, faz-se necessário contextualizar


esta Instituição de acolhimento para a PSR.
De acordo com o Estatuto Reformado do Abrigo João de Deus (2017), a instituição
nasceu em 1981 por meio da idealização do padre Francisco Gugliotta, italiano, missionário
da Ordem dos padres Xaverianos da Igreja Católica.

678
De acordo com o mesmo, este projeto teve início a partir do dia em que um homem
em situação de rua o abordou na escadaria da Igreja das Mercês (centro de Belém), e lhe
questionou a respeito de um lugar para se alimentar e descansar. Desta forma, por não ter
naquele momento nenhum lugar para ―abrigar‖ aquela pessoa, o padre decidiu reunir apoio
com pessoas religiosas e criar um espaço para acolher pessoas naquelas condições. E,
assim, com auxílio de alguns paroquianos da Igreja das Mercês e a doação de uma casa
nasceu o Abrigo João de Deus, em 1981, e inaugurado oficialmente em 1982, que se
encontra localizado na TV. Joaquim Távora, nº 305, bairro da Cidade Velha, Belém/PA.
O abrigo João de Deus é uma associação de direito privado, constituída por tempo
indeterminado, sem fins econômicos, de caráter organizacional, beneficente, filantrópica,
cultural e de assistência social, sem cunho político ou partidário que funciona como espaço
de acolhimento de curta ou longa permanência, e é considerado de utilidade pública para a
sociedade. Seu principal objetivo é fornecer acolhimento institucional e assistência às
pessoas adultas em situação de rua e idosos, sendo priorizados os que apresentam algum
tipo de enfermidade e que se encontra com vínculos familiares fragilizados e/ou rompidos.
(ESTATUTO DO ABRIGO JOÃO DE DEUS, 2017).
A instituição é mantida, principalmente, por meio de arrecadações feitas em eventos
por sua diretoria voluntária e doações de parceiros em geral, que contribuem com materiais
de higiene, limpeza, alimentação, etc., e por meio de trabalho voluntário e ainda parceria
com algumas instituições por meio de estágio supervisionado (Universidade Estadual do
Pará – UEPA, Universidade Federal do Pará – UFPA, Universidade da Amazônia – UNAMA,
Centro Universitário do Pará – CESUPA, Secretaria Municipal de Saúde – SESMA por meio
do Consultório na rua, etc.). Atualmente a entidade tem como presidente a Irmã Maria Rayol
Gonçalves (madre superiora), co-fundadora da obra e como coordenadora a Irmã Maria
Goreth Soeiro. Possuí no seu quadro de funcionários 10 (dez) profissionais contratados
(uma contadora, um porteiro, um motorista, uma cozinheira, uma lavadeira, um de serviços
gerais e quatro cuidadoras). A equipe técnica é composta por profissionais voluntários, entre
estes, duas assistentes sociais, uma terapeuta ocupacional, dois advogados, quatro
médicos geriatras, um clínico geral, uma enfermeira, um oftalmologista e uma dentista.

O Abrigo possui uma filial localizada em Marituba/PA, a casa Cidadela João de Deus
que passou a funcionar desde a década de 1990 com perfil voltado especificamente para
idosos.

5 RESULTADOS GRÁFICO
I: FAIXA ETÁRIA

679
FAIXA ETÁRIA

37%
ACIMA DE 60 ANOS
MENOS DE 60 ANOS
63%

Fonte: Prontuário de atendimento individual Abrigo João de Deus Belém/Pará.

Observa-se que do universo pesquisado 63% das mulheres residentes no AJD são
idosas, ou seja, podemos inferir com isso que essas pessoas podem ter sofrido um
processo gradativo de perda de direitos, ao ponto de chegarem a essa fase da vida e não
terem garantidos direitos básicos como moradia (CF/88), e que, combinado com outros
fatores, as fizeram vivenciar situação de rua atualmente precisarem estar em uma instituição
de longa permanência, já que agora sofrem dupla exclusão conforme Brêtas:

O agravamento desta situação pode ser constatado quando o cenário


observacional passa a ser a rua e/ou logradouros públicos dos grandes
centros urbanos, nos quais é cada vez mais frequente nos depararmos com
pessoas duplamente excluídas – por serem pobres e por serem idosas
(Brêtas et al., 2010, p.477).

Assim, no que diz respeito ao acolhimento institucional de pessoas idosas Tipificação


Nacional de Serviços Socioassistenciais preconiza que deve ser de caráter provisório e
excepcional, de longa permanência apenas quando esgotadas as possibilidades de
autossustento e de convívio com os familiares, devendo as instituições assegurar a
convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 2014).

GRÁFICO II: ESCOLARIDADE

680
ESCOLARIDADE

38%
ALFABETIZADA
NÃO ALFABETIZADA
62%

Fonte: Prontuário de atendimento individual Abrigo João de Deus Belém/Pará.

A pesar do percentual de mulheres alfabetizadas serem de 62%, o nível de


escolaridade é baixo, a maioria tem somente o ensino fundamental incompleto. Esta
baixa escolaridade está diretamente ligada à construção social de que à mulher foi dado
o papel de cuidar da casa e da prole e ainda as maneiras de sobrevivência adotadas
pela PSR, que colabora para a execução de atividades informais e precárias
desenvolvidas por este segmento populacional. Segundo Fraga (2011, p. 28), este fator
está ―ligado diretamente às condições do mercado de trabalho na lógica capitalista que
não propicia condições de igualdade educacional aos indivíduos e prioriza a
competitividade‖.

GRÁFICO III: USO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS

681
USO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS

16%

SIM
NÃO

84%

Fonte: Prontuário de atendimento individual Abrigo João de Deus Belém/Pará.

Pode-se observar que um percentual de 16% das mulheres fez uso de álcool ou
outras drogas durante o período que estiveram nas ruas. De acordo com Silva (2009) o uso
de álcool e outras drogas aparecem como um dos fatores que envolvem a população em
situação de rua que estão relacionados a outros, e que muitas vezes aparece como
consequência da vivencia nas ruas, como uma forma de enfrentar dificuldades e privações
vivenciadas no cotidiano das ruas.

GRÁFICO IV: MOTIVOS QUE LEVARAM A SITUAÇÃO DE RUA

MOTIVOS QUE LEVARAM A SITUAÇÃO DE RUA

37%
CONFLITO FAMILIAR
50% VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SAÚDE MENTAL

13%

Fonte: Prontuário de atendimento individual Abrigo João de Deus Belém/Pará.

682
De acordo com o gráfico IV, observou-se que 50% do universo pesquisado, tiveram
como predominância os conflitos familiares, que tornou-se a causa e/ou consequência da
situação de rua. Sobre isto, Pereira e Gomes (2005) ressaltam que esta realidade pode ser
explicada por conta do esgarçamento familiar, sendo a família um espaço de convivência
permeado por conflitos e por diversos fatores interligados, entre eles a desigualdade social é
um dos motivos que mais levam ao desmembramento da família, já que os elevados níveis
de pobreza excluem parte significativa de sua população ao acesso as condições mínimas
dos direitos básicos sendo expostas a risco pessoal e social.
Na realidade das mulheres institucionalizadas no AJD, percebe-se ainda que 37%
têm algum tipo de transtorno mental e 16% sofreram violência doméstica. De acordo com
Santana (2016) a realidade vivenciada pelas pessoas em situação de rua como: pouca
longevidade, fragilização e/ou rompimento dos vínculos familiares, violências domesticas,
discriminação, direitos negados, entre outras expressões da questão social, colaboram para
o aparecimento e/o agravamento dos transtornos mentais, que por muitas vezes são fatores
que contribuem para que uma pessoa viva em situação de rua.

GRÁFICO V: VÍNCULO FAMILIAR

VÍNCULO FAMILIAR

37%
VÍNCULO TOTALMENTE
ROMPIDO
VÍNCULO FRAGILIZADO
63%

Fonte: Prontuário de atendimento individual Abrigo João de Deus Belém/Pará.

Conforme o Gráfico V percebe-se que 63% das mulheres acolhidas têm seu vínculo
familiar totalmente rompido. Como verificou-se no gráfico IV, o conflito familiar predomina
entre os motivos que levaram a situação de rua. De acordo com Gomes e Pereira (2005), a
família compreende a convivência entre seus membros e traz consigo a dimensão de sua

683
complexidade, como seus encontros e desencontros, pois por ser um espaço privilegiado de
convivência não significa que não haja conflitos nesta esfera.
Neste sentido, de acordo com as autoras mencionadas, por conta dos diversos
conflitos neste espaço de convivência, muitas pessoas se afastam do seu ambiente de
origem (esgarçamento familiar), perdendo o contato/convivência familiar e
consequentemente sendo mais agravado pela situação de rua, quando muitos perdem até
sua própria referência de família, naturalidade, cidadania e dignidade humana. Sobre esta
realidade, Silva (2009) ressalta que, a situação de rua é a expressão radical da questão
social.

GRÁFICO VI: TEMPO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO

TEMPO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO

38%
MENOS DE 5 ANOS
MAIS DE 5 ANOS
62%

Fonte: Prontuário de atendimento individual Abrigo João de Deus Belém/Pará.

Percebe-se no Gráfico VI, que 62% das mulheres pesquisadas, estão


institucionalizadas por mais de 5 anos consecutivos, e como já verificado no gráfico V, a
maioria têm seu vínculo familiar totalmente rompido. Ou seja, o trabalho para o
fortalecimento de vinculo familiar, como preconiza a Tipificação Nacional de Serviços
Socioassistemcial (2014), fica inviável neste processo, restando apenas o fortalecimento de
vinculo comunitário. Assim, observa-se, a institucionalização de longa permanência acaba
sendo uma realidade para as acolhidas do AJD.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

684
A população em situação de rua é composta por homens e mulheres de diferentes
etnias, raça, cor, faixa etária, orientação sexual e etc. Apesar das pesquisas apontarem que
número de mulheres sempre é menor que o dos homens que vivem em situação de rua, não
diminui a necessidade de dar enfoque a essa dura realidade. Tendo em vista que a questão
de gênero acaba por agravar ainda mais essa situação, em razão das especificidades
demandas por mulheres, e ainda pelo papel historicamente construído em relação ao papel
conferido a mulher na sociedade.
Observa-se que houve um significativo avanço no que concerne aos direitos sociais
da PSR, a instituição da Política Nacional de Assistência Social, promoveu ampliação e
fortalecimento das redes assistenciais direcionadas à população em situação de rua, bem
como a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Porém, dada a
complexidade que envolve a atenção a esse segmento, torna-se necessário estudos mais
cuidadosos no sentido de criar políticas que levem em consideração as especificidades
principalmente no que diz respeito a questão de gênero.
A análise dos dados apontou que 63% das mulheres acolhidas são idosas, 62% não
são alfabetizadas, 62% faziam uso de álcool e outras drogas, o conflito familiar com 50%
dos motivos que levaram a situação de rua, 50% estão a mais de cinco anos
institucionalizadas e 63% não possui vínculo familiar.
Podemos inferir com isso, que essas mulheres passaram por um processo de
negação de direito que se estendeu por toda vida, em que chegam a condição de pessoas
idosas tendo negados direitos básicos garantidos constitucionalmente como moradia, o
direito a convivência familiar. Não tiveram acesso ao mínimo de educação, ficaram expostas
ao uso de álcool e outras drogas. Verificou-se que os conflitos familiares aparecem com o
principal motivo de essas mulheres terem vivenciado situação de rua, seguido de algum tipo
transtorno mental.
Desta forma, é imprescindível que se fomente o debate sobre essa temática, a fim de
dar maior visibilidade a essa demanda que faz parte de uma das mais degradantes
expressões da questão social, a população em situação de rua, com todas as
particularidades que envolve a questão de gênero. Tendo certo que essa discussão não se
encerra, necessitando de novos debates e reflexões.

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687
A ROMANTIZAÇÃO DO ABUSO PELAS HISTÓRIAS DE FICÇÃO
https://doi.org/10.29327/527231.5-46
Alice Cáritas Almeida Amarante
Universidade Federal do Pará

RESUMO

O presente trabalho aborda a romantização do abuso pelas histórias de ficção, com ênfase
em relacionamentos heterossexuais, onde a mulher é a vítima de abuso. Com o objetivo de
expor a carga problemática de machismo, e diversas formas de violência contra a mulher
que existem por trás de tantas histórias consideradas românticas que refletem-se na
realidade, realizei entrevistas com mulheres vítimas de relacionamentos abusivos e associei
os relatos obtidos com uma análise crítica de três ficções científicas que camuflam tais
relacionamentos, em diálogo com autoras que também teceram suas considerações a
respeito das obras: o filme Esquadrão Suicida, onde conversarei principalmente com Nikolly
dos Santos Neto (2017), e a saga Crepúsculo, juntamente com a trilogia 50 tons de cinza,
onde partilharei de ideias de Priscila Santiago Sousa (2018). Afim de embasar as discussões
referentes a relacionamentos abusivos e formas de violência, terei como aporte teórico
Tânia Mendonça Marques (2005). Com a finalização da pesquisa, conclui-se que a
romantização do abuso pelas histórias de ficção, segue na contramão das lutas de combate
violência contra a mulher e que, portanto, é necessário que tenhamos sempre cautela com
o que estamos consumindo e exaltando, para não contribuir ainda mais para que mulheres
sofram presas em relacionamentos abusivos.
Palavras chave: romantização; histórias de ficção; relacionamentos abusivos; violência
contra a mulher.

ABSTRACT

This paper addresses the romanticization of abuse through fiction stories, with an emphasis
on heterosexual relationships, where women are victims of abuse. In order to expose the
problematic burden of male chauvinism, and the various forms of violence against women
that exist behind so many stories considered romantic that are reflected in reality, I
conducted interviews with women victims of abusive relationships and associated the reports
obtained with a critical analysis of three science fictions that camouflage such relationships,
in dialogue with authors who also made their considerations about the works: the movie
Suicide Squad, where I will talk mainly with Nikolly dos Santos Neto (2017), and the Twilight
saga, along with trilogy 50 shades of gray, where I will share ideas of Priscila Santiago
Sousa (2018). In order to support the discussions regarding abusive relationships and forms
of violence, I will have as theoretical support Tânia Mendonça Marques (2005). With the
conclusion of the research, it is concluded that the romanticization of abuse by fiction stories,
goes against the struggles to combat violence against women, and therefore, we must
always be careful with what we are consuming and extolling, not to further contribute to
women being trapped in abusive relationships.
Key Words: romanticization; fiction stories; abusive relationships; violence against women.

688
CONTOS DE FADAS: FELIZES PARA SEMPRE, QUEM?

“- Queria perdoar-me, não pretendia assustá-la.


Oh não, não. Não é isso, mas é que você é...
Um estranho?
Uhum...
Mas não se lembra? Nós já nos encontramos.
Nós dois?
Sim, você mesmo disse. Uma vez num sonho”
(A Bela Adormecida, 1959).

Quem nunca foi ao delírio cantando com a Bela pela aldeia e pelo palácio da Fera?
Ou com a Cinderela, enquanto ela limpava a casa, com os ratinhos? Ou com a Branca de
Neve, junto com os sete anões e com a Aurora, pelas florestas? E com a Barbie, então?!
Com suas inúmeras histórias diferentes, cheias de aventuras e músicas originais?

Sem sombra de dúvida foram elementos marcantes de muitas infâncias, com os


quais vivemos momentos felizes e criamos uma relação de afeto que nos enchem de
nostalgia quando vemos algo relacionado ou, principalmente, escutamos alguma das
músicas imortais em nossos corações. Entretanto, aqueles momentos de prazer infantil,
foram um dos primeiros a inserir em nossas mentes, discursos racistas, classistas, cis-
1 2
heteronormativos , binaristas e principalmente machistas.

As histórias infantis mais famosas do mundo desenvolvem-se em torno do


amor. No geral, os enredos fantasiosos possuem uma personagem feminina
que, depois de muito sofrer e superar conflitos, encontra no beijo do
príncipe encantado a salvação que a garante o famoso ―felizes para
sempre‖. Assim foi com A Branca de Neve, A Bela Adormecida, Rapunzel, A
Pequena Sereia e também A Bela e a Fera. O que todas essas histórias têm
em comum além do príncipe e do ―felizes para sempre‖? A felicidade dessas
mulheres só foi atingida depois de encontrar o homem de suas vidas
(Priscila Santiago Sousa, 2018, p. 24)

Esse termo vem sendo utilizado atualmente para substituir antigo “heteronormativo”, pois compreende-se não somente a
heterossexualidade é compulsoriamente imposta, mas também a cisgeneridade, ou seja, que o gênero esteja em
conformidade com o sexo.
Quando se trata de gênero, considera a possibilidade apenas do masculino e feminino, sendo estes determinados pela
genitália das pessoas: masculino (para quem nasce com pênis) e feminino (para quem nasce com vulva).

689
Vimos mulheres (brancas e loiras) terem todos os seus problemas resolvidos por
homens (brancos e ricos) e achamos incrível; torcemos pelo amor entre uma mulher e o
homem que lhe aprisionou; comemoramos ao ver homens beijando mulheres desconhecidas
e desacordadas. E para além de tudo isso e de tantos outros fatos extremamente
problematizáveis, romantizamos todas essas histórias.

importante ressaltar, que o binarismo cis-heteronormativo implantado socialmente,


faz com que, enquanto meninas são colocadas para assistirem contos de fadas e afins,
meninos são postos diante de desenhos com mais ação, aventura e até mesmo
agressividade.

Dessa forma, meninas crescem com a ideia de que devem ser delicadas e manterem
um padrão de beleza europeizado para esperarem seus ―príncipes encantados‖, pois
precisam deles para serem sustentadas e terem todos os seus problemas resolvidos,
almejando viver sua grande história de amor e acreditando que esse será o momento mais
feliz da suas vidas; e meninos, por sua vez, crescem com o entendimento de que suas
atitudes devem ser baseadas em força física e o mínimo de sensibilidade possível e ainda,
que é natural que homens sejam agressivos, o que faz com que considerem-se superiores
às mulheres.

Érica Renata de Souza, em sua dissertação de mestrado intitulada ―Questões de


gênero na infância e na escola‖, aponta:

Tenho sugerido, ao longo deste trabalho, que a agressividade assim como a


violência, são apresentadas pelo discurso hierárquico de gênero como
―características próprias‖ do gênero masculino, bem como as concepções
das crianças também nos revelaram uma associação dos homens à força
física, à coragem, etc (SOUZA, 1999, p. 175).

Crianças crescem, por fim, enraizadas em uma cultura machista, que naturalizando e
romantizando esses aspectos de divisão de gênero constrói uma hierarquia marcada pelo
masculino como ser superior e dominante, o que se configura como masculinidade tóxica.

Ao ultrapassarem a etapa da infância, alcançam a adolescência, onde os contos de


fadas dão lugar à outras histórias, já não tão fictícias assim, histórias estas, que são
atravessadas pela realidade, que se alimentam dela para serem escritas: os romances.

Já mergulhadas na idealização de amor perfeito, herdada da infância, na


adolescência, período em que os hormônios estão aflorando os desejos e vontades ligadas
às questões afetivo-sexuais, abrimos espaço, com facilidade, para que os romances

690
penetrem nosso cérebro, nos levando a considerar outras formas do que é chamado de
amor e mais uma vez, almejar a reprodução do que lemos o assistimos, em nossas próprias
vidas.

RELAÇÃO SUICIDA

O que temos aqui...?


Vai fazer o que, me matar, senhor Coringa?
O que? Não, eu não vou te matar, eu sou vou te machucar e vai
doer demais!
Você acha? Pois eu aguento!
(Esquadrão Suicida, 2016)

Baseado nos quadrinhos da DC Comics, estreou em 2016, sob direção de David


Ayer, o longa metragem Esquadrão Suicida, levou às telas dos cinemas a missão de um
grupo formado por supervilões que começam a trabalhar para o governo em troca de
redução de suas penas carcerárias. Pela primeira vez, a personagem Harley Quinn, a
ensandecida Alerquina, saiu dos quadrinhos e dos desenhos animados e ganhou vida em
um filme.

Harleen Quinzel, mais tarde apelidada como Harley Quinn, foi criada para a
série animada para televisão Batman: A Série Animada, aparecendo pela
primeira vez em 1992. Após uma aceitação positiva do público, seus
criadores, Paul Dini e Bruce Timm, incluíram a personagem em vários
outros episódios e mais tarde ela também apareceria nos quadrinhos do
Universo DC e posteriormente na adaptação para cinema Esquadrão
Suicida. Ela aparece na trama como a psiquiatra de Coringa, que
manipulada e seduzida pelo mesmo, desenvolve uma empatia pelo paciente
ajudando-o a fugir do Asilo de Arkham e torna-se uma seguidora do vilão
seguindo suas ordens em viés do sentimento que ela acredita ser amor
(Nikolly do Santos Neto, 2017, p. 172).

Alerquina e Coringa, desde os quadrinhos, já eram o ―casal dos olhos‖ das(os) fãs,
que naturalizavam e romantizavam o relacionamento de ambos, mesmo tratando-se
explicitamente de um relacionamento abusivo. Ao serem levados às telas dos cinemas, o
nível de romantização do casal pelo próprio filme, alcançou níveis ainda maiores do que nos
quadrinhos e desenhos. Na trama, não há uma preocupação por meio da produção, de
buscar meios para problematizar a toxicidade da relação, como aponta Thay (2016), que ―os
idealizadores de Esquadrão Suicida perderam uma grande oportunidade de lidar com o
tema do relacionamento abusivo com as cores e dores reais que algo assim trás para a vida
de uma pessoa‖. Pelo contrário, o filme ―enfeita‖ o relacionamento causando a sensação de

691
diminuição da gravidade do mesmo e, consequente, romantização do abuso sofrido por
Alerquina.

A primeira cena de abuso disfarçado de amor que o filme mostra, é quando conta a
história de Alerquina, ainda doutora Harleen Quinzel, psiquiatra designada para tratar do
caso do Coringa. Durante as sessões de terapia, começa a ser manipulada pelo palhaço e
desenvolver uma doentia paixão por ele, o que lhe leva, inconscientemente, a ajudá-lo a
fugir do manicômio onde se encontrava.

A manipulação é uma das características mais marcantes de relacionamentos


abusivos. O abusador, na maioria das situações, mostra-se doce e gentil, fala o que a vítima
quer ouvir e começa a conquistá-la de tal forma, que em pouco tempo ela se vê presa a um
sentimento que lhe leva, inconscientemente, a obedecer a tudo que o abusador manda,
mesmo não sendo da sua vontade.

De acordo com Tania Mendonca Marques:

As finalidades do abuso psicológico, conscientes ou não, são abalar a


segurança da mulher com relação ao raciocínio lógico ao qual ela se
baseou durante toda sua vida. Num relacionamento abusivo, a mulher é
visivelmente submetida a um condicionamento operante: mesmo não
gostando, ela está condicionada a antecipar aquilo que agradará ao marido,
que não o irritará (MARQUES, 2005, p. 86-87).

Dentre os relatos que eu ouvi de mulheres que sofreram relacionamentos abusivos,


em todos estava inserida a manipulação como principal ferramenta do abusador. Nos
relatos, houveram frases como “ele fazia eu fazer tudo que ele queria”; “eu era muito besta
pra ele, nem percebia que estava sendo manipulada”.

Na sequência, o filme nos coloca diante de uma cena de tortura: Coringa aprisiona a
doutora e, antes de lhe aplicar um choque na cabeça, diz que não vai lhe matar, só vai lhe
machucar e que vai doer demais, ao que ela responde que aguenta. Nesta cena, além da
explícita violência física à qual Harleen Quinzel é submetida, podemos observar também
que a manipulação alcança níveis mais elevados, fazendo com que ela acredite que é capaz
de passar por situações de extrema dor e sacrifício, por ele, o famoso ―se sacrificar por
amor‖.

Mais uma vez, tal característica do relacionamento abusivo da ficção, é


constantemente encontrada na realidade. Inúmeras mulheres ficam extremamente
obcecadas por seu abusador e mergulham em conflitos internos resultantes de várias
atitudes que lhes causam uma série de desconfortos, como pude constatar nos relatos que
obtive. Bastante foi falado sobre a instável relação consigo mesmas por não estarem

692
satisfeitas com determinadas imposições e ordens, de serem submetidas à práticas que lhes
causavam agonia, mal-estar ou até mesmo dor. “Tinha que dizer pra ele onde eu ia, com
quem e se ele não gostasse, eu não ia. Tinha que ter relações com ele mesmo quando eu
não queria, porque ele fazia toda uma pressão psicológica pra eu aceitar aquilo”.

importante ressaltar que essa prática de ser induzida a manter relações sexuais,
mesmo sem vontade, é uma situação cada vez mais corriqueira dentro dos relacionamentos,
onde inúmeras mulheres que passam por isso, nem se quer, percebem que estão sendo
vítimas de violência sexual.

Assim, considera-se violência sexual, a ação que obriga uma pessoa a


manter contato sexual ou a participar de relações sexuais com o uso da
força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou
qualquer outro mecanismo que anule ou limite a vontade pessoal
(MARQUES, 2005, p. 93).

preciso deixar claro, principalmente para nós mulheres que somos as maiores
vítimas, que qualquer prática que ultrapasse a nossa vontade, dentro de uma relação
sexual, é estupro e que não devemos ceder nos relacionar sexualmente com alguém,
apenas para satisfazer o desejo da pessoa, independentemente de ser namorado ou
marido. Essa prática de manipulação para que ocorra o sexo, que automaticamente gera
uma relação não prazerosa e muitas vezes, incômoda e desconfortável para a parte
manipulada, é igualmente, estupro.

Relações abusivas implicam também no desenvolvimento de transtornos.


Em alguns casos, os abusos sofridos acabam por manter a vítima ligada a
seu agressor, criando a falsa ilusão de amor. A vítima não enxerga o
parceiro como agressor, apenas como uma pessoa que a ama e retribui seu
amor. O longo período de intimidação manipulação e coação pode se
transformar em uma relação de simpatia e até mesmo sentimento de
amizade e amor na presença do agressor. Esse comportamento é
classificado como Síndrome de Estocolmo e pode ser claramente aplicado à
Harley Quinn (NETO, 2017, p. 176).

Esta síndrome se instaura de maneira tão avassaladora em Harley, que a admiração


e paixão desenfreada pelo Coringa, fazem com que ela passe a se sentir não apenas uma
cúmplice dele e mais do que uma serva, considera-se propriedade do palhaço. Isso fica
claro ao observarmos seu uniforme, que se compõe de uma coleira com o apelido ―Coringa”,
uma jaqueta com os dizeres ―propriedade do Coringa” e uma blusa onde se lê ―monstrinha
do papai‖. Há ainda uma cena do filme, em que o Coringa oferece Alerquina há um homem

693
na boate e ela, prontamente, obedece a sua ordem. Percebemos dessa forma, que
Alerquina é reduzida a um objeto submisso do Coringa e sente prazer em ocupar este lugar,
como se fosse uma honra satisfazer aos desejos do seu amado.

Atravessadas por essas crises, muitas mulheres perdem a capacidade de enxergar o


quão não saudável é o relacionamento em que estão envolvidas, naturalizando as atitudes
de seu abusador e acreditando que isso seja normal entre os relacionamentos. “Foi tudo
muito sorrateiro, não percebi que estava em um relacionamento abusivo até sair de um, eu
achava que isso acontecia em todos os relacionamentos”.

De acordo com Nikolly dos Santos Neto, o filme nos permite identificar que além da
Síndrome de Estolcomo, a personagem também sofre um transtorno de personalidade
histriônica, cuja principal característica é a necessidade que a pessoa desenvolve de estar
em evidência, ser o centro das atenções o tempo todo.

Segundo o DSM-IV, o Transtorno de Personalidade Histriônica é


caracterizado por um padrão de emocionalidade exagerada e
comportamentos de busca de atenção. Inicialmente, são agradáveis com
seu estilo dramático e animado de ser, mas com o tempo passam a ser
evitados pelos outros pelo incômodo provocado por sua exigência
inadequada de atenção. Muitas vezes, essas pessoas são influenciadas por
pessoas ou situações, sendo muito vulneráveis às opiniões alheias. Em
geral usam da aparência física para chamar atenção. Apresentam grandes
dificuldades de relacionamento, mostram-se muito dependentes, tentando
controlar seus parceiros através da sedução (NETO, 2017, p. 177).

E mais uma vez o filme brinca com uma questão muito séria: rimos das atitudes de
Alerquina, lhe achamos fofa, chata, tola, insuportável, mas raramente paramos para analisar
a gravidade do fato de desenvolver transtornos psicológicos devido ao relacionamento
abusivo que sofre, justamente porque o filme esforçou-se o suficiente para mascarar todas
essas implicações problemáticas e preferiu que ovacionássemos o casal.

Para além da ficção, na realidade, inúmeros outros transtornos são identificados em


vítimas de relacionamentos abusivos que acumulam graves problemas à sua saúde física e
emocional, prejudicando sua forma de relacionar-se consigo mesmas e com as pessoas à
sua volta, como depressão, ansiedade, baixa autoestima, entre tantas outras doenças
extremamente graves para o bem-estar humano. ―Muita aflição, agonia, ansiedade,
desespero.” ; “Meu lado mulher tava destruído, eu me olhava no espelho e tava muito
destruída, não via beleza, as pessoas diziam que meu cabelo e meu sorriso são lindos e não
conseguia enxergar, minha autoestima foi pra merda”

Segundo Marques:

694
Manter a mulher em estado de ansiedade é outro método usado para
controle psicológico. O homem toma providências para que ela nunca tenha
certeza se ele irá machucá-la, se os seus esforços irão agradá-lo, enfurecê-
lo, ou se pode cumprir suas ordens adequadamente. A incerteza é uma
maneira de desestabilizar a mulher psicologicamente (MARQUES, 2005, p.
87).

Ainda nos mostrando a origem de Alerquina, chegamos à cena em que o Coringa lhe
pergunta se ela morreria e viveria por ele e ela responde que sim, às duas perguntas e em
seguida pula em uma banheira de ácido, demarcando o momento em que Harleen Quinzel,
transforma-se em Harley Quinn. Essa é a cena mais romantizada pela trama. Depois da
atitude de uma mulher claramente transtornada e obcecada por seu abusador, o mesmo
pula também na banheira de ácido para salvá-la e depois a beija, o que transmite ao
espectador, toda carga romantizada de que o homem pode ter inúmeros defeitos e até
chegar a machucar a mulher, física ou psicologicamente, mas qualquer atitude sua que a
faça se sentir minimamente valorizada, faz com que este seja novamente colocado em um
pedestal e considerado o melhor e mais romântico homem do mundo.

Demonstrar amor não significa que a relação seja saudável. O abuso


psicológico pode ter consequências invertíveis, impactando severamente no
modo de agir, na autoestima e confiança. A vítima passa a ver o parceiro
como o dono da verdade, acreditando apenas no que o mesmo diz. O
relacionamento abusivo dificulta a capacidade de ação da vítima em relação
a seus interesses próprios, devido ao intenso controle e manipulação a que
a mesma é submetida (NETO, 2017, p. 175).

São esses lapsos de demonstrações afetivas, que fazem com que muitas vítimas
acreditem que no fundo, seus abusadores as amam e, portanto, que esse amor é suficiente
para manter sustentar o relacionamento, como apontaram algumas das entrevistadas:
“acabei acreditando que o amor é a base...”, “depois eu voltei a ir na casa dele, ele se
tornava um bom namorado”.

QUANTOS TONS TÊM UM CREPÚSCULO?

“ – Como entrou

aqui? - Pela janela.

- Sempre faz isso?

- Só nos últimos meses”


(Crepúsculo, 2018).

695
“ – Não chega perto de mim, eu preciso de espaço! -

Por favor, não faz isso, não desiste de mim...

Eu só preciso pensar um pouco, tá?


Não me deixe, vice significa mais pra mim, do que qualquer coisa.”
(50 tons de cinza, 2015).

Um dos best sellers que mais fez sucesso e colocou sua escritora como uma das
mais bem pagas do mundo foi o idolatrado Crepúsculo. Não é novidade para ninguém que
desde a publicação do primeiro livro, em 2005, pela escritora Stephenie Meyer, Crepúsculo
virou uma das maiores febres literárias entre as(os) jovens, tornando-se uma das sagas que
mais marcou a infância e adolescência de inúmeras pessoas. O romance entre a garota de
Phoenix de 17 anos, Isabella Swan, e o vampiro centenário, Edward Cullen, viralizou de tal
forma, que conquistou avassaladoramente o coração de inúmeras(os) fãs ao redor de todo o
globo. De acordo com Priscila Santiago Sousa:

[...] viria a se tornar uma saga de quatro volumes, cinco adaptações para o
cinema, dois livros spin offs recorde de vendas, sucesso de bilheteria e uma
legião de fãs apaixonados e fiéis aos personagens da história que
conquistou corações de milhares de pessoas ao redor do mundo. Em uma
trama envolvendo humanos, vampiros e lobisomens, Meyer construiu na
saga Crepúsculo um romance misterioso e sedutor que até hoje, treze anos
após a primeira publicação, faz muito sucesso (SOUSA, 2018, p. 42)

Devido ao enorme sucesso da saga, os personagens do universo de Crepúsculo,


transcenderam os livros de Stephanie Meyer e passaram a compor histórias escritas
3
pelas(os) próprias(os) fãs, as chamadas fanfics , narrativas derivadas de outras já
existentes, onde se tem liberdade para propor e criar novas realidade e contextos a partir
dos originais.

Essas produções de fãs são importantes não só para garantir


entretenimento gratuito, como também para que novos autores se
destaquem no meio literário e se profissionalizem. Cada vez mais as fanfics
têm se tornado porta de entrada para o mercado editorial, como foi o caso
de Cinquenta Tons de Cinza, série de livros assinados por E.L. James que
começou como ―Master Of The Universe‖, fanfic baseada em Crepúsculo e
que teve seus direitos autorais comprados para editora Arrow Books, além
da garantia de adaptação cinematográfica (SOUSA, 2018, p. 09).

3
Abreviação de “fanfictions”, no Brasil também popularmente conhecido apenas por “fics”.

696
Dessa forma, a trilogia 50 Tons de Cinza, de E.L. James, publicada em 2011, torna-
se a mais famosa entre as fanfics de Crepúsculo, que eternizado no coração das(os) fãs,
ainda serviu de inspiração para uma história que rendeu três livros, seis anos depois de seu
lançamento.

Assim como Crepúsculo, 50 Tons de Cinza, também fez grande sucesso, tanto nas
livrarias quanto nas bilheterias, levando os mais diferentes tipos de público ao delírio com o
romance erótico entre Anastasia Steele e o empresário Christian Grey.

Duas histórias com características semelhantes, que alcançaram grande idolatria,


lhes fazendo sair das páginas dos livros e adentrar os telões, emocionando fãs pelo mundo
todo que, entretanto, carregam em suas narrativas sérias problemáticas, novamente
camufladas de romance.

Dessa forma, por se assemelharem em diversos aspectos, desenvolverei neste


momento uma análise conjunta da a saga Crepúsculo e da trilogia 50 Tons de Cinza, não
me prendendo especificamente aos filmes ou livros, mas sim, fazendo um apanhado geral
do conteúdo das narrativas, para destacar e refletir a respeito das partes mais
problemáticas, no que se refere a relacionamentos abusivos, das mesmas.

Tanto Isabella Swan, quanto Anastasia Steele, são meninas virgens, que segundo as
narrativas, não possuem grandes atrativos femininos, não possuem muita personalidade,
tem baixa autoestima e bombardeiam-se de características negativas. São o perfeito retrato
das inseguranças femininas, fazendo com que inúmeras mulheres vejam retratadas nas
personagens ao menos uma de suas inseguranças, já que as mesmas parecem ter todas
que existem no mundo e diante dessa identificação, comecem a sentir-se atraídas pelas
histórias.

Ambas as protagonistas conhecem os homens que vem a ser seu par romântico na
saga e os dois são caracterizados por homens bonitos, ricos, desejados e que passam uma
imagem de inacessíveis.

Neste momento, já podemos identificar as primeiras pistas de machismo e misoginia


que nos levam de volta à realidade dos contos de fadas: mulheres frágeis e inseguras que
necessitam encontrar seus príncipes encantados para resolverem todos os seus problemas,
destacando ainda a beleza e o dinheiro como atrativos principais que as mulheres devem
procurar em homens.

Os padrões e estereótipos sociais sempre assombraram a vida das mulheres,


ditando regras sobre como devem ser e estar em sociedade. O advento do movimento
feminista, o empoderamento feminino, vem aos poucos desconstruindo esses moldes

697
conservadores e possibilitando a emancipação de diversas mulheres. Entretanto, exaltar as
fragilidades femininas e a plena segurança e estabilidade masculina, reforça nas mulheres o
sentimento de impotência, de que não são autossuficientes para ter suas próprias
conquistas e serem vitoriosas sozinhas, de que no fundo, precisam mesmo de um homem
que lhes faça sentir segura e protegida, mesmo que para isso, devam se submeter a
situações hostis e desagradáveis.

Em pleno século XXI, este pensamento pode parecer extremamente incoerente e


retrógrado, porém, ainda permanece latente em muitas mulheres, que, frustradas por não
conseguirem atingir os padrões impostos pela mídia, entram em grandes crises consigo
mesmas, chegando a desenvolver doenças graves como bulimia e depressão.

Já tão enraizadas no sentimento de inferioridade, muitas mulheres passam a se


desvalorizar (como as protagonistas dos filmes) e no momento em que algum homem lhe
nota e lhe atribui um pouco mais de importância, tendem a imaginar que aquilo é um
privilégio sem tamanho, ainda mais se forem homens como os personagens das tramas:
ricos e poderosos.

Só até aqui, o começo da história, podemos considerá-la extremamente


problemática, entretanto, o nível de toxicidade destas narrativas, só tende a aumentar e
tornar-se mais sério e perigoso.

Depois que começam a se envolver, ambos os ―mocinhos‖ dizem para suas supostas
amadas, que elas devem ficar longe deles, porque são perigosos, Edward chega a dizer
para Bella que tem um desejo incessante pelo seu sangue como nunca teve na vida, por
ninguém.

Este para mim, é o ápice da falta de cuidado com o público juvenil, que é o principal
consumidor desses produtos. Os casos de mulheres desaparecidas, espancadas,
estupradas e mortas, são números que nunca param de crescer. Saímos de casa e não
sabemos se voltaremos vivas ou nos tornaremos estatísticas. Além disso, com o advento da
internet e os avanços da globalização, crianças e jovens saem da segurança de suas casas
através das redes de comunicação em massa e estão cada vez mais vulneráveis e expostas
aos perigos do mundo ―lá fora‖, como por exemplo, à manipulação de psicopatas pedófilos.
E diante de tudo isso, as narrativas de Stephenie Meyer e L.S. James induzem meninas a
não fugirem de homens que lhe digam que são perigosos e que querem lhes matar, e sim, a
acharem isso fascinante, atrativo e aceitarem manter uma relação com esses homens.

Daí entramos nos comportamentos obsessivos que norteiam as histórias como um


todo. Edward e Christian, deixam claro seu sentimento e desejo de posse por Bella e

698
Anastasia. Atitudes como perseguição, invasão do quarto, aparecer sem ser convidado e até
mesmo, colocar um rastreador na pessoa, são vistas como bonitas e românticas, utilizando-
se do argumento de que querem apenas o bem de suas amadas, que por sua vez, precisam
de sua proteção a todo momento do dia.

Mais uma vez, as narrativas ressaltam a fragilidade feminina e dão respaldo para
homens exercerem sobre mulheres esse tipo de comportamento obsessivo compulsivo,
fazendo com que muitas, mesmo mergulhadas nas situações e sentimentos mais
desagradáveis e desconfortáveis possíveis, a se sentirem privilegiada por ter alguém que,
em seu entendimento, lhes ama tanto a ponto de abdicar de sua própria vida, para estar em
constante proteção da vida de sua suposta amada.

Enraizadas na manipulação psicológica na qual estão submersas, as protagonistas


passam a desenvolver uma enorme dependência emocional por seus abusadores, que se
transforma em submissão. As histórias falam bastante sobre a relação dos casais serem
como a relação de um viciado e uma droga, que sem aquilo não são capazes de viver.

Sabemos que vício e pensamentos suicidas são graves problemas cada vez mais
recorrentes na sociedade e, portanto, que precisam de sérios tratamentos de saúde. Exaltar
vícios e morte é uma forma de implantar nas mentes a ideia de que tudo bem você ser
dependente de algo ou de alguém, tudo bem você não conseguir viver sem uma pessoa e
preferir tirar sua vida por isso, que o melhor a fazer então, é lutar a qualquer custo para
manter por perto o objeto de sua dependência, ao invés de se livrar dela.

A dependência é outra das características mais comuns em relacionamentos


abusivos. Consequência da manipulação, leva a vítima muitas vezes, a viver em um
universo particular com seu abusador, ignorando o resto do mundo e das pessoas que
faziam parte de seu círculo de relacionamentos, sendo levada a acreditar que precisa dele,
apenas dele e de mais ninguém para viver e ser feliz.

O isolamento da mulher de todos os seus ambientes sociais também é outra


técnica de abuso psicológico. Esta pode ser considerada uma sub categoria
do abuso emocional, podendo ser distinguida em seu foco em interferir e
destruir, ou danificar a rede de apoio social da vítima e fazê-la inteiramente,
ou amplamente dependente do parceiro abusivo para obter informações,
interações sociais ou satisfação de necessidades emocionais. O isolamento
social aumenta o poder do agressor sobre a vítima, mas também o protege.
Se a vítima não tem contato com outras pessoas o agressor terá uma
probabilidade menor de ter que enfrentar consequências legais ou sociais
que podem encerrar o relacionamento (MARQUES, 2005. p. 88).

Alguns dos relatos que coletei, trouxeram à tona esse tipo de situação. “Os primeiros
sinais que foram me deixando mal e eu não evitei, foi o fato dele começar a afastar de mim,

699
meus amigos. Ele sempre dava a entender que meus amigos estavam errados, que eles
queriam meu mal, queriam me separar dele e que ninguém me amava mais do que ele. Que
eu não iria encontrar alguém como ele, porque só ele era capaz de amar alguém como eu.
Aí fui me afastando dos meus amigos que sempre iam me mostrando como ele não prestava
e ele me fazendo pensar que quem não prestava eram eles. Ele fazia eu entrar em conflito
com meus pais para poder fazer do jeito que ele queria. Meus pais já vinham tentando me
mostrar que o relacionamento não prestava e eu não queria ver porque achava que tava
tudo bem, mesmo me sentindo mal.

Percebemos no relato, uma dependência baseada em uma agressiva violência


psicológica, que se aproveita da baixa autoestima e sentimento de inferioridade
desenvolvido pela mulher e agravado pelas atitudes do abusador, que fazem com que a
mulher acredite que aquela situação massacrante e dolorosa, é o máximo que alguém como
ela merece e pode encontrar na vida, portanto, deixar aquela situação, seria sinônimo de
estar adquirindo seu passe livre para a solidão eterna. Sobre isso, aponta Marques:

O homem, psicologicamente abusivo pode, também, tentar controlar a


mulher por meio de propaganda, em relação à auto-imagem dela. Assim,
dia após dia, ele utiliza palavras de baixo calão para referir-se a ela.
Maximiza os erros da mulher e os cria quando não os encontra. Aos poucos
a propaganda do homem é enraizada profundamente na auto-percepção da
mulher (MARQUES, 2005, p. 87).

Chegamos assim, a um ponto onde, partindo do princípio da manipulação, Edward e


Christian assumem estratégias diferentes. Apesar de todo aspecto sombrio, misterioso e
perigoso, Edward, durante quase toda trama, mantém a imagem de um galante cavalheiro
romântico: mostra-se quase sempre gentil, educado, compreensivo, nunca agressivo
fisicamente. Este é o principal motivo que faz com que, juntamente com Bella, uma legião de
fãs, apaixonem-se pelo personagem e sonhem em encontrar um Edward em suas vidas.

Faço questão, entretanto, de destacar que o protagonista age dessa forma quase
sempre, pois em alguns momentos, como quando revela para Bella sua verdadeira
identidade, deixa que venham à tona seus instintos do predador que realmente é e
reproduza um comportamento assustador e agressivo.

Tratando-se de vida real, inúmeros são os casos de mulheres que estão presas a
relacionamentos, cujos parceiros demonstram ser uns verdadeiros príncipes encantados de
contos de fadas quase que cem por cento das vezes, até mesmo por muitos anos, mas que
em determinados momentos, tem lapsos de atitudes agressivas, que variam em diferentes

700
níveis, geralmente começando com alterações no tom da voz ou alguns toques no
corpo com aplicação maior de força, como apertar o braço ou empurrar.

Porém, por tratarem-se de casos que acontecem em pequena frequência e são


encobertos por todas as outras atitudes de homem romântico, apaixonado – e manipulador
– muitas mulheres aceitam permanecer nesses relacionamentos submetidas a estes
episódios que, na maioria dos casos, vão se tornando mais frequentes e agressivos e
tornando-se um verdadeiro terrorismo na vida da vítima.

Mesmo com a exposição de todos os pontos negativos de Edward, que fazem com
que pareça inaceitável a idolatria do relacionamento abusivo que tem com Bella,
percebemos que a falsa imagem que constrói de romântico, apaixonado, compreensivo e
respeitador, torna mais fácil a manipulação psicológica de Bella e de todas as fãs da saga. O
que dizer então, da idolatria do casal de 50 Tons de Cinza?

Christian, é apresentado como adepto de BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação,


Submissão, Sadismo e Masoquismo), que são práticas sexuais voltadas para dominação e
submissão, de diversas formas, incluindo coisas como imobilização, controle total da outra
pessoa, sentir dor, etc. É importante ressaltar que as relações que envolvem as práticas de
BDSM precisam ser consensuais e agradar a toda as pessoas envolvidas, ou seja,
independente de quem seja dominadora(o), submissa(o) ou até mesmo transite entre os
dois, todas(os) devem sentir prazer.

Assim como a maioria das pessoas que fazem críticas negativas sobre a trama,
também deixo claro aqui, que em momento algum, estou criticando as(os) adeptas(os) de
BDSM, porém a trama faz com que a relação de dominador e submissa ultrapasse os limites
do sexo e se instaure em todos os âmbitos da vida do casal.

Como já foi citado, as atitudes que demonstram a obsessão e possessividade de


Christian em relação a Anastagia, são inúmeras, porém, diferente de Edward, o protagonista
de 50 tons de cinza não se preocupa em mascarar suas atitudes abusadoras e refere-se
explicitamente a si mesmo como dominador e a Anastagia como sua submissa, para além
do sexo.

O auge da trama, é um contrato que Christian dá a Anastagia, onde, somente


mediante a assinatura do mesmo, ambos poderão manter uma relação. As cláusulas do
contrato são tão hediondas, que se torna difícil, até mesmo, elencar as piores. Além de
determinar que a submissa deve aceitar de bom grado e sem reclamar, a quaisquer práticas
sexuais que o dominador quiser e quando ele quiser, independentemente de sua vontade, o
contrato também estipula que todos os outros âmbitos de sua vida, também serão

701
controlados por ele, e ela deverá, por exemplo, vestir, comer, beber, praticar exercícios,
manter suas práticas de higiene de acordo com o que ele determinar e ainda, ser obrigada a
tomar anticoncepcionais, não se masturbar, tratá-lo como se fosse uma serva, entre tantas
outras aberrações, mediante a castigos, caso não sejam cumpridas. Em síntese, o contrato
representa uma auto declaração de propriedade.

Assim, decorre-se uma trama cheia de agressões, físicas psicológicas, sexuais, onde
a protagonista é tratada com desprezo, machucada, estuprada, tem suas questões
particulares ignoradas. O agressor, consegue fazer a vítima acreditar que é um prazer
satisfazê-lo, além de transferir a culpa de seus próprios atos, para ela, fazendo-a sentir-se
sempre culpada pelos erros dele.

Mais uma vez vemos a ficção entrar em choque com a realidade, nas palavras das
mulheres entrevistadas. “Ele jogava fora as coisas que eu dava pra ele, quando a gente
brigava e fazia eu me sentir culpada”, “ele me traia e fazia eu me sentir culpada”, “vivia
terminando comigo e eu que tinha que me humilhar pra voltar”, “eu falei que estava grávida
ele tocou o foda-se.”

importante destacar ainda, que na trama, o comportamento doentio de Christian, é


justificado por um trauma de infância que teve, perpetuando a recorrente descriminalização
de agressores por serem taxados de doentes e não criminosos. Além disso, na sequência
das histórias, Anastagia apresenta-se mais ―empoderada‖, dona de si, capaz de fazer uma
reviravolta na vida do casal, evidenciando a falaciosa ideia da mulher guerreira, que pode e
deve manter-se ao lado de seu amado, até o fim, independentemente do nível de toxidade e
abuso dentro do relacionamento, principalmente se ele tiver alguma doença, pois ela deve
curá-lo.

A questão do uso de doenças, transtornos psicológicos como forma de chantagem


psicológica, tem estado cada vez mais frequente no cotidiano dos relacionamentos, o que
demonstra que as pessoas e principalmente as mulheres, não são ensinadas a colocarem a
si mesmas, as suas questões, sua saúde física e mental, em primeiro lugar, deixando-se
sempre em segundo plano e dando prioridade para a suposta saúde do outro.

E quando em lapsos de sanidade mental a protagonista da trama percebe o quanto o


relacionamento está lhe fazendo mal e repensa sobre permanecer nele, vemos a mais
famosa fala da história da romantização dos relacionamentos abusivos no cinema: por favor,
não me deixe, você significa mais pra mim do que qualquer coisa”. E mais uma vez segue
perpetuando uma ideia problemática, de que o abusador vai mudar, de que sempre vale à
pena serem dadas outras chances por amor.

702
Nos relatos das entrevistadas, muito ouvi sobre essa crença na mudança, que às
vezes até chegava a parecer que era real, mas no fim das contas, a única coisa real, foram
graves traumas extremamente difíceis de serem curados e que apesar de já estarem mais
amenos, são marcas que permanecem até hoje.

POR UM THE END MAIS FELIZ

Ao me debruçar sobre a análise destas obras, percebi o quanto já deixei passar


despercebida aos meus olhos, a toxidade de tantas relações, mascaradas de romances,
pelas histórias de ficção, consequência de todo o contexto cultural em que somos
inseridas(os) desde que nascemos e nos leva a naturalizar situações problemáticas voltadas
às questões de dominação de gênero.

fato que HQs, assim como Contos de Fadas, são eternizadas no coração de fãs e
tendemos a idolatrar as histórias de ficção que marcam positivamente algum momento de
nossas vidas, especialmente a infância. Entretanto, é necessário que tenhamos a mente
aberta para olharmos com cada vez mais cautela, observarmos e propormos novas analises
sobre os produtos que consumimos. Não podemos deixar que nossas idolatrias sejam
maiores que nossa empatia e, portanto, precisamos nos permitir enxergar em nossas
queridas histórias de infância, aparentemente inofensivas, os constructos de uma sociedade
cadê vez mais machista e misógina,

Não é legal uma mulher que passa anos de sua vida com um homem que chega em
casa alcoolizado, agredindo a tudo e a todas (os), por acreditar que deve manter a imagem
de mulher guerreira e permanecer ao seu lado por amor, confiante de que um dia ele vai
mudar e que ela será sua cura. Mulher não é remédio para curar ninguém, não é bonito nós
termos que ser guerreiras. A sociedade nos impõe esse status que implica em uma carga
muito desgastante e pesada que precisamos carregar, lutando para que cada vez menos
mulheres precisem assumir esse lugar que, portanto, não deve ser romantizado.

Infelizmente, enquanto muitas mulheres seguem nessa labuta constante pela sua
emancipação e conscientização de outras mulheres, tais histórias de ficção caminham na
contramão desse sentido, impulsionado à proliferação cada vez maior de relacionamentos
abusivos, consequência da elevada idolatria e do consumo destas histórias, que implantam
nas mentes o desejo de as verem reproduzidas em suas vidas.

O percurso deste trabalho, nos leva a constatar que sair de um relacionamento


abusivo é uma das coisas mais difícil na vida de mulheres que estão inseridas neles e para
algumas, chega a ser impossível, pois passa por vários estágios, desde se reconhecer em

703
uma relação tóxica, até ter coragem o suficiente para deixá-la. Por isso, muitas mulheres
passam a vida toda nesse lugar, sem nunca conseguir se libertar.

Dessa forma, percebo a necessidade incisiva do trabalho de conscientização,


diálogos sobre o assunto nos mais diversos setores sociais e a constante sensibilidade,
principalmente por parte de nós, mulheres, de perceber as demandas internas de outras
mulheres que estão a nossa volta (familiares, amigas, colegas de trabalho), se estão
passando por algum tipo de abuso ou afins e o que podemos fazer para ajudá-las, tendo a
sororidade como principal instrumento de luta pelas nossas vidas, sempre.

E para além disso, acredito que o trabalho mais efetivo para essa mudança de
pensamento romantizado sobre relações abusivas, deva ser feito na infância, fase onde as
crianças ainda estão despidas de preconceito e começando a construir suas noções sobre o
que é certo ou errado.

Enquanto não paramos de influenciar meninas a se apaixonarem por todo o contexto


dos contos de fadas, estereotipando padrões de beleza - colonizadores e homogeneizados -
e de comportamento - dócil e frágil, perante a figura masculina - e as fazendo acreditar que
precisam de um príncipe em suas vidas para lhes proteger, cuidar e resolver todos os seus
problemas, continuarão crescendo vulneráveis a um sistema de dominação opressor e
reproduzindo práticas que prejudiquem a elas mesmas.

Enquanto não começarmos a mostrar às adolescentes a realidade por trás das


histórias romantizadas, deixando-as acreditem que, seguindo pelos mesmos caminhos que
as ―mocinhas‖ dos filmes, vão acabar felizes para sempre com o amor da sua vida, seremos
igualmente responsáveis por quando elas acabarem infelizes, espancadas, estupradas e até
mesmo mortas.

As influências midiáticas possuem tamanha potência, que é necessário um trabalho


extremamente forte e coletivo, para desmistificar o que está culturalmente enraizado. São
conversas diárias com nossas crianças, jovens e também com pessoas adultas, em casa, na
escola, nas ruas, em todos os locais aos quais temos acesso. É deixar claro que gritou,
machucou, bateu uma vez, vai fazer de novo, generalizando sim! Porque não trabalhamos
com exceções, trabalhamos com estatísticas e pagar para ver se ele pode ser uma exceção
correr o risco de virar uma estatística. Nós não precisamos de mais estatísticas.
Precisamos de mulheres cada vez mais fortes, emancipadas e lutando, pelas vidas que já se
foram, pelas que estão aqui hoje e pelas que ainda virão.

Por todas nós. Não romantizemos.

704
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

50 TONS DE CINZA (Fifty Shades of Grey). Direção: San Taylor-Johnson. Produção: Michel
de Luca, Dana Brunetti, E. L. James. Focus Features, Michel de Luca Productions, Tigger
Street Productions. 2015, 128 min.

A BELA ADORMECIDA (Sleeping Beauty). Direção: Clyde Geronimi, Les Clark, Eric Larson
e Wolfgang Reitherman. Produção: Walt Disney. Walt Disney Animation Studios, 1959. 75
min.

CREPÚSCULO (Twilight). Direção: Catherine Hardwicke. Produção: Mark Morgan, Greg


Mooradian. Tempos Hill Entertainment, Maverick Filma, Imprint Entertainment, DMG
Entertainment, 2008, 122 min.

ESQUADRÃO SUICIDA (Suicid Squad). Direção: David Ayer. Produção: Zack Snyder, Deborah Snyder,
Colin Wilson, Geoff Johns, Steven Mnuchin. DC Entertainment, RatPac-Dune Entertainment, Atlas
Entertainment, Warner Bros. Pictures. 2016, 122 min.

MARQUES, Tânia Mendonça "Violência conjugal: estudo sobre a permanência da mulher


em relacionamentos abusivos [dissertação]." Uberlândia: Universidade Federal de
Uberlândia (2005).

NETO, Nikolly dos Santos. Relações abusivas no cinema: uma breve análise da
personagem Harley Quinn. Seja, gênero e sexualidade no audiovisual. Universidade
Estadual de Goiás – UEG, campus Goiânia – Laranjeiras. 22 a 24 de novembro de 2017.

SOUSA, Érica Renata de. Questão de gênero na infância e na escola. - Campinas, São
Paulo: [s, n.], 1999.

SOUSA, Priscila Santiago. 50 tons de crepúsculo: O RELACIONAMENTO ABUSIVO DO


CASAL EDWARD E BELLA NAS FANFICS BRASILEIRAS

THAY. Abuso não é amor: porque a cultura pop deve parar de romantizar relacionamentos
tóxicos. Violes: Grupo de Pesquisa sobre Tráfico de Pessoas, Violência e Exploração Sexual
de Mulheres, Crianças e Adolescentes. Postado em 19 de dezembro de 2016 - disponível
em: http://grupovioles.blogspot.com/2016/12/artigo-abuso-nao-e-amor-porque-cultura.html -
acesso em 08/11/19.

705
O EMPODERAMENTO FEMININO NO PROCESSO DE ROMPIMENTO DO CICLO
DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

https://doi.org/10.29327/527231.5-47
Mariana Ferreira Bezerra (UEPA)
Me.Carla Figueiredo Marinho Saldanha (UFPA/UEPA)

RESUMO
O presente artigo é resultado do recorte estabelecido na pesquisa que vem sendo realizada junto
a uma rede de mulheres vítimas de violência doméstica, no município de Igarapé Açú, localizado
no Região Nordeste, do estado do Pará. O mesmo visa compreender como mulheres que se
encontravam em relacionamentos violentos conseguiram se „desvencilhar‟ de seus agressores,
tendo o empoderamento feminino como ponto de partida. Para isso, além da leitura realizada
que direcionou nosso olhar, foi realizado o mapeamento das interlocutoras, que nos narraram
suas histórias de vida, expandindo assim as possibilidades de análise. Analisar a partir dessa
perspectiva fez-nos entender a importância do empoderamento, enquanto realocação do poder
que visa a igualdade entre os gêneros, que vem causando transformações significativas e reais
na vida das mulheres vítimas de violência.

PALAVRAS: empoderamento, violência doméstica, mulheres.

WOMEN'S EMPOWERMENT IN THE BREAKDOWN PROCESS OF DOMESTIC


VIOLENCE CYCLE

Abstract: This article is the result of the study established in the research that has been carried
out with a network of women victims of domestic violence, in the municipality of Igarapé-Açu,
located in the Northeast Region of the state of Pará. Found in violent relationships managed to
―break free‖ from their abusers, with female empowerment as their starting point. For this, besides
the reading that directed our eyes, the mapping of the interlocutors, who narrated their life stories
to us, thus expanding the possibilities of analysis. Analyzing from this perspective has made us
understand the importance of empowerment as a reallocation of power aimed at gender equality,
which has been causing significant and real changes in the lives of women
victims of violence.

Keywords: empowerment, domestic violence, women.

706
Introdução
A mulher por anos tem sofrido com a cultura machista que a inferioriza e a coloca como
destituídas de poder. Entre os fatores que as levaram a tal situação estão as ideologias
biologizantes, que estabeleciam sua diferença biológica como fator para discriminar e oprimir,
assim como ideologias pautadas na religião, que prezava pela família tradicional ( homem,
mulher e filhos). ―As religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio‖
(BEAUVOIR, 1970, p. 16). A construção do ―eterno feminino‖, foi usada para abafar
manifestações femininas sobre os direitos trabalhistas durante a revolução industrial no século
XIX, e disseminava a figura da mulher ideal, que seria a frágil, sensível, com vocação para os
afazeres do lar e da maternidade. Assim, não teve um fato histórico marcante que definiu a
inferioridade feminina, é uma ideologia construída socialmente por um gênero dominante que
não quer perder seus privilégios, ―[...] a construção social na supremacia masculina exige a
construção social da subordinação feminina‖ (SAFFIOTI, 1987, p.29).
O patriarcado estabelece a sociedade em volta do patriarca, logo, do homem,
determina as relações de poder como unidirecional, na qual a mulher se encontra no
patamar abaixo. Essa cultura machista, incorporada, faz com que muitas mulheres não
questionem o que é imposto, sua submissão é naturalizada, Como se fizesse parte de sua
essência biológica, quando na verdade ―somos seres sociais, afinal de contas, e
internalizamos as ideias através da socialização‖ (ADICHIE, 2014, p.37). Como afirma
Durkheim (2000), esse binarismo estabelecido entre os gêneros foi criado por uma lógica
que está composta dentro da hierarquia social. É uma unidade do conhecimento que se
estende da coletividade ao universo.
Essas classificações opressoras geram uma série de consequências à mulher em
sua vivência. Já que foram criadas para se reprimir, não falam e não exprimem seus desejos
sexuais, são passivas, ―como se a feminilidade se medisse pela arte de „se fazer
pequena‟‖(BOURDIEU, 2002, n.p). Desde a infância somos ensinadas como devemos nos
comportar, agir, porém não de uma forma autônoma, mas sim em função do agente
dominador, ―[...] criamos as meninas de maneira bastante perninciosa, por que as
ensinamos a cuidar do ego frágil do sexo masculino‖ (ADICHIE, 2014, p.33). A virilidade do
homem, se constitui nessa relação, um aspecto do seu poder e deve ser provado perante a
sociedade, é o poder do macho, que não demonstra emoções, que sustenta a família, que é
potente no sexo.
Essa virilidade legitimadora do seu poder, constitui também, segundo Saffioti (1987), na
castração do homem, no qual reprime sua sensibilidade e seus desejos em prol do bom
desempenho do papel de ―macho‖. Uma forma de demonstrar sua ―masculinidade‖ é a prática de
violência doméstica. Pois no casamento ele é o chefe da família. ―Ele é a autoridade moral,
responsável pela respeitabilidade familiar. Sua presença faz da família uma entidade moral

707
positiva, na medida em que ele garante o respeito.‖ (SARTI, 1994, p.78). Logo, muitas
mulheres se submetem por anos a violência de seus companheiros e cônjuges, pois lhe foi
repassado cada papel social estabelecido dentro da união. E como mesmo afirma Louro
(2007), papéis sociais são normas e regras arbitrárias, padrões de comportamento que
enclausuram as identidades dos sujeitos, que não dão conta da complexidade social. A
padronização do comportamento resulta muitas vezes na rotinização da violência sem ação
da vítima para a denúncia, o que prejudica muito o combate ao problema social.

Violência doméstica e Empoderamento


A violência é discutida na lei Maria da Penha (11.340/2006), na qual é definida em
o
seu Artigo 5 ―qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,

sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial‖ (BRASIL, 2006). E


pode ser classificada em: a) física, em que é ferida a integridade e saúde corporal da
mulher; b) psicológica, que consiste em ameaças, diminuação da autoestima, chantagem,
violação do direito à liberdade; c) sexual, que é obrigar a manter, presenciar ou participar de
relação sexual sob ameaça, coação ou uso da força e ainda proibir o uso de contraceptivos,
forçar matrimônio, gravidez, aborto ou prosttuição; d) Patrimonial, no qual configura a
retenção, subtração e destruição de bens e objetos, entre outros; e) Moral, que consiste em
calúnia, injúria e difamação. (BRASIL, 2006)
A violência doméstica, dificilmente se constitui apenas de um tipo de violência, em
muitos casos, acontece mais de um ou todos os tipos de violência. ―As violências física,
sexual, emocional e moral não ocorrem isoladamente. Qualquer que seja a forma assumida
pela agressão, a violência emocional está sempre presente. Certamente, se pode afirmar o
mesmo para a moral.‖ (SAFFIOTI, 2011, p.75). Essas mulheres, porém, são silenciadas
devido a ideologia patriarcal de dominação, na qual a violência está enraizada culturalmente
como ―normal‖ em relações afetivas. Esse fator faz com que dados estatísticos, levantados a
partir das denúncias registradas nas delegacias, sejam incompletos quanto a realidade de
fato. Isso resulta assim na invisibilização da violência.
Como mesmo se evidencia em um pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de
Segurança em parceria com o instituto de pesquisa Data folha em 2019 ―Visível e invisível: a
vitimização de mulheres no Brasil- 2° edição‖ que levantou dados quantitativos a partir de
abordagem pessoal em pontos de fluxo no país. Os dados levantados mostram que cerca de
39% das mulheres sofrem ou sofreram violência doméstica praticada por seus companheiros ou
ex-companheiros, e ainda, que cerca de 52% do total de mulheres que sofreram violência, não
fizeram nada, se calaram diante do fato ocorrido. Outro fator importante levantado pela pesquisa,
foi o maior índice de violência sobre mulheres pretas. (BRASIL, 2019). O preconceito racial em
torno do seu passado histórico de subordinação, no qual a mulher negra

708
se encontra abaixo do homem e mulher brancos e ainda abaixo do homem negro, faz com
que a opressão social a partir do patriarcado seja ainda mais árdua, e a dominação
masculina sobre elas mais violenta.
Segundo Saffiotti (1987), o sistema de dominação está pautado em um sistema único
de poder em que se relacionam Patriarcado-racismo-capitalismo, no qual são indissóciaveis
para compreender torda a opressão sobre o gênero feminino. Ela afirma que a luta de
classes isoladamente não se faz suficiente para combater a violência contra a mulher , pois
até mesmo revolucionários de esquerda são capazes de agredir suas parceiras tão
violentamente quanto conservadores de direita, e ainda sim dissimular perante a sociedade
como um homem desconstruído. O ideal para o dominador é não perder sua posição de
privilégio, de detentor do poder.
Diante disso, pode-se perceber o quanto violência e poder estão intimamente
relacionados. E o empoderamento surge nas discussões feministas no EUA em meados dos
anos 70 com o objetivo de reconduzir os focos de poder, para que funcione em coletividade
como capacitador e não como forma de opressão. Sardenberg (2006) afirma que o termo
dentro do feminismo tem um fim em si próprio, pois significa autonomia, autodeterminação e
libertação opressões de gênero. Porém esse termo tem sido usado atualmente com
significado difuso e contrário à essência feminista.
―Um movimento que antes priorizava a solidariedade social e agora celebra
empreendedores femininos. Uma perspectiva que antes valorizava o „cuidado‟ e a
interdependência e agora encoraja o crescimento individual e meritocracia‖ (FRASER, 2017,
p.2). Ou seja, se tornou um elemento individualizante voltado apenas para o crescimento
econômico. Como exemplo, cita-se os sete princípios criados pela ONU mulheres em 2010
voltados para a inserção da mulher na comunidade empresarial. Conforme Cândido e
Freitas (2016), esses princípios tem como objetivo estabelecer a igualdade de gênero,
aumentar a participação feminina nas atividades sociais e econômicas de maneira
igualitária. Não obstante, para Fraser (2017), essa outra significação do empoderamento
feminino só age a favor do individualismo (neo)liberal e do crescimento do capitalismo.
Pontua a necessidade de retomar o verdadeiro objetivo do empoderamento feminino de
tornar mulheres autônomas, donas de si e ainda de promover a mobilização feminina para
lutarem contra as desigualdades de gênero.
esse conceito que é importante para o estudo da superação da violência contra a
mulher. ―O empoderamento como auto-confiança e auto-estima deve integrar-se em um
sentido de processo com a comunidade, a cooperação e a solidariedade‖ (LEON apud
SARDENBERG, 2006, p.5). É na união entre as oprimidas que se criam forças para
combater um problema social tão complexo e frequente que é a violência doméstica.

709
Caminhos metodológicos

Diante da necessidade de se trabalhar a violência doméstica como uma relação de


poder, ou melhor como a legitimação do poder do macho, buscou-se compreender como
empoderamento feminino contribui para o rompimento do ciclo de violência. Para isso,
buscou-se a coleta de narrativas de duas moradoras do muncípio de Igarapé-Açu/PA, tendo
como ponto de partida o uso de entrevistas abertas, pois ―é uma forma de colher
informações baseadas no discurso livre do entrevistado‖ (LUDKE e ANDRÉ, 1986, p.92).
Assim, a história de vida dessas mulheres revelaram, além da violência sofrida por anos, os
reflexos do empoderamento no rompimento desses relacionamentos. Mostrou o que essas
mulheres fizeram para romper com a rotina de uma relação violenta cronificada. ―A violência
doméstica tende a se transformar em rotina. Esta, todavia, não deixa de ser passível de
ruptura.‖ (SAFFIOTI, 1999, p.454).
A coleta da história de vida é essencial para a pesquisa em questão, pois para
Minayo (1999), faz o informante reviver o momento passado de forma a retomar emoções e
sensações inerentes ao acontecimento. Permite que o próprio pesquisado construa um
pensamento crítico sobre sua própria experiência e relate para o pesquisador suas
interpretações do vivido. É uma técnica que propicia uma variedade de dados relevantes
que serão essenciais para posterior teorização. A memória nesse método é um elemento
fundamental para compreender a realidade à época dos acontecimentos que se quer
investigar. Além de ser uma forma de analisar o discurso e os signos a partir de como o
informante se recorda dos fatos. ―A lembrança é em larga medida uma reconstrução do
passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por
outras reconstruções feitas em épocas anteriores [...]‖ (HALBWACHS, 1990, p.71).
Não houve maiores dificuldades de contactar as informantes, dado que as interloculoras
fazem parte do meu ciclo de amizade e por anos fui confidente dessas mulheres. O campo foi
apresentado a mim, ―o envolvimento com o campo pode inclusive começar antes do
desembarque do antropólogo em „sua aldeia‟ e prosseguir mesmo quando ele já a abandonou‖
(SILVA, 2015, p. 27). Esse fator foi um dos pontos cruciais para escolha do tema da pesquisa,
por observar a importância que o empoderamento feminino tem na vida dessas mulheres.
Gostaria de salientar que apesar de fator desencadeador da autonomia e superação da
violência, o empoderamento feminino não é o único e nem fator de combate à violência
doméstica. Os demais fatores serão explanados no decorrer do trabalho.
Visando a integridade, foram usados pseudônimos escolhidos pelas próprias
informantes. Os nomes escolhidos fazem referência a pedras naturais de significados
místicos, e que dizem muito respeito à personalidade de cada uma. Segundo o esoterismo,
Quartzo rosa está atrelado ao amor e Ônix a força e superação, isso demonstra como cada

710
uma se define, enquanto a primeira é muito aflorada em emoções, a outra se vê como
resiliente dos traumas vividos.
A coleta das informações, através de anotações escritas e gravações de áudio, foram
realizadas após a autorização verbal prévia das pesquisadas, após a explicação dos
objetivos do estudo e finalidade dos resultados. A ―explicitação dos métodos e
procedimentos utilizados pelo pesquisador, de modo que fique claro „como‟ foram obtidas as
informações‖ é essencial para a ética do estudo. (LUDCKE e ANDRÉ, 1986, p. 52)

Dialogando com o campo

A construção da imagem da família patricarcal baseia-se na estrutura hierarquizante


no qual cada um detém seu papel. A família se torna, nesse sentido, o espelho da criação
dos filhos e o centro de referência moral com a sociedade. ―A idéia de família compõe-se,
entao, de três peças: o casamento (o homem e a mulher) a casa e os filhos‖ (SARTI, 1994,
p.92) . O pai nessa estrutura é o patricarca, o detentor de poder para falar pela família, o
―chefe‖, ao qual o restante deve respeito. A mãe é a responsável pelo âmbito doméstico. ―A
casa é identificada com a mulher e a família com o homem. Casa e família, como o homem
e a mulher, constituem um par complementar, mas hierárquico. A família compreende a
casa, a casa está, portanto, contida na família‖ (SARTI, 1994, p.77).
Não obstante, as mulheres da pesquisa não tiveram as famílias de origem pautadas
nesse modelo. A Quatzo rosa, de 29 anos, foi criada pela avó e pelo avô e a Ônix, de 28
anos, foi criada pela avó e não conheceu o pai. Essa realocação da referência de pai e mãe,
segundo Sarti(1994) é relativa e implica em uma flexibilidade das categorias. Ambas
presenciaram e participaram de situações de violência familiar, a primeira por parte do avô
que agredia sua avó, que se resignava devido aos dogmas a igreja. A segunda por parte da
mãe, em que se agrediam verbalmente e fisicamente. Mesmo assim, com as experiências
vividas, construíram famílias tracidicionais. ―É, sem dúvida, à família que cabe o papel
principal na reprodução da dominação e da visão masculina.‖ (BOURDIEU, 2002, n.p.).
A violência nos relacionamentos afetivos, geralmente não acontecem no início. A
fase em que ambos se apaixonam é, segundo Bourdieu (2002), uma trégua milagrosa que
se dá, em que a necessidade do homem mostrar-se viril e sua vontade de dominar parece
anulada.―Durante o nosso namoro eu não me lembro que ele tenha me agredido, nem
verbalmente e nem fisicamente, acho que depois da convivência‖ (ÔNIX, 2019). Passada
essa fase, em que o amor predomina ambos, o sentimento de dominador retorna e com a
convivência, o homem vê a necessidade de manter a mulher sob seu controle. ―Até mesmo
a linguagem que empregamos dentro do casamento é reveladora: frequentemente é uma
linguagem de posse, não de parceria.‖ (ADICHIE, 2014, p. 37)

711
Morais e Rodrigues (2005) afirmam que nesse primeiro estágio, é uma relação de
confiança, porém os estágios posteriores configuram o rompimento dessa confiança tal como:
primeira agressão e sentimento de culpa; 2) vítima assume o modelo mental do agressor;
3)desenvolvem uma síndrome semelhante a ―síndrome de estocolmo‖, chamado ―síndrome
da mulher espancada‖. Essa síndrome constitui sintomas como dependência, idealização e
defesa do agressor, raiva, desesperança, culpa alcóol e drogas e não denunciam por medo.
eu insistia na relação porque a gente acha que é amor na verdade né, a
gente acha que a gente tem aquela esperança de que vai mudar né „ah!
ele vai mudar „, „Ah! vai ser diferente‟ , „ Ah! porque ele chorou, porque
ele disse que vai mudar" e nada muda. (ÔNIX, 2019)

Como se pode perceber, a mulher se mantém no relacionamento devido ao amor


idealizado que resulta em omissão das violências praticadas contra ela e por mêdo de perdê-lo.
Essa relação entre dominado/dominador é de dependência emocional. É a construção do
habitus defendido por Bourdieu (2002), no qual ―os dominados aplicam categorias do ponto
de vista dos dominantes às relações de dominação [...]. O que pode levar a uma espécie de
autodepreciação ou até de autodesprezo sistemáticos‖(n.p.).
O que me deixava triste é que eu passava fome com ele e mesmo
assim ele me traía. Depois pedia desculpa, chorava e eu perdoava
achando que ia mudar[...]. Eu me acostumei com a presença dele, eu
achava que não conseguiria viver sem ele. Eu era muito apaixonada
por aquele homem. (QUARTZO ROSA, 2019)

Além disso, há a crença de que a mulher irá mudar o companheiro, torná-lo uma
pessoa melhor e assim se submete a violências que destroem vários aspectos de sua vida
social gradualmente, inclusive, em casos extremos, à morte.
O sentimento de onipotência experimentado pela maioria das
mulheres transforma-as, não em cúmplices, conduta que exigiria
plena consciência do contexto social, econômico e político que
comporta as relações patriarcais de gênero, mas em colaboradoras,
em inocentes úteis. ( SAFFIOTI, 2002, p.69)

relatado em ambos os casos que as agressões mútuas eram frequentes. É quando a


relação violenta se cronifica. ―Essas cenas revelam que a agressão funciona como uma espécie
de ato de comunicação no qual os parceiros ensejam criar novas formas de relacionamento, sem
empregar recursos que levem a um acordo, a um entendimento ou a uma negociação das
decisões.‖ (GREGORI,1993, p.149). A permanência na relação, ou seja, o ato de consentir
nesse caso não é somente porque a mulher almeja estar com o agressor e sim devido à falta de
conhecimento das estruturas que lhe oprimem. Para ela, é natural e é o correto a se fazer em
prol da sua família. Como mesmo afirma Saffioti (1999), esse consentimento só é a aparência do
fenômeno, pois a consciência da mulher dominada é

712
diferente da consciência do dominador. Ou seja, falam de categorias sociais em que um
exerce o poder sobre o outro, logo, não consentir, e sim ceder diante da violência e das
pressões sociais.
Aconteceu uma vez de eu estar grávida do H., Eu tava grávida do meu
segundo filho, eu tava com uns seis meses eu acho , então como já falei
eu não aceitava drogas né, então ele tinha sumido o dia todo e eu já
conhecia. Então quando ele chegou em casa, como falei, sempre fui
muito pra frente e então fui tirar satisfação, mas fui tirar satisfação
conversando com ele, em nenhum momento eu agredi ele. Ele tava
bebido e com certeza ele tava drogado, porque ele tava bastante
alterado, e eu tava com seis meses e essa minha gravidez foi um pouco
complicada, eu tive uns problemas de saúde nessa gravidez e aí ele me
agrediu muito dessa vez, que eu fiquei com o joelho muito inchado e a
gente morava numa vila e as pessoas , no caso a dona da vila e o dono
da vila tiveram que entrar em casa, porque eu já tinha caído né e ele
continuava me batendo. (Ônix, 2019)

Em muitos casos também, essa violência é associada ao consumo de álcool, falta de


emprego e ao uso de drogas. No entanto, esses fatores não são justificativas para a agressão,
pois a ―violência, todavia, já está contida nos homens em virtude das relações que costruíram
com as mulheres, graças a assimetria contida na estruturação da sociedade em gênero.
Problemas de ordem financeira e alcóol são apenas facilitadores do processo de violência.‖
(SAFFIOTI, 1999, p.449). Além disso, pode-se perceber a omissão da sociedade perante o
acontecido, pois mesmo com um ambiente com várias familias, só interferiram porque a
vítima estava grávida, e ainda quando as agressões se tornaram muito sérias.
Ele é um cara muito machista né, até hoje, tipo: homem trabalha e
mulher fica em casa Até hoje eu recebo uma pensão né, eu sou
penionista do Estado, eu sempre recebi essa pensão mesmo estando
com ele, só que nesse tempo essa pensão não dava pra mim me
manter. Eu não tinha condições de alugar uma casa, de pagar luz,
água e ficar com meus filhos. (ÔNIX, 2019)

Como pode-se perceber, outro fator que pesa para que essas mulheres não
abandonem seus maridos é a dependência financeira. Porém, percebe-se também que eles
agem para mantê-las nessa condição, pois não deixam elas trabalharem.
Ele não deixava eu estudar, não pagava curso pra mim. Eu consegui
um emprego, mas quando eu tinha que ficar até mais tarde na loja,
ele não entendia, sentia ciúmes. Fiquei só um mês lá. Uma vez,
nessas festas de fim de ano, fiquei o dia todo em pé atendendo
clientes e quando saí morta de cansada, ele tava na frente da loja
com minha filha pra eu amamentar. (QUARTZO ROSA, 2019)

Muitas mulheres também vivem com o agressor devido aos filhos. Pois cabe a mulher o
papel fundamental de mãe, o julgamento da sociedade da mãe que deixa o marido e ―não pensa
nos filhos‖ pesa quando ela vai fazer uma denúncia, ou, sair de casa. ―Então eu fui

713
muito covarde né? É, pra preferir viver com ele desse jeito, amando ele eu acho né, na minha
cabeça, pensando que pudesse ser amor, melhor do que voltar pra casa da minha mãe, com
filho na barriga e outro já grandinho.‖ (ÔNIX, 2019)
Em muitos casos, a própria família induz a mulher a suportar a violência em prol da
manutenção da moral da família. Como podemos ver na fala da interlocutora, ela tinha medo
dos julgamentos de voltar para a casa da mãe com dois filhos. Além disso, quando o pai faz
seu papel de zelar e cuidar dos filhos (sem ser uma tarefa atribuída só mulher) isso serve de
justificativa para que a mulher suporte a violência sofrida ―Você tem que perdoar ele, porque
pelo menos ele te ajuda com as meninas, faz as coisas dentro de casa e não gasta o dinheiro
dele com prostituta.‖ (QUARTZO ROSA, 2019). Assim, não há um perfil específico do
abusador, pois pode ter uma vida social absolutamente normal e aparentar boa índole, e ser
violento no ambiente doméstico.
Nunca se conseguiu estabelecer o perfil do agressor [...], uma vez
que, geralmente, eles possuem um emprego no qual se relacionam
convenientemente, desempenhando a contento também outros
papéis sociais visíveis. Na esfera privada, todavia, obscurecida pela
invisibilidade, muitos homens comportam-se violentamente, contando
com a mudez da companheira dominada e, se esta denunciá-lo, com
o auxílio de sua libada reputação, se não houver marcas corporais,
finalmente, com a impunidade. (SAFFIOTI, 1999, p.451)

Diante das discussões acima, vimos o quanto e necessário o empoderamento


feminino. Uma das formas de romper com essa opressão do gênero feminino. ―O ideal seria
uma organização de gênero que se mantivesse no mesmo patamar, quanto à probabilidade
do exercício de poder, homens e mulheres.‖ (SAFFIOTI, 1999, p.461). O processo de
empoderamento é o questionamento que vai surgir em torno das forças sistêmicas que
oprimem as mulheres. O impulso, segundo Morais e Rodrigues (2005), é externo, através de
leituras, vídeos, palestras ou qualquer outro meio que lhe traga conhecimento desse sistema
patriarcal dominador que influi sobre ela. Essa é a primeira fase elencada por Stromquist
(apud SARDENBERG, 2006): a cognitiva, que desenvolve a criticidade das vítimas.
Uma parcela das mulheres consegue romper com a relação
dominada/dominante, saindo do estado de não-conhecimento para o
de conhecimento. Sua consciência perde as características de
dominada e passa a ter uma visão de conjunto das relações de
gênero. Mais do que isto, muitas lançam-se na luta pela ampliação
da cidadania feminina, fazendo uma leitura dos direitos humanos a
partir da óptica de gênero. ( SAFFIOTI, 1999, p. 453)

A segunda fase é a psicológica, que é a internalização de sentimentos contrários


ao medo, tais como autoestima e autoconfiança.
Antes eu não podia usar um hidratante, eu sou louca por hidratante,
mas só podia usar de fosse pra ele. Eu nõ podia me depilar, porque

714
se eu tivesse me depilando era pra alguém. Fiz academia uma vez,
mas quando ele viu que eu tava emagrecendo começou a sabotar
minha dieta. Levava lanches pra casa e comia na minha frente
sabendo que eu tava fazendo um esforço enorme pra não comer.
Hoje em dia, eu uso os hidratantes que quero, pratico o esporte que
amo, que é o vôlei. (QUARTZO ROSA, 2019)

Como afirma Bourdieu (2002), a dominação masculina que objetifica a mulher, faz com
que elas se sintam inseguras com o próprio corpo. Destarte, reduz sua auto-estima para
satisfação do ego masculino. O incômodo com a prática de esporte também se dá pelo fato de o
corpo feminino mudar sua significação de corpo apenas para o olhar do outro e passa a atribui-
lhe uma função ativa, este constitui então a sua própria ação diante da sociedade.
A terceira fase é a política, em que reconhece as desigualdades de poder e
possibilita maior mobilização coletiva. Segundo SILVA (2017), A mobilização das mullheres
tem sido importante para a visibilidadde dos crescentes numeros de violência doméstica,
para combater a desigualdade de gênero e para desnaturalizar valores discrinatórios.
A partir do momento que tu vê que tal mulher conseguiu superar isso,
tu se espelha. Se ela conseguiu, eu também posso conseguir.
Depois que a Lei Maria da Penha veio, quantas mulheres já não
deixaram de morrer e também quantas já não morreram. Eu acho
que a gente tem que se unir, pra não deixar que isso aconteça, assim
como aconteceu comigo. ( ÔNIX, 2019)

A quarta e última é a econômica, que garante independência financeira. ―O meu curso de


cabeleleira me ajudou muito, assim como os meus laços, agora eu tenho meu dinheiro‖
(QUARTZO ROSA, 2019). Como afirmado anteriormente, não é só o empoderamento que é
capaz de romper com o ciclo de violência contra a mulher. É necessário ainda uma ação do
Estado e da sociedade. A desconstrução não deve ser feita apenas com as mulheres, mas
com homens também, afinal eles são o centro do patriarcado e devem compreender seus
papéis enquanto opressores no sistema.
Existem as leis vigentes de proteção à mulher, que são: a lei Maria da Penha
(11.340/2006) que fez mudanças significativas no código penal em seu parágrafo 9° do
artigo 129, esses agressores podem a partir dessa mudança serem presos em flagrante e
podem ter sua prisão preventiva decretada, banimento da pena alternativa e o aumento da
detenção de um ano para três anos (BRASIL, 2006); e a lei de feminicídio (13.104/15) que
torna crime hediondo a violência contra a mulher por razões da condição do sexo feminino,
no qual foi ainda aprovado em 2018 em plenário o agravamento da pena para 12 a 30 anos
de reclusão. (BRASIL, 2015)
Existem também as DEAMs (Delegacias Especializadas de atendimento à Mulher), no
qual , segundo Silva (2017), constituem o primeiro contato que as vítimas têm com o Estado em
busca de solução para o problema. Para maior efetivação do orgão, é necessário que haja

715
uma rede articulada entre defensoria pública, Instituto Médico Legal, Tribunal de Justiça e
ainda profissionais capacitados em gênero para atender as demandas. Os Centros de
Referências como o CRAS ( Centro de referência em assistência Social ), o CREAS (Centro
de Referência Especializado em Assistência Social) e o CRAM ( Centro de Referência de
Atendimento à Mulher), também são imprescindíveis no atendimento à mulher vítima de
violência, pois ―são espaços de atendimento psicológico, social, educacional, orientação e
encaminhamento jurídico à mulher em situação de violência.‖ ( SILVA e CARRERA, 2017, p.
105). Segundo as autoras acima, a educação também é um meio eficaz de combater a
violência contra a mulher. É importante que docentes da educação básica estejam ciente do
sistema de dominação que incide sobre as mulheres e ensinem seus alunos sobre igualdade
e respeito aos direitos humanos.
Outro ponto importante, é a rede de apoio, que constituem família e amigos que
podem fornecer não só a proteção contra a violência, como também podem dar o apoio
financeiro para que saiam dessa condição. Sem essa rede de apoio, o impacto é a ―
vulnerabilidade frente à violência, já que os sujeitos se mostram isolados e sem apoio
afetivo‖ ( LETTIERE e NAKANO, 2011, p.5).

Considerações finais
Diante do exposto podemos perceber o quanto o empoderamento favorece a
autonomia e impulsiona transformações significativas nos relacionamentos aos quais a
violência se faz frequente. As mulheres não são as culpadas como vários ditados do senso
comum costumam afirmar. São vítimas de um sistema integrado de dominação, em que
pesa sua condição feminina, sua categoria de classe e sua cor de pele, pois, quando
negras, sofrem uma dominação tripla. A mulher não consegue se emancipar sozinha,
precisa-se muito mais do que apenas ―querer‖ sair dessa condição.
O ―querer‖ romper com o ciclo de violência é importante sim, pois demonstra que a
vítima já passou pela primeira fase de se situar e compreender as forças sistêmicas
opressoras. Não obstante, como explanado no trabalho, necessita-se muito mais que isso. O
Estado tem um papel imprescindível nessa luta, pois deve romper com os paradigmas
vigentes que o constituem. A impunidade faz com que muitos casos não cheguem à justiça,
além da burocracia que prejudica o andamento do processo. O aumento de pena e
mudanças legislativas são necessárias, porém a garantia do cumprimento deve ser a
prioridade no enfrentamento à violência doméstica.
A constituição de esteriótipos moralistas sobre as mulheres também fazem com que não
haja a denúncia e ainda podem servir como forma de inverter a situação para culpabilizá-las. Por
isso, a transformação da sociedade é também o outro ponto essencial no processo, pois é
perpetuadora das desigualdades sociais através da tradição, do machismo inculcado.

716
O empoderamento feminino como forma mobilizações políticas, age como colaborador dessa
desconstrução, da conscientização e de fator essencial de luta contra a violência doméstica.

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718
Doença Falciforme, Ancestralidade e Aconselhamento Genético: Relações de Gênero
e Direitos Reprodutivos no Estado do Pará, Amazônia.
https://doi.org/10.29327/527231.5-48
Ariana K L S da Silva, ² Roseane B Tavares, ³ Lígia A Filgueiras

³ Universidade do Estado do Pará – UEPA; ² Universidade Federal do Pará – UFPA

Resumo

A Doença Falciforme (DF) é a síndrome genética mais prevalente do mundo. No Brasil, 3.500
crianças nascem por ano com Anemia Falciforme (AF), a forma sintomática da doença e 200 mil
nascem com o Traço Falciforme (TF), assintomáticos. No Pará, 1% da população possui AF e 4,4%,
o TF. Avaliamos sintomas clínicos, ancestralidade e autodeclaração de raça/cor. No Hemocentro
regional do Pará investigamos 60 pessoas com AF, com formulário semiestruturado, a fim de
compreender manifestações clínicas, relações sociorraciais, gênero, renda, direitos reprodutivos,
aconselhamento genético e identidade. É incipiente o aconselhamento genético no Pará e inexiste
um setor específico no Hemocentro. As pessoas relatam ―evitar filhos porque podem nascer
doentes‖. 90% do grupo se autodeclara negro, mas 41% tem aDNA Europeu. As mulheres têm
sintomas mais severos e convivem com renda 50% menor que os homens.

Palavras-chave: Doença Falciforme; Ancestralidade Genômica; Aconselhamento


Genético; Direitos Reprodutivos; Amazônia.

Sickle Cell Disease, Ancestry and Genetic Counseling: Gender Relations and
Reproductive Rights in the State of Pará, Amazonia.

Abstract

Sickle Cell Disease (SCD) is the most prevalent genetic syndrome of the world. In Brazil, 3,500
children are born a year with Sickle Cell Anemia (SCA), the symptomatic way of the disease and
200 thousand are born with the Sickle Cell Trait (SCT), the asymptomatic way. In the State of
Pará, 1% of the population has SCA and 4.4% has SCT. Clinical symptoms, ancestry and
race/color self-declaration were analyzed from 60 people with SCA of the Pará Regional Blood
Center, with semi structures form, in order to understand clinical manifestations, socioracial
relationships, gender, income, reproductive rights, genetical counseling and identity. Genetic
counseling in the State of Pará is incipient and there is no specific sector in this Blood Center.
People report ―avoid having children because they may be born sick‖. 90% of the group self-
declared as black, but 41% have European aDNA. Women have more severe symptoms and live
with income 50% lower than men.

Key-Words: Sickle Cell Disease; Genomic Ancestry; Genetic Counseling; Reproductive


Rights; Amazonia.

719
Introdução

As hemoglobinopatias são distúrbios hereditários que afetam a hemoglobina


humana, ou seja, elas são determinadas pela genética do indivíduo. Dessa forma são
produzidas hemoglobinas anormais que podem passar despercebidas ou até mesmo causar
a morte do portador (Orlando et al., 2000).

A hemoglobina S (Hb S) e C (Hb C) são as variantes mais frequentes no Brasil. Elas


têm uma provável origem africana e estão presentes em nossa população em função do
processo de colonização. Há, no entanto, outras variantes associadas com inúmeras
alterações genéticas. Dessa forma, é importante que as hemoglobinopatias sejam
diagnosticadas o mais cedo possível, por meio de exames laboratoriais. Em todo o país, um
dos tipos de hemoglobinopatias mais comuns são as síndromes falcêmicas, porém elas
apresentam prevalências diferenciadas (Orlando et al., 2000).

A Doença Falciforme (DF) é a hemoglobinopatia genética mais prevalente em todo o


mundo, estando associada a um evento micro evolutivo e adaptativo ao vetor da malária na
faixa de clima tropical do Continente Africano e Árabe-Indiano, porém atualmente está
difundida e presente nas Américas, Europa e Ásia (ANVISA, 2001; Naoum 2000a; Naoum
2000b).

No Brasil, a DF é uma síndrome comum, considerada a doença hereditária de maior


prevalência no país e que é predominante entre as pessoas autodeclaradas pretas e
pardas, ocorrendo também entre brancos devido o processo de fluxo gênico brasileiro
(Guimarães e Coelho, 2010; ANVISA, 2001). Ela surge em função da mutação que
acontece no gene da globina beta da hemoglobina, resultando numa hemoglobina anormal
(Hb S). As pessoas que possuem a DF têm pais heterozigotos, ou seja, que possuem um
dos genes modificados – o Hb AS, chamado de Traço Falciforme (TF), sendo, em geral,
assintomáticos –, e que, em proporções mendelianas, tem 25% de chance de gerar um
indivíduo com uma dose dupla desse gene anormal – o Hb SS, que é sintomático para
Anemia Falciforme (AF), a forma mais grave da doença. A estimativa é de até 3.500 novos
casos por ano de nascidos vivos com AF, o que faz com que a doença seja considerada um
problema de saúde pública (ANVISA, 2001; Guimarães e Coelho, 2010).

Sendo uma doença crônica e hereditária, que causa complicações em vários órgãos
e sistemas do corpo, como icterícia, AVC, dores musculares intensas, infecções, febre,
úlceras e necroses ósseas, causando inúmeros momentos de internações hospitalares e
tratamento rotineiro, ela afeta toda a família, pois prejudica o desenvolvimento e a qualidade
de vida das pessoas com AF (Guimarães e Coelho, 2010; ANVISA, 2001). Assim, é
importante que seja feito o diagnóstico precoce da doença, como o Teste do Pezinho (Teste

720
de Guthrie), para que seja tratada e acompanhada adequadamente. Isso pode evitar
complicações e consequentemente reduzir a morbimortalidade do grupo em questão
(ANVISA, 2001).

Segundo Kikuchi (2007), a triagem neonatal no Brasil está dividida em três fases
específicas e, dependendo dos exames que vão sendo incluídos pelo Ministério da Saúde
(MS), podemos classificar as fases da seguinte maneira: ―Fase I – realiza fenilcetonúria e
hipotiroidismo; Fase II – realiza fenilcetonúria, hipotiroidismo e doença falciforme; Fase III –
realiza fenilcetonúria, hipotiroidismo, doença falciforme e fibrose cística‖ (Kikuchi, 2007, p.
334). Atualmente, o Estado do Pará está na Fase II de acesso a triagem neonatal (Naoum e
Bonini-Domingos 2007; Cardoso e Guerreiro 2010; Silva 2015).

Segundo a ANVISA (2001), o aconselhamento genético é considerado uma


ferramenta útil para orientar e/ou diminuir a incidência da DF em todas as regiões do Brasil.
Em assim sendo, Guimarães e Coelho (2010) afirmam que:

O aconselhamento genético tem a finalidade de nortear as pessoas


sobre a tomada de decisões a respeito da procriação, ajudando-as a
entender como a hereditariedade pode colaborar para a ocorrência
ou risco de recorrência de doenças genéticas, como é o caso da
anemia falciforme (Guimarães e Coelho 2010, p. 1733).

Desse modo, o aconselhamento genético é considerado fundamental na orientação


de pessoas com AF ou TF, pois contribui substancialmente para a escolha pessoal em
relação à reprodutividade e planejamento familiar, principalmente, se ocorrer de forma
humanizada, garantindo o direito reprodutivo dos casais e, em particular, para as mulheres,
que correm todos os riscos de uma gravidez comum associada à AF e a outras
hemoglobinopatias não menos importantes, mas esse tipo de serviço é pouco realizado em
nosso país. Por outro lado, não existe um processo de cura específico para a AF, havendo
somente terapias gênicas, que são muito limitadas, como o Transplante de Medula Óssea –
TMO, que pode ser realizado apenas entre irmãos compatíveis, ainda em etapa de
instrumentalização pelo MS (Bonzo, 2013; Guimarães e Coelho, 2010; Brasil 2001).
importante notar que não há uma conscientização ou sensibilização de indivíduos ou
grupos com AF ou TF de forma institucionalizada em relação ao acesso do aconselhamento
genético no Brasil, em especial, na Região Norte – salvo em alguns locais em fase de
1
implementação, como em Tocantins (DNA e outros) e no Amazonas (Câncer) –,

1 Ver os links: https://www.acritica.com/channels/entretenimento/news/teste-genetico-podera-ser-feito-na-cidade-de-manaus e


https://www.ulbra.br/palmas/imprensa/noticia/14468/ceulpulbra-a-o-pioneiro-em-exames-de-dna-no-tocantins. Acesso em:
1. 10.2019.

721
o que não os priva do direito de se reproduzirem. No entanto, é fundamental que a população
esteja ciente de alguns riscos genéticos, o que pode envolver também a forma de diagnóstico e
tratamento da doença, o sofrimento, não só físico, mas também biopsicossocial de conviver com
AF, a rede de apoio e o acesso a tratamento e acompanhamento de saúde desde o nascimento
até a fase adulta, que nem sempre é regular, com atendimento hematológico centralizado nas
capitais, as dificuldades financeiras de manter o tratamento, além do enfrentamento do racismo,
do racismo institucional, entre outras dificuldades. Nesse processo de aconselhamento existe
também o desafio de fazer pessoas sem acesso a informações em saúde ou educativas a
entenderem sobre herança genética, ancestralidade, autocuidado, entre outras questões ligadas
AF (Guimarães e Coelho, 2010; Pina-Neto, 2008; Guedes e Diniz, 2007; Diniz e Guedes,
2013; Silva e Silva, 2013; Silva et al., 2018).
Para Pina-Neto (2008, p. 24), há ainda ―barreiras educacionais, linguísticas e sociais,
sentimento de culpa, persistência de sentimentos de raiva e revolta contra profissionais,
disfunções maritais, etc.‖. Vale ressaltar que esse tipo de aconselhamento deve se basear
em princípios éticos (Bertollo et al., 2013; Guimarães e Coelho, 2010; Pina-Neto, 2008), ou
seja, deve haver o comprometimento com esses princípios, como por exemplo: autonomia
reprodutiva e pluralismo moral (Diniz e Guedes, 2003).
Assim, a importância do aconselhamento genético é uma questão em debate não
apenas na Amazônia, Região Norte, Estado do Pará, como em todo o Brasil. É necessário
buscar esforços para iniciar tais procedimentos para que os grupos afetados por alterações
genéticas consigam as informações que tem direito (Bonzo, 2013; Silva 2015). Nesse
interim, estabelecemos objetivos com o intuito de tentar responder algumas categorias de
análise bioantropológica sobre genética, ancestralidade, gênero e identidade sociorracial,
como veremos a seguir.

Objetivos

Estimar as correlações entre as manifestações clínicas, a ancestralidade genética e


a autodeclaração de raça/cor de indivíduos com Anemia Falciforme no Estado do Pará,
Amazônia, Brasil.

Objetivo Geral

Investigar um grupo de 60 pessoas com Anemia Falciforme a fim de compreender de


que forma esses indivíduos vivenciam as relações entre ancestralidade genômica, identidade
étnicorracial, aconselhamento genético e direitos reprodutivos no Estado do Pará.

722
Objetivos Específicos

Obter o teste de ancestralidade genômica de pessoas com AF atendidas no


Hemocentro regional do Estado do Pará a fim de correlacionar com os dados de
autodeclaração de raça/cor;
Averiguar em que condições o grupo pesquisado tem acesso a aconselhamento
genético e/ou garantia de seus direitos reprodutivos no Estado do Pará através da
Hemorrede e demais serviços públicos.

Metodologia

Após a aprovação de projeto de pesquisa no Sistema Nacional de Ética em Pesquisa


– SISNEP (Plataforma Brasil) para realizar estudos com seres humanos, na Fundação
Centro de Hemoterapia e Hematologia do Estado do Pará – HEMOPA – analisamos um
grupo de 60 pessoas com Anemia Falciforme (AF), a forma mais grave da doença, sendo
também a síndrome genética mais prevalente ao redor do mundo. Durante 08 meses de
pesquisa de trabalho de campo, utilizamos formulário semiestruturado e conversas com
finalidade indagando a respeito de dados clínicos, epidemiológicos e sociodemográficos de
indivíduos de ambos os sexos, entre 10 e 46 anos de idade, cadastrados no referido
hemocentro, a fim de compreender as relações entre as manifestações clínicas, a
ancestralidade genômica e a autodeclaração de raça/cor de pessoas com AF no Estado do
Pará (Minayo 2000; Minayo 2010).

A princípio, as perguntas sobre aconselhamento genético e direitos reprodutivos não


haviam sido elencadas em nosso questionário de modo direto, contudo, tais relatos
surgiram no decorrer dos diálogos com os investigados de forma espontânea,
caracterizando as vicissitudes de conviver com uma doença crônica de caráter amplo e,
para tanto, precisamos lançar mão de tais dados a fim de entender como a Hemorrede e
demais espaços de serviços públicos que o grupo utilizava para tratamento e
acompanhamento da AF lidavam com ambas as demandas (Guimarães e Coelho, 2010).

Em parceria com o Laboratório de Genética Humana e Médica da Universidade


Federal do Pará – LGHM/UFPA, no qual ―foram realizadas análises de ancestralidade
genômica conforme descrito por Santos et al. (2010), utilizando 61 Marcadores Informativos
de Ancestralidade (AIMs)‖. O método em questão empregou ainda ―três reações de PCR
multiplex com 16 marcadores de cada um foram feitas e os produtos de amplificação de
PCR analisados por eletroforese, utilizando o sequenciador ABI Prism 3130 e software v.3.2
GeneMapper ID‖. Para tanto, ―as proporções de ancestralidade individuais foram estimadas

723
usando software STRUCTURE v.2.3.3, assumindo as três populações parentais: Europeu,
Africano e Ameríndio‖ (Silva 2018: 29; Santos et al 2010).

As frequências gênicas estimadas de um grupo com uma doença crônica são


importantes para aferir de que forma a ancestralidade genética pode influenciar em fatores
associados a sintomas clínicos. Dessa forma, a abordagem bioantropológica aplicada
buscou constatar também o nível de gravidade da doença, a quantidade de sintomas
severos e se tais dados podem ou não estar relacionados ao gênero, à renda e à
autodeclaração de raça/cor dos interlocutores da pesquisa (Silva 2018; Silva et al 2018;
Silva e Silva 2013; Naoum 2011; Naoum 2000).

Os dados estatísticos foram obtidos pelo Programa SAS ASSIST Software 9.4
(Statistical Analysis System) a fim de realizar ―o cálculo dos dados, realizando estatística
descritiva, testando a normalidade das variáveis quantitativas com as estatísticas de Durbin-
Watson antes de realizar testes paramétricos, além disso, utilizamos testes não
paramétricos quando os pressupostos de testes paramétricos foram violados‖ (Silva 2018:
31). Tais estatísticas utilizaram as categorias raça/cor, gênero, renda familiar, racismo e
nível de escolaridade do grupo analisado e contribuíram para a realização de novas
análises a partir dos relatos dos participantes da pesquisa, que dialogaram a respeito de
informações clínicas sobre AF, aconselhamento genético e direitos reprodutivos, gerando
resultados importantes do ponto de vista epidemiológico e biocultural, como veremos a
seguir (Silva e Silva 2013; Pie, 2013; Panepinto et al 2009; Felix et al 2010).

Resultados

Oficialmente não existe aconselhamento genético difundido ou organizado pela


Hemorrede no Estado do Pará. O procedimento operacional padrão para obter informações
sobre doenças crônicas ao nascer é o Teste do Pezinho (Teste de Guthrie), que detecta
possíveis alterações genéticas e outras doenças em recém-nascidos em todo o território
nacional. O Pará está na Fase II de cobertura da triagem neonatal, de acordo com os dados
do Ministério da Saúde, sendo que o Teste do Pezinho foi universalizado e/ou ampliado
para o restante dos municípios paraenses apenas em 2010, com substancial número de
subnotificações sobre AF e outros agravos (Silva 2012; Silva 2014; Kikuchi 2007; Brunoni
2002).

Entre os/as interlocutores/as entrevistados/as, era comum relatarem ignorar o agravo


da AF até o nascimento de seus filhos ou filhas. Eles e elas afirmaram ainda que
desconheciam as alterações genéticas que possuíam, assim como a probabilidade de gerar
um bebê com uma doença grave. No decorrer das conversas, os/as participantes afirmaram
que receberam do atendimento multiprofissional, não apenas no local da pesquisa, mas em

724
Unidades Básicas de Saúde (UBS’s), Unidades de Pronto Atendimento (UPA’s), hospitais
de urgência e emergência na capital (Belém) e no interior, assim como em atendimentos
clínicos nos setores públicos e privados em geral, diversas informações sobre a AF ser uma
―doença de ancestralidade negra‖, devido a provável origem da doença ser ―africana‖ (Silva
2018; Ramos et al 2016; Pante-de-Souza et al 1998).

Relatos não raros notaram a indicação sobre a necessidade de não ter outros filhos
para que não nascessem com a mesma síndrome, sem considerar os fatores apropriados
de probabilidade genética ou epidemiológica, além de ouvirem que a ocorrência da AF era
devido a algum ―parente negro na família‖, porque nem todos os entrevistados possuíam um
fenótipo ―preto‖ ou ―negro‖, conforme podemos observar nos trechos descritos abaixo:

Elane - Se perguntam [sobre a genética da família]? Não, nunca


ninguém me perguntou isso não [no atendimento clínico]. Só a cor, a
cor, como eu falei, é amarela. Porque assim, quando eu era menor,
eu não sabia que tinha, eu descobri a doença em 2008. Então eu
sofri antes, eu sofri muito. Aí eu sentia muitas dores, aí tinha gente
que falava que era frescura, tinha gente que falava que eu tinha que
casar com um médico, porque eu só vivia doente, essas coisas,
sabe? Só que eu não sabia que eu tinha ainda. [Tu tens irmãos?].
Elane: Tenho, eram 5, o meu irmão faleceu agora, também de
anemia falciforme, acho que deu um ataque cardíaco. [Mas ele era
paciente daqui?]. Elane: Era, ele faleceu no dia que ele tinha
consulta marcada, ele faleceu de madrugada. Tem mais três. Nunca
fizeram o exame pra saber se tem, mas acho que eles não têm
anemia, se tiver, só o traço, porque não sente tanto como a gente
sentia. Nunca fizeram exame pra saber se tem o traço (Elane,
Estudante de Ensino Médio, 24 anos, Abaetetuba).

André - Eu queria terminar [os estudos], mas não pude. Fui impedido
pela doença. Agora tô sem idade já, me preocupo mais com meus filhos.
Às vezes só que eu me estresso. [Se estressa com o que?]. André:
Comigo, com meus filhos. [Quantos filhos tu tens?]. André: Dois: ela e
um. [Eles têm o traço?]. André: Todos dois. Filha do André [que
acompanhou o pai na entrevista]: Eu tenho? André: Tem. Filha do André:
Não sabia dessa! André: Hummm, já te falei. Eu conversei com vocês
quando forem casar tem que vim aqui no [referência em hematologia], tu
e teu namorado, antes de namorar. Assim é teu irmão. [Quantos anos o
irmão dela tem?]. André: 13, ela 11. [Para poder fazer o planejamento
familiar?]. André: É, isso! [Tu tens quantos irmãos?]. André: Eu tenho 5.
Agora eu tenho quatro porque um faleceu, tenho duas irmãs e dois
irmãos. [Algum tem AF?]. André: Nenhum, nem traço, nem nada!
[Fizeste o teste para o Transplante de Medula Óssea?]. André: Tô
fazendo, até falaram, até comentei com a mamãe, eu disse: ―Mãe, eu
sou seu filho mesmo, não fui trocado no hospital? Aí ela disse: ―Por que
rapaz?‖, porque só eu que tenho essa doença, eu sou todo diferente dos
meus irmãos, só eu que sou calvo, só eu que tenho cabelo no peito, sou
totalmente diferente dos meus irmãos, até o papai não tinha certas
coisas, aí fico notando, né? Já pensei: Será que não me trocaram?‖.
[Resposta da mãe]. ―Só se te trocaram, porque eu não sei, até onde eu
sei tu é meu filho‖. [É o mesmo pai e a mesma mãe?]. André: Mesmo
pai, mesma mãe. Nós éramos 9, 11, ela teve 11 filhos, a mamãe. Só
ficaram adultos. Eu fui o último (André, Autônomo, 46 anos, Ilha do
Marajó).

725
Elza - [E sobre a tua genética na família?] ―Não [no especialista]. Não
[em qualquer posto de saúde]. Já perguntaram na... [plano de saúde
privado]. Mãe da Elza: Perguntaram no atendimento clínico
[hematologista], quando descobriram que ela [Elza] tinha anemia
falciforme, a doutora perguntou se na família tinha gente negra,
assim pelo fato de ser clara [não perguntaram sobre a cor da
paciente]. Elza: É... E tem aquelas piadinhas de vez em quando, tipo,
é... Já me chamaram de vampiro, porque toma sangue, confundiram
anemia falciforme com leucemia, me chamaram de amarela, pálida,
mandaram colocar batom porque tava muito pálida. Mãe da Elza:
Também falaram que eu fico inventando nome pra doença, que é
leucemia, fico dizendo que é anemia, as pessoas que não entendem.
Elza: Às vezes também quando, tipo, vai almoçar na casa de uma
amiga, aí tem que tomar remédio, aí confunde com remédio
controlado, tipo, fica perguntando sobre o remédio, se eu tenho que
tomar porque tenho que controlar, essas coisas (Elza, Ensino Médio,
16 anos, Marabá).

Em relação aos direitos reprodutivos entre as pessoas com AF podemos considerar


que os mesmos nem sempre são levados em consideração de modo humanizado, pois
segundo Silva e Silva (2013: 29), muitos pacientes com AF, tanto homens quanto mulheres,
já viveram a experiência de receber conselhos sobre ―evitar filhos por causa da anemia
falciforme, que dá mais em gente de cor morena‖, o que configura uma violação do acesso
escolha de gerar ou não prole devido a condição da AF. Por conseguinte, a atitude
também pode ser considerada como racismo institucional, pois demonstra a ausência de
uma política pública que considere a saúde da população negra de modo plural.

Na amostra estudada, as mulheres têm 18% de variação no número de


manifestações clínicas em relação aos homens investigados, demonstrando uma variedade
estatística de 2,34 sintomas clínicos mais graves (severos) quando comparados não
apenas à quantidade total de manifestações clínicas como também no que se refere à
gravidade de sintomas de todo o grupo. Sendo assim, podemos ponderar que a categoria
―gênero‖ é um fator substancial a ser considerado na análise da sintomatologia da AF, o
que pode estar associado a episódios hormonais, gravidezes, ciclos menstruais, dupla ou
tripla jornada de trabalho, entre outros fatores a serem pesquisados (Elenga et al 2016;
Wandner et al 2012; Burnes et al 2008).

Outro item importante em relação ao gênero, é que a renda familiar mensal é 50%
menor entre as mulheres quando equiparadas ao salário mensal dos homens, o que
também pode contribuir para a situação de maior vulnerabilidade social para o grupo
feminino, fator fundamental que deve influenciar no agravo da AF entre elas (Silva et al
2018; Figueiró e Ribeiro 2017; Amaral 2015).

No que se refere à ancestralidade genômica, temos a maior porcentagem de aDNA


Europeu, somando 41% do total de entrevistados, seguido de aDNA Africano, representando

726
30,2% da amostra e aDNA Ameríndio, com 28,8%. Todavia, 91% dos/a entrevistados/as se
autodeclaram negros ou pardos. O aDNA (Autosomal DNA) é o resultado genético da soma
de genes herdados tanto do pai quanto da mãe e é largamente utilizado para estimar o
perfil populacional em diversas regiões do mundo, especialmente em países com alto índice
de flutuação genética, como é o caso do Brasil (Silva 2015; Santos et al 2010; Cardoso et al
2010).

Entender a relação entre aDNA (genótipo) e autodeclaração de raça/cor (fenótipo) é


interessante do ponto de vista epidemiológico e étnico devido as condições sócio históricas
e a desigualdade sociorracial da sociedade brasileira que demarcam o cotidiano de nossa
população. Em assim sendo, confrontar dados de raça/cor, gênero, renda, aDNA,
aconselhamento genético e direito reprodutivo ainda é um desafio em pesquisas de caráter
interdisciplinar, porém a compreensão de elementos biológicos e culturais contribuem para
nos aproximarmos da complexidade que engloba a AF na Amazônia, no Brasil e ao redor
do mundo.

Conclusões

Na pesquisa realizada no principal centro de referência hematológica do Pará –


HEMOPA, os relatos dos interlocutores entrevistados demonstram que ainda não existe um
espaço de aconselhamento genético de forma institucional no local referido, a não ser de
forma indireta, em geral, durante o atendimento clínico ou multiprofissional no hemocentro.

Os dados epidemiológicos e sociodemográficos da AF no Estado do Pará


necessitam de maior atenção dos órgãos de saúde pública, pois a aplicação da Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra, como o Quesito Cor, Saúde Quilombola,
entre outros, ainda é uma realidade distante a ser implementada, considerando não apenas
os aspectos socioculturais de influência africana e indígena como também a diversidade
genética da população paraense.

Quando se trata de aconselhamento genético, deve-se ter em mente que: a) este será
um momento em que, durante as consultas hematológicas, será transmitida a um
paciente/pessoa com AF que há o risco provável de ocorrer uma doença genética a ela/e e/ou a
sua família; b) que a/o mesma/a precisa compreender o diagnóstico, a doença em si, as
possíveis condutas, quais as consequências para algum membro da família; c) este é o
momento de discussão dos métodos mais adequados e alternativas de tratamento disponíveis
para o paciente, levando em consideração os riscos, objetivos familiares, situação psicológica,
padrões religiosos e éticos, com respeito e apoio irrestrito em suas decisões.

727
Tendo como base todas essas informações, pode-se avaliar a situação reprodutiva
do paciente/pessoa com AF para que com isso, o paciente/casal e sua família possam
entender como a história genética de sua condição pode influenciar as próximas gerações,
ou seja, haverá esclarecimentos sobre a sua genômica de modo amplo, visando o
tratamento, as consequências psicológicas, socioeconômicas e a prevenção de doenças
genéticas e, o mais importante de tudo: atender a livre escolha das mulheres com AF ou TF
que queiram levar adiante a gravidez, garantindo o seu direito reprodutivo e amplo
acompanhamento de saúde para que os possíveis riscos sejam dirimidos.

Apesar disso, de acordo com a nossa pesquisa, o aconselhamento genético e o


direito reprodutivo não foram observados de forma direta, sendo que tais papéis não estão
claramente definidos em se tratando da rede de atendimento interna do hemocentro, o que
contribui com a fragilidade do grupo pesquisado. Em relação à AF, muitos pacientes e
famílias acometidos desconhecem a sua condição médica, ou foram informados de modo
muito limitada sobre a dimensão de ter um agravo genético.

No decorrer das entrevistas, observamos outras problemáticas em torno da doença,


tais como: grande parte dos entrevistados não residem na capital, tendo que se deslocar
até Belém para obter atendimento, configurando o pouco acesso a serviços e
procedimentos hospitalares de urgência, emergência e de acompanhamento clínico-
hematológico; enfrentamento do racismo devido a AF ser considerada uma ―doença de
negro‖, ocasionando culpa; racismo institucional; estigmatização, dentre outras.

Não existe uma definição em relação a quem tem o dever ético de aconselhar
geneticamente uma pessoa com uma condição genética peculiar, mas é de comum acordo
que haja uma equipe multidisciplinar, com profissionais habilitados, ou através de
programas de orientações tanto genéticas quanto sociais e psicológicas, a fim de apresentar
às pessoas com AF todas as informações em saúde necessárias sobre a sua condição
genética, garantindo um aconselhamento humanizado e institucionalizado de fato,
conformando-se em um direito humano e de plena cidadania.

Desse modo, é necessário que políticas públicas em saúde da população negra


sejam urgentemente adotadas no Estado do Pará a fim de que o aconselhamento genético
seja parte da rotina não apenas do hemocentro, mas de outros serviços de saúde que
atendam as pessoas diagnosticadas com anemia falciforme, assim como aqueles com as
demais síndromes e hemoglobinopatias variantes, para que as/os cidadã/os sejam
devidamente respeitadas/os em seus direitos de saúde genética e reprodutiva.

728
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731
A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA
AS MULHERES NO PARÁ (2015-2018)
https://doi.org/10.29327/527231.5-49 1 2
Carla Ramirez e Raquel Serruya Elmescany
Resumo
A Lei Maria da Penha institui a obrigatoriedade dos Estados em implementar políticas
públicas voltadas a combater à violência de gênero, como a criação de serviços
especializados. No entanto, observa-se desafios na implementação destes serviços, como
restrições orçamentárias e descontinuidade das políticas, em especial na região Amazônica.
O objetivo do artigo é analisar o processo de implementação das políticas públicas de
gênero no Estado do Pará, com uma análise a partir dos recursos orçamentários alocados
pelo governo estadual nos últimos 4 anos, por intermédio do programa Pro Paz Mulher.
Trata-se de pesquisa de caráter descritivo e exploratório, com base em dados secundários e
bibliográficos. Os resultados mostram que apesar dos avanços, nota-se falta de
integralidade na prestação dos serviços, insuficiência de dados disponíveis e ineficiência nos
serviços prestados à mulher.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha, Políticas Públicas, Violência contra as Mulheres
Abstract
The Maria da Penha Law establishes to the States the obligation to implement public policies
aimed at combating gender-based violence, such as the creation of specialized services.
However, there are challenges in implementing these services, such as budget constraints
and policy discontinuity, especially in the Amazon region. The objective of the article is to
analyze the process of implementation of gender public policies in Pará, with an analysis
based on the budget resources allocated by the state government over the last 4 years,
through the Pro Paz Mulher program. This is a descriptive and exploratory research, based
on secondary and bibliographic data. The results show that despite advances, there is a lack
of integrality in the provision of services, insufficient data available and inefficiency in
services provided to women.
Key-words: Maria da Penha Law, Public Policies, Violence Against Women

1Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido


(PPGDSTU) no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará. Membro
do Grupo de Pesquisa Governança, Organizações, Políticas Públicas e Contabilidade na Amazônia
(GOPPCA/UFPA), coordenado pelo Prof. Dr. Josep Pont Vidal. Graduada em Relações Internacionais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
2
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido
(PPGDSTU) no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará.
Membro do Grupo de Pesquisa Governança, Organizações, Políticas Públicas e Contabilidade na
Amazônia (GOPPCA/UFPA), coordenado pelo Prof. Dr. Josep Pont Vidal. Mestre em Gestão Pública
(PPGGP/NAEA/UFPA). Especialista em Administração Pública, Planejamento e Orçamento (FGV).
Graduada em Ciências Contábeis (UFPA). Auditora de Controle Externo do Tribunal de Contas do
Estado do Pará.

732
1 INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher constitui-se em um fenômeno social persistente que


atinge a vida de mulheres e meninas de todas as idades, independentemente do local,
classe social, geração ou raça/etnia (BANDEIRA, 2014). Trata-se também de uma questão
de saúde pública global (HEISE et al, 1994; GARCIA-MORENO et al, 2006; RUIZ-PEREZ et
al, 2007) que requer ação tanto dos governos quanto da sociedade para a erradicação.

A experiência da violência doméstica afeta tanto a saúde física como a mental e


psicológica das mulheres, gerando consequências que podem ser: lesões/hematomas,
dores crônicas, transtornos de estresse pós-traumático, depressão, maior exposição a
contrair doenças sexualmente transmissíveis (HIV, clamídia, gonorreia) e abuso de
substâncias ilícitas e álcool (OMS, 2013; GARCÍA-MORENO et al, 2015). A violência
também repercute nas gerações futuras, visto que mulheres que experienciam agressões
durante a gestação aumentam os riscos de abortos espontâneos, partos prematuros com
nascimento de bebês abaixo do peso e interrupção precoce do aleitamento materno
(MEZZAVILLA et al, 2018; SARKAR, 2008; SUGG, 2015).
No Brasil, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) tornou-se o principal instrumento
legal para coibir e punir a violência doméstica praticada contra mulheres. Difere-se por ser
uma norma de caráter repressivo, mas, sobretudo, preventivo e assistencial (BASTOS,
2016) que prevê a criação de uma rede de serviços especializados (Juizados, Defensorias
Públicas, Centros de Referência) que atuem de maneira sistêmica com os serviços já
existentes como as Delegacias Especializadas e Casas Abrigo.
No entanto, no que se refere à implementação da rede de serviços especializados,
as ações previstas na lei esbarram em diversas fragilidades tais como oferta de serviços
insuficientes, falta de orçamento e número reduzido e concentrado destes serviços da rede
nas capitais dos Estados (CAMPOS, 2015; CPMI, 2013, OBSERVE, 2011).
O presente artigo tem por objetivo analisar o processo de implementação das
políticas públicas no Estado do Pará, com uma análise a partir dos recursos orçamentários
alocados pelo governo estadual nos últimos 4 anos, por intermédio do programa Pro Paz
Mulher. A análise desta experiência de política pública na Região Amazônica é importante
3
visto que este programa recebeu reconhecimento internacional da ONU em 2015 , porém
carece de investigações mais aprofundadas sobre a atuação.
Para isso, desenvolveu-se uma pesquisa de caráter descritivo, exploratório e
qualitativa, com base em dados secundários. Como técnica, utiliza-se a pesquisa

3 Fonte: Pro Paz Mulher – atendimento humanizado à mulher em situação de violência doméstica,
familiar e sexual no Pará. Disponível em: http://www.propaz.pa.gov.br/pt-br/content/pro-paz-mulher-
atendimento-humanizado-%C3%A0-mulher-em -situa%C3%A7%C3%A3o-de-viol%C3%AAncia-
dom%C3%A9stica-familiar-e [Acesso em 23 de abril de 2019]

733
bibliográfica e documental baseada em materiais (artigos científicos, dissertações e teses de
doutoramento) já publicados sobre tema da implementação de políticas públicas, violência
contra a mulher e violência de gênero. Também se baseia em documentos oficiais como
Diários Oficiais, Relatórios Oficiais, consultas em sistemas governamentais do Governo do
Estado do Pará afim de coletar indicadores relativos ao Programa Pro Paz Mulher,
executado pela Fundação Pro Paz.
Desta maneira, o presente trabalho organiza-se nas seguintes seções: esta
introdução; uma breve explanação sobre a Lei Maria da Penha e sua importância como
política pública; detalhamento do Programa Pro Paz Mulher, realizado em Belém; a análise
dos indicadores Pro Paz com a política de combate à violência doméstica; as considerações
finais sobre o tema; e as referências utilizadas no estudo.

2 A LEI MARIA DA PENHA COMO POLÍTICA PÚBLICA

A Lei Maria da Penha (LMP) é o resultado da ação bem-sucedida de ―advocacy


feminista‖, tornando-se um marco no enfrentamento à violência doméstica e na defesa das
mulheres no Brasil (BARSTED, 2014). No que tange às inovações, a LMP tipificou as
diversas formas de violência como a física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, unificou
os procedimentos judiciais, criou as Varas e Juizados Exclusivos em Violência Doméstica,
proibiu a aplicação de penas pecuniárias e possibilitou a concessão de medidas protetivas
de urgência (CAMPOS, 2015; PASINATO, 2015).
No campo de construção das políticas públicas de enfrentamento à violência, dois
aspectos interconectados são importantes de serem analisados: o primeiro é que a LMP
prevê ações articuladas dos setores de Justiça, Segurança Pública, Saúde, Assistência
4
Social e Educação em colaboração com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário .
Fica sob a responsabilidade dos Estados e Municípios, a criação de serviços especializados
5
de redes articuladas intersetorialmente de atendimento à mulher em situação de violência
(BUGNI, 2016).
O segundo aspecto diz respeito à criação da Secretaria de Políticas para Mulheres
(SPM) em 2003, com o status de Ministério, que funcionou como a espinha dorsal de

4 Conforme previsto nos artigos 9º, 29º e 35º da LMP.


5
O conceito de rede é definido como ―atuação articulada entre as instituições/ serviços
governamentais, não governamentais e a comunidade, visando à ampliação e melhoria da qualidade
do atendimento; à identificação e encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência
e ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção‖. A Rede de Enfrentamento inclui os
órgãos (hospitais, serviços de atenção básica à saúde, Centro de Referência de Assistência)
responsáveis pela gestão e controle social das políticas de gênero e dos serviços de atendimento e a
Rede de Atendimento (Centros de Referência de Atendimento à Mulher, Casas Abrigo, DEAM,
Juizados de Violência Doméstica e Familiar) que englobam os serviços especializados no
atendimento à violência contra as mulheres (SPM, 2011).

734
implementação da Lei Maria da Penha (PASINATO, 2016). Dentre as principais funções da
SPM, destaca-se a formulação da Política de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres,
implantação das Normas Técnicas e Diretrizes de Uniformização dos serviços oferecidos
pela Rede de Atendimento e a apresentação orçamentária de atividades de enfrentamento à
6
violência contra as mulheres .
Após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o vice presidente Michel Temer
7
implementou a Reforma Ministerial que extingue os ministérios da Secretaria de Políticas
para as Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, vinculando-os ao Ministério
da Justiça e Cidadania. Em junho de 2018, uma nova mudança institucional com a criação
do Ministério dos Direitos Humanos com leque amplo de áreas de atuação como: igualdade
racial, pessoa idosa, crianças e adolescentes, pessoa com deficiência, políticas para
Mulheres, LGBT e educação em direitos humanos.
Com a vitória eleitoral de Jair Messias Bolsonaro em 2018, por meio da Medida
8
Provisória nº 87 , o governo federal realizou mudanças significativas na estruturação dos
Ministérios, com a extinção de pastas como do Esporte, Cultura, Planejamento, Fazenda,
Indústria e Comércio, Trabalho e Segurança Pública e a criação do Ministério da Economia
e da Cidadania. No que tange as políticas das mulheres, a pasta do Ministério de Direitos
Humanos muda para Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos abrangendo a
Secretaria de Direitos Humanos (SDH), Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM),
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e A Secretaria
Nacional da Juventude (SNP).
importante salientar que a perda de status ministerial da SPM nos últimos quatro
anos acarretou do ponto de vista orçamentário, em cortes nas políticas públicas de
promoção da autonomia e enfrentamento à violência do Governo Federal. De acordo com os
9
dados disponíveis no Portal SIGA BRAIL apontam que em 2015, foram destinados R$
127,1 milhões de reais reservados do Orçamento para a SPM enquanto que em 2018, o
valor caiu 42,9 milhões (valores corrigidos pelo IPCA).

De acordo com o Relatório da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (2016), a


SPM foi responsável por gerir quatro programas no âmbito do Plano Plurianual do Governo Federal
(PPA) 2008-2011: Prevenção e Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, Gestão da
Transversalidade de Gênero das Políticas Públicas, Igualdade de Gênero nas Relações de Trabalho,
Cidadania e Efetivação de Direitos das Mulheres.
Publicado no Diário Oficial da União (Lei 13.341/2016), oriunda da Medida Provisória 726/2016 que
promoveu a reforma administrativa do governo federal. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/09/30/michel-temer-sanciona-a-reforma-
ministerial-com-vetos-parciais [Acesso em 24 de abril de 2019]
Medida Provisória n º 870, de 2019 (Organização da Presidência e dos Ministérios) Fonte:
<https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/135064 > [Acesso em jun.
2019]
O SIGA Brasil é um sistema de informações sobre o orçamento público federal que permite o acesso
ao Sistema Integrado de Administração Financeira (SIAFI). Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil

735
3 O PROGRAMA PRO PAZ MULHER NO PARÁ

O Pro Paz Integrado (PPI) é um serviço especializado no atendimento às crianças,


10
adolescentes em situação de violência no Pará, administrado pela Fundação Pro Paz ,
órgão da Administração Indireta dotado de autonomia financeira e vinculação ao Gabinete
do Governador. Em 2014, é criado o Pro Paz Mulher (PPM), constituindo-se em um
desdobramento do modelo de política pública no atendimento das mulheres em situação de
violência doméstica e familiar.

Nesse sentido, o Pro Paz Mulher (PPM) visa integrar os serviços especializados como
assistência social, psicologia, policial, pericial e judicial em um mesmo espaço, oferecendo
atendimento humanizado e integral às usuárias. Assemelha-se parcialmente com a metodologia
de atendimento oferecida pela Casa da Mulher Brasileira (CMB), presente em 5 Estados (Mato
11
Grosso do Sul, Paraná, Ceará, Maranhão e Distrito Federal) .

As políticas de enfrentamento à violência contra a mulher não se restringiram ao


Pro Paz Mulher. Na gestão da governadora Ana Julia Carepa (2007-2010), o Pará aderiu ao
Pacto de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e sancionou o I Plano Estadual de
12
Políticas para as Mulheres (I PEPM) . Em 2008, foi criado o Centro de Referência Maria do
Pará (CRMP) com o objetivo de suprir as exigências da LMP, oferecendo serviços de
assistência à mulher em situação de violência com uma abordagem transversal de gênero e
de direitos humanos, composta por uma equipe multidisciplinar de profissionais (REIS,
2010).
Atualmente, o Pro Paz Mulher possui oito núcleos espalhados pelo Estado do Pará,
sendo que nos municípios de Belém e Tucuruí, a estrutura física do CRMP foi incorporada
pelo PPM, enquanto que em outros municípios como Capanema e Abaetetuba tornaram-se
Centro de Referência no Atendimento à Mulher (CRAM) (SOUZA, 2016).
O atendimento subdivide-se nas etapas presentes na Figura 1: na primeira, o
acolhimento/orientação da usuária é realizado pela recepção, que faz os encaminhamentos
para a assistência social ou para a delegacia. Na assistência social, realiza-se a escuta da
usuária, preenchimento do instrumento técnico, o acompanhamento do caso, a avaliação da
necessidade de abrigamento e o encaminhamento para os outros serviços da Rede

10 Ainstitucionalização da Fundação Pro Paz ocorreu em dois momentos distintos: a primeira em


2013 com a Lei Estadual n. 7.773/2013 e a segunda com a Lei Estadual n. 8.097/2015.
11
Os serviços disponíveis na CMB são: atendimento psicossocial; alojamento de passagem;
orientação e direcionamento para programas que visam a autonomia econômica da mulher,
integração com os serviços de saúde e socioassistencial e a presença de órgãos da Rede de
Atendimento.
12 É criado a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH) que através da Coordenadoria
de Promoção dos Direitos da Mulher tinha a função de acompanhar a gestão e execução do I PEPM.

736
Especializada como é o caso do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) ou
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) mais próximo da
residência da mulher em situação de violência.
Posteriormente, o atendimento na Delegacia Especializada no Atendimento à
Mulher (DEAM) consiste no registro do boletim de ocorrência, instauração do inquérito
policial, encaminhamento do processo à justiça, solicitação de exames periciais e expedição
de medidas protetivas de urgência ao juiz no prazo máximo de 48 horas. No setor pericial
são realizados os exames de lesões e a coleta de material biológico para o encaminhamento
para análise no laboratório. No setor de psicologia, são realizados os acompanhamentos
das usuárias, podendo ter a emissão do laudo psicológico e tanto o perito quanto o
psicólogo podem participar de audiência quando convocados.

Figura 1 - Fluxo de Atendimento do Pro Paz Mulher/DEAM

Fonte: Elaboração própria a partir do Relatório cedido pela Fundação Pro Paz (2018)

Não obstante, a implementação destes serviços oferecidos em Belém apresentam


diversos entraves como: o atendimento da assistência social limita-se ao acolhimento inicial
às mulheres, não prevendo uma etapa de diagnóstico mais aprofundado e monitoramento; a
ausência de integralidade dos serviços oferecidos como o jurídico e pericial com
funcionamento restrito (SOUSA et al, 2018); e a carência de dados consolidados referentes
ao número de atendimentos, perfil socioeconômico das mulheres atendidas disponibilizados

737
13
ao público das unidades do programa .

4 ANÁLISE DOS INDICADORES DA POLÍTICA DE COMBATE À VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA DO PRO PAZ
Inicialmente o Programa Pro paz era realizado por intermédio de vários órgãos da
administração estadual, como Centro de Perícia Renato Chaves, Fundação Santa Casa de
Misericórdia, Secretaria de Estado de Saúde Pública, Secretaria de Estado de Justiça e
Direitos Humanos, Secretaria de Estado de Assistência Social, e órgãos da segurança
pública.

Com o estabelecimento da Lei Estadual n. 8.097/2015, o programa constituiu a


Fundação Pro Paz, dotada de autonomia administrativa e financeira, passando a ser parte
da administração indireta do Poder Executivo Estadual do Pará. Os gastos, antes
pulverizados em órgãos distintos, passaram a constar em detalhamento próprio da
Fundação nos planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e leis orçamentárias
14
anuais do Estado .

De 2015 a 2018, a Fundação executou despesas no valor de R$59,1 milhões


(SIAFEM, s. d). Deste total, R$34,3 milhões foram gastos com a atividade fim da fundação,
por meio do Programa ―Pro-Paz – Por uma Cultura de Paz‖, criado em 2015 e
posteriormente incorporado ao Programa ―Cidadania e Direitos Humanos‖, parte do Plano
Plurianual 2016-2019 do Governo do Estado do Pará, como se vê no Gráfico 1.

Parte das observações sobre o Programa Pro Paz Mulher provém da participação da autora como
bolsista voluntária no projeto de pesquisa ―Efetividade e superação dos entraves dos Serviços de
Atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar do Estado do Pará 2007-2014‖
(Chamada Universal MCTI/CNPq nº1 /2016) escrito, apresentado e coordenado pela Doutora Maria
Luzia Miranda Álvares, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Eneida de Moraes (GEPEM),
da Universidade Federal do Pará.
Para os fins desse artigo, não se consideraram as despesas realizadas pelos demais órgãos executores,
que realizaram dispêndios de 2013 a 2015 com o programa, fazendo-se a opção por um recorte apenas da
Fundação Pro Paz.

738
Gráfico 1 – Despesas da Fundação Pro Paz, por Programa Orçamentário

Fonte: Elaboração própria a partir de dados extraídos do SIAFEM (2015 a 2018).

Isso significa que pouco mais da metade das despesas da Fundação se destinam à
atividade fim (58,01%), enquanto que o restante dos gastos se dá com a manutenção da
gestão (41,18%) e outros programas de apoio ao funcionamento da fundação (0,81%).

De acordo com os Planos Plurianuais e respectivas leis orçamentárias, o Programa


―Cidadania e Direitos Humanos‖ (doravante, entendendo-se incluído neste o programa de
2015 Pro-Paz – Por uma Cultura de Paz), no que compete à Fundação, possui como
desmembramento as seguintes ações orçamentárias: ProPaz nos bairros; ProPaz
Juventude; ProPaz Integrado; Implantação de espaços ProPaz Integrado; ProPaz
Cidadania; Mover – Sistema de Garantia de Direitos; ProPaz Arte e Cultura; e ProPaz
Escola. Os dispêndios no período de 2015 a 2018 estão sintetizados na Tabela 1.

Tabela 1 – Despesas por ação do Programa Cidadania e Direitos Humanos

Ação orçamentária Despesa Realizada %


PROPAZ NOS BAIRROS 14.729.532,41 42,93%
PROPAZ JUVENTUDE 10.852.387,67 31,63%
PROPAZ INTEGRADO 4.533.549,00 13,21%
IMPLANTAÇÃO DE ESPAÇOS PROPAZ INTEGRADO 671.930,00 1,96%
PROPAZ CIDADANIA 1.755.939,46 5,12%
MOVER - SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS 1.002.954,89 2,92%
PROPAZ ARTE E CULTURA 479.747,06 1,40%
PROPAZ ESCOLA 280.575,69 0,82%
Total do Programa Cidadania e Direitos Humanos /
34.306.616,18 100,00%
Pro-Paz - Por uma Cultura de Paz (2015 a 2018)
Nota: Eventuais alterações na nomenclatura das ações, ocorridas de um ano para o outro, foram
consolidadas para simplificar a análise.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados extraídos do SIAFEM 2015 a 2018 (SIAFEM, s.d).

739
possível perceber que não há no planejamento orçamentário uma ação detalhada
para registro das despesas específicas com o combate à violência contra a mulher, sendo
os registros feitos na ação ―Pro-Paz Integrado‖, que engloba despesas tanto com o
atendimento às mulheres, como de crianças e adolescentes em situação de violência – e
que registra R$4,5 milhões de despesas no período.

Logo, no escopo do orçamento, não existe uma diferenciação para o ―Programa


Pro-Paz Mulher‖, e sim uma ação orçamentária que trata de todos estes casos. Assim,
percebe-se que o controle social e o acompanhamento das despesas do Pro-Paz Mulher é
prejudicado pelo tratamento desta política pública como ação orçamentária integrada a
outros atendimentos.

Considerando que a forma como o orçamento foi constituído impõe esta limitação
na análise, optou-se por avaliar os indicadores do Pro Paz Integrado, conforme a
metodologia sugerida por JANNUZZI (2002, 2004 e 2007), avaliando os indicadores de
15
insumo (financeiros), de processo e de resultado .

O Pro Paz Integrado teve dispêndios na ordem de R$4,5 milhões de 2015 a 2018,
representando 13,21% do total das despesas com o programa, e gastos para a implantação
dos espaços na quantia de R$671,9 mil, com obras, instalações e outras despesas. O
detalhamento anual da execução financeira desta ação está na Tabela 2.

Tabela 2 – Execução financeira da ação ―Propaz Integrado‖, 2015-2018

Execução Financeira (em R$ milhares)


Ano Orçamento Dotação Despesa
% (c/b)
Inicial (a) Atualizada (b) Realizada (c )
2015 - 17.274,50 16.399,50 94,93%
2016 610.000,00 478.799,50 462.868,31 96,67%
2017 809.760,00 1.103.937,00 948.209,31 85,89%
2018 351.616,00 3.106.186,82 3.106.071,88 100,00%
Total 1.771.376,00 4.706.197,82 4.533.549,00 96,33%
Nota: o primeiro ano apresenta valor menor que a média, por ter sido o ano inicial da fundação.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados extraídos do SIAFEM 2015 a 2018 (SIAFEM, s.d).

Observa-se que o Governo do Estado, por intermédio de seu orçamento anual e


suplementos orçamentários durante a gestão, vêm valorizando esta ação, aumentando de

Os indicadores podem ser classificados de acordo com a natureza do que se indica: se recurso, classifica-se
como indicador-insumo; se processo, como indicador-processo; se realidade empírica, como indicador-produto,
conforme Jannuzzi (2002). Os indicadores-insumo (input indicator) correspondem às medidas associadas à
alocação de recursos financeiros ou de equipamentos, para a consecução de um programa. Já os indicadores-
processo (throughput indicator) são indicadores que traduzem o esforço operacional de alocação dos insumos.
Por sua vez, os indicadores-produto (output indicator), ou de resultado, referem-se à realidade empírica, sendo
medidas representativas dos avanços ou retrocessos das políticas formuladas.

740
forma significativa, os investimentos: de R$462,8 mil gastos em 2016, a Fundação passou a
investir R$948,2 mil em 2017, praticamente dobrando o valor, e mais ainda em 2018,
quando gastou R$3,1 milhão com a ação.

Considerando a localidade, têm-se a seguinte distribuição de despesas por


município, como demonstra-se na Tabela 3:

Tabela 3 – Execução financeira da ação ―Propaz Integrado‖, 2015-2018


Despesas
Município 2015 2016 2017 2018 %
Totais
Belém 59,97%
13.262,00 446.531,70 911.824,77 1.347.341,30 2.718.959,77
Outros
40,03%
Municípios 3.137,50 16.336,61 36.384,54 1.758.730,58 1.814.589,23
Total 100,00%
16.399,50 462.868,31 948.209,31 3.106.071,88 4.533.549,00
Fonte: Elaboração própria a partir de dados extraídos do GP PARÁ 2015 a 2018 (GP PARÁ, s.d).

Nota-se uma concentração anual de dispêndios na capital do Estado, Belém,


exceto pelo ano de 2018, que concentrou mais gastos no interior.

Há de se verificar, entretanto, se estes gastos corresponderam de fato a um esforço


da Fundação em cumprir sua finalidade, motivo pelo qual se deve verificar o cumprimento
das metas físicas planejadas para esta ação, no mesmo período, conforme se demonstra na
Tabela 4.

Tabela 4 – Execução física da ação ―Propaz Integrado‖, 2015-2018

Execucão Física (em unidades)


Ano
Produto Un Meta Prevista Meta Realizada %
2015 Pessoa Atendida Um 48.220 28.752 60
2016 Pessoa Atendida Un 17.765 27.708 156
2017 Pessoa Atendida Un 21.045 17.265 82
2018 Pessoa Atendida Un 21.184 12.374 58
Total Pessoa Atendida Un 59.994 57.347 96
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados coletados nos Relatórios de Avaliação de
Programas 2015-2018 (SEPLAN, 2016, 2017, 2018, 2019).
Novamente, há de se ressaltar que, pela forma que a ação orçamentária foi
concebida, integrando atendimento de mulheres, crianças e adolescentes, o indicador
selecionado para monitorar o processo também é de natureza agregada: ―Pessoa atendida‖.
Dessa forma, não é possível conhecer de forma segregada quantas mulheres foram
atendidas, com base nas fontes consultadas.

Apesar da limitação, a execução física indica que, apesar dos gastos dispendidos
pela Fundação, a ação tem alcançado cada vez menos resultados. Em 2015 foi estipulada

741
uma meta de atendimento de 48 mil pessoas, tendo sido atendidas 28 mil, 60% do previsto.
Em 2016, foram atendidas 27 mil pessoas pelo PROPAZ, a título desta ação de governo –
que conseguiu superar a meta prevista, cumprindo 156% do que fora planejado no
orçamento. Em 2017, por sua vez, há uma brusca redução do quantitativo de atendimentos,
alcançando 17 mil pessoas, cumprindo 82% daquilo que foi estabelecido inicialmente. No
entanto, tal percentual de execução física é razoavelmente compatível com a execução
financeira deste ano, que somou 86% do planejado. Já em 2018 verifica-se que foram
atendidas 12 mil pessoas, correspondendo a apenas 58% do que foi planejado inicialmente
– sendo que 100% do orçamento previsto no ano foi gasto, e que no ano de
2018 representou o maior investimento do Governo nesta ação até então.

O Gráfico 2, a seguir, demonstra esta desproporção:

Gráfico 2 – Comparativo da Execução Financeira e Execução Física da Ação – 2015 a 2018

Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados coletados no SIAFEM 2015-2018 (SIAFEM,
s.d) e Relatórios de Avaliação de Programas 2015-2018 (SEPLAN, 2016, 2017, 2018, 2019).

Isso explicita que, apesar da Fundação Propaz estar investindo cada vez mais
recursos na ação de atendimento integrado às crianças, adolescentes e mulheres em
situação de violência, menos pessoas estão sendo atendidas pela ação a cada ano.

Diante do exposto, resta conhecer a efetividade da política pública mensurada por


meio de indicadores de resultado. Buscando por informações, se consultaram os Relatórios
de Avaliação de Programas, elaborado pela Secretaria de Planejamento do Estado do Pará
(SEPLAN), de 2015 a 2018. Em 2015, não se monitorou nenhum indicador de resultado
específico quanto à efetividade do combate à violência contra a mulher, por não ter sido

742
estabelecido nenhum parâmetro deste tipo no Plano Plurianual 2012-2015. Já em 2016, o
Plano Plurianual estabeleceu como indicador de resultado a Taxa de Violência contra a
mulher a cada 100 mil habitantes, estipulando uma meta a ser alcançada em 2019,
segregada por regiões geográficas do Estado. No entanto, como a metodologia de
mensuração estipulada pela SEPLAN estabelece a mensuração apenas ao final do período,
não se acompanhou a evolução indicador a ano a ano, sendo divulgado como resultado da
política pública desempenhada apenas em 2020, o que limita o acompanhamento e controle
social da ação.

Buscando-se por outras fontes de informação, consultou-se o Portal da


Transparência da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Pará,
onde foi possível baixar dados de criminalidade de 2012 a 2019 (SEGUP, s.d). No entanto,
os dados disponibilizados ao público não apresentam classificação específica discriminando
a incidência de crimes pela Lei Maria da Penha, impossibilitando o uso dos dados neste
estudo. Também se consultou o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública,
que apresentou a mesma lacuna informativa no que diz respeito aos dados disponibilizados
ao público geral (SINESP, s.d).

Em consulta a dados secundários, verificou-se no Atlas da Violência 2019,


disponibilizado pelo IPEA, c da taxa de homicídios de mulheres por unidade federativa, de
2007 a 2017 (IPEA, 2019). Os dados do Pará disponíveis para o período estudado foram
sintetizados na Tabela 5.

Tabela 5 – Homicídios de mulheres no Pará 2015-2017

Taxa de homicídios de
mulheres por 100 mil
Ano
habitantes no Pará

2015 6,4
2016 7,2
2017 7,5
Fonte: Atlas da Violência 2019 (IPEA, 2019).

possível observar que o número de homicídios de mulheres no período cresceu,


de 6,4 a 7,5 em 2017, valor considerado acima da média nacional para o mesmo período do
qual foi de 4,4 a 4,7 em 2017. No entanto, ressalta-se que a taxa de homicídio de mulheres
16
sinaliza o aumento da violência letal mas não abrange os outros crimes previstos pela Lei

16
De acordo com o Atlas da Violência (2019), há indícios significativos baseado na literatura
internacional que uma significativa parcela das mortes violentas de mulheres ocorre dentro das
residências e são praticadas por conhecidos das vítimas.

743
Maria da Penha como a Lesão Corporal, Ameaça e o Estupro, o que fragmenta a
compreensão do número total de mulheres atingidas pela violência doméstica e familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei Maria da Penha institui mecanismos no combate à violência contra a mulher de


forma integral que estão pautados no tripé da repressão, assistência e prevenção. Além
disso, a Lei ampliou o debate público sobre o tema, tirando-o da invisibilidade. Buscou-se
com o presente artigo analisar a política pública adotado no Pará no enfrentamento à
violência contra a mulher entre os anos de 2015 a 2018.
Dentro os avanços, observa-se melhoria na infraestrutura da DEAM de Belém,
ofertando um atendimento 24 horas nos 7 dias da semana e a estruturação do atendimento
psicossocial oferecidos pelo Pro Paz Mulher para as mulheres em situação de violência.
Porém, os obstáculos ainda persistem como: a limitação da expansão da rede de
enfrentamento na cidade, a ausência de integralidade de todos os serviços ofertados pelo
Pro Paz Mulher. Das fontes públicas consultada sobre o orçamento, observa-se que apesar
dos crescentes investimentos realizados pelo Estado, não reverberou em melhorias no
atendimento, o que desperta para novos questionamentos em futuras pesquisas.
Esta ausência de dados revela que o controle social torna-se deficitário, não permitindo
que haja um acompanhamento eficiente da política pública de enfrentamento à violência. A
ausência de um painel de monitoramento mais detalhado sobre a política, bem como sua
agregação orçamentária a outros tipos de atendimento limitou a análise, representando uma
necessidade de melhoria na transparência das informações disponíveis ao público.

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747
AS PRINCIPAIS DEMANDAS DE CUIDADO NA ASSITÊNCIA A SAÚDE DA
POPULAÇÃO LGBTI+

Marcio Yrochy Saldanha dos Santos –


Universidade do Estado do Pará -

http://lattes.cnpq.br/5655764129270339
Ana Lídia Nauar Pantoja - Universidade do
Estado do Pará -
http://lattes.cnpq.br/3597087400356373

Glenda Keyla China Quemel - Universidade do


Estado do Pará -

http://lattes.cnpq.br/7462867565430728
https://doi.org/10.29327/527231.5-50

RESUMO
INTRODUÇÃO: Tem-se que a sexualidade humana é a combinação de três principais
fatores: biológico, psicológico e social. Composto por três elementos, sexo biológico,
orientação sexual e identidade de gênero. Portanto, entende-se que a cultura está
relacionada diretamente a ideologias arcaicas e conservadoras, a qual possui influência
direta na assistência que será ofertada a esse grupo, além de se destacar como um dos
principais fatores que interferem na saúde do grupo LGBTI+. OBJETIVOS: Identificar as
principais demandas de cuidados em saúde de um grupo LGBTI+ em Belém-PA e região
metropolitana. METODOLOGIA: Trata-se de estudo de natureza descritiva, com abordagem
qualitativa, de objetivo exploratório, utilizando a pesquisa etnográfica. A pesquisa contará
com participantes de todos os gêneros e sexualidades que se identifiquem e se enquadrem
pertencentes ao grupo LGBTI+ e residentes do município de Belém-PA e região
metropolitana. RESULTADOS: Tratando-se de uma pesquisa aprovada no Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade do Estado do Pará (UEPA),
Edital N° 013/2019, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) que ainda está em tramitação no Comitê de Ética e Pesquisa na
instituição em que ocorrerá a coleta de dados, ou seja, ainda não há resultados parciais ou
finais significativos. Entretanto, busca-se responder a seguinte questão: Quais as principais
demandas de cuidado que um grupo LGBTI+ pertencente ao município de Belém-Pa e
região metropolitana?
PALAVRAS-CHAVES: Minorias Sexuais e de Gênero, Cuidados de Enfermagem, Equidade
em Saúde e Determinantes Sociais em Saúde.

748
ABSTRACT
INTRODUCTION: Human sexuality is a combination of three main factors: biological,
psychological and social. Consisting of three elements, biological sex, sexual orientation and
gender identity. Therefore, it is understood that culture is directly enabled by archaic and
conservative ideologies, which has a direct influence on the assistance that will be offered to
this group, besides highlighting as one of the main factors that interfere in the health of the
LGBTI + group. OBJECTIVES: To identify as the main health care demands of an LGBTI +
group in Belém-PA and metropolitan region. METHODOLOGY: This is a descriptive study
with a qualitative approach, exploratory objective, using an ethnographic research. A survey
contains participants from all genders who identify and fit into the LGBTI + group members
and residents of the municipality of Belém-PA and metropolitan region. RESULTS: This is a
recommended research in the Institutional Program of Scientific Initiation Scholarships of the
University of the State of Pará (UEPA), Announcement 013/2019, funded by the National
Council of Scientific and Technological Development (CNPq) that is still in the Ethics and
Research Committee in the institution where data collection occurs, ie, there are no partial or
final results. However, ask yourself the following question: What are the main care demands
that an LGBTI + group belongs to the municipality of Belém-Pa and the metropolitan region?
KEYWORDS: Sexual and Gender Minorities, Nursing Care, Health Equity and Social
Determinants in Health.

749
INTRODUÇÃO

Durante os meados de 1970 no período da ditadura militar, diversas revoluções se


reorganizaram e redefiniram propostas para a luta a favor da redemocratização brasileira.
Sendo assim, houve a intensificação dos movimentos sociais que se propuseram a reforçar
e reorganizar uma nova maneira de fazer e entender a política. Possuindo como
protagonistas principais o movimento negro, feminista e de Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Travestis (LGBT). Os quais se reuniam escondidos em bares e clubes noturnos,
caracterizando, assim, um momento primordial para a sua organização. Este movimento
buscou de maneira intensa e reivindicou mudanças sociais sobre a homogienidade nas
demandas populacionais que produziu debates intensos e lutas árduas com o intuito de
alçancar sua visibilidade na sociedade e de suas demandas sociais (SILVA, 2015).
Portanto, entende-se que a sexualidade humana é uma combinação de três fatores
principais: biológico, psicológico e o social, que são compostos por três elementos
principais, o sexo biológico, orientação sexual e identidade de gênero. Desta forma, nota-se
a relação intensa das influências dos dispositivos reguladores, que são definidos por:
institucionais, militares, educacionais, sociais, psicológicos e psiquiátricos, na imposição e
categorização do ser humano na sociedade contemporânea, excluindo aqueles que se
divergem do que é aceito pela sociedade (BRASIL, 2012).
Sendo assim, a influência destes dispositivos reguladores para o ser humano,
destacando-os para o gênero, é a promoção de uma contenção e condensação dos
indivíduos em seres binários –masculino e feminino-, que para Buttler, não ocorre de
maneira anterior ou autônoma no que se refere a gênero, pois a partir da existência do ser e
as suas relações e suas regulações, pode ocorrer a existência do ser não gendrado.
Portanto, tem-se o destaque da importância de se aprofundar no conhecimento de cada
população específica no grupo LGBTI+, tendo em vista não somente a sua não
homogienidade e suas diversas transformações, mas também baseado no seu histório de
conquistas e lutas que auxiliarão na compreensão da formação deste grupo, o qual devem
ser analisados e estudados, buscando o aperfeiçoamento do profissional de saúde para que
se possa gerar uma assistência mais capacitada e livre de preconceitos para este grupo
(ARÁN; JÚNIOR, 2007).
Então, sexo biológico é considerado a união de informações genéticas e órgãos
genitais associados as suas capacidades reprodutivas e as suas características fisiológicas,
as quais são possíveis as distinções entre macho e fêmea. Entretanto, Buttler (2003), traz
uma análise sobre a imposição social do masculino sob o feminino, o que é somada a
heterossexualidade copulsória, a qual é naturalizada pelos processos de identidade e a sua
relação entre as construções do ser feminino e masculino, afirmada, por exemplo, no

750
momento em que se realiza a ultrassonografia na gravidez, padronizando o ―bebê‖ em
menino ou menina e agregando cores e brinquedos específicos para cada um,
demonstrando de maneira ímpar a construção social de gênero (BRASIL, 2012).
Por conseguinte, têm-se que a diversidade sexual é a maneira que cada indivíduo
pode expressar e vivenciar a sua sexualidade, podendo ser composta por um amplo
espectro que inclui homossexuais, bissexuais, panssexuais, assexuais e heterossexuais.
Referindo-se à conceituação de homossexualidade, sabe-se que esta é relacionada as
pessoas que se relacionam sexualmente, emocionalmente ou afetivamente com pessoas do
mesmo gênero e que pode ser dividido em pessoas denominadas de gays e lésbicas, os
quais são homens que relacionam-se com homens e mulheres que relacionam-se com
mulheres, respectivamente. Sendo o contrário das pessoas heterossexuais, as quais se
relacionam com pessoas do gênero oposto. Já a bissexualidade é compreendida por
indivíduos que se relacionam com dois gêneros, a assexualidade é a ausência de atração
por qualquer tipo de gênero e a panssexualidade é a atração por mais de dois gêneros
(BEZERRA; SOUSA; MAIA et al., 2013).
No que se refere a identidade de gênero, deve-se analisar que esta é a essência de
cada ser, no que confere ao indivíduo o seu reconhecimento quanto ao seu corpo e suas
expressões de gênero, que podem ser tanto as suas vestimentas, quanto ao seu
comportamento. É notório identificar que a relação entre identidade de gênero que é
constituída por meio do desenvolvimento humano, considerando seus rituais, personalidade
e gestos e o sexo biológico, já que este se constitui como uma forma de padronização e
repressão do ser humano, considerando o conteúdo cultural que influencia a sociedade.
Desta forma, deve-se entender que a identidade de gênero vai muito além do que permeia o
sexo biológico em si (ARÁN; JÚNIOR, 2007; BRASIL, 2012).
Ressaltando a importância da distinção entre gênero e sexualidade, os quais são
definidos unicamente por cada indivíduo a sua autodeclaração, cabendo a sociedade o
respeito e não segregação. Como por exemplo, uma pessoa que se identifica como mulher
transsexual (referindo-se ao gênero), mas identifica-se, quanto a sua sexualidade, como
bissexual.
Em harmonia com Brasil (2012), a identidade de gênero pode ser diversificada,
como cisgêneras que são os indivíduos que se identificam com o seu sexo biológico,
transgêneras aquelas que possuem uma identidade que difere do seu sexo biológico e
realizam a escolha de transicionar para o gênero que se identifica ou não, não-binárias são
as pessoas que não se identificam com os dois gêneros binários (homem ou mulher),
transexuais são pessoas que não se identificam com o seu sexo biológico e possuem o
desejo de realizar além da hormonioterapia a cirurgia de readequação ou resignação de
sexo, travestis são pessoas que possuem seus papéis e expressões sociais de gênero

751
femininas, e sentem-se insultadas quando são tratadas no masculino, como por exemplo, "o
travesti", neste caso, deve-se usar o pronome feminino como "a travesti", por fim,
crossdressers que são pessoas que vivenciam diferentes papéis e expressões de gênero
diferentes, através do uso de adereços e vestimentas diferentes das atribuídas ao seu
gênero e quase sempre não realizam modificações corporais.
Tem-se que quatro principais fatores influenciam diretamente para a assiduidade
deste grupo nos serviços de saúde, tais como: a somatização dos preconceitos, estigmas
impostos ao grupo LGBTI+, barreiras discriminatórias e a falta de acolhimento nos serviços
de saúde. Todos esses fatores contribuem para que o mesmo procure por vias alternativas
na clandestinidade, o que aumenta consideravelmente as vulnerabilidades existentes para
esse grupo (MERHY, 1997).
Enfim, propõe alcançar a resposta da seguinte questão: Quais as principais
demandas de cuidado que um grupo LGBTI+ pertencente ao município de Belém-Pa e
região metropolitana possui? Qual a relação entre os determinantes sociais e culturais e o
acesso e/ou permanência de um grupo LGBTI+ no serviço de saúde?

OBJETIVOS

GERAL: Identificar as principais demandas de cuidados em saúde de um grupo LGBTI+ em


Belém-PA e região metropolitana.

ESPECÍFICOS:

Distinguir as demandas de cuidado de cada grupo específico que constituem população


LGBTTI +.

Elaborar uma tecnologia educacional que auxilie no combate a LGBTfobia.

Relacionar os determinantes sociais e culturais que circundam a população LGBTTI+ com


o acesso e permanência nos serviços de saúde.

METODOLOGIA

Trata-se de estudo de natureza descritiva, com abordagem qualitativa, de objetivo


exploratório, utilizando a pesquisa etnográfica. Possuindo como amostra indivíduos que
residam no município de Belém e região metropolitana. O município de Belém-PA é capital
da Unidade Federativa do Pará e situado na região Norte do Brasil, em que possui cerca de
1.485.732 habitantes e 2.140 km² de extensão territorial, além de possuir 71 bairros. A

752
região metropolitana de Belém-PA conta com os municípios de Ananindeua, Benevides,
Castanhal, Marituba, Santa Bárbara e Santa Izabel.
Os participantes que serão escolhidos deverão se enquadrar no critério de
pertencer ao grupo LGBTI+ sem distinguir por orientação sexual ou gênero, residentes do
município de Belém do Pará e/ou região metropolitana, acima de 18 anos e que se sentirem
confortáveis para a participação na pesquisa mediante a assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aqueles que não se enquadrarem no grupo
LGBTI+ ou que não estejam presentes por quaisquer motivos no dia da entrevista e que não
haja possibilidade de remarcação não entrarão como participantes e utilizando-se como
instrumento de coleta de dados um roteiro de entrevistas semiestruturada e que será
gravado por um smarthphone Lenovo C2.
Possuindo como amostra inicial um coletivo de militância LGBTI+ militância situado
em Belém-PA com sede na Universidade do Estado do Pará conhecido como ―Coletivo
Todas as Cores‖ que conta com trinta e três (33) membros; dentre esses membros, 17 são
bissexuais, 3 são transgêneros, 3 panssexuais, 10 são gays e 3 são lésbicas, a partir disso,
esse grupo irá ajudar a convidar outros indivíduos que se enquadrem nos critérios de
inclusão da pesquisa, dando início a captação de participantes pela amostragem por bola de
neve.
A amostra desse estudo será classificada como ―bola de neve‖, em que para Vinuto
(2016) esse tipo de amostra é classificado como não probabilístico e se utiliza de cadeia de
referência para finalizar a amostra. Na amostragem por bola de neve, os pesquisadores
preparam convites formais em cartilhas ou nas redes sociais e convidarão participantes-
chaves que sabidamente são pertencentes do grupo que será estudo.
A partir do convite e coleta dos dados dos participantes-chaves, esses irão indicar
pessoas com características que se enquadrem nos critérios de inclusão da pesquisa e,
assim, sucessivamente. A amostragem por bola de neve serve para atingir o maior número
de participantes para compor uma amostra fidedigna e é indicada para trabalhar com grupos
de estudo de difícil alcance, ou que não possuem um local fixo de análise ou que estejam
estigmatizados/excluídos da sociedade.
Por fim, pretende-se utilizar para a análise do conteúdo que é proposta por Bardin,
a qual consiste em três fases fundamentais, que são: pré-análise, exploração do material e
tratamento dos resultados (BARDIN, 2011).

RESULTADOS

Por se tratar de uma pesquisa que ainda está em período de submissão no Comitê
de Ética e Pesquisa na instituição que será realizada a pesquisa e foi aprovada no

753
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade do Estado do Pará
(UEPA), Edital N° 013/2019, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), ainda não possui resultados parciais ou finais.
Não obstante, este estudo pretende alcançar o público alvo de no máximo 70
participantes, partindo do grupo focal e a partir dele os demais participantes que se
interessarem pela pesquisa.
Sendo assim, espera-se encontrar os resultados que são frequentes nas literaturas
vigentes sobre o tema, como por exemplo, o grupo LGBTI+, o qual é denominado
socialmente por minorias sexuais, compreende em 3% a 12% da força de trabalho nos
Estados Unidos da América (EUA), deixando evidente como maior força de trabalho as
pessoas autodeclaradas heterossexuais, as quais fomentam e carregam consigo as cargas
culturais que foram construídas socialmente pela aversão e discriminação as pessoas que
não se encaixam no padrão heteronormativo. Justificando, assim, o fato de 47% das
pessoas que se definem como LGBTI+ já sofreram com a discriminação em seu local de
trabalho (MINER; COSTA, 2017).
Torna-se necessário a discussão de que no contexto de pesquisas com este grupo,
são de pouca frequência as pesquisas que não tenham relação com HIV/AIDS e a violência,
a qual é relacionada com o tema HIV/AIDS na maioria das vezes, podendo ser individual ou
coletiva, sendo relacionada também com outras patologias ou ao uso de substâncias
psicoativas. Sendo assim, sendo de suma importância enriquecer a literatura com outros
temas que permeiam a rotina e a vida dessa população, podendo compreender de maneira
ampla as suas reais necessidades e buscando o avanço em diversos setores da sociedade,
como saúde, educação, jurídica e etc (GOMES et al., 2018).
Soma-se também ao grupo de minorias sexuais e de gênero a Teoria do Estresse
Minoritário, proposta por Goldbach et al. (2014), o qual aponta que todos os indivíduos que
desviam do padrão aceito pela sociedade sofrem cargas diárias de discriminação e
preconceito, devido a Tríade de Estigma, que influencia para situações de maiores
estresses, o que contribui para a somatização de possíveis patologias que podem alterar a
saúde mental destes indivíduos.
Contudo, como último achado na literatura, deve-se destacar que a falha existente
na formação de profissionais de saúde influenciam diretamente para a marginalização e
afastamento do grupo LGBTI+ dos serviços de saúde, já que para Popadiuki, Oliveira e
Signorelli (2017), este grupo sofrem violências sexuais e psicológicas que os profissionais
de saúde não sabem notificar, travestis e transexuais apresentam uma incidência relevante
de vômitos, náuseas, flebites, infartos e acidentes vasculares encefálicos por conta a
prescrição ou orientações incorretas das medicações, além de rotineiramente serem
desrespeitadas em público pela não aceitação de seu nome nos serviços, não há o incentivo

754
mulheres lésbicas para a realização do exame preventivo do câncer de colo de útero
(PCCU) e a prevenção a Infecções Sexualmente Transmissíveis são as dominantes
recomendações para homossexuais, destacando que este grupo não necessita somente
dessas orientações, porém as demais são consideradas como ―irrelevantes‖ no que se diz
respeito a promoção à saúde.
de total importância considerar que estes resultados podem ser
diferentes baseados nos resultados que serão obtidos com a pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para tanto acredita-se que o presente estudo seguirá corretamente os pressupostos


pertencentes ao próprio cronograma estabelecido. Acredita-se que a pesquisa contribuirá
para a formação dos autores enquanto cidadãos e profissionais de saúde, no que tange o
cuidado a pacientes LGBTI+ e também contribuirá para a atualização e formação de outros
profissionais de saúde de maneira que norteará o cuidado integral a essa parcela da
população marginalizada nos serviços de saúde.

755
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756
“UMA APARÊNCIA SÃ E FLORESCENTE”: REPRESENTAÇÕES DA SAÚDE
1
FEMININA NOS JORNAIS PARAENSES (1910 – 1920)
https://doi.org/10.29327/527231.5-51

Yasmin Carina Nunes Nogueira (Faculdade de História/UFPA)


Franciane Gama Lacerda (Faculdade de História/UFPA)

Resumo

No início do século XX, os jornais publicavam diariamente uma série de anúncios que
propagavam o ideal de corpo feminino saudável e belo. Apontavam o sexo como dado
biológico determinante na condição de doenças nas mulheres, isto é, mulheres estavam
condicionadas a loucura, histeria e ataques nervosos. Assim, era necessário controlar o
corpo das mulheres para que esses ―males‖ não as impedissem de cumprir os papéis
estabelecidos socialmente. Partindo disso, o objetivo principal do trabalho é investigar os
discursos das propagandas referentes ao corpo feminino em jornais paraenses entre 1910 a
1920 e, de modo específico, identificar, as propagandas voltadas para o público feminino,
bem como entender as representações femininas veiculadas nas propagandas pesquisadas.
A documentação usada foram principalmente as propagandas encontradas nos jornais
Estado do Pará e Folha do Norte no período entre 1910 a 1920.
Palavras – chave: Propagandas; Doenças; Remédio; Pará; Século XX.

Abstract

In the begging of 20th century, the newspapers daily published a series of


announcements that disseminates an ideal healthy and beauty female body. Pointed the
gender as a determinant biological data in disease conditions of these women, i.e., women
was conditioned to madness, hysteria and nervous attacks. Thereby, it was necessary to
control the female body so those ―ills‖ do not prevent them to accomplish their social
established papers. As part of this, the main objective of the article is investigate the
advertisement message referred to female body in paraenses newspapers between 1910
and 1920, and, specifically, identify, the advertisement directed to female public, as well as
understand the female representations transmitted in the searched advertisement. The
utilized documentation was manly the advertising found on the newspapers Estado do Pará
and Folha do Norte between 1910 and 1920.

Keywords: Advertisement; Diseases; Medicines; Para; 20th century.

O texto é resultado do Plano de Trabalho intitulado Representações da saúde e de doenças femininas em


jornais paraenses no contexto da crise da borracha (1910-1920), e da pesquisa para a monografia de
conclusão do curso de Licenciatura em História desenvolvida por Yasmin Carina Nunes Nogueira, sob a
orientação da Profa. Dra. Franciane Gama Lacerda na Faculdade de História da UFPA. Tal pesquisa é
vinculada ao Projeto “A onda que nos vai submergir”: seringueiros, natureza e trabalho no contexto da crise da
borracha no Pará (1910-1920), coordenado pela referida professora.

757
INTRODUÇÃO

Os incômodos de senhoras e o meio fácil de combatê – los

Quando senhoras, na execução de seus labores domésticos, não se sentem de súbito


atacadas por um cançasso, dores nas cadeiras, nas pernas, nas costas, dôr de cabeça,
tonturas, calafrios, perturbações de visões sem que possam atinar com a origem dos males
que as acabrunham
E sem causa apparentes que justificariam tão grandes incômodos, os atribuem logo a fadiga
práticas ou excessos de trabalhos.

Entretanto, em geral, tudo provém de perturbações genitais e é principalmente a edade crítica


com seu cortejo e doenças incubadas ou manifestas que as permitem que as determina, por
aí so ou complicada com o athristismo. (...)

A Saúde da Mulher combate as suspensões, flores brancas, cólicas uterinas, hemorragias,


irregularidades menstruais, rheumatismo etc. (...)
Fonte: Estado do Pará, Belém, 11 de fevereiro de 1914.

No início do século XX, os jornais publicavam diariamente uma série de anúncios que
propagavam o ideal do corpo feminino saudável e belo. Apontavam o sexo como dado
biológico determinante na condição de doenças nas mulheres, isto é, mulheres estavam
condicionadas a loucura, histeria e ataques nervosos. Além disso, o cansaço, as dores e as
indisposição que as assolavam não seriam resultados dos ―excessos de trabalhos‖, e sim
das ―perturbações genitais‖ que a chegada da ―edade crítica‖ manifestava, como fica
evidente no anúncio acima de um medicamento bastante popular chamado ―A Saúde da
Mulher‖ publicado em 1914. Diante disso, era necessário controlar o corpo e a natureza das
mulheres para que esses ―males‖ não as impedissem de cumprir os seus papéis
estabelecidos socialmente, como a realização dos ―labores domésticos‖ e o cuidado com a
família, vistas como base do projeto normalizado proposto pelo Estado.

Nesse contexto, parte da economia de Belém, bem como de toda a região amazônica,
girava em torno da economia extrativista da borracha que já começava a dar sinais de crise
em virtude da concorrência asiática (SANTOS, 1980) De fato, desde meados do século XIX,
a borracha se constituiu no principal produto voltado para o comércio internacional,
permitindo, desta forma, o maior surto econômico já verificado na região. O fruto dessa
economia foi investido no setor público, como calçamentos das ruas, construções de
palacetes residenciais, praças e outros, que visava reorganizar e embelezar o espaço
urbano da capital paraense. (SARGES, 2000, p. 46).

Essas mudanças no traçado urbano estariam associadas a um processo de


modernização, pautado em parâmetros de civilização, higienização e de manutenção da

758
saúde familiar, buscavam também alterar os hábitos e os comportamentos dos indivíduos,
utilizando – se de um discurso higienista e moralizador que estabelecia padrões normativos e
práticas que penetravam o espaço público, bem como do privado, sendo cidades e as pessoas
intendidas como um corpo doente que precisava ser curado. (CANCELA, 1997, pp. 35)

Para tanto, vários profissionais estavam inseridos e fizeram parte desse projeto
modernizador, entre eles os médicos e farmacêuticos. Era dever destes e da família
assegurar a saúde feminina, considerada de grande importância para a sociedade. Ainda
que as mulheres não compartilhassem a mesma posição social dos homens, como mãe e
esposa, eram responsáveis, além do cuidados do lar, pela educação dos filhos e pelo bem-
estar dos seus maridos. Por esse motivo, a discussão acerca da saúde das mulheres
acontecia, nesse momento, em vários lugares, desde a revistas e jornais até as escolas e
faculdades de medicina. (VACARO, 2011)

Partindo dessas ideias, a principal questão de interesse desse artigo é investigar o


discurso encontrados nas propagandas referentes ao corpo saudável e belo das mulheres
2 3
veiculadas nos jornais O Estado do Pará e o Folha do Norte entre 1910 a 1920 e, de
modo específico, identificar as propagandas voltadas para senhoras e entender as
representações femininas presentes nesses anúncios. O corte cronológico apresentado
corresponde ao fim da gestão do intendente Antônio Lemos em Belém cuja higienização
pública e o serviço sanitário se constituíram num dos principais pontos das ações
governamentais. Igualmente, o período escolhido se volta também para os primeiros anos
da chamada crise da economia da borracha momento em que há ocorre uma diminuição das
exportações de látex determinada pela concorrência asiática. (WOLFF, 199)

A historiadora Tânia de Luca alerta que ao se trabalhar com jornais não devemos
somente verificar o que escreveu-se, mas também como se escreveu, identificando-se o
público a que se era destinado, o motivo, os proprietários, o período e outras muitas
especificidades. (LUCA, 2015, pp. 142).

Assim, que diz respeito ao uso de jornais observa-se que a imprensa teve um papel
importante na difusão do discurso higienista da época. Os periódicos eram responsáveis pela
divulgação de várias propagandas que disseminavam o ideal do corpo belo e saudável e

2 Jornal diário e independente, fundado em 1911 pelo político Justo Chermont. Inicialmente, combateu
a gestão do intendente Antônio Lemos e apoiava o adversário politico Lauro Sodré. Saiu de
circulação em 1980. (PARAOARAS, Jornais, pág. 241)
Jornal de circulação diária, independente, noticioso, político e literário. Foi criado por Enéas Martins,
Cipriano Santos e outros com p objetivo de lutar pelo desenvolvimento político e social da região
combatendo a política de Antônio Lemos e dependendo o Partido Republicano Federal cujo um dos
chefes era Lauro Sodré. (PARAOARAS, Jornais, pág. 154)

759
reforçavam, dessa forma, os papéis sociais do masculino, representando o homem como forte,
trabalhador e provedor da família, e do feminino, como esposa, mãe e cuidadora do lar.

Desse modo, tratar as propagandas encontradas nesses jornais como fonte histórica
possibilitou ―um trabalho que não esteja somente no campo do verbal ou do escrito. Mas de
imagens que representam também a possibilidade de leitura da vida social‖. (SANTOS, 2006, p.
2). Nesse sentido, Cunha e Nascimento (2008) enfatizam que as propagandas, em grande parte
das vezes, são algo racional, e não objetivam apenas vender o produto, mas também modificar
comportamentos e criar novos conceitos por meio de ―simbologias que se envolvem de forma
íntima com o imaginário do indivíduo.‖ (CUNHA; NASCIMENTO, 2008, p.2)

Machado (2007), acerca destes documentos, nos lembra que nas últimas décadas do
século XX, alguns historiadores utilizavam a publicidade buscando compreender na
sociedade que a produziu, entretanto, é fundamental compreender que a sua influência não
implica em reconhece – las como um reflexo verdadeiro da sociedade. (MACHADO, 2007).
Chislene Carvalho dos Santos ressalta que as propagandas não podem ser entendidas
como simples ilustrações ou ―panoramas da época‖, e sim como‖ representações do vivido
associada a perspectiva da história como construção do que selecionamos como
„passado‟‖. Dessa forma, sendo os periódicos e as propagandas uma produção humana,
logo são frutos de manipulações, de interesses pessoais, possuem, por vezes, ideologias e
um único ponto de vista - não podem, assim como qualquer outra fonte, escapar de uma
análise profunda e crítica do historiador (MACHADO, 2007).

Compreende-se que a pesquisa apresentada se volta para as perspectivas das


questões de gênero, uma vez que os estudos sobre mulher, sua participação na política, no
trabalho, nos movimentos sociais, ganharam notoriedade e possibilitaram novos espaços,
em particular após a incorporação de gênero como categoria de análise histórica. Maria
Izilda S. de Matos afirma que: ―Como nova categoria, o gênero vem procurando dialogar
com outras categorias históricas já existentes, mas vulgarmente ainda é usado como
sinônimo de mulher, já que seu uso teve uma acolhida maior entre os historiadores desse
tema.‖ (MATOS, 1998, p. 64)

Segundo Joan Scott (1994), o surgimento desse campo específico de pesquisa, na


Europa e nos Estados Unidos, relacionou-se à política feminista cujo ápice alcançou nos anos de
1960 e 1970. Num primeiro momento, tinha como pressuposto reintegrar as mulheres à História.
A autora lançou críticas quanto a esse modo de tratar a ―história das mulheres‖ desse período,
pois estava colocando a mulher numa posição marginal em relação aos assuntos masculinos
dominantes e universais, causando nenhuma transformação já que não se tratava de questões
que evidenciavam os motivos pelos quais as mulheres eram ignoradas no

760
processo histórico, ou seja, não se explicava a ausência da atenção às mulheres no
passado e dessa maneira não se alterava as definições estabelecidas dessas categorias.
(SCOTT, 1994, p. 14 – 15).

Dessa maneira, a introdução da categoria gênero representaria o novo paradigma da


história, pois, de acordo com a autora, gênero é visto como ―um elemento constitutivo de
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, é o gênero um
primeiro modo de significar as relações de poder‖, ou seja, gênero, não como sinônimo de
mulher, mas como uma categoria de análise histórica que possibilite compreender mais
claramente as relações de poder existentes entre homem e mulher. (SCOTT, 1995, p. 21).

Portanto, além de reconhecer que existe uma história das mulheres e que esta tem
suas próprias especificidades, é necessário, como nos alerta Scott, a construção de um
aporte teórico que responda por que as mulheres foram excluídas da história e que possa
efetivamente promover mudanças epistemológicas que transformem a dicotomia entre o
feminino e o masculino.

SAÚDE E BELEZA

Figura 1: Regulador uterino “Carvalho”,


Jornal Estado do Pará, domingo, 26 de
novembro de 1911.

Em 1911, em Belém do Pará, não era incomum os leitores do jornal Estado do Pará
se depararem com o anúncio acima do Regulador Uterino Carvalho, que era vendido na
Farmácia e Drogaria Belém. Assim, dentre outras funções o referido remédio serviria para
acalmar os ―acessos nervosos e histéricos‖ tratados pelo anunciante como ―enfermidades
próprias das senhoras‖. Essas enfermidades seriam causadas pelas irregularidades do ciclo
menstrual, por isso era necessário regularizá-lo, daí o nome desses medicamentos. A

761
propaganda de reguladores ocupava bastante espaço nas páginas dos periódicos,
principalmente porque o útero era visto como órgão central do corpo feminino, uma vez que
representava a fertilidade e também por ser tratado como o principal responsável pela
grande maioria das doenças que assolavam as mulheres.

De acordo com Chrislene Santos (2006), no final do século XIX, foi criada a imagem
de ―mulher nervosas, cujos sintomas eram entre outros histeria e irritabilidade para as
mulheres que almejavam desenvolver atividades intelectuais. Ainda mais, argumentavam os
médicos que as mulheres estavam mais suscetíveis a esterilidade caso ousassem
desenvolver o cérebro, pois tal desenvolvimento traria grandes problemas ao útero podendo
causar até mesmo a morte da mulher. Assim, ter saúde significava ter um útero sadio.

Figura 2: Pílulas de Reuters, Jornal Estado do Pará,


quinta – feira, 2 de janeiro de 1919

No anúncio acima, o leitor paraense se deparava com a imagem do o mau humor


feminino, dessa vez, não associado às moléstias do útero, e sim a enxaqueca e a má digestão.
Entretanto, o que chama atenção é a preocupação maior do anúncio com o mau humor do que
com a enxaqueca. Ao fazer uso regulamente das Pílulas Reuter para por fim as enxaquecas, o
bom humor vai voltar. Uma mulher com a mão na cabeça e aparentemente mau humorada ou
triste está ilustrando a propaganda como podemos observar.

Além de propagarem nervosismo, histeria e mau humor como sendo algo da natureza
das mulheres, reguladores e outros medicamentos também disseminavam a ideia de que saúde
e beleza eram indissociáveis no universo feminino. Como é o caso do Regulador Madre

762
Beltrão, chamado pelo anunciante de ―O remédio das Senhoras‖, que prometia
―conservação da saúde e da beleza‖ ao fazer-se uso do medicamento.

Figura 3: Remédio das senhoras, jornal


Estado do Pará, quinta – feira, 13 de abril de
1911.

A historiadora Denise B. Santana (1995) analisando remédios que foram anunciados


em jornais e revistas no período de 1900 a 1930, afirma que estes remédios cujo objetivo
era curar ―defeitos‖ da aparência feminina, como ―manchas da pele, rugas, vermelhidão,
traços da velhice‖, como é prometido pelo Lindactis na figura abaixo, pareciam mais
produtos de beleza, mas raramente foram chamados de cosmético.

Figura 4: A belleza da mulher,


Jornal Estado do Pará, quarta -
feira, 7 de fevereiro de 1917,

Em outro anúncio, do Vibrador Elétrico Prmieer, um aparelho de massagem, é possível


observar a mesma ideia: tratam nervosismo como algo exclusivo da natureza feminina e além
disso, está presente a ideia de que uma mulher saudável é uma mulher bonita, isto é, jovem,
branca e com o corpo esbelto e contornado. Apesar de ser indicado contra dor de cabeça e
indigestão, males que assolam qualquer pessoa independente do sexo, o vibrador diz ser

763
indispensável ―no toucador das senhoras‖, já que fazia ―desaparecer as rugas, realçando a
beleza‖, desenvolvendo ―os contornos do busto, hombros e braços.”

Figura 5: Vibrador Eletrico Prmieer, Jornal Estado do


Pará, domingo, 11 de junho de 1911.

Alguns medicamentos de fato eram indicados tanto para os homens quanto para as
mulheres. Contudo, as propagandas dos remédios eram direcionadas de modo diferente e
separado para ambos. Se alternavam na publicação dos jornais, um dia tinha como público
alvo principal os homens e em outro as mulheres.

764
Figura 6: Uma aparência sã e
florescente, Somatose, jornal Estado
do Pará, quarta feira, 4 de novembro de
1914

o caso por exemplo do Somatose, um medicamento indicado tanto para homens


quanto para mulheres, pois prometiam combater a má digestão e estimular o apetite. Em
sua propaganda acima, os chamados ―remédio de belezas‖ são taxado de meio artificiais
podendo ser prejudiciais à saúde. E que para se ter de fato uma aparência ―sã e florescente‖
o medicamento Somatose era o recomendo. Uma das estratégias para chamar atenção do
publico feminino era colocar a imagem de uma mulher jovem, branca com uma expressão
calma e agradável seguida do destaque das palavra- chave: aparência. De acordo com
Cunha e Nascimento (2008):

o propagandista começa a mexer com o imaginário do


individuo ao dizer que tal produto (entenda-se medicamento) vai fazer
com que a pessoa fique mais bela e atraente para o sexo oposto, ou
então que ao usar tal produto, a pessoa será mais feliz, mais
saudável e forte, preparada para enfrentar os problemas do cotidiano.
(CUNHA; NASCIMENTO, 2008, pág. 3)

Enquanto que no universo feminino, saúde e beleza eram inseparáveis, no mundo


masculino saúde estava relacionado a virilidade, a força física e até a intelectualidade. O
oposto de um homem saudável era o homem fraco, que não conseguia ser o provedor da
família. A propaganda do Somatose afirmava, que ao fazer uso do medicamento, além de

765
voltar a ser saudável, o homem se tornaria, ativo e alcançaria suas aspirações. Juntamente
por isso, um mesmo produto poderia ter mais de uma propaganda, uma para os homens
com representações acerca da força e da virilidade e outra para as mulheres com
representações de mulheres belas e jovens.

Figura 7: Os vencidos da vida, Somatose, jornal Estado


do Pará, domingo, 1 de onde 1914.

Figura 8: Gotas Genitaes. Jornal


Estado do Pará, quarta – feira, 4 de
novembro de 1914

Cuidar do corpo feminino, era cuidar da aparência, do útero, da pele, da juventude, da


beleza, do bom humor. Portanto, a maioria dos anúncios pesquisados tinham como alvo um
público feminino. Um dos poucos anúncios em que se percebe problemas que poderiam afetar
os homens como a ―impotência‖ é o do remédio Gotas Genitais do Dr. Silfer, que prometia ―mais
de 80% de cura certa e radical‖ dos enfraquecimentos de homens e mulheres. Assim,

766
o anunciante prometia reanimar a ―virilidade do homem‖ despertando a ―sensibilidade na
mulher‖.

Essas propagandas, na verdade, pelo teor do que era anunciado, parecem ter como
público alvo principal as chamadas ―donas de casas‖ – provavelmente mulheres da classe
media e alta, em sua maioria brancas. Cunha e Nascimento (2008) ao trabalharem com
propagandas de medicamentos populares no início do século XX, afirmam

Na sua grande maioria, tais propagandas eram voltadas para


o público feminino e mesmo as de cunho mais geral, colocavam em
cena a mulher como a grande ―semióloga médica‖ da família. A mãe
era o objetivo de convencimento dos propagandistas, visto que os
cuidados gerais da família estavam sobre sua supervisão e nada mais
natural para o mercado capitalista convencer a quem tem a
responsabilidade de decidir. (CUNHA; NASCIMENTO, 2008, pág. 1)

Figura 9: Os incommodos de senhoras, A Figura 10: A Saúde da Mulher, jornal o


Saúde da Mulher, jornal Estado do Pará, Estado do Pará, quarta – feira, 11 de
domingo, 31 de agosto de 1913 fevereiro de 1914

possível perceber isso na forma como a mulher é representada. Geralmente, são


ilustradas mulheres com vestimentas de trabalhos doméstico, como aventais, e/ou exercendo ou
interrompendo uma atividades como varrer a casa ou costurar, em virtude de seus males. De
acordo com Patrícia Freitas, a mulher sorridente segurando uma vassoura reforçava o papel
social da mulher enquanto esposa, mãe e cuidadora do lar. (FREITAS, 2008, p. 16).

767
Nesse sentido, ao fazer uso do medicamento, a mulher mãe-esposa-dona-de-casa voltaria a
realizar suas ―funções‖ normalmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto da chamada crise da borracha na Amazônia tem sido estudado por várias
perspectivas especialmente no que tange às questões econômicas considerando-se os
impactos da perda do monopólio gomífero pela região, em virtude da concorrência da
borracha asiática. Uma outra perspectiva de estudo desse contexto se volta para práticas que
dizem respeito à sociabilidade, ao lazer, às práticas higienistas, e até mesmo sobre a saúde e
doença. Desse modo, uma possibilidade de pesquisa que permite os entendimentos desta
sociedade é a que diz respeito às múltiplas experiências vivenciadas pelas mulheres. Este foi
o caminho de uma investigação ainda inicial que trilhamos nesse texto, enfatizando anúncios
de jornais voltados quase sempre para as chamadas ―doenças de senhoras‖. Tal perspectiva
permite a investigação de sujeitos sociais, no caso mulheres, quase sempre envolvidas nos
negócios da borracha de forma indireta. Assim, tratou-se aqui de pensarmos nas
representações femininas no espaço da cidade de Belém, nesse contexto de declínio das
exportações de látex, a partir de anúncios de remédios e produtos voltados para esse público.

O campo de pesquisa sobre saúde feminina é bastante vasto e abrange variadas


perspectivas, no presente texto tomou-se como objeto de pesquisa uma dessas
possibilidades que foram anúncios de remédios e produtos veiculados na imprensa
paraense e voltados, para doenças relacionadas às mulheres. Partindo-se da cidade de
Belém/PA observou-se que nas páginas dos periódicos era constante a veiculação de
anúncios que prometiam resolver problemas associados quase sempre às mulheres como
enxaquecas, fraquezas do corpo e da mente, manchas da pele, nervosismos, dentre outros.

Nos discursos das propagandas dos jornais paraenses pesquisados é possível notar
dois aspectos relacionados exclusivamente a figura feminina: a primeira é referente a ideia
de que certas doenças estavam condicionadas às mulheres, como ataques nervosos e
histéricos e o segundo é de que a saúde feminina estava associada a beleza e a bom
comportamento social. Um único corpo feminino devia servir como modelo de saúde e
beleza: O corpo branco, jovem e bem comportado. Uma mulher saudável era uma mulher
bonita, bem vestida e que realizava todo o trabalho doméstico e que contribuiria para a
ordem e o progresso da sociedade.

768
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771
POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENDIMENTO ÀS MULHERES VÍTIMAS
DE VIOLÊNCIA NO ESTADO DO PARÁ: DA PROPOSTA
ORÇAMENTÁRIA À IMPLEMENTAÇÃO DOS SERVIÇOS
https://doi.org/10.29327/527231.5-52

Elcione da Silva e Silva (UFPA)

Maria Luzia Miranda Alvares (UFPA)

RESUMO

Esta investigação se pautou em analisar a aplicação dos recursos estaduais e federais recebidos
para implementação de políticas públicas para mulheres e caracterizar os serviços de
atendimento as mulheres vítimas de violência implementadas no estado do Pará, tais como os
Centros de Referência Especializados e Delegacias Especializadas de Atendimento as
Mulheres, no período de 2007 a 2016. Trata-se de um estudo de caso, com a metodologia
usando procedimentos de levantamento de dados documentais e orçamentários e formulário de
entrevistas aplicado as/aos funcionários/as atuantes nos serviços de atendimento às mulheres
vítimas de violência, dados apresentados pelo método quantitativo e qualitativo, em conjunto.
Houve diálogo com a literatura sobre violência de gênero, feminismos, políticas públicas, partidos
políticos, orçamento público e outros conceitos trabalhados na ciência política. Nos resultados
verificou-se que no planejamento orçamentário do estado existem políticas especificas com
recursos definidos, e na implementação dessas políticas também houve utilização de recursos
federais conveniados, no entanto, houve uma ruptura organizacional na origem dos recursos e
na estrutura dos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência no decorrer desses
10 anos, devido à mudança governamental.

Palavras-chave: Violência de gênero; Políticas Públicas; Orçamento Público.

ABSTRACT

This investigation was based on analyzing the application of the state and federal
resources received for the implementation of public policies for women and
characterize the services of women victims of violence implemented in the State of
Pará, such as specialized referral centers and specialized police departments for
women, in the period from 2007 to 2016. This is a case study, with the methodology
of using procedures of documentary and budgetary data survey and interview forms
applied to the employees/workers working in the services of women victims of
violence, altogether data that is presented by the quantitative and qualitative method.
There was dialogue with the literature on gender violence, feminisms, public policies,
political parties, public budget and other concepts worked in political science. In the
results it was found that in the budgetary planning of the State there are specific
policies with defined resources, and in the implementation of these policies there was
also use of federal resources agreed on, however, there was an organizational
rupture in the origin of resources and in the structure of services for women victims of
violence over the course of these 10 years, due to governmental change.

Key - Words: Gender Violence; Public Policy; Public Budget.

772
INTRODUÇÃO

A violência contra mulher consiste num problema persistente que atinge mulheres nos
mais diversos estratos sociais e em condições sociais e culturais distintas. É inegável a relação
com as desigualdades que se mantem no campo político, social, econômico e cultural. Todos os
dias muitas mulheres adultas, jovens, crianças, idosas são violentadas fisicamente, moralmente,
psicologicamente, etc. Segundo dados compilados no dossiê Violências contra as mulheres,
acontecem 5 espancamentos a cada 2 minutos (FPA/SEAC, 2010), a cada 11 minutos ocorre um
estupro, a cada 2 horas uma mulher é assassinada (FBSP, 2017), 503 mulheres são vítimas de
agressão a cada hora (Data Folha/FBSP,2017). Os números acima são alarmantes, entretanto,
há ainda outro dado, tão assustador quanto o apresentado nas estatísticas, que são os crimes
não registrados. Diante da situação entende-se que a violência contra mulher não é um
fenômeno intolerável para o Estado e para a sociedade em geral, pois é decorrente de fatores
sociais e culturais que garantem a hierarquia entre os gêneros. Portanto, esses dados refletem
um problema que se mantém em índices altíssimos, mesmo com os recursos institucionais e no
campo social. Um avanço de grande importância foi a implementação da Lei Maria da Penha, em
2006, que deu inicio a uma nova realidade jurídica para o enfrentamento da violência doméstica
e familiar contra a mulher no Brasil. As mobilizações dos movimentos de mulheres contribuíram
para a construção da agenda de gênero, e com base nas discussões ao longo das últimas
décadas, políticas e programas de governos estaduais e municipais incluíram o tema sobre a
situação de gênero com o foco sobre as mulheres. No Estado do Pará, o combate à violência
contra mulher através das políticas públicas, embora palidamente constituída desde meados da
década de 1970, se fortalece com a assinatura do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência Contra as Mulheres, assinado em dezembro de 2007, pela governadora Ana Julia
Carepa (PT).
Na aplicação das políticas públicas o orçamento se constitui um dos principais
esteios para sustentar e viabilizar tanto a elaboração como a implementação de políticas,
neste caso, no atendimento às vítimas de violência doméstica. As políticas públicas
necessitam de, primeiramente, haver planejamento orçamentário definindo as prioridades
recursais e as metodologias de ação. O planejamento público, através dos Planos
Plurianuais, as diretrizes orçamentárias e, por fim, o orçamento anual destinado será, dessa
maneira, o gradiente escolhido para dar visibilidade a um processo essencial que define, na
sua origem, quais as prioridades e demandas que serão atendidas, evidenciando, neste
caso, o problema da violência contra mulher.
O objeto de estudo foi com relação ao planejamento e percurso de investimentos
públicos destinados à proteção da violência contra a mulher, no estado do Pará, no período de
10 anos após a implantação da Lei Maria da Penha. A proposta foi desenvolver uma análise

773
do percurso de investimentos, desde a fase do planejamento, passando pela diretriz
orçamentária, chegando ao orçamento anual disponibilizado a utilização dos recursos, ou seja, a
avaliação. Assim foi verificado no orçamento público estadual, o que foi destinado para a
promoção de políticas de combate a violência contra mulher no período proposto, além da
identificação das políticas públicas voltadas para as mulheres em situação de violência,
existentes do estado, evidenciando os avanços e retrocessos na Rede de Atendimento.
Trata-se de um estudo de caso, com a metodologia usando procedimentos de
levantamento de dados documentais e orçamentários, junto às secretarias estaduais e os
órgãos que são responsáveis pelo planejamento e execução dessas políticas, além de
formulário de entrevistas aplicado as/aos funcionários/as atuantes nos serviços de
atendimento às mulheres vítimas de violência, dados apresentados pelo método quantitativo
e qualitativo, em conjunto. Houve diálogo com a literatura sobre violência de gênero,
feminismos, políticas públicas, partidos políticos, orçamento público e outros conceitos
trabalhados na ciência política.
Esta pesquisa é parte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), e sua importância
está na necessidade de dar visibilidade a um dos aspectos fundamentais da formulação de
políticas públicas, e que influi diretamente na efetividade dessas políticas e dos serviços. É
evidente que a eficiência dos serviços não necessariamente está atrelada a altos
investimentos, no entanto, sem investimentos não há políticas. O recurso orçamentário
disponível, ou a falta dele, nos planos e diretrizes governamentais direcionadas as mulheres
evidenciam a importância que é dada ao problema da violência contra mulher. Levando em
consideração que há documentos nacionais e internacionais que tratam do problema da
violência de gênero e exigem a posição do Estado, além dos índices continuarem a crescer,
tanto no Brasil como no estado do Pará. Nesse sentido, o estudo tem por finalidade trazer
dados que se achavam deficientes nos relatórios, como o da Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), e projetos onde foram
minimamente expostos os investimentos do estado do Pará, dificultando a análise mais
abrangente, e acender o debate, a partir da amostra das discrepâncias entre os planos e as
execuções orçamentárias para que os gestores públicos que formulam as políticas públicas
voltadas ao tema estudado continuem a consolida-las, buscando melhorias e, portanto,
garantir a maior segurança e acolhimento às mulheres em situação de violência.

2 ABORDAGENS SOBRE AS TEORIAS DE GÊNERO E VIOLÊNCIA

As pesquisas sobre gênero, violência de gênero, especialmente a violência contra a


mulher, apesar de não serem recentes, ganharam maior repercussão a partir dos anos 80,

774
passando a constituir uma das áreas fundamentais para estudos feministas no Brasil.
Autoras que abordaram essas questões como Scott (1988), Saffioti (2004), Butler (2003)
trouxeram à luz outras perspectivas, divergindo da ideia de que gênero se tratava,
simplesmente, da divisão biológica entre homem e mulher. É evidente que estes estudos
estão, também, atrelados ao processo de redemocratização brasileira e ao crescimento dos
movimentos de mulheres, os quais provocaram debates, buscando explicação para a
posição de subordinação das mulheres.
Nas análises da violência contra mulher é evidenciado que este fato consiste num
problema social que se entrelaça aos estudos de gênero, classes socais, raça/etnia e, está
imbricado ao patriarcado. Assim, partindo da argumentação teórica das feministas, de
acordo com Saffioti (2004) é reconhecendo as heranças da ordem patriarcal, que passamos
a entender como as relações de gênero explicam as variadas formas de violência contra as
mulheres. Com efeito, os estudos sobre a violência contra as mulheres têm por ponto de
apoio a hierarquia de poder associada à cultura que defende papeis diferenciados para
homens e mulheres, propiciando, assim, relações de desigualdade de gênero, onde as
mulheres são colocadas em situação de inferioridade.
Em linhas gerais, entende-se gênero como uma construção social do masculino e do
feminino, ou seja, dizem respeito a símbolos culturais, organizações sociais, identidade e
relações entre homem e mulher; bem como entre mulheres, evidenciando a hierarquia de
poder. Como reafirma Saffioti (2004), a desigualdade, longe de ser natural, é posta pela
tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações
sociais. Nas relações entre homens e entre mulheres, a desigualdade de gênero não é
dada, mas pode ser construída, e o é, com frequência (Saffioti, 2004, p. 71).
Nos estudos das políticas públicas contextualizando o Brasil, se compreende a
influência direta dos movimentos sociais na criação das políticas públicas, especialmente
das políticas públicas que garantem os direitos das mulheres. Os estudos de gênero se
intensificaram a partir da década de 70 do século XX, juntamente com o fortalecimento dos
movimentos feministas no Brasil. Portanto, a incorporação da questão de gênero nas
políticas públicas é algo recente. De acordo com Marta Farah (2014, p. 47), ―política pública
pode ser entendida como um curso de ação do estado, orientado por determinados
objetivos, refletindo ou traduzindo um jogo de interesses‖. Segundo Souza (2006, p. 2): ―A
formulação de políticas públicas constitui o estágio em que os governos democráticos
traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão
resultados ou mudanças no mundo real‖.
A agenda de gênero que se constituiu nos anos 70, e se refere a assuntos relacionados
essencialmente a questão de gênero, ou seja, temas e propostas formulados por mulheres

775
dos movimentos femininos e feminista, esta agenda é integrada a uma mais abrangente que
diz respeito à democratização. Mas, inicialmente, houve resistência por parte do Estado na
integração de gênero às políticas públicas, no entanto, nas últimas décadas houve maior
abertura e passou a adotar leis e programas de proteção aos direitos das mulheres, devido
o processo de democratização e principalmente a luta em mobilizações do feminismo
internacional, como Estado assinando pactos, tratados e acordos internacionais, na busca
pela igualdade entre as pessoas.
3 POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO
ESTADO DO PARÁ
Com base na agenda de gênero constituída ao longo das últimas décadas, políticas e
programas de governos estaduais e municipais incluíram a questão de gênero e
direcionando a mulher. Assim, antes da implantação da Lei Maria da Penha, no Pará, já
havia políticas públicas de enfrentamento a violência contra mulher. Em 1986 foi instituído
no Estado do Pará o Conselho Municipal da Condição Feminina de Belém (CMCF),
regulamentado pela Lei nº 7.348. E um dos primeiros serviços foi a Delegacia Especializada
de Atendimento à Mulher – DEAM- criada em 1987. No entanto, só em 1997 foi implantada a
Unidade de Atendimento Temporário – UAT – que consistia num espaço para abrigar
mulheres em situação de risco. E foi a primeira instituição que abrigava mulheres, criada na
região norte, e acolhia mulheres vítimas de violência doméstica. Conforme o relatório do
Observatório Regional da Lei Maria Da Penha de 2011, esta instituição foi adequada à
política de assistência social do Sistema de Único de Saúde de Assistência Social/SUAS-
passando a ser uma casa abrigo inserida na estrutura da Fundação Papa João Paulo XXIII,
órgão da administração direta responsável pelas políticas de assistência social no município.
Estes serviços passaram a funcionar num mesmo espaço físico. Contudo, é
perceptível a fragilidade dessas ações enquanto políticas públicas efetivas, eficientes e
eficazes. Nesse período, havia muitos desafios a serem enfrentados, pois vários fatores
dificultavam o acesso aos serviços de atendimento especializado a vítimas de violência
doméstica devido a extensão territorial do estado do Pará que dificultava a locomoção das
vítimas; além disso, eram poucos os recursos materiais e também déficits nos
procedimentos de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica.
Em 1991, pela Lei nº 5.67, foi criado o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher –
CEDM – composto por instituições do governo do Pará e representações dos movimentos de
mulheres. É importante ressaltar que até o ano 2005 a política de enfrentamento a violência
contra mulheres no estado, se resumiam nas casas abrigos, delegacia da mulher, e um centro
de referência. Os serviços começaram a se expandir depois que o Estado aderiu ao Pacto
Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, em 2007, pacto assinado pela então

776
governadora Ana Júlia Carepa (PT). Em abril de 2007 foi realizada a 1ª Conferência
Estadual de Direitos Humanos, na qual foi levantada a questão da violência e da situação
das mulheres e reafirmada a necessidade de desenvolver políticas públicas eficazes.
Com a restruturação da SEJUDH, foram criadas dez coordenadorias, dentre elas a
Coordenaria de Promoção dos Diretos da Mulher (CPDM), que durante os anos de 2008,
2009 e 2010 realizou diversas ações, iniciando com a elaboração de um diagnóstico sobre a
situação da mulher do Pará, no qual retrata a realidade social da violência de gênero
mostrando a necessidade de intervenções de enfrentamento mais urgentes e abrangentes.
1
De acordo com a assistente social Rosana Moraes (2012) , o governo do estado do Pará foi

um dos primeiros a aderir ao Plano Nacional, e dessa forma, procurou fazer um diagnóstico
sobre a situação das mulheres paraenses, levando em consideração os indicadores sociais
e demográficos - educação, trabalho e renda, saúde, violência, organismos de políticas para
as mulheres, de controle social e movimentos sociais existentes, além de serviços
destinados ao atendimento às mulheres em situação de violência, que teve como resultado,
o projeto ―Ações Integradas para o Enfrentamento à Violência contra a Mulher no Estado do
Pará‖, enviado à Brasília em setembro de 2007, objeto de convênio pactuado entre a
SPM/PR e o Governo do através da SEJUDH/ CPDM.
A atuação da CPDM foi muito importante, nesse período, na construção dos projetos.
Esses projetos são apreciados e se começa as ações da rede de enfreamento a violência
contra mulher. Como resultado, foram criados os Centros de Referencias Maria do Pará em
vários municípios do estado, esse serviço se destaca como marca do governo no
enfrentamento a violência contra mulher, e será abordado mais detalhadamente em outro
tópico. Além disso, foram realizadas melhorias da infraestrutura e capacitações dos
profissionais atuantes nos serviços, além das realizações de eventos como a Campanha dos
16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres. Também foi criada Câmara
de Monitoramento e Avaliação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a
Mulher, e um Sistema de Informação sobre Violências contra as Mulheres (SIV – Mulher),
entre outras ações.
A CPDM foi reconfigurada, atualmente é denominada Coordenação de Integração de
Política para Mulheres - CPIM, e suas ações foram reduzidas, a equipe é responsável,
basicamente, por dois projetos que são o de capacitação e o monitoramento da rede. É
importante ressaltar que houve uma reconfiguração na política, não apenas em nível estadual,
mas também em nível nacional. Nesse sentido, houve cortes, a CPIM não mais elaborou
projetos, consequência também da falta de abertura para financiamento federal, a SPM deixou
de lançar os editais, assim, os cortes vieram de cima e foram afetando a política do estado.

Rosana Moraes atuou como técnica na Coordenadoria da Mulher, na gestão de 2008/2010.

777
Com influência das três conferencias dos direitos da mulher (2004, 2007, 2008),
colocaram-se várias propostas de enfrentamento à violência, e a CPDM e o CEDM
elaboraram o I Plano Estadual de Políticas as Mulheres, aprovado através do Decreto n.
2150, de 4 de março de 2010, publicado no Diário Oficial no dia 15 de março de 2010, o qual
foi baseado no Plano Nacional, que prevê políticas para as mulheres do Estado.
3.1 CENTROS DE REFERÊNCIA “MARIA DO PARÁ”
De acordo com a ―Norma técnica...‖ era necessário um serviço especializado de
atendimentos às mulheres vítimas de violência de forma abrangente; nesse sentido é criado
o Centro de Referência Maria do Pará (CRMP). O Projeto ―Maria do Pará‖ nasce com o
intuito de oferecer serviços de prevenção, promoção defesa e reparação à mulher em
situação de violência, numa gestão articulada onde os serviços pudessem ser integrados,
garantindo a eficácia no atendimento aos usuários. Dessa forma, os CRMPs visavam
realizar o atendimento multidisciplinar, com os profissionais da área da Assistência Social,
psicologia, pedagogia, enfermagem, terapia ocupacional. E tinham a proposta de trabalhar
em conjunto com outros órgão e serviços. Um dos diferenciais do serviço era o atendimento
para as crianças, filhas/os das mulheres vitimadas.
O primeiro Centro de Referência foi inaugurado em março de 2008, em Belém.
Nesse ano foram atendidas 463 mulheres. Nos anos posteriores foi implantado em outros
municípios. Assim, na gestão de 2008 a 2010 da CPDM foram construídos e implantados 09
(nove) Centros de Referências ―Maria do Pará‖, nos Municípios de Belém, Santarém,
Capanema, Xinguara, Abaetetuba, Tucuruí, Jacundá, Ananindeua e Itaituba. Com o total de
atendimento de 2.224 mulheres. Os CRMPs funcionavam de 08h às 18h de segunda a sexta
e, em Belém, o serviço se estendia as manhãs de sábado.
De acordo com entrevista com gestor da política, o Pará foi referência nacional no
atendimento de forma diferenciada às mulheres vítimas de violência, porque tinha uma
equipe qualificada de profissionais para trabalhar essa questão, uma forma especial de
atender as mulheres. Esse serviço foi essencial, num período em que ainda estavam se
constituindo as políticas de combate a violência no estado, no entanto, houve déficits nessas
politicas como relatado no relatório do OBSERVE, em 2011:
Os espaços destinados ao atendimento para as mulheres não são
adequados e representam um desrespeito a sua dignidade, violando todas
as recomendações nacionais e internacionais quanto ao atendimento para
mulheres em situação de violência, que deve ser pautado na privacidade e
no respeito a sua situação de vulnerabilidade. As condições são precárias
também para os (as) funcionários (as) que não encontram estruturas físicas
e materiais adequadas para o desempenho de suas atividades (OBSERVE,
2011. p. 21).
Ressalte-se que apesar do projeto prever o atendimento jurídico, somente depois de
um ano de funcionamento a defensoria passou a prestar atendimento uma vez por semana,
reafirmando-se como mais um serviço psicossocial. (Souza, 2016, p. 167)

778
Os Centros de Referência Maria do Pará foram criados durante um governo estadual
de esquerda (2007-2010), era uma política de governo, portanto, com a eleição de um
partido opositor (2011-2014) essa política começou a ser desarticulada e foi desenvolvida
outra política: o Pro Paz Mulher. Em alguns municípios os antigos Centros Maria do Pará
passaram a ser absorvidos pelo Pro Paz Mulher, como foi o caso de Belém e Tucuruí. Em
outros municípios, como Capanema e Abaetetuba, foram reestruturados em Centros de
Referência de Assistência Social. De acordo com a Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito - CPMI de Violência contra Mulher, foi denunciado pelos movimentos que ―os
Centros de Referência de Atendimento à Mulher estão sendo descaracterizados e fechados
paulatinamente e não funcionam à tarde‖ (CPMI, 2013, p. 494).

3.2 PROPAZ MULHER

O Pro Paz Integrado é o principal serviço público estadual especializado no


atendimento às crianças, adolescentes, mulheres em situação de violência no Pará. Em todo
o estado foram implantados sete (07) núcleos do Pro Paz Integrado entre os anos de 2012 a
2018, distribuídos nas regiões do Xingu (Núcleo de Altamira), Guajarina (Núcleo de
Paragominas), do Lago de Tucuruí (Núcleo de Tucuruí), Baixo Amazonas (Núcleo de
Santarém), Bragantina (Núcleo de Bragança), Marajó (Núcleo de Breves) e Carajás (Núcleo
de Marabá), além de contar com o suporte nas unidades da Delegacia Especializada de
Atendimento à Mulher (DEAM) localizadas em todas as regiões do Pará.
Em Belém, o Pro Paz Mulher oferece um serviço específico as mulheres, num
espaço onde funciona o Pro Paz Mulher e a DEAM. Foi a partir da construção desse espaço
na capital paraense, que o serviço foi implantado nos outros municípios do estado, mas o
serviço se constitui com uma dinâmica diferente, nos interiores funcionam o Pro Paz
Integrado que atende crianças, adolescente e mulheres no mesmo espaço, e de acordo com
2
a coordenadora do Pro Paz nos interiores o serviço não tem o judiciário.
Percebe-se que o que diferencia o Pro Paz Mulher dos Centros de Referência Maria
do Pará é a inclusão de mais serviços como as Delegacias, a Defensoria Pública, o
Ministério Público, no entanto, diante da falta de recursos humanos dos demais órgãos é
oferecido basicamente o atendimento policial e psicossocial. Como apresenta Souza (2018):
―Segundo a coordenadora do Pro Paz Mulher, o fato de ter uma sala do Poder Judiciário e
do Ministério Público não garante integração com os órgãos de justiça, pois cada um tem o
seu sistema e sua dinâmica de atendimento‖.

Entrevista com a enfermeira Raquel Soares, coordenadora do PROPAZ.

779
O horário de funcionamento do Pro Paz mulher é o horário comercial, de 8h as 18h
de segunda a sexta, e esse é um ponto negativo, pois a demanda dos casos de violência é
maior nos finais de semana. Assim, as mulheres são orientadas a voltar noutro dia para ter
atendimento psicossocial, e muitas delas não voltam. Esse déficit no serviço é questionado
tanto pelos movimentos de mulheres quando pelos funcionários, como ressalta a
3
Coordenadora , que para funcionar 24 horas, além da questão orçamentária é necessário
um perito, para que serviço funcione direito, e ter mais recursos humanos e isso já é um
déficit, falta pessoal.
3.3 AVALIAÇÃO DAS DELEGACIAS ESPECIALIZADAS DE ATENDIMENTO A
MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA: VISÃO DOS GESTORES DAS POLÍTICAS
A Delegacia da Mulher é o serviço especializado mais antigo e geralmente é a porta de
entrada para a rede de atendimento à mulher vítima de violência. Para Pasinato e Santos (2008),
as delegacias da mulher ―constituem ainda a principal política pública de enfrentamento à
violência doméstica contra mulheres‖. Até o ano de 2011, em todo o estado havia cinco (05)
Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Belém, Marabá, Santarém, Castanhal e
Paragominas). Atualmente, há 17 DEAMs no Pará, duas localizadas na Região Metropolitana,
em Belém e Ananindeua, e as outras quinze estão localizadas no interior do estado: Breves e
Soure, no Marajó; Castanhal, Capanema, Bragança, Abaetetuba, Barcarena e Paragominas, no
nordeste do Estado; Altamira, no sudoeste do Estado; Marabá, Parauapebas, Redenção e
Tucuruí, no sudeste do Pará, e Santarém e Itaituba, no oeste paraense. Assim, todas as Regiões
de Integração contam com uma Delegacia da Mulher.
A ―Norma Técnica...‖ é um importante instrumento para impulsionar as melhorias no
funcionamento das DEAMs, e faz parte do desafio da implantação da Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra a Mulher. De início houve muita dificuldade no estabelecimento
dessas normas e, ainda há. Em Belém, a DCCIM não tinha uma sede própria e estava localizada
em um prédio cedido pela SEDES – Secretaria de Desenvolvimento Social, assim, encontrou
grandes dificuldades para se adequar as normas, segundo Souza (2018), ―a Delegacia possuía
um modelo que passou a ser muito criticado pelos movimentos de mulheres, pois comportava
em um mesmo espaço: uma triagem, um setor social, um setor policial, um abrigo para mulheres
ameaçadas de morte (Unidade de Acolhimento Temporário
– UAT) e a carceragem para os homens que abrigava também presos trazidos de outras
delegacias‖. Um dos problemas era o espaço físico, que não foi criado para abrigar a
demanda do serviço especializado, mantendo o abrigo no mesmo espaço onde há também
a carceragem, é um agravante para a sensação de segurança da vítima, e o abrigo deve
necessariamente ser mantido em local sigiloso.

Entrevista com Raquel Soares.

780
4
Só em 2014 foi inaugurada a nova sede da DEAM , a qual é vinculada ao Programa
5,
Pro Paz Mulher, portanto, os serviços funcionam num mesmo prédio e reúnem
atendimentos, policial pela DEAM; psicossocial; de perícia criminal do Centro de Perícias
Científicas ―Renato Chaves‖; sala de atendimento para a Defensoria Pública e sala de
6
audiências. De acordo com a Delegada ,
―quando a vítima chega na delegacia ela é primeiro acolhida pelo serviço
social, onde ela vai narrar o que aconteceu, e será redigido numa ficha,
nesse atendimento aos assistentes já farão os encaminhamentos sociais,
então, se aquela mulher precisa além de um atendimento policial, ela
precisa resolver a questão dela de separação, de solução da união de fato,
de guarda das crianças, essa assistente já vai fazer o encaminhamento pra
defensoria, ou pro conselho tutelar, enfim, tudo o que aquela vítima daquele
momento disser que ela tá precisando, porque o serviço social as vezes
pode nem ter uma questão policial, pode até nem ter um crime, muitas
vezes ela vai pra pedir orientação. Caso a vítima peça, ou a assistente
social perceba que é caso policial, a vítima é encaminhada para o
atendimento policial, e a partir da ficha vai registrar o boletim de ocorrência
e oferecer para a vítima o que a lei Maria da Penha oferece‖.

Esse processo no atendimento pode ser demorado, dura por volta de 2 horas se
7
seguir o fluxo normalmente . De acordo com Souza (2018, p. 139) ―tem causado

insatisfação nas mulheres que querem ser atendidas imediatamente pela polícia, o que
provoca desistência de ocorrência, por parte das mulheres devido à demora nesse fluxo‖.
Vale considerar outro ponto levantado pelo escrivão: muitas mulheres querem um resultado
imediato, como por exemplo a prisão do acusado e, muitas vezes isso é improvável, e por
isso desistem de realizar a denúncia, mas se esta mulher passa pelo atendimento
psicológico primeiro é mais provável que ela dê continuidade com a denúncia, pois tem um
acompanhamento. Assim, ―seria fundamental a estruturação de um protocolo que
delimitasse melhor o curso do atendimento e o papel de cada setor‖. (SOUZA, 2018, p. 139).
Com o funcionamento e concentração dos serviços num mesmo espaço, facilita a
articulação na rede de atendimento Belém, de acordo com a delegada, atualmente há
ligação com outros serviços como as casas abrigo, a Santa Casa de Misericórdia, e ressalta
ainda que o ideal seria ter uma equipe do centro de perícias no Pro Paz em período integral,
pois há esse serviço, mas apenas em dias marcados, justamente por não ter perito
suficiente. Com relação ao ambiente físico, o prédio tem uma boa estrutura.
A DEAM/PROPAZ de Belém atende mulheres dos municípios da Região Metropolitana,
e, mais recentemente, com a criação da DEAM de Ananindeua, a demanda pode ter sido
reduzida. Quanto às DEAMs do interior do estado, todas funcionam juntamente com a Delegacia
Especializada no Atendimento a Criança e Adolescente (DEACA). O horário

A construção desse prédio teve início no governo de Ana Júlia Carepa dois anos antes de sua saída do governo do Estado.
Endereço: Travessa Mauriti nº 2394 - Bairro Marco. Município: Belém.
Entrevista confindencial.
Informação dada pelo escrivão, numa visita da equipe de pesquisa do Gepem, à DEAM, no dia 5 de novembro de 2017.

781
de funcionamento é das 8h às 12h e 14h às 18h de segunda a sexta, não há plantão nos
finais de semana nas DEAMs, apenas na delegacia comum, que encaminha para DEAM.
Com exceção da DEAM de Santarém que tem plantão 24h nos finais de semana, e essa foi
uma conquista recente8.
Foi relatado nas nove DEAMs visitadas pela equipe de pesquisa do Projeto
Efetividade.../GEPEM, sem exceção, que o principal problema para o bom funcionamento é
o número limitado de servidores, ou seja, é a falta de recursos humanos, devido a demanda
ser grande e concentrar duas delegacias num mesmo ambiente, assim, ficam
sobrecarregados. Os servidores acumulam outras funções, como por exemplo, em
Castanhal, onde está a DEAM que mais realiza procedimento em todo o estado, por dois
anos consecutivos. O desvio de função é recorrente até mesmo na DEAM de Belém que tem
um corpo de funcionários mais estruturado.
Outro problema que é recorrente em todas as delegacias é a má articulação com a
área da saúde, com o encaminhamento para o IML. Em todas as delegacias visitadas foram
relatados problemas ou dificuldade para realizar o exame de corpo de delito, ou a mulher
reclamou do atendimento etc., foi relatado até mesmo à recusa no atendimento. Nesse
sentido, a solução apontada foi ter um perito especializado atrelado ao sistema da
DEAM/PROPAZ. Isto é mais provável nos lugares onde funciona o Pro Paz Integrado,
entretanto, existe apenas 7 núcleos em todo o estado.
Nos municípios onde existe o Pro Paz Integrado, o serviço é mais abrangente,
evidentemente, mas ainda há déficits. Nos municípios onde não tem, as dificuldades para o
bom atendimento às vítimas de violência aumentam. Por isso é importante que o PPI
chegue a outros municípios, pois a rede de atendimento ainda é muito deficiente.
4 SITUAÇÃO ORÇAMENTÁRIA E DE PLANEJAMENTOS: 2007 A 2016 NO PARÁ
Vários aspectos devem ser considerados o analisar o orçamento público, sua
utilização e eficiência, neste trabalho um ponto será avaliado dentro do orçamento do estado
9
do Pará, que serão as políticas especificas direcionadas para as mulheres. Na LOA está
todo o orçamento, os recursos disponibilizados, no entanto, o que é disponibilizado não
necessariamente é obrigatório de ser utilizado e investido, isso vai depender da gestão
governamental, das prioridades, e de outros fatores. No orçamento público do estado do
Pará existem as políticas especificas direcionadas as mulheres, as quais serão
apresentadas a seguir.
Como vimos, no processo de formulação de uma política pública é essencial que haja
avaliação, e esta deve estar presente em todas as etapas. Nesse sentido, na avaliação dos

Plantão passou a funcionar a partir de abril de 2018.


A Lei Orçamentária Anual é uma lei elaborada pelo Poder Executivo que estabelece as despesas e as receitas que serão realizad as no periodo de um ano.

782
10
Planos Plurianuais - PPAs disponibilizada pela Secretaria Estadual de Planejamento e
Orçamento, podemos notar que os recursos disponibilizados nas LOAs, não foram utilizados
em sua totalidade, nem nas ações, nem nos programas e muito menos pelos órgãos. E os
recursos disponibilizados para as ações detêm especificações ao direcionamento a várias
regiões do estado, porém, os investimentos não chegam a grande parte dessas regiões.
No ano de 2007 as três ações especificas de combate à desigualdade de gênero, fizeram
parte do programa ―Começar de Novo‖, que tinha como objetivo garantir atendimento
mulher vítima de violência e discriminação. Os dados orçamentários disponibilizados para
cada ação foram apresentados nas LOAs, no entanto, não há registros dos recursos que
foram devidamente utilizados, e, também, não há dados referentes aos resultados físicos de
implementação das ações, não tinham relatórios e dados avaliativos disponibilizados para o
ano de 2007.
Dentre as ações elaboradas no PPA 2008-2011 duas são direcionadas ao combate da
violência de gênero. A ação de Implementação das Ações dos Centros ―Maria do Pará‖, que
objetivou garantir o atendimento multidisciplinar às mulheres vítimas de violência, ficou sob
responsabilidade da SEJUDH. Através desta ação foram realizados 475, 544, 1.358
atendimentos, nos anos de 2008, 2009, 2010 respectivamente. As ações não atingiram a meta
de atendimentos previstos no planejamento nenhum dos anos de vigência do programa. E não
foram disponibilizados dados referentes ao ano de 2011. Com relação aos recursos
orçamentários, não há informações sobre os recursos aplicados na ação Implementação das
11
Ações dos Centros ―Maria do Pará‖. De acordo com a coordenadora da CDPM, na
formação da Coordenaria foi criada uma equipe mínima para produzir os projetos, e ressalta
que o governo do estado não tinha recursos específicos pra essa política, então a maneira
de levar adiante os projetos era fazer uma pactuação entre o governo do estado e o governo
federal, e isto foi feito através do Sistema de Convênios – SICONV. O quadro a seguir
mostra os projetos financiados com recursos federais.

Quadro 1: Projetos com recursos federais


Recursos
Conven Responsá
Projetos Vigência disponibiliza
ente veis
dos
―Projeto de Ações Integradas para o
DCD
Enfrentamento à Violência contra a SPM/ 2008- 1.702.239,1
H/CP
Mulher no Estado do Pará‖. PR 2010 1
DM

10
é um plano de médio prazo, que estabelece as diretrizes, objetivos e metas a serem seguidos pelo Governo
Federal, Estadual ou Municipal ao longo de um período de quatro anos.
11
Entrevista

783
―Ampliação consolidação da rede de
serviços especializados de DCD
SPM/ 2009- 1.994.000,0
atendimento à mulheres em situação H/CP
PR 2010 0
de violência no Estado do Pará‖ DM

Campanha dos 16 dias de Ativismo DCD


SPM/ 2009-
Pelo fim da violência no Pará H/CP 292.956,00
PR 2010
DM
Formação de gestores e servidores da
DCD
rede de atendimento a mulher em SPM/ 2009-
H/CP 150.000,00
situação de violência PR 2010
DM
Implantar e equipar o Centro de
Referência ―Maria do Pará‖, como ação DCD
SPM/ 2009-
de Enfrentamento da violência contra a H/CP 150.000,00
PR 2010
Mulher no Município de Jacundá. DM
Fonte: Relatório da CPDM. 2010
Os recursos dessas ações foram disponibilizados pela Secretaria de Políticas para
Mulheres da Presidência da República, ou seja, recursos federais. Não há informações
sobre os recursos estaduais executados nesse período.
Outra ação foi a ―Realização das Ações de Combate à Violência de Gênero‖,
executada pelo Centro de Perícias Cientificas, PC e PM, e teve como objetivo garantir a
integridade física, moral e psíquica da mulher. Em relação aos dados orçamentários foi
investido no período 2008-2010 o total de R$ 1,47 milhão, equivalente a 99% dos recursos
disponíveis, e nesse período foram realizados 36.664 atendimentos, os quais representam
137% da meta inicial, que correspondia a 26.708 atendimentos. Vale ressaltar que em 2010,
os recursos financeiros disponibilizados foram de 1.783% maior do que os recursos
disponibilizados em 2009. No entanto, o número de atendimentos realizados, de 9.543
atendimentos, foi inferior ao dos anos anteriores. Já em 2011, a ação apresentou um
resultado de 10.831 atendimentos, dos 15.835 programados, ou seja, 68,4%.
Já no Plano Plurianual 2012-2015, foram identificadas quatro ações direcionadas ao
combate da violência contra mulher e reparo da desigualdade e de gênero. A ação
―Implantação de Delegacias da Mulher‖, a qual não foi executada nos exercidios de 2012 e
2013, Com isso, a ação foi incluída na ação ―Implantação dos Espaços Pro Paz integrado‖,
nos exercícios de 2014 e 2015. (SEPLAN, 2016)
Já a ação ―Implementação de ações para Garantia dos Direitos das Mulheres‖, que tinha
como meta possibilitar o protagonismo da mulher nas regiões em cinco municípios, foi executada
em apenas três municípios (Abaetetuba, Ananindeua e Belém), com realização de reuniões e
palestras sobre a temática. Apesar de a ação ter sido programada pela SEJUDH e CPC,
somente a primeira apresentou execução física, ou seja, promoveu a ação realizando 12 eventos
com a proposta adotada. Os recursos orçamentários foram utilizados minimamente, apenas 9%
do disponibilizado. As atividades decorrentes desta ação passaram

784
a ser realizadas no âmbito da ação "Promoção da Educação em Direitos Humanos", no
mesmo Programa, nos exercícios de 2014 e 2015.
A ação ―Pro Paz Mulher‖, que no ano seguinte foi renomeada como ―Pro Paz
Integrado Mulher‖, que tinha por objetivo garantir o atendimento integral e interdisciplinar às
mulheres em situação de violência. Foi executada pelo CPCRC, Polícia Civil, SEAS e
SEJUDH, que programaram atender a demanda de diversos municípios integrantes das 12
Regiões de Integração. Em 2012, foram realizados 25.337 atendimentos, ultrapassando a
meta proposta, em relação ao investimento financeiro foi utilizado 2% do disponibilizado. No
ano de 2013, a execução da ação se concentrou nas regiões Metropolitana, Xingu, Baixo
Amazonas e Lago de Tucuruí, e foram realizados 19.201 atendimentos, que corresponde a
64% do número proposto, e foi utilizado 42% do orçamento disponibilizado para o exercício.
Já no exercício 2014-2015, esta ação foi incorporada à Ação "PRO PAZ Integrado",
potencializando a atuação do estado quanto ao enfrentamento à violência. O financiamento
ocorreu exclusivamente com recursos ordinários do estado, embora na previsão inicial
constassem recursos de convênios que não foram efetivados.
A ação Pro Paz Integrado foi executada pelo CPCRC, FSCMPA, PCPA, SEAS,
SEJUDH e SESPA que programaram realizar atendimento nos municípios das 12 regiões de
integração. Neste exercício o atendimento específico à mulher em Belém foi disponibilizado
com o funcionamento do Pró Paz Integrado Mulher, que realiza atendimentos e
encaminhamentos necessários de acordo com cada situação apresentada. No interior do
estado foi implantado o Núcleo de Paragominas. Os recursos financeiros aplicados são
oriundos do Tesouro Estadual, e foi investido 97% da dotação atualizada, que era de 1,3
milhões. No resultado físico, a ação obteve um resultado de 27.595 atendimentos no ano do
exercício, o que corresponde a 57% do resultado esperado. No exercício de 2015, esta ação
foi executada pelo CPC "Renato Chaves", FSCMPA, Polícia Civil e Fundação PRO PAZ. De
acordo com a SEPLAN, os atendimentos foram registrados nos espaços Pro Paz Integrado
de Belém (20.474), Santarém (2.853), Tucuruí (913), Altamira (902), Paragominas (559) e
em mais 26 municípios do estado. Os recursos financeiros aplicados são originários do
Tesouro do Estado e do Fundo Estadual de Saúde.
A ação ―Implantação de Espaços Pró-Paz Integrado‖ que teve como meta viabilizar
espaços para o atendimento integrado de crianças, adolescentes e mulheres em situação de
violência, faz parte da Ação de Agenda Mínima de governo. Na realização desta ação, foi
implantado o Espaço Pró-Paz Integrado de Paragominas, além deste, foram implantados o
Pro Paz Mulher/DEAM em Belém, e o PRO PAZ Integrado de Altamira, por meio de recursos
do Fundo de Investimento de Segurança Pública (FISP), além disso também foi concluída a
reforma do espaço Pró Paz Integrado em Tucuruí. A ação é financiada com operações de

785
crédito interna (SEGUP) e recursos ordinários do Tesouro Estadual e, foram investidos
100% do valor disponibilizado, que corresponde a R$ 241.000,00. Já em 2015 a ação tinha
como programação inicial a implantação de unidades em Belém, Breves, Castanhal e
Parauapebas, com um valor de $3 milhões. Com a reprogramação ocorrida no exercício
esse valor foi reduzido para R$619 mil, e aplicado na continuidade da obra do Núcleo de
Atendimento Integrado em Belém, que finalizou o exercício com 55% de medição física, e na
aquisição de equipamentos para a nova Fundação. A implantação dos espaços de Breves e
Castanhal foram reprogramadas para o PPA 2016/2019. A ação é financiada com recursos
ordinários do tesouro estadual.
Com relação aos recursos federais disponibilizados por meio do SICONV, em 2011,
foram disponibilizados pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos a SEJUDH
recursos no valor de R$ 312.956,00 para realização do projeto ―Sensibilização e
Capacitação Dos Profissionais Da Rede de Atendimento a Mulher‖. Foram acolhidos quatro
projetos, no ano de 2012:
 O projeto Monitoramento E Diagnostico Das Ações Do Pacto Nacional Pelo
Enfrentamento A Violência Contra À Mulher No Estado Do Pará, para o qual foram
disponibilizados R$ 210.000,00. Na execução foi relatado dificuldade de conciliar os
prazos do convênio com a realização da meta, devido a redução inesperada do
número de profissionais da Coordenação de Promoção dos Direitos da Mulher-
CPDM (que atualmente está sendo suprida). (SEJUDH).

 O Projeto ―Apoio a Ações Da Coordenadoria e do Conselho Estadual de Promoção
dos Direitos Da Mulher‖, com valor de 600.000,00.

 Para o Projeto Capacitação de profissionais para atendimento a Mulheres em
situação de Violência: em foco o atendimento a vítimas de tráfico de pessoas, foi
disponibilizado recursos no valor de 271.340,00.

Para o projeto ―Implantação e Implementação da Casa-Abrigo para Mulheres em
Situação de Violência e Risco na Região do Marajó / Breves‖, foi disponibilizado o
valor de 222.222,22. Porem esta ação não foi executada.
Desde 2012 não foram registrados convênios com o governo federal, para políticas
de combate a violência contra mulher. Ao adentrar o orçamento direcionado as políticas para
mulheres no estado do Pará é perceptível dois momentos diferentes no que diz respeito a
origem dos recursos aplicados nas políticas e serviços da rede de atendimento à mulher
vítima de violência. Nos primeiros anos relacionados a período pesquisado, grande parte
dos recursos utilizados veio de fontes federais, ainda que conste recursos nos orçamentos
estaduais, não há dados referentes a aplicação, como já exposto. A SEJUDH, através da
Coordenadoria da Mulher tinha uma atuação muito boa, que foi perdendo força,

786
principalmente quando o estado assume outro governo, com estratégias diferentes, mesmo
havendo uma tentativa de com o projeto de Apoio a Ações Da Coordenadoria e do Conselho
Estadual de Promoção dos Direitos Da Mulher. Do outro lado a criação da Fundação Pro
Paz, pode garantir a concentração de recursos e o melhor aproveitamento na
implementação das políticas, mas ainda com a problemática da descentralização das
políticas especificas para mulheres, pois a demanda também inclui crianças e adolescentes.
Nesse sentido um dos principais problemas referentes a esse tema, é a
descentralização do orçamento direcionado as políticas para mulheres, ter o orçamento
distribuídos em diversos órgãos é um empecilho, já que há diversas outras prioridades. O
ideal seria a criação de uma secretaria de política para mulheres no estado, pois
concentraria os recursos e teria maior liberdade de investimento.
Outro momento se apresenta no orçamento público do estado, mesmo se mantendo
o governo, o Plano Plurianual apresenta conotações diferentes. O PPA 2016-2019 que teve
como orientação estratégica em sua elaboração, a ênfase na regionalização, a qual já se
apresentava nos planos anteriores. Assim, foram identificadas quatro (04) ações neste plano
para o exercício de 2016. A ação de Implantação de espaço do PROPAZ Integrado foi
executada como previsto na LOA, na Região Marajó, no município de Breves, atingindo a
meta física proposta, já a execução orçamentária teve modificação, o valor inicial era de
99.000 foi atualizado para 462.000 e utilizado integralmente.
A ação de Capacitação dos Profissionais da Rede de Atendimento à Mulher em
Situação de Violência, programada pela SEJUDH para as regiões do Araguaia, Baixo
Amazonas, Guajará, Marajó, Rio Caeté e Xingu, foi elaborada com objetivo de qualificar
agentes públicos no tema, em alinhamento ao Plano Estadual de Políticas para Mulheres.
Foi utilizado 87% do recurso disponível, que corresponde a 19 mil e, esta ação apresentou
como única fonte de recursos o tesouro estadual. Já com relação a meta física, observou-se
baixa execução, apenas 18% do planejado. Uma das principais atividades no período foi a
realização do Encontro da Rede de Serviços de Atendimento à Mulher em Situação de
Violência, como atividade integrante da Campanha 16 Dias de Ativismo pelo Fim da
Violência Contra a Mulher, em Belém.
A ação Monitoramento da Rede de Atendimento à Mulher também foi programada pela
SEJUDH para as regiões Araguaia, Baixo Amazonas, Carajás, Guajará e Marajó, e alinha-se ao
Plano Estadual de Políticas para Mulheres. Foi utilizado apenas 9% dos recursos, vale ressaltar
que o recurso previsto na LOA, foi de 60.000 e o valor da dotação atualizada foi de 461.000, teve
crescimento significativo, mas a utilização foi de 41.000, abaixo na dotação inicial. No entanto, a
ação apresentou 100 % da meta física. A ação Atendimento Integrado a Crianças e
Adolescentes e Mulheres em Situação De Violência, sob responsabilidade da

787
Fundação PROPAZ, foi programada e executada pela Fundação PROPAZ, Fundação Santa
Casa de Misericórdia do Pará - FSCMP e CPC Renato Chaves, que desenvolveram ações
por meio de equipes multidisciplinares. Esta ação obteve resultado superior ao previsto em
oito regiões de integração que possuem atuação do PRO PAZ Integrado: Belém (17.430),
Santarém (3.228), Tucuruí (1.110), Altamira (1.100), Paragominas (577), Castanhal (2.940),
Breves (426) e Bragança (897). Com relação aos atendimentos resultantes desta ação,
observa-se que por incluir crianças e adolescentes não é possível ter os dados exatos dos
atendimentos as mulheres vítimas de violência.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho o enfoque esteve em torno do orçamento público e das políticas para
as mulheres evidenciadas nele. Verificou-se que há políticas especificas para as mulheres
no planejamento orçamentário do estado do Pará, e os investimentos específicos são
direcionados a questão da violência. O problema da violência envolveu diversos órgãos, os
quais atendem a diversas demandas, portanto, os recursos vieram de diferentes fontes. O
período analisado abrangeu quatro Planos Plurianuais, onde foi identificado políticas e
estratégias diferentes, além de ter uma ruptura ideologia já que é marcado por dois
governos opositores, de direita e esquerda. Assim, houve uma quebra na estrutura das
políticas e nos serviços de atendimento as mulheres vítimas de violência.
Com relação ao Centro de Referência especializado, de um lado estão os Centros de
Referência Maria do Pará, sendo implementados num momento em que a política de
enfrentamento a violência contra mulher no estado começa a crescer, também por impulso da
política nacional, porque os recursos aplicados são de origem federal, não há registros de
recursos estaduais para essa política, pelo menos não de forma específica apresentados pela
SEPLAN. Até 2010, ano que termina o mandato governamental de Ana Julia Carepa, foram
disponibilizados o valor total de 4.289.195,11, para construção e implantação dos centros, bem
como, para o fortalecimento da Coordenadoria da Mulher e realização de campanhas. Ainda foi
identificado através do SICONV, recursos para a DEAM, no valor de 1.171.572,00.
De outro lado estão os Núcleos do Pro Paz Mulher e Pro Paz Integrado, fazendo
parte do programa em outro mandato governamental, o de Simão Jatene e teve como
principal fonte os recursos estaduais. Nos anos de 2011 a 2015 foi feito investimento no
valor total de 3.921.000,00 na implantação e funcionamento do Pro Paz Mulher e Integrado.
importante ressaltar que recursos se concentraram na Região Metropolitana de Belém e,
até 2015 apenas seis núcleos foram implantados em todo o estado, atualmente existem 9
núcleos. O investimento foi menor se comparado ao período anterior. Dos recursos federais
foi identificado o valor total de 1.616.518,22 para realização de capacitação, monitoramento,
apoio a coordenadoria da mulher e, também, para a construção de casas-abrigos, nos anos

788
de 2011 e 2012. Por tanto, não houve convênios nos últimos anos, e isso se dá devido a
desestruturação da Secretaria Nacional de Política para Mulher, a qual já teve status de
ministério.
A mudança de governo e a descontinuidade de uma política já existente para a
elaboração de uma nova, com atribuições semelhantes, influenciam na melhoria dos
serviços e afeta a população que os utilizam, além, de aumentar a demanda de recursos
para uma ―nova‖ rede de articulação.
Levando em consideração que a formulação do Pro Paz Mulher tem dimensões mais
abrangentes do que os Centros Maria do Pará, no entanto, o serviço só é disponibilizado na
região metropolitana, nas outras regiões dispõe de um serviço que inclui outro publico, não
exclusivo as mulheres. Além disso, o PPI funciona com déficits, não são oferecidos todos
os serviços que lhe é atribuído, assim, em questão de funcionamento se assemelha aos
centros Maria do Pará.
Verificou-se que os serviços que são a porta de entrada para a rede de atendimento
a mulheres vítimas de violência funcionam de maneira defeituosa. O atendimento dos
centros de referência não funciona nos finais de semana, justamente quando a demanda é
maior, nem mesmo as DEAMs apresentam atendimento em tempo integral. Das delegacias
visitadas apenas Belém e Santarém dispõem de atendimento nos finais de semana. É um
avanço ter dezessete (17) DEAMs em todo o Estado, ainda que com déficits, apresentam
atendimento especializado as mulheres, que se sentem mais acolhidas, no entanto, a
problemática da falta de recursos humanos atrelado a altas demandas dificulta o bom
funcionamento da DEAM. As capacitações são esporádicas nas Delegacias especializadas
e quando se trata das delegacias comuns é quase inexistente ainda que as normas exijam
que as delegacias comuns devam ter capacitação na área da violência doméstica e familiar,
e estar aptas para atender as vítimas, mas, isso não é uma realidade no estado.
Outra problemática é referente aos dados sobre o perfil das usuárias que são
fragmentados e parciais nas delegacias. Houve dificuldade para adquirir os dados da
violência doméstica e familiar, feminicídio, ou qualquer tipo de violência sofrida pelas
mulheres pelos órgãos responsáveis, no estado. Foi relatado pelas delegadas que há
informações detalhadas sobre as vítimas, como cor, idade, etc, nos Boletins de Ocorrência,
mas os dados não estão sistematizados. Para reunir as informações com dados detalhados
seriam necessários verificar os B.Os um a um e, isso demanda tempo, além da
disponibilização desses dados pelas delegacias.
evidente que houve avanços nas políticas de combate a violência contra mulher no
Estado no decorrer desses 10 anos, mas ainda há muito por ser melhorado, principalmente nas
regiões do interior do estado. A região metropolitana detém uma estrutura muito boa tanto

789
física quanto de funcionalidade, mas ainda não atingiu a proposta das normas técnicas dos
centros de referências e nem das delegacias especializadas. A criação da Fundação Pro Paz
um avanço no que diz respeito a concentração dos recursos, pois com orçamento próprio
tem maior liberdade de investimentos. Nesse sentido, o ideal seria a criação de uma
secretaria de política para mulheres no estado.
Essas políticas foram resultado de um longo processo de estudos, reinvindicações,
mobilizações por parte dos movimentos sociais, especialmente feministas e de mulheres.
Por isso, é essencial que movimentos de mulheres paraenses se fortaleçam, assim como os
conselhos da mulher existente em todo o estado e a criação de novos para que haja debate
sobre o enfrentamento da violência de gênero. É importante estreitar a relação desses
movimentos com a gestão governamental, especialmente com os órgãos que promovem as
políticas para mulheres.

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Caracterização dos delitos contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar em Belém-Pará.

CAR, Alethea Maria


https://doi.org/10.29327/527231.5-53
RAMOS, Edson Marcos Leal Soares
ALMEIDA, Silvia dos Santos de

Na década de 70 a violência contra a mulher passou a ser questionada e desde então pequenos
avanços no que diz respeito a igualdade de gênero vêm se fixando na sociedade brasileira. Este
trabalho objetiva apresentar a caracterização da violência contra a mulher em Belém. Abordagem
metodológica quantitativa, utilizando-se da técnica estatística de análise descritiva, com dados
fornecidos pela Secretaria de Inteligência e Análise Criminal, dos registros policiais da Divisão
Especializada em Atendimento à Mulher de Belém (2016-2018). Os resultados indicam que 34,4
das mulheres foram vitimas de violência psicológica, e que os delitos ocorrem no período noturno,
aos finais de semana, motivados por ódio/vingança. O quantitativo de mulheres agredidas ainda é
alarmante, sendo, portanto, necessário o estudo do fenômeno, para fomentar o desenvolvimento de
ações preventivas e repressivas.

Palavras chave: violência, gênero, vingança, psicológica.

INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher faz parte da história do Brasil, e somente ao final da década de
1970 a temática ganhou visibilidade e passou a ser a prioridade dos movimentos feministas,
principalmente com a realização de protestos em razão da absolvição pelos tribunais de assassinos
de mulheres com base na tese da “legítima defesa da honra”, (SANTOS, 2010). Nos anos 80, as
mulheres conseguiram importantes avanços, a exemplo da representação política com a
Constituição Federal de 1988 e a implantação das Delegacias de Defesa das Mulheres, com a
primeira unidade inaugurada no Estado de São Paulo, em 1985, composta apenas de policiais do
sexo feminino (SÃO PAULO, 1985).
A primeira Delegacia de Proteção à Mulher (DCCIM) foi criada no Estado do Pará em 1987
aos moldes da Delegacia de São Paulo (PARÁ, 1987) daquele ano e por meio do Decreto Nº 2.690
foi alterada para Divisão Especializada em Atendimento à Mulher em 2006, em razão de alterações
previstas Lei Nº 11.340/2006 que atendeu naquele ano cerca de 7500 mulheres vítimas de violência
doméstica (PARÁ, 2006). Com a promulgação da Lei Maria da Penha se fez necessária a
implantação de novas bases policiais, com meios eficientes de funcionamento, recursos humanos e
materiais (SPANIOL; GROSSI, 2014).
Das de 357 Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres no Brasil, presentes em
todas as capitais brasileiras, 17 funcionam no Estado do Pará, distribuídas geograficamente entre as
Regiões Integradas de Segurança Pública- RISPS, para atender as vítimas de todo o Estado (PARÁ,
2017). Cabem às Delegacias de Especializadas não só a investigação de crimes, como também
possuem a função de organizar as informações dos registros, em forma de banco de dados, visando
o estudo e o fomento de ações estratégicas no enfrentamento a violência doméstica.
Reconhecer que os danos causados pela violência doméstica e familiar contra a mulher
atingem não somente a vítima acarretam consequências para a familiar e também para a sociedade
792
de um modo geral, é um importante passo. Assim como é preciso observar as especificidades da
temática, conhecer a fundo as características da violência para realizá-lo um planejamento
estratégico, com diretrizes capazes de alcançar os pontos críticos da temática, a fim de alcançar
resultados mais efetivos no sentido do enfrentamento à violência de gênero.

METODOLOGIA

A metodologia de estudo constou da revisão de literatura, e foi desenvolvida por meio de


abordagem metodologica quantitativa, Prodanov e Freitas (2013) ressaltam que nesta abordagem o
pesquisador considera que tudo pode ser quantificável, de forma a classificá-los, analisá-los,
utilizando-se de ferramentas estatísticas. E para análise dos dados utilizou-se a técnica descritiva, a
qual tem como finalidade principal, a descrição das características de determinado fenômeno,
estabelecimento de relações entre variáveis (GIL, 2008). A área de abrangência do estudo
compreende a 1ª Região Integrada de Segurança Pública (RISP), Belém (PARÁ, 2014), que
segundo IBGE(2018) estima-se que a capital paraense possua 1.485.732 habitantes, a 11º dos 15
municípios mais populosos do país.
Os dados analisados foram fornecidos pela Secretaria de Inteligência e Análise Criminal- SIAC, por
meio de planilha do Microsoft Excel, gerados diretamente do Sistema Integrado de Segurança Pública-
SISP–WEB, totalizando 14.938 Boletins de Ocorrência Policial-BOPs, de violência contra a mulher,
registrados na Divisão Especializada em Atendimento à Mulher DEAM-Belém, no período de 2016 a
2018, e posterior formação de banco de dados, utilizando o software Microsoft Excel, seguintes
variáveis: i) Delito do Registro: Ameaça; Lesão Corporal; Injúria; Vias de fato; Perturbação da
tranquilidade; Descumprimento de Medidas Protetivas, Difamação, Calúnia, Estupro, Constrangimento
ilegal, ii) Causa presumível: Acidental; Alcoolismo/Embriaguez; Alienação; Ambição; Ciúme;
Devassidão; Entorpecentes; Imperícia/Imprudência/Negligência; Ódio/Vingança; Outras; iii) Ano do
Fato: 2016; 2017; 2018; iv) Dia da Semana do fato: Domingo; Segunda; Terça; Quarta; Quinta; Sexta;
Sábado; vi) Turno do Fato: Madrugada; Manhã; Tarde; Noite.
As variáveis foram analisadas por meio da técnica estatística descritiva de dados, cujo objetivo
o de sintetizar valores de igual natureza, permitindo assim que se obtenha uma visão global da
variação dos valores, organizando e descrevendo os dados por meio de tabelas, de gráficos com o
auxilio do Programa Microsoft Office Excel 2010™ (Microsoft Corporation, Redmond,
Estados Unidos) (BUSSAB; MORETTIN, 2017).

793
RESULTADOS

A Lei 11.340/2006, no Capítulo II, apresentou os tipos de violência doméstica e familiar contra
mulher, os classificando em (i) violência física, (ii) violência psicológica, (iii) violência sexual,
(iv) violência patrimonial e (v) violência moral e em alteração recente tipificou a conduta do
descumprimento de medidas protetivas, atribuindo penalidade de detenção, de 3 (três) meses a 2
(dois) anos, em casos de não obediência a decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência
previstas na referida legislação (BRASIL, 2006).
Conforme Gráfico 1, no triênio estudado 34,24% das mulheres atendidas na Divisão
Especializada no Atendimento à Mulher de Belém relataram ter sido vítimas de violência
psicológica, enquanto que 32,63% relataram violência física e 16,28% sofreram violência moral.
Enquanto que as violências sexual e patrimonial 3,16% e 1,77% respectivamente. No plano
nacional, as mulheres brasileiras responderam ter sofrido mais violência física (67%) do que
psicológica (47%), de acordo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa DataSenado, em parceria
com o Observatório da Mulher contra a Violência (BRASIL, 2017).

Gráfico 1: Percentual de Delitos contra a Mulher na cidade de Belém, no


Período de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2018, por tipo de Violência.

Psicológica 34,24

Física 32,63

Moral 16,28

Descumprimento 4,63

Sexual 3,16

Patrimonial 1,77

0,00 10,00 20,00 30,00 40,00


Percentual

Fonte: Construção dos Autores com informações da Secretaria de Inteligência


e Análise Criminal (SIAC), 2019.

A violência psicológica pode ser entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e
diminuição da autoestima, que controle ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, (BRASIL, 2006), como
por exemplo o delito de ameaça, o qual foi o mais registrado, com 5117 registros representando
35,8% das ocorrências. Outra forma de violência psicológica é a contravenção penal de perturbação
da tranquilidade que se caracteriza pela insolência, pelo desrespeito quando não pela grosseria e, até
pela ousadia, conforme Gandra (2019) foi citada 943 vezes, 6,6% dos BOPs (Tabela 1).

794
Tabela 1: Quantidade e Percentual de BOPs, por Delito (dez maiores) referente à violência contra
a Mulher, registrados na DEAM-Belém, no Período de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2018.
Variável Categoria Quantidade Percentual
Ameaça 5117 35,8
Lesão Corporal 3644 25,5
Injúria 1876 13,12
Vias de fato 1160 8,11
Perturbações da Tranquilidade 943 6,6
Delitos Registrados (Os Dez Maiores) Descumprimento de medidas protetivas 686 4,8
Difamação 386 2,7
Calúnia 168 1,18
Estupro 157 1,1
Constrangimento ilegal 156 1,09
Total 14293 100,00
Fonte: Construção dos Autores com informações da Secretaria de Inteligência e Análise
Criminal (SIAC), 2019.

As ocorrências de lesão corporal 25,5% , conforme Tabela 1, representam ofensas à integridade


corporal ou à saúde, ou seja, conforme Cunha (2018) o tipo penal deseja proteger a saúde corporal,
fisiológica e mental (atividade intelectiva, volitiva ou sentimental da vítima). Por sua vez a
contravenção vias de fato, registrada 1160 vezes na DEAM Belém, no período de janeiro de 2016 a
dezembro de 2018, é consubstanciado em atos de ataque ou violência contra pessoa, desde que não
caracterizem lesões corporais (GANDRA, 2019).
Dos boletins de ocorrência policial, 686 apontam para a não obediência à ordem judicial de
restrição de aproximação ou contato da vítima, por exemplo. A conduta do crime de
descumprimento de medidas protetivas surgiu apenas no ano de 2018 (BRASIL, 2018), entretanto, a
desobediência das medidas protetivas é registrada na Polícia Civil do Estado do Pará desde o início
da vigência da Lei 11.340.2006, razão pela qual, há estatísticas de ocorrências antes mesmo da
tipificação criminal (Tabela 1).

Tabela 2: Quantidade e Percentual de BOPs, por motivo do fato, referente à violência contra
a Mulher, registrados na DEAM-Belém, no Período de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2018.

Fonte: Construção dos Autores com informações da Secretaria de Inteligência


e Análise Criminal (SIAC), 2019.

795
Sobre a motivação, a Tabela 2 mostra que a maioria dos casos de violência contra a mulher,
registrados na DEAM Belém, são presumidamente causados por ódio ou vingança (69,23%),
seguido do uso de substâncias capazes de alterar o funcionamento do corpo humano, como álcool
e/ou entorpecentes (12,63%) e ainda como causa ciúme (11,82%). Os dados ratificam informações
recebidas pelo serviço oferecido pelo Governo Federal onde mulheres podem registrar denúncias
acerca de violência doméstica, o Disque 180, as vítimas atendidas informaram como causa
presumível dos fatos denunciados ao serviço telefônico o uso e/ou abuso de álcool ou entorpecente
(29%), discussão (19%) e ciúme(17%) (BRASIL, 2017).

Gráfico 2: Percentual de Delitos contra a Mulher na cidade de


Belém, no Período de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2018, por dia
da semana.
20,00 19,11
18,00
16,00 15,05 15,26

14,00 12,45 12,72 12,45 12,96


12,00
10,00
8,00
6,00
4,00
2,00
0,00

Dia

Fonte: Construção dos Autores com informações da Secretaria de


Inteligência e Análise Criminal (SIAC), 2019.

Quanto a frequência semanal, a maior parte dos delitos é identificada no Gráfico 2, aos
domingos (19,11%), seguido de sábado (15,26%) e da segunda-feira (15,05%) dos registros. Nos
dias de terça-feira (12,45%) e quarta-feira (12,72%) nota-se uma pequena redução das denúncias.
Nas quintas-feiras (12,45%) e sextas-feiras (12,96%) as ocorrências aumentam com a aproximação
do final de semana. O que pode ser relacionado com o aumento do tempo em que o autor da
violência permanência no domicilio (MOURA; VASCONCELOS; PRATESI, 2009).

796
Gráfico 3: Percentual de Delitos contra a Mulher na cidade de
Belém, no Período de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2018, por
turno do fato.

40,00 37,11
35,00
30,00 25,41 26,19
25,00
20,00
11,29
15,00
10,00
5,00
0,00

Turno

Fonte: Construção dos Autores com informações da Secretaria de


Inteligência e Análise Criminal (SIAC), 2019.

De acordo com o Gráfico 3, observa-se que a maior parte dos crimes ocorreram no período
noturno (37,11%), entretanto Bernardo, et al. (2019) explicam que dos BOPs de violência
doméstica registrados em Belém no mesmo período, a maior parte (44.73%) foram registrados no
período noturno, o que segundo os autores, as vítimas de violência doméstica não procuram
imediatamente por atendimento na Delegacia Especializada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve por objetivo caracterização dos delitos contra a mulher, no âmbito da
violência doméstica e familiar em Belém, o conhecimento e o agrupamentos das informações é
necessário para o diagnóstico do atual contexto da violência contra mulher, de forma que fomentar
o desenvolvimento de ações na prevenção e repressão a esses delitos. O objeto de análise nesse
estudo versa quanto aos delitos contra a mulheres registrados na Divisão Especializada de
Atendimento à Mulher em Belém, de janeiro de 2016 a dezembro de 2018, por meio de abordagem
de análise estatística e na crítica dos dados apresentados.
Os resultados indicam que a cerca do tipo de violência sofrida a violência psicológica se
destaca (Ameaça, Perturbação tranquilidade), seguida da violência física (Lesão corporal e Vias de
fato) e de violência moral, os delitos contra a honra (Injúria, Calúnia e Difamação) e em menor
quantidade de registro o descumprimento de medidas protetivas. Os registros de violência sexual e
patrimonial aparecem de forma discreta.

797
De acordo ainda, com os resultados obtidos a maior parte dos delitos ocorre aos domingos,
sábados e segunda-feira no turno noite, e com motivos presumíveis de ódio e/ou vingança e uso de
substâncias capazes de alterar o funcionamento do organismo humano, como álcool e droga. O pico
de registros no primeiro dia útil da semana e ocorre principalmente no inicio da noite, o que indica
que as vítimas primeiro realizam suas atividades laborais e somente depois procuram a unidade
Especializada para atendimento. De onde pode se concluir que a junção de elementos como final de
semana, bebida alcoólica e período noturno, representa o contexto de perigo quanto à violência
contra a mulher.
Estes resultados apontam para um contexto violência, extrema e fútil, contra as mulheres, após
mais de uma década da Lei Maria da Penha, diante do quantitativo de registros. Representam
também que os avanços legislativos acerca do tema, embora sejam positivos no sentido do
empoderamento da mulher, da busca por justiça, ainda há a necessidade de evoluir quanto à
repressão dos delitos, visto que quase 15 mil vítimas violadas, em um triênio, é inaceitável, na
busca pelo respeito e equidade de gênero.
Desta feita, a análise dos registros de violência contra mulheres é importante para planejamento
estratégico da Rede de Enfrentamento da Violência Doméstica Contra Mulher, permitindo que ações
pontuais, sejam direcionadas ao foco do problema. Assim como permite que a Rede de Acolhimento
e Assistência de Mulheres e da Sociedade possa desenvolver ações sentido de ações de prevenção e
conscientização social visando ao hoje, ideológico, fim da histórica violência de gênero.

798
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800
Litigância Estratégica em Prol da Descriminalização do Aborto: Usos,
Sentidos e Prática na Clínica de Atenção à Violência

https://doi.org/10.29327/527231.5-54
Maura Sabrina Alves do Carmo
Universidade Federal do Pará (UFPA)
RESUMO

O ensejo do trabalho advém da busca por fundamentos centrais da litigância estratégica


em direitos da saúde feminina, a partir da averiguação de noções e perspectivas deste
fenômeno e o estudo de caso da produção do Amicus Curiae–ADPF 442 pela Clínica de
Atenção à Violência, que utiliza este método estratégico para assistir casos de violência
contra grupos vulneráveis de forma gratuita, interdisciplinar e humanizada, observando a
violência juntamente com a realidade em que ocorre para priorizar os fatores psicossociais
das vítimas, além de litigar e comunicar ao Estado às demandas dos movimentos sociais,
mediante o diálogo com este. O Amicus Curiae, do latim ―amigo da corte‖, é uma entidade,
pessoa ou órgão com que se envolve como um terceiro, pois é instigado pelo interesse
jurídico maior das partes presentes no processo, sendo a entidade em questão voltada às
vidas das mulheres que foram ceifadas pelo aborto inseguro, bem como das possíveis
doenças desenvolvidas pela prática e o encarceramento de quem aborta para garantir o
seu direito de planejamento familiar, ressaltando que a criminalização atinge
principalmente as mulheres de baixa renda, que estão inseridas em mais de um contexto
de opressão, que seriam as interseccionalidades, como defende Crenshaw. Logo,
conforme Piovesan, a descriminalização do aborto é questão de saúde pública.

Palavras-chave: Litigância Estratégica; Aborto; Direitos das Mulheres; Direito Penal;


Democracia.

801
ABSTRACT
This work comes from the search for central foundations of the strategic litigation in
women's health rights, from the investigation of notions and perspectives of this
phenomenon and the case study of the production of Amicus Curiae – ADPF 442 by the
Violence Care Clinic, which uses this strategic method to assist cases of violence against
vulnerable groups free of charge, interdisciplinary and humanized, observing the violence
together with the reality in which it occurs to prioritize the psychosocial factors of victims, in
addition to litigating and communicating to the state the demands of social movements,
through dialogue with him. Amicus Curiae, from Latin ―friend of the court‖, is an entity,
person or body with which it is involved as a third party, as it is instigated by the greater
legal interest of the parties present in the process, being the entity concerned concerned
with the lives of women. that were harvested by unsafe abortion, as well as the possible
diseases developed by the practice and incarceration of those who abort to guarantee their
right to family planning, emphasizing that criminalization mainly affects low-income women,
who are inserted in more than one context of oppression, which would be intersectionalities,
as Crenshaw argues. Therefore, according to Piovesan, the decriminalization of abortion is
a matter of public health.

Keys-word: Strategic Litigation; Abortion; Women's rights; Criminal law; Democracy.

802
INTRODUÇÃO
A combinação de diversas estratégias de prática com o fim de se reivindicar, por
meio do poder judiciário, a intervenção das entidades públicas em certa questão social é o
fundamento da litigância estratégica em direitos humanos, método este imprescindível para
instituições que buscam a efetivação e o resguardo das garantias fundamentais durante a
jovem democracia do Brasil. Neste contexto, em prol da democracia e dignidade da mulher,
é de suma importância conceder alternativas de acesso à justiça que usem o método da
litigância estratégica para tratar as demandas das mulheres, como a Clínica de Atenção à
Violência (CAV) da Universidade Federal do Pará (UFPA) - que assiste aos casos de
violência contra grupos vulneráveis de modo interdisciplinar, gratuito e humanizado.

O sistema clínico de ensino teve sua origem nos Estados Unidos na década de
1930, enquanto via alternativa de ensino jurídico tradicional, tendo por fim o combate ao
leque de deficiências na formação comum dos advogados, relacionando o estudo à ação,
frequentemente submetida a ponderação. Jerome Frank, em 1933, lança sua obra
intitulada ―Why not a clinical Lawyer-school?‖, na qual critica incisivamente o ensino jurídico
em vigor na época e apresenta o método clínico do estudo das ciências jurídicas, baseado
nas escolas de medicina, que se valem da supervisão de professores, da familiarização
dos estudantes com a ação profissional, pois assim o acadêmico aprende a operar de
acordo com a realidade. Não obstante as particularidades da América Latina, as
contribuições do autor também enriquecem o ensino jurídico latino-americano obsoleto,
baseado na memorização de conteúdos de normas e doutrinas.
O contexto político atual de crise econômica e arrefecimento dos direitos das
mulheres requer uma reavaliação contínua de vias atuantes em prol de avanços em
demandas sociais negligenciadas pelo Estado, como a saúde feminina. Observa Flávia
Piovesan (2007), que são realizados aproximadamente dois abortos por minutos no país,
logo, a ilegalidade desta prática não a impede de ser feita, todavia piora as condições em
que são realizados e agrava os riscos inerentes a essa prática; bem como defendem
Faúndes e Barcelatto (2004) sobre as existência de sequelas físicas e psicológicas e até
mesmo a falência decorrentes do estado precário e inseguro em que os abortamentos
ilegais acontecem.
Portanto, as clínicas jurídicas emergem nas terras brasileiras com a proposta de um
estudo crítico do direito em conjunto com intervenções na sociedade que respeitem a
conjuntura social, como corroborado na CAV ao ajuizar o Amicus Curiae–ADPF 442 em
prol das mulheres em invisibilidade social atingidas pela criminalização do aborto.

803
LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA EM DIREITOS
HUMANOS 1.1 ORIGEM E CONCEITO
A partir de Cardoso (2012, p. 41) e Vilarreal (2007, p.18) outras
expressões podem referenciar a prática do litígio estratégico, as quais seriam litígio de
impacto‖, ―litígio de caso-teste‖, ―litígio paradigmático‖, ―litígio de interesse público‖, ―litígio
das causas justas‖ e ―litígio de prueba‖. O conceito de litigância estratégica tem como
cerne a efetivação do ―interesse público‖, sendo este, segundo Villarreal (2007, p.17)
responsabilidade de todos, em especial dos profissionais da esfera jurídica, pois estes
devem comunicar à sociedade as premissas das garantias fundamentais e da democracia,
resultando, assim, no conceito de interesse público como a associação das práticas
jurídicas em prol da sociedade (VILLAREAL, 2007, p. 21).

O litígio estratégico enquanto um método de ação num caso concreto para


mudanças estruturais, além de justiça social, foi desenvolvido nos Estados Unidos, na
década de 60 pela atuação conjunta de duas frentes da advocacia que integravam o
movimento ―direito de interesse público‖ (CARDOSO, 2012, p. 43-44), as quais eram: a
policy-oriented, que objetivava ―o impacto social que o caso pode trazer, como o avanço
jurídico em um determinado tema, aplicando o método de litígio estratégico‖; a client-
oriented, que beneficia individualmente os clientes, procurando soluções que se adequem a
peculiaridade do caso concreto, sendo a advocacia tradicional (CARDOSO, 2012, p. 42).

Na América Latina, a autora defende que o método foi desenvolvido de maneira


diferente, uma vez que a concepção de ―direito do interesse público‖ teve seu apogeu
durante a década de 90 (CARDOSO, 2012, p. 46), pois o contexto social e político era
diferente (CARDOSO, 2012, p. 47). Um judiciário independente e acessível, que delibera
preliminares para guiar os demais tribunais, ―que dialogue com políticas públicas existentes
ou que provoque a sua gestão pelo Executivo, que dialogue com o processo legislativo, por
vezes sobrepondo-se a ele ou provocando a promulgação de normas‖ coopera para se
litigar estrategicamente (CARDOSO, 2012, p. 57), atributos inexistentes no quadro latino-
americano no período ditatorial e, parcamente obtido na democracia. Isto explica porque o
litígio estratégico se desenvolveu tardiamente nos países latino-americanos, requerendo até
mesmo estratégias não jurídicas.

1.2 SENTIDOS E CARACTERÍSTICAS DO LITÍGIO ESTRATÉGICO

Vilarreal (2007, p.17) defende em sua tese que os tribunais são o lugar apto para a
prática do litígio estratégico, assim, este método é instrumento específico dos advogados,
em especial, à linha judicial, sem negligenciar o valor de outros meios para a efetivação da

804
democracia, ou seja, do ―direito de interesse público‖, como a política, as ciências sociais e
jurídicos não litigiosos.

Em suma, a autora defende que o fim da litigância estratégica em direitos humanos


advém também de uma ampla observação e avaliação da realidade local na esfera social,
política e jurídica, além da percepção das consequências negativas e positivas que as
ações estratégicas podem acarretar. Ademais, esta perspectiva é posta por Cardoso (2012,
p.56), quando pressupõe que este fenômeno ―combina diferentes técnicas legais, políticas e
sociais desde o início do caso (ou mesmo antes de configurar-se em um caso, quando ainda
apenas um problema) até o seu término, que não é dado pela decisão judicial
„favorável‟, mas pela sua real implementação.‖

Há quem discorde dessas perspectivas, como posto por Baker e Carvalho (2014, p.
468), que o a ação do litigante é orientada às mudanças e empoderamento na sociedade,
uma vez que o elo com a vítima é primordial, não se atendo à pessoas alheias à
adversidade, para que as políticas públicas não sejam somente a ―necessidade de
mercado‖, que o trabalho em prol dos direitos humanos não adquira carga de empresas,
evitando, assim, que os movimentos sociais não sejam espectadores, mas participem das
decisões dos processos políticos.

O acesso à justiça e aos direitos humanos pela litigância estratégica é debatido pelo
livro denominado ―Litigância Estratégica em Direitos Humanos: Experiências e Reflexões‖
(2016) do Fundo Brasil de Direitos Humanos, que adveio da experiência da instituição ao
lançar, em 2014, ―Litigância Estratégica, Advocacy e Comunicação para a Promoção,
Proteção e Defesa dos Direitos Humanos‖. Neste livro, Ana Valéria Araújo conceitua
litigância estratégica, como exposto a seguir:

―Litigância é um termo usado no Direito e quer dizer o ato de mover


ações na Justiça e de atuar perante o Judiciário. Litigância
estratégica é uma ampliação desse conceito para abranger não só a
noção tradicional do Direito, mas também um conjunto de ações de
advocacy e comunicação para incidência no Legislativo e no
Executivo, com o objetivo de viabilizar políticas públicas que
defendam e efetivem direitos dos diversos segmentos vulneráveis da
sociedade. Ela é estratégica porque não é qualquer ação, mas sim
aquela que tem uma dimensão emblemática, capaz de criar
precedentes e gerar resultados positivos. Tais resultados terão efeito
multiplicador, transformando-se em exemplos bem sucedidos a
serem aplicados em outros casos similares, possibilitando assim um
salto na garantia dos direitos humanos.‖ (FUNDO BRASIL DE
DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 8)

805
A reparação de violações históricas dos direitos humanos, avaliando os contextos
nos quais a violência está inserida não somente pela perspectiva individual, todavia pela
amplitude do problema para o amparo e fortalecimento da democracia, tal como operava
Luiz Gama, advogado negro do Brasil Império e Patrono da Abolição da Escravidão do
1
Brasil (Lei nº 13.629/2018) .

1.3 LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA COMO TRINCHEIRA DE


RESISTÊNCIA FRENTE A CONJUNTURA POLÍTICA BRASILEIRA ATUAL

papel da litigância estratégica, discutido acima, é de suma importância pelo


contexto atual do país, como avalia Eloísa Machado: ―as ações de litigância estratégica
serão, nos próximos anos, muito mais uma advocacia de trincheira, de resistência para
bloquear retrocessos, do que ações que avancem na promoção e na efetivação de novos
direitos‖ (FUNDO BRASIL DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 23).

No mais, cabe destacar a fala de abertura do diretor presidente do Fundo Brasil,


Jorge Eduardo Durão sobre a função do litígio enquanto resistência das demandas
populares:

―Vivemos um momento de evidente ameaça de ruptura dos pactos


dos direitos humanos que foram firmados ao longo das últimas
décadas e é nesse mesmo contexto em que o poder do Judiciário
brasileiro tem ampliado o escopo de suas ações de um modo que
considero bastante controverso. Tal situação aponta para um campo
de disputa entre uma lógica focada na garantia dos direitos humanos
e outra que enfatiza apenas os direitos individuais. Destaco ainda o
preocupante processo de judicialização da política.‖ (FUNDO
BRASIL DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 18).

O juiz Rubens Casara defende que o Estado Democrático de Direito vive uma ―crise
paradigmática‖, assim, a ―Pós-democracia‖ conseguiria explicar como o atual Estado opera.
Neste regime, a essência da democracia se perde, pois seria um instrumento para a oprimir
pessoas não quistas, objetivando maiores lucros e acumulações, negligenciando a
mobilização do povo para as deliberações políticas em conjunção com os atores estatais em
prol de efetivação e salvaguarda dos direitos, logo, ―na pós-democracia não existem
obstáculos ao exercício do poder: os direitos e garantias fundamentais também são vistos
2
como mercadorias que alguns consumidores decidem como usar ou descartar.‖
Acarretando, assim, no arrefecimento de políticas populares, conforme Casara:

1 Lei Nº 13.629, de 16 de janeiro de 2018 da República Federativa do Brasil. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ _ato2015-2018/2018/lei/L13629.htm>
Na pós-democracia, os direitos e garantias fundamentais também são vistos como mercadorias. Justificando, 9 jul.
2016. Disponível em: <http://www.justificando.com/2016/07/09/na-pos-democracia-

806
―O Poder Judiciário na pós-democracia deixa de ser o garantidor dos
direitos fundamentais (função que deveria exercer mesmo que para
isso fosse necessário decidir contra maiorias de ocasião), para
assumir a função política de regulador das expectativas dos
consumidores. Por um lado, a pós-democracia induz à produção
massificada de decisões judiciais, a partir do uso de modelos
padronizados, chavões argumentativos e discursos de
fundamentação prévia, tudo como forma de aumentar a
produtividade, agradar parcela dos consumidores, exercer o controle
social da população, facilitar a acumulação e proteger o mercado. De
outro, o Poder Judiciário passa a gerir/dirigir julgamentos que
passam a seguir a lógica própria aos espetáculos, que agradam aos
espectadores (também consumidores) do sistema de justiça.‖
(CASARA, 2016)

As declarações da defesa de Fidel Castro ao Tribunal de Exceção durante o regime


de Fulgêncio Batista, em 1953, quando a justiça cubana atuava contra a dignidade da
pessoa humana é um episódio que se encaixaria no Brasil atual, poste nesta ele proclama
"Senhores juízes: por que tanto interesse para que me cale? Porque, inclusive, se evita todo
gênero de arrazoado para não apresentar argumentos? Será que não existe nenhuma base
jurídica, moral e política para apresentar seriamente a questão? Teme-se tanto a verdade?"
Estas declarações são a defesa de Fidel Castro ao Tribunal de Exceção durante o regime
de Fulgêncio Batista, em 1953, quando a justiça cubana atuava contra a dignidade da
pessoa humana.
Hodiernamente, a conjuntura política brasileiro, ainda mais agravado pelas últimas
eleições, apresenta encarceramento em massa da juventude negra, a criminalização das
lutas populares, o remodelamento dos marcos legais e o desprezo à Constituição Federal,
3
sendo esta conquistada com suor e sangue do povo por reivindicações democráticas.
Portanto, as políticas de austeridade em vigor demonstram a necessidade de resistência no
campo jurídico, com estratégias de atuação em prol dos direitos fundamentais.

CLÍNICA DE ATENÇÃO À VIOLÊNCIA: UM ACESSO À JUSTIÇA DE FORMA


HUMANIZADA NA AMAZÔNIA
Neste capítulo, busca-se delinear marcos teóricos referenciais para se pensar as
possibilidade do uso da litigância estratégica na assistência jurídica humanizada, cujo
cerne é voltado para o ensino e para a função da e do estudante de direito na garantia e
promoção dos direitos humanos, permeando os avanços teóricos e práticos pela
experiência da a Clínica de Atenção à Violência - CAV, parte específica dentro do Núcleo

os-direitos-e-garantias-fundamentais-tambem-sao-vistos-como-mercadorias/>. Acesso em: 17 nov.


2019
Como a juventude constrói resistência em tempos em que nem a verdade está assegurada?
3
Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2019/08/29/como-a-juventude-constroi-resistencia-
em-tempos-em-que-nem-a-verdade-esta-assegurada/index.html>. Acesso em: 10 nov. 2019.

807
de Práticas Jurídicas – NPJ da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará –
UFPA, que se faz presente enquanto trincheira de resistência aos direitos dos grupos
vulneráveis na Amazônia.

Cabe destacar que a CAV corrobora com as perspectivas ressaltadas por Celeste
Melão, as quais são: a interdisciplinaridade nas práticas de litigância estratégicas; o
―investimento na formação dos(as) estudantes, dado que esse é um caminho que possibilita
a longo prazo mudanças na cultura do Judiciário‖; a presença da educação jurídica popular,
que ―possibilitará a apropriação de conhecimentos pelos grupos sociais que sofrem
constantes violações de seus direitos‖ (FUNDO BRASIL DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p.
21).

Até porque o trabalho da CAV visa tratar, combater e prevenir a violência pelo uso e
prática do litígio estratégico, observando a violação segundo o contexto em que a vítima
4
está inserida, bem como conceder à comunidade nacional e internacional atendimentos
interdisciplinares às vítimas e transpassar os muros da universidade com palestras em
escolas e demais instituições sociais. A Clínica possui profissionais das mais diversas
áreas, tais como odontologia, enfermagem, psicologia, serviço social, direito. Desenvolve
assim, numa perspectiva interdisciplinar, intervenções concretas e integradas junto a
instâncias sociais, de saúde, educacionais e jurídicas.

A Clínica instigou estudos e debates como os elementos do atendimento


sistematizados por Oliveira e Ventura (2013) enquanto: a humanização, ligada ao cuidado
necessário ao se realizar a assistência; a multiprofissionalidade diz respeito a
imprescindibilidade da atuação de profissionais de áreas distintas nos atendimentos em face
da complexidade dos casos de violência; a intersetorialidade está ligada à relação entre os
serviços realizados na assistência, pois tais profissionais devem trabalhar de modo
integrado e articulado.

Cirilo (2012), que balizaram a discussão ao afastar as denominações assistidas/os e


clientes: a primeira pelo fato de que na Clínica se busca a autonomia da pessoa ante a
situação de conflito e violência em que está inserida, e o termo reforça uma relação
hierarquizada e piramidal entre quem realiza o atendimento e quem está sendo atendida/o,

A CAV assistiu ao caso da dinamarquesa que requereu refúgio no país e ação de divórcio litigioso
com pedido liminar de alimentos e guarda por ter fugido para o Brasil com seus filhos por ter sofrido
violência física e psicológica por parte do seu marido, visto as legislações estaduais e federais que
resguardam as mulheres. O departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica
Internacional do Ministério da Justiça pediu ao STF a prisão cautelar de Lisbeth para que aguardasse
a extradição após a refugiada ter seu nome inserido no rol dos procurados pela Interpol –
Organização Internacional de Polícia Criminal, que atua na cooperação de polícias de diferentes
países.

808
como se houvesse um vetor unidirecional que não considera a experiência e autonomia da
pessoa atendida – trata-se de uma perspectiva assistencialista; a segunda pelo fato de que
na Clínica não se exige uma contraprestação econômica pelo atendimento já que serviço
público vinculado à Faculdade de Direito da UFPA (buscar resolução para provar o vínculo).

Portanto, o termo usuária/usuário foi considerado o adequado para as pessoas que


buscam o atendimento na CAV, uma vez que tais utilizam um serviço público que é o
atendimento social, psicológico, de saúde e jurídico (o qual é ênfase deste trabalho). Esta
discussão foi importante vez que demonstrou os aspectos do atendimento da clínica:
humanização, intersetorialidade e multiprofissionalidade.

O atendimento humanizado pressupõe que se tenha conhecimento acerca da


realidade brasileira e latino-americana e das violências estruturais, que são reproduzidas
institucionalmente, a partir de relações de poder historicamente construídas e consolidadas
no contexto da Modernidade, principalmente aquelas configuradas em territórios brasileiros.
Logo, a Clínica, para dar conta da complexidade que se coloca enquanto real, se propõe ao
atendimento de casos de violência contra pessoa idosa, contra pessoa LGBT, contra a
Mulher, contra a Criança e o Adolescente, violência racial e violência policial.

Das assistências concedidas na Clínica, 90,8% dos casos representam violência


contra a mulher, como mostra o levantamento de dados documentais feito por integrantes
do projeto em 2018. Isto se deve a diversos fatores, dentre os quais, o avanço da luta
feminista em diversos âmbitos (incluindo o âmbito institucional), o que têm consequências
no fortalecimento da rede de enfrentamento à mulher nacionalmente, segundo Luanna
Tomaz (2016).

O Decreto nº 7.958/13 prevê o atendimento humanizado como pressuposto para


atendimento setorial por dentro da rede de enfrentamento à violência. A CAV, portanto,
constitui projeto acadêmico indispensável na rede de enfrentamento à violência ao usar o
método de litigância estratégica para tratar a violência e intervir no social e na saúde através
da prevenção e tratamento das vítimas, em prol de alternativas para que possam atender
com qualidade e humanização as vítimas, combater o arrefecimento de políticas públicas e
promover uma cultura de paz.

O Pará é expoente no combate às violações dos direitos humanos por causa do


elevados índices de transgressões de direitos na região. A Universidade Federal do Pará foi
uma das pioneira no que tange Clínicas de Direitos Humanos do país, colaborando para o
estabelecimento da Rede Amazônica de Clínicas de Direitos Humanos. Assim, somente a

809
Clínica de Atenção à Violência que produz pesquisas, estudos e assistência aos grupos
vulneráveis.

No que tange às ações da CAV ao aplicar o litígio estratégico, houve a elaboração,


em parceria com o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e Ações Estratégicas da
5
Defensoria Pública do Estado – NDDH/DPE, do Amicus Curiae na Arguição de
6
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, manifesta sobre a
7
incompatibilidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal, Decreto-Lei nº 2.848/1940 , que
foi protocolado ao Superior Tribunal Federal, pautando no mérito: das obrigações
internacionais do Brasil em matéria de direitos humanos, do direito à vida, da saúde e do
planejamento familiar, bem como os princípios constitucionais limitadores da criminalização:
da idoneidade, da racionalidade e da subsidiariedade. Até porque na principiologia da
intervenção mínima, ontologicamente incutida na noção de Estado Democrático de Direito, é
obrigatória e importância a análise dos princípios democráticos limitadores do
8 9
encadeamento de criminalização, conforme Raúl Cervini e Alessandro Barata .

Ademais, no processo de criminalização nos Estados Democráticos de Direito não


podem ser olvidados as seguintes premissas: não criminalizar quando se trata de tornar
dominante uma determinada concepção moral; não criminalizar simbolicamente; e não
criminalizar comportamentos frequentes ou aceitos por parte significativa da população.

A OBSERVÂNCIA DA REALIDADE DAS MULHERES PARA AJUIZAR A ADPF-


442 SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

O ensejo da produção do Amicus Curiae supracitado advém da reflexão sobre o rol


de mulheres atendidas que interromperam a gravidez e vivem sob a ameaça de
criminalização e enfrentam problemas de saúde por causa do abortamento. Segundo a
Organização Mundial de Saúde, o abortamento inseguro é o método realizado para
interromper uma gravidez indesejada, feito por agentes sem as devidas qualificações ou
aquele que é executado em um ambiente sem as mínimas condições de segurança médica,

5 Supremo Tribunal Federal STF – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI 2130


SC. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14819112/acao-direta-de-
inconstitucionalidade-adi-2130-sc-stf>. Acesso em: 28 out. 2019
L9882. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm>. Acesso em: 10 nov.
2019.
Decreto-lei Nº 2848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 22 de out.
2019.
Los procesos de descriminalización, Montevideo, Editorial Universidad, 2ª ed., 1993.
Derecho penal y criminología, n. 31, Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 1987.

810
ou ambos, causando a principal consequência da criminalização do aborto, que gera o ato
do aborto inseguro, é o grande índice de mortes de gestantes.

O Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (Comitê Desc.),


recomendou ao Brasil ações eficazes que resguardem as mulheres das implicações do
aborto ilegal. Esta recomendação é emergencial, visto que, conforme alega a profª. Melania
Maria Ramos de Amorim, umas das expositoras durante a audiência no STF sobre (ADPF)
n° 442 , ―a estimativa é de que o aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil. Em
2015 houve 211 mortes por aborto, em 2016, 203 mortes por aborto no Brasil. E para cada
morte por aborto a gente tem 25 casos de mulheres que quase morrem, então em 2016
cerca de cinco mil mulheres quase morreram, ou seja, tiveram complicações muito graves
10
em decorrência do aborto.‖

Corroboram em alertar o Estado e à sociedade sobre essa criminalização ineficaz


que assola o país, o Ministério da Saúde Brasil & Alan Guttmacher Institute mostram que:
são realizados 3,65 abortos por 100 mulheres de 15 a 49 anos, sendo em geral menores de
20 anos enfrentando sua primeira gravidez; o abortamento ilegal representa a causa de
morte materna em 20% no Maranhão (1987-1991) e ocupa o 1º e o 3º no ranking de
Salvador (1990) e São Paulo, respectivamente; o abortamento é a 6º causa mais constante
de internação, sendo o 2º método obstétrico feito com maior frequência; e já são 250 mil
internações pelo Sistema Único de Saúde com o foco de tratar as implicações da prática
clandestina.

Diante deste prisma, é importante refletir se a ilegalidade do aborto é eficaz ou não


para o amparo da vida da gestante e para a diminuição da prática. Assim, defende Piovesan
que o aborto seguro está relacionado com a sua legalidade, pois quando legal, os abortos
são feitos em condições seguras e higiênicas, como comprovado nos países que
11
legalizaram a prática, a exemplo do Uruguai . No entanto, é possível a procedência de
abortos clandestinos que não infrinjam devastadoramente na saúde da mulher, é o caso dos
abortamentos que custam um preço exorbitante e inacessível para a maioria das mulheres
do desigual Brasil, conforme Jandira Feghali:

―A ilegalidade aprofunda o abismo entre mulheres pobres e ricas.


Divide o direito à vida por classe. Existem aquelas mulheres que

―Aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil‖, afirma pesquisadora. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2018/07/31/aborto-e-a-quarta-causa-de-morte-materna-no-brasil-
afirma-pesquisadora/index.html>. Acesso em: 16 nov. 2019.
Portugal, Espanha e Uruguai: o que aconteceu após a legalização do aborto? Gênero e Número,
set. 2018. Disponível em: <http://www.generonumero.media/portugal-espanha-e-uruguai-o-
que-aconteceu-apos-legalizacao-do-aborto/>. Acesso em: 16 nov. 2019

811
podem realizar o procedimento em clínicas adequadas e aquelas que
põem em risco a própria vida e a possibilidade de futuras gestações
desejadas em clínicas sem a menor condição ou em auto-abortos.
São essas últimas que batem às portas do Sistema Único de Saúde
com as seqüelas de abortamentos realizados de forma insegura.
Somente em 2004, cerca de 240.000 internações foram motivadas
por curetagens pós-aborto, correspondentes aos casos de
complicações decorrentes de abortamentos inseguros‖ (FEGHALI,
2006, p.224)

A questão econômica não está alheia à racial, como mostra a pesquisa intitulada
―Desigualdades Sociais por Cor ou Raça‖ publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), expõe que em 2018 as pessoas pretas e pardas constituíam 75,2% da
categoria com menos renda no país (composta pelos 10% com menos rendimento), sendo
12
que as pessoas negras correspondem à somente 27,7% dos 10% mais ricos . Dessa
forma, na pirâmide da desigualdade social, os homens brancos representam o topo, as
mulheres brancas aparecem em seguida, ficando à frente dos homens pretos e na base
13
estão as mulheres pretas. Por conseguinte, segundo dados do IBGE, o índice de
abortamento por mulheres pretas (3,5%) é o dobro entre as brancas (1,7%), sendo o quadro
de uma mãe negra de até 19 anos o que mais busca a prática do aborto, como
complementa a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA). As estruturas escravocratas ainda
vigentes no país são refletidas por Luíza Bairros:

―Na história recente do Brasil, sobressaem os avanços em termos de


crescimento econômico, de ampliação da escolaridade e de redução
da pobreza, resultantes do êxito de políticas sociais de cunho
redistributivo e de valorização do salário mínimo. Estas, associadas
adoção de ações afirmativas, especialmente no campo da
educação, produziram evidente melhoria nas condições de vida da
população afro-brasileira. Contudo, verifica-se que esse quadro mais
geral de aumento de oportunidades tem sido insuficiente para
provocar uma significativa redução nas desigualdades raciais e de
gênero. Isto pode ser atribuído à resiliência de mecanismos de
reprodução de hierarquias e desigualdades sociais. Entre estes se
destacam o racismo e o sexismo, que se combinam para delinear na
sociedade visões que estereotipam e classificam capacidades e
atributos de brancos e negros, de mulheres e homens, de modo a
produzir condições diferenciadas de acesso a direitos e a
oportunidades.‖ (BAIRROS, 2013, p.13).

Esta situação é consequência da omissão do Estado no que tange políticas públicas


de cunho étnico-racial e de gênero, apesar do Estado se dizer como social e democrático, e

Na análise IBGE, os estudo tiveram foco somente nas desigualdades entre brancos, pretos ou
pardos devido às restrições esstatísticas impostas pela baixa representação dos indígenas e
amarelas no total da população brasileira ao se utilizar dados amostrais.
13
MENDONÇA, H. Mulheres negras recebem menos da metade do salário dos homens brancos no
Brasil. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/12/politica/1573581512_623918.html>.
Acesso em: 16 nov. 2019.

812
que se proclamar garantidor dos direitos humanos. A sociedade supremacista branca não
considera a mulher negra como sujeito político por não serem nem homens e nem brancas,
desempenhando o papel de ―outro‖ do outro, como defende Grada Kilomba (2012), autora
negra que inclui sua imprescindível pauta sobre negritude no comparativo de Simone de
Beavouir (1970, p.11), no qual o homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. Sendo o
Outro em associação a um mundo predominado pelos homens, que o orienta a partir de si,
as mulheres são concebidas na posição de subordinação pela sociedade patriarcal. Então,
para Kilomba a visão de sujeitos pode ser usufruída por mulheres brancas e homens negros
em certas situações, o que não contempla as mulheres negras.

As opressões estruturais vivenciadas pelas mulheres negras são previstas na


ilustríssima obra ―Mulheres, Raça e Classe‖ de Angela Davis (2016), publicada pela primeira
vez em 1981, na qual a pensadora e ativista cunha a imprescindibilidade de atentar para o
cruzamento destes recortes, problematizando o feminismo branco, no qual a mulher negra é
negligenciada, por associá-la somente a força de trabalho, enquanto a mulher branca seria
destinada aos espaços domésticos, analisando a conjuntura social, histórica, crítica e
contemporânea do papel da mulher, em especial das mulheres negras norte-americanas,
partir do viés anti-capitalista, antirracista e anti-sexista.
A defesa de que as pessoas podem estar inseridas em mais de um contexto de
opressão, sendo estes eixos de subordinação não hierarquizados, diversos e indissociáveis,
conceituado como ―interseccionalidade‖ na tese de doutorado de Kimberle Crenshaw,
como a seguir:
―A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca
capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação
entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente
da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de
classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades
básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da
forma como ações e políticas específicas geram opressões que
fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou
ativos do desempoderamento.‖ (CRENSHAW, 2002, p.177)

A definição de interseccionalidade é subdividida por Crenshaw em dois pilares: o


estrutural, por abordar o papel das mulheres negras neste recorte de raça e gênero,
partindo do pressuposto de violências e suas consequências. o político, no que tange ao
foco em políticas antissexistas e antirracistas, que põem o entrave de violência contra
mulheres negras às margens. Por isso, relacionar as implicações das ligações entre
estruturas de opressões (sexismo, racismo e patriarcalismo) compõe o quadro da
interseccionalidade.

813
Na literatura feminista brasileira, a antropóloga Lélia González é a pioneira na
problematização sobre interseccionalidades. No texto ―Racismo e Sexismo na Cultura
Brasileira‖ (1980), González relaciona racismo e sexismo ao destacar demandas
peculiares às mulheres, além de conceber as opressões raciais, sexuais e classistas
transpassadas da hierarquização. Logo, a classe é a deliberativa e preceito organizacional,
a raça e o sexo é a coluna vertebral que estrutura o capitalismo, ratificando, assim, a
concepção de Crenshaw de que a convergência das dominações de raça e gênero que
caracterizam a interseccionalidade.
No cenário brasileiro também se faz presente a ativista negra Luiza Barros, finada
em 2016, que na obra ―Nossos Feminismos Revisitados‖, de 1995, aborda sobre o
encontro dos recortes sociais de raça e gênero ao alegar que:
―Raça, gênero, orientação sexual reconfiguram-se mutuamente
formando [...] um mosaico que só pode ser entendido em sua
multidimensionalidade. [...] Considero essa formulação
particularmente importante não apenas pelo que ela nos ajuda a
entender diferentes feminismos, mas pelo que ela permite pensar
em termos dos movimentos negro e de mulheres negras no Brasil.
Este seria fruto da necessidade de dar expressão a diferentes
formas da experiência de ser negro (vivida através do gênero) e de
ser mulher (vivida através da raça) o que torna supérfluas
discussões a respeito de qual seria a prioridade do movimento de
mulheres negras: luta contra o sexismo ou contra o racismo? - já
que as duas dimensões não podem ser separadas. Do ponto de
vista da reflexão e da ação política uma não existe sem a outra.‖
(BAIRROS, 1995, p. 461).

Neste sentido, conforme Bairros as opressões se inter-relacionam, edificando


reciprocamente malhas de poder, assim, a interseccionalidade explica a sobreposição
concomitante de diversas maneiras de subordinação, pautando que as mulheres negras
possuem histórias peculiares nas intersecções das vias de poder.
Através da abordagem teórica sobre o feminismo negro, este movimento no Brasil
tem se erguido por enfrentamentos históricos que mostram o engajamento da mulher
negra brasileira pela sua emancipação política, ideológica, teórica e prática no que tange
ao sexismo, ao racismo e no advento da sua identidade enquanto sujeito social. Somente
a militância negra organizado pode romper as estruturas da hegemonia branca e subsidiar
o nascimento de políticas públicas emancipatórias.
Na Amazônia, onde as lutas por efetividade de direitos dizem respeito não apenas
sobrevivência da floresta amazônica, mas, sobretudo das inúmeras populações que
ocupam o entorno de vastas bacias hidrográfica, rios, florestas, campos e cidades e
sofrem com o processo repressor das ações governamentais, além da política econômica
de implantação mega projetos privados, exploratórios e predatórios, que visam o lucro em

814
detrimento da vida humana, da fauna e da flora na região mais rica em biodiversidade do
14
mundo.
Neste prisma, é evidente o descaso e desconhecimento do quadro de violência de
gênero na região amazônica, conforme a declaração da atual Ministra da Mulher, Família e
Direitos Humanos, que justifica que os abusos sexuais sofridos pelas meninas da Ilha de
Marajó, no Pará, ocorrem por falta de calcinhas, corroborando e mascarando a pedofilia e
os estupros de vulneráveis, que representam índices alarmantes de ocorrência.
Em 2017, segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa
Social (Segup), foram registrados 2.399 casos. Mas em 2018, de agosto a julho, já são
1.496 casos, o que representa cerca de 62% do total do ano anterior. Em média, são
quase 7 ocorrências por dia no Estado. Na Região Metropolitana de Belém, no ano de
2017, foram registradas 544 ocorrências. Em 2018, já são 323 casos, entre os meses de
janeiro e julho. Conforme dados divulgados pela Comissão de Direitos Humanos e Defesa
do Consumidor da ALEPA, a maior incidência de estupro de vulneráveis está em Belém,
seguida por Santarém e Ananindeua. No entanto, em alguns municípios do Estado, como
Placas e Mãe do Rio, o crescimento de casos registrados chega a 400%. Outros
municípios também apontados são Garrafão do Norte, Jacundá e Santa Luzia do Pará.
A realidade na Amazônia perpassa a debilidade da malha de assistência e das
políticas públicas, quadro que provoca a morte exponencial de mulheres, sendo estas
submetidas à violência de gênero, de classe e de raça. Comumentemente, o abortamento
pela mulher amazônica acontece num cenário de intimidações e injúrias psicológicas feitas
pelos companheiros, além do quadro de extrema miséria, que não apresentam o mínimo
de higiene e segurança para a prática feita por parteiras/aborteiras. Os índices desses
abortamentos, chamados popularmente de “fetos engolidos” na Ilha do Marajó,não são
recolhidos, visto a falta de acesso aos locais onde ocorrem, os quais seriam rios e
povoados do interior paraense alheios à políticas públicas por desinteresse estatal.
O índice quantitativo sobre violência contra a mulher é duvidoso no quadro da Ilha
do Marajó (local que apresenta 7 dos 21 municípios com menor IDH do país), no Baixo
Amazonas (especificamente Santarém), nos garimpos em carajás e Itaituba, nos fartos
empreendimentos de Barcarena (que compõe a Região Metropolitana de Belém) e
Altamira, nas propriedades do Sul do Pará que cultivam de soja e gado, em Belém e
cidades adjacentes.
Todavia, nas regiões supracitadas, as violações são naturalizadas pela cultura
local, na qual as mulheres não são reconhecidas como donas do seu próprio corpo pela
justificativa de terem o papel de completa submissão aos homens, sejam seus parentes,
14
―Caderno I: Direitos e Democracia - Lutas criminalizadas no Pará‖, da Sociedade
Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.‖

815
trabalhadores rurais, garimpeiros, peões de obras e fazendeiros. Como exemplo, o quadro
amazônico apresenta o estupro paterno, que é encoberto pela famosa lenda do boto cor de
rosa que sai das águas na forma de um rapaz robusto e belo que encanta e engravida
meninas e mulheres antes de voltar para os rios.
Neste quadro para evitar o nascimento de criança sem o reconhecimento paterno,
por ter sido concebida por relações não estáveis com os peões dos grandes latifúndios e
empresas, além da extrema pobreza devido à mínima oportunidade de emprego para a
gestante, ela opta pelos ―fetos engolidos‖, mesmo sem amparo institucional. Já quando se
trata de fazendeiros ricos, os caros abortamentos são bancados para acontecerem até
mesmo em Hospitais Públicos Municipais, como denuncia a operação ―Sexto Dia‖ da
15
Polícia Civil do Estado do Pará.

Essas mulheres negras, pardas, ribeirinhas, quilombolas, indígenas, brancas e/ou


pobres são aprisionadas dentro dessa cultura de que seu corpo não lhe pertence, sentindo
as implicações de ser mulher em uma sociedade ainda rusticamente masculina, lidando
com gravidezes indesejadas, que as impossibilitam de realizar o aborto sem a
possibilidade de adquirirem doenças, de serem condenadas pelo processo penal e a
sociedade ou virem a falecer. O contexto patriarcal pressupõe que somente a mulher é
responsável e culpada pela gravidez, por conseguinte, as mulheres abastadas de condição
social para a criação dos filhos são deixadas ao acaso sem amparo do Estado e, na
maioria dos casos, da própria família; além disto, as vítimas de estupro não auferem o
16
direito ao aborto pela falta de provas, fato comum desta barbara violação , ou a demora
17
na concessão do alvará judicial, fatos que corroboram com o silêncio das vítimas .
Portanto, é imprescindível reconhecer a autonomia da mulher em determinar ser mãe ou
não.

15 POLÍCIA CIVIL- PA. Polícia Civil deflagra operação para apurar venda de partos e abortos ilegais
em Redenção. Disponível em: <http://www.policiacivil.pa.gov.br/pol%C3%ADcia-civil-deflagra-
opera%C3%A7%C3%A3o-para-apurar-venda-de-partos-e-abortos-ilegais-em-
reden%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 22 out. 2019.
―As autoras de Estupro: crime ou „cortesia‟? (1998) explicitam outra contradição nos processos envolvendo o
delito de estupro: apesar da jurisprudência brasileira ser unânime em conferir maior credibilidade à palavra da
vítima em crimes sexuais, na avaliação das provas em caso de estupro é dado pouco ou nenhum valor à palavra
da vítima quando não se caracteriza sua „honestidade‟ – que é avaliada pela vida sexual, afetiva e familiar da
vítima‖. (ANDRADE, 2018 p.76)
17
Pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que somente 10% a
15% dos casos de estupro são reportados às autoridades e entram para as estatísticas.

816
CONCLUSÃO

Os estudos teóricos e as práticas históricas do litígio estratégico em direitos


humanos e o método clínico jurídico apontaram na direção de um pensamento feminista
negro com fundamento e atuação política própria, edificado por meio da luta feminista
interseccional que pautam a libertação de mulheres de acordo com a suas realidades e a
desconstrução de opressões classistas, racistas e sexistas, que só podem ser alcançadas
caso instituições jurídicas dialoguem com os movimentos sociais e concretizem suas
demandas específicas, como foi realizado pela Clínica de Atenção à Violência da
Universidade Federal do Pará ao ajuizar, juntamente com a Defensoria Pública do Estado
do Pará, a ADPF nº 442 que defende a importância da descriminalização do aborto para
combater mortes evitáveis de gestantes que se encontram em vulnerabilidade
socioeconômica.
Os estudos sobre temática da litigância estratégica assinalam que para aplicar este
método é necessária uma articulação abrangedora sobre os agentes da sociedade civil
com instituições do sistema de justiça, fim a ser realizado por profissionais da advocacia,
que estejam formados e qualificados no âmbito do direito, tanto em disciplinas
propedêuticas quanto no processo legal, da política e da humanização da assistência
jurídica.
Nesta perspectiva, para tratar a violência e construir uma cultura de paz na
sociedade, a interseccionalidade deve ser observada, pautando a visibilidade das
subjetividades dos recortes de classe, de identidade de gênero e etnicidade do ser mulher.
Usar o instrumento teórico-metodológico da interseccionalidade acarreta na compreensão
e visibilidades das questões de exclusão e desigualdade que as mulheres vivenciam assim
como o litígio estratégico se propõe a enfrentar na trincheira jurídica e política pela escuta
das demandas populares.

817
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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819
RELAÇÕES DE GÊNERO E TERRITÓRIO: considerações sobre as violações de
direitos humanos de meninas ribeirinhas do Arquipélago do Marajó

https://doi.org/10.29327/527231.5-55
Letícia Costa de Carvalho
Universidade Federal do Pará – campus
universitário do Marajó – Breves

Jacqueline Tatiane da Silva Guimarães –


Universidade Federal do Pará – campus
universitário do Marajó – Breves

Nilza de Sousa Medeiros


Universidade Federal do Pará – campus
universitário do Marajó – Breves

RESUMO: Tratamos sobre o quadro de violações de direitos humanos vivido por meninas
ribeirinhas que vivem nos rios do Marajó. Objetivos: i). Debater sobre a exploração sexual e
trabalho infantil a partir dos conceitos de interseccionalidade e território e ii). Realizar
levantamento de registros sobre as principais violações sofridas por meninas ribeirinhas no
Marajó. Realizamos pesquisa bibliográfica e documental, tendo como corpus matérias
disponibilizadas em sites e jornais eletrônicos. Se torna necessário processos analíticos que
tomem a problemática das violações de direitos humanos da infância no Marajó numa
perspectiva de totalidade, visto que é resultado da pobreza, aliada às relações de gênero
que foram historicamente impostas às mulheres marajoaras, que elaboram estratégias de
resistência diante um território que concentra diferentes desafios para a efetivação de
políticas públicas.
PALAVRAS-CHAVE: Interseccionalidade. Território. Amazônia Marajoara. Direitos
Humanos. Ribeirinhos.
ABSTRACT: We deal with the situation of human rights violations experienced by riverside
girls living in the Marajó rivers. Objectives: i). Debate on sexual exploitation and child labor
from the concepts of intersectionality and territory and ii). Conduct survey of the main
violations suffered by riverside girls in Marajó. We carry out bibliographic and documentary
research, having as corpus materials available on websites and electronic journals. Analytical
processes are needed to address the problem of human rights violations of children in
Marajó from a total perspective, since they are the result of poverty, allied to the gender
relations that were historically imposed on Marajo women, who elaborate strategies of
resistance to a territory that concentrates different challenges for the implementation of public
policies.

KEYWORDS: Intersectionality. Territory. Amazon Marajoara. Human rights. Riverside.

820
INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado parcial de observações iniciais e levantamento


bibliográfico realizado pelo grupo de pesquisa DHIDAM, que ao partir de uma proposta
interdisciplinar tem seus estudos e pesquisas voltados para o fortalecimento social e
científico da região marajoara. Assim, com o objetivo de debater sobre a exploração sexual
e trabalho infantil a partir dos conceitos de interseccionalidade e território, realizamos um
levantamento de registros sobre as principais violações sofridas por meninas ribeirinhas no
Marajó.

Inicialmente abordamos acerca da área rural do Marajó, descrevendo suas principais


características e problemáticas, bem como, destacando os impasses que existem para a
efetivação de direitos humanos básicos nessa localidade. Num segundo momento,
realizamos um recorte de matérias de jornais e sites eletrônicos que tratam sobre o quadro
de violações sofridas por meninas ribeirinhas no Marajó, para então assim compreendermos
como violações de exploração sexual e o trabalho infantil se associam a essas
problemáticas, em que as principais atingidas são meninas.

Diante de um quadro de violação diária, sem acesso a água potável, saúde,


educação e diversos outros serviços públicos básicos a população ribeirinha tem ganhado
destaque em jornais sensacionalistas, que para atraírem audiência, traçam um olhar
superficial e preconceituoso sob essas comunidades, geralmente os culpabilizando pela
situação em que estão inseridos e deixando de lado a responsabilidade do poder público.

Se torna necessário processos analíticos que tomem a problemática das violações


de direitos humanos da infância no Marajó numa perspectiva de totalidade, visto que é
resultado da pobreza, aliada às relações de gênero que foram historicamente impostas às
mulheres marajoaras, que elaboram estratégias de resistência diante um território que
concentra diferentes desafios para a efetivação de políticas públicas.

O TERITÓRIO DA AMAZÔNIA MARAJOARA E OS IMPASSES PARA A EFETIVAÇÃO


DE DIREITOS HUMANOS

Para Dantas e Moraes (2008) o conceito de território está presente em diferentes


áreas do conhecimento científico, mas aqui vamos abordar no âmbito da geografia, que
descreve o território como uma variação entre uma abordagem jurídica, social e cultural,
vinculado a relações que a sociedade estabelece com a natureza, por meio de mecanismos
de apropriação, dominação, ocupação ou posse de uma fração do espaço. E através dessa
relação surgem as fragmentações deste espaço com diferentes funções na organização,
manutenção, gestão, ocupação e entre outros fatores envolvidos.

821
Partindo desse pressuposto já é possível assinalar que em cada espaço geográfico,
ou melhor, em cada região do mundo existe uma forma de vida diferente, com gostos,
comportamentos e identidades distintas, pois é justamente esses fatores que diferenciam
cada espaço, não se limitando à fauna e a flora ou a quaisquer outros tipos de definição
ambiental, mas se estendendo aos povos que estão inseridos nesses territórios. Assim,
situamos o arquipélago do Marajó como um espaço distinto por possuir diversas
características que são próprias da região amazônica, aqui destacamos a forma de
locomoção, que nesta região é feita pelos rios.

Cercado por águas, o arquipélago do Marajó é formado por 16 municípios, sendo


considerado a maior ilha fluvial do mundo, segundo Cals (2012 apud GUEDES, 2012 p.2) ―a
população total do Marajó é de 487.161 habitantes, dos quais 56,59% vivem na área rural, e
43,40% na área urbana‖. Sarraf (2018, p.64) ao se voltar para a diversidade desse território,
se refere a ele como Marajós, que seriam o Marajó das florestas e Marajó dos Campos, que
segundo o autor são ―distribuídos em regiões de campos naturais, zonas de mata, praias,
rios e mar que dão espaços a cidades, vilas, fazendas, povoados, retiros, casas distribuídas
irregularmente em longo espaço de rios e florestas‖. Dos 16 municípios que compõe essa
região, apenas dois não estão abaixo da linha da pobreza (Soure e Salvaterra), sendo que
um deles (Melgaço), no ano de 2010 alcançou a última posição no ranking nacional do
Índice de Desenvolvimento Humano, sendo estigmatizado pela mídia nacional como o pior
lugar para se viver.

A região Marajoara tem como principal característica a população da área rural, que
formada por pessoas que residem as margens dos rios, e utilizam deste o meio central de
sua subsistência, sendo por este motivo denominados como ―ribeirinhos‖. Chaves (2001,
p.78) diz que ―[...] a localização espacial nas áreas de várzea, nos barrancos, os saberes
sócios históricos que determinam o modo de produção singular, o modo de vida no interior
das comunidades ribeirinhas, concorrem para determinação da identidade sociocultural [...]‖
afirmando que os mesmos por possuírem uma relação intrínseca com a fauna e a flora
configuram uma referência de população tradicional da Amazônia.

De acordo com o IBGE (2010) o município de Breves, um dos municípios mais


desenvolvidos da região marajoara, possui 7.767 domicílios na área rural, já em Melgaço, os
domicílios localizados na área rural totalizam 2.988 e ultrapassam os domicílios da área
urbana que totalizam 1.052. Vale ressaltar que geralmente estes domicílios são um único
cômodo em madeira, que abrigam famílias extensas ou mais de uma família em um único
espaço. Esses domicílios podem ser encontrados em duas formas, estando sozinhos, ou
seja, sem a presença de vizinhos ou agrupados em vilas e comunidades, onde geralmente

822
contam com a presença de um representante da igreja que assume a ―liderança‖ da
comunidade.

IMAGEM I – Comunidade Ribeirinha Vila Intel IMAGEM II – Comunidade Ribeirinha


Vila Magebras

Fonte: Programa Redes Comunidades Ribeirinhas

Por se tratarem geralmente de localidades extensas e distantes das áreas urbanas, a


efetivação de políticas públicas nessas áreas se tornam um grande desafio, é comum, que
quando presentes as escolas e postos de saúde se encontrem em condições precárias e de
difícil acesso, tornando a população ribeirinha refém de uma realidade que deposita
esperança apenas na caridade e ajuda divina. Assim, sobrevivendo da caça e da pesca, e
criando suas próprias estratégias de sobrevivência neste espaço de disputas, estas
comunidades acabam por serem esquecidas pelo poder público, que geralmente só os
procuram em período eleitoral.

IMAGEM III – Posto Bom Jesus IMAGEM IV – Escola Ribeirinha

Fonte: Programa Redes Comunidades Ribeirinhas

823
Como podemos observar, as imagens acima retratam o cenário dos serviços
prestados na zona rural dos municípios marajoaras, que além de estarem em situação
precárias, são os únicos em quilômetros de rios, atendendo uma parte considerável das
comunidades ribeirinhas. De acordo com relatos dos moradores, o posto de saúde da foto
acima, não dispõe de materiais necessários para o atendimento básico, obrigando a única
enfermeira que o posto possui, realizar procedimentos com pouco ou quase nenhum
material.

Para se ter acesso a um serviço mais qualificado, os moradores precisam se


deslocar a cidade mais próxima, porém, muitas vezes esse deslocamento pode levar mais
oito horas, dependendo do rio em que este se encontra. Assim, os moradores criam
ferramentas para lidar com situações de emergência, como é o caso dos três partos que
ocorreram ainda esse ano no posto de saúde ―Bom Jesus‖ que está localizado na vila
Magebras, cerca de duas horas de barco do município de Breves, este, mesmo sem dispor
de utensílios para atendimentos especializado acaba muitas vezes procedimentos
ultrapassam sua competência, como é o caso dos partos e internações.

As escolas nessas localidades também se encontram em situações precárias, o que


rebate diretamente na educação desta população, é comum encontrarmos escolas
funcionando em um ―barracão‖ ou lugares improvisados, com anos variados tendo aula na
mesma classe, que acaba sobrecarregando o profissional de educação. Por falta de
manutenção nas escolas, muitas são fechadas por se tornarem uma ameaça a vida dos
alunos, e como forma de solucionar esse descaso os órgãos públicos veem como solução
os deslocamentos desses alunos para outras escolas ribeirinhas, que se encontram muitas
vezes horas de distância, e sem garantia de transporte.

Diante de um quadro de violação diária, sem acesso a água potável, saúde,


educação e diversos outros serviços públicos básicos a população ribeirinha tem ganhado
destaque em jornais sensacionalistas, que para atraírem audiência, traçam um olhar
superficial e preconceituoso sob essas comunidades, geralmente os culpabilizando pela
situação em que estão inseridos e deixando de lado a responsabilidade do poder público.

MENINAS RIBEIRINHAS NOS JORNAIS: o retrato de uma visão sensacionalista

Lopes (2012, p.21) argumenta que ―[...] questões relevantes que estimulam o
interesse de compreender a infância ribeirinha está relacionado às expressões da questão
social na Amazônia, ou seja, a pobreza, a miséria, a violência, a falta de saneamento básico,
saúde e etc.‖, o que nos permite observar que as mais atingidas por esse quadro de
violação são as mulheres e meninas, principalmente quando nos voltamos para as meninas
negras, pois segundo Biroli (2018) as mulheres negras acompanhadas de seus filhos,

824
ocupam a faixa mais pauperizada da sociedade . Comumente nos deparamos com
notícias que envolvem em suas chamadas palavras chaves como ―Marajó‖, ―prostituição‖ e
―meninas‖, por tal fato, não nos é estranho o termo equivocado ―meninas balseiras‖, que
estigmatiza as meninas ribeirinhas vítimas de exploração e abuso sexual.

Tais notícias acabam ganhando destaque nacional e configurando o território


Marajoara como espaço de violação e abandono, Guedes (2012, p.1) sintetiza que ―para a
mídia, em um contexto de extrema pobreza como afirma ser a realidade do arquipélago do
Marajó, as únicas opções de sobrevivência verificadas são: a mendicância, o comércio
informal de produtos alimentícios regionais e a prostituição‖ o que descaracteriza o Estado
como sendo um dos maiores responsáveis pela situação dessas comunidades.

Temas como prostituição infantil no Marajó tem ganhado visibilidade desde meados
de 2008, quando denúncias do então Bispo do Marajó, Dom José Luiz Azcona, tomaram
notoriedade. De acordo com o Jornal Extra, em matéria publicada em abril de 2008, o Bispo
afirma que crianças se prostituíam em troca de comida, sendo muitas vezes levadas pelos
próprios pais nas embarcações. O mesmo tema foi abordado pelo G1 Pará, em matéria
publicada em agosto de 2015, no qual o bispo afirma que já viu uma mãe que levava uma
menina de aproximadamente 10 anos para uma dessas balsas.

necessário destacar que estas meninas adentram as balsas com o intuito de


vender seus produtos (farinha e frutos regionais), e acabam se tornando alvos vulneráveis a
todo e qualquer tipo de violação. Neste contexto, é necessário destacar que a culpabilização
da família sempre é o foco principal, todavia é necessário ir além deste pensamento e
compreender que estas famílias também são violadas, e por tal, acabam reproduzindo tais
violações. Acosta e Vitale (2005, p.23) sintetizam que ― A família precisa encontrar nos
serviços e programas de políticas públicas o suporte necessário para a proteção e o
exercício dos direitos de seus membros‖ afirmando que nem tudo se resolve na competência
dos recursos da família.

Recentemente a atual ministra da Mulher, da família e dos Direitos Humanos,


Damares Alves, lançou o projeto ―Abrace o Marajó‖ que segundo a ministra vem a ser um
projeto voltado para a erradicação da exploração sexual de meninas na região, todavia, ao
se referir a essa problemática, que como já expomos tem sua gênese em aspectos
profundos da questão social, a mesma recaiu mais uma vez a culpa sob as vítimas e suas
famílias, afirmando que as meninas no Marajó são abusadas sexualmente por não usarem
calcinhas, o que tornou o Marajó, mais uma vez assunto na mídia nacional e internacional.

Em novembro de 2019, a BBC News Brasil, publicou a matéria ―por que a Amazônia
é o pior lugar do Brasil para ser criança‖, esta matéria traz em sua redação visões diferentes

825
de educadores, agente de saúde, pesquisadores acadêmicos, promotores de justiças,
ONGS e moradores locais, que trazem o seu olhar sob as diversas notícias que envolvem a
região. É importante destacar a necessidade aqui do local de fala, deixando claro a
existência de diversas iniciativas já realizadas na região marajoara por profissionais que aqui
estão, movimentos sociais e pela própria Universidade, que na fala infeliz da então ministra
Damares foram atacados e invisibilizados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como forma de compreensão da Amazônia marajoara por meio de levantamento


bibliográfico voltados para as comunidades tradicionais que residem as margens desses
rios, destacamos que as formas de vida dessa população que ainda resistem a um sistema
opressivo, sem politicas criadas para atender suas especificidades, necessitam de um olhar
especial, pois se tratam de pessoas que tem seus direitos garantidos apenas no plano
normativo, e acabam depositando sua esperança na ajuda divina.

Ao nos voltarmos para notícias publicadas em matérias de jornais eletrônicos,


observamos que o maior número de violações recaí sob as meninas ribeirinhas, estas, ao
serem inseridas em um contexto diário de violação tem seus corpos vistos como simples
mercadoria e mão de obra barata, usando como base a afirmação de Fonseca e Shuch
(2009) que sintetizam que vivemos em um contexto que enfatiza a ―universalização da
infância‖, mas não a universalização das condições para acesso à infância, destacamos que
tais matérias analisada geram a proliferação de discursos que culpabilizam pais e
responsáveis por essas crianças, eximindo o Estado de suas responsabilidades,
desconsiderando que a família só poderá oferecer proteção se também for protegida.

Afim de desconstruir com posicionamentos como os proferidos pela atual ministra da


Mulher, da família e dos Direitos Humanos, e assim propor um trabalho intersetorial, que
venha apontar reais alternativas para o enfrentamento não só do abuso e exploração sexual,
mas bem como das diversas violações que envolvem as crianças marajoaras, os projetos de
extensão e pesquisa ―Direitos Humanos e Infância no Marajó‖ que hoje fazem parte do
programa DIREITOS HUMANOS, INFÂNCIAS E DIVERSIDADE NO ÁRQUIPELAGO DO
MARAJÓ – DHIDAM, recentemente aprovado pelo Programa de Extensão Inclusiva
Avançada – Marajó, edital nº02/2019 – UFPA, promovem seminários e rodas de conversa a
fim de levantar debates e criar estratégias conjuntas para a promoção e garantia de direitos
humanos das crianças e adolescentes marajoaras, bem como fortalecer as políticas públicas
já existentes na região.

826
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Disponível em: www.g1.globo.com. Acesso em: 09 de novembro de 2019.

827
AT 6 - Gênero, Corpos, Sexualidade
Coordenação

Telma Amaral Gonçalves – UFPA

Eli Pinheiro – FAMAZ

Osvaldina Araújo – UFPA

Proposta da Área temática

A área temática tende a desenvolver estudos que articulam questões relativas


aos gêneros, corpos e sexualidades com especial atenção na constituição do
corpo e na fabricação das corporeidades de diferentes sujeitos que se
reconhecem como homens, mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais,
dentre outros; bem como na análise de suas práticas, valores, identidades,
subjetividades no campo da sexualidade. Palavras-chave: sexualidades – corpo
– identidades – subjetividades.

828
ARCO-ÍRIS EM PROSA: REPRESENTAÇÕES DAS HOMOSSEXUALIDADES
E DE TRAVESTIS EM REPORTAGENS DOS PERIÓDICOS DA DÉCADA DE
1970.
https://doi.org/10.29327/527231.5-56
Alana Albuquerque de Castro

Mestranda em História Social da Amazônia – UFPA

RESUMO

A Ditadura Civil-Militar, marcou um turbilhão de mudanças políticas, mas também


artísticas, culturais e sociais. Durante esse mesmo período, mais precisamente na década
de 1970, as homossexualidades e as travestis, ganhavam grande destaque não só no
Brasil, como no mundo, o movimento gay power e a Revolução Sexual traziam
tona uma geração cansada de se esconder e de negar os seus desejos. O presente
trabalho propõe através de uma análise dos periódicos paraenses A Província do
Pará, Folha Vespertina e O Liberal analisar a abordagem e o discurso contido em
algumas reportagens desses jornais, na década de 1970 sobre a homossexualidade
feminina, masculina e as travestis, a maneira que o mesmo observava essas questões
e a forma que eles perpetuavam essa informação ao leitor, não deixando de relacionar
com o período da Ditadura Civil-Militar em questão.

Palavras-Chave: Sexualidade. Mídia impressa. Ditadura. Representações. Década de


1970.

ABSTRACT

The Civil-Military Dictatorship marked a whirlwind of political, but also artistic,


cultural and social changes. During this same period, more precisely in the 1970s, as
homosexualities and transvestites, they gained prominence not only in Brazil, but in the
world, the gay power movement and the Sexual Revolution brought to light a
generation that could be hidden and denied its own. wishes. The present work through
an analysis of the Pará periodicals The Province of Pará, Folha Vespertina and O
Liberal analyzes an approach and the discourse contained in some reports of these
newspapers, in the 1970s, about female, male homosexuality and as transvestites. the
same way to observe these questions and the way they perpetuate this information to
the reader, while being related to the period of the Civil-Military edition in question.

Keywords: Sexuality. Print. Dictatorship. Representations. 1970s.

829
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os estudos sobre as homossexualidades e sobre as travestis na Ditadura


confronta um modelo de sociedade da época, que visava tudo recorrente do binarismo
e tratando a questão biológica como a única tangível nos moldes de um regime que se
1
baseava na moralidade e na aversão a tudo que fosse tido como ―fora do padrão‖ .
Partindo do pressuposto, de uma época marcada por uma repressão, pela censura
dos meios de comunicação e pelo alinhamento dos principais jornais da imprensa
2
oficial com o governo , meu trabalho busca entender de que maneira as
homossexualidades e as travestis eram representadas nesse período da década de
1970 nos periódicos e dessa forma entender a relação desses discursos com o
período em questão. Visto que era um período de Ditadura, e suas publicações
estariam alinhadas as relações de poder do governo e pelos interesses do mesmo.

Em meio a esse período turbulento da nossa História, surge a Revolução


3
Sexual, que segundo Mary Del Priore (2011) , eclodiu no mundo todo, ocasionando

uma geração pronta para quebrar todas as regras impostas pela sociedade em busca
de se auto-afirmarem e de agir da maneira que achassem que era mais conveniente
para si. Era um momento de descobertas e de uma luta pela liberdade de ser quem
quisessem ser. Por outro lado, existia uma Ditadura pronta para inviabilizar qualquer
comportamento visto como ―impróprio‖. E o surgimento da Revolução Sexual reflete no
surgimento do movimento Gay Power, que surgiu nos E.U.A e logo foi crescendo no
Brasil.

1 Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade
desviante- homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não
deseja ser integrado e muito menos tolerado. Queer é um jeito de pensar e de ser que não
aspira ao centro e nem o quer como referencias; um jeito de pensar que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do
indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda perturba, provoca e fascina. - LOURO,
Guacira Lopes. – “O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer”. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004.
Os veículos de comunicação da impressa de Belém, mais expressivos na época, Folha do
Norte, A Província do Pará e O Liberal, que mesmo defendendo interesses aparentemente tão
diversos no plano local, refletiam uma certa unidade editorial em relação ao plano federal, a partir
da opinião de seus articulistas e redatores responsáveis pela edição das páginas que tratavam do
noticiário político nacional. Ora mais, ora menos, ora ostensivamente, ora disfarçadamente, a
imprensa em geral clamava pelo golpe. - FERREIRA, Paulo Roberto – ―A
Imprensa e o Golpe Militar de 1964”. Belém, 2007, p. 3.

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São
Paulo: Planeta, 2011, 254p.

830
Em contrapartida a esses movimentos em prol da liberdade sexual que
cresciam, havia uma Ditadura, contrária a qualquer manifestação que fosse de contra
ao seu discurso de ―moral‖ e ―bons costumes‖. O AI-5, instaurado em 1969,
reconfigurando o departamento de censura e propaganda. As censuras se
concentravam em concepções que, supostamente, agredissem o padrão moral da
nação brasileira e, também, em políticas de esquerda que eram consideradas
subversivas. Jornais, novelas, canções e filmes estavam submetidos ao comitê de
4
censura (FICO, 2004, p. 265-270) .

O Jornal é um forte meio de comunicação, responsável por trazer ao leitor


informações que de alguma maneira lhe serão úteis. A discussão jornalística, trará ao
leitor um entendimento da percepção que os periódicos selecionados tinham sobre as
homossexualidades e as travestis, visando assim uma sobre a perspectiva dos
periódicos e sobre a opinião que os mesmos pretendiam desencadear na sociedade
da época, através de uma análise pertinente sobre a posição do jornal refletindo em
5
suas notícias. Assim como afirma Roger Chartier (2002) , as representações no

mundo social, embora queiram apresentar um diagnóstico fundado na razão, são


sempre determinadas de acordo com os interesses dos grupos que as constroem.
Portanto, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a
posição de quem os utiliza.

“A AGRESSÃO SUFOCADA”: A Repressão ao “Arco-Íris”.


1.1 “CRIME CONTRA A NATUREZA”: A homossexualidade masculina e a repressão.
Após o Ato Institucional número 5, a repressão se intensificou inaugurando
assim os chamados ―anos de chumbo‖. Em 2014, A Comissão Nacional da Verdade,
esclareceu os ocorridos desde 1968 e também investigou as graves violações de
direitos humanos cometidas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988 por
agentes públicos e pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado
6
Brasileiro. James N. Green (2014, p. 5) , afirmou na Comissão Nacional da Verdade,
que uniu militantes, presidentes dos movimentos LGBT‟S e Secretarias da Cultura e
da Justiça, que os anos em que se instaurou a Ditadura foram anos de grandes

FICO, Carlos. ―A pluralidade da censura das propagandas da ditadura”. In: REIS, Daniel
Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). O golpe e a ditadura militar: 40
anos depois (1964-2004). São Paulo: Editora Edusc, 2004. P. 265-270.
CHARTIER, Roger. ―História Intelectual e História das Mentalidades: Uma Dupla
Reavaliação”. In: A História Cultural: Entre Práticas e Representações. São Paulo: Difel, 2002.
Relatório - Tomo I - Parte II – “Ditadura e Homossexualidades: Iniciativas da
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo” - ―Rubens Paiva‖. P. 2- 5

831
repercussões para o público LGBT, nas publicações que circulavam em 1968, já notava-se
um espaço para uma articulação política, havia no Brasil a tentativa de articular novas
ideias sobre sexualidade, sobre gênero mas, em 1968, com o Ato Institucional n° 5, isso
acaba e os homossexuais começam a ser severamente perseguidos pelos Militares, por
infringirem a ―tradicional família brasileira‖ e a ―moral e os bons costumes‖.

Benjamin Cowan (2014, p. 2), outro membro da Comissão da Verdade,


apresentou sua pesquisa sobre o discurso homofóbico da ditadura, fazendo uma
analise de documentos dos militares e seus discursos na época. Com isso, notou que
a visão da homossexualidade como ameaça e a subversão política, foi um dos
conceitos básicos que servia de suporte para a ideologia da Ditadura cometer vários
tipos de repressão, especificamente contra gays, lésbicas e as travestis, entre as
décadas de 1960 e 1970.

Como podemos observar, a homossexualidade sofreu com a repressão da


Ditadura, e para esse grupo identitário não era apenas uma questão de política ou
apenas uma liberdade de ouvir a música que queriam, ir ao teatro ver a peça que
queriam ou ler os livros que queriam, era uma liberdade de poder ser quem eles eram,
de amar quem queriam, de se vestir da forma que queriam. A Ditadura, negava a eles
a sua personalidade.

Em História da sexualidade 2: o uso dos prazeres, livro de 1988 de Michel


Foucault, ele aborda como essa repressão a homossexualidade começou e fala também
de questões sobre a sexualidade de cada indivíduo e sobre como a sociedade lidava com
a mesma em diversas épocas, ele diz que embora os homossexuais tenham sofrido
diversas repressões, desde quando a sodomia era o questionamento principal, no século
XIX, a homossexualidade torna-se um personagem: um passado, uma história, uma
infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia
indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa.

7
Foucault (1988) , não aceita a forma com que a sexualidade é censurada e

malvista pelo sistema. Ele acredita que a sociedade capitalista liga o prazer ao poder. E
ele continua destacando que na Idade Clássica (XVII) e na Idade Antiga, o sexo não era
visto como irregular e não possuía uma moral unificada, imposta à todos da mesma
maneira, como é o caso das mulheres – exceto pelas cortesãs – que não possuíam toda
essa liberdade. O mesmo, diz que a sexualidade começou a ser regrada depois que o
capitalismo burguês juntamente com o cristianismo a tornou pagã pela sua moralidade,

FOUCAULT, Michael. In: A História da Sexualidade, V2. 1ª ed. São Paulo/SP. Graal, 2010.

832
com o discurso de ―Vigiar e Punir‖, com o intuito de definir o que devia ser permitido e o
que devia ser proibido, e que se acaso não possuíssemos controle sobre a sexualidade,
estaríamos condenados a adultérios, à homossexualidade e a falta de castidade. Depois,
esse modelo acabou sendo substituído, pelo controle capitalista e pela ―polícia do sexo‖,
decidindo o que devia e o que não devia ser dito sobre sexualidade, tanto pela mídia,
quanto pelos demais meios de conhecimento. Trazendo assim, controles pedagógicos e
tratamentos médicos em torno de qualquer coisa sexual que fosse considerada
―imprópria‖, os moralistas e os médicos trouxeram a abominação. Tornou-se um controle
de população, não se pretendia apenas uma sociedade sexualmente relevante
economicamente, mas que a mesma estivesse ligada à política conservadora. Contudo,
embora a homossexualidade tenha sido condicionada pela moralidade, ela não deixou de
existir, não deixava de ser presente, ainda que fosse escondida.

Esse pensamento ligado a moralidade descrito por Foucault, aparece não


apenas nos discursos da Ditadura, mas reflete também nos periódicos que a
apoiavam. Trataremos agora das reportagens que mostravam essa repressão
simbólica, de forma velada ou não. O intuito é trazer algumas reportagens que
corroborem com essa repressão, com a finalidade de entender como esses grupos
identitários eram retratados nos periódicos.

A reportagem titulada: ―Crime Contra a Natureza‖ que está localizada no fim


da página do jornal, foi selecionada por deixar bastante evidente a insatisfação do
jornal sobre uma posição tomada pela senhora Rita E. Hauser, representante
americana na Comissão de Direitos Humanos, em uma conferência sobre ―A
libertação da mulher e a Constituição‖, onde a mesma afirmou que não havia meio
maior de alcançar essa liberdade senão sendo pelo casamento de pessoas do mesmo
sexo. Opinião esta que gerou o descontentamento do Jornal em questão, como o
próprio título deixa evidente, tratando como ―crime‖ como forma de fazer com que o
leitor compartilhasse da mesma opinião ao ler a matéria, pois os mesmos acharam a
declaração da Advogada um insulto a moral, a família e usaram termos como: ―
homossexualidade é igual a prostituição‖, ―é um atentado a família‖ e ―A
homossexualidade é aberração da própria natureza‖. Como se não bastasse esses
termos ofensivos, ainda disseram que o normal era a união entre homem e mulher,
pois visava a reprodução e que sair disso é uma degradação e afirmar juridicamente
como fez a advogada americana, é rebaixar o homem a nível inferior ao dos animais e
que o homossexualismo deve ser considerado um crime contra a natureza.

―A homossexualidade é como prostituição. Esta, embora proibida pelo


atentado que representa à família, é tolerada, sendo mesmo

833
denominada de ―a profissão mais velha do mundo‖. E que atende as
necessidades fisiológicas dos homens não casados. Mas se enquadra
no comércio dos sexos, dentro das leis naturais da fisiologia. A
homossexualidade, ao contrário, aberra da própria natureza e por isso
sempre foi condenada pelos códigos. (ANDRADE, Theophilo de.
Crime Contra a Natureza. A Província do Pará, Belém/PA, 28 agost.
1970. Caderno 3, p. 5 – Biblioteca Pública Arthur Viana. CENTUR.
Belém/PA.)‖ ―Esta (união entre homem e mulher), foi criada pela
natureza como um engôdo, visando a reprodução, engôdo que o
homem na marcha ascencional do espírito, sublimou no amor. Sair
disto é uma degradação e chegar ao ponto de defender juridicamente,
casamento entre pessoas do mesmo sexo, como acaba de fazer
aquela advogada, é querer rebaixar o homem a nível inferior ao dos
animais. E o homossexualismo é considerado um crime contra a
natureza. (ANDRADE, Theophilo de. Crime Contra a Natureza. A
Província do Pará, Belém/PA, 28 agost. 1970. Caderno 3, p. 5 –
Biblioteca Pública Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA.)‖

Como podemos perceber, no discurso hostil do Jornal, a homossexualidade


era vista como um crime contra a natureza, como a própria reportagem se intitula,
deixando bem explícito para o leitor que se trataria de algo que deveria ser
―desprezado‖ pela sociedade e o Jornal não se poupou em nenhum momento, em
tratar a homossexualidade com rispidez. Nota-se que o uso de termos que pudessem
menosprezar a homossexualidade aos olhos dos leitores é bem explícito, mas pela
ótica do jornal, era apenas uma defesa a ―família tradicional‖ e aos ―bons costumes‖.
Vemos claramente nesta reportagem o poder da representação, e como ela pode
fomentar ideais. A reportagem deixa evidente assim que o discurso do jornal,
compartilhava tanto da moralidade cristã, quanto da moralidade capitalista, pelos
termos presentes no vocabulário do jornal, além de compartilhar do discurso
conservador e capitalista do governo da época, pois os termos usados são os mesmos
que frequentemente eram usados por slogans do governo e até nos discursos contidos
no AI-5, como veremos a seguir.

DECRETA: Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à


moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação. (Trecho retirado
do Ato Institucional número 5, de 1968)

Podemos também perceber essa questão da moralidade como um importante


patamar da Ditadura, que refletia na sociedade da época com a manchete intitulada ―Juiz
contra casamento de Homossexuais‖, que se encontra no jornal Folha Vespertina, na
página 3, fala sobre um juiz de recife que se manifestou contra o casamento entre pessoas
do mesmo sexo e disse que além dos impedimentos de ordem legal, havia impedimentos
de ordem moral que seria ―um ato sem sentido e seria absurdo que essa ideia fosse
admitida pois faria surgir uma população totalmente degenerada.‖
―Declarando ser inteiramente impossível o casamento entre
homossexuais, tanto no âmbito jurídico como no moral o juiz Mauro

834
Jordão Vasconcelos refutou a ideia de alguns padres holandeses, que
aconselham a realização do casamento entre pessoas do mesmo
sexo desde que seja respeitada a fidelidade entre os nubentes e que
estes tenham realmente vida em comum. E acrescentou: ―além dos
impedimentos de ordem legal, existem as reprovações morais que
tornam impossível a celebração do casamento entre homossexuais, é
um ato sem sentido e seria absurdo que esta ideia fosse admitida pois
faria surgir uma população inteiramente degenerada.‖ (Juiz contra
casamento de Homossexuais. - Jornal Folha Vespertina, 06 de
outubro de 1970, p. 3 – Biblioteca Pública Arthur Viana, CENTUR.
Belém/PA)
Podemos perceber com essa manchete, que já contém um título chamativo,
para ganhar o olhar do leitor, que o jornal dando voz a esse juiz, acaba perpetuando
seu discurso repleto de uma repressão linguística clara evidente sobre a
homossexualidade. Utilizando palavras como ―reprovação moral‖ e ―inteiramente
degenerada‖, comprovam a aversão do juiz a homossexualidade, e a contribuição do
jornal banhado das mesmas ideias por ser um periódico apoiador da Ditadura e acabar
transmitindo isso em manchetes com esse tipo de teor.

A próxima manchete, que faz parte da coluna do chacrinha, no jornal A Província


do Pará, mantinham-se na mesma posição sobre os homossexuais, não deixando de
inferioriza-los em suas reportagens e a feminilidade existente em alguns homens. Como é
o caso de Ney Matogrosso, cantor e um artista que ganhava cada vez mais holofotes em
cima de si, por sua maneira ―incomum‖ de se vestir e de se portar.

―A esta altura do campeonato vai ver cês já tão (olá, Transbrasil!) por
dentro do perereco. No que dá a gente ser forçado a escrevinhar com
relativa antecedência. De qualquer forma lá se vai: Saibam que, Ney
Matogrosso, o nossa amizade que dá aquelas de segurar bandeja no
―Secos e Molhados‖ né nada do que vocês pensam. Pai de família, dois
filhos, sujeito sério, coisa e tal. Ney, que já tem 32 anos é sim, um
batalhador. E se faz aquilo tudo é só mesmo para garantir o mingau das
crianças. Post-scriptum – Vocês não acham que o cara também não
precisava de exagerar no rebolado? (A Província do Pará, Belém, Pará,
23 março, 1974. Coluna do Chacrinha, Caderno 6, p. 5)‖

Nesta sexta notícia, localizada na Coluna do Chacrinha, onde se falava dos


artistas de uma maneira muitas vezes cômica, podemos notar o quanto o Jornal fazia
questão de esclarecer a masculinidade de Ney Matogrosso, artista brasileiro que
polemizou na década de 70 por suas roupas extravagantes e postura considerada
irreverente para os costumes da sociedade da época. Como afirma Peter Fry (1985), Vivia-
se comunitariamente, experimentava-se novas formas de consciência propiciadas pelo uso
de drogas e, o que a mais importante para nós aqui, colocava -se em questão

835
a moral sexual. Outros grupos trilhavam caminhos parecidos, como, por exemplo, os
"Secos e Molhados", cuja figura mais expressiva, Ney Matogrosso, continua na
mesma linha, ainda que hoje choque menos que antes. Como se vê, as coisas mudam
e é interessante observar como o questionamento dos papeis sexuais pode ser
transformado em produções artísticas legitimas e amplamente "curtidas", até pelo
atual público de Ney, em que parecem predominar respeitáveis vovozinhas e seus
netinhos. Enquanto durava o sufoco, pouco mais era possível e a contestação
permanecia confinada a pequenos grupos ou a um minúsculo setor social frequentador
deste tipo de espetáculo teatral. (FRY, Peter, 1985, p. 20)

O jornal esclarece que Ney tem dois filhos e que só se porta de tal modo para
―garantir o mingau das crianças‖, associam a imagem de Ney a um homem batalhador
e condizente com um ―sujeito sério‖. Subentende-se com isso, que se tornava
inadmissível aceitar que um artista do porte de Ney, fosse considerado ―afeminado‖,
como a homossexualidade era rejeitada pela sociedade, era necessário esclarecer a
orientação sexual de Ney, por causa da sua visibilidade, por medo que as pessoas se
acostumassem com a ideia e também com o intuito de ―defender a honra do artista‖.
No fim da reportagem, eles perguntam se a sociedade também achava que ele deveria
exagerar menos no rebolado, de uma forma um tanto irônica, criticando a postura de
Ney, dando a entender que um homem de família, de boa postura, não deveria se
portar daquele modo, deixando claro mais uma vez a postura intolerante do jornal em
relação a qualquer resquício de diferença dos ―padrões‖.

1.2 – ―AS BONECAS ―IMORAIS‖: As travestis e a repressão.

Analisando os discursos dos jornais no tocante ao que se refere as travestis,


esse item pretende mostrar de que maneira existia uma repressão simbólica as
travestis, que eram consideradas homossexuais, mas eram ainda mais reprimidas por
serem consideradas ―o homossexual que se veste de mulher‖, anulando suas
particularidades. Tendo em vista isso, as travestis estão sendo abordadas em um item
diferente da homossexualidade masculina, justamente na tentativa de dar a ela a sua
particularidade. Partindo do pressuposto de que mesmo a Ditadura, os meios de
comunicação e a sociedade os englobassem no mesmo ―sentido‖, a repressão agiu de
maneiras diferentes com os dois grupos identitários.

Rennan Quinalha (2014), na Comissão nacional da verdade, aponta essa


repressão sofrida pelas travestis e por outros grupos identitários durante a Ditadura.

―Além da repressão política que se abateu sobre toda a sociedade, a


comunidade LGBT foi um alvo privilegiado das violências: perseguição

836
a travestis expostas ao olhar vigilante da repressão, sobretudo nos
pontos de prostituição, onde eram enquadradas nos crimes de
vadiagem (por não terem emprego com registro) ou de perturbação
da ordem pública; censura à imprensa, ao teatro, às artes e as outras
formas de expressão que simbolizavam de forma aberta as
sexualidades, muitas vezes com o respaldo do sistema de justiça;
homofobia e lesbofobia institucionalizadas nos órgãos de repressão e
controle... expurgos de cargos públicos... difusão, pela imprensa, do
preconceito contra os „desvios‟, para reforçar a ideia de degeneração
dos valores morais e o estereótipo do „inimigo interno‟ que justificava
a repressão e agravava os preconceitos... Isso sem mencionar os
casos de homofobia e de machismo, velados ou não, cometidos no
interior do próprio campo da resistência à ditadura.‖ (QUINALHA,
Renan, 2014)

Como vimos anteriormente, o Ato Institucional n°5, trouxe à tona uma série de
mudanças que ocorreriam em nosso País, censuras aumentaram, mais órgãos de
repressão foram criados e inaugura-se então os anos que seriam conhecidos como
―anos de chumbo‖ da Ditadura. Priore (2011), fala de como as coisas ficaram mais
difíceis com a explosão da Ditadura Civil-Militar, com a censura e a repressão do Ato
Institucional n°5. É nesse contexto, pós AI-5, mais precisamente no dia 09 de janeiro
de1971, é quando a censura atinge as travestis.

―Através portaria que deverá ser divulgada nos próximos dias, o


Serviço de Censura vai proibir, em todo o território nacional, a
exibição de espetáculos de travesti em teatros, cinemas e outras
casas de espetáculos. Exceção será feita apenas ás buates, face a
apresentação de horários tardios. E por serem lugares onde é
absolutamente vedada a entrada de menores de 21 anos. (A
Província do Pará, Caderno 1, 1971, p. 2)‖

A reportagem acima que está localizada logo na segunda página, onde


contém assuntos gerais sobre o Brasil, nos mostra como funcionaria essa censura as
travestis, podemos notar que a aversão do governo para com elas era grande ao
ponto de sua circulação ser proibida em locais públicos. Apesar do jornal se manter
―neutro‖, apenas repassando a notícia, sem qualquer hostilidade, podemos ver como
se pretendia que as travestis fossem representadas para a sociedade – mesmo que
implicitamente – como imorais, ao ponto de suas apresentações serem proibidas para
não ofender a ―moralidade‖ e os ―padrões‖ da sociedade héteronormativa.

A questão das travestis ainda entra em mais evidência na questão da censura


do que os homossexuais, apesar de serem classificados pela sociedade da época
como sendo uma mesma identidade, a reportagem a seguir nos mostra como elas não

837
estavam escondidas, como elas estavam procurando seu espaço e resistindo a
censura. Logo após a censura, que foi anunciada em janeiro, em fevereiro do mesmo
ano começou a organização para o carnaval, contudo, como as travestis estavam
proibidas de saírem ―montadas‖ as ruas, nem mesmo a comissão organizadora queria
interceder, por medo da polícia.

―Em sessão secreta num lugar ignorado, dezenas de ―travestis‖ de Recife


decidiram hoje realizar durante o carnaval o primeiro baile das ―Bonecas‖
contra tudo e contra todos sem ligar a proibição da polícia, segundo
explicou um deles. Líder dos ―travestis‖ o comerciante Juracy Pereira
reuniu a imprensa para anunciar a decisão e falar mal da Polícia. Disse
que tentará realizar o baile através dos meios legais, alugando um clube,
mas se for impedido, afirmou: ―a festa será clandestina‖. Segundo o
comerciante, ―a nossa classe é muito perseguida‖. Medina, ―Maisa‖ e
Osvaldo da silva, outros ―travesti‖ que ouviam tudo, balançavam apenas
com a cabeça concordando com o seu líder. E o comerciante continuou:
―O primeiro golpe que recebemos este ano foi a proibição de nos
exibirmos pelas ruas. Imagine que a Dedete gastou 450 cruzeiros com a
fantasia e sonhava desfilar na avenida Guararapes e agora não será
possível. (A Província do Pará, caderno 2, 1971, p. 1)‖

Após a possibilidade de as travestis desfilarem no carnaval, elas ganham voz


e contam ao jornal inclusive que eram perseguidas e que sofreram um golpe ao serem
censuradas. É até irônico o mesmo jornal que intitulou a homossexualidade como
crime contra a natureza, tenha publicado manchetes onde as travestis tem a
possibilidade de se defender e de contar sobre suas perseguições. Contudo, o jornal
deixa claro que elas querem ir de contra a tudo e todos e ainda dá ênfase que elas não
deixaram de falar mal da polícia, mais uma vez, usando palavras sutis, mas que
causam a impressão para quem lê que as travestis não passam de ―baderneiras‖. O
título, bastante chamativo e irônico, além de tratarem o termo ―travesti‖ no masculino,
deixando evidente que para eles se tratam de homens que só se vestem de mulher.

Após esta reportagem, elas acabaram conseguindo a autorização para o baile


mas ―desde que fosse em um sítio, longe das áreas onde poderiam viver famílias‖. Fica
evidente a repressão que as travestis estavam sofrendo, pois ainda a festa sendo
permitida, era deveria ser afastada, sempre com o intuito de ‖proteger a família tradicional
brasileira.‖ Mas este caso também mostra como elas estavam se organizando e lutando
por sua visibilidade, não se escondendo atrás da censura. Como fala Peter Fry (1985),
sobre as Dzi Croquettes, grupo de teatro nada normativo que se apresentava pelos teatros
paulistanos na década de 1970, Numa época em que ao sair

838
do teatro deparava-se costumeiramente com viaturas da polícia fazendo questão de
mostrar seu poderio bélico, apontando canos de metralhadoras pelas janelas, o deboche
bem-humorado dos Dzi Croquettes parecia abrir uma brecha para a expressão de alguma
forma de não-conformismo. Se não era possível criticar publicamente o regime ou o
sistema econômico, questionava-se as bases sagradas da vida cotidiana.

Isso é percebido na organização, em pela Ditadura Militar, do concurso de ―Miss


Enxuto‖, que aconteceu em Fortaleza e este termo teria nascido com o ―Baile dos enxutos‖,
que fazia parte do carnaval carioca mas acabou ganhando maior proporção. Sobre o ―Baile
dos enxutos‖, Fábio Henrique Lopes, diz em seu artigo intitulado “Travestilidades e
ditadura civil-militar brasileira.: Apontamentos de uma pesquisa‖ que não foi apenas um
reconhecido evento do carnaval carioca e de concurso de fantasias, funcionou como
espaço de sociabilidade, possibilidade de invenção de redes de amizades e de
solidariedade, em um momento em que experiências com o corpo, com a produção de um
determinado feminino, para além da ―inversão de indumentária‖, tornara-se recorrente, não
só na vida de Lalá, como de outras jovens travestis. Vale lembrar que, de acordo com
James Green, nos anos 50 e 60, a palavra travesti significava unicamente um homem
vestido com roupa de mulher33, sem denotar, de fato, uma subversão, esgarçamento ou
paródia das identidades, das noções e das regras tradicionais de gênero. (LOPES, Fábio
Henrique, p. 57)

A manchete, ganha primeira página do jornal Folha Vespertina, intitulada


―Polícia acabou com a escolha de ―Miss Enxuto‖ em Fortaleza. E como falamos
anteriormente, tratava-se de um concurso, onde a polícia chegou invadindo pois no
local ―havia muitos homossexuais‖.

―Denúncia de uso de entorpecentes, além de bebidas, levou a polícia


a acabar com uma festa que se realizava na casa do mucuripe, onde
estava sendo escolhida a miss enxuto, com mais de dez ―candidatas‖.
A festa dos enxutos era realizada anualmente em sigilo, em locais
diferentes, sem que a polícia conseguisse acabar com o concurso.
Desta vez, porém, foi um corre-corre tremendo com a chegada dos
policiais de surpresa, pois no local se concentravam inúmeros
homossexuais. E no final do ―rififi‖ 25 ‖bonecas‖, todas vestidas de
mulher, foram parar no xadrez.‖ (Polícia acabou com a escolha de
―Miss Enxuto‖ em Fortaleza. - Jornal Folha Vespertina, 31 de julho
de 1971, p. 1 – Biblioteca Pública Arthur Viana, CENTUR. Belém/PA)

839
Como podemos perceber com a manchete acima, embora as travestis
estivessem tentando achar mecanismos de conseguir organizar e frequentar seus
espaços, havia uma ditadura pronta para punir com prisões se fosse necessário, na
tentativa de não manchar a ―moralidade‖ da nação. O jornal dá bastante destaque
colocando a manchete em primeira página mas não deixa de usar uma linguagem
repressiva e pejorativa no tratar com este grupo identitário.

1.3 – O ―Lesbianismo‖: da revolução sexual a repressão simbólica.

Na década de 70 com a eclosão da revolução sexual, as mulheres iam


ganhando cada vez mais voz. O feminismo crescia no mundo todo e as mulheres
também queriam ter o direito de se relacionar com quem quisessem, sendo homens
ou mulheres. Deixam de ter aquela imagem de mulher submissa e ―do lar‖ e passam a
ganhar as ruas, lutando por seus direitos e pela liberdade de serem o que quiserem.

Segundo Mary Del Priori (2011), com os movimentos pela valorização das
minorias que a questão da mulher começou a mudar de forma. A sexualidade deixava
de ser considerada algo mágico ou misterioso que escaparia aos progressos técnicos
ou à medicina. A pílula foi aceita por homens e mulheres, não só porque era confiável,
mas, sobretudo, por ser confortável. As mulheres começavam a ganhar voz, e a ter
possibilidade de falar de assuntos que antes não eram falados abertamente. Ainda
assim, essa liberdade não era bem quista pelo Regime Militar. O momento em que o
Brasil vivia, era uma total contradição as liberdades individuais que vinham ganhando
força no mesmo período e não é equívoco dizer que tenha sido por isso as tantas
formas de protestos que existiram como maneira de combater a repressão. Eram os
anos de ―chumbo‖, pós Ato Institucional Número 5, que fez com que a censura aos
meios de comunicação e a questão da ―subversão‖ fossem tratadas com mais afinco
pela Ditadura.

O Jornal a Província do Pará, publicou no Caderno da Mulher, área destinadas


aos assuntos femininos, uma reportagem com um certo destaque, sobre ―Lesbianismo‖,
que não se diferenciou na forma de tratar a questão das outras reportagens que foram
mostradas anteriormente. Dizendo que era um problema psicológico e que ―talvez‖ fosse
possível obter a cura. O título e o destaque da reportagem mostram o quanto o jornal
estava interessado em chamar a atenção do leitor para o assunto. A reportagem começa
dizendo que a revolução sexual trouxe uma grande problemática social e psicológica para
a sociedade, pois trouxe o aparecimento daqueles vistos como ―diferentes‖, inclusive da
lésbica que eles denominam como sendo a mulher homossexual.

840
―Pois bem, uma das diferenças fundamentais entre a homossexualidade
masculina e a homossexualidade feminina, é que – em geral – o
lesbianismo consiste muito mais na manifestação dos ―sentimentos
amorosos‖ , do que na realização de verdadeiros atos sexuais. (ROSSI,
Ornela. Lesbianismo, a homossexualidade ―platônica‖. A Província do
Pará, Belém/PA, 15 out. 1978. Caderno da Mulher, p. 11. – Biblioteca
Pública Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA.)‖ ―A homossexualidade
feminina (que é, portanto, mais frequente entre solteiras) aumenta com a
idade: é assinalada, de fato, num índice de 2-3 por cento entre os 15-20
anos de idade – num índice de 5-8 por cento entre os 20-30 anos de
idade – de 10 por cento entre os 30-40 anos de idade. Sucessivamente,
tende a diminuir. Na maioria das mulheres a atividade homossexual
permanece circunscrita num determinado período de tempo, que – em
geral – não ultrapassa 3 anos. (ROSSI, Ornela. Lesbianismo, a
homossexualidade ―platônica‖. A Província do Pará, Belém/PA, 15 out.
1978. Caderno da Mulher, p.
– Biblioteca Pública Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA.)‖ ―Não se
trata de um comportamento inato e sim adquirido. Isso é, uma mulher não
nasce lésbica, mas lésbica pode tornar-se no decorrer do seu
desenvolvimento psico-sexual. (...) Não se trata de uma verdadeira
doença e muito menos de ―perversão‖ ou de um ―vício‖. É – isso sim –
uma variante do comportamento feminino usual. Finalmente, nas
mulheres que tem forte motivo para recusá-lo e que desejam integrar-se
também socialmente na heterossexualidade, o lesbianismo pode ser
eventualmente eliminado, com tratamentos psicológicos e psiquiátricos.
(ROSSI, Ornela. Lesbianismo, a homossexualidade ―platônica‖. A
Província do Pará, Belém/PA, 15 out. 1978. Caderno da Mulher, p. 11. –
Biblioteca Pública Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA.)‖

Ainda que o jornal diga que não considera uma doença e muito menos uma
perversão, ele se contradiz em vários pontos. Primeiramente, dizendo que as relações
homossexuais entre os homens se diferem da feminina porque na feminina existe
afeto, deixando claro portanto que o jornal acredita que a masculina é algo carnal e
superficial, mais uma vez mesmo que de forma implícita demonstrando seu
desconforto para com a homossexualidade.

O segundo trecho, diz que a homossexualidade feminina, na maioria dos casos,


tende a ser coisa de momento e passageira, dando a entender que esse tipo de
―comportamento‖ não faz parte da maioria das mulheres da sociedade, apresentando mais
uma vez a sua aversão à homossexualidade, querendo fazer com que a sociedade e os
próprios homossexuais se enxerguem como anormais, por não fazerem parte da maioria e
essa opinião fica mais clara ainda no final da matéria, onde sugere-se para as mulheres
que querem se ―livrar desse mal‖ e se integrar a ―sociedade moralizada‖, que procurem
tratamento psicológico ou psiquiatra, se contradizendo instantaneamente sobre a
homossexualidade não ser ―doença‖, já que afirmam que para os interessados a mesma
pode ter ―cura‖ e ainda falam que existe uma data limite para que ela deixe de ser
praticada pela mulher e dizem que esse período é de 3 anos.

A próxima manchete, está localizada também em um caderno destinado as


mulheres, do jornal O Liberal, intitulada ―Não confundir woman‟s lib com gay‟s lib‖. A

841
manchete traz críticas a integração das lésbicas ao movimento feminista, dando um
exemplo de um filme que se divulgava sendo um filme feminista, mas que trazia duas
lésbicas como protagonista, o que causa um claro descontentamento da colunista da
reportagem.

―É exatamente esse tipo de divulgação feito pelas agências que


desmoraliza o movimento de libertação da mulher. Os menos
avisados tendem a confundir o homossexualismo com feminismo. (...)
Muitos sociólogos e psicólogos tendem a achar que a mulher é levada
ao homossexualismo por neuroses não resolvidas em relação ao
homem (os casos realmente patológicos são mais raros do que se
pensa.) Além dos problemas familiares já bastante discutidos e
vulgarizados, existem o cansaço e o desencanto de experiencias
libertas vividas heterossexualmente. Desiludidas com seus vários
casos amorosos, tentam encontrar o afeto a compreensão e a ternura
numa outra mulher. Esse tipo de relação levado às últimas
consequências faz com que o fato de se tornarem lésbicas, seja
apenas um passo a mais na tentativa de serem aceitas e amadas.‖
(COELHO, Regina. Não confundir woman‟s lib com gay‟s lib. O
Liberal, Belém/PA, 12 de out. de 1973, Caderno da Mulher, p. 3. –
Biblioteca Pública Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA)

Além de uma moralidade imposta pela ditadura, vemos nessa manchete uma
moralidade que recorria até mesmo dentro do movimento feminista e assim como na
reportagem anterior, enquadrando a homossexualidade feminina mais uma vez como
uma ―neurose‖ e como algo que se torna possível devido as ―decepções
heterossexuais‖. Sobre essa relutância do movimento feminista em acolher as
mulheres lésbicas, Peter Fry (1985), fala que no Brasil, como em outros países, as
lésbicas encontraram uma forte relutância inicial, mas agora já superada, por parte das
feministas, em admitir em suas organizações mulheres que faziam questão de se
assumirem publicamente como homossexuais. A orientação sexual das lésbicas não
deixava de causar estranheza e até repulsa nas feministas heterossexuais. Isto ocorria
apesar de muitas mulheres homossexuais já estarem vivendo suas vidas de acordo
com os ideais de autonomia pessoal que, para muitas das feministas, ainda não
passava de aspirações a serem realizadas em um futuro não-imediato.

Nota-se que a representação do Jornal sobre a homossexualidade feminina foi


bem diferente do que foi retratada no capítulo anterior, sobre a masculina. O discurso do
Jornal é bem mais irônico, agressivo e hostil para com o trato da homossexualidade
masculina do que com a feminina, embora não podemos descartar as ironias contidas

842
nas reportagens e a exclusão das lésbicas até dentro do movimento feminista.
Contudo, o trato para com o lesbianismo é bem mais brando e mais sutil, mas não
deixam de através da sutileza revelar uma repressão simbólica. É importante lembrar
que se trata de uma década travada pela Ditadura, e que que as representações
contidas no jornal muito se atribuem ao fato de que essas também eram as opiniões
propagadas pelo governo. Podemos perceber claramente essa diferença no tratar com
as homossexualidades, voltando para a reportagem da censura as travestis, que foram
censuradas, proibidas de participar abertamente do carnaval, contribuindo para o que
Foucault (1988) fala sobre a moralidade capitalista e cristã, onde a feminilidade do
homem não era aceita e muito menos bem vista. Se atrelarmos esse discurso a
Ditadura, acaba fazendo total sentido, principalmente pelos discursos da mesma
sempre se basearem na moralidade e no respeito para com a família tradicional e fica
evidente isso nas reportagens que acabei de citar. Onde homossexuais masculinos e
travestis são considerados aberrações, ameaças que não podem conviver com a
sociedade e a homossexualidade feminina tida como passageira e mais ―amorosa‖.

Contudo, fica claro que em nenhum momento foi a intenção do Jornal se


posicionar a favor da homossexualidade feminina, embora a primeira reportagem
tenha grande destaque no jornal, ocupando duas páginas no caderno da mulher, a
intenção era um alerta que trazia ―soluções‖ para algo que eles consideravam um
problema, mesmo que no início da reportagem eles simulem que estão oferecendo
uma reportagem de cunho informativo do que se tratava a homossexualidade feminina,
fica claro na manchete que a opinião do jornal – embora velada com o passar dos
anos – continua a mesma, tratando a homossexualidade como anormal e malvista,
principalmente quando analisamos a segunda reportagem, onde mesmo que de forma
sutil e velada, ainda atrelam a homossexualidade feminina a ―anormalidade‖.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho, buscou analisar a abordagem do discurso presente nos


periódicos paraenses A Província do Pará, Folha Vespertina e O Liberal, através de
algumas reportagens sobre a homossexualidade feminina, a homossexualidade
masculina e as travestis no período da Ditadura Civil-Militar. Foi realizada uma análise
sobre o vocabulário do jornal e de que maneira o mesmo reportava a notícia,
trabalhando história e memória, por meio das representações sobre as
homossexualidades, fornecidas pelo jornal. Como podemos perceber com o Relatório
da Comissão da Verdade, com as fontes teóricas e com as reportagens apresentadas
neste trabalho, a homossexualidade não era vista com bons olhos pela Ditadura e o

843
governo e seus apoiadores, que frequentemente utilizavam de discursos hostis para defini-
la. A censura do Regime Militar, compactuando com o conservadorismo da sociedade da
época, faziam com que esse pensamento homossexual e das travestis, fosse excluído,
mesmo com as tentativas de se viabilizarem por meio de seus grupos de sociabilidade,
eram silenciados. Havia apenas um modelo ideal para ser considerado seguido pelos
cidadãos e os ― arco-íris‖ estavam longe de ser esse padrão ideal.

REFERÊNCIAS

CHARTIER, Roger. ―História Intelectual e História das Mentalidades: Uma Dupla


Reavaliação. In: A História Cultural: Entre Práticas e Representações. São Paulo:
Difel, 2002.

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil.


São Paulo: Planeta, 2011, 254p.

FERREIRA, Paulo Roberto – “A Imprensa e o Golpe Militar de 1964”. Belém, 2007,


p. 3. FICO, Carlos. “A pluralidade da censura das propagandas da ditadura”. In:
REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). O golpe e a
ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: Editora Edusc, 2004.

FOUCALT, Michael. In: A História da Sexualidade, V2. 1ª ed. São Paulo/SP. Graal,
2010.

LOPES, Fábio Henrique. – “Travestilidades e ditadura civil-militar brasileira.:


Apontamentos de uma pesquisa.” In: Revista Esboços, Florianópolis, v. 23, n. 35, p.
145-167, set. 2016.

LOURO, Guacira Lopes. – “O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria


queer”. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

Relatório - Tomo I - Parte II – “Ditadura e Homossexualidades: Iniciativas da


Comissão da Verdade do Estado de São Paulo” - ―Rubens Paiva‖.

ANEXOS

Figuras referentes ao capítulo ―A AGRESSÃO SUFOCADA‖: A Repressão ao ―Arco-Íris‖.

844
Fonte: Jornal A Província do Pará, 28 de agosto de 1970, p. 5 – Biblioteca Pública Arthur Viana,
CENTUR. Belém/PA.

Fonte: Jornal Folha Vespertina, 06 de outubro de 1970, p. 3 – Biblioteca Pública Arthur


Viana, CENTUR. Belém/PA

845
Fonte: Jornal A Província do Pará, 23 de março de 1974, Coluna do Chacrinha, p. 6 –
Biblioteca Pública Arthur Viana, CENTUR. Belém/PA.

Fonte: Jornal A Província do Pará, 09 de janeiro de 1971, p. 2 – Biblioteca Pública Arthur Viana,
CENTUR. Belém/PA

Fonte: Jornal A Província do Pará, 06 de fevereiro de 1971, p. 1 – Biblioteca Pública Arthur


Viana, CENTUR. Belém/PA.

Fonte: Jornal Folha Vespertina, 31 de julho de 1971, p. 1 – Biblioteca Pública Arthur Viana,
CENTUR. Belém/PA

846
Fonte: Jornal A Província do Pará, 15 de outubro de 1978, p. 11 – Biblioteca Pública
Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA

Fonte: O Liberal, Belém/PA, 12 de out. de 1973, Caderno da Mulher, p. 3. – Biblioteca Pública


Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA

847
EROTIZAÇÃO E SEXUALIZAÇÃO DO CORPO:
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA MULHER BRASILEIRA
https://doi.org/10.29327/527231.5-57

Carmentilla das Chagas Martins- Universidade Federal do Amapá

Dábila de Cássia Brito de Miranda-Universidade Federal do Amapá

Resumo:

Entende-se que as representações sociais são múltiplas formas de conhecer e se fazer


conhecer, sendo essa diversidade decorrente da manifestação de distintas intencionalidades.
Esse texto se propõe discutir as representações sociais que erotizam e sexualizam a mulher
brasileira na cidade de Oiapoque. Para isso, foram realizadas pesquisas bibliográficas dessa
literatura sobre como as mídias representam a mulher brasileira. Os dados empíricos refletidos
foram coletados em duas viagens a cidade de Oiapoque, em maio de 2017 e outubro de 2018,
quando foi aplicada a técnica da observação direta. Como resultados as representações sociais
que sensualizam e sexualizam as brasileiras, têm desdobramentos diretos nos projetos
migratórios dessas mulheres.

Palavras-chave: Representação Social, Mulheres Brasileiras, Migrantes, Erotização,


Sexualização.

Abstract:

It is understood that social representations are multiple ways of knowing and making known, and
this diversity resulting from the expression of different intentions. This text proposes to discuss
the social representations that eroticize and sexualize Brazilian women in the city of Oiapoque.
To this end, the bibliographical research of this literature was conducted on how the media
represent the Brazilian woman. The reflected empirical data were collected in two trips to the city
of Oiapoque in May 2017 and October 2018, when it was applied the technique of direct
observation. As a result, the social representations that sensualize and sexualize Brazilian
women have direct consequences on the migratory projects of these women.

Keywords: Social Representation, Brazilian Women, Migrants, Eroticization, Sexualizatio

848
Introdução

Aqui são apresentados resultados parciais de uma pesquisa mais ampla a respeito
das mulheres brasileiras em casamentos exogâmicos na Guiana Francesa. Para os limites
deste texto se propõe discutir as representações sociais que erotizam e sexualizam a mulher
brasileira. Entende-se que as ―[...] representações sociais são uma forma de conhecimento
socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a
construção de uma realidade comum a um conjunto social [...]‖ (JODELET, 2002, p. 22).
A ideia é utilizar dessa conceituação para interpretar como se organiza a sociabilidade
das brasileiras em suas experiências de vida quando se encontram em situação de imigração na
Guiana Francesa. Se tem a hipótese empírica que o primeiro contato que essas mulheres
tiveram com indivíduos da Guiana Francesa aconteceu na cidade de Oiapoque.
Sociabilidade se refere a forma lúdica de associação, conceito apresentado por
Simmel ao discutir a autonomização dos conteúdos sociais em relação aos indivíduos,
processo pelo qual as intencionalidades e finalidades são liberalizadas, as formas de
associação passam a existir ― [...] puramente por si mesmas e por esse estímulo que delas
irradia a partir dessa liberação, uma vida própria, um exercício livre de todos os conteúdos
materiais; esse é justamente o fenômeno da sociabilidade. (2006, p. 64) ‖.
A migração de brasileiros e brasileiras para a Guiana Francesa se inicia em meados
de 1960, ocasião em que indivíduos oriundos das mais diferentes regiões do Brasil
ingressaram nessa coletividade territorial do ultramar da França para trabalhar na
construção da base aéreo-espacial de Kourou. Cumpre lembrar que nesse contexto não
havia exigências burocráticas e/ou legais para a entrada desse contingente de pessoas, que
se sustentou por aproximadamente uma década (MARTINS, 2016), atualmente é exigido um
visto para entrar na Guiana Francesa.
Nessa primeira onda migratória a presença de mulheres migrantes era bem pequena,
geralmente aquelas que se aventuravam em um projeto migratório o faziam para
acompanhar um homem, fosse marido ou outro membro familiar. Aproximadamente três
décadas depois um outro evento passa a atrair novos movimentos migratórios para território
guianense: a garimpagem de ouro. (DUARTE, 2016; PINTO, 2016).
Muitos desses novos migrantes, mesmo entrando sem os documentos requeridos
pelas autoridades franco-guianenses conseguiam se regularizar por meio de um contrato de
trabalho ou casando-se com pessoas de nacionalidade francesa, sendo que nessa última
situação a maioria dos imigrantes era formada por mulheres (HIDAIR, 2008). Esse fato teve
como efeito problemas na sociabilidade das mulheres brasileiras imigradas para a Guiana
Francesa, em especial com as mulheres francesas. A problemática transcende a vaidade
que alimenta a rivalidade, pois o que Hidair capturou em sua pesquisa revelou que

849
De um lado, as mulheres brasileiras de origem socioeconômica
extremamente humilde, que abandonam seus lares em busca de
melhores condições de vida e na esperança de enriquecer. De outro
os homens metropolitanos – em situação profissional bem melhor do
que a delas – que projetam nessas mulheres a ideia de que a vida
sexual é mais liberada nos países quentes do que na Europa. (2008,
p. 137).

Argumenta-se que as representações sociais que sensualizam e sexualizam as


brasileiras, tanto no passado, quanto no presente, têm desdobramentos nos projetos
migratórios dessas mulheres na Guiana Francesa, os quais na maioria das vezes começam
nos encontros de finais de semana na cidade de Oiapoque com os turistas provenientes da
Guiana Francesa. Nesse sentido tomou-se como ponto de partida a dinâmica social na
cidade de Oiapoque, local de encontro, socialização, partida e regresso de brasileiras em
relação ao território francês.
O texto se inspira nas premissas teóricas de Denise Jodelet (2002; 2018) sobre
representações sociais, as quais também forneceram a orientação metodológica para
levantamento do material empírico. Foi realizada uma pesquisa bibliográfica que procurou
desvendar as relações entre abordagem social, conceituação e características do objeto de
reflexão. Também se utilizou da literatura sobre como os meios de comunicação
representam a mulher brasileira. Nos limites deste artigo são analisadas também algumas
propagandas sobre o turismo no Brasil e suas representações frente a mulher brasileira. Os
dados empíricos refletidos foram coletados em duas viagens a cidade de Oiapoque, em
maio de 2017 e outubro de 2018, cada uma com duração média de oito dias de
permanência, quando foi aplicada a técnica da observação direta.
Como processo, as representações sociais produzem significados que tornam a
realidade apreensível pela hermenêutica do mundo da vida, mas dessa apropriação emerge
uma elaboração que é ao mesmo tempo individual e coletiva. Têm operatividade devido
suas características informativas, cognitivas, ideológicas, normativas, as quais constituem
crenças, valores, atitudes, opiniões, imagens etc. São objeto do aporte da antropologia,
sociologia, história, nas pesquisas desenvolvidas nesses campos elas são tomadas como
―[...] operadores simbólicos e lógicos da vida social [...]‖ (JODELET, 2018, p. 428).
Na fronteira franco-brasileira a migração transfronteiriça é histórica e, por isso, se
enquadra na classificação de Coutinho, Bijos e Ribeiro (2018) que 50% dos fluxos migratórios
que acontecem numa mesma região são motivados pela territorialidade ―[...] sendo que os
migrantes geralmente cruzam apenas uma fronteira, deslocando-se para um país vizinho ao seu
de origem‖. (2018, p. 18). Examinar as representações sociais num contexto em que identidades
nacionais encontram-se em interação, implica considerar como o indivíduo produz

850
conhecimento e com ele opera num mundo da vida caracterizado por essa diversidade
em articulação.
O texto está organizado em três seções, na primeira parte se procura caracterizar a
fronteira franco-brasileira para situar o leitor em relação ao lócus da pesquisa. A seguir são
tecidas ponderações sobre o conceito de representações sociais e sua funcionalidade como
saber prático nas vivências cotidianas. Na sequência são feitas algumas inferências sobre o
fenômeno da migração transfronteiriça na fronteira franco-brasileira. Nas considerações
finais se indicam caminhos que conduzem a searas ainda carentes de escrutínio pela
pesquisa, particularmente em áreas de fronteira internacional.

A fronteira franco-brasileira: Oiapoque/Amapá-Saint Georges/Guiana Francesa

Entre Amapá e Guiana Francesa localiza-se a fronteira que coloca como vizinhos um
país sul-americano (Brasil) e um europeu (França). No mapa 1 encontra-se a representação
do espaço da fronteira franco-brasileira com a localização da cidade de Oiapoque e a vila de
Saint Georges. A travessia de aproximadamente vinte minutos numa pequena embarcação
motorizada através do rio Oiapoque garante a manutenção da mobilidade de pessoas entre
as duas coletividades.
A faixa de fronteira brasileira possui cerca de 17 mil quilômetros de extensão,
correspondendo a 27% do território nacional, seu desenho inclui 11 estados fronteiriços, 10
países vizinhos e 32 cidades gêmeas (BRASIL, 2009). Dentre essas Oiapoque e Saint
Georges ou São Jorge (mapa 1), localidades classificadas como cidades-gêmeas devido ao
alto grau de interação entre seus moradores.

Mapa 1 – Fronteira Franco-Brasileira

851
Fonte: elaborado por Eduardo Q. de Lima (2018)

A cidade de Oiapoque é a sede do município homônimo, que tem uma população


estimada em 27.270 habitantes (IBGE, 2019); do outro lado está Saint Georges com pouco
mais que 4.000 habitantes (INSEE, 2015). Aos finais de semana a cidade de Oiapoque fica
bem movimentada devido a significativa presença de turistas vindos da Guiana Francesa.
Essa dinâmica acelerada se desenrola, em especial, na área que forma o bairro Central,
1
que inclui a orla do rio Oiapoque, avenidas e ruas adjacentes . A observação revelou que a
agitação advém da circulação de franceses e guianenses, público consumidor de diversas
mercadorias: alimentos in natura, vestuário, perfumaria, bebidas, joias de ouro etc.; contudo, os
serviços mais demandados são aqueles que oferecem entretenimento e lazer.
As limitações de possibilidades de diversão na cidade de Oiapoque induzem os
migrantes de finais de semana a buscarem prazeres mais simples como comer, beber,
dançar e encontros sexuais. De modo que restaurantes, bares, hotéis e pousadas são
estabelecimentos comerciais possibilitaram observar nas conversas as representações
sociais relativas a erotização e sexualização da mulher brasileira. De acordo com Simmel
(2006) entre os suportes das formas de interação social um se destaca por ser

[...] o mais difundido de toda comunidade humana: a conversa. Aqui,


o decisivo se expressa como a experiência mais banal: se, na
seriedade da vida, os seres humanos conversam a respeito de um

Espaço definido como o conjunto que agrega a margem do rio, o muro de arrimo, as ruas Joaquim Caetano da Silva e Santos Dumont, as avenidas
Barão do Rio Branco, Coaracy Nunes e Nair Guarani.

852
tema do qual partilham ou sobre o qual querem se entender, na vida
sociável, o discurso se torna um fim em si mesmo [...] como arte de
conversar (SIMMEL, 2006, p. 75, grifo do autor).

Portanto as representações podem abordadas objetivamente em conversas e sua


apreensão revela como desempenham a função de organizar sociabilidades. Arruda assevera
que a aposta é ―[...] buscar captar um fenômeno móvel, por vezes volátil, por vezes rígido, cuja
complexidade reforça a dificuldade da sua captação. Perceber uma representação social
é fácil, mas defini-la, nem tanto‖ (2002, p. 138).
No desenvolvimento da pesquisa os indícios coletados foram articulados para tornar
a realidade inteligível e nesse sentido cabe chamar atenção para o argumento da autora da
existência de duas dimensões da vida social em que se manifestam as representações
sociais: a consensual que ―[...] se constitui principalmente na conversação informal, na vida
cotidiana [...]‖; sendo a outra científica ―[...] com seus cânones de linguagem e sua hierarquia
interna‖ (2002, p. 130).
Procurou-se delinear o processo de compartilhamento das representações sobre as
mulheres brasileiras na cidade de Oiapoque, bem como designar os aspectos que lhes
qualificam. A representação social é uma forma de saber prático que faz a conexão entre o
sujeito e um objeto, mantendo com esse último uma relação de simbolização e de
interpretação; na primeira função ela denota o objeto, na segunda lhe confere significado
(JODELET, 2002). Conjectura-se que uma reflexão apoiada em representações sociais
como categoria analítica deve atentar para a ideia de que elas se encontram nas bases
sociais das formas de pensar, ver, sentir, agir.
A observação na cidade de Oiapoque revelou que os homens da França
metropolitana e da Guiana Francesa simbolizam a mulher brasileira como sedutora e
disponível ao relacionamento sexual. Na cidade de Oiapoque, de sexta-feira a domingo,
ficam aflorados os desejos por lazer e diversão, seja a degustação de vinhos e cervejas; o
saborear da carne e peixes; sejam os relacionamentos amorosos ou sexuais. Nos bares e
restaurantes, os turistas se reúnem para „caçar‟, termo que denomina a paquera com
pretensão de fazer sexo. A expectativa das práticas sexuais pode ser captada na atitude dos
administradores de pousadas e hotéis: a reserva de um conjunto de quartos para esse uso,
com isso configurando uma área do estabelecimento destinada a esse público.

Representações sociais como categoria analítica


Arruda (2002) afirma que a noção de representação social começa a ser utilizada nos
idos de 1960 para explicar fenômenos relativos as formas como os indivíduos socializados
atribuem significação a sua existência, objetificando sensações, sentimentos e práticas

853
subjetivas. Nas ciências sociais a noção de representação social torna-se relevante para
entender o processo em que intencionalidades passam a produzir demandas coletivas.
Afirma que a teoria das representações sociais é organizada em torno da premissa
relativa a existência de múltiplas formas de conhecer e se fazer conhecer, ou seja de se
comunicar; sendo essa diversidade decorrente da manifestação de distintas
intencionalidades. A autora organiza duas dimensões da vida social onde se manifestam tais
formas, a consensual que ―[...] se constitui principalmente na conversação informal, na vida
cotidiana [...]‖; sendo a outra a científica ―[...] com seus cânones de linguagem e sua
hierarquia interna‖. (2002, p.130), sendo essa última enfatizada na presente reflexão.
Podemos trazer à discussão um exemplo que Jodelet (2002) utiliza no caso das
representações sociais da AIDS. Quando a síndrome surgiu na década de 1980 não se
sabia muito sobre contágio, sintomas, sequelas e tratamento; mas esse início foi
acompanhado da emergência de uma concepção moral e social que passou a funcionar no
sentido de interpretar sua significação e assim a visão moral converteu a AIDS em estigma
social que produziu o ostracismo dos portadores da síndrome e, ato contínuo, sua rejeição.
Por outro lado, os estigmatizados ou excluídos, foram induzidos a submissão ou revolta.
Com essas inferências a autora explica que as representações sociais servem a
agência dos indivíduos sobre o mundo e sobre os outros, pois compõem um conjunto de
ideias e concepções capazes de influenciar diretamente na estrutura de um objeto ou nas
vidas das pessoas. São capazes de criar um conhecimento que é compartilhado
socialmente e interpretado em diferentes dimensões sociais, contudo a autora lembra que
colocar em circulação uma determinada representação é um ato de vontade do indivíduo:
para partilhar e preciso acreditar.
Nesse sentindo, compreendendo as representações sociais como sistemas de
interpretação que possuímos com o mundo, temos a erotização e sexualização da mulher
brasileira publicizadas através de diferentes meios de comunicação, tais como o rádio,
televisão, internet; e de discursos como novelas, letras das músicas, notícias, propagandas.
Saberes anteriores que se atualizam em práticas existenciais também funcionam
como campo estruturado e estruturante de representações sociais. Na busca de provocar
algumas discussões sobre as questões relacionadas as representações da mulher brasileira
2
se destaca a Carta de Pero Vaz de Caminha , primeiro documento escrito sobre o Brasil,
nele são citadas meticulosamente „as vergonhas‟ das mulheres indígenas, fomentando um
imaginário de erotismo, beleza e sexualidade aflorada.

Pero Vaz de Caminha, escreveu “A Carta” registrado suas impressões sobre a terra que depois foi chama de Brasil, este é o
primeiro documento escrito da história do Brasil. Disponível em
http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf

854
Nessa carta a mulher indígena é retratada como exótica e em certo trecho ela é
comparada à mulher europeia por meio de discurso com forte apelo sexual: ―E uma
daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e
tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da
nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela‖.
No romance ―Iracema‖ (1865) de José de Alencar consagram-se o nacionalismo e
indianismo como fundamentos da ancestralidade do povo brasileiro. A obra traz como
alegoria da construção da história nacional o relacionamento amoroso e sexual entre o
homem europeu e a mulher indígena. O corpo curvilíneo de Iracema é puro e doce, mas
indutor aos prazeres da carne. A metáfora dos „lábios de mel‟é usada para conotar que sua
virgindade é a honra e o mel dos lábios é como o favo que a abelha fabrica no tronco da
andiroba: tendo na doçura o veneno (ALENCAR, 1865).
O romance atribui centralidade tanto a beleza quanto aos sentimentos de Iracema
em sua relação com Martín, uma paixão que lhe torna disposta ao sacrifício; pois mesmo
sendo a matriz da nação Brasil, carrega o desejo de se relacionar com o colonizador
guerreiro. Essa concepção foi identificada nas conversas com mulheres brasileiras
entrevistadas na cidade de Oiapoque de conseguir se casar com um francês. Cumpre
ressalvar que primeiramente elas imaginam a união a um francês da França continental, o
guianense é uma opção tangencial (Diário de campo, maio de 2017, Oiapoque).
Outro exemplo é a obra ―Casa grande & senzala‖ (1933) de Gilberto Freyre, a partir
da qual foi se organizando uma matriz conceitual fundamentada na sexualização do
desenvolvimento sócio-histórico brasileiro. Bastante divulgada tanto nacionalmente, como
internacionalmente, a obra acabou por se tornar referência no conhecimento sobre o Brasil
e sua população, pois que ―... Ele fala do Brasil a partir de dentro e não como objeto natural.
Seu pertencimento ao seu objeto dá ao seu texto uma impressão de autenticidade, de
verdade imediata e interior ‖ (REIS, 2003, p. 52).
Freyre (2006) ao etnografar as vivências cotidianas nos engenhos da região açucareira
do nordeste do Brasil caracteriza o colonizador português como um tipo contemporizador no
relacionamento com indígenas e negros, esse comportamento decorria das imanências
herdadas do período em que a península ibérica foi objeto de ocupação do Islã.
Dessa convivência dos ibéricos com os mouros resultou a construção de
representações sobre a mulher moura, de corpo curvilíneo, lábios carnudos e pele escura. A
imagem da mulher moura veio a compor o pensamento do colonizador na fundação de uma
sociedade nos trópicos, de maneira que o ―[...] ambiente em que começou a vida brasileira
foi quase de intoxicação sexual [...]‖ com mulheres da terra se entregando nuas aos ―[...]
brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses‖.
(FREYRE, 2006, p. 161).

855
O exotismo e o apelo sexual são explícitos nessas representações das mulheres
indígenas, que são inseridas no contexto da colonização com seu interesse sexual no
colonizador. Ao discutir a relação entre feminino e masculino em ―Casa grande & senzala‖
Fátima Quintas argumenta que
A mulher índia, indefesa, logo se encantou diante da
―excentricidade‖ do Ocidente. Atraiu-se por ninharias. O
europeu trazia a ―modernização‖, o progresso, as
vantagens de uma mágica civilização. Fechou os olhos
essa mulher ingênua, para possíveis desacertos e
lançou-se freneticamente à loucura da cupidez. De tudo
fez para copular. E copulou. (QUINTAS, 2008, p. 25,
grifos da autora).

Nesse trecho temos a compreensão de como as índias foram colocadas no processo


de colonização apenas como corpos, com interesses sexuais aflorados em busca do colono
e do progresso que ele trazia. A autora ainda retrata nesse primeiro momento um quadro de
intoxicação sexual, nos termos freyrianos, como se a libido da mulher se exacerbasse quase
que ensandecidamente ante ao potente pênis europeu (QUINTAS, 2008).
Essas abordagens contribuem para uma sexualização da mulher nativa, e no
decorrer do processo histórico, se percebe que esse entendimento se estenderá as
mulheres negras trazidas ao Brasil pelo escravismo colonial. Assim as discussões
demonstram a produção de um corpo colonial alvo da opressão dos colonizadores, um
corpo visto como disponível (GOMES,2013).
Essas representações sociais reforçam uma imagem da brasileira portadora de uma
beleza exótica que seduz o colonizador provocando apetites sexuais desenfreados. Nessa
direção podemos citar as pesquisas de Maria Badet (2016) que desde 2008 estuda os
conteúdos sobre o Brasil que circulam na mídia espanhola. A autora alega que o imaginário
sobre o Brasil se forma a partir de sua projeção como um país tropical, onde as nativas
ostentam uma exuberante nudez.
Ao avaliar 140 notícias conseguiu identificar que 84 tinham como temática principal a
imigração de brasileiros e brasileiras na Espanha; dentre as quais 15 se relacionavam a
prostituição e profissionais do sexo. No decorrer da análise Maria Badet (2016) percebeu
que as imagens noticiadas evidenciavam o corpo das brasileiras, em especial a bunda.
Outras 27 notícias tratavam daquelas vitimadas pela violência doméstica. A autora aponta
que o indicativo da nacionalidade das mulheres se constituía em elemento de qualificação
da informação divulgada. Assim comenta:
Em resumo, este conjunto de notícias opta por ressaltar a
figura feminina brasileira e associá-la a temáticas que
podem ativar ideias ligadas ao imaginário sensual e erótico
das mulheres brasileiras. Dito de outra maneira, a imagem
que perpetua na mente de muitos estrangeiros de que a

856
brasileira gosta de sexo, é uma mulher fácil e/ou está em
busca de um relacionamento com um estrangeiro pode
acabar por ser reforçada nos imaginários dos receptores
dada a constante presença deste tipo de notícias nos
meios de comunicação. (BADET, 2016, p. 25).

Em outro trabalho com 121 jovens espanhóis a pesquisadora se dedica a capturar as


continuidades do imaginário tropical e sensual da mulher brasileira. Porém, o trabalho
realizado demonstrou que a reflexão crítica e a oferta de conteúdos diversos também
potencializam novas leituras e diferentes formas de ver o Brasil, a mulher e o homem
brasileiros. Nessa circunstância ressalta que

Tanto ao analisar os conteúdos, como os processos de


apropriação, comprova-se a importância midiática e social
da mulher brasileira como representante do imaginário
social do Brasil, sendo este muitas vezes associado ao
erótico e sensual. Os resultados nos levam a pensar
sobre o papel primordial das mídias para a construção de
imaginários do Brasil menos estereotipados. (BADET,
2016, p. 26).

A autora argumenta que a mulher brasileira sensualizada e sexualizada está imersa


no imaginário sobre o Brasil. Essa situação é encontrada nas propagandas de turismo: a
mulher é mais um produto para deleite dos visitantes. Podemos citar o estudo de Mariana
Gomes (2013), o qual aborda a questão do imaginário social da mulher brasileira em
Portugal. Adota a perspectiva de Foucault, saber, poder, subjetivação, além de examinar os
discursos sobre o turismo no Brasil pondera que as

(...)relações saber-poder produzem a sexualidade


(hetero), o sexo (a existência de homem e mulher), o
corpo (a existência do corpo feminino e masculino), o
gênero (os papéis sociais de homem e mulher). Essas
construções sobre o corpo são permeadas pelo biopoder
– relações de poder exercidas através da gestão da vida,
especialmente através da produção de sexualidade – e
pelo poder patriarcal. O patriarcado moderno ocidental se
constrói a partir da produção de dois sexos (homem e
mulher) que correspondem a construções de
sexualidades e papéis sociais. (GOMES, 2013, p. 48).

A partir dos estudos de gênero temos por definição que ―Gênero não pretende significar
o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma
pessoa, gênero está ligado à sua construção social como sujeito masculino ou feminino. ‖
(LOURO, 1996, p. 9). Com isso temos uma estrutura de relação de poder entre esses,
nos quais dentro da sociedade patriarcal existe papéis específicos para cada um.

857
Há representações dos homens subjacentes a estrutura de dominação sobre as
mulheres, apoiadas em ideias, valores, crenças, símbolos, tradições, ritos constituídos em
instituições estatais, religiosas, civis e comerciais. Isso se observa também em questões
relativas a sexualidade humana, de acordo com Peres e Toledo (2011) existem linhas
disciplinadoras – sexo/gênero/desejo – que generificam os corpos em masculino e feminino.
Com isso machos são eroticamente designados para corpos femininos e fêmeas do mesmo
modo aos corpos masculinos.
Dessa perspectiva compreende-se que a erotização e sexualização da mulher
brasileira ―[..] intervêm na ação sobre o mundo social, na medida em que essa ação se apoia
no conhecimento que os atores sociais têm deste mundo e de sua própria posição
(JODELET, 2018, p. 428). Como exemplo as propagandas comerciais publicizadas pela
Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), criada em 1966 durante o período da ditadura
militar e subsidiada pelo governo brasileiro com objetivo de implantar uma infraestrutura
turística no Brasil.
Algumas peças publicitárias (Ilustração 1) divulgadas no exterior vendiam a imagem
do Brasil tendo como aporte a mulher brasileira como um produto turístico. Especialmente
nos anos 1970/80 as imagens de mulheres de biquíni, sem um contexto ou grandes
explicações expressa a valorização dos corpos femininos, particularmente o „bumbum‟

Ilustração 1- Propagandas do Turismo no Brasil divulgadas pela Embratur:

3
Fonte: Guias da Embratur (1970; 1980)

MONTOVANI, Flávia. No passado, Brasil já teve material oficial de turismo com apelo sexual. G1 São Paulo. 27/02/2014. Disponível em:
http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2014/02/no-passado-brasil-ja-teve-material-oficial-de-turismo-com-apelo-sexual.html. Acesso
em: 25 de set. 2019.

858
São imagens que incitam o pensamento criado pelo próprio colonizador, reiterado pelo
colonizado: a simbolização do corpo da mulher brasileira em sensualidade e prazer sexual.
Ideias de que as mulheres brasileiras são sensuais, exóticas, submissas e, principalmente,
disponíveis para o sexo é explicitado pela afirmação de Jodelet (2002) que o sentido simbólico
atribuído por um sistema de pensamento tem sua efetividade não na sua circulação entre muitos
indivíduos e sim em como esse compartilhamento passa a ter efeitos nos indivíduos que também
o pensam, ou seja, como o grupo passa a pensar em relação ao objeto pensado.
produção dessas representações repercutiu―[...] nas modalidades de elaboração
dessas produções mentais sociais, mas também à forma pela qual elas intervêm na
linguagem e nas práticas sociais para gerara efeitos sociais. (JODELET, 2018, p. 430) ‖.
Deste modo fica evidenciado o poder de desvelar, constituir e instituir uma realidade que se
reproduz em diferentes escalas espaciais.
Essa construção frente a mulher se encontra dentro do Brasil, mas historicamente foi
exportada em diferentes meios no cenário internacional. Temos a ―mulher brasileira‖
compreendida aqui como objeto de análise, como um produto em uma ação performática
das relações históricas de poder, além da relação dos outros elementos como os
estereótipos sobre as mulheres brasileiras ligando gênero, raça e classe social.
Assim podemos compreender que esses estereótipos também são fruto do processo
da colonização brasileira. Connell (1998) aponta que o colonialismo teve impacto na
construção de uma ordem global de gênero, a qual construiu masculinidades diferentes e
hierarquizadas entre homens da metrópole e homens das colônias, além de fomentar
estigmas e violências contra as mulheres criando um imaginário colonial associando ao
erótico e exótico.
Essas concepções provenientes do imaginário colonial estão presentes sobre as
mulheres no Brasil, no seu dia a dia, e em um cenário maior, pois esses estigmas são
carregados como características natas das mulheres brasileiras, então dentro de um projeto
migratório, as mulheres brasileiras são identificadas e compreendidas através dessas
representações sociais. Essas que podem influenciar diretamente no projeto migratório de
uma mulher compreendida como nacional brasileira.
Migração e gênero
No que tange aos fluxos migratórios, a Guiana Francesa pode ser considerada como
um local de imigração. No total, os imigrantes representam 35,5% dos habitantes. Os grupos
mais expressivos são os surinameses, os haitianos e os brasileiros. Hoje, esses indivíduos
respectivamente, ocupam as seguintes posições numa escala percentual: 13,8%, 8,8% e
8,7% da população (INSEE, 2015).

859
A mobilidade humana no espaço é um fenômeno que envolve ―[...] frequências,
distâncias, e formas diferenciadas, e é uma condição da migração [...]. Migrar, além da
mobilidade geográfica, implica troca o ambiente familiar e social [...]‖ (ARAGÓN, 2013, p. 215).
Dessa perspectiva se entende que se mover/migrar é intrínseco a existência humana, tendo
desdobramentos no tocante ao ambiente, a cultura; a sociedade, a política e a economia. Com
as inovações tecnológicas que ampliaram a conectividade no espaço movimento passou a ser
uma palavra que caracteriza os modos de perceber, pensar, sentir na contemporaneidade.
No tocante a migração e gênero temos dentro dos estudos migratórios uma certa
lacuna no que tange aos estudos migratórios que têm mulheres como protagonistas, devido
a vigência da tese de o migrante é sempre um homem; isso acabou por restringir ―[...] as
possibilidades da pesquisa empírica e produziu premissas teóricas equivocadas [...]‖
(PERES, 2004, p. 2). Cumpre chamar atenção que os temas mais interessantes aos
pesquisadores eram voltados a aspectos laborais, demográficos, leis migratórias, ações dos
estados entre outros.
Com a crescente relevância dos movimentos de mulheres e estudos de gênero, a
temática mulheres e migração passa a ter mais relevância no cenário internacional e debates
sobre a temática se tornam mais explorados. Percebe-se uma feminização da migração, não
tanto por um aumento quantitativo no número de mulheres em situação migratória, mais pelo
protagonismo delas na construção de projetos autônomos e redes migratórias no mundo todo.
No entanto, ainda que o ato de migrar traduza uma agência, nos contextos em que a
migração consiste em uma estratégia de busca por melhores condições de vida para si e
para suas famílias, é relevante notar outro ponto: a vulnerabilidade e possíveis condições de
exploração, discriminação a que as mulheres migrantes ficam submetidas. (SACKUR et al.,
2015). Nessa direção, o excerto abaixo explicita a condição da mulher brasileira migrante na
Guiana Francesa ―[...] a maioria dos homens metropolitanos usa e abusa de sua condição
de superioridade para atrair as mulheres brasileiras sem o menor intuito de lhes oferecer
uma relação estável [...] ‖ (ALMEIDA, 2004 apud HIDAIR, 2008, p. 138).
Sobre isso podemos destacar as mulheres brasileiras migrantes em Portugal, que já
possuem uma identificação própria, carregada de estereótipos específicos (simpatia, alegria,
sexualidade aflorada, sensualidade) que condicionam posições que os brasileiros vão
ocupar no mercado de trabalho e experiências que têm de enfrentar cotidianamente
(PADILLA et al., 2010).
Destaca-se no trabalho de Mariana Gomes (2013) um exemplo presente na mídia
portuguesa foi a reportagem de capa da revista Focus, cujo título ―Eles adoram-na, elas
odeiam-na: Os segredos da mulher brasileira‖ A reportagem, já no primeiro parágrafo,
aborda os casamentos entre portugueses e brasileiras, definindo-as como oriundas das
―Terras de Vera Cruz‖ alusão direta ao processo de colonização.

860
Ilustração 3- Imagens na Revista Focus, capa da edição 565, 2010

4
Fonte: Revista Focus (2010) .

Temos a representação da mulher brasileira apenas com o corpo e um biquíni


expondo o bumbum e as cores símbolos da brasilidade, o verde e o amarelo. O título da
reportagem além de reforçar uma ideia de rivalidade feminina com: ―elas odeiam-na‖; expõe
que perpassa no imaginário da sociedade portuguesa as mulheres brasileiras são
promíscuas, inspiradoras dos pecados carnais. Isso pode ser evocado na afirmação de
Hidair de que as brasileiras ―[...] são acusadas de vender seus encantos aos homens
franceses que seriam suas pobres vítimas. ‖ (2008, p. 138).
Além de reforçar a ideia de que a brasileira migra para casar com o europeu, no caso
da reportagem apresentada na Revista Focus, temos o português, colonizador e a ideia de
que são submissos aos encantos da colonizada, pois ―eles adoram-na‖. Essa atribuição de
significado funciona para desqualificar o sistema colonial como extremamente cruel em
relação aos povos colonizados.
As representações sobre a mulher brasileira ainda são compreendidas como um
corpo colonizado, estando à disposição sexualmente, ocorre a reconstrução do imaginário
colonial baseado na moral cristã ocidental que divide as mulheres em ―Evas‖, pecadoras,
disponíveis sexualmente, não europeias; e ―Marias‖, esposas, mães, com pudor, europeias.
(VASCONCELOS, 2005)
Os vínculos que são estabelecidos entre essas representações e as migrantes brasileiras
na Guiana Francesa, tem influência no mercado de trabalho, na busca por moradia,

Fernanda Navarro. Mulher brasileira em Portugal. 24/03/2015. Disponível em: http://fernanda-


navarro.blogspot.com/2015/03/mulher-brasileira-em-portugal.html. Acesso em 25de set. 2019.

861
por fim na organização de sua sociabilidade. São mulheres em situação de discriminação,
sujeitas a múltiplas violências.
sabido, que o perfil da imigrante brasileira é fundamentalmente composto por
jovens que trabalham em espaços específicos voltados ao atendimento ao público e nos
setores envolvendo limpeza e cuidados de crianças e idosos. E que carregam consigo essas
representações sociais referentes a sua nacionalidade, que ora podem se orgulhar e
demonstrar que são mais do que essa concepção de um corpo, ora podem se manter
caladas aos estigmas que sofrem.
As representações sociais são concepções transcendentais as especificidades,
são produzidas nas vivências sociais, sendo também sua expressão.

Considerações finais
As representações do que é ser mulher e brasileira, em algumas situações são bem
antigas. Datando do período colonial no Brasil, quando colonizadores se aproveitavam das
mulheres indígena e negra para satisfazerem suas necessidades sexuais (FREYRE, 1998).
Esse fato histórico relaciona a mulher brasileira ao sexo e à nudez. Essa herança colonial
permanece viva na história oficial contada pelos portugueses porque foi um discurso do
colonizador em relação ao colonizado.
Percebe-se como as representações sociais sobre a categoria ―mulher brasileira‖
influencia diretamente no projeto migratório das brasileiras que saem do país, carregando
estereótipos frente a sua própria nacionalidade. Como Jodelet (2002) destaca, as
representações sociais se inserem em conjuntos de valores, cuja variação exprime a
diversidade de grupos que lhes originam.
Como ocorreu dentro do processo histórico do Brasil essa representação dos corpos
das mulheres brasileiras, essa visão do corpo colonizado, reiterado por questões de raça e
classe social, temos os resquícios desse pensamento voltado à exposição e exploração das
mulheres brasileiras. Ainda hoje, há uma perspectiva voltada aos corpos, as curvas
voluptuosas, a sensualidade, ao exótico.
Reforçado pela mídia brasileira e exportado para o cenário internacional, temos nos
livros históricos, essa representação das mulheres brasileiras. Até mesmo dentro da
Empresa Brasileira de Turismo temos a contribuição das peças publicitária que por décadas
reforçaram a venda do turismo brasileiro a partir das mulheres desse país.
O reflexo disso foi a compreensão de um turismo sexual voltado para o Brasil, a
busca pela mulher brasileira como um produto nacional aberto para o consumo, reforçado
pela Embratur (Empresa Brasileira de Turismo) e pelo próprio governo brasileiro.
Dentro dessas representações sociais temos um conjunto de características que
reforçam maiores estigmas, como a erotização e sexualização de mulheres indígenas e

862
negras. Além disso ainda hoje há uma compreensão que a mulher brasileira tem o ideário de
busca pelo marido europeu, o marido vindo do estrangeiro e isso é visto dentro dos
exemplos citados, em especial as peças publicitárias das revistas portuguesas.
Correlacionando as informações discutidas neste trabalho, percebemos o quanto a
representação social das mulheres brasileiras foi construída através de uma compreensão
machista, patriarcal e colonizadora. Os corpos das mulheres brasileiras ainda são
compreendidos como como corpos coloniais disponíveis ao sexo e exóticos. E essa
compreensão é pautada no nosso processo histórico e reforçada dentro dos meios de
comunicação, rádios, novelas e peças publicitárias.
Assim, as mulheres brasileiras migrantes sofrem diretamente com os estigmas que
o objeto de análise ―mulheres migrantes‖ possui. Influenciando diretamente no seu processo
migratório, suas vivencias e como vão reagir frente a possíveis discriminações e violências.

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A GAROTA DINAMARQUESA: FUGA AO PADRÃO DICOTÔMICO DE HOMEM
E MULHER NO SÉCULO XX

https://doi.org/10.29327/527231.5-58 1
Flamilda de Moraes Paiva
2
Sandra Nazaré Dias Bastos

O filme inspirado na vida real de Einar Wegener (Lili Elbe) na década de 20 transcende o
tempo tornando-se atual e urgente à discussão sobre o tema abordado. O presente trabalho
objetiva apresentar uma análise do que é ―ser‖ mulher e homem dentro dos padrões sociais
do início do século passado e que ainda são tão vigentes atualmente, distinguir teoricamente
os conceitos de sexo e gênero, proporcionando reflexões teóricas para melhor compreender
pessoas transgêneros e seus enfrentamentos. Para tanto, adota-se uma metodologia de
pesquisa bibliográfica, já que, se faz pungente fomentar discussões a respeito dos direitos
velados, os enfrentamentos e resistências desta parcela da sociedade; assim, sendo, pensa-
se o recurso midiático ancorado à literatura como ferramenta que proporcione problematizar
as construções históricas, sociais e culturais de corpo, gênero, sexualidade lançando um
olhar que repense essas afirmações possibilitando a desconstrução do ser.

Palavras chave: A Garota Dinamarquesa. Gênero. Identidade de gênero.

THE DANISH GIRL: ESCAPING OF THE DICHOTOMOUS PATTERN OF MAN


AND WOMAN
IN THE 20th CENTURY

The real-life film by Einar Wegener (Lili Elbe) in the 1920s transcends time, making it current
and urgent to discuss about the present topic. The present work aims to present an analysis
of what it is to be ―woman‖ and man within the social standards of the beginning of the last
century and which are still so current today, theoretically distinguish the concepts of sex and
gender, providing theoretical reflections to better understand transgender people. and their
confrontations. Therefore, a bibliographic research methodology is adopted, since it is
poignant to foment discussions about the veiled rights, the confrontations and resistances of
this part of society; Thus, it is thought the media resource anchored to the literature as a tool
that allows to problematize the historical, social and cultural constructions of body, gender,
sexuality, launching a look that rethinks these statements allowing the deconstruction of
being.

Keywords: The Danish Girl. Genre. Gender identity.

1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia –
PPLSA/UFPA, Campus Universitário de Bragança. E-mail: flamildamp@gmail.com
2 Doutora em Educação em Ciências, Docente do Programa de Pós Graduação em Linguagens e
Saberes na Amazônia – PPLSA/UFPA, Campus Universitário de Bragança. E-mail:
sndbastos@gmail.com

867
Mesmo que aborde episódios ocorridos há um século, o filme A Garota
Dinamarquesa trata de questões de gênero urgentes e atuais (ALVES, 2017). Iniciamos o
texto abrindo reflexões, sobre a perspectiva do que é "ser" mulher e homem no início do
século passado, e mais do que isso, de que a forma vigente ainda se manifesta como
produto de uma sociedade moldada sob os termos biológicos, marcando os corpos e
definindo formas de ser e estar em determinados espaços.
Essas reflexões nos levam às teorias de Laurete (1994) a referir-se às questões de
gênero como construção, que se faz por meio de sua desconstrução, quer dizer, em
qualquer discurso (feministas ou não) que veja o gênero como apenas uma representação
falsa. O gênero como o real, e não apenas o efeito da representação, mas também o seu
excesso, aquilo que permanece fora do discurso.
A autora reforça o sentido de construção como processo que vem se efetuando hoje
no mesmo ritmo de tempos passados, como na era vitoriana, por exemplo, pois continua a
ocorrer não só onde espera que aconteça como na mídia, nas escolas públicas e
particulares, nos tribunais, na família nuclear, extensa ou monoparental. A construção do
gênero também se faz, embora menos obviamente, na academia, na comunidade
intelectual, nas práticas artísticas de ditas de vanguarda, nas teorias radicais, e até mesmo
de forma bastante fecunda, no feminismo (LAURETE, 1994).
Desse modo, os meios midiáticos, como as telas cinematográficas por exemplo, são
importantes ferramentas na construção e sustentação nos modos de subjetivação. Para
Fischer (2006), a tela opera como uma espécie de processador daquilo que ocorre no tecido
social, de tal forma que ―tudo‖ deve passar por ela, ―tudo‖ deve ser narrado, mostrado,
significado por ela, dando ação ao produzir determinados modos de ser.
Assim, nota-se que as questões de gênero fazem-se presentes em uma ampla rede
de produções, moldando e configurando perfis que se apresentam socialmente, justificativa
que nos remete a pensar os diferentes modos de estabelecer as relações de corpo,
sexualidade, identidade e gênero ao pensa-lo como produto e produção das categorias
sociais.
Pensemos no corpo como um processo em modulações, variações de existência
sendo o primeiro lugar onde a sociedade sempre esbarra, imprimindo sobre ele uma espécie
de escrita viva na qual as forças imprimem ―vibrações‖, ressonâncias que cavam
―caminhos‖, o sentido no qual o próprio corpo se desdobra e nele se perde como num
labirinto ((LE BRETON, 2003).
Ao percebermos o corpo como campo de escrita, onde os membros passam por um
sistema simbólico de ressignificação, Beatriz Preciado (2015), afirma que sendo o gênero
também um jogo de escrita, o corpo é socialmente construído como texto em

868
desdobramento, um arquivo da história humana, do qual certos códigos se naturalizam,
alguns ficam à margem e outros são sistematicamente eliminados ou riscados.
Corpo em processo, modulações, vias da diferença, fala- se de um corpo
desconhecido, fora das fixações, não anexado, que é pessoal, que não se faz em molduras
biológicas, que foge às regras e que ao subverter os padrões, quebra as lógicas identitárias
hegemônicas que fazem da carne lugar existencial de pertencimento. Mas, afinal de contas,
o que (ou quem) compõe esse corpo? Quais são os espaços que o atravessa? O próprio
corpo aqui emerge como ponto de interrogação, como uma problemática, um código, um
incômodo das imagens confortáveis que criamos para nós mesmos.
Para Silva e Valença (2016) é preciso, a partir das imagens que projetamos como via
de regra, problematizar o corpo como construção social, política, histórica e cultural.
Percebê-lo enquanto texto que constantemente fala, problematiza, educa ou deseduca
aquele que o lê. Desta forma, é pertinente lembrar os fatores que levam alguns corpos a não
serem ―aceitos‖ durante o curso da história.
Nessa vertente, Castro e Moira (2016), nos falam de um corpo que existe em sua
inscrição, atravessado por um campo discursivo determinado. É este limite discursivo que a
experiência trans extrapola ao articular estratégias que rompem o campo da inteligibilidade
de gênero, dando espaço a novos fluxos que desestabilizam a fixidez das identidades e da
norma. Ou seja, o corpo é lugar de um processo constante de construção e movimento,
fazendo-se lugar primordial de passagem, transição, e sobretudo, apropriação de identidade.
Sevar os corpos, avaliar, medir e classificar a partir das concepções de Louro é:
Dar-lhes uma ordem; corrigi-los sempre que necessário, moldá-los às
convenções sociais. Fazer tudo isso de forma a que se tornem aptos,
produtivos e ajustados - cada qual ao seu destino, um trabalho incessante,
onde se reconhecem - ou se produzem - divisões e distinções. Um processo
que, ao supor "marcas" corporais, as faz existir, inscrevendo e instaurando
diferenças (LOURO, 2000, p. 61).

A autora fala de corpos que são configurados por padrões sociais desde o
nascimento a seguir caminhos previamente determinados, falas a serem pronunciadas,
cores a serem usadas e modos de ser que cumprem papéis sociais ―aceitáveis‖ ou não. O
que faz com que determinados espaços nos ensinem sobre ser e estar no mundo, nos
educam e nos fornecem conteúdos a serem reproduzidos em corpos como produto
carregado de imagens e símbolos advindo principalmente dos recursos midiáticos. Sob este
viés, o sistema midiático.
tornou-se nas sociedades modernas talvez o principal fator gerador e
difusor de símbolos e sentidos. Símbolos e sentidos estes que geram
tanto sentimentos de identificação e de pertencimento como de
anomia e exclusão. Onde a partir dos discursos e das visões de

869
mundo produzidos pelos sistemas de representação simbólica, os
sujeitos podem se posicionar e construir sua identificação com
determinados papéis, perfis, significados (MOREIRA, 2003, p.11).
Logo, estes recursos que alcançam e atravessam todo o corpo social estão
presentes na contemporaneidade não apenas como fonte de informação ou entretenimento,
mas como uma eficiente maquinaria que ensinam e, mais do que isso, intensificam olhares.
Nesse sentido, Fischer (2006) faz referência à tela como um lugar privilegiado de
diversos e diferentes modos de aprendizagem, diz que ―aprendemos com ela desde formas
de olhar e tratar nosso próprio corpo, até modos de estabelecer e de compreender
diferenças: diferenças de gênero, políticas, econômicas, étnicas, sociais e geracionais‖. Isso
nos leva a problematizar como narrativas midiáticas são eficientes em dar visibilidade a
formas de ser e estar na sociedade em que vivemos, modulando performances de gênero
que transitam como falas, gestos, sentimentos, vestimentas, que conferem não apenas
visibilidade, mas regimes de verdade às modulações das categorias de gênero.
As películas cinematográficas produzem posturas reservadas para homens e para
mulheres em determinados contextos, compondo roteiros para produzir sujeitos, passando
pelos modelos constituídos a priori para caracterizá-los. Nesse sentido,

a construção de gênero efetua na contemporaneidade no mesmo ritmo do


passado e de forma mais evidente em espaços como a mídia, por isso, faz-
se necessário questionar e desconstruir a história, entender os mecanismos
de exclusão, de constituição de discursos e os aparatos de construção
social e cultural dos gêneros (MAIA e MAIA, 2014, p. 168).
Entendido como algo mutável e não limitado como definem, por exemplo as Ciências
Biológicas, Barbosa e Guizzo (2014, p.160) afirmam que, "as diferenças entre homens e
mulheres não são apenas determinadas pela biologia, mas pelas construções culturais e
sociais, e que modos de se comportar, condutas e papéis assumidos são moldados pela
sociedade e pela cultura." No clássico O segundo sexo de Simone de Beauvoir (1967) é
defendido que: ―nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma (...) o gênero
―construído‖, sempre sob uma compulsão cultural a fazê-lo‖.
Com uma notável sobrevalorização dessas diferenças marcada pelo conceito
biológico, Mathieu (2009) atribui aos dois sexos funções diferentes (divididas, separadas e
geralmente hierarquizadas) sobre um corpo social como um todo. Elas lhe aplicam uma
―gramática‖, um gênero (um tipo) feminino e culturalmente imposto à fêmea para que se
torne uma mulher social, e um gênero masculino ao macho, para que se torne um homem
social. Outros aspectos do gênero como diferenciação da vestimenta, dos comportamentos
e atitudes físicas e psicológicas, desigualdade de acesso aos recursos materiais e mentais,
entre outras, são marcas ou consequências dessa diferenciação social elementar.

870
Levando em considerações os padrões atribuídos socialmente para homens e
mulheres é válido questionar como essas diferenças são construídas e que as relações de
gênero são compreendidas como aquilo que diferencia socialmente as pessoas. Dessa
forma, Louro (2007) defende que as questões de gênero foram conceitos desenvolvidos
para contestar a naturalização das diferenças sexuais em diversos espaços de disputa,
enquanto a sexualidade é formada sobre como as pessoas se expressam através de seus
desejos e prazeres na relação com os outros indivíduos e com seu próprio corpo.
A autora chama a atenção para as representações produzidas sobre essa questão.
Para ela não são propriamente as características sexuais, mas a forma como essas
características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas
que que vão construir efetivamente o que é feminino ou masculino em uma dada
sociedade e em um dado momento histórico.
Por essa perspectiva, Judith Butler (p. 25, 2003), refere-se ao sexo como sendo ele
próprio, uma categoria tomada em seu gênero; ele também é o meio discursivo/cultural pelo
qual a ―natureza sexuada‖ ou um ―sexo natural‖ é produzido e estabelecido como ―pré-
discursivo‖, uma superfície politicamente neutra, sobre a qual age a cultura.
Nesse sentido, a identidade não é algo inerente ao sujeito, mas um efeito que se
manifesta em um regime de diferenças, num jogo de códigos. Ao discutir a produção das
diferenças e desigualdades, é preciso considerar os desdobramentos nos processos sociais
mais amplos que marcam e conformam sujeitos como diferentes, em função do gênero,
corpo, raça, sexualidade, classe sociais, incluindo num processo significativo que restitui no
discurso e na matéria, as representações valorativas que dão sentido às relações sociais
(TONELI, 2012). Sendo assim, por um primeiro impulso consideramos que o aprendizado
em torno de ―ser homem‖ e ―ser mulher‖ ocorre por meio de uma socialização de ―papéis
sexuais‖ (SENKVICS E POLIDORO, 2012, p. 18).
O gênero, então, fornece um meio de codificar o significado e de compreender as
complexas conexões entre várias formas de interação humana, de acordo com as
características visíveis e invisíveis, travado em um contexto histórico, que associa tempo,
lugar e espaço, incorporado para homens e para mulheres. Nessa perspectiva, Stuart Hall
(2005) fala que, as identidades não são fixas como tendo um único ponto de partida. Elas
são móveis, formadas e transformadas nas diversas relações às quais somos submetidos.
Nós somos representados ou interpretados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Como
definição histórica e, não dado de forma inata, o sujeito assume identidades diferentes em
determinados momentos de sua história e da história da humanidade.
O que nos remete que falar de identidade é falar de identificação, das maneiras
como os olhares nos atravessam e nos definem como sujeitos inatos, constituídos dentro
dos diversos espaços sociais, preenchendo o nosso exterior e interior, nas formas através

871
das quais nos imaginamos ser vistos por outros. Pensamos na identidade como parte de
nossa natureza essencial com a qual nascemos e desenvolvemos no decorrer de nossa
existência. No entanto, sob a perspectiva de Hall (2005, p. 47,) essas identidades não estão
literalmente impressas em nossos genes, elas estão sendo constantemente formadas e
transformadas.
Diante desse cenário, trazemos nesse texto algumas discussões e
problematizações que versam sobre corpo, sexualidade, gênero e identidade. Fazemos isso
a partir de um filme que pretende contar a história real do corpo transexual de Lili Elbe,
artista que em seu processo de construção identitária desmonta e desconstrói as marcas de
seu corpo biológico.
Exercitar o olhar sobre as telas cinematográficas, de acordo com Furlani (2013 p.
não somente é importante como necessário, pois nos ajuda no processo de desconstrução
de determinadas normalidades que nos são impostas. Considerando o fato de que ―a mídia
não apenas veicula, mas também constrói discursos e produz significados, identidades e
sujeitos‖ (FISCHER2001, p. 588), é preciso colocar em questão as diferenças que ali são
instituídas de maneira sutil e continuada considerando que as regras linguísticas são criadas
num contexto histórico de poder, e se assim acontece, elas também poderão ser
modificadas.
Essas discussões cabem na atualidade por compreendermos que corpos trans
vivenciam intensa exclusão social tanto no mercado de trabalho como nas escolas sendo
esse espaço um locus de construção, apropriação e assimilação das diferenças. Isso nos
leva a questionar: até que ponto a escola inclui em suas rotinas o corpo diferente? Quais os
corpos estão autorizados a transitar por ali? Em quais espaços? De que maneira esse corpo
que é dito diferente desenha resistências para viver as rotinas escolares?? Nessa direção,
Louro pontua que:
Em sua materialidade física, o prédio escolar, informa a todos/as sua razão
de existir. Servindo-se de recursos materiais, de símbolos e de códigos, a
escola delimita espaços, afirma o que cada um/a pode ou não pode fazer,
separa e institui. Para aqueles e aquelas que são admitidos em seu interior,
a escola determina usos diversos dos tempos e do espaço, consagra a fala
ou o silêncio, produz efeitos, institui significados [...] é na instituição que
imprime, através de um aprendizado eficaz, continuo e perspicaz, que
ambos, incorporam gestos, absorvem movimentos, habilidades e sentidos,
simultaneamente, eles e elas respondem, reagem, acatam e rejeitam.
Envolvidos/as por inúmeros dispositivos e práticas, os sujeitos constituem
suas identidades ―escolarizadas‖ (LOURO, 2001, p. 87).

Instituindo significados, imediatamente, a escola convida os corpos estranhos a ela


a se retirarem do ambiente que lhe foi conferido. A exclusão pode também ser entendida

872
como uma das referências empíricas dos corpos que não seguem uma estética de gênero
dominante, pois, o currículo proposto pela escola tende a sugerir uma equivalência e caráter
homogêneo aos que nela habitam (SILVA e VALENÇA, 2016). Não raramente episódios de
violência marcam, apontam e são direcionadas àqueles corpos apontados como ―fora do
padrão‖. Esse corpo sofre constantemente por não se enquadrar nos esquemas sociais de
gênero, o que podemos observar nas vivências narradas no filme A Garota Dinamarquesa.
A partir desse filme, pretendemos discutir como práticas discursivas falam (e por isso
produzem) o corpo transexual, analisando as representações do feminino e do masculino a
partir de seu personagem principal.

3
A invenção de identidades sociais em A Garota Dinamarquesa : visitando os perfis de
Gerda, Einar e Lilli

O filme mostra a cinebiografia de Lili Elbe, que nasceu Einar Mogens Wegener e foi a
primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mudança de gênero. Como trama central o
filme focaliza no relacionamento amoroso do pintor dinamarquês com sua esposa Gerda e
4
sua descoberta como mulher .
No enredo Gerda nos é apresentada como uma mulher em dissonância aos padrões
da época. Independente e moderna era estudiosa e culta. Mesmo que vivesse à sombra do
talento de seu marido, procurava se afirmar como pintora de retratos, gênero considerado
menor uma vez que não exigia processos criativos mais elaborados.
Gerda é a principal responsável pelo surgimento de Lilli. A partir de um pedido inocente,
para finalização de um quadro, ela pede a seu esposo Einar que use o vestido de sua amiga
Ana para que possa terminar os detalhes de seu quadro. Ela pede: ―Poderia me ajudar como
uma coisa?‖. Gerda seria capaz de fazer um pedido tão transgressor a seu marido, se antes
não tivesse percebido nele qualquer traço de feminilidade ou desejo reprimido de ver seu
corpo em uma roupa feminina?
Ante a resposta de que faria ―qualquer coisa‖ para ajudá-la, Einar é envolvido pela
possibilidade e experimentar algo novo. Relutante em princípio, ele pede que a mulher
guarde segredo. Como num jogo, ele se aproxima do belo vestido e observa seus detalhes,
acaricia sua textura, coloca-o à sua frente experimentando a imagem no espelho. Masculino
e feminino se sobrepõem numa espécie de flerte. Um início de reconhecimento. O encontro
de Einar e Lilli (que nesse momento ainda não tem nome) é assim descrito:

Ficha Técnica: Título do filme: A Garota Dinamarquesa; Título Original: The Danish Girl; Cor
filmagem: Colorida; Origem: EUA; Ano de produção: 2015; Gênero: Drama; Duração: 120 minutos;
Classificação: 14 anos; Direção: Tom Hooper; Elenco: Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Amber
Heard, Matthias Schoenaerts..
4 Sinopse e trailer do filme disponíveis em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140552/

873
Algo naquele vestido – o brilho opaco da seda, o peitinho de renda no
corpete, as casas dos botões nos punhos desabotoados e escancaradas
feito pequenas bocas – fez Einar ter vontade de tocá-lo. - Gostou? –
disse Gerda.
Ele pensou em dizer não, mas seria mentira. Gostava do vestido, e quase
podia sentir a própria carne amadurecendo embaixo da própria pele
(EBERSHOFF, 2016, p. 20).
Não é possível afirmar se antes dessa ocasião Einar vivesse algum conflito identitário de
gênero. Seria provável que Gerda já o identificasse, porém não era capaz de repudiar? Teria
ela usado essa oportunidade para, propositalmente, despertar em Einar um novo olhar para
seu corpo?
Em outras cenas do filme (e do livro) Gerda é retratada em ações não esperadas para
mulheres daquela época. Ela insiste para ser acompanhada por Lilli em baile onde a
apresenta como prima de Einar. Lá, ela observa à distância, Lilli atrair olhares e ser
cortejadas por vários homens que ficam fascinados pela beleza e delicadeza de sua
acompanhante. Também é ela quem busca procedimentos médicos que pudessem ajudar
Lilli a se sobrepor a Einar que aos poucos vai desaparecendo da vida social.
Embora se perceba uma subversão do sujeito Gerda aos patrões sociais de
representatividade da figura feminina, ainda é possível identificar características
desempenhadas por ela que correspondem aos estereótipos traçados para uma mulher: Ela
mostrada como carinhosa, sensível aos problemas do esposo, ela se mantém fiel a ele e o
acompanha em todas as fases de sua transformação. Ela se submete às modificações
corporais em nome do amor que sente por ele. Renuncia ao seu bem estar, ao amor que
sente por Einar para que Lilli possa, não apenas aparecer, mas assumir de uma vez por
todas o lugar de Einar. Em outras palavras, são essas as responsabilidades impostas pela
sociedade a uma mulher casada e que são assumidas pela mulher como condição de vida.
Butle (2003) considera que ainda que tentemos nos distanciar da construção do patriarcado
universal não sendo mais possível lhe dar tanta credibilidade como se fez no passado a
concepção genericamente compartilhada das ―mulheres‖ no corolário dessa perspectiva,
tem se mostrado muito mais difícil de superar.
Nesse caminho, o filme nos faz refletir sobre os diferentes espaços ocupados pelas
mulheres, em especial na sociedade ocidental. Sabemos que a mulher quase nunca foi
objeto de análise para a compreensão de uma sociedade. Quase nunca eram citadas ou
consideradas como peças importantes ou determinantes conquistas sociais. Tampouco lhes
era conferida a possibilidade de falar e escrever sobre si mesmas. No entanto, quando
analisamos obras semelhantes à Garota Dinamarquesa e lança-se o olhar para Gerda,
esposa de Einar, observa-se uma mulher que está além do seu tempo? ou simplesmente
uma mulher que não conhecíamos porque não se tinha registros sobre ela, não era vista em
espaços públicos e não era mencionada nas grandes histórias da humanidade?

874
Em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem
parte da ordem das coisas. É a garantia de uma cidade tranqüila. Sua
aparição em grupo causa medo. Entre os gregos, é a stasis, a desordem.
Sua fala em público é indecente. "Que a mulher conserve o silêncio, diz o
apóstolo Paulo. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi
Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão.
Elas devem pagar por sua falta num silêncio eterno (PERROT, 2007, p.16).
.
A história bíblica é uma das justificativas para a história da invisibilidade feminina, assim
como alguns conceitos advindos da ciência, principalmente da área das Ciências Biológicas
que enfatizou em determinado momento histórico que o corpo feminino era incompleto
portanto, inferior e incapaz de ter as mesmas possibilidades de vida tal e qual o corpo
masculino. Seja pelo viés bíblico ou científico o que se aponta é o silêncio no qual as
mulheres estiveram submetidas por séculos, mas tal condição, não pode ser vista como
inata do gênero feminino, mas sim uma construção social e arbitrária.
Por sua vez, Einar também é mostrado como diferente ao que se espera, ou se
desenhava, para o papel masculino daquela época.
Fisicamente Einar era um homem incomum; disso Gerda sabia. Pensava
nisso quando a camisa se abria ainda mais e todos à mesa espiavam o
peito dele, que era obsceno feito o seio de uma menina recém-entrada na
puberdade. Com aquele cabelo bonito e o queixo liso feito uma xícara, ele
apresentava um quadro intrigante. [...] seus lábios eram mais rosados do
que os bastões coloridos que Gerda comprava (EBERSHOFF, 2016, p.28).
Um sujeito inicialmente em ascensão profissional como pintor, tinha reconhecimento e
uma boa colocação como artista de prestígio, na qualidade de pintor produzia pinturas de
pântanos e paisagens tristes como se fosse a forma encontrada para expressar sua própria
vida. A vida que adormecida dentro de seu corpo ainda não havia encontrado a fresta por
onde sair e se dar a conhecer.
Aquele quadro específico era escuro, um pântano ao crepúsculo durante o
inverno. Uma linha fina de neve encardida era a única distinção entre o solo
esponjoso e o céu (EBERSHOFF, 2016, p. 34).
Einar pintava constantemente as mesmas paisagens com as mesmas cores escuras
deixando transparecer o homem melancólico, frágil e nada viril o que o afastava de um perfil
masculino que socialmente é desenhado para os homens. No relacionamento conjugal se
mostra sem voz ativa e se deixa ser confortavelmente e convenientemente conduzido pelas
ideias da esposa. Em sua busca por sanar seus conflitos interiores que refletem na sua
inconformidade com a aparência física e biológica é identificado como louco, pervertido e
esquizofrênico. Tais adjetivos são frutos de uma época na qual se tinha pouco conhecimento
sobre a fabricação de sujeitos que se afastavam da norma. Qualquer

875
configuração corporal ou de comportamento que fugisse ao pré-estabelecido socialmente
era entendido como anormalidade. Esse transtorno mental, portanto, era passível de
tratamento e, portanto, uma cura deveria ser procurada e alcançada.
Contemporaneamente, já se tem outros discursos sobre esses sujeitos pautados nos
diversos estudos que comprovam que o sujeito e seu corpo estão imersos as configurações
sociais e culturais, havendo assim diferentes possibilidades existência. Sob essa perspectiva
Bento (2014), defende que o corpo como um texto, se encontra em constante construção
social, como tal, se trata de um arquivo vivo da história do processo de construção e
reprodução sexual, portanto, não se deve pensar no corpo como algo pronto, uma essência,
pois essa visão caracteriza-se como reducionista e insuficiente, uma vez que corpo e gênero
são plurais e por isso, capazes de se reatualizar e ressignificar discursivamente.

Em uma época (a história se passa em 1926) em que a palavra transexualidade sequer


existia, Einar/Lilli precisou inventar um caminho a seguir sem qualquer referência que o
ajudasse a compor seu processo de transição. No filme, ele é mostrado como um homem
que ―descobre‖ sua ―verdadeira‖ identidade ao se vestir de mulher a pedido da esposa. Em
conflito, mas ao mesmo tempo seduzido e encantado por uma nova/outra possibilidade de
vida, ele renova diariamente os votos de viver como Einar sufocando tentando sufocar Lilli
que se impõe a ele mesmo em sonhos.
Ela insiste em se fazer presente, tomando conta de seu corpo, de sua vida de seu
subconsciente. De forma insidiosa ela vai apagando a existência de Einar que em certo
momento afirma: ―Eu acredito que sou uma mulher!‖ ―Este não é o meu corpo, é preciso
deixá-lo ir‖. Matar Einar, fazê-lo desaparecer é a única forma de garantir a existência de Lilli.
Lili dispõe de características corporais que possibilitam que se adeque rapidamente às
novas formas de viver e se vestir. Suas roupas esvoaçantes e claras, se contrapõem aos
trajes escuros, muito ajustados e tradicionais de Einar. Também as roupas ajudam a compor
o tom melancólico de sua personalidade triste. Sempre radiante, Lilli é livre da melancolia de
Einar e se diferencia por não saber (ou não se permitir) pintar. A partir daí passa a modelar
para Gerda. Percebe-se em Lili tudo aquilo que faltava a Einar: sua autoestima, alegria e
determinação a delineiam como uma figura forte e autossuficiente. Ela escolhe o sobrenome
―Elbe‖ como referência ao rio Elba qualificado como o rio mais longo da Europa que ela
adorava observar. Ao associar seu nome e identidade ao rio ela se mostra como suas
águas: inconstante, que se renova continuamente, que possui vida e possibilita a existência
de outras vidas.
Dessa forma, Lili Elbe segue afirmando sua nova identidade sexual e de gênero
submetendo-se a intervenções cirúrgicas experimentais na busca de se encaixar nos
padrões femininos exigidos e impostos pela sociedade. Nesse caminho se permite viver sua

876
nova vida apaixonando-se por homens cisgêneros e alimenta a esperança de ser mãe. A
maternidade se mostra a Lilli como o ápice de sua nova vida, apogeu de sua existência.
Tanto é assim que seu último investimento é submeter-se a um transplante de útero e
ovários, procedimento esse totalmente novo e arriscado que lhe custa a vida. Lilli é uma
mulher singular, lutadora, que se arrisca a ir até o fim em nome de alcançar sua felicidade.
Ela é diversa e plural que é agente ativa na fabricação de seu ―eu‖
o "eu" que se oporia à sua construção é sempre parte dessa construção de
alguma maneira para articular sua oposição; Além disso, o "eu" obtém em
parte o que é chamado de "capacidade de ação" pelo próprio fato de estar
envolvido nas mesmas relações de poder às quais pretende se opor
(BUTLER, 2010, p. 181).
Em consonância, Lili vivem uma relação dialética com o ser e existir superando seus
limites, os limites da medicina, o limite social e o limite cultural impostos a ela. Lili Elbe torna-
se precursora na caminhada de resistência contrariando todas as expectativas de vivencia
de gênero, sexo e sexualidade para a sua época, a história do seu corpo como o primeiro a
ser submetido a uma cirurgia de redesignação de sexo, e a opção de viver conforme a
identidade feminina, num momento histórico tão poroso de instabilidades políticas, iminência
de guerras, nazismo entre outros conflitos humanos e sociais, atitudes que a imortalizam e a
torna referência no campo da luta contra preconceitos de mulheres trans, assim como para
os estudos acerca das desconstruções de gênero, ainda que não fosse essa a sua
pretensão.

Considerações finais
Em nosso cotidiano, se passando por diferentes espaços, o sujeito é confrontado
com afirmações que delimitam as posições que pode (ou deve!) ocupar. Essas instâncias
estão ao alcance dos olhares e dos desejos que localizam não só os espaços, mas quais
sentimentos ou ações cada um deve assumir.
Nesse sentindo, Paraíso (2001, p. 142) argumenta que ―quando acionamos o
controle remoto da televisão ou o olhar sob as telas da mídia, somos conduzidos/as a um
leque de entretenimento que funcionam como uma espécie de "educadora eletrônica" das
novas gerações‖. A incidência das realidades tecnológicas é cada vez mais evidente, sobre
todos os aspectos da vida social e os deslocamentos visíveis que ocorrem na esfera
intelectual. Diante disso, somos obrigados a reconhecer que as tecnologias atuais e,
especialmente a televisão, como um tema político de grande importância nesse novo tempo.
Nesse sentido, o mundo irreal da televisão, pode afetar as formas de pensar o mundo real
(Morais; Oliveira; Marangoni, 2011).

877
Essas materialidades que rompem as cores, o romance e os dramas das telas do
cinema e que adentram as salas de aula, estruturado como espaço que constrói formas de
pensar, escapa por entre as rachaduras dos atravessamentos deslocando o corpo e
marcando constantemente o lugar da diferença. Esse lugar não é somente de espaço, mais
de próprio corpo.
Dentro do espaço escolar, segundo Silva e Valença (2016) por muitas vezes os
corpos passam por um processo de silenciamento, aprendendo no silêncio o que deve se
efetivar no social sobre todas as questões que não podem ser retomadas e
problematizadas, pelo motivo de que um discurso dominante a subjugou como algo
impróprio de se falar ou questionar.
Não apenas na escola, mais por outras instâncias sociais como a família e a igreja,
os conceitos e normas culturais fazem dos corpos transexuais um espelho da diferença,
excluindo essas pessoas por não preencherem as normas escritas para elas. Ocorrendo
assim, o silenciamento do corpo, da voz, dos modos de ser e estar em na camada social, ao
ser apresentado como construção que resulta de interpretações que traz como pano de
fundo as relações de poderes (COLLING, 2004).
Nesse contexto, podemos frisar que é na escola que se tem o primeiro contado com
a diferença, por se tratar de um espaço que acolhe as muitas formas de existência. A mídia
como ferramenta de educação, pode ser ponto de referência para marcar discursões acerca
das temáticas de preconceito, violência e modos de sentir o mundo, compreendendo que é
nesse espaço que os corpos são visualizados, apontados e configurados dentro de
determinados conceitos. Pensando assim, ser possível trilhar esse caminho no olhar para
além das identidades fixas e impostas, e pensar que a escola pode aproximar o cinema em
consonância com a literatura como e objeto que difunde o conhecimento (FANTIN, 2007).
Pensar a mídia e a escola como difusor de conhecimento, trazendo para dentro dos
muros escolares essas discussões, visamos provocar a desnaturalização desses discursos
e municiar nosso olhar com outras formas de ver o que nos remete ser "natural". Olhares
que nos incitem a ver e pensar de forma múltipla, encarando os corpos como produção
singular de sua identidade, borrando o termo da diferença, como conceito que define uma
pessoa, e não como armadilha para velar o preconceito.

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880
TERRITORIALIDADES HOMOSSEXUAIS NA CIDADE DE IMPERATRIZ-MA:
reflexões a partir da realidade social vivenciada no bar ―Imigrantes‖

https://doi.org/10.29327/527231.5-59
Jackson Santos de Sousa/UEMASUL
Jailson de Macedo Sousa/UEMASUL
Resumo

No presente estudo refletimos e buscamos compreender acerca das territorialidades


constituídas por grupos LGBTs, no qual, gays e/ou lésbicas se apropriam de um
determinado território, projetando neste, suas identidades. Pode-se notar que a
construção do território e, consequentemente, as territorialidades dos sujeitos
contribuem para a construção das suas identidades. Procurou-se entender de início os
múltiplos significados de território e de territorialidade, tendo em vista a identidade
territorial do bar Imigrantes. Buscamos trabalhar nesta pesquisa a concepção de
território, levando-se em conta a dimensão simbólico-cultural, que é caracterizada por
construir o território através das vivencias das pessoas, que simbolizam a cultural
praticada.
Palavras-chave: Território; Territorialidades; Identidade territorial; Homossexual;
Imperatriz.
Abstract

In the present study we reflect and seek to understand about the territorialities
constituted by LGBT groups, in which gays and / or lesbians appropriate a certain
territory, projecting their identities on it. It can be noted that the construction of the
territory and, consequently, the territorialities of the subjects contribute to the
construction of their identities. We tried to understand at first the multiple meanings of
territory and territoriality, considering the territorial identity of the bar Imigrantes. We
seek to work in this research the conception of territory, taking into account the
symbolic-cultural dimension, which is characterized by building the territory through
people's experiences, which symbolize the cultural practice.

Keywords: Territory; Territorialities; Territorial identity; Homosexual; Imperatriz.

881
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste estudo, abordamos elementos essenciais acerca das territorialidades


constituídas por grupos LGBTs, no qual, gays e/ou lésbicas se apropriam de um
determinado território, projetando neste, suas identidades.
Para Rogério Haesbaert (1997 apud Saquet e Briskievicz 2009, p. 6), o
território envolve, ao mesmo tempo, em diferentes graus de correspondência e
intensidade, uma dimensão simbólica e cultural, através de uma identidade atribuída
pelos grupos sociais ao espaço onde vivem. Nesse sentido, é notório que cada pessoa
perpassa por diferentes vivências e diferentes grupos sociais. Assim, cada pessoa terá
um espaço de identidades e sua identificação/afinidade com aqueles sujeitos que
manifestam as mesmas semelhanças, vontades ou compartilham dos mesmos
interesses. Evidentemente, que os grupos de pessoas que não se enquadram aos
padrões impostos pela sociedade em sua maioria (grupos tradicionais, Estado ou
igreja, comumente) sofrem certa discriminação ou repulsa, sendo estigmatizados, de
certa forma, ignorados ou excluídos da mesma, causando consequentemente, seu
isolamento. Portanto percebe-se que esses territórios são construídos a partir de
processos de resistências desses sujeitos.
Nesse contexto, pode-se notar que a construção do território e,
consequentemente, as territorialidades dos sujeitos contribuem para a construção das
suas identidades. Para tanto, nota que as pessoas que se enquadram nas seguintes
características como: homem, branco, cis1 e hétero, são privilegiados pela sociedade.
Enquanto, do outro lado há os grupos de resistências, formando seus próprios
territórios e onde constroem suas territorialidades, explicitando suas identidades.
Percebe-se que os grupos formados por negros, mulheres, indígenas e
obviamente homossexuais ganham maior visibilidade e novos cenários de discussões,
ampliando os debates sobre direitos humanos e de igualdade desses sujeitos que
foram por muito tempo silenciados. A comunidade LGBT2 é representada por sua
historicidade, num espaço de lutas por seus territórios.
Trabalhamos neste estudo com concepção de território simbólico-cultural,
buscando embasamento para essa pesquisa. Procurou-se entender de início os

Cisgeneridade (Cis) em estudos de gênero, é um termo para pessoas cuja identidade de gênero
corresponde ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento com base em seu sexo biológico.

Sabe-se que a comunidade LGBT engloba lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e
transgênero. Porém, nosso estudo está direcionado aos gays e lésbicas, pois, são os
frequentadores de maior rotina do bar Imigrantes.

882
múltiplos significados de território e de territorialidade, tendo em vista a identidade
territorial do bar Imigrantes, que é popularmente conhecido como um bar gay, sendo
que os proprietários não são e afirmam que o bar é um espaço hétero.
Porém, os frequentadores3 do bar se reconhecem como gays, lésbicas e
alguns héteros, que vão ao bar tomar uma cerveja gelada, conversar, socializar entre
si, sem discriminações. Assim, o bar se torna um ambiente de diversidade. Com isso,
fica explicito que estes sujeitos projetam suas identidades neste território.
Em vista disto, o crescente aumento das construções de um pensamento
livre, faz com que esses sujeitos coloquem em questão, os seus direitos. Portanto, fica
explicita a construção das territorialidades homossexuais neste bar.
A partir desse cenário, o homossexual ocupa espaços dos quais poderá
manifestar as suas identidades, podendo assim, os sujeitos se sentirem mais
confortáveis e livres, fora das represálias, repreensões impostas pela sociedade.
reconhecido que, essa temática foi introduzida no contexto das ciências
humanas, incluindo, a Geografia, neste período recente, ou seja, a partir da década de
1980. Percebe-se que a ciência geográfica não tinha muita preocupação com o
território em seus estudos. Evidentemente, a Geografia introduziu esta concepção com
muito atraso. Teve como base os estudos desenvolvidos no âmbito das ciências
sociais que já vinham discutindo sobre essa temática, através das correntes
humanistas, como afirma Roberto L. Corrêa (2000):

A década de 1970 viu o surgimento da geografia humanista que foi,


na década seguinte, acompanhada da retomada da geografia
cultural. Semelhantemente à geografia crítica, a geografia humanista,
calcada nas filosofias do significado, especialmente a fenomenologia
e o existencialismo, é uma crítica à geografia lógico – positivista.
Diferentemente daquela, contudo, é a retomada da matriz historicista
que caracteriza as correntes possibilista e cultural da geografia
tradicional. (CORRÊA, 2000. P. 32).

Como território é uma categoria eminentemente geográfica, é importante


elucidá-lo a partir das territorialidades e as identidades construídas pelos sujeitos,
considerando as dinâmicas socioespaciais construídas pela ciência geográfica.
A necessidade de compreender as territorialidades gays e as suas relações
com a dinâmica da sociedade, faz com que esse trabalho seja relevante, pois, assim,
podemos compreender essas manifestações culturais, nas quais, é nítido que esses

O bar, ou seja, o território investigado abriga toda a comunidade LGBT, mas, é importante
ressaltar que na cidade podemos encontrar outros estabelecimentos direcionado a esse
público, havendo uma partilha de público em diferentes estilos.

883
grupos sociais estigmatizados, carecem dos seus próprios territórios, para sua
sociabilidade.
Essa pesquisa traz consigo um conhecimento muito valioso, não somente
para mim, como pesquisador, mas para tantos outros que poderão ter acesso a ela, e
poderão romper os preconceitos e quebrar o tabu que muitas pessoas têm de
territórios ou localidades de Imperatriz-MA ou qualquer outro lugar que tenha no
ambiente essa identidade gay ou de diversidade, assim, contribuindo para erradicar a
intolerância e a crueldade contra os homossexuais.
A construção da pesquisa cientifica se materializa por meio de um
planejamento que se estrutura através diversas etapas. O processo de planejamento
da pesquisa cientifica exige o levantamento de indagações pertinentes para
transformar o estudo em pesquisa. A problemática direciona o caminho da pesquisa e
os procedimentos que serão usados para respondê-la.
Segundo Gil (2008, p. 33), na acepção cientifica, problema é ―qualquer
questão não resolvida e que é objeto de discussão, em qualquer domínio do
conhecimento‖. Assim, podem ser considerados como problemas científicos no âmbito
das ciências sociais as indagações que rodeiam a vida social das pessoas. Usaremos
esse argumento para compreendermos o território do bar Imigrantes e as dinâmicas
das relações socais dos frequentadores. Com base nesta afirmação destacada por Gil
(2008) sobre o problema essa investigação científica, apresentamos a seguir, as
principais indagações que nortearam este estudo.
Questão Norteadora:

Como é possível compreender as territorialidades homossexuais edificadas na cidade de


imperatriz, tendo como enfoque analítico, os gays frequentadores do bar Imigrantes?

Questões Específicas:

➢ Que sujeitos estão envolvidos no processo de produção do território do bar Imigrantes?


Estes projetam suas identidades neste território? Como essas identidades se
expressam/caracterizam?

➢ Que territorialidades estão presentes e qual a relação dessas territorialidades com


as identidades projetadas pelos gays frequentadores do bar imigrantes?
Com base nos questionamentos expostos é que elaboramos as principais
finalidades que constituíram as metas estabelecidas para este estudo. Os objetivos
numa investigação científica expressam as metas elaboradas para a obtenção de
resultados da pesquisa. Indicamos a seguir as principais finalidades estabelecidas
para este estudo.

884
Objetivo Geral:

Compreender as territorialidades homossexuais presentes na cidade de Imperatriz-MA, com enfoque no


bar Imigrantes e a identidade projetada por estes sujeitos.

Objetivos Específicos:

Refletir sobre os padrões sociais que fazem com que os gays e/ou as lésbicas de Imperatriz se
identifiquem e produzam os seus territórios.

➢ Caracterizar os processos de socialização no bar Imigrantes em Imperatriz - MA.

➢ Analisar a territorialidade gay na cidade de Imperatriz- MA e o papel do bar


Imigrantes na construção das territorialidades e projeção da identidade territorial.

Com base nos objetivos antes apresentados é importante enfatizar as


principais concepções que iremos trabalhar acerca dos conceitos de território,
territorialidades e de identidade territorial.
Diante das concepções de território e dos teóricos apresentados é importante
mencionar também os procedimentos metodológicos que foram adotados nesta
pesquisa. Numa pesquisa cientifica a metodologia que é empregada é de suma
importância, pois, é através dela que serão alcançados os objetivos propostos. Na
presente pesquisa, utiliza-se o estudo de natureza cientifica que se fundamenta na
adoção de uma metodologia condizente com uma realidade investigada, com o
cotidiano e as territorialidades dos sujeitos, que serão investigadas através de uma da
abordagem de caráter fenomenológico e qualitativo.
Nesse estudo optou-se por trabalhar com a abordagem fenomenológica.
Acordando Gil (2008, p 14) a fenomenologia é entendida por se tratar a realidade e o
convívio social, contanto, ―nas pesquisas realizadas sob enfoque fenomenológica, o
pesquisador preocupa-se em mostrar e esclarecer o que é dado‖.
Numa concepção de território e de territorialidade, a percepção do convívio e
da simbologia ou cultural do local é de suma importância. Assim, a fenomenologia
segundo Gil (2008, p.14) ―não procura explicar mediante leis, nem deduzir com base
em princípios, mas considera imediatamente o que este presente na consciência dos
sujeitos‖.
Portanto, pode-se afirmar que é de uso a vivencia dos sujeitos no território, no
qual, ―o que interessa ao pesquisador não é o mundo que existe, nem o mundo
conceito subjetivo, nem uma atividade do sujeito, mas sim o modo como o
conhecimento do mundo se dá, tem lugar, se realiza para cada‖. Seguindo esse ponto
de vista verifica-se a importância do território do bar Imigrantes e a integração dos
seus frequentadores, enquanto sujeitos que produzem territorialidades. Sendo assim,

885
―o objetivo de conhecimento para a fenomenologia não é o sujeito nem o mundo, mas
o mundo enquanto é vivido pelo sujeito‖. Como afirma Gil:

A pesquisa fenomenológica parte do cotidiano da compreensão do


modo de viver das pessoas, e não de definições e conceitos, como
ocorre nas pesquisas desenvolvidas segunda a abordagem
positivista. Assim, a pesquisa desenvolvida sob o enfoque
fenomenológica procura resgatar os significados atribuídos pelos
sujeitos ao objetivo que está sendo estudado. As técnicas de
pesquisa mais utilizadas são, portanto, de natureza qualitativa e não
estruturada. (GIL, 2008, p.15)

A presente pesquisa também teve seu embasamento na adoção do método


qualitativo, fundamental para coletar as informações, interpretar e compreender a
territorialidades do grupo social em questão desse estudo, que está inserida no
processo da construção do território. Para Chizzotti (2003):

A pesquisa qualitativa recobre, hoje, um campo transdisciplinar,


envolvendo as ciências humanas e sociais, assumindo tradições ou
multiparadigmas de análise, derivados do positivismo, da
fenomenologia, da hermenêutica, do marxismo, da teoria crítica e do
construtivismo, e adotando multimétodos de investigação para o
estudo de um fenômeno situado no local em que ocorre, e enfim,
procurando tanto encontrar o sentido desse fenômeno quanto
interpretar os significados que as pessoas dão a eles. [...] O termo
qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais
que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio os
significados visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma
atenção sensível. (CHIZZOTTI, 2003. P. 221)

Por isso, para reforçar a construção dessa pesquisa, serão utilizadas técnicas
de pesquisa como observação e entrevistas no bar Imigrantes, sendo este o território
de análise do estudo em pauta, assim, pode-se analisar as territorialidades existentes.
Dessa forma, será possível apresentar resultados, relatos e falas dos próprios sujeitos
inseridos nesse dinâmica de território, territorialidade e identidade territorial.
Segundo Gil (2008, p. 100) a observação constitui elemento fundamental para
a pesquisa. Desde a formação do problema, passando pela construção de hipótese,
coleta, análise e interpretação dos dados, a observação desempenha papel
imprescindível para a pesquisa. A observação é o uso dos sentidos com vista a
adquirir conhecimento necessário para o cotidiano.
Para Gil (2008, p. 101), segundo os meios utilizados, a observação pode ser
estruturada ou não estruturada. De acordo com o grau de participação do observador,
pode ser participativa ou não participativa. Podemos classificar segundo Gil (2008) três
tipos de observação nesse contexto, observação simples, participante e sistemática.
Nesse ponto de vista, podemos dizer que observação simples vai se
caracterizar como aquela em que o pesquisador terá um contanto superficial com o

886
grupo ou situação que pretende estudar. A observação participante consiste na
participação rela no conhecimento na vida do grupo ou de uma situação determinada.
A observação sistemática normalmente é utilizada em pesquisas que tem o objetivo de
descrever com mais detalhes os fenômenos estudados.
Conforme Gil (2008, p. 109) pode-se definir entrevista como a técnica em que
o entrevistador se apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o
objetivo de obtenção dos dados que interessam à investigação. Portanto, a entrevista
a interação social entre as partes que compõem a pesquisa, tanto o pesquisador
quanto o fenômeno pesquisado, sendo de um lado a busca de dados e o outro a fonte
que disponibilizará.
Nesse sentido Gil (2008, p. 113) afirma que a entrevista estrutura ou semi-
estruturada desenvolve-se a partir de uma relação fixa de perguntas, cuja ordem e
redação permanece invariável para todos os entrevistados.
Assim, podemos afirmar que as entrevistas são muito utilizadas nas
pesquisas sociais para coleta de informações, com isso são fundamentais para o
confronto da teoria e da prática. Dessa forma, através destes instrumentos de
pesquisa serão organizados documentos para o embasamento da proposta exposto
por meio de fotos, e delimitação territorial. Além de apresentar resultados, relatos e
dos próprios sujeitos inseridos nesse processo de territorialização.

TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS


DAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

O território é uma das categorias mais importantes da Geografia que por


muito tempo foi tida como uma forma de exercício de poder sobre o espaço, sendo
muitas vezes exercido pelo Estado. As várias áreas de conhecimento nos apresentam
que a questão do território é trabalhada por outras ciências, como a Sociologia,
Antropologia, Filosofia, Psicologia, Economia, não sendo exclusividade da Geografia.
Conforme Souza (2000):

Entre as disciplinas cientificas uma exceção tem sido a Antropologia,


e particularmente o seu ramo mais recente, a Antropologia Urbana;
estudos sobre ―tribos urbanas‖ e grupos sociais diversos (minorias
étnicas, prostitutas, homossexuais etc) e seus territórios se têm
mostrado como importantes contribuições para uma ampliação dos
horizontes conceituais e teóricos. [...] as disciplinas mais diretamente
ligadas, inclusive epistemologicamente, com a análise do território, a
saber: a Ciência Política, pela via do conceito para ela
epistemologicamente fundante de poder, e a Geografia, que
normalmente se arroga o privilégio de ser a disciplina do espaço

887
social – estas duas disciplinas estiveram quase sempre dominadas
por uma orientação em direção ao Estado enquanto o poder por
excelência, e inclusive estiveram historicamente comprometidas com
a elaboração de discursos legitimados do Estado. (SOUZA, 2000. p.
83)

Nesse sentido, é notório que as concepções de território são distintas. Isto é,


cada área do conhecimento terá sua concepção sobre o território, e
consequentemente, os processos de territorialização serão percebidos de distintas
formas. Com essa afirmação, procuraremos nos embasar, considerando as
contribuições de três estudiosos da Geografia, são eles: Marcos Saquet, Rogério
Haesbaert e Milton Santos. O nosso intuito é o de compreender suas concepções
sobre território e as várias dimensões das territorialidades.

O TERRITÓRIO NA ABORDAGEM GEOGRÁFICA: MÚLTIPLAS


DEFINIÇÕES/CONCEPÇÕES

Enfatizar as diferentes concepções de território faz-se necessário devido à


amplitude do conceito e às diversas possibilidades de definições encontradas em
outras áreas do conhecimento, como a própria Geografia, a Ciência Política, a
Economia, a Sociologia, a Psicologia e a Antropologia. A Geografia enfatiza a
―materialidade do território, em suas múltiplas dimensões (que deve[ria] incluir a
interação sociedade-natureza)‖ (HAESBAERT, 2004, p. 37).
O território se torna o cenário das ações do homem ao longo de sua história,
modificando e dando-lhe identidade, como afirma Milton Santos (2006, p. 13) ―o
território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os
poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem
plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência‖.
A multidisciplinaridade acerca da concepção de território para Saquet (2009,
p. 73) fez com que ―se acirrassem os debates, pesquisas e publicações‖. Segundo
este autor, os estudos da Geografia, Sociologia, Economia e Antropologia, foram
reforçados nos últimos anos no Brasil e em outros países, centrados nos conceitos de
território e territorialidade. Conforme Saquet e Briskievicz (2009):

[...] É necessário ter clareza das principais concepções de territórios e


territorialidade e de seus elementos constituintes, como orientação
teórico-conceitual, importante nos processos de pesquisa A opção
por essa ou aquela compreensão de território e territorialidade vai
direcionar esta ou aquela postura do desenvolvimento, dos atores de
cada lugar e da geração dos projetos e programas. [...] O território
compreende quatro componentes principais: a) as relações de poder;
as redes de circulação e comunicações; c) as identidades; d) a
natureza. Não há território sem a conjugação destes processos
sociais e naturais. (SAQUET; BRISKIEVICZ, 2009, p. 4)

888
Nessa linha de raciocínio, destaca-se a concepção do território através da
vertente simbólico-cultural, em que há a constituição das identidades, que serão
abordadas em nosso estudo sobre as territorialidades dos sujeitos.

Nos últimos anos, temos verificado uma efervescência no debate em


torno do conceito de território. Acompanhado de uma valorização no
plano conceitual, sobretudo acadêmico, desde o final do século
passado, geógrafos e demais cientistas sociais têm desprendido
enormes esforços para colocar o território no centro de suas
principais questões. A Geografia, a Sociologia, a Antropologia, a
Economia, a Psicologia e, por último, a História debruçaram suas
análises e voltaram seus olhares para o território. Nunca se falou
tanto em processos espaciais como os de des-re-territorialização,
nem tampouco em estudos de territorialidades específicas ou mesmo
de uma economia espacial ou territorial. Mas, talvez, o motivo pelo
qual tenha colocado o território em uma posição de destaque seja o
seu caráter funcional ou operacional. Ele passa a ser um conceito
prático, especialmente pela sua aplicabilidade nas políticas públicas,
voltado para o planejamento e ordenamento do território. Apesar de o
conceito de território ser utilizado em vários países da Europa há pelo
menos vinte anos, seu uso, no Brasil, é bastante recente. (SILVA,
2015, p. 53)

Somente será possível compreender o território, a partir do momento que


entendermos o espaço, pois, é sabido que o território é um componente do espaço,
sendo o espaço a base das categorias geográficas, que abrange todas outras
categorias, como: lugar, paisagem, região e território. Portanto, compreender o
território implica necessariamente em levar em conta o entendimento de espaço,
concluindo que o território é parte do espaço.
Fica evidente que o espaço é essencial para a construção do território e ainda
que inseparavelmente deste e das relações sociais que dão origem a produção das
territorialidades, no qual, ficarão explicitas as relações sociais construídas no território.
Nesse sentido, Saquet (2009). Comenta:

O território é uma construção coletiva multidimensional, com múltiplas


territorialidades. Diferenciar espaço geográfico de território são
necessárias três características principais, as relações de poder, as
redes e as identidades: processos espaço-temporais que marcam
determinadas parcelas de espaço, nas formas áreas-rede, rede-rede
ou área-rede-lugar. (SAQUET, 2009, p. 81)

Embora Saquet (2009) destaque a importância de diferenciar território de


espaço geográfico, é importante reconhecermos que ambos estão interligados.
Segundo Saquet (2009, p. 83) ―o espaço é indispensável para a apropriação e
produção do território‖. Portanto, compreendemos que não há como trabalharmos

889
estes conceitos de forma separados. Haesbaert (2004) aponta que há três
referências sobre os estudos de território na Geografia, dentre estes:

A política de território que se refere a relação de espaço-poder.


Nessa concepção o território se apresenta como um espaço
dominado (jurídico-política), que diz respeito tanto ao poder no
sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido
mais simbólico, de apropriação; A econômica do/no território, no
qual o território é visto como um recurso econômico. Todo território é,
ao mesmo tempo, em diferentes combinações, funcional e simbólico,
pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar funções
quanto para produzir significados, isto é, embora seja fonte de
matéria prima para as nossas atividades, também é nosso abrigo
para repouso. E por fim, o simbólico-cultural, em que o mesmo é
entendido como produto de apropriação simbólica, no qual,
determinado grupo faz de um espaço, isto quer dizer que pode fazer
uso de elementos espaciais, representações e símbolos, constituindo
uma identidade territorial sendo que os territórios e as fronteiras são
fundamentais para a construção das identidades. (HAESBAERT,
2004, p.6)

O território é um espaço apropriado pelos grupos sociais e animais, não


apenas politicamente, mas também econômica e culturalmente, sendo constituído por
um jogo complexo de relações, entre os grupos, que dominam ou são dominados.
Para Haesbaert (2004, p.07), ―as territorialidades não produzem apenas conflitos, mas
também promovem trocas enriquecedoras, em função do fortalecimento das
identidades forjadas a partir desses encontros‖. Nesse sentido, Haesbaert (apud Fuini,
2017) destacam que:

território assume um viés multidimensional (político-jurídico


econômico e culturalista) e os movimentos dos agentes grupos
entrando e saindo dos territórios, manifesta os processos de
desterritorialização e (re)territorializações. Territorialidades que se
apresentam com o sentido de pertencimento, uso e vivencia em um
recorte do espaço e que na atualidade se expressam mais em rede,
com a compressão do espaço pelo tempo, do que em zonas
contiguas. (HAESBAERT, apud FUINI, 2017, p. 20)

Com base nas ideias antes expostas, entende-se que é necessário distinguir
as principais concepções que envolvem os esquemas de estudos e práticos do
território segundo uma perspectiva funcional e o território concordante a perspectiva
simbólico-cultural
Buscamos trabalhar nesta pesquisa com a concepção de território, levando-se
em conta a dimensão simbólico-cultural, que é caracterizada por produzir o território
através das vivências das pessoas, simbolizado a partir das práticas simbólico-cultural,
que explora a subjetividade dos sujeitos, e se preocupa com os aspectos simbólicos.

890
O território numa visão da vertente simbólico-cultural segundo Haesbaert, é
entendido como espaço de manifestações culturais, no qual, prioriza dimensões
simbólicas e mais subjetivas, tendo em vista que o território é fundamentalmente tido
como produto da apropriação feita através do imaginário e/ou identidade territorial,
compreende que o território é palco das territorialidades numa conexão entre os
sujeitos e o espaço.
Na concepção do geógrafo brasileiro Milton Santos, o território é visto
segundo a perspectiva orientada pelo viés econômico e simbólico-cultural, afirmando
que:

Para os atores hegemônicos o território usado é um recurso, garantia


de realização de seus interesses particulares, para os atores
hegemonizados, trata-se de um abrigo, buscando constantemente se
adaptar ao meio geográfico local, ao mesmo tempo que recriam
estratégias que garantam sua sobrevivência nos lugares. (SANTOS,
1986, p. 12-13)

Santos (1986) deixa claro a concepção de território usado ou espaço


geográfico como um todo complexo, isto é, o território é visto sobretudo como uma
recurso econômico, a ser explorado, onde, as relações sociais serão executadas, no
qual, haverá uma relação entre o território e a sociedade, ressaltando uma dinâmica
entre o ―ator‖ e o ―objeto da ação‖. Logo, o território abriga relações socais que são ao
mesmo tempo materiais e simbólicas.

O território usado compreende o território em si e a identidade nesse


território, isto é, o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence, o
território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das
trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. Ao usar o
território, faz-se uma distinção entre o território em si e o território
usado. Entalece o território como forma e o território usado como
objeto de ações, sinônimo de espaço humano. (SANTOS, 2006, p.
14)

Embora seja importante a dimensão econômica dos estudos territoriais,


entendendo o território a partir dessa perspectiva do território usado conforme destaca
Santos, a nossa preocupação nesse estudo se volta a análise e compreensão do
território a partir da dimensão simbólico-cultural.
Haesbaert (2008, p. 20), afirma: ―o território, imerso em relações de
dominação e/ou de apropriação sociedade-espaço, desdobra-se ao longo de um
continuum que vai da dominação político-econômica mais concreta e funcional à
apropriação mais subjetiva e/ou cultural-simbólica‖.

891
O território envolve sempre, ao mesmo tempo, mas em diferentes
graus de correspondência e intensidade, uma dimensão simbólica,
cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos
sociais, como forma de ―controle simbólico‖ sobre o espaço onde
vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma
dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação
e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização
dos indivíduos (HAESBAERT, 1997, p. 42).

Diante das diferentes concepções antes apresentadas sobre o conceito de


território é necessário delimitar a noção que julgamos útil a este estudo. Trata-se da
dimensão simbólico-cultural.

TERRITORIALIDADES E IDENTIDADES TERRITORIAIS:


ABORDAGENS A PARTIR DOS DIFERENTES GRUPOS SOCIAIS

Na ciência geográfica, teóricos como Milton Santos, Rogério Haesbaert e


Marcos Saquet tem se dedicado aos estudos territoriais, incluindo nesse contexto, a
temática das identidades territoriais. O território é imprescindível às dinâmicas
espaciais, uma vez que este é a base para a construção das territorialidades. Segundo
Milton Santos (1986):

Um território sem territorialidade seria empírica e teoricamente


impossível, uma vez que retiraria seu caráter relacional do poder pela
dominância e apropriação material e imaterial, ou seja, o território
pode ser entendido como um espaço de dominação pela apropriação
tanto material quanto o imaterial (simbólico) ficando o que ele
considera de configuração territorial, (SANTOS, 1986).

Portanto, é evidente que o território e sua territorialidade não fazem sentido


sem o seu sentido simbólico-cultural. Saquet nessa direção (2007) compreende que o
território:

constituído pelo movimento histórico e por simultaneidades. Há um


movimento constante que se materializa na vida cotidiana e no
território, centrado na intersecção entre os tempos históricos e
coexistentes (multiescalar). No território há uma conjugação entre
aspectos da economia, da política, da cultura e da natureza exterior
ao homem (E-P-C-N). (SAQUET, 2007, p. 56).

notório que as territorialidades contribuem para definir o território a partir


das ações construídas pelos sujeitos. Para tanto, Rogério Haesbaert (2008, p. 21)
afirma que ―devemos primeiramente distinguir os territórios de acordo com os sujeitos
que os constroem, sejam eles indivíduos, grupos sociais, o Estado, empresas,
instituições como a Igreja etc.‖ É importante frisar que estes significados estão
presentes no território de forma intrínseca. Porém, iremos nos debruçar neste estudo,

892
no segundo elemento, o qual carrega essa definição de simbolização e identificação
dos sujeitos através de suas ações e dos grupos sociais, sendo condizente com a
pauta do nosso estudo.
Robert Sack (1986) destaca que ―a territorialidade corresponde as ações
humanas‖, ou seja, a forma como cada indivíduo age no seio da sociedade. A
territorialidade e o território são ambos efetuados nos níveis do indivíduo, da casa, do
bairro, do estado, do país e em nível internacional‖. Os elementos econômicos,
políticos e culturais são um alicerce, conforme Roberto Sack (1986) para caracterizar
território e territorialidade enfatiza:

A territorialidade é um fenômeno social que envolve indivíduos que


fazem parte do mesmo grupo social e de grupos distintos. Nas
territorialidades, há continuidades e descontinuidades no tempo e no
espaço; as territorialidades estão intimamente ligadas a cada lugar:
elas dão lhe identidade e são influenciadas pelas condições históricas
e geográficas de cada lugar. (SACK, 1986, p. 7)

As ações dos sujeitos é que na verdade projetam uma identidade do/no


território, conferindo-lhe marcas ou traços que asseguram a este território uma
particularidade/identidade próprio. A identidade territorial se associa a várias outras, na
qual, o conteúdo simbólico muda com o tempo e com as ações sociais, isto é,
percebe-se que a identidade territorial é constituída por diversas identidades, sendo
que cada pessoa em sua formação histórica adquire diferentes identidades,
dependendo do seu tempo e espaços de convivências.

Os símbolos que compõem uma identidade não são construídos


totalmente eventuais; mantêm sempre determinados vínculos coma
realidade concreta. Os vários conflitos pela defesa de fronteiras, por
exemplo, demonstram que as referências espaciais pertencem
relevantes para a definição ou oferecimento de identidade. A própria
memória (coletiva) de um grupo social precisa de uma referência
territorial. (SAQUET, 1986, p. 06)

Fica evidenciado que o poder simbólico no processo de apropriação de um


território ou a manifestação das identidades, necessita de uma base territorial, ou seja,
de um território para suas representações e símbolos. Este território é uma base para
constituição de uma identidade territorial, dentro do seu processo de historicidade.
Portanto, o território e sua delimitação são de suma importância para a construção das
identidades e para a sua projeção em um determinado espaço.
As territorialidades se manifestam na materialidade (objetiva) das coisas que
estão presentes no território e na imaterialidade (subjetiva) constituídas pelos homens
em relação ao seu território.

893
São as ações dos sujeitos, mas também são sentimentos vinculados à nossa
existência em uma fragmentação do espaço habitado. Conforme Raffestin (1993, p.
trate-se ―da descoberta de que primeiro se pertence a um território lato sensu,
para depois se pertencer a uma sociedade‖.
Santos e Silveira (2001, p. 19), utilizam a territorialidade como sinônimo de
pertencer àquilo que nos pertence, assim, ―esse sentimento de exclusividade e limite
ultrapassa a raça humana e prescinde da existência do Estado‖. Segundo os autores,
a territorialidade se estende aos animais, sendo a primeira forma de territorialidade
estudada pelos naturalistas, como área de vivência e reprodução.
Desse modo, Haesbaert (2008, p. 21) sustenta que ―a territorialidade, além de
incorporar uma dimensão estritamente política, diz respeito também às relações
econômicas e culturais‖. Busca em razão das ideias antes expostas, destacamos a
nossa inquietação no sentido de entender o território a partir das relações
multidimensionais. Desse modo, são várias as dimensões que lhes fornece
sustentação. No entanto, neste estudo nos preocupamos em entendê-lo a partir das
contribuições da dimensão simbólico-cultural.

TERRITORIALIDADES E IDENTIDADES HOMOSSEXUAIS DA/NA CIDADE DE


IMPERATRIZ: UMA ABORDAGEM A PARTIR DOS GRUPOS LGBTS
Buscamos realizar um breve estudo sobre os processos de resistências aos
quais os grupos LGBTs estão inseridos, considerando nesse cenário a realidade
brasileira. Sabe-se que a partir da segunda metade do século XX, intensificou-se a
diversificação social das identidades que definem os sujeitos, tais como: mulheres,
índios, negros, homossexuais, entre outros. Estas identidades apontam politicamente
para a transformação dos estigmas, com vistas à igualdade na inserção social,
determinando os mesmos direitos a todos e buscando medidas de combate à
discriminação e ao preconceito em qualquer nível das relações cotidianas.
Surgem, assim, movimentos sociais que buscam não só reduzir as
desigualdades econômicas entre diferentes segmentos da sociedade, mas, também,
enfrentar questões culturais relacionadas à ocorrência de estigmas sociais. Nesse
contexto, a identidade torna-se o principal elemento que vai definir os movimentos
sociais, desde os anos 1960. Ela une e representa um conjunto de sujeitos
estigmatizados e/ou marginalizados que, mesmo como minoria, configura uma parcela
importante da população no Brasil, em busca de suas representações e
territorialidades, que passam a ser menosprezados perante a sociedade.
De todas as minorias sociais, os homossexuais são os mais vulneráveis.
Partindo da percepção que a homossexualidade é construída em meio ao discurso

894
social de referências simbólicas heterossexuais, levando assim a exclusão do
homossexual por esse discurso dominante de uma dada cultural. Molina (2011)
explicita esse contexto de exclusão da seguinte forma:

Amar alguém do mesmo sexo, entregar-se à dor e à delicia de sentir-


se apaixonado como em qualquer relacionamento no qual criamos
laços de ternura, torna-se mais difícil para os homossexuais, uma vez
que os riscos do encontro e desencontro de amar alguém simbolizam
romper com o mundo sociocultural que os indivíduos estão inseridos.
Um mundo que esconde as diversas faces de amor e prega um
discurso heterossexista, leva a maioria dos homossexuais a uma
árdua luta por sua identidade, autonomia e direitos. Direitos como
seres humanos. direito ao amor. (MOLINA, 2011, p. 949).

perceptível que ser homossexual ou se reconhecer homossexual é uma


questão vista e tratada como algo que inflige a naturalidade do comando social. Nos é
imposta uma cultural da qual ser gay é imoral, um pecado abominável. É errado. É
algo que foge dos padrões estabelecidos da sociedade sexista. Estudar sobre a
homossexualidade é romper com esse pensamento retrogrado, tendo assim, a
possibilidade de desvendar as raízes do preconceito em nossa sociedade. O
preconceito na nossa sociedade está enraizado culturalmente. os sujeitos
homoafetivos são atacados e alvejados constantemente, conforme Molina (2011):

Dentro da diversidade sexual, os grupos de gays, lésbicas, travesti e


transexuais são vítimas de preconceito e discriminação, devido a sua
orientação sexual e à identificação de gênero. A homofobia,
preconceito contra pessoas que se relacionam afetivo-sexualmente
com outras do mesmo sexo, é diariamente marcada por gestos,
olhares, palavras, discussões, agressões e até mesmo assassinatos
[...] Ao abraçar a luta para explicar a homofobia velada e silenciada,
mas existente de maneira cruel, nas escolas e na nossa sociedade,
pude abraçar também a possibilidade de entrelaçar histórias de vidas
que sensivelmente nos encorajam a cada vez mais entender melhor a
sexualidade e a diversidade sexual tão inerente às pessoas. Inerente
ao ponto de ser um direito humano inalienável, mas, devido à
contradição social, mostra-nos ainda inalcançável aos homossexuais.
(MOLINA, 2011, p. 950)

Levando em consideração as análises das ciências sociais no que diz


respeito as relações de gêneros, pode-se notar que desafiaram essa visão
essencialista da biologia sobre as identidades humanas, no qual, proporcionaram o
questionamento referente à construção histórico-cultural das pessoas e à importância
do meio sociocultural, como fica evidenciado:

O estudo de gênero e sua compreensão surge pela forma como a


cultura expressa as diferentes entre homens e mulheres e de que
modo a caracterização das diferenças inerentes ou aprendidas entre

895
os sexos pode servir como ponto auxilio para compressão da
exclusão das pessoas que vivem a experiencia homoerótica como
entes capazes de direitos e obrigações (OLIVEIRA, 2009, p. 161).

O ser homossexual é estigmatizado na sociedade, sendo visto como inútil na


sociedade, já que é taxado e condenado pelo fato de não procriar, sendo definido
como contrário aos interesses da reprodução biológica. Assim, sendo julgado por ser
considerado um homem que quer ser uma mulher4, sendo inferiorizado pela sua
postura. Num contexto histórico, o termo homossexualidade foi utilizado pela primeira
vez pelo médico húngaro Karoly Maria Benkert no ano de 1869. Já no Brasil este
termo foi utilizado pela primeira vez em 1894 no livro: ―Atentos ao pudor: estudos
sobre as aberrações do instinto sexual‖, de Francisco José Viveiros de Castro.

Ao trazer a discussão da sexualidade para o domínio público, assim,


como o fizeram o feminismo e os movimentos de liberação sexual da
década de 1960, o movimento homossexual apresenta uma
antinomia e exige que ela seja assumida pelo Estado laico de direito,
distante dos dogmas religiosos e das noções preconcebidas - a
sexualidade é política, e a individualidade constitui um direito humano
fundamental. Em outras palavras, o movimento não admite que
desrespeite ao direto humano fundamental de exercer livremente a
orientação sexual seja tratada pelo Estado como assunto à esfera
privada (CONDE, 2004, p. 15).

Embora saibamos que a prática homossexual seja antiga, é perceptível que


esta tenha ganhado maior visibilidade com os primeiros movimentos de resistências no
século XX. No Brasil o primeiro movimento gay surgiu no estado de São Paulo em
1979 e o primeiro encontro brasileiro de homossexuais foi realizado no ano seguinte.
Posteriormente, havendo a organização de novos grupos e associações em prol da
causa gay. Reivindicação de igualdade e direitos, pelos sujeitos que são
marginalizados pela sociedade. A exemplo dessas manifestações são realizados
periodicamente nas distintas regiões do país, as paradas LGBT’s.
A parada gay ganha destaque em muitas cidades de Brasil, como forma de
visibilidade e porta-voz da comunidade LGBT tendo São Paulo como grande centro
das manifestações, Luana (2011) descreve esse movimento da seguinte forma:

O movimento objetiva a construção do sujeito, responsável pelas


mudanças de visões, posturas, hábitos e transformações das
pessoas a partir de um conhecimento de si e do mundo. De forma
consciente, o movimento gay surgiu a partir de uma preocupação
com o entendimento do mundo, com a tentativa de esclarecer e

Geralmente os homossexuais do sexo masculino são os mais citados e discriminados, pode-


se perceber que esses homens são chamados de vários nomes, muitas vezes de forma
pejorativa, depreciativa ou preconceituosa, como: invertido, efeminado (ou afeminado), gay,
veado, entre outros.

896
dominar os parâmetros de sua organização e de classificação da
homossexualidade; e com a demanda de desconstruir as identidades
homossexuais cristalizadas em busca de possibilidades de vivencias
mais positivas (MOLINA, 2011, p. 956).

Segundo Molina (2011) o entendimento do cotidiano, das identidades e das


diferenças como construção social, histórica e cultural, contribui para a elaboração de
projetos de emancipação que serão construídos no presente a partir dos
inconformismos do passado e com a perspectiva do pensamento das opções do
futuro.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, o movimento LGBT é provocado pelas discriminações que o


homossexual sofre na sociedade, tratando quem se relaciona com uma pessoa do
mesmo sexo com inferioridade. Portanto este movimento emerge em busca de
equiparação destes sujeitos em relação aos demais sujeitos da sociedade. Dos quais
o nosso estudo se embasou para estudar os territórios e territorialidades que foram
edificadas na cidade de Imperatriz, como forma de resistência.
Nesta sucessão de acontecimentos, nota-se que luta pelo reconhecimento da
identidade homossexual e as suas territorialidades, buscando o reconhecimento e
visibilidade no meio social. Com isso, podemos constatar que as ações voltadas a
diversidade sexual, como combate a homofobia, a violência e a discriminação têm
ganhando respaldo, inclusive do poder executivo federal, ampliando assim as
transformações no gozo dos direitos humanos e da cidadania. A educação quanto a
sexualidade se faz necessário para que cada indivíduo entenda o que sente e o que é,
ser homossexual numa sociedade heterossexista5.
A sexualidade é intrínseca à personalidade de todo ser humano,
independentemente de sua orientação sexual6. O seu desenvolvimento depende da
satisfação de necessidades básicas, como: desejo do contato, intimidade, expressão
emocional, prazer carinho, amor. Assim, pode-se afirmar que a sexualidade é
construída por meio da interação entre os indivíduos e as estruturas sociais e seu total

5
Heterossexismo é a atitude de
preconceito, discriminação, negação, estigmatização ou ódio contra toda sexualidade que não
seja a heterossexual, expressa de forma sistêmica. É a suposição de que as pessoas são todas
heterossexuais ou de que a heterossexualidade é superior e mais desejável do que as demais
orientações sexuais.
6
Compreende-se que o termo orientação sexual é considerado mais apropriado do que
opção sexual ou preferência sexual.

897
avanço é essencial para o desenvolvimento individual, interpessoal e social. O
território é peça chave neste processo, já que as territorialidades são a base das
manifestações culturais, e a sua construção de identidade.
Portando, verifica-se que a temática desenvolvida é muito complexa, pois,
podemos constatar que a partir do momento em que uma minoria da população é
excluída ou ocultado, viu-se a necessidade de esses grupos se manifestarem e
criarem suas próprias vozes em luta aos seus interesses, porém, percebe-se que está
luta ainda anda a passos de vagarosos, que ainda há muito o que conquistar.

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899
PARA ALÉM DO ARCO-ÍRIS: A RELAÇÃO DOS HOMENS GAYS COM A
CULTURA MATERIAL NA 18° PARADA DO ORGULHO LGBTI DE BELÉM
https://doi.org/10.29327/527231.5-60
José Carlos Almeida da Rosa - Universidade Federal do Pará

Fabiano de Souza Gontijo - Universidade Federal do Pará

Resumo

Estudar os objetos que fazem parte das sociedades na contemporaneidade é um


assunto que nos ajuda a compreender de que forma a cultura material está presente
na vida dos atores e a partir disso cria conexões, fortalece a ideia de pertencimento a
um determinado grupo social e, consequentemente, ajuda no processo de
sociabilidade entre os sujeitos. Isso se torna ainda mais complexo quando observamos
as coisas relacionadas às categorias de sexualidade. Deste modo, esta pesquisa
decorre de uma etnografia realizada na 18° Parada do Orgulho LGBTI de Belém e tem
como propósito analisar objetos como: vestimentas, sapatos, marcas, cortes de
cabelo, acessórios, entre outras materialidades que foram observados durante o
evento e que compõem o universo do homem gay belenense. O estudo parte do
conceito de agência que estas coisas possuem sobre os corpos dos atores e em
outros indivíduos homossexuais, influenciando, assim, as suas relações sociais
existentes dentro do movimento. Os dados que serão apresentados no decorrer deste
ensaio são preliminares de uma pesquisa que está em andamento.

Palavras-chave:Sexualidade; Homem Gay; Cultura Material; Agência; Sociabilidade.

Abstract

Studying the objects that are part of contemporary societies is a subject that helps to
understand how cultural material is present in the lives of actors and from that creates
connections, strengthens the idea of belonging to a particular social group and,
consequently, helps in the process of sociability between the subjects. This becomes
even more complex when we look at things related to the categories of sexuality. Thus,
this research stems from an ethnography performed at the 18th LGBTI Pride Parade in
Belém and aims to analyze objects such as: clothing, shoes, brands, haircuts,
accessories, among other materialities that were observed during the event and that
make up the Belenian gay man universe. The study starts from the concept of agency
that these things have over the bodies of actors and other homosexual individuals, thus
influencing their existing social relations within the movement. The data that will be
presented during this essay is preliminary to an ongoing research.

Keywords: Sexuality; Gay Man; Material Culture; Agency; Sociability.

900
Chegando na Parada do Orgulho: considerações iniciais

Ao som do hino nacional que foi interpretado à capela, em uma tarde de


domingo quente e ensolarada, a partir do uso de discursos que ecoavam em uma das
principais avenidas da cidade de Belém, contra a atual conjuntura de uma política
conservadora e preconceituosa que se perpetua no Brasil, iniciou-se mais uma Parada
do Orgulho LGBTI na capital paraense, que neste ano de 2019 trouxe como tema a
questão da dificuldade da empregabilidade para os atores sociais pertencentes ao
movimento, com um foco principal voltado para pessoas travestis e transexuais, os
quais ainda têm o caminho da prostituição como a sua principal forma de
sobrevivência.
Neste primeiro momento, ainda na concentração da manifestação, observei os
atores sociais que ali estavam, confraternizando uns com os outros, mas também
atentos às palavras que eram proferidas por pessoas que estavam em cima do
primeiro trio-elétrico, próximo à rua Vinte e Oito de Setembro, e que geravam gritos e
palmas de aprovações ao que estava sendo dito. Percebi que naquele instante o que
ocorreu foi como uma espécie de catarse coletiva ou ―(...) uma sensibilidade possível a
certas pessoas que, mesmo sem se conhecerem, partilharam, num tempo-espaço
dado, de um mesmo processo cognoscente, ou melhor, de uma teia intersubjetiva de
sentidos e de estruturas, formas, de sentir‖ (CASTRO, 2015, p 104).
Desde já, ressalto que ao longo do texto irei contribuir com algumas impressões
e afetações que tive no decorrer do evento enquanto um observador participante, pois
elas ajudarão a compor um melhor cenário de onde parto neste estudo etnográfico e
também uma compreensão mais fácil dos relacionamentos que ali se faziam presentes
uma vez que entendo que ―esse lugar e as intensidades que lhe são ligadas têm então
que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los‖ (FAVRET-SAADA, 1990,
p. 159).
O que chamou minha atenção foi a forma com que aqueles sujeitos estavam
vestidos e faziam o uso de acessórios, algo totalmente diferente do que pensava que
encontraria antes de chegar pela primeira vez em uma ―Parada Gay‖, no qual a
imagem que tinha na cabeça era de que os indivíduos que participavam iriam com
trajes que faziam alusão às cores que compõem a bandeira do movimento com
bastante brilho/glitter, outras com fantasias que fazem referência ao fetichismo sexual
comum no universo gay, como é o caso dos homens com corpos musculosos só de
sunga, e até mesmo cogitei que veria todos os tipos de transformistas que utilizam-se
do lúdico e do extravagante para compor suas vestimentas e performances.

901
Porém, a realidade foi outra, a sensação que tive foi de que estava em um
tradicional bloco de rua no período do carnaval, em que as pessoas que caminham e
dançam pelas ruas atrás dos trios-elétricos usam trajes que são comuns no dia-a-dia
da sociedade belenense. Deste modo, tampouco, aquela realidade remetia a ideia que
eu tinha sobre uma parada gay relacionado a tudo o que já havia visto por imagens
das manifestações nas outras capitais do Brasil, como em São Paulo, por exemplo.
Todavia, compreendo que estamos lidando com realidades simbólicas e expressivas
de vidas sociais bem diferentes e as pessoas agem a partir das suas percepções de
mundo e das suas construções.
Após esse primeiro estranhamento, resolvi continuar a pesquisa de acordo com
algo parecido que Fredrick Barth nos propõe a fazer quando estamos dentro de
campo, no qual ―devemos tentar olhar para nosso objeto de estudo sem que nossa
visão seja excessivamente determinada pelas convenções antropológicas herdadas‖
(BARTH, 2000, p. 108). Então, prossegui a observação reunindo os dados que
estavam fora de um estereótipo que tinha em mente antes de chegar ao local, mas
que me direcionou a entender de forma mais profunda e clara quem é o homem gay
belenense contemporâneo que participa do principal evento do movimento LGBTI na
cidade. Assim, ―a teoria e os conceitos antropológicos devem ser testados na análise
da vida tal como ela ocorre em um determinado lugar do mundo. Qualquer lugar pode
servir como provocação para desafiar e criticar a teoria antropológica‖ (BARTH, 2000,
p. 108).
Durante a análise, consegui acompanhar uma conversa de duas pessoas que
1
estavam ao meu lado na manifestação, uma delas (que chamarei de Rafael ),

comentou que bastava dar uma olhada ao redor que era perceptível que naquele local
havia mais pessoas heterossexuais do que gays. Ao ouvir isso me questionei sobre
como aquele homem tinha tanta certeza ao afirmar aquilo, em que ele se baseava
para dizer se uma pessoa que estava ali era ou não homossexual, já que estávamos
em um evento voltado, preponderantemente, para as pessoas que são referentes à
sigla.
Só a partir desta conversa e das considerações que tive ao chegar pela
primeira vez na Parada do Orgulho que surgiu a inquietação para descobrir como as
pessoas pertencentes ao movimento conseguiam reconhecer os seus pares a partir do
uso da cultura material que estava presente naquela manifestação que era aberta para

1
O interlocutor pediu para que não divulgasse o seu nome verdadeiro.

902
que toda sociedade pudesse participar, em que não havia um estereótipo definido que
indicasse que um determinado ator social era ou não um homem gay.
Para conseguir responder essas e outras questões contei com a participação
do rapaz que ouvi a conversa, o Rafael, que se identificou como uma pessoa gay, tem
entre 25 e 28 anos, possui ensino superior, tem um corpo forte, não malhado, estava
vestido no mesmo estilo de outros atores que estavam na passeata (short curto preto
2
com desenho, camisa lisa simples e chinelos do modelo slide/slider ). Ele disse que
todos os anos vai à Parada do Orgulho, porém neste ano achou o evento muito
contraditório, se referindo tanto sobre as pessoas que estavam lá caminhando, quanto
às situações políticas que envolveram a organização do evento.
A contribuição deste interlocutor foi fundamental para o desenvolvimento deste
estudo, pois pessoas que já tiveram outras vivências com as manifestações anteriores
―podem também supor, baseados na experiência passada, que somente indivíduos de
determinado tipo são provavelmente encontrados em um dado cenário social‖
(GOFFMAN, 2009, p. 11).
Portanto, esta pesquisa objetiva fazer uma reflexão por meio das descrições
que foram feitas a partir da técnica de observação em que, por vezes, parecem ser
incoerentes em um primeiro momento dentro do campo, mas que organizadas e
analisadas em conjunto com as conversas que ocorreram com o interlocutor após o
evento, são de importância para a compreensão que se tem da ideia sobre o
pertencimento dos indivíduos a um determinado grupo social por meio do uso dos
objetos presentes dentro da Parada Gay de Belém e, com isso, consequentemente,
entender também a facilidade que existe de ocorrer um processo de sociabilidade
entre os atores com os seus pares, uma vez que eles criam uma relação com as
coisas que funcionam como marcadores identitários/sociais que atuam diretamente
sobre estes indivíduos e em seus relacionamentos.

O que não é visto mas está ali: uma questão de agência


Ao continuar acompanhando o diálogo que Rafael estava tendo com o seu
conhecido durante a concentração da manifestação, o mesmo explicou que eles
sabiam e sempre sabem quando um homem é ou não homossexual. Posteriormente,
já conversando com o mesmo sobre a passeata, comentei que tinha escutado essa
parte da sua fala e fiquei curioso sobre a afirmação que ele tinha feito com tanta
certeza. Então, o interlocutor respondeu que existem várias expressões corporais,

2
Chinelos com tiras horizontais no peito do pé.

903
elementos materiais, formas de falar, ações, entre outros exemplos que em alguns
casos são perceptíveis e fáceis de conseguirmos identificar quando os sujeitos são
gays, já em outras ocasiões, pode ocorrer que não seja algo visível para outros
indivíduos, mas que sempre são fáceis de serem reconhecidos por outros rapazes
homossexuais.
A partir dessa resposta, podemos compreender que os exemplos que o
interlocutor dá para identificar outros homens gays trata-se do conceito de ―fachada
corporal‖ que está ligado ―(...) aqueles que de modo mais íntimo identificamos com o
próprio ator, e que naturalmente esperamos que o sigam onde quer que vá‖
(GOFFMAN, 2009, p. 31).
Entre os exemplos de funções/categorias presentes nesta fachada podemos
citar questões relacionadas ao vestuário, aparência, atitudes, linguagem, gestos,
olhares, determinadas marcas que os indivíduos usam, entre outros elementos que
estão presentes, especificamente, no universo do homem gay e, consequentemente,
provocam reconhecimentos e reações nos seus pares.
Diante disso, faço uma conexão com o pensamento de Alfred Gell (2005), que
diz que as coisas são fontes de poder que exercem um agenciamento sobre os atores
sociais, atraem o seu olhar por meio da tecnologia do encanto e com isso provocam
reações nestes indivíduos dentro de um determinado contexto.
Ainda que o autor utilize este conceito de agência dentro do campo da
antropologia das artes, o qual diz que um quadro age dentro de um ambiente e com as
pessoas que com ele interage, conseguimos pensar esta mesma ideia a partir de
outras perspectivas, como é o caso do poder de agenciamento/encanto da cultura
material sobre os homens gays e dentro das suas relações interpessoais.
Para o autor, esse ―encanto‖ trata-se,

de uma terminologia que quer expressar a premissa geral de que as


sociedades humanas dependem do consentimento de indivíduos
propriamente socializados por meio de uma rede de
intencionalidades. Embora cada indivíduo busque (o que cada
indivíduo assume ser) seu interesse próprio, todos esses indivíduos
engendram algo a atender a necessidades que não podem ser
compreendidas no nível do ser humano individual, mas somente no
nível das coletividades e suas dinâmicas. (GELL, 2005, p. 45)

Logo, ao buscar a compreensão acerca dos objetos das pessoas que foram
observadas dentro da Parada do Orgulho de Belém, deve-se considerar que não se
trata de analisar os casos de forma individual, porque além de serem algo em comum
entre os atores, eles funcionam e agem de forma conjunta dentro do grupo, quer seja

904
de modo consciente ou inconsciente, sobre os outros indivíduos. Essa ―materialidade e
agência funcionam simultaneamente e em registro não-dualista, pois pessoa e coisa
encontram-se fundidas e é o resultado dessa interação que é capaz de ―chamar a
atenção‖ (MIZRAHI, 2007, p. 234).
Isso também pressupõe uma experiência que busca fazer parte do mundo da
vida com o outro de forma natural, ou seja, é algo que possui um sentido dentro de um
meio social. Portanto, uma vez questionado sobre a sua fala, Rafael só consegue dizer
de forma enfática quem pode ser ou não considerado um homem gay, por causa das
vivências que o mesmo já teve com as outras pessoas pertencentes ao movimento.
Essa perspectiva pode ser relacionada também ao conceito de sociação (
Vergesellschaftung), o qual ―é constituído pelos impulsos dos indivíduos, ou por outros
motivos, interesses e objetivos; e pelas formas que essas motivações assumem‖ (SIMMEL,
1983, p. 21). Neste caso, o que ficou perceptível no discurso do interlocutor sobre as
vestimentas e acessórios que os homens gays estavam utilizando no evento, foi uma
reprodução de padrões que aos olhos de outrem provavelmente poderiam não ser
perceptíveis, mas que para ele e para os outros homens gays que ali estavam,
conseguiam se compreender enquanto pertencentes ao mesmo grupo, já que os objetos
utilizados por eles possuíam um interesse do qual estes atores compartilham dentro de um
determinado meio, que se transforma em uma prática social.
Desta forma,

A indumentária era uma espécie de pseudolinguagem que podia dizer


quem éramos. Nessa condição, as coisas materiais eram adjuntos
relegados ao estudo da linguagem, uma forma não falada de
comunicação, capaz de dizer muito, se estivéssemos atentos a ela.
(MILLER, 2013, p. 21)

De acordo com o depoimento do interlocutor, ocorre também a situação em


que as próprias pessoas gays não conseguem se reconhecer enquanto pertencentes
ao movimento por meio das coisas que utilizam, neste caso eles partem para uma
espécie de ―intuição‖. Em casos como estes, ―atos, gestos e desejo produzem o efeito
de um núcleo ou substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio
do jogo de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio
organizador da identidade como causa‖ (BUTLER, 2003, p. 194).
Sobre a dificuldade deste reconhecimento a partir de uma cultura material,
podemos considerar o termo ―humildade das coisas‖, do autor Daniel Miller (2013), no

905
qual determinados símbolos são tão camuflados, invisíveis e periféricos aos olhos
humanos que, por vezes, passam imperceptíveis dentro da sociedade. Com isso, o
papel que estes objetos exercem no cotidiano e nas relações das pessoas não
chegam a ser questionados. Quando ocorre casos comos estes compreende-se que
quanto maior for o silêncio dos objetos no meio social, maior é o seu poder de
atuação, pois aquela coisa já é vista como algo naturalizado entre os indivíduos.
Essa questão da invisibilidade das coisas referentes aos atores dentro do
evento pode então ser considerada e explicada também, porque a ―fachada, portanto,
o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconsciente
empregado pelo indivíduo durante sua representação‖ (GOFFMAN, 2009, p. 29).

No momento em que o interlocutor diz que em certos casos o que ocorre é uma
forma de intuição no reconhecimento dos seus pares, na verdade trata-se de um
agenciamento dos objetos que não é possível observar de forma tão clara como em
outros casos, mas que estão ali, mesmo que de maneira mais modesta, dependem de
uma certa experiência e atenção do olhar do outro.
Nos próximos tópicos discutiremos de forma mais detalhada o agenciamento
que os objetos dos indivíduos presentes no evento tiveram sobre outros atores e
dentro das suas relações.

Coisas que falam?


No decorrer da conversa, o interlocutor deu alguns exemplos de tipos de
vestuários e calçados que são frequentes dentro do closet do homem homossexual e
que contribuíram para que ele conseguisse reconhecer outros homens gays na Parada
do Orgulho. Dessa forma, a preferência pelo uso de tais coisas podem ser explicadas
porque ―a ênfase encontra-se na ação humana, no fato de o indivíduo escolher, dentre
uma infinidade de objetos, aqueles mais bem capazes de representar sua identidade
social‖ (RIBEIRO, 2013, p. 346).
3
Um dos elementos que o Rafael citou foram os shorts de pano ou tactel , que

são bem curtos (mais ou menos ficam um pouco acima dos joelhos ou no meio das
coxas), possuem diversas cores, estampas e, normalmente, ficam bem justos nos
corpos desses homens. Segundo ele, esta indumentária possui um estilo vintage dos
anos de 1970-1980 e os gays da atualidade costumam usar bastante nas festas
alternativas e LGBTI que o mesmo frequenta.

3
Tecido feito com fibras sintéticas.

906
De acordo com isso, podemos considerar que em um ambiente que contém
muito calor, música para dançar e agitação como é o caso da Parada Gay, esse tipo
de peça torna-se algo essencial pois possibilita que os atores se movimentem de
maneira mais confortável, façam seus passos sensuais e sincronizados descendo até
o chão com mais facilidade ao som dos ritmos que exigem uma maior flexibilidade dos
indivíduos, como é o caso do ―funk‖, ―brega-funk‖ e algumas músicas ―pop‖, estilos
estes que foram tendência durante toda a passeata.
A partir disso compreende-se que ―a relação entre o artefato e o seu usuário
envolve uma consideração da materialidade do primeiro em relação ao corpo do
segundo. (...) Trata-se de um corpo em movimento e inserido em um contexto
específico de dança‖ (MIZRAHI, 2007, p. 234). No qual, estes materiais e os corpos
dos atores naquele momento se integraram em um só movimento e juntos realizaram
um jogo de perfeita combinação e conexão.
Além de ser um tipo de roupa apropriada para o evento por conta do clima
quente que estava na cidade e também por promoverem uma leveza, maior
elasticidade e mais praticidade para que os indivíduos conseguissem realizar os seus
movimentos corporais sensuais, esses shorts também carregam uma simbologia e
intencionalidade sexual tanto para quem está usando, pois pelo fato de serem bem
curtos e justos aos corpos, valorizam e realçam as pernas e os glúteos desses atores,
como também provocam sensações no outro que observa enquanto os indivíduos
dançam sensualmente.
Algo que percebi em relação a esta indumentária, é que a maior parte dos
homens que estavam usando-a tinham corpos magros e/ou malhados, possuíam
pernas com formas e contornos bem definidos e, normalmente, seus membros
inferiores estavam completamente depilados. Aqui é necessário enfatizarmos que
estes corpos são símbolos culturais e efeitos de uma dinâmica de poder que atuam de
forma direta no processo de sociabilidade, já que por si só são geradores de códigos
comunicativos.
Um fato curioso que chamava a atenção de quem percebia, é que alguns
atores que estavam sem camisa e utilizavam estes estilos de shorts, faziam questão
4
de mostrar que por baixo deles usavam cuecas do estilo jockstrape , modelo este
perceptível porque eles deixavam apenas o elástico da cueca aparecer um pouco mais
acima dos shorts e não era possível ver a continuação da parte do tecido de trás da

Modelo de cueca que é aberta na parte de trás, originalmente ela foi criada para proteger os testículos e
os pênis dos atletas que praticavam esportes como o rugby, por exemplo. Com o passar do tempo esses
modelos se tornaram populares dentro do mundo gay.

907
indumentária. Assim, quem conhecia ou não tal peça, sabia que havia um interesse
por trás daquela vestimenta que por si já repassava uma mensagem. Essa situação,
ao longo de toda a passeata, foi o exemplo de objeto mais próximo que pude perceber
que passava a ideia de que uma Parada Gay contava com elementos que remetiam ao
apelo do universo erótico.
Neste tipo de exemplo, ficou bastante claro o poder de agência que esta peça
provocou sobre os outros atores naquele contexto, por mais sutil que elas pudessem
estar ali (haja visto que estes homens não estavam com as suas bundas para fora,
apenas o elástico estava a mostra), o vestuário chamava atenção de quem passasse
por perto, algumas pessoas riam, outras se assustavam, uns ficavam apenas
observando de forma curiosa, tiveram pessoas que olharam com repúdio, alguns com
segundas intenções, já em certas ocasiões surgiam comentários com quem estava ao
lado, entre outras reações.
Destarte, percebe-se que esta peça naquele contexto possuía um forte poder
de atração e provocava sensações em outros atores, quer seja pelas experiências que
eles já poderiam ter tido com a mesma, quer pelo jogo simbólico de erotização e
fetichismo que estava contido ali ou apenas voltado para um lado mais cômico e de
repúdio. O que é importante salientarmos aqui, é que tanto quem observava, como
quem também estava usando a vestimenta, foram agenciados por aquele objeto. No
caso dos atores que a vestiram, o agenciamento ocorre desde o momento em que eles
escolhem colocar a peça em um determinado evento que por si só possui um peso
voltado para uma sexualização no imaginário popular. Assim, podemos considerar que
estes atores,

Às vezes, agirá de maneira completamente calculada, expressando-


se de determinada forma somente para dar aos outros o tipo de
impressão que irá provavelmente levá-los a uma resposta específica
que lhe interessa obter. Outras vezes, o indivíduo estará agindo
calculadamente, mas terá, em termos relativos, pouca consciência de
estar procedendo assim. Ocasionalmente, irão se expressar
intencional e conscientemente de determinada forma, mas
principalmente, porque a tradição de seu grupo ou posição social
requer este tipo de expressão, e não por causa de qualquer resposta
particular (que não a de vaga aceitação ou aprovação), que
provavelmente seja despertada naqueles que foram impressionados
pela expressão. (GOFFMAN, 2009, p. 15)

Um outro exemplo que podemos observar sobre uma expressão intencional e


consciente dentro da manifestação, trata-se de duas características que
particularmente me chamaram atenção, primeiro o fato de que a maior parte dos

908
homens estavam com as sobrancelhas muito bem desenhadas de diversos modelos:
arqueadas, arredondadas, reta com risco nas pontas, reta curvada na ponta, entre
outras formas (inclusive, o interlocutor que conversei também possuía uma
sobrancelha com design arqueada); e segundo, é que eles usavam camisas com o
nome de grifes internacionais caras e conhecidas de forma bem destacada.
Deste modo, em relação a essas vestimentas, é necessário considerar que
mesmo que as peças não fossem trajes originais das marcas estrangeiras, aparecer o
nome delas nas camisas com um certo realce funcionava como um sinônimo de
chamar atenção dos outros que estavam no evento pelo valor econômico e social que
elas carregam dentro da nossa sociedade contemporânea capitalista.
Naquele momento, em meio a uma multidão de pessoas, estar com uma peça
com o logotipo grande da Louis Vuitton, Dolce & Gabanna e Gucci, por exemplo, seria
uma forma que os atores poderiam ser vistos com mais facilidade por outros indivíduos
por transmitirem a ideia de possuírem uma posição socioeconômica elevada dentro de
uma manifestação que era pública e que contava com a participação de pessoas de
diversas classes sociais.
De acordo com as vestimentas e suas relações com os sujeitos, Daniel Miller
(2013) nos diz que devemos compreender que o que está sendo visto é apenas o que
está externo aos atores sociais, logo, essas roupas nada mais são do que uma
constituição das pessoas, ou seja, esses objetos formam as suas identidades,
funcionando como a construção do ―eu‖ e não, necessariamente, condiz com as
realidades desses indivíduos.
Tudo isso chega a ser curioso, porque ao mesmo tempo que essa aparência de
um ―status econômico‖ estava presente nas camisas, em relação aos calçados dos
atores era perceptível que eles não ligavam muito em manter esse padrão
socioeconômico, pois, majoritariamente, estavam usando sandálias de borracha (estilo
havaiana, mas que em alguns casos não era da marca original), ou chinelos do tipo
slide/slider, que foi sucesso na década de 1990 e agora também é tendência no meio
desses atores.
Outrossim, o interlocutor chamou atenção para o grupo de rapazes que
estavam usando sapatos de marcas caras como: o Tênis Old School Vans, Nike,
Cavalera e chinelos de couro, em contrapartida, eles trajavam bermudas de cores mais
escuras, na altura dos joelhos, camisas ou camisetas simples, de uma única cor e
coladas em seus corpos, sem a necessidade de destacar a marca de grifes

909
estrangeiras, ficando assim, o propósito de que apenas os seus braços
musculosos chamassem atenção no evento.
Neste caso, percebe-se que para esses atores o que mais importava era que
seus corpos fossem percebidos e que as suas peças ficassem em um segundo plano,
passando o mais invisível o possível e, neste ponto retomo a discussão sobre o
conceito de humildade das coisas trabalhado por Daniel Miller (2013), que por mais
imperceptíveis e menos chamativas que elas pudessem parecer aos olhos do ator que
as usava e do outro que estava participando da Parada, essas peças acabaram
exercendo um forte agenciamento para ambas as partes. Primeiro, no momento em
que o dono da vestimenta a escolheu, pois havia uma certa intenção, consciente ou
não, em preferir peças que evidenciasse os seus braços malhados e, segundo em
quem viu esse ator com a indumentária, considerando que foi atraído justamente pelo
fato delas serem justas aos corpos destes indivíduos e chamavam atenção para o que
eles queriam que fosse visto naquele momento.
De acordo com o interlocutor, no universo gay há um ―cuidado‖ maior em
relação a escolha de suas roupas. Isso ocorre porque os homens homossexuais se
preocupam um pouco mais com a imagem que pretendem passar e com a estética de
seus corpos que eles pretendem mostrar. Em suma, casos assim podem ser
compreendidos como uma aparência estereotipada desses homens, em que
―provavelmente não são hereditárias, mas meras expressões da reação do corpo a
condições externas, sujeitas a novos ajustamentos, sob novas condições‖ (BOAS,
2010, p. 91).
Além de uma aparência padronizada do homem gay que ganha novos
ajustamentos com o passar do tempo, a cultura material também se renova e se
ressignifica dentro de novas condições e contextos em que estão inseridas. Esta
―modernização‖ das coisas foi possível observar dentro da Parada do Orgulho e
iremos discorrer mais sobre este tema nos próximos tópicos.

O que há por trás de um “simples” acessório? O mercado rosa e as “coisas


gays”
Já no entardecer durante o percurso da manifestação ao longo da Avenida
Magalhães Barata rumo ao Mercado São Brás, alguns detalhes que eram mais
minuciosos em relação aos outros, chamaram tanto a minha atenção como quem
estava ao redor, essas pessoas que passavam ficaram observando de forma curiosa e
até mesmo revelando um certo estranhamento.

910
O que mais me provocou uma certa indagação não foram os objetos em si,
ainda que entenda que naquele ambiente eles tinham um poder de agência bem forte,
haja visto a nossa admiração ao vê-los, porém mais intenso que isso, foi perceber a
forma com que eles estavam sendo usados pelos participantes, ou seja, a composição
do conjunto como um todo.
Esse foi o caso dos rapazes que possuíam características compreendidas
como ―masculinas‖ no jeito como se expressavam, estavam vestidos com roupas que
podemos designar como ―voltadas para o público masculino‖, conforme os exemplos
que foram descritos no item anterior, porém em alguns casos, estes atores estavam
com objetos e símbolos que normalmente são reconhecidos como ―pertencentes ao
universo e aos corpos femininos‖, como por exemplo, o uso dos longos cílios postiços,
as unhas grandes pintadas e as maquiagens bem produzidas (no caso da maquiagem
mais simples, o interlocutor salientou que no momento a tendência entre os gays era o
5
uso do Lip Tint ). Haviam também os atores que estavam utilizando os três itens ao
mesmo tempo, porém seguiam com peças de ―roupas masculinas‖.
Foi justamente esta composição de união de elementos referente aos ―dois
mundos‖, masculino e feminino, que faziam com que estes atores fossem percebidos
por meios das coisas das quais não estão presentes e não são comuns de serem
vistos no cotidiano social. É importante salientar também a relação que estes atores
possuíam com esses objetos, que parecia ser algo bem natural pela forma confortável
com que eles estavam se relacionando com eles.
De acordo com o interlocutor, tal composição de vestimenta com o uso desses
acessórios são mais comuns de serem vistos em locais que são especificamente para
o público LGBTI. O mesmo relatou também que ainda que tais eventos fossem
voltados para o público gay, esse tipo de atitude sempre chamava a atenção de outros
atores gays, seja de forma positiva ou não, alguns ainda julgam essas pessoas com
um olhar de reprovação e inferioridade dentro do próprio movimento.
A partir desta fala do ator sobre o julgamento que ocorre com as pessoas gays
dentro do próprio movimento, podemos fazer uma ligação com o pensamento de
Judith Butler (2002) que diz que os corpos que importam desempenham um poder
dentro da sociedade e, portanto, não podem ser vistos como algo separado das
normas que regulam e governam a materialidade baseada em um pensamento
heteronormativo, como uma prática social de repetição contínua.

5
Um tipo de batom versátil feito a base de líquido, gel e óleos.

911
Assim, para que esses corpos passem a importar de maneiras diferentes, é
necessário que haja uma ruptura com essa materialidade no que se entende enquanto
uma oposição masculino/feminino binária, assim como ocorrer a ocupação de novos
espaços, principalmente, dentro do meio em que eles costumam socializar.
Sobre a questão que relatei do estranhamento de homens utilizando coisas que
são relacionadas ao ―universo feminino‖, é necessário refletirmos que por trás de todo
este discurso há uma relação de poder imposta por uma sociedade que é construída
baseada em práticas reguladoras heterossexuais que são constantemente reforçadas
em nosso cotidiano e ao mesmo tempo excludentes, como é o caso dos estigmas que
estes atores sofrem por atribuirmos gêneros aos objetos. Diante disso, Butler nos diz
que,

a ―coerência‖ e a ―continuidade‖ da ―pessoa‖ não são características


lógicas ou analíticas da condição de pessoa, mas, ao contrário,
normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas. Em
sendo a ―identidade‖ assegurada por conceitos estabilizadores de
sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de ―pessoa‖ se veria
questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é
―incoerente‖ ou ―descontínuo‖, os quais parecem ser pessoas, mas
não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural
pelas quais as pessoas são definidas. (2003, p. 38)

Atentas a essa discussão sobre roupas sem gênero, algumas marcas já tem se
posicionado e abolido o conceito de roupas e acessórios que são feitas
exclusivamente para homens ou para mulheres, os próprios desfiles de modas como
foi o caso da 47° São Paulo Fashion Week (SPFW), trouxe para as passarelas
6
discussões sobre representatividade racial e de gênero .
A partir dessa mudança do olhar mercadológico sobre a necessidade de se
repensar a moda a partir dos debates sobre as questões de gênero e também a
atenção empresarial sobre o consumo das pessoas pertencentes ao movimento,
torna-se necessário produzir pesquisas que venham compreender quem são estes
consumidores que cada vez mais ganham espaço e poder de compra, porém mais que
isso, é fundamental entender que,

Embora o Estado e os movimentos sociais sejam as esferas a partir


das quais tradicionalmente pensamos o fazer político, é preciso
lembrar que as esferas do mercado e do consumo também
constituem cenários públicos em que nossa capacidade de agência e

6Ver mais em ―SPFW aposta em marcas sustentáveis e sem gênero‖. Disponível em:
https://vejasp.abril.com.br/blog/liquidacao-cia/spfw-2019-marcas-sustentaveis-sem-genero/
Acesso em: 18 de novembro de 2019.

912
ação política é exercida, independentemente de aderirmos ou não a
noções como ―sociedade do consumo‖. Nessas esferas, também se
negociam direitos, disputam-se significados, enfrentam-se ou
reforçam-se desigualdades. (FACCHINI; FRANÇA; BRAZ, 2014, p.
123)

Também é importante atentarmos ao fato que as empresas têm percebido que


7 8
o pink money têm movimentado bastante o mercado nos últimos tempos e com isso
gerado um aumento de produtos e campanhas publicitárias voltadas para
determinados nichos. Logo, é fundamental considerar que ―o discurso publicitário não
uma prática atemporal. Como todo gênero discursivo, a publicidade possui uma
história e se inscreve nas mutações de um corpus econômico e social.‖ (RIBEIRO,
2013, p. 344).
Fazendo uma conexão com isso, foi interessante observar dentro da Parada do
Orgulho como os acessórios de décadas passadas retornaram e viraram tendência
novamente, um dos exemplos que o interlocutor mencionou o qual ele conseguia
reconhecer um outro homem gay, foi por causa do uso das pochetes que foram
fenômeno na década de 1990. Dentro do evento, por exemplo, era possível identificá -
las nos mais variados tipos e cores. Uma observação curiosa a ser feita, é que
diferente dos anos 90 que elas eram utilizadas nas cinturas das pessoas, agora elas
ficam de forma transversal no tórax dos rapazes.
De acordo com Rafael, o uso desse acessório é indispensável na composição
da vestimenta desses atores contemporâneos, pois além de ser algo que está na
moda, é também prático pois eles conseguem levar tudo o precisam dentro dela,
como: celular, carregador, carteira com dinheiro e documentos, chaves, maquiagem,
lenço, perfume, cigarros, entre outros materiais que, segundo o interlocutor, são
importantes ter em mãos quando se está fora de casa; o mesmo continuou dizendo
que estas pochetes são fundamentais, pois objetos que antes ficavam em seus bolsos
não são mais perdidos de forma fácil enquanto dançam na balada, assim também
como não são mais furtados, porque como elas ficam transpassadas em frente aos
seus peitos evita que outras pessoas levem seus pertences sem que percebam.

O ―dinheiro rosa‖ descreve o poder de compra das pessoas pertencentes ao movimento


LGBTI que consomem produtos e serviços de marcas voltados especificamente para o grupo.
Ver mais na matéria ―Marcas investem no mercado LGBTI, que movimentou US$ 3,6 trilhões
em 2018‖. Disponível no portal do jornal O Globo: https://oglobo.globo.com/economia/marcas-
investem-no-mercado-lgbti-que-movimentou-us-36-t rilhoes-em-2018-23757617. Acesso em: 08
de novembro de 2019. E ainda, ―Negócios voltados para o público gay fazem sucesso e
dinheiro‖. Disponível no site G1 Economia: https://g1.globo.com/economia/pme/pequenas-
empresas-grandes-negocios/noticia/2019/01/06/ negocios-voltados-para-o-publico-gay-fazem-
sucesso-e-dinheiro.ghtml. Acesso em: 08 de novembro de 2019.

913
Considerando que trata-se de um produto unissex, perguntei para o interlocutor
se os homens gays tinham uma preferência por cor ou modelo dessas pochetes que
serviria como um código para que eles se reconhecessem enquanto pares, o mesmo
respondeu que não existiam modelos ou cores exatas, mas que eles costumavam usar
as coloridas que melhor combinasse com as suas roupas.
Diante do depoimento dele, percebo que esse acessório funciona como uma
extensão das suas vestimentas e dos seus corpos, uma vez que eles as usam
conforme o tom de suas roupas e coladas ao seus peitos, neste caso também
podemos perceber um exemplo de agenciamento das coisas sobre outras coisas.
Assim, compreendemos que estes objetos e os seres humanos não podem ser
estudados separadamente, porque são construídos de forma mútua e não devem ser
considerados como algo superficial, uma vez que eles exercem em ―nós o que
pensamos ser‖ (MILLER, 2013, p. 22-23). Sobre estes materiais que voltam a compor
o armário do homem gay e os ajuda no processo de pertencimento dos pares, é
importante analisar como eles tem se ressignificado na contemporaneidade,
considerando a própria intencionalidade que carregam, os seus valores e memórias.

O “picumã” do poder
Procedendo a discussão sobre estilos que são referentes a décadas passadas
e viram tendências nos dias de hoje, nesta última seção abordarei uma característica
que está presente na vida da maioria dos homens gays e que talvez possa ser um dos
símbolos mais importantes dentro de toda a composição da aparência deste ator,
9
trata-se do seu cabelo, também conhecido como ―picumã‖ , segundo o interlocutor.
A forma que compreendi enquanto fazia a pesquisa dentro do evento, é que a
ligação e a relação daquelas pessoas com os seus cabelos era bastante forte,
passava a impressão de algo relacionado a um dispositivo de poder que se misturava
em meio às jogadas de cabelo que ganhavam vida e, aparentemente, faziam parte dos
passos das coreografias dos rapazes que dançavam com as jogadas de cabeça para
um lado e para o outro, como também ajudava na hora da conquista por meio da leve
―passada de mão‖ nos fios de forma sutil, mas que por trás havia uma certa
insinuação. Assim, podemos relacionar esses cabelos como uma

Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo


sob sua invencível unidade, mas porque se produz a cada instante,
em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e

9 Significa cabelo na linguagem utilizada por gays.

914
outro. O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim
porque provém de todos os lugares. (FOUCAULT, 1988, p. 89)

Segundo Rafael, os cortes de cabelo geralmente são diversificados, porém


existe um estilo que é quase como um padrão do homem gay que são os cabelos
raspados apenas nas laterais e a franja na frente fica grande. Este modelo é
conhecido como undercut e possui influência desde os tempos de rockabilly, dos anos
de 1950.
Por meio deste corte, é possível que os atores utilizem-o de diversas formas,
como: franja para o lado, por trás das orelhas, estilo topete, amarrados para cima,
entre outros. Conforme foi possível observar durante a manifestação, normalmente
este estilo é utilizado por pessoas que possuíam cabelos bem lisos.
Um outro exemplo que também percebi na diferença do uso dos cabelos pelos
atores, é que a maioria dos homens mais malhados, aqueles que vão para desfilar
seus corpos bombados conforme descrevi nos tópicos anteriores, utilizavam um estilo
degradê, que lembra um undercut porém sem a franja longa, e com a diferença que o
corte funciona como uma sequência de tons contínuos limitados ou não. Uma
singularidade é que os rapazes que utilizavam este corte, normalmente tinham barbas
desenhadas, diferentemente dos que usavam o outro estilo que possuíam o rosto liso,
sem pelos.
Em ambos os casos, naquele ambiente os modelos de cabelos assumiam um
poder que estava presente de forma sutil naqueles corpos, mas que provocavam
agenciamentos diferentes tanto em quem estava usando um certo modelo, como para
o outro, chamando atenção seja em meio as coreografias de dança, como também na
passada de mão entre os fios.

Considerações Finais
Em meio a agitação, o calor, o cheiro forte de fumaça de cigarro, alguns
momentos de sufoco e corpos suados de todos os estilos se esbarrando, a Parada do
Orgulho LGBTI é um exemplo de campo antropológico curioso e ao mesmo tempo
desafiador, haja visto que naquele contexto é possível encontrar uma diversidade de
atores que confraternizam juntos e em prol de uma mesma causa.
Observar a forma com que eles interagem e se reconhecem enquanto pares de
um mesmo grupo social por meio dos objetos e com os objetos, por mais difícil e
complexo que possa parecer em um primeiro momento, aos poucos vamos nos
familiarizando com este mundo que está presente no cotidiano do belenense e ao

915
mesmo tempo nos desconstruindo de preconceitos que ainda fazem parte de uma
sociedade que possui regras heteronormativas como práticas sociais a serem
seguidas.
Diante de tudo o que foi visto, é interessante entender como estes atores se
reconhecem enquanto gays por meio de objetos que muitas vezes passam
despercebidos dentro do dia a dia dos indivíduos que residem na capital paraense
(principalmente, para quem não faz parte do universo LGBTI). Porém, o mesmo não
pode ser dito no caso dos homens que se consideram homossexuais, pois ficou claro
no decorrer da conversa com o interlocutor e, partindo do início da concentração
quando o mesmo diz para o amigo que eles sempre sabem quando outros rapazes
são ou não gays, que tal reconhecimento parte por conta das suas experiências com
outros atores pertencentes à sigla.
A partir desta fala, para entender melhor esse caso parti do conceito de
agência trabalhado por Alfred Gell (2005), porém por meio de uma perspectiva no que
tange o entendimento de cultura material que são, em primeira instância, dispositivos
de poder que atuam de forma direta no processo de encantamento e sociabilidade
entre os atores. Assim, busquei relacionar tudo o que tinha observado dentro de
campo, as minhas afetações e estranhamentos, para que fosse possível descrever de
forma mais verídica possível o cenário do principal evento do movimento social na
cidade, junto ao olhar e a experiência que o interlocutor me proporcionou por meio de
suas contribuições que foram fundamentais para um melhor entendimento sobre o
campo e os conceitos que trabalho.
Importante enfatizar que este é um primeiro estudo que conta com dados
preliminares de uma pesquisa que está sendo desenvolvida dentro do universo do
homem gay belenense, porém a partir de outros espaços que envolve a relação da
cultura material e o processo de sociabilidade por meio do conceito de agência.

Referências Bibliográficas

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iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, p.
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sexualidade, sociabilidade e mercado: olhares antropológicos contemporâneos.
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SIMMEL, Georg. Sociologia(organizado por E. de Moraes Filho). São Paulo: Ática,


1983.

917
MULHER-ARTESÃ DO MIRITI: ENTRE A ESFERA PÚBLICA E
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA

https://doi.org/10.29327/527231.5-61
Lídia Sarges Lobato/UFPA
Joyce Otânia Seixas Ribeiro/UFPA

Resumo: O presente trabalho resulta de uma experiência etnográfica, que se estendeu por
quatro meses, em um dos ateliês de produção de brinquedo de miriti, na cidade de
Abaetetuba/Pa. Nosso objetivo para o momento é tecer uma reflexão acerca da mulher-
artesã do brinquedo de miriti, emaranhada pelas relações de gênero e a produção da
diferença. Embasadas nos aportes teóricos dos Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero,
estamos sendo desafiadas a pensarmos tais questões. A etnografia foi a metodologia
escolhida. Os resultados foram: temos uma mulher que cruza as fronteiras do espaço
privado e da esfera pública, em uma trama de aceitação, negociação e resistência; ao entrar
na bicentenária tradição do brinquedo de miriti, a mesma começa a borrá-la, reinventado
seus significados, diluindo binarismo, produzindo casais homoafetivos, tensionando a
heterossexualidade compulsória.

Palavras-chave: Mulher. Gênero. Sexualidade. Brinquedo de miriti. Cultura.

Abstract: The present work results from an ethnographic experience, which lasted for four
months, in one of miriti toy production studios, in Abaetetuba / Pa. Our goal for the moment is
to weave a reflection on the artisan woman of the miriti toy, entangled by gender relations
and the production of difference. Based on the theoretical contributions of Cultural Studies
and Gender Studies, we are being challenged to think about such issues. Ethnography was
the chosen methodology. The results were: we have a woman who crosses the boundaries
of the private space and the public sphere, in a web of acceptance, negotiation and
resistance; as it enters the bicentennial tradition of miriti's toy, it begins to blur it, reinvented
its meanings, diluting binaryism, producing homosexual couples, tensing compulsory
heterosexuality.
Keywords: Woman. Genre. Sexuality. Miriti's toy. Culture.

918
1. Introdução

O presente trabalho consiste em apresentar resultados de pesquisa, desenvolvida no


Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica. Trata-se de uma
experiência etnográfica que se estendeu por quatro meses em um ateliê de brinquedo de
miriti, na cidade de Abaetetuba, no Estado do Pará. Naquela ocasião, a investigação se
ateve em interpretar os processos de subjetivação de uma mulher que se tornou artesã-
chefe de um ateliê, tendo as experiências na esfera pública e no currículo como eventos que
a constituiram. Assim, o objetivo para o momento é tecer uma reflexão acerca da mulher-
artesã do miriti, emaranhada pelas relações de gênero e a produção da diferença por meio
do artefato cultural, brinquedo de miriti.
A partir dos aportes teóricos dos Estudos Culturais, dos Estudos de Gênero, estamos
sendo desafiadas a pensarmos a cultura e as relações de gênero de outras maneiras, em
um movimento de bricolagem, que permite criar/recriar, descartar estratégias e reconsiderar
outras.
A decisão metodológica foi pela etnografia, já que a noção de cultura de James
Clifford tem semelhanças com a dos Estudos Culturais. Clifford (2008, p. 28) argumenta que
―[...] a cultura era pensada como um conjunto de comportamentos, cerimônias e gestos
característicos‖. Desse modo, o conceito de cultura passou por várias transformações e para
cada contexto sócio histórico e cultural grandes estudiosos se ocuparam em criar e
readaptar conceitos que pudessem abranger toda sua significância. No processo de feitura
da pesquisa, o campo assumiu grande relevância no que se refere a automodelagem da
pesquisa.
A etnografia ― [...] se configura na verdade como um campo articulado pelas tensões,
ambiguidades e indeterminações próprias do sistema de relações do qual faz parte‖
(CLIFFORD, 1998, p. 10), além de está imersa nas experiências em meio às relações de
poder existentes entre o etnógrafo/pesquisador e seus interlocutores/as.
Neste sentido, Clifford (2016) afirma que o texto embalsama o acontecimento na
medida em que expande seu significado; acontecimentos outros fluem durante a produção
do brinquedo de miriti, os dados culturais param de passar suavemente da performance oral
para a escrita; agora, os dados também se movem de texto para texto, a inscrição
transforma-se em transcrição e tanto interlocutores quanto o pesquisador são leitores e co-
autores de uma invenção cultural. Fazer etnografia é saber experimentar sensações outras
inimagináveis.

919
2. O ateliê Rodrigues Pacheco

Figura 1 – Fachada do Ateliê Rodrigues Pacheco.

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2017.

Na chegada, avistei uma casa rústica, levemente tombada para o lado esquerdo,
com paredes de madeira bem deterioradas, telhas levemente afastadas uma das outras.
No inverno amazônico, a chuva é uma ameaça e no verão, o sol, atravessa as janelas e as
brechas das tábuas, aquecendo as roupas e passando para o corpo. A casa tem uma
grande calçada de cimento recém construída, e uma porta que fica sempre entreaberta. Na
fachada da casa está colado um cartaz apagado contra o trabalho infantil. O ateliê
Rodrigues Pacheco fica no Bairro do São João, no município de Abaetetuba e funciona na
antiga casa de Dona Pacheco.
O ateliê de brinquedo de miriti, assim denominado ao longo dos anos, é um espaço
de criação, produção e resistência dos brinquedos. Na grande maioria, os ateliês
apresentam características bastantes marcantes relacionadas a localização e
espacialização: geralmente são casas antigas de madeiras ou o que restou delas,
transformadas em ateliê, local de produção do artesanato, situadas em bairros periféricos,
nas ilhas e estradas; alguns ateliês como o de Dona Pacheco estão localizados na faixa da
rua, mas a maioria estão localizados nos fundos das casas.
A aparência rústica, com pouco conforto acomoda artesãos e artesãs, jovens e
crianças na produção do brinquedo; nas paredes as imagens dos santos e santas
simbolizando a fé e a devoção católica; as sacolas penduradas nas paredes guardam peças
de brinquedos que a qualquer momento podem serem acionadas; embalagens de margarina
transformam-se em recipientes para a mistura das tintas; o rádio ou o televisor os mantém
conectados ao mundo, e atualizados.

920
A profusão de cores dimensiona o ateliê como um arco-íris. Cotidianamente,
buscando atingir o tom desejado, as artesãs misturam bisnagas com cores variadas e tinta
branca, e experimentam as misturas até alcançar a tonalidade considerada perfeita, com
cores que vibram, iluminam, alegram o lugar e a vida e, sem querer marcam, também,
definitivamente as roupas daqueles que se aproximam da bancada dos brinquedos.
A representação dos brinquedos de miriti está para além dos modos de vida caboclo,
do Pará Amazônico e de suas encantarias que fascinam e encantam o imaginário ribeirinho,
essa energia que consome a todos e todas. O que estamos querendo dizer é que além de
tudo que durante todos estes anos já foi dito a respeito dos brinquedos de miriti, por homens
e mulheres, queremos ressaltar que tais brinquedos também exprimem as normas e
condutas tidas consideravelmente corretas, que compreendem a orientação sexual dos
gêneros.

Figura 2 – Casal de namorados.

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2017.

O casal de namorados é um dos temas preferidos entre as muitas peças de miriti,


expressa traços de um casal aceito socialmente, „apaixonados‟ trocando carícias. Porém, há
uma linguagem que naturalmente cria uma ideia para quem vê, como a forma adequada de

921
se vestir e comportar-se para cada corpo, com minuciosos detalhes: às mulheres com
cabelos cumpridos, a saia com estampa floral acima dos joelhos, o lugar das mãos; aos
homens os cabelos curtos, o uso de calça e camisa. Os brinquedos de miriti consistem em
grandes inspirações para aqueles que buscam aventurar-se na análise cultural, como uma
rica fonte de conhecimentos e aprendizagens.
Abordando mais especificamente o processo de feitura do brinquedo, Dona Pacheco
uma mulher-artesã-chefe corta, modela, monta, lixa, aplica massa, pinta e embala. Diante
das atividades, seu Antônio companheiro da artesã realiza boa parte das atividades, porém,
não pinta.
O Antônio não pinta (Dona Pacheco, 2017).

Não, é com ela [a pintura], não gosto de me sujar (Antônio, 2019).

A tradição bicentenária do brinquedo de miriti foi constituindo-se de normas,


condutas e valores. Talvez um velho discurso explicado por Perrot (1988, p. 177) poderia
ajudar-nos a compreendermos, pois, quando afirma que: ―[...] aos homens, o cérebro (muito
mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às
mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos‖. Estas marcas concedem ao homem a
capacidade de criar os brinquedos, que toma para si o trabalho considerado bruto, por seus
traços de masculinidade, como força, coragem e destreza; às mulheres, o coração, a
sensibilidade, o trabalho leve, a feminilidade, e, assim, a pintura fica com elas, por sua
suposta delicadeza, pois tem mãos de fadas.
Para Colling (2015, p.24), na heteronormatividade todas as pessoas ―[...] devem
organizar suas vidas conforme o modelo heterossexual, tenham elas práticas sexuais
heterossexuais ou não‖, desenhando um modelo político que organiza as vidas. Essa lógica
também está presente na ordem dos ateliês, instaurando regime de controle e vigilância da
conduta sexual dos gêneros.
Em Perrot (1988, p. 178),

O século XIX acentua a racionalidade harmoniosa dessa divisão sexual.


Cada sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu
lugar quase predeterminados, até em seus detalhes. Paralelamente, existe
um discurso dos ofícios que faz a linguagem do trabalho uma das mais
sexuadas possíveis. „Ao homem, a madeira e os metais. À mulher, a família
e os tecidos‟ (Grifos da autora).

De certa forma a economia política reforça essa visão distinguindo produção,


reprodução e consumo. O homem assume a produção, a mulher o consumo e ambos a
reprodução (filhos). E quem disse que esta estrutura não pode mudar, e ser invertida? Será
que temos uma vocação natural para os sexos?

922
Ninguém nasce mulher, tornar-se mulher é uma afirmação clássica de Simone de
Beauvoir, que muitas pensadoras remetem ao gênero e que, de forma tímida, mas com um
pouco de ousadia, fazemos um movimento de aproximação para a tradição do brinquedo de
miriti, dizendo que as mulheres não nasceram para as tarefas leves, como a delicadeza dos
pincéis, elas tornaram-se mulheres-artesãs para o trabalho leve, bem como os homens
tornaram-se artesãos-chefe para o trabalho bruto.
Hoje, com seu carisma e desenvoltura Dona Pacheco, mulher-artesã recepciona
turistas e pesquisadores que vão à sua procura. Nas peças modeladas por ela, expressa a
sensibilidade e a representação da realidade a qual faz parte, realizando o trabalho bruto, o
trabalho leve e o governo do ateliê. Sempre arrumada, com esmaltes nas unhas e tintura no
cabelo, a artesã borra a tradição do brinquedo de miriti, negociando e contestando a tradição
bicentenária do brinquedo de miriti, transitando na esfera pública e no espaço privado,
comprovando que ―[...] a cultura é contestada, temporal e emergente‖ (CLIFFORD, 2016, p.
53).
A experiência do contato e o movimento, o trânsito pela cidade, produziu a artesã. A
princípio, em sua primeira viagem a Belém, sua função era de vendedora de brinquedo de
miriti no Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Bastou uma viagem acompanhando o marido
nas vendas, para que ela se apaixonasse por toda aquela movimentação, agitação, profusão
de vozes, cores e sabores, despertando o desejo de produzir seus próprios brinquedos.

De certo que foram muitas tentativas, ferimentos nas mãos, até que as peças
atingissem o formato esperado. Com o passar dos anos, sua técnica foi se aprimorando,
com a participação em cursos de aperfeiçoamento; com os estudos na bagagem, aprendeu
a negociar e a transitar na esfera pública. Por mérito de suas habilidades com as mãos, a
artesã tornou-se mestre em miriti por inovação e criatividade, diferentemente do que foi
1
constatado em pesquisa realizada nos anos 2013-15 , de que para produzir um brinquedo
de miriti era necessário ser homem e ter o dom ou que o talento precisaria necessariamente
estar no sangue, como uma tradição de família; a artesã rompe com todos esses discursos.
A autonomia da artesã resultou também das lutas que foram travadas ao longo da
história das mulheres. Segundo Louro (1997), as manifestações contra a discriminação
feminina adquiriram visibilidade e expressividade maior durante o chamado ―sufragismo‖, ou
seja, o movimento voltado para estender o direito do voto às mulheres. O sufragismo passou
a ser considerado a primeira onda do feminismo, e naquele contexto ―[...] seus objetivos
mais imediatos (eventualmente acrescida de reivindicações ligadas à organização da
família, oportunidade de estudar ou acesso a determinadas profissões) sem dúvida estavam

Pesquisa intitulada A tradução da tradição do brinquedo de miriti em


Abaetetuba/Prodoutor/UFPA, da qual Lídia Sarges foi bolsista de IC.

923
ligados aos interesses das mulheres brancas [...]‖ (LOURO, 1997, p. 15). Mas, de qualquer
forma, refletem em todas as mulheres de classes, etnias e gerações diferentes. Já na
segunda onda há um avanço e as preocupações que giravam em torno de questões sociais
e políticas, agora passam ao âmbito das construções em nível teórico, deslocando a pauta
para a ampliação de opções de escolarização.
De acordo com Louro (1997, p. 17) ―[...] é preciso notar que essa invisibilidade,
produzida a partir de múltiplos discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo
doméstico, como o ―verdadeiro‖ universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompido
por algumas mulheres‖. Del Priore (2001) argumenta que desde os primórdios, a luta pela
própria sobrevivência ou a dos seus, foi a marca das nossas ancestrais. A dupla jornada de
trabalho existiu e continua existindo, o trabalho no campo ou na cidade, em casa ou nas
ruas, acrescidos das muitas tarefas, fundamentais para a estabilidade da família e os
afazeres domésticos. A mulher é ―[...] obrigada a utilizar estratégias complicadas para dar
conta do que sociólogos chamam de ―dobradinha infernal‖ (DEL PRIORE, 2001, p. 101),
para conquistar sucesso na profissão, tendo que dar conta do trabalho doméstico, da
educação dos filhos e da atenção às demandas do companheiro.
Del Priore (2001) ressalta que a negociação, a mediação como modo de resolução
dos conflitos, são preferíveis ao autoritarismo, até nas práticas de certos dirigentes políticos.
A cooperação e a solidariedade, a assistência ao outro, esvaziam o espírito de competição e
o egoísmo. ―As mulheres reivindicam não mais serem reduzidas a uma só dimensão: elas
querem ser ao mesmo tempo mães, trabalhadoras, cidadãs e sujeitos de seu lazer e prazer.
E isso tudo com o estilo próprio com que cada uma constrói suas relações com o homem‖
(DEL PRIORE, 2001, p. 88). Mediante negociações, a artesã consegue administrar e
transitar entre o público e privado.

3. Dona Pacheco e a produção da diferença

Ao entrar na tradição do brinquedo de miriti, Dona Pacheco começa a borrá-la


reinventando seus significados, não apenas na organização do ateliê, assumindo a função
de artesã-chefe, mas produzindo novos temas e significados, a partir da diferença, como o
casal de namorados-dançarinos homoafetivos. Disse ela:

Já fiz e faço casal gay, casal negro; tem cada moreno que casa com cada
mulher brancona; faço brinquedo deficiente, sem braço; é um jeito de
acabar com o preconceito. Uma vez uma mulher perguntou porque eu fazia
esses brinquedos? Eu respondi porque eles já sofrem muito preconceitos
(Dona Pacheco, 2017).

Para a artesã essa é uma forma de amenizar os preconceitos que estão enraizados

924
em nossa sociedade. A sensibilidade e perspicácia de Dona Pacheco para observar o real, o
mundo a sua volta salta aos olhos; segundo ela, a maioria desses casais são personagens
representados de sua própria realidade cultural, amigos, vizinhos, dentre tantas outras
formas de ser, de viver a diferença.

Figura 3 – Casal heterossexual e casais homoafetivos.

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2017.

Na figura acima é possível observarmos a representação de três casais: o primeiro


um casal gay, branco; o segundo, um casal negro e heterossexual; e o terceiro um casal
lésbico e interracial. A produção da diferença está presente, para cada casal a estética
diferencia-se.
Neste processo, entre o público e o privado Dona Pacheco é uma referência,
trazendo em sua arte temas considerados polêmicos, que perturbam seus colegas e o
próprio público, do porquê fazer tais brinquedos. A artesã ao entrar nesta tradição de certa
forma a modifica, reinventando-a.
Até recentemente, apenas os casais de namorados/dançarinos que representam a
heterossexualidade circulam com tranquilidade em meio ao público. A comercialização do
brinquedo movimentava e movimenta a economia, e muitos artesãos e artesãs dependem
dessa renda; com isso, não se arriscam a produzir tais brinquedos, evitando a antipatia do
público, por questões econômicas, religiosas e culturais. E principalmente, por este artefato
estar diretamente vinculado ao Círio de Nazaré, uma festividade religiosa. Os discursos
recorrentes aos questionamentos sobre tais brinquedos são ―Deus criou o homem e a

925
mulher‖, um discurso ligado a multiplicação e a continuidade da humanidade.
Então, a cultura de gênero hegemônica produziu um padrão aceitável pela
sociedade, o casal heterossexual e branco. Os brinquedos de miriti representam a fauna, a
flora, o trabalho, o modo de vida ribeirinho, as palafitas da região perfeitamente. Mas quando
se trata da estética do homem e da mulher cabocla, ribeirinha, esta é ignorada, em favor do
casal europeu, branco e com as madeixas louras, ocultando os casais homoafetivos, negros,
nativos, interraciais da história.
A heterossexualidade como norma é materializada nos brinquedos de miriti com os
casais de namorados/dançarinos, configurando uma heterossexualidade compulsória.

A heterossexualidade compulsória consiste na exigência de que todos os


sujeitos sejam heterossexuais, isto é, se apresenta como a única forma
considerada normal de vivência de sexualidade. Essa ordem social/sexual
se estrutura através do dualismo heterossexualidade versus
homossexualidade, sendo que a heterossexualidade é naturalizada e se
torna compulsória (COLLING, 2015, p. 24).

Ou seja, a heterossexualidade é vista como o padrão aceitável, o princípio da vida


humana, que por algum motivo, uns se desviam e a homossexualidade é considerada
anormal, desajustados, abjetos. Que critérios são utilizados para distinguir o normal ou
anormal? Naturalizamos a heterossexualidade ou a sexualidade? O que torna um corpo
desajustado? Precisamos compreendermos que a ―heterossexualidade e a
homossexualidade são considerados formas possíveis de vivência da sexualidade, ao
menos em tese, em muitos lugares do planeta (não em todos)‖ (COLLING, 2015, p. 24).
Na heteronormatividade a vida das pessoas deve ser organizada conforme o modelo
heterossexual. Colling (2015, p. 25) escreve:

Se na heterossexualidade compulsória todas as pessoas que não são


heterossexuais são consideradas doentes e precisam ser explicadas,
estudadas e tratadas, na heteronormatividade elas tornam-se coerentes
desde que se identifiquem com a heterossexualidade como modelo, isto é,
mantenham a linearidade entre sexo e gênero: as pessoas com genitálias
masculinas devem se comportar como machos, másculos, e as com
genitálias feminina devem ser femininas, delicadas.

Para Junqueira (2015), normais e anormais estão ambos situados no interior do


critério que estabelece a separação, a norma. No entanto a norma precisa ser naturalizada,
com os processos disciplinares voltados para os sujeitos, com isso, a heterossexualidade
está na ordem do currículo escolar, presente em seus espaços, normas, ritos e rotinas.
As relações de gênero estão espalhadas no interior dos ateliês e são parte da cultura
de gênero hegemônica. A cultura de gênero é reproduzida e transmitida por homens e
mulheres por meio de suas práticas cotidianas, compõe os cenários da história da
humanidade há muito tempo. A cultura de gênero remonta a Grécia clássica, chegando ao

926
século XXI com homens e mulheres ―[...] imersos em uma cultura de gênero conflitante e
paradoxal: por um lado a normatividade tradicional; por outro, traços de uma outra cultura de
gênero que ocasiona uma fissura profunda na primeira‖, o que acaba por influenciar
artesãos e artesãs em suas práticas cotidianas e também no próprio brinquedo de miriti
(RIBEIRO, 2010, p.125). A normatividade é diferente para homens e mulheres. Gênero e
sexualidade estão sendo bastante acionadas sob diferentes perspectivas teórico-
metodológicas, mas nem sempre foi assim. A partir da segunda metade do século XX,
gênero e sexualidade começam a aparecer, oriundas das transformações ocorridas na
sociedade, mais precisamente na década de 60, a partir de movimentos, manifestações,
contestações organizadas por grupos feministas, movimento negro, e coletivos gays. O
movimento feminista ganhou força, avançando em várias partes do mundo, desembocando
na chamada segunda onda, no final dos anos 60; no Brasil eclodiu já na década de 80 nas
manifestações contra a ditadura militar, contudo, com algumas modificações.
Os corpos são constituídos socialmente, com as marcas de gêneros masculino ou
feminino. Explicando as diferenças, Scott (1995, p. 86) argumenta que o ―[...] gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e [...] é uma forma primária de dar significado às relações de poder‖; em outras
palavras, gênero é uma forma de ser homem e de ser mulher produzido em sociedade.

Figura 4 – Casal homoafetivo no Miritifest.

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2018.

927
Neste casal homoafetivo inspirado dentro do modelo aceitável pela
heteronormatividade de gênero, vemos os sujeitos vestidos conforme o gênero masculino,
com o cuidado de manter certa distância um do outro, para não haver constrangimento do
público, de classe média, sem a sugestão de beijo ou qualquer troca de carícias que possam
despertar, insinuar a sexualidade; o cachorro deixa claro que não há crianças entre os dois.

Quando apresentamos em algumas passagens do texto que a tradição está se


reinventando com novos elementos, estamos nos referindo a esses novos temas inseridos
na tradição, mesmo que de uma maneira um tanto tímida, acreditamos que já seja um
avanço.
Romper as fronteiras culturais não é tarefa fácil, principalmente para um sujeito que
sai de sua posição de costume, para assumir outra, de inovação, como o fato de a tradição
do brinquedo de miriti estar sendo reinventada por esses novos elementos, temas, estética
que estão sendo incorporados aos brinquedos, trazendo as marcas, traços de uma mulher
como potência.

3.1. Gênero-sexo-corpo: entretecendo relações

Gênero é um problema ou produz muitos problemas. A busca por sua definição e


genealogia é objeto de análise de vários estudiosos e grupos dentre os quais, as feministas.
Um termo cercado de críticas, efeitos de práticas e discursos de instituições, com pontos de
intercessões múltiplos e difusos.
Gênero é constituído nos diferentes contextos históricos e nem sempre de forma
coerente, até porque se estabelece nas interseções raciais, de classe, étnicas, sexuais, que
de maneira discursiva constitui a noção de gênero implicada com as questões políticas e
culturais envolvidas num movimento incessante que produz, mantém e reproduz. Por isso
revela-se um problema. Problemas são inevitáveis, principalmente quando se entrelaça com
outras demandas, neste caso, sexo. Contudo, a tarefa aqui é descobrir a melhor maneira de
criá-los, a melhor maneira de tê-los (BUTLER, 2003). Sexo é definido em termos biológicos,
cromossômico, hormonal pelos discursos científicos e, por sua vez, o gênero é culturalmente
construído, porém, não se limita ao resultado do sexo, muito menos fixo quanto ao sexo.
Gênero é como interpretação múltipla do sexo, ―[...] gênero são os significados culturais
assumidos pelo corpo sexuado‖ (BUTLER, 2003, p. 24).
Pensando sobre sexo, é aceitável o surgimento de inquietações outras. E se os
vários discursos sobre o sexo foram também inventados a fim de atender os interesses de
grupos políticos, hegemônico? E se o sexo tido como um dado natural fosse uma construção
cultural? Quanto a isso, Butler (2003) salienta que o caráter imutável do sexo é

928
contestável, devido a própria construção do que é chamado ―sexo‖ seja tão culturalmente
construído quanto o gênero; a rigor, porém, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero,
dentro de tal forma que a distinção entre sexo/gênero, gênero/sexo revela-se absolutamente
nenhuma.
O gênero passará a não ser meramente concebido como inscrição cultural de um
sexo; noutras palavras, gênero não estará para a cultura como o sexo para a natureza, e
sim num domínio pré-discursivo que antecede a cultura. Seria este um discurso a priori
histórico, que antecedesse a própria cultura?

[...] a produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como


efeito do aparato de construção cultural que designamos por gênero. Assim,
como dever a noção de gênero ser reformulada, para abranger as relações
de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo e ocultam [...]
(BUTLER, 2003, p. 25 a 26).

Gênero é uma interpretação cultural do sexo e constituído culturalmente, Butler


(2003). Pode as pessoas possuir um gênero? Quantas vezes somos levados a assumir
determinado gênero, dar respostas a questionários e entrevistas de emprego: Qual é o seu
gênero? E os hermafroditas o que respondem? A sociedade cobra dados exatos e não
pontos „fora da curva‟ (situações que fogem de sua conformidade, da norma). Todavia o
anúncio ―é uma menina‖ ou ―é um menino‖ feito por um profissional diante da tela de um
aparelho de ultrassonografia morfológica, põe em marcha o processo de fazer deste ser um
corpo feminino ou masculino, um ato de caráter performativo, que vai inaugurando uma
sequência de outros atos no intuito de constituir alguém como um sujeito de sexo e gênero
(LOURO, 2016).
Se o sexo ou gênero são fixos e livres, e se o discurso estabelece limites do cultural
hegemônico, como pode um corpo vir a existir? Butler (2003), argumenta que embora os
cientistas sociais se refiram ao gênero como um fator ou dimensão da análise, e também
aplicado a pessoas reais como uma „marca‟ de diferenças biológica, linguística e cultural,
sendo assim, o gênero pode ser compreendido por um corpo diferenciando-se sexualmente,
um significado que só existe em relação ao outro significado oposto, o corpo passa a existir
em relação ao outro.

Como ponto de partida de uma teoria social do gênero, entretanto, a


concepção universal da pessoa é colocada pelas posições históricas ou
antropológicas que compreendem o gênero como uma relação entre
sujeitos socialmente construídos, em contextos especificáveis. Este ponto
de vista relacional ou contextual sugere que o que a pessoa ―é‖ – e a rigor,
o que o gênero ―é‖ – refere-se sempre às relações construídas em que ela é
determinada (BUTLER, 2003, p. 29).

Gênero é relacional, instável, contextual e converge nas relações culturais e

929
históricas. Em outros termos ―[...] gênero é uma complexidade cuja totalidade é
permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura
considerada‖ (BUTLER, 2003, p. 37). A noção de gênero é em muitas ocasiões
corroboradas pelo discurso popular tanto no caso de homens quanto de mulheres a uma
suposta noção de gênero, o que leva a certa conclusão de que a pessoa pertence a um
determinado gênero em virtude de seu sexo, devendo consequentemente atender aos
desejos sexuais notavelmente do sexo, uma estrutura aparentemente e moralmente
coerente, correta. Uma naturalização tão fortemente estabelecida e poucas vezes criticada,
mas que não é impossível de contestar e alterar.
Butler (2003) destaca que essa coerência entre dos gêneros homem ou mulher,
exige uma heterossexualidade estável e opcional, exige e produz a um só tempo, a
univocidade, ou seja, única correspondência de cada um dos termos marcados pelo gênero
que constituem o limite das possibilidades do sistema binário, numa relação entre sexo,
gênero e desejo. Por exemplo, uma fêmea, do gênero feminino que tivesse tão somente o
desejo direcionado ao oposto masculino, como se o desejo refletisse o gênero e o gênero
exprimisse o desejo, confirmaria a heterossexualidade compulsória e naturalizada.
Gênero mostra-se performativo. Na discursão delineada em torno da construção
performativa do gênero, que se manifesta nas práticas e matérias da cultura, Butler,
contestando a temporalidade das explicações que confundem „causa‟ e „resultado‟, faz uma
comparação entre Monique Wittig e Luce Irigaray; a primeira refere-se ao sexo como uma
marca que de algum modo é aplicada pela heterossexualidade institucionalizada, marca que
pode ser apagada por meio de práticas que efetivamente contestem essa natureza; por
outro lado, Irigaray compreende a marca de gênero como parte da economia de gênero
hegemônica centrada no masculino, que opera mediante a auto elaboração. Ambas tentam
elaborar explicações capazes de esclarecer as marcas de gênero nos corpos. A partir disso,
pensarmos nas relações de poder que de alguma forma estão aí imbricadas.

As relações de poder que permeiam as ciências biológicas não são


facilmente redutíveis, e a aliança médico-legal que emergiu na Europa do
século XIX gerou ficções categóricas que não poderiam ser antecipadas. A
própria complexidade do mapa discursivo que constrói o gênero parece
sustentar a promessa de uma convergência inopinada e generativa dessas
estruturas discursivas e reguladoras. Se as ficções reguladoras do sexo e
do gênero são, elas próprias, lugares de significado multiplamente
contestado, então sua construção oferece a possibilidade de uma ruptura de
sua postulação unívoca (BUTLER, 2003, p. 58).

Gênero é, assim, constituído, e dimensiona um processo no qual não se pode dizer


com acerto que tenha uma origem ou um fim, sendo uma prática discursiva contínua,
sempre aberto as intervenções e re-significações. ―O gênero é a estilização repetida do

930
corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente
rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma
classe natural de ser‖ (BUTLER, 2003, p. 59); desse modo, há várias forças que policiam os
corpos, seus atos e gestos a uma aparência social do gênero e da própria necessidade da
aparência naturalizada.
Butler (2003) escreve que desde sempre o corpo estabelece limites para os
significados imaginários que ocasiona, mas nunca está livre de uma construção imaginária.
O corpo fantasiado, por assim dizer, jamais poderá ser compreendido em relação ao corpo
real, porém, só pode ser compreendido em relação a outra fantasia cultural. Todavia, os
limites do real são produzidos no campo da heterossexualização naturalizada dos corpos,
estabelecendo uma relação entre os fatos físicos e os desejos, ou seja, os fatos físicos
servem como causas e os desejos como efeitos inexoráveis dessa fisicalidade. A estratégia
do desejo é em parte a transfiguração do próprio corpo desejante, a condição imaginária do
desejo excede o corpo físico pelo qual ou no qual atua.
Descofiamos que a incorporação sobre um corpo sustenta a ideia de prazeres, em
que emanam e residem somente a determinados órgãos, naturalizando-os. Partes do corpo
tornam- se desejantes, concebíveis de prazeres; ―[...] em certo sentido, os prazeres são
determinados pela estrutura melancólica do gênero pela qual alguns órgãos são
amortecidos para o prazer e outros, vivificados‖ (BUTLER, 2003, p. 108), tornando-se tabus.
Sexo-Gênero-Corpo são regulamentados por mecanismos culturais, com vista a
transformação de masculinos e femininos hierarquizados, comandados a um só tempo pelas
instituições culturais, como a família, a escola, a igreja e as leis, encarregadas de produzir e
reproduzir as estruturas sociais e subjetivas, impulsionando o desenvolvimento individual de
cada um, dentro dos marcos de uma distinção entre a heterossexualidade legítima e
homossexualidade ilegítima.

4. Conclusão

Concluimos, com a investigação que buscou tecer uma reflexão acerca de uma
mulher-artesã do miriti, conhecida popularmente como Dona Pacheco, seguindo a trilha
etnografica, emaranhada pelas relações de gênero e a produção da diferença. Assim, temos
uma mulher-artesã-chefe que cruza as fronteiras do espaço privado e da esfera pública, em
uma trama de aceitação, negociação e resistência; ao entrar na bicentenária tradição,
começa a borrá-la, reinventado seus significados, diluindo binarismo, produzindo casais
homoafetivos, tensionando a heterossexulaidade compulsória.

931
5. Referências

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SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &Realidade,
Porto Alegre, V. 20, n. 2, jul/ dez, 1995.

932
O aborto e as interpretações kantianas frente à concepção
gestacional

https://doi.org/10.29327/527231.5-62
1
Lorena de Paula Ferreira do Nascimento
2
Katherine Vitoria Damásio Silva
3
Luanna Tomaz de Souza

Resumo

O referido artigo tem como objeto principal a explicação das duas interpretações da teoria
do filósofo Immanuel Kant diante à questão moral e ética do aborto, relacionando-as às
concepções dogmáticas da igreja católica e o movimento feminista de autonomia da
mulher. Busca-se analisar a aplicação do campo teórico ao prático a fim de demonstrar
criticamente a dificuldade de concretização de uma possível resolução de conflitos
oriundos das duas percepções.

Palavras-chave: aborto, ética, Immanuel Kant, Igreja, movimento feminista.

Abstract

This article has as its main object the explanation of the two interpretations of the theory of
the philosopher Immanuel Kant regarding the moral and ethical issue of abortion, relating
them to the dogmatic conceptions of the Catholic Church and the feminist movement of
woman autonomy. It seeks to analyze the application of the theoretical field to the
practical one in order to critically demonstrate the difficulty of realizing a possible
resolution of conflicts arising from both perceptions.
Keywords: abortion, ethics, Immanuel Kant, Church, feminist movement.

INTRODUÇÃO

O artigo proposto tem como objetivo central expor a análise das interpretações do
filósofo Immanuel Kant no que se trata à concordância ou dissonância moral em torno do
aborto, exemplificadas em circunstâncias práticas: o posicionamento do movimento
feminista e o dogmatismo cristão. Nesse sentido, cabe destacar que enquanto uma posição
se vale do discurso da autonomia feminina, outra defende com veemência a supremacia do
direito à vida desde a fecundação.
Quanto à divisão da explanação do referido trabalho, conceituamos, primeiramente,
as polêmicas morais e a concretização em si do ato do aborto, bem como os dados
estatísticos e a associação de tal problemática com as duas interpretações kantianas sobre

Acadêmica do sexto semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (FAD/UFPA). E-mail:
lorena.depaula.n@gmail.com.Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0735252580673849.
Acadêmica do sexto semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (FAD/UFPA). E-mail:
katherinedamasios@gmail.com.Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6044971767525319.
Prof. Dra. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (FAD/UFPA). E-mail:
luannatomaz@hotmail.com.Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5883415348673630.
933
a discordância ou não do processo abortivo. No segundo tópico, é abordado uma breve
exposição dos conceitos kantianos, enquanto no tópico seguinte é realizada a análise da
percepção desse filósofo quanto à ideia do dogmatismo cristão, seguido do tópico sobre a visão
kantiana sobre a concepção pró escolha dos movimentos feministas. Por fim, reunimos a síntese
sobre os tópicos já mencionados em torno da discussão sobre aborto, no

qual é notório a tentativa de monopólio da verdade e, logo, a perpetuação da ausência de


soluções definitivas frente à questão supracitada.
Dessa maneira, o referido estudo é efetivado a fim de observar as dúbias
interpretações do renomado filósofo Immanuel Kant no que concerne à moralidade em torno
do processo abortivo, relacionando-o à dogmática da igreja e à busca pelo pleno exercício
da liberdade individual proposto pelos movimentos feministas.

PROBLEMÁTICA EM TORNO DO ABORTO

Qualquer tipo de posicionamento em face do aborto dispõe de assídua polêmica,


uma vez que se trata da ideia do início da vida, a qual é, diversas vezes, tida para muitas
pessoas como base principiológica do desenvolvimento humano. Ademais, é de suma
relevância destacar que tal questão gira em torno das disposições da moralidade e da ética
em virtude de que as concepções sobre o começo da vida são construídas histórica e
socialmente por diversos grupos da sociedade e suas particularidades, tal como é visto na
ideia que a igreja possui sobre a concepção da vida, a qual é considerada a partir da
fecundação, enquanto que para muitos ramos científicos a mesma temática é definida
somente a partir do décimo segundo mês (LUNA, 2010).
Entretanto, apesar dos longos debates quanto ao processo abortivo, é necessário
destacar que o mesmo ocorre sendo legalizado ou não pelos dispositivos legais do Estado
brasileiro, como consta na Pesquisa Nacional do Aborto realizada pelo Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e Gênero – ANIS, a qual demonstrou que uma em cada cinco mulheres
com até 40 anos de idade já abortaram no Brasil (DINIZ, 2012). O artigo 124 do Código
Penal nacional regulamenta como crime a prática do aborto, com exceção de gravidez de
risco para a gestante, quando a gestação é resultado de estupro e quando o feto é
anencéfalo. Todavia, o mesmo é frequentemente cometido de forma clandestina e insegura,
sem o devido aparato médico e psicossocial. Diante disso, é possível identificar que embora
haja a punição pelo aborto prevista em lei, este não deixa de ser realizado no território
nacional.
Dessa maneira, o cerne das discussões do aborto está pautado na concordância ou
dissonância da descriminalização desse processo. O principal ponto de divergência
encontra-se entre os dogmas religiosos (principalmente os das igrejas católicas e
protestantes) e o movimento feminista. De um lado, é defendido a supremacia da vida do

934
feto, enquanto de outro é vislumbrado a necessidade de autonomia feminina para decidir
sobre a interrupção da gravidez. Os debates são assíduos e carregados de subjetividade,
uma vez que trata das concepções morais de início da vida e como esta deve ou não
possuir supremacia frente à vida das mulheres.
Sendo assim, é necessário analisar as questões sobre a dignidade da pessoa
humana, as liberdades individuais e a atuação da religião frente à formulação da legislação
no Estado secularização. Diante disso, as interpretações kantianas quanto aos
posicionamentos pró-vida e pró-escolha possuem notória relevância para o aprofundamento
da descriminalização do aborto, assim como para a tentativa de resolução dessa
problemática a fim de evitar o aumento no número de morte de mulheres que abortam de
forma insegura pela ausência de aparato médico de qualidade garantido pelo o Estado
brasileiro.

BREVE EXPOSIÇÃO DE ALGUNS CONCEITOS KANTIANOS

Immanuel Kant (1724-1804), um filósofo prussiano iluminista, além de ser um dos


mais notórios pensadores do mundo, ocupa uma posição nuclear na filosofia moral e jurídica
do ocidente. Seus feitos transcenderam a renovação metodológica sintética entre
racionalismo e empirismo, e promoveram uma verdadeira revolução no campo ético e
jurídico, tendo influenciado diretamente grandes pensadores do Direito, entre os quais estão
Hans Kelsen e John Rawls (VAZ e RESENDE, 2017). No presente capítulo, nos
dedicaremos a explanar sucintamente suas conceituações de autonomia, dignidade humana
e valor intrínseco, para então apresentar como tais conceitos desempenham um papel
proeminente no contexto da discussão ética do aborto, seja pela perspectiva que postula
sua legalização ou proibição.
Em princípio, é essencial explanar as considerações kantianas a respeito da ética.
Para o filósofo, a ética seria o domínio da lei moral, constituída por comandos que regem a
vontade, a qual, por sua vez, está alicerçada na razão (BARROSO, 2012). Nesse sentido,
ele reconhece que há uma dubiedade na ação dos indivíduos na sociedade: a ação ética por
primazia dos valores, e aquela determinada pelas coações sociais e jurídicas. De acordo
com Kant, para que um agir seja ético, a vontade que o motiva não pode ser pautada pela
pressão social ou pela satisfação de um intento, mas tão somente porque ação é boa em si
mesma, independente do fim que atinge (KANT, 1995). A esse preceito ele deu o nome de
imperativo categórico.
Barroso (2012) descreve este critério como um padrão de racionalidade que
representa o que é objetivamente necessário para que uma vontade esteja em consonância
com a razão. Porém, o imperativo também é conhecido pela célebre sentença: age somente
de tal modo que a máxima da tua vontade possa se tornar lei universal (KANT, 1995). Deste

935
modo, conforme aponta Vaz e Resende (2017), o sujeito ético kantiano seria, portanto,
aquele livre para determinar, de forma autônoma, os princípios que definem o seu agir.
Nesta diapasão, autonomia para Kant designa a competência da razão humana em
ditar suas próprias leis, sem derivá-las de algo exterior. Seria, portanto, uma capacidade de
autogoverno oriunda da razão, na qual os indivíduos estão sujeitos apenas às leis que dão a
si mesmos (KANT, 1995). Nesse ditame, conforme elucidam Vaz e Resende (2017), o
sujeito autônomo é aquele cuja capacidade de se auto impor o imperativo categórico
também o torna capaz de racionalmente compreender e submeter-se a uma lei jurídica -
sendo elas próprias uma autêntica representação da lei moral - e, ao mesmo tempo, pensar-
se como livre para seguir os desígnios dessa lei (VAZ e RESENDE, 2017).
nesse conceito de autonomia que se fundamenta a dignidade (KANT, 1995). Em
um universo em que todos os sujeitos se subordinam ao imperativo categórico - ao que
filósofo nomeia reino do fins - as relações seriam mediadas por uma consideração subjetiva
que se baseia em uma das dimensões da lei moral kantiana: o agir de tal forma que a
humanidade em si e no outro seja sempre e simultaneamente utilizada como fim, jamais
como meio (KANT, 1995). No reino dos fins, a ação subjetiva - antagônica à objetiva que
condiciona a vontade aos estímulos atrativos de uma finalidade valorada -, é o que
impulsiona o agir como dever em si mesmo, isento de valoração (VAZ e RESENDE, 2017).
No universo regido pelo imperativo categórico, a única coisa que é despossuída de preço e
que deve ser considerada em si mesma, é o sujeito. E, segundo Kant, quando uma coisa se
sobrepõe a todo o preço e, por isso, não permite substituição por equivalente, então ela tem
dignidade, isto é, um valor intrínseco absoluto através do qual exige respeito para si de
todos os seres racionais (KANT, 1995; 2003).
Perfazendo o tópico, nos valemos do compêndio de Barroso (2012) para dispor a
conceituação abordada na síntese de que o agir moralmente configura o proceder inspirado
por uma máxima que possa ser transformada em lei universal; que o sujeito é um fim em si
mesmo, não devendo ser instrumentalizado para lograr intentos de outrem; que os seres
humanos não possuem preço tampouco podem ser substituídos, haja vista que são dotados
de um valor intrínseco absoluto, ao qual se nomeia dignidade. Ante a exposição dos
conceitos kantianos, cuja relevância no debate proposto pelo presente trabalho é
significativa, nos dedicaremos no próximo capítulo a demonstrar como a conceituação
teórica do filósofo está sendo interpretada no contexto das postulações favoráveis ou não à
legalização do aborto.

PERSPECTIVA KANTIANA PRÓ-VIDA E OS DOGMAS DA IGREJA

936
Algumas conceituações kantianas são utilizadas para fundamentar as teses que
advogam pela proibição do aborto. A saber, Dutra (2015) correlaciona a vedação do aborto a
um trecho de Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre, no qual o filósofo defende que
o ato de procriação, isto é, no qual os pais trazem uma pessoa ao mundo, acarreta aos
progenitores a obrigação de não ―eliminar o seu filho‖ ou abandoná-lo, além de estatuir
também como fundamento o dever de conservação e cuidado para com a criança. A partir
disso, ele atrela o pensamento às bases da teoria obrigacional, a qual prescreve que em
sendo a gestação originária de um relação sexual consentida, não se poderia falar em uso
indevido do corpo da gestante, já que seria a filiação oriunda de ato voluntário e, portanto,
fonte de obrigações inescusáveis para o corpo da autora do ato.
Correligionárias dessa mesma premissa, mas relacionando-a ao conceito de
autonomia kantiana, Joviano e Câmara (2015) defendem que o direito da mulher de dispor
sobre o próprio corpo da maneira que lhe aprouver finda no instante em que se tem início
uma gravidez oriunda de ato sexual consentido, assim fazendo prevalecer a máxima "o
direito de um termina quando o do outro começa".
Outros autores, como Hart e Gensler, também se valem dos ideais de Kant para
fundamentarem suas posições pró-vida, porém nenhuma das teses dessa corrente tem mais
notoriedade do que aquela que despreza a interrupção gestacional baseada na crença de
que o embrião, enquanto ser humano, possui um valor intrínseco que lhe assegura o direito
à vida. Como sumo expoente dessa resolução se destaca a Igreja Católica.
Como Zilles (2007) bem enuncia em sua acepção teológica, o imperativo categórico
equivaleria a um respeito incondicional da dignidade humana, significando, portanto, o
reconhecimento da sacralidade da vida. Segundo ele, um representante do conceito
kantiano de dignidade tenderá, a partir da afirmação da dignidade incondicional, a vincular a
exigência incondicional da proteção da vida e tudo que é necessário para mantê-la. Essa
compreensão é representar, em absoluto, o cerne da concepção defendida pelas instituições
religiosas.
O aborto, de acordo com a visão da igreja católica, é considerado como prática
contrária aos seus valores, uma vez que para essa instituição a concepção da vida é tida
desde a fecundação do óvulo e, logo, qualquer impedimento para gerar a mesma é
vislumbrada de forma errônea segundo a moral cristã.
No campo prático das discussões do processo abortivo, a voz da igreja católica é
colocada como meio tradicional, devido sua temporalidade, para legitimar a sua dogmática
quanto ao aborto – veementemente contrária a tal procedimento (KREBS, 1999). Dessa
forma, utiliza-se da capacidade de convencimento, legitimado na tradição, na fé e na crença

937
no que tange ao debate moral, ético e até mesmo legislativo do aborto nas circunstâncias
em que esta efetiva a fundamentação filosófica e teológica ao impedimento da
descriminalização do desse processo no país, tal como foi ocorreu na argumentação dessa
instituição na votação sobre a legalização do aborto na Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul (KALSING, 2000).
Outra exemplificação também foi tratada por Luna (2010) ao verificar
minuciosamente a Campanha da Fraternidade e Defesa da Vida de 2008, feita pela Igreja
Católica Apostólica Romana, a qual demonstrou que a primazia do direito do feto em prol da
gestante possui fundamentação pautada, além de aspectos econômicos, sociais e bioéticos,
também na representação do indivíduo kantiano autodotado e detentor de dignidade
intrínseca e, por isso, a vida deste deve ser garantida desde a sua concepção.
Dessa maneira, a visão kantiana relaciona-se com o posicionamento pró-vida da
igreja católica ao fundamentar o feto legítimo do direito de vida, de modo que esta instituição
fundamenta seu posicionamento com justificações baseadas subjetivamente na fé e na
crença, enquanto, de maneira objetiva, impõe-se por meio da interferência nas decisões
Estatais (como a legalização do aborto) e na imposição de discurso na sociedade.

PERSPECTIVA PRÓ-ESCOLHA DE KANT E O MOVIMENTO FEMINISTA

Na ponta oposta, a posição favorável a legalização do aborto trabalha com conceitos


kantianos como valor intrínseco e autonomia. Barroso (2013) contextualiza estas
conceituações à luz da questão do aborto, e conclui que o debate acerca do assunto
representa uma colisão entre valores e direitos fundamentais. Nessa diapasão, avaliando
pelo plano do valor intrínseco, ao admitir que a vida humana tem início no momento da
fecundação - premissa que o autor acata apenas para fins argumentativos -, ele reconhece
que o aborto consistiria em uma violação ao direito à vida do embrião.
Não obstante, a manutenção forçosa da uma gravidez não desejada configura um
atentado contra a integridade física e psíquica da mulher, além de tolhi-la do direito ao
controle sobre o próprio corpo. Ademais, antagoniza a ideia de igualdade inerente à
dignidade kantiana, uma vez as mulheres carregam o ônus integral da gravidez, e o direito
de interrompê-la as colocaria em posição de igualdade ante aos homens. Desta forma, no
que concerne à dignidade humana compreendida como valor intrínseco, no embate
principiológico somente um direito fundamental favorece a posição contra o aborto – o direito
à vida –, contra dois direitos fundamentais favorecendo o direito de escolha da mulher – a
integridade física e psíquica e a igualdade (BARROSO, 2013).

938
Já no que concerne à autonomia, Barroso postula que as pessoas devem ter a
liberdade de tomar decisões pessoais básicas que repercutem em suas próprias vidas.
Desse modo, estaria dentro limites da autonomia da mulher - logo, de sua liberdade -,
escolher se deseja ou não interromper uma gravidez. Perante uma possível objeção de que
a interrupção gestacional se contrapõe a um hipotético desejo de nascer do feto, o autor
redargue que, muito embora se presuma o valor intrínseco do feto, é mais difícil reconhecer
sua autonomia devido ao fato de ele não ter qualquer grau de autoconsciência. E ainda que
esse primeiro argumento fosse superado, ainda haveria de se avaliar que o feto depende da
mãe, mas não o contrário. De tal forma, se o hipotético desejo de nascer do feto
prevalecesse e a mulher fosse obrigada a manter a gestação, ela se tornaria, pois, um mero
meio para a satisfação da vontade de outrem, sendo assim instrumentalizada e não
considerada como um fim em si mesma.
Corolário da mesma acepção, a perspectiva dos movimentos feministas baseia-se
diante da necessidade de afirmação da autonomia da mulher, constituída, portanto, de que é
preciso que somente esta possui a decisão de seguir ou não com uma gestação. A análise
ética, dessa maneira, advém da liberdade, tal como defendida pelo filósofo Immanuel Kant,
sobre o seu corpo e suas decisões. É esta concepção que sustenta a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 de 2017, na qual solicita-se ao
Supremo Tribunal Federal do Brasil a não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código
Penal, os quais criminalizam o aborto à exceção dos casos de gravidez decorrente de
estupro, anencefalia e risco à vida materna.
A tese central defendida por autoras é que criminalização do aborto e a consequente
imposição da gravidez compulsória compromete a dignidade da pessoa humana, a
cidadania e a não discriminação das mulheres, pois não lhes reconhece a capacidade ética
e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu projeto de
vida. Ainda, a proibição do aborto acarreta em impacto à vida, à liberdade, à igualdade, à
proibição da tortura, à saúde e ao planejamento familiar das brasileiras (BOITEUX et al.,
2017).
Além disso, o movimento feminista busca considerar os fatos e as estatísticas em
prol da legalização do aborto, uma vez que afirma que o mesmo ocorre com ou sem a
autorização legislativa do Estado, conforme é explicitado com o quantitativo de abortos no
país (DINIZ, 2000). Sendo assim, a autonomia, aliada à ideia de liberdade, bem como o
valor intrínseco, entendido como a dignidade, fundamentam e relacionam a interpretação
kantiana pró-escolha para proporcionar a garantia da liberdade feminina frente ao aborto, de

939
forma segura e legal, com todos os aparatos legais que a mulher necessita para realizar
tal procedimento.

CONCLUSÃO

O presente trabalho expôs que o debate sobre o aborto é permeado por polêmicas
que circunscrevem a ideia de início da vida, a qual resulta das construções éticas e morais
que se formaram histórica e socialmente a partir da concepções e influências dos institutos
sociais. Nesse embate, ganham destaque as posições antagônicas entre as ideias
defendidas pelas igrejas cristãs - da supremacia da vida do feto - e os preceitos postulados
pelos movimentos feministas - o prevalecimento da dignidade e autonomia da mulher.
Com objetivo de contribuir para o acervo teórico que cerca este debate, o presente
trabalho buscou abordar alguns conceitos da ética kantiana que ocupam papel central nas
teses das posições pró-vida e pró-escolha. Procuramos, pois, elucidar que, pela perspectiva
de Kant, o agir moralmente configura o ato inspirado por uma máxima que possa ser
convertida em lei universal; que o sujeito é um fim em si mesmo, não devendo ser
instrumentalizado para lograr êxito nos projetos de terceiros; e que os seres humanos detém
um valor intrínseco absoluto, entendido como dignidade.
luz dessas considerações filosóficas, apresentamos as diversas acepções que as
correntes que pleiteiam a legalização ou proibição do aborto fazem delas, contextualizando -
as às bandeiras que levantam. A corrente contrária ao aborto sustenta sua posição baseada
nos preceitos do valor intrínseco - que assegura ao feto o direito à vida -, bem como na de
que a autonomia materna sobre o próprio corpo deve ser limitada quando a gravidez resulta
de relação sexual consentida. Por seu turno, os partidários da legalização da interrupção
gestacional se fundamentam no valor intrínseco - que garante à mulher o direito à dignidade,
que abarca sua integridade física e psíquica e o direito à igualdade -, bem como a de que
autonomia feminina compreende a liberdade em fazer escolhas que digam respeito a sua
própria vida.
As bases teóricas das representações são analisadas como um exercício do
monopólio da verdade (LUNA, 2010), em que há uma tentativa de conflito de direitos
fundamentais, porém os posicionamentos estão relacionados às ideias de um grupo social.
Diante disso, o cercamento do conceito ético sobre esse conflito é conturbado pelo
engajamento excessivo ideológico dos agentes envolvidos, o que não permite a
concretização completa da problemática do aborto em face do caso concreto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

940
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941
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942
GÊNERO E SEXUALIDADE INTEGRADOS ÀS BASES CONCEITUAIS E
TEÓRICAS DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA.

https://doi.org/10.29327/527231.5-63

Autores: Robelania dos Santos Gemaque


Mestranda em Educação Profissional e Tecnológica
(PROFEPT)
Instituição: Instituto Federal do Pará (IFPA/ Campus
Belém)
Co-Autora:Natália Conceição Silva Barros Cavalcanti
Doutora em História pela Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE.
Instituição: Instituto Federal do Pará (IFPA / Campus
Belém)
RESUMO

Estudos que abordam a temática de gêneros e sexualidade, relacionados à educação e ao


trabalho, sugerem que há um anseio pelo aprofundamento nas articulações entre esses
eixos temáticos. Este artigo apresenta uma síntese de pesquisa em desenvolvimento no
programa de Educação Profissional e Tecnológica (PROFEPT CAMPUS/ BELÉM), e tem
como objetivo contribuir para a maior visibilidade e ampliação do debate sobre gênero e
sexualidade tanto nas produções acadêmicas quanto nas práticas educativas no ensino
médio integrado. A metodologia fundamenta-se na revisão bibliográfica, observação
participante e pesquisa-ação, e tem a colaboração de 10 alunos do curso de Design
Integrado, da EETEPA em Icoaraci-PA. Os resultados preliminares apontam para a baixa
produção acadêmica sobre gênero e sexualidade na educação profissional e tecnológica e
inexistência de práticas educativas no cotidiano do ensino médio integrado, o que demonstra
a relevância da persistência de estudos e pesquisas nessa temática.

Palavras-chave: Educação profissional. Diversidade de gênero. Sexualidade.

ABSTRAT

Studies that address the theme of gender and sexuality, related to education and work,
suggest that there is a yearning for deepening the articulations between these thematic axes.
This article presents a synthesis of research under development in the Professional and
Technological Education program (PROFEPT CAMPUS / BELÉM), and aims to contribute to
the greater visibility and broadening of the debate on gender and sexuality in both academic
productions and educational practices in teaching. integrated medium. The methodology is
based on literature review, participant observation and action research, and has the
collaboration of 10 students of the Integrated Design course at EETEPA in Icoaraci-PA.
Preliminary results point to the low academic production on gender and sexuality in
vocational and technological education and the absence of educational practices in
integrated high school daily life, which demonstrates the relevance of the persistence of
studies and research on this subject.

Keywords: Professional Education. Diversity of genres. Sexuality.

943
INTRODUÇÃO

Estudos relativos aos temas gênero e educação (LOURO, 1997; 2001; 2007);
(MACIEL & GARCIA, 2018) e gênero, sexualidade e trabalho (LIMA NETO,
CAVALCANTI & GLEYSE, 2018); (FRIGOTTO, 1999; 2009; 2015) sugerem que há um
anseio pelo aprofundamento das análises que articulam esses eixos temáticos, a fim
de refletir os efeitos das pedagogias que buscam a intervenção crítica das relações de
gênero e sexualidade, no ensino e no cotidiano escolar. Neste sentido, este artigo
apresenta resultados preliminares, de pesquisa em desenvolvimento, relativo ao
mestrado profissional em Educação Profissional e Tecnológica (EPT) – PROFEPT
CAMPUS BELÉM, que tem como foco a elaboração de um produto pedagógico sobre
gênero, sexualidade e trabalho, articulado à concepção do ensino médio integrado à
educação profissional.
A presença, no cotidiano da sala de aula, enquanto professora de Sociologia,
na rede estadual de educação do estado Pará, me posiciona diante do incômodo que
a vivência dos afetos entre estudantes lésbicas parece causar, principalmente entre o
corpo docente. A percepção, de que a heteronormatividade regula as vivências e os
comportamentos nos espaços educacionais, e a inquietação e o ―desajustamento‖
revelados nos gestos, olhares atravessados e discursos, de professores e técnicos,
suscitaram os seguintes questionamentos:
Em que medida a escola contribui para reconhecimento da diversidade sexual
e de gênero no cotidiano escolar? Quais componentes curriculares discutem o tema
na sala de aula? A escola promove discussões que possibilite a valorização e o
reconhecimento de estudantes LGBTI+? Como a escola promove a formação de
estudantes LGBTI+ tendo em vista a inserção com qualidade no mundo do trabalho?
A aliança perigosa entre política e religião, promoveu em 2018, a ascensão ao
poder de um governo visivelmente alinhado a forças políticas ultraconservadoras, que
utilizando-se de valores e crenças tradicionais, constrói um discurso de defesa da
família brasileira, segundo a qual na sua formação, deve obedecer a uma moral cristã
fundamentada em preceitos bíblicos, determinando regras sobre corpos generificados
como masculinos e femininos, atribuindo ao corpo do homem e da mulher a função de
reprodução da espécie humana, e coloca na marginalidade outras relações, que não
atendam aos critérios estabelecidos, pelo viés ideológico defendido por este governo.
nesse contexto que pesquisadores, ativistas sociais, professores,
desenvolvem suas produções acadêmicas, científicas e atividades pedagógicas, sob a
vigilância e a ameaça, de setores ligados às igrejas e demais instituições políticas e

944
sociais, que servem de base de apoio ao governo. Dentre as preocupações, do estado
brasileiro com a educação, encontram-se as discussões sobre gênero e sexualidade
na sala de aula, compreendida por este setor como propagação da ―ideologia de
gênero‖.
Dessa forma, existe forte pressão dentro dos espaços de decisão e de poder,
em todas as esferas (municipal, estadual, federal), para que o estado atue interferindo
nas publicações científicas e acadêmicas, peças de teatro, exposições culturais,
produção de filmes, apontando quais temas possuem, de acordo com a ideologia
1
defendida pelo governo, legitimidade para receber financiamento público , para suas
realizações, numa perspectiva evidente de regulação dos comportamentos, corpos e
sexualidade dos sujeitos. Figotto (2017, p18), destaca o sentido ideológico do
momento atual da educação no Brasil no contexto de um projeto denominado escola
2
―sem‖ partido

Um sentido autoritário que se afirma na criminalização das


concepções de conhecimento histórico e de formação humana que
interessam à classe trabalhadora e em posicionamentos de
intolerância e ódio com os movimentos sociais, em particular o
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Mas também, o ódio
aos movimentos de mulheres, de negros e de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transgêneros.

O artigo defende que discussões sobre gênero e sexualidade nos espaços


educacionais, aliadas a força política dos movimentos sociais, no caso desse estudo o
movimento LGBTI+, possui o potencial para constituir-se em resistência a projetos
societários que não reconhecem a diversidade cultural, sexual e de gênero, e
pretendem impor a todos a lógica homogeneizante cultural e mercadológica, tendo em
vista um projeto de educação e sociedade. Neste sentido, conforme aponta Louro
(1997, p.119) ―a construção de uma prática educativa não-sexista necessariamente
terá de se fazer a partir de dentro desses jogos de poder. Feministas ou não, somos
parte dessa trama e precisamos levar isso em conta.‖
O percurso metodológico deste artigo estrutura-se em revisão bibliográfica, que
busca na literatura científica e acadêmica as (in)visibilidades nos discursos e práticas
Censura de Bolsonaro à cultura afeta os negros, as mulheres e os LGBTs‟.
https://almapreta.com/editorias/realidade/censura-de-bolsonaro-a-cultura-afeta-os-negros-
as-mulheres-e-os-lgbts. Acessado em 08/11/2019.

Frigotto. Gaudêncio (org). Escola ―sem‖ partido: esfinge que ameaça a educação e a
sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.

945
de ensino, experiências de pessoas LGBTI+, pesquisa-ação (HAGUETTE, 1992;
BARBIER, 1985), desenvolvida de maneira colaborativa com 10 estudantes do curso
de Design Integrado, turma 2017, do turno da manhã na Escola Estadual Técnica do
Estado do Pará professor Francisco das Chagas Ribeiro de Azevedo – CACAU,
responsáveis pelas reflexões cujo resultado é a produção de uma história em
quadrinho sobre gênero, sexualidade no ensino médio integrado, e etnografia crítica
3
de sala de aula.
Para melhor compreensão, dividimos o artigo em quatro seções: na primeira
apresentamos o encontro entre o ensino, a pesquisa e o campo de investigação, em
seguida, a breve história de uma educação do sexo. A terceira seção, discute as
bases conceituais e teóricas da educação profissional articuladas aos conceitos de
gênero e sexualidade, por fim os resultados e discussões e considerações finais.

O ENCONTRO ENTRE O ENSINO, A PESQUISA, E O CAMPO: “LAÇOS” E “NÓS”


Pela trilha da Sociologia sou apresentada ao estudo sobre gênero e
sexualidade, um caminho sinuoso repleto de dificuldades, e através do ensino em
gênero e sexualidade, atravesso a sala de aula para a pesquisa no Mestrado em
Educação Profissional e Tecnológica e daí para o campo de investigação: A Escola
Estadual de Ensino Técnico Professor Francisco das Chagas Ribeiro de Azevedo –
CACAU.
Na sala de aula, pelos corredores da escola, no auditório, no ginásio e
principalmente na sala dos professores constato o que estudiosos do cotidiano escolar
já observaram em suas pesquisas: a escola pública como espaço por excelência das
diferenças (classe, etnia, religião, gênero, orientação sexual). No exercício da
4
docência em Sociologia no ensino médio , me deparo todos os dias, com a tentativa
de apagamento dessas diferenças, e me faz perceber o quanto o padrão normalizador
baseado no homem-branco-cristão-hétero-burguês está enraizado em nossas certezas
e vinculado às nossas práticas educativas.
Esta percepção me levou, ao longo destes dez anos, ao processo de
desconstrução e reconhecimento da minha identidade e me confronta com meu

Por sua natureza descritiva da realidade, rigorosa quanto ao entendimento do significado das
ações sociais para o outro, quando associada a uma visão crítica da justiça social enquanto
abordagem teórica, não pode deixar de reivindicar a parceria do professor para a análise dos
processos interativos de sala de aula. MATTOS (1995 p.101)

A Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, alterou o art. 36 da Lei nº 9.394/96 que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas
obrigatórias nos currículos do ensino médio, passando a ser obrigatória em todas as séries do
ensino médio.

946
privilégio de mulher cis heterosexual, e me impõe maior responsabilidade ao tratar
sobre gênero e sexualidade, em sala de aula. Louro (1997; 2001), César (2010),
Junqueira (2013), Maciel e Garcia (2018) advertem que a ―heteronormatividade‖ é
norteadora dos processos pedagógicos e curriculares, com fortes implicações no
cotidiano escolar.
Perceber o trânsito na escolas, de estudantes lésbicas e gays, livremente
experimentando seus afetos, mãos dadas, o carinho no cabelo, abraços, expressões
de gênero estampadas nos corpos das/os estudantes, me leva a pensar que enquanto
comunidade escolar, estamos preparados para as transformações culturais e sociais
que vem ocorrendo no mundo desde meados do século XX, pela força dos
movimentos sociais, principalmente o LGBT (Lésbicas, Gays, Bisexuais e
Transgêneros), reivindicando o reconhecimento de suas identidades e reclamando a
presença e espaço nas diferentes instâncias da sociedade.
Ao abordar a diferença entre gênero e sexualidade(cultura) e (sexo), durante
uma aula na turma do segundo ano em 2017, percebi entre as/os estudantes olhares
atentos, alguns indiferentes, outros curiosos. A narrativa de uma estudante lésbica,
contando da sua vivência, da relação com a família e amigas/os, das relações afetivas,
do medo da agressão devido ao fato de ser lésbica, a escuta atenta dos outros
estudantes, enquanto ouvíamos os relatos, me ocorreu que a escola pública pode
contribuir para o empoderamento de pessoas LGBTI+ diante da difícil tarefa de
afirmação de suas identidades.
Entretanto, a sala de aula é um aspecto da totalidade, a percepção sobre a
presença de estudantes LGBTI+ atravessa outros espaços. Durante um mpmento de
descontração na sala dos professores, conversas aleatórias, troca de impressões
sobre as aulas, conteúdos, turmas e estudantes, o tema sexualidade e orientação
sexual entra na pauta da maneira mais grotesca possível, e violenta para quem não
atende às expectativas sociais em relação à sexualidade, apresento aqui o diálogo
entre duas professoras:

Professora A: ―Sempre teve alunos com esse jeito meio


esquisito, mas esse ano está demais‖.
Professora B: ―Eu... quando chega perto de mim com essa história
de querer abraçar, falo logo, te sai, vai pra lá. (Risos)‖.

perturbador perceber como estudantes com orientação sexual diferente da


heteronormativa aparecem nos discursos de técnicos e docentes. Expressões como ―a
menina que virou menino‖ ou ―aquele menino meio estranho‖, podem significar

947
abandono escolar, traumas, sentimentos de baixa estima, para Frigotto (1997), é
necessário refletir sobre o compromisso ético e político quando educamos. Ramos
(2008) aponta duas perspectivas: uma excludente, discriminatória, que fragmenta os
sujeitos e lhes nega direitos; outra inclusiva, que reconhece e valoriza a diversidade e
5
a capacidade de produção da vida, assegurando direitos sociais plenos .
Louro (1997), defende que o pessoal é político, neste sentido, as narrativas
apresentadas e as reflexões realizadas a partir delas, me transportaram de um lugar
ao outro: da sala de aula no ensino médio regular, para o campo de pesquisa sobre
gênero, sexualidade e trabalho no ensino médio integrado.

Figura 1 – EETEPA-ICOARACI: Bosquinho e Refeitório

Fonte: Acervo da autora

A Escola de Educação Tecnológica Professor Francisco das Chagas Ribeiro de


Azevedo (CACAU), inaugurada em 15 de Outubro de 2007, foi institucionalizada a
6
partir dos Decretos nº 5154/04 e nº 6302/07 , que regulamentam o desenvolvimento
da educação profissional técnica de forma articulada com o ensino médio. Situada no

5
Ramos (2008, p.5) propõe um projeto de ensino médio que supere a dualidade entre
formação específica e entre formação geral e que desloque o foco de seus objetivos do
mercado de trabalho para a pessoa humana. Sujeitos que têm uma vida, uma história e uma
cultura. Que têm necessidades diferenciadas, mas lutam por direitos universais.
O Decreto nº 5154/04 regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), estabelece as diretrizes e bases para a
educação profissional.

948
7
distrito de Icoaraci , até 2010, integrava-se à rede da Organização Social Escola de
Trabalho e Produção do Pará – OS/ETPP, quando passou a ser gerida pela Secretaria
Executiva de Educação do Pará-SEDUC, sob a Coordenação de Educação
Profissional.
Trata-se de um prédio térreo de grande porte, com estrutura ampla, de aspecto
acolhedor em função das inúmeras áreas verdes existentes na parte interna da escola,
que ornamentam os corredores de acesso, os espaços pedagógicos e salas de aula. A
escola dispõe de biblioteca, sala de informática, auditório, quadra de esportes, um
espaço amplo para o serviço da merenda escolar, e espaços de sociabilidade em que
foram observados o ir e vir dos estudantes, bem como as reuniões típicas entre os
adolescentes para as conversas descontraídas (Figura 1).
Atualmente, a EEETPA Francisco das Chagas Ribeiro de Azevedo - CACAU
funciona com vinte e nove turmas, distribuídas entre os quatro cursos ofertados
(Design, Hospedagem, Informática, Técnico em Manutenção de Computadores e
Suporte) totalizando setecentos e trinta estudantes matriculados. A escola oferta nos
turnos manhã e tarde o ensino médio na modalidade integrado à educação básica, e
no noturno funcionam as modalidades Educação de Jovens e Adultos e
Subsequentes.

EDUCAÇÃO DO SEXO: PARA ALÉM DAS INFECÇÕES SEXUALMENTE


TRANSMISSÍVEIS (AIS)

A educação relativa ao sexo, conforme salientado por César (2009, p. 39),


surgiu no Brasil a partir do século XX, devido a preocupações explícitas relacionadas à
educação do sexo para crianças e jovens. De acordo com a autora, os primeiros a se
preocuparem com o assunto foram os profissionais da área médica, seguidos por
alguns intelectuais e educadores, no entanto, a justificativa para a preocupação e o
tratamento deste assunto tinha como base questões morais e higiênicas e a finalidade
social de preservação da raça humana, dando origem ao que César (2009) denomina
―o sexo bem educado‖. Assim, ―o processo de escolarização à disciplinarização dos
corpos de crianças e jovens, veremos que a educação do sexo encontrou seu lugar
privilegiado na escola desde muito cedo.‖ (CÉSAR, 2009, p. 40).

De sesmaria a fazenda, passando a povoado, vila e finalmente distrito, a área que hoje
compreende o distrito administrativo de Icoaraci (DAICO), é formado por vários bairros, e em
2010 (Censo/IBGE) possuía uma população de 167.035 mil habitantes. Desfruta de uma
posição geográfica privilegiada de fácil acesso à jazidas de argila que se concentram nos rios
Paracuri e Livramento, característica que possibilitou transformar a área em um dos principais
polos de produção artesanal de cerâmica do Estado do Pará.

949
A autora destaca que na década de 1960, as manifestações de grupos
específicos da sociedade (direito civis, feministas, gays e lésbicas) contribuíram para a
evolução e transformação ideológica e participativa da instituição escolar,
principalmente no discurso e abordagem de temas delicados e polêmicos para a
época, tais como: discriminações étnico-raciais, políticas ditatoriais e liberdade sexual.
Essa nova postura pedagógica começou a transformar as concepções relativas a
sexualidade e gênero, que existia até então.
Ao final da década de 1980, com a divulgação das descobertas médicas
relativas ao Human Immunodeficiency - Síndrome da Imunodeficiência Humana
Adquirida (HIV/AIDS) – a educação do sexo nas escolas sofreu um grande impacto,
principalmente devido as insuficientes (e até mesmo errôneas) informações acerca do
contágio e da prevenção que se popularizaram e promoveram pânico e discriminação
social. Dessa forma, a informação se tornou a melhor aliada para combater à epidemia
e o caos social que se instalou nos primeiros anos da descoberta.

A partir desse momento, o discurso da sexualidade nas escolas


brasileiras foi definitivamente colonizado pela ideia de saúde e
prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez na
adolescência, tomadas como sinônimo de problema de saúde física e
social. (CÉSAR, 2009).

Neste contexto, a escola se solidifica como instrumento fundamental para


desmistificar este novo inimigo da saúde pública (AIDS), bem como para orientar e
divulgar maneiras de praticar o „sexo seguro‟ a fim de reduzir os casos de doenças
sexualmente transmitidas (DST), hoje infecções sexualmente transmissíveis (IST) e da
gravidez durante a adolescência, visto tratar-se de problemas importantes, cuja
prevenção e tratamento começam pela informação e orientação.
Sobre a institucionalização da educação do sexo, (CÉSAR, 2009, p. 42)
oferece a seguinte síntese:

Na segunda metade dos anos de 1990, no âmbito de um conjunto de


reformas educacionais, o governo brasileiro produziu um importante
documento – os Parâmetros Curriculares Nacionais. Os PCNs foram
concebidos como resposta e solução para grande parte dos
problemas educacionais no Brasil, bem como resposta à inserção na
Constituição de 1988 de temas oriundos dos movimentos sociais, tais
como as questões étnico-raciais, o meio-ambiente, a educação sexual
e as questões de gênero [...]. Inspirada pela reforma educacional
espanhola organizada pelo partido popular, ultraconservador, no
início dos anos 90, a educação brasileira tomou para si a concepção
dos temas transversais e instituiu a educação sexual como um dos
temas a serem trabalhados nos PCNs. O

950
fascículo sobre o Tema Transversal Orientação Sexual, publicado em
1997, consolidou definitivamente a escolarização de uma educação
do sexo.

Reis e Eggert (2017) citando a Declaração dos Direitos Humanos,


estabelecidos pela ONU em 1948, resgatam os primórdios das lutas em favor da
educação não só como meio para adquirir instrução, mas também para fortalecimento
dos direitos e liberdades fundamentais do ser humano, além de lembrar que ―todas as
pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos [...] sem distinção de qualquer
espécie‖. Com relação específica sobre o tema gênero e sexualidade na educação, os
autores destacam o documento ―Educação para Todos‖ aprovado no Fórum Mundial
de Educação, realizado em 2000, no Senegal. Entre as principais metas do
compromisso assumido constam: a eliminação das desigualdades de gêneros na
educação primária e secundária até 2005, e chegar a igualdade em termos gerais na
educação até 2015.
Os autores também mencionam o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), que em 2015 estabeleceram os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável com metas para o ano de 2030: ―O item 5 do Objetivo 4
prevê a eliminação das ―disparidades de gênero na educação‖, enquanto o Objetivo 5
deseja alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas‖.
(REIS, EGGERT, 2017, p. 11).
Reis e Eggert (2017, p. 11-12) citam os Princípios de Yogyakarta (2007, p. 23):
―Toda pessoa tem o direito à educação, sem discriminação por motivo de sua
orientação sexual e identidade de gênero, e respeitando essas características‖, e o
Relatório sobre violência homofóbica no Brasil (Secretaria de Direitos Humanos),
referente ao ano de 2011:

[...] começou a se consolidar o entendimento de que são direitos


humanos não somente a equidade de gênero como também a livre
orientação sexual e identidade de gênero. Da mesma forma, as
violências praticadas por motivo de orientação sexual e identidade de
gênero podem ser consideradas violências de gênero. (REIS,
EGGERT, 2017, p. 11).

Diante do exposto, fica registrado que compete a escola, enquanto instituição


de educação (ensino/instrução) não só reproduzir e divulgar informações e orientações
sobre a correlação entre sexo, saúde e higiene, mas principalmente, ser instrumento
de inclusão social e combate à discriminação relativa à sexualidade e gênero.

951
GÊNERO, SEXUALIDADE E TRABALHO: BASES CONCEITUAIS E MUNDO DO
TRABALHO
Lima Neto; Cavalcanti & Gleyze (2018), em ―(In)visibilidades epistemológicas:
considerações sobre corpo, gênero e sexualidade na produção do conhecimento em
educação profissional‖, sublinham os modos como às questões de gênero e
sexualidade são tratadas na Educação Profissional, a partir de consulta a quatro
fontes do domínio epistêmico.
Utilizando diferentes repositórios de pesquisa: Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Colóquio Nacional sobre a
produção do Conhecimento em Educação Profissional; Programa de Pós Graduação
em Educação Profissional - Instituto Federal do Rio Grande do Norte (PPGED/IFRN);
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), entre os
anos de 2008 a 2018, os pesquisadores analisaram 415 trabalhos publicados,
conforme podemos observar abaixo.

Quadro I - Produções Acadêmicas 2013 a 2018

TRABALHOS
PERÍODO BANCO DE DADOS PALAVRAS CHAVE
PUBLICADOS

COLÓQUIO
NACIONAL SOBRE
2013-2017 CONHECIMENTO GÊNERO / SEXUALIDADE
175
EM EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL

PPGEP/IFRN
2013-2018 GÊNERO / SEXUALIDADE 52
(DISSERTAÇÕES)
EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL E 102
PORTAL DE
GÊNERO
2008-2018 PERÍODICOS
CAPES (ARTIGOS) EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL E 14
SEXUALIDADE
2008-2017 ANPED GT 09
(TRABALHO E GÊNERO/SEXUALIDADE 72
EDUCAÇÃO)
Fonte: Autores com base no levantamento de LIMA NETO; CAVALCANTI;
GLEYZE (2018)

Com efeito, Lima Neto, Cavalcanti e Gleyze (2018), analisaram 415


publicações, e identificaram que dentre estas apenas 09 trabalhos articularam
diretamente a temática gênero e sexualidade ao domínio da Educação Profissional.

952
Alguns trabalhos apenas mencionam a temática, e a maioria não faz nenhuma
referência ao tema, constatando uma inexpressividade numérica entre as pesquisas
nestes campos de estudo.
Ao direcionar o olhar sobre as publicações com os temas sexualidade ou
orientação sexual, os pesquisadores observam que no recorte entre 2008 e 2017, não
foram encontrados nenhum trabalho, o que reforça a lacuna por eles apontada. De
acordo com os autores, os estudos apontam caminhos para um novo eixo de pesquisa
na Educação profissional.

Pelo exposto, a pertinência do presente dossiê justifica-se em duas


grandes dimensões: a epistemológica e a subjetiva. Na primeira, a
iniciativa apresenta-se pertinente por abrir um novo eixo de pesquisa
– ou ao menos um eixo pouquíssimo explorado – no domínio da
Educação Profissional, dilatando esse campo epistemológico para
outras dimensões do fenômeno educativo, em profundo vínculo com a
rica produção atualmente existente, centrada sobretudo nas relações
entre educação, capital e trabalho. Na segunda dimensão, em
absoluta associação com a primeira, o dossiê revela-se importante
por dar voz a sujeitos cujas existências e direitos encontram-se
ameaçados, e cujas demandas, angústias e narrativas são
inexpressivamente estudadas na atual produção acadêmica da
Educação profissional [...] (LIMA NETO; CAVALCANTI; GLEYZE,
2018, p. 29).

Observamos que, apesar da vasta literatura acadêmica e científica consolidada


em educação profissional, o tema gênero e sexualidade ainda são tratados como tabu
na sociedade, com repercussões em outros espaços de sociabilidade e produção,
como nas instituições de ensino e trabalho. Considerando o contexto do ensino médio
integrado à educação profissional, pressupõe-se que estudantes gays, lésbicas,
bissexuais e transgêneros desenvolvem expectativas diante de um cenário social
marcado por relações sociais e produtivas, baseadas na comercialização da força de
trabalho, na qual o ensino profissionalizante emerge como uma possibilidade de
inserção imediata.
As estatísticas sobre a empregabilidade das pessoas transexuais e
transgênero, também é uma questão de difícil acesso. De acordo com a Associação
8
Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA – 90% das travestis e transexuais
estão fora do mercado de trabalho formal, a preocupação de militantes do movimento
LGBTI+, revela a gravidade dessa informação e justifica a pressão por uma ação
efetiva por parte do poder público que contribua para a diminuição da discriminação no

Fonte: Projeto de Lei de autoria do vereador Fernando Carneiro/PSOL em discussão na


Câmara Municipal de Belém.

953
mundo do trabalho por conta da orientação sexual e garanta condições de
empregabilidade dignas para transexuais e travestis.
A experiência com estudantes LGBTI+, a partir da sala de aula no ensino
médio, não me habilita a tecer narrativas, sobre as expectativas desses estudantes,
quanto a inserção no mundo do trabalho, tendo em vista a orientação sexual. Minha
identidade de gênero (mulher cis) e sexual (hétero), atribui certo privilégio e restringe
meu lugar de fala, sendo necessário buscar essas narrativas junto aos protagonistas
na luta por esse espaço. Neste sentido, apresento as narrativas de duas mulheres
transgêneros

―É mais difícil ser trans do que ser gay ou lésbica porque externamos
nossa identidade...não adianta levar para as ruas o discurso da
empregabilidade se não tem projetos de empregabilidade para
pessoas trans. como será o futuro das pessoas trans? Questões
como aposentadoria, moradia?‖ (RODA DE CONVERSA ONG
OLIVIA/UFPA)

―A gente não quer só emprego, mas a qualidade do trabalho‖ (RODA


DE CONVERSA ONG OLIVIA/UFPA)

―Depois de dez anos no subemprego, consegui um trabalho de


carteira assinada, direitinho, com todos os direitos‖ (RODA DE
CONVERSA ONG OLIVIA/UFPA)

A ação política do movimento LGBT, foi questionada na roda de conversa, as


militantes manifestaram incômodo com a característica de ―oba oba‖ – fala das
protagonistas – nos atos das paradas LGBTI+. De acordo com narrativas,

―não adianta subir num trio elétrico e gritar por empregabilidade para
as pessoas trans, se não cobrar projetos para a empregabilidade.
Onde estão essas pessoas (as que se fazem presentes no dia do
orgulho LGBT) na hora do enfrentamento? (RODA DE CONVERSA
ONG OLIVIA/UFPA).

Para Araújo e Frigotto (2015), é justamente o compromisso com a


transformação social, que diferencia os projetos de educação das pedagogias de base
social, como o ensino médio integrado, que tem o trabalho como princípio educativo,
dos projetos de educação fundamentado nas pedagogias de cunho liberal, estruturado
a partir de competências e habilidades. No contexto das pedagogias de cunho liberal o
foco é o mercado de trabalho, dessa forma, o ensino profissionalizante é utilizado
como ―instrumento pedagógico‖, de especialização técnica da mão de obra, e os
estudantes meros objetos dessa ―profissionalização‖.

954
O ensino profissionalizante, quando desenvolvido com foco no mercado, de
acordo com Frigotto (2007), aliena o potencial de transformação das pedagogias de
base social, que tem a ―[...] função de desenvolver nos estudantes a capacidade de
agir crítica e conscientemente e de adaptar a realidade às suas necessidades e não o
oposto [...]‖ (ARAÚJO, FRIGOTTO, 2015, p. 73). Considerando a realidade do mundo
do trabalho para as pessoas travestis, transexuais ou transgêneros, faz-se necessário
discutir de maneira crítica a existência de estudantes Lésbicas, gays, bissexuais,
transgêneros no ensino médio integrado tendo em vista a inserção com qualidade no
mundo do trabalho.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Frequentemente as relações disciplinares que se estabelecem no cotidiano
escolar se caracterizam por relações de poder em todas as dimensões. Quando se
trata das questões sobre identidades sexuais e de gênero, Junqueira (2013, p. 75)
observa que o poder age sobre os corpos objetivando ―sua normalização, por meio da
qual uma identidade específica é arbitrariamente eleita e naturalizada, e passa a
funcionar como parâmetro na avaliação e na hierarquização das demais‖.
Tratados como fenômenos discursivos e culturais, gênero e sexualidade
transitam na fronteira dos projetos societários em disputa, e assim se inserem nos
projetos educacionais. Referências a estudantes homossexuais como: ―aquele
gayzinho‖, ou ―você viu a aluna A? Estava abraçada com a aluna B. Um absurdo! Tem
que chamar os pais dessas meninas, depois fica reprovada e vai culpar a escola‖, são
reveladoras dos efeitos arbitrários da generificação dos corpos no cotidiano escolar.
Para traçarmos um perfil dos estudantes colaboradores nas atividades de
produção da história em quadrinho, e conhecermos suas intenções em participar da
atividade, foi elaborado um formulário, que apresenta a narrativa dos estudantes sobre
suas identidades, vivências, percepções de si e da escola no contexto das abordagens
sobre gênero, sexualidade e trabalho no ensino médio integrado. Quem são esses
sujeitos?
Onze estudantes compõem o quadro de colaboradores nas atividades de
produção do quadrinho (Figura 2). Considerando os marcadores sociais, quanto à
identidade de gênero e orientação sexual (Quadro II) são três mulheres-cis-hétero;
duas mulheres-cis-bissexuais; dois homens-cis-hétero; um homem-cis-bissexual. Uma
estudante identificou-se somente como mulher-cis (identidade de gênero) e outra
estudante não respondeu ao formulário. Louro (1997, p. 24) salienta que o gênero faz

955
parte da formação da identidade dos sujeitos, e estes tem ―[...] identidades plurais,
múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que
podem, até mesmo, ser contraditórias‖.

Quadro II - Perfil dos estudantes quanto aos marcadores sociais de gênero e


orientação social

GÊNERO IDENTIDADE / ORIENTAÇÃO SEXUAL ESTUDANTES

MULHER HÉTERO – CISGÊNERO 05

MULHER CISGÊNERO – BISSEXUAL 02

HOMEM HÉTERO – CISGÊNERO 02

HOMEM CISGÊNERO – BISSEXUAL 01

TOTAL 10

Fonte: Coleta de dados setembro/2019

Quanto à questão étnico/racial (Quadro III), uma estudante refere a si como


mulher-hétero-cis-branca, quatro mulheres-hétero-cis-pardas/negras, uma mulher-cis-
bissexual-negra e uma mulher-cis-bissexual-branca. Os dados sobre os homens
apontam a presença de um homem-hétero-cis-branco, um homem-hétero-bissexual-
branco e um homem-hétero-cis-negro. A faixa etária das/dos estudantes corresponde
a dezessete anos (oito estudantes) e dezoito anos (duas/dois estudantes).

Quadro III - Perfil das/dos estudantes quanto aos marcadores sociais de


raça/etnia

RAÇA/ETNIA GÊNERO / ORIENTAÇÃO SEXUAL ESTUDANTES

MULHER - CIS - HETEROSSEXUAL 01


BRANCA
MULHER - CIS - BISSEXUAL 01
HOMEM - CIS - BISSEXUAL 01
BRANCO
HOMEM – CIS - HETEROSSEXUAL 01

PARDA/NEGRA MULHER - CIS - HETEROSSEXUAL 04

NEGRA MULHER – CIS - BISSEXUAL 01


NEGRO HOMEM – CIS- HETEROSSEXUAL 01

TOTAL 10

Fonte: Coleta de dados setembro/2019

956
Questionados sobre o interesse, em participar das atividades de produção da
história em quadrinho, as/os estudantes manifestaram que é uma oportunidade de
desenvolverem suas habilidades com o desenho além de discutir a temática gênero e
sexualidade. Sobre esse tema, é importante registrar que todos os estudantes (dez)
que responderam ao formulário, afirmaram que a temática é discutida, somente no
segundo bimestre do 2º ano no componente curricular de Sociologia (eixo comum) e
que nas disciplinas base técnica (eixo profissional), o assunto não é abordado.
Outro ponto referenciado, diz respeito à participação dos estudantes em
atividades sobre gênero e sexualidade durante sua trajetória escolar, também aqui,
todos responderam que nunca participaram. Esse dado indica o silenciamento das
abordagens sobre gênero e sexualidade, na trajetória escolar dos estudantes, bem
como o ocultamento do tema também no currículo, e nos impõe a reflexão sobre as
possíveis causas do silenciamento e do ocultamento.

Figura 2 – EETEPA ICOARACI: Estudantes desenvolvendo a HQ

Fonte: Acervo da autora

Sobre a organização de atividades planejadas, pensando na orientação de


estudantes LGBTI+ e o mundo do trabalho, todos os estudantes que fazem parte da
atividade de produção da história em quadrinho, responderam que nunca participaram
de nenhum debate, palestra ou discussão relacionados ao tema, e por não terem
conhecimento de nenhum tipo de preconceito ou discriminação por conta da
orientação sexual, entendem que a escola trata igualmente a todos, e por isso já
contribui para a inserção com qualidade no mundo do trabalho.

957
Ao observar a sala de aula no ensino médio integrado em colaboração com a
9
professora C , que desenvolvia sua prática discutindo a organização do trabalho, no
contexto do fordismo/taylorismo, percebi o quantitativo reduzido de estudantes em sala
de aula. A professora explicou que as/os estudantes conseguem trabalho e / ou
passam para o turno da noite, ou evadem da escola, frisou também que os cursos não
10
parecem muito atrativos para os alunos, e referiu-se ao curso de hospedagem que
encerrou a oferta de novas matrículas devido a baixa demanda dos estudantes pelo
curso. No decorrer da aula, a professora C, para contribuir com a pesquisa sobre
gênero e sexualidade no ensino médio integrado, teceu alguns comentários sobre e os
estudantes começaram a se manifestar.
Característico do tabu que envolve a abordagem sobre gênero e sexualidade
em sala de aula, a discussão provocou um frisson entre as/os estudantes, entretanto,
a professora ―E‖, falou muito rapidamente sobre respeitar a orientação sexual de cada
pessoa, e direcionou a fala para questões como como gravidez na adolescência,
infecções sexualmente transmissíveis, cuidados com o corpo, e higiene íntima
masculina. Percebe-se que quando o assunto é sexualidade, conforme já apontado
por César (2009) ainda predomina a abordagem biologizante do tema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa das/dos estudantes, através das respostas nos formulários, indica


que parece haver um lugar no currículo oficial para a discussão sobre gênero e
sexualidade, mesmo considerando a transversalidade do tema, e esse lugar é o
componente curricular de Sociologia. Neste sentido, o produto educativo desenvolvido
em colaboração com os estudantes do curso técnico de design da EETEPA-
ICOARACI, torna-se relevante na medida em que articula componente curricular da
base comum (Sociologia) e componentes curriculares do eixo profissional (técnicas de
desenho) e sugere que atividades organizadas nesta configuração, além de ampliar o
campo de estudo sobre os temas, podem constituir-se em resistência diante da
possibilidade de retirada da temática do currículo educacional, como desejam os
defensores do projeto escola sem partido.

9
―Fazer etnografia crítica de sala de aula sem o professor é continuar a falar sobre a realidade
dele sem que ele possa sequer opinar sobre o significado de sua prática‖. MATTOS, Carmen
Lúcia Guimarães de. ―Etnografia Crítica de Sala de Aula: o Professor Pesquisador e o
Pesquisador Professor em Colaboração‖. R. bras. Est. pedag., Brasília v.76 p.98-116, jan-
agosto 1995.
FONTE: Secretaria da Unidade Escolar abril/2019.

958
Ao considerarmos a fala das militantes travestis e transexuais sobre o mundo
do trabalho, percebe-se a existência de uma possível despolitização, percebida pelas
lentes das próprias militantes. Pode ser que não represente a opinião da maioria
organizada em torno do Movimento LGBTI+, entretanto, por se tratar de protagonistas
com grande representatividade nos espaços de mobilização e de luta, deste segmento
social, é importante registrar.
Como resultado da pressão de Organizações Não-Governamentais (ONG) e do
Movimento LGBT, resultado da pressão de ONGs (OLIVIA), existe na Câmara
Municipal de Belém, um projeto de lei, de autoria do vereador Fernando
Carneiro/PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), denominado ―Mais trans, menos
ISS‖, que prevê incentivo fiscal, para empresas que contratarem profissionais travestis,
transexuais ou transgêneros. Fernando Carneiro entende, que as pessoas transexuais
são as mais estigmatizadas, e entram nas clivagens das opções como o extremo da
marginalização.
Em atividade realizada em 31/10 nas dependências da Universidade do
Federal Pará, sobre o combate ao preconceito de transgêneros no ―mercado‖ do
trabalho o vereador do PSOL, informou ao público presente a existência do projeto
―Mais trans menos ISS‖, e a intenção de reapresentá-lo uma vez que foi rejeitado em
2015. A justificativa da Casa para a rejeição do projeto, fundamentou-se na Lei
Orgânica do Município, segundo a qual a câmara dos vereadores não possui amparo
legal para legislar sobre questões tributárias, e que gerem despesas ao município,
sendo atribuição somente do executivo.
Entretanto, sabe-se, e o vereador Fernando Carneiro refere, que câmara
municipal enquanto espaço de poder, é constituída por grande número de vereadores
ligados às igrejas neo – pentescostais, de diversas denominações, e compõem a ala
conservadora, contrária à pauta defendida no projeto.
A disputa por modelos de educação e de sociedade está posto, e conforme foi
discutido neste artigo, a aliança entre forças políticas, movimentos sociais, ensino e
pesquisa, e práticas educativas, compromissadas com uma formação humana integral,
pode constituir-se em contra – hegemonia, na tentativa de apagamento e
silenciamento de experiências das pessoas LGBTI+ qualquer que seja o espaço de
atuação, a escola ou o mundo do trabalho.

959
REFERÊNCIAS

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de Pesquisa, v. 25, n. 3, p. 127-145, 2018.
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960
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planos de educação brasileiros. Educação & Sociedade, v. 38, n. 138, p. 9-26, 2017.
Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/873/87350459002.pdf. A cesso em: 13 out.
2019.

961
CORPORIEDADES E IDENTIDADES -HIP-HOP E MULHERES QUE DANÇAM BREAK

Sabrina Figueiredo Sousa/


https://doi.org/10.29327/527231.5-64
Universidade Federal do Pará - UFPA

Resumo
O Hip Hop que em sua construção teve quatro elementos fundantes: Break, Mc, DJ e o Grafite.
Entendendo também contextos atuais a expressão do Quinto elemento, o conhecimento sobre as
construções físicas e simbólicas. Objetivo é analisar a trajetória femininas no Break, construção do
conhecimento sobre hip-hop e a permanência de mulheres, espaço (organização e resistência) de
segurança. Metodologia utilizada foi a observação participante na perspectiva decolonial. Resultados
são perspectivas construídas em uma década da construção dessas trajetórias, resistir transitando
sobre a necessidades de fala desta corporeidade e o dançar, o fazer hip-hop conjunto as relações que
são construídas com outras mulheres dentro e fora dos espaços, para estratégias de permanência e
(re)construção das suas identidades, afirmação no movimento político cultural e artístico,
enfrentamento
a invisibilidade.
Palavras-chave: Mulheres, Hip-hop, Juventudes, Break, Quinto Elemento.

Abstract
The Hip Hop, which in its construction had four founding elements: Break, Mc, DJ and Graffiti.
Understanding also current contexts the expression of the Fifth Element, the knowledge about the
physical and symbolic constructions. The objective is to analyze the female trajectory in the Break, the
construction of knowledge about hip hop and the permanence of women, security space (organization
and resistance). Methodology used was participant observation from the decolonial perspective.
Results are perspectives built in a decade of the construction of these trajectories, resisting the speech
needs of this corporeality and dancing, doing hip hop together the relationships that are built with
other women inside and outside the spaces, for strategies of permanence and (re) construction of their
identities, affirmation in the cultural and artistic political movement, confronting invisibility.
Keywords: Women, Hip Hop, Youth, Break, Fifth Element.

962
O Hip Hop teve seu surgimento na transição entre os estilos funk e o soul music, por volta do
final da década de 1960 tendo seu reconhecimento oficial em 1973 no surgimento de uma das maiores
organizações Hip-Hop do mundo, a Universal Zulu Nation, na periferia de Nova York, no bairro do
Bronx – data que também é vista como a junção dos elementos o que caracteriza o hip-hop. Com
heranças afrodiaspóricas da Jamaica e sua influência Soud Sistens, e parte de danças porto-riquenhas
no contexto de mudanças sociais de crise do final da década de1960 com problemas sociais de
ausências de políticas públicas, de estrutura, desemprego, habitação, a elevação da pobreza, ausência
de lazer, etc. à população negra, latina que ali residiam, como resgate e transformação de suas
realidades – os jovens transformaram essas narrativas em imagens, sons e movimentos, transformando
em elementos que transitam entre várias formas de expressão que em sua construção teve quatro
elementos fundantes: Break(dança), Mc(mestre de cerimônia), ou DJ(disque joquey -mixador, etc) e o
Grafite (artes visuais plásticas de intervenção urbana). Entendendo também contextos atuais a
expressão do Quinto elemento, o conhecimento sobre as construções físicas e simbólicas.
O hip-hop ao mesmo tempo em que se caracteriza enquanto movimento social também se
1
destaca por desempenhar aspectos culturais de comportamento destes grupos inseridos nestes
elementos, partimos então dessa concepção para pensar a trajetória de ser mulher neste espaço, em
específico no break que é o elemento da dança, neste sentido discutiremos aspectos sociais e culturais
do hip-hop.
Compreendendo também a capacidade de adaptação reajustes regionais o Hip-hop por tem
ampla difusão mundial, percebe-se em cada território especificidades, como no Brasil há relatos que
em seu surgimento movimentos de capoeira foram acrescentados aos movimentos estadunidenses para
não se tornarem reproduções, sendo visto hoje um fator decisivo em batalhas a capacidade de
adaptação e improvisação, criatividade; estas especificidades com as quais os sujeitos se relacionam,
contudo a estrutura que organiza e sustenta e apropria os sujeitos deste se identificar enquanto sujeitos
do hip-hop, seja de qual elemento for está ligado também as amarras que também causam essas
percepções gerais tanto positivas quanto negativas, e a percepção de mulheres neste lugar em que o
2
break está à dança e seus dançarinos o Break Boy e Break Girl (b.boy e b.girl) uma vez que percebe-
se a

“Hip hop " um terno que vai além. significa cultura, mas também significa movimento, arte, expressão, paz,
amor, soluções, lutas e igualdade de direitos.” (MOTTA, BALBINO, 2006.p. 10).

“O termo break, idealizado pelo DJ Kool Herc, nos anos 1970, define-se como trecho de maior impacto de uma
música que valoriza mais a batida. Os jovens que dançavam nas quebradas das mixagens começaram a ser
chamados de break boys, o que deu origem aos termos b-boy e b-girl. Os principais movimentos da dança hip
hop são: o eletroboogie, com movimentos robotizados; o up rock, o sapateado do break; e o breakdancing, que
são os movimentos acrobáticos e giros no solo.”).” (ALVES, 2009.p. 33).

963
3
predominância masculina Os contextos diferenciados de entrada do hip-hop nos diferentes territórios
do brasil também nos faz pensar como a juventude da época se organizou para a realização dos
4
primeiros movimentos organizados da época e suas influencias globais.
As contra narrativas deste movimento estão sobretudo nas histórias de resistência dessas
mulheres que adentram as rodas, os ensaios, as batalhas e resistem na luta por igualdade de
oportunidades e de conquista de espaços físicos e simbólicos. A corporeidade trabalhada em
movimentos por corpos femininos, seja de mulheres ou de homens que apresentam esses elementos em
suas danças, são contestados pela hegemonia do ser masculino e inferiorizados pela incapacidade de
reprodução plena do padrão másculo.
A corporeidade de mulheres na dança break é contestada e reafirmada por diversas vezes como
inferior ao movimento praticado por homens, cujas capacidades são exacerbadas como artificie e
manutenção desta figura principal em detrimento de uma imagem secundária, por vezes nem citada,
que são as vozes das mulheres que falam com seus corpos as narrativas de insegurança de si e de suas
novas atribuições de “incapacidades” de reprodução dos modelos masculinos. Em que a subjetivação
destes sujeitos está ligado não somente na sua expressividade mas em transpassar a competição antes
vista por rivalidades de grupos e gangues hoje nas performances de corpo indivíduo nos grupos,
também chamados de Crew.
As constantes narrativas masculinas sobre a permanência das mulheres e a recusa de perceber
a necessidade de diálogos sobre corpo e seu controle, estes não percebem também as situações de
vulnerabilidades que estão sujeitas sobre a exposição de um corpo que é hiper sexualizado ou que este
também necessite de sua negação para aceitação, seja nos ambientes coletivos seja em seu privado,
sobre o controle de mobilidade e cerceamento de trânsito das mulheres em detrimento dos afazeres
domésticos ou mesmo familiares, sobre a permissão invisível do estar na qual há de se perceber que a
não aceitação desta presença cria mal estar para que seja explicito o não querer a presença física e
simbólica de

“O hip hop, em parte por ser uma cultura de rua, apresenta alta predominância masculina. [...]O break, por ser
composto de movimentos vigorosos e de força, supostamente não favoreceria a presença feminina. Nos grupos
estudados por Weller (2005), a participação feminina é pequena e se restringe a um papel secundário, com as
mulheres disponibilizando seu corpo para melhorar a imagem do grupo, como apresentadoras, ou como
decoração no fundo do palco. Nas teses e dissertações existentes sobre o break, a mulher não é objeto de estudo
e, no movimento hip hop como um todo sua participação só é tema central em quatro estudos num grupo de
oitenta e sete: Matsunaga (2006), Lima (2005), Magro (2003) e Magalhães (2002).”(ALVES, 2009.p. 33 – 34).
4
Esse movimento como aqueles também chegou a Belém e também coincidiu com o momento em que o
movimento punk chegou por aqui. Assim, quando o hip hop se torna um movimento consolidado em Belém ele
estva em contato com os punks. (FERREIRA,2013. p. 41).

964
5
mulheres no que é visto como espaço de narrativas de poder , cujo poder está associado a roda e sua
competição, os treinos para um ritual, em que a coadjuvância da mulher está diretamente associada ao
âmbito doméstico e seus transito nesse lugar, e mesmo no rompimento desta cerca as figuras
masculinas tentam associar a vitória desse rompimento aos homens que dela buscam partilhar, como
mais um artifício de suprimir a presença das mulheres e mais uma vez pôr-se em destaque.
O objetivo deste trabalho é fazer algumas observações sobre o contexto sociocultural das mulheres no
break, é analisar a trajetória no Break em Belém, a construção de seus conhecimentos sobre hip-hop e
a permanência de mulheres, espaço (organização e resistência) de segurança como construção de suas
identidades enquanto mulheres que se identificam como “Mulher/ garota que dança break”.

Metodologia
6
As análises partiram da observação participante , em que a pesquisa se dá pelo processo de
interação com os/as sujeitos/sujeitas relacionados, cujo processo de pesquisa se dá pela interação e
participação, no qual não se trata como objeto de pesquisa mas sujeitos os quais possuem ação e a
relação
vista como processo de investigação. Acompanhando eventos, ensaios, conversas cotidianas com as
mulheres e os homens que transitam neste elemento, mantendo o contato por redes sociais,
aproximando para entender a rotina destes participantes e os momentos de competição. Percebendo a
relação de seus participantes na visão decolonial, cujas reproduções de modelos são também rompidas
para criação de novos referenciais.
Além do acompanhamento das relações estabelecidas pelas atividades as quais os indivíduos
partiram, tanto de diálogos interseccionais orientados a partir da pedagogia libertadora assim como a
“educação entre pares” - em que jovem trabalha com jovem, bem como traçar a continuidade de
relação e envolvimentos trazidos pela linguagem corporal e a psicologia da dança na compreensão dos
sujeitos participantes.

“Relatos de mulheres praticantes dizem que a maioria dos B-boys não aceitam que a mulher atue nessa vertente
e acham que elas não são capazes de executar os movimentos necessários.” (Trecho reportagem do blog Geek

Al tratar de conceptualizar la metodologia cualitativa se presentan dos tentaciones fáciles que deberán obviarse
en menor o mayor medida: Una, consistente en apoyarnos en el concepto aparentemente mejor delimitado de
metodologia cuantitativa, y otra relativa a las técnicas que abarca o incluye. En la actualidad, en efecto, buen
número de discusiones se plantean en base a dicotomias diversas: investigación nomotetica (nomológica) /
idiografica (ideográfica), investigación psicometrica / etnometodologia, investigación de laboratori0 / de campo,
investigación experimental / naturalista, ... (Álvarez, 1986). [...]” (apud in ANGUERA ARGILAGA, 1986. P 24.)

965
A percepção sobre a performance em relação ao corpo, o corpo enquanto identidade étnica e
7
racial composto por seus significados de resistência em que a dança será a fala deste corpo , e os
gestos e expressões os seus signos comunicando seus significados. Assim a performance no breaking
se assemelha as origens e reporta a transição desta rivalidade de grupos, transpassada em movimento,
em competição que pode ser recorrente apresentado como verdadeiras batalhas de dança.

RESULTADOS

Essa expressão vem também dos diálogos com minhas interlocutoras, que contesta a validação
do homem sobre o que é ser b.girl, enfatizando que a natureza do ser b.girl está no ser garota que
dança break.
São perspectivas construídas em uma década da construção dessas trajetórias, resistir
transitando sobre a necessidades de fala desta corporeidade e o dançar, o fazer hip-hop conjunto as
relações que são construídas com outras mulheres dentro e fora dos espaços, para estratégias de
permanência e (re) construção das suas identidades, afirmação no movimento político cultural e
artístico, enfrentamento a invisibilidade. O trânsito destas mulheres que normalmente articulam es
estrutura ao lado de seus companheiros ou mesmo compartilham de pensamentos sobre organização e
suas percepções sobre estes espaços são emudecidas nas narrativas sobre hip-hop, sobretudo no
elemento do corpo/movimento e da dança.

Corpo e Performance do corpo - “O ser humano está familiarizado ao seu corpo e assume uma postura de
proximidade com os demais corpos do grupo social em que vive. A performance, neste aspecto, salienta esses
movimentos e os desloca da sua normalidade, provocando assim um realce e um pensar sobre essa atitude.
O corpo é social e individual, expressa metaforicamente os princípios estruturais da vida coletiva. Essa estrutura
somática humana abriga uma sacralidade pura e uma impura. Há no organismo, forças controladas e forças que
ignoram o controle. O corpo pode ser belo ou nojento, ser amável ou agressivo, mesmo involuntariamente. O corpo
um composto que vive em um equilíbrio dinâmico entre as duas forças, social / individual, mas, talvez, muito mais
tensionado pelo aspecto individual. No caso do corpo negro a maior tensão encontra-se no aspecto social é o
corpo marcado pelo racismo.” (AMADOR DE DEUS, Z. 2011. P. 5).

966
Figura 1 e Figura 2Espectadoras, espectadores e Bboys assistindo a competição – Cypher Amazon Crew. Abril/2019

Suas passagens nesses lugares não são invisíveis a outras mulheres que narram as trajetórias de
batalhas passadas, de mulheres que transitam nesses espaços e das que alcançam voos entre as
batalhas, criam espaços de escuta e troca, as vezes fragilizados pela rotina doméstica a qual está
relacionada diretamente com este lugar, cuja casa e família caminham junto com o sentimento de
grupo/coletivo/crew.

Figura 3 e Figura 4– Espectadoras assistindo a competição – Chypher Amazon Crew. Abril/2019

Figura 5 – Jurados e espectadores Cypher Amazon Crew. Abril/2019

As batalhas são momentos que beiram a tensão entre a rivalidade, a competitividade e elos de
respeito e a espontaneidade da arte e movimento. A competição não mais está associada a rivalidade de
gangues, mas a competição de ritmos, de criatividade, de desenvolvimento e reação, de habilidades e

967
domínio das bases da dança. A competição então cria condições de interação cujas famílias que estão
inseridas neste meio compartilham os valores desta relação.

Figura 6 e Figura 7 Cypher Amazon Crew. Abril/2019.

Figura 8 Cypher Amazon Crew. Abril/2019

O corpo então transita pelo aceitável e estimado, o que é estigmatizado pelo ser do homem, em
que a história deste homem, comumente apresentado como afrodescendente, está na disputa pelo
discurso deste corpo manifesto, em que lutas do cotidiano, de seus contextos sociais estão colocados
em suas performances.
As performances proporcionadas pelo compartilhamentos de signos/movimentos e histórias de
vidas de pessoas antes com corpos colonizados, que para Frantz Fanon estrutura este corpo de maneira
que o mesmo reproduz um comportamento colonial de individualização em que sem um colonizador
como elo não constitui a comunidade que precisa se reabilitar, reintegrar esse corpo colonizado, os
quais precisaram reaprender a falar com o corpo todos os silêncios impostos pela sociedade que por
muito tempo impôs sobre seus corpos uma “normalidade” cuja ansiedade da fala e da dança se cruzam,
onde dores e afetos se combinam, cuja dicotomia nada mais se fora do que uma etapa em busca de
relacionar o corpo antes “privados e públicos”, com conceitos e afetos que agora se tornaram elo entre
as pessoas que participam. O permitir entre os movimentos e os entraves que estão invisíveis nas
amarras que afastam as mulheres destes espaços.

968
Figura 9 – Foto divulgação campeonato Red Bull BC One, 2018. Vencedora Mini Japa, Mayara Collins.

Assim, a performance a disputa de narrativas de mulheres neste espaço, em que seus corpos
falam de um contexto próximo a realidades dos homens, mas em distinção de comportamento, sobre
novas narrativas de outros corpos não presentes e silenciados nessa construção histórica do
movimento, como a subalternidade nas oportunidades destes em ter espaços de evidência para
competição. Em entrevista à Tv Globo, programa de Fátima Bernardes – Encontro Mayara comenta
sobre a dificuldades de estar ativa na dança e sair do norte do país, cuja ausência de oportunidades,
comenta também a dificuldade de competições equitárias de breaking, cuja premiação não seja
meramente simbólica as dançarinas ou de valor menor, enfatiza ainda que a competição de 2018 é a
primeira vez que o Campeonato Red Bull BC One premia na Categoria de B.Girl com a mesma
premiação da categoria de B. Boys. Este ano a b.Girl Mini Japa competiu novamente na regional
brasileira da competição, sendo a única da Amazônia a chegar entre as 16 melhores, e após a perda
para a atual representante brasileira, a mesma conseguiu participar da mostra da competição sendo
uma das selecionadas por seu vídeo performance, apontada em algumas reportagens como uma das
melhores b.girls do país.

“Ainda há muito preconceito com mulher na cena, é muito difícil um garoto


aceitar uma derrota para a gente numa batalha, por exemplo. Mas aos poucos estamos
provando que, mesmo com diferentes tipos físicos, somos capazes de competir de
igual para igual.” Mini Japa (Entrevista - RedBull, 2018)

969
Figura 10 e Figura 11 - Mayara Trabalhando no evento de sua Cew (Amazon Crew), ao lado imagem da Bgirl junto com
o Bboy Leony da sua Crew/2019

A tragetórias das mulheres nesses espaços muitas vezes estão entre afastamentos causados pela
violencia do controle sobre corpos femininos, e da não aceitação destes corpos es espaços públicos, ou
mesmo hipersessualizando seus corpos publicizando e criando novas situações de constrangimento.
Estas situações geram uma série de dificuldades em partilhar histórias e geram isolamento nas que não
conseguem perceber as sutilezas do machismo, das falas despretenciosas, dos deméritos associados as
mulheres, muito embora a resistencia e a performidade de algumas destas mulheres em empenhar-se
por criar novas referências de comportar e de enfrentar situações de machismo nos espaços do break
trazem novas ares, em muitos lugares no Brasil surgem novos movimentos de mulheres, de Crews de
Mulheres, ou que estas também criam espaços de convivência e segurança para outras mulheres e
comunidades lgbtqi+.
Estes novos espaços de discussão e formação política são desde oficinas livres a performances
coletivas que incluem mulheres e lgbtqi+, em que as muheres que caminham neste sentido constroem
a partir de suas tragetórias espaços de segurança e de boa comvivência, repensando a estrutura de
desinvizibilizar estes corpos insurgindo seus discursos pelo corpo presente. Performidades como na
competição de break de 2016 em Belém, que foi trabalhada pelas b.girls Mini Japa, Sara Laman,
Thaysa, Paulinha, uma competição em que as mulheres foram o foco, e além de diálogos sobre o
movimento criaram um espaço de acolhimento para as mães em Belém. Hoje cada uma desenvolve sua
militancia no break tanto virtual como nas suas apresentações em campeonatos e batalhas.
“Ainda falta muito, mas estamos conseguindo conquistar nosso merecido
espaço dentro do breaking. A revolução é feminina.” FabGirl . (Entrevista - RedBull,
2019).
Outro exemplo de atividades construídas e ressiguinificadas pelas mulheres sobre a atuação no
break e suas invizibilidades está nas construções e articulações da b.girl “FabGirl”, oriunda de Brasília
onde atua com sua Crew BSB, cria espaços de segurança e convivência, em que a mesma realatou em
diálogo realizado em dezembro de 2018 em Belém pela Caravana Hip-hop sobre a necessidade de

970
enfrentar e colocar a diversidade para falar, sobre como nos eventos da sua Crew (que é responsável
por um dos eventos mais inportantes do meio, pensado para B.Girls – a Batlhe Batom), sobre suas
atendentes no evento serem mulheres trans, e em todos os eventos ser pautado a diversidade deste
meio que por muito tempo fora invizibilizado.
Assim, as discussões sobre o repensar um novo meio hip-hop, um novo meio break e
evidenciar esta diversidade de relações está em constantes diálogos protagonizados e tencionados por
mulheres, que estão em todo Brasil pensando novos meios de sociabilidades, de não reprodução das
amarras do machismo, e do repensar do break em suas especificidades regionais, como feito em
Belém.

971
REFERÊNCIAS

ALVEZ, Ana Paula. Mulheres na dança do movimento hip hop: a construção do sujeito reflexivo a partir de
uma nova pedagogia de gênero. Rev Genero v 10 n 1.indb. Niterói, v. 10, n. 1, p.31-46, 2. sem. 2009.

ANGUERA ARGILAGA, Maria Teresa Metodologia de la observación en las Ciencias Humanas, 1986.
23-50.

AMADOR DE DEUS, Zélia. Os Herdeiros de Ananse: Movimento Negro, ações afirmativas, cotas
para negros na universidade. Zélia Amador de Deus, orientadora: Marilu Campelo. – 2008.Tese
(doutorado). Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais, Belém, 2008.

__________, O corpo negro como marca identitária na diáspora africana. Congresso Luso Afro
Brasileiro de Ciências Sociais, Diversidade e (Des)Igualdades. Salvador. 2011.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e
jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção
em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área Técnica de Saúde do Adolescente
e do Jovem. – Brasília: Ministério da Saúde, 2010.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

_____________. Pele negra, máscaras brancas / Frantz Fanon; tradução de Renato da Silveira. -
Salvador: EDUFBA, 2008.

FERREIRA, Leila Cristina Leite “E ai, vai ficar de toca? Cola com nós”: lata na mão, grafiteiros na rua,
arte nas paredes: a juventude grafiteira em Belém / Leila Cristina Leite Ferreira. UFPA. Belém – 2013.

MENDES, Ana Flavia. Abordagens criativas na cena, os múltiplos olhares da Companhia Moderno de
Dança. São Paulo. Escrituras Editores, 2010. Coleção processos criativos em Companhia.

MOTTA, Anita; BALBINO, Jessica. Hip hop: a cultura marginal: do povo para o povo. 2006.

SAVAGE, Jon. A criação da juventude: Como o conceito de teenage revolucionou o século XX. Rio de
Janeiro: Rocco, 2009

Blog Geek Feminst. Mulheres no Break.05 de agosto de 2019. Acessado:


http://geeknfeminist.com.br/mulheres-no-break/. Dia 17 de novembro de 2019 as 22h13m.

Reportagem Red Bull BC One: Mini Japa vence batalha de b-girls durante final nacional - Acessado:
https://www.redbull.com/br-pt/red-bull-bc-one-b-girl-mini-japa-vence-duelo-nacional Dia 16 de
novembro de 2019 as 22h10m.

972
Reportagem MINI JAPA VENCE A BATALHA DE B-GIRLS DO RED BULL BC ONE CYPHER
BRAZIL – Acessado: https://rapnarua.wordpress.com/2018/06/12/mini-japa-vence-a-batalha-de-b-
girls-do-red-bull-bc-one-cypher-brazil/ Dia 16 de novembro de 2019 as 22h15m.

Reportagem FabGirl, estrela do breaking: 'A revolução é feminina'. Acessado:


https://www.redbull.com/br-pt/danca-dance-como-fabgirl Dia 18 de novembro de 2019 as 22h15m.

973
BINARIEDADE DE GÊNERO: PERCEPÇÕES SOBRE CORPOREIDADES ENTRE UM
GRUPO DE JOVENS EM BELÉM, PARÁ.

Vic Argôlo Da Silva (UEPA)


https://doi.org/10.29327/527231.5-65
Lucivaldo A. Alves (UEPA)
Ana Lídia N. Pantoja (UEPA)

Resumo: Neste texto realizamos reflexões em cima dos recorrentes debates que ocorrem
dentro do grupo de estudos e pesquisa, com as temáticas de gêneros e sexualidades, no
qual também fazemos parte na Universidade do Estado do Pará. Nosso objetivo é discutir os
aspectos da binariedade de gênero como marcadores das corporeidades dos jovens. Com o
uso de uma pesquisa exploratória, foram empregadas técnicas de análise dos relatos de
experiência presentes nos discurso feitos por um grupo de estudantes da graduação,
atentando à dicotomia feminilidade/masculinidade. Devemos ressaltar que as questões
discutidas estão sendo debatidas à luz da interseccionalidade, pois dentro do grupo
referimos, com frequência, a construção de argumentos e ponderações sob os temas a
partir do nosso próprio. local de fala. Observamos que a abordagem realizada configura-se
como uma discussão dos impactos binários de gênero em subjetividades e corporeidades de
indivíduos na sociedade, e compreendemos o quanto precisamos fomentar cada vez mais
esta discussão.
Palavras-chave: Binariedade. Corporeidade. Feminilidade. Masculinidade. Subjetividade.

GENDER BINARITY: PERCEPTIONS ABOUT CORPOREITIES AMONG A YOUNG


GROUP IN BELÉM, PARÁ.

Abstract: In this text we perform reflections on top of the recurrent debates that take place
within the study and research group, with the themes of genders and sexualities, which are
also part of the University of the State of Pará. Our goal is to discuss the aspects of gender
binariety as markers of the corporeities of young people. With the use of an exploratory
research, techniques were used to analyze the reports of experience present in the
discourses made by a group of undergraduate students, paying attention to the
femininity/masculinity dichotomy. We should emphasize that the issues discussed are being
discussed in the light of intersectionality, because within the group we often mention the
construction of arguments and weightings under the themes from our own. place of speech.
We observed that the approach performed is a discussion of binary gender impacts on
subjectivities and corporeities of individuals in society, and understand how much we need to
foster this discussion more and more.
Keywords: Binariedade. Corporeity. Femininity. Manhood. Subjectivity.

974
INTRODUÇÃO

Este texto discute os impactos binários do gênero em subjetividades e corporeidades


dos indivíduos na sociedade. Tal composição de análise surge dos momentos acadêmicos
em que a temática de gênero foi discutida no grupo de estudos que fazemos parte e,
chegamos em uma compreensão de análise que pare da imposição binária de gênero na
vida das pessoas.

O debate que aqui será realizado acaba sendo uma possível discussão que fez com
que a autoria se aproximasse no contexto de questões que atingem em comum e que dê
para se repensar, adotando a questão dos aspectos binários do gênero, por identificarmos
como uma composição que possui influência nos demais indivíduos que estejam vivendo em
sociedades vinculadas a uma composição que trata como linearidade as questões de uma
dualidade exclusiva de um feminino e de um masculino .

As reflexões que serão tratadas só foram possíveis após os encontros do grupo de


estudos que fez com que chegássemos a essa observação. Tal grupo é composto por
jovens universitários da Universidade do Estado do Pará que estudam e pesquisam sobre
gênero, em diversas áreas acadêmicas e que através das discussões de textos e produções
audiovisuais conseguimos discorrer um ponto em comum na análise de discurso.

Como este material acaba sendo resultado de uma pesquisa exploratória do próprio
grupo de estudos que estamos inseridos, foram empregadas técnicas de análise dos relatos
de experiência que foram expostos entre o grupo de estudantes da graduação, além de
sempre nos atentarmos à dicotomia feminilidade/masculinidade.

As questões trabalhadas ao longo dos debates e do texto são sempre abordadas por
uma perspectiva interseccional, devido compreendermos como é importante que as pessoas
consigam discorrer sobre suas próprias vivências e apontar quais composições da sociedade
influenciam em suas vidas, fazendo com que tenhamos um retorno, também, a noção do local de
fala, sendo este um grande conceito para realizar a elaboração de textos acadêmicos.

O texto está dividido em 2 partes principais. Na primeira parte trazemos algumas


colocações sobre a binariedade de gênero, através de uma análise da dicotomia
feminino/masculino e de como os papéis de gênero são pensados a partir dessa lógica que
condiciona as pessoas a seguirem uma normatividade binária de vivência.

Já na segunda parte dialogamos a discussão de corporeidades sociais demarcadas


através da relação entre as subjetividades dos indivíduos do grupo de jovens com a
perspectiva de que tais demarcações são inferidas por uma composição binária do gênero.

975
A BINARIEDADE DE GÊNERO EM EVIDÊNCIA: UMA DISCUSSÃO SOBRE PAPÉIS DE
GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA BINÁRIA
Em grande parte do mundo Ocidente, isso de forma bem generalizada, todos os
indivíduos possuem papéis e manifestações sociais, nas quais seguem muitas das vezes o
sistema binário de gênero, homem e mulher, que consiste em delimitar as funções, os
gostos e o pertencimento das pessoas.

Trata-se de um processo de generização que envolve tempos, espaços,


corpos e comportamentos, diferenciando-os ao lhes conferir a significação
de masculinos ou femininos. Sexualizando-os. Assim, as prescrições/regras
quanto à maneira civilizada de vestir-se, relacionar-se com a família, portar-
se à mesa, proceder em visitas, bailes, conversações e passeios, circular
pela rua e espaços públicos, são definidas obedecendo a essa binariedade.
(MUNIZ, 2002, p. 8)

Quando pensamos em corpos sendo construídos e manifestados, inicialmente, as


pessoas logo irão se deparar com uma carga imensa de padrões sociais. Isto ocorre, por conta
de um indivíduo que ao nascer é lido como um menino, e a partir de tal leitura existe um
determinismo social de que anos depois tal menino se tornaria um homem e teria que realizar as
funções de homem dentro da nossa sociedade. Esse exemplo nos faz pensar bastante em como
se formam caixinhas sociais para os indivíduos, no caso da masculinidade

Na visão tradicional da masculinidade, espera-se que o homem providencie


o sustento da família. Essa condição dá ao homem o controle sobre a
sexualidade feminina, ao mesmo tempo em que exige constante disposição
para realizar o ato sexual. No entanto, o ato sexual não expressa uma
relação afetiva, mas uma relação de poder, uma relação de dominação. Por
isso, há a expectativa que o homem seja sexualmente ativo. Tal exigência
decorre da necessidade de reafirmação da identidade masculina, diante do
medo do feminino e da homossexualidade. Não poder ter filhos coloca em
xeque a virilidade de um homem. ―Pelo fato de comumente a esterilidade
masculina estar associada à impotência, não conseguir ter filhos relaciona-
se, para os homens, à sexualidade e ameaça sua virilidade‖. Não ter um
filho acarreta uma diminuição do capital de masculinidade porque possibilita
o questionamento da virilidade. Além disso, possuir um filho constitui, nesta
perspectiva, uma prova incontestável de sua heterossexualidade. (SOUZA,
2012, 1446-1447).

A partir disso podemos pensar inclusive os próprios aspectos que estão veiculados a
idealização de uma feminilidade, nos remetendo em como as mulheres estão condicionadas
a papéis de subserviência, de desigualdade, dentre outros contextos que as tornam em
pessoas que vivem sendo cobradas a se enquadrar nos próprios segmentos dos papéis
impostos, como Santos (2016) destaca que

Diversas pesquisas indicam que a mulher, comparativamente com o homem,


apresenta maiores preocupações e é mais exigente e ansiosa com o seu
aspecto físico, monitorizando, de forma mais vincada, o seu visual; que tende a
ser mais insatisfeita com a sua imagem corporal e revela uma maior propensão
para práticas que lhe permite melhorar a sua aparência [...] como praticar
exercício físico, iniciar uma dieta restritiva, usar cosméticos, depilar-se, usar
roupas justas, esticar ou encaracolar o cabelo, fazer cirurgia estética

976
ou lipoaspiração. Este conjunto de práticas corresponde a uma „disciplina
feminina do corpo‟, que têm como principal objetivo a modelação ou
transformação do espaço corporal feminino no sentido de se aproximarem
de um modelo estandardizado de feminilidade (SANTOS, 2016, p. 226-227).

Devemos destacar que todas as pessoas que são expostas a sociedade fundada em
composições binárias acaba trazendo consigo uma bagagem de construções sociais. Afinal
todos somos criados para seguir uma linha convergente de pensamentos, por isso, quando
o indivíduo passa a demonstrar interesse por algo que foge a narrativa desse padrão social
de masculinidade e de feminilidade, e ainda vai mais além, que é o caso de tornar-se
externo ou abjeto a essa manifestação, muitos padrões passam a ser quebrados. E assim
como Abreu (2013), ao tratar de performatividade de gênero em redes sociais,
compreendemos que esse rompimento traz outras possibilidades de corpos, principalmente
com a categoria LGBTQIA+, pois

Muitos e muitas da multitude LGBTTTQI, conscientes destas possibilidades,


produzem corpos de natureza ambígua, corpos que propõem outras
estratégias de performance, fazendo surgir novas formas de expressão que
borram as fronteiras fixas dos géneros binários. O resultado deste processo
são corpos fluidos, desfocados, em movimento, entrecortados pelos muitos
fragmentos da identidade, que rejeitam o convencional e praticam a ironia e
a contestação para descontextualizar o programado (ABREU, 2013, p. 488).

A binariedade do gênero acaba sendo uma configuração imediata quando se pensa


quase toda a composição existente do gênero na sociedade. Quando pensamos em como a
sociedade segue, de forma inevitável, tal noção acaba sendo desenvolvida por conta dos
moldes pertencentes ás hierarquias sociais, como Conceição (2013) discute que

Na sociedade ocidental as inúmeras práticas de entendimento acerca do


termo ―gênero‖ são confluentes em um só destino, apesar das diferentes
formas de se chegar à sua conceituação: o binarismo. Este termo tem a
competência de designar à sociedade a presença de somente duas
categorias de gênero, ou seja, fecha os princípios sociais à duas formas de
vida, a de ―ser homem‖ e de ―ser mulher‖, excluindo outras formas de viver e
inserindo-as nas anomalias da sociedade, como discursa a psicanálise,
além de ter a capacidade de hierarquizá-las, resultando em uma sociedade
heteronormativa patriarcal. (CONCEIÇÃO, 2019, p. 13)

As demarcações de feminilidades e de masculinidades, são segmentos de cunho


questionáveis, em que os corpos seguem, necessariamente, uma linha do que é esse ser
feminino ou ser masculino em sociedade, pois as condições de expressão, de gênero, de
identidades vai muito além daquilo que pessoa está utilizando cotidiana. É interessante
retornar com a questão de como as demarcações binárias do gênero são construções
sociais, e que essas questões de gênero é bem mais plural e diversificada do que
compreender o que uma pessoa está vestindo.

O debate da desconstrução do binarismo de gênero acaba sendo uma configuração


atual e sem previsão de término, por conta da grande importância que acarreta os

977
rompimentos com algumas noções de como se dá o impacto binário de gênero na vida das
pessoas. Podemos pensar em como os campos das identidades sofrem constantes
questionamentos sobre as suas reivindicações, pois existe uma influência dicotômica de
como o gênero funciona que tende a desvalidar toda e qualquer manifestação que fuja com
a normatização feminina/masculina.

Devemos discutir que os papéis de gênero irão seguir uma relação conjunta com as
representações sociais vinculadas a um contexto de binarismo de gênero, assim como
aponta Sayão (2006) trabalha ao dizer, em relação aos papéis de gênero, que

Esses variam de uma cultura para outra e dentro de uma mesma cultura.
No Brasil, encontramos uma rica diversidade cultural, e os papéis de
homens e mulheres evidenciam isso, ou seja, há diferentes formas de ser
mulher e ser homem em nossa sociedade, que se expressam, por
exemplo, na dança, na música, no trabalho doméstico e extradoméstico,
nos gestos, no meio rural ou no meio urbano, e, no caso das crianças, nas
brincadeiras. (SAYÃO, 2006, p. 6)

Devemos discutir que a partir desses aspectos culturais dos papéis sociais de gênero
seguem um impacto nos demais espaços e relações pertencentes a vida dos indivíduos, de
modo que podemos elucidar inicialmente a questão do contexto familiar, tal qual Botton et al.
(2015), debatem sobre as relações de gênero com os papéis parentais da família.

De fato, na vida familiar a divisão entre o que compete ao homem e o que


seria próprio da mulher ainda é transmitido e reforçado como um valor
culturalmente determinado. Considerando esta afirmação, problematizamos
o quanto estes modelos de paternidade e de maternidade – sustentados por
um modelo hegemônico de masculinidade e de feminilidade - aprisionam
homens e mulheres em amarras sociais que impedem que exerçam a
parentalidade de forma diferente dos modelos rígidos e estereotipados de
pai, como provedor, e mãe, como principal cuidadora. Entendemos que a
perpetuação destes modelos tem impacto não só no modo com que as
gerações atuais entendem e significam a parentalidade, mas também na
forma com que os filhos reproduzirão e exercerão a maternidade e a
paternidade nas gerações futuras (BOTTON et al., 2016, p. 49)

A partir destas colocações referentes aos contextos binários de gênero e como os


moldes da relação social e dos papéis de gênero funcionam, iremos tratar a seguir a
discussão de qual a relação que existe entre as corporeidades e a binariedade do gênero,
através de perspectivas inferidas a subjetividades de um grupo de jovens universitários em
Belém do Pará.

CORPOREIDADES DEMARCADAS: SUBJETIVIDADES IMPOSTAS À UM PADRÃO


BINÁRIO DE GENERO

A partir da discussão que fazemos em cima do sistema binarista de gênero


compreendemos como os moldes da sociedade são construídos e de que forma disso pode

978
atingir a vida das pessoas. Com as discussões de um grupo de jovens universitários em
Belém do Pará percebemos como isso funciona na prática.

Durante vários debates realizados no grupo, as mulheres destacavam como as


expectativas que caem sobre elas por conta de toda uma idealização imposta desde a
infância conseguem ser desgastantes e inalcançáveis quando se trata em realizar de fato as
atividades que são esperadas socialmente, por exemplo, algumas delas destacam em como
a estadia delas na Universidade as faz lembrar de toda essa composição de gênero, pois
sentem que aquele ambiente não foi pensado para o bem estar delas, em vista de que o seu
lugar teria que ser dentro de casa, como a provedora do lar.

Neste sentido, devemos pensar em como os ambientes em que estamos inseridos


vai reforçar e contribuir para que algumas noções de gênero sejam de fato acatadas como
verdades absolutas na vida das pessoas, sem ter a ingenuidade de que aquilo veio por
acaso, conforme Cruz (2013) destaca

Essas construções não surgem do nada. Elas são legitimadas pelo grupo e
repassadas de geração em geração. Evidentemente cada novo profissional
que chega à escola tem a possibilidade real de provocar as mudanças de
que ela necessita, até porque ele a percebe com maior facilidade pelo fato
de ainda não ter sido moldado pelo olhar do grupo. (CRUZ, 2013, p. 111)

Já para o que muitos dos homens que fazem parte do grupo de estudantes discutem,
eles repensam bastante a própria questão da masculinidade, e de como a cobrança
constante de seguir o papel social do homem pode ser desgastante e cruel, pois assim
como as mulheres, chega ser impossível alcançar de fato o modelo ideal do que é ser um
homem. Vale ressaltar que mesmo com as ponderações sobre a questão da masculinidade,
o grupo de jovens não deixa de reconhecer o quanto são favorecidos estruturalmente, ou
seja, não deixam de pontuar como funcionam os seus próprios privilégios, mas ao lado do
reconhecimento se enquadram as questões de questionar essa própria normatização.

Está questão se torna interessante de pensarmos, pois não devemos seguir uma
linha maniqueísta e linear das coisas, pois quando nos atendemos a questão da
corporeidade e a relação de gênero, precisamos entender que é equivalente a diversos tipos
de corporeidades, como proposto na análise de Pereira (2015), a qual nos diz que

Na medida em que se afirma que gênero e sexo decorrem de construções


culturais, colocam-se em xeque ―verdades‖ fortemente enraizadas na lógica
e na existência de todos. A heteronormatividade, lógica que embasa as
normas de gênero e sexualidade, é exercida de modo silencioso, invisível,
disseminado, como se fosse um comportamento espontâneo. (PEREIRA,
2015, p. 16).

Outro ponto que é apontado no grupo de jovens é a perspectiva trans e como essas
condicionantes padronizações de gênero em uma perspectiva binária funciona em tal

979
realidade. As colocações discutidas neste sentido de vivência é de como um sistema que
delimita os indivíduos a seguirem uma lógica binária acaba sendo violenta com corpos que
transcendem, rompem com esta relação, pois para as pessoas trans existe a questão de as
pessoas quererem uma normatividade, de que as pessoas trans precisam se enquadrar a
um outro paradigma de corporeidade, sendo que não é assim que funciona.

As pessoas trans neste caso se encaixam como sujeitos plurais que rompem com a
composição binária do gênero, mas que são constantemente pressionadas a se enquadrar
neste mesmo quadro binário, é como a análise do armário que Sedgwick (2003) realiza ao
dizer que quando se sai de um armário a sociedade tenra ter colocar em outro para que a
lógica normativa não seja atingida.

Ao pensarmos esse quadro podemos entender que a cobrança é de que sempre


exista uma retomada a ordem binária que existe dentro da sociedade, ou seja, que mesmo
ao seguir além da normatividade o corpo precisa reproduzir os mesmos aspectos que foi
inserido mesmo fugindo, como Damásio (2011) analisa

Assim o corpo será pensado como lugar de inscrição simbólica que refletirá
posições sociais na estrutura de 'todas as' relações de poder (seja de classe,
gênero e raça, etc.), sendo um campo profícuo para a leitura do mundo social,
na medida em que operaria a partir de uma lógica também dual, em que é
fincado no processo de interiorização das disposições vigentes no social, e
enquanto tal apreende essas disposições e reproduz a ordem do mundo, sendo
um legitimador da ordem binária existente. (DAMÁSIO, 2011, p. 215).

Essas configurações que o grupo aponta em suas subjetividades nos faz perceber o
quanto as suas próprias corporeidades são marcadas por aspectos binários de gênero que
são externos a cada um. Em como o seu cotidiano são entrelaçados por relações de gênero,
de classe, de raça, dentre outros aspectos socioculturais e históricos, fazem com que esses
indivíduos repensem as suas próprias vivências quanto pessoas.

Dentre esses noções conseguimos perceber como a análise feira pelos sujeitos sabe
ao ambiente da realidade em que estão inseridos, e que as suas discussões seguem uma
linha se estão de acordo ou não com tudo aquilo que lhe fora exposto, seguindo um tipo de
posição, tal como Goularth (2015) fala ao tentar (re)conceituar gênero e sexo, nos dizendo
que

A identidade do sujeito vai se produzindo ao longo da vida, num processo


de reprodução de outras já estabelecidas, ou de repulsão. O indivíduo se
apropria dos comportamentos de sexo e gênero a ele estabelecidos e os
ressignifica interiormente, aceitando ou rejeitando-os. Esse processo de
aceitação/rejeição vai manter antigos significados, ou mesmo produzir
novos. Assim, ler as próprias peças anatômicas, ou sexo, é uma das etapas
da construção individual, que vai ser regrada pela matriz de gênero da
cultura de referência. (GOULARTH, 2015, p. 23).

980
Essas observações acabam servindo para que possamos de fato realizar nossas
percepções sobre as corporeidades dos indivíduos mencionados adotando a noção de que
esses corpos são realmente demarcados por aspectos de um binarismo de gênero, no qual
as pessoas passam a refletir e se manifestar relação ao quadro somente no momento em
que se achar necessário, nos levando a considerar que algumas pessoas podem nem se
importar em como se dão essas relações por este ponto de vista.

nesta questão que queríamos chegar, pois, mesmo com a nossa constante
identificação de que exista uma projeção da binariedade impactando na vida das pessoas,
devemos evidenciar que não é uma postura ou visa o adotada por todos os indivíduos.
Neste ponto, ao compreendermos que as ideias desenvolvidas ao longo do texto
construídas ao estudar e discutir as relações de gênero, entendemos, também, que para o
todo da sociedade, são questões que nem sempre são olhadas com uma única perspectiva.
Ao contrário, entendemos que com graças ao conceito da interseccionalidade, conforme
Akotirene (2018), os recortes que fazem os indivíduos repensarem as suas vivências
seguem muito além de dicotomias universais.

Essa parte de interpretarmos as pontuações debatidas dentre um grupo de jovens


que estudam a temática do gênero, é bem interessante para compreendermos o quão
estrutural são as coisas que influenciam, e condicionam as nossas relações, além de nós
fazer lembrar do quanto que existe uma dificuldade enorme em aceitar aquilo que foge dos
padrões já impostos para os indivíduos.
Ao notarmos que existem diversas formas de expressão defendemos a tese de que
para muitas pessoas as reflexões em relação ao gênero e suas manifestações só serão
possíveis após um choque de realidade, ou seja, através do espanto com alho novo e
diferente que podemos identificar uma desconstrução das pessoas. Tal noção se dá porque
para uma sociedade moldada em uma perspectiva binária de gênero, ao se vê uma pessoa
montada de outra forma acaba sendo algo que dificilmente será ignorado ao passar pelo
campo de visão das pessoas.
Com isto entendemos a nossa análise como algo necessário para a discussão do
debate de gênero dentro dos ambientes acadêmicos ou não, isto ocorre porque vai além de
localidade, afinal os segmentos de relações sociais estão presentes nos demais ambientes
de uma sociedade.
Deste modo, precisamos criar espaços que estejam de acordo em discutir algumas
temáticas para que de alguma forma possamos contribuir com reflexões a cerca de temas que
são pertinentes para a nossa sociedade. Logo, esse debate sobre o impacto da binariedade de
gênero na subjetividade dos indivíduos, que entrelaçam corporeidades e papéis sociais são de
grande validade para que possamos romper com paradigmas que tentam moldar os

981
indivíduos em caixinhas controláveis fazendo os alternar conforme o interesse da
normatividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da análise construída em cima de binariedade de gênero acreditamos que é um
tema que atinge todos os grupos sociais de uma sociedade e que precisamos refletir sobre isso
para podermos adotar as posturas que acharmos coerente. Ou seja, após entender como o
sistema binário funciona, fica a critério individual a projeção social que será tomada.
Defendemos que é preciso romper algumas ideias sobre como a sociedade precisa
ser estigmatizada por um modelo dicotômico de feminilidade/masculinidade, pois
precisamos pensar a realidade social e de gênero por uma perspectiva plural de identidades,
onde um condicionador de dualidade é um grande problema para qualquer ser que rompa
com esse contexto.
Ao tratarmos a subjetividades dos jovens estudantes que debatem o gênero,
conseguimos pontuar algumas questões que achávamos pertinentes para compreender
tanto como se realizam essas imposições quanto o que podemos delimitar como problemas
que devem ser repensados dentro da sociedade.
Ao discutirmos os impactos binários de gênero na subjetividade dos indivíduos nós
compreendemos o quanto é preciso continuarmos com o debate do binarismo de gênero nas
relações sociais. Tal discussão, conforme adotamos ao longo do texto, entendemos que o
binarismo de gênero afeta toda relação social. Sendo assim, é algo que deve ser
constantemente pautado na sociedade, justamente por ser algo que causa inúmeras
problemáticas na vida das pessoas.

982
REFERÊNCIAS
ABREU, Carla de. Performatividade e Corporeidade nas Redes Sociais: Escrevendo gêneros
e sexualidades não-hegemônicas nas redes sociais.In: Anais do VI Seminário Nacional de
Pesquisa em Arte e Cultura Visual. Goiânia (GO): UFG, FAV, 2013.

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CRUZ, Maria Aparecida Barros de Oliveira. CORPOREIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO:


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DAMÁSIO, Anne Christine. Botando corpo e (re)fazendo gêneros. Revista Bagoas, n. 06,
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GOULARTH, Neilton dos Reis. DIVERSIDADE DE GÊNEROS E ENSINO DE


BIOLOGIA: CASOS DE PRAZERES E CORPOREIDADE NÃO-BINÁRIOS. Seropédica
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PEREIRA, Renata Marques. CORPOS, GÊNEROS E SEXUALIDADES: NUANCES DA


POLÍTICA SEXUAL CONTEMPORÂNEA. Cachoeira do Sul (RS): UFSM, 2015

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SAYÃO, Deborah Thomé. A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE E PAPÉIS DE GÊNERO NA


INFÂNCIA: ARTICULANDO TEMAS PARA PENSAR O TRABALHO PEDAGÓGICO DA
EDUCAÇÃO FÍSICA INFANTIL. Pensar a Prática, n. 5, 2006, p. 1-14.

SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemologia do Armário. Trad.: Ana R. Luis e Fernando


Matos Oliveira. Coimbra (PT): Angelus Novus, 2003.

SOUZA, Ezequiel de. Masculinidades, Corporeidade e Desejo desde uma Perspectiva


Teológica. In: Anais, I Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo (RS):
EST, 2012.

983
AT 7 - Feminismos, Gênero e Interseccionalidade
Coordenação

Adriane Lima -UFPA – UFPA

Maria Lucia Lima – UFPA

Proposta da Área temática

Esta área temática tem procurado realizar estudos relativos ao projeto feminista
na teoria do conhecimento, analisando os fundamentos culturais que circulam
na epistemologia e metodologia das ciências e a contribuição da crítica
feminista contemporânea para a desconstrução de saberes marcados por
representações discriminatórias aos gêneros e suas práticas, valores,
identidades, subjetividades, articulando-se a questões relativas à
interseccionalidade, com evidência entre gênero, raça, classe social e geração.

984
GESTORAS E OS CASOS DE SEXISMO, MACHISMO E INVISIBILIDADE NAS
ESCOLAS DO CAMPO.

ALANDIENIS SOUZA SANTOS, UFPA.


https://doi.org/10.29327/527231.5-66

ANNA MARIA LINHARES, UFPA.


1

RESUMO

Este artigo socializa o resultado de uma pesquisa realizada com gestoras de escolas do campo da
cidade de Tomé-Açu, PA, abordando a histórica invisibilidade das mulheres e a violência dos
processos de educação no campo, especialmente o machismo que atinge as gestoras. Para tal, a
metodologia utilizada foi a entrevista com mulheres gestoras de escolas do campo na cidade de
Tomé-Açu. Tendo como objetivos: reconhecer os desafios e superações profissionais
relacionados ao gênero dessas mulheres, a partir das relações estabelecidas entre elas e os
demais funcionários da escola, além de evidenciar as diversas formas de preconceitos, machismo,
sexismo nas escolas do campo do município, sob a ótica das gestoras pesquisadas e
principalmente dar voz as gestoras do campo e suas superações e dificuldades nas escolas do
campo. Ao fim do trabalho, apresenta-se uma sugestão de plano de aula interdisciplinar sobre
feminismo, a ser utilizado nas escolas do campo.
PALAVRAS-CHAVES: gestoras, escolas do campo, feminismo, Tomé-Açu.

SUMMARY

This article socializes the result of a research carried out with managers of rural schools in the city of
Tomé-Açu, PA, addressing the historical invisibility of women and the violence of education processes
in the countryside, especially the machismo that affects women managers. To this end, the
methodology used was the interview with women managers of rural schools in the city of Tomé-Açu.
Having as objectives: to recognize the challenges and professional overcoming related to the gender of
these women, from the relationships established between them and the other school employees,
besides highlighting the various forms of prejudice, machismo, sexism in the rural schools of the
municipality, under the optics of the surveyed managers and mainly give voice to the field managers
and their overcoming and difficulties in the field schools. At the end of the paper, a suggestion of an
interdisciplinary class plan on feminism, to be used in rural schools, is presented.

KEYWORDS: managers, rural schools, feminism, Tomé-Açu.

985
1- A HISTÓRICA INVISIBILIDADE DA EDUCAÇÃO DOS POVOS DO CAMPO

A exclusão e dualismo se fizeram presente na educação do nosso país e influenciou


fortemente os povos do campo que por décadas foram marginalizados. A eles foi destinada a
educação rural, pois o que lhes restava eram os professores menos qualificados, os prédios
(quando existiam) menores e com estruturas físicas e pedagógicas discutíveis, merenda e
transporte escolar precários, além de um currículo copiado das escolas da cidade, deixando claro
que os indivíduos do campo não necessitavam de educação, apenas os da cidade.

As iniciativas governamentais de fazer educação para os povos do campo eram


pensadas a partir da lógica urbana, fazendo, assim, que a falha fosse inevitável, devido as
diferenças do campo e da cidade. Dessa forma, a educação era rural e não do campo. Até que,
em 2001, o MEC aprovou as Diretrizes específicas para a Educação do Campo, reconhecendo
quem são os sujeitos do campo e deixando claro que a educação deles deveria ser diferente e de
qualidade, valorizando sua identidade.

O termo educação básica do campo só passou a ser assim utilizado em Luziânia-GO, a


partir da I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, realizada em 1998. Já o
termo Educação do Campo que a substitui foi definido a partir das discussões do Seminário
Nacional em Brasília, em 2002, segundo Caldart (2012). Para que esse termo faça sentido é
necessário valorizar a identidade dos sujeitos, seus modos de vida e saberes, compreendendo a
importância da terra para eles e usá-lo como temática no currículo dessas escolas.

Os movimentos sociais se fizeram atuantes na concepção de escola do campo que


temos nos dias atuais, conforme Molina e Sá (2012, p. 326) enfatizam: ―a concepção de escola do
campo nasce e se desenvolve no bojo do movimento da Educação do Campo, a partir das
experiências de formação humana desenvolvidas no contexto de luta dos movimentos sociais
camponeses por terra e educação‖. E essa educação exige especificidades de seus sujeitos.

As escolas são compostas por muitas mulheres fortes e determinadas, sendo possível
observar que se organizam em busca de seus objetivos há algum tempo. Temos, em 1995, como
exemplo, a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR), que reunia as
mulheres dos movimentos autônomos, da CPT, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), da Pastoral da Juventude Rural (PJR), do Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), de alguns sindicatos de trabalhadores rurais e, no último período, do Movimento dos
Pequenos Agricultores (MPA) segundo Paludo e Daron (2012).

Muitas são as pautas da luta dos movimentos de mulheres, que são contra o modelo
capitalista e patriarcal, por uma sociedade mais igualitária, que as reconheçam e as valorizem,

986
contra a opressão, discriminação, violência e pela sua dignidade. A união e as reivindicações
desses movimentos culminaram com a demarcação de datas históricas para todos nós, como o 8
de março que é o dia Internacional da mulher, 12 de agosto, morte de Margarida Alves, dia de luta
contra a violência no campo, pela ampliação dos direitos previdenciários, pela saúde pública, por
um novo projeto de agricultura, pela Reforma Agrária, pela campanha de documentação e pela
formação política.

2- MULHERES: A INVISIBILIDADE E A VIOLÊNCIA

Algumas dúvidas nos acompanham quando a temática é voltada para a mulher e suas
produções acadêmicas, seus conhecimentos, importância para sociedade e até o tratamento
destinado a nós durante milênios. A questão principal dessa indagação se faz presente no
momento em que descobrimos que a participação e produção de mulheres sempre existiu, no
entanto, a invisibilidade em relação aos homens também as acompanhou.

Atualmente temos um pouco mais de espaço para debatermos questões de gênero e seus
desdobramentos, mesmo enfrentando embates. Este trabalho é fruto de resistência, uma vez que os
espaços educativos em que estamos inseridas são repletos de machismo e misoginia. Porém, o não
aparecimento da figura feminina em fatos históricos importantes em diversas sociedades nos impõe
barreiras reais ao tentar analisar ações de mulheres na sociedade patriarcal.

Acreditou-se por muito tempo que ao falar dos homens, se estaria contemplando,
também, as mulheres de forma igual, sabe-se que isso não corresponde à realidade. Quando se
estuda sobre as mulheres da Grécia do período clássico (sécs. V-IV a. C.) um dos entraves é o
fato de que grande parte dos documentos foram feitos por homens e, dessa forma, são
carregados de visões, idealizações masculinas sobre o feminino.

Quando mulheres passaram a se perceber numa categoria mulher, politicamente falando,


passaram a ter o diferencial de pertencerem ao um grupo estudado e assim o olhar tornou-se
mais real e cheio de sentimentos, apesar de sermos mulheres diversas. Só pelo fato de estarmos
sendo mencionadas por outras mulheres, estudadas por nós mesmas, não deixando apenas
homens olhem, falem ou escrevam por nós é revolucionário. Mudança, luta e revolução são
termos conhecidos das mulheres, assim também como a violência.

O mapa de homicídio de mulheres no Brasil Waiselfisz (2015) conceitua o feminicídio como


―as agressões cometidas contra uma pessoa do sexo feminino no âmbito familiar da vítima que, de
forma intencional, causam lesões ou agravos à saúde que levam a sua morte‖. O mapa também
aponta características das vítimas, sendo que ―com poucas exceções geográficas, a população

987
negra é vítima prioritária da violência homicida no País‖ (p. 7). A taxa de homicídio das mulheres
brancas vem caindo e das negras alarmantemente subindo.

O machismo incutido na sociedade favorece os dados citados anteriormente e as escolas do


campo devem estar atentas às diversas formas de preconceito e exclusão seja de gênero, sexo,
religião, situação social ou cor da pele. Mas, também as famílias devem repensar a forma de criar e
educar suas crianças. Apesar das mudanças ocorridas para as mulheres, elas ainda precisam
conhecer, assimilar e fazer uso do feminismo, empoderando-se e buscando empoderar outras
mulheres. A sororidade é urgente em uma sociedade que propaga o machismo desde as crianças.

3- SER EDUCADORA DO CAMPO DA CIDADE DE TOMÉ-AÇU

As mulheres gestoras que deram cheiro, sabor e vida a essa pesquisa foram quatro e
têm entre trinta e quarenta anos. Estão atuando no campo de três a quinze anos e relataram suas
vivências pessoais e profissionais, assim identificando, reconhecendo os moldes sociais
relacionados aos papeis destinados a mulher e aos homens, com o desafio de ser mulher do
campo, local este marginalizado por séculos. Por receio de represálias algumas das entrevistadas
disseram preferir ser identificadas por codinomes. Assim, adentrar o universo das minhas
informantes foi tarefa difícil e delicada.

Uma das quatro entrevistadas respondeu muito superficialmente as questões abordadas


no questionário para elaboração deste artigo. As respostas correspondiam apenas a sim ou não.
Dessa forma, o que se pode observar é certo receio de que outros indivíduos possam analisar
suas respostas e criticá-la de alguma forma por isso, ou seja, passar por qualquer tipo de
represália. Ela, também, pode ter preferido se abster e não expor sua opinião sobre os temas
sugeridos, o que nos leva a refletir sobre o temor que muitas mulheres têm de protagonizar ações,
demonstrar conhecimento. Um dos objetivos deste trabalho é justamente demonstrar a
importância e força das gestoras do campo da cidade de Tomé-Açu.

Duas das quatro gestoras atuam em escolas multisseriadas e as outras duas em escolas
pólos, estas últimas aturam como coordenadoras pedagógicas antes de aceitar a função de
gestoras. Para facilitar o entendimento, por sugestão das informantes, elas serão identificadas
como: gestora da escola pólo 1, gestora da escola pólo 2, gestora da multissérie 1 e gestora da
multissérie 2.

As escolas multisseriadas correspondem àquelas em que o gestor por muito tempo foi e
em Tomé-Açu ainda é reconhecido pelo termo professor dirigente, pois é aquele que, além de

988
lecionar, executa a parte administrativa da escola, que por sua vez está localizada em uma
comunidade que tem um número pequeno de alunos e eles estão em séries/ano diferentes e
estudam juntos.

A escola do campo, seja multissérie ou polarizada, precisa ser uma das principais
motivadoras da afirmação da identidade dos camponeses, além de mostrar a importância da
tradição e valorização da agricultura familiar. Só assim deixará de expulsar seus jovens dela, uma
vez que estes não se sentem representados e sem enraizamentos na localidade.

As escolas que as pesquisadas atuam são compostas mais por mulheres do que por
homens. E existe um estereótipo atribuído aos gestores, principalmente se o cargo for exercido
por alguém do sexo feminino, como bem mostrou a gestora da escola pólo 1: “Algumas vezes,
talvez pelo meu tipo físico e pela minha simplicidade aparente no vestir, ás vezes, quando
estamos reunidos em equipe e alguém chega procurando a diretora, percebo que o olhar da
pessoa procura alguém com outras características".

Sobre os estereótipos ensinados desde a infância Adichie, em 2017, disse que os


―estereótipos de gênero são tão profundamente incutidos em nós que é comum os seguirmos
mesmo quando vão contra nossos verdadeiros desejos, nossas necessidades, nossa felicidade‖
(p. 28). De fato, é difícil nos despir de tais estereótipos, porém, é nossa missão como indivíduos
educadores é ensinar nossas crianças o respeito à diversidade, a valorização da mulher, que o
machismo mata e o feminismo liberta. Também é importante demonstrar que as mulheres lutam
por visibilidade.

4- AS GESTORAS DAS ESCOLAS DO CAMPO: MACHISMO E FEMINISMO

necessário criatividade, sensibilidade e imaginação na busca de pistas que permitam


transpor o silêncio e a invisibilidade que perduram por tão longo tempo quanto ao passado
feminino. Soihet e Pedro (2007, p. 296), afirmam que ―estamos, preparadas para fazer frente
àqueles que, na academia, ainda não nos reconhecem como parceiras plenas, tentando relegar-
nos a posições periféricas em face do caráter „secundário‟ de nossas preocupações‖. Não nos
curvemos ao patriarcado! Segundo Silva (2015)

Patriarcado é uma palavra que deriva do grego pater cuja referência é de um


território comandado por um homem, ou seja, todos os indivíduos que se
diferem da fisionomia de adulto do sexo masculino são subordinados aos
mandos e desmandos da figura soberana que, na família, é representada pelo
pai. É caracterizado apenas pela autoridade máxima masculina, mas também
pela total submissão e subordinação da mulher social, econômica

989
e sexualmente, sendo tratada como uma extensão de todos os bens
possuídos pelo homem. (p.70)

No livro ―Sejamos todos feministas‖ Adichie (2015) declara que a palavra ―feminista‖ tem
um peso negativo: a feminista odeia os homens, odeia sutiã, odeia a cultura africana, acha que as
mulheres devem mandar nos homens; ela não se pinta, não se depila, está sempre zangada, não
tem senso de humor, não usa desodorante. Este é um estereótipo criado sobre a mulher que
afirma ser feminista. Não se pode esquecer, também, que muitas mulheres são contra o
feminismo e isso revela a força do patriarcado.

O movimento feminista foi de suma importância para nós, mulheres, fazendo que nos
vejamos como personagem principal de nossas vidas, tendo poder de decidir e opinar abertamente ou
até tornando a sociedade mais sensível aos obstáculos enfrentados por nós, porém em muito
precisamos melhorar como sociedade para sermos mais justos e democráticos. Um exemplo é a maior
participação das mulheres na política para, assim, dialogarmos sobre temáticas femininas que são
atualmente decididas por homens no congresso. O feminismo é libertador.

O machismo e o desrespeito com nosso corpo atingem a todas nós na rua, em casa,
entre amigos e familiares, até no trabalho. Algumas das gestoras já foram surpreendidas com
cantadas por parte de alunos, funcionários ou pais de alunos, com olhadas indiscretas, cochichos,
principalmente as que são solteiras. A gestora da multissérie 2 declarou: “finjo que nem é comigo”.
Por que geralmente com as solteiras? Porque eles têm medo dos maridos das casadas. Homens
têm receio de outros homens e não de mulheres. Essa gestora acredita que se fosse casada
talvez o assédio não acontecesse. Logo, uma mulher solteira pode ser vista como alguém que
merece ser desrespeitada.

O estado civil de uma mulher não define seu caráter, e há a disputa entre mulheres. Falta
a sororidade, que faz com que mulheres se ajudem, lutem juntas e não uma contra as outras
como o patriarcado deseja. Compactuo com Chimamanda, que em seu livro intitulado ―Sejamos
todos feministas‖ afirma que nós criamos nossas filhas para enxergar as outras mulheres como
rivais e não como irmãs de lutas e dores. Nós, mulheres, temos os corpos vigiados pela sociedade
e pelas igrejas.

A gestora da multissérie 2 comentou: “O preconceito existe” e reiterou: ―alguns alunos


respeitam mais os gestores que as gestoras, pois ele é visto com mais temor, a palavra dele
parece mais forte. Mas, vejo as gestoras mais reflexíveis, alguns gestores são extremamente
autoritários, machistas e têm atitudes pesadas e desnecessárias para com os demais funcionários
da escola”, finalizou ela.

990
As mulheres enfrentam diversas dificuldades para atuar nesse cargo, por diversos motivos,
sejam eles de cunho pessoal ou profissional. Uma delas relatou que não podia sair para um bar ou
festa na cidade que era severamente criticada. Mas, apesar das angústias que mulheres sofrem na
sociedade, as gestoras não acreditam que se fosse um homem na gestão da escola algumas
situações seriam diferentes ou mais fáceis, uma vez que a escola têm profissionais qualificados para
diversas funções e habilidades. A gestora da escola polo 1 destacou que “nos casos de tarefas mais
pesadas fisicamente, entra em ação a parceria e o trabalho em equipe”.

A gestora da multissérie 2 destacou que sua fala foi interrompida diversas vezes por pais
que eram chamados para falar sobre o comportamento de seus filhos. E complementou
apontando outra atitude machista: ―organizei um torneio de futebol na escola e o vigia e os pais
dos alunos tomaram a frente por acharem que eu não conseguiria”. Essas ações machistas
podem parecer sutis ou explícitas nas falas dos sujeitos.

Ter a fala interrompida é apenas uma das ações machistas como bem relembrou a
gestora da escola pólo 1 dizendo que já teve ideias furtadas por homens e que eles ficaram com o
mérito, quando ela atuava como coordenadora pedagógica e que isso aconteceu incontáveis
vezes. A gestora relatou, também, casos de preconceito entre alunos, uma vez que as escolas
são ambientes que recebem sujeitos muitos diferentes, com visões de mundo ainda limitadas.

Ao lidar com o PDE, que é o Plano de Desenvolvimento da Escola, considerado pelo MEC
(Ministério da Educação e Cultura) como um processo de planejamento estratégico desenvolvido pela
escola para a melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem, Mais Alfabetização, Novo Mais
Educação e outros programas que envolvem dinheiro e prestação de contas, algumas gestoras já
sentiram certas estranhezas, como se tivessem inaptidão para a função.

A gestora da escola pólo 1 declarou ―com incapacidade, não, com desconfiança, sim... por
isso procuro prestar contas de cada centavo”. Todas as gestoras que contribuíram com este artigo são
graduadas, três delas especialistas, ou seja, instruídas e aptas a atuar em seus respectivos cargos.
Mesmo assim, o fato de serem mulheres, é o suficiente para que duvidem de seu trabalho.

possível listar sugestão de temas a serem trabalhados nas escolas do campo, e há


experiências concretas e positivas sobre as temáticas citadas, como no município de Tomé-Açu, em
que há o SOMEF (Sistema de Organização Modular do Ensino Fundamental) que leva o Ensino
Fundamental maior às escolas do campo há 11 anos e, desde 2016, inseriu no currículo do sistema a
disciplina Educação Ambiental e ERER (Educação para as relações étnicas e raciais), além do TC
(Tempo Comunidade), em que professores e alunos desenvolvem atividades envolvendo a
comunidade escolar, com aulas de campo, entrevistas na comunidade e outras ações.

991
Para lutarmos por nossos direitos é preciso conhecê-los, para valorizarmos as conquistas
passadas é necessário estudar a história dessas mulheres. Exemplo disso é o voto feminino. Muitas
mulheres criticam o feminismo sem saber que o movimento contribuiu para a obtenção dessa
conquista, por exemplo. Pensando nessas questões, deixamos aqui uma sugestão de aula
interdisciplinar sobre feminismo para escolas do campo, haja vista que, se nos propomos a trabalhar
isso em sala de aula, temos que começar a colocar em prática e, a nossa intenção aqui, é apresentar
plano de aula para que seja utilizado por educadoras e educadores que têm interesse em trabalhar a
temática de gênero no ensino básico por um mundo menos violento e misógino para todas nós.

5- SUGESTÃO DE PLANO DE AULA INTERDISCIPLINAR SOBRE FEMINISMO


NAS ESCOLAS DO CAMPO.

I- Identificação

Nome da escola do campo: ________________________________________________

Disciplinas: Língua portuguesa, Matemática, História e ERER, Geografia e Estudos


Amazônicos, Ensino Religioso, Artes, Educação Física, Inglês, Ciências.

Nomes dos educadores envolvidos e suas disciplinas: ______________Turma: 9º ano

Justificativa

Trabalhar essa temática faz-se necessário, uma vez que as mulheres são invisibilizadas
pela sociedade patriarcal. Conceituar o termo Feminismo conhecendo a luta das mulheres do
campo, possibilitando ao aluno a compreensão do papel da mulher na sociedade contemporânea
contribui no empoderamento dos sujeitos do campo.

III- Objetivo: Conceituar o termo Feminismo conhecendo a luta das mulheres do campo.
IV- Competências e habilidades

Identificar em textos (poema, música ou vídeo) a objetificação do corpo da mulher.


(Língua Portuguesa.)

-Comparar a questão salarial de homens e mulheres no mercado de trabalho em


gráficos. (Matemática)

-Compreender como surgiu o movimento feminista e suas conquistas (História)

-Reconhecer o estereótipo da mulher negra (ERER)

992
-Respeitar ambos os gêneros conhecendo os privilégios dos homens na sociedade. (Ensino
Religioso)

-Compreender o papel da mulher na sociedade no passado e atualmente (Geografia)

-Conhecer o Movimento de Mulheres Camponesas-MMC e a participação das nortistas. (Ciências)

-Identificar as pautas do MMC relacionadas à agricultura. (Educação Ambiental)

-Identificar as formas de violências sofridas pelas mulheres do campo e conhecer a Marcha das
Margaridas (Geografia)

-Conhecer artistas femininas e seus trabalhos (Artes)

-Valorizar as mulheres no esporte (Educação Física)

-Interpretar e conhecer os termos: manterrupting, bropriating, mansplainingegaslightin e conhecer


a biografia de Angela Davis (Inglês)

V- Conteúdo das aulas

-A objetificação do corpo da mulher. (Língua Portuguesa.)

-Mulheres e questão salarial (Matemática)

-História do movimento feminista e suas conquistas (História)

-O estereótipo da mulher negra na sociedade (ERER)

-Patriarcado e os privilégios dos homens na sociedade. (Ensino Religioso)

-O papel da mulher na sociedade no passado e atualmente (Geografia)

-Movimento de Mulheres Camponesas-MMC. (Ciências)

-Pautas do MMC (Educação Ambiental)

-Violências contra mulheres do campo e a Marcha das Margaridas (Geografia)

-Artistas femininas (Artes)

-Mulheres no esporte (Educação Física)

-Manterrupting, bropriating, mansplainingegaslightin (Inglês)

VI- Metodologia e tempo estimado

 Ler o dossiê ―Feminismo, História e Poder‖, de Celí Regina Jardim Pinto, para
entender como surgiu o movimento feminista. Dividir a turma em grupos e debater as
principais conquistas do movimento (História) Tempo: 2 aulas de 45 min.

993
Ler o texto buscando interpretar, ver o videoclipe ouvindo a música: “Respeita as mina‖,
de KelSmilth. Abrindo para o debate com a turma em forma de roda de conversa. (Língua
Portuguesa.) Tempo: 2 aulas de 45 min.

 Ler o texto: “Mulheres ganham 20% a menos que homens, segundo IBGE‖, de Bia
Cardoso, do site ―‖Blogueiras Feministas, e analisar os dados no site do IBGE. Em seguida
montar gráficos com os dados. (Matemática).Tempo: 2 aulas de 45 min.

Ler o texto e ouvir a música ―Mulheres Negras” de Izalú e dialogando em forma de
perguntas para a turma sobre o texto e escrever um texto enaltecendo a figura feminina negra,
não apenas com elogios físicos mas também sua luta e conquistas (ERER). Tempo: 2 aulas
de 45 min.

 Dividir a turma em grupos destinar a cada grupo a leitura um capítulo do livro
―Sejamos todos feministas‖, de ChimamandaNgoziAdichie e traduzido por Christina Baum,
apresentando em forma de seminário (Ensino Religioso) Tempo: 2 aulas de 45 min.

 Dividir a turma em grupos destinar a cada grupo a leitura um capítulo do livro
―Como educar meninas feministas‖, de Chimamanda Ngozi Adichie. Produzir um texto sobre a
compreensão que tiveram do livro, dialogando sobre o papel da mulher na sociedade no
passado e atualmente (Geografia) Tempo: 2 aulas de 45 min.

 Apresentar o texto: ―Movimento de Mulheres Camponesas: um movimento
camponês e feminista‖, de Valdete Boni, já resumido previamente pelo professor. Fazer a
leitura com a turma e debater os pontos principais. (Ciências)Tempo: 2 aulas de 45 min.

Utilizar também o texto: ―Movimento de Mulheres Camponesas: um movimento
camponês e feminista‖, de Valdete Boni, dialogar sobre a agricultura e as mulheres
localmente, quais atividades exercem as mulheres da comunidade, quais culturas plantam,
dentre outros. (Educação Ambiental)Tempo: 2 aulas de 45 min.

Apresentar em slide, resumidamente, trechos do ―Mapa da violência 2015 homicídio
de mulheres no Brasil‖, de Julio Jacobo Waiselfisz, identificando as formas de violências
sofridas pelas mulheres do campo. O professor explica o movimento denominado a Marcha
das Margaridas e sugere que alunos relatem possíveis violências sofridas por mulheres na
comunidade. (Geografia)Tempo: 2 aulas de 45 min.

O professor dialoga com os alunos sobre a invisibilidade da mulher na sociedade e
sugere uma pesquisa (em grupo) na internet sobre artistas femininas e seus trabalhos, cada
grupo pesquisa uma arte diferente (escritoras de livros e poemas, cantoras, artista plásticas,
dentre outras) e apresenta a pesquisa em forma de slides. (Artes) Tempo: 2 aulas de 45 min.

Dialogar com a turma a supervalorização dos homens em certos esportes (ex:
futebol) comparando o mesmo esporte praticado por mulheres, enfatizando a questão salarial
e visibilidade na mídia. Após isso, assistir o filme: ―Menina de ouro‖ com a turma. Questionar
os alunos sobre o que acharam do filme e as dificuldades encontradas pela personagem
principal. (Educação Física) Tempo: 3 aulas de 45 min.

994
O professor apresenta os termos em inglês: manterrupting, bropriating,
mansplainingegaslightin para a turma, assim como sugere a tradução. Depois, debatem juntos
sobre o significado das palavras e questiona se as mulheres da turma já sofreram essas

violências e se os homens da sala já praticaram, assim como o que cada um sentiu sofrendo
ou praticando a ação. (Inglês) Tempo: 2 aulas de 45 min.

VII- Recursos:

Livros, Artigos, poemas, textos, data show, caixa de som, computadores.

VIII- Avaliação de aprendizagem e sugestões

Em cada aula a avaliação será específica. No entanto, no geral analisa-se a discussão


realizada, a interpretação dos textos e dos debates, o empenho dos alunos nas apresentações em
grupo e assim, identifica-se a assimilação da temática por parte de alunos e professores.

6- SEGUINDO NA LUTA

Continuamos sendo desmerecidas e desrespeitadas por homens ou até por outras


mulheres em diversas situações. Os abusos são incontáveis e podem parecer sutis, mas são
rotineiros. Às vezes, podem aparentar ao agressor que não afetam, porém causam inseguranças
e, em muitos casos, podem ser até fatais. Como pesquisadoras, nos sentimos impulsionadas a
socializar este trabalho e principalmente expor abertamente o que passamos no cotidiano violento
em que vivemos.

Não podemos aceitar que nos impeçam de sermos ativas, produtivas academicamente,
que sejamos ou façamos o que quisermos por medo de retaliações machistas e sexistas. Ensinar
que mulheres não podem fazer certas coisas só pelo fato de serem mulheres é errado. (ADICHIE,
2017, p. 20). Reforçar estereótipos que desqualificam negros, gays, mulheres e homens não
contribui com as mudanças que necessitamos na sociedade e que almejamos em nossas escolas.
Não podemos mais permitir que continuem violentando simbolicamente as educadoras do campo,
a gestoras e a todas as outras mulheres pelo simples fato de sermos quem somos: mulheres.

Esperamos que as escolas do campo consigam levar aos seus educandos e famílias
através de métodos pedagógicos o respeito à diversidade (de gênero, religião, sexo, e outros),
valorizando a figura da mulher na sociedade, pois nós desempenhamos papéis importantes. Não
basta defendermos a causa, precisamos problematizar nas salas de aulas, salas dos professores,
secretaria, diretoria, na roda de amigos e familiares.

995
7- REFERENCIAS

ADICHIE, ChimamandaNgozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. 1a ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
ADICHIE, ChimamandaNgoziSejamos todos feministas. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.
CALDART, Roseli Salete. Educação do campo. Dicionário da Educação do Campo./ Organizado
por Roseli Salete Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudêncio Frigotto. – Rio de
Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
MOLINA, Mônica Castagna. SÁ ,Lais Mourão. Escola do Campo. Dicionário da Educação do
Campo./ Organizado por Roseli Salete Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e
Gaudêncio Frigotto. – Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
Expressão Popular, 2012.
PALUDO, Conceição. DARON, VanderleiaLaodete Pulga. Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC Brasil). Dicionário da Educação do Campo./ Organizado por Roseli Salete Caldart, Isabel
Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudêncio Frigotto. – Rio de Janeiro, São Paulo: Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
SILVA, AD. Ser homem, ser mulher: as reflexões acerca do entendimento de gênero. In: Mãe/mulher
atrás das grades: a realidade imposta pelo cárcere à família monoparental feminina [online]. São
Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 51-100.
SOIHET. Rachel. PEDRO. Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das Mulheres
e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 54, p. 281-300
– 2007. WAISELFISZ, JulioJacobo. Mapa da violência 2015 homicídio de mulheres no Brasil.
1ª Edição Brasília – DF – 2015.

996
A SUBALTERNIZAÇÃO NA VIDA DE MULHERES NEGRAS COMO EMPREGADAS
DOMÉSTICAS NO MERCADO DE TRABALHO EM BELÉM:TRAJETÓRIAS DE
VIDA NO SECULO XXI
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-67 Alessandra Viviane Vasconcelos Pereira
2
Danielle Silva Silva
RESUMO
O presente trabalho objetiva tratar de vidas de mulheres negras no mercado de
trabalho na capital de Belém do Pará, a partir das minunciosas pesquisas já
existentes, documental e bibliográfica, entrecruzando dados se observa a posição
social em que mulheres negras domésticas amazonidas estão, como consequência de
um histórico escravista que a condiciona a situação subalterna. Procura-se observar
suas especificidades de mulher negra, sua classe raça e gênero. A partir de relatos de
mulheres negras no ofício de empregadas domésticas se observam seus sonhos e
suas perspectivas, as faltas de políticas publicas para sua ascensão e inclusão social.
Analisa-se a partir de recursos epistemológicos da interseccionalidade que é a base do
femninismo negro para que se compreenda os fenômenos sociais?
Palavras-chaves: empregadas; domésticas; mercado; feminismo;
negro ABSTRACT
The presente work aims to deal with the lives of black women the labor market in the
capital of Belém of Pará, based on the minute researches, documentary and.
bibliografhic, introducing data to observe the social position in which domestic black
woman amazonian are, as a consequence of a slave history that conditions it to the 6
situation. We seek to observe her specificities as a black woaman, her race and gender
class. From reports of black woman working as maids, their dreams and perspectives
are observed, the lack of public policies for their is the basis of black feminism to
undertand social phenomena.
Keywords: maisd; households; market; feminism; black

1 INTRODUÇÃO
Inicialmente abordar vidas de mulheres negras como empregadas domésticas no
mercado de trabalho em Belém, é complexificar o tema e por em debate a luz da teoria do
feminismo negro, sendo assim compreendendo tais fenômenos sociais que são ignorados
dos poderes públicos, como também da sociedade, logo essas vidas são invisibilizadas, no
entanto sua importância nos interiores das famílias se torna imprescindível para que outras
mulheres venham estar no mercado de trabalho, é nesse modelo que se observa o serviço
subalterno em que está condicionada as empregadas domésticas negras e é demarcada o
racismo e a forma perpetuada de servidão.
1.1 Críticas Teóricas do Feminismo Negro

Bacharela de Relações Internacionais, Pesquisadora no GENERI- Gênero e Relações Internacionais-UNAMA , membro do


PSOL.
Bacharela em Relações Internacionais-UNAMA, Especialistas em Docência do Ensino superior - UNAMA, MBA
em Gestão de Negócios Internacionais e Comércio Exterior-Universidade Braz Cubas, professora de Tecnologia
do Comércio Exterior e Relações Internacionais- UEPA

997
A princípio, é de se esperar que o movimento feminista trouxesse com ele
mudanças significativas para as mulheres, entretanto frequentemente via-se que
muitas pautas políticas interessantes às mulheres negras não estavam inseridas
como questões essenciais no processo de reivindicações, tendo poucos
reconhecimentos entre as críticas feministas mainstream/dominantes.
Consequentemente o feminismo negro surge dentro de um complexo contexto de
crítica social, pois se situa dentro da luta antirracista do movimento negro e ao mesmo
tempo como crítica ao movimento feminista dominado por mulheres brancas e
agendas políticas excludentes, portanto considera o gênero, a raça e a classe social,
e, inclusive, aponta que a luta da mulher negra inicia com sua luta abolicionista e
antiescravista no século xx, nos Estados Unidos (PINTO, 2010)
Portanto, desde cedo, a luta das mulheres negras não somente era por liberdade e
direitos iguais, mas também por sua sobrevivência, por sua condição de escrava
fugitiva, pelo direito à cidadania e até mesmo pela dignidade de ser humano, ora
aprisionada a uma condição serviçal segundo Davis (2016)
Além disso, a autora destaca que as mulheres negras também estavam no
movimento sufragista, reivindicando o direito ao voto pelas mulheres negras, no
entanto essa luta foi complexa e cheia de paradoxos, devido os homens negros não as
incluíram em suas pautas, segundo Pinto (2010) a luta pelo direito ao voto se inicia na
Inglaterra e reflete também no Brasil com Bertha Lutz.
O Feminismo Negro como teoria recebe contribuições das norte-americanas, Ângela
Davis, Bell Hooks, Audre Lorde, Patrícia Hill Collins, Kimberley Crenshaw, Alice Walker
ativistas sul-americanas negras como Sara Gomes e Vírginia Brindis de Salas,
também as africanas como Grada Kilomba, Chimamanda Ngozi Adichie, as teóricas
brasileiras que tiveram participação ativa na política nos anos de Ditadura Militar como
Lélia Gonzáles, Suely Carneiro, Luiza bairros, mais atualmente Djamila ribeiro, dentre
outras, essas escritoras e autoras de célebres obras trouxeram legitimação ao
arcabouço teórico do feminismo negro.
Logo, não se pode deixar de citar mulheres negras amazônidas, com características
peculiares, o que é uma diversidade do movimento feminista e principalmente o
feminismo negro, se caracteriza por ser diverso, os universos são diferentes, as pautas
são diversas, não se pode falar de feminismos sem que se fale de pluralidades,
diversidades, como afirma Prates (2012) há muito de se entender e conhecer suas
histórias, outrora apagadas, como também acrescentar a luta LGBTQI+, lutas por
direitos e representatividade no mercado de trabalho, na arena política, econômica,
acadêmica, no setor privado e público.

998
Por conseguinte as contribuições teóricas do feminismo negro, expressado por
Davis (2016), recebem influências de suas precursoras. Essas mulheres são figuras
essenciais. Logo, se torna impossível negligenciar e passar por cima de suas lutas,
pois deixaram um legado extremamente rico para as ativistas contemporâneas.
Contudo, trazer para a contemporaneidade era desafiar o sistema vigente
hegemônico, que omite da história personagens heroicas, que estariam invisibilizadas
e protagonizaram lutas por direitos das mulheres negras no século XIX.
Ella Reeve Bloor nascida em 1862 também
ativista e articuladora operária lutou pelas
causas do direito das mulheres negras Lucy
Parsons, nascida em 1887, era ativa no
partido Trabalhista, líder operária e
defensora do anarquismo, escrevia poemas
e artigos, ficou conhecida por ser uma das
fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores
de Chicago (DAVIS, 2016, p. 49).
Logo a exclusão se dava através da raça e consequentemente da classe,
conforme análises feitas por Crenshaw (2002), a qual foi a primeira a mencionar
interccionalidade, segundo Ribeiro (2016) reforçando com Audre Lorde (2014), que
trouxe novas demandas e especificidades das mulheres negras, abrindo diálogos para
sexualidade, e fazendo analogia entre o erótico e o poder. Pois dentro do próprio
feminismo negro existiam diversidades, e Lorde (2014) chama a atenção para essas
peculiaridades das mulheres negras.
Ângela Davis em sua obra ―Mulheres, raça e classe‖ de 1982, posteriormente
traduzida para o português em 2016, não cunhou o termo interccionalidade mas
afirmou ser indissociável a etnia, o gênero e a classe, afirma Ribeiro (2016). Entretanto
necessário enfatizar que a crítica do feminismo negro denunciou a ausência de
olhares interseccionais na luta pela igualdade de gênero, de modo a sugerir que
mulheres negras não eram consideradas mulheres femininas, eram estereotipadas,
ora na figura da mãe Preta ora a figura hipersexualizada, assim, elas não serviam para
o casamento (DAVIS, 2016; RIBEIRO, 2016)
Consequentemente, na terceira onda, na década de 70, no EUA, refutam as teorias
feministas pré-estabelecidas e se levanta a bandeira do antirracismo, fazendo a
análise teórica central, de que mulheres negras estavam em condições de classes
desiguais por questão não só de raça, como também de gênero o que as
condicionaram a classes inferiorizadas, devido à falta de oportunidades por seu
passado histórico escravista (GONZALEZ,2018)
Apesar de ter em sua genealogia forte relação com as contribuições teóricas e
ativistas de feministas negras norte-americanas, é fato que o feminismo negro não se
limita apenas aos Estados Unidos, pois é um movimento que repercute por vários

999
lugares do mundo, como também no Brasil. Adquirindo marcas específicas de lutas de
classes, as mulheres negras não se enquadraram no padrão hegemônico de luta
feminista, não se identificaram e buscaram representatividades nas arenas políticas,
na vida social e no mercado de trabalho(GONZALEZ, 2018)
Portanto no Brasil, são diversos os nomes que compõem o feminismo negro: Lélia
Gonzalez, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro. Fortificaram-se os movimentos ideológicos
por menos preconceitos às mulheres negras brasileiras e minorias, que incluem em
suas pautas, as causas LGBTQI+, sendo assim, essa representatividade ganhou
forças no espaço acadêmico como também em movimentos organizados.
Logo, o feminismo negro tem grandes nomes de brasileiras lutando por uma
sociedade mais justa, representados por movimentos que já deixaram suas marcas na
história da mulher negra brasileira, sem citar os grupos de pesquisas dos centros
acadêmicos em todo o Brasil, proporcionando conhecimento e produção (RIBEIRO,
2016)
1.2 Mulheres Negras no mercado de trabalho em Belém
Primeiramente basear a vida de mulheres negras, a luz da teoria do feminismo
negro, é a análise necessária para a compreensão da inserção da mulher negra no
mercado de trabalho, segundo Hooks(2015), sendo assim ela vai denominar ―algo a
mais‖ como profissões, esse espaço, a mulher negra já ocupava, o que se busca , é a
ascensão a espaços em que outrora a mulher negra é excluída.
Por conseguinte ao se observar mulheres negras amazônidas, com um perfil de
lutas e resistências, na atual conjuntura do século XXI, faz-se uma analogia ao seu
passado escravista, conclui-se que no mercado de trabalho ela se apresenta como
uma mulher que ascendeu, ocupou espaços que supostamente não poderiam, devido
seu histórico de vida de exclusão, na atual conjuntura ela está nas arenas políticas,
como ativistas, exercendo liderança, nas grandes instituições, nos espaços
acadêmicos, na cultura de entretenimento.
No entanto, é de imprescindível e de total importância observar e problematizar os
espaços que elas em sua maioria ainda não ocupam, espaços subalternos no mercado de
trabalho em Belém, assim, sendo invisibilizadas pelo estado e pela sociedade, o que
mostram estudos desde 2003, enquanto houve mudanças nas famílias e no mercado de
trabalho a mulher negra ocupa a base da pirâmide social, a mulher negra amazônida está
em desvantagem quando comparada com outras regiões do Brasil, ela tem menos acesso
educação, a qualificação, a saúde, logo, fica demarcado os lugares subalternos a qual
foi condicionada, e inviabilizada ao longo de sua formação histórica essa é umas das
críticas do feminismo negro (IPEA/UNIFEM, 2003)

1000
de grande relevância rever a questão racial no Brasil, pois, diferentemente do resto
do mundo é considerado um país de uma miscigenação muito forte, carrega o mito que
essa miscigenação se deu de forma pacífica, no entanto para Gonzalez (2018), ocorreu
por meio de lutas e resistências de escravas que foram violentadas por seus senhores.
Sendo assim, preconceito, racismo, segregação racial , ainda permeia a sociedade
brasileira, logo, deve ser debatida em todos os espaços, portanto o feminismo negro e
os movimentos de lutas estão mudando esse retrato, mulheres que não se
consideravam negras, apenas pardas, por terem a pele mais clara, nas últimas
pesquisas já se autodeclararam negras e estão na mesma categoria dos pretos,
observou-se quando nas pesquisas elas afirmavam serem negras, obtendo uma auto
afirmação de sua identidade como um ser que modifica e transforma sua própria
realidade, que foram criadas (IBGE, 2018).
As contribuições do feminismo negro foram relevantes para a inserção das mulheres
negras nos espaços que havia predominância de brancos, atualmente a realidade está
muito aquém da igualdade de direitos às mulheres, quando se menciona a mulher negra
esses números diminuem consideravelmente. No entanto, precisa-se lutar por mais
avanços, no que tange o mercado de trabalho em Belém, logo, as crises financeiras,
impactam e arrastam mulheres negras para a informalidade, mas essa busca pelo
empreendedorismo é por necessidades, sendo assim ela não é planejada, segundo
DIEESE (G1/PA, 2016)
Embora houvessem poucos avanços abriu-se espaços para diálogos constantes e
crescentes, em Belém não é diferente das capitais brasileiras a mulher negra amazônida
lutadora, de grupos formados, a citar Zélia Amador, uma das fundadoras do CEDENPA-
Centro de Estudos do Negro do Pará, mulher negra e de descendência humilde que com
determinação e insistência marca a história da mulher belenense, formando uma
instituição que se ocupa das causas negras e de mulheres negras que reivindicam por
representatividade.
Portanto é a ocupação de espaços, posições de destaques no setor público e privado, é a
crítica do feminismo negro, pois apenas 24% é empregada com carteira assinada, dessas
empregadas formalmente 21% dessas mulheres negras na posição de empregadas
domésticas, as mulheres negras estão atrás dos homens negros, nas grandes corporações,
44% dos dirigentes são homens brancos, enquanto as mulheres negras são apenas 9,3%
esses são espaços considerados predominantemente masculinos e brancos, a luta do
feminismo negro são por implementações de políticas públicas de inclusão, para que a mulher
negra deixe de ser periférica e sem qualificação, e exista a possibilidade de mudar, a
exemplos das cotas nas universidades, diminuindo os contrastes (DEUS,2008)
Consequentemente a população de mulheres em 2012 era de 51% da população, e de

1001
mulheres negras quase 52%, no norte do país o percentual sobe para 72,2% contra 23%
de mulheres brancas, RASEAM, (2014), dados de 2013, 53,6% das mulheres negras são
chefes de famílias. No entanto, a mulher negra é a grande massa da população, ainda
marginalizada e não ocupa espaços privilegiados como a maioria de mulheres brancas,
além de iniciar o trabalho com menos idade, ela também trabalha mais horas diárias. É
uma problemática de interseccionalidade que se estruturou, afirmam (CRENSHAW,
GONZALEZ, 2003).
Contudo, afirmar que as relações de trabalho no Brasil foram projetos políticos de
Estado, excluindo a população negra, empurrando para a marginalidade toda uma
população afrodecendentes, demarcando uma relação racial do trabalho, segundo
Gonzalez (2018), logo, afirma que as mulheres negras eram excluídas para vagas de
empregos a partir dos anúncios nos jornais, quando se pediam ―boa aparência‖, se
relacionava a cor, ficando demarcado o racismo e exclusão da mulher de cor negra e
cabelos crespos e curtos.
Por conseguinte, a herança que se adquiriu em um passado escravista, ainda perpetua no
século XXI, uma pesquisa realizada em 2001 em dois shoppings centers da Capital de Belém,
analisou o biotipo da mulher que trabalha em sua lojas, deve ser branca, jovem , loura,
cabelos longos, de preferência olhos claros, logo, a mulher negra era preterida pela mulher
branca, os processos seletivos selecionaram os perfis de pessoas negras a ficarem com as
vagas de serviços de limpezas , caracterizando o racismo.(AMARAL, 2001)
Conclui-se que a mulher negra da capital de Belém, ainda em sua maioria ocupa
postos de trabalhos informais, em sua maioria mão de obra ―desqualificada‖, ocupando
assim o posto de empregada doméstica, nas residências, nas empresas, serviços de
limpeza em geral, na informalidade, diaristas, cozinheiras, ambulantes, feirantes
(PEIXOTO e SILVA, 2016)
Portanto, complexificar a subalternidade a que essas mulheres estão por seu passado
escravista, é debater com o governo, academia e a sociedade, espaços que foram
negados a ela por falta de politicas de inclusão social, sendo assim debater o tema é
expor e mostrar a sociedade que ela tem voz e pode ter vez, pode e deve ascender, logo
essa é a essência da luta dos movimentos das mulheres negras, e sua agenda global
defendida pelo feminismo negro (COLLINS, 2017)
1.3 Empregadas Domésticas: experiências do Cotidiano
A fim de complexificar o debate do ofício de empregadas domésticas no mercado de
trabalho, foram entrevistadas quatro mulheres, buscou-se ouvir suas experiências a partir
de seus relatos, com entrevistas semiestruturadas elas expõem suas vidas, sonhos e
esperanças, como também suas indagações, a partir disso, se observa cada
particularidade da mulher negra como empregada doméstica em Belém, ela é negra,

1002
periférica, sem estudos concluídos e com muitos sonhos, cheia de garra e determinação,
não tem medo do trabalho operacional, braçal (PINSKY,PEDRO, 2012)
Consequentemente, a função de empregada doméstica nos interiores das famílias se
dá em um espaço privado, logo, problematizar tal tema é um recurso recente, que as
pautas do feminismo nas décadas de 70 e 80, vem usando para expor o debate que vidas
de mulheres trabalhando a subjetividade e que questões pessoais importam, podendo
impactar toda a sociedade, pois elas formam a base, partindo do privado para o público,
no entanto, estão desprovidas de políticas publicas que as incluam nas esferas sociais
(MENEGHEL,MARANHÃO, 2005)
Contudo afirmar, que as mulheres negras sempre estiveram no mercado de trabalho
ainda que de forma invizibilizada, é uma das premissas do feminismo negro, é expor essa
mulher que esteve ao lado das mulheres brancas para que elas pudessem ir as ruas e
reivindicar por espaços de trabalho segundo Collins (2017) elas eram as amas,
cozinheiras, governantas, um papel de suma importância para a mulher branca criar seus
filhos e administrar suas casas (PINSKY, PEDRO,2012).
A mulher negra belenense, amazonidas, urbana, que batalha por sua sobrevivência,
ela na maioria da vezes, não tem acesso ao estudos, saúde e educação de qualidade,
não podem muitas vezes continuar e concluir os estudos, devido as longas jornadas de
trabalho, pois já assumiu obrigação com filhos e netos, ela é na maioria das vezes até
alheia a lutas dos movimentos feministas que ocorrem, por não dispor de tempo para os
estudos de certo que não está nos movimentos de ativismos, e na maioria das vezes
surge um grande abismo entre as teorias, os movimentos, os centros acadêmicos e as
mulheres periféricas negras que trabalham por longas jornadas de trabalho em
residências, segundo (COLLINS, 2017)
T.P.V mãe de 2 filhos, 33 anos, cursa o técnico de radiologia, tem companheiro, há 8
anos trabalhando em casa de família, iniciou como babá, mas ao longo dos anos foi lhe
atribuída várias funções.

Eu trabalho com carteira assinada, tenho folga no sábado a tarde, trabalho das 9 as 19,
eles pagam certo, mas claro que sempre tem ser melhor pro lado deles, né? Meu sonho

continuar os estudos, ter um curso técnico, não parar mais de estudar, é difícil, muito
difícil, mas Deus vai me ajudar a seguir em frente.

De acordo com a herança escravocrata, as escravas livres, na década de 1870, logo


após a abolição, passaram a desempenhar funções de domésticas, logo a mulher negra da
diáspora africana não evoluiu junto as transformações que o país passava, ―o serviço

1003
doméstico continuaria o serviço mais comum das mulheres pobre urbanas‖ (PINSKY;
PEDRO, p.53, 2011)
A.H.L.A, 55 anos, cursou até o 3º ano do ensino fundamental , sempre trabalhou
deixou os estudos para ajudar nas despesas de sua casa, trabalha com carteira assinada
em casa de família, mais faz horas extras, como encomenda de comidas, faxinas em
outras residências, não tem companheiro, e fala que ajuda suas filhas e seus parentes, e
também tem condições de manter uma mercearia. Ainda tem sonhos de mudar de vida,
fazer um curso de massagista porque já criou suas filhas e agora tem mais tempo para si.

Eu sempre trabalhei, por isso deixei os estudos para trabalhar ajudar minha mãe, vim
do interior, e dai não pude voltar a estudar , mas hoje tenho o sonho de ser
massagista, gosto muito de fazer massagem em idosos, gora com minhas filhas já
criadas, tenho mais tempo pra mim.

Consequentemente, as longas e exaustivas jornadas de trabalho é que fazem com


essas mulheres fiquem presas a essas funções, não tendo tempo para si mesmas, ou até
mesmo ascender, fazer um curso, mudar de vida, relembrando as escravas que eram
propriedades de seus senhores.
E.N não completou os estudos, quando jovem assinou sua carteira como costureira,
mas devido a falta de trabalho, não conseguiu trabalhar de carteira assinada e fez faxinas
informais, e agora está travando uma batalha para se aposentar, mas como ficou muito
tempo na informalidade torna-se difícil

Fui levando, levando sem carteira assinada fazendo faxinas aqui e alí, que agora não
adianta mais, já quero me aposentar, vai ser difícil, mas vou atrás, não pude completar os
estudos, agora não dá mais.

Apesar dos ganhos pela lei com a PEC das domésticas, como ficou conhecida a lei que
regulariza o serviço das empregadas domésticas, não abrange ganhos como salário-
família, horas extras, como também jornada de trabalho, a lei conseguiu se equiparar com
as categorias trabalhistas, no entanto a realidade para implementação das mesmas
diferem na prática. (SILVA et al, 2017)
M.G.V 58 anos, 1 filho, seu companheiro faz pequenos serviços informais, ficando por
sua conta o sustento da família, mora de aluguel, sempre trabalhou em casa de família,
mas procurou cursar o auxiliar de enfermagem e passou, mas há muitos anos não se
empregou mais em hospitais, sempre que ficava desempregada ela passa a trabalhar em
casa de família, nos últimos 2 anos como babá, lavava, faxinava, cozinhava, dormia no

1004
emprego, só voltava em sua casa aos finais de semana, mas sempre está a procura por
empregos como auxiliar de enfermagem.

Sempre dei duro, minha patroa me ajuda, procura vaga de auxiliar de enfermagem pra
mim na internet, sei que to temporário aqui, mas espero dias melhores.

Conclui-se a partir dos relatos das quatro mulheres entrevistadas, apenas duas
possuem carteira assinada, e apenas uma delas, vai da continuidade aos estudos e se
mostra com sonhos e cheias de esperanças, pois isso só demonstra, que ela não
trabalha por uma vida melhor, para fazer viagens, ou se vestir melhor ,ela trabalha por
sobrevivência.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo se propôs a expor vidas de mulheres negras no mercado trabalho,
mulheres que já ascenderam com o poder do feminismo negro como movimento, e do
ouro lado mostramos mulheres negras como empregadas domésticas, relatos dos quais
observamos realidades distantes, até mesmos antagônicas, dos ganhos já alcançados na
constituição, como também a partir dos movimentos feministas, pois elas não fazem parte
de redes feministas de ativismos, elas estão apenas sobrevivendo, e procurando sua
dignidade através do trabalho pesado, braçal, por longas horas de jornadas. Logo trazer
essa mulher para a academia e ouvir sua voz, é contudo fazer a ponte entre a teoria, a
prática, estudá-la, compreende-la. Desse modo as epistemologias da interseccionalidade
nos mostra a verdadeira práxis dos estudos de feminismos e feminismo negro.
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1006
“QUE MULHER CAPOEIRA!”: TRAJETÓRIAS DE RESISTÊNCIA FEMININA NA
CAPOEIRA NO PARÁ DO SÉCULO XXI

Ma. Luciane de Sena Camões - SEDUC/SEMED


https://doi.org/10.29327/527231.5-68

RESUMO

Este trabalho intenciona discutir a trajetória de algumas capoeiristas no Pará, mulheres de


diferentes lugares, espaços e estilos, interlocutoras de minha pesquisa de mestrado
realizada entre os anos de 2017 e 2019. O título ―Que mulher capoeira‖, trata-se de um dos
indícios históricos mais antigos de mulheres como capoeiras, uma fonte histórica citada por
Oliveira e Leal (2009). Atualmente há um número significativo de capoeiristas ocupando
esses espaços, entretanto a luta por visibilidade, protagonismo e lugar de fala continua
constante. Neste trabalho analiso as trajetórias de resistência de algumas capoeiristas
atuantes no Pará e as relações de gênero evidenciadas. De modo específico, pretendo
refletir sobre suas experiências na capoeira e as ações de fortalecimento. As/os principais
autoras/os utilizadas/os no trabalho são: Oliveira e Leal (2009) e Camões (2019) sobre
capoeira e gênero; Carneiro (2003) e Hooks (2018), sobre feminismo negro. Como
metodologia foi utilizada a pesquisa de campo, buscando contribuições da antropologia
interpretativa de Geertz (2008), e teóricos que dialogam sobre história oral, Portelli (1997).
Com a pesquisa, nota-se avanços quanto ao reconhecimento e graduações, mas as
mulheres continuam vivenciando situações de violência e reprodução do machismo e
sexismo.

Palavras-chave: Mulheres Capoeiras. Gênero. Feminismo negro.

WHAT A CAPOEIRA WOMAN: THE TRAJECTORY OF FEMALE RESISTANCE IN THE


st
CAPOEIRA OF PARÁ IN THE 21 CENTURY

ABSTRACT

This research intends to discuss the trajectory of some women capoeiristas in Pará, who are
from different places, locations and styles, interlocutors of my master degree research made
between 2017 and 2019. The title ―What capoeira woman‖, is one of oldest historical
evidence of women as capoeiras, a historical source told by Oliveira and Leal (2009).
Nowadays there are a large number of capoeiristas on these spaces, however the struggle
for visibility, protagonism and place for speech gets on with constantly. In this paper I analyze
the resistance trajectories of some active women capoeiristas in Pará and the gender
relations noticed. Specifically, I intend to reflect on their experiences in capoeira and the
actions that make this purpose becomes stronger. The main authors who were reference on
this work are: Oliveira and Leal (2009) and Camões (2019) about capoeira and gender;
Carneiro (2003) and Hooks (2018), about black feminism. The methodology was a field
research, looking for contributions from the interpretative anthropology of Geetz (2008), and
theorists who dialogue about oral history, Portelli (1997). The research shows advances in
recognition and graduation, but women still have experienced situations of violence and
reproduction of machismo and sexism.

Keywords: Capoeira women. Gender. Black feminism.

1007
APRESENTAÇÃO
Este trabalho é fruto de minha pesquisa acadêmica de mestrado realizada entre 2017
e 2019, onde realizo uma discussão teórica sobre o feminino na capoeira no Pará a partir de
uma perspectiva de gênero. Uma história que durante séculos foi silenciada e que vem
sendo re-construída em um contexto de lutas e resistências. Até o século XX, ―em muitas
sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas. É a
garantia de uma cidade tranquila. Sua aparição em grupo causa medo‖ (PERROT, 2017, p.
17). Nesse sentido a sociedade patriarcal era pautada por uma hegemonia masculina, sendo
palco de lutas e resistências.
As capoeiras de outrora estão entre o contingente de mulheres que fugiam a
representação estereotipada do feminino. Essas mulheres citadas como ―arruaceira‖,
―desordeiras‖, da ―pá virada‖, ―vagabundas‖, dentre outras (OLIVEIRA; LEAL, 2009), eram
mau vistas pela elite da época. Na verdade elas apareciam nos noticiários e boletins de
ocorrência como maus exemplos, era o caso de Jerônima Cafusa, mulher negra escravizada
e capoeira. Cafusa e outras capoeiras, ―desconstruía a representação do feminino,
reforçadas pelos discursos do patriarcado‖ (CAMÕES, 2019, p. 57). O título deste trabalho
―Que mulher capoeira!‖ é a epígrafe do jornal ―A Constituição‖ de novembro de 1876, ―o caso
mais antigo de prisão de uma mulher capoeira‖ (OLIVEIRA; LEAL, 2009, p. 149).
Apesar deste trabalho ter como objetivo dialogar sobre a trajetória das capoeiras do
século XXI, é interessante ressaltar essa fonte para evidenciar que a história do feminino na
capoeira não é algo recente. Durante séculos foi construída uma história única sobre a
capoeira, onde homens assumiam o lugar de protagonistas. Jerônima é uma referência do
feminino na história da capoeira e é partindo desse e outros indícios que estamos
construindo uma nova história sobre essa prática, onde mulheres assumem o lugar de
protagonistas.
No Pará, mulheres como Maria Meia-noite, Joana Maluca e Jerônima Cafusa ficaram
reconhecidas pela prática da vadiagem. Elas são algumas de nossas referências do
feminino na capoeira, mulheres que lutaram e resistiram ao sistema de opressão patriarcal e
que nos impulsionam a resistir nessa prática, pois a capoeira como uma manifestação da
cultura negra continua sendo alvo de preconceitos. Nesse sentido, analiso as trajetórias de
resistência de algumas capoeiristas atuantes no Pará e as relações de gênero evidenciadas
em suas práticas. De modo específico, analiso suas experiências na capoeira e as ações de
fortalecimento construídas.
Sendo assim, foi realizada uma pesquisa de campo participante, A pesquisa foi
norteada pela abordagem Qualitativa, pois há um convívio denso com o objeto pesquisado,
facilitando a análise dos dados (CHIZZOTTI, 2003). Para análise dos dados busco

1008
contribuições da antropologia interpretativa de Geertz (2008), o qual utiliza a etnografia
como uma interpretação densa.
Fazer etnografia é como ler (no sentido de „construir uma leitura de‟) um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos, escritos não com os sinais
convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento
modelado (GEERTZ, 2008, p. 7).

A interpretação densa tem sido um exercício que antropólogos/as tem realizado para
analisar os fatos da forma mais fiel possível. Neste trabalho busco a contribuições de
instrumentos utilizados por antropólogas/os e que são primordiais para realização da análise
da pesquisa. Para análise das entrevistas busco as contribuições de teóricos que dialogam
sobre história oral, pois as ―fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o
que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez‖ (PORTELLI,
1997, p. 31). Sendo assim, as fontes históricas tornam-se primordiais para compreendermos
as trajetórias das mulheres capoeiras.
A partir das análises dos dados foi possível perceber que as mulheres continuam
vivenciando situações em que há reprodução do machismo, sexismo e violência, e alguns
avanços quanto ao reconhecimento e graduações. Para as discussões traçadas buscamos
contribuições dos escritos sobre gênero e feminismo negro, uma vez que essas discussões
tornam-se necessárias para análise sobre o feminino nas práticas de capoeira.

CAPOEIRISTAS NO PARÁ DO SÉCULO XXI


A prática de vadiagem foi ganhando novas configurações ao longo dos séculos, a
qual passa de uma história de homens capoeiras, como retratada em alguns escritos, à uma
história das mulheres. Pires (2001) analisa alguns casos de prisões de capoeiras, onde
algumas mulheres são citadas, porém suas participações são justificadas como casos raros,
ou colocadas como algo exótico. Questões como essas contribuíram para que a história da
capoeira fosse marcada pela supremacia masculina.
Adichie (2019) fala sobre os perigos de uma história única, pois ―a história única cria
estereótipo, e o problema com o estereótipo não é que sejam mentira, mas que são
incompletos. Eles fazem com que a história se torne a única história‖ (ADICHIE, 2019, p.
26). Toda e qualquer história tem sua importância, mas não podemos coloca-las como
única, pois as histórias podes ser re-contadas a partir do momento que surgirem novos
indícios, novas fontes.
Entre o final do século XIX e início do século XX a capoeira passa por algumas
modificações tornando-se proibida de acordo com o código penal de 1890. Nesse contexto,
mulheres e homens, especialmente das camadas mais baixas eram constantemente
vigiados (OLIVEIRA; LEAL, 2009). Nesse momento histórico a rua ―simbolizava o espaço do

1009
desvio, das tentações‖ (SOIBET, 2017, p. 365), lugar onde ―bêbados‖, ―prostitutas‖ e
capoeiras trafegavam livremente.
Nesse sentido, não podemos negar que a participação do feminino na prática de
vadiagem contribuiu para quebrar ―a norma de comportamento imposto a mulher, permeado
por uma cultura de passividade feminina, na qual brigar com muitas pessoas era um
comportamento reservado ao homem, atributo de extrema masculinidade‖ (OLIVEIRA;
LEAL, 2009, p. 128). As capoeiras desconstruíam a representação do feminino disseminada
pelos discursos daquele contexto histórico. Atualmente o cenário de vadiagem é outro, e a
capoeira está dividida em dois estilos, pois desde a primeira metade do século XX que na
Bahia são criados dois novos estilos de capoeira, a capoeira Angola de mestre Pastinha e a
Regional de mestre Bimba (REGO, 1968).
Atualmente a participação do feminino na capoeira está cada vez mais significativa.
No Pará temos uma mestra de Capoeira atuante em Belém e uma mestra reconhecida in
memoriam, além de contramestras, treineis, professoras, dentre outras. É um dado mínimo
diante do número de mestres de capoeiras homens no estado, entretanto é possível
perceber que as mulheres continuam resistindo e persistindo nas práticas de vadiagem.
A persistência com certeza é um adjetivo que pode ser relacionada às trajetórias das
capoeiras, uma vez que estas por serem mulheres vivenciam situações onde os estereótipos
de gêneros são constantemente fortalecidos. Nos espaços de capoeira é possível perceber
que esses estigmas construídos sobre o feminino são estabelecidos através das relações de
poder, em um contexto de dominação.
Obviamente, os homens gostam de ideologias machistas, sem sequer ter
noção do que é uma ideologia machista, mas eles não estão sozinhos.
Entre as mulheres, socializadas todas na ordem patriarcal de gênero, que
atribui qualidades positivas aos homens e negativas, embora nem sempre,
às mulheres, é pequena a proporção destas que não portam ideologias
dominantes de gênero, ou seja, poucas mulheres questionam sua
inferioridade social (SAFFIOTI, 2015, p. 36).

Os estereótipos de gênero são reproduzidos entre homens e mulheres de forma


―naturalizada‖, sendo necessário prudência para tentarmos analisar as práticas de capoeiras
e desconstruirmos estas representações. Nesse sentido, iremos analisar alguns dos relatos
de pesquisa das capoeiristas, as quais atuam em diferentes espaços e cidades. Estas
mulheres realizam diferentes estilos de jogos: das 19 (dezenove) entrevistadas, todas tem
idades superior a 20 anos, 08 (oito) estão ligadas ao estilo angola e 11 (onze) ao estilo
regional. Vale ressaltar que há um número superior de mulheres com idades até 40 anos, e
um número mínimo de mulheres com idades superiores a 40.
Nesse sentido a idade tem influenciado no tempo de prática, e essa questão está
relacionada ao apoio da família, a compreensão do grupo quanto ao processo de gestação e

1010
as difíceis jornadas de trabalho de uma mulher, questões evidenciadas nos relatos
de algumas capoeiristas.
De acordo com os dados observados, das 19 capoeiristas entrevistadas, 12
são mães, aproximadamente 63%. Dentre as capoeiristas mães os dados se
dividem: 08 engravidaram quando estavam na capoeira (ativas), ou seja,
66% do total das capoeiristas mães. Entre as capoeiristas ativas que
engravidaram: 06 continuaram treinando até o final da gestação, ou seja,
75%; os outros 25% se afastaram da capoeira no período gestacional.
Sendo assim, o número de mulheres que continuaram a treinar mesmo
estando em estado gestacional foi bem superior se comparado às mulheres
que se afastaram (CAMÕES, 2019, p. 119).

Atualmente é bem mais comum percebemos mulheres gestantes participando dos


treinos de capoeira, mas será que as mulheres que passam por processos naturais como a
gestação são estimuladas a prosseguir nesta prática? Gisele (Tsuname), uma das
lideranças do Movimento Capoeira Mulher realiza uma reflexão sobre essa relação, em
entrevista realizada no ano de 2018.
Outra coisa que eu bato de frente, eu aprendi e tem que ser repassado. É
que processos naturais da nossa vida, não é término de trabalho. Quê que
eu quero dizer com isso? É que algumas pessoas dizem: ai eu parei de cá...
Mulheres! Mulheres tu sabe, né? Que a mulher, ela é incentivada a desistir;
que a mulher tem que ser cem por cento pra ela estar em algum lugar.
Enquanto que o homem basta ele ser só sessenta por cento que ele
enfrenta, que ele encara e ele consegue o objetivo dele. A mulher nunca se
sente preparada. Ela sempre quer está cem por cento pra poder encarar
uma situação. Dentro da capoeira existem os processos naturais. Esses
processos naturais, exemplo: gravidez. Se você é mulher, se você
engravida, se você sofre um processo natural por conta da gravidez. Você
fica nove meses. De repente você tem uma gravidez de risco [...] enfim,
qualquer tipo de processo natural, que faz parte do ser humano, faz parte da
essência do ser humano. É natural, não tem pra onde correr. Eu não posso
dizer que a mulher parou de capoeira. – Pelo amor de Deus! Ela só para de
capoeira, se depois, ao dar à luz, ela não quer mais. Existem muitas
pessoas que falam assim: olha, eu tenho dez anos de capoeira, mas eu
parei três vezes porque eu tive que dar à luz. Isso é um processo natural,
um processo natural. Eu não posso dizer que por um processo natural da
existência da humanidade, eu parei tal coisa, entendeu? Então, isso
também não é um motivo pra desmerecer a graduação de uma pessoa
(CAMÕES, 2019, p. 116).

A fala da capoeirista Gisele (Tsuname) é necessária para reflexão do feminino na


capoeira e a compreensão de um dos nossos processos naturais da vida. No trecho ―ela é
incentivada a desistir, que a mulher tem que ser cem por cento pra ela estar em algum
lugar‖, percebemos que a mulher necessita constantemente provar sua capacidade para
homens, porque a capoeira é um espaço de reprodução de práticas machistas e sexistas,
onde mulheres não aparecem como parâmetros de referência. Nesse sentido, ―o poder do
macho não é exercido apenas no seio dos grupos conservadores, estando também presente
no interior dos contingentes progressistas e até mesmo radicais de esquerda‖ (SAFFIOTI,
1987), e em espaços comunitários como os dos treinos e rodas de capoeira.

1011
O poder do macho tem sido justificado ao longo da história por um ―mito‖ sobre a
fragilidade feminina, pois ―a norma oficial ditava que a mulher devia ser resguardada em
casa, se ocupando de afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento
da família trabalhando no espaço da rua‖ (FONSECA, 2017, p. 517). Sendo assim, a rua não
era considerada um espaço seguro para as mulheres, entretanto era o espaço dos e das
capoeiras.
Apesar de toda essa carga que recai sobre a vida das capoeiristas e o esforço
constante que, como mulheres, realizamos para continuarmos em tais práticas, precisamos
nos solidarizarmos umas as outras de modo que o crescimento feminino na capoeira seja
mútuo. É possível perceber que das 19 capoeiristas que participaram da pesquisa 07 tinham
entre 01 a 05 anos de prática, 03 entre 06 a 10 anos, 04 entre 11 e 15 anos, 01 entre 16 a
21 anos, 01 entre 21 a 25 anos, e 02 com mais de 26 anos de prática. É possível
depreender a partir desses dados que quanto mais tempo de prática na capoeira, há um
número menor de capoeiristas. Quanto às atividades de trabalho e a escolaridade.
15% de nossas interlocutoras trabalham efetivamente com a capoeira, as
85% restantes tem suas profissões. No que diz respeito a formação escolar
e acadêmica: 26% das capoeirista possuem nível médio; 15% o nível
superior, 26% o superior incompleto; e 26% tem nível superior e fizeram
pós-graduação. A partir desses dados percebemos que 67% das capoeiras
possuem nível superior ou estão concluindo. Isso quer dizer que as
capoeiristas estão buscando formações acadêmicas (CAMÕES, 2019,
p.114).

Dessa forma, percebemos que algumas mulheres assumem a responsabilidade de


grupos, mas essa não é a sua renda principal. Além disso, mulheres estão adentrando os
espaços acadêmicos para realizar diálogos teóricos sobre as suas práticas. É importante
citar que esses diálogos têm contribuído para a reflexão e desconstrução de práticas
machistas, sexistas e opressoras na capoeira.

“IÊ, VIVA AS MULHERES CAMARÁ”: AS EXPERIÊNCIAS DO FEMININO NA CAPOEIRA


1
Iniciamos esta seção com uma chula de capoeira , a louvação, em homenagem as
mulheres. Falar sobre as mulheres capoeiras na contemporaneidade partindo de nossas
referências do passado para reafirmar a história do feminino tem um peso gigantesco,
especialmente pelo contexto de repressão e a luta por protagonismo que temos vivenciado
até os tempos atuais.
Partindo desse contexto histórico de desconstrução de práticas machistas que
iremos ressaltar o processo de entrada de algumas capoeiristas, evidenciando suas
limitações iniciais para o ingresso nos grupos de capoeira. Sendo assim, dialogaremos

―Cântico de capoeira, realizado ao final da ladainha, quando acontece a saudação entre o solista e os demais
jogadores‖ (LIMA, 2007, p. 88)

1012
sobre as experiências em que as relações de gênero se estabeleceram. Os estereótipos de
gênero são construídos constantemente nos espaços de capoeira, os quais estão tão
―naturalizados‖ pelos discursos que é necessário realizar um exercício de reflexão sobre a
prática.
quando nos propomos a discutir a produção de diferenças e desigualdades
de gênero, considerando todos esses desdobramentos do conceito, também
estamos ou deveríamos estar, de algum modo, fazendo uma análise de
processos sociais mais amplos que marcam e discriminam sujeitos como
diferentes, em função tanto de seu gênero quanto em função de articulações
de gênero com raça, sexualidade, classe social, religião, aparência física,
nacionalidade, etc. (MEYER, 2003, p. 19).

Nesse sentido é importante ressaltar que as questões de gênero devem ser


analisadas partindo dos marcadores sociais de raça, classe, etnia, sexualidade, dentre
outros. Isso se deve ao fato de que o movimento feminista esteve ―por um longo tempo,
prisioneiro de uma visão eurocêntrica e universalizante das mulheres‖ (CARNEIRO, 2003, p.
118). A capoeira como uma manifestação cultural negra necessita ser refletida partindo
desse contexto, onde a mulher é duplamente discriminada pelo fato de ser mulher e negra.
Hooks (1995) sustenta a ideia de que a mulher negra é duplamente estigmatizada como
inferior, por sua condição racial e de gênero.
Embora os homens ―enfrentem o racismo, não enfrentam os preconceitos de gênero‖
(HOOKS, 1995, p. 475), a realidade histórica e social sobre a participação do feminino na
capoeira nos fazem perceber o contexto de repressão ao feminino nessa prática. As
experiências do feminino foram marcadas por situações de preconceito e discriminações,
mas o desconhecimento dos limites do corpo, a gravidez e família são compreendidos como
―limitadores‖ para o ingresso e permanência na capoeira.
Para muitas mulheres o processo de entrada na capoeira foi marcado por um
processo de aceitação da família. A capoeira tem sido alvo de práticas racista, como o
genocídio de comunidades negras, especialmente as oriundas de áreas periféricas.
―„Vadios, bêbado de profissão‟ e „desordeiros‟ eram as qualificações atribuídas aos
capoeiras‖ (OLIVEIRA; LEAL, 2009, p. 153), desde o século XIX. A negatividade do termo
―vadio‖, especialmente quando atribuído ao feminino, contribuiu para a efetivação
discriminações e o machismo.
A angoleira Juliene, uma de nossas interlocutoras relata o seu processo de entrada
na capoeira.
[...] o papai e a mamãe não gostavam né! Ai não, a capoeira é coisa de
vagabundo, não sei o que, também não tinha oportunidade, não tinha
acesso em outros lugares. E ai além de, esse contato que eu tive a partir do
pai do meu filho, mas e depois também com as meninas né. Foi importante
para mim assim a presença delas e o convite né para eu ficar, mas acabou
que depois elas acabaram saindo do grupo, foram: umas viajaram, outras
foram treinar em outros lugares e durante muito tempo, eu fiquei sendo a

1013
única mulher grupo em Belém, até crianças assim quase não iam, era só
meninos (JULIENE, entrevista realizada em 2018).

No relato de Juliene é possível perceber a questão do preconceito com a capoeira


que é colocada como prática de vagabundos, mas também percebemos o incentivo de
outras mulheres do grupo para que Juliene treinasse com elas. Aqui percebemos o
sentimento de irmandade, de acolhida e solidariedade, mas é possível perceber também
uma mulher negra e angoleira sendo a única em um espaço permeado por homens, o que
Carneiro chama de solidão das mulheres negras. A capoeirista Jamile (Pretta) também
relata que sua entrada na capoeira foi marcada pelo preconceito na família, especialmente
de seu pai e sua tia que viam a capoeira como ―coisa de menino‖, ―coisa de preto‖, ―de
vagabundo‖ e ―só de homens‖.
A partir dos relatos é possível perceber que ser preto/a está carregado de uma
representação estigmatizada de raça. O ―racismo constitui-se um sistema de dominação e
opressão estrutural pautado numa racionalidade que hierarquiza grupos e povos baseada na
crença da superioridade e inferioridade racial‖ (GOMES, 2017, p. 98). Nesse sentido,
percebemos a necessidade de desconstruir tais estereótipos. Além das situações de
racismos a capoeiristas citam situações ligadas ao corpo na capoeira.
os corpos são marcados social, simbólica e materialmente – pelo próprio
sujeito e pelos outros. É pouco relevante definir quem tem a iniciativa dessa
―marcação‖ ou quais suas intenções, o que importa é examinar como
ocorrem esses processos e esses efeitos‖ (LOURO, 2016, p. 85).

Dessa forma, o corpo é uma construção histórica marcada por simbolismo e


significações que variam de espaços e sujeitos. O corpo na capoeira costuma ser
representado como forte, mas dentre os inúmeros ensinamento deixados por mestre
Pastinha, compreendemos que o corpo do/a capoeirista é ancestral, pois o/a capoeirista
―lança mão de inúmeros artifícios para enganar e distrair o adversário. Finge que se retira e
volta-se rapidamente. Pula para um lado e para o outro. Deita-se e levanta-se. Avança e
recua. Finge que não está vendo o adversário para atrai-lo‖ (PASTINHA, 1988, p. 27).
Na capoeira o corpo é malicioso, porque a malícia assim como a mandinga faz parte
da capoeira, mas esse corpo não pode ser utilizado para violência. ―Os grandes mestres
frequentemente condenam a violência gratuita, o exibicionismo barato e a necessidade de
medir forças‖ (BARBOSA, 2005a, p. 83). Então, a capoeira não exige apenas a força, mas o
controle do corpo, para descobrir seus limites. Mas o corpo feminino foi historicamente
reprimido, fomos ensinadas a esconder o corpo como forma de proteção. A angoleira e
feminista Daélem (Dadá), em entrevista no ano de 2018, ressaltou a sua relação com o
corpo.
Eu sempre tive um espírito de liberdade, mas quando eu entrei na capoeira
Angola, eu vi que o meu corpo, por mais que eu tivesse a cabeça livre, mas
o meu corpo. Eu senti, eu vi que o meu corpo historicamente foi reprimido,

1014
ele é reprimido. Então, assim, uma dificuldade com a ginga, de mexer o
quadril [...] (CAMÕES, 2019, p. 123).

No relato da angoleira Dadá é possível perceber que o histórico de repressão do


corpo feminino contribuiu para que não tivéssemos autonomia sobre nosso corpo. A
capoeira tem contribuído para que o feminino tenha mais liberdade com o corpo, a fim de
descobrirmos nossos limites. Mas, corpos masculinos e femininos são compreendidos de
maneira diferenciada, baseados na ―pluralidade e conflitualidade dos processos pelos quais
a cultura constrói e distingue corpos e sujeitos masculinos e femininos‖ (MEYER, 2003, p.
17), e essa representação do corpo é constituída por relações de poder, e isso está muito
presente nas relações hierárquicas estabelecidas dentro dos grupos.
Há capoeiristas homens que se utilizam da força física para desmotivar as mulheres
nessa prática. Uma situação como essa foi vivência por Érica Catita (mestra de capoeira que
segue o estilo Regional em Belém). Segundo mestra Catita em seu primeiro dia de treino de
capoeira, no ano de 1987, foi recebida com uma rasteira. Em entrevista realizada no ano de
2018, mestra Catita relata essa experiência.
Logo de início do treinamento, eu já fui recebida com uma rasteira. Levei
uma rasteira que eu acredito que foi assim, tipo uma forma de intimidação.
Será que tu vai aguentar? Será que tu vai querer mesmo?
- Mas de quem?
Do professor! (CAMÕES, 2019, p. 89).

Assim como mestra Catita outras mulheres também sofreram alguma forma de
violência na capoeira, violência que muitas vezes são justificadas pelo estilo de jogo, ou por
uma falsa ―igualdade‖ no jogo. Essa igualdade deve ser problematizada, pois quando
pensamos em igualdade, tão discutida nos diálogos feministas, nos referimos a igualdade de
direitos e oportunidades, a qual é pensada em termos equidade, solidariedade e alteridade.
Quando eu conheci a [capoeira] angola, eu vi que as mulheres podem tá ali
dentro inseridas e conhecer o próprio corpo. Porque quando eu iniciei eu
não sabia fazer a bananeira de... a bananeira né, e o professor Leal
[contramestre] sempre falava, é, que isso é com o tempo que vai
construindo, a pessoa conhecer o seu próprio corpo, a gente te limitações, e
a gente pode superar essas limitações. E eu percebo que com os treinos
regularmente o meu corpo tá se adaptando a esses movimentos que a
capoeira angola tem. E hoje eu já consigo fazer várias movimentações
assim que pra mim eu olhava e era impossível, mas, é, eu fui, me colocara
assim que é possível sim e eu tô descobrindo isso com o tempo
(LUCENIDA, entrevista realizada em 2018).

A angoleira Lucenilda assim como a maioria das mulheres tinha ―limitações‖ com o
seu corpo, entretanto a capoeira contribuiu para ela tivesse mais autonomia sobre o seu
corpo. Além disso, Lucenilda fala sobre o incentivo de seu formador quanto a superação de
limites, a qual só é alcançada com o treino. Esse incentivo aos aprendizes tem um valor
simbólico significativo.

1015
Para valorizar a capoeira como um ritual e não como um simples
esporte/luta, os praticantes da Capoeira Angola costumam elogiar o „jogo
bonito‟, ou seja, aquele em que existe a interação, parceria e diálogo entre
as diversas facetas do jogo (BARBOSA, 2005a, p. 84).

Mas independente do estilo de jogo é importante incentivar, acolher e se solidarizar


com os/as aprendizes, reconhecendo o esforço que todos vêm realizando para permanecer
nesta prática. Nesse exercício de reconhecimento e solidariedade precisamos refletir sobre
como as mulheres mães ou em processo de gestação estão sendo acolhidas em seus
grupos. A angoleira Juliene participou das atividades de seu grupo até o sexto mês de
gestação.
No sexto mês, eu já tava com a barriga um pouco maior. Na verdade já
parei de treinar mais porque eu precisava trabalhar, e me concentrar para
chegada do meu filho né. Mas ai em relação ao grupo, sempre teve um
entendimento né, de que as vezes não dava pra ir porque eu tava enjoada
né, porque eu tinha que fazer outras coisas, cuidar do corpo, mas sempre
tive presente né, mesmo que de forma indireta assim, compartilhando as
coisas, ajudando na produção, né, com esse tipo de coisa, né, não
diretamente tá treinando (JULIENE, entrevista realizada em 2018).

A angoleira Juliene é artesã e trabalha de forma autônoma, ela precisou se afastar


dos treinos de capoeira para se dedicar ao trabalho e conseguir recursos financeiros para
montar o enxoval de seu bebê. No período de sua gestação, pôde contar com a
compreensão de seu grupo quanto as suas ―limitações‖. Vale ressaltar que no período de
gestação, seu grupo que treinava capoeira angola na UFRA, ficou sem espaço, mas nesse
mesmo período eles ganharam um prêmio de dança e ficaram realizando oficinas de dança
no bairro da Terra Firma/Belém-PA; depois ganhou um intercambio onde realizou atividade
de capoeira em Belo Horizonte. Em seu retorno ao Pará, seu grupo continuava com as
dificuldades com espaço de treino, período que se afastou, retornando aos treinos antes de
seu filho completar um ano.
Ingrid Japinha também engravidou quando treinava em seu antigo grupo de capoeira
regional, a capoeirista também se afastou dos treinos logo que soube da gravidez, mas em
outra situação.
Depois de dois anos [treinando capoeira], eu engravidei na capoeira, quando
eu tava com uns quatro, cinco meses eu parei de treinar, só parei,
simplesmente parei, é, fui morar pro interior, pro Marajó, não treinei mais
capoeira, voltei e comecei a trabalhar. Fiquei sete anos sem ter contato com
a capoeira, sem mesmo ver capoeira, nem pela internet nem nada (INGRID
JAPINHA, entrevista realizada em 2018).

Japinha atualmente é praticante de capoeira angola, mas sua experiência inicial é de


um grupo de capoeira Regional da qual participou por dois anos, até o momento que soube
da sua gravidez. Segundo Japinha, seu afastamento foi ocasionado por vergonha de ter
engravidado.

1016
Antes de quatro meses eu treinava normal, como se não tivesse grávida, a
gente fazia os alongamentos, a gente fazia o jogo, é o treinos pesados. A
gente fazia por exemplo o abdominal e ai depois pisavam na nossa barriga
pra enrijecer.
E quando foi que tu descobriu que tu estavas grávida?
Em uma roda de capoeira eu fui jogar. Foi uma roda de aniversário, não
lembro de quem, e um aluno, um capoeirista, foi jogar comigo e fez um jogo
mais duro e me deu, me carregou, tipo pelo joelho, pela perna assim e me
jogou no chão de costas e nisso eu bati as minhas costas, só que eu
levantei, fui embora, pedi desculpas não sei o que e fui embora. Ai quando
eu cheguei em casa eu comecei a sangrar. [...]

Por que tu pediu desculpa?


Porque eu sentia isso, eu ficava com vergonha, eu achava que eu tinha sido
culpada.
[...]
Qual foi o posicionamento de teu mestre? ou isso foi com teu mestre?
Não, a roda ela continuou (INGRID JAPINHA, entrevista realizada em 2018).

A partir do relato de Japinha, percebemos como situações de violência são


justificadas como jogo. Neste relato a capoeirista carregava o sentimento de culpa,
chegando a pedir desculpa ao ―companheiro‖ de roda, pois para ela e outros/as capoeirista
aquele jogo era normal, por ser um dos movimentos de capoeira. Nesse sentido, precisamos
compreender os limites de uma movimentação ―normal‖, e nos questionar se aquele
movimento é ―normal‖ para quem? O patriarcado como sistema de dominação masculina,
tem contribuído para que nós mulheres sejamos culpabilizadas, mesmo quando estamos na
condição de vítimas. Uma vez que ―mulheres são treinadas para sentir culpa‖ (SAFFIOTI,
2015, p. 24).
Somos culpabilizadas constantemente seja quando somos vítimas de violência ou
quando não conseguimos alcançar nossos objetivos. Sendo assim, é necessário pensarmos
em ―estratégias de resistência‖ (GONZALEZ, 1982) para podermos refletir sobre as
situações de violência e opressão presentes nos espaços de capoeira. Diante dos relatos,
julgo importante evidenciar experiência de capoeirista que tiveram o apoio para continuarem
treinando até o final da gravidez. É o caso da angoleira Antônia (Lira), a qual fala sobre a
sua experiência de gestação e após a gestação.
Até oito meses e meio eu ainda tava treinando capoeira, e a movimentação
eu fazia o que eu dava conta. [...] Agora, eu nunca me meti na roda de
ninguém grávida. Eu não tenho coragem. Augusto algumas vezes: Tem que
entrar! eu não tenho coragem, não tenho mesmo de entrar, eu entrei numa
roda gravida em Santarém porque o mestre Bel me convidou, foi essa que
eu tava com quatro meses. Ai eu entrei e ele foi super cuidadoso, mas era o
meu mestre, né. Eu nunca entrei na roda além dessa, eu fiz treino a minha
gravidez inteira, eu treinei dentro das minhas possibilidades. [...] Nos
primeiros três meses de gravidez eu só fazia alongamento, ai treinei depois
quando eu parei, eu fiquei seis meses sem treinar seis meses eu engordei
muito eu tava cirurgiada, cesária. Ai fiquei seis meses sem treinar, e depois
dos seis meses eu já comecei a treinar devagar. O treinel ia passando
exercícios diferenciados para mim e eu já comecei a treinar, porque eu sou
bem bruta mesmo. Na verdade eu sou meia que brutona mesmo, e ai para

1017
eu ficar sem treinar era bem difícil, mas a minha principal dificuldade com a
maternidade é ainda é hoje organizar essa logística de treinar cuidar do
Luanda, Luanda é o meu chicletinho então embora ele esteja dentro do
grupo ele exige uma atenção, e ai é muito difícil para mim (LIRA, entrevista
realizada em 2018).

Neste relato é perceptível a preocupação em manter os treinos contínuos, mas de


forma diferenciada, de acordo com os seus limites. Em seus treinos ela pode contar com o
apoio e orientação de seu contramestre. Após a gestação, nos dois primeiros anos de vida
de seu filho, a angoleira Lira apresentou maiores dificuldades para manter os treinos
regularmente. Assim como Antônia (Lira), a capoeirista Jamile (Pretta) também passou por
um processo de gestação e conseguiu participar dos treinos nesse período. Em entrevista
realizada no ano de 2018, a capoeirista relata sobre sua experiência.
Como o meu companheiro ele é mestre de capoeira. Então, eu não tive
dificuldade nenhuma, né. Tinha o receio de me machucar, todo mundo
apreensivo, ansioso, né. Ah não joga, meu Deus, essa menina é doida. Não
deixa ela jogar, cuidado. Ai, quando eu via que a roda tava muito calorosa.
Ai não, deixa eu tocar, deixa eu me aquietar um pouquinho. Eu me
aquietava. Só que eu joguei e viajei grávida, sozinha (eu e a Yoko, minha
amiga). Viajei pro Maranhão, só nós duas. Joguei lá, horrores [...] Ai eu
joguei, todo mundo, meu Deus, essa menina é doida, não sei o quê. Toma
cuidado com ela, mas consegui né, dentro das limitações, mas joguei
bastante. Toquei, conversei, dialoguei. Foi a primeira vez que eu sai sozinha
[...] (CAMÕES, 2019, p. 127-128).

A capoeirista Pretta, assim como Lira, tem como companheiro afetivo seu formador,
mas independe disso eles vivenciaram a experiência de treinar mulheres gestantes.
Mulheres que jogam, que participam dos treinos, mas que possuem certas limitações. De
certa forma eles passaram por processos de aprendizagem e isso com certeza contribuiu
para que eles e outros homens dos grupos, percebessem que mulheres gravidas, assim
como mães, devem ser acolhidas nesses espaços. São situações como essa que nos fazem
refletir sobre como a história vai se re-construíndo e refletir sobre outros processo em que
fazem parte do cotidiano feminino como a menstruação e TPM por exemplo.

“A MENINA É BOA BATE PALMA PRA ELA”: A SOLIDARIEDADE FEMININA E


A CONSTRUÇÃO DE RESISTÊNCIAS
2
Iniciamos esta seção com uma frase de um corrido de capoeira que há alguns anos
vinha sendo cantado no masculino. Na verdade a letra desse corrido como a de muitas
cantigas de capoeira era cantada para homens, reafirmando a supremacia masculina na
capoeira, algo que tem sido desconstruído especialmente pelas capoeiristas ligadas ao
movimento feminista. Sendo assim, foi realizada uma releitura da letra desse corrido,
valorizando a presença do feminino nas rodas de capoeira.

―Cântico de capoeira que marca o instante em que o jogo pode ter andamento, quando o coro é
fundamental, devendo entrar desde o início‖ (LIMA, 2007, p. 92).

1018
A história da capoeira no Pará foi re-contada e re-construída pelas diversas vozes
das mulheres atuantes no Pará no século XX. Essa história de mulheres reais, assim como
as capoeiristas de outrora, suas lutas por protagonismo e suas conquistas, nos fazem refletir
que ainda temos muito para alcançar nas práticas de vadiagem. Apesar das capoeiristas
estarem alcançando graduações e terem conquistado espaço de fala, ainda temos muitas
batalhas pela frente. Mas não podemos negar a importância que os diálogos feministas
tiveram em meios a essas conquistas e especialmente do feminismo negro.
O Movimento Negro sempre esteve ―identificado com as lutas populares e com luta
pela democratização do país‖ (CARNEIRO, 2003, p. 118), a participação de mulheres
negras no movimento feministas contribuiu para construção de uma nova categoria de
feminismo, o feminismo negro, desconstruindo uma visão universalizante sobre as mulheres.

no feminismo negro brasileiro, a perspectiva de gênero é uma variável


teórica que não pode ser dissociada de outros eixos de opressão, uma vez
que, em sociedades multirraciais, pluriculturais e racista, como o Brasil, o
racismo determina a própria hierarquia do gênero (FERNANDES, 2016, p.
705).

Nesse sentido, os diálogos construídos pelo feminismo negro servirão de base para
analisarmos a participação do feminino na capoeira, evidenciando as situações de racismo,
opressão e a desconstrução dos estereótipos de gênero.
―Falar de racismo, opressão e de gênero, é visto geralmente como algo
chato, mimimi‖ ou outras formas de deslegitimação. A tomada de decisão
sobre o que significa desestabilizar a norma hegemônica é vista como
inapropriada ou agressiva porque ai se está confrontando o poder
(RIBEIRO, 2017, p. 80).

Esse é um exercício necessário para deslegitimar práticas em que o ―poder do


macho‖ é evidenciado. ―O pensamento sexista continua a apoiar a dominação masculina e a
consequente violência‖ (HOOKS, 2018, 99). Sendo assim, é importante a construção de
vínculos de solidariedade de modo a construirmos formas de resistência. Quando falamos
sobre solidariedade feminina estamos falando sobre alteridade, sobre compreensão.
A solidariedade feminina na roda de capoeira pode se fazer presente em
diferentes situações: quando a roda é transformada em espaço de acolhida;
quando mulheres mães são trazidas para roda; quando mulheres sentem-se
a vontade para jogar, sem serem ―cortadas‖ (retiradas) do jogo por homens;
quando mulheres têm oportunidades de tocar e cantar na roda; quando,
nestes espaços, os corpos femininos não são erotizados; quando um
homem não se sente ―humilhado‖ por sofrer um golpe de uma mulher;
quando mulheres não são assediadas; quando mulheres são valorizadas,
incentivadas; quando as experiências do feminino, nas rodas de capoeira,
são problematizadas; quando discursos e comportamentos sexistas são
questionados (CAMÕES, 2019, p. 110).

O sentimento de solidariedade contribuiu para que grupos de mulheres se reunissem


para lutar pelo direito de participarem das rodas ativamente: cantando, jogando e tocando.

1019
Além disso, atualmente mulheres estão construindo cartas de repúdio contra ações de
violência dentro da capoeira. No âmbito nacional mestra Janja, mulher negra, angoleira,
acadêmica e feminista, é um dos mais importantes nomes na luta anti-racista e feminista na
capoeira angola. Mestra Janja é a pioneira nas discussões e realizações de ações do
feminismo angoleiro.
Ela é uma pessoa encabeçadora dessas discussões [sobre o feminismo
angoleiro]. É quem deu a cara à tapa, né, nessas situações. Então ela é a
nossa grande liderança dentro do RAM, é a Janja né. É uma referencia de
mulher na capoeira, embora eu, por exemplo, eu tenho outras referências de
jogo, que é a Gegê. A minha referência de jogo de capoeira é a Gegê,
porque eu não conheço a prática dela, né. A prática enquanto sujeito
mulher, conheço o jogo, sei que é uma mulher capoeirista. É a minha
referência de mestra mulher. Mas a Janja, além de tudo ela é uma mulher
negra, traz na pele, no corpo (lésbica negra). Trás no corpo os marcadores
sociais muito fortes (ANTONIA LIRA apud CAMÕES, 2019, p. 74).

Antônia Lira cita mestra Janja como uma grande referência para as angoleiras, sendo
3
uma liderança na Rede Angoleira de Mulheres (RAM). A RAM foi criada no ano de 2004
para construir diálogos e ações de resistência, as quais se intensificaram com a construção
de um grupo virtual no ano de 2017. O grupo virtual tem contribuído para intensificar
diálogos, aproximar mulheres de diferentes lugares do Brasil e de outros países, e fortalecer
ações como rodas feministas, rodas de conversas, eventos, manifestações públicas e cartas
de repúdio.
No Pará, o Movimento Capoeira Mulher (MCM) foi construído a partir de uma
proposta de desconstrução de práticas machistas e para contribuir com o protagonismo
feminino na capoeira. A capoeirista Gisele (Tsuname), ressalta sobre a criação do MCM.
[Silvia Leão] pensou o Movimento Capoeira Mulher, por conta da dificuldade
que ela observava não só na vida pessoal, como dentro da capoeira. Então,
aquela história, a história da discriminação, a história do machismo, ela era
muito... ela é muito forte dentro da capoeira! Então, ela percebeu isso, e ela
viu o potencial das mulheres. Essas palavras tipo: protagonismo, iniciativa
feminina, tudo era muito pensado por ela [...] (GISELE TSUNAME,
entrevista realizada em 2018).

Nesse sentido, Silvia Leão, a mestra Pé de Anjo, era uma mulher que pensava a
frente de seu tempo e já se preocupava com a participação do feminino na capoeira. A
história de luta e resistência de Silvia Leão, desde a criação do MCM no ano de 2002, foi
primordial para o seu reconhecimento como mestra de capoeira, in memoriam. Mas, vale
ressaltar que mestra Janja foi protagonista no processo de reconhecimento de mestra Pé de
Anjo, pois no ano de 2016, quando participava do ―I Colóquio Patrimônio, Gênero e Saberes
Tradicionais‖, conheceu a sua história de resistência e a reconheceu como mestra.

3
Informações retiradas do Jornal da capoeira, edição 52 de 4/dez a 10/dez de 2005. Disponível:
<http://www.capoeira.jex.com.br/cronicas/encontro+europeu+de+angoleiras> Acesso: 05 de outubro
de 2018.

1020
Ações como essa demonstram que o envolvimento coletivo e práticas de
solidariedade estão contribuindo para que as mulheres conquistem espaços de fala e
protagonismo na capoeira. O Feminismo negro e angoleiro tem sido relevantes nos debates
construídos sobre o feminino na capoeira. Atualmente temos outros coletivos feministas
como o ―Bando da Brava‖ que vem lutando pela desconstrução de estereótipos de gênero e
a valorização de mulheres e homens, cis ou trans, pois a capoeira é para todos/as, ―ela é
para o deficiente, ela é para o gordo, ela é para o magro, ela é para o jovem e ela é para o
velho‖ (ILCA BATATONA, entrevista realizada em 2018).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste espaço falamos sobre algumas experiências do feminino capoeira, partindo de
diálogos construído no III capítulo da dissertação de Camões (2019) e outros relatos que
não haviam sido evidenciados em outros escritos. A partir desses diálogos foi possível
perceber que do século XIX para a atualidade houve muitas mudanças na história da
capoeira, começando com a sua divisão em dois estilos, a configuração dos jogos e o
aparecimento dos coletivos feministas.
Embora o feminismo não seja diretamente responsável pela presença da
mulher na capoeira, ele legitimou a reinvindicação de igualdade entre os
sexos, deu impulso a vários debates sobre a paridade de gênero e garantiu
novas propostas de vida para as mulheres. Portanto o grande número de
mulheres que participam ativamente de esporte, que colocam a sua energia
e o seu poder aquisitivo no mercado de trabalho e que lutam pelos direitos
da mulher teve papel decisivo na sua infiltração na capoeira, pois os
homens capoeiristas já não podiam facilmente segregar e discriminar a ala
feminina (BARBOSA, 2005, p. 14).

As lutas feministas foram cruciais para a desconstrução de práticas machistas e


opressoras. Entretanto, entre diálogos e ações de resistência, os estereótipos de gênero
continuam sendo reproduzidos nesses espaços. Nesse sentido, ressaltamos a relevância de
homens e mulheres lutarem de forma coletiva contra qualquer forma de descriminação ou
padronização, para que sejamos percebidas nesses espaços, pois ―ser „feminista‟ em
qualquer sentido autêntico do termo é querer para todas as pessoas, femininas ou
masculinas, a libertação dos padrões dos papeis sexistas, de dominação e opressão‖
(HOOKS, 2014, p. 139). Portanto, o feminismo tem contribuído para que ações de
resistência sejam construídas para tirar as capoeiristas do contexto de invisibilidade.

REFERÊNCIAS
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São Paulo. Companhia das Letras, 2019.

BARBOSA, Maria José Somelarte. A mulher na capoeira. Arizona Journal of Hispanic


Cultural Studies, Volume 9, 2005, p 9-28 (Article).

1021
BARBOSA, Maria José Somelarte. Capoeira: A gramática do corpo e a dança das palavras.
Luso-Brasilian Riview 42:1, p. 78-99, 2005a.

CAMÕES, Luciane de Sena. “Elas jogam, tocam e cantam”: práticas e discursos sobre a
experiência histórica de mulheres capoeiristas no Pará. Dissertação (Mestrado). Programa
de Pós-Graduação em Estudos Antrópicos na Amazônia. Campus Universitário de
Castanhal, Universidade Federal do Pará, Castanhal, 2019.

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