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Ciências Sociais; 2. Relações de Gênero; UFPA.
Os conteúdos dos textos são de totais responsabilidades dos seus respectivos autores.
Belém, 2020
Anais do V Encontro Amazônico sobre Mulheres e
Relações de Gêneros
4
“O suplício de mundanas”: uma carta à primeira dama de Belém - SILVA, Jhenifer
Denise Souza da; LACERDA, Franciane Gama......................................................... 212
5
Não somos Iracema: vozes indígenas femininas – dos estereótipos à resistência -
SILVA, Jairo da Silva e ................................................................................................................... 417
6
Modificações do papel das mulheres na pesca artesanal no município de Marapanim-
Pa - COSTA, Layse Rosa Miranda da; REIS, Samanta Conceição da Silva; FURTADO,
Lourdes de Fátima Gonçalves. .................................................................................................... 614
7
Litigância Estratégica em prol da descriminalização do aborto: usos, sentidos e
práticas na clínica de atenção à violência - CARMO, Maura Sabrina Alves do ........... 801
Para além do arco-íris: a relação dos homens gays com a cultura material na 18º
Parada do Orgulho LGBTI de Belém - ROSA, José Carlos Almeida da; GONTIJO,
Fabiano de Souza. .......................................................................................................................... 900
8
A Subalternização Na Vida Mulheres Negras Como Empregadas Domésticas No
Mercado De Trabalho De Belém Trajetórias De Vida No Século Xxi - BEZERRA,
Alessandra Viviane Vasconcelos; SILVA, Danielle Silva da .............................................. 997
9
APRESENTAÇÃO
A Coordenação e demais pesquisadoras/es associadas/os do GRUPO DE
ESTUDOS E PESQUISAS ―ENEIDA DE MORAES‖ SOBRE MULHER E
RELAÇÕES DE GÊNERO – GEPEM convidam professoras/es,
pesquisadoras/es, estudantes, especialistas, profissionais, movimentos sociais
e integrantes dos diversos Grupos e Núcleos, Centros e Programas de
Pesquisas e Estudos sobre a questão de gênero e mulheres das diversas
Regiões para participarem do V ENCONTRO AMAZÔNICO- MULHERES
AMAZÔNIDAS: DEMOCRACIA, RESISTÊNCIAS, CONSTRUÇÃO DE
SABERES, intencionando avaliar o impacto, no campo acadêmico (ensino,
pesquisa e extensão), dos estudos sobre mulheres e relações de gêneros na
Amazônia. O Encontro objetiva: a) reforçar a rede de
pesquisadoras/pesquisadores, estudantes, profissionais e membros de
movimentos sociais voltados à pesquisa das relações de gênero e a suas
aplicações na região amazônica; b) identificar áreas que necessitam atenção
de pesquisa, de formação de recursos humanos e de fundamentação de
políticas públicas promotoras de equidade de gênero; c) dar visibilidade
acadêmica e na sociedade mais ampla ao tema da diversidade de gênero na
Amazônia; d) fortalecer a teoria crítica feminista latino-americana que tem
fomentado estudos sobre as mulheres com base na interseccionalidade,
perspectiva esta que interage em níveis múltiplos nas questões de gênero,
classe, raça, capacidade, orientação sexual, religião, idade e demais eixos de
identidade; e) construir parcerias com as organizações de mulheres da
Amazônia, visando ao intercâmbio de saberes para contribuir nas demandas de
políticas sociais; f) estimular a linha de publicações já iniciada nos encontros
anteriores, prevendo a difusão, maior alcance e circulação dos estudos
realizados na Região Norte sobre essas questões. O V Encontro reveste-se de
especial importância por duas razões principais. De um lado, pela crescente
relevância da temática, quando as demandas sociais por crescimento
econômico inclusivo e respeitoso dos limites ambientais incluem, em ampla
medida, a atenção às injustiças baseadas nas relações sociais de gênero. De
outro lado, o evento marca os 25 anos de existência do GEPEM, cuja trajetória
acumula vasta produção de pesquisa, extensão e ensino, este último com
presença de docentes em diferentes cursos de graduação, pós-graduação e de
outros níveis no âmbito da UFPA e, também, em instituições de outras regiões.
10
AT 1 - Gênero, Identidade e Cultura
Coordenação
11
V ENCONTRO AMAZÔNICO SOBRE MULHERES E GÊNEROS – GEPEM
19 a 21 de novembro de 2019
Universidade Federal do Pará (UFPA)
At1 gênero, identidade e cultura
RESUMO
O trabalho de pesquisa teve como objetivo demonstrar o processo de conquista do espaço
feminino nos Cursos de Educação Física do Brasil, apresentando as questões de gênero
existentes em relação ao feminino, a partir de publicações científicas da língua portuguesa na
área da educação física no ensino superior. Para o levantamento de dados utilizou-se de revisão
sistemática com as palavras-chave representatividade, empoderamento feminino, gênero,
educação física; foram utilizadas ao final do processo 8 obras que atenderam aos critérios de
inclusão e exclusão. Após o estudo, concluiu-se que a representatividade das mulheres que
frequentam o curso de educação física ainda não é equivalente à dos homens, por uma série de
motivos já mencionados. Entretanto, as estimativas são de que o nível de representatividade
destas mulheres cresça progressivamente nos anos que ainda virão.
ABSTRACT
The research work aimed to demonstrate the process of conquering the female space in
Physical Education Courses in Brazil, presenting the existing gender issues in relation to the
feminine, from scientific publications of the Portuguese language in the area of physical
education in higher education. For data collection, we used a systematic review with the
keywords representation, female empowerment, gender, physical education; eight works that
met the inclusion and exclusion criteria were used at the end of the process. After the study,
it was concluded that the representation of women attending physical education is not yet
equivalent to men, for a number of reasons already mentioned. However, it is estimated that
the level of representativeness of these women will grow progressively in the years to come.
12
1 INTRODUÇÃO
O trabalho a seguir corresponde a uma revisão sistemática que tem como objetivo
mostrar como foi dada a conquista do espaço feminino no ensino superior, especificamente
nos cursos de educação física do Brasil. Além do mais, busca relatar as questões de gênero
existentes em relação ao feminino, a partir de publicações científicas da língua portuguesa
na área da educação física e ciências a fim, que abordam temas sobre a presença de
mulheres nos cursos superiores e como aconteceu o processo histórico de inserção dessas
mulheres. Para que a pesquisa fosse realizada, houve a imprescindibilidade de utilizar da
internet para encontrar as publicações científicas que contivessem características as quais
se adequassem aos critérios de inclusão e exclusão que foram estabelecidos ao início desta
pesquisa, a fim de apresentar levantamentos sobre o assunto, constatar fatos e refletir sobre
o processo histórico do feminino no ensino superior e também sobre as questões de gênero
existentes. Inicialmente foram encontradas, a partir de palavras chaves selecionadas
(representatividade, empoderamento, feminina, mulher, gênero, educação física, ensino
superior), 59 publicações científicas e ao fim foram utilizadas 8 obras para propiciar
embasamento à construção deste trabalho.
13
2 DADOS QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS
14
A partir da década de 70, onde houveram estas indagações a respeito do lugar da mulher na
sociedade, as mulheres almejaram conquistar o seu maior grau de educação e partiram para a
investida de obterem vagas nas Universidades, cursar e concluir os cursos escolhidos ainda que
existissem grandes dificuldades tanto pelo gênero quanto pela sociedade.
O conceito de gênero, construído inicialmente nos anos de 1960 se
consolida no movimento feminista na década de 1980, a partir de
autores como Scott (1990) e Nicholson (2000) que ajudam na
compreensão de que as diferenças observadas entre mulheres e
homens são construções sociais e históricas e devem ser
dimensionadas como hierarquias de poder. Para Scott (1990, p. 75)
―gênero é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado‖.
(ARTES, CHAGAS, 2017, p.1)
Por décadas o gênero feminino foi julgado e discriminado pelo que o patriarcado
estipulou, pela visão do corpo da mulher, visto como instrumento sexual de reprodução e
incumbido das responsabilidades domésticas. A partir do movimento feminista em 1980,
esses padrões de visão sobre o corpo feminino começaram a mudar pois as mulheres
estavam cansadas de serem vistas como apenas um corpo destinado a satisfação dos
homens e da sociedade como um todo.
A tentativa de equidade entre os sexos é a grande questão da nova era, uma vez que as
mulheres estão alcançando a sua educação a nível superior que por tempos lhes foi negado,
ficando claro que o sexo feminino pretende estar no mesmo nível acadêmico que os homens
e que futuramente o percentual quantitativo de mulheres dentro das salas de aula de
universidades seja igual ao percentual quantitativo de homens.
Metade da população potencialmente interessada em ingressar no
ensino superior é constituída por mulheres. Diante da crescente
expansão desse grau de ensino, principalmente a partir de 1967 –
1968, cabe indagar até que ponto esse fato vem redundando em
maior abertura das oportunidades de acesso para os elementos do
sexo feminino (...). Num momento em que os papéis sexuais
tradicionais estão sendo questionados e redefinidos em diferentes
sociedades, e em que a situação de inferioridade social e econômica
da mulher já não é pacificamente aceita, seu acesso às
oportunidades de formação universitária pode ser considerado como
um objetivo intermediário importante para atingir maior igualdade
entre os sexos no mundo do trabalho e na organização social em
geral. (BARROSO, MELLO, 1975, p.47)
Dados do Censo Demográfico do IBGE indicam que em 1970 as mulheres representavam
26,6% da população com nível universitário, proporção esta que subiu para 45,5% em 1980
(GUEDES, 2008, p. 124 apud VENTURINI, 2017, p.2).
Estes dados mostram o quanto o quantitativo de mulheres aumentou naquele ano e estes
números não pararam de crescer no decorrer do tempo, pois as mulheres estão dominando
as universidades e mostrando para a sociedade machista brasileira onde também é o lugar
delas.
15
O aumento da participação feminina no ensino superior é reflexo da
consolidação de direitos adquiridos pelas mulheres ao longo do tempo,
neste sentido, as políticas públicas voltadas para a democratização do
acesso, contribuíram efetivamente para que estes resultados fossem
atingidos. As reformas e programas governamentais são instrumentos
facilitadores da promoção da igualdade de oportunidades entre os
gêneros. (VIANA, SOUZA, NETA, 2017, p.8)
16
mulheres não sejam maioria, a distância com relação à porcentagem
de homens é pequena. (ÁVILA, PORTES, 2009, p. 94-95)
Pedagogia
43,10%
48,90% 91,30% C. social
Letras
49,20% 56,60%
Representatividade nos cursos de
C. Contábeis
educação física
82,90% 80% Enfermagem
50,70% Mulheres 43,10%
Administração Homens 56,90%
17
Dados do Censo da Educação Superior divulgados pelo INEP indicam que em 2015 as
mulheres representaram 59,88% dos estudantes que concluíram cursos de graduação
presenciais no Brasil. (VENTURINI, 2017, p.3)
Segundo informações do Censo da Educação Superior, divulgado
em 2016, o perfil do discente da graduação no Brasil demonstra que
há uma predominância de mulheres tanto na modalidade presencial
quanto à distância. Além disso, o turno noturno é o que possui mais
estudantes matriculados na modalidade presencial. (VIANA, SOUZA,
NETA, 2017, p.8)
Se tratando de todas as ciências ofertadas pelo ensino superior, as mulheres
ultrapassaram a somatória de homens existentes nas universidades tanto na modalidade
presencial quanto à distância, equivalendo mais da metade de das vagas ofertadas.
Infelizmente dentro dos cursos de educação física esta realidade ainda não é um fato, por
a profissão ainda ser considerada mais voltada para homens, pelo seu cunho educacional
prático-corporal. Isto está ligado claramente a uma questão de gênero que ainda é vigente
nos dias atuais, por influência da cultura discriminatória enraizada na sociedade brasileira.
18
historicamente construídos. O preconceito não se encontra no ―corpo
anatômico‖, mas no ―corpo culturalizado‖. (ZUZZI, SAMPAIO,
KNIJNIK, 2008, p.128-129)
As mulheres ainda enfrentam grandes obstáculos na introdução e permanência no ensino
superior, principalmente na educação física, por todas as situações que foram expostas ao
longo deste estudo. Porém são barreiras que podem ser superadas em virtude do
empoderamento feminino.
19
3 CONCLUSÃO
Este estudo teve como objetivo apresentar como ocorreu o processo de conquista do
espaço feminino no ensino superior, com um olhar voltado para o curso de educação física.
Pôde ser observado que existiram várias dificuldades ao longo deste percurso, iniciando-se
com a negação dos direitos educacionais as mulheres no período colonial, seguindo pela
discriminação do corpo feminino, do ―sexo frágil‖, da prevalência de homens no ensino
superior e favoritismo masculino em determinados cursos; assim como o preconceito sobre
a capacidade feminina em determinadas atividades.
Fez-se claro o interesse feminino em ingressar neste nível educacional, em busca dos
seus direitos, introdução ao mercado de trabalho e conquista da melhoria de vida, apesar
dos obstáculos. As mulheres deste século estão ocupando mais da metade das vagas
ofertadas pelo ensino superior do Brasil, em universidades públicas e privadas, tanto na
modalidade presencial quanto à distância.
Contudo, a representatividade das mulheres que frequentam o curso de educação física
ainda não é equivalente à dos homens, por uma série de motivos já mencionados.
Entretanto, as estimativas são de que o nível de representatividade destas mulheres cresça
progressivamente nos anos que ainda virão.
20
REFERENCIAS
21
RACISMO INSTITUCIONAL CONTRA MULHERES NEGRAS NA ASSEMBLEIA DE
1
DEUS: NOTAS SOBRE ASPECTOS GERAIS
Resumo:
A comunicação sintetiza parte dos resultados de uma pesquisa sobre a relação entre racismo e
pentecostalismo, realizada entre os meses de outubro de 2016 a março de 2017. Os dados aqui
analisados dão conta do racismo institucional contra mulheres negras na Assembleia de Deus, e
o objetivo é elucidar aspectos gerais da incidência do racismo institucional assembleiano na vida
das mulheres negras que integram a comunidade religiosa lócus do estudo. A investigação
consistiu em um estudo de caso em uma congregação no município de Castanhal, Região
Metropolitana de Belém, e a metodologia empregada foi a observação participante, realização de
entrevistas e pesquisa documental. Os resultados apontam que a lógica de organização da
Assembleia de Deus é racista e os ―usos e costumes‖ (estratégias de branqueamento que se
encaixam no que Fanon chamou de ―máscaras brancas‖) se configuram em ferramenta central
de regulação do acesso desigual aos cargos de liderança. As mulheres negras são afetadas de
várias formas por essa regulação racista.
Palavras-chave: Racismo institucional. Pentecostalismo. Gênero e Raça. Mulheres negras.
Assembleia de Deus.
Abstract:
The communication summarizes part of the results of a search on the relationship between
racism and Pentecostalism, realized from October 2016 to March 2017. The data analyzed
here illustrate the institutional racism against black women in the Assembly of God, and the
purpose it is to elucidate general aspects of the incidence of institutional assembly racism in
the lives of black women who are part of the locus religious community of the study. The
investigation consisted of a case study in a congregation in the municipality of Castanhal,
Belém Metropolitan Region, and the methodology employed was participant observation,
interviews and documentary research. The results point out that the organizational logic of
the Assembly of God is racist and the ―customs and practices‖ (bleaching strategies that fit
what Fanon called ―white masks‖) are a central tool for regulating unequal access to
positions. Leadership Black women are affected in many ways by this racist regulation.
Keywords: Institutional racism. Pentecostalism. Gender and Race. Black women. Assembly
of God.
22
1 INTRODUÇÃO
Negritude é um conceito polissêmico. Cada segmento da população negra tende a dar ênfase a
aspectos diferentes e a adotar posturas políticas distintas a partir de suas próprias realidades, o que
se configura em um modo próprio de negritude, todavia, podemos dizer que negritude é um ideal de
ser negro que envolve aspectos culturais, históricos, fenotípicos, políticos e identitários centrados na
valorização dos valores civilizatórios das culturas africanas (MUNANGA, 1988).
23
ausência da reflexão dos pentecostais sobre a situação da população negra na ocasião do meu
Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais, na UFPA. Naquele momento, realizei um
estudo de caso em uma congregação da Assembleia de Deus na periferia urbana do município
de Castanhal, Região Metropolitana de Belém, entre os meses de outubro de 2016 a março de
2017, com o intuito de verificar em que medida e de que maneiras o pentecostalismo, no caso
estudado, contribuia ou não com o racismo (MONTEIRO, 2017).
Por racismo compreendo o conjunto de ideais coletivos e individualizados, bem como as ações
deles resultantes baseados na crença da existência de raças. E, no sentido sociológico em que uso o
termo, "raças são discursos sobre a origem de um grupo, que usam termos que remetem à
transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc. pelo sangue‖
(GUIMARÃES, 2008, p. 66).
24
Nesta comunicação, trabalho apenas com os dados concernentes às maneiras pelas
quais as mulheres negras assembleianas são atingidas pelo racismo institucional da igreja.
O objetivo é elucidar os aspectos gerais que as afetam, considerando o princípio
organizador do racismo institucional assembleiano: o Deus Branco. A metodologia
empregada na geração do material que aqui discuto foi a observação participante,
realização de entrevistas, e pesquisa documental. Minhas análises não possuem caráter
exaustivo, na verdade, são apenas notas acerca dos dados gerados naquele momento e
que pretendo aprofundar com um novo retorno a campo.
De acordo com Berger (1985), teodiceias são explicações de fenômenos anômicos em termos de
legitimação religiosa que seja de qualquer grau de sofisticação teológica. ―Uma das funções sociais
muito importantes da teodiceia é, com efeito, a sua explicação das desigualdades de poder e
privilégio que prevalecem socialmente‖ (Idem, p. 71).
25
Sobre o primeiro fator, o pentecostalismo, em sua origem, possui estreita relação
com o racismo segregacionista estadunidense. Charles F. Parham, conhecido como o ―pai‖
do reavivamento pentecostal do século XX por ter criado a teoria do ―batismo com o Espírito
Santo‖, era um dos apoiadores da Ku Klux Klan (CAMPOS, 2005). Toda a primeira geração
de grandes líderes pentecostais foi por ele formada, inclusive William Joseph Seymour,
pastor da igreja onde Daniel Bergue e Gunnar Vingren, fundadores da Assembleia de Deus
no Brasil, se pentecostalizaram. Por ser segregacionista, Parham proibiu Seymour (que era
negro) de assistir as aulas de teologia dentro da sala de aula com os demais alunos
brancos, assim, Seymour recebeu sua formação teológica assistindo as aulas através da
porta, em uma cadeira que era colocada no corredor (CAMPOS, ibidem).
Diferente de Parham, quando abriu sua famosa igreja na Rua Azusa, em Los
Angeles, Seymour acolheu pessoas de todas as ―raças‖ ―sem distinção‖, porém, mesmo
abandonando o segregacionismo, ele não se livrou de uma das principais marcas da
teodicéia pentecostal, em seu tempo, recentemente inventada pelos segregacionistas
5
brancos: o eurocentrismo e a branquitude que negam a estética e demais símbolos
culturais africanos. Observo, porém, que esse movimento de ruptura total com a teodiceia
racista do pentecostalismo não seria instantaneamente possível a Seymour que foi educado
6
em meio à colonialidade que apregoa que ser Humano é ser branco.
A colonialidade forja nos indivíduos um seu ser, um modo de conhecer e de saber tão
imbricados à personalidade que mesmo depois de consciente da existência do racismo, não
fácil para um indivíduo se reconstruir em oposição àquele modo de ser e de saber nele
introjetado desde a infância, então, para alguém que não é consciente do colonialismo e da
colonialidade – como era o caso de Seymour, isso é impossível. Seymour morreu sem ter
consciência do sistema-mundo colonialista, para ele, os padrões culturais em que fora educado
eram naturais e é isso que pensava o senso comum do protestantismo que, seguindo
7
o modus operandi do pensamento religioso , reificou a cultura europeia transplantada para
as terras outrora coloniais.
5
Segundo Sovik (2004), branquitude é a identidade racial construída a partir de ideias de
branqueamento que mantém os privilégios ou direitos adquiridos. No sistema racial, são traços
culturais típicos dos brancos e por isso ligados à sua identidade.
E no entendimento pentecostal, alguém que é a imagem e semelhança de Deus.
Mito-lógica, conforme Lévi-Strauss (2012).
26
despidos de sua historicidade não possuindo, assim, qualquer alusão valorativa à África ou a
uma identidade negra contrastante à branquitude estadunidense. Ser pentecostal nos
Estados Unidos no final do século XIX e início do XX era possuir uma moral burguesa
vitoriana, vestir-se com roupas sociais e negar qualquer traço de negritude.
Foi esse modo de ser pentecostal que foi trazido ao Brasil pelos missionários Daniel
Bergue e Gunnar Vingren, mas aqui ganhou outro contorno: o ―racismo à brasileira‖. A
Assembleia de Deus brasileira nunca proibiu alguém não-branco (afro-brasileiro ou indígena)
de fazer parte da instituição, mas, sempre manteve, em termos institucionais, sua
cosmovisão e padrão de cultura eurocêntricos. Esta característica não apenas da
Assembleia de Deus, mas do pentecostalismo, fez com que ela, assim como outras igrejas
pentecostais na história recente, fosse responsável por massivos etnocídios entre
comunidades tradicionais no país (CALDAS e BRITO, 2013; NASCIMENTO e ABIB, 2016).
Falo em discriminação racial no mesmo sentido apresentado no Estatuto da Igualdade racial: ―toda
distinção, exclusão ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica
que tenha por objetivo anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de
condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social,
cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada‖ (BRASIL, 2015, p. 13).
27
pela adoção de tratos com o corpo e com indumentária que refletissem um padrão ―europeu
ocidental‖.
Ora, e como o Pai Celeste é perfeito? A resposta que obtive foi: Deus é branco e
adotar a branquitude é ser igual a Deus. Logo, ainda que o crente seja negro (ou pelo
menos não-branco), para ter acesso aos cargos de liderança ele deve usar o que Fanon
(2008) chamou de ―máscaras brancas‖, isto é, os objetos de branquitude que mascaram a
negritude estampada nos corpos. Essas máscaras são, no pentecostalismo clássico, os
―usos e costumes‖ – meticulosas regras de ornamento e indumentárias ensinadas e exigidas
pela igreja.
Com efeito, quer se siga ou não à risca o estatuto da igreja, uma regra implícita é
evidente ao olhar atento: o padrão estético é marcado pela branquitude. Há um padrão paras as
mulheres assembleianas que nada mais é que a adaptação feminina da imagem do Deus
Branco. As mulheres, caso queiram corresponder à imagem feminina de Deus, devem parecer
28
em indumentária e fenotipicamente com mulheres do Oeste europeu. É claro que, para as
mulheres negras, assumir completamente essa aparência é impossível, porém, delas é
exigido a máscara branca das roupas e, também, já que a pele não pode ser encoberta, pelo
menos o mascaramento do cabelo crespo. A não adoção dessas máscaras resulta no não
aceso aos cargos de liderança. Assim, o racismo institucional contra mulheres negras na
Assembleia de Deus que opera através dos ―usos e costume‖ as afeta de duas formas:
fenotipicamente (o corpo negro é o alvo), com foco no cabelo e na cor da pele; e no uso de
indumentárias e adereços, com tendência de rejeição a tudo que reme à África (a cultura é o
segundo alvo).
Em geral, uma mulher branca que deixe seu cabelo natural comprido tenderá a tê-lo
em formato de véu. Ela será reconhecida por todos como genuína ―serva de Deus‖, porém, a
mulher negra que deixe seu cabelo crespo natural crescer, não terá o mesmo resultado. Seu
cabelo, ao contrário da mulher branca, não desce, ele sobre. Mas, se deixar subir e usá-lo
em estilo Black Power, por exemplo, enfrentará rejeição. Mariane, ex-regente do grupo de
jovens, passou por essa situação:
29
cabelo [...] não aceitei cortar, daí ele não me tirou da regência, mas disse
que enquanto eu mantivesse minha rebeldia eu não iria mais reger [...] ai
até que eu não aguentei mais ficar no banco entreguei o cargo [...] vou
ainda pra igreja, mas isso me entristeceu muito sim.
Por usar seu cabelo natural e grande (em estilo Black Power), Mariane foi
compulsoriamente suspensa do cargo de regente, até que no impasse entre ter que escolher
seu cabelo natural e a regência, fez a opção por seu cabelo e entregou o cargo de regente
do grupo de jovens. Perguntei se ela não pensou em procurar o dirigente da congregação,
mas Mariane disse que não acreditou que isso adiantaria. Muitos irmão (inclusive seus
familiares) apoiaram a atitude do líder. Ao falar sobre a importância simbólica do cabelo das
mulheres negras e como ele é um dos principais alvos do racismo, Nilma Lino Gomes (2017)
nos ajuda a entender a fixação para com o cabelo das mulheres: ao contrário da roupa, o
cabelo é o próprio corpo, mudá-lo é tornar o corpo negro mais branco.
A fala de Joselina contém dois dados interessantes: é uma dupla prova que reforça a
constatação do racismo institucional assembleiano contra mulheres negras, uma vez que o
racismo institucionalizado condiciona seu acesso ao cargo de liderança do círculo de oração
rejeição de um símbolo da resistência negra (o cabelo trançado) que já foi objeto de
desejo de Joselina, e, também, revela a desigualdade instituída entre mulheres negras e
brancas, quanto ao acesso de seus maridos a cargos de liderança.
1 Timóteo 3.4-5 é o texto que dá sentido a essa ação social dos pentecostais.
30
a mulher que são segue as regras da igreja prejudica o seu marido – por isso a preocupação
de Joselina com Mário, mas, o contrário não ocorre com os homens. Maridos ímpios não
trazem prejuízos morais às mulheres. Frente essa regra, as mulheres negras estão
institucionalmente em desvantagem: além de ter que cumprir tudo o que é exigido das
mulheres brancas, as mulheres negras devem rejeitar sua negritude ou prejudicarão não
apenas a si, mas também os seus maridos.
O racismo relacionado à cor também é muito presente. Uma das regentes do círculo
de oração, a irmã Eliana (que é uma mulher preta de pele bastante acentuada), sem entrar
em detalhes, em alguns de seus testemunhos falou que diversas vezes foi humilhada e
preterida para o trabalho de liderança das irmãs do círculo de oração por causa da sua cor.
O interessante é que todos a quem eu perguntei sobre a irmã Eliana faziam a pergunta ―A
irmã Eliana, a negona? / a irmã Eliana Negona?‖ quando eu apenas dizia ―a irmã Eliana,
regente do círculo de oração‖. Certamente a irmã Eliana sabe que assim é conhecida, como
―irmã Eliana Negona / irmã Eliana, a negona‖, mas infelizmente quando soube o motivo do
meu interesse em conversar com ela, quando expliquei a minha pesquisa, ela se recusou
me conceder uma entrevista.
Mal pôs o pé na nave do templo e a líder, ante que Genice chegasse ao assento
destinado aos jovens veio ao encontro da jovem e a interrogou acerca dos motivos pelos quais
ela havia ido à igreja assim vestida. Genice contou-me que então respondeu à sua líder: ―não foi
a senhora que disse para virmos pro culto vestidos como príncipes e princesas? Então...
Eu vim vestida de princesa africana!‖. Ao me contar o episódio, Genice me fez a seguinte
observação: ―ela não disse [a líder], mas sei que ficou espantada, como muita gente que tava no
culto, por causa do racismo. Pensam que só tem princesas igual àquelas dos contos de
31
fadas da Disney ou como os da Inglaterra [referindo-se aos dias atuais] e acham que ser
príncipe e princesa do Senhor é ser igual os europeus‖.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Volto a salientar o caráter desta comunicação, como o título mesmo sugere, ela não
é um trabalho final, tampouco exaustivo. Trata-se apenas de algumas notas sobre o racismo
institucional que afeta as mulheres negras na Assembleia de Deus. Porém, a despeito do
presente material ser constituído somente por notas, acredito que nele é possível vislumbrar
o princípio geral do racismo institucional assembleiano que não está assentado em uma
teodiceia oficial, mas sim em uma teodiceia residual: o arquétipo do Deus Branco que, em
sua adaptação feminina, exclui as mulheres negras, nega seus corpos, nega a possibilidade
da adoção de símbolos da cultura negra, enfim, nega a negritude submetendo-as ao uso de
―máscaras brancas‖ para serem aceitas causando-lhes, com isso, sofrimento emocional. O
impasse é nítido: ou a mulher negra usa as máscaras brancas, ou será excluída do acesso
aos cargos de liderança, em prejuízo não apenas de si, mas também de seus maridos.
Na década de 1960, Roger Bastide chegou a afirmar que era inevitável a adesão do
negro ao protestantismo sem a asfixia de sua identidade e herança cultural (BASTIDE,
1971). Ao findar minha comunicação, não quero que se tenha a impressão de que reforço a
tese de Bastide que há muito foi abandonada pelos estudiosos do pentecostalismo. Minhas
notas se centram apenas no racismo institucional de uma vertente assembleiana (que
apesar das variações é uma das maiores do país) e não abordo as ações de resistência das
mulheres negras que não são nenhum pouco passivas nesse processo, como deu para
perceber no exemplo de Genice.
Há também parcela do seguimento evangélico pentecostal que luta para por fim à
omissão e passividade da população evangélica diante do racismo. Um dos mais expressivos é
o Movimento Negro Evangélico (MNE) que, em termos de impacto no campo religioso
32
evangélico, ainda é pequeno, mas aponta para mudanças nessa parcela religiosa da
população brasileira (SILVA, 2011).
33
REFERÊNCIAS
BERGER, P. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulus, 1985.
GOMES, N. L. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2.
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GUIMARÃES, A. S. A. Cor e raça: raça, cor e outros conceitos analíticos. In: PINHO, O. A.;
SANSONI, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2. ed. Salvador: ABA/
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35
RELAÇÕES DE GÊNERO NO AMBIENTE ESCOLAR: UM DEBATE NECESSÁRIO
https://doi.org/10.29327/527231.5-3 1
Luana Nery Fonseca
2
Orientadora: Lana Claudia Macedo da Silva
RESUMO
O artigo objetiva analisar a importância da temática das relações de gênero no ambiente
escolar, em contraposição as desigualdades existentes nesse espaço ao longo de seu
processo histórico e social. O delineamento metodológico do estudo consiste de pesquisas
bibliográficas. Constata-se que a escola tem sido espaço de reprodução de desigualdades
ao reforçar as diferenças entre as categorias de gênero, no modo como a menina e o
menino deveriam ser e se construírem socialmente. Desse modo, é imperioso o debate
sobre gênero com vistas a desconstrução de preconceitos e pré-noções que favorecem a
construção de ambientes hierárquicos e violentos nas relações entre os gêneros.
ABSTRACT
The article aims to analyze the importance of the theme of gender relations in the school
environment, in contrast to the inequalities that exist in this space throughout its historical
and social process. The methodological design of the study consists of bibliographic
research. It can be seen that the school has been a space for reproducing inequalities by
reinforcing the differences between gender categories, in the way the girl and boy should be
and be socially constructed. Thus, the debate on gender is imperative in order to deconstruct
prejudices and preconceptions that favor the construction of hierarchical and violent
environments in relations between genders.
INTRODUÇÃO
1
Graduanda no Curso de Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Pará.
luananerys3@hotmail.com
2
Diretoria de Desenvolvimento de Ensino/DDE. Professora Adjunta IV da Universidade do Estado do
Pará/UEPA. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Feminismos e Sexualidades/GEFES. Vice-líder
do Núcleo de Extensão, Trilhas Investigativas e Práticas Sociais/NETRILHAS
36
Mediante isto, é importante ampliar a discussão em torno das disparidades existentes
nas relações de gênero e sua construção história que permeiam a sociedade, na qual em
muitos momentos reforçaram nas desigualdades em função do sexo, seja por meio de
discursos e símbolos legitimados em várias esferas sociais que precisam emergir nos
debates na educação.
Deste modo, esse estudo tem por objetivo analisar a importância da temática das
relações de gênero no ambiente escolar, em contraposição as desigualdades existentes
nesse espaço ao longo de seu processo histórico e social, para assim, incluir políticas
educacionais que represente as pluralidades, promovendo estudos e discussões que
evidenciem essa representatividade, com direitos sociais à diferença.
No delinear do estudo, metodologicamente foi utilizado na elaboração da pesquisa
levantamentos bibliográficos, para maior embasamento teórico de autores que contribuíram
para a construção do artigo, como SCOTT (1995), SIMONE (1967), PISCITELI (2009),
LOURO (1997), DINIS (2008), BOURDIEU (1999) e entre outros, para assim, ter subsídios
da temática proposta.
Na estrutura do artigo, tem-se no seu desenvolver a presença de tópicos, para
desencadear um maior entendimento da temática proposta. Dessa forma, o primeiro se
intitula ―Gênero: uma construção histórica‖ sendo realizado uma breve discussão em torno
do gênero e seu delinear histórico. Enquanto que, no segundo a ―construção de gênero nas
escolas: relações de poder‖ discorrendo da análise histórica desses espaços enquanto
produtores de padrões de gênero e no terceiro e último ―relações de gênero: sua importância
no ambiente escolar‖, visualizando essa temática das relações de gênero a serem
ampliadas e discutidas nesse espaço.
Deste modo, contatou-se que se faz necessário discutir as relações de gênero no
ambiente escolar, para apresentar formas de combater as desigualdades que foram
desencadeadas nesse espaço por um processo histórico e social, para desenvolver
ambientes livres de preconceitos, hierarquias e violências nas relações estabelecidas entre
os gêneros.
Assim, é imprescindível ampliar debates na educação sobre as relações de gênero,
como debate imperioso com vistas a desconstrução de preconceitos e pré-noções que
favorecem a construção de ambientes hierárquicos e violentos nas relações estabelecida.
Pois, somente com esses enfoques, serão desenvolvidas outras formas de pensar em
estratégias nas políticas públicas e educacionais, a contribuir em uma formação escolar
emancipatória entre os sujeitos.
37
GÊNERO: UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
O termo gênero passa a ser utilizado pelas teorias sociais a partir da década de
1970, como mecanismo a propor novas formas de pensar as noções do feminino e
masculino, além das relações biológicas que reforçavam em diferenças nas relações de
poder e ganhando força por meio do movimento feminista que discutiam as inquietações das
mulheres, estas na qual fazem partem de uma construção social, que de acordo com
Simone de Beauvoair (1967, p. 9), em seu livro ―O segundo sexo: a história vivida‖ elenca
que ―ninguém nasce mulher: torna-se mulher‖, frase que ganhou muita visibilidade.
Nessa perspectiva, a Antropóloga Adriana Piscitelli (2009) em seu capitulo ―Gênero:
a história de um conceito‖, pontua:
O termo gênero, em suas versões mais difundidas, remete a um
conceito elaborado por pensadoras feministas precisamente para
desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o
qual as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são
consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as
desigualdades entre uns e outras são percebidas como resultado
dessas diferenças. (PICITELLI, 2009, p. 119)
Nesse sentido, a referida autora discorre que decorrente esse motivo, as autoras
feministas utilizavam o termo gênero para se referir ao caráter cultural das distinções entre
homens e mulheres (PISCITELLI, 2009), na qual anteriormente muito era expresso o
conceito de sexo e reforçava nas diferenças biológicas e inatas.
Remetendo-se a isto, o gênero transpassa de uma perspectiva naturalista de
distinções biológicas, na qual reforçou historicamente em desigualdades e diferenças, nas
esferas sociais entre homens e mulheres. Dessa maneira, de acordo com a Joan Scott
(1995) em ―Gênero: uma categoria útil de análise histórica‖ traça grandes contribuições a
pensar a categoria gênero além de uma perspectiva biológica, em que ―indicava uma
rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como "sexo" ou "diferença
sexual", que está implicado fundamentalmente em distinções sociais que reforçavam tais
diferenças. (SCOTT, 1995, p. 72)
Mediante isto, para Scott (1995), essa categoria é um elemento que está inserido nas
relações sociais fundadas nas diferenças que se percebem socialmente e reforçaram em
relações de poder. Dessa forma, as desigualdades são reflexo de uma construção histórica
construída e reforçadas social e culturalmente.
Recorrendo a essas análises, o conceito de gênero surge da necessidade de
desconstrução de uma visão binária dos sexos, despertando assim, a possibilidade de
perceber a inclusão de diferentes modos de feminilidades e masculinidades presentes na
sociedade.
38
Decorrente estes fatores ―Gênero, portanto, remete a construções sociais, históricas,
culturais e políticas que dizem respeito a disputas materiais e simbólicas‖ (BRASIL, 2007, p.
16), e definem assim, identidades, distinções de papeis e funções sociais que
proporcionaram em disparidades entre esses sujeitos e permeiam a sociedade.
Relacionando as disparidades legitimadas em torno do ser homem e mulher, uma
ordem social funcionava como uma máquina simbólica que ratificava a dominação
masculina, pontuado por Bourdieu (1999), em seu livro ―A dominação masculina‖. Dessa
maneira, a dominação masculina se reforça simbolicamente na manutenção de diferenças e
desigualdades, na qual, questiona-se sobre sexo-gênero se torna importante na
desmistificação de noções históricas, políticas e socais, em torno dessas relações.
Dessa maneira, o gênero é um elemento importante pensando-o como um
instrumento analítico e político na esfera social. Por meio de uma maior profundidade de
compreensão em torno do gênero e da reafirmação da heteronormatividade, passou-se a
perceber a necessidade de serem adotadas políticas específicas em contraste a esse
mecanismo histórico da dominação masculina, seja ela na saúde, escola e no trabalho.
39
também são, elas próprias, produzidas (ou engendradas) por
representações de gênero‖.
Dentro desta análise, a escola assume um papel, tendo ela um gênero, classe e
raça. Nesse sentido, é importante indagar-se a compreender como essa educação escolar
foi pensada e para quem foi pensada, pois como ―tanto em termos de educação como de
instrução, meninos e meninas eram tratados de forma distinta‖ (MAUAD, 2013, p. 151).
Por meio disto, a escola legitimará uma identidade nos sujeitos, instaurando nos
corpos, marcas da identidade. Marcas essas que serviram para incidir na proliferação de
uma única identidade como correta e aceita, contudo, elas não são fixas e permanentes,
mas estão em constante mudança pelos sujeitos imersos no meio social e cultural.
Desta forma, as identidades são construídas pelo sujeito e ―afirmar a identidade
significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica de dentro e o que fica
de fora‖ (SILVA, 2003, p. 82). Logo, promover uma identidade é marcar diferenças e
normatizar uma identidade em relação às demais que serão avaliadas e hierarquizadas.
Nessa perspectiva, as identidades necessitam está em constante controle, para
mantê-las estabilizadas. Este que está em meio às distinções e dicotomias entre o ser
menina/menino, homem/ mulher em determinada sociedade. Portanto, ―questionar a
identidade e a diferença como relações de poder significa problematizar os binarismos em
torno dos quais elas se organizam‖ (Idem, 2003, p. 83).
Mediante isso, a escola é um elemento contribuinte para reafirmar as identidades
desde o momento da infância. A inscrição de gênero nesses corpos é feita sempre no
contexto de uma determinada cultura e vai traçar marcas dela. ―Nesse sentido, cabe
enfatizar que a perpetuação da ordem dos gêneros esteve, até pouco tempo, garantida
fundamentalmente pela ação conjunta de instituições como a família, a igreja, a escola e o
Estado, sobre estruturas inconscientes‖ (GOMES, 2005, p. 36).
Assim, refletir sobre o espaço educacional, faz pensar nas desigualdade presentes
nesse espaço, na qual como pontua Lins, Machado e Escoura (2016) se pararmos para
pensar quando criança, na escola, foram realizadas atividade e se passam por situações
que supõe diferenças, ao pedir para fazer as filas de menino e de menina, nas aulas de
educação física, sendo estes divididos para os meninos e meninas, percebendo assim, que
o mundo é dividido entre o masculino e feminino e aprendendo nesse contexto em qual lado
devia estar‖
40
social de desenvolver o respeito às diferenças e estimular os direitos na promoção de
cidadania entre os sujeitos.
Dentro deste cenário social, faz-se necessário pontuar o que seria essas relações de
gênero, referindo-se ―às maneiras como os sujeitos constroem a si mesmo a partir de
estereótipos, normas de comportamento e expectativas sobre o que é ―ser homem‖ e ―ser
mulher [...] e quanto as diferenças de gênero são produtos da história e da educação em
nossa sociedade‖ (LINS; MACHADO; ESCOURA, 2016, p. 23).
Desta forma, a instituição escolar é parte integrante da sociedade, na qual reproduz
mecanismos de desigualdade entre homens/mulheres; brancos/negros;
heterossexuais/homossexuais e outras formas plurais de identidades dos sujeitos. Mas a
escola pode e deve atuar no combate às desigualdades e diferenças estabelecidas, na
medida em que objetiva promover uma educação de qualidade e emancipatória a seus
alunos de forma crítica.
No arranjo das relações, ―o gênero é também uma forma social de produzir posições
de desigualdade entre as pessoas, coisas, espaços e emoções‖ (LINS; MACHADO,
ESCOURA 2016, p. 24) e nesse cenário de desigualdades de gênero, estão as relações de
poder, hierarquias e privilégios sociais que se constituem a partir das diferenças que se
percebem entre homens, mulheres e masculinidades, feminilidades.
Nessa perspectiva, as políticas educacionais precisam levar em consideração a
função social da escola em contribuir na ampliação de noções de masculinidades e
feminilidades que estejam em contraposição ao modelo heteronormativo, branco e de classe
média, possibilitar também discussões acerca das disparidades entre homens/mulheres e as
relações de poder, violência e desigualdades entre os sujeitos.
Nesse sentido, não podem ser invisibilizados e ignorados os efeitos que os
processos de construção de identidades femininas e masculinas, produziram e produzem
sobre a permanência escolar, o rendimento nesse espaço e a qualidade de interação em
momentos de socialização entre os sujeitos pertencentes à escola, suas trajetórias
profissionais e educacionais (BRASIL, 2007).
Ao que concerne à educação, é essencial implementações de políticas educacionais
desenvolvendo temáticas de gênero com suas evidencias históricas e atuais que denunciem
as desigualdades que permanecem na sociedade, visibilizar as diversidades e promover o
direito a diferença. Nesse sentido:
A perspectiva adotada pela Secad/MEC, segundo a qual os temas
gênero, identidade de gênero e orientação sexual devem ser
considerados pela política educacional como uma questão de direitos
humanos, repercute nas estratégias escolhidas e no desenho das
ações. (BRASIL, 2007 Secretária de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, p. 35)
41
Além disto, abordar esses assuntos e suas esferas de diferenças nela imbuída,
promove oportunidades didático-pedagógicas, voltadas a garantir igualdade de
oportunidades e direitos independente da identidade de gênero, no qual se fazem imersos
nas relações estabelecidas também no ambiente escolar.
Mesmo com avanços, a abrangência de assuntos de gênero ainda são temas
ausentes no tocante dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Contudo, é existente a
necessidade de ressaltarem não apenas como um tema transversal, na qual se tem pouca
menção em especifico do tema (DINIS, 2008). Desse modo, a temática é desenvolvida como
tema transversal, sendo critério da professora ou professor sua interpretação do assunto.
42
reinvindicação que visavam à superação no âmbito do Estado e das políticas públicas,
medidas contra a discriminação da mulher. Mediante aos fatores de persistência da
discriminação contra mulher na educação, poucos são as investigações abordando essa
descriminalização de gênero nas políticas públicas e isso são reflexos visíveis nos livros
didáticos e currículos, havendo assim uma limitação do acesso e permanência na escola
(VIANNA e UMBEHAUM, 2004).
Neste cenário, pode-se visualizar a importância das relações de gênero serem
discutidas no ambiente escolar e suas esferas educacionais, incentivando pesquisas que
abordem essa temática no ambiente acadêmico, frente a ambientes hierárquicos entre os
gêneros. Sendo dessa forma, imprescindível educar e transformar esse espaço de
socialização em uma importante ferramenta de desenvolver a igualdade, frente às
diversidades na qual compõem a sociedade.
METODOLOGIA
Metodologicamente para a elaboração do artigo, foi utilizada a pesquisa bibliográfica
de autores que discutiam a temática abordada, para assim, dar base teórica por meio da
consistência de autores e propiciar um aprofundamento no assunto, contribuindo para a
temática e análise da discussão proposta e por meio disso, enriquecer o debate na
pesquisa. Desta maneira ―a principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de
permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que
aquela que poderia pesquisar diretamente‖ (GIL, 2002, p. 45).
Por meio disto, a pesquisa bibliográfica ocorreu no período de dois meses, para a
compreensão de autores e livros que discutiam a temática. Desencadeando assim, em um
diálogo com os mesmos e suas contribuições para analisar o processo das relações de
gênero e suas abordagens com ênfase educacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisar o processo social e cultural é reconhecer as desigualdades existentes nas
relações entre os gêneros. Nesse sentido, com base nas análises realizadas, pode-se
perceber que a temática gênero é um tocante que precisa está sendo discutido no espaço
escolar, para sua promoção de direitos e desenvolver formas de combater as
desigualdades, desencadeadas por um processo histórico, e proporcionar analisar as
relações sociais além das dicotomias de masculinidade e feminilidade.
Desta forma, constata-se que a escola tem sido espaço de reprodução de
desigualdades, ao reforçar as diferenças entre as categorias de gênero, no modo como a
menina e o menino deveriam ser e se construírem socialmente e posteriormente enquanto
homem e a mulher nas relações estabelecidas hierarquicamente.
43
Pode-se também verificar que essa temática ainda sofre com lacunas e falhas ao
momento que se coloca como assuntos ausentes, transversais e não obrigatórias para
serem desenvolvidas e discutidas em sala de aula, e também ao não serem vistas com
relevância nos espaços acadêmicos nas disciplinas que orientaram os educadores.
Neste sentido, a escola não é um ambiente isolado dos fatores que as rodeiam, mas
reflexo de desigualdades, na qual em muito momento atuaram na manutenção entre os
gêneros e as reproduzindo. Comprometeu o rendimento, a permanência escolar e a
qualidade de interação com os outros sujeitos naquele espaço que deveria ser de
socialização, mas que (re)produziu diferenças.
Além disto, é recente discussões no espaço acadêmico a investigar as relações de
gênero, da qual suas pesquisas podem proporcionar grande relevância ao trazer a
visibilidade a essas atoras e atores e suas interpretações sobre essas relações com a
educação e atuais reinvindicações. Desse modo, faz-se relevante estar ampliando esses
debates que denunciem a importância em conquistar políticas públicas, na qual sanem os
fatores de desigualdades.
Sendo assim, pode-se notificar que este artigo foi de suma importância, na medida
em que viabilizou um olhar para as relações de gênero, como um debate imperioso com
vistas a desconstrução de preconceitos e pré-noções que favorecem a construção de
ambientes hierárquicos e violentos nas relações estabelecidas. Ampliando assim, nos
espaços escolares, a análise crítica de pessoas que percebam a relevância cientifica e
social de novas pesquisas, políticas públicas e pedagógicas que desenvolvam estratégias a
contemplar o ser diverso pela educação.
44
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45
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2004
46
A MATRIARCALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL DO QUILOMBO DO
ROSA
https://doi.org/10.29327/527231.5-4
Resumo
ABSTRACT
Quilombo do Rosa began, like many quilombola communities in Amapá, the process of
quilombola recognition and territorial titling in the early 21st century. The aim of the research
is to interpret the meaning of the community's social memory in its contemporary mobilization
by recognition of its citizenship. This seeks to interpret the place of the past in shaping the
future of the community. The methodology adopted was that of ethnography with the
community. I conclude that the past is a source of political power for the community, in order
to emanate from it the legitimation of the claimed right, as well as the motivation, the
meaning and the moral force for the struggle. It is the axis of force of the community not
reached by the colonizing forces; mixed of knowing, meaning and memory, the social
memory, which the community knew how to protect from the colonizer, contextualizing even
its quilombola ethnogenesis.
Introdução
A comunidade remanescente quilombola do Rosa localiza-se na zona rural do
município de Macapá, capital do estado do Amapá, na parte oriental da Amazônia Brasileira,
e desenvolve, neste início de século, assim como outras comunidades quilombolas do
estado, um processo de territorialização específico, envolvendo reconhecimento identitário,
47
demarcação e titulação de seu território. A etnogênese, na forma do auto-reconhecimento
como comunidade remanescente quilombola, emerge como uma das estratégias
fundamentais deste novo processo de territorialização. É a etnogênese do quilombo do
Rosa, no início do século XXI, que será tema de reflexão neste artigo.
A etnogênese aparece como estratégia possível no contexto da compreensão
mundial contemporânea do que são as comunidades tradicionais – expressa por exemplo na
convenção 169 da OIT -, incluso os quilombos, da legislação internacional decorrente desta
compreensão, da legislação brasileira sobre direito quilombola, produto da síntese entre
legislação internacional e ativismo negro e quilombola nacional, e do trâmite real do
processo jurídico e burocrático para acesso à cidadania quilombola no contexto nacional
brasileiro e regional amazônico e amapaense - este trâmite sendo por seu turno síntese da
relação de forças travada na sociedade brasileira contemporânea, na qual atuam, dentre
outros elementos, o racismo, a luta pela terra, as personificações do capital interessadas na
mercantilização da terra, movimento negro e movimento quilombola, e a luta diária cotidiana
das comunidades tradicionais pelo direito à vida e à própria reprodução social.
48
A propulsão do processo pode estar, já prevista por Bartolomé, na existência de
novas legislações, que garantem atualmente direitos antes negados. ―Em certas
oportunidades isso se deve à desestigmatização da filiação nativa, mas frequentemente
também às novas legislações que conferem direitos antes negados, como o acesso à terra
ou a programas de apoio social ou econômico‖ (Idem, p. 45).
No caso das comunidades remanescentes quilombolas brasileiras, as políticas
públicas oficiais de reconhecimento de comunidades remanescentes quilombolas,
notadamente o Programa Brasil Quilombola, no Brasil no início do século XXI,
desempenharam papel de primeira importância para a etnogênese do Rosa e de outras
comunidades quilombolas do Amapá - o que não quer dizer necessariamente que não
ocorreriam de outra maneira.
Para caracterizar esta relação no Brasil contemporâneo, do movimento social
quilombola com o Estado, o direito e as políticas públicas, Amanda Lacerda Jorge (2015)
define a condição do movimento social quilombola no Brasil como realizando um ―caminho
inverso‖:
A produção da etnogênese
Antes de entrarmos propriamente nos fatos históricos particulares próprios da história
do Rosa que produziram sua etnogênese, devemos situar os elementos contextuais macro-
históricos e globais que, se não determinaram diretamente, deram condição de possibilidade
para a etnogênese do quilombo.
Estes elementos de diferentes escalas, oriundos da agência de outros atores sociais
e outros processos históricos, deram condição de possibilidade para a etnogênese do Rosa
49
e forneceram boa parte de sua semântica e de sua sintaxe, à medida em que a comunidade
foi convocada – e teve que se sujeitar – a aderir à linguagem disponibilizada e exigida pelas
instâncias da esfera pública detentoras do poder de legislar sobre a questão e conferir o
acesso aos direitos universal e regionalmente conquistados e estabelecidos, e pelo campo
intelectual e simbólico envolvido na disputa simbólica sobre a temática. São eles a
Convenção 168 da Organização Internacional do Trabalho, do ano de 1988; a Constituição
da República Federativa do Brasil, de 1988, especialmente os artigos 216 e 217, bem como
o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT 38); e, mais recentemente, o
Programa Brasil Quilombola, de 2003.
Direitos construídos e conquistados na mobilização internacional por direitos das
comunidades tradicionais, sua incorporação no Direito Constitucional brasileiro, e sua
materialização em políticas públicas fazem parte do contexto político, simbólico e jurídico
que fez parte da etnogênese do Rosa como comunidade remanescente de quilombo, no
Amapá no início do século XXI, devendo ser considerados analiticamente como marcos da
etnogênese do Rosa.
Na esfera da história particular da comunidade, a mobilização empreendida pela
comunidade contra uma mineradora que intencionava depositar rejeitos tóxicos de
mineração em seu território, e a defesa contra um morador que estava vendendo terras da
comunidade, foram fatores que desencadearam a busca por respaldos eficazes e mais
fortes para defesa do território e da vida da comunidade.
A título de contextualização, sobre as políticas públicas favoráveis, no estado do
Amapá, estas políticas propiciaram o início do processo de reconhecimento de uma
quantidade considerável das comunidades quilombolas no estado, algumas vindo a fechar o
ciclo, com a titulação definitiva de suas terras, como é o caso das comunidades Conceição
do Macacoari, São Raimundo do Pirativa e Mel da Pedreira. A exceção fica por conta do
Quilombo do C-riaú, cujo processo de reconhecimento, certificação e titulação ocorreu na
década de 1990.
Analiticamente, distingue-se aqui os eventos fundantes ou que dispararam a
etnogênese do Rosa, daqueles que vieram na sequência e tiveram o efeito de consolidar
esta etnogênese.
Eventos fundantes
Para a produção da etnogênese em si, quatro processos históricos fundantes foram
identificados.
O primeiro, a mobilização, em 2002 contra uma mineradora, a ICOMI - Indústria e
Comércio de Minérios S.A., quando esta estava a depositar arsênio, rejeito tóxico de
mineração, nas terras da comunidade.
50
Diante desta ameaça, a comunidade do Rosa articulou-se com outras comunidades
quilombolas, acionou a prefeitura municipal, acionou uma deputada federal, acionou outras
comunidades da região, e realizaram uma grande mobilização que durou uma semana, na
qual lograram expulsar a empresa do local e frustrar seus planos de despejar os rejeitos no
território da comunidade.
Esta mobilização, malgrado não tenha trazido ainda a identificação como quilombola
para a comunidade, acentuou fortemente seu sentido de comunidade, e interpôs na
consciência da comunidade a certeza da necessidade de defender-se.
A Icomi habitualmente levava seu rejeito de manganês ao Porto do município de
Santana, e lá embarcava-o para o descarte necessário em outro lugar. Todavia, com o
tempo, a demora no embarque ocasionou o acúmulo desse rejeito no porto, ocasionando
diversas doenças nos moradores do entorno, revelando sua toxicidade.
Como alternativa para descarte, que estava inviável via porto de Santana, a ICOMI
estava iniciando o descarte desse rejeito em uma seção das terras do Rosa. O processo foi
descoberto pela comunidade quando suas obras já estavam avançadas. A mineradora já
havia montado uma estrutura grande, que incluía escavação e preparação do solo para
depósito desse rejeito, extensão do trilho do trem até o local do despejo e soterramento do
rejeito, postes de luz para transmissão de energia elétrica ao local e acampamento dos
trabalhadores. Joice Ester, uma das primeiras a chegar ao local e se deparar com a obra,
descreve como ―uma enorme engenharia‖ a que estava montada.
Na última semana de novembro de 2012, voltando do Encontro de Tambores em
Macapá, Joice e Sonia, duas das filhas de Maria Geralda, matriarca da comunidade,
regressaram antes de todos para a comunidade, onde havia ficado apenas Maria Eleanor,
irmã de Geralda, logo após o término da festa em Macapá. Logo ao chegar, ouvindo o
barulho do trem, estranharam este parar tão perto da comunidade, onde habitualmente não
havia trilha ferroviária.
Ao aproximarem-se do local de parada do trem naquela noite, para saber a razão de
o trem parar ali, avistaram toda a estrutura montada pela ICOMI. Imediatamente entraram
em contato com o restante da família que estava ainda em Macapá para informar o que
acontecia. Ao saber do acontecido, a família pediu ajuda às demais comunidades e
movimentos próximos.
As comunidades, reunidas na UNA na ocasião do Encontro dos Tambores, celebrado
na semana da consciência negra em novembro, lotaram dois ônibus e dirigiram-se para o
Rosa para impedir a mineradora. A esta altura, das doze células preparadas para receber o
rejeito de manganês a ser depositado, uma delas já havia sido completamente enchida pela
ICOMI.
51
O que se desenrolou foi um autêntico confronto físico da comunidade e aliados
contra a ICOMI; na mesma noite conseguiram expulsá-los.
Na sequência, comunidade e aliados acamparam no local onde a ICOMI pretendia
depositar o rejeito, e seguiram dez dias acampados, enquanto corria o judicialmente o
processo para impedir juridicamente a ICOMI de sua intenção.
Maria Geralda narra os dias de acampamento, nos quais não saiu de lá em nenhum
momento. Os acampados recebiam comida que os parceiros traziam de Macapá. Durante as
noites, para amenizar a dureza do acampamento, tomavam gengibirra e reuniam-se os
tambores e caixas para tocar marabaixo.
O marabaixo tocado todas as noites do acampamento fazem pela festividade o
fortalecimento da comunidade na penúria da ação que foi obrigada a tomar. Como se no
momento mais extracotidiano possível, o ser do Rosa fosse mais expressado e implodisse
no marabaixo. Como se liberto das amarras do cotidiano, inclusive, pode se supor, aquelas
impostas pela disciplina necessária do trabalho, seu ser mais interno se revelasse no
impulso à dança e à música do marabaixo.
Nesta comunhão revela-se a imanência entre resistência e tradição cultural, na qual
uma chama a outra, e ambas se fortalecem; conexão imanente que é o substrato do ser
quilombola.
No décimo dia de acampamento, sai a decisão judicial favorável ao Rosa, impedindo
a ICOMI de prosseguir seu plano; e encerra-se o acampamento.
Como resistência à ICOMI, além do acampamento, comunidade do Rosa e aliados
fizeram manifestação em frente à Polícia Federal para exigir as providências jurídicas
necessárias; ocasião em que contra os manifestantes foram chamadas Polícia Civil e Polícia
Militar, e alguns quilombolas chegaram mesmo a serem detidos. Segundo Joice, o intuito da
manifestação era chamar atenção de autoridades que pudessem auxiliar a luta da
comunidade.
Josielson relembra o episódio da luta contra a ICOMI, em que ele tinha apenas 15
anos de idade. Na época, ele e as crianças menores, Marcela, Bruno e Ítalo, estavam com
todos na cidade, onde foram deixados pelos adultos para se manter em segurança durante a
mobilização contra ICOMI.
Eles (os adultos) largaram todos nós lá [na cidade] e vieram lutar contra a
ICOMI. Não sabiam se iam voltar vivo ou morto. Colocamos o colchão no
mesmo quarto e dormimos todos juntos. Eu era mais velho, ficava imaginando o
que estava acontecendo, mas não falava nada para as outras crianças para não
assustar elas. Era vinte e quatro horas você ligava na Difusora [rádio estatal]
estava falando disso. O negócio estava feio, mano, estava feio‖.
52
Depois desse episódio, e especialmente diante da gravidade dele, os moradores do
Rosa fundaram a associação da comunidade. Como conta Joice Ester, até o momento não
sabiam a razão de ser de uma associação e os procedimentos para criar uma. No entanto,
buscaram se informar para criá-la, como forma de buscar maiores possibilidades de
representação e defesa jurídica.
A ICOMI até então nunca havia tentado depositar seu rejeito de manganês nas terras
de nenhuma comunidade. Escolheu o Rosa em primeiro lugar porque se associou a alguém
dentro da comunidade, que lhe ofereceu espaço dentro da comunidade para depósito desse
1
rejeito. N negociou com a ICOMI a disposição do local para o depósito em troca de
retribuições materiais.
Esta ação da Icomi não teria sido possível, pois, sem a ação de um sujeito, que por
ser morador nas terras da comunidade, manipulou a legitimidade que esta condição lhe
conferia para negociar com a Icomi o espaço interno ao Rosa para seus propósitos.
O segundo processo, a defesa contra a ação de N.
Sobre N. Veio de outra comunidade, São Pedro do Caranã, brigado com a família. O
motivo de sua desavença com os pais foi que loteou e vendeu parte do terreno e da roça da
própria família em sua comunidade de origem. Vendeu essas terras em troca de uma
caminhonete. Quando o comprador chegou para se apossar da terra comprada, o pai de N,
verdadeiro proprietário do terreno, ficou sabendo e expulsou o comprador. O comprador foi
até N e tomou-lhe o carro que tinha dado em troca da terra. Em seguida, N foi expulso de
seu pai da casa deste.
Chegou e estabeleceu-se no Rosa, em torno do ano 2000, aproveitando-se da
ausência momentânea do núcleo familiar de Geralda, e manipulando o fato de sua mãe ser
prima de segundo grau de Geralda. Ao chegar, iniciou atividades que não tinham nenhum
lastro na história do Rosa e contrárias à territorialidade da comunidade: começou a cercar
lotes e vendê-los para terceiros, pessoas de fora da comunidade.
Ao saber da situação, Geralda e seu esposo, Benedito, sentiram-se ameaçados e
ficaram preocupados com essa atitude de N. Este passou a constituir um evidente problema
e uma ameaça para a reprodução social e territorial da comunidade.
Geralda conta que teve de fazer sucessivos enfrentamentos a este senhor. Geralda
narra um episódio em que pela primeira vez se deparou com uma cerca - elemento inédito
na comunidade, e símbolo de uma territorialidade incompatível com a da comunidade – feita
por N nas terras do Rosa. Lembrando o momento, ela diz ―quem vive em cerca é boi, aqui
não tem boi‖, e sua atitude foi de pegar um aliciante e cortar toda a cerca.
Nome fictício.
53
Três dias depois fez o primeiro boletim de ocorrência contra N. Na audiência
decorrente, ele tentou amenizar a situação dizendo que gostava dela e que eram amigos, ao
que ela respondeu que ele não gostava de ninguém, que tinha vendido a terra da própria
família.
Hoje, N, continua loteando e vendendo partes do terreno. O Rosa espera o INCRA
realizar a etapa da desintrusão, na qual ele será expulso.
N é um sujeito portador de uma ética de condução da vida capitalista, individualista e
predatória; e sua territorialidade correspondente, a propriedade particular baseada na
compra da terra. Este sujeito, por si só, é um vetor de expansão de uma territorialização
capitalista-individualista.
Não se ignora, evidentemente, a contribuição dos dois processos acima descritos, a
luta contra a Icomi e contra a atuação desagregadora de N, também para a configuração
identitária do Rosa, naquilo que deve ser o mais evidente nesse escopo: na produção de um
forte sentido de comunidade. Todavia, há um processo ao qual não pode não ser ligada a
produção da identidade de comunidade remanescente quilombola: a chegada do Programa
Brasil Quilombola, o qual trouxe a categoria jurídica e a categoria identitária de
remanescente quilombola. Este é o terceiro processo.
A identidade de comunidade remanescente quilombola, no Amapá, não pode não ser
ligada à existência desse programa. Este programa, realizado por meio do INCRA, foi que
trouxe a categoria jurídica e identitária de remanescente quilombola, com a qual a
comunidade se identificou atrelando-a a seus antecedentes ex-escravos.
O Programa Brasil Quilombola é uma política pública do governo federal para as
comunidades negras rurais, com o objetivo de propiciar as condições para o auto-
reconhecimento destas comunidades como remanescentes quilombolas e o consequente
acesso aos respectivos direitos.
Criado em 2003 na esfera federal, o programa chegou ao Amapá em 2004, através
do INCRA local. Na ocasião a superintendência do INCRA se encontrava sob gestão de
Cristina Almeida, conhecida militante do movimento de mulheres negras local.
Até então a única comunidade quilombola que havia no estado era o Quilombo do C-
riaú – que foi nada menos do que o segundo quilombo a ser titulado no Brasil. Cristina
Almeida, na condição de superintendente do INCRA, atuou, na esteira do Programa recém-
criado, no sentido de difundir os direitos quilombolas às comunidades negras rurais do
estado e assim incentivar o auto-reconhecimento e a titulação. A presença desta militante do
movimento de mulheres na direção do INCRA é localizada como fato autônomo de
contribuição para o processo em pauta. Assim se expressa Geralda sobre a chegada do
Programa Brasil Quilombola ao Rosa.
54
O pessoal do INCRA vinha e conversava muito com a gente sobre o que é
ser quilombola. Traziam mapas, ficavam explicando os mapas pra gente. A
gente aceitou porque a gente precisava de uma força a mais. Então tornar-
se quilombola foi bom para dar essa força a mais para defender-se contra
ameaças [que naquele momento eram ICOMI e N].
Até então, conforme Joelma Meneses, havia certo misticismo, como ainda há hoje,
em relação à categoria jurídica quilombola e ao tornar-se quilombola. Segundo ela, ―o
pensamento de muitos é „eu vou virar quilombola, não vou poder fazer isso, não vou poder
aquilo‖. Havia, portanto, razoável desconhecimento quanto ao direito quilombola e
desconfiança quanto ao ser e tornar-se quilombola.
A intencionalidade da etnogênese
Um dos fatores para a intencionalidade da comunidade do Rosa em direção ao auto-
reconhecimento como quilombola e o amparo respectivo da lei foram as ameaças reais ao
território da comunidade, experienciadas no período. A ameaça concreta ao território, assim,
foi fator disparador da materialidade da etnogênese, o sentimento de comunidade, ainda que
sua exterioridade, especificamente como remanescente quilombola, tenha advindo depois,
de outra fonte, a atuação histórica do movimento negro, materializada no ADCT 68 e no
Programa Brasil Quilombola.
Nas palavras de Joelma, o auto-reconhecimento como quilombola e o posicionamento
público como tal foram decisivos para assegurar o território do grupo face estas ameaças
externas do período. Joelma rememora principalmente o episódio descrito na seção anterior de
tentativa da ICOMI de depositar rejeito de manganês no terreno da comunidade como um fator
decisivo para a tomada de decisão rumo à auto-identificação como quilombola.
55
pela propulsão desta territorialidade, bem como pela criação das condições da possibilidade
de sua propulsão. Esta territorialidade disparada é conquista do movimento negro nacional.
A visão de mundo de onde emana, ou o propulsor de racionalização é o movimento da ética
antirracista.
A chegada desta política pública, o Programa Brasil Quilombola, não obstante sua
importância decisiva, precisa ser relativizada: sozinha não produziria o efeito que teve, sem
a atuação das lideranças do movimento negro local – o quarto fator na etnogênese do Rosa.
A atuação do movimento negro regional – novamente, leia-se: o movimento de
mulheres negras – deve ser colocada, se não como causa, como um dos antecedentes
imediatos da etnogênese do Rosa.
O futuro é espaço da incerteza. Atuar no futuro é sempre um risco. É atuar sem
referências por onde situar a própria ação, atuar no espaço do inexistente, onde a ação
territorializadora tem de ser a da criação.
Todavia, mesmo com a informação disponível e com a atuação de lideranças
parceiras, a assunção como quilombola é um passo na incerteza para a comunidade.
Envolve risco e coragem para arriscar entrar num campo desconhecido.
Sobre o passo decisivo em direção ao auto-reconhecimento como quilombola.
Josielson assim o define:
Não sabíamos as consequências, são sabíamos o que ia dar, mas entramos de
cabeça. Muitas pessoas militavam, pessoas que tinham respeito, renome, defendiam essa
bandeira, militavam por esses ideais. Pessoas boas. Isso ajudou a não ter dúvidas. Ainda
mais que quem estava à frente coordenando tudo era a Cristina, que veio pessoalmente nas
comunidades. Ela sonhava com uma coisa além do que ela podia. Lá na frente ela não sabia
o que podia acontecer (Josielson)
A atuação militante e comprometida de pessoas, portanto, que tinham prestígio e
legitimidade entre as comunidades foi fator importantíssimo nesse momento crucial de
resolução da dúvida quanto a iniciar o processo o processo de auto-reconhecimento.
Nesta seção buscamos mapear e analisar os elementos envolvidos no processo de
etnogênese do Rosa. Na seção seguinte, analisaremos o desenvolvimento dessa
etnogênese no tempo.
Consolidações
A etnogênese não é um evento, mas um processo, longo no tempo, e repleto de
dialeticidades. Para a consolidação, pois, da identificação como quilombola, outros
processos atuaram. Cabe citar dois especificamente: a elaboração do mapa cartográfico da
comunidade, realizada em parceria com a Universidade Estadual do Amazonas; a
certificação do Rosa como comunidade remanescente quilombola, pela Fundação Palmares.
56
Estes dois processos contribuíram até o momento para a consolidação da
etnogênese, ou seja, da auto-identificação e do reconhecimento da comunidade do Rosa
como comunidade remanescente quilombola.
Sobre a elaboração da cartografia, cabe acrescentar algumas palavras apenas sobre
o primeiro: a realização do mapa cartográfico da comunidade, em 2013, em parceria com a
Universidade Federal do Amazonas, no Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.
Na ocasião, a comunidade foi convidada a realizar uma cerimônia de lançamento
também na Assembleia Legislativa. Nesta ocasião, a comunidade denunciou as invasões e
conflitos decorrentes que estava sofrendo em seu território. A projeção alcançada por estas
denúncias levou as autoridades a tomar medidas imediatamente em relação a tais conflitos.
Antagonismos internos
O processo da etnogênese não é homogêneo nem puramente consensual. É um
processo dialético, e não raro conflitivo, no interior das comunidades, e assim também para
o Rosa.
Como expressão das contradições presentes no processo de etnogênese, o Rosa
teve de enfrentar a resistência interna à auto-identificação como quilombola por membros da
própria comunidade; resistência em parte vencida, pelos processos de produção de
consenso próprios do grupo, em parte presente ainda hoje, na consciência de moradores da
comunidade ainda contrários à auto-identificação e titulação do território como quilombola.
Na comunidade do Rosa havia o caso de Josefa, tia de Joelma e irmão de Maria
Geralda, que não queria no início tornar-se quilombola, porque entendia que fazendo isso ela
não poderia continuar com hábitos que tinha como caçar, e caçar e vender o produto da caça.
Josefa também tinha receios quanto ao tornar-se porque ouvia de outras pessoas,
que eram contra o reconhecimento quilombola, palavras pejorativas, como ―que ser
quilombola era um atraso‖.
Josefa só mudou de posição conforme Joelma e Geralda explicaram para ela como
era o processo. Sobretudo lhe esclarecendo sobre as interdições que haveriam, que não
incidiriam nos hábitos alimentares ou de reprodução econômica; as interdições incidiriam
apenas sobre a proibição de vender ou alugar.
Mesmo assim, é muito difícil falar que um processo de convencimento esteve em
curso. O Rosa tem uma ética própria quanto à prescrição do posicionamento correto em
relação às decisões que cada um toma na vida. Conforme expresso num dado momento por
Josielson, o ato de convencer alguém de algo ou seu inverso, desaprovar decisão de
alguém, são atitudes que não têm sentido no universo da comunidade.
57
Ninguém influencia ninguém. Cada um é dono de sua consciência. Aqui o que a
mamãe fala a gente segue. E ela esteve decidida desde o começo. Eleanor
disse „se a minha comadre Geralda quer, eu também quero‖. Josefa esteve
inicialmente em dúvida, porém depois juntou-se às irmãs. Aí só depois que as
três vieram e bateram o martelo, que a gente foi atrás. (Josielson).
Não há o trabalho de convencimento de uns sobre outros, porém isto não exclui a
influência do prestígio de uns sobre as decisões dos demais. No caso, especialmente o
prestígio de Geralda é decisivo. A ―obediência‖ se dá por iniciativa dos demais em torno da
incontestável sabedoria das decisões de Geralda.
Há algo ainda a dizer sobre as dúvidas e hesitações da comunidade. Tanto o
desconhecimento do direito e da lei pelas classes populares quanto a produção intencional
de informação falsa, movida pelos detratores do movimento quilombola e do movimento
negro, alimentada não só por interesses contrários à titulação quilombola como pelo
racismo, foram, no período de auto-reconhecimento do Rosa, e ainda são no Amapá
obstáculos a serem enfrentados no sentido do exercício pleno da cidadania das
comunidades remanescentes quilombolas locais.
No Brasil, na luta simbólica as elites produzem deliberadamente conhecimento falso – ou
desconhecimento – sobre a constituição e as leis em geral do país, objetivando afastar as
classes populares da luta por seus direitos e do exercício pleno de seu direito e sua cidadania.
O efeito sobre a vida da comunidade desse obscurantismo produzido é assim
expresso por Josielson: ―Não sabíamos o que era quilombo. Naquilo que a gente estuda na
escola não fala nada disso. Fala só dos bandeirantes atrás dos pretos. A gente foi saber o
que era isso só agora, após muita luta, e que o INCRA teve essas atuações‖.
Esta produção de desconhecimento e obscurantismo é fator pois adverso às
etnogêneses quilombolas. Superado, todavia, pelo Rosa. Sua superação, como vemos,
exige um intenso trabalho educativo pelas instituições e movimentos sociais ligados à causa.
um trabalho educativo e também luta simbólica, uma vez que não se trata apenas de
oferecimento da informação correta, como também de combate ao preconceito produzido
em torno da questão.
Dentro da comunidade do Rosa há ainda hoje uma pessoa especificamente que não quer
ser quilombola, e que age no sentido de tentar influenciar as outras. Não quer ser quilombola
porque tem interesse em vender os terrenos que ocupa dentro da comunidade. Já vendeu várias
partes da área. Há vários processos contra ele na Polícia Federal, no Ministério Público Federal
por conta de estar vendendo partes da terra. Na etapa de desintrusão, esta pessoa é uma das
que está para ser expulso da área. Maria Geralda fez vários boletins de ocorrência contra ele.
Ele, por sua vez, já ameaçou Geralda e irmã de morte.
58
A comunidade do Rosa enfrenta, assim, como outras comunidades, obstáculos
internos no processo de etnogênese. No qual sujeitos vivendo no território da comunidade
opõem-se ao processo de titulação, por alimentar interesses diversos da comunidade; e
agem obstruindo o processo de titulação como podem, e tentando influenciar outros
moradores a se opor à titulação.
Apenas a título de comparação, a dialeticidade presente os processos de etnogênese
descrita também por Ratts (1999), ao analisar a configuração do território
indígena Almofala dos Tremembé.
O autor, apesar de não trabalhar com o conceito de etnogênese, analisa um
processo de afirmação étnica como o das etnogêneses, no qual a comunidade afirma sua
identidade étnica, e, numa situação de contato adversa aos direitos étnicos, tem de criar
mecanismos para consolidar e legitimar esta identidade face aos seus adversários.
Uma conflitualidade interna à comunidade na construção do processo é assim
identificada por Ratts: ―As vozes dos índios, captadas em contexto recente, plenas de
metáforas de sua continuidade, indicam também processos de mudança e até mesmo a
dificuldade de dar sequência a certas tradições‖ (op. cit, p. 76).
No bojo de um processo de etnogênese, pois, as vozes da comunidade expressam
ao mesmo tempo continuidades com o passado e mudanças no presente: este a primeira
conflitualidade; a segunda, a dificuldade manifesta em manter dadas tradições, o que,
desnecessário dizer, no plano mais superficial, depõe contra a própria etnogênese.
O segundo elemento da dialeticidade, mais profundo por assim dizer, trata-se do que
Ratts (loc. cit.) denomina sobreposição de ritmos. ―É fundamental tentar interpretar essa
sobreposição de ritmos para não correr o risco de encapsular os Tremembé (e outros povos
indígenas [e comunidades em geral, incluso quilombolas] em situação semelhante) em duas
temporalidades: antes e depois da emergência [ou da etnogênese]‖.
A etnogênese, ou a emergência na linguagem de Ratts, não é feita de modo
estanque, nem com uma única ruptura absolutamente definitiva; não sendo linear, neste
processo há uma sobreposição de temporalidades e de ritmos.
O processo, por constituição, e não por acaso, é dialético.
59
Não obstante a dialeticidade interna do processo, e as inúmeras forças externas
contrárias à efetivação da cidadania quilombola, o Rosa tem se firmado como quilombo.
Uma força motriz decisiva para a intencionalidade da comunidade do Rosa em
direção ao auto-reconhecimento como quilombola e o amparo respectivo da lei foram as
ameaças reais ao território da comunidade, experienciadas no período. No que concerne à
relação entre etnogênese e território, o auto-reconhecimento como quilombola e o
posicionamento público como tal foi decisivo para assegurar o território do grupo face estas
ameaças externas do período.
Pela análise deste processo recente protagonizado pelo Rosa sou levado a discordar
de alguns supostos da literatura sobre etnogênese. Gostaria de observar que a etnogênese
um fenômeno territorial, não identitário. Ninguém duvida que seja sempre uma
transformação identitária; porém como sempre traz consigo uma pretensão territorial, é
plausível questionar se a dimensão visível da etnogênese não seja apenas a consequência
ou o invólucro de uma transformação – esta sim, verdadeira motriz do processo – de ordem
territorial. A essência da etnogênese é, pois, territorial, não identitária. Isto se confirma
também pela sua negação. As comunidades que têm assegurado seu território por outras
vias, não iniciam processos de etnogênese na esfera simbólico-cultural.
Sobre a relação entre comunidade e identidade gostaríamos também de acrescentar
algo que parece que não foi discutido na literatura sobre o tema.
A comunidade não é sua identidade. A comunidade, com sua história, sua tradição e
sua ancestralidade, é uma totalidade muito maior que sua identidade. A identidade não
define a comunidade. Aquela é apenas um elemento na totalidade desta.
Ficar buscando reduzir a comunidade a sua identidade, ou definir a comunidade por
sua identidade, é uma busca equivocada do ponto de vista conceitual, e de má fé do ponto
de vista político. Compreender que a comunidade é uma entidade muito maior do que a
identidade que apresenta, com que se apresenta ao exterior, no contexto multiétnico de
contato, e com que o exterior a lê, é o passo necessário a ser dado neste momento para
compreensão científica das comunidades quilombolas, de sua ontologia e de sua
historicidade real.
Considerando a especificidade da etnicidade na criação de códigos culturais e visões
de mundo singulares, incorpora-se a reflexão sobre a especificidade da etnicidade na
produção das diferentes configurações socioespaciais e nas dinâmicas inter-societárias. Nos
contextos multiétnicos de contato, a existência de comunidades tradicionais, indígenas e
quilombolas, tem – e sempre deve ter, nas regiões coloniais - caráter e substância
profundamente política, sob pena de seu desparecimento. A mobilização política
permanente torna-se cotidiano destas comunidades.
60
A territorialidade contemporânea do Rosa somente se compreende dentro do novo
processo de territorialização do grupo, ou, se se preferir, dentro de seu movimento social
pela garantia de sua cidadania e efetivação de seus direitos étnicos, incluso os territoriais. O
processo de territorialização recente do Rosa, pela primeira vez como comunidade
quilombola, é dependente do estabelecimento e efetivação de uma territorialidade nova. A
territorialidade contemporânea do Rosa constitui-se de alianças de caráter social e político.
A formação destas alianças da condição de possibilidade para ações políticas de
maior envergadura, maior força e maior impacto político. Sobre estas alianças, temos a
participação das lideranças do Rosa em assembleias políticas e deliberativas formadas por
segmentos da sociedade civil no Amapá e na Amazônia, como as reuniões do Conselho
Consultivo do Mosaico da Amazônia Oriental, bem como o SAPEG – Seminário de Áreas
Protegidas do Escudo das Guianas.
No âmbito das alianças precisa ser posto o acesso aos serviços de órgãos
especializados no atendimento às comunidades quilombolas, como é o caso da Fundação
Palmares, responsável dentre outras coisas pelo reconhecimento oficial e certificação da
comunidade como remanescente quilombola; e o INCRA, que no momento inicial da
mobilização do grupo, teve papel decisivo na informação à comunidade quanto aos direitos
quilombolas e ao processo de titulação.
No escopo da dimensão social das alianças que o grupo forma com outros atores,
existe também o inverso das alianças, os adversários do grupo, contrários à efetivação de
seus direitos, que não participam da territorialidade do grupo senão no sentido de constituir
os limites desta territorialidade. Nesse sentido, no período histórico analisado, o INCRA, pela
demora no andamento do processo de titulação do Rosa, apareceu - em um momento
específico - como adversário do grupo, e, portanto, uma limitação e obstáculo a sua
territorialidade.
Na mesma linha, o Programa Terra Legal, programa de regularização fundiária
liderado pelo governo do estado do Amapá, constituiu limitação à territorialidade e ameaça
concreta ao território do grupo. Assim, a exploração anterior de pinho, pela AMCEL, a
estrada de ferro da exploração mineral da ICOMI, e atualmente o interesse externo na
plantação da soja, são ameaças ao território e limitações à territorialidade da comunidade.
Marcos para a autorreconhecimento do Rosa como comunidade quilombola foram a
garantia do direito na Constituição de 1988, o ADCT 68, que impulsionou a auto-
identificação o reconhecimento social público das comunidades quilombolas no Brasil; a
criação de políticas públicas, especialmente o Programa Brasil Quilombola, com vistas
materializar este reconhecimento; e a mobilização empreendida pela comunidade contra
uma mineradora que intencionava depositar rejeitos tóxicos de mineração em seu território.
61
Nas palavras das lideranças, o autorreconhecimento como quilombola e o
posicionamento público como tal foram decisivos para assegurar o território do grupo face
estas ameaças externas do período. Sem a autoidentificação e o posicionamento público
como quilombola a análise da comunidade é que seu território já teria se perdido.
necessário contextualizar que este fortalecimento político somente se torna um valor no
contexto dos processos vividos pelas comunidades quilombolas da Amazônia e do Brasil no
início do século XXI, que englobam processos de afirmação étnica, de titulação do território, de
conquista da educação e da saúde diferenciada, de efetivação de políticas públicas (de moradia,
educacionais, de valorização e preservação do patrimônio cultural), e de luta contra o racismo e,
mais recentemente no Amapá, de defesa do território contra invasores, tanto invasores
individuais, quanto atividades econômicas de grande porte, como a monocultura e a mineração;
contexto, diga-se de passagem, no qual estas comunidades têm de se relacionar e confrontar
diretamente o Estado brasileiro, tanto na ameaça que este representa por vezes
sua integridade, quanto na luta pela efetivação de seus direitos étnicos.
O universo simbólico e a autorrepresentação da comunidade é muito maior do que a
identidade que esta assume no contexto multiétnico de contato. Este aspecto de sua
identidade, a de remanescente quilombola, é levado a primeiro plano para viabilizar a
comunicação com a sociedade nacional brasileira.
A etnogênese, assim, tem o sentido de uma estratégia territorial, porém não resume
todo o universo de significados da ancestralidade, memória e tradição da comunidade. A
ação descolonizatória, neste caso, tem como objeto o território comunitário, e é realizada
mediante uma concessão simbólica - a ação comunicativa - ao Estado e sociedade
colonialista brasileiro.
62
Referências
63
“SER FEMINISTA É...”: AS REPRESENTAÇÕES SOBRE
O FEMINISMO NA IMPRENSA PARAENSE (1912-1922)
https://doi.org/10.29327/527231.5-5
64
Introdução
As condições impostas às mulheres sempre foram, de alguma forma, questionadas,
seja individualmente ou coletivamente. Tais questionamentos direcionam-se sobre a ordem
estabelecida, as posições e obrigações das mulheres na sociedade, e são consideradas
como ações feministas ou precursoras do feminismo, esta última para aqueles/as que
possuíam uma perspectiva emancipatória, como é o caso das Preciosas na França do
1
século XVII .
Assim, configura-se o que é comumente chamado de ―Ondas Feministas‖, sendo a
Primeira Onda a partir do século XIX até meados do século XX, surgindo com maior
intensidade na Inglaterra e nos Estados Unidos. O movimento feminista brasileiro,
fortemente influenciado pelo feminismo euro-americano, configura-se nessa mesma linha de
tempo, a partir disso, as reivindicações são similares: por direitos, principalmente o direito ao
voto, participação nos espaços públicos, como também poder administrar bens e fortunas,
ou seja, ―o movimento feminista brasileiro induziu à elaboração de uma legislação não
2
reclamada por extensas áreas da população feminina‖ . Para além da questão política-
As preciosas, ou no francês ―précieuse‖, foi usado para designar tanto um fenômeno de corrente
literária, como um movimento feminino que ―afrontava temas que iam muito além do âmbito da
cultura‖ e também para ―designar as mulheres que reivindicavam acesso ao conhecimento e à
autonomia‖. GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 32-
33.
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p.
357.
65
3
Femininas Laurista e Lemista , a segunda com presença mais efêmera do que a primeira,
ambas com objetivo de fortalecer a política de seus candidatos. As suas ações passaram a
ser noticiadas nos jornais locais, como ―as reuniões de trabalho, as sessões lítero musicais,
as festividades que promoviam em torno do patrono, ou para angariar numerário para as
suas práticas beneficentes e de auxílio mútuo‖, também realizaram passeatas e comícios.
Assim, mesmo que algumas integrantes recriminassem ―a mulher política/mau feminismo‖,
tais Ligas não deixam de ser importantes, já que constitui em um marco na história
paraense, na inserção e participação de mulheres no processo político e partidário,
marcadamente como um espaço masculino, podendo ser considerada como uma ―prática
4
feminista‖ .
Por conseguinte, no ano de 1922 há a instalação da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino (FBPF), uma das principais, se não a principal, organização no
processo de luta pelo voto feminino, que passa a ter diversas filiais e associações em todo o
Brasil, realizando, dentre as ações, pressão sobre o Congresso para a discussão de projetos
favoráveis ao sufrágio. A partir disso, a imprensa paraense passa a ficar atenta as diversas
discussões e as ações do movimento ao longo da década de 1920, noticiando na primeira
5
página com títulos chamativos , o que demonstra uma mudança no cenário impresso
paraense, já que no período anterior, a qual estamos propondo analisar, o termo, as práticas
e ações em torno do feminismo são pontuais, com algumas colunas, enquetes e menções.
Assim, o presente artigo irá tratar inicialmente das perspectivas em torno da ―mulher
ideal‖, regendo o modo de vida das mulheres brasileiras, para assim compreendermos as
rejeições em torno da emancipação feminina; posteriormente iremos apresentar uma breve
trajetória histórica da presença feminina nos espaços públicos e suas reivindicações, como
um processo contínuo; para enfim analisar as representações proferidas nos impressos
paraenses entre 1912 e 1922, tendo em perspectiva o contexto e as mudanças sociais que o
feminismo ocasionou na sociedade brasileira. Tais trechos dos jornais, na maioria feito por
homens, configuram-se tanto como respostas temerosas as consequências do movimento
feminista, tendo, por exemplo, a saída da mulher do privado para o público, quanto
favoráveis, demonstrando os benefícios, e reivindicando uma emancipação feminina, que
começa a atingir espaços masculinizados e exigindo uma igualdade sócio-política.
3
As Ligas Femininas são organizações partidárias ligadas aos políticos Lauro Sodré e Antônio
Lemos.
ÁLVARES, Maria Luzia. Memórias e imagens do feminismo e das ligas partidárias no Pará: 1910 a
1937. IN: ÁLVARES, Maria Luzia; D’INCAO, Maria Angela (orgs.). A mulher existe? Uma
contribuição ao estudo da mulher e gênero na Amazônia. GEPEM/GOELDI: Belém-PA, 1995.
ÁLVARES, Maria Luzia. Orminda e Eneida: duas versões do feminismo paraense. IN: ÁLVARES,
Maria Luzia; SANTOS, Eunice dos (orgs.). Desafios de identidade: espaço-tempo de mulher. Belém:
CEJUP; GEPEM; REDOR, 1997.
66
6
“Si a mulher vencer os homens Quem dos bêbês vae cuidar ...”
Para compreender a subversão do movimento feminista, se faz necessário perpassar
o papel das mulheres na sociedade brasileira. As mesmas eram vistas como inferiores e tal
perspectiva passou por diversos tipos de comprovação, da religião à ciência, e lhe foi
designada características inatas como ternura e piedade, sua domesticidade, dependência e
dissimulação que marcam sua inferioridade, impedindo até mesmo um pleno
desenvolvimento físico, intelectual e pessoal.
Nesse sentido, as mulheres eram designadas para o espaço privado, ou seja, para a
7
casa, para os filhos e para o marido. Como bem ressalta Heleieth Saffioti , para que haja
felicidade da mulher, se faz necessária a presença do casamento, consolidando sua posição
social e sua estabilidade/prosperidade econômica, configurando uma dependência e
submissão tradicionais, econômica e social ao homem.
Relacionando a presente perspectiva, juntamente com o processo de modernização
que as principais cidades brasileiras passavam, Margareth Rago sinaliza que há
uma representação simbólica da mulher, a esposa-mãe-dona-de-casa,
afetiva, mas assexuada, no momento mesmo em que as novas exigências
da crescente urbanização e do desenvolvimento comercial e industrial que
ocorrem nos principais centro do país solicitam sua presença no espaço
público das ruas, das praças, dos acontecimentos, da vida social, nos
8
teatros, cafés, e exigem sua participação ativa no mundo do trabalho.
A partir disso, percebe-se a influência do desenvolvimento econômico na
configuração social das mulheres, setores industriais que demandavam o emprego
preferencial feminino, como também se pode depreender disso uma distinção de classe.
Enquanto que para as mulheres mais abastadas estão os espaços de lazer e as
reivindicações nas escolas; para as mulheres pobres, cabem as indústrias e as lojas
comerciais. Mesmo estando, por vezes, nesses trabalhos públicos para complementar a
renda familiar, as mulheres da classe operária sofriam as exigências burguesas dentro de
sua própria classe, ou seja, o movimento operário reproduzia a concepção de ideal feminino,
como ―vigilante do lar‖, e dificultava a sua inserção e participação nas entidades de classe,
9
sindicatos e nas indústrias .
Nessa conjuntura, cabe enfatizar que as mulheres negras e pobres sempre estiveram
presentes nos espaços públicos dentro do cenário brasileiro. Trabalhando em diversos
setores, sendo, por vezes, o único sustento da casa, chefes de família, tais mulheres, ao seu
modo, já subvertiam a ordem estabelecida e passaram por um processo
67
de invisibilização, seja por uma perspectiva progressista e modernizadora que implementou
políticas de ―limpeza‖ nos centros urbanos no início do século XX, seja pelo movimento de
mulheres, da classe média e alta, que não se voltaram e nem agregaram em suas pautas,
políticas direcionadas para a realidade dessa parcela feminina.
Outro ponto que merece destaque, considerando-se o período inicial da República, é
a influência do Positivismo não somente no cenário político, como também no social. Assim,
cabe ressaltar dentro dessa perspectiva, os papéis designados aos homens e as mulheres.
Aos homens caberia uma superioridade de caráter, inteligência analítica e o instinto
sexual; enquanto que às mulheres caberia uma superioridade afetiva, inteligência sintética e
o instinto materno. Para o positivismo, o instinto materno seria um instinto egoísta, já que a
mulher-mãe se prende ao que produziu, como também juntamente com o altruísmo e a
bondade, se resulta no amor materno. Tendo todas essas atribuições, a mulher-mãe passa
a ser moralmente e socialmente superior ao homem, pois ela ―abre mão de seus interesses
10
pessoais em favor da família‖ .
MENDES, Raimundo Teixeira. A preeminência social e moral da mulher, segundo os ensinos da verdadeira
ciência positivista. Rio de Janeiro: Tipografia do apostolado positivista do Brasil, 1908. Apud. SOIHET, Rachel.
Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1989, p. 111-112.
RAGO, Margareth. Op. Cit. p.109.
ALMEIDA, Jane Soares. Imagens de mulher: a imprensa educacional e feminina nas primeiras
décadas do século. Revista Estudos Pedagógicos, Brasília, v.79, n.191, jan./abr. 1998.
68
13
“a mulher tudo invade”
A partir da análise de ideal de mulher, podemos perceber o quanto o discurso
feminista torna-se ameaçador à sociedade tradicional brasileira. Com as reivindicações e
inserção pública, as mulheres passam a alterar as concepções vigentes, contradizendo a
moral e o decoro do período, sendo refletida nos impressos da época, em representações e
discursos que tanto difama quanto enobrece a causa.
Entretanto, antes de adentrarmos nessa análise, se faz necessário pontuar que,
apesar de organizações e movimentos terem surgido a partir do século XIX, há situações
individuais e coletivas de participação de mulheres na esfera pública reivindicando direitos e
melhorias em períodos anteriores. Desde a luta pela independência, mulheres como Hipólita
Jacinta Teixeira de Mello, se fizeram presente na Conjuração Mineira, promovendo reuniões
secretas, incentivando e até financiando as ações dos conjurados; Bárbara Alencar,
participando de diversas revoltas em Pernambuco; e Maria Quitéria de Jesus, ingressando
disfarçada no Regimento de Artilharia, exemplificam algumas mulheres subversivas aos
papéis que lhe era atribuído.
Na luta pela educação, uma das pioneiras pela alfabetização das meninas e jovens,
e também considerada a primeira feminista brasileira, é Nísia Floresta. Compreendendo as
diferenças entre os sexos como construções sociais e vinculadas a disparidade educacional,
Nísia Floresta defendia a educação como primeiro passo para a emancipação da mulher, é
também responsável por traduzir livremente e publicar o livro ―Direitos das Mulheres e
14
Injustiças dos Homens‖, de Mary Wollstonecraft .
Outra esfera pública que as mulheres participaram foi a luta abolicionista, criando
sociedades e se organizando, como a Sociedade de Libertação (1870) e a Ave Libertas
(1884). Nesse cenário,
a luta abolicionista feminina sinalizou o início do fim da escravidão da porta
para dentro e a afirmação das mulheres da porta para fora. Ainda que
pedindo emancipação não para si, mas para os escravos, as abolicionistas
puseram as mulheres brasileiras na política, coletivamente e de maneira
15
inédita .
Assim, podemos perceber a participação feminina, seja individual ou coletiva em
algumas questões políticas na sociedade brasileira. A despeito do movimento feminista
brasileiro cabe pontuar suas formas de manifestação, organização e atuação.
Uma das primeiras formas de manifestação foi a imprensa alternativa feminina, ou
mais especificamente, os jornais feministas iniciados em meados do século XIX,
possibilitando o registro das causas e lutas travada pelas mulheres, como a disseminação
13
O industrial, 08/05/1902. Matéria: O reinado das mulheres.
GARCIA, Carla Cristina. Breve histórico do Movimento Feminista no Brasil. Disponível: <
http://flacso.org.ar/wp-content/uploads/2015/08/Capitulo-brasil-historia-do-feminismo.pdf>, p.6.
Ibidem, p.7.
69
16
da campanha pelo voto feminino . Constituindo-se um dos principais países latino-
americanos na propagação de jornais feministas, para citar alguns exemplos: O Jornal das
Senhoras (1852), O Sexo Feminino (1873), o Echo das Damas (1879) e o Jornal das Moças
(1914).
Nessa perspectiva, a imprensa feminina torna-se importante para os estudos dos
hábitos, costumes, reivindicações e também, como as mesmas reagiam diante de
acontecimentos e das normas sociais. A partir disso, a imprensa feminina pode ser
caracterizada como um ―conjunto de publicações voltadas para as mulheres‖, ou seja, o que
determina é o seu público leitor, já que a maior parte desses periódicos era escrito por
17
homens .
Esses periódicos do século XIX, e podemos considerar também os do início do
século XX, tinham como uma das principais pauta a educação, visando uma melhoria do
sistema de ensino, necessárias ao progresso da nação, contribuindo também para que as
mulheres trabalhassem e se emancipassem, como podemos ver no escrito de Josefina
Álvares:
[...] A primeira condição essencial de emancipação das pessoas é a
instrução. Instruída a mulher, todos os direitos se lhe antolham como da
posse razoável de todos os seres da espécie. [...]
E a mulher será instruída e emancipada, com todos os direitos inerentes às
personalidades humanas, ou não será instruída, e, por conseguinte, torná-
la-ão inferior pelo egoísmo dos seus semelhantes, o que é uma
monstruosidade.
Repito: a emancipação da mulher é um direito concernente à sua
18
instrução .
Sobre suas organizações e atuações, faz-se necessário pontuar que, apesar de
receber uma influência euro-americano ideológica, isso se difere nas ações práticas. Os
movimentos feministas ingleses e alguns grupos norte-americanos realizavam grandes
movimentações, dirigindo-se para ações e estratégias mais radicais, acabando por serem
presas e muitas mortas defendendo seus ideais. No caso das feministas brasileiras, foram
alinhados seus discursos ao ideário republicano, ou seja, que a mulher teria que ser
19
―instruída para a formação de cidadãos responsáveis pelo desenvolvimento nacional‖ ,
70
benefícios. A partir disso, podemos perceber quais eram as mulheres, nesse período, que
integravam o movimento: letradas, da classe dominante e consequentemente com acesso a
imprensa.
Nessa conjuntura, podemos perceber que a sociedade paraense não difere do
contexto nacional, tendo assim, grosso modo, duas concepções: os pronunciamentos
feministas, atrelados a luta reivindicatória com o papel ―mulher educadora-civilizadora‖;
como também um discurso antifeminista, com rejeições e argumentações contrárias a
alguns direitos exigidos, principalmente ao voto e a inserção nos espaços públicos.
20
“Estamos em vespera da catastophe, salve-se quem puder”
Notícias reportando o feminismo já são encontradas nos jornais paraenses desde
1893, principalmente reportando o progresso do movimento em outros países, como por
21
exemplo, o jornal Correio Paraense , que menciona o avanço do feminismo na Alemanha;
ou o jornal A Republica, que considera a abertura de escolas para mulheres como avanço
22
do feminismo, pelo governo turco , como também reporta a criação de lei para votação
municipal sem distinção de sexo no estado do Kansas, EUA, fruto do movimento
23
feminista . A partir disso, compreendemos que as reivindicações emancipatórias não são
mais novidade na sociedade paraense no período analisado.
Assim, as crescentes mudanças ocorridas no cenário público com o movimento de
mulheres, ao reivindicar esse espaço como seu também, faz com que haja uma reação de
insegurança quanto ao futuro, um medo que é causado pela ―desestabilização das fronteiras
simbólicas entre os sexos, ou seja, pela alteração nos padrões de masculinidade e
24
feminilidade vigentes‖ . Reflexo das mudanças nos papéis socialmente construídos para
homens e mulheres, na qual terá reações contrárias, seja em instituições quanto em jornais
para impedir com que tais alterações ocorram.
Como, por exemplo, no caso das vestimentas, que exposto no jornal Estado do
25
Pará , na seção ―Coisas dos Outros‖, sobre São Paulo, há a prescrição da Ordenação,
Livro Quinto, Título 31, onde diz: ―Defendemos que nenhum homem se vista, nem ande em
trajes de mulher, nem mulher em trajes de homem‖. O que torna interessante é o comentário
sobre tal prescrição na coluna, sem autoria, que diz: ―a mulher poderá ser pedreira, tabeliã,
deputada, carpinteira e usar fraque, cartola, ceroilas, calças, bigodes e até mesmo fazer... a
barba. O século é outro, senhora Ordenação, e o melhor que vossa mercê faz é queimar-se,
20
O industrial, 8/5/1902. Matéria: O reinado das mulheres.
Correio Paraense, 20/07/1893.
A Republica, 7/10/1893. Matéria: As filhas de Allah.
A Republica, 27/10/1893. Matéria: O suffragio feminino.
MARSON, Melina. Da feminista ―macha‖ aos homens sensíveis: o feminismo no Brasil e as
(des)construções das identidades sexuais. Cadernos AEL, n.3/4, 1995/1996.
Estado do Pará, 03/07/1911. Coluna: Coisas dos Outros.
71
entendeu‖. Tal Ordenação e comentário simplificam o cenário encontrado: ações de
manutenção da norma e manifestações contrárias, que já anunciam as transformações
sociais.
Partindo para a análise dos discursos antifeministas nos impressos, encontramos
comumente comentários como: ―O feminismo de hoje parece ter tomado por tarefa
transformar as mulheres tanto quanto possível similhante aos homens. [...] Ellas têm muito
26
que perder com isso e nós também‖ . Assim, podemos perceber que as reivindicações
feministas começam a desestruturar a identidade masculina e redimensionar a feminina,
evidenciado no medo e insegurança, como também uma concepção equivocada do
movimento.
Para evidenciar todos esses anseios, são diversos os meios e os discursos
utilizados, além dos jornais, há o registro de peças de teatro ou filmes que têm em seu título
a palavra ―feminismo/feminista‖ e são classificadas como ―comicas‖, por exemplo, ―Viva o
27
feminismo‖, que foi em exibição no Cinema Alhambra, no dia 11 de junho de 1912 e no
28
Cinema São João, em 22 de junho de 1912 . Como também conferências para tratar o
feminismo, tal a qual ocorreu em Belém, no dia 02 de junho, ás 9 horas da manhã no
29
Theatro da Paz, sendo o conferencista identificado pelo pseudônimo de Luciano d’Avila .
Além disso, as opiniões emitidas a respeito das feministas e do feminismo
demonstram ―palavras de louvor ou desdém, configurando-se em uma espécie de tribunal
social que se encarregava de julgar a conveniência, ou não, de qualquer ato proveniente das
30
mulheres‖ . Tal afirmação pode ser percebida na coluna ―Ao inverso do costume‖, onde o
autor, Alves de Souza, diz sobre o voto feminino: ―Não devo, não quero ter opinião sobre um
problema perigoso, que passou do campo da propaganda social para o campo da imposição
31
violenta, que derivou da palavra escripta e falada para a bomba e para o incendio‖ .
Apesar de afirmar que não irá se posicionar, ele já infere características em relação a
reinvindicação, e também infere como deveria ser o movimento, ―escrito e falado‖, como
também ser cordial, amável, gentil e gracioso; e não ser ―bomba e incêndio‖, violento,
atribuindo tais ações ao sufragismo britânico, caracterizado como aberração monstruosa,
repulsiva e degradante.
Assim, podemos perceber que os homens não eram neutros quando o assunto era a
emancipação feminina, seja com declarações mais ofensivas ou mais amenas, eles eram os
juízes desse processo. Quando não eram totalmente contrários ao feminismo, inferiam
72
sobre como o movimento deveria ser, agir e reivindicar; e no momento em que as mulheres
não agiam como deveriam, eram condenadas.
Nessa perspectiva negativa, várias são as atribuições às mulheres, reduzidas a
atitudes violentas e desequilibradas, consideradas feias e não-femininas. É o que Melina
32
Marson analisa, onde na busca por uma nova identidade, as feministas acabam por
serem vistas como não-mulheres, mal-amadas, que por isso se envolviam em assuntos
masculinos.
Além disso, as mulheres são acusadas de ―ocupar os espaços dos homens‖ e isso
ocasionaria o ―fim dos tempos‖. Para demonstrar tal concepção, utilizaram-se até de
poemas:
O feminismo ! É por isso
Que eu me ponho a matutar;
Si a mulher vencer os homens
Quem dos bêbês vao cuidar ...
Si as mulheres conseguirem
Nos vencer em toda a linha,
Só nos assiste o direito
De trabalhar... na cosinha!...
[...]
E, os homens, para o futuro,
Parece que viverão
Na mais cruel dobadoura,
Pois, como dizem, terão
Em vez do livro – as panellas,
33
E, em vez da pena, - a vassoura!...
Nesse poema, pode ser interpretado o medo masculino de ter os ―seus‖ lugares
trocados com os das mulheres. Já que os papéis sociais são fixos e justificados por uma
natureza inata, torna os versos do poema absurdo e até risível para a época.
Ademais, aqueles favoráveis às causas feministas também era satirizados, como é o
caso de Felippe Camarão, autor das colunas ―Feminismo Triumpha‖ e ―Feminismo Vencerá‖
no jornal Estado do Pará:
[...] E a mania que ele tem
De engrossar o feminismo,
Não pôde ser muito bem
Um caso de chaleirismo ?
Se fôr assim, - novo rumo
Procure em bandas fagueiras,
Pois eu de raiva me espumo
34
Contra todos os chaleiras!
Assim, podemos compreender que todas e todos favoráveis as mudanças e
reivindicações emancipacionistas eram alvos na sociedade paraense, que utilizava diversos
mecanismo para desmerecer a causa. A partir disso, é interessante refletir que tal prática de
satirizar, menosprezar e degredar as mulheres que invadem os espaços masculinizados
32
MARSON, Alison. Op. Cit. p. 6.
Estado do Pará, 29/04/1913. Seção: Pontos & Pospontos.
Estado do Pará, 08/08/1913. Seção: Pontos & Pospontos.
73
configura-se como um ato nacional e internacional, além de contínuo, visto que gravuras
europeias do século XVIII já retratavam essas mulheres como ―megeras sexualmente
35
agressivas‖ ou como ―putas‖ e ―bruxas‖ .
Entretanto, os impressos desse período não só divulgavam reações negativas e
contrárias ao feminismo, mas serviam também aqueles e aquelas que queriam a
emancipação feminina. No qual, com o avançar dos anos e as novas conquistas passam a
se tornar mais frequentes.
36
“Ser feminista, enfim, é amar a independencia, a liberdade, a luz e a sciencia”
Refletindo o cenário brasileiro, os impressos paraenses também estavam atentos em
todos os assuntos pertinentes a emancipação da mulher e aos avanços conquistados no
contexto nacional e internacional.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017. P.
189-190.
Estado do Pará, 31/03/1914. Coluna: O feminismo.
O Ensino, n.9-10, mar.-abr., 1919, p. 106-109.
74
Seja se homem, ou mulher, devemos procurar processos de empregarmos
o tempo sem ser em futilidades. A instrucção, com fim proveitoso, a
educação, com objectivo utilitario e tanto serve para um sexo como para o
outro.
preciso que as mulher se eduquem fora do regimen de servirem só de
38
encantamento para o homem [...]
Mesmo que de certa forma já se tenha a presença mais constante de mulheres nos
espaços educacionais, como podemos ver nas fotos divulgadas na revista A Semana, de
39 40
meninas em institutos , em curso de datilografia e em uma turma de formandos
41
normalistas , se formar ainda era um vitória e motivo de emoção, tal como é narrado:
―Mademoiselle Z, na occasião de receber o seu diploma, commoveu-se tanto, que os seus
olhos pestanudos, lacrimaram. [...] Seria porque mademoiselle tinha, alfim, em mãos, o
42
premio das suas luctas com o Saber [...]‖ .
Outra reivindicação feminista, e nesse período podemos pontuar como a principal, foi
o voto feminino. Visto como importantíssimo para a inserção política das mulheres,
acreditava-se que votar e ser votada contribuiria e ocasionaria para que outros direitos
fossem conquistados. Em relação à imprensa, mesmo que em colunas pequenas, algumas
conquistas sufragistas em outros países foram noticiadas, podendo ser interpretada como
um incentivo ao sufrágio brasileiro.
A conquista pelo voto feminino no Brasil possui uma longa trajetória, desde o século
XIX, deputados como Francisco Souza e José de Alencar, já defendiam o sufrágio universal
na imprensa, e passaram a discutir projetos de reforma eleitoral, como é o caso da Lei
Saraiva (Decreto n° 3.029/1881) que abria a possibilidade de mulheres diplomadas votaram,
entretanto, tal como a Constituição de 1891, não deixa explícito esse viés, resultando na
rejeição aos pedidos de alistamento eleitoral feminino.
Assim, passaram a confrontar-se nesse período dois argumentos: um contrário,
afirmando que o legislador não tinha a intenção de conceder o voto feminino; e outro
favorável, que argumentavam conforme a letra da lei, ou seja, de que haveria
gramaticalmente a inclusão do feminino no plural masculino: ―... são eleitores os cidadãos
43
maiores de 21 anos...‖ . Tal disputa continuou durante os anos, e as organizações
femininas passaram a aumentar e se fortalecer em prol dos seus diretos, juntamente com os
44
projetos de lei favoráveis a causa, para enfim, ser conquistado apenas em 1932 .
75
Enquanto isso, os impressos paraenses divulgavam matérias com o título ―O
45
Suffragio Feminino‖ , que pontua alguns países que legitimaram o voto feminino, além de
afirmar:
Quando terminar a conflagração européa, está fóra de duvida que o
feminismo de nossos dias, se tornará em absoluto uma realidade. [...] Será
o mais notavel facto da historia do mundo, pois consagrará a aptidão da
mulher para todos os actos da vida comum, reconheceno a sua absoluta
capacidade, sem resticções, declarando que, perante o direito, não ha
diferenças de sexo.
Demonstrando que algumas matérias e colunas na imprensa paraense já eram
otimistas enquanto o avanço do feminismo e a conquista do voto, outro exemplo é o jornal
do Estado do Pará, com suas colunas, já citadas anteriormente, como ―Feminismo
Triumpha‖, que teve doze números; o ―Feminismo Vencerá‖, com cinco números; como
também ―O Feminismo‖ e ―Feminismo‖; além de pequenas reportagens com o título ―As
conquistas do feminismo‖. Outras, como a revista A Semana não são tão explícitas no seu
posicionamento, mas não deixam de publicar imagens de mulheres formadas, professoras,
diretoras, fazendo matérias sobre o trabalho de atrizes e cantoras que se apresentaram em
Belém, como também reportando a dualidade na sociedade frente o avanço da conquista do
voto em outros países:
TIC-TAC
possivel que em breve tambem ás mulheres américas do norte seja
concedido o direito sagrado do voto.
Commentando essa alviçareira nova, trazida até nós pelas columnas
telegráficas dos jornais diarios, dois cavalheiros a uma esquina de rua
discutiam.
Bem que um disse: - ―nós, brasileiros, deviamos suspirar por que esse estão
de cousas não nos atringisse. Meu amigo, minha mulher alegrou-se com a
46
noticia mas minha sogra quase endoidece de satisfeita‖ .
Apesar de que tais reportagens são pontuais na revista e não entram no debate,
parecem deixar claro, de maneira geral, a quem interessa as conquistas do feminismo, às
mulheres e não aos homens. Podemos perceber tal conjuntura, na seção ―Reportagens
47
Confidenciaes‖ , da Revista O Record, onde é feito perguntas similares para um homem e
para uma mulher. Enquanto que o entrevistado se demonstra evasivo nas respostas, sem
demonstrar tanto interesse, a entrevistada aproveita a oportunidade para fazer menção a
inserção da mulher no espaço público: nas perguntas ―A minha principal qualidade ?‖ e ―O
meu principal defeito?‖, a resposta para a primeira é ―Desejar a felicidade para todos e ter
espirito pendente para a revolução‖ e para a segunda é ―Não guardar desaforo de ninguém
e pugnar sempre pelos direitos a mulher, até serem equiparados aos do homem na vida
civil‖, interessante perceber que mesmo configurando ―ser pendente para revolução‖ uma
qualidade, quando a mesma torna-se mais especifica e fala dos direitos das mulheres, a
76
enquadra em um defeito, mas aparenta deixar claro que não pretende mudar. Tal panorama
pode representar o reflexo da sociedade paraense nesse contexto, que não considera
pertinente a mulher lutar por esses direitos.
Por conseguinte, cabe analisar como era conceituado o feminismo, tendo como base
principalmente o jornal Estado do Pará e as colunas de Felippe Caramarão. Ele irá
caracterizar o feminismo da seguinte forma:
O feminismo não é a rebellião dum sexo contra leis absolutas e immutaveis,
nem tão pouco um sentimento de rivalidade doentia ou de inveja absurda. É
uma reacção espontanea contra mentiras e prejuizos originarios, a
aspiração de vivier em liberdade, de viver como collaboradora e não como
48
escrava do homem.
Podemos perceber que ele não compactua com a ideia de conflitos e rebeliões,
características que são enquadradas, como já mencionamos, ao sufragismo britânico, no
qual o mesmo chega a criticar. Mas compactua com um ideal liberal, contra injustiças, a
favor da liberdade, utilizando-se até de analogia a escravidão. Em outros artigos, reafirma
essas questões, e acrescenta que é ―uma felicidade egual para os dois sexos – tal como a
49
vida nol-a podia offerecer – nem mais, nem menos‖ , onde o feminismo não só beneficiaria
as mulheres como também os homens, e estariam em plena igualdade. Os benefícios tragos
está relacionado com a ideia de ―mulher colaboradora‖, onde ela contribuiria a favor da
pátria, a partir da educação e do trabalho como fortalecedores do lar.
relevante ressaltar que as concepções de Felippe Camarão refletiram na
sociedade paraense, quando vemos na enquete ―Os inqueritos de Sonia‖, a pergunta ―Qual
a sua opinião, leitora, sobre o feminismo?‖, e uma das respostas, de autoria de Josepha L.
50
Castro , dizer: ―A minha opinião sobre o feminismo é exatamente a do collaborador d’esse
jornal sr. Felippe Camarão, que durante longos mezes defendeu com logica a causa
feminista [...]‖. Podemos supor que seus artigos no jornal contribuíram para a disseminação
do feminismo na sociedade paraense, as proporções e de que forma foram interpretadas
não podemos afirmar.
Sobre os textos escritos por mulheres, para compreendermos sua posição e
percepção em relação feminismo, são mais escassas nos impressos do que os textos
escritos por homens. A partir disso, queremos deixar claro que estamos cientes dos artigos
sem nomeação, da prática do uso de pseudônimos, entre outras variáveis, que não deixam
ter certeza sobre a autoria do texto. Entretanto, gostaríamos de mencionar aqueles escritos
que possuem em sua autoria nomes femininos.
77
Durante esse período, em relação as colunas direcionadas à questão do feminismo
no jornal Estado do Pará, houve poucas escritoras, dentre elas Maria Olympia, que
caracteriza ser feminista da seguinte forma:
Ser feminista é pedir trabalho. Pedir que nos seja facultada a concorrência a
todos os logares e que seja o valor e não o sexo que nos admitta ou pretira.
Ser feminista é pedir para todos os mesmo deveres cívicos e moraes, as
mesmas responsabilidades. Ser feminista, enfim, é amar a independencia, a
51
liberdade, a luz e a sciencia.
Há a ênfase ao trabalho e a reafirmação da ideia de igualdade entre os sexos,
reforçada pela mesma concepção liberal própria do período, devido o momento inicial da
República. Uma questão interessante é o termo ―pedir‖, que infere a ação de solicitar a
alguém, nesse contexto, ao homem, cabendo a ele conceder ou não; conferindo a mulher o
lugar de sujeito que recebe a ação, e podendo reforçar seu espaço social atribuído, já
analisado.
Outra concepção evidenciada é a distinção entre feminismo e sufragismo,
contribuindo para a percepção de um ―feminismo leve‖:
Suffragismo não é feminismo. [...] A feminista não pretende votar, não quer
ser eleita, não deseja legislar, nem governar, nem dirigir. O que ella almeja,
o que ella quer vêr são os seus direitos de ente humano perfeito e natural
egualados aos do homem em face da Lei. [...] Ser feminista é querer a
liberdade de agir sem constrangimento, e tornar-se moral e socialmente
52
egual do homem.
Tal perspectiva foi relatada por Maria Mercedes, nos ―Inqueritos de Sonia‖,
percebemos que apesar do sufrágio ser uma das principais pautas no período, ela não é
aceita por todos e todas simpatizantes ao feminismo, como também há o ideal negativo em
torno do sufragismo, já mencionado, fazendo com que não fosse benquisto. O interessante
nesse depoimento é a desvinculação na participação política, que se configura até hoje
como um espaço majoritariamente masculino, além disso, é reforçada apenas uma
igualdade social, tal como os homens, considerados seres humanos normais, sem as
concepções de inferioridade, fragilidade, pouca inteligência, que por vezes era atribuído às
mulheres. Assim, caracterizando esse ―feminismo leve/moderado‖, que não desejava mais
do que uma liberdade social.
Em outros impressos, o feminismo é relacionado a todas as questões femininas, e
quando os homens passam a se interessar por tais assuntos eles ―tem decerto meio
53
caminho andado para o feminismo‖ . Tais depoimentos, como um todo, possibilita que os
homens façam parte do movimento e possam juntamente com as mulheres reivindicar a
emancipação feminina.
78
A partir de tais representações percebemos, desde o início, que não há uma
hegemonia em torno do que seria o feminismo, caracterizado até hoje como um movimento
plural, que visa atender a diversidade dos sujeitos e suas demandas.
Considerações Finais
Frente às mudanças sociais, econômicas e políticas nos anos iniciais do século XX,
concepções sobre a condição feminina permanecem baseados pelo cientificismo. Na qual se
volta para a confirmação tanto da feminilidade quanto da masculinidade, a um cabe o
privado e ao outro o público, e ambos não podem se misturar ou ―trocar‖ devido a sua
―natureza‖.
Mesmo com tais restrições, algumas mulheres transgrediram as normas
estabelecidas: as mulheres de classe baixa, sempre se utilizaram da sua mão-de-obra para
sobreviver e nesse momento, insere-se nas fábricas e organizam-se para reivindicar
melhorias nas suas condições de trabalho; as mulheres letradas da classe dominante,
incorporando ideais euro-americanos reivindicam uma educação, trabalho e direitos
igualitários, e nelas recai a denominação de ―feministas‖. Tal denominação pressupõe um
movimento e organização, na qual difere daquele que foi a influência para o movimento no
Brasil, mas não deixa de ter sociedades e instituições femininas, como é o caso do Partido
Republicano Feminino (1910) e da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (1922),
que buscaram colocar em evidência essa luta emancipatória. A partir desse pressuposto de
mudanças e organizações no cenário referente às mulheres, uma reação contrária tornou-se
evidente, percebidas na dificuldade de se adquirir o voto feminino, depois de vários projetos
54
barrados , como também em discursos proferidos em jornais.
Em 1891 foi apresentado uma emenda pelo deputado Sá Andrade; 1917, o deputado Maurício de Lacerda
apresentou um projeto de lei que mudava a legislação eleitoral; esses são algum dos exemplos. VER:
MARQUES, Teresa. Op. Cit.
JUNIOR, Mota. A emancipação da mulher. Belém: Guajarina, 1947.
Primeiro Congresso de Brasilidade: sobre o problema da previdência sócio-criminial, 1941.
79
57
das Mulheres e o Ano Internacional das Mulheres, em 1975. Passando por um processo
de reestruturação e de massificação, incorporando outras pautas como violência,
sexualidade, gênero, raça, classe e etnia, ocasionando nos diversos tipos de feminismo,
procurando agregar todas as mulheres em sua diversidade. Além de organizar
movimentações grandiosas como greves trabalhistas e passeatas tal qual ―Nem uma a
menos‖ e ―Ele Não‖.
A partir disso, pretendíamos analisar e evidenciar como as mudanças sociais
advindas do movimento feminista alteraram algumas questões nos papéis sociais em voga,
e como as representações favoráveis e contrárias ao feminismo foram propagadas pelos
jornais paraenses entre 1912 e 1922. Por fim, percebemos um medo na ocupação dos
espaços públicos pelas mulheres, como também uma ―troca de papéis‖ temido pelos
homens, além de um apoio intensivo ao feminismo, apesar de serem encontradas algumas
restrições, não deixam de demonstrar os benefícios e reivindicar a emancipação feminina.
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57
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primeira vez na Alemanha, Suécia e Rússia. VER: GONZÁLEZ, Ana Isabel Álvarez. As origens e a
comemoração do Dia Internacional das Mulheres. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
80
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81
ABIGAIL: PROTAGONISMO FEMININO EM CONTEXTO PATRIARCAL, A
PARTIR DE UMA PERSONAGEM BÍBLICA
https://doi.org/10.29327/527231.5-6
Maria Cristina Maneschy
Universidade Federal do Pará
PPGSA/GEPEM
RESUMO
ABSTRACT
82
Abigail: protagonismo feminino em contexto patriarcal, a partir de uma
personagem bíblica
Introdução
Sociologia, comparando-os com obras de arte. Ou seja, trata-se de um texto antigo cuja
importância para o conhecimento da vida social vai além de uma contribuição para a história
das ciências que se voltam para o humano. Textos clássicos, na acepção de Robert Nisbet,
merecem a leitura, pois são sempre suscetíveis de gerar conhecimentos válidos sobre a
sociedade da época e, por extensão, são capazes de inspirar a produção de conhecimentos
sobre sociedades de outros tempos e lugares, estimulando ainda a criatividade. É nesse
sentido que, em caráter inicial, lanço-me a esta reflexão construída sobre a pequena
passagem que apresenta a personagem Abigail e o episódio no qual ela exerceu um poder
ativo que deixou marcas na vida de Davi. A longa história de Davi está narrada nos livros 1 e
2 de Samuel. Considero que o episódio com Abigail lança luzes críticas sobre o tema do
poder inscrito nas relações de gênero e sobre o protagonismo de mulheres em ambientes de
forte desigualdade nessas relações.
Este texto começa com a interpretação dada por alguns teólogos e teólogas sobre o
entendimento cristão a respeito da posição social das mulheres. Essas abordagens
Todas as referências bíblicas neste texto foram extraídas da “Nova Bíblia Pastoral”, Ed. Paulus, 2014.
2 Verbete “David”, em Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/David. Consulta em 08 de
novembro de 2019.
A Sociologia como uma forma de arte. Originalmente publicado em 1962.
83
teológicas descortinam possibilidades de interpretação que interessam também no plano
sociológico. Em seguida, apresenta os conceitos sociológicos básicos empregados na
análise: gênero e patriarcado. Descreve-se, então, o episódio em foco. Enfim, indicam-se
duas leituras sociológicas possíveis sobre o protagonismo da personagem.
Abordagem teórico-metodológica
Uma primeira observação faz-se necessária. Os textos bíblicos são, em primeiro lugar,
material de fé e não testemunhos histórico-documentais comprovados por dados objetivos
conforme os padrões da ciência da História. Muitos textos são reuniões de tradições orais,
inclusive de culturas diferentes, e escritos em épocas posteriores. Há, como se sabe, toda
uma ciência que faz a exegese dos textos bíblicos. Os textos bíblicos são alvo de estudos
que os situam no quadro dos processos que diferentes povos do Oriente Médio viviam, em
primeiro lugar os judeus. São processos políticos e econômicos, migrações, exílios, contatos
e trocas interculturais, aculturações, expansionismos e subjugações de povos etc. São
processos que marcaram as histórias concretas das quais emergiram os textos que
compõem a Bíblia. Muitos textos foram escritos por escribas, para rememorar tradições e
manter viva a identidade cultural judaica.
Frisando os limites de meu conhecimento na matéria, esclareço que para a análise aqui
proposta, é bastante lembrar que os textos bíblicos são também expressões culturais das
sociedades em que foram produzidos. E, sobretudo, eles são fontes de valores e visões de
mundo que fazem parte do legado cultural judaico-cristão que embasou a formação da
cultura ocidental, em suas compreensões de natureza versus cultura, concepções de
humanidade, de direitos, as formas de conceber trabalho e futuro etc. É, portanto, nesse
sentido de expressão de valores e padrões culturais, que uma leitura sociológica como a
aqui proposta encontra justificativa.
84
O gênero, portanto, é um campo muito importante na estruturação do poder, em
especial do poder político. Scott reforça sua argumentação recorrendo à análise do
sociólogo Pierre Bourdieu, que destaca a força peculiar de todo poder que assenta sobre
percepções culturais de diferenças biológicas entre categorias de pessoas. Com efeito,
gênero tem a ver com papéis e identidades conferidos pela cultura aos sexos masculino e
feminino, com base em atributos biológicos. Assim, gênero refere-se também à existência de
fronteiras no interior do corpo social. Fronteiras legitimadas por elementos da natureza são
muito resistentes. Elas vão se manifestar em diferentes esferas da sociedade, nos campos
da produção e da reprodução social, nas atividades realizadas no plano público, no plano da
política, assim como no plano mais privado da domesticidade e do parentesco. Em cada
uma dessas esferas, também operam outros eixos de classificação social, como as classes,
as etnias e as raças. As formas históricas de construção das fronteiras são variadas. Elas
não são apenas separações, pois comportam desigualdades sociais.
A leitura feminista sobre as relações de gêneros, por sua vez, vai focar na crítica das
discriminações e opressões de gênero. A filósofa Silvia Federici (2019) assim argumenta,
agregando ainda a ideia de que a leitura feminista busca um melhor entendimento sobre o
trabalho reprodutivo – os cuidados com as pessoas, suas comunidades e o ambiente do
qual dependem – que é atribuído precipuamente às mulheres. Federici cita Peter Linebaugh,
para quem o trabalho reprodutivo ―é a pedra sobre a qual a sociedade é construída e pela
qual todo modelo de organização deve ser testado‖ (FEDERICI, 2019, p. 381). Na linha de
pesquisadoras feministas como Nancy Fraser (2016), Federici está propondo a análise
crítica das fronteiras de gênero e de suas desigualdades. E, também, propondo uma
inversão da ordem hierárquica com que as essas fronteiras são justificadas ideologicamente,
isto é, a primazia da produção sobre a reprodução social e dos assuntos das esferas
públicas sobre as domésticas. Os estudos elucidam a artificialidade de todas as separações
socialmente construídas e como, ao mesmo tempo, estão ancoradas.
85
As fronteiras de gênero, a despeito de sua fixidez, são desafiadas pelas mudanças
históricas. Gênero e poder se constroem reciprocamente, diz Scott (2019, p. 74). E essa
construção é dinâmica. As próprias categorias ―homem‖ e ―mulher‖ conhecem variações.
Isso significa que são ―categorias transbordantes‖, pois apesar de parecerem fixadas, ―elas
contêm ainda em si definições alternativas negadas ou reprimidas‖ (SCOTT 2019, p. 75).
Dentre as perguntas de pesquisa histórica sobre gênero que Scott levanta, algumas têm
especial interesse para os objetivos deste artigo.
Tanto o episódio em si, como é narrado no Livro de Samuel, quanto o fato de os autores
do texto – escribas de Jerusalém – o terem incluído no livro são interpretados como
indicadores dessas duas possibilidades que o referencial teórico sobre gênero indica. A
primeira é de que naquela sociedade havia visões alternativas às da tradição sobre a
categoria mulher. A segunda remete ao ideal de um conceito mais igualitário de gênero que
também estava presente. Um ideal igualitário de gênero contempla as capacidades sociais
86
de homens e mulheres nos diferentes campos e vislumbra mais intercâmbios de
conhecimentos, práticas, valores, conexões etc.
A ideia de desenvolver esta reflexão partiu de uma pregação que ouvi em outubro de
2019. O autor é um pastor e teólogo batista, brasileiro. A pregação data de junho de 2015 e
5
se intitula ―Celebrar por ser Mulher – Superbonita‖. Tece considerações acerca de um
conjunto de mulheres retratadas em diferentes passagens da Bíblia, dentre as quais está
Abigail. A fala do pastor objetivava prestar homenagem à ―sabedoria das mulheres‖ e, de
modo particular, ressaltar que elas ―engrandecem a mensagem do Evangelho‖ (Kivitz, 2015).
Ou seja, as mulheres não estariam lá apenas como partícipes, mas através de suas
experiências de vida como mulheres, de seus dizeres e espiritualidade, elas imprimiram uma
marca muito importante no desenvolvimento da fé, argumenta o autor.
A explanação de Kivitz (2015) despertou-me para esta reflexão sobre relações de gênero
e protagonismo feminino a partir de Abigail, personagem notável, menos conhecida fora do
meio religioso do que outras figuras femininas de destaque na Bíblia. Evidentemente, em
primeiro lugar a mulher mais conhecida é Maria, mãe de Jesus. Mas há, também, Maria
Madalena, uma das mais fiéis seguidoras de Jesus, dentre outras. Como dito acima, o
episódio que Abigail protagonizou é descrito em poucas páginas. Contudo, considero que Ed
René Kivitz (2015), ao falar de Abigail, destacou o poder momentâneo, mas eficaz, que ela
exerceu sobre homens prontos para o que seria um conflito sangrento, evitando tal
desfecho. Que poder foi esse? Como ele foi possível no quadro cultural do judaísmo antigo,
que limitava tanto a mobilidade quanto a voz das mulheres, independente da classe social?
Eram sociedades marcadas pelo patriarcado, no sentido de legitimarem a submissão
feminina em diferentes esferas da vida coletiva.
5 Kivitz, Ed René (2015). Celebrar por ser Mulher – Superbonita. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=aMOM62HYoZU. Publicada em 22 de junho de 2015. Consulta em 10 de
outubro de 2019.
87
sacerdote cristão ortodoxo, Alexandr Mien, assim se expressou, tendo por base o
contexto judaico, romano e grego dos tempos bíblicos:
Por outro lado, Timothy Keller ressalta em suas análises sobre o Antigo Testamento, que
o Deus do judaísmo, em suas intervenções, muitas vezes havia revirado o sentido das
instituições humanas. Interpretando o sentido das Escrituras, Timothy Keller argumenta que
suas páginas contêm muitas críticas às instituições humanas, apontando suas limitações a
partir de dentro, isto é, dos próprios princípios culturais que as legitimavam. Segundo
Timothy Keller, instituições como a escravidão, o casamento, a religião e as práticas
políticas foram frequentemente abordadas em sua relação com o transcendente. Dessa
maneira, evidenciaram-se injustiças que elas continham, ainda que não se rompessem as
instituições na prática. É assim que, em sociedades fortemente hierarquizadas, muitos
textos bíblicos destacaram deveres de justiça social. E, em muitas passagens, apontou-se
para o caráter transitório dos poderes humanos, com suas iniquidades (KELLER, 2013)
Pode-se tomar como exemplo o próprio livro de Samuel (1Sm), que inicia com uma
breve passagem da vida de Ana, mulher que influenciaria indiretamente a história de Davi,
pois ela seria mãe do profeta Samuel, aquele que por orientação do próprio Deus
identificaria o jovem Davi e o escolheria para reinar sobre Israel. Ana era uma das duas
esposas de um homem chamado Elcana. Ela era estéril e, portanto, duplamente frustrada,
vivendo uma culpabilidade pessoal e social por não preencher o papel esperado de mãe. O
marido, no entanto, ―a amava‖ (1Sm, 1-8) a ponto de despertar ressentimento da outra
esposa, mãe de vários filhos, que é descrita como provocando e humilhando Ana. Em uma
das visitas anuais da família ao Templo, Ana fez a promessa de que se tivesse um filho, o
consagraria a Deus. Ela finalmente engravidou e, por ocasião da entrega da criança ao
guardião do Templo para que fosse criado para o serviço de Deus, o texto narra a oração
em forma de cântico que Ana fez para agradecer. Além de alegria e louvor, suas palavras
precisamente exaltam o poder divino revertendo os poderes e as hierarquias terrenas,
situando-as em plano secundário diante dos desígnios divinos. Eis algumas frases
elucidativas, ditas por uma mulher, que há pouco ―vivia amargurada‖:
(...)
Javé faz o pobre e faz o rico,
Ele pode humilhar e também exaltar.
Levanta da poeira o fraco,
Justamente a parte supostamente mais frágil daquela família, Ana, entoaria esse cântico
que ficou registrado no texto bíblico e que fala bem mais do que dela própria. A notar a
crítica do poder que se alcança pelo emprego de força. Seu filho Samuel veio a ser um
poderoso líder religioso, junto a quem Davi iniciou sua longa carreira. Em suma, essa
narrativa bíblica, seguindo-se o argumento de Timothy Keller, desvela no interior daquele
universo cultural elementos de crítica às instituições e aos costumes; na linguagem religiosa,
o cântico de Ana expressa clamores por justiça existentes.
Essa argumentação merece atenção, uma vez que os textos da tradição bíblica também
expressam a cultura patriarcal, apresentam as mulheres e os homens em seus lugares
tradicionais e atribuem virtudes a essas divisões, em desfavor das mulheres. É o que bem
destaca a teóloga feminista brasileira Ivone Gebara, que se engaja em um ―trabalho de
desconstrução da teologia patriarcal‖. Essa teologia, segundo ela, é marcada por uma
simbologia masculina:
89
3. A ação de Abigail
Precisando de víveres, Davi enviou mensageiros até Nabal, que se encontrava nas
redondezas por ser época de tosquia das ovelhas. Foram pedir-lhe mantimentos, lembrando
na mensagem que pastores que trabalhavam para Nabal haviam estado próximo das tropas,
tendo sido bem tratados e recebido proteção. No entanto, o pedido foi negado com
veemência por Nabal, com a justificativa de que ele desconhecia quem era Davi e
suspeitava que pudessem ser aproveitadores: ―Será que vou pegar meu pão, minha água e
as ovelhas que abati para meus tosquiadores, e entregar a homens que nem sei de onde
vêm?‖ (1Sm 25, 10-11). Os mensageiros retornaram e relataram o ocorrido a Davi, cuja
reação foi convocar 400 de seus homens para ir até a propriedade de Nabal e lá matar todos
os homens que encontrassem.
Contudo, um dos rapazes que presenciaram o encontro avisou Abigail do que ocorrera.
O texto descreve, então, a pronta e meticulosa reação de Abigail, tomada sem que o marido
soubesse.
... Abigail pegou duzentos pães, dois odres de vinho, cinco ovelhas
preparadas, cinco medidas de trigo tostado, cem cachos de uvas
passas, mais duzentos doces de figo, e carregou tudo sobre os
jumentos. Depois disse a seus rapazes: „Vão na frente, que eu irei
em seguida‟. (1Sm 25, 18-19).
Durante a viagem, ela encontrou justamente com Davi e seus homens em marcha
rumo a sua casa. O texto narra a atitude e os argumentos dela para dissuadi-lo, que podem
ser interpretados como uma diplomacia de paz.
Prostrada aos pés de Davi, ela disse: Meu senhor, a culpa é minha.
Deixe que sua serva lhe fale (...) Agora, meu senhor, pela vida de
Javé e pela sua: é Javé que o impediu de derramar sangue e de
Na introdução aos livros de Samuel, na edição da Bíblia aqui utilizada, consta a seguinte informação quanto
ao contexto histórico dos livros. Tratava-se de um período em que os reis de Jerusalém buscavam ampliar seu
território e domínio na região. É, também, o período em que nasce de fato um Estado em Jerusalém e em que
se faz necessário respaldar as conquistas e dar uma identidade a esse Estado. Nesse movimento insere-se a
iniciativa dos escribas de Jerusalém de reunir tradições da região, orais e escritas. Os livros de Samuel são
frutos dessa iniciativa (p. 302).
fazer justiça por suas próprias mãos. (...) Esta benção que sua serva
lhe trouxe seja dada aos rapazes que o acompanham. Eu lhe peço:
perdoe a falta de sua serva, que Javé não deixará de lhe dar uma
90
casa estável. Porque meu senhor combate as guerras de Javé e
nada de mal lhe acontecerá em toda a sua vida. (...) Quando Javé
cumprir tudo o que prometeu a meu senhor, o bem sobre você, ele o
constituirá chefe sobre Israel. Então meu senhor não há de ficar
perturbado nem com remorsos por ter derramado sangue sem
motivo, ou por ter feito justiça com as próprias mãos. Quando Javé
tiver feito o bem a meu senhor, você se lembrará de sua serva. (1Sm
25, 24-31)
Eis, pois, o exercício efetivo do poder por uma mulher sobre um conjunto de homens
armados para o conflito, sobre o comandante, bem como sobre seu marido, que ignorava a
própria vulnerabilidade diante do ataque que se avizinhava. Abigail lançou mão de
argumentos e posturas de paz e concórdia, que interpreto como uma diplomacia da paz.
Uma leitura teológica permite discernir na atitude de Abigail a característica concepção cristã
de poder como serviço, como diálogo e reconhecimento do outro e não como domínio
sujeição.
Abigail tornou-se uma das esposas de Davi após a morte de Nabal. E ela deixa, então, a
cena principal do livro. Duas leituras sociológicas são possíveis a partir do episódio. Na
primeira leitura, considera-se que a narrativa enfatiza o padrão tradicional de relações
sociais de gênero, com mulheres e homens atuando dentro dos papéis convencionais.
Registra, no entanto, a iniciativa de uma mulher fazendo-se ouvir pelo poderoso interlocutor.
Na segunda, pode-se interpretar uma mulher desconstruindo, na prática, a ordem
hierárquica de gênero, mesmo que de modo temporário. O registro de sua história no texto
bíblico já é um sinal de uma desconstrução possível. Sugere a possibilidade de outro
modelo de relações sociais de gênero, com novos entrecruzamentos das fronteiras do
feminino e do masculino e favorecendo novos intercâmbios de saberes, habilidades e
maneiras de agir.
De fato, olhar a sociedade sob o prisma das relações sociais de gênero significa tratar de
fronteiras socialmente construídas, como se discutiu acima (Fraser, 2016). O encontro entre
Abigail e Davi deu-se nos marcos dessas fronteiras. Mas, Abigail avançou além do papel
91
feminino de então. Em um momento de conflito, ela agiu sozinha perante um exército para
defender a casa e a família, lançando mão de uma inteligência política que se mostrou
superior à prática que seria adotada por Davi, que era a resposta bélica a um gesto
ofensivo. Sem armas ou posição pública reconhecida, reverteu uma decisão de combate
com argumentos de paz e perdão. É lícito concluir, portanto, que ela questionou a estreiteza
das relações de gênero para além de seu tempo, desconstruindo-a em certo sentido.
Abigail iluminou essas possibilidades. Ela mostrou a validade da voz da mulher e de sua
abordagem do problema. Abigail induziu um chefe a aquiescer a outra forma de resposta:
entendimento no lugar da lógica das armas. Desse modo, ela atuou segundo um protocolo
coerente com anseios de justiça mais ampla. Em suma, no encontro entre Davi e Abigail
mantiveram-se os campos separados de gênero. Mas, nas palavras de Pierre Bourdieu,
referidas por Joan Scott (2019), o caráter de ―ilusão coletiva‖ dessas divisões ficou
momentaneamente claro. E, portanto, abria-se o caminho para sua desconstrução.
Antes de concluir, vale fazer referência a outra breve passagem do Antigo Testamento
que tem interesse para uma análise crítica das relações de gênero em contexto patriarcal.
Trata-se do livro Provérbios, cuja conclusão apresenta o que seria um tipo ideal feminino. O
texto enaltece a figura da mulher ―de valor‖, isto é, virtuosa (Pr 31, 10-31). Os atributos que
caracterizam sua virtude inscrevem-se todos na posição social da esposa, mãe e cuidadora
da família. Todavia, o texto dá à personagem tamanha força pessoal – e social – que
também possibilita uma leitura crítica das relações de gênero naquele contexto. Com efeito,
as virtudes da mulher de valor estão como que a transbordar os limites da posição e,
portanto, das hierarquias sociais ligadas ao gênero.
92
Em primeiro lugar, fala-se uma mulher à frente dos negócios da família, não apenas
gerenciando as atividades de produção, inclusive a mão de obra, como também
comercializando os produtos e sendo ela mesma artesã. Ela é, ademais, previdente e
generosa.
A notar a bela metáfora que compara a mulher a ―navios mercantes‖, a sublinhar sua
capacidade de multiplicar recursos que beneficiam, em última instância, a toda a cidade. É o
que sugere esse trecho: ―Dêem a ela o fruto de seu trabalho, e que suas obras a louvem nos
portões da cidade‖. (Pr 31, 31) Ela também pratica a caridade, virtude central naquela
cultura, pois ela ―abre a mão para o pobre e estende o braço para o indigente‖ (Pr 31, 20).
Assim como na história de Abigail, a descrição elogiosa da mulher de valor está quase
que a denunciar a estreiteza da ordem social de gênero que divide e hierarquiza, pois a
sabedoria se constrói em todo o tecido da sociedade. A mulher ideal tem uma posição na
cidade, um papel na educação. O homem ocupa a função política, mas é reconhecidamente
apoiado pela força da mulher que cuida não só das tarefas domésticas no sentido
contemporâneo, mas das tarefas da produção e da reprodução nas quais, de fato, ela é
descrita como grande protagonista. A sabedoria ultrapassa as fronteiras entre espaço
público e privado, está no masculino e no feminino.
93
5. Conclusões
A narrativa de Abigail pode ser lida como desconstrução do gênero? Sim. Ela trouxe
para a negociação habilidades sociais que se mostraram adequadas na produção de uma
saída pacífica para o conflito. Sua racionalidade falou mais alto e evitou mortes injustas e o
peso que isso teria na carreira de um rei que havia sido escolhido por orientação divina.
Suspendendo as fronteiras da convenção, Abigail aplicou uma inteligência política moldada
por valores de paz e serviço ao outro.
94
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95
MULHER E ESCRAVA: UMA ANÁLISE DO TRABALHO DE GANHO EM BELÉM
DO GRÃO-PARÁ DE 1840 A 1860
https://doi.org/10.29327/527231.5-7
Adria da Silva Brito
Introdução
96
cabano, e dava início ao processo de ―pacificação‖ (BEZERRA NETO, 2001, p. 100), a
província do Pará ainda ressentia os abalos na produção e na comercialização de
gêneros, e a falta da população indígena, negra e branca, de todas as ―classes‖,
causada pela devastação e mortandade da revolução cabana, muitos foram obrigados
a fugir de seus lugares (MOURA, 2009, p. 107). Na fala do presidente Soares d‟ Andrea
(1838), a Província se encontrava em um estado lamentável, certamente pela
desestruturação da economia, afetado pelo ambiente violento e inseguro que os
conflitos gerariam. Os conflitos que espalharam pelo Grão-Pará e Amazônia causaram
inúmeros transtornos à produção e ao comercio paraense, sendo necessários alguns
anos para que a província se recuperasse dos abalos sofridos.
97
eram tão temidas pelas autoridades que estavam a frente do governo do Grão-Pará,
especialmente no pós- cabanagem (PALHA, 2001, p. 19). Segundo Vicente Salles (1971),
o negro que estava presente na cidade gozava de maior liberdade, pois ele extrapolava a
vida doméstica, devido muitas das vezes ter que trabalhar fora para sua própria
subsistência, além de possibilitarem ao senhor uma vida completamente ociosa e estéril,
como escravos de ganho ou de aluguel, estavam pelas ruas da cidade de Belém. Deste
modo este trabalho procura entender, quais funções e atividades as escravizadas
ocupavam na cidade de Belém durante o período de 1840 a 1860? Quais eram as
condições a quais a negra eram submetidas no Brasil escravista?
Uns dos primeiros trabalhos sobre a mulher negra no Brasil, foi o de Maria
Odila Leite da Silva Dias (2005), Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX,
publicado em 1984, Dias analisa o cotidiano das mulheres durante a escravidão, e as
estratégias de sobrevivência das padeiras, lavadeiras e vendedeiras, bem como
relação entre senhoras e ganhadeiras. Outro trabalho publicado na mesma década, é
o de Sonia Giacomini (1988), MULHER E ESCRAVA: uma introdução histórica ao
estudo da mulher negra no Brasil, ela ressalta a forte exploração que as mulheres
negras sofriam, e olhar estereotipado dos viajantes sobre o corpo da mulher negra,
além de criticar as análises de Gilberto Freyre.
A história das mulheres, foi excluída da historiografia tradicional por muito tempo,
no entanto muitas mulheres começaram a lutar por seus direitos de escrever e de se ver
98
representadas na história, já que sempre se valorizou a história dos homens, feitas por
homens e para homens, enquanto ás mulheres ficaram a margem da história. Desafiando
um sistema patriarcal, as mulheres lutavam pelo alargamento das temáticas e inovação
nas produções intelectuais que demonstrassem que, as contribuições femininas para a
história são necessárias para compreensão dos acontecimentos que envolvem a
história em todo seu complexo. Margareth Rago (1995, p.81) em seu texto diz que é
necessário refletir sobre a História, pois segundo ela, ―esta não narra o passado mas
constrói um discurso sobre este, trazendo tanto o olhar quanto a própria subjetividade
daquele que recorta e narra, à sua maneira, a matéria da história.‖, Rago (1995) critica
a história escrita somente por historiadores, e se revermos a historiografia tradicional
do Brasil colonial, pouco se ver sobre a mulher, ou seja, a perspectiva da participação
da mulher é quase pequena, se comparada à outros temas, que narram as ações
individuais e coletivas marcadamente masculinas, como se a história nos contassem
apenas dos ―homens e suas façanhas‖.
O homem foi objeto de vários estudos, principalmente o homem branco, seja pela
quantidade de fontes existente sobre eles, ou seja pelos que escreveram a história sempre
estiveram interessados em ressaltar as trajetórias, a vida, o trabalho, os fatos heroicos, as
contribuições masculinas, ou seja, pelo fato de ocultar, o que não lhes interessa, que são:
as mulheres, as negras, os negros, indígenas, crianças, trabalhadores rurais, entre outras
infinidades de sujeitos que fazem e sempre fizeram parte da história, mas que estiveram
oculto dela até recentemente (MOTT, 1988, p. 11).
99
de análises, e devem ser entendidos ―enquanto „produto social‟, isto é, como resultado de
um oficio exercido e socialmente reconhecido, constituindo-se como um objeto de
expectativas, posições e representações especificas‖, mas que carregaram em si vários
―pedaços de significação‖ que ao serem juntados podem nos oferecer pistas
importantes para nossos temas (p. 14,15). Baseada nos métodos e procedimentos
adotados pela micro história, sendo esta uma redução na escala de observação, em
uma análise microscópica, baseada em um estudo intensivo do material documental
(LEVI, 1992, p. 138,139).
100
ganho, diz que eles se tornaram um tipo característico da cidade colonial, e que era muito
comum os negros exercerem atividades comerciais no mercado urbano.
Os negros da cidade, ―(...) gozavam de maior liberdade. Extrapolavam a vida
doméstica. As vezes tinham que trabalhar para sua própria subsistência, além de
possibilitarem vida completamente ociosa e estéril aos senhores‖ (Ibidem p. 114).
Muitos senhores viviam às custas do trabalho de ganho dos seus escravos, pois
alugavam a sua força de trabalho, à um terceiro para auferir lucros e quando estes não
eram alugados, ao final do dia eram mandados as ruas para venderem, e deviam no
final da jornada, entregar aos seus senhores uma quantia previamente estabelecida,
sistema chamado de jornal, é importante frisar que mesmo que a quantidade não
fosse atingida, e nem mesmo ultrapassada, o importante era pagar e não faltar com o
acordo, para evitar punições (ALGRANTI, 1988, p.49). Segundo Marilene Silva (1988,
p.118), os senhores estipulavam a renda diária, que acordo com sexo, a idade, e
atividade desenvolvida pelo escravo na cidade.
Através dos anúncios presentes nos periódicos paraenses das décadas de 1840
a 1860, podemos perceber não só as diversas atividade que as escravas de ganho eram
empregadas, mais também a modalidade – alugadas, vendidas e pretendidas – e ainda a
idade que possuíam, as qualidades, o valor do serviço, e o lugar de negociação. Por
exemplo, no anúncio abaixo, se evidencia casos de sujeitos que se propunham a alugar
mulheres escravas, para empregá-las nas atividades de ganho.
101
esta tipografia que se dirá quem precisa (Treze de Maio, ano 6,
n° 289, 7 fevereiros de 1854, p. 4).
O anuncio acima se trata de uma pessoa, que desejava alugar uma escrava
para vender na rua, ou seja, para empregá-la na atividade de ganho. De acordo com
Mott (1988, p.23), as escravas da cidade, além dos serviços domésticos, efetuavam
outra jornada de trabalho fora da casa, ―alugavam seus serviços para terceiros; faziam
serviços diversos, como lavar ou até mesmo prostituir-se; ou então, e principalmente,
vendiam todo tipo de mercadorias – arranjando desta forma o necessário para
subsistência daquela família‖. A maioria dos pequenos proprietários – caso do anunciador
acima ―casa de pequena família‖ – quando não viviam do aluguel de serviços
dos escravos, viviam da renda obtida do serviço de ganho dos escravos,
principalmente esses que eram pequenos e médios proprietários, segundo Maria Odila
Dias (1988, p.124) viver dos serviços de ganho dos escravos, era costume no Brasil
colonial, desde do século XVII, especialmente entre as mulheres mais pobres, assim
também como outros segmentos sociais, que almejavam obter lucros. Para Dias:
102
que serve o senhor (Publicador paraense, ano 1, n° 64, 24 de
dezembro de 1849, p.4).
Com relação a venda ou aluguel das escravas na província do grão Pará, foram
encontrados anúncios que descreve que as escravas haviam entre 35 a 40 anos. Nos
anúncios de venda ou aluguel, elogiavam demasiadamente as qualidades das escravas,
por exemplo, diziam que eram „boa lavadeira‟. Segundo Mattoso (1988, p. 111), quando
se tratava de vender um escravo, não se economizava os elogios às suas qualidades,
e os periódicos descreviam os como ―indivíduos estimáveis e capazes‖. Era comum
ainda dar destaque ao enunciado as qualificações das escravas, isto é, aos trabalhos
que elas poderiam realizar. No primeiro anúncio a escrava de nação era vendedeira e
compradeira, além de cozinhar e lavar, sabia cuidar de todos os arranjos de uma casa.
Nos outros anúncios, as escravas também haviam mais de uma qualidade, a exemplo
a mulata de 35 a 40 anos, além de realizar quase todo serviço da casa sabia „ganhar
na rua‟, e a preta lavadeira que sabia costurar e rendar. No entanto seria um equívoco
considerar somente como escrava de ganho, o trabalho chamado ganho de rua
(vendedoras), para Mattoso (1988):
103
anunciavam pessoas que queriam alugar, comprar ou vender negras que
soubessem realizar o „arranjo‟ de uma casa. Vejamos nos anúncios abaixo:
104
século XIX, identificou: cozinheiras, doceiras, costureiras, tecedeiras, passadeiras e
outras. Eram essas habilidades particulares que diferenciavam algumas escravas no
mercado urbano.
Da mesma forma que era comum o anuncio de venda e aluguel das escravas,
era hábito também solicitar os serviços das escravas, ou ainda solicitar a compra, e
neste caso, o requerente delimitava que tipo de habilidade que a escrava deveria
possui. No anúncio abaixo, se preferia uma mulata que tivesse idade entre 12 a 16
anos, que soubesse costurar, fazer doces e engomar, vejamos:
Assim também, como as lavadeiras, que saiam da casa dos seus senhores
para os igarapés, rios e fontes de água, visto que em Belém não possuía um sistema
de agua canalizada. Henry Battes (1979, p.14), realizando um passeio pelas
Mongubeiras, descreveu que ―as terras vão novamente em declive até se tornarem
pantanosas, e é aí que ficam situados os poços públicos‖, e se deparou com um grupo
de trabalhadoras, ― Nesse local é lavada toda a roupa da cidade, trabalho esse que é
feito por um bando de tagarelas escravas negras‖, logo se supõem que as lavadeiras
também transitavam pelas ruas das cidades, pois estas passavam o dia lavando e
esperando a roupa secar, e quando voltava com as roupas já limpa e seca, ainda
tinham que engomar, mesmo que ―sofrivelmente‖ e cozinhar, como a preta Roza, que
estava sendo anunciada para venda pelo Capitão Francisco de Almeida da Costa
Soutto Maior. A historiadora Conceição Maria Rocha de Almeida (2010, p.189) informa
sobre o árduo trabalho das lavadeiras em Belém:
105
engomadas. O cuidado no transporte da roupa lavada poderia
evitar momentos de desassossego e contrariedade as
lavadeiras, pois caso as peças fossem alvejadas com
respingos de lama e similares indesejáveis, elas precisariam
repetir todo o processo da lavagem.
Portanto, as negras lavadeiras, saiam das casas dos seus senhores para
lavar as roupas, nos igarapés, rios e poços, ou seja, fora do convívio senhorial,
configurando-se a mobilidade como uma característica essencial as atividades
desenvolvidas no espaço urbano belenense, como a de lavagem de roupas.
106
eram as que mais tinham ofícios e sabiam realizar diversas tarefas pelo que pode
analisar, mais também existiam anúncios que almejavam moças entre 12 a 16 anos de
idade, de acordo com Soares (1994, p. 27), preferiam-se as moças novas, pelos laços
de submissão e dependências que se formaria o quanto antes, já que os serviços da
casa requeriam uma maior intimidade, preferiam meninas novas para educar conforme
os costumes dos seus senhores.
Outra ocupação que exigia uma maior intimidade com a famílias, eram as
amas-de-leite, apareciam nos anúncios na modalidade de aluguel e venda, porém nem
todas as escravas eram aptas para essa atividade, dependia se as escravas estavam
em tempo de lactação ou não, ou se estavam dentro dos critérios exigidos (SOARES,
1994, p.31). No período colonial, as mulheres brancas não tinham por hábito
amamentar seus filhos, devido muitas das vezes estarem fora das condições, ou até
mesmo por gestações com pouco intervalo de tempo (MOTT, 1988, p.22), em Portugal
o costume de relegar a amamentação era uma questão de moda ou status (FREYRE,
1988, p.359), já no Brasil as amas de leites serviram para atender a uma necessidade
higiênica, período este que não havia mamadeiras, leite em pó, podemos avaliar a
importância que amas de leite adquiriram neste contexto.
Com relação as amas de leite, trouxemos para a análise três anúncios, de venda,
aluguel e procura. Nos anúncios era corriqueiro descrevem a idade da escrava e o motivo
pela qual ela teria leite, geralmente se anunciava o motivo, principalmente quando elas
teriam perdido o filho, pois escravas com filhos, eram mais difíceis de ser vendida como
amas de leite, e quando possuíam filhos, no caso do anúncio de aluguel, o anuncio
destacavam outros atrativos ou qualidades – ―muito sadia‖ –, era recorrente destacar que a
escrava era jovem e sadia, e, portanto, era adequada para amamentar. Além da venda e
aluguel, nos anúncios dos jornais, havia a procura pelos serviços, e
107
sempre procuravam por amas sadias e sem filhos – ―que seja bem sadia, e se for sem cria
não se duvidará pagar melhor‖ – o motivo da escrava não possui filho, era uma das
exigências do comprador, e que por este motivo, poderia até pagar melhor. Segundo
Soares (1994, p. 31), ―As crias eram consideradas um peso para muitos senhores, pelo
menos até crescerem e poderem ser lançadas no mercado de trabalho‖.
Como nos anúncios das escravas domésticas, nos anúncios das amas de
leite também apresentam local no qual o comprador deveria se dirigir, e com quem
deveria falar. Assim podemos perceber que havia uma semelhança entre quase todos
os anúncios, geralmente seguia se uma ordem, onde se anunciava primeiramente
quem estava a aluguel ou a venda, segundo as qualidades seguidas de elogios, e por
último o local e o nome do negociador.
108
Das atividades aqui já citadas praticadas pelas trabalhadoras escravas, e
comprovadas através dos anúncios de jornais, podemos concluir que as escravas de
ganho efetuavam tais atividades, e em muitos casos possuíam mais de uma
habilidade, não foi um dos nosso objetivos quantificar quantas vezes as escravas
apareciam nos anúncios dos jornais, mas sim analisar os tipos de trabalhos que
realizavam enquanto escravas de ganho, e de acordo com anúncios analisados, as
mulheres negras ocupavam as atividade de: lavadeira, cozinheira, engomadeira,
costureira, vendedora, compradeira, doceira, rendeira e ama de leite. Grande parte
dos anúncios revelam que as escravas estiveram ligadas as atividades do lar, e nem
por isto foram excluídas do âmbito das ruas.
Conforme o contrato verbal que havia entre senhor e a escrava, a escrava sairia
da propriedade do seu senhor para trabalhar no âmbito da rua, realizar seu trabalho,
109
voltar ao final do dia, ou no final da semana se caso dormisse fora, e lhe pagar a
quantia previamente estabelecida entre eles. Na rua, na praça, ou no mercado sem
controle ou supervisão direta, por parte do seu senhor, as escravas não tinham tão
livre arbitro, como imaginamos. Vicente Salles (1971, p.174) ao mencionar que os
negros de ganho ―gozavam de relativa liberdade‖, refere-se a liberdade do escravo
poder sair do lar do senhor, e realizar seu trabalho para fora, pelas ruas, e não a uma
liberdade da qual o escravo estaria livre do controle do senhor, e das autoridades.
(...)a conduta de uma grande parte dos chefes de família, que por
segurar o ganho de meia pataca diurna dos seus escravos não
restejam os meios de que estes servem para adquirir o salário;
mas antes permitem que eles consumam o tempo à sua vontade;
que pernoitem fora das casas, e vaguem pela cidade,
110
deste modo os mesmos senhores são a causa de todas a
possibilidade de comunicar com foragidos militares e
marítimos, e escravos, e até com flagiciosos, que cobertos da
treva da noite lhes trazem todas as suas aquisições pela maior
parte depredatórias para permutar opor farinhas, tabaco,
sabão, armas de fogo, pólvora, chumbo etc.; de cuja traficância
sórdida, e grangearia criminosa provém aos escravos e não
sómente o que precisam para satisfazer a seus senhores, mas
muito principalmente o que basta para nutrir o seus vícios, e
seus dissolutos costumes com que depravam os outros da sua
condição, e circunstâncias, empregando noites e dias em os
iniciar o mistério dos nefários projetos (BAENA, 1969, p. 331) .
Baena falava, que devido os senhores viverem do trabalho de ganho dos seus
escravos, e estes ficarem até tarde na rua, elas causavam desordens na cidade, e isto
deu início aos ―nefários projetos‖, que fez com que medidas mais severas fossem
tomadas pelo estado. Uma vez que, o comércio estabelecido por escravos, começou a
se mostrar prejudicial a ordem da cidade, foram introduzidos os Códigos de posturas
Municipais, artigo que proibia os escravos de vender mercadorias e de alugar casas.
111
ganho demorado dentro da praça, e os escravos que ali forem mandados por seus
senhores fazer compra não deveram demorar-se além do tempo necessário para
efetuá-las” (C.L.P.G.P., t. 24, parte 2.). Não somente os escravos que iam realizar as
comprar estavam sobre o controle das autoridades, os escravos que eram
compradores também eram vigiados e controlados pelo estado.
Considerações finais
112
controladas pelas Leis e pelos Códigos de postura que regulamentavam a sua
presença na rua e no mercado, elas não deixaram de traçar esses laços de
relacionamentos e sociabilidades.
REFERÊNCIAS
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Sousa Franco, presidente da Província do Pará quando abriu a Assembleia Legislativa
Provincial no dia 15 de agosto de 1839. Pará, Typ. De Santos & menor, 1839.
Falla dirigida pelo exmo. Sr. Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho, presidente da
Província do Gran-Pará, a Assembleia Legislativa Provincial na abertura da sessão da
sexta legislatura no dia 1º de outubro de 1848. Pará, Typ. De Santos & filhos, 1848.
Legislação Provincial: Coleção das Leis da Província do Gram Pará, tomox, 1848 (1ª
parte), artigo 105 e Regulamento do mercado público, artigo 54.
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114
V ENCONTRO AMAZÔNICO SOBRE MULHERES E GÊNEROS – GEPEM
19 a 21 de novembro de 2019
Universidade Federal do Pará (UFPA)
AT1 - Gênero, identidade e cultura
https://doi.org/10.29327/527231.5-8
2
Lorena Esteves
3
Camila Leal
4
Danila Cal
Universidade Federal do Pará
Resumo
Este trabalho possui o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ, por
meio do projeto de pesquisa “Mídia, debate público e negociação de sentidos sobre o trabalho doméstico” e da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, por meio de bolsa auxílio de demanda
social.
2
Doutoranda do Curso de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia, da Universidade Federal do Pará
(PPGCOM/UFPA), bolsista Capes. Integrante do grupo de pesquisa Comunicação, Política e Amazônia (Compoa) e
do grupo de pesquisa Observatório de Comunicação, Culturas e Resistências na Pan-Amazônia. Email:
estevesjornalismo@gmail.com.
3
Estudante do curso de Comunicação Social, Jornalismo, da Universidade Federal do Pará (UFPA), bolsista do
Projeto de pesquisa “Mídia, debate público e negociação de sentidos sobre o trabalho doméstico”. Integrante do
grupo de pesquisa Comunicação, Política e Amazônia (Compoa). Email: leal.jornal@gmail.com.
4
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM) e da Faculdade de
Comunicação (FACOM), da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do grupo de pesquisa Comunicação,
Política e Amazônia (Compoa) e membro do grupo de pesquisa Observatório de Comunicação, Culturas e
Resistências na Pan-Amazônia. Email: danilagentilcal23@gmail.com.
115
Abstract
We investigated the representations of domestic workers in soap operas by TV Globo, before and after the
promulgation of PEC Households (66/2012).We analyzed the soap operas “Avenida Brasil” (2012), “A
Regra do Jogo” (2015) and “A dona do pedaço” (2019), identifying how the domestic workers are built,
the social contexts, as well as the relationships of power and intersectional issues, considering that soap
operas are central in the thematization of Brazilian sociocultural realities (HAMBURGUER, 2011). As a
theoretical contribution, we work with media, gender and class (BIROLI; MIGUEL, 2015),
intersectionality (HOOKS, 1984, 2015; DAVIS, 2016; CREENSHAW, 2004) and the situation of women
in Brazilian society (GONZALEZ, 1984; CARNEIRO, 2015). The results point to the reproduction of
stereotypes, intersectional invisibility and tensions in the power relations between bosses and workers.
Introdução
A PEC das Domésticas (PEC 66/2012) foi resultado da árdua luta e reivindicação de um grupo
subalternizado desde o Brasil-Colônia: as mulheres, sobretudo, mulheres negras. Segundo dados da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2015, 88,7% das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os)
entre 10 e 17 anos no Brasil eram meninas e 71% eram negras(os). Em 2016, o Brasil tinha 6,158 milhões
5
de trabalhadoras(es) domésticas(os), dos quais 92% eram mulheres . Até chegar a sua forma definitiva em
2016, garantindo todos os direitos previstos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que desde
sua consolidação em 1943 exclui a classe trabalhadora doméstica, foi um longo caminho de lutas por
reivindicações mínimas de direitos, como por exemplo o direito ao aviso prévio, depois de um período de
prova de seis meses, instituído pelo decreto- lei n°3.075 de 27 de fevereiro e 1941 (PALUDETTO, 2017,
p.151).
Uns dos marcos da reivindicação foi a Lei n° 5.859 de 1972 que reconheceu o trabalho
doméstico como função e estabeleceu a assinatura da carteira profissional para a categoria e também a
Constituição Brasileira de 1988 que trouxe benefícios como assegurar aos (às) trabalhadores(as)
domésticos(as) o direito a salário mínimo, 13º salário, repouso semanal remunerado, férias, licença
maternidade e aposentadoria. Mas só recentemente Com a Lei Complementar 150/2015, foi possível
chegar à uma equiparação entre as demais categorias (PALUDETTO, 2017, p. 182) validada em 2016
pela presidenta Dilma Rousseff.
Ainda que no papel tudo esteja regulamentado, no cotidiano a realidade é outra. Segundo a OIT,
no Brasil apenas um terço das trabalhadoras(es) domésticas(os) possuem carteira assinada. A relutância
5
Disponível em: PNAD Contínua Trimestral do IBGE. Organização internacional do trabalho.
<https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-domestico/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 08 Nov 2019.
116
na garantia de direitos para um grupo majoritariamente feminino que tem como profissão o trabalho
doméstico, visto também como trabalho feminino e que se consolidou sob a base de um pensamento
escravocrata e a insistente subalternização sob a qual esse grupo ainda é colocado mostra a necessidade da
discussão sob a perspectiva de gênero e sobretudo racial, que edifica seu sistema político brasileiro a
partir de um pensamento machista e eurocêntrico, colocando o homem superior à mulher e o branco
superior ao negro.
117
estilo de vida que prevalecem sobre a experiência comum que as mulheres partilham” (HOOKS, 1984, p.
4).
Em outras palavras, a opressão de gênero é comum a todas as mulheres, mas na conjugação com
as intersecções de raça e classe, são produzidas hierarquias que colocam mulheres negras em posição de
maior desvantagem (SAFFIOTI, 1987; CARNEIRO, 2011; GONZALEZ, 1984). O trabalho doméstico é
um caso exemplar da conjugação da discriminação interseccional: a força de trabalho é recrutada entre
mulheres, as quais geralmente provêm daquelas camadas mais pobres e com índices menores de
escolaridade, características sobrepostas por uma forte marca de racialização (BRITES, 2013, p. 428).
Lélia Gonzalez (1984), ao falar, na década de 1980, sobre o lugar da mulher negra na cultura
brasileira, identifica três representações, oriundas do processo de escravização/colonização: a mulata, a
doméstica e a mãe-preta. Lelia explica que o mito da democracia racial exerce sua violência simbólica de
forma especial sobre a mulher negra. Ela explica que no período do carnaval, a mulher negra transforma-
se na mulata “rainha do samba”, “deusa da Marquês de Sapucaí”, fora desse período é a doméstica. A
mulata e a doméstica são figuras provenientes da mucama (a escrava que era vista como prestadora de
bens e serviços, entre eles, os sexuais).
“Quanto à doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e
serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas. Daí ela ser o lado
oposto da exaltação; porque está no cotidiano” (GONZALEZ, 1984, p. 230). A outra figura da negra na
sociedade brasileira é a mãe-preta, vista pelos brancos como exemplo de amor incondicional pelos filhos
das mulheres brancas. Lélia, no entanto, afirma que elas são simplesmente as mães, afinal, são elas que
dão banho, limpam cocô, colocam pra dormir, ensinam a falar e a outra é a branca que pariu os filhos do
senhor. A mãe-preta, portanto, passou os seus valores para a criança brasileira e essa criança é a dita
cultura brasileira que, segundo a autora, fala o “pretuguês”.
Essa sociedade brasileira vive, segundo Gonzalez (1984), uma neurose cultural, neurose porque
nega os sintomas do racismo e do sexismo, acreditando em uma suposta democracia racial e, com isso,
nega aos negros - a mulher, seus irmãos, pai e filhos - o estatuto de “sujeito humano”, trata-os como
objeto e isso repercute em todos os âmbitos sociais, são alijadas/os de sua intelectualidade, desrespeitados
em seus direitos básicos, segregados socialmente por uma divisão racial dos espaços.
Lelia afirma que desde a época colonial até os dias de hoje, há uma evidente separação dos
espaços físicos entre brancas/os e negras/os. O lugar do grupo branco são moradias saudáveis, situadas
em belos recantos da cidade ou do campo, cercadas por policiamento. Já o lugar do negro é o oposto: da
senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais”, os quais também têm a
presença de policiamento, mas, no intuito de reprimir e amedrontar (1984, p. 232).
118
O lugar ocupado pelas trabalhadoras domésticas reflete essa lógica. Estudos do arquiteto e
antropólogo Alecsandro Ratts (2003, citando Lemos, 1976) demonstram que os porões semi-habitáveis,
as dispensas e as cozinhas eram os espaços nos quais as mulheres trabalhadoras domésticas dormiam.
Ratts também fala do surgimento das edículas, casas pequenas, construídas no fundo da casa principal
destinadas às empregadas no período pós-abolição.
comum observarmos que essas lógicas se reproduzem por meio da mídia. “Nas novelas, nas
peças de teatro, as trabalhadoras domésticas são, quase sempre, representadas por atrizes negras”
(SAFFIOTI, 1987, p. 53). A propaganda também contribui para perpetuar estereótipos sobre as mulheres
pobres e racializadas (CRENSHAW, 2002, p. 178).
Contextualizando a telenovela como representação e construção da sociedade,
Não obstante o fato de que muitos temas de importância social podem aparecer como pano de
fundo de diversos enredos ficcionais, muitas vezes, não há a “tentativa de enfrentamento de determinada
questão”, O tema de importância social serve apenas como recurso dramático, como aspecto de
composição de um dos personagens, não há “qualquer tentativa de evidenciar e trabalhar tal tema na
dimensão social” (OLIVEIRA, PAVAN, 2004, p. 10).
Com base no exposto, escolhemos analisar as novelas “Avenida Brasil” (2012), “A regra do
Jogo” (2015) e “A Dona do Pedaço” (2019), identificando como são construídas as personagens das
trabalhadoras, os contextos sociais, bem como, as relações de poder e questões interseccionais,
considerando que as novelas são centrais na tematização das realidades socioculturais brasileiras.
Sabendo que o trabalho doméstico no Brasil é um retrato do sistema político brasileiro, surge
então o objetivo deste trabalho: Analisar as relações de poder, interseccionais e raciais que perpassam a
119
questão do trabalho doméstico nas telenovelas brasileiras a fim de identificar como se dá o debate a
respeito do trabalho doméstico em períodos distintos e decisivos na reivindicação dessa classe
trabalhadora, sabendo que as telenovelas, como tantos autores relatam (FARIA; FERNANDES, 2007;
MOTTER; JAKUBAZKO, 2007; RONDELLI,1997; OLIVEIRA; PAVAN, 2004; BORGES,2007;
LOPES, 2002; HAMBURGER, 2011), são um retrato sociocultural brasileiro e também contribuinte para
a construção de novas realidades.
Para tanto, vamos partir da metodologia da ingenuidade consentida, proposta por Motter e
Jakubaszko (2007), que consiste em pensar, sentir e ver a telenovela pela perspectiva do telespectador-
observador, como num processo de pesquisa da observação participante (p. 57).
Foi feita a análise das três novelas da Rede Globo, por ser a campeã de audiência televisiva,
estando elas situadas nos seguintes períodos históricos brasileiros, relacionados à PEC: “Avenida Brasil”,
quando iniciou o debate a respeito da PEC das Domésticas (66/2012); “A Regra do Jogo”, de 2015,
quando a discussão sobre trabalho doméstico estava em alta, com a Lei complementar 150 e “A Dona do
Pedaço”, de 2019, por ser a mais atual e num período posterior a discussão das domésticas.
Para termos entendimento maior a respeito das personagens, além das descrições das novelas
catalogadas nos sites Memória Globo, Gshow e Teledramaturgia, Analisamos as cenas das empregadas
disponiveis no Globo Play, site que disponibiliza as obras produzidas pela Globo, dentre outras. A busca
foi feita a partir das palavras-chave: “Nome da empregada - Novela”, onde conseguimos catalogar e
assistir 26 cenas de a Dona do Pedaço; 45 cenas de Avenida Brasil; 13 cenas de A Regra do Jogo. Além
do Globo Play procuramos também no Youtube.
Avenida Brasil (2012) conta a história de uma jovem que, desde os 11 anos, planeja um acerto de
contas com a madrasta. Rita, órfã de mãe, era criada, com muito amor, pelo pai Genésio. Tudo muda
quando ele se casa com Carmen Lúcia, a Carminha, uma mulher ambiciosa e dissimulada. Com Genésio,
6
ela se passava por esposa doce e dedicada; com Rita, era uma madrasta má .
A Regra do Jogo (2015) narra a história de Romero Rômulo, um bandido que finge ser herói do
povo. Ele integra a maior facção criminosa do país. Apesar de enganar as pessoas, o mau-caráter é
ludibriado por Atena estelionatária com quem vive um relacionamento conturbado. A trama gira em torno
6
Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/avenida-brasil.htm>. Acesso em:
09/11/2019.
120
de um crime não solucionado, uma chacina, que envolve todo o elenco principal. Os efeitos da chacina
7
movem a trama que também fala de virgindade, traição e violência doméstica .
Em A Dona do Pedaço (2019) Maria da Paz vem de uma família de justiceiros profissionais, os
Ramirez, da cidade de Rio Vermelho, Espírito Santo. Desde pequena ela gosta de fazer bolos, essa rotina
a seduz mais do que as atividades impostas pelo pai, Ademir, que quer transformá-la em uma justiceira.
Ela acaba se apaixonando por Amadeu, advogado formado em Vitória, porém membro do clã rival nos
negócios dos Ramirez, os Matheus. Seu romance é impedido pelas famílias que não aceitam e provocam
uma tragédia que acaba com o casal impedido de ficar juntos e as sobrinhas de Maria sequestradas. Ela
começa uma nova vida com a promessa de reencontrar as sobrinhas e grávida de sua filha Josiane, que
8
diferente da mãe tem um caráter duvidoso .
Categorias de Análise
Objetivando identificar como se deu a trama em torno das empregadas das novelas, possíveis
estereótipos de gênero, raça e classe que colocassem as trabalhadoras domésticas em posições de
subalternidades, foram analisadas as personagens Zezé e Janaína, Avenida Brasil; Dinorah e Conceição,
de A regra do Jogo; e Edilene, A Dona do Pedaço sob as categorias : a) A construção das personagens,
para identificar quem são, onde moram, qual a história dessas personagens; b) Interseccionalidade, para
identificar como são abordados os sistemas discriminatórios que criam desigualdades que estruturam as
posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes; c) Relações de Poder, para identificar as tensões
entre empregadas e patrões e de que maneira se dá, qual discurso é reproduzido nas novelas.
7
Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/a-regra-do-jogo.htm>. Acesso em:
09/11//2019
Disponível em: <http://teledramaturgia.com.br/a-dona-do-pedaco/>. Acesso: 09/11/2019.
121
Quadro 1 - Imagem das personagens analisadas
Janaína e Zezé - Avenida Brasil Dinorah - A regra do jogo
Fonte: Gshow.com.
122
Janaína (Avenida Brasil) trabalha na casa de Tufão há anos na esperança de dar um futuro melhor
para o seu filho, Lúcio, aguentando, inclusive, os maus tratos de Carminha. Porém, tudo muda quando
descobre que a patroa seduziu seu filho e o está utilizando para acobertar seus crimes.
Zezé (Avenida Brasil) é a outra empregada da mansão de Tufão. É muito fiel a sua patroa
Carminha, embora a trate mal na maioria das vezes, criticando os seus serviços. A participação de sua
personagem na novela se resume ao que a família de Tufão está fazendo ao longo da novela. Ela serve de
ponte para o drama principal. Costuma fazer o sinal da cruz e pedir ajuda a Deus quando a patroa está de
mal humor. Inclusive, Carminha já chegou a mandar a doméstica ir fazer as compras rolando, em
referência ao sobrepeso de Zezé.
Zezé e Janaína estão juntas na maioria das cenas. Vivem falando da vida dos patrões. Janaína é
fofoqueira assim como Zezé, contudo possui sua própria história, seu amor por Lúcio, seu filho e o medo
de que ele acabe se desvirtuando, principalmente a partir do momento em que se apaixona por Carminha.
Ao final da novela Zezé continua trabalhando para a família e Janaína vai embora com o filho Lúcio.
Dinorah (A regra do jogo) é a empregada de Feliciano e trabalha na cobertura do patrão há anos
sem ser paga. É a empregada que destoa das outras já analisadas. Por não ser paga, Dinorah age como
qualquer outro membro da família, senta e assiste tv, dá sua opinião sobre a vida dos patrões e é bastante
debochada. Não usa farda. A relação entre ela e Feliciano é outro fator interessante, porque ambos
demonstram ter um carinho muito grande um pelo outro. Ela faz questão de fazer as coisas para ele e ele a
trata de maneira carinhosa, chamando-a de querida, várias cenas mostram os dois jogando baralho,
xadrez, enquanto conversam.
A história de Dinorah se passa toda entre o núcleo familiar dos patrões e o ponto alto da sua
trajetória é quando finalmente o patrão paga os salários atrasados. Mesmo ficando rica, ela prefere
continuar a ser empregada. Foi a única novela que retratou de maneira bem aberta a importância e os
direitos e benefícios que as empregadas têm assim como qualquer outro trabalhador de carteira assinada.
Apesar do papel, Dinorah não chega nem a ser citada entre os personagens no portal memória globo.
Conceição (A regra do jogo) é a empregada da mansão Stewart. É casada com Nonato, o
motorista da família para quem trabalha. Descobre que ele teve um caso com uma das patroas, mas
perdoa. Aparece pouco na trama, por isso não foi possível identificar muito a respeito da trabalhadora.
Diferente de Dinorah, que tinha seu núcleo fixo e aparecia na maioria dos episódios, seu ponto alto de
participação na novela é quando revela que seu marido é pai dos filhos da patroa, porque a patroa está a
ponto de se casar. Aparentemente, ela não podia contar, porque estava sendo chantageada pelo noivo da
patroa. Ela é branca e usa uniforme.
123
Edilene (A dona do Pedaço) é uma jovem pobre filha do motorista Cosme, que trabalha na casa
de Otávio e Beatriz, uma família rica. Ela teve a oportunidade de trabalhar como empregada na casa dos
patrões do pai, que fica emocionado por ter a filha perto de si. Porém Otávio, velho rico que figura a
imagem do homem mulherengo, fica interessado pela beleza da jovem de 21 anos e começa a trocar
olhares com ela. No início, ela fica receosa, mas acaba cedendo e se torna amante do patrão. Ela gosta
dele, mas mais que isso, vê nele uma oportunidade de deixar de ser pobre e mudar de vida. Acredita que
dar um filho para ele o fará largar a esposa e ficar com ela. Ela sempre encontra com ele em motéis e
enquanto ele toma banho fura as camisinhas. Até que fica grávida. Quando conta para ele não recebe a
reação que esperava, ele exige que ela aborte o bebê e ela chora dizendo que não quer, mas acaba
cedendo. Depois de pedir indicação à uma amiga, vai a uma clínica clandestina, sofre hemorragia e morre
no hospital. Seu patrão esconde de todos sua participação na morte da moça.
Para visualizar a importância das personagens na trama, tentamos identificar o caráter pedagógico das
telenovelas proposto por (LAROSSA, 1999) e discutido por (MOTTER; JAKUBASZKO, 2007).
A partir desse caráter pedagógico, é possível visualizar que a personagem Edilene, leva à reflexão
sobre o tema “aborto” e Dinorah o tema dos “direitos trabalhistas das domésticas”, mas esses temas são
trabalhados na novela a base de reprodução de estereótipos de raça e classe e gênero, que pouco são
trabalhados como temas centrais. Por exemplo, trabalhar a questão racial entre Zezé e Carminha
implicaria numa mudança da personagem Zezé e o enfrentamento da empregada com Carminha, pela
forma como a patroa a trata, mas isso não acontece em nenhum momento da novela.
Ao observar as personagens e suas histórias, de forma geral, pode-se compreender que a vida
delas geralmente gira em torno da trama dos patrões. A personagem Dinorah, por exemplo, tem sua
trajetória de vida invisibilizada, parece não ter família, nem amigos, o mesmo acontece com Zezé.
Quando ganham destaque, há algum fato ligado à história dos patrões. Ou seja, elas não têm história
própria, vivem em função dos personagens principais.
124
Quanto às questões de direitos, há invisibilização da temática nos discursos das novelas. A
temática é abordada num único episódio de A Regra do Jogo, com Dinorah em que seu chefe finalmente
paga seus salários atrasados, explicando ao que equivale cada pacote. Feliciano está no quarto da
empregada com pacotes de dinheiro na mão e diz, “Então aqui está: 2002, esse é o décimo terceiro de
2003, 2004, 2005, 2006. Tá tudo aqui. Agora tem as férias atrasadas de cinco anos, quatro anos! 2007,
2008, 2009, 2010. Isso aqui é férias, não confunde. E aqui tem as horas extras que eu não te pago há tanto
tempo. Você pode conferir que estão todos os recibinhos aqui”, diz Feliciano. Dinorah emocionada
responde, “Não precisa de hora extra não seu Feliciano!”. Ele diz, “Claro que precisa, pelo amor de Deus.
Depois você vai me processar porque a lei das domésticas manda pagar as horas extras.Agora, presta
atenção que aqui eu retirei do banco só para você vê que o dinheiro existe. Ficou com o olho arregalado,
sabe o que é que é? Isso tudo aqui é fundo de garantia. Agora isso vai ficar comigo, porque eu vou
depositar no banco, fica tranquila. E agora tem uma coisinha aqui é o mais importante. Teu salário
atrasado de todos os anos que você trabalhou aqui em casa. Tá tudo contado.
Em momentos pontuais, o assunto é tratado na novela A dona do Pedaço, sem grandes
tensionamentos, como no caso da patroa de Edilene (Avenida Brasil) que fala que seus empregados tem
um bom convênio, devido ao fato de Edilene estar passando mal. E em outro momento o pai de Edilene
questiona que ela tem trabalhado muito, mas ela responde dizendo que a patroa paga hora extra. O tema
não é tratado em Avenida Brasil. Atrelamos a discussão sobre o trabalho doméstico na novela “A regra do
Jogo” à grande repercussão da discussão do tema em pauta no ano de 2015 e 2016, como pode ser visto
no quadro:
Avenida Brasil João Emanuel 26/03/2012 Emenda Constitucional nº 66/2012 - Altera a redação do
Carneiro - parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal para
20/10/2012 estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os
trabalhadores domésticos e demais trabalhadores urbanos e
rurais.
A regra do Jogo João Emanuel 31/08/2015 Lei Complementar 150 -Dispõe sobre o contrato de
Carneiro - trabalho doméstico. Alguns benefícios : Adicional noturno,
12/03/2016 FGTS, Indenização em caso de dispensa sem justa causa,
seguro - desemprego, salário - família, auxílio creche e pré
escola, seguro contra acidentes de trabalho.
125
A dona do Pedaço Walcyr 20/05/2019 Sem discussão
Carrasco -
Presente
Fonte: Autoria Própria.
partir da análise, percebe - se que não há entre as personagens o que Motter e Jakubasko (2007)
chamam de “tematização”, que seria “quando uma telenovela tematiza uma questão de importância social,
quer dizer que ela assume a discussão de determinado tema de modo frontal, ocupando ele grande espaço
e importância dentro da trama; torna-se, durante toda a telenovela, ou em grande parte dela, o foco
central. Nesta categoria podemos ter certeza da existência de uma temática dentro da ficção. Às vezes
pode estar numa trama secundária, mas percorre toda a duração da narrativa, sendo discutido com
propriedade pelo autor” (2007, p. 61).
As novelas não assumem caráter pedagógico em relação às empregadas, com exceção de Edilene
e o tema do aborto. As personagens são secundárias, destituídas de uma discussão mais profunda a
respeito de suas posições na sociedade e identidades enquanto mulheres e mulheres negras,
principalmente enquanto trabalhadoras domésticas, trabalho que deixa aparente as distinções de classe,
raça e gênero continuamente perpetuadas nas novelas, que quase sempre às colocam numa posição de
subserviência aos patrões e patroas e não as tratam como indivíduos com vida e histórias próprias que vão
para além da casa dos patrões.
Interseccionalidade
Para não corrermos o risco de trabalhar de forma monocategorial, com a categoria genérica de
mulher e homogeneizar diferentes experiências, ou mais arriscado ainda, tomar como referência as
mulheres brancas e ocidentais, utilizamos a interseccionalidade como um dos critérios de análise.
Compreendemos que a discriminação contra as trabalhadoras domésticas, especialmente no Brasil, é
interseccional (HIRATA, 2016; BIROLI, MIGUEL, 2015; DANTAS, 2016). As experiências de
opressão, especialmente quando estamos falando de mulheres negras, não podem ser enquadradas
separadamente, ou seja, serem mutuamente exclusivas (GONZALEZ, 1984; DAVIS, 2016; HOOKS,
1984, 2015).
Segundo Kimberlè Crenshaw (2002), a interseccionalidade refere-se a associação de sistemas
múltiplos de subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a
opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as
126
posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. “Além disso, a interseccionalidade trata da
forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo
aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento” (p. 177).
As trabalhadoras domésticas sofrem o que Crenshaw (2002) denomina de discriminação
estrutural, pois são as mais afetadas pelas políticas governamentais, em decorrência da sua posição na
estrutura socioeconômica. Na ausência do Estado para atender as demandas de saúde e cuidado, são as
mulheres, sobretudo as negras, que se veem forçadas a assumirem serviços que deixam de ser prestados,
como o de cuidar de idosos, doentes e crianças.
Na análise das novelas, podemos observar que as questões de gênero, raça e classe se atravessam,
repercutindo estereótipos que recaem diretamente sobre as trabalhadoras domésticas. Todas são mulheres,
a maioria é negra e oriunda de classes menos abastadas, conforme quadro abaixo.
Zezé x sim
Janaína x sim
Dinorah x não
Conceição x sim
Edilene x sim
Fonte: Dados da pesquisa.
127
histórica de mulheres, sobretudo as domésticas, como escravas sexuais, que estão sexualmente
disponíveis (GONZALEZ, 1984).
A temática do aborto, tratada em A dona do pedaço também é uma marcador de gênero, classe e
raça. Edilene engravida de Otávio, seu patrão, e ele a obriga a abortar, mobilizando o poder que exerce
sobre ela e seu corpo, como fica claro no capítulo em que ele diz que arranja um carro, um flet, uma boa
mesada para ela, mas ela recusa. Ele diz que depois que a Vivi [sua filha] casar, eles se resolvem, manda
ela “pegar” o dinheiro e “consertar a situação”. Ela diz “e se eu não quiser consertar?”, ele diz “eu vou
ficar muito bravo com você”, ela chora e diz que não quer tirar o filho, mas, acaba realizando o
procedimento e morre. A trama mostra que o aborto continua acontecendo, a partir das clínicas
clandestinas, e matando mulheres. A novela trouxe à tona a discussão da legalização do aborto, que é um
tema caro às militantes feministas, especialmente as negras, por defenderem que são as mulheres negras e
pobres as maiores vítimas de mortalidade em procedimentos clandestinos (CARNEIRO, 2003).
Sobre a questão racial, evidencia-se em vários momentos, a começar pelo fato de a maioria das
personagens ser negra (Zezé, Dinorah e Edilene),reproduzindo um estereótipo social que as subalterniza e
as coloca em condição de trabalhadoras braçais, alijadas de intelectualidade e restritas a serviços
considerados de menor valor, assim como, naturaliza a divisão sexual/racial do trabalho (GONZALEZ,
1984; CARNEIRO, 2003; DAVIS, 2016).
Dinorah (A regra do jogo) é um exemplo de reprodução de estereótipos sociais, pois, é uma
mulher negra que, apesar de não ser paga pelo patrão, um homem branco, se mantém submissa a ele,
chegando inclusive a dispor de recursos próprios para atender a regalias do patrão, como comidas e
bebidas caras. Apesar de ter condições econômicas, ela se mantém submissa ao trabalho, demonstrando
que aquele era o “lugar natural” daquele corpo negro ocupar, o papel de servir.
Em contraposição, todos os patrões, nas três novelas são brancos, reproduzindo um imaginário
social de superioridade branca, demarcando lugares sociais hierarquizados. Importante ressaltarmos neste
espaço que A regra do Jogo e Avenida Brasil são do autor João Emanuel Carneiro e A Dona do Pedaço,
de Walcir Carrasco. Os três autores são homens e brancos, um indício de falta de representatividade de
gênero, raça e classe em espaços de poder e tomadas de decisão, como são os ocupados pelos autores das
novelas e que se refletem na reprodução de estereótipos nos personagens.
A classe é uma categoria que emerge em diversas situações nas novelas, não no sentido do
enfrentamento de um imaginário social constituído, mas, mais uma vez reproduzindo estereótipos. Com
base na análise, algumas cenas entre as patroas e as empregadas também deixam clara a mensagem da
superioridade entre ricos e pobres. Por exemplo, quando Janaína (Avenida Brasil) passa a falar com
Carminha da mesma forma que a patroa fala com as empregadas, Carminha à desmoraliza e humilha por
128
sua posição, como se Janaína não fosse boa o bastante para que ela se desse ao trabalho de dar ouvidos ao
que a empregada estava falando.
Quanto à moradia, todas as personagens reproduzem o imaginário social do status de uma pessoa
de classe baixa. Zezé, Janaína e Conceição moram em bairros de periferias nas favelas e quando não estão
de uniformes, vestem roupas simples. Dinorah e Edilene moram na casa dos patrões onde possuem um
pequeno quarto para si. Enquanto seus patrões moram em mansões ou grandes casarões, como o caso dos
patrões de Edilene, Zezé, Janaína e Conceição e coberturas luxuosas como os patrões de Dinorah. Essa
distinção de espaços reitera a evidente separação dos espaços físicos entre brancos e pretos, ricos e pobres
(GONZALEZ, 1984), reafirmada pelas novelas que continuam naturalizando essas distinções de classe e
raça.
O uso do uniforme, marca de diferença e desigualdade em relação aos patrões (DANTAS, 2016),
foi utilizado por 4 das 5 personagens. O uniforme demarca que aquele corpo que circula pelos espaços da
casa não faz parte do cenário, é externo a ele, transita por entre os cômodos com a finalidade de estar em
serviço. Sinaliza uma diferença de classe social. “Marcadas pelo uniforme, pelo „quarto de empregada‟,
ou pelos espaços em que circulam e utilizam da casa percebemos a dinâmica do trabalho e a
desigualdades das trabalhadoras em relação aos patrões (DANTAS, 2016, p. 136-7).
Observa-se, com base neste critério, a reprodução de estereótipos e invisibilidade interseccional
(CRENSHAW, 2002), universalizando e naturalizando a divisão sexual/racial do trabalho doméstico, que
hierarquiza as relações sociais, entre ricos e pobres, homens e mulheres, negros e brancos,
subalternizando as mulheres que conjugam a intersecção das opressões.
c) Relações de Poder
Segundo Borges (2007), o uso dos meios de comunicação na modernidade tem possibilitado
novas formas de ação, interação e exercício do poder, trazendo implicações para a vida social e política
(p. 03). Sabendo que aos negros foram destinados, em sua grande maioria, papéis que representavam
posições subalternas ou consideradas de segunda classe pela sociedade, no que se refere a complexidade
dos personagens nas telenovelas (ARAÚJO, 2004; FARIA; FERNANDES, 2007, p.11), nesta categoria
buscamos identificar como se dão as relações de poder entre empregadas e patroas/patrões. Nesse sentido,
buscamos identificar se as novelas estão contribuindo para uma modificação das relações de poder entre
empregadas e patrões de maneira mais respeitosa e igualitária ou reproduzindo a relação de poder baseada
na desigualdade interseccional?
129
A partir das cenas das novelas, percebemos que em Avenida Brasil Carminha, a patroa, trata as
empregadas Zezé e Janaína em condições análogas às de escravizadas. Zezé, apesar de ser a mais fiel das
empregadas, é a que mais sofre maus tratos pela patroa, como em uma cena em que a empregada é
obrigada a pegar na tampa de uma panela quente, porque a patroa diz que não precisa de pano para pegar.
Mesmo sofrendo tantos maus tratos e escutando coisas terríveis, ela se mantém fiel à patroa, em posição
de submissão.
Janaína é branca e Zezé, negra, apesar de as duas serem pobres, fica perceptível como a história
de Janaína é mais desenvolvida. Quando não estão na casa dos patrões, Zezé bate a porta da casa de
Janaína para contar as fofocas e assim o público fica sabendo que Janaína também possui uma empregada
chamada Zumira, negra, que não usa uniforme e que é tratada da mesma forma como Carminha trata
Janaína, desferindo palavras grosseiras à doméstica. Porém, Zumira não aceita com passividade, rebate as
falas da patroa e fala com ela “de igual para igual”.
As cenas entre as duas, Zumira e Janaína, são tratadas como um dos alívios cômicos da novela.
Por trás do humor, a mensagem passada ao público é de que é hilário uma empregada ter outra
empregada, utilizando a estratégia da ridicularização para aliviar a temática (GONZALEZ, 1984). Além
disso, ainda que não possamos dizer que a intenção do roteirista foi dar destaque à personagem Janaína ou
que isso tenha relação com a cor, é perceptível o desenvolvimento da personagem ao longo da história,
que até mesmo passa a bater de frente com a patroa, enquanto Zezé permanece a empregada submissa e
maltratada pela patroa do início ao fim, até que Carminha seja desmascarada.
Em A Regra do Jogo, é possível perceber um comportamento diferenciado da empregada
Dinorah, que responde e trata de “igual para igual” os membros da família para quem trabalha, com
exceção de Feliciano por quem aparenta ter muito carinho. Faz tudo por ele, guarda sua comida e cuida de
suas roupas. À isso, atrelamos o fato de que Feliciano também a trata bem. Em dado momento porém,
Dinorah recebe seu dinheiro, o que a deixa rica, mas prefere continuar como empregada da casa por
carinho à família que enxerga como se fosse sua, refletindo relações comuns entre domésticas e patrões,
envoltas entre a contradição de tensão e afeto (BRITES, 2000; DANTAS, 2016).
Em a Dona do Pedaço, percebe-se que a família nutre um carinho muito grande por Cosme,
motorista da casa e pai de Edilene, a empregada. Em dado momento, se dispõem a custear uma bolsa de
estudos para a empregada, também pelo envolvimento com o patrão. Porém, vemos uma decaída com a
reprodução do estereótipo da mulher pobre inconformada com sua posição que tenta subir na vida às
custas de um relacionamento com um rico.
Após a análise das novelas, fica perceptível que se perpetuam a superioridade do rico sobre o pobre
nas três novelas no tratamento de Carminha com a empregada, na objetificação do corpo de Edilene
130
por Otávio e que recai também na questão da superioridade do branco sobre o negro, quando Dinorah
mesmo rica, decide continuar como a empregada da casa de Feliciano.
Segundo (OLIVEIRA; PAVAN, 2004, p.07) “ao avocar para si o espaço dos conflitos político-
ideológicos, a mídia se transforma no palco central das representações políticas, que apresentam várias
possibilidades interpelativas, mas uma delas se sobressai e se apresenta como hegemônica. A partir das
relações de poder analisadas, é perceptível a hegemonia branca e/ou elitista.
A característica de submissão é intrínseca às atitudes das personagens, elas aceitam maus tratos
ou ordens, sem questionar, como o caso de Janaína e Zezé com relação aos assédios de Carminha ou
Edilene que se submete a um procedimento de aborto por ordem do patrão Otávio. No entanto, em alguns
momentos, há sinais de resistência, como a Janaína que a partir de determinado momento da novela, não
aceita mais o tratamento de Carminha ou Conceição que revela que seu marido é pai dos filhos da patroa.
Fica óbvio também o maior desenvolvimento da empregada branca, que possui uma empregada negra e
perpetua até mesmo na classe média baixa o padrão de superioridade do branco sobre o negro. Aqui vê-se
também o que (CRENSHAW, 2002) chamou de subordinação estrutural:
Considerações finais
Ao analisar as histórias nas três telenovelas, de forma geral, observamos que a construção das
personagens, bem como, suas relações sociais reproduzem estereótipos de gênero, raça e classe,
131
naturalizando uma divisão sexual e racial do trabalho que é fruto de uma desigualdade estrutural entre
homens e mulheres, especialmente em países com histórico de colonização como o Brasil.
A superioridade do rico sobre o pobre e do branco sobre o negro também é naturalizada e
algumas vezes ridicularizada, perpetuando preconceitos existentes no seio da sociedade brasileira. A
objetificação dos corpos das mulheres, vistos como disponíveis para o sexo ou para o trabalho é uma das
maiores críticas aos papéis desempenhados pelas trabalhadoras domésticas.
A ausência de tematização a respeito de questões importantes e que poderiam assumir destaque
nas tramas, é outra grave crítica às telenovelas, quando assumem pontualmente o caráter pedagógico em
relação às empregadas.
As personagens são secundárias, destituídas de uma discussão mais profunda a respeito de suas
posições na sociedade e identidades enquanto mulheres/negras, principalmente exercendo a função de
trabalhadoras domésticas. A vida delas geralmente gira em torno da trama dos patrões e só ganham
destaque quando há algum fato ligado à história dos patrões.
Quanto às relações de poder e de direitos, vê-se um avanço a respeito do cuidado com o qual as
empregadas são tratadas: em 2012, com Avenida Brasil, as empregadas foram tratadas como seres
inferiores, humilhadas e subalternizadas por sua patroa; em 2015, com A Regra do Jogo, Dinorah era
tratada com respeito por seu patrão, apesar de pouco se discutir a relação contraditória de tensão e afeto
entre eles; e em 2019, o tratamento dado aos empregados da casa também era respeitoso, levantando os
direitos trabalhistas de maneira positiva em momentos pontuais, apesar de haver tensionamento na relação
entre o patrão e a empregada.
Observamos que as telenovelas, apesar de possuírem o caráter de entretenimento, também
deveriam assumir o papel crítico e pedagógico de trazer à tona questões pertinentes ao cotidiano da
sociedade. No entanto, é necessário avançar muito nas discussões sobre o tratamento dispensado às
empregadas domésticas nas telenovelas para que revelem os tensionamentos sem naturalizar ou
reproduzir estereótipos, fomentando a reflexão e posterior, aprendizagem e transformação, principalmente
após a provação de a Lei que amplia e equipara os direitos das trabalhadoras domésticas.
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SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani.O poder do macho. São Paulo. Editora Moderna, 1987.
134
ENTRANDO NA RODA
RESUMO
ABSTRACT
This works analyzes the role of women in the Capoeira Mulher Movement, and
tries to understand and explain the gender relations existing there. The
movement was designed to give visibility to female participation in capoeira of
the state of Pará, Brazil, considering there are gender disparities between men
and women in the capoeira environment, as well as a lack of "Mestras" (female
master teachers). This research presents the cultural art of this practice and the
beginning of female participation in capoeira in Belém, capital of Para State,
presenting the asymmetrical gender relations in the Rodas de Capoeira
(capoeira's round dance style) and the power relations involved in the capoeira
universe, dating back to the trajectory of the Capoeira Mulher Movement and its
importance for female representativeness in the Rodas de Capoeira.
Keywords: Capoeira. Gender.Movement
Luana de Nazaré Pinto Pena é bacharela e licenciada em Ciências sociais (UNAMA). Email:
luanappena@gmail.com
Drª Rachel de Oliveira Abreu (UNAMA). Email: rachelufpa@gmail.com
135
INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo apresentar a etnografia realizada por mim como parte
de minha pesquisa para o trabalho de conclusão de curso em Bacharelado e
Licenciatura em Ciências Sociais apresentado à Universidade da Amazônia, onde
meu objeto de pesquisa foi o Movimento Capoeira Mulher existente no estado do
Pará há 16 anos. Porém, a participação da mulher nesta atividade vem sendo
registrada desde o século XIX na cidade de Belém
Para Mauss (1974) em seu texto ―As técnicas do corpo‖ enumera essas
técnicas de acordo com as fases da biografia do ser humano, passando pela
infância, adolescência e vida adulta. Na seção da infância ele a divide em três
partes: Criação e alimentação da criança, desmama e a criança após a
desmama, e ele afirma que ela passando por todas essas fases aprende
técnicas de relaxamento e de respiração. Já na seção da adolescência o autor
afirma que é a fase essencial para aprender as técnicas de conservação do
corpo para a vida adulta. Por fim, na seção onde fala sobre a vida adulta, o
autor divide-a em técnicas do sono, técnicas da vigília, técnicas do corpo em
movimento, técnicas dos cuidados do corpo, técnicas do consumo, técnicas da
reprodução e por fim, técnicas da medicação.
[...] a mulher é formosura que em tudo sofre a caridade que tudo cura, a fé que
comunica perpetuamente com o céu, a virtude benéfica, a
santa poesia do lar, o anjo que se inclina sobre o berço e sobre
o leito da dor, e deposita com suas lágrimas o orvalho do céu
em nossa vida, o espírito de ordem, de economia, e de
consolação de todas as dores, o sorriso celeste, o bálsamo que
tira todo o veneno às feridas da existência, a oração que de
contínua levanta a família a Deus, e enche de harmonia e
virtude todo o lar, é o pensamento e o amor, a razão e a fé, a
ciência e a poesia. (DIÁRIO DE NOTICIAS. Belém, 14 abr.
1898. P.1. Sob a epígrafe A família apud OLIVEIRA et. al 2009,
p. 139).
Qualquer mulher que fugisse desse programa era vista como desordeira
pela sociedade. Muitos artigos de jornais da época retratavam os ditos maus
comportamentos de mulheres, incluindo as praticantes de capoeira; em
136
produções literárias os já citados comportamentos também podem ser
encontrados, como pode ser visto no trecho abaixo, retirado da obra Belém do
Grão Pará, do autor paraense Dalcídio Jurandir:
[...] e avançando pelo beco, deu com aquela mulher escura, magra, descabelada que
gesticulava e distratava. Logo aparecia outra, meio velhusca,
que tentava acalmar a magra, nas boas palavras, nos bons
modos. Qual! A descabelada passou a saltar na frente do outra
como jogador de capoeira. E não é que de repente levanta o
vestido sujo e roto, que era a sua única roupa? Tropeçou, caiu,
se ergueu, legeira, para fazer o mesmo cinema, repetidamente
[...] (JURANDIR, Dalcídio. Belém do Grão Pará. São Paulo:
Martins, 1960. P. 36 – 37).
137
pesquisa de campo e a história oral, já que este trabalho é pioneiro na
historiografia do Movimento Capoeira Mulher.
A etnografia urbana olha, assim, „de perto e de dentro‟ tentando captar, mediante a
experiência do trabalho de campo prolongado ou da
„frequentação profunda‟, a perspectiva dos próprios nativos
urbanos (transeuntes, moradores, usuários, sujeitos políticos
como associações de bairro etc.) em relação a como transitam,
como usufruem, como utilizam, como estabelecem relações.
Então, os resultados da etnografia urbana (e suas narrativas)
são muito diferentes das realizadas a partir apenas da
observação (mesmo que se trate de uma ―observação
encarnada‖), porque usar tão somente a observação gera um
discurso subjetivo, enquanto que fazê-lo através da
observação-participante produz intersubjetividade. O que a
etnografia urbana reflete é esta intersubjetividade, este
discurso a partir de uma relação, como bem expressou Viveiros
de Castro, e não a subjetividade do pesquisador, isto é, as
revelações intimistas do autor, suas próprias sensações, seu
Eu. O trabalho de campo é concebido como uma experiência
de imersão subjetiva, produtora de uma intersubjetividade.
(GUBER, 2005 apud URIARTE, 2012, p. 181)
138
e perguntas semi estruturadas para que não haja indução nas respostas
dos sujeitos. A história oral pode ser compreendida como:
O Movimento Capoeira Mulher foi idealizado por Silvia Maria Santana Leão,
conhecida pela alcunha de ―pé de anjo‖ devido ao tamanho de seus pés, assim
como foi relatado por Cristiane Silva por áudio no ―Whatsapp‖, sua amiga e
uma das primeiras integrantes do movimento; entretanto, apesar do apelido
evocar delicadeza, dentro da roda ―pisava era forte‖. Silvia nasceu no ano de
1975. Em sequência, apresentarei um registro de Silvia jogando capoeira em
seu grupo Dandara Bambula:
139
Além de capoeirista era bailarina, atriz, estudante de Letras da Universidade
Federal do Pará (UFPA) e aluna da escola de dança da mesma universidade.
Silvia gostava muito do Carnaval belenense, chegou inclusive a participar no
ano de 2000, aos 25 anos de idade, do concurso Rainha das Rainhas,
representando o clube dos advogados.
140
mulheres, seja ela física ou verbal. Consequentemente, o projeto desenvolve
trabalho no combate ao machismo, trabalhando a autoestima e defesa pessoal.
O segundo dia teve como palco a Aldeia Cabana, a partir das 9 horas,
com conferências e debates contando com a participação do então prefeito de
Belém, Edmilson Rodrigues. Participaram também a vereadora Suely Oliveira,
Dalva Sampaio (conselheira das mulheres do Congresso da Cidade), Fátima
Matos (Conselho da Condição Feminina de Belém), Professor Augusto Leal
que palestrou sobre a mulher na história da capoeira, professora Leila Melo
que falou sobre a educação feminina e a capoeira, Professora Erica Cabral
cuja palestra se deu acerca da Capoeira e mulher na atualidade e, por fim, a
então Deputada Araci Lemos que levou para o debate sua contribuição sobre a
Mulher na Cabanagem., Neste dia ainda foram ministradas oficinas de
141
Capoeira Angola, Capoeira Regional e a realização de uma roda ao final do
dia.
142
O terceiro encontro ocorreu em janeiro de 2005, na escola de Educação
Física e na Praça da República e foi dedicado em homenagem à memória de
Silvia Leão. Durante o evento, as integrantes do movimento tocaram no
berimbau duas músicas que evocavam a memória de Silvia. Foram realizados
também uma espécie de ―aulão‖ de capoeira, uma apresentação de dança afro,
organizada pela cunhada de Silvia. A letra da música ―Moleque Atrevido‖ do
cantor Jorge Aragão, tendo substituído o substantivo ―moleque‖ por ―moleca‖,
foi recitada por Dileuza Correa, integrante do movimento. Em mais uma
homenagem à ―Pé de Anjo‖, uma grande televisão foi levada pra exibir suas
fotos.
143
realização da entrevista, a mesma não possuía as informações sobre os
encontros memorizadas.
que nos vestimos de cabaré? Porque todas nós escolhemos uma roupa de cabaré?
Todo mundo. As meninas da coordenação tinha que ser com roupa de cabaré, cada
uma com a sua roupa. Acabou que todas foram na mesma vibe. Porque, por muitos e
muitos e muitos e muitos anos, fomos taxadas de putas, de prostitutas, de o termo
vulgar, sapatão, tudo o que tu possas imaginar já chamaram a gente entendeu? Então
144
a gente pôs uma crítica né? Usando roupa de cabaré. É simples! Pra gente, pelo
menos falando por mim, por algumas, a palavra puta designa a outra coisa. Não nos
ofende. Não ofende a gente. A gente utilizou as fantasias, representativo né? Pra dizer
tá aqui ó ―15 anos de cabaré‖. Entendeu? (Informação verbal)
Outro ponto que o trabalho do Movimento conseguiu foi fazer com que
as mulheres na capoeira conseguissem se impor e falarem o que pensam.
Esse exercício é feito nos próprios eventos do Capoeira Mulher. Hoje, ao
menos nos eventos as mulheres conseguem comandar os instrumentos, coisa
que não era feita em seus grupos de origem. A mulher, hoje, consegue
escrever músicas e fazer eventos femininos em seus grupos.
eu percebo? Quando um cara chega pra mim, um professor chega assim pra mim
―vem cá! É... você namorou com um instrutor então você tem que ficar com um
professor. Namorou com um instrutor porque tu não fica com um corda mais alta?‖
Não é machismo não? Entendeu? Quando um Mestre chega pra ti e fala que ele quer
teu corpo. Então eu digo assim ―Mestre me respeite!‖ Né? ―E aí minha nega, tô
brincando mas se você aceitar...‖ Né? E assim... brincadeiras a parte e a gente dá
limites pra algumas pessoas. E pra outras não, mas tipo, você não... eu nunca dei
esse tipo de liberdade pra ninguém, entendeu? O machismo da capoeira, está quando
um cara chega num grupo de Whatsapp e coloca assim... ―O que vocês acham dessas
meninas que ficam com os capoeiristas? Quem ficam namorando com os capoeiristas
por aí? O que vocês acham dessas mulheres?‖ Eu acho que... cada um vive a sua
vida?! Entendeu? (Informação verbal)
145
Nesta fala acima podemos perceber o tipo de machismo existente na
capoeira onde os Mestres e os outros homens tentam controlar as mulheres
através do assédio sexual e verbal. O Movimento Capoeira Mulher luta
diariamente contra esses tipos de machismo dentro dos grupos de capoeira.
Começa a etnografia
Nesse segundo momento, irei tratar dos passos que fiz durante a minha
pesquisa, os que deram suporte para que eu realizasse minha etnografia, a
qual será tratada aqui. Primeiramente tratarei do dia 07 de setembro de 2016, o
meu primeiro encontro com o objeto de pesquisa. Em segundo momento,
relatarei minhas observações realizadas na mesa redonda sobre a mulher na
capoeira, a qual fazia parte da programação do I Colóquio sobre Patrimônio,
Gênero e Saberes Tradicionais do IPHAN. Em terceiro momento, será tratada a
roda de capoeira realizada pelo movimento em comemoração à maestria de
Silvia Leão e ao aniversário do Movimento. Por fim abordarei minhas
observações do 9° encontro do Movimento Capoeira Mulher.
146
demorou muito para que eu encontrasse a primeira roda de capoeira, na qual
instantaneamente percebi a assimetria de gênero: as mulheres estavam em pé
batendo palma e cantando enquanto os homens estavam na orquestra da roda
comandando e jogando. Logo, uma apareceu na roda para jogar, deu uns
golpes em um rapaz e logo foi cortada para dar lugar a outro homem. Na
orquestra da roda não havia nenhuma mulher e isso também me chamou a
atenção. Fiquei observando esta roda por mais uns 15 min e então continuei
caminhando em busca de outros grupos.
Gisele voltou para a roda do Norte Brasil e fiquei conversando com Solange
―Batatona‖ e Maria Zeneide. Enquanto conversávamos contei para elas do que
se tratava a minha pesquisa e então Solange ―Batatona‖ comentou sobre sua
importância por tratar da questão de gênero que remete a situações como, por
exemplo, mulheres precisarem sair da capoeira quando engravidavam para
que pudessem cuidar da família ou, muitas vezes, serem chamadas de
―sapatão‖ por jogarem capoeira. Quando ela também foi para a roda do grupo
147
Abadá capoeira fui caminhar um pouco com Maria Zeneide para observarmos
juntas as rodas na praça.
148
Logo depois, a fala passou para Gisele Figueira que, representando o
Movimento Capoeira Mulher, relatou a sua experiência em participar deste
Movimento e os preconceitos que enfrentou. Com o intuito de abordar o início e
a fundação do movimento, Gisele iniciou seu discurso falando a respeito de
Silvia Leão, o que a emocionou bastante. Terminada esta etapa, fez uma
espécie de resumo dos 16 anos de existência do Movimento.
149
presentes aplaudiram e se emocionaram bastante. No segundo dia de evento,
no qual eu não estava presente, foi entregue o certificado de Mestre de
Capoeira de Silvia Leão ao seu irmão, Marco Apolo.
150
Houve um momento em que a roda fez uma pausa e as participantes do
movimento leram a letra de uma música em homenagem à Silvia; após esse
momento, as meninas concederam a fala a quem quisesse se pronunciar sobre
a nomeação em questão. A irmã de Silvia, Cristina, bastante emocionada,
discursou sobre o acontecimento e alguns Mestres também discursaram se
posicionando a favor da nomeação.
151
muitas vezes, o marido a tira por ser bonita e afirmou concordar com esta
colocação pois ―mulher bonita não pode jogar capoeira‖. Após a sua resposta
todos que estavam presente se entreolharam assustados. Gisele respondeu
pelo Movimento afirmando que nenhum homem iria tirar qualquer mulher
daquele movimento da capoeira e foi aplaudida. Outro Mestre, em uma
pergunta seguinte, afirmou que não é possível ensinar questões de gênero
para crianças. ―Mana‖ Josy, pedagoga e uma das convidadas presente no
evento, afirmou que seria possível esta atitude dentro da capoeira e que ela
poderia inclusive doar materiais para ele para que pudesse tratar dessas
questões em suas aulas.
Considerações finais
152
Referencias
DIÁRIO DE NOTICIAS. Belém, 14 abr. 1898. P.1. Sob a epígrafe A família apud
OLIVEIRA et. al 2009, p. 139.
153
“NOVA CAPOEIRAGEM DA MULHER”: A ATUAÇÃO FEMININA NA
PRÁTICA DA CAPOEIRA EM BELÉM NO FINAL DO SÉCULO XIX E
INÍCIO DO XX
https://doi.org/10.29327/527231.5-10
Lucenilda dos Santos Passos/UFPA
RESUMO
O presente trabalho trata da atuação das mulheres na capoeira no final do século XIX e
inicio do XX em Belém. Através dos relatos jornalísticos, a literatura e os Códigos de Postura
e Penal. Sendo analisadas ações desempenhadas por elas nos espaços públicos; como o
trabalho no meretrício, e o envolvimento delas na capoeira, logo, essas práticas segundo o
poder público tinham ligação direta com a vagabundagem, portanto, consideradas perigosas
para os esplendores moral da cidade, sugeridas pelas camadas privilegiadas que almejam o
progresso e a civilização. Desse modo, será feita uma abordagem envolvendo autores como
SALLES e LEAL para desenvolver o debate em torno da história social da capoeira no Pará
republicano, tecendo uma relação com autoras como PERROT, RAGO, SOIHET, SAFFIOTI,
HOOKS, GONZALEZ, ARAÚJO, FOLTRAN entre outras que contribui no debate de gênero
e na construção das narrativas femininas na historiografia, dando visibilidade a elas como
sujeitos históricos.
ABSTRACT
This paper deals with the performance of women in capoeira in the late nineteenth century to
the twentieth in Belém. Through journalistic reports, literature and the Posture and Penal
Codes. Being analyzed actions performed by them in public spaces; as the work in the
harlotry, and their involvement in capoeira, so these practices according to the public power
were directly linked to vagrancy, therefore, considered dangerous to the moral splendors of
the city, suggested by the privileged layers that crave progress and civilization. . Thus, an
approach will be made involving authors such as SALLES and LEAL to develop the debate
around the social history of capoeira in republican Pará, weaving a relationship with authors
such as PERROT, RAGO, SOIHET, SAFFIOTI, HOOKS, GONZALEZ, ARAÚJO, FOLTRAN
among others contribute to the gender debate and the construction of female narratives in
historiography, giving visibility to them as historical subjects.
Keywords: Woman in Capoeira. Paraense Republic. Posture Codes.
154
“NOVA CAPOEIRAGEM DA MULHER”: A ATUAÇÃO FEMININA NA PRÁTICA DA
CAPOEIRA EM BELÉM NO FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX
INTRODUÇÃO
O período que consiste no final do século XIX e inicio do XX em Belém, foi marcado
pela economia da borracha amazônica. A renda gerada pela comercialização do produto
teve grande impacto no que consistiu o processo de reordenação da cidade, principalmente
no que diz respeito à estética, higienização, cultura e a economia dessa urbe. Essas
transformações ocorreram com mais força no governo do Intendente Antônio José de Lemos
que se deu do ano de (1897 – 1911), que foi considerado um dos principais responsáveis
pelo processo de modificações da capital paraense.
155
Segundo Leal (2008, p. 31), nessa virada do século XIX essas modificações
transformaram as cidades de Belém e Manaus, isso por conta do processo da
comercialização da borracha Amazônica, sendo Belém um centro de exportação do produto
através de seu porto.
Nesse momento, Belém entra em uma nova fase de transformações que estavam
contidas em componentes estruturantes nas ideias europeizadas, onde as modificações
tanto na arquitetura quanto nos hábitos culturais paraenses deveriam se encaixar no que
consistia ser civilizado para a construção de uma Belém moderna aos olhos dos grupos
privilegiados. Por isso, o Intendente do Pará Antônio Lemos, desenvolveu politicas de
reordenamento. Durante sua gestão, ele pontuou parâmetros ligados com a concepção
higienistas, logo, esse modelo urbanístico foi baseado em um conjunto de ações que
modificariam a forma de vida da população. Sobre isso, Dias e Chaves, escreveram que:
Com isso, essas transformações no cenário urbano da capital paraense possui sua
gênese com o impulso da economia da borracha. Cria-se então, novas fisionomias que
implicaram nas construções e reformas na área de edificações de Belém. A seguir, veremos
2 espaços que estavam contidos no processo de modificação, que visava o embelezamento
da cidade, segundo os parâmentos dos segmentos privilegiadas.
156
Imagem 2- Mercado Municipal
Fonte: BELÉM DA SAUDADE: a memória da Belém do início do século em cartões postais. Belém,
Secult, 1996. (B.S.).
As reformas e a construção desses lugares davam uma nova cara para as capitais
brasileiras. Por isso, ―ao mesmo tempo em que construções consideradas modernas eram
elevadas os casebres populares, na maioria das vezes feitos em barro e palha, eram
removidos em nome da civilização e do progresso‖ (LEAL, 2008, p. 33) essas mudanças
seriam necessárias para demostrar que Belém estava inserida no modelo proposto por uma
elite que visava à modernidade. Sobre isso, Leite descreveu que:
Precedido de tal, esses fatos levaram Belém a se transformar não somente na parte
arquitetônica da cidade, a vida das pessoas foi simultaneamente afetada, principalmente
daquelas que eram pertencentes das camadas populares. A exemplo disso, em virtude do
processo de reordenação de Belém, espaços que antes eram habitados pelos populares,
acabaram sendo valorizados, logo, essas pessoas tiveram que ―ir morar cada vez mais
longe do centro da cidade. Passaram a ocupar áreas alagadas que até então não eram
valorizadas como morada burguesa‖ (LEAL, 2008, p. 32). Isso ocasionou um inchaço
demográfico em bairros considerados periféricos, como Jurunas e Umarizal (LEAL, 2008).
Como podemos ver no mapa I, os bairros como a Cidade Velha, Umarizal, Jurunas e
Canudos que até aquele período eram vistos como periferias.
157
Imagem 3- Mapa I: Principais Bairros de Belém em 1905
Legenda
01- Cidade
Velha
02- Umarizal
03- Jurunas
Fonte: Planta da cidade de Belém com base na planta original feita na administração do intendente
Municipal Antônio Lemos- Por José Sydrim, desenhista municipal, 1905 (Belém da Saudade, 1996).
Mas algo que deve ser questionado refere-se ao progresso e modernidade, para
quem? Sendo que todo esse esplendor não envolveu todas as pessoas pertencentes dessa
urbe.
158
subsistência praticada por mulheres‖ (LEAL, 2008, p. 48) também passaram por
arraigadas perseguições.
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza
corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras,
com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal,
provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou
incutindo temor de algum mal. (Código Penal da Republica dos Estados
Unidos do Brasil (Decreto nº 847 de 11/10/1890)).
159
não estarem inseridas em um modelo proposto como civilizado. Suas vidas e hábitos
correspondiam a valores diferentes daqueles propagados pela camada privilegiada. Esses
populares buscavam nas ruas de Belém no inicio da República, meios para a sua
sobrevivência, pois, aquela sociedade pouco dava oportunidades concretas para a inserção
da população negra.
Em relação aos jornais esses salientavam em seus títulos, ações que teriam sido
cometidas por essas pessoas que atuavam nas ruas ou nas zonas de meretrício. Porém,
algo recorrente nos recortes desses noticiários, esta relacionado com o tom moralizante
dirigido as práticas da vagabundagem e do meretrício, onde cabia às autoridades tomar as
devidas providências para que essas práticas fossem combatidas, pois, segundo os
enunciados, elas desrespeitavam as famílias, a ordem e a moral pública da cidade. Logo,
esses periódicos tinham diversas funcionalidades nessa sociedade, que iria desde
informações sobre a economia, noticias estrangeira, entre outras e também a imprensa
nesse momento empreendia o papel de divulgadora de campanhas moralista para as
pessoas pertencentes aos segmentos populares.
Repetidas são as queixas que nos que nos chegam ao escritório contra
meretrizes e vagabundos que tem o mau hábito de formar roda nas
calçadas, impedindo o trânsito público e ofendendo a moral com palavras
de baixo cuturno.
160
Ao conhecimento do sr. Ferreira Teixeira chefe de segurança pública,
levamos as nossas queixas esperando enérgicas e sérias providências que
o caso exige e que os seus auxiliares até hoje não tomaram, por provada
myopia e comprovada surdez. (Diário de Notícias, 14 de agosto de 1896).
A imprensa era atribuída a uma missão de civilidade, onde esta possui uma atenção
redobrada com as condutas das mulheres (FERREIRA, 1994, p. 100). Desse modo, ao se
falar dos populares de Belém, em especifico as mulheres que atuavam nas ruas, esses
periódicos constantemente divulgavam nomes de sujeitas que estavam inseridas em
práticas como a capoeira, a desordens a vagabundagem e a prática do meretrício. Sendo
isso, os jornais que aqui serão analisados consistem em: A Constituição, Diário de Notícias,
Folha do Norte, A República e A Semana. Através desses jornais notaremos modelos
comportamentais dirigidos às mulheres, os lugares e as atividades nos espaços públicos e a
resistência delas frente ao modelo comportamental imposto.
A capoeira, por muito tempo foi vista, assim como o espaço das ruas, como algo restrito
ao ―universo masculino‖, todavia ações de mulheres quebram com essa ideia, e demostram
a atuação ativas das mesmas em várias atividades, em espaços não domésticos.
Dessa forma, essas mulheres revelam ―como elas possuem uma historicidade com
relação às ações cotidianas, aos posicionamentos políticos, às relações entre os sexos e as
múltiplas dimensões da realidade histórica e social‖ (OLIVEIRA, LEAL, 2009, p. 160).
Portanto, o envolvimento delas por meio do meretrício, brigas, ou pela prática da capoeira,
retratam um pouco sobre suas vidas nos espaços públicos da capital paraense, fazendo
assim seu protagonismo em meio a esses espaços.
Nos becos, nos botequins, nas zonas de prostituição, nas sombras das
embriagadas noites se encontrava o universo dessas mulheres pobres.
Protagonistas das arruaças e desordens, habilidosas com suas navalhas
e seus cacetes, lá estavam as famosas vagabundas. (ARAS, OLIVEIRA,
2003, p. 169).
161
Todos esses crimes, segundo o discurso jurídico, poderiam ser evitados se
combatido, de forma eficiente, o elemento causador das transgressões: a
vagabundagem. Eram essas mulheres consideradas vagabundas, um caso
de polícia. Nos conceitos estabelecidos no Código Penal, como reflexo da
compreensão que tinha aquela sociedade sobre as mulheres pobres que
viviam do labor das ruas, seriam elas as ―degradadas sociais‖ (ARAS,
OLIVEIRA. 2003, p. 166).
Dessa maneira a seguir, será feita uma releitura sobre a atuação das mulheres
envolvidas com a prática da capoeira e as que exerciam as chamadas ―profissões
duvidosas‖ que foram por muito tempo consideradas transgressoras das práticas modernas
e civilizadas. Portanto, ao se referir a essas populares de Belém elas quebram com diversos
mecanicismos comportamentais que foram atribuídos a elas principalmente sobre seus
corpos.
Dessa maneira, veremos a seguir mais um artigo do jornal Diário de Notícias do ano de
1896, onde dessa vez estavam envolvidas, Conrada Garcia, e sua irmã Antônia Garcia e
Leopoldina Gonçalves, que moravam na travessa do Atalaia, e foram levadas à Estação
162
Policial, acusadas de ―fazerem desordens, sobressaltando as famílias‖ (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 23 ago. 1896. p. 2.apud OLIVEIRA, LEAL, 2009.p. 144). Portanto, essa noticia
induz consideramos que as ações dessas mulheres estavam sobre uma vigília das
autoridades que buscavam regulamenta os termos da moral pública nos espaços das ruas.
Sendo o jornal um mecanismo utilizado para divulgar esses ocorridos, logo, a ideia de que
esses atos feitos por essas mulheres causavam sobressalto a seguranças das famílias
paraense, era bastante pertinente nesses artigos, tal ideia, estava carregada de uma
complexa idealização de moralidade comportamental, onde essas ações eram vistas como
ruins.
Outro relato de incômodo que atingia os bons costumes das tradicionais famílias de
Belém foi evidenciado no jornal Diário de Notícias do ano de 1897, onde uma mulher
chamada de Maria Meia Noite foi acusada por conta das ―imoralidades que prática essa
mulher quase diariamente‖, assim as, ―autoridade obrigasse a mesma a mudar-se d‟ali, pois
já não é a primeira vez que as famílias nos fazem essa reclamação‖ (DIÁRIO DE NOTÍCIAS,
28 set. 1897. p. 1). Tal episódio enfatiza que as autoridades tomassem de imediato uma
atitude que mudasse Maria Meia Noite daquele local, pois a mesma cometia imoralidades
diárias. O jornal não deixa claro quais seriam as imoralidades que essa mulher cometia ali.
Essas mulheres que foram mencionadas nas passagens do jornal acima são
repreendidas por seus comportamentos considerados inadequados. A acusação de
sobressaltar as famílias paraenses com suas ações tornam-se um dos motivo para que elas
fossem perseguidas pelas autoridades.
Elas foram consideradas: ―Tão perniciosas quanto os capoeiras”, essa frase retirada do
jornal A República, do ano de 1890; direcionada ao desembargador chefe de polícia
Gomensoro para que ele desse caça aos vagabundos. Vejamos abaixo a passagem do
jornal A República do ano de 1890.
163
―estava em consonância com o surto modernizante e tinha como objetivo preparar o espaço
público para o livre tráfego das famílias‖ (FERREIRA, 1994, p. 66). Portanto, a ênfase sobre
as mulheres que atuavam no meretrício foi exposta com um enfoque bastante grande, pois,
mais uma vez, elas eram acusadas de serem indisciplinadas e isso prejudicava os valores
das famílias que faziam parte das camadas privilegiadas paraenses. Além disso, que eram
tão perigosas quanto os capoeiras segundo o articulista do jornal. Consequentemente, ―o
comportamento irregular das mulheres pobres era constantemente noticiado‖ (FERREIRA,
1994, p 100). Essas notícias cabiam denunciar essas condutas dessas mulheres, por serem
vistas como agravadoras do processo modernizador da cidade, sendo esse modelo baseado
em princípios das classes privilegiadas.
164
Veremos abaixo, uma passagem que mostrando a ação de mulheres envolvida em
um confronto, no ano de 1893 na Travessa Bom Jardim, onde ocorreu uma briga entre uma
lavadeira e sua rival que passavam por aquele local.
A situação relatada demostra que Maria Conceição, que era lavadeira provocou a
sua rival, por algum motivo não aparente no jornal e travou com ela grande luta, portanto,
verifica-se que essas mulheres envolvidas na briga não seguiam os modelos de
comportamentos que eram impostos a elas.
O Jornal Boa Nova do ano de 1877 apresentou uma diferença entre a mulher ―cristã‖
e a mulher ―mundana‖, segundo o jornal, ―não tem por fim precisamente formar a mulher
mundana, mas educar a mulher cristã, cuja vida deve ser ditada pelos ditames da lei
evangélica.‖ (A Boa Nova 3 fev. de 1877, p. 2). Observa-se na citação os ditames cristãos e
da família que foram dirigidos as mulheres cristãs, para as mundanas, essa educação cristã
não deveria ser direcionada, o jornal não enfatiza o porquê, porém existiam regras sendo
―As mulheres de elite estavam submetidas a regras que envolviam aspectos diferenciados
daqueles às quais se submetiam as mulheres pertencentes a grupos sociais subalterno‖.
(ARAS, OLIVEIRA, 2003, p. 164).
Dessa forma, no que tange as mulheres negras, segundo Bell Hooks,
[...] no século XIX o público branco retratou a mulher negra como
personificação de todos os traços negativos que eram usualmente
atribuídos ao sexo feminino como um todo, enquanto a mulher branca
era a personificação de todos os traços positivos, no século XX o público
branco continuava esta prática. (HOOKS, 2014, p. 129).
Nesse sentido, essas diferenças entre as mulheres brancas e negras refletem os
vestígios de uma sociedade recém-saída do período escravocrata. Consequentemente a
isso, uma das formas que essas mulheres desenvolveram para garantir sua sobrevivência
em meio a uma sociedade desigual e que não dava alternativas para garantir seu sustento,
foi a utilização do seu corpo como forma de ganhar seu sustento em meio a uma sociedade
que pouco se importavam com a vida dos negros e negras. Nesse viés;
Nos primeiros tempos após a Abolição interferia também no processo de
prostituição a degradação moral a que tinha sido reduzida a mulher negra.
Desmistificava-se, entretanto, com a universalização do salariato, o
fundamento econômico da prostituição. (SAFFIOTI, 1974, p. 96).
O autor Oliveira ao abordar sobre os trabalhos desenvolvidos por mulheres pobre
verificou que:
165
[...] atividades produtivas, como era o caso das ganhadeiras, cuja atividade
econômica de venda de seus produtos dependia quase que exclusivamente
da sua circulação pelas ruas em busca dos compradores de suas
mercadorias. Outras mulheres também circulavam pelas ruas em busca de
seus afazeres, outras ainda, para o oferecimento de seus serviços, como
era o caso das prostitutas. (OLIVEIRA, LEAL, 2009, p. 118-119).
Portanto, os trabalhos considerados ―ilícitos‖, foram uma forma encontrada para
driblar as dificuldades do dia-a-dia e garantir sua sobrevivência. Dessa maneira, a
passagem abaixo demostra a perseguição a malta de vagabundos e as mulheres de
―profissões duvidosas‖. Vejamos na citação do jornal Correio Paraense do ano de 1892
sobre o assunto.
Não é a primeira vez que a impressa do Pará chama a atenção do digno Dr.
Chefe de segurança para a malta de vagabundos e mulheres de profissões
duvidosas que reúnem-se à rua de Belém, em um frege fronteiro ao
trapiche da companhia do Amazonas, e ai, com palavras indecentes,
disputam, resultando muitas vezes em sérias brigas.
Não há famílias que possa passar por aquele lugar sem que não seja
ofendida em seu pudor. Reproduzem-se sempre essas cenas porque,
dizem-nos, não tem patrulha n‟aquele local. (CORREIO PARAENSE, 8 de
novembro de 1892)
Existia uma ―missão civilizacionista‖ onde ―a imprensa teve olhares atentos para o
comportamento moral das mulheres‖ (FERREIRA. 1994, p. 100). Dessa forma, segundo
LEAL, uma sequencia de artigos publicados pelo Diário de Notícias entre abril e maio de
1893, sob a epígrafe Fatos e Boatos, ―também segue o mesmo estilo de denúncias contra o
comportamento feminino e a relação com a política‖ (OLIVEIRA, LEAL. 2009, p. 148).
Nesse viés, os documentos que apontam para o envolvimento das mulheres,
resultaram em publicações constantemente direcionadas ao governo para garantir a
segurança da República como veremos na citação a seguir.
Seria conveniente que o governo tomasse qualquer medida em ordem para
garantir as instituições republicanas na PRATINHA: há ali tantas mulheres,
o sexo forte é coisa tão diminutamente respeitada ali, que não será para
admirar o vermos qualquer dia as referidas mulheres aclamarem d‟entre si
uma soberana, revivendo por esse modo o domínio da rainha Crinoline.
(DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 13 março de 1892)
O artigo intitulado O Reinado das Mulheres publicado no ano de 1892 pelo jornal
Diário de Notícias apela para as autoridades no sentido que eles tomassem as devidas
medidas contra as mulheres do Bairro da Pratinha, pois, ali havia mulheres do sexo forte
que poderiam prejudicar a ordem das instituições republicanas.
Outro artigo que evidência a ocorrência de um conflito envolvendo mulheres, foi
publicado no ano de 1893 sob a epígrafe (Fatos e Boatos) que trata da história de uma
mulher nomeada como ―Joana Maluca‖ que segundo o articulista era ―monarquista de papo
vermelho‖ Joana, entra em confronto com sua rival chamada de ―Boneca de Acapú‖.
Segundo Leal: ―o articulista não podia deixar passar a ocasião de associar à maluquice de
Joana a sua opção política‖ (OLIVEIRA, LEAL. 2009, p. 148).
166
Em outro relato no dia 27 de abril de 1893 o nome de ―Joana Maluca‖ aparece
novamente, nesse caso, envolvida em uma reunião na Rua do Rosário.
A Joaninha mais conhecida como Joana Maluca, ontem às 8 horas da
manhã, fez reunir muita gente na Rua do Rosário quando fazia uma
conferencia sobre Floriano.
Quando aproximei-me do grupo ela dizia ao meu primo Ouro Preto, há de
acabar com estes republicanos de meia pataca antão é que quero ir no Rio
de Janeiro pá capá o sem vergonha do Floriano. O Floriano que se livre de
Joana.
Que sentença! (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 27 abril de 1893. p. 1).
Nota-se nessa passagem, a resistência de Joana frente ao Regime republicano,
sendo que ela menciona que o seu „Primo‟ Ouro Preto, que ficou conhecido como Visconde
de Ouro Preto, uma figura politica do regime monárquico, que seria responsável, segundo a
visão de Joana Maluca, por acabar com os republicanos de ―meia pataca‖. Joana também
ressalta a sua vontade de ir até o Rio de Janeiro ―pá capá‖ o sem vergonha de Floriano,
sendo esse, um militar político que foi vice-presidente e depois o segundo presidente do
Brasil já no Regime da República.
Há ainda nesse mesmo dia e no mesmo jornal a história de:
Uma mulatinha de cabelinho nas ventas e chinelinha nos meios dos pés
escovou maravilhosamente a lata dum condutor de bonde, ante-ontem às 8
horas da noite no largo de Nazaré por que este queria beijá-la. Mau negocio
é o de pedir beijos e receber bofetadas até chorar.
E dizem que pancada de amor não doe safa? (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 27
abril de 1893. p. 1).
Ao se examinarem a citação acima se verifica que essa mulher que foi apenas
mencionada como ―mulatinha‖, ela escovou maravilhosamente a lata dum condutor de
bonde, ou seja, ela bateu nesse condutor, pois, ele tentou beijá-la sem seu consentimento,
essa mulher deu tantas bofetadas nele até fazer ele chorar. O articulista do jornal expõe de
forma sarcástica esse fato dizendo que: e dizem que pancada de amor não doe safa?
Em 1893, o Jornal Diário de Noticias relata a história de Maria das Dores entrou que
em um confronto com Maria Galinha às 8 horas da manhã por conta de ―um trovador de
esquina que era o Romeu d‟aquela‖ (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Belém, 30 abril de 1893).
Em virtude dos fatos mencionados nas passagens de jornais nota-se nelas posição
política e também forma referente ao comportamento feminino, sendo esse ultimo algumas
vezes mencionado de maneira pejorativa, pois, quando a passagem faz menção às
mulheres de alguma forma elas são retratadas como ―maluca‖, ―mulatinha‖, ―boneca de
Acapú‖, sendo esses, termos usado para chamara atenção com uma forma sensacionalista
para esses jornais, e que acabam reproduzindo de forma preconceituosa as narrativas
referentes a essas mulheres.
Porém, mesmo com essas visões hostis, lançadas sobre elas, podem-se observar as
posições tomadas por essas mulheres, em determinadas situações do dia-a-dia. Vejamos
mais um desses casos.
167
Amor, golada e faca
Liduína Alves Mascarenhas, uma cor de café com leite que tem roxa paixão
por um indivíduo vagabundo, foi encontrá-lo em serviços com Maria José da
Conceição.
168
Outro relato que contem passagens sobre a participação de mulheres na capoeira foi
publicada no jornal Diário de Notícias do ano de 1893, sobre a manchete intitulada: História
pândega.
Era uma vez um bombeiro muito metido a sebo e que tinha vontade de
prender um pequeno que levava na cabeça um tabuleiro quando passava
junto do palacete.
A mulherzinha, que estava com a pulga na orelha, cresceu com uma fúria
para o bombeiro, e quando este quis botar valentia levantando a mão para
aplicar-lhe um trunfo, ela estranhou o corpo, fez uma pequena pirueta e
uma tremenda bofetada estrendeou na cara do bombeiro.
Nova menção de valentia. Nova capoeiragem da mulher e... zás! Tome
bolacha na cara, seu bombeiro...
Aí o cabra fraquejou. Vendo que não era mulher pra homem, tirou o
capacete da cabeça, fez a pontaria e arremessou-o contra a mulher.
Errou o alvo ainda desta feita.
A história relata o caso de uma mulher cujo nome não foi evidenciado, e que deu
uma tremenda bofetada em um bombeiro que estava querendo bater em um menino que
levava um tabuleiro na cabeça. Nota-se que crianças trabalhavam nos espaços das ruas da
cidade, algo visto como comum nesses espaços urbanos. Assim, ―o trabalho de menores,
sob orientação feminina, fazia parte do cotidiano das trabalhadoras de Belém‖ segundo
(PANTOJA, 2001 apud OLIVEIRA, LEAL. 2009, p. 155) outro ponto importante, consiste nos
movimentos corporais que a mulher desempenhava ao se defender e atacar o bombeiro.
Pirueta, bofetada e torção no corpo, essas agilidades corpóreas exultadas por essa mulher
mostra que o corpo servia como o elemento principal de sua defesa para se proteger dos
ataques que ela esteve sujeita. SALLES escreveu que ―o negro escravo organizou seu
próprio sistema de defesa. E começou usando o próprio corpo‖ (SALLES, 2015, p. 121).
Outro aspecto que se destaca na passagem acima refere-se à valentia da mulher em
relação à situação que ela se encontrava, onde se falou sobre uma nova menção de valentia
e mais, sobre uma nova capoeiragem de mulher.
169
No Pará, a experiências das mulheres dos segmentos populares nas ruas de Belém,
foi motivo de atenção do poder público, pois, elas representavam uma ameaça para o
processo normativo da manutenção da ordem, logo, deveriam seguir um modelo
comportamental. Nesse viés: ―O corpo se expressava no comportamento social e este, para
ser aceito, deveria seguir normas específicas‖ (OLIVEIRA, LEAL. 2009, p. 138) como foi o
caso das mulheres que frequentavam as zonas de meretrício e as capoeiras. E para que
isso fosse legitimado, a criação de Códigos de Posturas foi decisiva para tratar ―da
regulamentação dos variados aspectos de vida social e cultural da cidade‖ (LEAL, 2008, p.
51), ou seja, os indivíduos, principalmente aqueles que integravam a camada popular, que
não se enquadrassem nesses códigos seriam repreendidos e muitas vezes presos por
condutas que desmoralizavam a moral pública e cívica das cidades.
Dessa maneira, quando se fala em capoeira deve-se ter em mente que essa prática
tinha como participantes tanto homens quanto mulheres, logo, a ideia de que a capoeira era
exercida somente pelo público masculino, não é verídica. Portanto, mulheres estiveram
presentes há muito tempo no exercício da capoeiragem nas ruas da capital paraense.
Assim sendo, contar a história dessas paraenses das camadas populares da cidade
de Belém, que foram excluídas por muito tempo dos relatos históricos, evidência a
construção e o fortalecimento dessa prática cultural afro-brasileira que é a capoeira. Desta
forma, a: ―Liberdade que o negro começou a conquistar e a defender com o próprio corpo.
Com a capoeira‖ (SALLES, 2015, p. 148), é visível nos indícios dessas mulheres paraenses.
A capoeira vem destacar o protagonismo que elas desempenharam ao longo do tempo, na
construção da história da capoeira no Pará. As mulheres estavam presentes nessa
sociedade mostrando o quanto a força feminina resistia às mazelas sociais as quais elas
foram submetidas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
170
REFERÊNCIAS
Fontes
A. IMPRESSA
B. Álbuns Fotográficos
C. Legislação
Código Penal da Republica dos Estados Unidos do Brasil (Decreto nº 847 de 11/10/1890).
Bibliografia
ALMEIDA, Conceição Maria Rocha de. Mulheres, Violência e Cidade: “Demônios de Saias”
na Belém Oitocentistas. João Pessoa: ANPUH, 2003.
ARAS, OLIVEIRA. Sob a pena da lei: Mulheres pobres e marginais. Vitória da Conquista:
POLITEIA: Hist. e Soc. 2003.
HOOKS, Bell. Ain’t I a woman Black women and feminism. Tradução livre para a Plataforma
Gueto. Janeiro 2014.
171
OLIVEIRA, Josivaldo P, LEAL, Luiz Augusto P. Capoeira. Identidade e Gênero: Ensaios
sobre a história social da Capoeira no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2009.
172
#NAOMEROTULE: JUVENTUDE, IDENTIDADE E
DIFERENÇA EM BELÉM/PA
https://doi.org/10.29327/527231.5-11
Kirla Korina Anderson Ferreira – IFPA
Bruna Conceição de Souza Barata – IFPA
Resumo
Introdução
Dentre o que o foi relatado pelos alunos, destacamos quatro categorias principais que são
família, educação, namoro/amizade e expectativa/frustração, que são uma noção mais
ampliada das formas de socialização na juventude. A partir destas categorias iniciamos a
discussão acerca do tema. Neste sentido, procuramos compreender os processos que
norteam a construção da identidade dos jovens na sociedade.
173
Resultados e Discussão
A atividade linha da vida, que inspirou as reflexões que apresentamos neste trabalho, foi
desenvolvida no contexto da discussão do Eixo Temático Cultura e Identidade, em uma turma de
segundo ano do ensino médio, em uma instituição de educação profissional e tecnológica. Em
linhas gerais, este eixo busca pensar criticamente o particular e o universal acerca da cultura nas
sociedades humanas. Na antropologia, o conceito de cultura é apresentado em contraposição à
ideia de erudição e refinamento do senso comum e serve para se referir à humanidade como um
todo (todos têm cultura), mas que precisamos observar suas especificidades em cada contexto
social (DAMATTA, 1981; LARAIA 2011 [1983]).
Para abordar as temáticas desse eixo, procuramos sair da aula expositiva, e utilizamos, então, a
metodologia de roda de conversa, para que se sintam a vontade para falar do assunto. Na roda
de conversa, o ponto de partida costuma ser o que compreendem acerca dos conteúdos, o que
auxilia na proximidade professora-alunos, à medida que provoca um exercício de compreensão
mais ampliada de nossas experiências pessoais e nossa relação com o mundo.
―Quem manda na minha casa é a minha mãe (...). Ela colocou meu
pai para fora quando descobriu que ele tinha outra mulher. A mulher
pequena, mas muito braba. Ela bate bem aqui em mim [ele aponta
a altura um pouco abaixo de seu ombro], mas até eu tenho medo de
deixar ela com raiva.‖ (Sérgio, 17 anos)
174
―Mulher tem que ser obediente para o marido, sim. Isso está na
Bíblia. Minha mulher vai ter que ser assim comigo, minha mãe é
assim lá em casa.‖ (Felipe, 15 anos).
―As coisas estão mudando, mas ainda não penso em casar, não.
Quero mesmo é estudar engenharia e ganhar o meu dinheiro. Meu
pai me dá o maior apoio nisso (...). Ele disse que é até melhor eu
nem namorar ainda, para não me atrapalhar.‖ (Natália, 17 anos).
As falas nos dão um pouco a dimensão de como percebem gênero e sexualidade, tendo
como referência, muitas vezes, aquilo que ouvem em suas famílias, na igreja que costumam
freqüentar, entre os amigos. Ademais, eles demonstram interesse pela diversidade nas
relações humanas, principalmente no que se refere à identidade de gênero e sexualidade.
Acontece, ainda, de um ou outro deixar claro que não se interessa pelo tema, ou não queira
tratar dele – em um clara referência à desqualificação das pesquisas acadêmicas na área
sob o rótulo de ―ideologia de gênero‖, que reforçam o conservadorismo de grupos políticos e
religiosos do país (MISKOLCI e CAMPANA, 2017; REIS e EGGERT, 2017).
175
Quadro 1: Principais assuntos destacados na linha da vida
CATEGORIAS PRINCIPAIS EVENTOS CITADOS
Família - Relação com os irmãos
- Separação dos pais
- Orientação sexual e identidade de gênero
- Viagens e/ou mudança de endereço
- Falecimento de pai, mãe, avô e/ou avó
- Animal de estimação
Educação - Ingresso no IF
- Mudança de escola
- Curso de línguas/Intercâmbio
- Curso de teatro
- Artesanato
- Prática de esportes/competições esportivas
- Sofreu bullying
- Eventos na igreja/ação social
Namoro/Amizade - Primeiro beijo
- Conhecer pessoas novas
- Início e/ou término e namoro
- Fazer amizade/Conhecer melhor amigo/a
- Morte de um amigo
- Decepção com amizade ou namoro
- Primeiro porre
Expectativas/Frustrações - Ir a uma festa ou show
- Virar fã de um artista
- Sentem-se fracos e inseguros
- Cobrança para ser um/a bom/boa aluno/a e
também um/a bom/a filho/a
- Depressão
- Medo do fim do mundo/copa do mundo
Fonte: Atividade de sala de aula, 2016 a 2018.
176
está num campo de representações, símbolos e rituais, que esse mesmo autor classifica
como mundo da cultura.
O momento da aula está longe de ser algo técnico, pronto e acabado, em que se discutem
mecanicamente conteúdos, teorias, disciplinas, mas um universo relacional, em que
estranhamento e alteridade estão presentes, como nomes importantes da antropologia nos
tem chamado atenção (MALINOWSKI, 1978; DAMATTA, 1987; GEERTZ, 1989; CARDOSO
DE OLIVEIRA, 2006). O que emerge da relação de alteridade em sala de aula, sob o ponto
de vista antropológico, é a figura do professor como um interlocutor, e que os jovens querem
ser ouvidos em suas identidades, expectativas, frustrações, sonhos.
Carvalho Filho (2014) mostra que o ensino de sociologia no ensino médio é um problema que diz
respeito à construção e transmissão de um saber e está ligado à sua institucionalização no meio
acadêmico e de seu ensino. Implica também considerar sua função social, sua razão de ser.
Assim, dada a natureza de produção do conhecimento das ciências sociais, nossa disciplina está
diante dessa aproximação entre professor e aluno, uma aproximação necessária no atual
contexto de fluidez das relações sociais na sociedade moderna.
A tabela abaixo representa o número de vezes que cada evento foi citado pelos alunos,
tendo como ênfase aos eventos citados no quadro 1 do tópico 1.
177
Prática de esportes/competições 4
esportivas
Sofreu bullying 4
Eventos na igreja/ação social 5
Primeiro beijo 6
Conhecer pessoas novas 3
Início e/ou término e namoro 8
Fazer amizade/Conhecer melhor 7
amigo/a
Morte de um amigo 4
Decepção com amizade ou namoro 2
Primeiro porre 2
Ir a uma festa ou show 3
Virar fã de um artista 3
Sentem-se fracos e inseguros 1
Cobrança para ser um/a bom/boa 2
aluno/a e também um/a bom/a filho/a
Depressão 1
Medo do fim do mundo/copa do mundo 4
Fonte: Atividade de sala aula, 2016 a 2018
Ao analisarmos as linhas da vida percebemos que os alunos não tiveram timidez para descrever
os acontecimentos que marcaram as suas vidas, principalmente quanto aos episódios que
estavam relacionados a namoro, emoções, família e sobre suas personalidades. A percepção
deles acerca da construção de sua identidade está relacionada
forma com eles interagem com o meio e com as pessoas que fazem parte deste
momento. Segundo eles:
178
A ideia que eles construíram sobre si mesmo é interessante, quando começamos a ler o que
foi escrito por eles percebemos o quanto eles enfatizavam a palavra amadurecimento, para
eles esta ideia estaria vinculada a acertos e erros. A família e os amigos têm um papel
importante neste amadurecimento. Não há uma necessidade de estarem entrelaçados em
um grupo só, mas sim de estar em um ambiente diversificado, que possibilite um número
infinito de experiências, que estariam vinculadas a expectativas e frustações.
Devemos destacar também as expectativas que sentiram com relação ao ingresso no IFPA
como um marco importante na sua vida, que estão ligadas à possibilidade de construir
novas amizades, de ascensão social e de novas experiências. Muitos relataram a alegria da
família por terem conseguido passar no processo seletivo e das expectativas que os
familiares criaram sobre eles.
Quando encontramos os alunos para falar sobre a linha da vida e o queríamos fazer com
estas informações, os alunos ficaram felizes e demostraram interesse em saber mais sobre
aquilo que nós estávamos apresentando. No momento em que nós estávamos conversando
com eles, muitos até brincaram, que queriam adivinhar de quem seria aquela história.
Aquele encontro formal se tornou um momento de descontração, onde foi permitido falar
sobre diversas coisas.
A turma começou a relatar outros episódios. Naquele momento eles (sem nenhuma timidez)
contaram às frustrações que eles sentiram quando ingressaram no instituto, e que mesmo
que eles tivessem vivenciado momentos bons com os amigos e com curso em si, sentiam-
se muitas vezes desrespeitados e que as cobranças exacerbadas da instituição os
deixavam desmotivados. Alguns alunos relataram que muitas vezes tentaram pedir o apoio
dos órgãos de assistência do instituto, mas não tiveram retorno algum e, segundo eles, não
foram levados a serio.
A partir do relato dos alunos podemos pensar que educação estamos oferecendo aos
jovens? Será que a valorização do sistema de avaliação seria realmente algo eficaz? Que
consequências ela pode causar ao jovem? Seria necessário montar um currículo
humanizado?
As frustrações relatadas pelos alunos iam além do âmbito escolar, pois muitos descreveram as
dificuldades que enfrentam para lidar com a família e com os amigos. O sentimento de não
aceitação da família, fazia com que cobrassem de si ao máximo. Alguns jovens relataram que o
seu ingresso no IFPA foi uma forma de aliviar a pressão da família com relação aos estudos.
Como formar de provar que eles eram diferentes da ideia que os familiares tinham sobre eles.
179
A presença da família não está em todas as linhas da vida, mas muitos apresentam algo em
comum, como por exemplo o divórcio dos pais. Os alunos contaram como foi este processo
de separação e como os amigos acabaram sendo importantes neste momento. Dentre os
relatos alguns acabaram indo morar na casa de parentes devido ao ocorrido. Um jovem
contou que durante o período em que estava morando com os parentes, sentia-se
pressionado a voltar para a casa da mãe. Ele afirma que foi morar com mãe em decorrência
dos conflitos dos tios com a mãe.
―Fui morar em Marituba, junto com a minha mãe e meu irmão, já que o
meu padrasto ainda estava desempregado na época não tinha como
eu ir morar com a minha mãe, mas de tanto os meus tios acusarem
que a minha mãe tinha me abandonado, com tudo que tava
acontecendo quis morar com ela‖ (Marcos, 17 anos)
Este relato não foi somente do Marcos, mas sim de outros que sentiam-se pressionados a
sair de casa em decorrência de conflitos familiares. Em relação às pressões da família, elas
são mais contadas pelos rapazes. Essas pressões estão ligadas à expressão de
sentimentos, ao comportamento, a beijar (ou ―pegar‖ alguma menina, como um deles
relatou), a ser um bom aluno, todos eles relacionados a uma determinada ideia de
masculinidade. Quanto às falas das meninas, podemos também perceber pressões quanto
ao sucesso nos estudos principalmente. Nessas situações muitos apresentaram uma
maturidade diante das situações, pensando nas consequências que isso poderia ocasionar.
Os jovens eram extrovertidos e que buscavam lutar por aquilo que almejavam, não se
reprimindo as injustiças. Sempre buscando de alguma forma colocar para fora suas opiniões
acerca de determinadas situações do cotidiano.
Considerações Finais
Diante desses relatos, qual é a importância do professor em sala de aula? Como a sociologia
contribui para a discussão de assuntos da vida na história dos jovens da EPT? Neste sentido,
emerge a importância de se refletir sobre da relação entre professor e ALUNOS no contexto das
aulas de sociologia no ensino médio, com o objetivo de compreender antropologicamente a aula
como um momento de encontro etnográfico, em que estamos muitas vezes confrontando
subjetividades nas discussões dos temas da disciplina.
Tratar gênero e sexualidade em sala de aula é uma temática longe de unanimidades, que
desperta muita curiosidade entre os jovens e costuma se confundir com a experiência pessoal
180
de alguns deles, o que se reflete em um sistema de classificações (hierarquizantes) que
eles acionam para falar de si e dos outros durante as aulas.
Entretanto, neste mesmo contexto de discussão, há também opiniões quanto à dificuldade
de se compreender comportamentos que não se ―encaixam‖, como eles disseram, nas
definições binárias de gênero e, menos ainda (se for para seguir por esta linha de
raciocínio), quando se inclui na análise o que se entende por orientação sexual.
Ademais, o trabalho oferece subsídios para se entender a juventude como um momento
presente na vida dos estudantes de ensino médio, marcada por processos de
experimentações, curiosidades, e com demandas na escola e fora da escola, que precisam
ser ouvidas e atendidas. Por toda esta pluralidade apresentada nas linhas da vida discutidas
aqui, um dos significados mais importantes acerca da juventude (se é que podemos falar
assim) diz respeito a não aceitarem uma definição vinda de fora, um rótulo, que não leve em
consideração as vivências e experimentações pelas quais estão passando.
Referências:
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Belém/PA. Belém/PA: UFPA, 2013. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. 221 fls.
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182
AT 2 - Gênero, Cidadania e Participação Política
Coordenação
183
V ENCONTRO AMAZÔNICO SOBRE MULHERES E GÊNEROS – GEPEM
19 a 21 de novembro de 2019
Universidade Federal do Pará (UFPA)
184
185
DESIGUALDADE E REPRESENTATIVIDADE FEMININA: UMA ANÁLISE SOBRE
AS REPRESSÕES E REPRESENTATIVIDADES FEMININAS NO JOGO FREE
https://doi.org/10.29327/527231.5-12 FIRE
Assim como ocorre discriminação de mulheres na vida real, o meio virtual pode ser marcado
também por essas características, e quando o assunto é sobre jogos, grande parte da sociedade
ainda ver o mundo gamer voltado para o público masculino. Partindo dessas questões, o
presente trabalho tem como fim demonstrar a representatividade feminina no jogo Free Fire, bem
como tratar das represálias que o público feminino sofre nos jogos digitais. Para isso, foi utilizada
a abordagem qualitativa, com entrevistas semidirigidas realizadas de forma presencial e virtual,
sendo assim, não há como delimitar um espaço geográfico para a pesquisa, tendo em vista que
a pesquisa ocorre em boa parte no ciberespaço. Feita a análise de dados, se observou a
presença de diversas posições das interlocutoras, tendo como a mais semelhante o sentimento
compartilhado de um orgulho dessas mulheres por estarem em um meio considerado masculino
e ainda assim terem um bom desempenho, mas apesar dessa sensação de empoderamento, se
constatou que o meio gamer, e especificamente o jogo Free Fire continua sendo um espaço
marcado por opressões e discriminações voltadas para o público feminino, o que leva a reforçar
ainda mais uma luta em busca de respeito e reconhecimento para com meninas e mulheres
gamer‟s.
Abstract
Just as real-life discrimination against women occurs, the virtual environment can also be
marked by these characteristics, and when it comes to games, much of society still sees the
gamer world geared toward the male audience. Based on these questions, this paper aims to
demonstrate the female resultativeness in the ―Free Fire‖ game, as well as to addressing the
reprisals that the female audience suffers in digital games. Thereunto, the qualitative approach
was used, with semi-directed interviews conducted in person and online, so there is no way to
delimit a geographical space for research, given that the research takes place largely on the
cyberspace. After analyzing the data, we observed the presence of different positions on the
interlocutors, the most similar being the shared feeling of pride between these women for being in
a mostly male environment and having great performances as players, however, despite their
feeling of empowerment, it has been found that the gamer environment, and specifically the ―Free
Fire‖ game remains a space marked by oppressions and discriminations aimed at the female
audience, which leads to further reinforcement to the fight for respect and recognition
towards gamer‟s girls and women.
186
Introdução
Os jogos digitais atuais, principalmente os jogos online como o Free Fire, que é um
jogo considerado novo no cenário gamer, não se distancia totalmente dessas características
demarcadas por Huizinga (idem) ao tratar do jogo, tendo em vista que os jogos online estão
presentes na cultura digital e no cotidiano – como já mencionado – principalmente dos
jovens. Kikuch, Schimiguel e Silva (s/d) abordam tais questões salientando a expansão dos
jogos, tendo eles não apenas como formas de divertimento ou passa tempo, mas como um
esporte em construção, os denominados e-sportes ou esportes digitais que geram grandes
campeonatos, megaeventos, e com isso uma expansão também no mercado financeiro e,
tudo isso afeta de alguma forma o meio sociocultural, como eles próprios têm a dizer que a
―imersão dos games, traz-se elementos que interferem de forma significativa no meio
sociocultural, sejam elas boas ou ruins, mas sempre significativas aos jogadores emergidos‖.
( KIKUCH, SCHIMIGUEL e SILVA, s/d, p. 9).
Com essa variedade de percepções e utilizações dos meios digitais, com ênfase nos
jogos, se leva a pensar também nas desigualdades e preconceitos sociais que podem
promover, tendo em vista a vivência em uma sociedade onde se tem esses diversos fatores
que intensificam as desigualdades, dentre elas a elucidada por este texto, a saber: a
desigualdade de gênero. A relevância deste debate apresenta-se nos recorrentes dados
divulgados sobre os altos índices de violência contra mulheres, chegando a 79.661 mil
187
1
denúncias no Brasil em 2018 , o que faz com que seja inegável a coexistência de uma
sociedade patriarcal, onde as desigualdades de gênero se apresentam de uma maneira
gritante, o que se destaca também no meio digital.
Metodologia
Nas Ciências Sociais, se tem uma característica bem específica que é a busca
incansável de entender os diversos casos, e o ciberespaço não se distancia, pelo contrário,
se torna um grande objeto de pesquisa por conter nele diversas formas de interações
sociais. Segata e Rifiothis (2016) destacam a etnografia no ciberespaço, um meio que leva a
elaboração de novas metodologias.
MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. MDH divulga dados sobre feminicídio. [2018]
Brasília. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/agosto/ligue-180-recebe-e-
encaminha-denuncias-de-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 11 nov de 2019.
188
liberdade para as interlocutoras em expressar suas vivências e com intuito de alcançar o
objetivo do trabalho, tendo bases teóricas de uma revisão bibliográfica.
O meu interesse por investigar e estudar sobre o tema partiu de diversos fatores,
iniciando com o tema do meu trabalho de conclusão de curso que aborda os jogos digitais e
seus processos de socialização, o que me levou até mesmo a jogar o jogo Free Fire por um
período. Outro ponto importante por me instigar a realizar tal pesquisa foi ter contato
cotidiano com uma amiga também que joga o Free Fire e ouvir sempre suas reclamações
sobre a falta de credibilidade no jogo diante do público masculino pelo simples fato de ser
mulher, com isso, comecei a curiosidade científica por entender um pouco mais as relações
de gênero no meio concreto e relacionar com o meio digital – sendo a área que mais me
motiva em relação a pesquisa –, que não se difere da realidade do dia a dia, muito pelo
contrário, reflete e está intrinsicamente ligado com o cotidiano de cada indivíduo.
Assim como as redes sociais da internet, os jogos digitais permitem esse contato
com o outro por meio de vídeos chamadas, chats durante as partidas, comunidades games,
o que demonstra uma grande forma de socialização, mas também pode ser uma maneira de
promover uma segregação com alguns públicos, inclusive com o feminino. Araújo e
Castilhos (2017) tratam em seus escritos sobre o preconceito direcionado as mulheres no
meio gamer, marcado por uma cultura machista que vem sendo enraizada ao longo dos
anos e naturalizada com a formação da sociedade patriarcal. ―Pode-se afirmar que a
comunidade dos esportes eletrônicos está demasiadamente infectada pela cultura
machista‖. (ARAÚJO, MENTI e CASTILHOS, 2017, p. 81).
Quando se aborda a questão dos meios digitais e jogos em uma análise sociológica, se
torna necessário ressaltar o que venha a ser essa sociologia digital. Para Miskolci (2016), a
sociologia digital é vista como um campo de análise emergente, outros dizem ser um meio que
possa ser capaz de explicar as relações midiatizadas, e ainda há também os que dão seu
189
parecer sobre a possibilidade da criação de novos conceitos que sobre essa temática,
modificando assim a disciplina, dando um novo ar metodológico na forma de analisar.
Os jogos digitais são uma das diversas maneiras de interação e conectividade por
meio dos aparatos tecnológicos. Moita (s/d) em suas pesquisas aborda bastante esse meio
gamer, destacando como o jogo está presente na vida dos indivíduos, algo que já é uma
característica da espécie humana, sendo desenvolvida de uma forma física e mental, uma
complementando a outra, gerando ainda mais atratividade do ser humano para a ação do
jogar. A referida autora menciona que os games surgiram e criaram um novo padrão
advindo dos meios tecnológicos, se tornando um padrão universal encantando e fascinando
cada vez mais pessoas.
O jogo, segundo Moita (s/d), leva o indivíduo para um meio onde se tem a presença
de variadas possibilidades em um piscar de olhos, ao alcance do jogador, movidos pela
emoção que os tomam de conta, expressando também suas visões de mundo no espaço
dos jogos, atribuindo tal meio ao significados que também são utilizados em seu ambiente
concreto da vida real, levando também um contato com visões e identidades de muitas
190
pessoas ao mesmo tempo, juntando assim ―um novo conjunto de saberes, numa arena onde
estão as diferentes visões de mundo de quem joga, às quais se juntam as representações,
as narrativas e os significados que cada um atribui‖. (MOITA, s/d. p. 3).
Um discurso, segundo Foucault (2002), na maior parte das vezes busca impor algo,
seja uma ideia de adoção ou exclusão. Entre os variados tipos de discurso, ressalto o
discurso machista, criado e promulgado sob uma óptica da sociedade patriarcal, na qual se
tem uma dominação masculina, visando assim, a submissão feminina.
191
certo número de novos actos de fala, actos que os retomam, os transformam ou
falam deles, numa palavra, os discursos que, indefinidamente e para além de
sua formulação, são ditos, ficam ditos e estão ainda por dizer. Sabemos da sua
existência no nosso sistema de cultura‖. (FOUCAULT, 2002, p. s/n).
Casarino, Quevedo e Gervagoni (2014) também realizam uma análise histórica sobre a
discriminação contra a mulher, fazendo todo um aparato histórico desde a Grécia antiga, idade
média, até os dias atuais, ressaltando sempre a submissão feminina diante dos homens. Apesar
de muita coisa ter mudado no cenário atual, mulheres ainda sofrem diversas repressões,
havendo ainda um pensamento de inferioridade diante do público masculino, esse pensamento
se manifesta de diversas maneiras como por violência física, sexual, moral, econômica e
psicológica, tendo assim uma violação a todo o momento dos direitos humanos.
A partir das entrevistas realizadas com oito meninas de idades entre 16 a 26 anos, pude
entender melhor o que o jogo simbolizava para elas e quais dificuldades essas mulheres
encontravam no meio gamer, principalmente sobre o fato de ser mulher e gamer ao mesmo
tempo, levantando questões de uma sociedade patriarcal, extremamente machista, e que
perpassa também os limites do real e virtual. Concretizei como verdade essas questões por meio
dos relatos dessa mulheres, que se propuseram a dedicar alguns minutos do seu tempo
192
para realização dessa pesquisa, o que me causa felicidade por perceber que mulheres estão
ocupando seus espaços sociais, mas que me entristece também por constatar que há
muitas repressões e amarras do preconceito presentes ainda. Para manter a integridade das
minhas entrevistadas, a proposta é manter o anonimato e usar codinomes para cada uma.
A primeira entrevistada tem 16 anos, a entrevista foi realizada por meio de redes
sociais que facilitaram a comunicação. Iniciei a entrevista fazendo perguntas que
contextualizassem o jogo e que ela pudesse responder qual o significado do jogo para ela, a
mesma respondeu que era uma maneira de se distrair e se divertir com seus amigos; a
interlocutora afirmou que joga desde de fevereiro de 2018 – é importante ressaltar aqui que
o jogo Free Fire é um jogo considerado novo, com seu início por volta do segundo semestre
de 2017 – e continua até o momento; mas adiante perguntei também se ela acreditava que o
jogo tivesse desempenhado algum impacto na sua vida e ela respondeu:
Até esse momento meu objetivo era entender como a minha interlocutora se
relacionava com o jogo e de que forma o jogo a influenciava, porém, a pesquisa enveredou
para outros caminhos e outras contribuições. Aos poucos fui adentrando no assunto da
participação feminina no jogo, e passei a questioná-la se já havia ouvido ou sentindo alguma
repressão por ser mulher e jogadora, e ela respondeu:
193
Assim como presenciei, na fala de Artemis, diversos ataques sofridos, percebi
também posteriormente nas demais entrevistadas. Com os depoimentos o preconceito,
discriminação e violentação do ―ser mulher‖, manifesta os limites impostos pelo domínio de
espaços destinados para homens e espaços destinados a mulheres, indícios e
características da sociedade patriarcal. Além dos ataques constatados, perguntei a Artemis
sobre a presença de Mulheres líderes de comunidades games, no caso do Free Fire, as
chamadas guildas, e entrevistadas relatou que na guilda na qual fazia parte só havia uma
líder feminina, e na composição do restante do grupo admite que,
interessante relacionar esse relato com alguns escritos de Moita (s/d) ao utilizar de
conceitos demonstrados por Elias (2000), no qual elabora a teoria sobre os estabelecidos e
os outsiders, tendo os outsiders como aqueles que possuem uma visão de si e do restante
da sociedade como inferiores a determinadas pessoas, são os excluídos, os marginalizados,
enquanto os estabelecidos são os que dominam determinado meio, os que são
considerados melhores. No texto, a autora relaciona os outsiders com a figura feminina no
jogo que a todo momento sofre repressão e incredibilidade enquanto os estabelecidos são
os homens, aqueles que acreditam serem os donos de tal meio, e considerados
representantes do meio gamer também diante da sociedade.
194
meninas reconhecidas e o tanto de meninos conhecidos é uma diferença
enorme, tu pode citar vários, vários, eu tiro por mim, eu sei muitos meninos
que jogam, mas eu não sei muitas meninas que jogam, até por conta do
reconhecimento que eu te disse. (Artemis, 16 anos).
Acho que eles deviam exaltar mais o lado feminino, até porque, se tu não
sabe, só tem Pro league com os meninos, e isso faz com que muita gente
ache que nenhuma é competente, fora que eles só exaltam os homens que
jogam, os youtubes, sendo que tem muitas meninas que jogam também.
(Tóquio, 22 anos).
Isso aí é o que mais a gente ouve entendeu? Tipo, tem meninos que, tipo,
2
tu ver que tem vamos supor duas, três mulheres no squad , a gente chama,
não jogam entendeu, porque pensam que a gente não tem a mesma
jogabilidade, que a gente não sabe jogar, só de tu ser mulher eles já acham
que a gente não sabe jogar. (Nia, 20 anos).
195
ela relatou que estava bastante nervosa por jogar com pessoas de patentes mais altas.
Ressaltou ainda da falta de visibilidade por ser um campeonato pequeno, pois o squad que
participava tratava-se do segundo da guilda e não o principal, o principal participava de
campeonatos maiores formado apenas por homens.
A maioria das entrevistadas não tinham filhos, a não ser por Lana, o que trouxe uma
nova representação para a pesquisa, não eram apenas meninas que jogam, mas uma
mulher, mãe, jogadora, com ótimas habilidades de jogadora e líder de guilda, mas ressaltou
que infelizmente a liderança feminina nessas comunidades não se apresenta com facilidade.
O jogo vai do treino, qualquer coisa que a gente faz na vida é assim, vai do seu
esforço, do treino; eu conheço meninas que jogam muito mais que meninos e
conheço meninos que jogam muito mais que meninas, eu acho que isso vai
muito do dia, muito do tempo, mas taxar que um menino joga melhor que uma
menina, isso não existe, não existe mesmo, eu particularmente sou uma ótima
jogadora de free fire, na minha equipe eu sou líder da minha guilda entendeu?
Tenho ótimas jogadoras de free fire, conheço ótimas jogadoras de free fire e
inclusive na minha guilda eu tenho uma menina que eu garanto que ela dá show
em qualquer menino. (Lana, 26 anos).
possível fazer interlocução com a teoria exposta pelas autoras Bristot, Pozzebon e
Frigo (2017), ao abordarem a representatividade das mulheres nos games em suas
pesquisas. As autoras compreendem que o crescimento da indústria gamer encontra-se em
ascensão, uma vez mais, se tornando maior do que até mesmo a indústria cinematográfica,
onde seu público-alvo se torna o masculino, por toda uma construção social criada onde a
figura do homem é vista como pertencente ao meio gamer, e isso leva a uma
3
desqualificação e falta de reconhecimento de mulheres enquanto gamer .
Pessoa que joga muito bem determinado jogo e pode também se profissionalizar neste meio.
196
Consideram que ―os games não são livres de conteúdos ideológicos e refletem como a
sociedade se organiza transpondo em seus personagens principalmente no designer gráficos e
jogabilidade, os seus aspectos culturais. (BRISTOT, POZZEBON e FRIGO, 2017, p. 863).
Tal questão de ideologia pode ser analisada também desde a década de 80, na qual
não havia a presença de um grande público feminino nesse meio, o que levou a indústria
gamer criar jogos que fossem considerados de meninas, ou que tivesse um enredo que
fosse atrativo para as meninas, como por exemplo o jogo Pac Man, onde se tinha presença
de um casal romântico, o que para o restante da sociedade era algo que atraia o público
feminino, a partir daí, foram criados diversos games com nomes bem específicos sendo
―jogos para meninas‖, os famosos Pink games. (Idem).
Ao passar do tempo meninas, mulheres, já não se sentiam atraídas por jogos que
fossem considerados apenas para ―meninas‖, e é isso que vem gerando uma mudança nos
padrões, porque as mulheres não estão mais se contentando com esse espaço secundário
no mundo dos jogo on-line, e desejam participar dos outros jogos que são direcionados em
maior parte para o público masculino. Tal realidade é visível em jogos como o Counter-
Strike, o próprio Free Fire, que são jogos de tiros. No caso o Counter-Strike do gênero First
Person Shooter que é o tiro em primeira pessoa e o Free Fire que é do gênero Battle Royale
que também envolve tiro, mas se joga em uma arena com dezenas de pessoas sobrando
apenas um no fim do jogo
Mais uma vez a teoria dialoga com a realidade e expressa-se em uma das falas das
interlocutoras.
Várias vezes, assim, eu acho que já foram tão repetitivos os comentários que
eu nem me surpreendo mais, é do tipo que „aaa, ela é mulher mas ela joga
bem‟ ‟tu é mulher e joga melhor que o teu namorado‟ „o teu namorado tá
perdendo pra ti‟, são esses comentários entendeu? Aí questão de assédio
também, ficar pedindo o número, eu tava jogando com um squad aleatório aí
197
4
caiu homens, aí eu ia e matava um cara, tipo, papava a kill do cara, aí
começavam a me xingar de gostosa de isso e aquilo, de puta, essas coisas,
aí ―bora matar essa vagabunda‟, esse foi o mais chocante que eu escutei‖(
Yuka, 19 anos)
Assim como Yuka, Artemis e Tokio também destacaram os comentários que mais se
sentiram desvalorizada e relata o que já ouviu dos outros gamers: ― „Oxe, cê é menina, fica
quieta aí!‟. Eu acho que foi esse aí, faz tempo, mas eu lembro dele porque eu fiquei chocada
sabe?‖ (Artemis, 16 anos).
Já aconteceram muitas coisas que eu fiquei com raiva, mas eu só apago (...),
deixa eu tentar lembrar, „mulher é um lixo jogando‟, ouvi isso de um cara que
uns amigos chamaram, fiquei bem chateada, pq ele ficou me xingando sem eu
fazer nada, só que eu nem revidei como devia, porque ele fazia parte da guilda
que tava, aí eu levei pro líder e ele meio que resolveu com ele. Fiquei mais
chateada porque o meu amigo não disse nada; parei até de falar com ele, não
que eu precisasse de ajuda pra colocar ele no lugar, mas pow, era 2 contra 1 e
eu claro que saí perdendo. (Tokio, 22 anos)
O jogo Free Fire assim como outros jogos possuem avatares femininos
extremamente sexualizados, explicitando o corpo dos avatares femininos, e até nesse
quesito pode se perceber a presença do machismo e da predominância masculina, dos
discursos e retóricas que estão sendo transmitidos e que acabam por reforçar e propiciar
atos como os sofridos pelas meninas destacadas na pesquisa.
198
estarem jogando um jogo que é considerado pela sociedade como masculino e que medidas
poderiam ser tomadas para que essa discriminação diminuísse? E elas responderam que:
Olha, eu assim, eu não vou mentir pra ti, eu tenho meio que orgulho de
dizer que eu jogo e de dizer que eu jogo bem, tem umas coisas legais e tals,
e eu gosto de dizer que jogo. Mano, eu sou dima I, mas eu já peguei
mestre. Eu acho que uma atitude, que viesse da própria garena, a criadora
do jogo, fizesse um campeonato ao mesmo nível de reconhecimento da pro
league, a pro league é uma campeonato nacional com os melhores
jogadores de free fire do Brasil, tivesse esse campeonato, só que só pro
lado feminino, pra que tivesse mais um reconhecimento, tivesse mais
meninas e tudo mais, na proleague tem meninas, mas tipo assim, são
poucas sabe? (Artemis, 16 anos).
A violência vista não se configura como física – mas pode haver casos em exceção
quando se remete a algumas perseguições reais que as jogadoras sofrem –, mas uma
violência moral, psicológica e simbólica como Freitas (s/d) destaca, partindo do princípio da
ideia de uma superioridade e masculinidade do ser homem, exercendo essa dominação
sobre o feminino, e essa violência simbólica pode ser transmitida por meio de instituições,
estado, a escola, e as mídias, onde se encaixam os jogos digitais, utilizando uma maneira
de oprimir e desvalorizar certos indivíduos, onde se salienta então a figura da mulher.
Essa violência pode ser observada também nas pesquisas de Fortim e Grando (s/d),
nas quais ressaltam os obstáculos encontrados nas comunidades games, quando destacam
199
as questões de gênero e participação feminina, grifando que há vários obstáculos impostos
pelas comunidades games, com atitudes de aversão e desrespeito direcionados as
mulheres sejam em forma de assédio ou qualquer forma de preconceito, e ainda também o
fato de grande parte dos homens atribuírem as falhas nos jogos a figura feminina.
E isso foi exatamente o que foi relatado pelas entrevistadas como nas falas mais
marcantes especificamente para mim, que foi a da Ártemis e da Yuka ao se referir as
comunidades que participam, as chamadas guildas e a falta de credibilidade e
desvalorização das jogadoras pelo público masculino, buscando demonstrar que o domínio
daquele espaço não pertence a elas, mas sim ao homens, aos jogadores, aqueles que já
exercem uma certa dominação na sociedade fora do meio virtual, mas que buscam dar
prosseguimento também no meio gamer, um lugar no qual contém uma história marcada
pela publicidade voltada para a comunidade masculina.
Conclusão
200
durante a pesquisa, com altas habilidades –, perceber o orgulho que minhas entrevistadas
sentem ao se auto intitularem jogadores de Free Fire, conquistando seus espaços,
quebrando as amarras sociais da construção do que e ser mulher ou homem. Infelizmente
ainda há muito por se fazer, muitos discursos e ideologias por quebrar, muito desrespeito
por derrubar e denunciar, muita conscientização a se realizar, mas a presença feminina nos
jogos digitais é real, a jogabilidade feminina é incontestável, por isso digo, continuem
jogando, representando, se empoderando e acima de tudo, jogando como mulheres.
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202
EXISTE GESTÃO SOCIAL NA MARCHA DAS VADIAS?
Resumo
O artigo tem como objetivo principal analisar a incidência da gestão social nas ações protagonizadas
por mulheres inseridas na marcha das vadias, partindo do pressuposto de que a gestão social
valoriza a participação da sociedade nas tomadas de decisões sociais e políticas. Este trabalho é de
cunho qualitativo e consiste na revisão bibliográfica de artigos já publicados sobre teoria da gestão
social, pelos movimentos sociais e feministas e da marcha das vadias. Os principais resultados são: i)
a gestão social não incide na marcha das vadias, e ii) a gestão social busca o empoderamento no
sentido de resgatar o interesse político da sociedade. Consideramos que o tema
Ā Ā Ā Ā Ā
mportante para os debates acadêmicos através de uma visão interdisciplinar, principalmente porque
a participação política das mulheres está presente em todas as áreas do conhecimento.
Palavra-chave: Marcha das Vadias, Gestão Social, Participação Social e Política.
Abstract
The article aims to analyze the incidence of social management in actions spearheaded by
women inserted. The study assumes that concepts of social management value society’s
participation in making social and political decisions. This work uses a qualitative approach
and consists of bibliographic review of articles published on the theory of social
management, social movements and feminism and the movement called Slutwalk. Main
results include: i) social management does not address the Slutwalk movement, and ii) social
management seeks empowerment in order to bring back society’s political interest. We argue
that the issue is important to academic debates due to its interdisciplinary approach given
that the political participation of women is present in all areas of knowledge. Keyword:
Slutwalk, Social Management, Social Participation and Policy.
INTRODUÇÃO
A Administração Pública pode ser analisada através de três modelos, a saber: (1)
Modelo Patrimonialista guiado pelos interesses pessoais dos gestores nas tomadas de decisões;
considerada uma gestão pouco eficiente para as políticas públicas, não havendo empenho
para com os interesses da sociedade; (2) Modelo Burocrático nasceu com o objetivo de proteger
o Estado contra a corrupção e o nepotismo que existia no modelo anterior; e, o
Modelo Gerencial que nasce com as ideias de descentralização e flexibilização
administrativa tendo como características ―a orientação para o cidadão, busca pela obtenção
dos resultados, descentralização do poder decisório entre outros‖ (SANTOS, 1994).
A evolução do processo democrático na sociedade brasileira embasa este estudo
por ser um tema de grande valia para os debates teóricos. Sendo assim, a participação
204
social na esfera pública movimenta e proporciona ao cidadão a exercer seus direitos e
deveres na sociedade em que está inserido.
Partindo desse entendimento, na década de 1990 o professor Fernando
Guilherme Tenório insere no âmbito científico a relação com gestão social e menciona:
― (...) a pessoa, ao tomar ciência de sua função como sujeito social e não
adjunto, ou seja, tendo conhecimento da substância social de seu papel na
organização da sociedade, deve atuar não somente, eleitor, mas como uma
presença ativa e solidária nos destinos da sua comunidade‖ (TENÓRIO,
1998).
Ou seja, o cidadão, seja ele de que gênero for, deveria participar ativamente e
efetivamente nas ações protagonizadas pelos demais sujeitos sociais pertencentes a
sociedade como forma de desempenhar seu papel de sujeito político.
A gestão social é um termo em grande discussão, por este estar sendo empregado
em diversas situações e contextos distintos. Nesse sentido, Pimentel e Pimentel (2010)
elencou sete princípios para a formação da gestão social, onde: (1) o objetivo é o interesse
coletivo; (2) o valor da gestão social é o interesse público; (3) a lógica instrumental é
subordinada ao processo decisório deliberativo; (4) o protagonismo é da sociedade civil
organizada, envolvendo todos os atores sociais envolvidos em determinada ação; (5) o
processo deve ser participativo, dialógico e consensual; (6) através da argumentação livre é
que a deliberação coletiva acontece; e, (7) as formas de pensar e operacionalizar é através
das redes e parcerias.
Muito embora Pimentel e Pimentel (2010) mencionem várias categorias teóricas para a
formação de um conceito, Pinho (2009) critica a gestão social, uma vez que na prática
chega-se a um consenso, enquanto que na teoria não há acordo sobre sua
representatividade entre vários autores. De acordo com Pinho (2009) e Cançado (2011) a
gestão social não consegue chegar a uma concordância teórica gerando ambiguidade no
termo, podendo ser denominada de ―gestão do social‖ (PINHO, 2009). No sentido de Pinho
(2009), entende-se que quem controla as ações, através das articulações e mobilizações, é
a própria sociedade. O que na prática não acontece.
Boullosa e Schommer (2008) trabalham a Gestão Social voltada para o social, mas
possui um sentido amplo, gerando ambiguidade conforme comenta Pinho (2009), pois
diversas práticas sociais estão inseridas, apesar do sentido abrangente a sociedade ainda é
protagonista.
Para haver gestão social é preciso um lugar físico, público, onde as pessoas se
encontrem para deliberar sobre as necessidades e o futuro da localidade ou grupo
específico. Porém, muitos não entendem que a democracia não se limita ao espaço e ao
direito de participar, mas em participar efetivamente, onde há o dever de participar
(CANÇADO, PEREIRA; TENÓRIO, 2015).
Há uma ressalva quanto a participação, deve-se observar se de fato ocorre a
205
cidadania deliberativa ou se a representativa prevalece, nesse último caso a qualidade da
ação é questionada (CANÇADO, PEREIRA; TENÓRIO, 2015), pois em determinada
situação pode ocorrer de o número de pessoas ser grande, tornando-se necessário um
representante para expor as ideias do todo. A representatividade pode não ser o reflexo
completo do grupo que se está representando.
O protagonismo social é a essência da gestão social e permite que parcelas da
sociedade se articulem e mobilizem-se em prol de uma causa. Os movimentos sociais,
invertendo a lógica do poder dominante, onde claramente notava-se uma verticalização por
parte do poder político que existia por volta dos anos 1980 (HAMEL, 2009) é o retrato de
formação de grupos, onde classes menos favorecidas e/ou oprimidas ganharam vez e voz
nas discussões oriundas de suas manifestações.
Nesse contexto, Pinho (2009) mostra que o grande desafio para haver participação
social é a falta de conhecimento técnico da sociedade, perpetuando a desigualdade da classe
mais baixa que é a grande maioria no Brasil. O autor menciona ações que devem ser tomadas,
como a capacitação de entidades, movimentos, grupos e não somente o representante do
movimento, porque a rotatividade deste é grande dentro dessas organizações civis.
Santos (1994) faz uma dura análise sobre o indivíduo que não se insere em grupos
sociais. Esse indivíduo tenta fugir das malhas organizacionais de partidos, movimentos,
sindicatos buscando refúgio no isolamento tentando retornar ao estado de natureza, conduzindo
ao enfraquecimento dos direitos conquistados de um todo através da participação. Desta forma,
torna-se difícil promover um diálogo igualitário entre sociedade-Estado inviabilizando o
desenvolvimento da gestão social.
Movimento de Mulheres
A sociedade ao longo da história vem passando por diversos problemas sociais, e a
partir desses problemas surge diversos movimentos sociais com objetivos de sanar essas
questões e assim obter a inclusão social. Na visão de Hamel (2009) através dos movimentos
sociais é promovida a democracia participativa, uma vez que os movimentos é uma forma
de reivindicar seus direitos.
Direitos esses que por anos não foram concedidos para as mulheres, um exemplo disso
ocorreu na idade média onde as mulheres não exerciam sua cidadania, pois não tinham direito a
voto. Para Silva e Camurça (2013), na década de 70 iniciaram os movimentos de mulheres que
lutavam contra as desigualdades sociais, exploração, opressão entre outras desigualdades e
problemas sociais, iniciando uma luta árdua pela busca de seus direitos.
Através desses movimentos sociais há uma quebra na visão de uma sociedade
patriarcal, onde esses movimentos de mulheres começam a ganhar força no Brasil,
favorecendo o público feminino quanto aos direitos de igualdade, respeito e justiça (HAMEL,
2009; SILVA; CAMURÇA, 2013).
No entanto, é notável a existência de conflitos de ideias em relação aos movimentos de
mulheres e movimentos feministas, onde na percepção das autoras Silva e Camurça (2013) um
complementa o outro, uma vez que os movimentos feministas são 206
formados por mulheres. Um exemplo de movimento feminista é a marcha das vadias, que de
acordo com Galetti (2014), teve início em 2011 e lutavam contra atos machistas e diversas
violências, buscando o engajamento de mulheres em prol dessas causas.
A marcha das vadias começou no Canadá e hoje atinge vários países. Essa
denominação ―vadia‖ é um singular ao estereótipo de culpar as mulheres agredidas, devido
a sua forma de se vestir (GALETTI, 2014; VALENTE; MARCINIK, 2014). Esse movimento
surgiu como resposta ao comentário de um policial, que defendia a ideia que mulheres com
vestimentas provocantes, são responsáveis pelos abusos e assédios sofridos (GALETTI,
2014; MARTINI; PUHL, 2015).
Para Silva e Camurça (2013) os movimentos feministas propõem a transformação
da vida das mulheres e a sociedade como todo. No entanto Gomes (2013) relata que alguns
movimentos de mulheres negras não participam da macha das vadias, devido obterem
visões diferentes, pois assumirem-se vadias nos protestos tem um impacto negativo maior,
do que para as mulheres brancas. Uma vez que, para as mulheres brancas o termo vadia é
reconfigurado em liberdade e autonomia enquanto que para as mulheres negras o termo é
totalmente o contrário, devido a sua longa história de submissão aos senhores desde o
período colonial escravista.
Por isso as críticas de alguns movimentos de mulheres negras quanto à marcha
das vadias ter objetivos universais, quando na verdade esse movimento é formado em
grande parte por mulheres brancas e de classe média, sem levar em consideração a
interação de raça e gênero e como isso irá afetar negativamente as mulheres negras.
Nesses movimentos, existe uma participação mínima do sexo masculino em prol da
causa feminina (GOMES, 2013; SIMONETTI, 2013). Dessa forma, a maior incidência nesses
movimentos é com participação de mulheres. Então, no que tange a essa causa ainda há
muito o que fazer, principalmente ter o apoio masculino que é fundamental e trabalhar
coletivamente, com objetivos universais para que esses movimentos venham obter êxito.
gênero. 207
Em uma mobilização que ocorreu durante muito tempo, em Rio Branco no Acre,
promoveu a implantação da ―Casa Rosa Mulher‖, local que atende mulheres vítimas de
violência. Conforme Farah (2004), o processo iniciou na década de 1980 com a constituição
de um movimento de mulheres, em 1992 o movimentou formulou propostas para que fosse
criado o abrigo. Após todo o processo, em 1994 foi criado a ―Casa Rosa Mulher‖.
De acordo com a abordagem realizada por Farah (2004) isso só foi possível pelo
fato de ter ocorrido mobilizações de movimentos e organizações de mulheres. Observa-se a
importância de haver mobilizações através da organização social de representação para
alcançar objetivos para o coletivo, neste caso a incidência de um movimento é perceptível.
Dessa forma, reiteramos que no grupo da marcha das vadias não ocorre incidência da
gestão social, haja visto que de acordo com Gomes (2013) esse grupo não está inserido e nem
pretende possuir vínculo com qualquer tipo de coletivo. Para que ocorresse a incidência seria
necessário que os objetivos fossem em benefício do coletivo (incluindo todos os grupos de
mulheres, seja ele de negras, evangélicas ou qualquer outro), pois se as ativistas se
autodenominam ―autônomas‖ não há como ocorrer gestão social.
Já na visão de Salloum e Valente (2014) a macha das vadias, traz uma nova visão
da figura mulher, onde as mesmas têm direitos a proteção e autonomia, direito estes
constituído em lei. Um exemplo é o caso da lei Maria da Penha, que foi uma grande
conquista na luta das mulheres, lei que levou a discussão e elaboração de políticas públicas.
No entanto a luta é constante e é através da gestão social somada a utilização de mídias
sociais nos movimentos de mulheres que os debates se potencializam.
Em uma versão da marcha das vadias em Belém do Pará, ocorreu algo incomum.
O objetivo geralmente é a extinção do pensamento machista, mas nessa edição o objetivo
foi alterado para um pensamento que respondesse as demandas mais práticas. Ocorreu na
versão belenense trabalhos de conscientização nas escolas retomando o que geralmente é
incumbido ao Estado realizar, destacando que na democracia participativa a sociedade
também é gestora, atuando junto ao governo (ALMEIDA, 2011).
O caso relatado, que ocorreu em Belém, citado no trabalho de Almeida (2011) não
garante que o pós-marcha irá acontecer desse modo, relembrando que a marcha é de
caráter mobilizador, mas que não possui estrutura suficiente para manter ações após as
realizações das marchas.
Brito (2014) ao participar de uma marcha pode observar algumas reações da parte
da sociedade, pois enquanto algumas apoiavam com aplausos, outros vaiavam mostrando
uma indignação a suas ideologias. A macha das vadias, não trabalha com documentos,
reivindicando suas ideologias, pelo contrário seu foco é chamar a atenção das autoridades e
sociedade através de cartazes e mensagens pelo corpo (BRITO, 2014).
A autora faz uma análise quanto à manifestação de ideias pela marcha das vadias
no estado da Bahia, onde manifestar ideias não é algo simples, pelo contrário isso é
complicado porque vai além de apresentar e reivindicar, envolve o convencimento de toda
uma sociedade inclusive o sistema político. No entanto, em outras cidades como no Rio de 208
Janeiro a macha das vadias, em algumas ocasiões agiram de forma ilegal, ao realizarem a
manifestação quebrando imagens da igreja católica, indignados com os dogmas da igreja.
Arenas públicas devem ser espaços acessíveis a todos, sem restrição, e sem oposições,
onde os atores trabalham conjuntamente.
Muito embora a marcha das vadias seja um grupo e não um coletivo, conforme
Gomes (2013) esclarece, e mesmo assim querem lutar contra a violência sexual e de gênero
isso dificilmente ocorrerá. A relação horizontal e a inflexibilidade desse grupo e o fato de não
instituírem uma liderança central pode custar caro as idealizadoras da marcha, pois só é
possível garantir a legitimidade de algo se este possuir uma relação solidificada com uma
base para promover articulações e fortalecer o movimento.
Portanto, é preciso que se forme novos arranjos com a sociedade para que
movimentos sociais, como o movimento de mulheres, possam estar presentes e permitam
um diálogo com o governo para que através desse contexto os limites e as possibilidades de
atuação desses movimentos ocorram, assim como pesquisas comprometidas a garantia de
direitos sociais fortalecendo a gestão social (FERNANDES; MACIEL; CLOS, 2012).
CONCLUSÃO
Este trabalho propôs de forma sintética abordar o tema da participação social nos
debates políticos, partindo do pressuposto de que a gestão social valoriza a participação da
sociedade nas tomadas de decisões sociais e políticas. A gestão social busca o
empoderamento no sentido de resgatar o interesse político da sociedade, tornando cidadãos
protagonistas nas causas sociais. Diante disso, a mesma influencia na política brasileira
consolidando a democracia participativa, promovendo o desenvolvimento social e político do
país.
Um dos meios a promover a gestão social é através dos movimentos sociais que
lutam em prol de uma causa, um exemplo desses movimentos é o das mulheres que busca
conquistar seu espaço na sociedade. Uma novidade que vem acontecendo é o movimento
feminista marcha das vadias que acontece em várias cidades do Brasil, seu maior aliado são
as redes sociais, no entanto esse movimento traz muitas polêmicas quanto suas ideologias,
por outro lado esse movimento ganha força entre mulheres jovens que defende a autonomia
e liberdade do seu corpo.
A partir da análise, é notável a incidência da gestão social no movimento de
mulheres, pois existe uma estrutura organizada articulando e mobilizando ações em prol de
objetivos coletivos, onde há parceria entre organizações privadas e o Estado. Entretanto
essa incidência não acontece na macha das vadias, de forma que não existe e nem se
pretende vincular-se a instituições públicas e privadas.
Para uma visão mais ampla e aprofundada é necessário à aplicação desse tema
em uma região especifica, pois, a partir de então será mensurado com mais precisão de que
outra forma podemos detectar a incidência da gestão social em movimentos feministas.
Consideramos que o tema é importante para os debates acadêmicos através de uma visão 209
interdisciplinar, principalmente porque a participação política das mulheres está presente em
todas as áreas do conhecimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOMES, C.C. Identidades em disputa nas marchas das vadias. 2013. Disponível em:
<http://eventos.livera.com.br/trabalho/98-1020609_17_06_2015_01-06-01_3723.PDF>.
Acesso em: 08 ago. 2016.
TENÓRIO, Fernando G. Gestão social: uma perspectiva conceitual. RAP, Rio de Janeiro:
FGV, v. 32, n. 5, p. 7-23, set./out. 1998. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/7754/6346>. Acesso em:29
mar. 2016.
211
1
“O suplício de mundanas”: uma carta à primeira dama de Belém
https://doi.org/10.29327/527231.5-14
Jhenifer Denise Souza da Silva – UFPA
Franciane Gama Lacerda – UFPA
Resumo
Abstract
The year of 1970, period of intense repression targeted prostitutes women, the
Campina district, at Belém (PA), was interdicted by order of then governor
Alacid Nunes. The consequence was the closure of several houses and
displacement of many women to peripheral regions of the city. This work
reviews the red-light district, analysing the women's struggle for a living and
working space, from a letter published in the paraense newspaper Folha do
Norte written by prostitutes addressed to then governor’s wife, which is
noticeable a bold strategy by these women, asking for benefits and mercy to
another woman, so the situation would change.
1
O presente texto é parte de pesquisa em andamento para o trabalho de monografia final do
curso de Licenciatura em História sob a orientação da Profa. Dra. Franciane Gama Lacerda.
212
No ano de 1970, período de intensa repressão direcionada às mulheres
prostitutas a zona da Campina, em Belém do Pará, foi interditada. Naquele ano sob a
ordem do então governador, Alacid Nunes, diversas casas de prostituição tiveram suas
portas fechadas. Ao lado disso, muitas mulheres que viviam nessa área central da
cidade tiveram que se retirar para regiões periféricas de Belém. Antes do fechamento
da zona, no entanto, as prostitutas que ali residiam escreveram uma carta de súplica à
2
então primeira dama do Pará, a Sra. Marilda Nunes. Essa missiva foi publicada no
No trabalho de José do Espírito Santos Dias essa mesma carta é apresentada. Cf. DIAS, José do Espírito Santo Júnior. Entre
Cabarés e Gafieiras: Um estudo das representações boêmias em Belém – 1950-1980
– São Paulo: [S. n.], 2014.. Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em História,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pp.285-286.
213
Tomando como ponto de partida a historiografia vemos que Michelle Perrot em
Os excluídos da História, no capítulo ―Mulheres‖, aponta os meandros da participação
da mulher no cenário histórico e político na Paris do século XIX. A construção da
relação de poder, lugar de fala, exclusão política, matriarcado, patriarcado, a cultura
do corpo, trabalho nas fábricas, trabalho doméstico, público x privado, são pontos que
reforçam que a invisibilidade ou negação da mulher na história está apenas no modo
de análise do objeto histórico.
A História das mulheres sempre foi escrita por homens, e antes de lançar-se sobre
essa escrita, era necessário primeiro que se desconstruísse do senso comum ao invés
de simplesmente incluí-las na história. Segundo Michelle Perrot:
214
desde então passou a predominar o ―paradigma do agente‖, em que estes
marginalizados da história, passaram a ser abordados pelos historiadores.
Maria Izilda S. de Matos afirma que: ―Como nova categoria, o gênero vem
procurando dialogar com outras categorias históricas já existentes, mas vulgarmente
CHALOUB, Sidney; Silva, Fernando T. da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na
historiografia brasileira desde 1980. Cadernos Arquivos Edgar Leuenroth, Campinas, v. 14, n. 26, 2009.
RAGO, Margareth. As mulheres na Historiografia Brasileira. In: SILVA, Zélia Lopes (Org.).
Cultura Histórica em Debate. São Paulo: UNESP, 1995.
215
ainda é usado como sinônimo de mulher, já que seu uso teve uma acolhida maior
6
entre os historiadores desse tema.‖ (MATOS, 1998, p. 64).
216
a partir de vestígios de sua existência cotidiana como correspondências, diários,
autobiografia, objetos pessoais, jornais do cotidiano nos quais elas aparecem e
afins.(TEDESCHI, 2008)
Apesar desse silenciamento das mulheres nas fontes, o estudo das mesmas
atualmente de tornou mais fácil. Há diversos estudos que buscaram trazer à tona o
protagonismo das mulheres em diversos contextos sociais e políticos. No caso deste
trabalho, aborda-se a mulher prostituta constantemente marginalizada dentro do
contexto da Ditadura Civil Militar.
DIAS, José do Espírito Santo Júnior. Entre Cabarés e Gafieiras: Um estudo das representações boêmias em Belém
– 1950-1980 – São Paulo: [S. n.], 2014. Orientadora: Yvone Dias Avelino. Tese (Doutorado) – Programa de Pós
Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
PETIT, Pere.; VELARDE, Jaime Cuéllar. O golpe de 1964 e a instauração da ditadura civil-militar no Pará: apoios e resistências.
Estud. hist. (Rio J.) vol.25 no.49 Rio de Janeiro Jan./June 2012.
217
Isso, seria ideal, se (…) dessem outra moradia em local arredio da ―urbe‖
higiene médica-assistência, casa, (…) um custo de vida ao nosso
alcance.
Estamos de acordo se isso for, ou venha ser concretizado em benefício as
pobres mulheres que aqui vivem, desprezadas pela assistência social e por
tudo mais, se obtivermos ganho de causa, pela vossa interferência, juntos
aos Poderes máximos deste Estado, e a quem decoramos graças rogamos
ao nosso Bom Pai, pela saúde de toda a Exma.e Ilustrada
família Alacid Nunes. Com elevados espíritos de gratidão eterna, aqui
ficamos orando pela saúde e bem estar de Vossa Excia.
10
Dezenas de assinaturas.
Um ponto a ser questionado na notícia é: por que uma carta para a primeira dama?
Como dito anteriormente, o período analisado era é marcado por intensa repressão assim
fica a impressão de que consciente ou inconscientemente, a mulheres da zona da
Campina acreditavam que pedir ajuda a uma mulher seria mais fácil de ser ouvida, por se
tratar de outra mulher, que talvez pudesse entender suas demandas por moradia, por
exemplo. À primeira dama, por motivos óbvios, que possivelmente era a mulher próxima
mais influente sob o governador Alacid Nunes justamente por ser sua esposa. A estratégia
das prostitutas revela protagonismo por parte delas, mas de desespero também. Não
sabemos o desfecho dessa história, uma vez que não há uma
BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARÁ – CENTUR – SETOR DE MICROFILMAGEM - Polícia agora vai fechar os bordéis do
subúrbio de Belém. Folha do Norte. Belém, 2 de abril de 1970.
DIAS, José do Espírito Santo Júnior. Entre Cabarés e Gafieiras: Um estudo das representações boêmias em Belém –
1950-1980 – São Paulo: [S. n.], 2014.. Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em História, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
218
resposta na imprensa sobre a solicitação das mulheres. Segundo Dias, que também
12
pesquisou a mesma carta, Dona Marilda não teve acesso a referida carta.
Ainda que a súplica, não tenha gerado os efeitos esperados pelas mulheres
uma vez que a zona foi fechada a carta não deixa de trazer à tona os anseios de
grupos marginalizadas. Segundo Dias, com o fechamento desse espaço muitas
mulheres passaram a viver no bairro da Condor. Com o fechamento da zona, houve
uma migração da prostituição para áreas mais periféricas de Belém, não por vontade
própria, mas pela própria sobrevivência das prostitutas. Apesar disso, as ações
repressoras aplicadas pelo Estado durante a Ditadura Civil Militar não surtiram os
efeitos desejados, que eram expurgar as prostitutas e a zona de prostituição do centro
da cidade. Pelo contrário, a boemia e a prostituição se ramificaram por outras áreas,
expandindo as expressões boêmias das periferias e as mulheres vítimas das
desigualdades sociais se prostituindo pela sobrevivência própria. A carta das mulheres
da zona do meretrício de Belém, revela a lutas dos grupos menos privilegiados por um
espaço em uma capital amazônica que crescia marcada por desigualdades sociais.
Idem, p.287.
219
Bibliografia
COSTA, Valmir. Sexo lacrado: o controle político no jornalismo erótico (1964-1982). São
Paulo: Projeto História, n.35, Dez. 2007.
DIAS, José do Espírito Santo Júnior. Entre Cabarés e Gafieiras: Um estudo das
representações boêmias em Belém – 1950-1980 – São Paulo: [S. n.], 2014.
Orientadora: Yvone Dias Avelino. Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação
em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
220
PROTAGONISMO E FORMAÇÃO POLÍTICA DE MULHERES: caminhos
para superar a sub-representação
1
Maria Mary Ferreira /UFMA
https://doi.org/10.29327/527231.5-15 E-mail: mmulher13@hotmail.com
Resumo:
A sub-representação das mulheres na política é fruto da cultura patriarcal que perpassa o mundo
público e o mundo privado, que ao determinar papéis sexuais para mulheres e para os homens,
excluiu as mulheres dos espaços de poder. A necessidade de estudar estratégias de intervenções
que possam transformar as relações de gênero na política se constitui como filosofia da Pesquisa
Mulheres Relações de Gênero e Protagonismo Político: estudo, formação feminista e
informação como estratégica de mudança na sociedade patriarcal. Este projeto de pesquisa teve
como desdobramento a Capacitação de Mulheres na Política visando contribuir com o processo
de empoderamento de mulheres por meio de informações, troca de conhecimentos e produção
de dados que pudesse permitir as mulheres dos Municípios maranhenses criar mecanismos de
fortalecer seus protagonismos. Nesta comunicação apresentamos a experiência desenvolvida
nos cursos de formação que foi parte da pesquisa foi financiada pela FAPEMA, envolvendo um
público de 618 mulheres em sete municípios maranhenses, com aulas teóricas dialogadas
apoiadas por material pedagógico construído pelas integrantes da pesquisa a partir dos dados
colhidos na investigação.
INTRODUÇÃO
221
Os dados das últimas eleições nos âmbitos municipais, estaduais e federal
desnudam a contradição da democracia brasileira ao apontarem que dos 57.337
candidatos a vereador na eleição de 2012, apenas 7.648 mulheres foram eleitas, contra
49.689 homens. (FERREIRA, 2015). As mulheres representam 13,3% dos vereadores
espalhados nas 5.568 câmaras dos municípios do Brasil. Houve um aumento simbólico
em relação à eleição de 2008, porém esse aumento não superou os 19%, fato que aponta
os muitos desafios para construir paridade de gênero na política.
No Maranhão, os resultados eleitorais de 2016 reforçam a ideia de que as
mulheres não se interessam ou não são afeitas à política, como afirmava Rousseau no
século XVIII, tendo em vista que o total de candidaturas femininas para vereadores e
prefeitos foi de 5.282 de mulheres, contra 11.532 candidaturas masculinas. Nos
Gráficos 1 e 2 pode-se observar que o número de eleitos foi de 447 mulheres (17%) e
2.140 homens (83%) para as câmaras e prefeituras do Maranhão.
Gráfico 1: Candidatos (prefeitos Gráfico 2: Candidatos
e vereadores) Eleitos (prefeitos e vereadores)
69%
83%
222
Tecnológico no Maranhão – FAPEMA, através do Edital FAPEMA nº 007/2016
Igualdade de Gênero, com o objetivo de:
Investigar, mapear e articular através de pesquisa e extensão estudos e
formação capazes de refletir a situação da sub-representação feminina na
perspectiva de contribuir com o processo de empoderamento de mulheres
por meio de informações, troca de conhecimentos e produção de dados que
permita às mulheres de sete municípios maranhenses construírem processos
de mudanças e protagonizarem ações intervencionistas visando
transformação das relações de gênero e étnico raciais
no Maranhão.(FERREIRA, 2016, p. 7)
223
deslocou a cidade desde o dia 28 de agosto e durante dois dias visitou diversas
organizações da sociedade civil convidando as mulheres para participarem do curso que
foi realizado nos dias 30 e 31 de agosto.
Na tabela abaixo listamos as datas de realização de cada curso, seus respectivos
municípios e número de participantes:
LOCALIDADE DATA DE REALIZAÇÃO NÚMERO DE MULHERES
DO CURSO PARTICIPANTES
Morros 03 e 04/08/2019 19
São Luís 07 e 08/08/2019 145
Turiaçu 24 e 25/08/2019 82
São João dos Patos 30 e 31/08/2019 91
Duque Bacelar 05 e 06/09/2019 51
Paço do Lumiar 27/09/2019 154
Pinheiro 04 e 05/10/2019 56
TOTAL 598
224
Apresentamos a seguir o perfil das participantes do Curso por Município, bem
como a expectativa das mulheres em relação aos conteúdos ministrados.
225
mulheres lideranças em Icatu, fato que contribui para despertar o interesse entre as
mulheres que participaram. Ao todo participaram 19 mulheres, cujo perfil apresentamos
nos gráficos a seguir:
15 a 25 26 a 35
Branco Negro Pardo 36 a 45 46 a 55
Religião Escolaridade
Filiado ao Partido
Sim Não
226
lideranças femininas afirmam desconhecer qualquer tipo de ação realizada pelos
partidos para credenciar mulheres nos partidos.
O curso em São Luís foi realizado nos dias 5 e 6 de agosto no Convento das
Mercês com a presença de 145 mulheres. A realização do curso contou com o apoio da
Secretaria de Estado da Mulher e do Fórum Maranhense de Mulheres. O perfil das
participantes demonstra que a maioria são mulheres já atingiram a maturidade, tem mais
de 55 anos, fato comprova o fato de que as mulheres se interessam mais pela política já
na fazer mais madura, é quando se lançam como candidatas em geral após os 40,
quando de alguma maneira cumpriram com as responsabilidade de criar os filhos.
Idade (anos)
15 a 25 26 a 35 36 a 45
46 a 55 acima de 55
A maioria das participantes se identifica como negra, fato que demonstra como
as relações étnicas raciais vem sendo alteradas, principalmente nas grandes cidades em
virtude da luta dos movimentos negros que tem discutido de forma muito positiva a
importância de os negros assumirem sua cor. Em São Luís a ação dos Grupos feministas
Mãe Andresa e Maria Firmina tem contribuído para ampliar o debate sobre
reconhecimento da cor.
Raça/Etnia
227
demonstra que em São Luís as mulheres que se interessam por formação política tem
uma escolaridade elevada, o que denota que tem consciência da participação e da
representação política.
Religião Escolaridade
Filiado ao Partido
Sim Não
228
Idade (anos) Religião
Raça/Etnia Escolaridade
Os dados acima são relevantes para mostrar o perfil das participantes do Curso
de Formação Política para Mulheres, curso realizado com o apoio do Fórum Turiense de
Mulheres, que se responsabilizou pela mobilização das mulheres no referido Município.
Embora o curso tenha obtido grande êxito dado o número elevado de participantes, fato
que demonstra o interesse das mulheres em participar, discutir e aprender os conteúdos
que envolveram o curso, entretanto, observamos a partir das respostas que apenas 9 %
das participantes filiadas a algum partido, fato que deve ser trabalhado pelo Fórum
Turiense de Mulheres, futuramente. Este deverá ser um tema a ser discutido nos
próximos cursos de formação realizados neste Município.
Filiado ao Partido
Sim Não
O dado também reflete a falta de debate político por parte dos partidos que não
tem pautada a questão da sub-representação e nem das cotas para mulheres na política
conforme enfatizaram várias mulheres entrevistada na pesquisa.
229
Curso de Formação Política para Mulheres em São João dos Patos
Em São João dos Patos o Curso foi realizado com o apoio da Secretaria
Municipal da Mulher no período de 30 a 31 de agosto de 2019. O trabalho de
mobilização foi realizado pela Secretaria Municipal da Mulher e pela coordenação do
projeto que chegou a Cidade dois dias antes do Curso. Mesmo com pouca mobilização
participaram do Curso 91 pessoas, em sua maioria jovens, tendo em vista que o Curso
foi realizado em uma Escola Municipal e na ocasião a diretoria da escola liberou as
turmas dos períodos mais avançadas para participar. Desse modo este curso foi o que
contou com o público mais juvenil (60%) conforme pode ser observado no gráfico. Foi
também o público com maior índice de católicos 67%.
Neste curso diferente dos outros seis municípios teve a participação de homens,
em torno de 20%, isso se deu em virtude de ter sido realizado em uma escola pública e
pelo convite formulado pela Secretaria da Mulher para que os jovens participassem. As
participantes se identificaram como pardas (30%), brancas (25%), negras (20%) e 19%
não respondeu. No que se refere a escolaridade das/os participantes 45% responderam
não ter concluído o ensino médio, fato explicável em virtude da maioria está ainda
cursando o ensino fundamental e médio.
230
Raça/Etnia Escolaridade
O município de Duque Bacelar foi um dos Cursos que contou com o apoio da
Prefeitura. Neste município a Secretaria de Assistência Social garantiu toda a
infraestrutura para que o curso se realizasse. Foi realizada antes um trabalho de
mobilização nos municípios de Coelho Neto, Buriti e Duque Bacelar, ocasião em que
muitos grupos manifestaram interesse em participar. O Curso em sua abertura
cumprimentou várias ex-vereadoras que participaram do primeiro dia do Curso e
parabenizaram a iniciativa do Curso.
Participaram 51 mulheres em sua maioria na faixa etária de 26 a 45 anos. São
mulheres que professam em sua maioria a religião católica (82%), mas se percebe a
presença de outros religiões, como as evangélicas e as umbandistas.
231
Os gráficos produzidos a partir das fichas de inscricão indicam que a maioria das
participantes se consideram pardas e negras (68%)e apenas 10% se identificou como
branco, 22% não soube ou preferiu não se idenficar, fato hoje comum, dada a
dificuldade se construir identidade negra neste País.
Raça/Etnia Escolaridade
Em Duque Bacelar, município que durante décadas foi dominado pela família
Bacelar, somente na década de setenta foi eleita uma prefeita fora do grupo que
dominou por muitas décadas o município. Observamos que há forte presença de
mulheres no município e muitas se identificaram como partidárias, porém no que se
refere a filiação apenas 32% declararam estar filiada a algum partido. Este fato deve ser
tema de pauta dos partidos locais.
Filiado ao Partido
Não Sim
232
Participaram do Curso 174 pessoas, entre os quais alguns homens, que insistiram
para participar do curso e receber certificado de participação. O Curso teve a presença
de várias professoras da Universidade Federal do Maranhão entre as quais a Profa. Dra.
Joana Coutinho, Profa. Dra. Iran Nunes Rocha, doutoranda Berenice Gomes, que
discorreram sobre conjuntura política, educação de gênero e legislação eleitoral.
Os debates suscitados no decorrer de cada conteúdo demonstraram o interesse
das participantes que levantaram muitos questionamentos sobre eleição e sobre
conjuntura política. O perfil das participantes aponta para mulheres na maioria na faixa
etária de 36 a 45 anos (30%) e 46 a 55 anos (31%), são mulheres que professam em sua
maioria a religião católica. Mas percebe-se um número considerável de evangélicas. São
mulheres que com grau de instrução que denota a qualificação elevada (58 %) tem curso
superior ou estão cursando. A maioria se identificou como parda e negra.
Adventista Ateu
Budista Catolico
15 a 25 26 a 35 Crista Espirita
36 a 45 46 a 55 Evangelica Kardecista
acima de 55 Matriz Africana Messianica
Escolaridade Raça/Etnia
A escolaridade elevada, porém, não reflete na filiação partidária uma vez que
a maioria das participantes do curso declararam não estar filiadas em nenhum partido.
233
Filiado ao Partido
Sim Não
234
Raça/Etnia Escolaridade
O que foi surpreendente foi os dados referentes a filiação partidária, quando foi
detectado que apenas 1% dos entrevistados pertencem a algum partido político.
Filiado ao Partido
Sim Não
CONSIDERAÇÕES FINAIS
235
FERREIRA, Maria Mary et al. Direitos iguais para sujeitos de direito: empoderamento
de mulheres e combate a violência doméstica. São Luís: EDUFMA, 2016.
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236
―Driblando a Natureza”: práticas e percepções de jovens (mulheres) em
torno da contracepção e do aborto em uma escola da rede pública de
Belém do Pará
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-16 Lucas Oliveira de Souza/UEPA
2
Lucivaldo Alves/UEPA
3
Drª: Ana Lídia Nauar/ UEPA
Resumo
Este artigo visa discutir sobre uma pesquisa realizada ao longo de 2018 em
uma escola pública de Belém do Pará. Será tecida uma reflexão em torno do aborto e
de que maneira os estudantes elaboram suas práticas de contracepção, por meio de
oficinas estruturadas e de questionários quantitativo e qualitativo e com a observação
acerca do cotidiano escolar dos alunos e alunas, além de visitas ao Ver-o-Peso, a fim
de descobrir remédios naturais abortivos e como as erveiras lidam comercializam seus
produtos, sem indica-los a quem esteja grávida, pois temem represália, já que se trata
de um crime. A realização do aborto não é algo recente na história do Brasil, mas
recorrente, tendo suas origens no período colonial, em que as mulheres recorriam a
essa alternativa como uma forma de realizarem um controle da natalidade, pois não
tinham nenhum amparo em prosseguir, já que não contariam com o apoio dos pais dos
filhos e por se encontrarem em uma situação de pobreza. No entanto, nos últimos
anos, há tentativas de controlarem os corpos das mulheres, com projetos legislativos
de proibirem o aborto alegando uma defesa à vida, que não protege as mulheres, as
quais são submetidas às violências física e psicológica ao recorrerem a clínicas
clandestinas para a realização da interrupção da gravidez.
Palavras chaves: gravidez, contracepção, aborto, escola,
violência Abstract
237
Introdução
A discussão sobre aborto na nossa sociedade, às vezes, é tomada como um tabu,
sendo tratado como algo privado às famílias, dentro de suas casas, sempre considerado
como proibido, pois também é um evento que está inserido no contexto da sexualidade
construída ao longo dos anos, pela família, igreja e escolas, principalmente.
Segundo Foucault (1988), desde o século XVIII, criou-se um discurso
repressivo sobre a sexualidade na sociedade ocidental, sendo a escola uma das
instituições repressoras, as quais, na França separavam os rapazes e as moças. Por
isso, essa visão sobre a sexualidade como algo proibido é tão predominante até hoje.
Assim sendo, observamos uma dificuldade em se discutir o aborto nas escolas, as
quais deveriam ser espaços de debates sobre diversos assuntos, o que não ocorre, já
que se prefere tratar em segredo a fim de não contrariar a ordem vigente.
A prática do aborto, embora atinja diretamente às mulheres, não é uma pauta
que, apenas, a elas recaia. Ao contrário, é necessário pensar essa prática como um
elemento construtor da masculinidade, à medida que, nos espaços legislativos e
também, no judiciário, há um predomínio de homens, os quais, majoritariamente, são
brancos, héteros, de classe média, acabam legislando em torno dos corpos femininos.
Assim, ao longo da pesquisa pudemos perceber uma série de fatores, nos
quais a presença masculina é imprescindível ao aborto, por exemplo, ao
prosseguimento ou não da gravidez. Por isso, o apoio do companheiro às mulheres é
essencial, já que ele ajuda nas construções dos laços de solidariedade que se
estabelecem em torno dessa prática.
No Brasil, apesar da mídia começar a discutir recentemente o aborto por meio
de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (ADPF), a qual
argumenta que os artigos do Código Penal que proíbem o aborto afrontam preceitos
fundamentais da Constituição Federal.
No entanto, no Brasil, a violência dos homens sobre as mulheres foi constituída
pelos marcadores de diferença. Dessa maneira, essas distinções físicas transformam-
se em estereótipos sociais, em geral de inferioridade, e assim produz preconceito,
discriminação e violência (Schwarz, 2019).
Neste trabalho, busca-se pontuar que, apesar de escritos por homens, não se
denota um impeditivo para a realização do mesmo, uma vez que se reconhece essas
diferenças e ao apontá-las pretende-se, com isso, subverter a epistemologia
hegemônica que inferioriza as mulheres, silenciando-as ao longo dos anos. Dessa
maneira, homens e mulheres estão em constante troca de saberes, para a construção
do trabalho.
238
Ademais, objetiva-se neste trabalho interpretar de que maneira são
constituídas as práticas em torno da contracepção dos estudantes e do aborto das
jovens mulheres de uma escola pública em Belém do Pará. Assim, entender como a
escola molda as práticas contraceptivas dessas estudantes. Não obstante, avaliar
como essas jovens têm seus direitos reprodutivos violados.
Metodologia
Buscou-se para atender à proposta dessa pesquisa, o método a etnografia,
seguindo os moldes de uma pesquisa antropológica. Assim, o método da observação
participante foi fundamental em todos os momentos em que estivemos na escola em
contato com o grupo pesquisado. De acordo com Malinowski (1978) a observação
participante consiste em avaliar todos os fenômenos que circundam aquele ambiente,
no qual o pesquisador se insere, antes de realizar sua pesquisa. Decerto, a
familiarização ajuda a entender as ―peculiaridades‖ daqueles sujeitos. Neste caso, são
alunos e alunas que estudam no ensino médio, no período matutino.
Segundo Geertz (1989), a etnografia depende de uma descrição densa, ou seja,
necessário notar, ao máximo, os detalhes dos estudantes que pesquisamos. Dessa
forma, na sala trabalhada, percebe-se um maior número de negros e negras. Além
disso, o contato com métodos contraceptivos é distante, uma vez que, embora os
conheçam, não os debatem com familiares nem no espaço escolar. Mas, por meio de
―pesquisas realizadas por um amigo na internet‖ conforme relatou uma estudante
no questionário.
De Oliveira (2000) baseia-se em três etapas, isto é, olhar, ouvir e escrever,
quando se afasta do campo de pesquisa, a fim de não se influenciar tanto pelo objeto
de pesquisa. Desse modo, o processo de aproximação e familiarização com o universo
da pesquisa foi constituído a partir de visitas à escola Vilhena Alves, de modo a nos
familiarizarmos com os estudantes conhecendo e eles com nós, inicialmente por meio
de conversas informais no espaço escolar.
Ademais, foram realizadas oficinas, nas quais se introduziu, de maneira expositiva
e dialogada o assunto do projeto. Assim, seria possível mensurar o nível de conhecimento
dos alunos e alunas. Em seguida, foram entregues questionários qualitativos e
quantitativos, os quais serviram para identificar a opinião deles em relação ao aborto.
Nesses questionários, os participantes deveriam informar onde moram, idade, profissão e
religião, para que traçássemos um panorama mais completo deles.
O longo caminho do Aborto no Brasil
No entanto, de acordo com Boltansky (2012) as diferentes sociedades, da
antiguidade até a modernidade praticam o aborto, mas ao mesmo tempo em que é
praticado e reconhecido como prática social, há reprovação por aquelas que fazem ou
239
ajudam a fazê-lo. Embora condenado, não se expressa quase nunca posições sobre o
fato em si, apenas o condena, uma vez que o simples fato de se discutir sobre isso
cria um constrangimento em quem fala, a qual teme a reação do outro, normalmente,
crítica de quem ouve, pois não compreende (ou não quer) entender os motivos sociais
que levam as mulheres a tomarem essa decisão sobre os seus corpos negando,
inclusive, a desigualdade entre as praticantes.
O aborto era recorrente no período colonial, conforme relatado por Del Priore
(2009), mais do que, inclusive a prostituição no que tange ao controle exercido pela
igreja. Qualquer prática sexual que não tivesse como objetivo a gravidez era vista
como pecado.
Assim, o aborto era uma forma de controle da natalidade, pois o aborto
consistia em muitas dores às mulheres causando febre, mal-estar, fluxos. Apesar do
alto risco havia uma dupla preocupação, com a boca de mais uma criança para criar,
bem como o estigma de criar os filhos sem o auxílio do companheiro que desaprecia,
ao saber da notícia. Logo, os corpos outrora instrumento de prazer e de vida passava
ser ferramenta de morte e luta.
A despeito disso, Rodhen (2003) indica como a divulgação do aborto, por meio
dos jornais na década de 30 ajudava a normalizá-lo perante a opinião pública, porque
nos anúncios não havia nenhuma intenção em deixá-lo implícito. Ao contrário, o que
havia era uma divulgação em massa das qualidades das parteiras.
No Brasil, a prática do aborto é frequentemente condenada pela sociedade, assim
como o aborto e as mulheres na qual praticam são penalizadas pelos seus atos previstos
no Código Penal vigente, decretada em 1940. A partir desse contexto, houve um aumento
da produção científica em torno do aborto, subsidiando a necessidade do fortalecimento
das políticas públicas em saúde reprodutiva (DINIZ e MEDEIROS, 2010). A interpretação,
comum ao censo comum, nesses estudos mais recentes, como da ―gravidez indesejada‖
passa a ser questionada. Assim, conforme Menezes e Aquino (2009) esses estudos
articulam questões centrais da saúde reprodutiva, desde as relações de gênero e os
processos de decisão na esfera reprodutiva até a provisão de assistência e a garantia dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. No âmbito das políticas públicas, segundo
Biroli (2014) o aborto vem sendo motivo entre diversas correntes religiosas, as quais,
como justificativa, utilizam-se de uma preservação à vida.
Este grupo, por sua vez, consegue influenciar na produção de legislações, que
tornem o direito ao aborto ainda tão restritivo, pois ocupam cargos nos legislativos do país.
Na maioria, são homens e brancos, os quais alegam a preservação da saúde da mulher.
Por outro lado, a diversidade entre as mulheres não é levada em consideração.
240
medida que o aborto é negado, assume-se que todas as mulheres desejam
ser mães, com base na sua condição ―natural‖, isto é, frágil, dócil, preparada para ser
mãe o que as opõem as que não se identificam dessa maneira e são taxadas de
―loucas, agressivas ou violentas‖.
Nesse sentido, o aborto legal restringe-se em apenas três situações: salvar a
vida de uma mulher, no caso de estupro e para gravidez anencefálica. Observa-se que
o aborto seguro é realizado por mulheres de alta renda e para outras indicações, por
meio de clínicas privadas, no entanto as mulheres de baixa renda e adolescentes, as
quais dependem da assistência do sistema público de saúde, sujeitam-se a métodos
inseguros, em condições precárias e, acima de tudo, clandestinamente (MITCHELL et
al., 2014). Por conseguinte, existe um contexto no qual impõe as mulheres
oportunidades desiguais de evitar uma gravidez ou de escolher seu desfecho.
No estudo de Pilecco, Knauth e Vigo (2011) é evidenciado a relação entre
coerção sexual e a pratica do aborto em mulheres jovens como determinantes
socioculturais, principalmente, em adolescentes as quais são mais vulneráveis as
coerções, sexo não planejado e desprotegido do que em relação aos adultos. Embora
apenas 9% dos abortos provocados no Brasil são em adolescentes, 22% delas
necessitam de cuidados pós-aborto de emergência (MITCHELL, et al., 2014).
Além disso, é interessante perceber de que modo as percepções de masculinidade
e a feminilidade são construídas no espaço escolar, a partir das experiências cotidianas de
jovens estudantes (homens e mulheres). Decerto, evidencia-se como ―os papéis‖ de
homens e mulheres são influenciados pelas redes de amizade tecidas em torno desses
estudantes. O contato com métodos contraceptivos, conforme percebido ao longo da
pesquisa, é gerado a partir disso, moldando ou não, como lidam com os anticoncepcionais,
levando-os, na maioria das vezes, a não os utilizarem.
Assim, Connel (2017) demonstra o papel de algumas atividades esportivas,
tidas como restritas aos meninos, uma vez que, nesses esportes seria estimulado a
demonstrar sua virilidade, já que, por meio deles mostraria capacidade de enfrentar a
dor e superá-la. Característica que é levada ao longo de sua trajetória.
Segundo Moreno (1999), é na escola que se marca uma diferença entre homens e
mulheres, ainda que no discurso institucional haja uma neutralidade entre os conteúdos
didáticos, na prática, como sabemos, essa suposta neutralidade não existe, uma vez que,
a forma como se ministram determinados temas na sala de aula, é responsável por
reproduzir modelos que inferiorizam as mulheres, como restrita ao ambiente doméstico.
Um exemplo disso é quando se aborda povos da antiguidade (Grécia e Atenas) em que se
aponta os homens como referência. Em contrapartida, não se aponta as mulheres, o que
colabora, por meio do ensino de história se perpetuam
241
visões preconceituosas, as quais estimulam o machismo, ao estimular o silenciamento
das mulheres. Em suma, utiliza-se a ciência, a fim de justificar violências impostas às
mulheres, como o aborto, em que homens, quase sempre, legislam os corpos das
mulheres. Este fato possibilita que as demandas femininas, na escola, sejam cada vez
mais negligenciadas, o que reforça a necessidade de se ampliar a participação
feminina no cenário político.
242
presidência um representante dos defensores da ―ideologia de gênero‖ o que acarreta
em um silenciamento em torno de temas que perpassem pela temática do gênero,
quando o ministério das mulheres é ocupado por alguém que acredita na
determinação biológica dos papéis sociais, exemplificado pela vestimenta de cada um.
Desse modo, o direito à vida, assegurado pela Constituição Federal em seu 5ª
artigo, é utilizado por grupos conservadores, para criticarem os grupos favorável ao
aborto, alegando que as mulheres, ao optarem por isso estão matando uma pessoa, a
qual não teria o direito a escolha.
No entanto, essa visão é simplista demais, pois relega à vida um papel
somente biológico, desconsiderando em que condições essas mulheres terão
condições financeiras e familiar para cuidar dessa criança. Destarte, Pantoja (2007)
considera fundamental a formação de uma rede de solidariedade, a qual comportaria o
companheiro, mas, sobretudo família e amigos (as) dessa jovem mulher. Essa rede
possibilita que a decisão pela continuidade da gravidez seja tomada, sem temor.
Em contrapartida, quando não há presença de um companheiro, esse processo
fica mais difícil, pois, às vezes, o avô da moça tem uma rejeição ao namorado da sua
filha, o que acaba refletindo na criança. Além disso, nesse caso, a família pode rejeitar
a participação nessa rede que é tecida. Então, a escolha pelo aborto torna-se
aceitável, pois o impacto psicossocial da gravidez deixa a mulher vulnerável, sem
colaboração. Para tanto, opta pelo aborto por acreditar na sua permanência na família,
o que não é assegurado com o prosseguimento da gestação.
Resultados
princípio, foram realizadas visitas ao Ver-o-Peso para buscar informações
com as erveiras sobre como é a procura acerca de remédios que tem como objetivo
evitar a gravidez ou provocar a sua interrupção. Assim sendo, notou-se um temor
delas ao falar sobre o assunto. Alegavam que era crime e que, por isso, não deveriam
tocar nesse assunto.
Por outro lado, mostraram um certo conhecimento sobre o assunto, ou seja,
apesar de uma concordância em aprofundar conhecimento em torno do assunto.
Havia uma discordância sobre a presença ou não de remédios com essa finalidade.
Outra opção era o silêncio. Às vezes, os remédios eram vendidos, embora com
características abortivas, estas não eram enunciadas às clientes.
Porém, as que se mostraram abertas a discutir com a gente esse assunto
evidenciaram que esses produtos são bastante procurados. As garrafadas são vendidas
em garrafas de 1 ou 2 litros. No entanto, as ervas abortivas, como a cabacinha,
barbatimão, verônica são vendidas em pacotes, que podem chegar até R$12. No
243
entanto, esses remédios não são indicados a quem está com a barriga à mostra, de
acordo com os relatos.
Esse fato, por sua vez, denota como as estratégias para a realização do aborto
são tecidas, uma vez que, neste caso, a participação e colaboração do companheiro,
da família e das amigas é imprescindível, pois são estes os agentes para que a mulher
grávida consiga acessar as formas abortivas, tidas como ―naturais‖.
Foram realizadas oficinas estruturadas ao longo dos anos de 2018, cujos temas
giravam em torno de gravidez, adoção, família como forma de introduzir o assunto de
nosso interesse, isto é, aborto sem assustar os estudantes com um tema tão delicado.
Desse modo, ao desenvolver a pesquisa na escola pública Vilhena Alves, com
o decorrer da observação ao longo dos meses. Mas, ficou a critério da direção a
seleção das turmas para realizarmos as oficinas. Cabe frisar que, no começo do
trabalho, houve uma resistência por parte da direção, a qual se negava a dialogar
conosco. A despeito disso, ao longo do ano de 2018, a escola passou quase 4 meses
sem funcionar, em decorrência de uma greve iniciada em abril com fim em agosto.
Além disso, não se mostravam abertos a conversarem a respeito da ausência
de debates abordando gênero, sexualidade e afins. Essa postura se justifica, a nosso
ver, pela persistência da resistência a esses assuntos, os quais não são vistos como
prioritários. Outrossim, é possível perceber uma continuidade dos corpos femininos,
uma vez que são elas as maiores vítimas dessa postura repressora.
As oficinas consistiram em uma breve apresentação de 30 minutos sobre o
panorama da gravidez da adolescência no país, apresentando a turma dados sobre
abandono parental, adoção de crianças Brasil, bem como discutindo de que maneira
as jovens mulheres enfrentam dificuldades ao levarem adiante sua gravidez.
Em seguida, apresentou-se um documentário intitulado clandestinas, de 2014,
o qual versa sobre o panorama do aborto das mulheres no Brasil, em que relatam as
dificuldades enfrentadas por quem escolhe isso, pois correm risco de vida, já que não
contam com clínicas de saúde adequadas para tal. Além disso, apontam como são
recriminadas por abortarem.
Assim, não houve uma obrigatoriedade aos discentes em permanecerem em
sala. Dessa maneira, apenas 11 estudantes, com idades entre 15 e 18 anos
participaram das 2 oficinas, realizadas em setembro daquele ano. Apresentam um
perfil, majoritariamente composto por negros e negras. São moradores (as) de bairros
periféricos de Belém, como Pratinha, Coqueiro, Cabanagem, Cremação, Terra Firme e
Canudos.
Foram entregues questionários, um de maneira quantitativa, com perguntas sobre
religiosidade, bairro, idade, se há discussão sobre gênero na escola. Em seguida,
244
um de base qualidade, na qual deveriam escrever suas opiniões, em torno da
liberdade dos corpos, que as mulheres teriam. Se são favoráveis ao aborto ou não e o
motivo disso.
Além disso, havia um questionamento sobre métodos contraceptivos, como os
conheceram e se usam ou não. Nesse caso, houve apesar de conhecerem uma
decisão pela não utilização dos mesmos. Desse modo, ilustra-se como a visão, tão
comum ao senso de que os jovens ―erram‖ quando ocorrem uma gravidez não
encontra amparo na realidade, uma vez que é uma escolha consciente do casal.
Houve um predomínio das religiões católica e evangélicas. Isso, contudo, não
significou um alinhamento automático com os dogmas dessas religiões. Entretanto,
existiu uma avaliação de que o aborto deve ser entendido como um direito. Embora
não seja uma opção para elas. 4 mulheres se mostraram favoráveis, enquanto 5 se
opuseram. Entre as que opunham, houve uma percepção de era um crime ou que
havia outras opções, tais como, a doação a quem teriam condições financeiras
melhores para cuidarem das crianças.
Conclusão
A pesquisa ainda não está encerrada, mas alguns elementos podem ser
extraídos do que já foi avaliado. A principal dificuldade se encontra no receio que se
tem quando se aborda um assunto como o aborto, embora seja uma prática recorrente
ao longo da história. Ela não é falada com frequência e isso exigiu um certo cuidado
ao trabalhá-la. A princípio, para não assustar a direção da escola, o que poderia
implicar em um obstáculo ao desenvolvimento do trabalho. Em seguida, com os
estudantes, pois eles apresentam uma faixa etária menor que a nossa, o que pode
acarretar uma dificuldade em se abrir conosco, em decorrência do estranhamento
desencadeado por isso.
Além disso, o público escolar possui uma faixa etária diversificada o qual viu a
necessidade em realizar uma abordagem geral sobre contracepção e o aborto, visto
que na posição de pesquisador é necessária uma aproximação, para obter um diálogo
de confiabilidade, discrição e respeito às opiniões.
Percebe-se pelos relatos dos alunos que predomina uma visão, na qual o apoio
dos parceiros é visto como essencial, haja vista que cabe a ele prover a ―sustentabilidade
no futuro, pois sem ajuda do homem é muito difícil criar um filho‖, essa visão ilustra como,
desde a infância homens e mulheres são condicionados a exercerem funções na sua vida
adulta. São tão legitimados, que passam a ser normalizados, entretanto, carregam consigo
uma carga de violência simbólica, pois, ao recair sobre a mulher, quase que de maneira
exclusiva a responsabilidade pela criação, ela acaba
245
tendo dificuldades para se inserir no mercado de trabalho. À medida que se insere,
recebe menos, para as mesmas funções.
A despeito disso, tanto homens, quanto mulheres alegam ausência de
planejamento como causa para a gravidez. Embora, segundo eles, existam métodos e
remédios que a evitem, mas não o usam e, por isso, quando vem uma criança, não
optam pelo aborto, pois alguns alegam justificativas religiosas, outros, por outro lado,
preferem apontar para essa falta de cuidado como desencadeadora da gravidez.
Portanto, o uso da religiosidade assume relevância alegando tratar-se de
pecado. Entretanto, o que nos chamou atenção foi o fato de homens sentirem um
certo desconforto ao serem provocados a refletirem sobre o aborto. Mostraram,
inclusive, um estranhamento, como se esse debate não os atingissem também na
construção de suas paternidades, por exemplo.
Não entraram em detalhes acerca de como têm conhecimento sobre remédios
abortivos. Mas, em contrapartida, a maioria alegou uma ausência de debates no ceio
familiar em torno de métodos contraceptivos, o que nos sugere, por sua vez, que esse
conhecimento foi construído, sobretudo, no espaço escolar, conquanto não haja
discussões em torno dessa temática, ou seja, evidencia-se que esse saber é obtido
por meio de conversas com amigos e amigas.
Logo, percebe-se como a construção da cidadania do grupo é incompleta, uma
vez que o acesso à educação, embora assegurado na Constituição Federal de 1988,
não é respeitado como deveria, pois, lhe são negados a existência de debates em
torno de temáticas essenciais. Este é o caso do aborto no Brasil. Apesar da recorrente
execução desse fato, sua existência é negada. Alguns elementos ajudam a entender
esse quadro.
A invisibilidade das violências que vitimam a população negra nesse país.
Conforme Biroli (2018), Diniz e Medeiros (2010) as mulheres negras são as que mais
sofrem nas clínicas clandestinas com a criminalização do aborto. No entanto, as
mulheres de classes mais altas têm a possibilidade pagam para realizar o aborto de
maneira mais segura. Além disso, conforme apontado anteriormente, no legislativo
nacional há um predomínio de homens, os quais não tem interesse ou, quando
possuem, optam por uma discussão superficial em torno do assunto, alegando uma
defesa à vida que não protege cidadãs.
246
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248
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MARAJOARA, A CIDADANIA, OS SILENCIAMENTOS E SUAS MEMÓRIAS
https://doi.org/10.29327/527231.5-17
ABSTRACT
249
1. Introdução
250
ao contexto marajoara, lócus do estudo e da atividade de extensão desenvolvidos pelos
autores deste texto. Partimos da compreensão de que há indícios de subalternidade e
silenciamento na vida das mulheres idosas do marajó, mais especificamente da cidade de
Breves.
Foi por meio das narrativas de suas memórias, que se evidenciou como se deu a
relação das interlocutoras com as políticas públicas de seu município. Suas considerações
denunciaram as suas exclusões em diferentes espaços da sociedade, pelo fato de estarem
na condição de mulheres, atoras sociais pertencentes a grupos historicamente posicionados
1
nas bordas , por serem idosas, negras, portadoras de ancestralidade ribeirinha e
afroindígena. Seus relatos, contribuem para perpetuar um cabedal infinito de agências e
memórias ligadas a processos de migração, (re)existências, enfrentamentos, manifestações
culturais e reprodução da existência.
Deste modo, aliando a pesquisa bibliográfica relacionada aos eixos como a
colonialidade do poder, do ser, do saber e de gênero, nos ocupamos na tentativa de traçar
elos com o campo de estudos do envelhecimento, para que, através de leitura de seus
relatos, pudéssemos trazer o debate sobre subalternização, cidadania e a perpetuação de
modos ―outros‖ de viver, que se posicionam na contramão da lógica metonímica moderno-
ocidental e eurocêntrica, pois este pensar e existir nas bordas é o que revela a força contida
em mulheres que lutam, rememoram, reconstroem cenas do passado e marcam seu espaço
na sociedade de hoje.
Os relatos a serem aqui discutidos foram extraídos da tese de doutoramento de um
dos autores e de conversas e observações captadas no decorrer de ações de projetos de
pesquisa e extensão da Faculdade de Serviço Social do Campus Universitário do Marajó -
Breves, uma das unidades representantes da abrangência da Universidade Federal do Pará.
Este trabalho se subdividirá em cinco seções de discussão, a contar com a presente
introdução, um capítulo articulador dos eixos de decolonialidade e relações de gênero, uma
seção seguinte tocante à discussões entre geração, saberes, modos de vida e cidadania,
bem como uma seção que evidencia os relatos colhidos junto às idosas interlocutoras da
pesquisa, seguido pelas considerações finais.
Termo debatido na tese de doutorado de Smith-Santos (2019, p. 32) no qual explicita: ―Estou considerando, a
partir deste estudo, que as bordas são dadas por inúmeras práticas, ações, silenciamentos, imposições sociais,
condições materiais e falta de acesso à determinadas políticas públicas. (...) Os silenciamentos destinados às
muitas mulheres, bem como as relações de subalternidades, foram percebidos, implícita e explicitamente, em
meio a tantos desrespeitos e ceticismo referentes aos direitos das mulheres no Brasil‖.
251
O pensador decolonial Walter Mignolo (2017) caracteriza a colonialidade como ―o
lado mais escuro da modernidade‖, tratando do processo de construção da América sob as
diretrizes da colonização europeia, e neste processo introjetou-se aos povos originários a
marca de ser o ―outro‖, ou seja, serem o grupo não reconhecido em suas práticas, saberes e
relações sociais enquanto parte de um cânone que o próprio colonizador inventou, com base
na ideia da raça.
A colonialidade, então, pode ser entendida, com base nos autores do grupo latino
americano de estudos Modernidade/Colonialidade, como um conjunto de processos de
caráter subjetivo que continuam a se manifestar em nossas relações contemporâneas,
sendo uma herança que contraria a ideia de que estariam absolutamente extintas as marcas
de um regime colonial. Sabe-se que oficialmente o período histórico conhecido como
colonialismo, característico dos projetos de colonização de metrópoles do autointitulado
―velho mundo‖ sobre as colônias do também por elas denominado de ―Sul Global‖,
considera-se como ultrapassado. No entanto, relações de caráter colonial se manifestam,
segundo os pensadores fundantes do grupo Modernidade/Colonialidade, em diversas
dimensões da vida humana, sendo elas o poder, o saber e o ser, a nível primordial.
252
A crítica traçada por Maria Lugones explicita de forma mais acentuada que as
dimensões de gênero citadas pelo primórdio do pensamento decolonial de certa forma
deixaram às escuras, quanto ao gênero feminino, a ideia de raça que foi debatida como fator
essencial na compreensão dos processos de colonialidade. Porém, como situa Lugones,
não se trata de eleger alguma primazia para as questões de gênero ou raça na abordagem
do pensamento decolonial, mas sim de trazer à tona a existência de um entrecruzamento
entre tais questões quando se analisa o processo de construção da
modernidade/colonialidade, ideias que não podem ser dissociadas e consideradas de forma
isolada uma em relação à outra.
Lugones versa que inicialmente as teorias decoloniais não davam evidência a como
estava implicado o gênero nestas relações de poder, buscando tornar nítido o lugar do gênero na
discussão traçada pelo grupo. Conforme Dias (2014), Maria Lugones ―acrescentou o conceito de
colonialidade de gênero às formas de colonialidade, do ser, do poder e do saber [...] e também a
intersecção das categorias raça, gênero e colonialidade‖ (p. 02).
Dessa forma, aos preceitos básicos relacionados à manifestação do legado social
colonial, o poder, o saber e o ser, foi adicionada, a partir de Lugones, a dimensão da
colonialidade de gênero, Evidencia-se, por seu pensamento, como foram utilizadas as
concepções de gênero dentro deste processos de silenciamentos das sujeitas compreendidas
pelo europeu como sendo o ―outro‖. Foram varridas identidades diversas, fazendo com que
subjetivamente o colonizado carregasse para si a ideia de que viver conforme os padrões da
modernidade seria a única alternativa válida e possível. Ainda nas palavras de Dias (2014),
253
(p. 77), ao que consideramos pertinente somar o ato de tratar sobre processos de
(re)existência à esta colonialidade através das práticas cotidianas do viver.
254
esteve ligada à ―busca da melhor maneira possível de viver‖ seja consigo mesmo ou com os
outros.
Faz-se necessário reafirmar que todo este processo não teve apenas bases
epistêmicas e filosóficas no campo do saber, mas também forte base no campo econômico,
uma vez que o advento do capitalismo moderno passou a dar prestígio ao conhecimento
apenas ―na medida em que pode contribuir para o „progresso‟, para o desenvolvimento do
capital.‖ (DE PAULA, 2016, P. 271).
As consequências deste processo foram a configuração de um quadro cada vez
maior de exclusão social, que afetou simultaneamente vários segmentos sociais, dentre os
quais destacamos a mulher idosa. Conforme discute Bilac (2014), nossa sociedade ainda se
faz carregada de concepções errôneas sobre o envelhecimento, tendo trocado sua
associação com a sabedoria pela representação de invalidez, de doença, de solidão e de
improdutividade, cujo senso comum aplicado sobre eles é da imagem de ―peso social‖.
Complementando essas considerações, Silveira e Nader (2014) visualizam que esta
representação sobre a velhice tem fortes raízes na constituição da globalização capitalista,
―marcado pela instantaneidade e descartabilidade‖ (p. 03).
Scott (2010) pontua que ―Gênero e Geração [...] implicam em hierarquias e
reciprocidades horizontais que são constituídas como relações de poder entre pessoas de
sexos e idades diferentes‖ (p. 16). Nesse sentido, a discussão de políticas públicas e
cidadania, evidencia um campo onde se relativiza a presença da equidade. Seus avanços e
recuos estão embasados ao atendimento de interesses sociais diversos. Dependendo do
grupo social em que localiza um ser, isto pode até mesmo se caracterizar com um fator de
estímulo à negação de sua condição de ser, devido às implicações trazidas pelo cotidiano.
Como exemplo disso, os autores supracitados pontuam também o fato de idosos não
quererem ser enxergados como tais, devido a perceberem a visão que a sociedade tem
sobre sua figura.
Nesse sentido, podemos compreender que além da já existente visão diferenciada
direcionada á geração idosa, dentro desse recorte ainda se visualizam diferentes papéis
sociais entre homens e mulheres relacionados ao acesso a recursos, acesso a emprego,
255
educação, moradia e renda, além a autonomia decisória. Considerando este panorama
desigual, Nunes-Rocha (2010) afirma que
256
Compreende-se assim, ser este o padrão orientador da vida das mulheres que hoje
são idosas, sobretudo nas relações sociais construídas pela modernidade no chamado ―Sul
Global‖. Em face a um cenário que herda tantas desigualdades outros autores contribuem
com o debate de como se configuraram as políticas públicas referentes a intersecções de
gênero e geração, sem deixar de levar em conta o recorte étnico-racial, que também se
localiza num expressivo quadro de desigualdades em nosso tempo. Essas considerações
também evidenciam que se trata de um cenário de lutas, avanços e recuos, pois coexistem
olhares que se voltam à emancipação em simultaneidade com as marcas desiguais que a
modernidade instalou sobre direitos, cidadania e participação social.
Avançando neste sentido, tomamos como base algumas proposições de Bilac
(2014), ao anotar que para que houvesse uma preocupação maior com o processo de
envelhecimento dentro das políticas do Estado brasileiro, foram necessárias pressões da
sociedade civil, visto que, por muito tempo tais questões estiveram alijadas de um caráter
social mais amplo, relegadas aos âmbitos específicos da saúde e da previdência social.
Desse modo, destaca a autora, de modo geral, que ―apesar das políticas sociais de atenção
às pessoas idosas brasileiras assegurarem as necessidades básicas e a proteção dos
direitos humanos, elas não foram eficientemente aplicadas‖ (BILAC, 2014, p. 67).
Frente a isso, as lacunas que marcam o desenvolver de políticas públicas no Brasil
para este grupo social, deixam sobreviver traços de vulnerabilidade social e processos de
discriminação historicamente herdados. A mulher idosa sofre diversas discriminações
simultaneamente, seja por sua idade, por seu gênero, por sua classe social ou por sua raça.
Assim, junto a questões de vulnerabilidade, observamos, com base em Renk, Badalotti e
Winckler (2010, p. 378) as formas de violência que recaem sobre mulheres idosas são
percebidas em diversos contextos, como o ―cerceamento e vigilância estrita em relação às
viúvas, com restrição e pressão familiar visando impedimento de estabelecer novo
casamento‖ e questões de ordem de alienação de benefício econômico. ―O direito à
aposentadoria [...] tornou-se o mecanismo de exploração de muitas mulheres‖ (RENK,
BADALOTTI E WINCKLER, 2010, P. 378).
Ainda nos direcionando a processos discriminatórios quanto aos modos de vida e
práticas sociais de mulheres idosas, cabem as colocações de Pereira e Lozano (2012, p.
afirmando que contexto amazônico, em diversos momentos, ―o trabalho da mulher não
é reconhecido, apesar de fundamental dentro da organização familiar‖, pois algumas são
vistas de maneira como se estivessem ―apenas „ajudando‟ seus maridos ou seus pais‖,
demonstrando uma visão machista que se nega a visualizar os papéis desempenhados pela
figura feminina e idosa em diversos espaços, tais quais os afazeres domésticos.
Voltando a reflexão sobre a problematização das políticas públicas direcionadas à mulher
idosa, evidencia-se que este campo, assim como o dos direitos para as mulheres, são
257
também arenas de lutas por espaços de poder (OLIVEIRA, 2012). As estratégias de
participação feminina tornam-se combates árduos ―contra a hegemonia do poder masculino
que impera na sociedade brasileira, ainda patriarcal, neoliberal e racista‖ (p. 123).
Recorrendo a Avelar (1996), Oliveira reforça que sendo a estrutura opressora de gênero
fundada no Estado, é relativizado o lugar das políticas para mulheres, visto também
derivarem da mesma estrutura.
Caracterizando o estado do Pará, a autora aponta a existência de um expressivo
número de mulheres chefes de família, o que demanda geração de políticas voltadas ao
trabalho e renda. As chefes de família geralmente lidam com a falta de acesso a crédito,
titulações de moradia e terra, dificuldades no acesso à água, além da divisão sexual do
trabalho, que é ainda um entrave para o exercício da cidadania das mulheres amazônicas.
Nesse sentido, ―a mulher é sujeito importante e estratégico na implementação de políticas
públicas‖ (OLIVEIRA, 2012, p. 125) visando também uma assistência social que viabilize sua
autonomia frente à vulnerabilidade social. Questionando sobre o futuro das mulheres ao
precisarem da previdência social e da aposentadoria, Oliveira aponta esses fatores como
―relevantes para a implementação de políticas públicas‖ (p. 136).
Ao visualizar este cenário dinâmico que abriga uma série de lutas por direitos e
cidadania, frente ao quadro ainda desigual que marca as vidas de mulheres idosas, podendo
pensá-los na realidade Amazônica, é possível traçar conexões com a importância de evidenciar
as narrativas das sujeitas que vivenciam historicamente o desenrolar das subalternizações até
aqui retratadas. Somado a isso, ao trazer seus relatos, trajetórias de vida e memórias
relacionadas à cidadania, à participação e à presença nos diversos espaços sociais,
desenvolvendo diferentes práticas, relacionadas ao trabalho, educação, acesso a recursos,
lazer, dentre outros eixos, significa também evidenciar os outros modos de vida, que muitas
vezes podemos caracterizar como processos de (re)existência, pois trazem, além de uma
2
história de bordas e agências , a perpetuação de seus saberes, suas culturas, suas concepções
sobre a vida, suas crenças e práticas ancestrais. Todo este conjunto de elementos é o que forma
o cabedal infinito da memória das mulheres idosas marajoaras.
Tomando como metodologia a coleta de relatos com mulheres idosas marajoaras,
podemos reforçar que a cultural intergeracional se retroalimenta, destacando-se aí a cultura da
conversa. Neri e Oliveira (2018), recorrem a Mota-Neto (2008), para explicar que essa cultura
tem a ver com o ―saber experiencial aprendido no cotidiano social, através da oralidade‖ (p. 667),
sendo elo de perpetuação das diferentes gerações, expressando e transmitindo vivências,
saberes, valores e hábitos, enraizando culturas. Suas memórias sobre
O termo agência também foi empregado na pesquisa de tese de Smith-Santos (2019, p. 35): ―a agência que me
refiro está relacionada à resistência, as vezes planejada, outras vezes realizada em virtude de se proteger de
determinados posicionamentos da sociedade local, ou mesmo da sua família, bem como para se resguardar das
diversas violências vividas no âmbito familiar‖ .
258
o trabalho, quando nos permitem visualizar a realização de funções igualmente atribuídas a
homens, contrariam o ―discurso biológico que associa a anatomia do corpo feminino a uma
insana fragilidade física‖, realizando atividades ―consideradas masculinas‖ para sobreviver
(p. 668-669).
Ademais, o fato de o pensamento decolonial em sua essência nos deixar cientes de
que o preceito fundamental sobre o qual se fundou a colonialidade foi a ideia da raça, tal
3
qual coloca o grupo Colonialidade/Modernidade , já nos pareceria bastante para enveredar,
no recorte de nossa pesquisa, também pela questão étnico racial ao discutir sobre mulheres
idosas, sobretudo no contexto amazônico, atravessado como é por uma ancestralidade de
identidades afroindígenas.
Cabe-nos reforçar mais nitidamente a justificativa para este direcionamento. Assim,
destacamos que, para Lugones (2014), ―a modernidade organiza o mundo ontologicamente em
termos de categorias homogêneas, atômicas, separáveis‖ (p. 935). E, por isso, afirmar uma
análise sobre mulheres negras, fazendo uma intersecção de gênero e raça, somando-se aqui ao
recorte geracional cujo elo aos demais eixos visamos, além de se contrapor e este caráter
separador da modernidade, evidencia e denuncia, justamente nessa intersecção, ―a ausência
das mulheres negras‖ (LUGONES, 2014, p. 935) nos escritos de influências eurocêntrica. Tal
contraposição permitiu a Lugones direcionar seu olhar a organizações sociais que resistem e
enfrentam a lógica da modernidade capitalista, e é neste mesmo sentido que buscamos neste
texto evidenciar os saberes e memórias relativas às trajetórias de vida de mulheres idosas
marajoaras, sobretudo negras ou afroindígenas, visualizando experiências ―outras‖ que
evidenciem (re)existências firmadas por bordas e agências.
Segundo Barbosa e Maso (2014), este grupo é formado por intelectuais, em sua maioria, latino-americanos. Em 2002,
Arturo Escobar batizou o grupo com este nome.
259
consideração por serem mulheres negras e expuseram fatos relacionados aos
4
silenciamentos e violações de direitos .
A dinâmica de organização do projeto de extensão foi pensada para articularmos
momentos culturais com debates a respeito dos direitos e experiências de vida numa tentativa de
trabalhar com as narrativas das memórias vividas no município. Na primeira atividade que
denominamos de ―Tarde de Cinema‖, reunimos em torno de 60 idosos participantes do CRAS.
Ao final da exibição do vídeo e da mostra de fotografia de lugares públicos antigos, abrimos
espaço para a escuta dos idosos. Tanto as mulheres, quanto os homens foram ouvidos e nos
relataram com nostalgia as lembranças dos tempos em que eram jovens e sua ligação com o
município, bem como as famílias ou empresas as quais mantinham relação empregatícia, as
escolas e os espaços mais frequentados nos tempos das décadas de 1950, 1960 e 1970.
Através desses relatos que conseguimos identificar algumas relações de exploração
da mão de obra feminina e o descaso do poder público com as necessidades das mulheres.
D. Serafina de 70 anos, rememora as dificuldades que os ribeirinhos tinham para acessar os
serviços médicos:
5
Eu lembro, assim, que a gente morava em Corcovado ... eu, desde criança
sou de lá. Então, quando a gente vinha... todos os portos, tinha locais aí,
onde todo mundo saía... era que encostava aqueles barquinhos. As
pessoas que tinham recurso é que tinham um motor (...). Então, encostava
tudo no porto municipal (...). Eu tenho muitas pessoas que, quando vinham
nos barcos, tinham bebê dentro dos barcos, porque não dava tempo de
chegar aqui no hospital. Quando, também, a minha cunhada teve dois
[filhos] dentro do barco e um perto da prefeitura - um filho. Não deu tempo
de chegar no hospital. Tinha que pegar a maca [...] carregar e levar lá pro
hospital. Essa [foto] aí, que me lembro (D. SERAFINA, 2019).
260
Eu era empregada na casa do pai do seu Giuliano, do Vitor. Eu era ama do
filho dele. Aí, nós vínhamos buscar água aqui na frente do hospital velho. Aí,
tinha outros moradores, tinha a outra rua. Tinha os funcionários. (...) Quando
dava 9h, eu fazia merenda pro menino e eu vinha trazer aqui. Todo dia, a
gente vinha buscar água aqui na frente. Era só uma torneira que tinha. Aqui
[apontando para a foto], era em fileira de baldes. Aqui saia muita confusão do
pessoal por causa de água... um botava o balde, outro tirava...
aí, eu tinha 11 anos. Às vezes, quando eu terminava do trabalho, eu me
lembrava da água, aí, a outra empregada, a gente trabalhava só numa
casa, eu era babá e ela trabalhava na casa... aí, a dona Selma era
6
empregada não lembro aonde (D. MADALENA, 2019).
D. Madalena é uma idosa negra, seu relato nos remete ao debate de raça e gênero
para a compreensão dos porquês sobre os processos de exploração de mão de obra são
mais agravantes para as meninas negras, como foi o seu caso. Nesse sentido, Smith-Santos
(2019) cita Marta Machado e Márcia Lima (S/D, p, 2).
Todos os nomes citado pela interlocutora foram alterados para preservar o sigilo da identidade.
261
estudar, porém aos poucos foi obrigada a realizar tarefas domésticas. Na ocasião não foi
matriculada em uma escola, só assistia aula particular o que a ajudou apenas aprender a
escrever seu nome. A mãe de sua madrinha que mais fazia pressão para não permitir seu
estudo uma vez que a ensinaria a escrever cartas para possíveis namorados.
O emprego doméstico em muitos casos é a solução para algumas famílias em
vulnerabilidade social que não tem como promover o sustento dos filhos, daí o recurso seria
enviar suas filhas às famílias abastadas a fim de ter um lar para morar e poder se alimentar,
porém tais famílias encaram este arranjo como uma facilidade para conseguir mão de obra
barata e submissa. A subserviência vem muito dos vínculos de possível parentesco que estas
meninas têm juntos de seus patrões/parentes. Smith-Santos (2019) cita Sabóia (2000):
A naturalização da ideia de que à mulher cabe o trabalho no lar tem perdurado por
longos anos e continua fazendo com que meninas, a nível nacional e internacional, sejam
ensinadas a darem continuidade aos serviços domésticos. Elas são condicionadas a
aprenderem inúmeras tarefas desde cedo, bem como são conformadas a agirem de forma a
subordinar-se, principalmente quando moram no lar em que trabalham.
Ainda nos direcionando à questão do trabalho doméstico, notamos que Martins, Luz
e Carvalho (2010), alicerçados em Bourdieu (1995), ressaltam que a ―dominação masculina
e a submissão feminina foram construções sociais que se naturalizaram‖, como resultantes
de uma transposição de diferenças sexuais biológicas em diferenças sociais (p. 02). Nesse
sentido, o quadro que relega às mulheres as tarefas domésticas tem por base ―relações de
poder assimétricas‖ entre os gêneros. Evidencia-se, então, a ―reprodução da tradicional
divisão sexual do trabalho‖ no que permanecem parâmetros laborais retrógrados (p. 03).
O processo de envelhecimento em nosso tempo histórico infelizmente não é devidamente
compreendido por grande parte da sociedade. Junto a isso, há uma série de discriminações, bem
como estereótipos e estigmas sobre a figura dos mais velhos. Brunnet et al (2013) anotam que a
fase da velhice ainda é socialmente visualizada como sinônimo de ―decadência física, perda de
papéis sociais e com a associação de outras imagens culturalmente negativas, como o
comprometimento cognitivo, o deterioramento emocional e o empobrecimento econômico‖ (p.
101). Por vezes, ocorre de a visão negativa carregada pelo senso comum sobre o que é ser
idoso(a) exercer influencia na visão que os próprios sujeitos
262
da terceira idade têm de si mesmos, acreditando numa suporta invalidez que o mundo do
trabalho moderno aponta nas idades mais avançadas. Ouvindo o que tiveram a dizer as
interlocutoras de nossa pesquisa, pudemos refletir sobre estas considerações. O relato de
D. Jesus chega a ser tocante sobre o significado do envelhecimento em sua vida:
A velhice para mim, eu acho assim, é uma doença. É porque eu tenho vontade
de fazer as coisas, hoje em dia tudo é pago, porque antes quando eu estava
mais nova eu roçava o meu quintal, eu limpava, queimava lixo, fazia tudo. Agora
eu não posso mais porque dói o meu braço. O osso da gente fica frágil, a gente
quer pegar um peso assim, mas não dá para arriar, o meu principalmente, eu
acho. E tem dia que a gente amanhece fraca [ênfase na palavra]. Hoje em dia
eu amanheço e digo: ―Oh meu Deus, me dê força, coragem, disposição para eu
viver a minha vida, até o dia que eu deva viver. Não me deixe esmorecer, não
me deixe perder a memória‖ [termina o tom de oração], que eu tenho medo
assim de perder a memória. Esquecida eu sou um pouco, mas tem gente que
perde a memória, eu não quero ser assim. Se for para ficar assim, Deus que
sabe, eu entrego não mãos d‟Ele. Eu sempre digo, a velhice para mim é
doença, porque se fosse ficar velho e ficasse forte para fazer tudo o que
quisesse, mas a gente fica frágil [dá ênfase nessa palavra]. Muitas vezes já fica
esperando que os outros façam para ti. Eu subia na caixa d‟água, limpava,
lavava, hoje em dia eu não posso mais [lamenta], quem faz é meu neto (D.
JESUS, 2018 apud SMITH-SANTOS, 2019, p. 62).
263
eu quero aprender a ler, mas é que ainda não consegui. Minha mana eu
conheço todo o tipo de letra, mas eu tenho medo de juntar e não dar certo.
7
O meu nome eu sei escrever sim, eu fico reinando porque é que eu
conheço as letras, mas não sei juntar (D. ROSA, 2017 apud SMITH-
SANTOS, 2019, p. 240).
Sua dificuldade em ler é externalizado nessa narrativa, procura explicar que isto está
associado ao fato de ter sido a irmã mais velha e, por tal razão, recebia a responsabilidade
desde criança de cuidar dos irmãos mais novos. Ao sair da infância, assumiu um trabalho
doméstico na adolescência e, ao mesmo tempo, seu pai de criação via como desnecessário
aprender a ler por ter risco de escrever cartas para namorado.
Entretanto um fator alarmante quanto à dificuldade de aprendizagem diz respeito aos
anos já vividos participando do Centro de Referência e Assistência Social - CRAS, porém não
houve um resultado efetivo para sua vida. Levando em consideração ao que foi observado em
campo, a idosa provavelmente vai continuar tendo dificuldades de aprender, esse quadro só
poderia mudar se a gestão municipal se empenhasse em destinar profissionais capacitados para
atender a demanda desses idosos, o que não tem ocorrido atualmente neste município.
A construção do modelo de sociedade moderno ocidental apenas reforça a
característica de considerar infância e juventude como fases majoritariamente, ou mesmo,
exclusivamente propícias a estarem participando do ambiente escolar. Peres (2011),
evocando Philippe Ariès (1981), pontua que ―o surgimento da sociedade moderna industrial
e a universalização da educação escolar seriam os principais determinantes da delimitação
da infância como fase diferenciada da vida adulta‖ (p. 631). Assim, nossa educação visa
formar aquele que no futuro será o trabalhador considerado produtivo, e, portanto, adotou
métodos adaptados às idades iniciais, num projeto que alijou fortemente a pessoa idosa, a
qual não era mão de obra interessante à produção, por estarem próximos ou já acessando à
aposentadoria.
Pensar uma educação voltada ao idoso, seria ―desperdício‖ a partir da visão
capitalista, o que explica a falta de uma educação específica para a pessoa idosa no atual
contexto. Peres (2011) ainda destaca o surgimento de educação para adultos como
derivada da necessidade de especializar a classe operária, que portava modos de trabalho
considerados primitivos e ignorantes pela lógica do moderno ocidental ligada ao trabalho,
tornando possível visualizarmos a relação com a colonialidade nos âmbitos da educação e o
trabalho da vida humana.
5. Considerações Finais
Segundo o dicionário Papa Chibé, reinar significa irritar, porém o termo empregado pela interlocutora pode estar
relacionado a pensar. Cf: https://artepapaxibe.wordpress.com/dicionario/
264
O texto que aqui foi apresentado teve por objetivo desenvolver uma pesquisa sobre
as experiências de mulheres marajoaras da terceira idade, buscando, por meio na análise
de relatos, memórias e lembranças, suscitar um debate a nível teórico que fosse capaz de
alcançar o pensamento decolonial, suas ramificações quanto ao recorte de gênero, bem
como discussões a respeito dos espaços ocupados por tais mulheres na sociedade e sua
relação com as políticas públicas do lugar de vivência.
Nesse sentido, procuramos traçar elos de ligação nas intersecções das relações de
gênero com dimensões étnico-raciais, subalternidade e relações de poder, bem como a
dominação que recaem sobre a mulher na contemporaneidade. Este cenário desigual é lido
como consequência do processo de construção da modernidade, que traz consigo, na leitura dos
pensadores que nos embasaram, a colonialidade, a qual sobrevive até hoje e se manifesta de
diversas formas. Recorrer a pensadoras feministas decoloniais foi crucial, visto que elas realizam
uma abertura teórica para eixos antes não explorados por tais estudos, dando novas
perspectivas para visualizarmos os processos que fundam a estrutura social do hoje.
Adotamos, enquanto metodologia para a construção do trabalho, a pesquisa
bibliográfica que buscou abranger a formação social dos povos da América Latina, através
do Colonialismo e como as influências dessa estrutura social se perpetuaram até hoje nas
relações protagonizadas pelas mulheres idosas, mais especificamente amazônicas, negras
ou afroindígenas.
Para que pudéssemos ampliar nosso norte de discussão, adotamos a metodologia
de entrevistas semiestruturadas que nos permitiu ouvir relatos das mulheres interlocutoras
da pesquisa, bem como utilizamos relatos que já haviam sido colhidos na construção da
tese de doutorado de um dos autores. Com base nisso, pudemos refletir de modo teórico e
empírico sobre a vivência de mulheres que empreendem no seu cotidiano processos
contínuos de (re)existência e agências, que lhes permitem reproduzir sua existência frente a
um cenário que a elas relegou a figura de ser o ―outro‖, como mulheres que não se situam
dentro da lógica moderno ocidental.
Os referidos relatos que pudemos coletar no desenvolver dessa pesquisa, se
realizaram em consonância com ações extensionistas de projetos pertencentes à Faculdade
de Serviço Social do Campus Universitário do Marajó-Breves, da Universidade Federal do
Pará. Tais projetos, em conjunto, constituem o que pretendemos desenvolver para um
programa de pesquisa e extensão, referente às Memórias de Idosos no Marajó, tendo como
eixos centrais a valorização de saberes, a interpretação e estudo em caráter antropológico e
da História Oral sobre trajetórias de vida marcadas pelo contato ou pela ausência da
abrangência de políticas públicas, bem como as dificuldades enfrentadas por mulheres
idosas no acesso a recursos básicos, como por exemplo, água tratada para o consumo.
265
Somado a isso, também se desenvolve o eixo que busca por meio de atividades
audiovisuais, como o cinema e a fotografia, apreender histórias e memórias dos sujeitos
idosos e suscitar a discussão de políticas públicas, exercício da cidadania e o direito ao
envelhecimento junto aos idosos que frequentam serviços públicos da Assistência Social do
município lócus da pesquisa.
A importância de se debater sobre gênero, cidadania, raça e envelhecimento é dar
visibilidade à discussão sobre grupos sociais que historicamente sofreram e, ainda hoje,
sofrem um expressivo conjunto de opressões e violações, que incluem também o acesso
aos direitos. Com este ensaio, buscamos pontuar sobre o papel da modernidade como uma
tendência a promover a invisibilização através da aplicação de concepções isoladas no que
tange aos diferentes grupos, como, por exemplo, tratar sobre as questões de gênero
pretendendo uma falsa universalidade da figura feminina, ignorando os aspectos étnico
raciais e especialmente o aspecto da geração, que nas abordagens do trabalhos científicos
que discutem sobre representatividade, cidadania e direitos, ainda configuram uma certa
lacuna a ser preenchida.
Neste, sentido, o que visamos com esta pesquisa foi traçar rumos que possam
conectar os eixos aqui citados, mesmo que de maneira prematura, para uma melhor
compreensão, sobretudo no espaço da Amazônia marajoara. Pudemos, portanto, iniciar uma
reflexão sobre qual é o lugar social dado ao idoso na modernidade, considerando gênero,
raça, classe, relações intergeracionais, saberes e modos de vida.
REFERÊNCIAS:
266
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267
“Outras lutas além do fogão”:
O Movimento de Mulheres da Região Guajarina-Pa, na década de 1990.
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-18 Antonia Lenilma Meneses de Andrade – GHISCAM/UFPA
2
Luiz Augusto Pinheiro Leal – GHISCAM/UFPA
Resumo: O espaço de atuação feminina foi, por muito tempo, limitado ao espaço doméstico, em
oposição ao espaço público. O lar, a família e, em resumo, ―o fogão‖ constituíam o único
horizonte de ação para as mulheres. Contrariando essa perspectiva, especialmente pela
iniciativa de mulheres oriundas do meio rural, nasceu o Movimento de Mulheres da Guajarina, na
região Nordeste do Pará, nos anos de 1990, após muitas lutas e articulações em favor das
questões do campo. Portanto, o objetivo deste artigo
descrever e analisar o processo de formação do Movimento de Mulheres da Guajarina,
demonstrando como o mesmo se tornou um marco na organização de Lideranças femininas na
região nordeste paraense. Como metodologia para o desenvolvimento da pesquisa, utilizamos a
História Oral (Thompson, 2002). A pesquisa aponta o processo de ampliação da participação das
mulheres em espaço de poder, como associações, partidos políticos, coordenação comunitária e
liderança local (Scott, 1996).
Abstract: The female acting space was, for a long time, limited to the domestic space, as opposed
to the public space. Home, family and, in short, ―the stove‖ constituted the only horizon of action
for women. Contrary to this perspective, especially by the initiative of women from rural areas, the
Guajarina Women's Movement was born in the Northeast of Pará, in the 1990s, after many
struggles and articulations in favor of rural issues. Therefore, the purpose of this article is to
describe and analyze the process of formation of the Guajarina Women's Movement,
demonstrating how it has become a milestone in the organization of female leaders in the
northeastern region of Pará. As methodology for the development of the research, we use the
Oral History (Thompson, 2002). The research points to the process of increasing women's
participation in power spaces, such as associations, political parties, community coordination,
and local leadership (Scott, 1996).
http://lattes.cnpq.br/5014221585367267
http://lattes.cnpq.br/7967678999713659
268
INTRODUÇÃO
O espaço de atuação feminina foi, por muito tempo limitado ao espaço doméstico em
oposição ao espaço público. O lar, a família e, em resumo, ―o fogão‖ consistiam nos únicos
meios de ação para as mulheres. Contrariando essa perspectiva, especialmente pela iniciativa
de mulheres oriundas do meio rural, nasceu o Movimento de Mulheres da Guajarina, na região
Nordeste do Pará, nos anos de 1990. O movimento surgiu diante de uma conjuntura opressiva
no meio rural e da organização da Comissão Pastoral da Terra - CPT, que atuava junto às
comunidades da região, desde o início dos anos 1960.
O movimento refletia os anseios e os esforços das mulheres do campo para se manifestar
nos espaços políticos de decisões. As dificuldades eram imensas, mas não apenas em relação
ao inimigo comum, o agronegócio. Internamente aos movimentos sociais, embora as mulheres
estivessem sempre ao lado dos homens, na luta pela manutenção e organização dos territórios,
nos momentos de decisão ou de representação, eram sempre os homens que ficavam com os
cargos de visibilidade. As mulheres ficavam limitadas ao espaço privado (PATEMAN, 1992). No
intuito de construir espaços para a atuação das mulheres, o movimento ergueu bases para
várias reivindicações sobre a realidade vivida por mulheres dos municípios de Concórdia do
Pará, Bujaru, Tailândia, Moju, Tomé-açu, Acará e Abaetetuba.
A articulação por outra forma de luta, fez com que mulheres de diversas comunidades rurais
dos vários municípios da região Guajarina, se unissem, criando o Movimento de Mulheres da
Guajarina, como espaço de mobilização e discursões de lutas como territorialidade, cidadania,
sindicalização, educação, violência no campo e violência doméstica, religião, cuidados com a saúde
da mulher e relações gênero. Portanto, o objetivo deste artigo é descrever e analisar a história de
formação do Movimento de Mulheres da Guajarina, demostrando como o mesmo se tornou um
marco na organização de Lideranças femininas na região nordeste paraense. Como
269
metodologia para o desenvolvimento da pesquisa, utilizamos a História Oral (Thompson, 2002),
visando à valorização da oralidade presente nos movimentos sociais.
Além disso, também fizemos análise de documentos escritos (folders, relatórios dos
encontros, atas dos encontros e congressos) dos anos de 1997, 1998 e 1999, 2000 e 2002. O
resultado desta pesquisa revela um processo de ampliação da participação das mulheres em
espaços de poder, como associações, partidos políticos, coordenação comunitária e liderança
local. As histórias das mulheres no Movimento de Mulheres da Guajarina, nos permite
reconstruir alguns dos limites e rupturas da formação destas mulheres enquanto sujeitos sociais
ativos. Suas ações repercutiram dentro de vários espaços de luta e organização social.
Alguns exemplos, de espaços de luta, são os movimentos exclusivamente de mulheres,
participação em movimentos quilombolas, em associações, igrejas e na própria comunidade de
origem. Tal como os movimentos sociais dos anos de 1980/90, o movimento de mulheres
contribuiu para a conquista de direitos sociais novos. Segundo GONN (2003), os movimentos
sociais no Brasil, nas últimas décadas, caracterizam-se por uma complexidade crescente e por
uma linha de pluralidade organizativa. Dentre as inúmeras organizações, destacam-se as
articulações políticas de comunidades tradicionais, tais como ribeirinhos, assentados da
reforma agrária, mulheres agricultoras e quilombolas.
Esses movimentos sociais têm se consolidado fora dos marcos tradicionais do controle
clientelista dos grupos dominantes. Reconhecem, no momento atual, certos desdobramentos,
cujas formas de associações e lutas extrapolam ao sentido estrito de uma organização sindical
3
e as formas de enquadramento urdidas pelo Estado . Possuem um caráter libertário e
autogestionário em suas ações.
Os movimentos sociais do espaço rural eram ocupados majoritariamente por homens.
Contudo, as lutas, além de influenciarem na redução das desigualdades entre o espaço rural e
o urbano, também tiveram efeitos positivos sobre a vida do conjunto dos/as trabalhadores/as do
campo e favoreceram o acesso das mulheres a direitos e a políticas públicas. Entretanto, a
presença e a participação das mulheres, no movimento, só foi lentamente conquistada. Elas,
com o tempo, ―saíram do anonimato, do não reconhecimento como agricultoras para iniciar sua
inserção nas políticas públicas governamentais‖ (PORTELLA, 2004)
A formação de movimentos das mulheres de forma geral, assinalou a participação das
mulheres nos movimentos sociais, o que significou a entrada das mulheres num espaço
tradicionalmente representado pelos homens. As mulheres agricultoras ganharam maior
visibilidade no espaço social e político brasileiro, transformando-se por este modo em ―sujeitos
políticos no cenário nacional‖ (NOBRE, 2002).
Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Quilombos e Novas etnias. Manaus UEA 2011.
270
Segundo Cintrão (2006) os movimentos de mulheres rurais da década de 1980, são
ainda embrionários e limitados geograficamente, mas contribuíram nas mobilizações populares
na assembleia Constituinte de 1988. Cintrão, cita, ainda que nesse período os movimentos
ganharam força e se ampliaram com estímulos e o apoio de organizações de âmbito nacional
como a Confederação Nacional de Trabalhadores na agricultura (CONTAG), Central única dos
trabalhadores (CUT), os conselhos Estaduais de direitos das mulheres e a cooperação
Internacional.
Através da Constituição de 1988, pela primeira vez foi colocada, em nível nacional, uma
negociação de políticas públicas que considerava a questão das mulheres rurais. A partir de
então, os movimentos de mulheres rurais ganham visibilidade e têm um impulso para a sua
nacionalização. Sob influência das mobilizações da Constituinte, acontece, em 1988, o I
Encontro Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da CONTAG (SILVA, 2006). O encontro
desencadeou a organização nacional das mulheres dentro do movimento sindical de
trabalhadores rurais, permitindo grande ampliação geográfica, graças à presença de sindicatos
de trabalhadores rurais em todos os estados e em grande número de municípios. A partir daí
ocorreu um aumento progressivo da participação feminina nos movimentos.
Na época, a equipe da CPT era constituída por Padre Sergio Tonneto, Irmã Rosa
Figueiredo, Irmã Adelaide, Irmã Ivódia, padre Amadeu e padre Santiago. Estes eram párocos
4
em Bujaru . Na frente sindical, contava-se com Socorro Gomes, Gaida Silva, Lucia Lima, irmã
5
Ivodia, Cristina, (secretária da FETAGRI). Segundo Irmão Rosa Figueiredo :
Os homens participavam dos Sindicatos, já tínhamos um trabalho
com os jovens, clubes de mães em quase toda comunidade, então,
era necessário fazer um trabalho mais político com as mulheres, já
havia pressão de organismos internacionais para que isso
acontecesse. No triênio que iniciou em 1990, nós tínhamos a meta,
271
como linha de ação organizar as mulheres da região, criar um
movimento que as reunisse, mas não podia ser homens a
organizar. Então quem ia começar? E foram a Socorro Lima,
Gaída Silva que tomaram a frente, e foram muito importantes no
processo de organização do Movimento. Foi feito uma espécie de
proposta de desenho da criação do movimento. Foi identificado e
mobilizado mulheres de vários municípios da região que tinham
uma consciência crítica mais aprofundada. Reunimos com elas e
começamos a discussão para formar uma coordenação provisória.
A CPT, não atuava só no Bujaru. Era no Acará, Moju, Abaetetuba,
6
Tailândia, já em Concórdia foi só depois(...) .
272
folder podemos notar que as lutas não estavam desconectadas dos contextos políticos
que permeavam o cenário internacional na américa Latina.
273
Mas um dia nós mulheres vamos conseguir o que queremos.
Vamos ocupar o nosso lugar na família e na sociedade.
Uma esperança de mudança é a participação em nosso Movimento e
em outras organizações. É juntar com as companheiras e os
companheiros para enxergar mais longe, se organizar e lutar pela
vida. É ter consciência de seu saber e de seu valor. É ter coragem de
sacudir as cinzas do fogão, do nosso corpo e entra de cheio no
8
Movimento para transforma a sociedade
274
Cappelin (2000), coloca que a questão de gênero perpassa por subjetividades,
englobam o social e o cultural produzindo identidades do homem e da mulher, onde homens e
mulheres se localizam em suas funções desde tenra idade. Portanto, seus espaços são
diferenciados. Temos em Scortt (1995) dentro de suas analises o seguinte conceito:
O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado
nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder. As mudanças na
organização das relações sociais correspondem sempre à mudança
nas representações de poder, mas a direção da mudança não
segue necessariamente um sentido único. Como elemento
constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças
percebidas entre os sexos, o gênero implica elementos
relacionados entre si. (SCOTT, 1995. P. 60)
Como esclareceu Fremont (1980 apud MENESES e GAMA, 2012) o espaço vivido
possui um caráter particular a cada pessoa, está também ligado ao imaginário, e ao
espaço social. Ele é construído por uma série de acontecimentos, onde homens e
mulheres estão posicionados de maneiras diferentes. Logo, ainda segundo este autor, no
mesmo plano, o espaço vivido das mulheres distingue-se dos homens, pois o espaço é
constituído por encaixes de células fechadas e solitárias umas das outras, porém
cuidadosamente distinta: a cidade, a casa, o quarto etc. as mulheres vivem em espaço
muito restritos quase secretos entre a casa e poucos espaços públicos.
Nesse espaço vivido, é que se encontram algumas mulheres do campo que como
relata o autor, possivelmente estão localizadas em um espaço menor, no foro íntimo, na
casa, quintal, na lavoura. Não obstante ela assume uma série de tarefas que lhes são
275
ensinadas desde muito jovens. Mesmo dentro desse contexto, algumas mulheres se
destacaram com sua forma de lidar com essas diferenças, nesse caso podemos destacar
as mulheres que lideram o Movimento de Mulheres, como as mesmas lutaram renegando
uma condição de não lugar por serem mulheres e camponesas. Ainda sobre as mulheres,
Gohn afirma:
Tem crescido de forma favorável o número de mulheres que querem sair do anonimato e
protagonizar suas conquistas, elas estão em diversos espaços. Tem mostrado sua força e
capacidade de liderança nos processos decisórios. Seja como líder sindical, como ministra ou
presidente da república, as mulheres de um modo geral estão saindo da invisibilidade.
276
fundado em 1989 e fomentar os movimentos menores que se consolidavam no Norte,
estado do Pará, como Movimento de Mulheres da Guajarina.
As questões de pauta da luta das mulheres nesses movimentos, passavam
primeiramente pelo reconhecimento da profissão como agricultora, para que constassem
em seus documentos que eram trabalhadoras rurais ou agricultoras (e não como
doméstica ou dona de casa). A luta por direitos sociais, em especial a aposentadoria e o
salário maternidade; o direito de sindicalização e as questões da saúde da mulher. Ainda
nessa década, foram feitas as primeiras reivindicações, como a titulação da terra em nome
do casal, ou em nome da mulher chefe de família, e o direito das mulheres solteiras ou
chefes de famílias serem beneficiárias da Reforma Agrária.
Na Constituição de 1988, as mulheres rurais tiveram duas importantes conquistas: a
menção explícita ao direito das mulheres a terra, e sua inclusão como beneficiárias da
previdência social, com direito à aposentadoria, à licença-saúde e à licença-maternidade,
tudo isso na condição de seguradas especiais. E para implantação como política pública
para esse segmento, são necessárias outras mobilizações e a ampliação de outros
movimentos do campo. (MENESES e GUSMÃO, 2012).
Nos últimos anos de 1990, podemos considerar que foi o período que as mulheres
rurais aparecerem publicamente como produtoras rurais propriamente ditas. Agora já
reivindicando o direito de serem beneficiárias de políticas produtivas, e exigindo tratamento
diferenciado por parte da sociedade e do Estado.
Nos anos de 1996, 1998, 2000, 2001, 2003, 2006, 2007,2011 foram realizados
congressos, onde reuniram-se todos os municípios que fazem parte da Guajarina. Nesses
congressos focalizou-se questões estruturais e conjunturais e aquelas específicas das
trabalhadoras do campo, todas buscando a superação da pobreza e da violência no
campo, o desenvolvimento sustentável, a igualdade de gênero assim como um reforço a
identidade de mulheres rurais (CPT, 2012).
Organizadas por um conjunto de ações coordenadas pela Comissão Pastoral da
Terra. Paralelamente, avançaram também no aprofundamento da discussão das relações
de gênero e do seu papel dentro das famílias e na sociedade, reivindicando mudanças na
divisão sexual do trabalho, questionando sua falta de poder dentro de casa e denunciando
a violência de doméstica (SILIPRANDI, 2008).
Em março de 1996 ocorreu em Mãe do Rio primeiro Congresso regional, nele foram
definidas as diretrizes do Movimento as estratégias, considerando que a maioria das
mulheres pertencia. Segundo o relatório da CPT, a uma classe trabalhadora oprimida que
277
vivia do suor do trabalho, acreditavam de verdade que as mulheres têm importância na
sociedade, que só elas podem assumir (CPT, 1996). Também foram definidos os objetivos
que norteariam a vida do movimento, dentre os quais a libertação das mulheres, violência
contra a mulher e luta pela terra.
Outro congresso regional, ocorreu em 1999 em Abaetetuba/PA, entre os dias 11 e
14 de novembro. Esse congresso tinha como objetivo reunir todos os municípios que
fazem parte do movimento de mulheres na região da Guajarina participou Concórdia do
Pará, Moju, Abaetetuba, Acará, Barcarena, Tomé- Açu e Tailândia. O tema: Mulher: Uma
força construindo o Brasil, objetivos principal era apontar a importância das mulheres rurais
na construção da nação brasileira.
Em 2000, ocorreu um novo encontro de formação, dessa vez na cidade de Tailândia.
Com o tema central ―Mulheres em busca de direitos‖ e o lema ― Mostrando com capacidade
que tem outras lutas além do fogão‖, que nomeia esse artigo. Nesse encontro a pauta estava
em torno da oficialização do movimento. Bem como trazer mais mulheres para o movimento.
contou com a presença de representantes da CPT, Padre Sergio Tonetto, Maria do Socorro
Lima, coordenadora do Movimento de Mulheres Transformadoras do Campo e da cidade
(MMTCCB), Antonina Borges, Coordenadora do Movimento de mulheres do campo e da cidade
Concórdia do Pará (MMCC), Lucimar do Socorro Costa, (representante da articulação de
Mulheres rurais da Guajarina), Raimundo Francisco (representante do sindicato dos
278
trabalhadores rurais de Acará), Raimundo Lucas e Claudio (representantes do Partido dos
11
trabalhadores) e o vereador, Eduardo Lima .
Nesse congresso, foi feito uma retrospectiva da história da mulher nos movimentos
sócias e políticos. Alguns dos temas abordados diziam respeito as ações doo movimento
feminista no século XX.
No que se refere à violência, esse foi um tema especial nos três congressos de mulheres
de 2000, 2003 e 2007. Seguindo ainda a temática da violência, via-se nos movimentos uma
preocupação especial, por causa das condições em que as mulheres agredidas ficam, sem
nenhum acesso aos equipamentos públicos que possibilitem a elas ter algum tipo de ajuda.
Assim, nesses três últimos congressos, a pautas estavam direcionadas a formação e
12
informação sobre a lei Maria da Penha. (CINTRÃO e SILIPRANDI, 2011).
279
Tendo em conta o rompimento e conquistas advindas da organização das mulheres
rurais na região nordeste do Pará, podemos dizer, que reconhecidamente, o movimento de
Mulheres Transformadoras do Campo, vem contribuindo como um instrumento na luta para
a conquista de direitos que lhes foram negados historicamente.
Conclusão
O Movimento de Mulheres da Guajarina pode ser analisado como marco na
fomentação de lideranças femininas na região, forjando a base de sustentação para a
participação efetiva das mulheres frente aos espaços de decisões e concretização de
conquistas sociais. As histórias dessas mulheres, nos permitem reconstruir alguns dos
limites e rupturas no tempo histórico e sua formação em enquanto sujeitos sociais ativos,
que envolve suas ações dentro de vários espaços, sejam no movimento somente de
mulheres, ou movimento quilombola, associações, igreja e na própria comunidade.
O Movimento de Mulheres do Campo e da cidade, representou acima de tudo um desejo
de mudança das condições de milhares de trabalhadoras rurais da Microrregião de Tomé-Açu
(Região Guajarina). Assim, ficou como uma semente plantada para o futuro. Representa o
desejo de muitas mulheres que querem ver uma sociedade mais justa, para ambos os gêneros.
O processo de luta ainda continua, pois em muitos espaços a violência contra as mulheres
rurais ocorre com frequência. Espaços que, considerando a trajetória do Movimento de
Mulheres do Campo e da Cidade, vão, sem dúvida, ―muito além do fogão‖.
280
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281
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA, GÊNERO E ESTEREÓTIPOS: ANÁLISE DE
ASPECTOS DISCURSIVOS DA ATUAÇÃO DAS VEREADORAS DE BELÉM E DE
MANAUS NO FACEBOOK
https://doi.org/10.29327/527231.5-19
1
Nathália Kahwage
2
Danila Cal
282
INTRODUÇÃO
3
Existe um conjunto de mecanismos institucionais causadores da distorção
política de gênero, e que estão ligados a questões estruturais, como a divisão sexual
do trabalho (OKIN, 2008; BIROLI, 2018). As barreiras de caráter extralegal, e não
perceptíveis formalmente, dificultam a carreira política feminina (PINTO; SILVEIRA,
2018; MATOS, 2018; PANKE; IASULAITIS, 2016; PANKE, 2016; MIGUEL; BIROLI,
2013; OKIN, 2008) e criam uma rede de privilégios para os homens legitimarem sua
atuação na política formal. Afinal, embora eleitas, ainda enfrentam diversos
constrangimentos e desigualdades de gênero nesse campo. Porém, tal contexto não
pressupõe um lugar de passividade e de submissão às mulheres, ainda que o contexto
de dominação se demonstre tão presente. A ação individual e coletiva de grupos
marginalizados, como o das mulheres, pode levar à expansão do ―espaço discursivo‖
(BIROLI, 2018), e à abertura para experiências diferenciadas (PINTO; SILVEIRA,
2018), em ambientes hegemônicos, e predominantemente masculinos – como é o caso
da política institucional -, ressignificando as relações de poder compreendidas, neste
artigo, para além do sentido de dominação (power over), e sim também como
empoderamento (power to), resistência (power to) e solidariedade (power with)
(ALLEN, 2013, 1998; CAL, 2016). Os estereótipos entram, nessa dinâmica, como
atalhos comunicacionais (BIROLI, 2011), e estratégias de comunicação política
(PANKE, 2016), capazes de promover, em certa medida, mais mobilidade aos sujeitos
e grupos.
O alargamento na definição de representação política pode ser realizado sob
uma perspectiva comunicacional, ou seja, discursivamente, pelas trocas entre os
sujeitos, nos diferentes ambientes comunicacionais. Pode ser reconfigurada a partir de
um relacionamento a ser investido entre as partes, ao longo do tempo, e capaz de
ocorrer por vieses menos convencionais - como o discursivo -, e em ambientes menos
comuns - como o online. É o que objetiva este artigo: compreender como as
vereadoras de Belém e de Manaus utilizam os estereótipos para ressignificar o
exercício da atividade política por meio dos vídeos postados em seus perfis pessoais e
fanpages no Facebook. Panke (2016) organizou os três principais estereótipos
femininos na política: Mãe, Guerreira e Profissional. Eles serão guias na busca pela
solução do problema de pesquisa e também analisados, sob as diferentes relações de
poder. O corpus é composto por 210 vídeos das vereadoras de Belém da 18ª
3 Para Miguel e Biroli (2014), a sub-representação é causada, fundamentalmente, por três fatores: o
isolamento da mulher na vida doméstica, que influencia em uma rede de contatos mais reduzida; a dupla
jornada de trabalho feminina, que reduz o tempo livre para outras atividades; e o padrões de socialização
(papéis de gênero), que inibem a participação das mulheres na esfera política por se entender,
socialmente, que é um ambiente masculino.
283
Legislatura (2017-2020): Blenda Quaresma (MDB); Marinor Brito (PSOL) e Simone
Kahwage (PRB); e das vereadoras de Manaus (AM), da 17 ª Legislatura (2017-2020):
Glória Carratte (PRP); Joana D’arc (PR); Professora Jacqueline (PHS); e Professora
Therezinha (Democratas). Desse total, 86 são das parlamentares de Belém e 124 são
das parlamentares de Manaus. O recorte incluiu as postagens a partir do dia
04.08.2015 (data da primeira postagem que foi da vereadora Simone Kahwage) até o
dia 08.03.2018 (Dia Internacional da Mulher). O método utilizado foi o de análise de
conteúdo.
Destaca-se que as sete vereadoras estão situadas geograficamente na
Amazônia, um locus periférico em nível nacional, onde vivem a realidade da região e
possuem experiências marcadas por particularidades locais, sejam elas vivências de
opressão ou de enfrentamento. São elas: 1) Blenda Quaresma: do Movimento
Democrático Brasileito (MDB), partido do espectro político centrista. Tem 32 anos,
nasceu em Belém, é profissional liberal (bacharel em Direito e empresária) e ocupou,
pela primeira vez, um cargo público, em 2017, ao assumir uma das cadeiras da
Câmara Municipal. Possui atuação política voltada, principalmente, para o esporte e a
saúde. Realiza, com certa frequência, ações sociais, em bairros periféricos da cidade,
e possui grande vínculo com a figura do pai, o deputado estadual Dr. Wanderlan
Quaresma (MDB); 2) Marinor Brito é líder do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL),
legenda de extrema-esquerda. Professora, assumiu um cargo público, pela primeira
vez, em 1996, quando foi vereadora. Ela tem 62 anos, nasceu em Alenquer, município
no Baixo Amazonas, no Pará. É atuante como parlamentar, principalmente, em
questões culturais, direitos humanos, melhorias na estrutura urbana da cidade e
questões de gênero; 3) Simone Kahwage é do Partido Republicano Brasileiro (PRB),
legenda de centro-esquerda. Ocupou, pela primeira vez, um cargo público, em 2017,
ao assumir uma das cadeiras da Câmara Municipal. Tem 41 anos, nasceu em Belém,
casada, profissional liberal (administradora) e segue a linha conservadora. Na
atuação anterior à eleição, desenvolvia trabalhos na área social da igreja evangélica,
da qual faz parte – os quais permanecem também, durante o mandato parlamentar; 4)
Glória Carratte é líder do Partido Republicano Progressista (PRP) na Câmara
Municipal de Manaus. Mantém posicionamento partidário de apoio à gestão municipal
de Arthur Neto (PSDB). O primeiro cargo público foi ocupado em 2004, como
vereadora. Está no quinto mandato. Tem 57 anos, é natural de Rondônia, e casada
com o ex-deputado estadual Miguel Carratte; 5) Joana Darc Protetora, é do Partido
Republicano (PR), legenda de centro-direita. Assumiu, pela primeira vez, um cargo
público, em 2016, como vereadora da CMM. Tem 29 anos, nasceu em Manaus, é
casada, ativista dos direitos dos animais, advogada e servidora pública concursada até
284
sua eleição, em 2017. Foi a vereadora mais jovem de toda a história da CMM. A
atuação em defesa da causa animal tem sido sua principal bandeira e slogan político
antes mesmo de tornar-se vereadora; 6) ―Professora Jacqueline‖, é do Partido
Humanista da Solidariedade (PHS), legenda de centro-direita. Seu primeiro mandato
político foi para o cargo de Vereadora de Manaus, durante o período 2013-2016, pelo
Partido Humanista da Solidariedade (PHS). Tem 55 anos, é casada, mãe e bacharel
em Direito e em Pedagogia. Antes de se tornar vereadora, atuava como professora,
fato que a motivou a defender, principalmente, a pauta da Educação pública, em
Manaus; 7) Professora Therezinha é do Democratas, partido de centro-direita com
filosofia conservadora-liberal. Tem 66 anos, é natural de Manaus, viúva e formada em
Letras. Foi eleita, pela primeira vez, como vereadora, em 2012. Professora por
formação, atuou na área de Educação por mais de 30 anos. Defende pautas da
educação e deficientes.
285
Regional Eleitoral (TRE-PA) apontam ainda uma grande discrepância entre homens e
mulheres eleitos: do total de 12.614 vereadores concorrendo, 1.494 se elegeram;
enquanto que, das 6.003 candidatas, apenas 240 se tornaram vereadoras. Na Câmara
Municipal de Belém, no mandato 2017/2020, eram três as representantes mulheres:
Marinor Brito (PSOL), Simone Kahwage (PRB) e Blenda Quaresma (MDB). As
referidas parlamentares são as únicas no total de 35 vereadores. Já na Câmara
Municipal de Manaus, são quatro mulheres do total de 41 cadeiras na Casa: Glória
Carratte (PRP); Joana D’arc (PR); Professora Jacqueline (PHS) e Professora
Therezinha (Democratas).
Alguns autores compreendem essa dificuldade das mulheres de entrar no
campo da política como um contexto de ―exclusão democrática‖ (MATOS, 2018) que
ocorre ―repetidamente‖ (PINTO; SILVEIRA, 2018, p. 180). Para Biroli (2018), reflete
um cenário na esfera pública de ―desvantagem‖ que não, necessariamente, exclui as
mulheres, mas que cria uma rede de privilégios para os homens no campo político.
Sob qualquer uma dessas perspectivas, há um elemento comum: a presença de
mulheres formalmente eleitas é imprescindível para a democracia representativa
devido à estreita relação entre a ampliação do sentido de democracia e a participação
de mulheres (BIROLI, 2018), ainda mais quando se tratam de representantes que
atuam com tanta proximidade do povo, como é o caso dos vereadores. Contudo, as
barreiras de caráter extralegal, e não perceptíveis formalmente, dificultam a carreira
política feminina (PINTO; SILVEIRA, 2018; MATOS, 2018; PANKE; IASULAITIS, 2016;
PANKE, 2016; MIGUEL; BIROLI, 2014; BIROLI, 2013; OKIN, 2008). A produção de
gênero enquadra as mulheres em um lugar não-pertencente às carreiras políticas.
Para as teóricas feministas, a divisão sexual do trabalho é a organizadora das
relações sociais, de maneira a associar os estereótipos femininos ao espaço privado,
menos valorizado sob a ótica capitalista neoliberal: a família, a vida doméstica, o
cuidado; e com características consideradas, também, socialmente ―inferiores‖, como a
docilidade, a fragilidade, a submissão, a emotividade. O espaço público – onde está
a política institucional -, em contrapartida, configura-se em um locus de protagonismo
masculino favorável à lógica patriarcal, relacionando os estereótipos desse espaço aos
homens: trabalho, prestígio, produção; além de assumirem enquanto gênero
características de prestígio, como liderança, virilidade, racionalidade, força, autoridade.
Os grupos com maior vulnerabilidade social são aqueles mais afetados pelos
estereótipos, na medida em que têm as oportunidades restringidas. Paralelamente, as
imagens tipificadas desses grupos permitem que os constrangimentos e as violências
contra eles sejam socialmente toleráveis (BIROLI, 2011). É o que ocorre com as
mulheres, por exemplo, nas instituições políticas.
286
Ora, quem vem à mente quando se imagina a figura de uma autoridade? Ou a
de um agente político? A tendência é recorrermos a estereótipos masculinos para
tanto. Isto porque as imagens padronizadas de representações simbólicas (de
pessoas ou ideias) fazem parte da dinâmica em que as identidades sociais e valores
se definem. Biroli (2011) indica as vivências das relações sociais como recursos
(matéria-prima) para a ocorrência dos estereótipos. E não fatores posteriores a elas.
Dessa forma, se, tradicionalmente, as figuras masculinas são apontadas como as
legitimadoras do espaço político, são essas que, comumente, virão à mente ao pensar
em estereótipos de agentes políticos. Já às mulheres, no âmbito da política formal, em
contrapartida, costumam ser associadas como ―Primeira-dama‖, no estilo ―bela,
9
recatada e do lar‖ .
Contudo, vale lembrar que são tipologias bem-sucedidas, pois se alinham ao ideal
―feminino‖ do padrão heteronormativo, limitando-se a papéis de submissão, docilidade
9 Refere-se à famosa matéria da revista Veja sobre Marcela Temer, apresentada como ―bela, recatada e
do lar‖. Muito embora não faça menção expressa à Dilma, a revista se utiliza de estereótipos de gênero
para descrever Marcela como o modelo "ideal" de mulher. Isto é, bonita, passiva, maternal e na posição
política de Primeira-dama. Uma contraposição à Dilma, que não se encaixaria em tais naturalizados
atributos sobre o ―ser mulher‖. Disponível em: http://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-
e-do-lar/. Acesso em: 6 jul. 2017
10
Nela, a então candidata do PT conseguiu ―perfeitamente articular os preconceitos do eleitorado‖ ao se apresentar, publicamente, como
"gerentona eficiente e entendida de energia" e, paralelamente, utilizou expressões e simbologias que remetiam à "mãe do PAC, mãe dos pobres,
avó e coração valente" (PANKE; IASULAITIS, 2016, p. 412). Os estereótipos como fatores de seleção e de organização de sentidos compuseram
as narrativas eleitorais organizadoras de temas e personagem
287
e beleza. Além disso, Panke (2016) traçou as três principais tipologias das campanhas
11
eleitorais de mulheres, na América Latina: a Guerreira, a Mãe e a Profissional . De
acordo com a autora, nenhuma pessoa pertence unicamente a apenas uma das
tipologias. As imagens são propostas de acordo com a personalidade, o contexto e a
estratégia. Há ainda um ponto em comum: ―(...) os papéis da mulher na sociedade são
muito parecidos em todos os países analisados” (2016, p. 115) sejam elas as próprias
candidatas, as personagens ou as figurantes dos spots. Essas tipologias servirão de
guia no nosso percurso metodológico, a ser discutido mais à frente, quando será
detalhada a definição de cada categoria de análise.
Assim, os estereótipos, ainda que considerados dispositivos com teor
ideológico e de estratégia eleitoral, não funcionam apenas como legitimadores da
ordem social de dominação masculina. É possível identificar, em um mesmo contexto,
nuances na mobilização de estereótipos, dada a dinâmica e a complexidade da sua
produção: ora a favor de pessoas e ideias hegemônicas, ora como elementos de
"subversão das hierarquias" (BIROLI, 2011, p. 81). Por esse ângulo, reforça-se que os
estereótipos são mecanismos das relações de poder com caráter flutuante, e se
moldam a determinada perspectiva, contexto, afetação, presentes no episódio de troca
entre indivíduos e grupos.
288
Mansbridge (2009) nos mostra que o processo político em que essas decisões
são tomadas também pode ser realizado por cidadãos comuns e em vários espaços
de deliberação, tanto formais quanto informais: assembleia representativa; assembleia
pública; esfera pública; contextos mais informais de conversação cotidiana. Para a
autora, a política também opera fora dos cargos decisórios e fora da representação
formal, sendo discutida publicamente nas conversas do dia a dia. A ―conversação
cotidiana‖ é fundamental no sistema deliberativo, não havendo diferença de grau entre
ela e o processo de tomada de decisão numa assembleia, por exemplo. A única
distinção é o tipo de deliberação. Mansbridge define aquilo que é político como ―o que
o público deve discutir‖ (2009, p. 212) e, portanto, reforça a união das conversações
cotidianas e do ativismo cotidiano como primordial para o melhor funcionamento do
sistema deliberativo e para maior participação política. As reflexões de Mansbrige e
Almeida abrem caminho para compreendermos a representação política de forma
ampliada, sob o viés comunicacional, no qual se constrói um ―relacionamento‖
(ALMEIDA, 2018) configurado também, discursivamente, e em ambientes não-
convencionais. A representação política se fundamenta no agir, ou seja, o que o
representante faz, durante determinado período de tempo. É o que Garcêz entende
como uma atividade comunicacional e discursiva, focada nos percursos constituintes
da dinâmica representativa, e não nos resultados.
As premissas são fundamentais para compreendermos a representação como
um processo político discursivo, pois é por meio da comunicação que se configura o
exercício de representar, as interações simbólicas, as trocas de opiniões e razões, os
julgamentos e a fiscalização por parte dos representados. A abordagem da
configuração discursiva das vereadoras de Belém e de Manaus é relevante em um
espaço criativo e não convencional, como o Facebook, e pelo qual se observa, após a
análise dos vídeos, a possibilidade de estabelecer outros discursos que não apenas o
hegemônico, indicando o dinamismo das relações de poder e dos sujeitos cujas
opressões, injustiças e desrespeitos sofridos, dentro do âmbito da política formal
puderam, em certa medida, ser ressignificados. Compreende-se o Facebook como um
ambiente onde as vereadoras gozam de maior autonomia na produção de conteúdos,
pois voz e falas possuem maior espaço, e há ainda maior liberdade na organização de
narrativas. Diferentemente do que ocorre quando submetidas às rotinas produtivas do
jornalismo (no âmbito da mídia tradicional) e seus embaraços, ou até mesmo, nos
canais institucionais. Nos ambiente formais, o cidadão precisa ser convocado a falar, e
as regras da enunciação dependem de processos de produção mediados por
terceiros.
289
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Dentre a variedade de opções nas mídias digitais (são mais de 200 sistemas
12
de redes disponíveis na internet), o Facebook foi escolhido como ambiente
comunicacional, palco do nosso objeto de pesquisa. Isto porque é uma plataforma com
intenso fluxo de informação e com maior tráfego de acesso no mundo (CONTREIRAS,
2012). Já a escolha dos vídeos do Facebook como objeto foi impulsionada tanto pelo
caráter de autonomia das vereadoras de Belém e de Manaus na produção e
veiculação do conteúdo, quanto pelo fato da plataforma se mostrar bastante relevante,
na junção de interatividade do ambiente virtual com a força da imagem (vídeos), tão
importantes para a comunicação política. É possível, ainda, haver uma série de
formatos de mídia para atingir o público-alvo no Facebook por meio de: webinars;
infográficos; montagens; quizzes; transmissões ao vivo. É um espaço de forte caráter
discursivo e interativo, com características que facilitam a interação nos ambientes de
mídias digitais, o que abre espaço para possíveis trocas argumentativas (MAIA et al.,
2016).
Observaram-se, ainda, as mídias digitais como possíveis alternativas à
divulgação de conteúdos e para a expressão discursiva de agentes políticas, em
virtude da reduzida visibilidade midiática das mulheres na grande mídia e, ainda, em
canais institucionais. A primeira versão da pesquisa Global Media Monitoring Project,
realizada em mais de 70 países, com análises de jornais, rádio e televisão, constatou
que apenas 15% dos sujeitos das notícias eram mulheres; em 2015, o número passou
para 24% (um aumento de 3% em 20 anos). Além disso, os estudos conduzidos
demonstram que, também na política, as mulheres alcançam menor visibilidade
midiática, e que a maioria dos assuntos
relacionados às mulheres era
13
predominantemente sobre saúde e temas sociais . Ademais, há baixa visibilidade
das mulheres na política nos canais institucionais oficiais, como o portal de notícias da
Câmara Municipal de Belém. A pesquisa realizada por Kahwage et al. (2019) analisou
o conteúdo de 45 matérias publicadas no canal oficial da CMB, tendo como ponto de
partida o contexto de sub-representação feminina institucional, constatada por dados
oficiais e pela teoria política feminista, além do cenário de baixa visibilidade midiática.
Identificou-se, então, que a representação política das parlamentares na Câmara
Municipal de Belém (Marinor Brito, Blenda Quaresma e Simone Kahwage) refletiu o
12
Criado, em 2004, por Mark Zuckerberg, o Facebook possui mais de um bilhão de usuários ativos
mensalmente. Conforme dados do SocialBakers, de outubro de 2012, o Brasil é o 2º maior país em
número de usuários do Facebook, e tem mais de 60 milhões de usuários ativos. É importante ressaltar
que a rede social agrega vários serviços, como Chat, Videoconferências, Galeria de Imagens, Anúncios,
Aplicativos, Games, Feeds, Páginas Empresariais, etc. (FRANCO; CALAÇA, 2014, p. 159), mostrando a
multiplicidade de ferramentas para o usuário interagir e compartilhar conteúdos online.
13
Disponível em: http://cdn.agilitycms.com/who-makes-the-
news/Imported/reports_2015/highlights/highlights_en.pdf. Acesso em: 02.04.2017.
290
contexto político de sub-representação feminina devido a alguns resultados
encontrados, como: a baixa referência às vereadoras nas matérias; o reduzido
conteúdo sobre questões femininas; as poucas vozes femininas (fontes) ouvidas nas
matérias em detrimento das masculinas, majoritárias; e a voz institucionalizada das
mulheres entrevistadas nas reportagens.
14
O objetivo geral deste artigo é compreender como as vereadoras de Belém
no método:
14
Vale ressaltar que este artigo compreende a um desmembramento da dissertação de mestrado
de Nathália Kahwage, defendida no 1º semestre de 2019, pelo PPGCom∕UFPA.
Os vídeos selecionados foram identificados após criarmos uma tabela com numeração para cada um deles, bem
como o link de acesso.
291
Com o material empírico preliminarmente explorado e ordenado, recorreu-se
aos conhecimentos da literatura levantada sobre os principais conceitos trabalhados:
representação política; gênero; estereótipos; mídias digitais. Um livro de códigos foi
desenvolvido com informações básicas e categorizadas para ser guia na análise de
conteúdo dos vídeos. Criamos também dois quadros metodológicos com definições
fundamentais sobre as teorias levantadas, e que serviram de apoio para o exame do
material empírico, pois condensaram as ideias norteadoras e as marcas textuais a
serem apreendidas nos vídeos. O livro e os quadros correspondem a duas temáticas:
Relações de poder; 2) Estereótipos. Finalmente, desenvolvemos um formulário para
a análise de conteúdo. A categorização e a sistematização do material de análise
foram realizadas com auxílio do app online Formulários Google. Criamos as categorias
na sua interface e preenchemos as lacunas com as informações apreendidas na
visualização e no exame dos vídeos. Em seguida, os dados obtidos nos formulários
foram exportados para o Excel, em formato de planilhas, facilitando assim, a
observação do panorama geral de dados, a análise e o cruzamento dos mesmos.
Buscamos, neste trabalho, realizar um mapeamento de recorrências e
regularidades nos vídeos do ambiente comunicacional online, englobando tanto os
pontos que mais chamaram a atenção, e foram expostos diretamente nas imagens e
na verbalização, quanto aqueles compreendidos simbolicamente ou por interpretação
contextual. Examinamos a fala pública das vereadoras, levando em consideração,
principalmente, marcas textuais que fizessem explícita, ou implicitamente, referência
16
aos estereótipos de Mãe, Guerreira e Profissional ; e também, da mesma forma,
que sinalizassem elementos indicativos das relações de poder: power to; power over e
power with. Para tanto, foram levadas em consideração algumas marcas textuais
como o uso de pontuação ou de recursos da oratória e da retórica das parlamentares;
referências a situações e habilidades específicas; posturas de questionamento, de
concordância, de valorização e/ou de análise dos contextos em que estão inseridas na
disputa de poder. Também observamos outros aspectos discursivos nos vídeos, por
exemplo, o cenário, a trilha sonora, a roteirização, os recursos de arte e de edição de
vídeo, as legendas, a presença ou não de personagens e/ou outros atores, a presença
16
As tipologias criadas por Panke (2016) são referentes a padrões femininos em campanhas eleitorais
para presidenciáveis. Contudo, utilizamos esse referencial teórico por entender que é uma valiosa
contribuição para a comunicação política e os estudos de estereótipos, constituindo-se em um dos poucos
trabalhos nessa linha. Em especial, a tipologia Mãe é problemática, e reconhecemos isso, pois ao acioná-
la, corre-se o risco de cair na armadilha que a própria estereotipia cria, de aprisionamento, na qual
características como solidariedade, gentileza, suporte, apoio e cuidado, ligam-se intimamente à figura
maternal, por exemplo. Compreendemos que esses não são aspectos ligados obrigatoriamente às mães
(mas que são frequentemente mobilizados pelo senso comum para fazer referências sobre o feminino),
ainda assim, optamos por fazer uso da tipologia, pois se trata de um esquema metodológico já construído
e organizado por Panke, e que nos auxiliou no percurso metodológico.
292
masculina, a aparência física, os atributos morais, o tempo de vídeo, o número de
visualizações, etc.
Ao todo, foram criadas 13 categorias: informações gerais; formato do vídeo;
função do vídeo; projetos de autoria; onde está a vereadora; atual gestão municipal;
gestão estadual; temática central; partido político; estereótipos (principal e
secundário); relações de poder (principal e secundária). Para os fins deste artigo,
descreveremos apenas três: 1) Informações gerais: dados sobre a autora do vídeo; a
data da postagem; a duração do vídeo; o tempo do vídeo; e o número de
visualizações; 2) Estereótipos da candidata: embasada nas tipologias identificadas
para mulheres na política na América Latina, pela autora Luciana Panke (2016),
incluindo a Guerreira; a Mãe; a Profissional ou nenhuma (esta acrescentada por nós).
O objetivo é identificar quais as características observáveis nos vídeos (discursos) que
direcionam o enquadramento de cada vereadora em um estereótipo, levando em
consideração aspectos centrais tipificadores e marcas textuais perceptíveis nas
imagens e na linguagem. Um segundo tópico, com mesma temática, foi elaborado,
mas apontando a tipologia com segundo maior peso; 3) Relações de poder: Qual a
principal? Com base nas formulações de Danila Cal (2016) e Amy Allen (1998, 2013)
sobre poder, objetiva-se identificar as seguintes definições para o termo: Power over
(dominação); Power to (resistência e empoderamento); Power with (solidariedade).
O primeiro quadro metodológico desenvolvido envolveu as marcas discursivas
para a identificação de relações de poder em produtos audiovisuais, incluindo o tipo de
relação de poder (power over, power to, power with); o aspecto central (dominação,
resistência e subversão, solidariedade); as ideias norteadoras (CAL, 2016, p. 153); as
marcas nos produtos audiovisuais; as marcas simbólicas (nos atributos físicos,
vestimenta, gesticular, tom de voz, oratória). Já o segundo dispõe das tipologias
femininas mais frequentes, em campanhas eleitorais (spots), de candidatas à
Presidência da República, na América Latina, e que foram formuladas por Panke
(2016). O aspecto central, as ideias norteadoras e a as marcas nos vídeos, dispostos
abaixo, foram propostas da teoria da autora, cujas formulações foram adaptadas,
nesta pesquisa, para mulheres já eleitas, em âmbito do legislativo municipal, do
contexto amazônico. Os aspectos gerais dos estereótipos são: 1) Guerreira (liderança
e luta); 2) Mãe (afeto e cuidado); 3) Profissional (especializada e incansável).
ANÁLISE DE RESULTADOS
Os dados gerais referentes à quantidade de vídeos analisados no Facebook
das sete vereadoras somadas, e ainda os vídeos explorados por cada parlamentar,
estão conforme o quadro disposto abaixo:
293
Tabela 2 - Vídeos analisados
BELÉM MANAUS
Blenda Marinor Simone Glória Joana Prof.ª Prof.ª
Quaresma Brito Kahwage Carratte D’arc (PR) Jacquelin Therezinh
(MDB) (PSOL) (PRB) (PRP) e (PHS) a (DEM)
Nº total 18 51 17 2 69 25 28
GERAL 86 124
(40,9%) (59,1%)
294
tipologia central de Mãe; seguida de Profissional, com 49 ocorrências (39,5%); e
Guerreira, com 16 (12,9%). Já 98 vídeos (46,6%) não se enquadraram nos itens
dispostos na categoria.
Referindo-se, ainda, apenas ao grupo belenense, duas das três vereadoras
possuem a tipologia Mãe como a principal entre os vídeos analisados: Blenda
Quaresma (MDB) e Simone Kahwage (PR). Marinor Brito (PSOL) teve resultado
diferente, o de Guerreira, que será comentado logo mais. As vereadoras de Belém
com o estereótipo materno possuem em comum o forte discurso social, a proximidade
com pessoas de comunidades, além da existência de um cenário, nos vídeos, agindo
como componente fundamental do conjunto de ―marcas‖ a guiar quem assiste, levando
ao entendimento de determinados aspectos ou estruturas cognitivas de expectativas
sobre o grupo Mãe. Ambas as parlamentares possuem, ainda, semelhanças em
elementos da ―feminilidade‖, como o uso frequente de maquiagem, de roupas com
estampas floridas e em tons de rosa. Todavia, a tipologia Mãe se manifesta com
algumas peculiaridades para cada uma: Blenda, apesar de ser mãe, não mostrou o
lado maternal em si como uma característica pessoal, isto é, surgindo com a filha, ou
abraçando e cuidando de crianças. O ―maternar‖ veio como uma característica
fundamental na constituição de uma narrativa sobre si mesma como ―boa moça‖, que
faz ações sociais e ―ouve‖ a comunidade, ou seja, a mãe que ―cativa‖. A principal
temática, abordada nos vídeos postados no perfil social do Facebook dela, foi o
Assistencialismo. Apresentou, ainda, grande simpatia, desenvoltura para lidar com o
público e se mostrou também expansiva nos gestos e demonstrações de afeto. Traços
que não são marcantes em Simone Kahwage, já que seus atributos envolvem mais a
discrição e o tom de voz suave e calmo, mas que ainda assim, buscam transmitir
liderança. A vereadora do PRB recorre à tipologia Mãe, para ―contar histórias‖, nos
vídeos analisados no Facebook, sobretudo, aquelas emotivas, tentando marcar
postura como aquela que ―lidera‖, e representa os interesses das mulheres. Uma
perspectiva alinhada com a principal temática debatida nos vídeos: Mulheres.
Algumas produções são roteirizadas e pós-finalizadas, agregando mais elementos à
narrativa maternal como a trilha sonora, as imagens de insert com mães e crianças; os
depoimentos, etc.
295
Therezinha. As parlamentares de Manaus apresentam similaridades quanto ao
discurso social, a ―marca‖ mais básica relacionada ao estereótipo materno, mas
também características como o cuidado, a defesa de determinados grupos e a postura
atenciosa. Possuem ainda em comum o enaltecimento da própria experiência como
qualidade presente na tipologia e, consequentemente, no agir político. No entanto,
mobilizar a imagem de Mãe se configurou com nuances próprias a cada candidata.
Joana D’arc (PR) focou na experiência como ativista para compor a figura materna que
―cuida‖, principalmente dos animais e do meio ambiente, e, portanto, devido à
militância, carrega no conteúdo divulgado nos vídeos analisados aspectos
progressistas da representação política; Professora Jacqueline (PHS) ressalta a
experiência como educadora e pedagoga para simbolizar a mãe que ―educa‖,
utilizando-se desse ―combo‖ Mãe x Educação, principalmente, em um contexto
eleitoral; por fim, Professora Therezinha (Democratas) recorre ao estereótipo materno
para reforçar o quanto é experiente e apta para ―gerenciar‖, principalmente, tratando-se
de educação. É válido ressaltar que, de forma complementar ao discurso social, as
vereadoras da capital amazonense também recorreram a elementos sonoros e visuais,
que estimulam a subjetividade por se associarem ao universo ―feminino‖.
Na comparação dos vídeos analisados das vereadoras de Belém e os das
vereadoras de Manaus, que utilizam a tipologia Mãe, percebeu-se que os elementos
sonoros e visuais, relacionados à ―feminilidade‖, estão mais presentes nas postagens
das vereadoras de Manaus (que realizaram produções audiovisuais mais sofisticadas).
Os casos mais marcantes, ou seja, aqueles verbalizados em palavras ou na
vestimenta, por exemplo, são pontuais. É o contrário do observado nas parlamentares
de Belém, que apresentaram traços mais marcantes visualmente, tanto no uso de
palavras como ―empoderamento‖, ―minha amiga‖, ―fora da mulher‖, ―lugar de mulher
também é na política‖ etc., quanto na simbologia da roupa (florida, justa, cor de rosa) e
na aparência (batom vermelho, maquiagem pesada, cabelos escovados). As
parlamentares de Belém fizeram uso de elementos sonoros e visuais nos vídeos,
porém, não de forma tão enfática quanto a verbalizada. Além disso, as vereadoras de
Belém também foram as que, sob a tipologia Mãe, mostraram mais proximidade
corporal com a população, na participação de eventos com as comunidades e na
―ajuda‖ a esses grupos. Já as vereadoras de Manaus investiram mais na atuação
institucional, dentro da Câmara, defendendo maior diversidade de temas e
apresentando propostas e soluções. Outro aspecto é que as duas únicas ocorrências
do tema Religião foram associadas à figura de Mãe, e em vídeos das parlamentares
de Belém, que surgiram em eventos evangélicos: Blenda Quaresma e Simone
Kahwage.
296
São trazidos ainda os dados gerais sobre as relações de poder presentes nos
210 vídeos das vereadoras de Belém e de Manaus, postados nos perfis pessoais e/ou
fanpages Facebook, que revelaram 122 vídeos (58%) com a relação de poder central
sendo mobilizado power to; 47 de power over (22,3%); e 42 power with (20%). Já a
segunda relação de poder de maior recorrência é também a power to, com 36
ocorrências (17,1%); seguida de power over, com 5 (2,3%); e power with, com 1
(0,4%). Em termos comparativos entre as Câmaras Municipais, os resultados de 86
vídeos, apenas de Belém, indicaram que a principal relação de poder nesse grupo é:
power to, com 46 ocorrências (53,4%); seguida de power over, com 23 (26,7%); e
power with, com 17 (19,7%). Já para os 124 vídeos, apenas de Manaus, as
ocorrências são: power to, com 73; power with, 25 e power over, 24. Ao examinar os
dados gerais nos vídeos do Facebook para as sete vereadoras, constatou-se a relação
de poder power to como a principal associada à tipologia de Mãe, no tratamento da
temática central Cultura e Meio Ambiente, contexto bastante impulsionado por
Marinor Brito (PSOL) e Joana D’arc (PR), que se destacaram nas temáticas, e nessa
forma de poder por terem sido as que mais fizeram referência, e em maior quantidade
de vídeos. Na combinação de empoderamento com power with, observa-se mudança
no estereótipo, que passa a ser o de Profissional para discorrer sobre Meio
Ambiente. Já a segunda relação de poder de maior ocorrência, depois de power to,
foi a de power over, também movida pela tipologia Mãe só que, dessa vez, para
abordar o assunto Assistencialismo.
As relações apresentadas demonstram o caráter oscilante dos estereótipos
(imagens negativas ou positivas) dentro das relações de poder. Elas também são
fluidas devido ao constante reajustamento de posições dos sujeitos a depender do
recorte. Isto é, ainda que haja uma forma de poder que chame mais a atenção, em
determinada situação, ela não finaliza em si mesma. A depender dos dispositivos
(estereótipos, papeis sociais, etc.), dos códigos (linguísticos, culturais, institucionais e
práticos), da posição social dos indivíduos e dos diferentes níveis de autonomia, o
―episódio interacional‖ (BRAGA, 2017) é singular dentro da própria pluralidade. Como
já mencionado, a tipologia Mãe foi mobilizada em episódios diferentes e, apesar de ser
o mesmo estereótipo, provocou impressões distintas quando na abordagem de
temáticas divergentes. Foi opressora ao tratar de Assistencialismo e, em
contrapartida, revelou-se tipologia de empoderamento quando se alterou o foco para
Cultura e Meio Ambiente. Ademais, o olhar sob outra perspectiva demonstrou, ainda,
que a imagem materna também pôde ser deixada de lado, ainda que no mesmo
contexto de empoderamento, para seguir no debate do mesmo tema (Meio
Ambiente). Nesse caso, o estereótipo recorrido foi o da Profissional, que acabou por
297
operar junto à outra forma de poder: power with. Os vídeos em questão, boa parte,
são de autoria de Joana D’arc que, além de vereadora, é ativista, e liga-se ao aspecto
central da ―luta‖ de power to, e da ―ação coletiva‖ do power with.
Relembra-se a premissa de que toda a relação de dominação gera resistência.
Portanto, mais da metade das relações de power over presentes nos vídeos do grupo
de Belém, foi atravessada por power to, mudando o estereótipo principal para Mãe, e
enviesando o tema central, dessa vez, para Eleições. A demonstração, nesse cenário,
de que a dominação surgiu como sujeição das vereadoras Blenda Quaresma (MDB)
e Simone Kahwage (PR), no cenário político formal. Os vídeos, dentro desse
cruzamento de dados, eram referentes ao período de campanha eleitoral de ambas ao
Parlamento Municipal. Em todos, há concordância com acepções naturalizadas da
marginalização da mulher na esfera pública (CAL, 2016), pois são silenciadas, nas
próprias campanhas, por vozes masculinas. Porém, essa é uma perspectiva, já que o
fato de concorrerem a uma vaga de vereadora e perseguirem projetos de vida que
incluem a carreira política são formas de empoderamento. Em relação aos vídeos
analisados do Facebook das vereadoras de Manaus, a principal relação de poder foi
também power to, porém, as parlamentares utilizaram estereótipos diferentes das de
Belém. Mãe e Profissional tiveram o mesmo número de ocorrências para essa forma
de poder, e vieram acompanhadas de duas temáticas com o mesmo número de
registros: Meio Ambiente e Educação. Isso significa que elas mobilizaram
características maternas como a atenção, a escuta, a empatia e a sensibilidade, bem
como marcas profissionais, associadas à disposição para trabalhar, para aprender, e
que são incansáveis. Detalhando ainda mais o contexto, identificou-se, conforme com
as vereadoras de Belém, power to associado à power with, mas para isso, assumiu-
se apenas a tipologia Profissional, e manteve-se somente a temática Meio Ambiente.
É um reflexo, boa parte, em função dos vídeos de Joana D’arc (PR) que é militante da
causa animal e, em suas postagens, está sempre trabalhando, ativa, prestando contas,
fiscalizando serviços, visitando espaços diferentes, chamando os seguidores para
ajudarem. São aspectos relativos ao perfil profissional, ao empoderamento e à
solidariedade.
Acrescenta-se ainda que, em comparação com as vereadoras da capital
paraense, as da capital amazonense mostraram mais mobilidade na relação de
dominação, no que diz respeito ao reposicionamento de lugar como sujeito
agente/paciente, ou seja, mostraram-se tanto dominadas quanto dominantes,
discursivamente, nos vídeos do Facebook, de forma quantitativa; enquanto que o
grupo de Belém mostrou-se nas relações de poder power over x power over, de
forma mais frequente, incluso na posição de dominadas. Além disso, o estereótipo
298
Mãe foi o mais utilizado, seguindo o mesmo padrão identificado nas pesquisas de
Panke (2016), com os spots para campanhas eleitorais de candidatas à presidência,
na América Latina. Além disso, de maneira geral, apresentou-se como o estereótipo
mais flutuante nas relações de poder, indicando que Mãe, o ―principal papel da mulher
latino-americana‖ (PANKE, 2016, p.135), o mais sacralizado e um dos mais limitadores
identidade de gênero da mulher, pôde ser ressignificado na ―teia de relações nas
quais se inscrevem esses sujeitos‖ (CAL, 2016, p. 86). Isto, claro, no ambiente
comunicacional do Facebook.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo teve como objetivo compreender como as vereadoras de Belém e de
Manaus utilizam os estereótipos para ressignificar o exercício da atividade política por
meio dos vídeos postados em seus perfis pessoais e fanpages no Facebook. Os
estudos sobre representação política discursiva, teoria política feminista, relações de
poder, estereótipos, comunicação e mídias digitais nos auxiliaram no debate, e em
tensionamentos importantes para a compreensão da problemática. Destaque para o
estereótipo central, recorrido pelas parlamentares nas postagens do Facebook: o de
Mãe. Seis das sete vereadoras em questão tiveram os vídeos classificados na
tipologia e, em termos comparativos entre os grupos de Belém e de Manaus, o
estereótipo maternal também se sobrepôs sobre os demais de Guerreira e
Profissional. É um padrão já indicado por Panke (2016): Mãe é a ―imagem ideal‖ mais
comum entre as mulheres da América Latina. Coincidentemente, todas as vereadoras
a apresentarem o estereótipo de Mãe como tipologia principal dos vídeos analisados
apresentaram temas relacionados à área social.
Percebeu-se ainda a mobilidade existente na utilização dos estereótipos e seus
sentidos, ainda que se refiram à mesma tipologia. As parlamentares de Belém e de
Manaus acionaram, com frequência, o estereótipo Mãe, porém com nuances distintas.
As vereadoras da capital paraense mostraram, nos vídeos, mais proximidade corporal
com a população, na participação de eventos com as comunidades e na ―ajuda‖ a
esses grupos. Já as vereadoras de Manaus investiram mais na atuação institucional,
dentro da Câmara, defendendo maior diversidade de temas e apresentando propostas
e soluções. Mais instigante, ainda, foi observar a fluidez e o caráter oscilante dos
estereótipos (imagens negativas ou positivas), dentro das relações de poder, as
quais também são móveis, devido ao constante reajustamento de posições dos
sujeitos, nas próprias relações, e dos seus diferentes níveis de autonomia. São
aspectos que demonstram o ―episódio interacional‖ (BRAGA, 2017), entre grupos e
indivíduos, como sendo singular, ainda que, agindo dentro de contexto plural.
299
Os dados gerais da análise sobre as relações de poder presentes nos 210
vídeos das vereadoras de Belém e de Manaus, postados nos perfis pessoais e/ou
fanpages Facebook, revelaram que a relação de poder central, mobilizada por elas, foi
power to – é esse conceito, associado à empoderamento e resistência, que
destacamos, pois também foi central quando analisadas, isoladamente, as vereadoras
de Belém e de Manaus. O cruzamento com o estereótipo de Mãe foi o mais revelador.
Ainda que seja umas das imagens mais ―aprisionadoras‖ da mulher no ideal de
feminilidade, e que, em todos os casos analisados, teve em comum as emoções e o
afeito como centrais, é uma tipologia capaz de ser ressignificada, como ocorreu entre
as vereadoras dos dois municípios. Ao ser mobilizada, em episódios diferentes, Mãe
ora foi opressora, ao tratar de Assistencialismo; ora foi utilizada como ferramenta de
empoderamento; ora como mecanismo de solidariedade, quando alterava-se o foco
para temáticas como Cultura e Meio Ambiente, por exemplo.
Estudar as relações de poder e os estereótipos, sob diferentes nuances,
contribuiu para percebemos que as vereadoras, ainda que estejam em cargos
decisórios, e sejam consideradas mulheres que ―chegaram ao poder‖, ainda assim,
são passíveis de dominação, em um espaço considerado a última instância do poder
masculino (SARMENTO, 2017): a política formal. Porém, não se limitam a apenas um
contexto. Complexificar as relações de poder e o uso dos estereótipos, para além do
usual, move as mulheres do lugar de vítimas ou passivas e as identifica também como
sujeitos políticos capazes de praticar outras formas de poder: resistência,
empoderamento, solidariedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALLEN, Amy. Rethinking Power. Hypatia, v. 13, n. 1, p. 21-40, 1998.
______. Feminist Perspectives on Power. In: ZALTA, Edward N. (Ed.). The Stanford
Encyclopedia of Philosophy. Stanford: CSLI, 2013. on-line.
300
______. Autonomia, opressão e identidades: a ressignificação da experiência na
teoria política feminista. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, p. 81-105,
2013.
______. Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a
crítica democrática. Vinhedo: Horizonte, 2013.
______. Notícias em disputa: mídia, democracia e formação de preferências no
Brasil. São Paulo : Contexto, 2017.
______. Gênero e Desigualdades: limites da democracia no Brasil. 1ª. ed. São Paulo:
Boitempo, 2018.
BRAGA, José Luiz; CALAZANS, Regina; RABELO, Leon et al. Matrizes internacionais. A
comunicação constrói a sociedade. Campina Grande: EDUEPB, 2017.
301
CIDADANIA ALCANÇADA PELA TORNEIRA OU PELO
POÇO? RELATOS DE MULHERES MARAJOARAS E SUAS
DIFICULDADES PARA ACESSAR A ÁGUA EM BREVES-PA
https://doi.org/10.29327/527231.5-20
Este ensaio objetiva refletir sobre as dificuldades das mulheres marajoaras residentes no núcleo
urbano de Breves-PA de acessar a água compreendendo tal problema como parte do não
alcance de uma cidadania plena. É resultante do estudo realizado na tese de doutorado em
Antropologia Social de uma das autoras e do projeto de pesquisa PIBIC – Prodoutor. As
metodologias aplicadas foram a Etnografia e a História Oral, respectivamente, realizadas junto
às idosas participantes dos Centro de Referência e Assistência Social municipais nos anos de
2014 a 2018 e em 2019. O debate interpreta que o acesso à água é um direito humano e que as
mulheres de periferia são as que mais sofrem com a água de péssima qualidade em suas
residências. Foi possível identificar, nas pesquisas, as estratégias diárias para adquirir água e
realizar suas tarefas, constituindo-se numa problemática constante em suas vidas.
ABSTRACT:
This essay aims to reflect on the difficulties of Marajoaras women living in the urban core of
Breves-PA to access water understanding this problem as part of the failure to achieve full
citizenship. It is the result of a study carried out in the doctoral thesis in Social Anthropology
of one of the authors and the research project PIBIC - Prod Doctor. The applied
methodologies were Ethnography and Oral History, respectively, carried out with the elderly
participants of the municipal Reference and Social Assistance Center in the years 2014 to
2018 and 2019. The debate interprets that access to water is a human right and that
Outsourced women suffer the most from poor quality water in their homes. It was possible to
identify, in the research, the daily strategies to acquire water and perform their tasks,
constituting a constant problem in their lives.
Introdução:
302
O acesso à água no Marajó tem sido pauta de debate no meio acadêmico, porém
com poucas produções. Durante a tese e a execução do PIBIC/PRODOUTOR, iniciado em
agosto de 2019, nossas hipóteses foram confirmadas. Identificamos que o público mais
afetado na dificuldade em acessar a água de qualidade tem sido as mulheres. Neste artigo,
mostraremos as experiências de quatro idosas residentes no núcleo urbano de Breves-PA,
mesorregião do Marajó e suas pelejas na busca pela a água na região.
Os relatos colhidos trouxeram uma realidade vivenciada pelas depoentes que, por
vezes, estavam cheias de emoções, lembranças remotas de um cotidiano tão próximo de
muitos brevenses. Reviver suas estratégias para adquirir a água também permitiu conhecer
um pouco do passado na qual a cidade foi estruturada.
Para a escrita do artigo, tivemos como referências autores que nos possibilitaram
compreender a correlação entre a água e a mulher, bem como analisá-la observando que a
sua negação pode afetar diretamente pessoas de classe subalterna e de um determinado
gênero, como no caso as mulheres no usufruto da cidadania. São eles: Gallo e Navarro:
2018; Filho e Oliveira (S/D).
O texto está dividido em três itens, além desta introdução. O primeiro traz um diálogo
entre a questão de gênero e o debate a respeito da água para o alcance da cidadania. O
segundo apresenta um contexto de Breves e o Marajó em sua parte ocidental, o terceiro exibe
relatos e reflexões quanto às dificuldades das mulheres brevenses em acessar a água.
303
considerações: ―O autor discute que a associação entre o corpo e a água é tema de
formulações poéticas dentro da história da arte, quer seja como simbologia da água como
elemento fundamental para a vida‖. A título de exemplo aludem as figuras mitológicas
femininas ligadas à água como: a Iemanjá, as sereias e as ondinas.
Em seguida referem, os significados atribuídos na relação entre a mulher e a água não
se restringem aos papéis sociais: ―Por conseguinte, a água está presente na vida da mulher não
apenas (...) [nos]: afazeres domésticos, beleza ou parto (...) [elas] se completam, na
literatura, cultura, na religião e até na arte.‖ Continuam mostrando os avanços no debate de
gênero, entretanto existem dados da ONU em 2016 os quais apontam o tempo gasto pelas
meninas e mulheres na coleta deste recurso.
Assim, ―em 2016, durante a Semana Mundial da Água, em Estocolmo, na Suécia, o
Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) declarou que mulheres e meninas do
mundo gastaram 200 milhões de horas por dia coletando água‖ (Gallo e Navarro, 2018, p.
173), o que em determinados lugares pode ser perigoso devido ao percurso longo
caminhado quase diariamente.
A partir destes dados, reforça-se o debate sobre a íntima relação entre as necessidades
da família e a naturalização dada pela sociedade de que isto deve ser tarefa feminina.
Observando a realidade brasileira e seus déficits quanto ao acesso ao saneamento, os impactos
negativos podem ser mais sentidos pelo sexo feminino, incluindo as meninas, as adultas e as
idosas. Fato que será debatido com mais profundidade nos próximos itens.
Uma cidade cujos habitantes são pouco mais de 100.000, estimativa do IBGE para
2019. O acesso à cidade dá-se por meio hidroviário. A distância calculada em média é de 12
horas de navio de Belém-PA e 12 horas de Macapá-AP. Situa-se às margens do Rio
Parauaú, porém apesar da facilidade em acessar a água, nem todas as localidades dispõem
deste recurso de forma potável.
No quesito território e ambiente do IBGE, o município apresenta dados com marcas
de desamparo social: ―6.1% de domicílios com esgotamento sanitário adequado, 13.6% de
domicílios urbanos em vias públicas com arborização e 2.9% de domicílios urbanos em vias
públicas com urbanização adequada (presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-
fio).‖ (IBGE, 2019)
Breves é um município do arquipélago do Marajó (parte ocidental) cercado por água,
porém em boa parte, contraditoriamente, não é apropriada para o consumo. Existem áreas
no bairro centro e na periferia que não há possibilidade de se ter poço artesiano devido a
304
ferrugem presente na água. A companhia de abastecimento, por sua vez, não tem cumprido
com a obrigação de realizar a distribuição de água nos bairros mais afastados do centro.
Smith-Santos (2019, p. 26):
Dizemos certa regularidade por ser relativa a oferta de água, uma vez que no mês de setembro de 2018 o núcleo urbano
passou por um racionamento de água por aproximadamente cinco dias, pois ocorreu problemas com a bomba de distribuição
afetando a grande maioria dos bairros brevenses.
305
2
e da Cidade Nova que são obrigadas a buscar água em outras residências ou em escolas
com poço artesiano.
(....) A gente pegava água nos baldes, era eu, meus filhos, meu primeiro
marido pegava água lá. Até inclusive que tem uma mulher que se chama
Maria para ela (...). A gente ia, era ela que morava lá numa casinha velinha
sabe igual a minha, aí a gente pegava água lá, com muitos meses depois aí
conseguiram passar a água (...) (D. Mara, 2019)‖
Antes de ter acesso por meio de sua vizinha aos serviços da Companhia de
Saneamento do Pará - COSANPA há aproximadamente uns dezessete anos, D. Mara e sua
família dependiam do que ela denomina por ―ajuda‖ de pessoas conhecidas para conseguir
água, haja vista estar em situação de extrema pobreza e não ter condições de pagar para
perfurar um poço. Continua relatando as suas pelejas e a de seus vizinhos: ― nós saíamos
três horas da madrugada, todo mundo tinha que ir, chegava lá a gente fazia três filas com os
baldes, tinha casa que davam dois bardes, de lá tinha que beber, lavar tua roupa, o dia todo
(D. Mara, 2019).‖
Outro fator a ser destacado é a quantidade que lhes era fornecida ser limitada a dois
baldes por pessoa, levando em consideração que a água é utilizada para várias funções
domésticas e consumíveis, logo é impossível suprir todas as necessidades humanas com
esta pequena quantia em litros. É importante evidenciar que além da disponibilidade de
água ser pequena e da dificuldade enfrentada em adquiri-la, há a possibilidade de ter riscos
relacionados à saúde quando não há uma política de planejamento da gestão municipal de
perfuração de poços ou mesmo de distribuição adequada de água aos munícipes.
A matéria on-line intitulada ―Estudo evidencia os impactos da falta de saneamento
básico na vida das mulheres brasileiras” publicada no site do Instituto Trata Brasil, explica-
se:
307
(...) a falta de acesso à água tratada e ao esgotamento sanitário é uma das
principais causas de incidência de doenças diarreicas, que levam as
mulheres a se afastarem 3,5 dias por ano, em média, de suas atividades
rotineiras. O afastamento por esses problemas de saúde afeta
principalmente o tempo destinado a descanso, lazer e atividades pessoais.
Meninas de até 14 anos são as maiores vítimas desse quadro, com índice
de afastamento por diarreia 76% maior que a média em outras idades
(132,5 casos de afastamento por mil mulheres contra 76). Já no caso da
mortalidade, o déficit de saneamento é mais perigoso para a mulher idosa,
que corresponderam a 73,7% das mortes entre as mulheres sem acesso ao
4
saneamento (TRATA BRASIL, S/D)
Sem água, uma família inteira pode sair prejudicada, entretanto, os impactos
visivelmente se apresentam nas mulheres, como mencionado anteriormente, em especial às
idosas, que possuem mais incidência a adoecer por conta da inexistência de saneamento
básico e o acesso precarizado a uma água que pode não ser potável, provocando patologias
que ocasionam a mortalidade senil.
Atualmente, D. Mara reside às margens do Igarapé do Bairro Cidade Nova II, no
município de Breves (PA), furo utilizado pelos moradores da localidade para retirar a água
que será armazenada para o consumo diário.
(...) A água entra suja no igarapé porque vem da margem do rio que é
pertinho. Todo mundo bebe daqui [sua família e vizinhos]. Muitos daqui
puxam pra terra a água daqui, tem cano aqui na beira dessa minha casa,
imensidade de cano que o pessoal puxa. Eles vêm, ligam a bomba aí nas
vizinhanças. E aí é a mesma coisa, aí que é a levantada tudo de água
[aponta para o igarapé] e aqueles que não podem botar bomba carregam na
cabeça quando enche [a maré], porque a gente só enche água aqui na
enchente, na vazante só se for pra lavar uma casa, botar num chiqueiro de
porco, porque ela vem descendo, essa água vem descendo, ela vem lá de
cima e esse igarapé que passa aqui ele faz fundo lá no cemitério. Aí então é
por isso que a gente só enche na enchente porque vem normal do rio aí a
gente enche tudo os baldes (..) (D. Mara, 2019).
4 Cf: http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/pesquisa-mulher/release.pdf
308
(...) A dificuldade que eu tenho, porque eu tenho pouca vasilha, eu ainda
não comprei uma caixa pra mim depositar né, aí eu só coloco nos balde,
mas eu limpo eles e o balde que eu deposito coo água pra beber, pra fazer
comida tá separado, quando tá sentando que é pra fazer a alimentação do
outro lado. (...) (D. Mara, 2019).
Outro obstáculo enfrentado é a inexistência de bomba elétrica em sua residência,
haja vista ser necessário a realização do trabalho braçal, como D. Mara menciona nos
relatos abaixo ao perguntarmos sobre a forma utilizada para captação da água: ―Não tenho
bomba, eu encho no braço mermo. É no braço, eu encho lá os baldes e carrego pra dentro
de casa (Risos). É assim. (D. Mara., 2019)‖.
Em relação aos serviços prestados pela prefeitura municipal de Breves (PA) em seu
bairro, ela relata estar insatisfeita tanto com a situação da água, quanto com as demais
políticas públicas inacessíveis aonde reside: ―(...) Não, não tá bem completo, aí então é isso
minha filha que eu acho, né? Eu acho uma dificuldade nisso, pra nós que somos carentes
nós precisamos de tudo (...) (D. Mara, 2019)‖.
Em seguida relata as problemáticas que sua filha passa por residir no mesmo bairro,
mas num local mais afastado da beira do igarapé, consternada a interlocutora expressa-se:
―muitas das vezes, a minha filha, pra ela não morrer de sede ela compra um garrafão de
água. Quando não, ela se envergonha a ir lá naquela escola a pedir de lá (...). Então é por
isso que eu digo, será que esse prefeito não enxerga que as pessoas tão quase morrendo
de sede? (...) (D.Mara, 2019)‖.
No município, a situação da água é precária, não havendo estratégias municipais de
intervenção na não efetivação da política de saneamento básico e apesar de existirem os
serviços da COSANPA, porém a empresa não atende nem a metade da população que
reside na zona urbana do município. De acordo com informações do Relatório Final
nomeado de Levantamento da Rede de Atendimento à Criança e ao Adolescente em Breves
– PA (2013-2017) encaminhado ao Ministério Público do Pará em 2018.
Os dados acima apontam que o município além de não efetivar a política de saneamento
básico de maneira adequada, 42,9% da população tinha acesso a água potável,
309
ou seja, a maioria da população não tem acesso a essa água, estando à margem da
sociedade, em situação de vulnerabilidade social e econômica. Sabendo que as principais
atingidas são as mulheres marajoaras, as quais estão mais expostas à desigualdade social
e a múltiplos problemas sociais.
Em um material disponibilizado on-line pelo BRK Ambiental e do Instituto Trata Brasil
com o titulo ―Mulheres e Saneamento‖, tem-se ricas informações a respeito da
desigualdade de gênero e o direito a água, como bem sintetizado no trecho a baixo:
(...) Quando ela enche é mais quem fica tomando banho, a criançada vem
tomar banho aí, só também que nós fazemos isso, nós não aceitamos
sanitários na beira do igarapé, nós não aceitamos jogar muito lixo no
igarapé, [Os vizinhos já tem um acordo?] Já toda a vizinhança. Quando
começam a jogar saca no rio, a gente sai para procurar as pessoas, aí pra
reclamar e chamar a polícia, os conselheiros pra ir lá pra eles ajuntarem, ou
jogar pra terra, queimar, ou então juntar e jogar no carro do lixo. Por causa
que a água aqui a gente pertence aqui pra beber, e a gente toma também, a
gente trata e toma também (D. Mara, 2019).
310
D. Vera, uma senhora de 66 anos residente no bairro Riacho Doce nos concedeu
5
suas entrevistas ,. A rede de abastecimento chega até a sua casa, porém não existe uma
regularidade nos horários de fornecimento, bem como, essa água é de péssima qualidade.
Assim, conta com a boa vontade de vizinhos ou conhecidos donos de poços artesianos.
Seus filhos já adultos, ao se casarem procuraram morar em locais mais estratégicos
a fim de evitar uma dura rotina. Em seu depoimento, citou receber conselhos de uma filha
para que busque se mudar para outro bairro devido a necessidade diária de água, contudo
não pretende sair do bairro cujas raízes foram criadas ao longo dos anos residindo lá.
Justifica-se com a seguinte frase: ―Eu não sei o que eu vou encontrar em outro lugar‖
(D. Vera, 2018). Parece estar descrente de que em outros bairros estejam melhores que
onde reside. O problema de abastecimento da água em Breves vem de longas datas, a este
respeito Smith – Santos cita Dione Leão (2018):
A partir do descrito pela autora, evidencia-se que a dura rotina encarada pelos
moradores foi constituída na história do município. O trecho extraído de sua obra mostra
também o costume forçado aos munícipes em conseguir com o fracionamento da água em
seu cotidiano. E assim continua:
311
A interlocutora compreende minimamente a correlação entre a ausência de
planejamento e os fatores que levaram seus vizinhos a se mudarem do bairro em que
presenciou seu crescimento. Assim relata:
Quando vim para cá, para a rua Gurupá era tudo feio, tudo cheio de
serragem, só ponte. Não tinha muita casa como tem agora, com o tempo foi
melhorando, né? Quem viu antes e quem vê agora, né? Aqui era poço
mesmo para pegar água, mas não era da minha casa. Quando a minha mãe
morava aqui, eu precisava trabalhar, a gente se acordava três horas, quatro
da manhã, se levantava, eu pegava umas vasilhas que tinha e ia encher
água apara deixar para a mamãe, porque se deixasse para de manhã eles
trancavam o poço. Aí quando foi um dia eu disse para mim mesma: ―eu
ainda vou fazer um poço para mim para acabar com esse sofrimento‖ (D.
Jesus, 2018 apud Smith-Santos, 2019, p. 113).
Na sua última entrevista, fez questão de mostrar seu poço conhecido como de ―boca
aberta’. Ela usa bomba d’água para encher sua caixa, porém relatou não servir para beber e
fazer comida. Quando consumia a água de seu poço, sofria de crises intestinais, por essa
razão passou a buscar água em uma escola localizada em frente à sua casa.
Outra idosa acompanhada na etnografia foi D. Rosa, quando indagamos a respeito do
acesso à água, nos explicou indignada, comparando o tempo em que está na cidade e a
condição que ainda se encontra a esse respeito. Para ela, só conseguiu ter acesso quando
buscou, por conta própria, adquirir a tubulação para ligar a rede de distribuição até a sua
residência. A narrativa a seguir aponta outro problema vivenciado com a falta de saneamento:
a nossa casinha era velha, velha. (...) Era só eu com o velho e o outro filho,
quando dava água lançante vinha tudo no fundo, peixinho chega ficava
312
7
boiando no jirau . Aí nós pelejamos, pelejamos: ―vamos embora velho,
consertar nossa casa!‖. Compramos telha, compramos tábua, o velho ainda
8
enxergava , a telha aproveitamos, compramos tudo, daí mandei fazer por
cima da casa velha. Daí levantamos a casa, agora não enche mais, só lá no
quintal. (D. Rosa, 2018 apud Smith-Santos, 2019, p. 114)
Considerou este feito realizado junto com seu esposo como uma vitória com a
melhoria da vida. Queixa-se apenas do lixo que seu próprio filho costuma jogar na água,
pois reside ao seu lado e D. Rosa se vê obrigada a limpar o quintal no período não chuvoso.
As diferentes narrativas nos remetem que os problemas de abastecimento de água
não se restringem à região marajoara. Luciana Fernandez (2018) em seu artigo: ―Água: um
olhar feminino‖, alude as diversas exclusões pelas quais mulheres da América Latina
sofrem, o que levou as bolivianas e as mexicanas a iniciarem guerras em seus respectivos
países em prol da água. Na Bolívia a insurreição ficou conhecida como: ―Guerra del Agua de
Cochabamba‖, já no México o movimento foi liderado pelo: ―Exército Zapatista de Mulheres
em Defensa da Água‖.
Para a autora, o protagonismo dessas mulheres impulsionou outras mulheres latino
americanas a seguir na luta pela água. Assim, foi registrado na Agenda 21 Global (1992) em
seu capítulo 18. ―O manejo dos Recursos Hídricos baseia-se na consciência da água como
parte do ecossistema, recurso natural e bem econômico e social‖ (Agenda 21 Global, 1992
apud Fernandez, 2018, p. 191) Isto significa o olhar que as gestões devem ter quanto a este
recurso tão precioso à população.
4. Considerações Finais
Jirau significa: ―estrado de grade de varas sobre forquilhas cravadas no chão e que serve para guardar utensílios‖.
www.dicio.com.br.
Atualmente seu marido é deficiente visual.
313
O título do ensaio traz uma pergunta inicial: ―cidadania alcançada pela torneira ou pelo
poço?‖ A intenção do questionamento foi de podermos refletir sobre que tipo de cidadania a
sociedade marajoara está com dificuldades em alcançar? Diante do observado, foi possível
constatar que este bem fundamental para o cotidiano acaba sendo um dos empecilhos para o
alcance pleno da cidadania uma vez que, mesmo pela torneira (rede de abastecimento) ou pelo
poço, há inúmeras dificuldades para os brevenses da classe subalterna adquirirem.
O texto não tem a intenção de dar por encerrada a discussão, pelo contrário, inicia
um debate necessário que precisa de aprofundamento sobre o que ocorre em solo
brevense. Com o que foi observado e narrado, identificamos que as mulheres são alvo desta
exclusão pela íntima relação que possui com a água desde a tenra idade até a sua velhice.
Suas queixas são fundadas nos longos anos vividos na mesma peleja.
A cidadania, portanto, precisa ser ampla, compreende-se que o acesso básico de
suas necessidades inclui também conseguir usufruir todos os dias de água potável, algo que
pelos seus relatos, não é fácil adquirir. Todas as idosas presentes nessa pesquisa
expressam o desejo por uma água que poderia ser um dos meios para contribuir com
melhorias de suas vidas e de suas famílias. Caberia aos gestores estenderem suas ações
em prol de facilitar a vida destas cidadãs ansiosas por uma vida menos pesada.
5. Referências:
FERNANDEZ, Luciana. Água: um olhar Feminino. In: Labor & Engenho, Campinas [SP]
Brasil, v.12 n.2, p.182-196, abr./jun. 2018. Disponível em: <DOI:
http//dx.doi.org/10.20396/labore.v12i2.8652742. > Acesso em: 08 de Nov. de 2019.
GALLO, Nathalie Cristine e NAVARRO, Anna Carolina L. Mulher e Água: definições e novas
representações. In: Labor & Engenho, Campinas [SP] Brasil, v.12 n.2, p.166-181, abr./jun.
2018. Disponível em: <DOI: http//dx.doi.org/10.20396/labore.v12i2.8652742. > 08 de Nov. de
2019.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos Orais: ―Do indizível ao Dizível‖. Centro de
Estudos Rurais e Urbano. Departamento de Ciências Sociais. F.F.L.C.H. – U.S.P:
1987.Fonte:<http://www.sbsociologia.com.br/portal/index.php?option=com_docman&task=do
c_download&gid=38>. Acesso em 09 de Nov. 2019.
314
em:<https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/14/Relatorio%20de%20Breves.p df>.
Acesso em 09 de Nov. 2019.
SMITH – SANTOS. Mulheres Idosas Entre Bordas e Agências: Migração, Política Pública de
Assistência Social e Sociabilidade (Marajó-PA). Tese de Doutorado. Universidade
Federal do Pará. Instituto de Filosofia e Humanas. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia, 2019.
315
PEC DAS DOMÉSTICAS NO JORNALISMO PARAENSE: tensões entre
1
gênero e classe na ampliação dos direitos das trabalhadoras
2
Maria Luiza Lopes Goes, UFPA
3
https://doi.org/10.29327/527231.5-21 Thaís Cavalcante Rezende, UFPA
4
Danila Cal, UFPA
RESUMO
Analisa-se como são construídas no jornalismo paraense as representações e os lugares de
trabalhadoras domésticas, antes e após a promulgação da PEC das Domésticas (66/2012). A
ampliação de direitos gerou tensões, já que o trabalho doméstico é marcado pela subalternidade
e atravessado por questões de gênero, raça e classe (DAVIS, 2016; CAL, 2016; CARNEIRO;
ROCHA, 2009). Consideramos que o jornalismo participa da construção social da realidade e é
um ator fundamental no debate público (CARVALHO, 2009; MAIA, 2008). Por meio de análise
de conteúdo, examinamos as matérias jornalísticas sobre a PEC veiculadas no Diário do Pará e
O Liberal de 2010 (início da tramitação) a 2016 (regulamentação). Concluímos que os jornais se
preocuparam mais em manter os patrões informados a respeito dos novos gastos oriundos da
PEC do que em dialogar e produzir conteúdo que contemple a trabalhadora doméstica. Palavras-
chaves: trabalho doméstico, comunicação, gênero, raça, classe.
ABSTRACT
It analyzes how the representations and the places of domestic workers are built in paraense
journalism, before and after the promulgation of the Household PEC (66/2012). The expansion
of rights created tensions, as domestic work is marked by subordination and crossed by issues of
gender, race and class (DAVIS, 2016; CAL, 2016; CARNEIRO; ROCHA, 2009). We consider
that journalism participates in the social construction of reality and is a fundamental actor in the
public debate (CARVALHO, 2009; MAIA, 2008). Through content analysis, we examined the
journalistic articles about PEC published in the Diário do Pará and O Liberal 2010 (beginning of
processing) to 2016 (regulation). We conclude that the newspapers were more concerned with
keeping their employers informed about the new expenses coming from the PEC than in
dialoguing and producing content that contemplates the domestic worker. Keywords: domestic
work, communication, gender, race, class.
Versão preliminar do texto para discussão durante o evento.
Graduanda em Ciências Sociais, bolsista PIBIC-CNPq do Projeto “Mídia, Debate Público e Negociação
de Sentidos sobre o Trabalho Doméstico”, financiado pelo CNPq (Edital Universal 2016), integrante do
COMPOA – Grupo de Pesquisa Comunicação, Política e Amazônia. E-mail: malulopesgoes@gmail.com
316
INTRODUÇÃO
317
do cenário de ampliação dos direitos dos trabalhadores domésticos adultos: como são
construídos no cenário jornalístico-midiático as representações e os lugares das
trabalhadoras domésticas?
Apesar de significar um avanço acerca do modo como domésticas são vistas
pela nossa sociedade, a equiparação de direitos é acompanhada por uma série de
exigências, de tal forma que cumprir rigorosamente o contrato pode desfavorecer as
domésticas. Como já questionava Brites em 2003, ―até que ponto pode uma
empregada doméstica cumprir aviso prévio de 30 dias, ou pagá-lo, quando a natureza
do serviço as coloca numa relação tão direta com seus patrões? (...) Quem define as
noções de bom cumprimento das tarefas domésticas estipulado implicitamente no
contrato?‖ (BRITES, 2003, p. 77). Além disso, como essa nova conjectura interfere na
construção de hierarquias sociais de valor? Carneiro e Rocha (2009), ao analisarem a
história de uma doméstica chamada Leninha, reconhecem a conquista de alguns
avanços do ponto de vista dos direitos, entretanto, afirmam que há um silenciamento
acadêmico e social em relação aos dramas e aflições aos quais essas mulheres são
submetidas. Segundo os autores, esse silêncio repercute até mesmo entre as próprias
envolvidas, que parecem ―não articular com clareza e consequência a sua própria
condição, pelo simples fato de que essa condição encerra uma realidade intragável
(...). Nenhum ser humano suportaria viver da verdade de tamanho desvalor social
objetivo‖ (CARNEIRO; ROCHA, 2009, p. 142).
Em termos geográficos, situamos nossa pesquisa na Região Norte do país,
especificamente Belém, capital do Pará. Essa região enfrenta sérios desafios
relacionados ao trabalho doméstico, como, por exemplo, a proporção de trabalhadoras
domésticas que não possuem carteira assinada, o salário médio menor que o mínimo e
do que a média nacional. Segundo Pinheiro, Fontoura e Pedrosa (2012), a partir de
dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, ―na comparação
regional, impressionam as desigualdades verificadas e as situações de extrema
exclusão e precarização do emprego doméstico vivenciado por estas mulheres‖
(PINHEIRO; FONTOURA; PEDROSA, 2012, p. 102). De acordo com as autoras, no
Sul e no Sudeste a taxa trabalhadores domésticos com carteira assinada era de 32% e
33% respectivamente. No Nordeste era de 13,8% e no Norte 12,5%. ―Isto significa que
apenas 12 em cada 100 trabalhadoras nortistas são registradas e contam com a
proteção do Estado frente a situações de vulnerabilidade permanente ou temporária‖
(FONTOURA; PEDROSA, 2012, p. 102). O trabalho doméstico, portanto, apresenta
feições distintas de acordo com a região do país onde é realizado e, por isso, voltamos
318
nossa investigação para esse contexto regional onde há uma forte violação dos
direitos da trabalhadora doméstica.
Optamos pela análise de jornais impressos locais para apreender o processo
debate público sobre a PEC das Domésticas num contexto regional desafiador para as
trabalhadoras domésticas, como citado na primeira seção. De acordo com Habermas
(2009), o jornalismo é a espinha dorsal da democracia pela possibilidade de publicizar
vozes e argumentos. Consideramos que o perfil argumentativo do jornalismo impresso
proporcionará uma apreensão mais ampla do debate público a respeito do tema em tela.
Os jornais investigados no período de 2010, início da tramitação da PEC, a 2016,
um ano após a regulamentação da lei, foram Diário do Pará e O Liberal. O Liberal é mais
antigo – remonta ao ano de 1940 –, porém está sob o comando da família Maiorana, que o
administra desde 1966. Passou por um grande processo de modernização e havia se
tornado liderança absoluta no jornalismo diário paraense, razão pela qual exercia forte
influência na sociedade e nas elites paraenses (Veloso, 2008). O jornal compõe, junto com
emissoras de rádio, emissora de TV (filiada à Rede Globo), um jornal popular, um portal de
notícias na internet e empresa de TV a cabo as Organizações Rômulo Maiorana. O Diário
do Pará foi criado em 1982 pela família do ex-governador do Pará e atual senador Jader
Barbalho (PMDB). Faz parte também de um conglomerado midiático que reúne portal de
notícias na internet, emissoras de rádio e uma de TV (filiada à Rede Bandeirantes). Nos
anos 2000, o Diário do Pará conseguiu alcançar a liderança de O Liberal, segundo
pesquisa do Ibope (VELOSO, 2008).
Este artigo apresenta resultados ainda preliminares e se vincula a outra de
maior fôlego, o projeto ―Mídia, Debate Público e Negociação de Sentidos sobre o
Trabalho Doméstico‖, financiado pelo CNPq (Edital Universal 2016).
319
jornalismo impresso pode proporcionar uma apreensão mais ampla do debate público
a respeito do trabalho doméstico e da PEC das Domésticas, pois tem a capacidade de
dialogar de diferentes formas com o público. Na sociedade moderna, o jornalismo é
uma ferramenta fundamental para a interação humana e assume papel essencial de
―ator social‖ quando dá conhecimento, a públicos diversificados, sobre temas variados,
de interesses múltiplos por meio de seus veículos de comunicação, sejam eles
falados, impressos ou informatizados (CARVALHO, 2009).
320
Outro aspecto importante que deve ser levado em consideração no jornalismo
são os ―enquadramentos‖ - análise de como cada sujeito se envolve em uma situação
- em como o jornalismo se relaciona com os atores sociais.
321
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
322
conteúdos possuíram destaque em notas na capa do veículo; c) Formato, consiste na
categorização do tipo de conteúdo, além de onde foi produzido, se é regional ou não; d)
Assunto Principal, é a categoria responsável pela determinação da temática
central abordada pelo conteúdo, com objetivo de agrupar matérias semelhantes como
pertencentes do mesmo grupo; e) Dados Estatísticos, se a matéria possui dados
estatísticos, seguida de uma variável discursiva complementar para colocar a fonte dos
dados; f) Fontes Consultadas, tem como função listar todos os personagens que auxiliam
na elaboração do conteúdo com suas falas, de forma direta, entre aspas, ou indireta com o
jornal o fazendo referência; g) Assunto Abordado pela Trabalhadora Doméstica,
enquanto fonte. Quando uma ou mais fontes presentes na categoria citada anteriormente é
uma empregada ou ex-empregada doméstica nos certificamos de analisar qual o ponto
central da sua fala (quais as expectativas geradas pela mudança da lei, como é sua rotina,
as dificuldades do trabalho…); h) o Gênero da Trabalhadora enquanto fonte, partindo do
princípio de que os trabalhos domésticos a serem executados e abarcados pela lei são
diversos, buscando quebrar o paradigma estabelecido de que funções domésticas são
naturalmente femininas, ainda que elas sejam maioria; i) quando o conteúdo refere-se a
respeito do trabalho doméstico, se o apresenta ao leitor como uma função naturalmente
feminina, como um serviço essencial ou como um trabalho digno que merece mais direitos;
Também, a respeito da mudança da lei, como se refere a PEC como a correção de uma
injustiça, uma possibilidade de melhorar a vida delas ou ainda como fonte de problemas
financeiros e logísticos para os patrões; k) Se há menção a Desigualdades de Gênero,
Racial e Social; l) O posicionamento dessa trabalhadora, se são apresentadas como
vítimos, sujeitos políticos ou outros; m) Os Tipos de Falas da Trabalhadora doméstica,
se direta, indireta ou ambas, seguida de uma variável discursiva complementar onde são
adicionadas as aspas ou trecho indireto; n) O Direcionamento da Matéria, com quem ela
se dispõe a abrir diálogo, considerando que, há uma ausência de interesse, por parte do
governo e das mídias, de explicar, de forma simples e sem termos complexos ou
dificultosos, os direitos e efeitos da PEC na realidade das T.D.
323
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da análise das tabelas foi possível extrair resultantes satisfatórias e que
contemplam nossa pesquisa. Analisamos um total de 45 matérias, dos anos 2010 a
2016, 53,3% no O Liberal e 46,7% delas publicadas no jornal Diário do Pará. O Liberal
publicou mais conteúdo referente a pesquisa na capa do jornal do que o Diário do
Pará, nos dois períodos divididos: Até 2013 e Após 2013.
Ao executarmos uma comparação minuciosa a respeito dos resultados obtidos
referentes ao período anterior e posterior a PEC, nos deparamos com certas
discrepâncias. A começar pela quantidade dos conteúdos a respeito do assunto,
64,4% deles são referentes ao período de 2010 a 2013, enquanto os referentes ao
período de 2014 a 2016 são apenas 35,5% do total. A respeito de qual jornal publicou
mais a respeito do tema nos dois períodos indicados, ocorreu uma inversão, no
período até o ano da implementação o jornal Diário liderou, 62,1% do total, já, no
período que se inicia no ano de 2014, o jornal O Liberal passou nafrente do
concorrente, com 62,5% dos conteúdos.
324
Até 2013 Após 2013
Formato Frequência % Formato Frequência %
Notícia Local 1 3,4 Notícia Local 8 50,0
Notícia 12 41,4 Notícia 3 18,8
Agência Agência
Reportagem 9 31,0 Reportagem 2 12,5
Local Local
Reportagem 3 10,3 Reportagem 3 18,8
Agência Agência
Coluna 3 10,3 Total 16 100,0
Charges 1 3,4
Total 29 100,0
Até 2013
Após 2013
Assunto Principal Frequência %
Características da 7 24,1% Assunto Principal Frequên %
Lei cia
Orientações ao 1 3,4% Características da Lei 3 18,8
Patrão %
Impactos na 1 3,4% Orientações ao Patrão 3 18,8
Economia/Mercado %
Vantagens da Lei 3 10,3% Não cumprimento da lei 4 25%
Desvantagens da 2 6,9% Impactos a 2 12,5
Lei Economia/Mercado %
Relação Patrão X 2 6,9% E-social 1 6,3%
Empregada Vivência da T.D. 1 6,3%
Tramitação 6 20,7% Vantagens da Lei 1 6,3%
Vivência da T.D. 5 17,2% Outro 1 6,3%
Mulher no Mercado 1 3,4% Total 16 100
de Trabalho %
Mulher no Trabalho 1 3,4%
Doméstico
Total 29 100%
325
Durante os quatro primeiros anos, o assunto mais abordado e com mais capas foram
as ―Características da Lei‖, com 24,1% das representações, seguido por tramitação,
20,7%, e vivência da trabalhadora doméstica com 17,2%. Consideramos importante
ressaltar que os assuntos ―Mulher no mercado de trabalho‖ e ―Mulher Negra no
trabalho doméstico‖ foram citados apenas uma vez.
Passado esse tempo, após a implementação, o assunto principal mais assíduo nas
capas foram as ―Orientações ao Empregador‖, que, no total compõem 18,8%. Já o
assunto mais abordado foi o ―Não cumprimento da lei‖ (25%), que representa falta de
efetividade da nova legislação, sobretudo, em razão da pouca fiscalização, já que
muitas trabalhadoras permanecem sem receber salários equivalentes, sem carteira
assinada, permanecem marginalizadas.
A análise sobre o direcionamento das matérias, se consideramos o total da amostra,
observamos que 11,1% do material jornalístico apresentado se dirige à trabalhadora
doméstica, desses nenhum possui destaque na capa do jornal. Os assuntos que mais
são direcionados as empregadas domésticas são, antes da lei: vivência da doméstica,
tramitação da lei; E, depois dela: as vantagens da lei. Durante o tramite da PEC, houve
quatro matérias consideradas direcionadas às T.D., 13,8%, comparada a 6,3% do
período seguinte. Chama atenção ainda o fato de que, após a regulamentação da
nova lei, os patrões são o público prioritário da abordagem dos jornais.
Após 2013
Direcionamento Frequência %
Indeterminável 7 43,8%
Empregada 1 6,3%
Patrão 6 37,5%
Ambos 2 12,5%
Total 16 100%
Até 2013
Direcionamento Frequência %
Indeterminável 18 62,1%
Empregada 4 13,8%
Patrão 3 10,3%
Ambos 4 13,8%
Total 29 100%
326
Entre todas as fontes presentes, as trabalhadoras e ex-trabalhadoras domésticas
representam 19,7%. Dentre elas, 70% estavam presentes nos conteúdos do jornal
Diário.
Geral
Fontes Frequência %
Não há 14 21,2%
Executivo 5 7,6%
Legislativo 10 15,2%
Judiciário 2 3%
Partido 1 1,5%
Político
ONGs 8 12,1%
Especialista 11 16,7%
Cidadão 1 1,5%
Comum
Trab. 10 15,2%
Doméstica
Ex-doméstica 3 4,5%
Patrão 1 1,5%
Total 66 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.
327
Constatamos que, antes de 2013, o número de fontes era mais expressivo, 71,2% do
total, podemos considerar com base nessa informação que o conteúdo, portanto, é
mais denso, pois, havia mais pessoas sendo ouvidas. Há cidadãos comuns,
empregadores e partidos políticos (2,1%), especialistas (14,9%), e ainda, 21,3% de
trabalhadoras atuando como fonte e 4,5% de ex-trabalhadoras. Antes da lei, elas
falaram em sua maioria (41,7%) sobre as dificuldades do trabalho doméstico, de suas
expectativas positivas em relação aos novos direitos, e da rotina.
Enquanto isso, o período posterior teve apenas uma (5,3%) trabalhadora como fonte.
Ela falou das dificuldades de seu emprego, posicionando-se como vítima -
trabalhadora representada como sofredora, aquela que vivencia, até mesmo,
passivamente, as dificuldades do trabalho doméstico -, as fontes mais assíduas nesse
período foram ONG’s e especialistas, seguido por representantes do legislativo e
judiciário, todos esses à frente delas.
Um resultado encontrado a partir da nossa pesquisa, legitimada por dados da PNAD e
do DIEESE-PA, encontrados enquanto analisávamos as matérias, foi a do gênero da
trabalhadora doméstica, 100% das fontes eram mulheres. Não há, portanto, em
nenhuma matéria, um homem sequer dialogando a respeito da função que exerce
enquanto trabalhador doméstico, isso porque o trabalho doméstico é visto como uma
função dotada de feminilidade e, por isso, a própria nomenclatura é, por muitas
pessoas, automaticamente vinculada ao gênero feminino, devido as opressões
culturais, muitas vezes interseccionadas, de gênero e raça.
Geral
Abordagens a respeito Frequência %
do T.D.
Não menciona 11 23,9%
Atividade Feminina 4 8,7%
Serviço Essencial 2 4,3%
Relação de Confiança 3 6,5%
entre Patrão e
Empregada
Trabalho Digno 14 30,4%
Dificuldades com a Nova 12 26,1%
Lei
Total 46 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.
328
O trabalho doméstico, como função, é retratado pela maior parte das matérias (30,4%)
como um trabalho digno, que merece direitos como qualquer outro, no entanto, a
segunda maior porcentagem dessa variável (26,1%) diz respeito a eventuais
dificuldades com o cumprimento das leis trabalhistas, antes ou depois da
implementação da PEC. Assim como a quantidade de matérias a respeito do ofício
doméstico entre os anos 2010 e 2013, a construção de abordagens a respeito do
trabalho, nesse núcleo, também é de maior quantidade, ainda mais, se for comparado
com o período adiante, 2014 a 2016.
Até 2013
Abordagens a respeito Frequência %
Após 2013
do T.D.
Não menciona 5 16,7% Abordagens a Frequência %
Atividade Feminina 4 13,3% respeito do T.D.
Serviço Essencial 2 6,7% Não menciona 6 37,5%
Relação de Confiança 3 10% Trabalho Digno 3 18,8%
entre Patrão e Dificuldades com a 7 43,8%
Empregada Nova Lei
Trabalho Digno 11 36,7% Total 16 100%
Dificuldades com a Nova 5 16,7%
Lei
Total 30 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.
329
As abordagens referentes à mudança da lei, consideram a PEC como uma
possibilidade de melhorar as condições trabalhistas em 26,1% dos casos. Em 19,6%,
a Emenda Constitucional foi considerada como a correção de uma injustiça. Porém,
não foi interpretada, em sua totalidade, positivamente, em 15,2% apontou-se que ela
trouxe problemas financeiros para os empregadores.
Geral
Abordagens Relativas à Mudança Frequên %
da Lei cia
Não Menciona 11 23,9%
Correção de uma Injustiça 9 19,6%
Possibilidade de Melhorar as 12 26,1%
Condições da T.D.
Problemas financeiros para o patrão 7 15,2%
Problema logístico para o patrão 1 2,2%
Prejuízo para a Relação Patrão e 1 2,2%
Empregada
Interferência exagerada do estado 1 2,2%
Pouco Efetiva 4 8,7%
Total 46 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.
Até 2013, fala-se da PEC, em 31% dos conteúdos, como uma possibilidade de melhorar as
condições da doméstica e, em 27,6%, como a correção de uma injustiça que acometia
àquelas classe de trabalhadores, em 6,9% como fruto de problemas financeiros para os
empregadores, por fim, em 3,4% cada, fruto de problemas logísticos para a família,
prejuízo para a relação entre empregador e assalariada e como interferência exagerada do
estado. Após o ano de 2013, a Emenda Constitucional, já em vigor, é vista como: 29,4%
fonte de problemas financeiros para empregadores, 23,5% pouco efetiva, por não garantir
totalmente os direitos prometidos, 17,6% como a possibilidade de melhorar a situação
dela, 5,9% a correção de uma injustiça.
330
Total 45 100%
Fonte: Dados da Pesquisa.
Tabela 16– Frequência de marcadores de gênero, raça e classe nas matérias por
período
Até 2013
Desigualdades de Frequência %
Gênero, Raça e Classe
Não 17 58,6%
Gênero 5 17,2%
Sociais 2 6,9%
Raça e Gênero 1 3,4%
Sociais e Gênero 3 10,3%
Sociais, Gênero e Raça 1 3,4%
Total 29 100%
Após 2013
Desigualdades de Frequência %
Gênero, Raça e Classe
Não 12 75,0
Gênero 1 6,3%
Sociais 1 6,3%
Sociais e Gênero 2 12,5%
Total 16 100%
Na variável responsável por medir a frequência com que são citadas desigualdades
nas matérias jornalísticas, identificamos que maioria não faz citação a questões de
gênero, raça e classe. Ainda assim, a mais citada é a de gênero, afinal, as mulheres
são maioria, 90,86%, segundo a Pnad 2014, e, ainda que 79,3% dessas sejam negras,
a desigualdade racial não foi pauta central de nenhuma matéria, em nenhum dos
veículos escolhidos, sendo citada apenas uma vez, dentre todo o corpus analisado,
por meio de dados estatísticos, não houve texto direto disposto sobre o tema. Dessa
forma, podemos constatar a urgência de abrir caminho para a conscientização e
empoderamento dessas trabalhadoras negras, que mesmo sendo maioria são quase,
para não dizer totalmente, ignoradas pelas mídias de maior destaque do estado.
331
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
332
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empregadas domésticas. In: SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive?
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do jornalismo. In: CARVALHO, Carlos Alberto; BRUCK, Moazahir Salomão. (Org.).
Jornalismo, cenários e encenações. 1ed.São Paulo: Intermeios, 2012, v. 1, p. 43-58.
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Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Volume II. Rio de Janeiro:
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2008.
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PINHEIRO, Luana; FONTOURA, Natália; PEDROSA, Cláudia. Situação das
Trabalhadoras Domésticas do País. In: Castro, Jorge; ARAÚJO, Herton (orgs).
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PORTAL BRASIL. Trabalho doméstico é a ocupação de 5,9 milhões de
brasileiras. Publicado em: 17 mar 2016. Atualizado em: 23 dez 2017. Disponível
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URBINATI, N; WARREN, M. The Concept of Representation in
Contemporary Democratic Theory. Annu. Rev. Polit. Sci. 2008 p. 387-412.
333
A LUTA POLTÍCA DE IZA CUNHA NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E
GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DO PARÁ.
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-22 Sandra Regina Alves Teixeira
INTRODUÇÃO
Mestre em Direitos Fundamentais (UNAMA). Esp. Processo Penal, Civil, Constitucional e Trabalho.
(MAURICIO DE NASSAU) Esp. Planejamento e Gestão de Políticas Públicas para as Mulheres na
Amazônia (ESMAC). Esp. em História Social da Amazônia (UNAMA). Esp. em Docência no Ensino
Superior na Amazônia (UFPA). Conselheira Estadual dos Direitos das Mulheres (SECULT). Comissão de
Direitos Humanos/ Colaboradora (OAB-PA). Historiadora. Bacharel em Direito. Docente
SEDUC/ESMAC. Técnica em Gestão Cultural (SECULT). Docente do Curso de Graduação em Direito e
História da Faculdade ESMAC
334
Cunha de codinome “Maria”, que através da luta clandestina na Ditadura Militar atuou
em organizações populares e de trabalhadores, movimentos sociais e de mulheres,
pautando-se como uma grande liderança feminista, na formação política e principal
referência dos Direitos Humanos na Amazônia.
A metodologia utilizada foi na abordagem qualitativa examinando 30 matérias
veiculadas em alguns blog s e sites; periódicos tais como o jornal “Resistência” (15
matérias referente ao período de 1979 a 2013), o qual Iza Cunha era colaboradora em
algumas colunas, localizado no Acervo da Biblioteca Arthur Vianna da Fundação
Cultural do Estado do Pará, popularmente conhecido como CENTUR; alguns
documentos institucionais da FASE, SPDH, 15 questionários dos 40 aplicados aos que
conviveram cotidianamente ou indiretamente com Iza Cunha, além de 03 entrevistas
2
realizadas (2 na SDDH) e dezenas de fotografias e iconografias , em uma análise
descritiva e historiográfica das diversas fontes.
Historicamente, os homens dominaram o público e atribuíram a ele a sua própria
condição de existir (ARENDT, 1991), posteriormente as mulheres ocuparam espaços
público-políticos nos movimentos sociais e partidos políticos, na luta por direitos
sociais, econômicos e políticos das mulheres, em todo o Brasil, em especial no Pará,
destacando-se alguns perfis sociais, históricas mulheres militantes, políticas,
sindicalistas, consolidando a luta pela efetivação dos Direitos Humanos, através da
organização do Movimento Social de Mulheres Campo e Cidade e Movimento
Feminista na década de 60, 70 e 80.
Portanto, o trabalho é proeminente do ponto de vista científico e social, para a
conclusão desta Pós Graduação em Planejamento e Gestão de Políticas Públicas para as
Mulheres na Amazônia (ESMAC), pois além de Iza Cunha ter contribuído na
organização das mulheres, na discussão e formulação de políticas públicas, na
implementação do debate dos Direitos Humanos na Amazônia, a História e Memória
desta protagonista devem ser preservadas como amazônida debatendo a categoria
gênero nas organizações populares, político-partidária em um contexto de outrora
pautada em trajetórias de lutas e resistências das mulheres proporcionando o
empoderamento e emancipação política.
2
O arcabouço de fontes coletadas estão sistematizadas em dossiê sobre a história e memória de Iza
Cunha, não foram esgotadas neste breve ensaio de perspectiva biográfica e serão direcionadas para o
Projeto de Doutoramento.
335
IZABEL MARQUES TAVARES DA CUNHA – IZA CUNHA
3
Segundo o jornalista Paulo Roberto Ferreira “Foi para contrapor ao discurso único, imposto pela
ditadura, que surgiu também, em Belém, o jornal Resistência, órgão da Sociedade Paraense de Defesa dos
Direitos Humanos (SPDDH), em fevereiro de 1978. O periódico assumiu um lado, o lado que não tinham
vez e nem voz. Por isso mesmo recebeu marcação cerrada dos órgãos de segurança e informação. Seus
integrantes eram espionados em 1977 (quando foi fundada a SPDH), pelo Serviço Nacional de
Informações (SNI) e pelo Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa)” In: FERREIRA Paulo Roberto.
A Censura no Pará. A mordaça a partir de 1964 (registros e Depoimentos). Belém Pará Paka-Tatu. 2015.
p. 165.
4
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias. Historiadores e Jornalistas. Aproximações e
afastamentos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. CPDOC/FGV, n.19, 1997.p.12.
336
presos comuns. Em outubro de 1973 Iza Cunha encontrava-se grávida de 02 meses,
sendo intimada para um julgamento em Juiz de Fora no qual teve uma condenação de 6
meses, porém já tinha sido cumprida pena de 10 meses e segundo ela “sobravam 4
meses”, voltando para Belém sem o marido Humberto Cunha, que ficou em Juiz de
Fora para cumprir a pena de mais de 3 meses e meio, uma vez que sua condenação foi
de 18 meses de prisão.
Na reportagem Iza Cunha descreve os inúmeros tipos de torturas vivenciadas nas
dependências do DOI CODI tais como: “pau de arara, choques elétricos (nos dedos e
mãos com descarga de mais e 60 volts, “estendendo-se pelo ânus, língua, vagina e no
corpo todo”), tapas, telefones (tapas no ouvido com as mãos em forma de concha,
socos, câmara de tortura”. Além das atrozes ameaças de ser “currada por 5 homens em
um Volks”, hodiernamente intitulado de estupro coletivo, e com o possível
desaparecimento do seu corpo, Iza Cunha relatou que foi torturada pelo Sargento Davi,
conhecido como Dr. Sócrates que:
Despida, apertava o bico dos meus seios, como quem queria arrancá-
los; depois sentou-me a força em um vaso sanitário onde jogava água
gelada dentro dos meus órgãos genitais. Parecia um louco,
desesperado, os olhos a saltar, parecia transtornado, Olhei firme para
ele e mandei-o fazer isso com a mãe dele. Ele respondeu que a mãe
dele não era uma subversiva era uma santa mulher. Era um sádico e
tenho quase certeza que chegava ao orgasmo quando fazia isso. Ficava
irritadíssimo e nervoso quando fitava-o, firme nos olhos; voltava a
5
torturar-me.
site intitulado: “Brasil Nunca Mais Digital- Sumário do BNM 054”, traz
informações gerais sobre a Primeira Fase do Processo e Recurso ao Superior Tribunal
Militar. A organização/partido ou setor social a ser atingido era a Ação Popular
conhecida como AP que Izabel Marques Tavares militava clandestinamente, sendo
denunciada pelo Ministério Púbico Militar sob a acusação de “Agrupamento perigoso à
Segurança Nacional. Classificação do crime alterada na sentença por agrupamento
prejudicial à Segurança Nacional. Fundamento legal da acusação Artigo 43, do Decreto-
Lei nº 898, de 1969. Classificação do crime alterada na sentença para art. 14, do mesmo
6
Decreto-Lei”
CARVALHO. Luiz Maklouf. Tortura. O Inferno de Iza Cunha. Resistência. Março de 1981. Ano IV. n.
Disponível em: www.fcp.pa.gov.br/2016-12-13-19-41-20/resistencia-mensario-da-sociedade-paraense-de-
defesa-dos-direitos-humanos-belem-mitograph-v-4-n-22-mar-1981-20-p. Acesso em: 06 mar 2019.
BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72. Apelação nº STM
188. Disponível em: bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/100/054.html. Acesso em: 10 mar 2019.
337
A denúncia foi realizada em 13 de abril de 1972, processo tramitou na Justiça
Militar Minas Gerais- Auditoria da 4ª CJM- Juiz de Fora e da data da sentença foi em
09 de outubro de 1973 com o resultado do Julgamento:
Foi reconhecida a litispendência quanto a Jussara Lins Martins, José
Milton Ferreira de Almeida, Luiz Antonio Duarte e Marcos José Burle
de Aguiar, para o fim de excluí-los da ação penal. Condenação de
Zoraide Gomes de Oliveira, Alanir Cardoso, Claudio Fernandes
Arabal, Humberto Rocha Cunha e de Edesio Franco Passos à pena de
1 ano e 6 meses de reclusão; de Salvio Humberto Penna à pena de 1
ano de reclusão; e de Izabel Marques Tavares, Ana Lucia Penna e
de Maria Rosângela Batistoni à pena de 6 meses de reclusão.
7
Absolvição dos demais acusados. (grifo meu)
BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72. Apelação nº STM
188. Disponível em: bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/100/054.html. Acesso em: 10 mar 2019.
BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72. Apelação nº STM
188. Disponível: bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/docreader.aspx?bib=BIB_01&PagFis=9036. Acesso
em: 10 de mar 2019.
BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72. Apelação nº STM
188. Disponível em:bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/docreader.aspx?bib=BIB_01&PagFis=90386.
Acesso em:10 mar 2019.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição: São Paulo, Companhia das Letras, 2006. p. 205.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, Falso, Fictício. Tradução de Rosa Freire d‟aguiar e
Eduardo Brandão. São Paulo. Companhia das Letras. 2007.p.7
338
O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se
opera a transmutação de um conflito direto entre as partes diretamente
interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que
atuam por procuração e que tem em comum o conhecer e o reconhecer
de regra do jogo jurídico, quer dizer, as leis escritas e não escritas do
12
campo .
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Elementos para uma sociologia do campo jurídico. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 229.
PERROT Michele. A Mulher Popular Rebelde, In: As Mulheres e os silêncios da História. Bauru. SP,
EDUSC. 2005. p. 217.
14
FONTES, Edilza Joana Oliveira A UFPA e os Anos de Chumbo: memórias, traumas, silêncios e
cultura educacional (1964-1985) – Entrevista com Humberto Rocha Cunha. Disponível em:
http://www.multimidia.ufpa.br/jspui/handle/321654/1277. Acesso em: 04 mar 2019.
339
Diante disso, o casal se “sustentava com aulas particulares e montaram uma escolinha
15
de alfabetização” sustentando os dois filhos .
Em 1978 Iza Cunha participou junto com Humberto Cunha em uma atividade da
FASE no RJ e foram convidados para a participação do Comitê Brasileiro da Anistia,
trouxeram para Belém que fez parte de um núcleo da Anistia dentro da SPDDH com
dupla vinculação, discutindo a anistia em assembleias na SPDDH e com apresentação
da carta de princípios da SPDDH, o que possibilitou fundar depois de 10 anos o
Movimento Nacional dos Direitos Humanos.
A partir dos relatos de Humberto Cunha sobre Iza Cunha compreende-se o
processo da trajetória política da mulher militante pois conforme afirmou Vavy Pacheco
Borges “os problemas de interpretação de uma vida são riquíssimos, pois nos defrontam
com tudo que constitui nossa própria vida e a dos que nos cercam (...) Atualmente a
biografia, como aliás quase tudo mais, é vista como parte da história. Fala-se em um
16
retorno da biografia”.
Desse modo ao analisar as diversas fontes sobre a vida de Iza Cunha constatou-
se que a mesma era professora formada em História, foi militante política de
organizações clandestinas e diversos partidos tais como: APML (Ação Popular Marxista
Leninista), PCdoB (Partido Comunista do Brasil), PRC (Partido Revolucionário
Comunista), e PT (Partido dos Trabalhadores) sendo candidata ao parlamento no início
da década de 90, coordenadora do CIPES Centro de Intercâmbio de Pesquisas e Estudos
Econômicos e Sociais, foi fundadora do Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade
(MMCC) e SDDH (Sociedade Paraense em Defesa dos Direitos Humanos), no qual
posteriormente ocupou o cargo de Presidente.
Também atuou na implementação do Conselho Municipal da Condição
Feminina de Belém sendo posteriormente Presidente, “o principal papel de Isa Cunha na
Amazônia foi na organização das mulheres trabalhadoras rurais por seus direitos
trabalhistas e pelo direito à terra. Nessa tarefa foi primordial, também, sua defesa do
meio ambiente, contra a primeira proposta de construção da usina Belo Monte, contra os
grandes projetos que destruíam a floresta e os rios, e defesa dos povos indígenas(...).
\emdash FONTES, Edilza Joana Oliveira A UFPA e os Anos de Chumbo: memórias, traumas, silêncios
e cultura educacional (1964-1985) – Entrevista com Humberto Rocha Cunha. Disponível em:
http://www.multimidia.ufpa.br/jspui/handle/321654/1277. Acesso em: 18 mar 2019.
\emdash
BORGES Vavy Pacheco. Desafios da Memória e da Biografia Gabrielle Brune-Sieler, uma
Vida (1874-1940). IN: BRESCIANI Stella e NAXARA Márcia (org.) Memória e (Res) sentimento
Indagações sobre uma questão sensível. Campinas SP. Editora da Unicamp. 2004. p.288.
340
Como Historiadora, feminista e ativista dos Direitos Humanos foi uma mulher à frente
do seu tempo, fazendo múltiplas palestras contra o machismo e em defesa dos direitos
17
reprodutivos das mulheres com os trabalhadores do campo e da cidade ”
A partir do relato acima mencionado compreende-se que Iza Cunha rompe com
18
o modelo de perfil social feminino vigente nas décadas de 70 e 80 e início dos anos
90, no qual a mulher deveria estar inserida apenas no espaço privado doméstico
cuidando da casa, marido e filhos, no entanto ao ocupar o espaço público no campo
político e social era representada por muitos de seus companheiros (as) de militância
19
política como “uma mulher à frente do seu tempo” , logo Iza Cunha desconstrói a
naturalização dos papéis sociais de gênero no qual “ a Igreja, e o Estado apostavam no
sucesso do papel feminino. Dentro de casa, a mulher poderia comandar alianças,
20
poderes informais e estratégias. Mas apenas dentro de casa. Na rua era outra coisa”
Segundo o jornalista e amigo de militância política Pedro César Batista que
conviveu com Iza Cunha no final dos anos 70 “quando a SPDDH estava sendo fundada
durante a realização das reuniões na Igreja da Aparecida, na Pedreira em Belém. Depois
convivemos por um período, durante a articulação da Tendência Popular do PMDB, que
reuniu candidaturas populares, com reuniões na Livraria Jinkinks, sendo que Humberto
Cunha companheiro de Iza, foi candidato a vereador, tendo sido eleito em 1982 (...) Um
quadro dos movimentos de esquerda paraense, tendo tido destaque na construção do PT,
de movimento populares, do Movimento do Campo e da Cidade (MMCC), da Comissão
dos Bairros de Belém (CBB) e junto a inúmeras lutas do povo e da classe
21
trabalhadora”
SOLIMÕES. Neide Rocha Cunha. Entrevista aplicada através de Questionário respondido por email em
de novembro de 2018 às 11:11h A Farmacêutica Servidora Pública Federal argumenta que conheceu
Iza Cunha “em meados de 1968 (..) em plena efervescência das lutas estudantis contra a ditadura militar”,
tornando-se posteriormente cunhada de Iza Cunha, pois a mesma casou-se no civil com seu irmão
Humberto Cunha.
MATOS, Maria Izilda. Outras Histórias: as Mulheres e estudos de gênero-percursos e possibilidades
(org). Gênero em Debates. São Paulo. Edusc. 1997, p. 84-113. A autora se detém na análise dos novos
perfis de comportamentos masculinos e femininos através da categoria analítica de gênero.
CAREPA. Ana Júlia. A ex Governadora do Estado do Pará (a primeira e única mulher a governar o
Pará) afirma que: “ Iza Cunha teve um papel social muito relevante na Amazônia. Foi uma mulher à
frente do nosso tempo. Foi uma liderança que influenciou positivamente muitas pessoas, mulheres
especialmente”. Entrevista aplicada através de Questionários respondidos por email em: 25 de janeiro as
13:51 h .
PRIORE Del Mary. Histórias e conversas de Mulher. 2ª ed. São Paulo. Planeta. 2014.p.19.
21
BATISTA. Pedro César. Entrevista aplicada através de questionário respondido por email em 23 de
janeiro de 2019 às 16:22 h. O Jornalista e coordenador do Movimento Cultural de Olho na Justiça
asseverou que; “na organização do MMCC ela teve papel fundamental. Atuando na mobilização de
camponeses e trabalhadoras urbanas”.
341
O Blog intitulado “Resistência” publicou no dia 02 de abril de 2012, sob o título
“Resistência à Ditadura: o embrião da luta por Direitos Humanos no Brasil”, as palavras
da própria Iza Cunha concernente ao papel social e político da SDDH na ocasião sendo
Presidente e comemorando 10 anos de fundação:
A SDDH nasceu nesse clima (de Ditadura Militar) e teve o papel de
aglutinar toda a oposição de esquerda à ditadura militar, lutando por
anistia ampla, geral e irrestrita, pelas liberdades políticas, pela reforma
agrária radical e imediata, e por eleições livres e diretas em todos os
níveis, luto contra a Lei de Segurança Nacional e contra os órgãos do
22
aparelho repressivo e contra a tortura, principalmente .
É JORNAL RESISTÊNCIA. Resistência à ditadura o embrião da luta por Direitos Humanos no Brasil.
02/02/2012. Disponível em: https://jornalresistenciaonline.blogspot.com. Acesso em 17mar 2019.
É
MAIA. Elisete Veiga. Entrevista aplicada através de Questionário respondido por email 30 de janeiro
de 2019 às 03:53 h.
342
De viés socialista, Isa primava pela liberdade, igualdade justiça social.
24
Tinha um olhar marxista-crítico sobre o mundo .
Dessa forma percebe-se uma preocupação de Iza Cunha no que que se refere
organização das mulheres, dos movimentos populares e sociais dentro da abordagem
marxista dialogando com as primeiras discussões de gênero, feminismo, violência
contra a mulher e direitos humanos dentro do espaço acadêmico promovido pelo
GEPEM/UFPA conforme relata a coordenadora e cientista política Dra Luzia Miranda
Alvares:
O feminismo de Isa Cunha tendia a uma radicalidade sem fronteiras,
quando a situação se inclinava a constatar a violência contra a mulher.
Mas ela ia mais além, mostrando que se deixássemos de lado o
companheiro sem as informações pontuais sobre a violência praticada,
não mudaríamos nada, não chegaríamos a desenvolver o pleito maior
que era a mudança social. E essa posição dela me fascinava, pois
sempre foi esse o meu ponto de vista.
Desta sintonia, extraíamos a argumentação necessária para a revisão
de algumas versões que não levavam a quase nada. Nossas conversas
eram sempre para a definição de posições dos temas sobre a questão
da mulher, nos textos teóricos que surgiam e também na prática,
quando ela via que estas posições tendiam a excluir algum ator social
do processo. Eram sempre para planejar alguma oficina, curso ou
palestra que levasse informação às mulheres.
Por isso, Isa sempre estava presente nos eventos promovidos pelo
GEPEM/UFPA dando sua contribuição às novas gerações. Esta
parceria se não alcançou mais o presencial, seu rastro tem estado
presente entre nossas companheiras de movimento e isto é muito bom
saber. Mas aquela ternura de Isa Cunha de comentar a mudança na
vida da mulher e tratar com radicalidade a justiça social para humanos
e humanas vai ficar na diretriz de nossas vidas.
O movimento dos direitos humanos ficou pobre ao perder Isa Cunha,
que foi ferida de morte no emprego que mantinha há muito tempo,
onde não foi tratada por alguns com o instrumento que fazia dela a
25
grande militante: os direitos humanos .
MORAES Rosana Ribeiro. Entrevista aplicada através de Questionário respondido por email: 06 de
fevereiro de 2019 às 22:14 h
ALVARES Luzia Miranda, “Oração por uma companheira de lutas”. Blog do Paulo Fonteles Filho.
Verdade, Memória e Justiça na Amazônia. 10 jun 2016. Disponível em:
paulofontelesfilho.blogspot.com/2016/06/luzia-miranda-alvaresassic. Acesso em: 17 mar 2019.
26
CUT-PARÁ.“Mulheres recebem a medalha Isa Cunha na ALEPA e reivindicam medidas para a
calamitosa situação da grande maioria das mulheres no Pará”. 12/03/2014. Disponível em:
https://cut.pa.org.br Acesso em 17 marc. 2019.
343
prestam serviços relevantes à sociedade paraense, em Solenidade Especial na
Assembléia Legislativa do Pará e na Câmara dos Vereadores de Belém no Dia
Internacional da Mulher, contudo valorizando a memória de uma mulher que deixou um
legado de luta e exemplo nos Direitos Humanos no Estado do Pará.27 Nada mais do que
justo tal comenda pois conforme preconizou Michelle Perrot
As Mulheres têm uma história (...) A história das mulheres mudou.
Em seus objetos, em seus pontos de vista. Partiu de uma história do
corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma
história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da
política, da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres
vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas
interações que provocam a mudança. Partiu de uma história das
mulheres para tornar-se mais especificamente uma história do gênero,
que insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade.
28
Alargou suas perspectivas espaciais, religiosas, culturais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
27
EDMILSON RODRIGUES DEPUTADO ESTADUAL DO POVO.” Ex Deputada Araceli recebe
medalha do Legislativo”. Disponível em: http://www.edmilsonbritorodrigues.com.br/ex-deputada-araceli-
recebe-medalha-do-legislativo/ Acesso em: 17 marc 2019. O site informa que : A ex Deputada do PSOL
Araceli Lemos, também Historiadora homenageada pelo atual deputado estadual Edmilson Rodrigues do
PSOL, ela foi presidente do Sindicato em Educação Pública do PARÁ (SINTEPP) e teve dois mandatos
como Deputada Estadual pelo PT e PSOL entre os anos de 1998 e 2007, tendo sido representante das
Mulheres Parlamentares da União Nacional dos Legisladores e Legislativos Estaduais por dois mandatos,
o discurso do Deputado Estadual Edmilson Rodrigues, concernente a homenagem, fez referência a
atuação de Iza Cunha
PERROT Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo. Contexto. 2017. p.15-16.
TOLEDO, Cecília. Gênero e Classe. Org Alicia Sagra. São Paulo Sundermann, 2017.p.16.
ALVES. Edivânia Santos. Historiadora e Professora da UFPA/IEMCI. Entrevista aplicada através de
Questionário respondido por email: 12 março de 2019 às 00:39 h.
344
Dessa forma, Iza Cunha com o conhecimento histórico, político e social, contribuiu
para a efetivação dos Direitos Humanos, organização dos movimentos sociais,
participação política partidária (como candidata e assessora parlamentar) e de gestão
(cargos comissionados, Presidência/Coordenação), além da militância na sociedade
civil, (movimentos socais, populares, organizações, associações e sindicatos). Eliana
Fonseca argumenta que: “Iza foi uma mulher de uma identidade feminina impar,
aparentemente frágil, delicada, e de uma vasta humildade, expressa a cada exemplo de
mulher forte destemida, aguerrida, sem temer, sem dar passo para trás a não ser por
31
estratégia, para dar um passo em seguida” , logo era representada por muitos, como
“uma mulher à frente do seu tempo”.
Neste sentido, além de sua memória ficar registrada em Comenda (medalha) para
homenagear perfis femininos com relevância político-social, econômica, cultural e de
gestão na sociedade paraense, Iza Cunha também foi homenageada no meio ambiente
cultural urbano tais como: Praças (Belém-Bengui), Bibliotecas (Diretório Estadual do
PT), Centro de Medidas sócio-educativas Feminina (Ananindeua), Núcleo de Assessoria
Jurídica Universitária Popular, Unidade de Educação Infantil de Belém Isa Cunha,
Cursinho Popular entre outros, configurando o registro de uma memória feminina
presente na urbes do centro e periferia de Belém e do Estado do Pará.
Em entrevista no Jusbrasil em 2010, Regina Barata afirmou que: “Isa Cunha foi uma
mulher guerreira que sofreu a insanidade da tortura que lhe arrancou gritos, lhe fez
32
expor medo, mas não tirou os sonhos” .
Portanto, a sua História e Memória devem ser preservadas como mulher amazônida
em um contexto de outrora pautado em imagens de trajetória de lutas e resistências das
mulheres proporcionando a emancipação política em um cenário público político
(SALOMÂO & VIDAL, 2009, p.29), uma militante política dos Direitos Humanos que
lutava contra a opressão, por uma justiça social vislumbrando “uma sociedade melhor e
33 34
mais igualitária” , “na defesa dos silenciados, humilhados e esquecidos” .Pois
FONSECA. Eliana. Educadora Popular, Conselheira Municipal dos Direitos Humanos, Coordenadora
do MMCC- Movimento de Mulheres Campo e Cidade e ex Ouvidora de Segurança Pública do Estado, foi
amiga pessoal de Iza Cunha atuando com a mesma na SPDDH e MMCC. Entrevista concedida no dia 06
de fevereiro de 2018 na SDDH (15 as 17 hs)..
JUS BRASIL. “Legislativo comemora Dia Internacional da Mulher”. 08/03/2010. Disponível em:
https://al-pa.jusbrasil.com.br Acesso em 14 set 2018.
GUERRA, Jureuda Duarte, Psicóloga aproximou-se de Iza Cunha a militância do PcdoB SDDH e
movimento feminista. Entrevista aplicada em questionário respondido por email em: 13 de maro as 13:24
CARVALHO Angêlo. Geógrafo e Professor. Conheceu Iza cunha nas manifestações estudantis e
sindicais. Entrevista aplicada em questionário respondido por email em: 05 de maro as 18:19h.
345
conforme a própria Iza Cunha em entrevista concedida como forma de denúncia no
Jornal Resistência sobre a sua tortura relatou que: “Apesar de tudo isso, continuo
achando o mesmo que achava: que o povo tem o direito de ter melhores condições de
vida, lutando por todas as formas ao seu alcance, inclusive contra a lei, quando ela
35
favorece apenas aos poderosos”
REFERÊNCIAS
ALVARES Luzia Miranda, “Oração por uma companheira de lutas”. Blog do Paulo
Fonteles Filho. Verdade, Memória e Justiça na Amazônia. 10 jun 2016. Disponível em:
paulofontelesfilho.blogspot.com/2016/06/luzia-miranda-alvaresassic. Acesso em: 17
mar 2019.
ARENDT Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Ro de janeiro:
Forense. Universitária, 1991.
BORGES Vavy Pacheco. Desafios da Memória e da Biografia Gabrielle Brune- Sieler,
uma Vida (1874-1940). IN: BRESCIANI Stella e NAXARA Márcia (org.) Memória e
(Res) sentimento Indagações sobre uma questão sensível. Campinas SP. Editora da
Unicamp. 2004. p.288.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Elementos para uma sociologia do campo
jurídico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 229.
BRASIL NUNCA MAIS DIGITAL. SUMARIO DO BNM 054. Ação Penal nº 16/72.
Apelação nº STM 40.188. Disponível em:
bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/100/054.html. Acesso em 10 mar 2019.
CARVALHO. Luiz Maklouf. Tortura. O Inferno de Iza Cunha. Resistência. Março de
1981. Ano IV. n. 22. Disponível em: www.fcp.pa.gov.br/2016-12-13-19-41-
20/resistencia-mensario-da-sociedade-paraense-de-defesa-dos-direitos-humanos-belem-
mitograph-v-4-n-22-mar-1981-20-p. Acesso em: 06 mar 2019.
CUT-PARÁ.“Mulheres recebem a medalha Isa Cunha na ALEPA e reivindicam
medidas para a calamitosa situação da grande maioria das mulheres no Pará”.
12/03/2014. Disponível em: https://cut.pa.org.br Acesso em 17 marc. 2019.
CARVALHO. Luiz Maklouf. Tortura. O Inferno de Iza Cunha. Resistência. Março de 1981. Ano IV. n.
Disponível em: www.fcp.pa.gov.br/2016-12-13-19-41-20/resistencia-mensario-da-sociedade-paraense-de-
defesa-dos-direitos-humanos-belem-mitograph-v-4-n-22-mar-1981-20-p. Acesso em: 06 mar 2019.
346
EDMILSON RODRIGUES DEPUTADO ESTADUAL DO POVO.” Ex Deputada
Araceli recebe medalha do Legislativo”. Disponível em:
http://www.edmilsonbritorodrigues.com.br/ex-deputada-araceli-recebe-medalha-do-
legislativo/ Acesso em: 17 marc 2019.
FERREIRA Paulo Roberto. A Censura no Pará. A mordaça a partir de 1964 9registros e
Depoimentos). Belém Pará Paka-Tatu. 2015. p. 165
347
SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias. Historiadores e Jornalistas.
Aproximações e afastamentos. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. CPDOC/FGV, n.19,
1997.,p.12.
TOLEDO, Cecília. Gênero e Classe. Org Alicia Sagra. São Paulo Sundermann,
2017.p.16.
348
Mulheres e Direito à Cidade
https://doi.org/10.29327/527231.5-23
RESUMO: Este artigo faz uma breve e ainda inicial aproximação acerca da temática
―Mulheres e Direito à Cidade‖, numa perspectiva interseccional para trabalhar vetores
de opressão que são: gênero, raça e classe. A construção dos espaços urbanos das
cidades, historicamente, obedecem uma lógica capitalista-patriarcal, de grande
segregação e invisibilidade de segmentos que constroem cotidianamente esse espaço,
que são: mulheres, na sua grande maioria negras; LBT‟s; pobres, moradoras das
áreas periféricas. Nas cidades é nítido a segregação sócioespacial desses segmentos,
estas que apresentam espaços construídos para famílias de renda alta, comandadas
por homens, cis, brancos e heteronormativos, é este perfil que direciona a contrução,
planejamento e implementação das políticas sociais. Reconhecer que a sociedade
brasileira tem uma estrutura machista, altamente racista, e lgbtqifóbica, desde a sua
formação, contribui para mudanças de comportamento, contudo é urgente que os
planos diretores das cidades, que pensar a construção de espaços públicos nessa
cidade, tenha um caráter acolhedor e inclusivo aos diferentes segmentos,
considerados pelo capital e pela grande mídia, como minoria. Uma cidade onde as
mulheres tenham voz ativa e decisiva no planejamento, desenho, produção, uso e
ocupação do espaço urbano. Onde o processo de planejamento urbano coloque as
necessidades, usos e desejos das pessoas no centro das agendas, em excluir as
mulheres e outras identidades.
SUMMARY: This article makes a brief and still initial approach on the theme ―Women
and the Right to the City‖ in an intersectional perspective to work vectors of oppression
that are: gender, race and class. The construction of urban spaces of cities, historically,
obeys a capitalist-patriarchal logic patriarchal capitalist, with great segregation and
invisibility of segments that daily build this space, which are: women, mostly black;
LBT's; poor people living in peripheral areas. In cities it is clear the socio-spatial
segregation of these segments, which present spaces built for high-income families,
run by men, cis, whites and heteronormative, is this profile that directs the construction,
planning and implementation of social policies. Recognizing that Brazilian society has a
chauvinistic, highly racist, and lgbtqphobic structure since its inception contributes to
behavioral changes, however it is urgent that the city's master plans, that think of the
construction of public spaces in that city, have a character welcoming and inclusive to
the different segments, considered by the capital and the mainstream media, as
minority. A city where women have an active and decisive voice in the planning,
design, production, use and occupation of urban space. Where the urban planning
process puts people's needs, uses and desires at the center of agendas, in excluding
women and other identities.
349
ESPAÇO URBANO E ESTADO CAPITALISTA
350
Capital e modernidade se uniram transformando o funcionamento da cidade, sua
organização e as relações sociais. A cidade capitalista concentra e consolida, nestas
circunstâncias, a divisão do trabalho e a apartação entre campo e cidade. A cidade
passa a centralizar a população, os instrumentos de produção, o capital, as
necessidades básicas, o lazer, etc. O campo passa a ser sinônimo de solidão e
isolamento.
Segundo Lefebvre (2008), a cidade é o local onde as relações de produção se
universalizam, na perspectiva da concorrência, onde se acelera a circulação de
capital.
Em ―A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra‖, Engels (2008) descreve
a precária situação vivida pela classe trabalhadora inglesa, que se aprofundou a partir
da industrialização, evidenciando os horrores vivenciados por trabalhadores e
trabalhadoras no período do capitalismo concorrencial. As condições de moradia da
classe trabalhadora inglesa eram locais totalmente insalubres que chegava a gerar
doenças nas famílias, em especial nas crianças. O autor demonstrava não somente a
escassez de habitação, mas a total falta de condições de habitabilidade, as quais
somente poderiam ser resolvidas com a superação do sistema capitalista.
1
Para Lojkine (1997), a segregação espacial , no âmbito urbano, pode ser
observada a partir da infraestrutura material disposta em cada espaço, destacando a
moradia como o elemento mais importante na configuração da segregação. Assim, em
1
Lojikine (1997) identificou três tipos de segregação: 1- uma oposição entre o centro e a periferia; 2- uma
separação cada vez mais acentuada entre as áreas ocupadas pelas moradias das classes mais populares
e aquelas ocupadas pelas classes mais privilegiadas; 3- uma separação entre as funções urbanas, que
ficam contidas em zonas destinadas a funções específicas (comercial, industrial, residencial, etc.).
351
última instância, o Estado representa os interesses do capital monopolista, mesmo que
contraditoriamente, em certos aparelhos locais, a ação estatal possa refletir os
interesses da classe dominada. Nesse sentido, Lojkine reafirma a tese defendida por
Engels (2008), segundo a qual a cidade é o espaço dos conflitos, mas igualmente da
2
política .
A cidade capitalista contemporânea é um fenômeno recente e se difere
substancialmente das outras experiências na história (LEFEBVRE, 2008). Importante
ressaltar que antes da ascensão do capitalismo como modo de produção hegemônico,
os espaços dascidades possuíam características específicas. Com o desenvolvimento
do capitalismo, do monopolismo ao sistema financeiro globalizado, a cidade também
acompanhou e passou a se reinventar sempre que necessário (LEFEBVRE, 2008).
Conforme Harvey (1980, p. 34), deve-se ―[...] considerar a cidade como um
sistema dinâmico complexo no qual a forma espacial e o processo social estão em
contínua interação‖. Logo, deve-se compreender o espaço urbano, juntamente com
sua dinâmica, bem como seu arranjo espacial, primeiramente, como resultado de um
produto social que, por conseguinte, é fruto das ações acumuladas através do tempo.
2Esses argumentos são corroborados por Maricato (2001, p. 51), quando afirma, no caso do Brasil, que:
―É impossível esperar que uma sociedade como a nossa, radicalmente desigual e autoritária, baseada em
relações de privilégio e arbitrariedade, possa produzir cidades que não tenham essas características‖.
352
A reprodução do capital passa pelos processos de urbanização em
inúmeras formas. Mas a urbanização do capital pressupõe a
capacidade do poder da classe capitalista em dominar o processo
urbano. Isto implica a dominação da classe capitalista não só sobre
aparatos estatais, mas também sobre populações inteiras - seu estilo
de vida, bem como sua força de trabalho, o seu valor cultural e
político, bem como suas concepções mentais do mundo. (HARVEY,
1980, p. 65).
Até aqui foi necessário esse apanhado histórico, ainda que resumido, sobre a
formação das cidades capitalistas, contudo vale frisar que diferentes segmentos fazem
uso desse espaço urbano, que a classe trabalhadora não é homogênea, não existe um
perfil de sujeito social, apesar da construção social nos impor essa narrativa. O uso
que as mulheres fazem do espaço urbano é bem diferente daquele que o homem faz.
Diante dessa problemática enfatiza-se a necessidade do espaço urbano ser
planejado, projetado, a partir de uma perspectiva de gênero, é inegável que o direito à
cidade não é garantido plenamente à classe trabalhadora, nos marcos da sociedade
capitalista não é possível, porém dentro desse conjunto há que se pensar em cidades
mais inclusivas às mulheres trabalhadoras, pobres e negras, visto que há uma classe,
raça e gênero que é alvo da ineficácia das políticas sociais, dentre elas o direito à
cidade.
353
sete) anos de idade, equivalendo a 51,4% da população brasileira atual. Portanto, não
é possível pensar num planejamento urbano sem levar isso em consideração.
São gritantes as desigualdades territoriais, vive-se em cidades que concentra
infraestrutura urbana e serviços públicos (de qualidade) nas áreas ocupadas por
famílias com alta renda, o espaço urbano não é neutro, é permeado por tensões
advindas dos interesses antagônicos dos diferentes atores sociais que a compõe, ou
melhor, a questão de classe é indissociável de cada experiência de vivência nas
cidades.
Uma cidade democrática, realmente inclusiva precisa ser pensada para a livre
circulação das mulheres, visto que terrenos baldios, ruas mal iluminadas, precariedade
do transporte público, ônibus que não pára em qualquer lugar para que as mulheres
desçam, por conta do horário, são limitadores para esse segmento. São cidades sem
acessibilidade, pessoas com deficiência tem também circulação bastante limitada
devido esses complicadores.
O direito à cidade deve contemplar os diversos segmentos, logo as dimensões
de gênero, raça, orientação sexual e geração atravessam a vivência que se tem do
espaço urbano, e podem somar marcadores de opressão, estes que se interligam a
segregação econômica de alguns sujeitos, a luta por cidades verdadeiramente
acolhedoras deve ser construída a partir de um olhar interseccional, é um desafio que
precisa ser encarado com urgência.
O planejamento urbano não pode mais ser construído levando em
consideração somente um perfil de: homem, branco, de renda média/alta, cis e
heterossexual. Esse é um modelo padrão de pessoa que é tido como base para a
construção de todas as políticas públicas nessa sociedade, não leva em consideração
as especificidades de segmentos que não são minoria, como é a ideia comumente
massificada, tanto pelo poder público quanto pela grande mídia. As mulheres são
3
51% da população brasileira. Há uma tendência grande a periferização e
3Segundo dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de 2018, o
número de mulheres no Brasil é superior ao de homens. A população brasileira é composta por 48,3% de
homens; e 51,7% de mulheres.
354
empurradas para as áreas periféricas, a grande maioria compõem o mercado informal
e precarizado de trabalho, bem como o mercado informal de moradia também. As
periferias se tornaram esse espaço de sobrevivência e convivência da população
negra, pobre, e lgbtqi. Mulheres de baixa renda e baixa escolaridade, mães que criam
seus filhos sem a presença do pai, segmentos com pouco acesso à educação de
qualidade, à saúde, à moradia digna. Se o objetivo é o planejamento urbano social
esses elementos precisam configurar como prioridade, incluir os até então
historicamente excluídos.
Pensar em direito à cidade é também pensar na divisão sexual do trabalho,
existe, é uma realidade. Historicamente, aos homens é atribuído o trabalho produtivo,
enquanto que o reprodutivo, ou melhor, a reprodução social, relegado quase que
exclusivamente, às mulheres. O cuidado da casa, dos idosos, o cuidado do outro,
inclusive desse homem que sai ao mercado de trabalho, que sai para vender sua força
de trabalho, só o consegue fazer em boas condições devido haver a retaguarda
imprescindível da reprodução social feminina, este que é um dos pilares de
sustentação do sistema capitalista. O espaço da rua, o espaço público é
essencialmente ocupado pelos homens, enquanto que o espaço privado, do lar,
doméstico, de corpos femininos.
O capitalismo certamente não inventou a subordinação das mulheres.
Esta existiu sob diversas formas em todas as sociedades de classe
anteriores. O capitalismo, porém, estabeleceu outros modelos,
notadamente „modernos‟, de sexismo, sustentados pelas novas
estruturas institucionais. Seu movimento fundamental foi separar a
produção de pessoas da obtenção de lucro, atribuir o primeiro trabalho
às mulheres e subordiná-lo ao segundo. Com esse golpe, o capitalismo
reinventou a opressão das mulheres e, ao mesmo tempo, virou o mundo
de cabeça para baixo. A perversidade se torna nítida quando
relembramos o quanto o trabalho de produção de pessoas é, na
verdade, vital e complexo. Essa atividade não apenas cria e mantém a
vida no sentido biológico, ela também cria e mantém nossa capacidade
de trabalhar – ou o que Marx chamou de „força de trabalho‟ (ARRUZZA,
BHATTACHARYA, FRASER, 2019, 51-52). .
4A partir da aprovação da Lei 13.718/18 a importunação sexual é crime. Tem crescido as ocorrências
de assédio sexual dentro do transporte público.
355
mesma em algum espaço público. A última pesquisa do 13° anuário brasileiro de
segurança pública mostrou que em 2018 foram 66.041 vítimas de estupro. Dessas
50,9% são mulheres negras. 81,8% das vítimas são mulheres. A maioria desses
crimes é cometido contra meninas de 10 a 13 anos. Em 96,3% dos casos o estuprador
homem. 75,9% do agressor é conhecido da vítima. O Brasil atingiu o nefasto recorde
de estupro em 2018. Apesar do alto índice ainda são dados imprecisos, devido a
subnotificação dos crimes. Já uma pesquisa mais recente realizada pelo Instituto
Patrícia Galvão em junho de 2019, revelou que 97% das mulheres entrevistadas já
sofreram assédio sexual dentro do transporte público.
Portanto, um dos serviços essenciais para a garantia do direito das mulheres à
cidade, que também permite sua circulação pelo espaço e acesso a outros serviços, é
o transporte público. Como visualizado nas pesquisas existentes (como acima), este
também é o local em que um número considerável de mulheres já ouviu e já relatou ter
sofrido algum tipo de violência. Na pesquisa Chega de Fiufiu, realizada no ano de
2014 pela ONG Think Olga, 64% das mulheres relataram ter sofrido algum assédio no
transporte público. Dados que complementam essa pesquisa aparecem em um
levantamento feito pela Agência É nois – Inteligência Jovem, em parceria com os
institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, mostram que o espaço público é visto,
pela maior parte das entrevistadas, como um local em que não há segurança ou
respeito: 94% delas já foram assediadas verbalmente e 77%, fisicamente, como a
―encoxada‖ no transporte público ou o beijo forçado e a passada de mão em casas
noturnas. Os números, a triste realidade vivenciada pelas mulheres nos transportes
públicos, revelam que este serviço (como toda a estrutura da sociedade) não é
pensada na perspectiva de gênero o que resulta em maiores dificuldades de circulação
dessas, quando comparadas aos homens, e em restrições no acesso à cidade como
um todo.
No Estado do Pará, segundo dados da Divisão Especializada no Atendimento à
5
Mulher (DEAM) , neste ano de 2019 foram registradas 123 ocorrências de crimes de
importunação sexual no transporte público, sabe-se que a realidade é de casos
subnotificados, portanto possivelmente este índice é maior.
Tendo como referência a mobilidade das mulheres, é urgente que as políticas
públicas sejam elaboradas, implementadas e avaliadas, levando em consideração a
questão de gênero. Já existem iniciativas nesse sentido em algumas cidades, como:
Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e Distrito Federal, com o vagão rosa; e também
Dados colhidos do Jornal Amazônia do dia 20 de abril de 2019. A Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa
Social (SEGUP), consideram o período entre os meses de janeiro a março de 2019.
356
a chamada Lei da Parada Segura, que já foi implementada em São Paulo, Caruaru
e Porto Alegre.
Para além das políticas imediatistas, porém valorosas, do ponto de vista da
questão da segurança contra assédios às mulheres em transportes públicos, deve-se
pensar propostas de implementação de políticas públicas mais educativas, no sentido
de campanhas que promovam formação de consciência, de tentativa de mudança da
estrutura social e cultural misógina, que disseminem informação para a construção de
medidas efetivas pelo fim dos assédios e violências sexuais contra as mulheres.
Propagandas informativas, cartilhas, cartazes, livros didáticos para educação básica,
fundamental e média que perpassam a temática, curta-metragens informativos, enfim,
diversas medidas podem ser pensadas para formação de uma nova consciência social
que promova, efetivamente, o rompimento com o machismo.
Bem, a vivência que se tem da cidade varia de acordo com a classe social,
gênero, orientação sexual e raça. É fato que uma mulher branca, cis, heterossexual,
da classe alta, tem uma percepção diferente de uma mulher negra e pobre, se for LBT,
os marcadores de opressão somam numa escalada de muita violência e segregação.
O planejamento urbano precisa ser construído nessa perspectiva, as cidades são
territórios racistas, misóginos, lgbtqifóbicos, mas precisam ser diferentes, daí a luta
dos movimentos sociais, daí a necessidade de discutir direito à cidade de forma
interseccional, e da urgência de ter cidades inclusivas, democráticas, para as pessoas,
e não para os aglomerados empresariais.
As periferias se apresentam, portanto, como uma faceta não tão oculta dos
significados e significações do que é em si a propriedade privada no Brasil, distante da
sua função social, agregando apenas aos interesses dos proprietários.
Sendo assim é urgente compreender que a experiência das mulheres das
ocupações e das mulheres periféricas de uma forma geral é atravessada pelas
categorias: gênero, classe e raça. Fazendo com que vários sistemas de opressão se
cruzem afetando diretamente as suas vidas (SAFFIOTI, 2013).
Para que as cidades sejam acessadas especialmente, pelas mulheres,
democraticamente, é necessário e urgente que se deixe de conceber, planejar e
executar a infraestrutura e os serviços urbanos a partir de um ponto de vista único ou,
ainda, a partir de um discurso tecnicista que defende uma suposta neutralidade ao
olhar para a totalidade da população e, dessa forma, nega a multiplicidade de
experiências e necessidades de diferentes grupos no cotidiano das cidades. São
muitos os desafios experimentados pelas mulheres nos espaços públicos e no acesso
aos serviços; não à toa, é a minoria em posições de poder e espaços de tomada de
decisão. Contudo, como coloca Maricato (2001, p. 120) ―embora essa assertiva seja
357
central, não podemos tomá-la de forma absoluta, porque pode levar profissionais
dessa política a uma paralisia e falta de perspectiva de ação coletiva‖.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVINO, Ítalo. Cidades Invisíveis. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HARVEY, David. Justiça social e a cidade. São Paulo: Editora Hucitec, 1980.
HARVEY, David. Paris Capital da Modernidade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
358
AT 3 - Gênero, Comunicação, Arte e Literatura
Coordenação
359
MARIAS DA CASTANHA (1987): PRODUÇÃO AUDIOVISUAL AMAZÔNIDA E
FEMININA NOS ANOS 80
https://doi.org/10.29327/527231.5-24
RESUMO: Marias da Castanha (Edna Castro e Simone Raskin, 1987) aborda a vida de mulheres
operárias em uma fábrica de castanha do Pará, na periferia de Belém. É aqui considerada uma
produção audiovisual pioneira: além de ser o primeiro filme escrito e dirigido por uma mulher no
Pará, seu enfoque nas perspectivas socioculturais das vivências das mulheres inova ao
apresentar seu cotidiano fora de espaços fabris. Essa perspectiva relaciona-se muito com a
historiografia vigente no período, que começa a trazer à tona questões antes marginalizadas.
Castro e Raskin, ao realizarem Marias da Castanha, pensam o feminino dentro do trabalho fabril,
constroem representações das vivências de mulheres amazônidas através de relações de
trabalho, relacionamentos amorosos e sociabilidades apresentadas no documentário. De início,
se discute a utilização do cinema documentário como fonte e objeto histórico, assim como
métodos utilizados para tal, tomando como pertinente a questão da decolonialidade. Em seguida,
o documentário em si é explorado, contextualizando o sujeito mulher no cinema, assim como o
cinema amazônico, para depois discutir sua produção, recepção e impacto nacional e
internacional. Depois, discute-se a necessidade de entender o cinema periférico partindo de uma
perspectiva transcultural. Por fim, apresenta-se a análise de elementos que integram a narrativa
do média-metragem.
Palavras-chave: mulheres, cinema, Amazônia, documentário, audiovisual
ABSTRACT: Marias da Castanha (Edna Castro and Simone Raskin, 1987) addresses the
lives of women workers in a Pará nut factory in the periphery of Belém. It‟s here considered a
pioneering audiovisual production: besides being the first film written and directed by a
woman in Pará, its focus on the sociocultural perspectives of women's experiences innovates
by presenting their daily life outside of factory spaces. This perspective is very much related
to the historiography of the period, which begins to raise issues that were previously
marginalized. Castro and Raskin, by doing Marias da Castanha, are approaching the
feminine within the factory work, building representations of the experiences of Amazonian
women through work, relationships and sociabilities presented in the documentary. At first,
the use of documentary cinema as a source and historical object is discussed, as well as the
methods used to do so, taking decoloniality as pertinent. Then, the documentary itself is
explored, contextualizing the woman in the cinema, as well as the Amazonian cinema, to
then discuss its production, reception and national and international impact. Then we discuss
the need to understand peripheral cinema from a transcultural perspective. Finally, we
present the analysis of elements that integrate the narrative of the medium-lenght film.
Key-words: woman, cinema, Amazon, documentary, audiovisual
360
Imagens de uma fábrica vazia. Uma melodia suave, contrastando com ruídos da
fábrica em pleno funcionamento. Transição tênue do teto da fábrica para o topo de árvores,
seguido pelo canto de pássaros. Um homem caminha pela floresta colhendo frutos da
castanha. Em seguida, imagens do rio, acompanhadas de uma música melancólica. Tem
início o depoimento de uma mulher, até então sem nome... é assim que se inicia Marias da
Castanha (Edna Castro e Simone Raskin, 1987), documentário cujo seguinte artigo se
debruça. De início, se discute a utilização do cinema documentário como fonte e objeto
histórico, assim como métodos utilizados para tal, tomando como pertinente a questão da
decolonialidade. Em seguida, o documentário em si é explorado, contextualizando o sujeito
mulher no cinema, assim como o cinema amazônico, para depois discutir sua produção,
recepção e impacto nacional e internacional. Depois, discute-se a necessidade de entender
o cinema periférico partindo de uma perspectiva transcultural. Por fim, apresenta-se a
análise de elementos que integram a narrativa do média-metragem.
A relação entre cinema e história vai muito além de sua utilização como recurso
pedagógico, se entendermos o audiovisual como agente direto na ―construção de
1
identidades e lugares sociais‖ , pois ele constrói representações sociais, ricas para uma
historiografia cultural e análise social. Diante dessas representações, é possível pensar as
intencionalidades que as permeiam, consagrando o cinema como uma construção diante
dos interesses que movem sua produção. Portanto, enxergar essas produções audiovisuais
como fontes e objetos históricos é pensá-las como fruto de intencionalidades e discursos.
2
Marcos Napolitano traça duas principais vertentes em que os materiais audiovisuais
3
costumam ser encaixados pelas pesquisas históricas: subjetivista e objetivista . A primeira
corresponde a pesquisas que dão total atenção ao aspecto subjetivo da fonte, principalmente
aquelas de autoria assumidamente artística, como músicas, tomando seus significados como
fruto de especulação. A segunda denota à fonte um ―efeito de realidade‖, as colocando como
testemunho direto. Os filmes documentários estão muito ligados a essa segunda perspectiva,
pois costumam ser lidos como fidedignos ao acontecido, desconsiderando suas subjetividades e
construções. Para Napolitano, ambas perspectivas são prejudiciais para realizar uma análise
histórica, pois falham em perceber os mecanismos de representação presentes nessas fontes. A
observação desses mecanismos deve se dar através da observação de seus códigos internos e
contextos externos. Dessa forma, o foco da análise
Segundo Rodrigo de Almeida Ferreira, ao estabelecer relações entre cinema, história e memória
coletiva, a cultura audiovisual possui um importante papel na compreensão da história e na
construção de identidades. FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema-Memória: reflexões sobre a
memória coletiva e o saber histórico. O Olho da História, n.º 11, 2008, p. 3.
NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes históricas. Editora
Contexto, 2006.
Ibidem, p. 236.
361
deve pautar o entendimento das linguagens adotadas pelo material para realizar
adaptações, omissões e outras estratégias para a construção de um discurso.
4
AMÉRICO, Guilherme de Almeida; VILLELA, Lucas Braga Rangel. O Cinema na perspectiva da
História Social: uma reflexão teórico-metodológica. IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem.
Londrina, 2013.
Ibidem, p. 1354.
PENAFRIA, Manuela. Análise de filmes - conceitos e metodologia(s). In: VI Congresso Sopcom, 2009.
Ibidem, p. 7.
O conceito trata ―do que Stam e Shoah chamam de „hollywodcentrismo‟ (2014), que não se refere
apenas ao domínio do cinema comercial estadunidense, mas sim de sua estética impositiva. As
diversas culturas são apenas incorporadas neste cinema pelo meio do ―ventriloquismo‖, que autoriza
a voz dos subalternos apenas pelo veículo e falas dominantes (Spivak, 2014).‖ SANTOS, Paula
Cristina Menezes; SANTOS, Clarissa Tagliari. Cinema e sociologia: crítica e descolonização da
imagem. Perspectiva Sociológica: A Revista de Professores de Sociologia, n. 18, p. 3-12, 2016. p.6.
362
em seus berços. Se o objetivo é a crítica ao eurocentrismo nesses estudos, é preciso
entender que o modo de analisar sujeitos que estão à margem desse processo hegemônico,
não precisa – ou não deve – ser apontado por sujeitos hegemônicos. Suas discussões
embora pertinentes, devem ser postas em combinação com pensamentos e críticas de
estudiosos que quebram com a falsa noção de objetividade presente nas teorias pautadas
pelo domínio europeu, produto da colonialidade. Esses saberes precisam ser reestruturados,
se quisermos subverter a hierarquia que condiciona os estudos das ciências humanas a
9
uma colonialidade do saber , vinculando-os aos parâmetros dos centros mundiais e
363
11
e integrante do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPa) . Sua pesquisa de
doutorado, realizada entre 1979 a 1983 na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais
(EHESS), em Paris, foi base para o desenvolvimento do roteiro do média-metragem com Simone
Raskin, cineasta que também partilha a direção. Castro afirma que o filme busca ―retratar, na
cidade, os bairros onde as trabalhadoras moram, e as lutas urbanas que travam [...]. A vida das
operárias na fábrica e a briga por um lugar no bairro, no Jurunas, cidade que se fez pela
12
ocupação. São mulheres que lutam pela terra, para ter a casa onde morar.‖ .
Marias da Castanha é aqui considerada uma produção audiovisual pioneira: além de ser
o primeiro filme realizado e dirigido por uma mulher no Pará, seu enfoque nas perspectivas
socioculturais das vivências das mulheres inova ao apresentar seu cotidiano fora de espaços
fabris. Essa perspectiva relaciona-se muito com a historiografia vigente no período, que começa
13 14
a trazer à tona questões antes marginalizadas . A chamada ―nova história‖ , no seu interesse
pela experiência das pessoas comuns, caracteriza uma aproximação com a antropologia social e
colabora na renovação das questões socioculturais. Castro e Raskin, ao realizarem Marias da
Castanha, pensam o feminino dentro do trabalho fabril, constroem representações das vivências
de mulheres amazônidas através de relações de trabalho, relacionamentos amorosos e
sociabilidades apresentadas no documentário, um dos pioneiros a trazer para a cena paraense
as questões do que se chamava a época, condição feminina. Ocorre, a partir da década de 70, a
15
emergência de trabalhos que tratam dessa ―condição‖, a exemplo dos trabalhos de Castro e
―Do cabaré ao lar‖, onde Margareth Rago analisa o movimento operário brasileiro, dando ênfase
16
à participação feminina.
Dentre os trabalhos de Castro, existe uma ênfase nos estudos urbanos, trabalho, populações
tradicionais, meio ambiente e divisão sexual do trabalho. Pode-se citar as obras Territórios em
Transformação na Amazônia (2017), Cidades na floresta (2014), Atores sociais, trabalho e dinâmicas
territoriais (2007) e o artigo Del Castañal a la fábrica: división sexual del trabajo y persistencia de patrones
tecnológicos en Brasil (1995).
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e terra, p. 1890-193, 1985.
364
O documentário utiliza depoimentos de mulheres operárias e imagens do seu dia-a-
dia em suas casas, no espaço fabril e em momentos de sociabilidade para construir a
narrativa da vida de uma ―Maria da castanha‖. O objetivo desse artigo não é fazer uma
análise fílmica em sua totalidade técnica, mas consagrar-se como uma tentativa de abordar
uma história social do cinema amazônico, intercruzando dados externos com representações
construídas no documentário. Para tal, é necessário tratar brevemente da conjuntura que o
permeia, do cinema amazônico e do cinema realizado por mulheres.
19
No contexto regional, Keyla Negrão discute como a representação do feminino no
audiovisual paraense começa a ganhar novas características a partir dos anos 80, citando
Marias da Castanha como exemplo de produção que desloca os sentidos do feminino,
pautada nesses apelos coletivos. Pedro Veriano, pesquisador que se debruçou na trajetória
20
do cinema paraense, cita em sua obra Cinema no Tucupi o filme de Castro e Raskin
como uma das produções audiovisuais importantes na década de 80 no Pará.
Marias da Castanha reivindica uma identidade social: mulher ribeirinha que vem para a
cidade e trabalha em uma fábrica de castanha. Um ―tipo sociológico‖ de Bernardet, a totalização
desse sujeito, indicado pelo seu título. Como aponta Negrão, o filme de Castro apresenta a
transição de sentido de identidades femininas: ilustra suas vivências, discute seus
365
processos de migração e desenvolvimento, não mais através do olhar masculino (male
21
gaze ). Dessa forma, materializa a tematização das preocupações da época.
Em 1992, Edna Castro produz e dirige um filme sobre o Projeto Grande Carajás, que
destina uma área de 900 mil km no Norte para extração mineral. O documentário aborda o
cotidiano dos moradores atingidos por esse projeto, demonstrando o crescimento acelerado
da região e os problemas enfrentados. O média metragem foi exibido em diversos festivais
nacionais e conquistou o prêmio de Melhor fotografia no Festival de Brasília.
Dados da Ancine apontam que dos 142 longas-metragens brasileiros exibidos nos
cinemas em 2016, 75,4% dos diretores são homens brancos, 19,7%, mulheres brancas, 2,1%
homens negros e mulheres negras não dirigiram nenhuma dessas produções, apontando para o
fato de que mulheres negras estão evidentemente mais subjugadas do que as brancas nessa
área de produção. Mulheres indígenas cineastas, como Patrícia Ferreira (Para Reté, 2015),
22
tampouco possuem visibilidade no mercado. Segundo Marina Sartório Faria , desde Cleo de
Verberena até os anos 60, estão registradas nove mulheres como diretoras no país. Segundo a
autora, o surgimento de mulheres atuando nesse campo está vinculado ao período
Male gaze ou olhar predador masculino, em tradução livre, é um conceito desenvolvido por Laura Mulvey, ao
analisar o prazer visual oferecido pelo cinema através da psicanálise. Segundo Mulvey, o cinema dominante ou
hollywoodiano é determinado pelo olhar masculino, com mulheres sendo representadas de forma fetichizada e
condicionadas a exibição, para satisfação do olhar predador. Dessa forma, o prazer visual se divide entre
ativo/masculino e passivo/feminino. Ler mais em: MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER,
Ismail (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.
FARIA, Marina Sartório. A participação feminina na direção do cinema documentário brasileiro
(dissertação). Universidade Federal da Bahia, 2013, p. 55.
366
de eclosão no cinema nacional nas décadas de 70 e 80. Nesse segundo momento se
alcança vinte e quatro produções encabeçadas por mulheres.
Marias da Castanha (1987) surge nesse contexto: emergência de filmes que buscam
captar experiências de pessoas comuns. Ele percorre uma trajetória em premiações
internacionais e dentro do espaço acadêmico, muito por ter sido fruto de uma pesquisa de
doutorado, mas também por ter apoio de órgãos de fomento, por trazer características
regionais da formação de bairros da cidade de Belém e da ―identidade amazônica‖. Contou
com a produção da Cinematográfica Superfilmes e apoio do C.R.A.V.A., ligado a Empresa
Brasileira de Filmes (Embrafilme). A produtora paulista Cinematográfica Superfilmes foi
23
fundada em 1983 e segundo o acervo da produtora, Marias da Castanha fora seu sétimo
filme, o segundo dirigido por Simone Raskin, e primeiro em 16mm. Seu foco é viabilizar
produções independentes. Outro órgão importante para a gravação do média-metragem foi
24
o Centro de Recursos Audiovisuais da Amazônia (C.R.A.V.A.). Segundo Silva , ele surge
367
N‟O Liberal, em balanço da produção cinematográfica de 1987, afirma-se que o destaque
28
regional foi para um ―vídeo feito para ilustrar tese de mestrado [sic]‖ . O termo ―vídeo‖ é
Marias da Castanha obteve certo prestígio regional, nacional e internacional, mesmo fora
dos circuitos comerciais. Muitos dos lugares em que fora exibido estão vinculados a projetos
acadêmicos, restritos a quem está dentro desse círculo social. Nesse caso, pesa a dificuldade
em encontrar fontes que atestem a sua exibição em outros contextos. Em 1990, ocorre a
realização do ―UFPa vai à praça‖, realizado na Praça da República com o objetivo de levar
produções acadêmicas para contato direto com a população. Dentro do projeto, ocorre
28
O Liberal, 1 de janeiro de 1988. Caderno D, p. 1.
Dedicado a documentários, nesse ano o festival selecionou três filmes latino-americanos. O Liberal,
26 de julho de 1989. Caderno dois, p. 5. A seleção também foi noticiada pelo Jornal do Comércio
(AM) sob o título de ―Latino-americanos em alta‖ (Jornal do Comércio, 15 de março de 1988, p. 21) e
pelo carioca Tribunal da Imprensa (Tribunal da Imprensa, 17 de março de 1988, p. 6).
Como a Mostra Paranaense do Filme Antropológico em Curitiba (Correio de Notícias, 21/22 de
novembro de 1987, p. 14); III Rio-Cine Festival, no Rio de Janeiro (Tribunal da Imprensa, 8/9 de agosto de
1987), cineclube em Brasília (Correio Braziliense, 27 de janeiro de 1988, p. 26) e em festivais em Brasília e
São Luís, além do Festival Internacional de Curtas de São Paulo (2001) – festival que se distancia décadas
do período de lançamento do filme, atestando sua relevância ao longo dos anos.
Diário do Pará, 25 de setembro de 1987. Caderno D, p. 8.
Tal festival possuía imensa importância na divulgação e discussão de diretrizes para o
desenvolvimento do cinema nacional, tornando-se internacional nos anos 80. É na II Jornada em
1973 que surge a Associação Brasileira dos Documentaristas (ABD). MELO, Izabel de Fátima Cruz.
Jornada Internacional de Cinema da Bahia: espaço de reflexão e resistência (1972-1975). O olho da
história: revista de história contemporânea. Salvador. Copyright–2004. pg, v. 8, 2004.
33
Diário do Pará, 1 de março de 1988, Caderno D, p. 6; Diário do Pará, 30 de junho de 1988; Diário
do Pará, 2 de março de 1988, Caderno D, p. 5.
368
34
a exibição do documentário no Teatro Waldemar Henrique. Este é um dos exemplos de
eventos que visa contato da produção com pessoas que estão fora do circuito universitário.
existe uma dinâmica social própria que envolve vida, trabalho, cultura, modos
singulares de existir e de se relacionar com o mundo e com o meio em que se
vive, independentemente daquilo que é engendrado pelos interesses dos
chamados ―centros‖. É em nome do ―desenvolvimento econômico‖ dos ―centros‖
que as periferias – fronteiras – são drasticamente impactadas.
O conceito de cinema de fronteira é próximo ao cinema periférico: a noção de refletir a
realidade da vivência desses povos que estão à margem dos centros de desenvolvimento, ou
seja, em regiões periféricas e fronteiriças, com o objetivo de construir uma memória, além de
35
chamar a atenção para a existência de uma dinâmica social independente. Andrea França
historiciza o conceito de cinema periférico: compartilhar o conceito nos dias de hoje consagraria
o discurso que ―vê nesse cinema a expressão geográfica de territorialidades miseráveis e à
margem da ordem capitalista global, a expressão da própria situação coletiva de atraso e
opressão, situação essa que forneceria a base histórica para a construção (potencial) de uma
arte política‖, o que reduz o cinema a enunciados sócio históricos, quando deveria pensar a
cultura como misturas e hibridismos, e não como territórios cristalizados: ou seja, numa
perspectiva transcultural, diante da atual integração da produção midiática.
369
36
Assim, busca-se entender essa produção através do conceito de transculturalismo .
O prefixo trans, que significa ―para além de‖, remonta à necessidade de ir além do conceito
tradicional de cultura, enxergando-a diante de seus fluxos transformacionais, hibridismos e
diversidades. Diante disso, as referências de estudos pós-coloniais e decoloniais auxiliam
tanto na prática como na análise crítica das narrativas imagéticas e audiovisuais, para
37
entender de que maneira o chamado ―cinema periférico‖ se relaciona com essa narrativa.
nesse sentido que se historiciza o conceito de cinema de fronteira, reconhecendo a
importância de eventos como o FIA-CINEFRONT, cuja protagonista é a produção audiovisual
periférica, mas compreendendo a urgência de pensá-lo para além das ―fronteiras‖ culturais e em
formas, segundo França, ―translocais‖ de pertencimento. Ao conceituar a obra de Castro como
cinema de fronteira, o evento dá visibilidade ao cinema com as características supracitadas (que
apresenta a vivência de lugares de fronteira/periferia cujas dinâmicas ocorrem
―independentemente‖ do centro). Porém, é necessário pensá-lo para além desse conceito, visto
que a produção é tangenciada por influências, por exemplo, europeias, diante da sua pesquisa
realizada na França e escolhas estéticas, que partem de centros culturais como São Paulo –
local de origem da diretora Simone Raskin e da produtora do filme. Numa perspectiva decolonial,
vemos a produção periférica para além de ―fronteiras culturais‖ e os diversos atravessamentos
entre as dinâmicas, que sim, são singulares, mas não isoladas.
38
Um ―poema documental‖: é assim que Negrão descreve o filme, consolidando a
modificação de representação feminina a partir dos anos 70 e 80: ―a estética mudou, a
dramaticidade estava dada pelo rosto delas e não mais mediadas por lembranças de
39
homens‖ . O documentário não faz uso de voice-over (narração sobre); apenas as vozes das
mulheres, dando seus depoimentos de vida. A escolha desse recurso tem como consequência a
impressão de realidade nos relatos e conversas entre elas, de forma com que a voz dessas
mulheres parece guiar a narrativa. No entanto, é preciso lembrar que um filme possui um roteiro
base, e é posteriormente montado na fase de pós-produção. Dos depoimentos foram
WELSCH, Wolfgang. Transculturality: The puzzling form of cultures today. Spaces of culture: City, nation,
world, p. 194-213, 1999.
―Nos anos 1960, falava-se em „cinema periférico‟ quando se queria levar em conta a experiência histórica do
país de origem, quando se pretendia ver em certos filmes uma contrapartida estética e política para o impasse do
subdesenvolvimento no Terceiro Mundo, perceber na linguagem do homem oprimido a imagem do "colonizado"
[...]. O cinema periférico, ou o Terceiro Cinema (Solanas 1995), remetia a uma geografia específica, a uma
situação econômica de atraso e opressão que constituía a base sobre a qual nasceria uma arte política
comprometida e transformadora.‖ In: FRANÇA, Andrea.
Cinema de terra e fronteiras. In: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema
mundial. Papirus Editora, 2015, p. 395.
NEGRÃO, Keyla. Depois do super-homem, a mulher maravilha? Produção de sentidos de identidades
femininas no cinema paraense. In: OLIVEIRA, Relivaldo Pinho de (Org). Cinema na Amazônia: textos sobre
exibição, produção e filmes. Belém: UFPA/CNPq, 2004. Disponível em: <
https://cinematecaparaense.wordpress.com/fontes/cinema-na-amazonia/>. p. 87.
Ibidem.
370
cortadas informações como que perguntas foram realizadas a elas para que fizessem os
relatos, ou se as conversas entre elas foram espontâneas ou não. Fica evidente que a
espontaneidade fora um elemento objetivado, de forma que a voz do documentário fosse
consagrada como a voz dessas mulheres.
Nos primeiros minutos, a trajetória das próprias castanhas se confunde com as das
mulheres: estão sendo transportados para o outro lado do rio. A atmosfera inicial – o idílico
das matas amazônicas, ao som de pássaros e pequenas embarcações, o embalo dos rios –
oposta ao que se verá mais a frente, dentro das fábricas. O relato da ―primeira Maria‖ tem
início. Não sabemos o seu nome, pois não é informado, assim como o das outras que virão
a falar. Vinda do interior (também não informa de onde, ou nada que a individualize) conta
que resolveu vir sozinha – pois o marido a abandonou – com os filhos para Belém. O relato
conecta a história que está prestes a ser contada com a vinda de outras ribeirinhas para a
cidade: muitas em busca de melhores condições de vida, embora tivessem medo e
saudade, como citado por ela. A vinda para Belém foi ―parece um sonho‖:
―Eu já tô aqui há dezesseis anos. Meus filhos já estão todos grandes. As meninas
já têm marido, umas. Outras tão solteiras, tão comigo. Depois elas ficaram moças,
estão trabalhando em fábrica, quatro filhas, trabalhando em fábrica de castanha.
Na safra da castanha. E eu tomo conta dos filhos, dos netos. É a minha safra
também.‖ (Marias da castanha, 1987)
Essa fala se relaciona com uma das principais problemáticas mostradas no
documentário: a dupla jornada. Além do trabalho nas fábricas de castanha, muitas possuem
filhos, cuja criação correntemente depende apenas delas. Tanto na imagem quanto no áudio,
constante a presença infantil: são veiculadas imagens de crianças no colo das
mulheres ou brincando, e ouvimos suas vozes ao fundo dos depoimentos.
Embora também usem termos como ―ocupação‖ e ―posse‖, são encontradas notícias que falam da ―situação de
invasão em que se encontra a área da Radional‖ (Diário do Pará, 31/05/85); ―área de invasão conhecida como Radional
II‖ (O Liberal, 11/10/89). Relatado por Manoel Ribeiro, morador da área, na notícia de O Liberal de 27 de novembro de
1989: ―Antes da invasão essa área já era conhecida como Radional. „Era chamada assim por causa das antenas da
Rádio Clube, que ficavam bem próximas a esse terreno‟, recordou Manoel.‖
371
seus afazeres domésticos, durante o trabalho fabril. A intenção é naturalizar os eventos
registrados pela câmera, o que decorre no documentário visto como ―a descrição do
cotidiano dessas mulheres‖, como aparece nos jornais. É recorrente a utilização de termos
como luta, vencer, e ganhar ao falarem sobre o processo de ocupação das terras. Dessa
forma, apesar de utilizarem o termo ―invasão‖, ao assistirmos a conversa supostamente
casual entre essas mulheres através do olhar de Castro e Raskin, é presente nas Marias a
consciência da luta que por elas foi empregada para a conquista dessa terra.
Há uma incerteza sobre a época em que as ocupações da área têm início, mas é
sabido que a luta corria durante as gravações do documentário e posteriormente ao
lançamento. Jornais relatam como moradores e moradoras lutam para conseguir o título de
posse assistência devida ao bairro, de infraestrutura precária ou inexistente. Enquanto o
41
Diário do Pará menciona que essa luta urbana começa em meados de 1985 (embora
apresente notícias a respeito em 84), O Liberal cita que os conflitos têm início em 71 e o
processo de ocupação se inicia antes, já que nesse ano a área está saturada. Em 1986, ano
em que são realizadas as filmagens, eles a conquista dos primeiros títulos de posse. Esses
conflitos também aparecem em Marias da Castanha (1987) no discurso não verbal através
de imagens refletem as condições de vida das operárias: moram em barracos de madeira,
sem saneamento básico e com salários precários. Queixas a respeito desse último
aparecem quando questionam o valor recebido pelos serviços. As mulheres encarregadas
de quebrar a castanha recebem por peso, sendo necessário obter 18 caixas de castanha por
semana para conseguir um salário mínimo.
42
Jane Felipe Beltrão , que realiza excelente pesquisa sobre a relação entre trabalho e
―A luta no Jurunas começou em meados de 1985 quando os moradores pressionaram o governo para libertar
a ―Radional II‖, que até então, tinha como proprietária a Polícia Militar do Estado, sem que nenhuma benfeitoria
fosse feita, encontrando-se portanto, completamente ociosa.‖ (Diário do Pará, 25/05/1987).
BELTRÃO, Jane Felipe. Mulheres da castanha: um estudo sobre o trabalho e o corpo (dissertação).
Trabalhadoras do Brasil. Brasília: Universidade de Brasília, 1979.
372
afirmar que é a falta de pagamento devido é o maior desgosto de trabalhar na fábrica. Anita
43
Eleonora Fonteles de Lima caracteriza esse processo como ―mais valia absoluta‖.
Para além das entrevistas, o documentário também utiliza recursos visuais e da edição
para passar mensagens. Um exemplo é uma montagem de cenas das operárias nas fábricas,
executando seu serviços com as castanhas é serviços de casa como cozinhar, lavar e passar
roupas, lavar louças, costurar, junto com imagens das crianças. Essa transição fábrica/trabalho
doméstico denuncia a dupla jornada de trabalho a que essas mulheres estão sujeitas. Outro
exemplo é o trabalho masculino nas fábricas, que não é citado, mas aparece na narrativa visual
de forma bem distinta da maneira da figura feminina: carregando pesos, lidando com pesado
maquinário, transportando castanhas em carrinhos de mão. É nítida a separação entre o trabalho
masculino e feminino dentro do espaço fabril. Beltrão afirma que o trabalho masculino não é com
44
as castanhas, mas um trabalho de ―carregá peso‖ . Os homens estão em setores como o
Outro recurso visual utilizado é o close-up (plano próximo) nos rostos, mãos, pés, nos
seus colos com crianças e em elementos das casas, como televisões, móveis e fotografias
antigas, trazendo a sensação de intimidade e detalhe: ao aproximar-se da mulher, conseguimos
ver sua pele escura, as manchas de suor em suas costas; ao aproximar-se dos seus rostos, é
possível ver seus traços indígenas e negros, suas marcas de expressão. Ao aproximar-se dos
elementos de suas casas, são apresentadas as condições de vida dessas mulheres de baixa
renda, apontando dimensões de suas ―identidades‖.
43
LIMA, Anita Eleonora Fonteles de. As operárias da castanha e a construção do seu cotidiano
em Belém (monografia). Belém: Universidade Federal do Pará, 1990.
44
BELTRÃO, Jane Felipe. Mulheres da castanha: um estudo sobre o trabalho e o corpo (dissertação).
Trabalhadoras do Brasil. Brasília: Universidade de Brasília, 1979. p. 22.
373
45
que elas desenvolvem . Nas palavras de Beltrão, ―falar do trabalho na castanha é falar das
condições de trabalho que implicam em longas jornadas, acidentes, doenças, etc. Enfim, da
46 47
destruição do próprio corpo.‖ Outro depoimento recorrente é o da maternidade solo ou
monoparentalidade. Uma das Marias relata que ―80% das mulheres são sozinhas e com
muitos filhos‖, ou seja, inteiramente responsáveis pela criação e sustento das crianças –
dificultado pela ausência de uma creche fabril, que ―por lei, devia ter‖. Uma delas atribui a si
o papel da maternidade e da paternidade: ―[...] eu sou pai e sou mãe dos meus filhos‖. Esses
relatos desembocam na vida dessas mulheres para além do trabalho fabril. As Marias
começam a falar de suas sociabilidades e liberdades:
―[...] e é melhor a gente morar sozinha. A gente sai, eu saio, chego a hora que eu
quero [...], se eu quiser chegar no outro dia eu chego, não dou minha satisfação da
minha vida a ninguém. Agora eu sou muito diferente, muito mesmo, do que eu era
antes quando eu vivia com meu marido. Eu não sou mais aquela pessoa que eu
era, sou de confiança, sou uma pessoa forte mesmo, eu saio, eu aproveito a
minha liberdade que Deus me deu.‖ (Marias da Castanha, 1987)
Elas discorrem sobre os aspectos positivos em ser chefe de seu lar: poder sair,
dançar, beber, arrumar namorado... e esses momentos são representados. O lazer e a
diversão aparecem como elemento da identidade da ―Maria da Castanha‖: quando elas
estão se arrumando para sair, dançando e flertando em uma festa estão dizendo, através do
olhar de Castro e Raskin, que apesar dos duros labores nas fábricas e dentro de suas
casas, aqui estamos, e podemos nos divertir. O retorno ao trabalho é simbolizado pelas
Marias saindo de seus lares ao amanhecer, uniformizadas, se dirigindo à fábrica. Não há
mais depoimentos orais, apenas suas imagens. O silêncio das Marias dá espaço para o
retorno a rotina fabril. O ruído de uma sirene encerra o filme. Nas partes finais, chamam a
atenção dois elementos: embora não tenham sido nomeadas individualmente ao longo de
seus depoimentos, são creditadas como participações 14 mulheres, grande parte com o
nome Maria. É importante lembrar que cerca de 50 mulheres foram entrevistadas,
implicando que a construção final do documentário contou com imagens e depoimentos de
14 dessas. O segundo elemento é a colocação final:
Aleijamento, reumatismo, sinusite, problemas de visão, varizes, perda de unhas, dor nos rins, fígado, bexiga, útero,
falta de ar, cegueira e ―doidice da cabeça/leseira‖. In: Idem, pp. 42-43.
Idem, p. 22.
O termo maternidade solo surge em contraponto a ―mãe solteira‖, desvinculando maternidade ao estado civil.
No entanto, existe uma série de termos que podem ser utilizados, sendo uma discussão ainda presente. Angela
Marin e Cesar Augusto Piccinini discutem a questão da família uniparental através do uso da expressão ―mãe
solteira‖ na literatura: ―Na antropologia, os estudos de Fonseca
(1997, 2002) se destacam ao examinar a questão da maternidade solitária. A autora rejeita o termo
mãe solteira por esse carregar conotações de julgamento moral que seriam de pouca relevância [...].‖
MARÍN, Angela; PICCININI, Cesar Augusto. Famílias uniparentais: a mãe solteira na literatura. Psico,
40, n. 4, p. 12, 2009. p. 426.
374
primeira vez que as operárias e os operários da castanha entram em greve e
reivindicam melhores condições de trabalho. (Marias da Castanha, 1987)
locomover-se a pé da Terra Firme, onde residia, para a fábrica. Ao mesmo tempo em que
culpabiliza a paralisação dos motoristas pela morte, atribui à fábrica Jorge Mutran Exp. Ltda. o
comportamento adequado, evidenciando que a firma se dispôs a ajudar, paralisou os trabalhos e
se responsabilizou pelos gastos funerários, discurso que vai diretamente contra o do
documentário. A respeito desse impasse, entra uma notícia posterior, também do Diário do Pará,
de 7 abril de 1987, que aponta uma denúncia proferida por testemunhas do caso ao gerente da
fábrica, que teria se negado a prestar socorro à vítima e disponibilizado um revólver para
49
ameaçar às funcionárias que se indignaram com a situação e reivindicavam ajuda .
Maria Justina dos Santos falece sem amparo de seus patrões, mas com o apoio
incondicional de suas companheiras, ameaçadas de morte ao exigir o mínimo de dignidade à
sua colega de trabalho. A veiculação da notícia no jornal indica que as mulheres foram a frente
com a denúncia, abrindo um inquérito policial. O reconhecimento do Estado é importante pois
atesta o acontecimento de maus tratos sofridos pelas operárias no espaço fabril, para além das
explorações cotidianas relatadas. O documentário também afirma que as operárias e operários
se unem após a fatalidade para realizar, pela primeira vez, uma paralisação de suas atividades.
As informações veiculadas no documentário e no jornal, embora não levem a nenhum
apontamento direito de uma melhoria nas condições de trabalho dessas operárias, implicam a
50
agência direta no contexto em que se encontram. Lima que sim, houve vitórias da paralisação,
que durou 4 dias e garantiu às operárias uma pequena porcentagem referente aos subprodutos
51
da castanha, as podres e os pedaços, que antes nada recebiam .
Desde se levantar contra ameaça de morte com uma arma até as suas sociabilidades
representadas no documentário, beber e dançar nos períodos de folga, além de cuidar dos filhos
e da casa sozinhas: as Marias da Castanha se apresentam – ou são apresentadas a
375
nós por Castro e Raskin – por meio das nuances do dia-a-dia, mas estão envoltas em uma
complexidade muito mais ampla de agência do que o sistema estrutural em que estão imersas.
376
52
produção . Jorane Castro, filha de Edna Castro, lançou o longa-metragem ―Para ter onde ir‖ em
2018. Simone Bastos, paraense radicada em Florianópolis, estreou seu curta ―Epílogo‖ na Short
Film Corner (Canto de Curta Metragem), mostra paralela ao Festival de Cannes. Entre os
desafios enfrentados por mulheres que trilham esse caminho, o caminho é mais árduo para ―o
53
outro do outro‖ : a mulher negra. O curta ―É coisa de preta‖ (2017) da paraense Joyce Cursino
reivindica a presença de realizadoras negras, discutindo os desafios atravessados pela mulher
54
negra no audiovisual . Mulheres indígenas, mulheres que estão fora do circuito dos grandes
centos, que não participam da circulação de capital, também são grupos que estão atravessados
por várias problemáticas ao adentrar na produção audiovisual.
das produções das ciências humanas, sociais e da produção audiovisual começam a ser
repensadas e aos poucos colhem-se os frutos dessas renovação. Evidentemente, a
resistência feminina não tem início a partir de suas representações nas telas, ela vem de
longa data, encontrando formas de persistência diante das estruturas machistas, racistas e
classistas impostas pela colonização e colonialidade, como atestado pela (r)existência das
mulheres em situações de exploração nos ambientes fabris. A força de manter-se de pé foi,
e talvez ainda seja atribuída à sua ―condição‖ feminina. Para reverter essa ordem, é preciso
ir mais a fundo.
FONTES UTILIZADAS
Como o I Workshop de Realização Cinematográfica Paraense (1999), que contou com oficinas que resultam no curta
Shot da Bôta (Flávia Alfinito, 1999) e o prêmio Estímulo para Produção de Curta-Metragem, realizado pela Fundação
Cultural do Município de Belém (Fumbel) que premiou três roteiros, como o Quero ser anjo (Marta Nassar, 2000)
(PARANHOS, Alna Luana Mendes; ALVES, Moema de Bacelar. A produção paraense de curtas e a prática de ensino.
XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. Fortaleza, 2009, p. 3). Em âmbito nacional destaca-se o Concurso de
Curta-Metragem realizado pelo Ministério da Cultura, que premiou dois selecionados da região Norte, sendo um destes
Jorane Castro por Mulheres choradeiras (2000).
―Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o ―outro‖ do homem branco, pois
são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem
possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres
negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o
―outro‖ do outro.‖ KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of Everyday
Racism. p.124.
O curta foi premiado no Festival paraense Osga de vídeos universitários, além de participar das Mostra de
Cinema Negro (ÉGBE) em Pernambuco e a Mostra Lugar de Mulher é no Cinema, da Bahia. Em: Mulheres
diretoras começam a vencer barreiras no machista mundo do cinema. O Liberal,
de março de 2019.
Ibidem.
377
Correio Braziliense (1988); Correio de Notícias (1987); Diário do Pará (1986); (1987); (1988);
(1989); (1990); Jornal do Comércio (1988); O Liberal (1988); (1989); Tribunal da Imprensa
(1987); (1988)
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA
378
UMA RELEITURA DO CONTO ACAUÃ À LUZ DOS ESTUDOS SOBRE
GÊNERO SOB A PERSPECTIVA DO FEMININO
1
Joyce Cristina Farias de Amorim (Unama)
https://doi.org/10.29327/527231.5-25 2
José Guilherme de Oliveira Castro (Unama)
Resumo
O presente artigo se propôs a realizar uma análise, à luz da concepção de gênero, do conto Acauã,
do livro Contos Amazônicos (1893), do escritor Inglês de Souza. O intuito foi observar como se dá
e/ou se constrói a representação do feminino na narrativa de Inglês de Sousa. A análise se baseia na
observação do dito e do não dito sobre as personagens femininas ao longo da tecitura literária, sob o
olhar do contemporâneo e da ideia sobre dominação masculina que, segundo Bordieu, está de tal
maneira ancorada no inconsciente das pessoas. A presente análise se construiu e se constituiu com
base em pressupostos teóricos que pudessem contribuir com o diálogo proposto entre o conto e a
atualidade, como Bordieu (2012), Hall (2006), Bauman (2005), Butler (2003), Borrillo (2010), Spivak
(2010), Beauvoir (1970), analisando as figuras femininas do conto sob a égide atual da relação tempo
e espaço, a sexualidade e as identidades femininas, subalternidade e empoderamento, entre outros
aspectos. O objetivo também foi propor uma discussão sobre como o feminino é representando, de
acordo com as principais referências sobre a temática, tendo como objeto de estudo a narrativa
literária do final século XIX, sem deixar de ressaltar a importância do conjunto da obra de Inglês de
Sousa no âmbito literário brasileiro de expressão amazônica.
Abstract
The present study aims to analyze the Acaua narrative, in the perspective of gender studies, the
narrative is on Contos Amazonicos book (1893) by Ingles de Souza writer. The intention was to
observe like how was constructed the feminine representation in the literary narrative by Inglês de
Sousa. The analysis is based in the observation it was said and it wasn't said about feminine
characters over the literary narrative, from a temporary perspective and conception about male
domination by Bordieu, because as he says this impregnated in people‟s mind. The present anslysis
was constructed and was constituted with base in the theoretical assumptions can talk between the
fictional narrative and the present time, like Bordieu (2012), Hall (2006), Bauman (2005), Butler
(2003), Borrillo (2010), Spivak (2010), Beauvoir (1970), analysing the female figure under the auspice
of relation time and space, sexuality and the feminine identities, subalterrnity etc. The aim, too, was
propose a discussion about how the feminine is represented in the narrative by Ingles de Sousa in the
end of century XIX, without ignoring the importance of the collection of work by Ingles de Sousa in the
ambit brazilian literature of amazon expression.
1 INTRODUÇÃO
Ao longo da história é possível observar o papel e o lugar da mulher sendo
invisibilizados e/ou subalternizados nos mais diversos (não) registros, e na Literatura não foi
muito diferente. Seja na condição de autora, seja na condição de personagem. Dessa forma,
a presente análise se constrói e se constitui a partir desses pressupostos, tomando como
objeto de estudo o conto Acauã do escritor Amazônico, Inglês de Sousa. Enfatizando que a
intenção não foi explorar o contexto regional e imaginário amazônico, porém sem
1
Mestra em Comunicação, linguagens e cultura. Discente de Doutorado do PPGCLC (2019) – Unama.
Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Diversidade e Inclusão – GEPIDI e do Grupo de Pesquisa
Interfaces do Texto Amazônico - GITA. E-mail: joyce.crisamorim@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/4653194728338812
2
Orientador. Docente vinculado ao PPGCLC – Unama. Doutor em Teoria Literária.
379
desconsiderá-lo, mas propor reflexões para um patamar mais amplo de discussão, com
base nos pressupostos teóricos utilizados como referência para a construção deste artigo.
As diferentes representações do feminino na literatura brasileira revelam, em termos
de linhas gerais, uma face da história de opressão e subalternização das mulheres a partir
do conservadorismo sócio-histórico na cultura das relações de gênero. Por isso a relevância
da discussão.
Geralmente, a produção literária de autoria feminina apresentam características
muito próximas e/ou próprias da literatura de testemunho. Escritoras narram, na maioria das
vezes suas próprias histórias de vida, de maneira real e/ou fictícia. Elas, as vozes femininas,
narram, dão testemunho, sobre dores, sofrimentos, traumas. Muita das vezes, exercem o
papel de narradora de si, em outras dão vozes a personagens. Em relação a isso, nota-se
que ―os estudos acerca do testemunho na literatura têm crescido consideravelmente
(SALGUEIRO, 2012, p.291). E
381
Ao pensar e discutir sobre as questões que envolvem o que é ser mulher ao longo
do tempo, e perceber pensamentos/comportamentos que se propõem como ruptura contra a
dominação masculina, logo surge um dos nomes mais representativos dessa mudança de
pensamento, o de Simone de Beauvoir. Ela foi considerada uma das maiores teóricas do
feminismo moderno, autora de frases que marcariam o seu nome na história, e a faria
necessariamente presente nas discussões sobre os estudos de gênero, em especial com a
frase ―ninguém nasce mulher, torna-se‖. E para esta discussão, os pressupostos de
Beauvoir (1970) e de Butler (2003) se fazem importantes.
No livro de Butler (2003), Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade, que se divide em três capítulos, a escritora discorre sobre uma genealogia crítica
das categorias de gênero em campos discursivos muito distintos. E inspirada nos discursos
de Beauvoir (1970), Kristeva, Irigaray, Foucault e Witting, Butler (2003) fala o quão é
melindrosa a questão de tentar definir uma identidade do ser mulher e/ou do ser feminino,
pois depende de muitas outras questões, como o contexto histórico, político, ideológico,
entre outros. Uma definição num determinado contexto, não necessariamente caberá em
outros, mas é possível presumir uma identidade:
O que sugere que ser feminino e o ser mulher, não necessariamente, carregam o
mesmo sentido.
Beauvoir (1970), em seu livro, O segundo sexo: fatos e mitos, inicia uma intensa e
reflexiva indagação sobre o que é ser mulher, proporcionando as mais sugestivas e diversas
compreensões e olhares, sejam do ponto de vista biológico e/ou social, os sentidos
imbricam-se e se (con)fundem. A compreensão se dá pelos questionamentos e pelas
possibilidades, não pela exatidão de respostas, se é que é possível, assim, defini-la.
Que é uma mulher? „Tota mulier in utero: é uma matriz‟, diz alguém.
Entretanto, falando de certas mulheres, os conhecedores declaram: „Não
são mulheres‟. Embora tenham um útero como as outras. [...] Todo ser
humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher [...]
(BEAUVOIR, 1970, p.7).
382
que eles ocupam na humanidade, mas se for uma mulher, sim. Se do ponto de vista da
autoria, não resta dúvida de que é isso que ocorre, e do ponto de vista em que o autor e/ou
narrador de uma narrativa literária fala sobre a figura/personagem feminina, como ele a
descreve? Qual a representação feminina aos moldes do olhar masculino? Embora,
previsível, as respostas são as mais sugestivas possíveis, e geralmente são permeadas por
um olhar misógino, e é por esse viés de discussão que se envereda esta analise.
A ideia que se tem neste artigo, não é propor respostas, mas reforçar os
questionamentos, as reflexões já propostas por grandes teóricos, e talvez com a força
destas indagações fragilizar, dirimir, desconstruir e reconstruir o discurso hegemônico e
romper com o pensamento da dominação masculina/patriarcal ainda resistente e
insistentemente instituída.
Outro nome importante é o de Bordieu (2012) que em seu livro A Dominação
Masculina, disserta sobre a necessidade de se pensar no trabalho histórico de des-
historicização
Realmente, é claro que o eterno, na história, não pode ser senão produto de
um trabalho histórico de eternização. O que significa que, escapar
totalmente do essencialismo, o importante não é negar as constantes e as
invariáveis, que fazem parte, incontestavelmente, da realidade histórica: é
preciso reconstruir a história do trabalho histórico de des-historização, ou, se
assim preferirem, a história da (re)criação continuada das estruturas
objetivas e subjetivas da dominação masculina, que se realiza
permanentemente, desde que existem homens e mulheres, e através da
qual a ordem masculina se vê continuamente reproduzida através dos
tempos (BORDIEU, 2012, p. 100-101).
O teórico que discute sobre violência simbólica, não descarta o quão emblemático é
esse processo
383
mulher, e necessariamente a heterossexualidade foram construído e instituído social e
historicamente, e aceitos como padrão, como natural, como normal, e que tudo que foge
disso é entendido como não aceitável. O que sugere ser necessário se fazer uma
(re)construção social, histórica, de conceitos, entre outros. Mas Bordieu (2012) aponta uma
pequena luz no fim do túnel, não como saída, mas como possibilidade para iluminar o
caminho das discussões, afirmando que
384
lutas correm o risco de redobrar os efeitos de uma outra forma de
universalismo fictício, favorecendo prioritariamente saídas das mesmas
áreas do espaço social que os homens que ocupam atualmente as posições
dominantes (BORDIEU, 2012, p.139).
Essa é uma questão tênue dentro do movimento feminista, discutida também por
Butler (2003).
A questão do ser mulher/ser feminino perpassa por diversas discussões que
envolvem também discussões sobre identidade, o que culmina sutilmente para o campo da
indissociabilidade.
Identidade é um tema de interesse das mais diversas áreas do conhecimento, o que
reforça seu caráter polissêmico. Difícil até mesmo defini-la ou delimitá-la. Por isso, este
envereda pelas concepções de Bauman (2005) e Hall (2006) que asseguram que o conceito
de identidade é demasiadamente complexo, mas imprescindível para a compreensão do ser,
do sujeito, do ponto de vista de suas subjetividades e coletividades.
Bauman (2012, p.44) diz que ―a atenção intensa que hoje se dá ao tema da
identidade é em si mesma um fato cultural de grande importância‖, e isso é que também
sustenta a importância desta pesquisa no campo da literatura e do social. E como o intuito é
propor reflexões e observar os processos de construção do feminino, tais considerações se
fazem importante. O objetivo é oferecer uma pesquisa contínua, mostrando possibilidades
diferentes de reflexão.
Não há identidade una, singular, e muito menos estática. Pelo contrário, é múltipla e
efêmera. E isso ajuda a entender de certo modo a complexidade que gira em torno da
definição do ser feminino e/ou do ser mulher.
385
Aninha, embora um sofrimento visível, descrito pelo narrador, ela permanece em silêncio, e
o seu silêncio também fala. E a ideia que se tem sobre o testemunho da superstes é que
este leva o fatual ao nível da sobrevivência (BRITO JUNIOR, 2013, p. 63).
Não se trata de uma história real, mas uma narrativa tecida por fios míticos que se
realizam no imaginário amazônico. E inclusive
[...] é por conta da imaginação que muitas acusações são feitas contra o
testemunho. Ou seja, antes de se criticar a literatura (com seu evidente
compromisso com a imaginação), a própria narrativa testemunhal, que se
quer „primeira‟, atestação, fonte original da realidade, mesmo esta narrativa
descartada por muitos historiadores, como não sendo fonte fidedigna para
o historiador (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 71).
3.1 O feminino em Acauã: um olhar sobre as personagens para além das fronteiras
literárias de expressão amazônica
Hegemonicamente, ao longo da história a mulher foi/é considerada como sendo
inferior ao homem, seja do ponto de vista do social, político e até mesmo estético. Em
termos gerais, foi subjugada, silenciada, excluída, estereotipada. Mas, atualmente, observa -
se que em diversos campos, a mulher tem conseguido se firmar, adentrando em espaços
em que durante muito tempo lhe fora negado.
Na literatura é notório que muitas obras de autoria feminina vêm ganhando mais e
novos espaços e conceitos, e as que foram excluídas no passado, passaram a ganhar
(maior) visibilidade e reconhecimento, mesmo que tardiamente. O presente estudo procura
mostrar aqui a figura feminina, necessariamente a representação do feminino, não enquanto
386
autoria, mas enquanto personagens, e sob a visão masculina, levando a discussão a partir
de um determinado contexto literário, atravessando as experiências das vozes, dos olhares
e da vida de quem produz este trabalho, levando para um nível de reflexão nos/dos dias
atuais.
Este artigo toma como objeto de análise a narrativa Acauã do livro Contos
Amazônicos (1893), cuja narrativa se dá no entrelace de dois campos distintos, o do real e o
do imaginário cotidiano da vida amazônica, ou seja, trata-se da vida de ribeirinhos
amazônidas movida/permeada por lendas e mitos que movem o seu cotidiano, suas
crenças, seus valores e, também suas relações sociais. A Amazônia que não é singular,
mas pluri merece um foco maior e mais significativo, tanto quanto a sua importância nas/das
mais diferentes áreas de estudos. Até porque há outras formas de conceber, de ver, de
definir a Amazônia, e por isso a lógica de entender não só uma Amazônia, mas várias.
Segundo Loureiro (2002)
387
Segundo, a filósofa francesa, Simone de Beauvoir ―não se nasce mulher, torna-se mulher‖, o
gênero é simplesmente um processo de construção (BUTLER, 2003, p. 26).
Em relação ao conto Acauã, a trama gira em torno de um homem viúvo, Jerônimo,
que mora com sua filha legítima, Aninha, e que encontra um bebê, Vitória, num certo dia e
num contexto enigmático, e a adota como filha. A história se desenrola num contexto típico
do imaginário amazônico, numa comunidade ribeirinha, permeada por mistérios
surpreendentes. Mas a análise se ancora, principalmente, nas entrelinhas dos
comportamentos e das atitudes das personagens Aninha e Vitória, e na relação com o pai,
Jerônimo.
Havia entre Aninha e Vitória uma relação enigmática/misteriosa que causa
estranhamento e sugere as mais diferentes impressões e entendimentos. Conforme pode
ser notado na fala do narrador
As personagens que foram criadas como irmãs, ao longo da narrativa, pela voz do
narrador, aparentam ter uma relação algumas vezes conflituosa, outras vezes amistosa. Em
algumas situações se observa características de subalternidade, de Aninha em relação à
Vitória. O que sugere um comportamento misógino desta última. Há de certa forma,
também, uma implícita e sugestiva possibilidade de uma relação amorosa entre elas. E
considerando o contexto histórico da obra, é possível sugerir explicitamente que tal relação
pudesse suscitar polêmica à época, pois possivelmente, seria mais aceitável entender a
relação somente pelo sentido mítico, explicável e justificável pela lenda do pássaro Acauã,
do que uma relação homoafetiva. Algo semelhante a uma situação de gravidez indesejada,
cuja responsabilidade é atribuída ao boto, outro símbolo mítico, e tal aceitação seja visto
como natural pelo imaginário amazônico. No caso, da homossexualidade, esta seria menos
aceitável (ou de forma alguma) que a gravidez de um amante e/ou na adolescência, por
exemplo. Isso, considerando o pensamento patriarcal que se instaurou social e
historicamente.
Trazer esta discussão para o atual contexto se faz necessário dizer que, é ainda
lidar com fortes preconceitos. O que Bordieu (2012) alerta para se pensar a (re)construção
do pensamento, do ponto de vista social e histórico, em torno da questão de gênero e de
suas práticas/orientações sexuais. Conforme Borrillo (2010, p. 30), ―a homofobia é
388
inconcebível sem que seja levada em consideração a ordem sexual a partir da qual são
organizadas as relações sociais entre os sexos e as sexualidades‖. Pois, ―à origem da
justificativa social dos papeis atribuídos ao homem e à mulher, esta se encontra na
naturalização da diferença entre dois sexos‖ (BORRILLO, 2010, p.30), ou seja, a dita ordem
natural dos sexos é o que determina uma ordem social em que o feminino deve ser
complementar a do masculino, inclusive pela lógica da subordinação, tanto psicológica,
quanto cultural. E ainda segundo, Borrillo (2010, p.30) ― [...] a dominação masculina
identifica-se com essa forma específica de violência simbólica que se exerce, de maneira
sutil e invisível‖, até porque tal violência é apresentada pelo dominador e natural, inevitável e
necessariamente aceita pelo dominado. De acordo com o escritor, sobre a definição de
sexismo, este carateriza-se, precisamente, por uma constante objetificação da mulher, bem
como acrescenta P. Bordieu (1998, p.73 apud BORRILLO, 2010, p.30):
[As mulheres] existem, em primeiro lugar, pelo e para o olhar dos outros, ou
seja, enquanto objetos acolhedores, atraentes e disponíveis. Espera-se que
elas sejam ―femininas‖, ou seja, sorridentes, simpáticas, atenciosas,
submissas, discretas, reservadas e, até mesmo, invisíveis. E a pretensa
―feminilidade‖ não passa, na maior parte das vezes, de uma forma de
complacência em relação às expectativas masculinas, reais ou supostas,
particularmente em matéria de ampliação do ego. Por conseguinte, a
relação de dependência para com os outros (e não só dos homens) tende a
tornar-se constitutivo de seu ser (BORRILLO, 2010, p. 30).
No que diz respeito à condição subalterna de Aninha, esta condição é percebida pelo
comportamento de medo e de subserviência em relação à Vitória e, também em algumas
situações, em relação ao pai, e isso é bastante claro na fala do narrador que diz que ―nas
relações de todos os dias, a voz da filha da casa era mal segura e trêmula; a de Vitória,
áspera e dura. Aninha, ao pé de Vitória, parecia uma escrava junto da senhora‖ (SOUSA,
2005).
Em seu livro Pode o subalterno falar?, Spivak (2010) tem como uma de suas
preocupações centrais a de desafiar os discursos hegemônicos e também as crenças dos
(seus) próprios leitores e produtores de saber e conhecimento (pesquisadores, como os que
vos fala). E ao concluir a sua interrogativa inicial, a teórica se refere ao fato de a fala do
subalterno e do colonizado ser sempre intermediada pela voz do outro. Como ocorre na
narrativa Acauã, Vitória era a„dona‟ das vontades de Aninha. Decidia por ela.
A obra de Spivak (2010) é uma referência não apenas para os estudos pós-coloniais,
mas também para os estudos culturais e para a crítica feminista, principalmente ao indagar
as formas de repressão dos sujeitos subalternos, interrogando, até mesmo, a própria
cumplicidade dos intelectuais contemporâneos, nessa questão. É comum encontrar
cumplicidade de condições subalternas de personagens femininas em diferentes narrativas
389
literárias. Spivak (2010, p.85-86) confirma que „a questão da „mulher‟ parece ser a mais
problemática nesse contexto e que se faz necessário ―acolher também toda recuperação de
informação em áreas silenciadas‖.
Nos seus escritos, Spivak (2010) discorre no seu último tópico sob a égide da crítica
feminista, propondo questionamentos de cunho reflexivo em torno do discurso dos suicídios
sancionados e a natureza dos rituais para os mortos. Seus estudos giram em torno desses e
de outros diversos questionamentos, e deixa claro que não trás respostas objetivas, mas
nos propõe discussões outras.
Embora sob uma égide diferente à discutida e exemplificada nos escritos de Spivak
(2010), no conto Acauã, a personagem Aninha no dia do seu casamento passa por uma
espécie de ritual de transformação. Não fora uma escolha de Aninha. Sugere sacrifício. E,
assim, ao ver Vitória
Embora seja uma referência clara sobre a lenda do Acauã, uma cuidadosa (re)leitura
pode (re)abrir outras discussões, além das que aqui se fazem. E também perceber, de certa
forma, nas duas personagens, exemplos de duas representações distintas do ser feminino,
do ser mulher. Se por um lado Aninha representa a imagem frágil, vulnerável, suscetível,
submissa, entre outros estereótipos já instituídos historicamente à imagem da mulher, por
outro lado Vitória é a representação da própria luta feminista, a força, o vigor, a
390
independência, e embora a personagem pareça representar uma mudança do
comportamento e do pensamento feminino e reforçar a ideia de ressignificação nas relações
de gênero, percebe-se que o preconceito e os estereótipos também se ressignificaram, no
sentido de que ao passo que Vitória representa um ser feminino, porém o seu vigor e a sua
força é comparada a atributos que, hipoteticamente, apenas homens podem ter, e isso faz
dela uma aberração, a serem observadas no trecho a seguir
Vitória era alta e magra, de compleição forte, com músculos de aço. A tez
era morena, quase escura, as sobrancelhas negras e arqueadas; o queixo
fino e pontudo, as narinas dilatadas, os olhos negros, rasgados, de um
brilho estranho. Apesar da incontestável formosura, tinha alguma coisa de
masculino nas feições e nos modos. A boca, ornada de magníficos dentes,
tinha um sorriso de gelo. Fitava com arrogância os homens até obrigá-los a
baixar os olhos (SOUSA, 2005, p.60).
391
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como fora dito, explícita e/ou implicitamente ao longo deste trabalho, a intenção não
foi apresentar respostas exatas ou verdades absolutas sobre ser feminino e/ou ser mulher,
mas suscitar novos questionamentos, outras reflexões.
Butler e Beauvoir revelam a complexidade que gira em torno da definição do gênero
feminino, que não necessariamente possa ser ou ter o mesmo sentido que ser mulher,
embora um não anule o outro, mas se entende que há situações a serem revistas,
analisadas, e que podem ou não serem substitutos entre si. Aqui foram usados, de certa
forma, como sinônimos, mas é bom lembrar de que não se trata de uma regra. Embora
preferencialmente se optara na maioria das vezes pelo termo feminino.
Há uma série de discussões feitas à questão do feminino subersivo e feitas à crítica
feminista em torno da tentativa de compreender melhor as questões de gêneros, em
especial o feminino, embora as análises e as (re) leituras de narrativas literárias, como esta,
não possibilitem respostas de caráter definitivo, elas possibilitam algo muito maior, que
todos os teóricos que embasam este artigo, (in)diretamente alertam, de que é preciso
entender o que acontece(u) para que a caminhada/luta continue e se ressignifique no
presente. As lutas feministas, segundo o próprio Bordieu, trouxeram essas questões para o
campo do politicamente discutível, e isso por si só representa um significativo avanço.
Acrescenta-se ainda que muitas vozes passaram a ser ouvidas, mas reconhece-se que há
muito a se fazer. Mas de certa forma olhar e discutir o processo de mudanças que tem
ocorrido proporciona hoje muitos outros questionamentos importantes e necessários, trazem
novas experiências e reflexões, o que mostra que questionar move, sugere continuidade, e
repostas indicam que acabou. Por isso a relevância deste estudo.
REFERÊNCIAS
BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG,
2013.
BORDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 11ª Ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
BRITO JUNIOR, Antonio Barros de. A literatura e o local da diferença: entre testemunho e
arquivo. Revista Landa, UFRGS, v. 2, n. 1, 2013.
392
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
SOUSA, Inglês de. Contos Amazônicos. São Paulo: Martin Claret, 2005.
393
VOZES NEGRAS E INDÍGENAS NA LITERATURA LATINO-AMERICANA
CONTEMPORÂNEA: UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE
https://doi.org/10.29327/527231.5-26
1
Francelina Barreto de Abreu
ABSTRACT: This article proposes to take a look at the construction of female identity in the
current conjuncture of Latin American literature. The work cuts in the female figure
represented by the black woman, in Victória Santa Cruz in the poem Me scitaron Negra, and
in the indigenous, by Eliane Potiguara in the work Half Face, Half Mask (2019). The choice of
these works was due to the character of confronting prejudice and racism as a constant mark
of resistance to silence associated with the historical context and the social factors that
contribute to the view of inferiority and exclusion to which they were subjected and facing
suffering. who spent these women reaffirming their identity. As theoretical and
methodological support for the research were chosen the authors Maldonado-Torres (2007),
Quijano (2005), Bosi (2002), Perrot (2007), which corroborate this study.
INTRODUÇÃO
Este artigo foi construído tomando como base a representação do feminino na literatura
latino-americana contemporânea. Para a análise escolhemos fazer um recorte na representação
da mulher negra e da indígena, por observar o caráter histórico de exclusão e silenciamento a
que foram e são submetidas. A representante da literatura negra é Victória Santa Cruz em seu
poema Me gritaron Negra (1960), e a indígena escolhida por sua constante luta e representação
de seu povo é, Eliane Potiguara em Metade cara, metade mascara (2019). A escolha destas
obras se deu em função da necessidade de apontarmos a relevância de estudos
contemporâneos que tenham como objeto de análise a mulher negra e a indígena.
1 Mestra em Letras Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e professora substituta no
Instituto Federal de Ciências e Tecnologia do Pará (IFPA). E-mail: francymes18@gmail.com
394
Observamos nestas narrativas uma transformação na voz discursiva, para uma breve
comparação tomamos o romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, publicado em 1890. Nesta
obra, temos a representação feminina construída pela perspectiva masculina, o que inclui
toda a carga social do período histórico representado. De acordo com Perrot (2007, p. 16),
durante muitos séculos ―as mulheres são imaginadas, representadas, em vez de serem
descritas ou contadas. Eis aí outra razão para o silêncio e a obscuridade: a dissimetria
sexual das fontes, variável e desigual‖, como ocorre nesta e em muitas outras obras.
Em contrapartida, percebemos em Me gritaron negra (SANTA CRUZ, 1960) a própria
representatividade da mulher negra que sente/vive o preconceito e passa a utilizar a poesia
como ferramenta de luta contra as violências sofridas. Da mesma forma, escolhemos Metade
Cara, metade mascara (POTIGUARA, 2019) pelas denúncias sociais apresentadas contra a
mulher indígena, não somente a esta, mas a todos os povos indígenas que permanecem até os
dias atuais vítimas da colonização. Mais de quinhentos anos passaram-se desde que se iniciou
em nosso continente esse processo e como a própria autora denuncia, permanece.
2
Nos últimos dias foi noticiado o assassinato de Paulo Guajajara , líder indígena, que
lutava pela defesa da Terra Indígena Arariboia, no Estado do Maranhão. Mais uma vítima
dos constantes crimes cometidos contra indígenas no nosso país. A escolha da obra de
Eliane Potiguara, se deu devido as fortes críticas, e denúncias que a autora tece em seu
livro, apontando o descaso do governo para com a população indígena brasileira.
Desta forma, tanto na poesia de Victória Santa Cruz como no livro de Eliane
Potiguara, percebemos uma estrita relação dos relatos com as vivências das autoras.
Potiguara saiu muito cedo de suas terras e presenciou as mais diversas formas de
dominação para com seus ―irmãos‖. Por sua vez, Victória aos cinco anos sofre pela primeira
vez racismo, sem nem mesmo compreender o significado do termo, negra.
Assim, ao analisar a poesia e o livro nos determos em tecer nossa observação sobre
o processo de construção da identidade destas mulheres negras e indígenas na América
Latina contemporânea, perpassando pelo contexto sociocultural e histórico americano.
395
Para escrever a história, são necessárias fontes, documentos,
vestígios. E isso é uma dificuldade quando se trata da história das
mulheres. Sua presença é freqüentemente apagada, seus vestígios,
desfeitos, seus arquivos, destruídos. Há um déficit, uma falta de
vestígios (PERROT, p. 20, 2007).
396
traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais.
(QUIJANO, 2005, p. 118).
397
As mulheres indígenas também vão trabalhar como operarias mal
remuneradas ou nas grandes plantações dos latifundiários, em um
sistema de cativeiro, trocando seu trabalho por latas de sardinhas e
nunca conseguindo pagar suas dívidas com o contratante. Outras
vezes, vão morar com homens sem caráter que as transformam em
objeto de cama e mesa, submetidas a agressões físicas e parindo
dezenas de filhos, para viverem, miseravelmente, nas casas de
palafitas da Amazônia, dentro e fora do Brasil, ou sobrevivem em
favelas contaminadas moral, social, política e fisicamente. Muitas
vezes, trabalham somente pelo prato miserável de comida
(POTIGUARA, 2019, p. 30).
398
preocupação era o benefício da força de trabalho. Amanei conseguiu acompanhar o crescimento
do filho na condição de ama de leite, no entanto, inúmeras escravas negras foram brutalmente
separadas de seus filhos que foram vendidos a terceiros como ―bens rentáveis‖.
Neste breve percurso, observamos a preocupação de Perrot (2007), na
construção/recuperação da história das mulheres ao longo dos séculos, o que nos permitiu
observar o tratamento recebido, os espaços e as possibilidades de representação ao longo
dos séculos. Seguindo com uma breve explanação da chegada da escravidão na América,
na qual foram vitimados e dizimados negros/as e índios/as. A situação de escravidão pelo
viés raça, demonstrou sucintamente as mais variadas situações de violência e exploração a
que estas mulheres estiveram submetidas. No tópico seguinte, adentraremos nas obras de
Victória Santa Cruz e Eliane Potiguara, para observarmos a construção histórica da
identidade destas mulheres na literatura latino-americana contemporânea.
399
com as cores locais e que escondia, sob seus pontos em relevo, o
constante matiz de nativo selvagem a quem o não índio deveria
civilizar, impondo sua cultura. (SANTOS, 2009, p. 21)
A forma como, Eliane Potiguara, constrói sua obra não a qualifica como pertencente
a um determinado gênero estudado e reconhecido por compartilhar certas características.
Ao contrário, como afirma em entrevista, sua literatura visa quebrar com as formas e
conceitos de outrora. A identidade da mulher indígena contemporânea vem sendo
apresentada desde a estrutura da narrativa.
Retomando Iracema (1991), temos uma personagem que se apaixona pelo invasor e
com ele acaba tendo um filho mestiço, o desdobramento da história termina com a morte da
personagem. Em Metade cara, metade mascara (2019), como se pode ver em Cunhantaí e
Juripiranga temos um ―casal que é separado no processo de expulsão das terras e por todos
os desdobramentos do colonialismo e neocolonialismo. (POTIGUARA, 2019, p. 23). Os
traços de luta e sofrimento pelo choque de culturas e na luta pelas terras se assemelham em
ambas as obras, o que externa personagens indígenas que lutam por seus ideais,
demonstrando uma postura de combate e não mais de silenciamento.
400
O processo de colonização e neocolonização dos povos indígenas do
Brasil os conduziu ao trabalho semiescravo [...] causou o desmatamento,
o assoreamento dos rios, a poluição ambiental e a diminuição da
biodiversidade local, entre outros estragos. As invasões trouxeram as
enfermidades, a fome, o empobrecimento compulsório da população
indígena. E mais: as dificuldades locais levaram muitas pessoas à
migração, a submissão ao trabalho semiescravo e a péssimas condições
de moradias (favelas, casas de palafitas na periferia dos centros
urbanos). (POTIGUARA, 2019, p.43, grifo nosso)
A edição de O Cortiço escolhida para esta analise não contém ano de publicação e pode ser encontrada no site da Biblioteca
Nacional.
401
Como sempre, era a primeira a erguer-se e a última a deitar-se; de
manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta, para
descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem
domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta,
imunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de
desgostos que nunca vinham à luz (AZEVEDO, p. 81).
Evidentemente, a personagem percebeu que ser negra era algo ruim, e nesse
instante, retrocedeu, se sentia rejeitada e se envergonhava por ser assim. A tentativa de
alisar os cabelos e passar maquiagem no rosto demonstram a negação de si e a tentativa de
uma aceitação social. Nas linhas seguintes do poema percebemos a mudança temporal e
com ela a compreensão da importância de ser negra, de se reconhecer como tal.
402
NEGRO
¡Y qué lindo suena!
NEGRO
¡Y qué ritmo tiene!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO
Al fin
Al fin comprendí
AL FIN
Ya no retrocedo
AL FIN
Y avanzo segura
AL FIN
Avanzo y espero
AL FIN
Y bendigo al cielo porque quiso Dios
que negro azabache fuese mi color (SANTA CRUZ, 1960).
Por fim, percebe que ser negra é motivo para se orgulhar e resistir. ―Resistência é um
conceito originalmente ético e não estético. O seu sentido mais profundo apela para a força
da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força própria a
força alheia. O cognato próximo é in/sistir; o antônimo familiar é de/sistir‖ (BOSI, 2002, p.
118). A comprovação do ato de resistir está nas linhas finais do poema quando grita como
soa lindo a palavra, negro. Externando seu orgulho, as marcas de sua ancestralidade, as
lutas históricas e a resistência que o ser negro traz consigo no sague.
A mulher negra traz como marca de sua identidade o orgulho de ser, de si. Livre das
amarras da escravidão, conquistou por meio de muita luta, de muito grito o reconhecimento
e o respeito por ser que é, negra. O preconceito e o racismo ainda persistem, são batalhas
diárias, mas que nunca mais serão razão para o silenciamento.
Considerações finais
403
As denúncias apresentadas por Potiguara (2019), assustam pelos relatos de todos os
tipos possíveis de violências narradas, e ao mesmo tempo, corroboram na tentativa de
transformarmos as políticas públicas de assistência aos povos indígenas, infelizmente,
comprovamos as afirmativas do descaso ao acompanhar os noticiários diariamente. A
própria autora é testemunha das injustiças a que são submetidas as mulheres indígenas e é
uma representante que prova ser possível transformar essa realidade por meio da voz que
grita contra as mazelas acometidas a seu povo.
Referências
ALENCAR, José de. Iracema. 24ª. edição. São Paulo: Ática, 1991.
ARMELIN, Débora. Victoria Santa Cruz, a força de uma voz afro-peruana. Disponível em:
<http://www.afreaka.com.br/notas/victoria-santa-cruz-forca-de-uma-voz-afro-peruana>.
Acesso em 08 julho de 2019.
BRAGA, Elda Firmo. Literatura, poder e contra-poder. Revista Hispanista, n. 397, 2009.
DAVIS, Angela. Mulher, Raça, e Classe. 1ª ed. Grã Bretanha: The Women’s Press, 1992.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução Ângela M. S. Côrrea. São Paulo:
Contexto, 2007.
404
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro: Grumin, 3ª ed. 2019.
STOLKE, Verena. O enigma das interseções: classe, "raça", sexo, sexualidade: a formação
dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX. Rev. Estud. Fem. [online]. 2006, vol.14,
n.1, pp.15-42.
405
MULHERES COMPOSITORAS EM BELÈM, DA BELLE ÉPOQUE ATÉ A
PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX
https://doi.org/10.29327/527231.5-27
Dione Colares de Souza (UFPA)
Marli Tereza Furtado (UFPA)
RESUMO:
ABSTRACT:
This article was developed upon doctoral research information which investigates art songs
by women composers that artistically produced in the State of Para- Brazil from the Belle
Époque period until the first half of the twentieth century. Thus, this research intends to
accomplish an inventory of these songs, as well as understand the music composed by
women in perspective of historiographical, sociological and gender studies. Moreover, it
seeks to comprehend the processes of women participation in the cultural practices of that
period. The present research is built upon primary sources (handwritten scores, concert
programs and newspapers), as well as published scores. The first results point to the
understanding of these women productions in a perspective of cultural goods consumption,
as well as social relations and institutional structures of that time.
406
INTRODUÇÃO
A pesquisa sobre a produção musical de autoria feminina, especificamente no campo
da canção lírica no Pará dentro do período proposto para este trabalho, constitui-se em
objeto de investigação acadêmica em andamento, como parte da pesquisa de tese doutoral
intitulada ―A presença da mulher na música do Pará: o texto na canção de autoria feminina
da Belle Époque até a primeira metade do século XX‖ dentro do Programa de Pós-
Graduação em Letras – PPGL / Estudos Literários, da Universidade Federal do Pará –
UFPA.
Desta feita, o presente artigo busca inventariar essas canções de autoria feminina
em dados quantitativos, bem como compreender essa produção musical no Pará, da Belle
Époque até a primeira metade do século XX, a partir de uma perspectiva historiográfica,
sociológica e de gênero, que intenciona também desvelar os processos de inserção da
mulher no âmbito das práticas culturais daquele período.
Portanto, objetiva-se discutir o presente objeto de estudo tomando por base fatores
sociais que dialogam com o grupo das autoras elencado, tecendo abordagens sobre as
ideias e os costumes do período histórico que envolve esta pesquisa, bem como sobre os
espaços por onde esses sujeitos sociais circularam.
Quanto à base teórica nos campos disciplinares da história social, estudos culturais e
musicológicos, para fins deste artigo, destacam-se, entre outros autores, Salles (1980; 2007;
2013), por pesquisar cultura e arte no Estado do Pará e Vieira (2001), por abordar o ensino
e práticas musicais no Pará;
407
diversas autoras, entre elas: Maria de Lourdes Rangel Antunes Antunes (1905-?), Simira
Bacellar (1920-?), Júlia das Neves Carvalho (1873-1969), Julia Cesarina Ribeiro Cordeiro ou
Madre Cordeiro (1867-1947), Marcelle Guamá (1892-1978) e Helena Nobre (1888-1965).
408
ESPAÇOS DE CULTURA E CIRCULAÇÃO DE CANÇÕES LÍRICAS
Para compreender o arcabouço da produção das canções de autoria feminina no
período da Belle Époque paraense até a primeira metade do século XX, as relações entre
essas representações e o contexto histórico, social e cultural amazônico, e o perfil dessas
personagens femininas enquanto autoras, torna-se imprescindível entender o ambiente
burguês social e familiar em que a mulher estava inserida, os espaços públicos em que
circulava o gênero canção, os espaços de formação e outros onde cantavam-se músicas
acompanhadas ao piano pois, convém lembrar, reporta-se aqui a uma época em que as
mulheres ―significavam um capital simbólico importante, embora a autoridade familiar se
mantivesse em mãos masculinas [...]‖ (DEL PRIORI, 2013, p.229).
As transformações sociais vividas em Belém durante a economia da borracha
tiveram efeito no processo de construção do universo musical e agiram sobre as relações
sociais, na incorporação de diferentes valores estéticos e na percepção de nossos bens
culturais. Ao observar o referido processo de assimilação de modelos estético-musicais
europeus para a cultura regional, ao referir-se ao Conservatório Carlos Gomes e ao Teatro
da Paz, Vieira (2001) afirma que
A música erudita, desenvolvida na Belém do século XIX, teve, no
conservatório, o espaço de conservação e reprodução que, por sua vez,
tomou o Teatro da Paz como lugar de exposição de seus trabalhos; ambos
espaços compuseram um universo musical erudito, dentro dos moldes
europeus (VIEIRA, 2001, p.64).
Teatro da Paz.
409
Figura 2- Programa de Recital no Teatro da Paz, 1938
410
AS CANÇÕES DE AUTORIA FEMININA NO PARÁ
Para a busca do conjunto documental de partituras de autoria feminina no Pará até a
primeira metade do século XX, recorreu-se a diferentes fontes, a destacar, o Acervo Vicente
Salles, no qual se encontrou o maior número de registros em partituras de autoria feminina.
Na biblioteca do Instituto Estadual Carlos Gomes e acervos particulares pertencentes a
familiares de artistas que viveram durante a época investigada, foram verificados também
outros registros, como é o caso do acervo documental da família da compositora e cantora
2 3
Helena Nobre , que teve seus manuscritos publicados, e de Helena Souza , que deixou
4
valioso material de partituras, recortes de jornais, escritos da própria autora para jornais e
revistas da época, cartas e outros registros de sua atuação profissional, além de fotografias
e composições.
Portanto, o estudo sobre a canção de autoria feminina até a metade do século XX
partiu do levantamento de diferentes conjuntos documentais que compreendem o corpus
principal da presente pesquisa.
Durante a investigação no Acervo Vicente Salles, encontraram-se algumas
dificuldades no que tange à precisão de informações. As obras constantes no acervo são
catalogadas como um todo, tanto de autores locais, nacionais ou estrangeiros. Identificou-se
que algumas composições estão incompletas, outras apresentam imprecisões de
informações quanto à autoria e ao gênero do autor. Além disso, algumas composições
também são atribuídas a autores sobre os quais não há referência em outras fontes
bibliográficas, tornando difícil identificar a procedência desses compositores, além de obras
de autores que não nasceram, mas que viveram ou morreram em Belém, bem como
composições com o mesmo texto foram catalogadas mais de uma vez, ora com diferente
instrumentação, ora por serem diferentes transcrições da mesma música. Algumas
imprecisões na catalogação de obras também foram observadas com relação à indicação de
instrumentação.
Diante da identificação dessas imprecisões, as obras manuscritas constantes na
catalogação do acervo Vicente Salles foram analisadas e conferidas uma a uma, para
confirmação de dados como autoria, datas, instrumentação e verificação da presença ou
não de texto.
Dentre outras particularidades observadas, encontraram-se também composições de
autoria masculina, porém com texto de autoria feminina, bem como o contrário, músicas de
autoria feminina com texto de autoria masculina. Outra situação notada nas composições
BARROS, Lilia e MAIA, Gilda. Ode a uma nobre pianista. Belém, Paka-Tatu, 2011.
Pianista, professora, compositora, a primeira mulher a ocupar a cátedra de piano no então Conservatório
Carlos Gomes, e a primeira mulher a assumir a direção desta instituição de ensino.
Acervo de Helena Souza gentilmente cedido pela família da autora, com exclusividade para esta pesquisa.
411
vocais de autoria feminina foi o idioma trabalhado, nem sempre em nossa língua vernácula,
pois também eram musicados textos escritos em latim e em francês.
Em se considerando esse contexto documental, descartou-se do levantamento
quantitativo de partituras catalogadas como sendo manuscritas no Acervo Vicente Salles as
transcrições de partituras de autores estrangeiros, as que possuem referências incompletas
(indicação de autor, título e instrumentação, compositores nacionais ou sem referência
quanto a sua naturalidade). Algumas poucas duplicatas de partituras manuscritas constantes
no Acervo Vicente Salles também foram encontradas na biblioteca do Instituto Estadual
Carlos Gomes, mas que não acrescentam em número ao contingente encontrado. A partir
desses critérios, chegou-se ao seguinte quantitativo: 587 partituras manuscritas de autoria
masculina, 104 partituras de autoria feminina, sendo 59 composições escritas para canto e
piano, ou seja, canções. Essas 59 composições/ canções para canto e piano, são o foco
desta pesquisa.
Além disso, recorreu-se a outros acervos, como dito anteriormente, pertencentes a
outras bibliotecas, tais como a do Instituto Estadual Carlos Gomes, acervos de familiares
das compositoras investigadas e de outros particulares, ampliando o número de manuscritos
5
de autoria feminina em mais 4 composições das senhoras Helena Nobre , Marcelle
6 7
Guamá e Maria de Lourdes Rangel Antunes . Desta feita, adicionam-se às encontradas no
Acervo Vicente Salles, perfazendo o total de 63 canções.
TOTAL DE CANÇÕES 63
412
Dessa forma, o quantitativo total de obras manuscritas demonstrado na tabela anterior ficará
um pouco mais reduzido.
A tabela seguinte indica o nome de todas as autoras selecionadas dentro do recorte
proposto. Acrescenta-se a este o nome de outras cinco compositoras que nasceram até a
década de 1920, mas das quais só foram encontrados registros de canções editadas, como
o caso de Zilda Bacellar, Olindina Cardoso, Antônia Rocha Castro, Dora de Abreu
Chermont e Maria de Nazaré Figueiredo. As autoras estão listadas em ordem alfabética dos
sobrenomes, com respectivas referências de local e datas de nascimento e morte, ou data
de publicação da composição, bem como o quantitativo de canções encontradas por autora.
Demonstra-se também o quantitativo de obras tanto manuscritas quanto editadas de todas
as autoras selecionadas.
Tabela 2- Compositoras e suas obras
Nº COMPOSITORAS LOCAL, DATAS E Nº DE CANÇÕES
9
OUTRAS ENCONTRADAS
10
REFERÊNCIAS MANUSCRITAS EDITADAS
1 ANTUNES, Maria de Lourdes Belém,1905 2 1
Rangel
2 BACELLAR, Simira (Semírames) Manaus,1920 11 9
Viveu em Belém de
1922 a 1938.
3 BACELLAR, Zilda Data de 0 1
nascimento não
encontrada, mas
publicou na década
de 1920
4 BELTRÃO, Anita (Ana Holanda da Belém,1896-1977 1 0
Cunha Beltrão)
6 CARDOSO, Olindina Data de 0 1
nascimento não
encontrada, mas
publicou na década
de 1920
7 CARVALHO, Júlia das Neves Belém, 1873-1969 3 1
8 CASTRO, Antonia Rocha Belém, 1881- 1937 0 1
9 CHERMONT, Dora de Abreu Belém, 1886 0 1
10 CORDEIRO, Júlia Cesarina Ribeiro Belém, 1867- 12 10
(Madre Cordeiro) Recife-PE, 1947
11
11 FIGUEIREDO, Maria de Nazaré Data de 0 1
nascimento não
encontrada, mas
413
publicou canção
em 1942.
De acordo com Vieira (2013), ―A partitura musical é o suporte gráfico de uma criação
sonora, que envolve uma infinidade de elementos e informações musicais e extramusicais,
que se relacionam a tal criação sonora, dependendo dos objetivos de cada um desses
elementos gráficos‖ (VIEIRA, 2013, p. 217).
414
Ao analisar essas produções de autoria feminina, observa-se que as composições
para piano solo e as canções para canto com acompanhamento de piano são
predominantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
415
REFERÊNCIAS
BARROS, Lilia e MAIA, Gilda. Ode a uma Nobre Pianista. Belém, Paka-Tatu, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução Maria Helena Kuhner. 5ª ed. Rio
de Janeiro: BestBolso, 2017.
DEL PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil; 10ª Ed. São Paulo: Cotexto,
2013.
VIEIRA, Lia Braga e SOUZA, Jusamara. ―Música em Belém do Pará: um estudo sobre
fontes escritas‖. IN: VIEIRA, Lia Braga; ROBATTO, Lucas e TOURINHO, Cristina (org.)
Trânsitos entre Fronteiras na Música. Belém: PPGARTES/ UFPa,2013.
416
NÃO SOMOS IRACEMA! VOZES INDÍGENAS FEMININAS: DOS
ESTEREÓTIPOS À RESISTÊNCIA
https://doi.org/10.29327/527231.5-28
Jairo da Silva e Silva
(UESC/IFPA)
ABSTRACT: This work constitutes as partial results of the research project Discourse
and Indigenous Memory Networks in the Lower Tocantins Region, developed at the
Federal Institute of Pará (IFPA/Campus Abaetetuba), whose main objective is to
investigate the discursive memory networks that signify indigenous identity from the
theoretical-methodological perspective of French Discourse Analysis; The materialities
analyzed form an archive available for the elaboration of pedagogical workshops on
various indigenous themes. Thus, during this course, she took the issue of female
indigenous voices, in particular, when compared to the representation of women in the
work Iracema (ALENCAR, 1965). Thus, we intend to present the didactic proposal We
are not Iracema, as a didactic possibility of expression of the indigenous female voice,
from the literature in interface with other areas.
Introdução
417
linguagens em cursos técnicos profissionalizantes integrados ao ensino médio, neste
artigo descrevemos os resultados parciais do citado projeto, cujo principal objetivo é
investigar as redes de memórias discursivas que significam a identidade indígena, sob
os pressupostos teórico-metodológicos da Análise do discurso de vertente francesa.
As materialidades analisadas formam um arquivo disponível para elaboração
de oficinas pedagógicas sobre variadas temáticas indígenas. Assim, durante esse
percurso, enveredou-se pelas questões das vozes indígenas femininas, em específico,
quando comparadas à representação da mulher na obra Iracema (ALENCAR, 1965).
Desta forma, pretende-se apresentar a proposta didática Não somos Iracema, como
possibilidade didática de expressão da voz feminina indígena, a partir da literatura em
interface com outras áreas.
Quanto à organização deste artigo, além desta parte introdutória, este texto é
composto por outros três momentos: primeiramente, considerações sobre a opção
teórico-metodológica, a análise do discurso de escola francesa, de acordo com
estudos propostos por Foucault (2008), Pêcheux (1990, 1997), além de contribuições
dos estudos desenvolvidos por Gregolin (2001, 2003, 2006 e 2007); em seguida,
considerações sobre significados do discurso ―ser indígena, ontem e hoje‖; na seção
seguinte, apresentamos a proposta didática a partir das materialidades coletadas
durante a execução do projeto; e, nas considerações finais, apresentamos as
principais constatações, ponderações e perspectivas.
418
transdisciplinar, convocando uma teoria linguística, histórica e sobre o sujeito, onde
questiona a ―ciência piloto‖ por meio da crítica ao ―corte saussuriano‖ que operou a
separação entre langue e parole e levou à eleição da primeira como objeto de estudos
da Linguística. Portanto, a AD fundada por Pêcheux foi pensada ―como uma „negação‟
e uma „superação‟ do gesto separador de Saussure‖ (GREGOLIN, 2003, p.23).
Pêcheux não propôs uma nova linguística, mas uma maneira de compreender
a linguagem não mais fixada na língua, descontextualizada do social. Os nomes
fundamentais para sua base e influência são: Althusser com a releitura das teses
marxistas; Foucault com a noção de formação discursiva, da qual derivam vários
outros conceitos (interdiscurso, memória discursiva, práticas discursivas); Lacan e sua
leitura das teses de Freud sobre o inconsciente, com a formulação de que ele é
estruturado por uma linguagem; Bakhtin e o fundamento dialógico da linguagem, que
leva a AD a tratar da heterogeneidade constitutiva do discurso (GREGOLIN, 2003, p.
25).
Ao recorrer a estas regiões de conhecimento científico, a AD apresenta a
linguagem como não transparente, pois a relação língua-discurso-ideologia garante
sua materialidade, por isso é necessário pensar a questão da produção de sentidos e
seus efeitos, o que implica afirmar que estes são históricos e sociais (teoria marxista),
realizados por sujeitos (teoria freudiana) e realizáveis através da materialidade da
linguagem (teoria saussuriana).
Compreendemos a AD, portanto, como um campo de estudo que oferece
―ferramentas conceituais para a análise dos acontecimentos discursivos, na medida
em que toma como objeto de estudos a produção de efeitos de sentido, realizada por
sujeitos sociais, que usam a materialidade da linguagem e estão inseridos na história‖
(GREGOLIN, 2007, p. 13). Optamos trilhar por este percurso, por entender que nos
permite a compreensão da produção de sentidos (e seus efeitos) dos discursos que
permeiam nosso cotidiano sobre o que significa ser indígena, e, principalmente,
apreender como determinados discursos acontecem historicamente e produzem
efeitos na sociedade.
A fim de atender aos objetivos propostos neste capítulo, como fundamentos do
nosso gesto de análise, operamos as noções de interdiscurso e formação discursiva
segundo Foucault (2008), Pêcheux (1990, 1997), além de contribuições dos estudos
desenvolvidos por Gregolin (2001, 2003, 2006 e 2007).
Interdiscurso
419
por meio dele que se estabelece uma relação do discurso com outros múltiplos
discursos, pois ainda que inconsciente, ou esquecido, o sujeito utiliza já-ditos, os quais
recebem novos significados e vão possibilitar o dizer. Ao discutir a relação entre o
discurso e o já-dito, Pêcheux (1990) postula que os processos discursivos se
constituem a partir de algo dito anteriormente, em outro lugar, proveniente de outros
enunciadores.
O interdiscurso ―designa o espaço discursivo e ideológico no qual se
desenvolvem as formações discursivas em função de relações de dominação,
subordinação, contradição‖ (GREGOLIN, 2001, p. 18), ou seja, disponibiliza dizeres
que afetam a produção de sentido e seus efeitos em determinada situação discursiva.
―O objeto da teoria do discurso deve ser essa interdiscursividade, as redes de
memórias que produzem os sentidos em um momento histórico‖ (GREGOLIN, 2006b,
p. 32).
Segundo Possenti (2005, p. 365), o conceito de interdiscurso está
fundamentalmente relacionado ao conceito de memória discursiva:
420
O dizer não significa apenas pelo que se tem a dizer, mas pelo conjunto de
enunciações que o fizeram significar, pela memória de que está impregnado, mesmo
que ausente ou esquecida. O que se diz, em dado momento histórico, já foi dito. Não
somos os donos de nossos dizeres, pois significam pela história e para a língua e
podem ser apreendidos por outras vozes. É a partir da memória discursiva que surge a
possibilidade de toda formação discursiva fazer circular as ―redes de formulações‖
outrora enunciadas.
Formação discursiva
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão
e, no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas se puder definir
uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por
convenção, que se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2008, p.43).
421
Um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma
formação discursiva; ele é constituído de um número limitado de
enunciados, para os quais podemos definir um conjunto de condições
de existência; é, de parte a parte, histórico – fragmento de história,
unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema
de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos
modos específicos de sua temporalidade. (FOUCAULT, 2008, p. 135-
136).
422
reconfigurados, impulsionados principalmente pelas grandes transformações, como o
colonialismo e a globalização, por exemplo: ―as identidades formadas no interior da
matriz dos significados coloniais foram construídas de tal forma a barrar e rejeitar o
engajamento com as histórias reais de nossa sociedade ou de suas „rotas‟ culturais‖
(HALL, 2013, p. 41).
Em se tratando das diversas sociedades indígenas, as dinâmicas que
compreendem o colonialismo e posteriormente à globalização, procuram
descaracterizar as suas respectivas autenticidades, promovendo, então práticas de
dominação, de escravização, bem como de alienação intelectual, impostas por
formações discursivas de práticas eurocêntricas, que submetem a estes povos a
violentas estratégias histórico-socioculturais de apagamento, de marginalização e,
principalmente, de silenciamento; com efeito, é nessa perspectiva que o discurso
nacionalista opera e constitui significados:
2
“Os Estudos Culturais não configuram uma „disciplina‟, mas uma área onde diferentes disciplinas
interatuam, visando o estudo de aspectos culturais da sociedade” (HALL, et al. 1980, p. 7). Em síntese, os
princípios que se constituem em pilares do projeto dos Estudos Culturais são: “a identificação explícita
das culturas vividas como um projeto distinto de estudo, o reconhecimento da autonomia e complexidade
das formas simbólicas em si mesmas; a crença de que as classes populares possuíam suas próprias formas
culturais, dignas de nome, recusando todas as denúncias, por parte da chamada alta cultura, do
barbarismo das camadas sociais mais baixas; e a insistência em que o estudo da cultura não poderia ser
confinado a uma disciplina única, mas era necessariamente inter, ou mesmo anti, disciplinar”
(SCHWARZ, 1994, p. 380).
423
escritor tomou para si como baliza. […] Não foi impresso, no entanto,
como figura humanizada, a exemplo das demais com as quais dividiu
enredo. Foi, antes de tudo, um emblema, cerzido com as cores locais
e que escondia, sob seus pontos em relevo, o constante matiz de
nativo selvagem a quem o não índio deveria civilizar, impondo sua
cultura (SANTOS, 2009, p. 21).
Importa citar que, na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano [2019], entre os cinco livros mais
vendidos na livraria oficial da organização da Feira, quatro livros são de autores negros, sendo o quinto, um
autor indígena [Ailton Krenak] Fonte: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/07/dos-5-autores-mais-
vendidos-na-flip-4-sao-negros-e-1-e-indigena.shtml>. Aces. 30 ago. 2019.
424
Portanto, no contexto da literatura brasileira contemporânea, a escrita indígena
está em constante movimentação, buscando superar a fratura colonial e se insere
como uma escrita que delineia à sua maneira peculiar quanto à forma de
representação da realidade e de sua expressão artística, sem renunciar, contudo, as
marcas da ancestralidade e, principalmente de enunciar as barbáries impostas pela
colonização.
Assim, a seção seguinte tem a intenção de analisar como ocorre essa
articulação de ressignificação das identidades indígenas não apenas na literatura
brasileira contemporânea, mas em outras formas artísticas e culturais. Para tanto,
apresentamos como resultado parcial do projeto de pesquisa Discurso e Redes de
Memória Indígena na Região do Baixo Tocantins, desenvolvido no Instituto Federal do
Pará (IFPA/Campus Abaetetuba) a proposta de oficina pedagógica Não somos
4
Iracema! , como possibilidade didática de expressão da voz feminina indígena, a partir
Destinada a momentos de formação continuada de professores da rede pública; a eventos que tematizem
sobre a questão; especialmente à comunidade do próprio Instituto Federal do Pará. Oportunamente,
agradecemos aos alunos dos cursos técnicos profissionalizantes integrados ao ensino médio, Meio Ambiente
e Mecânica, que têm atuado incansavelmente com a realização deste projeto.
425
estereótipos acerca da mulher indígena a partir de leitura de dois recortes da
obra 5
Iracema, a virgem dos lábios de mel: O enredo de Iracema se dá quando Iracema vai a uma caçada, e
encontra-se com os europeus, atirando uma flecha em Martim, por quem se apaixona, imediatamente
quebra a flecha selando a paz entre os dois. Martim é convidado para se hospedar em sua tribo, e acaba
por se apaixonar pela índia, destruindo o pensamento do pajé, pois ela é pura e não pode ter relações.
Acaba fugindo com Martim e tendo um filho escondido, Martim a deixa, Iracema acaba morrendo de
chorar e por ter que alimentar seu filho sozinha, amando muito o seu amado, mesmo abandonada
acaba morrendo. (ALENCAR, 1965/1991).
426
―Índio‖, eu não sou!
Sou Kambeba, sou Tembé,
Sou kokama, sou Sateré,
Resistindo na raça e na fé‖.
(Kambeba, 2019, Online).
427
pontuando conjuntamente o que aprendemos e o que ainda podemos aprender nas
próximas oficinas, e, principalmente, em nossas relações sociais, afinal de contas: ―Se
faço isso é com o objetivo de saber o que somos hoje. Quero concentrar meu estudo
no que nos acontece hoje, no que somos, no que é nossa sociedade (FOUCAULT,
2012, p. 258).
Considerações finais
428
colonizador, percebendo nas manifestações artísticas, culturais, simbólicas, históricas,
discursivas indígenas, a fala de autênticos cidadãos brasileiros.
Nessa luta diária, ―podemos usar o discurso, nossa arma principal [...]‖
(DALCASTAGNÈ, 2018, p. 15). Assim tecemos esse texto, com a esperança que
tenha ―[...] a desenvoltura de apresentar-se como discurso: simultaneamente, batalha
e arma, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível‖ (FOUCAULT,
2014, p. 08). Que nessa luta diária, nossa arma discursiva sirva ―para referendar o que
querem os poderosos (como fazem, inclusive, alguns colegas e escritores), mas
também podemos usá-lo para desmascará-los ou, mesmo, para tirar-lhes o sossego‖
(DALCASTAGNÈ, 2018, p. 15).
Referências
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e
literatura. Trad. Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
ALENCAR, José de. Iracema. [1965]. 24ª. edição. São Paulo: Ática, 1991.
DALCASTAGNÈ, Regina. O que o golpe quer calar: literatura e política no Brasil hoje.
Anuário de Literatura, volume 23, número 2, Florianópolis, 2018, 11 p.
429
GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. Análise do Discurso: lugar de
enfrentamentos teóricos. In: FERNANDES, Cleudemar Alves; SANTOS, João Bôsco
Cabral (Orgs.). Teorias Linguísticas: novas problemáticas. 1 ed. Uberlândia: EDUFU,
2003, v. 01, p. 21-34.
GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. Bakhtin, Foucault, Pêcheux. In: BRAIT, Beth
(Org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2006a,
p. 33-52.
HALL, Stuart; HOBSON, Doroty; LOWE, David; WILLIS, Paul (Orgs.). Culture, Media,
Language. London/New York: Routledge/CCCS, 1980.
KAMBEBA, Márcia Wayna. Ay kakyri Tama – Eu Moro na Cidade. São Paulo: Pólen,
2013.
PÊCHEUX, Michel. A análise de discurso: três épocas (1983). In: GADET, Françoise;
HAK, Tony (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de
Michel Pêcheux (1975). Trad. Bethânia S. Mariani et. al. Campinas, SP: Ed. da
Unicamp, 1990b, p. 331-318.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD 69). In: GADET, Françoise;
HAK, Tony (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de
Michel Pêcheux. Trad. Bethânia S. Mariani et. al. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990a,
p. 61-162.
430
POSSENTI, Sírio. Teoria do Discurso: um caso de múltiplas rupturas. In: MUSSALIM,
Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à Linguística 3: fundamentos
epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2005, p. 353-392.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004.
SCHWARZ, Bill. Where is cultural studies?. Cultural Studies, 8 (3), 377-393, 1994.
431
AS FACES DA MULHER AMAZÔNICA: A NEGRITUDE EM DALCÍDIO
JURANDIR
Dalcídio Jurandir é conhecido por ser o autor dos romances do Ciclo do extremo Norte. A
história central do Ciclo é a de Alfredo. Filho de uma negra, D. Amélia, e de um branco,
Major Alberto, o menino vive em constante conflito na busca de sua própria identidade, ora
entristecendo-se pela cor da mãe, ora aceitando-a e sentindo orgulho dela. A convivência,
em Belém, com a família materna, principalmente com as mulheres Mãe Ciana, Magá e
Isaura, contribuiu para que Alfredo possa aceitar melhor sua mãe. Essas personagens
negras vivem na capital com o esforço do próprio trabalho, como também auxiliam na fuga
dos bandoleiros que planejavam revoltas pelo interior. Este trabalho objetiva observar a
representação dessas mulheres negras analisando suas trajetórias, principalmente no que
se refere à postura transgressora delas diante do sistema social em que estavam inseridas.
Palavras-chave: Personagem feminina; Dalcídio Jurandir; negritude
Dalcídio Jurandir is known for being the author of the ―Ciclo do Extremo Norte‖ (Extreme
North Cycle)’s novels. The cycle’s central narrative is Alfredo’s. The son of a black woman,
D. Amélia, and of a white man, Major Alberto, the boy lives in a constant conflict in the
search of his own identity, sometimes getting sad because of his mother’s color, or accepting
it and being proud of it in other times. The coexistence , in Belém, with his mother’s family,
especially with women like Mãe Cigana, Magá and Isaura, has contributed to Alfredo’s best
acceptance of his mother. These black female characters live in the state capital with the
effort of their own work, and also help ―bandoleiros‖, groups of people who planned riots in
the countryside, in their scape. This work objectifies to observe the representation of these
black women analyzing their trajectories, mainly with the regard to their transgressive posture
in the social system in which they were inserted.
432
Introdução
433
O tempo da ação dos romances é a década de 1920 a 1930, que foi
uma época de crise. A região amazônica sofreu, então, de forma
traumática o fim do boom da borracha (1912), entrando numa longa
fase de declínio e de estagnação da economia. (BOLLE, 2012, p. 16)
Em seu livro sobre Euclides da Cunha, ao falar sobre aqueles que o sucederam,
Francisco Foot Hardman menciona a produção ficcional de Dalcídio Jurandir e também o
considera como um escritor que distanciou sua obra tanto dos escritos de Euclides, como
daqueles que o homenagearam, trazendo assim estabilidade para a prosa da região:
434
apenas brevemente citado e enquadrado como um escritor regionalista. Ou seja, ignorando
todos os avanços que a literatura que retrata a Amazônia adquiriu com o escritor paraense,
como a ruptura com a tradição literária amazônica, apenas levam em consideração o fato de
Dalcídio ser um escritor nascido no norte do Brasil e que ambienta as suas obras nesse local,
1
como se tais aspectos fossem mais importantes que toda a complexidade da sua narrativa .
De uma forma geral, os romances de Dalcídio Jurandir estão centrados em três
personagens masculinas. Em Chove nos Campos de Cachoeira, pontapé inicial do Ciclo
do Extremo Norte, temos o desenrolar dos dramas de Eutanázio, com sua paixão não
correspondida por Irene. Marajó conta a história de Missunga, o jovem filho do Coronel
Coutinho, herdeiro de todas as suas propriedades. Alfredo, por sua vez, aparece em nove
das dez obras do Ciclo, as quais narram a sua trajetória desde a infância até a chegada da
fase adulta.
Apesar desse protagonismo masculino, há uma quantidade considerável de
personagens femininas que auxiliam tanto no desenrolar do enredo, como no
desenvolvimento dos dramas dos homens, não se limitando a apenas essa contribuição,
mas também trazem para a narrativa as suas próprias histórias e, dessa maneira, ajudam no
retrato da Amazônia que o escritor paraense desejava apresentar por meio de sua obra.
Dessa forma, este trabalho objetiva observar a representação dessas mulheres
negras da família de Alfredo, Mãe Ciana, Magá e Isaura, presentes sobretudo no romance
Belém do Grão Pará, a fim de analisar as suas trajetórias, principalmente no que se refere à
postura transgressora delas diante do sistema social em que estavam inseridas.
No quarto romance do Ciclo do Extremo Norte, Belém do Grão Pará, Alfredo vai
morar na capital paraense na casa da família Alcântara para dar continuidade aos seus estudos.
Pelos aspectos históricos descritos na obra, pode-se inferir que a história se passa na década de
1920, por volta do ano de 1922, período após o Ciclo da Borracha, dos anos áureos da Belle
2
époque e dez anos depois do fim do governo do intendente Antonio Lemos .
Histórias Literárias como A Literatura no Brasil (1959), de Afrânio Coutinho, História Concisa da
Literatura Brasileira (1970), de Alfredo Bosi, História da Literatura Brasileira (1997), de Luciana
Stegagno Picchio, A Literatura no Brasil: origens e unidade (1999), de José Aderaldo Castello e
História da Literatura Brasileira: da carta de Caminha aos contemporâneos (2011), de Carlos Nejar
apenas mencionam as obras de Dalcídio Jurandir, enfatizando que se trata de uma produção
essencialmente regional,ignorando quaisquer outros aspectos.
Antonio José Lemos (1843-1913) foi intendente de Belém entre 1897 e 1911. Foi o administrador
responsável pelo desenvolvimento urbano da cidade de Belém.
435
uma posição elevada e de respeito naquela sociedade, frequentando a ―corte‖ do intendente, e
3
nos anos 1920, no governo de Lauro Sodré , aparece desprovida de qualquer resquício do
status social que outrora ostentara. Assim, esse romance não trata somente da primeira
experiência de Alfredo em Belém, mas também, como atesta Benedito Nunes, uma obra que
mostra a história dos Alcântaras, relacionada com a situação de ruína da cidade nesse
período:
Essa família é composta por D. Inácia, Seu Virgílio e a filha do casal, Emília. Seu
Virgílio, nos tempos de Lemos, havia sido administrador do Mercado de São Brás. Ainda no
governo do intendente, conseguiu um simples emprego de funcionário público federal na
Alfândega, o que nos aponta para a sua falta de ambição. Com essa família vivem ainda
Libânia e Antonio, empregados e crias da casa, que vivem uma situação de miséria e quase
escravidão, subjugados pelas vontades dos patrões.
Marlí Furtado defende a ideia de que em Belém do Grão Pará a capital paraense,
espaço no qual será ambientada a obra, é como mais uma personagem no romance, dado o
enorme desejo do menino em se mudar do Marajó para Belém:
Lauro Nina Sodré e Silva (1858-1944) foi governador do Estado do Pará em dois momentos: de 1891 a
1897 e 1917 a 1921.
436
Isaura, Magá e Mãe Ciana: transgressão pelo trabalho e atuação social
Por meio do olhar de Alfredo, o narrador nos mostra os diferentes ofícios dos
membros dessa família. Todos, homens e mulheres, trabalham em uma atividade específica,
o que surpreende e frustra o menino simultaneamente, pois pensa que se todos os seus
parentes se dedicam a um emprego, ele, como pertencente a essa família, também deve
encontrar a sua ocupação:
interessante observar que esse excerto mescla a aparência física de Isaura, tais
como a ―boca larga‖ o ―cabelo alto de mulata‖, com certos aspectos do seu trabalho,
como ―as novidades da costura‖. Ao final, vemos que seu rosto deixa transparecer uma
―fadiga‖, o que remete ao cansaço devido ao seu trabalho excessivo.
Em muitas vezes em que Isaura aparece na narrativa, ela está sempre em
movimento, trabalhando, entregando suas costuras, ou indo até as clientes, ou costurando
vestidos na sua casa. Um exemplo disso é que ela faz as Alcântaras e Alfredo esperarem
437
por ela no cinema, pois estava com trabalhos pendentes: ―Teriam de ficar na sala de
espera porque Isaura viria com algum atraso. Acabava um vestido e teria ainda de ajeitar a
cesta de flores de uma vizinha.‖ (JURANDIR, 1960, p. 137).
Com a morte do pai, um funileiro, Isaura sentiu-se na obrigação de ajudar no
sustento da casa, de tomar para si a obrigação que era do pai. Antes de ele falecer, já moça,
a filha cuidava dos afazeres domésticos e do pai doente. Mesmo anos depois do falecimento
dele, a jovem ainda vivia de luto, sua vida mudara completamente: da alegria pela
convivência com ele à tristeza lacônica por sua ausência. O apego tanto ao trabalho quanto
às Alcântaras era uma forma de conviver com sua dor:
justamente por intermédio da amizade de Isaura com Emilinha que Alfredo vai
morar em Belém na Gentil, com os Alcântaras. Essa amizade, cheia de desavenças e
discussões, é uma parte importante do cotidiano de Isaura. Ela vivia entre brigas e
reconciliações com a amiga, o que deixa todos intrigados com esse comportamento.
Novamente, o narrador usa o olhar de Alfredo para mostrar ao leitor essa relação, sobretudo
nos momentos de confronto entre elas:
438
peito, os olhos de boi malignos, saboreando a própria raiva. Alfredo
não sabia entender. Por vezes. tentava ver em Isaura uma pessoa
doente ou cheia dum inexplicável desprezo pelos Alcântaras a quem
estava presa não se sabia bem por quê. Por que semelhante
amizade, temperada de furor e desgosto? Ou tudo era por hábito ou
próprio das duas amigas aquele furioso e pegajoso
desentendimento? Nunca os Alcântaras na presença do primo,
atacavam a costureira. (JURANDIR, 1960, p. 103-104).
439
Fazem anos hoje:
As senhoritas
Jovenília Soares Pinho
Sirena Sousa
Maria de Nazaré Cunha
Claudia Vasconcelos Souto Maior
Merandolina Gusmão
Emília Alcântara
Emilinha sente-se ofendida e desdenha por estar em último na lista, pois o seu nome
no jornal era uma das muitas formas de manter as aparências. Isaura, por sua vez, mesmo
que intimamente, chama a amiga de ―pobre‖, termo que assombrava e amedrontava a
Alcântara, pois desejava urgentemente uma ascensão social. Há ainda um caráter dúbio no
―pobre‖, mencionado por Isaura: refere-se tanto à condição financeira de Emília, como
pode ter sido uma demonstração de pena da amiga. Em ambas possibilidades, apresentam
o desnível social de Emilinha e sua ilusão na fuga da ruína e miséria.
Enquanto Emilinha, pobre como ela, fica esperando por um casamento vantajoso
para sair do ostracismo social, Isaura trabalhava todos os dias, buscando se manter pelo
seu próprio esforço. Ela é transgressora pois, não há a menção no romance de ela estar em
busca de um casamento, mas há inúmeras descrições de seu ofício como costureira,
mostrando-nos sua autonomia e independência financeira, algo não muito comum para as
mulheres da época.
Magá, mãe de Isaura, apesar de não ter o mesmo destaque na obra que sua filha,
também é um exemplo de transgressão presente no Ciclo do Extremo Norte. Conforme a
descrição do romance, ela era uma excelente cozinheira e obtinha êxito em garantir o seu
sustento por meio desse trabalho.
Sua principal ocupação era vender tacacá – comida típica do Pará – na rua,
atividade que não agradava os filhos em função de ela já estar envelhecendo. No entanto,
ela se recusa a parar, pois não queria, de forma alguma, depender deles. Ela impõe sua
vontade diante deles e permanece com o seu trabalho:
440
deles, Magá já era pra ter deixado aquela canseira. ―Eu, mas eu,
que vou me atracar no rabo de vocês, à custa de vós? Vê la meus
formosura. Uma osga! Mas deixem ir ganhando o meu cruzado.‖
(JURANDIR, 1960, p. 110-111).
Além disso, Magá também preparava Tartaruga sob encomenda. Era unanimidade
entre todos que o prato era delicioso e essa reputação fazia com que os serviços dela
fossem muito requisitados, sobretudo pelos ―brancos‖, os mais ricos e importantes
da sociedade.
441
tua mãe, tu também. Tu tens no sangue. Nossos parentes penaram nos engenhos. Só nos
engenhos? Hum!‖ (JURANDIR, 1960, p. 210).
Conviver com a sua família negra, faz com que o menino Alfredo crie laços e se
aproxime mais de seus parentes. Se nos romances anteriores (Chove nos Campos de
Cachoeira e Três Casas e um Rio), o menino vive um drama por ter uma mãe negra, em
4
Belém do Grão Pará, inicia-se nele um processo de aceitação tanto da sua cor , como a da
mãe. Vejamos um trecho do romance em que aparece o menino conversando com as três
mulheres: Isaura, Mãe Ciana e Magá:
Esses pequenos gestos – oferecer um tacacá, dar a benção – fazem com que o
menino sinta apreço por essa parte da sua família, que mostra um aspecto muito importante
da sua origem. Aceitar a sua cor é compreender também a sua história e ajuda o menino no
futuro a viver na periferia de Belém.
Se, pelo trabalho, Mãe Ciana transgride o sistema social, sucumbe diante de seu
Lício, companheiro de longos anos, com quem amarga um relacionamento abusivo. Quando
se conheceram, ele insistiu para que se relacionassem, porém, com o passar dos anos, seu
Lício a deixa de lado, preferindo se envolver nas manifestações populares a dar atenção
para a sua mulher. Ela, por sua vez, fazia tudo para agradá-lo para que ele passasse a
maior parte do tempo em casa:
No último romance da saga, Ribanceira, vemos Alfredo admitindo a sua negritude sem nenhum
problema, pois nesse momento aceita completamente a sua cor e a sua origem. Vejamos os trechos
em que isso ocorre:
―— Faço parte do tição. Mancha?
— Mas o senhor?
Com esse cabelo fino, a boca fina, as feições?
— Mancha?
— O senhor só está advogando a causa alheia, Secretário. Do senhor que não.
— Minha mãe. Meus tios. Não é uma pena?‖ (JURANDIR, 1978, p. 144).
―Alfredo leva na conta de gracejo, seguindo com o ramo de oliveira na mão. Na calçada do
Mercado aquela negra alta, a Nhá Barbra.
— Meu branco, tanto que eu queria um particular com o Senhor. Pode?
— Me chamando de branco, Nhá Barbra? Me repare na pele. Somos do mesmo mocambo. Sim?‖
(JURANDIR, 1978, p. 228).
442
―Ah, essa Mãe Ciana que não me sai de junto‖... Ela o procurava ou
recebia com ralho; que boca feia tinha agora a santa velha, os
beiços, revirados, reluziam e deles saía um cuspe grosso, as
mesmas recriminações, a voz ralhante. Debaixo de tudo isso,
aqueles mimos babujados para que seu Lício não desgarrasse: uma
dor de cabeça que mal falava e lá vinham chás e emplastos, mingau
quentinho ali na rede sem mesmo ele lavar o dente, a preparar-lhe o
banho e a pôr no ombro dele a toalha toda cerzidinha mas muito bem
passada e cheirosa, a curar-lhe as frieiras, e cortar-lhe a unha do pé
e sem esperar em troca este carinho, nem um só; não havia um
desejo, um suspiro, um pensamento de seu Lício que Mãe Ciana,
adivinhando, não dissesse: eu faço. Para ela, bastava a atenção dele
em se deixar servir. Mas ninguém quisesse ver em Mãe Ciana uma
humildade rastejante, aduladora, não. Ela, no seu melhor carinho,
servia sempre de cara franzida, resmunguenta, como fosse obrigada
e pronta a lhe dizer: mas, diabo, te põe daqui de dentro de casa,
preguei teu pé? (JURANDIR, 1960, p. 263).
Sandália essa que foi assim: seu Lício viajou pro Maranhão numa
barca e logo voltou. Pensa que avisou que ia, disse assim: olha,
porcaria, vou ali e volto‖? Quando apareceu de volta, disse de cara
lambida, disse, escorrido:
— Estive na terra do camarão, te trouxe isto. Vê se
presta. (JURANDIR, 1960, p. 324).
Isaura, então, para si mesma, recordou que uma vez, seu Lício, num
lance de bebedeira, lançara o cesto de cheiros no fundo do quintal,
na Bernal do Couto, espalhando aromas pela vizinhança, com os
443
pirralhos ajuntando os papelinhos. Era uma pessoa muito
contraditória, aquele seu Lício, pensou Isaura, um seu velho
pensamento. (JURANDIR, 1960, p. 343).
Mãe Ciana preocupa-se com os fugitivos, pois toda a sua família envolveu-se nessa
fuga. A primeira ajuda foi na manutenção do esconderijo em Belém e depois no
planejamento do dia perfeito para a fuga definitiva para longe da cidade. Isaura contava as
novidades para D. Inácia, demonstrando saber todos os passos da revolta:
Dessa maneira, Mãe Ciana e Isaura são transgressoras também, pois ajudam na
fuga do bandoleiro do Guamá. Enquanto D. Inácia apenas comenta e teoriza sobre as
revoltas que estavam eclodindo no país, e como desejaria participar delas, caso fosse
444
homem, as duas, não veem o seu gênero como um impedimento e ajudam tanto a esconder
o casal fugitivo, como na fuga de Belém.
Isaura, Magá e Mãe Ciana enfrentam o sistema social em que se inserem por meio
da sua força de trabalho, pois encontram esse caminho para sobreviverem. Podemos fazer
um contraponto com as Alcântaras, mulheres brancas, que estão em uma situação
financeira desfavorável e têm em seu Virgílio o único mantenedor da casa. Em nenhum
momento, vemos algum interesse delas de também trabalhar para ajudar nas despesas,
tampouco quando o patriarca perde o emprego e a família fica sem sua única fonte de
renda. As negras, no entanto, desde muito novas exercem atividades fora de casa. Esse
quadro nos remete à citação de Angela Davis (2016) sobre o trabalho das mulheres negras:
Como vimos, as parentes de Alfredo têm consciência de que a história das suas
vidas perpassa pela escravidão do passado e é justamente esse um dos motivos que as
impulsiona a trabalhar fora de casa e por conta própria. Na sociedade traçada no Ciclo do
Extremo Norte, eram poucas as opções para uma mulher se manter: morar com seus pais,
ainda solteira, e depender deles, ou o casamento, dependendo, assim, do marido. As que
fugiam desse parâmetro, eram, na maioria das vezes esmagadas por essa sociedade e
caíam na prostituição, como é o caso de outras personagens femininas do Ciclo.
Isaura, Magá e Mãe Ciana, por sua vez, rompem com esse sistema, em benefício
próprio e usam a força de trabalho para garantir sua sobrevivência. Essas três personagens
dentro do Ciclo se destacam por alcançar um nível de autonomia e independência incomum
para as mulheres da época. Elas seguem a trajetória de transgressão que acompanhou
grande parte das mulheres negras após a escravidão: o trabalho fora de casa para sustento
próprio e de seus familiares. Apesar disso, elas seguiram alguns dos ofícios que eram
destinados à mulher, naquela época, tais como: costureira, professora e cozinheira. é
importante mencionar que elas eram donas de seus próprios negócios, diferente de muitas
mulheres da época que trabalhavam fora de casa, o que contribuía para a maior autonomia
dessas mulheres.
445
Considerações Finais
446
Referências
447
A REPRESENTATIVIDADE NEGRA COMO CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE: UMA
ANÁLISE DO CONTO LUMBIÁ, DE CONCEIÇÃO EVARISTO
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a representatividade negra como construção
de identidade a partir da leitura do conto Lumbiá, do livro Olhos d’Água (2016), da escritora
mineira Conceição Evaristo. Os procedimentos metodológicos estão pautados,
primeiramente, na leitura de textos referentes à temática do negro para, em seguida, fazer
uma análise discursiva do conto. E, como suporte teórico para a realização deste trabalho,
tomou-se os estudos de Hall (1999; 2003; 2016), Munanga (2009), Moreira (2019), Souza
(1983), Gonzalez e Hasenbalg (1982), Mbembe (2014) e M’Bow (2010), além da Lei
10.639/2003 que obriga as escolas públicas e privadas a adotarem o ensino de história e
cultura africana e afro-brasileira nos seus currículos. Desta forma, este trabalho pretende
comprovar que a representatividade negra nos espaços públicos e privados é fundamental
para a construção de sua identidade enquanto sujeito na sociedade.
ABSTRACT
This research aims to analyze black representativeness as identity construction through the
reading of Lumbiá, a short story present in the book Olhos d’água (2016), writter by the
Brazilian writer Conceição Evaristo, born in Minas Gerais. The methodological procedures
are first based on the reading of texts which refer to black people’s contents to, then, produce
a critical discourse analysis about the story. As theoretical basis, the following analysis took
not only the studies of Hall (1999; 2003; 2016), Munanga (2009), Moreira (2019), Souza
(1983), Gonzalez and Hasenbalg (1982), Mbembe (2014) and, finally, M’Bow
(2010), but also law nº 10.639/2003, which compels public and private schools to adopt
African and African Brazilian History and Culture into the school curriculum.Therefore, this
paper intents to attest that the black representativity on public and private places is
fundamental to identity construction of oneself in society.
Introdução
448
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a maioria da
população brasileira se autodeclara negra, entretanto, não há presença maciça dessas
pessoas ocupando as estruturas de poder. Por que isso acontece? Por que ao ligarmos a
televisão, ao folhearmos livros e revistas nota-se esta ausência? Ou quando aparecem, em
sua maioria, tem a imagem estereotipada e estigmatizada? Quais são as explicações?
Quais são as justificativas? O que levou a população negra a esse destino? Estas são
algumas inquietações que norteiam esta pesquisa. As respostas a respeito destes
questionamentos encontram-se no passado. Por isso, foi necessário visitar o passado
histórico do Brasil e do continente africano com a finalidade de identificarmos fatos que
contribuíram para a construção da imagem do negro como ser inferior, sem cultura e sem
história. E, como exemplo, podemos citar a colonização, a escravidão e as teorias racistas
postuladas pelos pensadores do século XVIII.
Para tanto, recorreu-se aos conceitos de Raça postulados pelos autores Stuart Hall
(2003), AchilleMbembe (2014), Adilson Moreira (2019) e Frantz Fanon (2014); História da
África, com MahtarM’Bow (2010); História do negro no Brasil, com Albuquerque e Filho
(2006), Del Priore e Venancio (2010) e Neuza Souza (1983); Identidade e negritude, com
KabengeleMunanga (2009) e Stuart Hall (1999); Movimentos negros, com Domingues
(2016) e Gonzalez e Hasenbalg (1982); e a Lei nº 10.639/2003, que obriga as escolas
públicas e particulares a incluírem nos seus currículos o ensino de história e cultura africana
e afro-brasileira. E, a partir deste repertório teórico, iremos analisar a importância da
representatividade negra como construção de identidade no conto Lumbiá, que faz parte do
livro Olhos d’Água (2016), da escritora negra Conceição Evaristo.
Primeiramente, faz-se necessário apontar alguns conceitos sobre raça para que
possamos nos situar de como determinadas sociedades subjugaram outras.
Stuart Hall (2003, p. 69) conceitua raça como uma categoria não científica. Segundo
o referido autor, ―Raça é uma construção política e social. É uma categoria discursiva em
torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão –
ou seja, o racismo‖. Neste sentido, o racismo, como prática discursiva, possui uma lógica
própria. Ou seja, ―tenta justificar as diferenças sociais e culturais que legitimam a exclusão
racial em termos de distinções genéticas e biológicas, isto é, a natureza‖. Segundo o autor,
essa ―referência discursiva à natureza é algo que o negro compartilha com o anti-semitismo
e com o sexismo (em que também a biologia é o destino), porém, menos com a questão de
classe‖. Para Hall, o problema é que o nível genético não é imediatamente visível. Então,
449
nesse tipo de discurso, as diferenças genéticas (supostamente escondidas nos genes) são
―materializadas‖ e podem ser ―lidas‖ nos significantes corporais visíveis e facilmente
reconhecíveis, tais como cor de pele, as características físicas do cabelo, as feições do
rosto, o tipo físico, entre outros (HALL, 2003, p. 70).
AchilleMbembe (2014) pontua que se aprofundarmos a questão, a raça ―será um
complexo perverso, gerador de medos e de tormentos, de problemas do pensamento e de
terror, mas sobretudo de infinitos sofrimentos e, eventualmente, de catástrofes‖. Para
Mbembe, a raça não existe enquanto fato natural físico, antropológico ou genético. Portanto,
neste caso, a raça não passa de uma ficção útil, de uma construção fantasista ou de uma
projeção ideológica cuja função é desviar a atenção de conflitos antigamente entendidos
como mais verossímeis (MBEMBE, 2014, p. 25).
Adilson Moreira (2019) conceitua raça como uma representação cultural que
estrutura relações de poder dentro de uma sociedade. Segundo o autor, ―ela pode ser
utilizada para a legitimação de normas legais que tratam indivíduos de forma arbitrária‖, ou
ela ―pode permanecer invisível em sociedades nas quais privilégios raciais sistemáticos
tornam a discriminação direta uma forma obsoleta de manutenção de hierarquias entre
negros e brancos‖. Para o referido autor:
Contra essa relação de poder e dominação apontada por Moreira, Frantz Fanon, um
renomado estudioso sobre a questão racial, entende que raça é também o nome que deve
dar-se ao ressentimento amargo, ao irrepreensível desejo de vingança, isto é, a raiva
daqueles que lutaram contra a sujeição e foram, não raramente, obrigados a sofrer um sem-
fim de injúrias, todos os tipos de violações e de humilhações e inúmeras ofensas (apud
MBEMBE, 2014, p. 26).
A partir desses conceitos apontados por autores como Hall, Mbembe, Moreira e
Fanon podemos construir um entendimento de como a Europa justificou suas conquistas
territoriais com base na invenção da superioridade racial. Cabe ressaltar, que as
descobertas de Gregor Mendel na genética, a obra de Charles Darwin, A origem das
450
espécies, e uma série de novos conhecimentos científicos foi aproveitada para sustentar as
premissas da supremacia branca (MOORE, 2016, p. 63 – grifo nosso).
De acordo com Mbembe (2014, p. 26-28):
451
A partir do que foi exposto por M’Bow, entende-se que a noção de raça permite que
as outras sociedades não europeias sejam vistas como inferiores. Neste caso, o africano
devido à pigmentação de sua pele, característica visível, perde sua humanização ao ser
transformado à categoria de mercadoria. Para Burns (apud FANON, 2008, p. 110), ―o
preconceito de cor nada mais é do que a raiva irracional de uma raça por outra, o desprezo
dos povos fortes e ricos por aqueles que eles consideram inferiores‖ e ―como a cor é o sinal
exterior mais visível da raça, ela tornou-se o critério pelo qual os homens são julgados‖. Sob
essa perspectiva, MBembe (2014, p. 38), aponta que ―uma vez identificados e classificados
os gêneros, as espécies e as raças, nada resta senão indicar através de que diferenças eles
se distinguem uns dos outros‖. Neste sentido, no pensamento ocidental, o Negro
452
parentes que deixaram na África. E, viver sob a escravidão significava submeter-se à
condição de propriedade e passíveis de serem leiloados, vendidos, comprados, permutados
por outras mercadorias, doados e legados. Sob o domínio de seus senhores trabalhariam de
sol a sol nos mais diversos tipos de ocupações (ALBUQUERQUE E FILHO, 2006, p. 65).
Percebe-se que dos três grupos apenas os abolicionistas lutavam pela libertação
imediata dos escravizados. Esse grupo contribuiu para que houvesse uma mobilização
popular com o objetivo de alterar a estrutura da sociedade brasileira, como afirmam Del
Priore e Venancio (2010, p. 149):
453
Os abolicionistas também inovaram na forma de organização. Em vez de
reuniões secretas, como ocorria na maçonaria, que tanto envolveu os
políticos do Império, eles formavam clubes abertos a quem quisesse
participar, lançavam jornais, assim como organizavam palestras em teatros
e comícios nas ruas. Representavam, por assim dizer, uma nova forma de
fazer política, uma forma que fugia às rédeas dos oligarcas e poderosos
rurais. Foi por esse movimento que surgiram modernas lideranças negras,
como André Rebouças e José do Patrocínio, cuja atuação teve repercussão
nacional. Não por acaso, os abolicionistas também foram os primeiros a
defender a distribuição de terras entre os ex-escravos e a criação de escola
pública para os filhos dos futuros libertos. (DEL PRIORE E VENANCIO,
2010, p. 149)
De acordo com a citação acima, a luta pelo fim da escravidão nos apresenta duas
lideranças negras significativas: André Rebouças e José do Patrocínio. As ideias propostas
por estes abolicionistas defendiam a distribuição de terras aos ex-escravos com o propósito
de que estes se estabelecessem com algo para a própria sobrevivência. E, além disso, a
criação de escola pública com o objetivo de inserir os filhos dos futuros libertos no mundo da
leitura e da escrita. Isto seria uma espécie de reparação àqueles que tiveram sua mão de
obra explorada desde que chegaram ao território brasileiro.
No entanto, vale ressaltar, que a Lei Áurea assinada pela princesa Isabel em 13 de
maio de 1888 – sob pressão da Inglaterra e dos diversos movimentos que lutavam pelo fim
da escravidão – não beneficiou os negros. Pois, não houve políticas públicas para que essas
pessoas fossem incluídas na sociedade. Além disso, os negros teriam outro problema para
enfrentar: a cor da pele. Segundo Schwarcz e Starling (2015, p. 145-146), ―a cor se tornou
um marcador social fundamental‖. As ―pessoas de cor‖ sofriam com todo tipo de
discriminação, pois sua tonalidade de pele indicava a origem e o passado escravocrata.
Desta forma, ao transformar o africano em escravo, a sociedade escravista, definiu o negro
como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação
com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior (SOUZA,
1983, p. 19).
Nessa perspectiva, de acordo com Albuquerque e Filho (2006, p. 68-69) a
escravidão:
454
Sob essa forte pressão, a luta do negro pela sua ascensão na sociedade
brasileira opressora tornou-se, simultaneamente, lenta e contínua, como afirma Souza:
455
condutor que o liga a seu passado ancestral o mais distante possível. E, por meio da
consciência histórica, cada povo faz um esforço para conhecer sua verdadeira história e
transmiti-la às futuras gerações. O segundo, o fator linguístico, diz respeito à preservação e
criação das diversas formas de linguagem para que a identidade seja mantida. Neste caso,
destaca-se a linguagem esotérica nos terreiros religiosos, os estilos de cabelos, os
penteados, os estilos musicais, a conservação de estruturas linguísticas, entre outros. O
terceiro e último, o fator psicológico, entre outros, nos leva a questionar sobre o
temperamento do negro em relação ao temperamento do branco como uma marca de
identidade.
Munanga (2009) entende que, em última instância:
Nesse sentido, para Munanga ―o conceito de identidade recobre uma realidade muito
mais complexa do que se pensa, englobando fatores históricos, psicológicos, linguísticos,
culturais, político-ideológicos e raciais‖ (MUNANGA, 2009, p. 14). Ainda de acordo com
Munanga, a recuperação da identidade negra começa pela aceitação dos atributos físicos de
sua negritude, antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e
psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade
(MUNANGA, 2009, p. 19).
Se partirmos do entendimento de Stuart Hall sobre identidade, quando ele afirma que
―as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e
transformadas no interior da representação‖ (HALL, 1999, p. 48 – grifo do autor), podemos
nos questionar: quais são as representações do negro no contexto da formação da
identidade brasileira? Automaticamente, associa-se à escravidão. Contra essa imagem
reduzida do negro, a partir do século XX, surgem no Brasil entidades (ou associações) de
negros que tinham como objetivo legitimar sua existência dentro da sociedade diante da
legislação. Essas entidades eram o resultado de uma confluência entre o movimento
abolicionista, as sociedades de ajuda e da alforria e dos agrupamentos culturais negros
(CARDOSO, 1981 apud GONZALEZ E HASENBALG, 1983, p. 21).
456
Gonzalez e Hasenbalg (Idem, p. 22) apontam que as entidades negras, dependendo
da atividade desenvolvida, dividiam-se em recreativas (com perspectivas e anseios
ideológicos elitizados) ou culturais de massa (afoxés, cordões, maracatus, ranchos, blocos e
samba).Nos anos de 1931 surge a Frente Negra Brasileira3 (FNB) como o primeiro
movimento ideológico pós-abolição e reuniu os dois tipos de entidades. Esse movimento,
juntamente com a imprensa negra, tornou-se relevante ao mobilizar milhares de negros
contra o sistema opressor.
De acordo com Domingues (2016), a receptividade da população de ascendência
africana em relação à Frente Negra Brasileira foi bastante positiva. Nos anos de 1936, por
exemplo, noticiava-se que a FNB possuía sessenta delegações distribuídas no interior de
São Paulo e em outros estados (Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo). No início, a
FNB, localizava-se numa sala do Palacete Santa Helena. Entretanto, com o aumento das
adesões, a sede mudou-se para um casarão na Rua da Liberdade. Com um espaço mais
amplo, havia salas da presidência, da secretaria, da tesouraria, de reuniões, entre outros.
Além disso, ofereciam os seguintes serviços à população: salão de beleza, barbeiro, bar,
local para jogos, dentistas e alistamento eleitoral (DOMINGUES, 2016, p. 337).
Em junho de 1978, surgiu outro movimento relevante que lutava pela causa negra.
Trata-se do Movimento Negro Unificado (MNU). Este movimento, entre outras pautas, tinha
como objetivo combater o racismo. E, logo no mês seguinte, o MNU convocou a população
para um ato público contra o racismo, como podemos ver nos dois parágrafos introdutórios
do documento:
3 De acordo com Domingues (2016), a Frente Negra Brasileira (FNB) foi uma associação que existiu de 1931 a
1937 e mobilizou milhares de negros e negras a lutarem por seus direitos. Abandonados pelo sistema político
tradicional e acumulando a experiência de décadas em suas associações, um grupo de “homens de cor” fundou a
FNB no dia 16 de setembro de 1931.
457
CONTRA A OPRESSÃO POLICIAL
PELO FORTALECIMENTO E UNIÃO DAS ENTIDADES AFRO-
BRASILEIRAS (GONZALEZ E HASENBALG, 1982, p. 44)
Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca e existência de uma
evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominados e
dominadores. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias
amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do
campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento:
desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas etc., até a polícia
formalmente constituída. Desde a casa-grande e do sobrado, aos belos
edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o
lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas,
cortiços, porões, invasões, alagados, conjuntos ―habitacionais‖ (cujos
modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o
critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do
espaço. (GONZALEZ E HASENBALG, 1982, p. 15)
A Lei 10.639/2003
458
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à
igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual
direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do
direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros.
(BRASIL, 2004, p. 9)
No excerto acima, podemos perceber que houve uma alteração na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, justamente, para favorecer àqueles que também contribuíram
para a formação da nação brasileira e que por muito tempo ficaram à margem da história. O
parecer da Lei 10.639/03 destinava-se:
Desta forma, a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) estabelecia que o Estado e a
sociedade tomassem medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros dos
danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime
escravista.
De acordo com a referida lei, o reconhecimento da história e da cultura da população
negra para a sociedade brasileira, entre outros pontos, implica:
Sendo assim, caberia aos sistemas de ensino seu importante papel para a
desconstrução e eliminação de todos os tipos de discriminações contra a população negra,
contribuindo positivamente para construção e afirmação de sua identidade na sociedade
brasileira, pois ―o racismo, as desigualdades e discriminações correntes na sociedade‖
459
perpassam por esse ambiente que deve ser plural dada a diversidade cultural (BRASIL,
2004, p. 14).
“Lumbiá”
Pela perspectiva do narrador, o conto narra a história de um menino que trabalha nas
ruas, juntamente com sua irmã Beba e seu colega Gunga, vendendo flores, amendoins e
chicletes para ajudar no sustento de sua família. Dos três produtos, o personagem preferia
vender flores. Para obter sucesso nas vendas, o menino inventava truques como, por
exemplo, chorar copiosamente. Entretanto, nesses choros, sempre tinha um fundo de
verdade. Havia uma data significativa para ele: o Natal. Ele gostava de apreciar o presépio
com a imagem de Jesus Cristo e seus pais. Pois, a família e a pobreza do menino Jesus
assemelhavam-se à sua. Porém menos na cor, ou seja, aquele menino, deitado na
460
manjedoura, não era negro. A empatia de Lumbiá pela imagem do menino Jesus, levou-o à
morte. Ao entrar furtivamente em um local onde havia uma exposição de um presépio e
levar consigo a imagem do Menino Jesus, Lumbiá, perseguido pelo segurança ao atravessar
a rua, foi atropelado e não resistiu aos ferimentos.
O conto narrado em terceira pessoa, no início, chama à atenção do leitor por dois
motivos: os nomes incomuns dados aos personagens (Lumbiá, Beba e Gunga) e a imagem
de crianças trabalhando nas ruas, como podemos constatar:
461
figura do pai, tornava-se impossível tal acontecimento. Por isso, o único símbolo do Natal
que fascinava o menino era o presépio com a imagem do Menino Jesus:
Todos os anos, desde pequeno, em suas andanças pela cidade com a mãe
e mais tarde sozinho, buscava de loja em loja, de igreja em igreja, a cena
natalina. Gostava da família, da pobreza de todos, parecia a sua. Da
imagem-mulher que era a mãe, da imagem-pai que era o pai. A casinha
simples e a caminha de palha do Deus-menino, pobre; só faltava ser negro
como ele. Lumbiá ficava extasiado olhando o presépio, buscando e
encontrando o Deus-menino. (EVARISTO, 2016, p. 84 – grifos nossos).
462
(EVARISTO, 2016, p. 85 – grifos nossos).No conto, percebe-se que em nenhum momento, o
personagem deseja oferecer flores aos reis brancos. Ele escolhe aquele que se assemelha
ao seu tio negro. Neste sentido, podemos constatar a importância da representatividade
negra.
No decorrer da narrativa, o leitor acompanha todas as tentativas do menino negro no
desejo de ver o presépio de perto, como podemos constatar: ‖Tinha feito várias tentativas de
entrar no Casarão, o vigilante vinha e o enxotava‖ (EVARISTO, 2016, p. 85).Aos olhos do
vigilante, o mesmo olhar da sociedade racista, o menino negro representa o perigo. De
acordo com o que foi posto por Schwarcz e Starling (2015, p. 145-146), ―a cor se tornou um
marcador social fundamental‖. Negro e sem a companhia dos pais, Lumbiá tornou-se o
Outro, o indesejado. A este respeito, Stuart Hall (2016), pontua que ―a estereotipagem tende
a ocorrer onde existem enormes desigualdades de poder. Este geralmente é dirigido contra
um grupo subordinado ou excluído‖ (HALL, 2016, p. 192 – grifo do autor).
Diante da opressão e da rejeição, uma luta enfrentada pelos negros para a afirmação
de sua identidade enquanto sujeitos na sociedade, Lumbiá resiste. A resistência, a coragem
e a persistência do pobre menino quebraram as barreiras que o impediam de ver a cena
natalina, como podemos observar: ―Em um dado momento aproximou-se devagar. Ninguém
na porta. Mordeu os lábios, pisou leve e, apressado, entrou‖ (EVARISTO, 2016, p.
85).Conceição Evaristo nos mostra a dificuldade de ser negro na sociedade brasileira.
Lumbiá precisa do descuido do vigilante para apreciar o que também lhe é de direito, mas é
negado. Conforme apontado por Hall (2003, p. 69-70), as características visíveis do negro
legitimam sua exclusão social. E, contra esses processos de exclusão postulados desde a
colonização e a escravidão, surgem os movimentos negros na luta incansável por políticas
de inclusão e visibilidade da população negra como apontou Gonzalez e Hasenbalg (1982,
p. 43).
No fragmento seguinte, Conceição Evaristo leva-nos a refletir sobre o conceito de
raça pontuado por Moreira (2019, p. 44) quando ele afirma que ―raça é uma representação
cultural que estrutura relações de poder dentro de uma sociedade‖. A descrição do menino
Jesus ao fundir-se com a realidade do personagemmostra o quanto essa relação de poder
marca a sua condição econômica e social, como podemos constatar:
463
No fragmento percebemos o significado de ser negro na sociedade brasileira
apontado por Conceição Evaristo. Em um país no qual a maior concentração de renda está
nas mãos de uma minoria branca, elitista e racista, ser negro torna-se sinônimo de
resistência. Por isso, os espaços públicos e privados precisam ser ocupados por pessoas
negras para que ―Lumbiás‖ olhem para as instituições e se veem como sujeitos
pertencentes, não excluídos. Neste caso, como foi dito anteriormente, a Lei 10.639/2003
cumpre um papel fundamental à medida que leva à sociedade a importância de conhecer a
história e a cultura afro-brasileira e africana como parte da construção da nação brasileira.
Desta forma, teremos uma sociedade menos opressora, preconceituosa e racista.
Considerações Finais
464
Referências Bibliográficas
BRASIL, Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP
3/2004. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e
para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília, 2004.
DEL PRIORE, Mary; VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo:
Editora Planeta do Brasil, 2010.
EVARISTO, Conceição. Lumbiá. Olhos d’Água. Rio de Janeiro: Pallas, 2016, p. 81-86.
GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero,
1982.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Silva e Guacira
Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.
MOORE, Carlos.O Marxismo e a questão racial: Karl Marx e Friedrich Engels frente ao
racismo e à escravidão. Uberlândia: Cenafro, 2010.
NASSIF, Luis. A vida e obra de Conceição Evaristo. Cultura. GGN – O Jornal de todos os
Brasis. 11-07-2016. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/a-vida-e-a-obra-de-
conceicao-evaristo. Acesso: 02 set. 2019.
465
OLIVEIRA, V. R. Desmistificando a pesquisa científica. Belém: EDUFPA, 2008.
466
AT 4 - Mulher, Relações de Trabalho, Meio Ambiente e
Desenvolvimento
Coordenação
467
DESENVOLVIMENTO E EQUIDADE DE GENERO? EXPERIÊNCIA DE UM
PROJETO DE GERAÇÃO E RENDA PARA MULHERES EM BRAGANÇA-PA
https://doi.org/10.29327/527231.5-31
Ana Patrícia Reis da Silva- Doutoranda do Programa
de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia. UFPA
Palavras-Chave: gênero-economia-equidade-desenvolvimento-resex
Palavras-Chave: gênero-economia-equidade-desenvolvimento-resex.
468
Introdução
O trabalho exercido por mulheres no setor informal tem recebido pouca atenção
nos estudos e pesquisas acadêmicos, mesmo que seja significativo e crescente o nos
países de Terceiro Mundo. Em que medida essa via tem possibilitado a emancipação das
mulheres e avanços na equidade de gênero em suas sociedades?
469
instituição familiar , geralmente dominada por homens, desmitificando, ao mesmo tempo,
o caráter supostamente natural, portanto gratuito , das atividades que lhes eram
atribuídas. Alguns destes aspectos estão presentes do universo de pesquisa no qual
trabalho.
A situação das mulheres não privilegiadas por sua posição de ―raça‖ e de classe ,
as quais constituem a maioria da classe das mulheres e a parte dessa classe mais
afetada pela globalização, deve ser colocada no centro desta análise . Tal situação é
profundamente diferente daquela das mulheres mais privilegiadas- embora todas sejam
oprimidas nas relações sociais.
Uma Narayan discute porque o setor informal é maior nas economias do Terceiro
Mundo que no Primeiro e, nele, as mulheres têm a presença muito grande. Essa força do
setor informal seria herança do desenvolvimento desigual pelo colonialismo. A
urbanização no Terceiro Mundo foi acompanhado de um grande desemprego. A
industrialização no Primeiro Mundo criou mais empregos do que o número de artesãos e
camponeses que que ela arruinava. Na periferia, cria menos empregos do que a força de
trabalho liberada do campo e das cidades. O mundo do Trabalho nos faz pensar sobre os
desafios para a construção de equidade entre homens e mulheres, e as realidades
enfrentadas de forma diferente nos mostram que as desigualdades e relações patriarcais
continuam fortes em nossa sociedade.
Por isso em um segundo momento deste artigo início uma discussão sobre
470
algumas questões sobre o processo de organização das mulheres pescadoras que
formam atualmente a Rede de Mulheres Caeteuaras, organização informal que teve
início com o projeto Pescando Autonomia do CPP- Conselho Pastoral dos Pescadores.
Entender esse processo de organização também significa entender qual a conjuntura
vigente no momento em que decidiram se fortalecer e quais os objetivos em comum que
as movia.
Outras questões instigam o cerne dessa pesquisa, são elas: como elas
respondem as exigências econômicas do mercado vigente ao mesmo tempo que
respondem as exigências ambientais? Quais eram os valores e os objetivos dos
apoiadores do Projeto? Como as mulheres lidam com os afazeres domésticos e o
trabalho no grupo (REDE) ou ainda identificar como elas fazem a combinação entre
demandas tradicionais decorrentes da divisão sexual do trabalho e as da participação
em grupo. De certo que este artigo não será suficiente para esgotar todas estas
perguntas, portanto estas dúvidas, dentre outras, serão tratadas na tese de doutorado.
Antes de tudo trago como aporte teórico o texto do Sociólogo Antônio Carlos
Diegues, ―Formas de organização da produção pesqueira no Brasil: alguns aspectos
metodológicos‖, onde o autor ressalta que por muito tempo o estudo dos pescadores e de
sua produção foi marcado, no Brasil, por uma visão folclórica e idílica. O que era
ressaltado era o modo de vida ―pacato , indolente‖ ou de outro modo exalavam a coragem
e os perigos enfrentados no mar. Segundo Diegues, 1983, ―Em alguns casos se
descreviam suas comunidades como entidades isoladas, alheias aos grandes processos
econômicos, que marcaram a sociedade como um todo em seus vários ciclos
econômicos‖.
Autores como (Diegues, 1973; 1983) , Duarte (1978), Mello (1985) e Maldonado
(1986) deram contribuições expressivas de trabalhos que mostrassem a necessidade de
se integrar a produção pesqueira ao quadro da acumulação de capital e da divisão social
do trabalho no Brasil e para combater , de certo modo, a falta de apoio à pesca artesanal.
471
da degradação ambiental, provocada por um modelo econômico
que exclui amplas camadas da população, sua cultura e suas
formas de organização. Parafraseando Marx, a expansão
capitalista sobre o espaço costeiro e marinho tem-se desenvolvido
esgotando as duas fontes de onde jorra a riqueza: o mar e os
trabalhadores. (DIEGUES, p.05, 1983)
472
A Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçú é uma unidade de
conservação brasileira de uso sustentável da natureza localizada no município de
Bragança, estado do Pará. Foi criada em 20 maio de 2005 a Reserva Extrativista Marinha
Caeté –Taperaçú . Sua área de entorno é caracterizada por regiões de terra firme onde a
vegetação predominante é a capoeira entrecortada por igarapés rodeados por buritizais
(arvore nativa), campos naturais alagados e grandes faixas de manguezais, tendo seu
Plano de Manejo aprovado em dezembro de 2012 .
473
quase que diariamente com este grupo pude perceber algumas aflições, dúvidas e
impasses que os incomodavam, entres estes: a falta de habilidade com o computador,
com documentos burocráticos, notas fiscais, prestação de contas, ou outras questões
mais graves como: o não entendimento do termo resex, já que muitos pescadores,
denominavam INCRA, RESEX, SEDE DA ASSUREMACATA como a mesma coisa. Foi
então que decidi ir além do trabalho voluntário e do envolvimento enquanto ambientalista
e pesquisar o que estava agitando esse território ao que se refere o processo de
identificação dos pescadores artesanais e o lugar em que vivem. Após o término dessa
etapa de pesquisa, e com um livro publicado e doado para a ASSUREMACATA , como
uma das formas de retorno da pesquisa de mestrado, continuei acompanhando algumas
ações e atividades que aconteciam na sede da ASSUREMACATA, mesmo que de forma
menos constante. Durante esse período conheci o trabalho do CPP- Conselho Pastoral
dos Pescadores voltado para as mulheres catadoras de caranguejo.
474
Buscando melhor compreender as relações de gênero e seu comportamento
vivenciado nas organizações, optou-se por nesse primeiro momento de pesquisa de
campo realizar técnica de entrevista semi-diretiva, dando espaço para elas falarem sobre
a experiência de organização. Também optou-se pela observação participante na
comunidade da Vila do Treme, vila da cidade de Bragança, em alguns momentos de
atividade da catação de caranguejo. A escolha deste método justifica-se por ser
adequado neste momento entender qual o processo de organização do grupo que
atualmente se denomina Rede Caeteuara a partir das vozes e experiências destas
mulheres. Trago pro texto as conversas obtidas em campo de entrevistas feitas com duas
pessoas que se configuram como atores importantes nesse processo, são elas : Iricina
Aviz de Oliveira, assistente social e representante do CPP na região Bragantina e
Dejanira, catadora de caranguejo da comunidade do Rio Grande, esta última é umas das
lideranças do rede de mulheres Caeteuaras e uma das catadoras mais eloquentes do
grupo.
Utilizarei a transcrição das entrevistas para preservar os relatos da conversa e
possibilitar ao leitor a interação e interpretação das narrativas.
Inicio a entrevista perguntando para Iricina-CPP : Como começou o Projeto Pescando
Autonomia ?
475
SENAI, Feira do Agricultor, Conselho Pastoral dos Pescadores e Banco da Amazônia,
Adepará, Vigilância Sanitária..”
Patrícia: Quando foi formado, houve algum motivo especifico, algum evento, uma
conjuntura?
Dejanira: Ausência de políticas públicas voltadas para essa categoria e muitas mulheres
vivem especificamente da extração da massa do caranguejo, mas o pagamento por quilo
de baixo valor...Agregar valor á massa do caranguejo.....Dar visibilidade da mulher na
pesca e possibilitar alternativas para que as pescadoras/marisqueiras da região
pudessem sair da ilegalidade
476
São várias as análises e interpretações que podem ser feitas dessas entrevistas e
que não dão conta de serem feitas neste espaço, mas algo que chama a minha atenção
enquanto pesquisadora e que justifica a pesquisa a importância desta pesquisa de
doutorado é a forma de resistência que se criou através da Rede de mulheres
Caeteuaras. Resistencia contra o mercado que não inclui e que consequentemente não é
justo, contra a desigualdade de gênero, contra a dificuldade financeira e na luta por
melhores condições de trabalho.
Considerações Finais
Mesmo com avanços significativos, as mulheres ainda são excluídas das decisões
em muitas nas organizações sociais (formais e informais), porque a cultura prevalecente
tende a seguir a lógica do interesse próprio, dentro de um padrão patriarcal. Por outro
477
lado, há o longo processo histórico que sustenta a necessidade de diferenciação entre
gêneros para manter uma relação de poder e hierarquia.
As componentes da Rede de Mulheres Caeteuaras enfrentaram situações de
conflito no início de seu processo de organização. Os relatos evidenciam que os ―patrões‖
de então (compradores do produto) procuravam desmobilizar as reuniões e encontros do
grupo. Por exemplo, passavam nas casas das mulheres para dizer que o projeto não iria
dar certo e que elas iriam ficar sem renda alguma e que, portanto, não deveriam
participar. Sabemos que essa estratégia utilizada desmobilizadora não é algo especifico
de uma região ou mesmo desta época em que vivemos. A força de trabalho feminina foi
ao longo do tempo utilizada pelo capitalismo, tanto em sua expansão inicial, quanto em
situações específicas, com a finalidade básica de baixar custos, tendo em vista a mística
de que a mulher, por suas características peculiares, propicia ―naturalmente‖ a ―criação
de mais valia absoluta‖. Não fosse a reação da sociedade, o empresariado teria utilizado
de forma exacerbada e vantajosa a força de trabalho da mulher menos organizada
coletivamente e, muitas vezes, dispersa nas formas de trabalho a domicílio a serviço de
contratadores, em diversos ramos de atividade.
Este artigo apresenta resultados iniciais de uma caminhada de pesquisa. Para isto
será necessário ter clareza dos elementos de desenvolvimento sustentável na
perspectiva de gênero, já que estamos falando do território de uma reserva extrativista e
da também das pressões que sofrem as mulheres para garantir sua produção e sua
própria renda em contextos desfavoráveis.
Atualizar a agenda sobre as relações de trabalho tem sido uma preocupação deve
ser uma preocupação constante um interesse que vai além das pesquisas acadêmicas,
afinal o mundo do trabalho não é só um campo de conhecimento , mas também caminho
fundamental para mudar as desigualdades entre homens e mulheres.
Isso porque o processo emancipatório só pode existir se for desenvolvido
simultaneamente no âmbito coletivo e no individual. E se esse processo, no caso das
mulheres, conseguir conjugar consciência de gênero , consciência de classe e de raça.
478
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Antonio Carlos Diegues e Virgílio M. Viana (orgs.). 2ª edição - São Paulo: Hucitec:
NUPAUB-USP: CEC, 2004. Espaços e Recursos Naturais de Uso Comum
Gianpaolo Knoller Adomilli MÉTIS: história & cultura – v. 8, n. 16, p. 97-119, jul./dez.
2000.
479
IMPLICAÇÕES SOBRE DESIGUALDADE AMBIENTAL PRESENTE NA CARTILHA
“O DIA EM QUE A MATA SUMIU”
https://doi.org/10.29327/527231.5-32
Cláudia de Fátima Ferreira Pessoa UFPA
Carla Cilene Siqueira Moreira UFPA
Tânia Guimarães Ribeiro UFPA
Resumo
Este trabalho tem como objetivo analisar a cartilha O dia em que a Mata Sumiu, do
Programa de Apoio a Conservação Ambiental Bolsa Verde (PBV), a fim de verificar se há
uma dimensão socioambiental da desigualdade e como esta se manifestaria no discurso
dos formuladores da cartilha e nas implicações direcionadas à população por ela afetada,
sobretudo às mulheres, figuras centrais da política pública. A abordagem é de cunho
qualitativo baseada na leitura crítica da cartilha e da análise do discurso nela contida,
articulada com a literatura sobre desigualdade ambiental (ACSELRAD et al., 2013;
HERCULANO, 2002; MORATO e KAWAKUBO, 2007) e estudos com a perspectiva pós
colonial (MIGNOLO, 2003; DUSSEL, 2005). Utilizamos também estudos que tratam do PBV
e outras políticas afins, visando compreender a política pública que enseja a formulação da
cartilha (MOREIRA, 2017; RIBEIRO e SOUSA, 2018; SCHERER e SANTOS, 2015). Com
base nesses estudos defendemos o ponto de vista de que os riscos ambientais afetam
predominantemente grupos sociais vulneráveis, configurando a distribuição desigual das
consequências do desenvolvimento econômico. Inferimos que as dimensões da
desigualdade de saber/poder identificadas no documento são barreiras ao acesso dos
direitos sociais, afetando sobremaneira a constituição da cidadania plena dessas
populações, com importante reflexo sobre as mulheres.
Abstract
This work aims to analyze the booklet The day in which Mata Disappeared, the
Environmental Conservation Support Program Bolsa Verde (PBV), in order to verify
whether if there is a socio-environmental dimension of inequality and how it would
manifest itself in the discourse of the primer formulators and the implications directed to
the population affected by it, especially women, who are central figures of public policy.
The approach is qualitative based on the critical reading of the booklet and the analysis
of the discourse contained therein, articulated with the literature on environmental
inequality (ACSELRAD et al., 2013; HERCULANO, 2002; MORATO and KAWAKUBO,
2007) and studies with the postcolonial perspective (MIGNOLO, 2003; DUSSEL, 2005).
We also use studies dealing with PBV and other related policies, aiming to understand
the public policy that calls for the formulation of the booklet (MOREIRA, 2017; RIBEIRO
and SOUSA, 2018; SCHERER and SANTOS, 2015). Based on these studies, we defend
the view that environmental risks predominantly affect vulnerable social groups,
configuring the unequal distribution of the consequences of economic development. We
infer that the dimensions of the inequality of knowledge/power identified in the document
are barriers to access to social rights, greatly affecting the constitution of full citizenship
of these populations, with an important reflection on women.
480
Introdução
O Programa de Apoio à Conservação Ambiental Bolsa Verde (PBV), foi instituído
pela Lei nº 12.512, de 14 de outubro de 2011. Trata-se de uma política socioambiental
com duplo objetivo: i) a seguridade social das famílias rurais em situação de extrema
pobreza residentes em áreas destinadas à conservação ambiental; ii) contribuir para a
conservação do meio ambiente (MMA, 2019).
Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), em 2014 o PBV abrangia a nível
nacional 71.398 famílias em situação de extrema pobreza. A Amazônia é o bioma com
maior cobertura do programa, com o estado do Pará detendo a maior concentração,
com 29.903 bolsistas. O Programa, concedia a cada três meses, o valor de R$300,00
às famílias caracterizadas como extremamente pobres que residem em áreas
consideradas prioritárias à conservação ambiental.
Em 2014, três anos após a implementação do programa, o MMA elaborou uma
cartilha cujo objetivo era instruir os bolsistas sobre a importância da conservação dos
recursos naturais mediante a transferência de renda. ―O dia em que a mata sumiu‖ foi o
nome dado a cartilha.
Neste trabalho, refletimos acerca do conteúdo e de alguns elementos presentes
nesta cartilha. A abordagem é de cunho qualitativo baseada na leitura e interpretação
da cartilha em questão, junto à literatura sobre desigualdade ambiental (ACSELRAD et
al., 2013; HERCULANO, 2002; MORATO; KAWAKUBO, 2007) e estudos com a
perspectiva pós colonial (MIGNOLO, 2003; DUSSEL, 2005). Utilizamos também
estudos que tratam do PBV e outras políticas afins, visando aprofundar a compreensão
da política pública que enseja a formulação da cartilha (MOREIRA, 2017; RIBEIRO e
SOUSA, 2018; SCHERER e SANTOS, 2015).
Nesse sentido, pretendemos analisar se há uma dimensão socioambiental da
desigualdade e como esta se manifestaria no discurso dos formuladores da cartilha e
nas implicações direcionadas à população por ela afetada, sobretudo às mulheres,
figuras centrais da política pública.
O arranjo familiar predominante entre os cadastrados no PBV é o monoparental
feminino, que caracteriza 36% das famílias, seguido por casal com filhos, que
corresponde a 33% dos casos. Famílias monoparentais femininas situam-se,
predominantemente, na faixa de extrema pobreza, diminuindo a sua recorrência nas
outras faixas de renda (MDS, 2014).
A perspectiva pós colonial presente nos estudos de Mignolo (2003) como saber
subalterno e colonialidade do saber, nos estudos de Dussel (2005), nos ajuda a
compreender o discurso da cartilha como um instrumento que pode expressar visões
hegemônicas que, além de inferiorizar as populações, pode essencializá-las. A
481
colonialidade do saber configura relações de saber hierárquicas que, de certa forma,
invisibiliza a trajetória e a especificidade de povos que se distanciam da lógica que o
modelo dominante ocidental impõe.
A episteme desenvolvida em um ponto geográfico específico que se afirma como
o centro da racionalidade, subentende que haja uma periferia ausente de processos
racionais. O modelo da Modernidade que passa a vigorar nas sociedades européias é
vista por Dussel (2005) como a ―justificativa de uma práxis irracional de violência‖ (p.
29). O mito da modernidade se assenta, dentre outros aspectos, no ideal de que a
civilização moderna seja a mais desenvolvida e superior, bem como haja uma exigência
moral de ―desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes‖ (DUSSEL, 2005).
Entendemos que o teor da cartilha reflete concepções socialmente construídas,
emitidas pelo poder estatal e traduzidas em políticas públicas, que retornam ao cotidiano
dos cidadãos em questão. Reflete a visão que os idealizadores da política detêm acerca da
população alvo do programa. A assertiva de que foi o governo quem ―inventou um jeito de
cuidar da natureza‖ contida na cartilha, desvela um saber que é moldado em relações de
poder (MIGNOLO, 2003). O Estado, nesse caso, é quem tem o domínio de um saber
específico e legítimo, que reduz ou desconsidera o saber outro da população. Dessa forma,
a política pública é apresentada ao longo da cartilha, como a representação do saber e
poder que o Estado detém para resolução dos problemas apresentados.
Desigualdade Ambiental
O conceito de desigualdade ambiental aponta o fato de que o modelo de
produção vigente possibilita que os danos advindos de práticas nocivas, os riscos
ambientais, recaiam predominantemente sobre grupos sociais vulneráveis,
configurando uma distribuição desigual dos benefícios e malefícios do desenvolvimento
econômico (ACSERALD, 2011; ACSELRAD et al., 2012).
Morato e Kawakubo (2007) indicam que este conceito pode também ser analisado
sob os termos de Justiça Ambiental, que reúne os princípios que certificam que não
haja uma desproporção entre grupos sociais, das consequências ambientais negativas
de atividades econômicas, políticas e programas (HERCULANO, 2002). E injustiça
ambiental por sua vez refere-se ao mecanismo pelo qual sociedades desiguais
destinam a maior parcela dos danos ambientais a populações vulneráveis e de baixa
renda (HERCULANO, 2002).
O uso da desigualdade ambiental enquanto categoria analítica é importante, pois,
a articulação que se faz ao pensar elementos sociais e ambientais expõe as
consequências do desenvolvimento econômico que afetam os grupos sociais. Nesse
trabalho construímos a interpretação de que essa dimensão da desigualdade pode se
482
expressar, também, numa atribuição desigual da responsabilidade sobre a conservação
do meio ambiente.
No contexto brasileiro, às populações rurais, em especial as extrativistas, se
voltam novos modelos de desenvolvimento e de políticas públicas e sociais (MOREIRA,
2017). Elas prevêem a constituição da cidadania daquelas populações, que por longo
tempo foram preteridas pela agenda governamental. O MMA enquanto principal gestor
da política na época de sua execução entendia que a
483
Esse trecho ilustra as consequências negativas do desenvolvimento subscrito no
termo cidade, que altera a reprodução da vida no campo, afetando modos de vida
humanos e não humanos. Ao mesmo tempo, se observa um tom de neutralidade ao não
destacar os responsáveis pelo avanço deste desenvolvimento e suas consequências -
como a devastação das áreas ambientais - às áreas que a política visa atingir.
Contudo, em um trecho seguinte, sobressai o direcionamento de parte da
responsabilidade aos bolsistas: ―Só sobrou mesmo da mata, nas terras das gentes
simples, que, às vezes, necessitada, também derrubava uma árvore, também levantava
um pasto, também passava um motosserra”. (MMA, 2014, p.7) O encargo desigual dos
custos do desenvolvimento passa a ser naturalizado. Há também uma posição ambígua
que ora afirma que a floresta é abundante em seus recursos, ora afirma que o processo
de desaparecimento da natureza foi acelerado pela ação da população.
Foi conferido, em certa medida, o reconhecimento à população, quando nos
deparamos com o trecho que alude a criação do PBV ―[..] recompensando o povo
simples que lutava com nobreza‖ (MMA, 2014, p.11). Ainda assim tal reconhecimento
pode fomentar a desigualdade, quando este se torna sinônimo de uma obrigação que
deveria ser imputada ao Estado (SCHERER e SANTOS, 2015; MOREIRA, 2017
RIBEIRO e SOUSA, 2018).
De acordo com Moreira (2017) em seu estudo sobre o PBV na Reserva
Extrativista de São João da Ponta, no Pará, além da responsabilização por parte do
Estado às populações pobres rurais com a degradação do meio em que vivem, não há
na cartilha ―informações sobre os objetivos do Programa de promoção da cidadania e
inclusão produtiva, sendo o foco voltado à conservação e a informações referentes à
transferência de renda‖ (MOREIRA, 2017, p. 115).
Ainda assim o PBV em si melhorou a perspectiva de qualidade de vida dado o
aumento de renda obtido. Para algumas famílias, por vezes o valor recebido constitui a
única ou principal fonte de renda, possibilitando especialmente maior autonomia das
mulheres que o recebem (MOREIRA, 2017; RIBEIRO e SOUSA, 2018).
Por outro lado, as especificidades sociais não são devidamente retratadas, diante
a diversidade das populações tradicionais. Essa generalização além de desconsiderar
aspectos regionais, contribui à essencialização destas populações como as únicas
responsáveis pelo meio ambiente, além de reforçar alguns estigmas, que tem como
pano de fundo a divisão sexual do trabalho que perpassa as relações de gênero.
484
e rurais, que são a ponte desse tipo de política. Para Feltran (2014), o dinheiro passa a
ter o valor de mediador de conflitos entre grupos populacionais, se elevando ao papel
que a lei e a moral poderiam exercer sobre esses grupos. Dessa forma,
485
manutenção familiar. Ao passo que personagens masculinos exibem atividades
econômicas, como a extração, sendo aqueles que se deslocam para além do domínio
pessoal e por isso, socialmente mais valorizados.
O papel da mulher tem sido rotulado socialmente como uma dona de casa, figura
materna e responsável pela família e lar, enquanto o papel do homem é de garantir o
sustento material. Devido a essa divisão, por muito tempo a mulher não fez parte de
algumas questões ambientais ao qual ela é peça fundamental dentro da sociedade para
a conservação de seu ambiente (ROSA et. al, 2016).
Entretanto isto é um equívoco, posto que aproximadamente dois terços das
mulheres de países mais pobres trabalham na agricultura (SOF, 2006) e no Brasil, em
particular, várias mulheres da área rural que realizam variadas atividades econômicas,
se articulam e se organizam em movimentos sociais nacionais, como a Marcha das
Margaridas. Nesse sentido, as
486
Pode-se entender que há uma diferenciação simbólica nos desenhos da cartilha, que
hierarquiza as práticas de homens e mulheres. A validade desse discurso demonstra como
o saber hegemônico além de subalternizar as populações tradicionais (MIGNOLO, 2003)
com seus saberes e particularidades, ainda agrava a desigualdade de gênero.
Torreão (2007 apud ROSA et. al, 2016) infere que considerar a igualdade de
gênero como forma de análise nas políticas públicas, revela que as questões
reivindicadas por mulheres não só devem ser vistas em sua importância política, mas
enquanto um fator estratégico para o alcance do desenvolvimento do meio ambiente e
sustentabilidade. Rosa et. al (2016) aponta que não é suficiente apenas a inserção de
mulheres em um modelo de desenvolvimento, se este processo ocorre através de
programas assistencialistas e projetos de conservação que reproduzem e corroboram
seu ―papel tradicional‖ na sociedade.
Uma crítica importante que se faz ao discurso do modelo de desenvolvimento
pode ser observada no trabalho das autoras feministas latino americanas Barragán et
al. (2017), que apresentam como os diversos feminismos formularam suas concepções
acerca da relação desenvolvimento e mulheres. Com especial atenção a produções fora
do eixo europeu e americano, essas autoras entendem a retórica do desenvolvimento
como um "discurso que tem desvalorizado sistematicamente outros saberes e
provocado importantes efeitos de dominação – entre outros, sobre o corpo e a fala das
mulheres" (BARRAGÁN et al., 2017, p.90).
Para estas autoras, as mulheres sempre operaram nos processos de
desenvolvimento, dentro de suas culturas e sociedades específicas. Apontam também
que o trabalho, doméstico ou não, foi essencial à manutenção de suas sociedades.
Estes apontamentos indicam que a desigualdade ambiental se apresenta, mesmo
que sutilmente, no discurso da cartilha do PBV ao impor o dever da conservação dos
recursos naturais apenas às famílias bolsistas e isentando outros atores, sejam do
mercado ou Estado. Ademais, compreendemos que esta dimensão da desigualdade
afeta sobremaneira a cidadania dessas populações, uma vez que o reconhecimento
obtido se traduz cada vez mais na condição de responsabilidade e obrigatoriedade.
Outro aspecto importante é o papel dúbio da mulher, que é apresentada como a
protagonista na questão da transferência de renda, contudo é diminuída na importância
de suas atividades também produtivas. A essencialização da figura feminina no
discurso da cartilha, a única a poder receber o valor, demonstra que ao mesmo tempo
que o fator renda pode gerar maior autonomia, pode também fortalecer desigualdades a
partir da responsabilidade que a política pública determina.
487
Figura 3. A mulher como ―guardiã da floresta"
Fonte:MMA, 2014
Considerações Finais
A desigualdade de saber e de poder se apresenta, ainda que sutilmente, no
discurso da cartilha ao impor um dever apenas às famílias bolsistas, isentando outros
atores. O modelo de escrita em cordel, que chega a ter um caráter lúdico pode ofuscar
e mesmo ocultar as implicações contidas nas entrelinhas e ilustrações da cartilha.
Por outro lado, inferimos que o aumento de renda condicionado pela política
contribuiu para a maior autonomia das mulheres que o recebem, um ponto positivo, que
pode ser ressaltado em futuras produções como desta cartilha em estudo. Bem como a
política pública e seus benefícios podem e devem ser mostrados como o resultado de
processos dinâmicos que ocorrem dentro de uma arena pública, e não como uma
resolução vertical, idealizada como dádiva e convertendo direitos dos grupos sociais em
obrigatoriedade e sujeito a rígidas condicionalidades.
A atribuição da responsabilidade em receber o valor em dinheiro às mulheres, mães
de família, apresenta o aspecto negativo da essencialização feminina. A mulher continua
488
a ser idealizada como o indivíduo que deve se preocupar com a família e o lar, apenas,
não tendo suas atividades produtivas valorizadas no conteúdo do material.
No que se refere especificamente ao programa, ele mostrou potencial para a
cidadania das populações rurais e transformação da realidade, conforme se constata
em alguns estudos feitos em duas reservas extrativistas da Amazônia (MOREIRA,
2017; RIBEIRO e SOUSA, 2018).
Porém, instrumentos, como a cartilha, são entraves para a efetividade da política,
podendo sobrepor desigualdades - de gênero, de renda - e reforçando a permanência
da desigualdade ambiental (PESSOA, 2019). Os cortes e a incerteza quanto à
continuidade do programa agravaram a situação da pobreza e da desigualdade rural,
tendo em vista o retorno de índices alarmantes no país.
489
REFERÊNCIAS
MMA. O Dia em que a Mata Sumiu. Brasília, DF: Ministério do Meio Ambiente, 2014.
490
SCHERER, Elenise; SANTOS, Jander. Em defesa da floresta em pé: transferência
de renda para as famílias guardiãs dos recursos ambientais na Unidades de
conservação no estado do Amazonas. In: NASCIMENTO, Maria Antonia (Org.).
Tempo de bolsas: estudos sobre programas de transferência de renda.
Campinas, SP: Papel Social, 2015. p. 95-116.
SILVEIRA, Maria Lucia; FREITAS, Taís Viudes. Trabalho, corpo e vida das mulheres:
crítica à sociedade de mercado. São Paulo: SOF, 2007.
491
AS PARTEIRAS RIBEIRINHAS DO AMAPÁ: A ARTE DE PARTEJAR E O RACISMO
EPISTÊMICO
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-33 Maria das Neves Maciel da Luz
2
David Junior de Souza Silva
Resumo
Esta pesquisa tematiza a relação entre a prática tradicional das parteiras e Estado nacional
brasileiro, concebido em suas ações pela atuação da rede pública de saúde no município de
Macapá-AP. Problematiza-se o significado atribuído ao saber tradicional das parteiras com o
processo de colonização que viveu o país, o racismo estrutural instituído, e diante de
políticas públicas de incorporação de seus saberes tradicionais na estrutura burocrática do
Estado brasileiro. De acordo com a pesquisa, no espaço urbano do Estado, essa relação
entre conhecimento tradicional e conhecimento científico, quando ―ocorre‖ geralmente se dá
em períodos oscilatórios, com objetivo de aprimorar as práticas tradicionais das parteiras por
meio de dos cursos de capacitações e troca de saberes entre os agentes envolvidos, mas
sempre com prevalência do saber médico oficial, pois o Estado não as reconhece enquanto
profissionais. Esta inserção é de forma subordinada e descaracterizadora. As parteiras, nos
espaços de saúde oficiais, não têm autonomia para realizar seu trabalho, dado o racismo –
velado e institucional – por parte dos funcionários destes órgãos e da lógica disciplinar e
eurocêntrica que os rege. As políticas públicas de inclusão das parteiras nos espaços
oficiais de promoção de saúde pública, assim, tende a descaracterizar e subordinar seu
conhecimento, atualizando o epistemicídio. Sendo políticas denominadas como de
―inclusão‖, não contestamos que façam esta autoproclamada inclusão, porém trata-se de
uma inclusão epistemicida. As políticas públicas neste caso são veículos do epistemicídio e
da efetivação completa da colonização.
ABSTRACT
This research discusses the relationship between the traditional practice of midwives and the
Brazilian national state, conceived in their actions by the public health network in the city of
Macapá-AP. The meaning attributed to the traditional knowledge of midwives with the
colonization process that lived the country, the structural racism instituted, and the public policies
of incorporating their traditional knowledge into the bureaucratic structure of the Brazilian state
are problematized. According to the research, in the urban space of the State, this relationship
between traditional knowledge and scientific knowledge, when it "occurs" usually occurs in
oscillatory periods, aiming to improve the traditional practices of midwives through training and
exchange courses. knowledge among the agents involved, but always with prevalence of the
official medical knowledge, because the State does not recognize them as professionals. This
insertion is subordinate and uncharacteristic. Midwives, in official health settings, do not have the
autonomy to perform their work, given the racism - veiled and institutional - by the officials of
these bodies and the disciplinary and Eurocentric logic that governs them. Public policies for the
inclusion of midwives in official public health promotion spaces thus tend to mis characterize and
subordinate their knowledge, updating the
1
Discente da Pós-Graduação em Estudos Culturais e Políticas Públicas – PPCULT/UNIFAP.
Licenciada e Bacharela em Ciências Sociais; Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4804952121029797; E-mail: nevesunifap@gmail.com.
Professor da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. Cientista Social; Currículo Lattes:
2
http://lattes.cnpq.br/4265076306351873; E-mail: davi_rosendo@live.com.
492
epistemicide. Being policies called ―inclusion‖, we do not dispute that they make this self-
proclaimed inclusion, but it is an epistemicidal inclusion. Public policies in this case are
vehicles for epistemicide and for the complete implementation of colonization.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tematiza a relação entre a prática tradicional das parteiras e a rede
pública de saúde no município de Macapá-AP. Problematiza-se o significado atribuído ao
saber tradicional das parteiras com o processo de colonização que viveu o país, o racismo
estrutural instituído, e diante de políticas públicas de incorporação de seus saberes
tradicionais na estrutura burocrática do Estado brasileiro.
O objetivo principal é compreender como se deu a inserção das parteiras tradicionais
na rede pública de saúde do estado do Amapá, mediada pela implementação da Política
Pública ―Resgate e Valorização das Parteiras Tradicionais no Amapá‖, lançada pelo governo
estadual em outubro de 1995. O objetivo desta política era a inserção das parteiras no
Sistema Único de saúde (SUS) no Amapá. Esta política havia sido criada dentro de um
programa maior, o Programa de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA), que
visava o fortalecimento das tradições locais do estado.
Este objetivo foi desdobrado nas seguintes linhas de reflexão: em que se baseia
cosmologicamente o saber das parteiras tradicionais? Quais os requisitos exigidos das
parteiras para participar da política e quais as ações propostas pela política tendo como alvo
as parteiras? Qual a relação das parteiras com os funcionários da rede de saúde? Qual a
relação das parteiras com o saber médico e com os operadores do saber médico (médicos e
enfermeiros)?
A pesquisa foi realizada nos anos de 2017 e 2018. A metodologia empregada foi
realização de entrevistas com parteiras tradicionais em suas residências e com funcionários
do SUS, sobre o universo formado pelas relações entre ambos no contexto impulsionado
pela política. Malgrado as parteiras geralmente tenham origem ribeirinha, ou seja, vivam em
comunidades rurais, aquelas entrevistadas nesta pesquisa são as que vivem na cidade de
Macapá, e se inseriram na política pública quando de sua implementação.
Conforme descobrimos, no espaço urbano do estado do Amapá, a relação entre
conhecimento tradicional e conhecimento científico, quando ―ocorre‖ geralmente se dá em
períodos oscilatórios, com objetivo de aprimorar as práticas tradicionais das parteiras por
meio de dos cursos de capacitações e troca de saberes entre os agentes envolvidos, mas
sempre com prevalência do saber médico oficial, pois o Estado não as reconhece enquanto
profissionais.
493
Esta inserção é de forma subordinada e descaracterizadora. As parteiras, nos
espaços de saúde oficiais, não têm autonomia para realizar seu trabalho, dado o racismo –
velado e institucional – por parte dos funcionários destes órgãos e da lógica disciplinar e
eurocêntrica que os rege. As políticas públicas de inclusão das parteiras nos espaços
oficiais de promoção de saúde pública, assim, tende a descaracterizar e subordinar seu
conhecimento, atualizando o epistemicídio. Sendo políticas denominadas como de
―inclusão‖, não contestamos que façam esta autoproclamada inclusão, porém trata-se de
uma inclusão epistemicida. As políticas públicas neste caso são veículos do epistemicídio e
da efetivação completa da colonização.
494
econômicos de sua produção ideológica e de sua ação de conquista de territórios pelo
mundo; a universalidade da modernidade, e seu universo simbólico e ideológico, precisa ser
contextualizada sobre a localização restrita em que emerge, e sua neutralidade e
objetividade precisam ser referenciadas aos interesses que revestem, para que histórica e
geograficamente sejam visibilizados os efeitos geopolíticos desta auto-invisibilização como
estratégia.
Para esta contexto-referenciação Dussel reconta a história da formação da Europa
moderna a partir dos elementos que a ideologia da modernidade quis ocultar como forma de
potenciação de seu discurso de dominação. O autor reconstrói a história de Europa até a
transição definitiva iniciada em 1492, para explicar neste passado algumas características
do sistema-mundial que o pequeno continente tentava criar – e onde pretendia ocupar
posição de máxima superioridade.
Ao período histórico e formação social global que a Europa chama de Modernidade
(ocultando seus interesses políticos e econômicos nisso), Dussel propõe que chamemos de
―eurocentrismo‖, enfatizando o aspecto absolutamente restrito da cultura do período, com
predominância da cosmologia europeia, e ressaltando os interesses de a Europa impor seus
valores e visão de mundo.
O eurocentrismo, como ideologia que alça a Europa e sua cultura à posição de
superioridade, confunde a universalidade abstrata com a mundialidade concreta,
hegemonizada pela Europa como ―centro‖ do mundo, mais ―à frente‖ no tempo, e no ―topo‖
do sistema-mundo piramidal que ela mesma construiu.
Para estar no ―topo‖, a Europa tem de provar sua superioridade; como isto não é
possível, a ideologia da modernidade eurocêntrica desqualificou outros povos, sua cultura e
seus saberes, como forma de instituir a superioridade europeia. Criou para isso o racismo,
espalhou a desumanização que este opera, em suas diversas formas, uma delas: a do
racismo epistêmico – que desqualifica todo conhecimento que não seja produzido nos
moldes europeus e segundo seus critérios de cientificidade – que de puros e neutros não
têm nada, permeados que são de interesses econômicos e políticos.
A ideologia do eurocentrismo se relaciona com o saber/arte de partejar das
carteirinhas ribeirinhas do Amapá na forma do racismo epistêmico, pelo qual a ideologia
eurocêntrica desqualifica e inferioriza estes saberes tradicionais.
As parteiras trazem consigo saberes únicos, capazes de identificar até mesmo aspectos
anatômicos da criança na barriga da mulher tendo como técnicas o olhar, intuições, massagens
e toques na barriga da gestante. Orientam uma mulher que as procuram com dores ou quando a
criança está ―fora do lugar‖, ou seja, na posição incorreta – neste caso, as parteiras posicionam
corretamente o feto com um toque no ventre da mulher, facilitando mais tarde o nascimento do
bebê. (RAMLOV e GREVE, 2016, p. 4). Pelo racismo epistêmico,
495
todavia, a modernidade europeia e sua concepção de saber como monopólio da ciência
europeia desqualificam o saber discursivo e prático do conhecimento tradicional das parteiras.
Diante do racismo epistêmico instituído pela pretensão de monopólio absoluto do
saber e da verdade pela razão moderna, Dussel afirma a necessidade de transcender a
razão moderna, mas não como negação da razão enquanto tal, e sim da razão eurocêntrica,
violenta, desenvolvimentista, hegemônica, que nega outras formas de saber. A razão
eurocêntrica, cujo irmão gêmeo é o racismo epistêmico, apresenta-se como uma justificativa
de práxis irracional de violência sobre o saber tradicional.
O racismo epistêmico é o produto da epistemologia eurocêntrica, e caracteriza-se
pela monopolização da legitimidade epistêmica aos saberes eurocêntricos. O racismo
epistêmico estabelece o privilégio monopólico do saber ao homem branco europeu.
496
de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência
material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de
discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível
desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem
desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos
cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o
conhecimento ―legítimo‖ ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de
morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de
aprender etc.
uma forma de sequestro da razão em duplo sentido: pela negação da
racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe
é imposta.
Sendo, pois, um processo persistente de produção da inferioridade
intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades
intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades
realiza, sobre seres humanos instituídos como diferentes e inferiores
constitui, uma tecnologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e
que tem por característica específica compartilhar características tanto do
dispositivo quanto do biopoder, a saber, disciplinar/ normalizar e matar ou
anular. É um elo de ligação que não mais se destina ao corpo individual e
coletivo, mas ao controle de mentes e corações. (CARNEIRO, 2005, p. 97)
497
étnica a fim de não se verem abruptamente subjugados por agentes da
sociedade nacional, a cujos desígnios tenham de submeter seu próprio
destino. (RIBEIRO, 1968, p. 220).
498
legítimo, impondo e estabelecendo regulações sociais ao âmbito da saúde, através de sua
institucionalidade por meio das escolas médicas, oficializando a profissão do parto, o
conhecimento das parteiras é, nacionalmente, desacreditado pelo saber médico. O saber
das parteiras não é validado institucionalmente.
No Amapá, houve uma única experiência de reconhecer o saber e a função social
das parteiras institucionalmente por meio de uma política pública específica, que buscou
reconhecer esses saberes por seu valor cultural intrínseco e pela função que representam
naqueles territórios dentro do estado onde a política de saúde oficial não chegava.
Esta política pública foi chamada de Resgate e Valorização das Parteiras
Tradicionais no Amapá, criada em outubro de 1995, teve o objetivo manifesto de fortalecer,
manter vivo saberes e fazeres das parteiras, reconhecendo a importância do conhecimento
tradicional para memória histórica e cultural do estado e tradições locais.
De acordo com Barroso (2017), o projeto teve por objetivo intermediar a articulação
entre Estado e sociedade civil a respeito da viabilização e efetivação das políticas propostas;
nesse percurso a ação principal era envolver as parteiras tradicionais buscando ―o
reconhecimento e valorização das parteiras tradicionais, com intuito de tirá-las do
anonimato, profissionalizando-as e apoiando-as em seu trabalho‖ (BARROSO, 2017, p.
126). A política almejava a regulamentação da pratica tradicional do parto, sem modificar o
estilo de fazer parto.
Esta política buscava esta regulamentação e valorização por meio da inserção das
parteiras no Sistema Único de saúde (SUS), de forma estabelecer e articular uma relação
entre saber tradicional e saber científico em consonância com o arcabouço legal do
Ministério da Saúde (MS) e com o objetivo da proteção do patrimônio cultural.
A política pública era um desdobramento também das ações do Programa de
Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA), que objetivava o fortalecimento das
tradições locais, no bojo das preocupações já com o enfraquecimento destas tradições
causado pela modernização.
A regulamentação visava atribuir oficialidade ou legitimidade institucional ao partejar
tradicional e às parteiras como detentoras de um conhecimento e uma função socialmente
válidos. Um dos elementos desta valorização era um reconhecimento financeiro por parte do
estado, o programa bolsa-parteira.
Entretanto, para viabilizar esta regulamentação do partejar tradicional e a inserção
deste no SUS, era preciso estabelecer algumas medidas para conciliar o partejar tradicional
com o regimento do Ministério da Saúde. Entre estas medidas, estava a frequência pelas
parteiras a um curso de capacitação.
O depoimento abaixo é de Dona Caridade do Rosário Sá, 83 anos, mãe de 05 filhos,
viúva, moradora de Macapá (AP). Em entrevista realizada na residência da parteira, que fez
499
o curso de capacitação e foi cadastrada no programa bolsa parteira. Em sua fala, ela
relata como recebeu o chamado do programa.
Quando cheguei a Macapá (1993), a Janete queria parteira para fazer curso
e quando ela soube que eu era parteira ela mandou me buscar aqui em
casa eu nem sabia de nada, foi quando chegou um homem bem vestido
num carrão preto me buscar para comparecer na reunião das parteiras, com
papel e tudo na mão para falar da minha história de parteira, hoje não
lembro, mas quanto parto já fiz, mas peguei uns quantos filhos no interior.
Em Macapá, fiz cinco partos, hoje não pego, mas devido minha idade 83
anos, mas puxo barriga até hoje eu puxo, e ajudo muitas mulheres não
serem cortadas. (Dona Caridade, 2017).
500
O primeiro curso de capacitação ocorreu de 09 a 13 de julho de 1996, em que foram
capacitadas 327 parteiras tradicionais. Ao término do curso as parteiras receberam bolsas
parteiras, certificados e crachá.
A política de valorização das parteiras teve outros objetivos, dos quais citamos
alguns aqui: realizar o censo das Parteiras Tradicionais, buscando identificá-las; realizar
cursos de capacitação para essas parteiras; distribuir uma bolsa kit com o material
necessário para a realização do parto domiciliar, esclarecendo a importância da utilização
deste material; difundir os conhecimentos da ―arte de partejar‖ entre os profissionais de
saúde (convencionais ou não, estabelecer um sistema de referência para gravidez de risco e
partos complicados, e reconhecimento profissional, com inserção das parteiras nos serviços
locais de Saúde, buscando assegurar assim seus direitos.
Conforme Barroso (2017), o programa de capacitação conviveu com uma forte
tendência de romantização das parteiras, romantização pela qual estas se tornam símbolos
anacrônicos ―de um passado ao qual não se pode pretender retornar‖, porém que, todavia,
ecoa na resistência à medicalização do parto, à mercantilização da saúde e à fragmentação
do ser humano. Conforme a autora, o projeto buscava a visibilidade das atividades das
parteiras, reconhecendo nele um aspecto da cultura local, sobretudo valorizar, definir e
integralizar ao sistema de saúde do Estado, a fim de garantir um atendimento ―eficaz‖ e
―contínuo‖, incorporando assim a participação e formação consciente da cidadania, voltada
para a manutenção e regularização da cultura do parto tradicional.
No arcabouço legal nacional, há já o reconhecimento da parteira. Consta na lei nº 7.498,
de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre regulamentação do exercício da enfermagem. Seu
artigo 9° define como são reconhecidas legalmente as parteiras, vinculando esse
reconhecimento ao certificado previsto no art. 1° do Decreto-Lei n° 8.778, de 22 de janeiro de
1946, observado o disposto na Lei n° 3.640, de 10 de outubro de 1959. No estado do Amapá a a
lei nº 3.308-B, de 2004 reconhecem as parteiras como profissionais do parto.
O reconhecimento profissional e da função social das parteiras conflita com esta
romantização, sedimentada em momentos pelos quais a sociedade apenas as vê sob o viés
do patrimônio cultural, em eventos esporádicos celebram sua existência em datas
comemorativas, como por exemplo, a promovida pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), datando o dia 5 de maio como dia Internacional da Parteira desde 1991.
Estas datas comemorativas realizam algum tipo de reconhecimento sem
reconhecimento, porque, apesar das celebrações, as parteiras continuam sem uma
legitimação e reconhecimento concreto no arcabouço jurídico estatal.
Esses efeitos aos povos tradicionais não ocorrem de forma esporádicas, mas
sistêmica, da omissão e negligência dos sucessivos governos. É fruto da
intolerância e do preconceito perpetuados em todos os rincões do Brasil. Por
501
ser um País pluriétnico, deveria reconhecer a existência de diversos ―grupos
participantes do processo civilizatório nacional‖, ―em prol da diversidade
étnica e regional‖, como determina a Constituição, em seus artigos 215 e
Esses grupos são indígenas, quilombolas, ribeirinhos, quebradores de
coco babaçu, peconheiros (apanhadores de açaí). Denominados de povos
ou comunidades tradicionais, são sujeitos de direitos específicos. (PONTES
JUNIOR, 2017, p. 14).
502
parteiras, os testemunhos das parteiras confirmam que não se estabelece uma relação de
integração com os profissionais da saúde pública. Na prática, as parteiras têm sua inclusão
negada para atuarem nos órgãos de saúde pública.
As ações educativas são peça central destas políticas de inserção e reconhecimento
das parteiras, pois ajudam no possível processo de inclusão do trabalho das parteiras no
SUS mediante o curso de capacitação. A ação educativa incidindo sobre as parteiras foi
atividade central da política, ocorrendo o lançamento do manual Trabalhando com Parteiras
Tradicionais, onde são descritos todos os mecanismos que a parteira precisa saber para
fazer um parto de forma estabelecida como segura pelo ministério da Saúde.
503
No busca el diálogo que conlleva la conversación horizontal, de igual a igual
entre los pueblos ni el entender los conocimientos indígenas en sus propios
términos, sino que busca extraer idea como se extraen materias primas
para colonizarlas por medio de subsumirlas al interior de los parámetros de
la cultura y la episteme occidental. (GROSFOGUEL, 2016b, p. 132)
504
práticas ancestrais buscando reconhecimento e valorização dos seus saberes tradicionais,
ao contrário do saber formal dos médicos ou agentes oficiais de saúde dirigidos pela
instituição do Estado Moderno que reconhece a legalidade exclusiva desses profissionais de
saúde. Diz a autora:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil é um país pluriétnico mas não tem um correspondente Estado Plurinacional.
Muitos direitos étnicos estão garantidos na Constituição, como direito ao território, ao modo
de vida diferenciado, à própria cultura e religiosidade; porém o problema se dá no fato
efetivação da cidadania: na enorme distância que já entre o direito instituído na Constituição
e o efetivado e reconhecido na realidade social.
O direito aos saberes tradicionais é um destes saberes garantidos na Constituição do
Brasil, pela qual os povos tradicionais estão protegidos da discriminação e do desrespeito
face a seus conhecimentos e visão de mundo. Todavia, são poucos os instrumentos
administrativos, educativos e jurídicos instituídos no Estado brasileiro para efetivar de fato
este direito e proteger os povos da discriminação – o que implica poucas ações estatais de
proteção contra violências e reparação de agressões.
Nesta seara, no Amapá houve a criação de uma política pública muito significativa
neste domínio, que objetivava formalmente o reconhecimento e valorização do saber de um
grupo tradicional específico, as chamadas ―parteiras tradicionais‖, detentoras do saber
partejar e de conhecimentos de ervas e raízes medicinais.
Neste texto avaliamos o sentido de uma política pública de inclusão realizada pelo e no
arcabouço burocrático do Estado brasileiro. O resultado é que por características estruturais e
por uma série de reveses, que incluem contrariar poderes econômicos e políticos estabelecidos
e pelo racismo estrutural (velado e institucional) a política configurou-se em
505
mais uma ação epistemicida do Estado para apagar o saber das parteiras e subalternizá-los
como grupo tradicional.
O universalismo e neutralidade/objetividade da ciência moderna converte-se em
instrumento de apagamento dos saberes tradicionais e subjugação dos outros povos. Diante
deles, realiza o racismo epistêmico, invalidando-os; quando pretexta o diálogo, realiza o
extrativismo epistêmico, do qual se alimenta dos saberes tradicionais, higienizando-os e em
seguida deslegitimando seu exercício pelos povos que os criaram.
A política pública de inclusão e reconhecimento se tornou outra tecnologia
de epistemicídio, colonialismo interno e subcidadania.
506
REFERÊNCIAS
ACKER, J.I.B.V., ANNONI F., CARRENO I., HAHN G.V., Medeiros C.R.G. 2006. As
parteiras e o cuidado com o nascimento. Revista Brasileira Enfermagem, 59: 647-51.
507
PERCEPÇÃO DE MULHERES SOBRE IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS NA RESEX
MARINHA CUINARANA, MAGALHÃES BARATA-PA
https://doi.org/10.29327/527231.5-34
Fernanda Vale de Sousa - Universidade Federal Rural da Amazônia
Ruth Helena Cristo Almeida - Universidade Federal Rural da Amazônia
Resumo:
As mulheres da Amazônia têm papel fundamental na história, socioeconomia e conservação
dos ecossistemas da região, e podem apresentar diferentes perspectivas quanto às relações
de gênero e às questões ambientais. O objetivo desta pesquisa foi avaliar a percepção
socioambiental das mulheres residentes na comunidade Fazendinha (Magalhães Barata-
PA), sobre os impactos socioambientais na RESEX Marinha Cuinarana. Para tanto, foi
realizado um estudo de caráter quali-quantitativo, a partir de entrevistas formais e informais,
com 27 mulheres da comunidade, e análises de relatórios concedidos pelo ICMBio e
SEMMA. Os resultados demonstraram que apenas 33% das entrevistadas conhecem sobre
a RESEX, e há pouca participação de mulheres nas tomadas de decisão sobre esta. O
principal impacto socioambiental apontado foi o desaparecimento das ostras, causando
prejuízos às marisqueiras e na socioeconomia local. Assim, tornou-se imprescindível uma
organização feminina mais consolidada, e integração dos conhecimentos tradicionais e
científicos.
Palavras-chave: Unidade de conservação; Extrativismo; Impacto socioambiental;
Entrevistas; Ecofeminismo.
Abstract:
This article aims to evaluate the socio-environmental perception of women living at
Fazendinha Community, in the county Magalhães Barata-PA, about the socio-environmental
impacts in the Extractive Marine Reserve (RESEX) Cuinarana. A qualitative and quantitative
study was conducted, based on formal and informal interviews with 27 women from the
Community, and analysis of reports provided by ICMBio and SEMMA. The results showed
that only 33% of respondents know about the RESEX, and there is little participation of
women in decision-making process in the RESEX. The main socioenvironmental impact was
the disappearance of the oysters, causing damage to women clammers and local
socioeconomics. Thus, a more consolidated female organization and the integration of
tradicional and scientific knowledge became essential.
Keywords: Conservation unit; Extractivism; Socio-environmental impact; Interviews;
Ecofeminism.
508
Introdução
509
diversidade de valores e visões das comunidades, a respeito das questões socioambientais
bastante relevante, visto que as diferentes perspectivas dos indivíduos contribuem para o
entendimento e a efetividade de políticas de intervenção na resolução de problemas sociais
e ambientais (João HOEFFEL et al., 2008).
Desta forma, através da percepção ambiental, pode-se verificar como a perspectiva
da comunidade e as atividades realizadas interferem nas áreas protegidas e na geração de
impactos ambientais, sendo tais ações avaliadas, a fim de se desenvolverem de maneira
sustentável. Ainda, esta percepção pode ser diferenciada para as mulheres, já que a
atuação destas está culturalmente ligada ao natural e às suas funções físicas, servindo
como base para a subordinação das mulheres, assim como ocorre a subordinação da
natureza (Sherry ORTNER, 1979).
O ecofeminismo, como pensamento que direciona a perspectiva feminina sobre
conflitos e impactos ambientais, expressa em uma de suas vertentes (construtivista) que as
interações entre o gênero feminino e o meio ambiente advém do papel das mulheres na
economia familiar (Maximiliano TORRES, 2009). Portanto, a análise da degradação
ambiental e a opressão sobre as mulheres, avaliando-se aspectos como divisão do trabalho
e distribuição de poder, auxilia no melhor entendimento das relações de gênero com as
questões ambientais (TORRES, 2009). O ecofeminismo, no qual se busca analisar e
questionar a dominação sobre as mulheres e o meio, tende a incentivar mudanças nas
relações entre mulheres, homens e meio ambiente.
Nesse sentido, buscou-se avaliar a percepção socioambiental das mulheres
residentes na comunidade Fazendinha no Município de Magalhães Barata-PA, sobre os
impactos socioambientais na RESEX Marinha Cuinarana. Ademais, foram abordados os
aspectos socioeconômicos das mulheres da comunidade, mostrando como as relações de
gênero estão presentes na comunidade e nas atividades extrativistas exercidas pelas
mulheres, bem como, suas relações frente aos conceitos ambientais e impactos
socioambientais presentes na área.
Material e Métodos
510
Reserva Extrativista, para organização e administração da Reserva (ISA, 2018). Localizada
no município de Magalhães Barata/PA, a RESEX Marinha de Cuinarana encontra-se no
Nordeste Paraense, na microrregião do Salgado no Estado do Pará (Figura 1). Os rios
Marapanim e Cuinarana compõem a drenagem do município, sendo o rio Cuinarana o
principal e mais importante rio da RESEX em estudo.
Procedimentos metodológicos
A pesquisa se deu pela análise quali-quantitativa da percepção ambiental das
mulheres residentes na Comunidade Fazendinha. Nesse sentido, adotou-se uma
abordagem exploratória combinada ao método quantitativo, denominada mixed-
methodology, em que se objetivou explicar e obter dados sobre tema de estudo (Wesley
FREITAS; Charbel JABBOUR, 2011).
511
Para a avaliação da percepção das mulheres sobre os impactos socioambientais na
Comunidade Fazendinha, foram realizadas entrevistas informais e formais, com elaboração
de questionários semiestruturados contendo 42 questões, que tiveram como base o
formulário Diagnóstico Socioeconômico das Famílias em Unidades de Conservação
(ICMBio, 2013). O primeiro bloco de questões abrangeu perguntas relacionadas ao perfil
socioeconômico das moradoras, o segundo e terceiro blocos contaram com questões
importantes direcionadas à perspectiva das mulheres da comunidade sobre atividades
extrativistas, meio ambiente e participação feminina.
As entrevistas foram efetuadas nos dias 11, 12 e 13 de janeiro de 2019, na
Comunidade Fazendinha, em residências de 27 mulheres, que se disponibilizaram para
conceder informações e suas perspectivas a respeito do tema. Análise visual dos impactos
ambientais e da disposição de resíduos sólidos foi feita ao longo do estudo, com auxílio de
registros fotográficos e apoio da população. Os dados coletados foram tabulados e
analisados, utilizando-se ferramenta Excel versão 2016.
O desenvolvimento da pesquisa ocorreu por meio da pesquisa bibliográfica, com
fundamentação em estudos e materiais já elaborados pelo ICMBio sobre a RESEX Marinha
Cuinarana e comunidades beneficiárias. O levantamento de informações deu-se, ainda,
através da verificação de relatórios da Secretaria de Municipal de Meio Ambiente (SEMMA)
de Magalhães Barata e reuniões do Conselho Deliberativo da RESEX Marinha Cuinarana.
Resultados e Discussão
512
Figura 2 - Principais atividades econômicas das mulheres da Comunidade Fazendinha
No que diz respeito aos dados educacionais coletados, o nível de escolaridade pode
ser considerado baixo, já que cerca de 59,3% das mulheres possui o ensino fundamental
incompleto (EFI), e somente uma moradora (3,7%) não concluiu o ensino superior (ESI). A
baixa escolarização das mulheres apresentada na comunidade é decorrente das prioridades
identificadas, visto que muitas delas relataram trabalhar com agricultura e pesca desde a
infância, auxiliando os pais na geração de renda, produção e coleta de alimentos.
Ademais, quanto à continuidade da educação e obtenção de trabalho, segundo os
resultados, cerca de 66% das mulheres tiveram dificuldades para estudar. De acordo com os
relatos, algumas das dificuldades para continuação dos estudos envolvem o transporte
ineficaz e as precárias vias de acesso à zona urbana. Em relação à obtenção de trabalho na
comunidade Fazendinha, aproximadamente 89% das mulheres afirmaram que têm
dificuldades para trabalhar, principalmente pelo direcionamento à agricultura e pesca na
comunidade, e poucas oportunidades de emprego no serviço municipal.
Compreendendo o papel feminino como ―donas de casa‖, e também como
agricultoras, pescadoras e marisqueiras, observou-se a ocorrência de divisão de tarefas,
entre homens e mulheres, dentro das residências e no meio de trabalho. Em torno de 52%
das mulheres alegaram não haver separação de funções em casa, e acompanhando este
dado, foi possível notar o discurso de que os homens da família ―ajudam‖ em algumas
513
tarefas do cotidiano, todavia ficam por responsabilidade das mulheres a maioria das
atividades domésticas.
Em contrapartida, cerca de 53% declararam não haver divisão do trabalho,
principalmente na agricultura, onde os serviços são feitos de forma conjunta no meio,
demonstrando equilíbrio na execução de tarefas. Durante as entrevistas informais, obteve-se
relatos sobre acordos entre famílias para realizar, juntos, ações nas áreas que forem
plantadas, incluindo homens e mulheres. E ainda, nas atividades de pesca, foi bastante
mencionada a união de mulheres, sobretudo na coleta de ostras.
A Comunidade Fazendinha não possui associação de mulheres, ou associação de
pescadoras e marisqueiras. No entanto, há uma organização de mulheres, voltada para
realização de comemorações em datas festivas, que as próprias moradoras denominam de
―Associação das mães‖. De acordo com as mulheres entrevistadas, todas participam de
alguma forma dessa organização social, a fim de promover festejos, e maior união entre os
membros da comunidade.
Todas as entrevistadas consideraram importante a figura feminina na comunidade,
quando questionadas sobre maior mobilização das mulheres e criação de associação para
elas, todas acreditam na importância de a comunidade possuir organizações sociais mais
consolidadas. Emma Siliprandi (2015) afirma que há desvalorização das funções das
mulheres na agricultura familiar, o que resulta na falta de reconhecimento e presença nas
tomadas de decisões. Portanto, é fundamental maior participação feminina, na criação de
associações de mulheres, de pescadoras e/ou marisqueiras, para alcance de mais espaço
feminino e para solução de problemáticas na comunidade.
514
compreendidos homens e mulheres, e considerou-se a divulgação de informações sobre
RESEX insatisfatória. De forma semelhante, nos resultados obtidos em 2019, no presente
trabalho, notou-se que ainda há insuficiência na abordagem de conceitos ambientais,
principalmente abordagens mais acessíveis à comunidade. Embora tenham ocorrido
eventos e reuniões sobre meio ambiente na comunidade, as entrevistadas demonstraram
interesse em novos encontros e palestras, para melhores orientações acerca da RESEX
Marinha Cuinarana.
No tocante às atividades extrativistas, a extração de camarões e mariscos, é um dos
principais meios de subsistência e fonte de renda na comunidade, especialmente das
mulheres (ICMBio, 2014), em que as 15,6% das mulheres entrevistadas consideraram-se
pescadoras (Figura 2). Embora somente esta parcela apontou ―pescadora‖ como atividade
econômica, 85,2% das entrevistadas informaram que realizam ou realizaram atividades de
pesca e coleta de mariscos ao longo da permanência na comunidade.
Localizada próxima à nascente do rio Cuinarana, a comunidade Fazendinha realiza
extração de espécies no leito e às margens do rio, no Trapiche construído pela comunidade,
em áreas de mangue, formações rochosas e troncos de árvores (Figura 3).
515
em que o costume da comunidade consistia em reunir as marisqueiras em várias canoas,
com suas ferramentas, para em conjunto realizarem a prática extrativista. No entanto, deste
ano em diante o desaparecimento das ostras tornou-se evidente, por conta de pescadores
de outras comunidades que extraíram todas as ostras, sem respeito aos berçários e áreas
de reprodução. Diferente das marisqueiras da Fazendinha, que ao coletarem as ostras, o
cuidado era imprescindível na escolha e na abertura das conchas, sendo possível obter
cerca de 10kg de ostra em um dia, por marisqueira.
Desse modo, verifica-se que o período de desaparecimento das ostras foi anterior a
criação da RESEX Marinha Cuinarana, em 10 de outubro de 2014, com a qual houve maior
envolvimento do ICMBio e da SEMMA na gestão da unidade. Portanto, a elaboração de um
Plano de Manejo, previsto na Lei do SNUC (Lei nº 9.985/2000), se faz ainda mais
necessária, por ser um documento técnico em que são estabelecidas normas acerca do uso
da área e manejo de recursos naturais da RESEX. O manejo da RESEX implica na
elaboração de ações para promover o uso sustentável de recursos naturais, como é o caso
da extração de ostras no rio Cuinarana.
Luciene Risso (2012), em estudo sobre a importância das reservas extrativistas,
ilustra o caso da RESEX de Mandira no Estado de São Paulo, em 1970 e 1980, em que a
extração de ostras se tornou uma das atividades extrativistas mais praticadas para geração
de renda. Neste estudo, a autora apontou que a exploração e ameaça às ostras
aumentaram significativamente, suscitando a criação de um projeto de manejo sustentável
de ostras, por meio de macrozoneamento ecológico e econômico da área. Ademais, tornou-
se fundamental a criação de Plano de desenvolvimento para a RESEX, com auxílio do
Instituto de Pesca do Estado de São Paulo, para incentivar pesquisas voltadas às técnicas
exploração dos recursos e à produtividade natural e distribuição de estoques de ostras na
área da RESEX (Renato SALES; André MOREIRA, 1996).
A elaboração de pesquisas e criação de soluções, como as realizadas em Mandira
(SP), expressa a possibilidade de mitigação do impacto apresentado na Comunidade
Fazendinha. O desaparecimento das ostras próximo à nascente do rio Cuinarana, como
verificado, acarretou prejuízos ambientais e socioeconômicos à comunidade, sobretudo às
marisqueiras, as quais obtinham renda a partir da coleta de ostras. Conforme a Resolução
CONAMA nº 001, de 23 de janeiro de 1986, o desaparecimento das ostras adequa-se ao
conceito de impacto ambiental, uma vez que afetou direta e indiretamente as atividades
socioeconômicas e o ecossistema local.
vista disso, o envolvimento das mulheres nas reuniões do Conselho Deliberativo,
bem como na criação de associações (mulheres e/ou marisqueiras) são as primeiras etapas
para melhorias na gestão da RESEX e da comunidade. A criação do Conselho Deliberativo
516
(CONDEL), prevista pela Lei do SNUC, é fundamental para gestão das reservas
extrativistas, conciliando decisões de diversos agentes em benefício às reservas e
comunidades extrativistas tradicionais. No caso da RESEX Marinha Cuinarana, considerou-
se a Portaria ICMBio nº 207/2018, que discorre acerca da composição do CONDEL, que
contém representações de órgãos públicos, do setor de ensino, pesquisa e extensão, os
usuários do território, beneficiários da unidade e moradores do entorno e organizações
sociais.
O CONDEL em vigência era constituído somente por duas mulheres, sendo uma
usuária da RESEX, pertencente a Comunidade Fazendinha, e outra docente da
Universidade Federal Rural da Amazônia. Identificou-se, assim, que a participação feminina
ainda é diminuta nas deliberações da reserva. Torres (2009), explica que a partir do
ecofeminismo construtivista deve-se atentar como o papel das mulheres nas questões
ambientais está atrelado à inferioridade atribuída ao gênero feminino, devido a divisão social
do trabalho e opressão das mulheres em diversos aspectos sociais.
517
Em contraponto aos dados obtidos em 2019 nesta pesquisa, o estudo socioambiental
efetuado pelo ICMBio em 2012 (ICMBio, 2014), em todas as comunidades beneficiárias,
apontou que a maioria dos entrevistados (73%) indicou desmatamento, queimadas e caça
como problemas ambientais mais ocorrentes até o ano de 2012. Nota-se que os impactos
ambientais identificados na região são diferenciados ao longo do tempo. Enquanto
desmatamento e caça estavam entre os principais impactos presentes nas comunidades, as
mulheres da Fazendinha apontaram a poluição do rio Cuinarana na maioria das respostas.
Conforme os relatos obtidos ao longo da pesquisa, constatou-se que ―poluição
hídrica‖ foi um dos impactos ambientais mais citados, por interferir diretamente na fonte de
renda e subsistência das mulheres residentes, o rio Cuinarana. Por vezes foram expostos
acontecimentos envolvendo presença de resíduos sólidos no corpo hídrico, geralmente
advindo de localidades próximas.
Com relação aos resíduos sólidos na comunidade, verificou-se que há serviço de
coleta fornecido pela prefeitura de Magalhães Barata. A coleta ocorre uma vez por semana,
recolhendo os resíduos deixados pelos moradores em frente às residências. De acordo com
as entrevistadas, o acúmulo e a destinação inadequados de resíduos sólidos resultaram em
diversos impactos na comunidade Fazendinha. Vale salientar que praticamente a totalidade
de entrevistadas indicou poluição hídrica, contaminação do solo, proliferação de vetores,
impacto visual e odores como impactos presentes na comunidade, no período anterior ao
início da coleta de resíduos efetuada pela prefeitura.
Deve-se atentar que a coleta realizada pela prefeitura tardou a ocorrer, iniciando
somente em maio de 2017, que segundo relatos das entrevistadas, se deu após um grupo
de mulheres da comunidade realizarem reuniões e exigir do poder público soluções para a
questão dos resíduos na comunidade. Por meio da iniciativa das moradoras da Fazendinha,
que foram competentes em observar e identificar os impactos socioambientais que o
acúmulo e descarte incorreto de resíduos estavam causando na comunidade, foi possível
viabilizar a coleta de resíduos e a redução de impactos. Esta perspectiva adotada pelas
mulheres reforça o conceito de percepção ambiental de Botega e Lindino (2017), que
considera a observação do meio e como este é compreendido, e como as relações de
comunidade e o meio ambiente podem ser melhor analisadas.
Embora a coleta de resíduos ocorra, quando questionadas a respeito da destinação
dada aos resíduos domiciliares, as mulheres residentes revelaram outras destinações,
conforme Figura 5. A queima foi mencionada em cerca de 36% das respostas, ficando atrás
somente da coleta realizada pelo serviço público, citado anteriormente.
518
Figura 5 - Destinação de resíduos domiciliares pelas mulheres na Comunidade Fazendinha
519
Quanto ao reaproveitamento de resíduos sólidos, as mulheres da comunidade
Fazendinha demonstraram conhecer sobre reciclagem e reutilização de materiais
recicláveis. Cerca de 89% das entrevistadas reconheceram que existem possibilidades de
reaproveitar materiais e ainda, obter renda a partir desses processos. Dentre alguns
exemplos mencionados durante as entrevistas, a criação de artesanatos a partir do plástico
foi bastante citado.
Já no que se referem às atividades extrativistas, as mulheres foram questionadas
sobre geração de resíduos na pesca e coleta de mariscos (ostras), bem como do
beneficiamento das espécies extraídas. A maioria das entrevistadas (78%) concordou que
são gerados resíduos, sobretudo após beneficiamento de pescado, camarões e siri. Estes
resíduos são considerados do tipo orgânico, e a destinação final adequada pode envolver
compostagem e utilização como adubo. No que tange à extração das ostras, foi relatado que
os resíduos produzidos eram referentes às ―cascas‖ ou conchas, que durante a coleta eram
retiradas e depositadas no leito ou próximo ao rio Cuinarana.
A Figura 6 mostra as destinações, mencionadas nas entrevistas, para os resíduos
das atividades extrativistas no rio Cuinarana. O lançamento no quintal obteve destaque com
28,6% de menções, local de destinação geralmente utilizado para restos de peixe e
camarão, seguido do lançamento no corpo hídrico, relativo às conchas das ostras deixadas
pelas marisqueiras. Ainda, o reaproveitamento foi citado em 14,3% das respostas, e está
relacionado ao uso dos resíduos como adubo de plantas e como alimento para animais.
520
Com relação ao reaproveitamento ou reciclagem dos resíduos gerados nas
atividades extrativistas, 96,3% das entrevistadas não conhecem nenhuma prática nesse
aspecto envolvendo resíduos de pescado e camarão. Portanto, é possível verificar que as
moradoras da Fazendinha pouco conhecem acerca de outras formas de geração de renda,
principalmente a partir do reaproveitamento de resíduos de pesca. Este fato pode ser
corroborado, ainda, pelos resultados na caracterização socioeconômica sobre as atividades
econômicas desenvolvidas pelas mulheres. As funções das mulheres na comunidade estão
bastante atreladas à agricultura e ao lar, limitando a visão delas ante as novas formas de
trabalho. Além disso, a continuidade dos estudos auxiliaria na aprendizagem sobre a
destinação ambientalmente adequada e práticas de reutilização de resíduos, bem como
cursos de capacitação para estas mulheres.
Apesar da destinação final de resíduos domiciliares e de atividades extrativistas
ainda seja considerada inadequada, constatou-se que o envolvimento das mulheres foi
primordial para diminuição dos resíduos na comunidade Fazendinha. Através da mobilização
de mulheres, soluções foram propostas e medidas mais rápidas foram implantadas, como a
coleta semanal do serviço público, que tornou a comunidade mais organizada e atenta à
disposição dos resíduos na área.
No entanto, o impacto socioambiental de maior notoriedade, citado anteriormente, foi
o desaparecimento das ostras, interferindo diretamente no cotidiano de todas as mulheres
que dependiam da extração de ostras para sustento e geração de renda. De forma
semelhante, Oliveira (2012) em pesquisa realizada na RESEX de Soure, comunidade Caju-
Una, identificou como principal impacto ambiental a pesca predatória que, por meio de
tecnologias e ferramentas mais avançadas, ocasionou modificações no processo da pesca
artesanal local e no ecossistema.
Acredita-se, que em 13,8% das respostas, sobre impactos ambientais na
comunidade (Figura 4) estava presente a ―pesca predatória‖, devido maior capacidade de
percepção das mulheres no que diz respeito à extração de espécies no corpo hídrico,
principalmente as marisqueiras diretamente envolvidas com a coleta de ostras. Em
contrapartida, ainda no estudo de Oliveira (2012), os entrevistados da comunidade Caju-Una
identificaram que a falta de estabelecimento do plano de manejo e pouco uso deste por
parte dos usuários da RESEX de Soure, foram fatores que contribuíram para a ocorrência
de impactos socioambientais, no caso a pesca predatória e diminuição de espécies no corpo
hídrico.
Deste modo, os moradores da comunidade Caju-Una foram capazes de propor
medidas mitigadoras, como efetuar acordos entre comunidades beneficiárias da RESEX,
para utilização e proteção dos espaços de uso comum. Por outro lado, as mulheres da
521
Fazendinha demonstraram desconhecer os instrumentos a serem utilizados na gestão da
RESEX Marinha Cuinarana, como o plano de manejo e o CONDEL, e que seriam capazes
de auxiliar na resolução de impactos ambientais. Isto se deve à pouca participação das
mulheres nas decisões sobre a RESEX, resultante do reduzido conhecimento acerca de
conceitos, impactos e soluções socioambientais.
Dias, Rosa e Damasceno (2007) afirmam que há desvalorização do trabalho das
marisqueiras em unidades de conservação, como na Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Ponta do Turbarão (RN), e que o entendimento destas mulheres sobre meio
ambiente é imprescindível para a valorização da atividade extrativista e gestão da reserva.
Nesse sentido, a percepção socioambiental das marisqueiras referente ao desaparecimento
das ostras na nascente do rio Cuinarana, expressa que a falta de reconhecimento da coleta
de mariscos como atividade econômica, e não somente como complemento de renda,
também ocasionou a pouca relevância dada a este impacto ambiental grave.
A partir disso, as mulheres foram perguntadas sobre a importância da figura feminina
na preservação ambiental na comunidade Fazendinha e na gestão da RESEX Marinha
Cuinarana. Todas as entrevistadas afirmaram que as mulheres na comunidade podem
garantir maior proteção ao ecossistema, e principalmente ao rio Cuinarana. Este dado se
deve à união das mulheres para conversação e elaboração de propostas que objetivam
realizar melhorias na comunidade, o que foi perceptível durante as entrevistas informais e
visitas no local.
Em estudo na RESEX Acaú-Goiana (Pernambuco), Maira Lima (2016) observou que
as contribuições dos beneficiários da reserva, incluindo insatisfações sobre impactos
ambientais, obtiveram mais reconhecimento e notoriedade a partir do momento em que as
comunidades compreenderam melhor sobre meio ambiente e a gestão da RESEX. E do
mesmo modo que a movimentação feminina deu início a mudanças na comunidade
Fazendinha, em relação aos resíduos sólidos, as mulheres têm capacidade de envolver e
encorajar a comunidade, em especial as marisqueiras para resolução de impactos
ambientais como o desaparecimento de ostras às margens do rio Cuinarana.
Considerações Finais
A partir das análises realizadas nesse trabalho, pode-se verificar que as mulheres da
comunidade Fazendinha carecem de uma organização social mais consolidada, e que
atenda às necessidades das atividades econômicas que desenvolvem. Contudo, a união das
moradoras é perceptível, demonstrando a importância da mobilização das mulheres e
522
de espaço nas tomadas de decisão, principalmente no que diz respeito à gestão da RESEX
Marinha Cuinarana.
Pela avaliação da percepção socioambiental, as mulheres da comunidade
Fazendinha possuem percepção alta, visto que sabem reconhecer impactos ambientais que
afetam direta e indiretamente a comunidade. Diante disso, nota-se como a união feminina é
fundamental para garantir melhorias na comunidade e no meio ambiente, já que em 2017
obteveram a coleta de resíduos para comunidade. No entanto, o desaparecimento das
ostras na nascente do rio Cuinarana é outro impacto socioambiental que aflige a
comunidade, em especial as mulheres marisqueiras, e que requer solução. E para tal,
orientações acerca dos conceitos ambientais e das funções da RESEX são necessárias,
uma vez que a obtenção de conhecimento pode tornar as mulheres mais participativas e
empoderadas.
A criação de uma associação de marisqueiras seria o primeiro passo para
impulsionar a movimentação dessas trabalhadoras, para maior valorização dessa atividade
e exigência de maior atuação de órgãos ambientais e universidades, a fim de desenvolver
medidas necessárias, como projetos de manejo sustentável de ostras. Desta forma, os
órgãos e instituições públicas devem integrar os conhecimentos acadêmicos e das
mulheres, para gestão, planejamento e execução de ações de preservação dos recursos
naturais.
Fundamentando-se nessa ideia, o estudo sobre as mulheres da Fazendinha, sua
relação com o meio ambiente e a RESEX, pode ser utilizado na identificação e solução de
impactos socioambientais de outras comunidades, além na promoção de melhorias nas
condições de trabalho e na qualidade de vida dessas mulheres e das comunidades
tradicionais. Vale frisar, que são escassas as pesquisas que foquem na perspectiva feminina
do meio ambiente, bem como nas relações de gênero e sua correlação com a degradação
ambiental. E não se pode desprezar o papel essencial que as mulheres têm nas
comunidades tradicionais, que expressam sua força e determinação no desenvolvimento de
suas histórias, tradições, atividades econômicas e na conservação ambiental.
Referências
523
BRASIL. Decreto nº 14.011, de 10 de outubro de 2014. Cria a Reserva Extrativista Marinha
Cuinarana, localizada no Município de Magalhães Barata, Estado do Pará. Brasília, DF, out.
2014.
BRASIL. Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010. Dispõe sobre a Política Nacional de Resíduos
Sólidos e dá outras providências. Brasília, 2010. Disponível em
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em 20 nov. 2018.
DIAS, Thelma Lúcia P.; ROSA, Ricardo de Souza; DAMASCENO, Luis Carlos P. ―Aspectos
socioeconômicos, percepção ambiental e perspectivas das mulheres marisqueiras da
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Ponta do Tubarão (Rio Grande do Norte,
Brasil)‖. Gaia Scientia, v. 13, n. 1, p. 25-35, 2007.
HOEFFEL, João Luiz; FADINI, Almerinda Antonia B.; MACHADO, Micheli Kowalczuk;
REIS, Jussara Christina. “Trajetórias do Jaguary – Unidades de Conservação, Percepção
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524
OLIVEIRA, Ângela Maria S. Subsídios à Gestão da Reserva Extrativista Marinha de Soure-
Marajá-Pará: Uma análise dos problemas e conflitos socioambientais. 2012. Mestrado –
(Curso de Gestão dos Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia - Núcleo
de Meio Ambiente) - Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.
ORTNER, Sherry B. ―Está a mulher para o homem assim como a natureza está para a
cultura?‖ In: ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e
a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 95-129.
525
UMA REFLEXÃO SOCIOLÓGICA DO DESEMPREGO ENTRE AS MULHERES NO
BRASIL
https://doi.org/10.29327/527231.5-35 1
Ivanete Modesto do Amaral
RESUMO
Sociology's interest in labor market studies has intensified in recent decades where
unemployment has been increasingly the subject of scientific research, state intervention and
public debate. The destabilization of stable wage labor is the nerve center of the contemporary
labor crisis and unemployment is one of the main symptoms. This article seeks to reflect
unemployment, initially defined as an objective social category - materialized in institutional
and official statistical data - and, subjective - perception of reality where it does not affect
individuals homogeneously in the economic space of work experience. . It is in this sense that
the approach to unemployment proposed here supposes to consider it a phenomenon
constituted by social relations, especially gender relations. For this, we used as methodological
resource the statistics of official bodies such as IBGE and Ministry of Labor that based on
PNAD Continuous and Caged show the vulnerability of women as the most affected among the
contingent of unemployed in Brazil, in the years 2017/2018. . The results show that the highest
unemployment rate is among the youngest and those with low education. Keywords: Labor
Market. Unemployment. Economic Sociology. Genre.
Vinculada à Universidade do Estado do Pará (UEPA); Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
526
1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo mostrar uma reflexão sociológica do desemprego entre as
mulheres no Brasil, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes
ao último trimestre de 2017 e início de 2018. Complementarmente, serão utilizadas as
informações da pesquisa do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do
Ministério do Trabalho.
Sabe-se que a crescente ampliação do desemprego é um dos principais problemas
brasileiros, segundo argumentação de especialistas no assunto, pesquisadores e estudiosos de
um modo geral. É quase consenso de que a melhor forma para reduzir o desemprego é o
crescimento econômico com geração de empregos. Tradicionalmente, o desemprego é maior
entre as mulheres e assim como os jovens, os pretos e pardos, a população feminina é ainda uma
das mais afetadas pela falta de oportunidades no mercado de trabalho. Isso parece evidente
quando se considera a desigualdade social na inserção ocupacional, gerada a partir de padrões
distintos como, por exemplo, níveis de rendimento, níveis de escolaridade, etc.
Observa-se que o desemprego feminino é ainda duradouro, menos visível e mais
tolerado, difícil de sair desse cenário a partir dos instrumentos de medida estabelecidos visto
que as mulheres levam mais tempo desempregadas do que os homens. Isto parece não ser
considerado um problema social, motivo que desperta reflexões sociológicas no sentido de que
as mulheres continuam a ter menor representação entre a população ativa e maior entre os
desempregados, sendo este um ponto importante para estudar o tema e mostrar a relevância da
discussão.
Muito embora as mulheres venham cada vez mais ocupando um espaço significativo no
mercado de trabalho, porém, uma observação maior sobre essa crescente inserção, revela a
persistência de desigualdades em relação à condição masculina no que diz respeito às
oportunidades, aos rendimentos e à qualidade de emprego. Isto significa dizer que, para a
sociedade, ele (o desemprego feminino) parece ser menos grave, menos perturbador e menos
preocupante onde, nas políticas públicas de emprego, a luta contra o desemprego das mulheres
jamais foi colocada como prioridade (Maruani, 2011) ainda que as mulheres sejam provedoras
supostamente de 40% dos domicílios brasileiros e, em outros tantos, sua contribuição à renda
familiar seja imprescindível.
No Brasil, a categoria desemprego como categoria estatística (objetiva) é considerada
ambígua e marcada por tensões, visto o processo de categorização estatística do trabalho e do
desemprego seguir as normas internacionais definidas no âmbito da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), que orientam a construção das estatísticas oficiais. Ou seja, essas normas,
seguem elas próprias certas representações do trabalho dominante nos países desenvolvidos que
527
paralisam certo estado das relações sociais de classe naqueles países e exprimem, em termos
2
estatísticos, a norma do “emprego estável” . São essas representações muitas vezes
questionadas pelas instituições que propõem formas alternativas de medir o desemprego no
Brasil, como o próprio IBGE.
Sabe-se que, analisar o desemprego no Brasil não é algo simples se pensarmos que
órgãos oficiais como o IBGE, por exemplo, utilizam conceitos, classificações e métodos
prescritos no âmbito da OIT para medição dos níveis de emprego. Isso acaba refletindo na
complexidade que há no mercado de trabalho, até porque, leva a questionamento dos próprios
pesquisadores/especialistas de que não é possível analisar o mercado de trabalho brasileiro
apenas com o Caged, uma vez que a economia tem uma alta taxa de informalidade. Por isso, a
Pnad Contínua costuma ser mais utilizada no cálculo de desemprego.
Diante disso, surgiram questionamentos assim descritos: a) qual é a definição de
desemprego proposta pela OIT que os países devem seguir? b) Como é definida a categoria
desempregado (a) no Brasil e quais são os critérios metodológicos? e c) Qual a taxa de
desemprego entre as mulheres no Brasil e como é medido esse desemprego já que, no geral, o
termo habitualmente utilizado pelas estatísticas oficiais é de “desocupado”? Essas questões
estão no centro de discussão deste artigo e serviram de base para o objetivo que se propôs, ou
seja, analisar numa visão sociológica o desemprego das mulheres como categoria objetiva
(estatísticas oficiais) e subjetiva (enquanto construção social).
Em um país como o Brasil, marcado por uma forte precariedade do trabalho, o que está
em xeque é o próprio conceito de trabalho que, aliás, é uma problemática de consequência
global. Assim sendo, as formas de desemprego, bem como as categorias da população ativa, os
tipos de emprego, subemprego ou não empregos, são considerados elementos socialmente
constituídos e como tal, devem ser estudados.
Dessa forma, vale lembrar, sob a ótica da sociologia econômica que não é mais possível
compreender o mercado apenas como premissa da ação econômica ou, como um mecanismo
abstrato cujo estudo é feito de maneira estritamente dedutiva, mas, como resultado concreto de
formas específicas socialmente determinadas de interação social, ou seja, compreendê-lo sob o
ângulo social (estruturas sociais) onde o estudo sobre os seus mecanismos pode ser realizado de
maneira “indutiva e subjetiva”. Nesse sentido, mercado de trabalho evidencia mecanismos de
relações sociais (ABRAMOVAY, 2004).
No tocante a metodologia utilizada para a elaboração deste artigo, foram revistas fontes
estatísticas dos órgãos oficiais no Brasil que trabalham com a medição do emprego e
desemprego, isto porque, o interesse por este estudo foi despertado quando da leitura sobre os
resultados das pesquisas mostradas por esses órgãos, tais como: PNAD/IBGE, CAGED entre
Nos argumentos de Meleu e Massaro (2017) A realidade da normatização do trabalho, de caráter social, regulatório e
balizador, também, sente os reflexos do fenômeno globalizante, que empurra para a uniformização as relações entre capital
e trabalho, desconhecendo, deliberadamente, realidades diferentes entre os diversos países do mundo.
528
outros, que apresentaram índices elevados do desemprego das mulheres, no último trimestre de
2017 e início de 2018.
A partir do conhecimento desses dados estatísticos, se despertou para uma reflexão
mais aprofundada que levou a questionamentos já citados anteriormente, os quais ampliaram as
leituras e releituras de autores da sociologia econômica, da sociologia do trabalho e como
complemento teórico, da sociologia do desemprego, sendo esta aparentemente, uma perspectiva
de leitura nova para a pesquisadora, que precisou entender melhor: o que significa a categoria
social de desempregado? Justificando-se o estudo da abordagem sociológica do desemprego.
Como produto final deste estudo, o artigo estrutura-se em três seções e mais as
Considerações Finais. A primeira seção trata da Introdução que mostra uma rápida
contextualização do tema, incluindo-se a justificativa, objetivo, problema e metodologia. Em
seguida, na segunda seção, faz-se uma discussão das categorias teóricas centrais neste artigo:
Mercado de Trabalho, Emprego/desemprego, gênero (mulheres desempregadas) se apoiando
numa abordagem sociológica (sociologia econômica, sociologia do Trabalho e sociologia do
desemprego). Continuando, na terceira seção, apresentam-se os índices percentuais sobre o
desemprego das mulheres no Brasil, ilustrados através de imagens visuais gráficas (infográficos)
por órgãos oficiais, seguidos de uma breve discussão desses dados empíricos.
529
Contudo, foi no início dos anos 80 do século XX, que as pesquisas sobre emprego e
desemprego e, precisamente, uma sociologia do desemprego, ganharam ênfase por meio de
novos estudos e pesquisas que passaram a se consolidar em termos de categoria social. Nesse
período, surgiram propostas teórico-metodológicas que vão iniciar uma abordagem do
desemprego enquanto “categoria oficial” e “institucional” que levam a uma abordagem dos
processos subjetivos de categorização do desemprego a partir de pesquisas sobre vivências e
experiências dos desempregados.
Com a fala desse autor, entende-se que a temática do desemprego para a economia é
estudada sob duas abordagens teóricas: 1) microeconômica que identifica o funcionamento do
mercado de trabalho determinado por sua própria dinâmica, onde se pode supor que o
desemprego é visto pelos indivíduos em seus comportamentos, por exemplo, “escolha
A Organização Internacional do Trabalho define o desemprego como uma situação em que o indivíduo i) não está
economicamente ocupado, ii) está disponível para trabalhar e iii) tomou alguma providência para procurar um
trabalho remunerado. Embora essa definição seja amplamente aceita, há controvérsia sobre a classificação de pessoas
que trabalham de forma esporádica, provisória e improvisada, ou que não procuram trabalho porque estão
desalentadas e sem perspectiva de contratação. Ou seja, a privação de um emprego pode se manifestar de maneiras
distintas, dificultando a mensuração do fenômeno. Mas, em geral, tais nuanças não são consideradas nas teorias sobre
o desemprego (PRONI, 2015,p.1).
530
voluntária...”. Nessa linha de raciocínio pensa-se, que o problema do desemprego visto nessa
explicação do autor, não pode supor apenas a parte dos indivíduos, também, de outros agentes
econômicos (empresas, Estado e suas agências) no sentido de serem considerados e analisados
em termos de uma racionalidade instrumental a partir da qual eles tomam suas decisões, como,
as políticas de ajuste econômico adotadas para ajuste da economia. 2) macroeconômica que
relaciona o comportamento geral do mercado de trabalho ao ritmo de expansão do conjunto da
economia como um todo.
Em se tratando de análise de desemprego, os economistas Passos e Nogami (2005),
argumentam que as causas desse fenômeno podem variar a partir de pelo menos quatro tipos de
desemprego: 1) desemprego friccional ou natural – indivíduos que se encontram desempregados
temporariamente, porque estão mudando de emprego ou, porque estão procurando emprego pela
primeira vez. Recebe esta nomenclatura porque o mercado de trabalho, segundo os autores,
opera com atrito, não combinando trabalhadores e postos disponíveis de trabalho, sendo que sua
duração vai depender dos benefícios dados aos desempregados, como o seguro desemprego; 2)
desemprego estrutural – consequência das mudanças estruturais da economia tais como,
mudanças nas tecnologias de produção ou nos padrões de demanda dos consumidores; 3)
desemprego sazonal – ocorre em função da sazonalidade de determinados tipos de atividades
econômicas tais como agricultura e turismo, e que acabam causando variações na demanda de
trabalho em diferentes épocas do ano; 4) desemprego cíclico (involuntário ou conjuntural) -
ocorre quando se tem uma recessão da economia, o que significa retração na produção. As
empresas são obrigadas a dispensar seus funcionários para cortar despesas.
Portanto, pode-se dizer que a maneira como os economistas analisam o problema, ou
seja, a dimensão do desemprego no interior do mercado de trabalho, geralmente, é vista como
resultante da insuficiência geral de demanda efetiva na economia nacional. E romper com esse
modo de pensamento em direção a uma perspectiva sociológica significa não apenas
problematizar o desemprego como categoria analítica, mas de abordá-lo como categoria prática
a partir da qual os atores sociais concretos agem no mundo social. Significa dizer que o
desemprego não deve ser olhado somente pelos dados das estatísticas oficiais, mas, adotar uma
episteme, um conhecimento metodológico/científico que possa compartilhar especificidades e
objetos de estudo diferentes do conhecimento econômico, problematizando o desemprego em
direção ao modo como este fenômeno aparece e é definido no mundo social, como uma
categoria prática dos atores sociais, situados no mundo.
A noção de crise, por exemplo, num contexto do mercado de trabalho, refere-se,
sobretudo, a uma crise de emprego. Nestes termos, as mutações no mercado de trabalho e o
déficit estrutural de empregos manifestam-se não apenas por uma escassez na geração de novos
postos de trabalho, mas também por um processo de precarização do emprego. Multiplicam-se
as modalidades de contratação até então consideradas atípicas, como o contrato de trabalho por
531
prazo determinado, o trabalho temporário, o trabalho em tempo parcial, os estágios e os
contratos relacionados à aprendizagem profissional.
Para a sociologia do desemprego, é a “norma do desemprego” que é posta em questão,
tendo em vista a implosão da representação tradicional do desemprego como privação
provisória e transitória de emprego. Na compreensão de Demazière (2003), o desemprego torna-
se não apenas um fenômeno de massa, mas também uma experiência cada vez mais recorrente e
prolongada nas trajetórias ocupacionais dos trabalhadores. É um fato que produz um efeito
importante tanto sobre as identidades desses trabalhadores privados de emprego como sobre o
“estatuto social” dos mesmos, a partir das políticas públicas de tratamento e combate ao
fenômeno.
Nas explicações de Demazière (2003), o desemprego é estudado em duas categorias: 1)
analítica - estudado pelos cientistas sociais para investigar o mundo social; 2) prática -
mobilizado pelos atores sociais para interpretar e orientar seus comportamentos nesse mundo.
Portanto, a proposta da sociologia do desemprego é pela categorização social, no sentido de que
o desemprego é uma categoria prática onde a noção de crise do desemprego produz um efeito
importante sobre as identidades dos trabalhadores sem emprego, problema crucial por parte dos
desempregados de longa duração.
532
No Brasil, essa situação de emprego irregular é particularmente das pessoas que
realizam os chamados “bicos” e “trabalhos eventuais”. As pessoas que não estão imediatamente
disponíveis são também excluídas. É o caso, por exemplo, das mulheres que, desejando ter um
emprego, não podem procurar ou assumir um trabalho por causa de responsabilidades e
compromissos domésticos imediatos. Os desempregados mais velhos e os desempregados
desencorajados que ficam durante longos períodos sem procura e sem esperança de obter um
trabalho, são também excluídos desta categoria devido à ausência de atitudes comportamentais
concretas que atestem a procura de trabalho durante o período de referência.
Na compreensão de Vargas (2008), essa definição de desemprego proposta pela OIT, é
utilizada para fazer as comparações internacionais, porém, produz uma homogeneização e
padronização nos conceitos de trabalho e desemprego, através de um modelo normativo onde a
forma de trabalho sofre fissuras nos próprios países centrais do capitalismo mundial. É esse
modelo normativo com suas representações do trabalho e do desemprego, que é posto em xeque
por diversos especialistas e instituições encarregadas de produzir dados estatísticos no Brasil.
Como em outros países, no Brasil existem diferentes instrumentos destinados à
4
contagem do número de desempregados. As pesquisas do IBGE (PNAD Contínua) e do
Ministério do Trabalho e Emprego (Caged) constituem dois tipos distintos de metodologias
destinadas a medir o fenômeno do desemprego. As diferentes maneiras de conceber o trabalho e
de categorizar o desemprego nestas pesquisas expressam as tensões e ambiguidades das formas,
relações e representações do trabalho e da privação do trabalho na sociedade brasileira.
Importante lembrar que o IBGE não utiliza o termo “desemprego” como indicador de
“privação do trabalho” e, sim, refere-se ao termo “desocupação”. E para ser considerado
desocupado, o trabalhador precisa estar sem trabalho, à procura de trabalho e imediatamente
disponível. A aplicação desses critérios fixados pela OIT para definir o desemprego é entendida
por estudiosos (VARGAS, 2008) como bastante problemática em um país como o Brasil,
marcado pela forte presença de formas e relações de trabalho não assalariadas e altamente
precárias.
O primeiro dos instrumentos são os censos demográficos, realizados no Brasil a cada
dez anos (IBGE, 2010). Segundo o IBGE, o primeiro recenseamento da população do Brasil foi
efetuado em 1808, visando atender especificamente a interesses militares, de recrutamento para
as Forças Armadas. A periodicidade da pesquisa é decenal, excetuando-se os anos de 1910 e
1930, em que o levantamento foi suspenso, e 1990, quando a operação foi adiada para 1991.
Sua abrangência geográfica é nacional, com resultados divulgados para o Brasil, Grandes
Regiões, Unidades da Federação, Mesorregiões, Microrregiões, Regiões Metropolitanas,
Municípios, Distritos, Subdistritos e Setores Censitários. Esses censos demográficos são
O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - é o órgão oficial brasileiro encarregado do sistema
estatístico de medição do desemprego.
533
planejados para serem executados nos anos de final zero, ou seja, a cada dez anos. Dessa forma,
o último censo realizado no Brasil foi no ano de 2010. No intervalo entre dois censos
demográficos, realiza-se a contagem da população. A fase de coleta do Censo 2020, que
compreende a aplicação do questionário básico e da amostra, será realizada entre os meses de
agosto a outubro do próximo ano de 2020.
Ainda segundo o autor Vargas (2008) a partir do Censo de 2000, foram introduzidas
várias inovações metodológicas no que se refere à questão do trabalho. Essas modificações
visaram não apenas dar conta das transformações que ocorreram na sociedade brasileira nos
últimos cinquenta anos, mas também adequar as pesquisas realizadas no país às orientações
internacionais. Para esse autor, as mais importantes modificações desse Censo foram:
Definição de atividade e o conceito de trabalho. Até o censo de 1991, o cálculo da população
economicamente ativa – PEA era mais restrito, abrangendo tanto o trabalho remunerado
(em dinheiro, produtos, mercadorias ou benefícios) como o trabalho não remunerado na
ajuda de algum negócio ou estabelecimento. Porém, apenas eram considerados ocupados os
indivíduos que trabalhavam 15 horas semanais ou mais. Os que trabalhavam menos de 15
horas semanais eram considerados inativos.
O conceito de atividade e, portanto, de trabalho é ampliado. Neste sentido, passa-se a incluir na
população ativa ocupada, os indivíduos ligados à produção doméstica para o autoconsumo
e/ou que trabalham menos de 15 horas por semana sem remuneração. Tal modificação, ao
ampliar a população economicamente ativa e ocupada, afeta diretamente o cálculo das taxas
de desocupação que tendem a ser menores.
Idade de referência para definir a população em idade ativa. Antes de 2000, eram apenas
passíveis de serem considerados ativos, os indivíduos de 15 anos ou mais. A partir do censo
de 2000, esse limiar é reduzido para 14 anos de idade, o que pode acarretar em alteração no
cálculo da população economicamente ativa.
Vale ressaltar que a partir da PNAD de 1992, o conceito de trabalho abrange os seguintes
aspectos: trabalho remunerado (doméstico ou não doméstico); trabalho não remunerado
para outrem (familiar ou não); e trabalho não remunerado no domicílio.
O processo de categorização estatística do trabalho e do desemprego também está
marcado pelas ambiguidades e tensões que perpassam o conjunto da sociedade brasileira e
de seu mundo do trabalho. Isto significa dizer que, na publicação de seus indicadores, o
IBGE apresenta várias definições para o desemprego:
desemprego aberto - pessoas que procuraram trabalho de maneira efetiva nos trinta
dias anteriores ao da entrevista e não exerceram nenhum tipo de atividade nos últimos sete
dias;
desemprego oculto pelo trabalho precário - pessoas que, para sobreviver, exerceram
algum trabalho, de auto-ocupação, de forma descontínua e irregular, ainda que não
534
remunerado em negócios de parentes e, além disso, tomaram providências concretas, nos
trinta dias anteriores ao da entrevista ou até doze meses atrás, para conseguir um trabalho
diferente deste;
Desemprego oculto pelo desalento e outros: pessoas que não possuem trabalho e nem
procuraram nos últimos trinta dias, por desestímulos do mercado de trabalho ou por
circunstâncias fortuitas, mas apresentaram procura efetiva de trabalho nos últimos doze
meses.
535
os empregos formais (servidores públicos e trabalhadores com carteira assinada) 2)
PNAD/IBGE, que envolve tanto o mercado formal quanto o informal.
5
Os dados sofrem interferência das épocas do ano, as chamadas sazonalidades , ou seja,
o mercado de trabalho varia bastante durante o ano. Por exemplo, seja um trabalho no campo
como colheita de grãos, que acontece normalmente no início do ano; seja um trabalho nas
grandes cidades como compras de presentes no final do ano onde, culturalmente, esse
movimento costuma “aquecer” o mercado, isto vai exigir uma variação do mercado de trabalho.
Daí porque se alega que ocorreu flutuações no número de empregados ou, que há épocas e
fatores que influenciam os níveis de emprego no Brasil. Por isso, os órgãos que trabalham com
as pesquisas costumam confrontar taxas de desemprego sempre com o mesmo período dos
outros anos para evitar grandes erros estatísticos.
Além das sazonalidades, os dados sofrem interferências da situação da pessoa, ou seja,
pessoas que buscam vagas de emprego; pessoas que pararam de procurar emprego ou, que
trabalham menos do que gostariam. Isso vai refletir no seguinte: quando se fala que a taxa de
desemprego “caiu”, nem sempre é algo bom, visto que, teoricamente, a queda pode significar
que mais pessoas desistiram de buscar trabalho.
Dessa forma, observa-se que os dados são complexos e o mercado de trabalho também,
lembrando que o Brasil, por exemplo, segue diretrizes da Organização Internacional do
Trabalho, assim como outros países, França, Estados Unidos e outros. E algo que chama
atenção, são as várias denominações que o IBGE utiliza na sua metodologia para explicar as
múltiplas possibilidades do mercado de trabalho conforme o que mostra o Diagrama a seguir:
O mercado de trabalho é muito afetado pelo que os economistas chamam de efeito sazonal, ou sazonalidade.
536
Diagrama 1: Denominações do IBGE para as múltiplas possibilidades do mercado de
trabalho
Fonte: PNADC/IBGE – Gráfico ajustado a partir do Infográfico de Juliane Souza. G1, 23/02/2018.
537
gênero que penaliza as mulheres no mercado de trabalho. O desemprego expressa, de certa
forma, o modo como às relações de gênero se constituem no Brasil. Ou seja, muitas vezes, a
inserção subordinada das mulheres no mercado de trabalho acompanha-se de uma maior
privação de emprego entre elas.
Se no final de 2017 a crise econômica se intensificava no Brasil, no segundo trimestre
de 2018, o índice de desemprego divulgado pelo IBGE cresceu no cenário econômico brasileiro
e no mercado de trabalho. Nesse momento, o país atingiu 13 milhões de desocupados,
mostrando um mercado de trabalho ainda mais precário e flexível, com um grave problema
social/estrutural onde o nível global do emprego (carteira assinada) diminuía significativamente.
Portanto, cada vez mais, o desemprego é visto como um problema central em um país marcado
por uma “velha” precariedade estrutural que se combina com um processo mais recente de
precarização das relações de trabalho (reforma trabalhista, por exemplo).
Se formos considerar a idade, os dados mostram que as taxas de desemprego dos mais
jovens são mais elevadas do que os mais velhos, conforme demonstrado na figura 2.
Infográfico 2 – Índice do desemprego por idade – último trimestre de 2017
Fonte: PNADC/IBGE – Gráfico ajustado a partir do Infográfico de Juliane Souza. G1, 23/02/2018.
538
elevado excedente de mão de obra e a ausência de oportunidades ocupacionais em empregos
regulares. Esses são alguns dos fatores decisivos na configuração desse desemprego para as
faixas de idades mais novas.
Em relação à educação, as pesquisam mostram as maiores chances de emprego para quem
tem maior escolaridade. Dados do Cadastro Geral dos Empregados e Desempregados (Caged) do
Ministério do Trabalho mostram que o momento atual do mercado de trabalho para quem tem menos
anos de estudos segue desfavorável. No ano de 2017, houve perda de 383,3 mil empregos no
conjunto de todas as faixas de escolaridade entre analfabetos e ensino médio incompleto. No tocante
ao comportamento do emprego por gênero, o CAGED constatou que os homens ganharam espaço no
mercado de trabalho com a abertura de 21,6 mil vagas ocupadas por trabalhadores do sexo
masculino. E as mulheres perderam 42,4 mil empregos com carteira assinada.
No comparativo dos anos de 2017 e 2018, observa-se que em 2018, mais vagas foram
abertas para profissionais com nível médio, superior incompleto e superior completo, conforme
demonstrativo a seguir.
Quadro 1 – Abertura de vagas de emprego por escolaridade
539
Infográfico 3 – Índice do desemprego por escolaridade – último trimestre de 2017
Fonte: PNADC/IBGE – Gráfico ajustado a partir do Infográfico de Juliane Souza. G1, 23/02/2018.
540
que lideram a pobreza e problemas sociais no país. As taxas do desemprego são elevadas e
atingem todas as Regiões brasileiras. Se fizer um recorte por Região, a Nordeste vai aparecer
como a que lidera o “ranking” entretanto, estados da Região Sudeste como o Rio de Janeiro
estão entre as quatro maiores taxas, conforme o Infográfico a seguir.
Fonte: PNADC/IBGE – Gráfico ajustado a partir do Infográfico de Juliane Monteiro e Karina Almeida.
G1, 23/02/2018.
541
vulneráveis chegando a atingir uma taxa de 50% maior. Esse estudo mostra que a cada 1 ponto
percentual a mais, na taxa de desemprego, as mulheres negras sofrem, em média, aumento de
1,5 ponto percentual. Para as mulheres brancas, o reflexo é de 1,3 pontos percentuais. Mas não
são apenas as mulheres negras que aparecem em condição de maior vulnerabilidade. Jovens
entre 18 e 29 anos também estão entre os mais afetados.
Importante lembrar que na análise do trabalho, o IPEA compara a taxa de desemprego
de cada estado com a proporção de pessoas sem trabalho há pelo menos 12 meses e com a taxa
de desemprego do grupo analisado em cada unidade da federação, apresentando também dados
por faixa etária e escolaridade. Os resultados mostram uma menor diferença de sensibilidade da
taxa de desemprego segundo o grau de instrução, com uma diferença de 0,3 p.p. entre
trabalhadores com ensino médio incompleto e completo.
Conforme a PNADC/IBGE/2018, homens e pessoas brancas também estão à frente de
mulheres e pessoas negras em relação ao rendimento mensal. No recorte por sexo feito pelo
IBGE, no fim de 2017, os homens ganharam em média R$ 2.476,00 (dois mil, quatrocentos e
setenta e seis reais) contra R$ 1.884,00 (hum mil, oitocentos e oitenta e quatro reais) das
mulheres, o que significa uma diferença de 23,9% a mais no rendimento deles. Brancos
ganharam em média R$ 2.896,00 (dois mil, oitocentos e noventa e seis reais) enquanto pretos e
pardos ganharam R$ 1.615,00 (hum mil, seiscentos e quinze reais), ou seja, uma diferença de
44% a mais para os brancos.
Gráfico 1- Taxa de desocupação por raça
542
CONSIDERAÇÕES FINAIS
543
REFERÊNCIAS
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2003. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/forem_0759-
6340_2003_num_83_1_2854_t1_0107_0000_7. Acesso em: 1 de novembro de 2019.
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Acesso em: 23 de outubro de 2019.
544
http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2017/19473. Acesso em 1 de novembro de 2019.
POZZEBOM. F. Rodrigues. Mulheres e pessoas negras tem menor renda e são maioria entre
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TOPALOV, Christian. Naissance du chômeur. 1880 – 1910. Paris, Albin Michel, 1994.
Disponível em: https://www.persee.fr/doc/forem_0759-6340_1995. Acesso em: 1 de
novembro de 2019.
545
JUVENTUDE RURAL NO TRABALHO DA AGRICULTURA FAMILIAR NA
COMUNIDADE DO ESPÍRITO SANTO DO ITÁ, SANTA ISABEL – PA
https://doi.org/10.29327/527231.5-36
Matheus Gabriel Lopes Botelho (Universidade Federal Rural da Amazônia – UFRA)
RESUMO
Nos tempos atuais, a sucessão geracional ainda está relacionada com a masculinização no
campo, pois, os agricultores em sua maioria, ainda possuem uma preferência de escolha
pelos filhos homens. A continuidade da agricultura familiar está associada à disposição, dos
jovens filhos dos agricultores familiares, em suceder seus pais. Dessa forma, o presente
estudo possui como objetivo identificar os fatores que levam os jovens da comunidade do
Espírito Santo do Itá (Santa Isabel do Pará) a decidirem ou não pela sucessão geracional na
agricultura familiar, enfocando suas dificuldades e perspectivas em relação às atividades
econômicas da comunidade. O trabalho foi realizado na comunidade do Espírito Santo do
Itá, que está localizada ao sul da cidade de Santa Isabel. Tal estudo envolveu pesquisa de
campo, buscando levantar dados relativos à juventude da comunidade. Segundo os
entrevistados, no processamento da farinha não ocorre divisão de tarefas por sexo. Porém,
segundo as observações da pesquisa de campo realizadas e a literatura existente, algumas
atividades são realizadas por meio da divisão de trabalho por gênero, como o processo de
descascamento realizado pelas mulheres e a etapa de torração da farinha feita por homens.
Esse contexto afirma a existência da divisão sexual do trabalho em comunidades rurais
brasileiras, abordando atividades de campo específicas para mulheres e homens. Dessa
forma, percebe-se no decorrer da pesquisa, que o processo de masculinização do campo,
não é uma realidade na comunidade, uma vez que, as mulheres jovens possuem ativa
participação nas atividades agrícolas nas casas de farinha.
Palavras-chave: Território. Ruralidades. Masculinização. Sucessão Geracional.
ABSTRACT
546
INTRODUÇÃO
547
endógena, sendo tradicionalmente, um dos integrantes da família o sucessor da unidade
produtiva (CARNEIRO, 2001; SPANEVELLO, 2008).
Portanto, o presente estudo possui como objetivo identificar os fatores que levam os
jovens da comunidade do Espírito Santo do Itá (Santa Isabel do Pará) a decidirem ou não
pela sucessão geracional na agricultura familiar, enfocando suas dificuldades e perspectivas
em relação às atividades econômicas da comunidade. Com objetivos específicos:
apresentar o perfil dos jovens da comunidade estudada; avaliar a participação dos jovens no
processamento dos subprodutos da mandioca (Manihot esculenta) nas casas de farinha da
comunidade; e levantar os principais motivos que levam os jovens da comunidade a
decidirem pela permanência ou saída do campo e nas atividades econômicas familiares.
MATERIAL E MÉTODOS
O trabalho foi realizado na comunidade do Espírito Santo do Itá, que está localizada
a aproximadamente 20 km ao sul do município de Santa Isabel, nordeste do Estado do Pará,
a 45 Km da capital Belém. A comunidade possui as coordenadas geográficas entre o
paralelo 1°22’0‖S e meridiano 48°04’31‖O (Figura 1). O principal acesso à área de estudo é
realizado através das vias rodoviárias BR-316 e a rodovia estadual PA-140, realizando a
integração das diversas localidades que existem na região (SALOMÃO, 2016).
548
processos de decisão da sucessão geracional nas atividades rurais, condizente com a
pesquisa realizada por Ferreira (2019).
Tabela 1 – Distribuição dos jovens entrevistados de acordo com a percepção dos mesmos
em relação à faixa etária de juventude.
549
A tabela 2 indica a idade dos entrevistados. A faixa etária das pessoas entrevistadas
variou entre 11 a 24 anos. Sendo que a maioria dos jovens estava na idade de 17 e 23 anos,
seguido de 12, 14, 15, 19, 16, 18, 20, 11, 13, 21 e 24 anos.
550
RESULTADOS E DISCUSSÃO
3,4%
16,7%
Ensino Médio completo
66,6%
Ensino Fundamental
completo
551
Quando os entrevistados foram questionados a respeito de suas profissões, os
mesmos afirmaram que são agricultores (93,4%), uma pessoa alegou ser jovem aprendiz
(3,3%) e um jovem afirmou não possuir profissão (3,3%) (Tabela 4).
Os jovens que possuem atividades no meio rural são aqueles que estão relacionados
ao processamento de subprodutos da mandioca nas casas de farinha. Quando questionados
sobre auxiliar os pais nas atividades de campo, a maioria dos jovens afirmou que realizam
essa ajuda (86,7%) e alguns negaram, definindo 13,3% dos entrevistados (Tabela 5). De
acordo com a pesquisa de campo realizada, observou-se que a maioria desses jovens estão
inseridos em uma posição hierárquica de submissão com os pais, como afirma Castro
(2005). Por outro lado, aqueles que negaram esse auxílio se recusam a dar continuidade
aos trabalhos de campo realizados pelos pais, como aborda Spanevello (2011), não
possuindo vocação para serem potenciais sucessores.
Respostas Nº de jovens %
Auxiliam 26 86,7
Não auxiliam 4 13,3
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.
Quando questionados sobre quais atividades eles realizam para auxiliar os pais no
meio rural, as principais respostas foram: ajuda na hora de plantar e colher a mandioca e
ajuda no processamento da mandioca nas casas de farinha (60,0%); Somente ajuda no
processamento da mandioca (16,7%) e somente ajuda na hora de plantar e colher a
mandioca (10,0%). Porém, alguns jovens afirmaram não realizar esse auxílio de atividades
de campo com os pais, constituindo 13,3% dos entrevistados (Figura 3).
552
Figura 3 – Porcentagens dos jovens entrevistados de acordo com as atividades de campo
que realizam para auxiliarem os pais nas atividades rurais.
13,3% 10,0%
Somente ajuda no
processamento da mandioca
16,7% nas casas de farinha.
Respostas Nº de jovens %
Recebem remuneração 21 70,0
Não recebem remuneração 5 16,7
Não auxiliam os pais 4 13,3
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.
553
ao uso mais frequente da mandioca brava, ocasionando, um produto com bem granulados.
A mista é obtida mediante as misturas das massas de mandioca ralada e fermentada, antes
da prensagem. A seca é obtida de raízes de mandioca secas à temperatura moderada ou
alta. Os principais subprodutos da mandioca produzidos pela comunidade são: Goma, tucupi
e farinha D’água (Figura 4). Como afirma Fernandes (2017), o estado do Pará continua
sendo o maior produtor nacional de mandioca, realizando, principalmente, a produção de
farinha dos tipos: D’água, mista e seca.
554
Figura 5 – Etapas do processamento da farinha de mandioca realizadas por homens e
mulheres, adultos e jovens. A) Colheita das raízes de mandioca; B) Exclusão das raízes não
sadias.
A B
93.4%
555
De acordo com os jovens entrevistados, no processamento da farinha não ocorre
divisão de tarefas por sexo. Porém, segundo as observações da pesquisa de campo
realizadas e a literatura existente, algumas atividades são realizadas por meio da divisão de
trabalho por gênero, como o processo de descascamento realizado pelas mulheres e a
etapa de torração da farinha feita por homens (Figura 7). Esse contexto exemplifica o estudo
realizado por Kergoat (2009), pois a autora afirma a existência da divisão sexual do trabalho
em comunidades rurais brasileiras, abordando atividades de campo específicas para
mulheres e homens. Dessa forma, percebe-se no decorrer da pesquisa, que o processo de
masculinização do campo descrito por Kischener (2015), não é uma realidade na
comunidade, uma vez que, as mulheres jovens possuem ativa participação nas atividades
agrícolas nas casas de farinha.
Porém, existem 36,7% dos jovens entrevistados que não consideram as atividades
das casas de farinha como uma boa oportunidade de trabalho para a juventude rural, pois
eles afirmaram que os jovens da comunidade não gostam de trabalhar nas casas de
farinhas, uma vez que, eles somente trabalham nessas atividades por não terem outra
opção de trabalho e renda. “Acho que os jovens da comunidade deveriam buscar outras
oportunidades de trabalho e renda, fora da comunidade com o objetivo de melhoria de
qualidade de vida e qualificação profissional” (Relato de um jovem de 22 anos, morador da
comunidade). Observa-se que esses jovens não possuem uma percepção de
empreendimento comercial que a cadeia da mandioca pode oferecer, como afirma
Fernandes (2017).
556
Esse contexto exemplifica a pesquisa de Vantroba (2009), que afirma que a
permanência do jovem no campo irá depender das oportunidades que lhes são
apresentadas, como opções de emprego e renda. Porém muitos jovens realizam as
atividades pelas obrigações da tradição familiar e por não terem outra oportunidade de
trabalho, principalmente, pela ausência de qualificação profissional, o que foi observado no
decorrer da pesquisa. Condizente com este contexto, Siqueira (2004) argumenta que a
decisão dos jovens de migrar para a cidade em busca de trabalhos que não sejam
relacionados ao meio rural, é proveniente do crescente desejo dos filhos e filhas de
agricultores, em não reproduzir a ocupação e as atividades dos pais no campo, dessa forma
prejudicando a sucessão geracional no campo.
Respostas Nº de jovens %
Gostam de morar na comunidade 28 93,4
Não gostam de morar na comunidade 2 6,6
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.
Todavia, dois jovens afirmaram não gostar de morar na comunidade por motivos
relacionados ao desejo de procurar oportunidades de trabalho em centros urbanos. “Quero
sair da comunidade para realizar os meus sonhos profissionais” (Relato de uma jovem de 23
anos, moradora da comunidade). Os mesmos não destacaram nenhum motivo de afinidade
de moradia na localidade.
557
Quando questionados, se eles gostariam de realizar um planejamento de continuar
morando na comunidade, a maioria dos jovens entrevistados afirmaram que desejariam
continuar residindo na localidade (63,3%) pelos mesmos motivos que apreciam morar no
lugar (Tabela 8). Porém, verifica-se, que o número de entrevistados que querem se preparar
para continuar residindo na comunidade é menor em relação aqueles que gostam de morar.
Ou seja, gostar e querer ficar são aspectos bem diferenciados.
Respostas Nº de jovens %
Planejam continuar morando na comunidade 19 63,3
Não planejam continuar morando na comunidade 11 36,7
Total 30 100
Fonte: Pesquisa de campo, 2019.
Assim, percebe-se que tanto os jovens que querem persistir em morar na localidade,
quanto aqueles que não desejam, não apresentam a ―disposição‖ necessária, a qual o autor
Brummer (2005), enfatiza que é necessário ter para dar continuidade às atividades agrícolas
de seus pais. Uma vez que, o trabalho na agricultura familiar não é citado pelos
entrevistados como critério de planejamento de moradia.
Esse contexto pode ser comparado com a pesquisa de Ferreira (2019), que realizou
um estudo sobre jovens de algumas comunidades das ilhas do município de Abaetetuba
(PA), e constatou que uma parcela desses jovens possui o desejo de permanência por
motivos de lazer e ao desejo de viver na tranquilidade do meio rural e livre da ―agitação‖ de
quem reside na cidade. No mesmo contexto Kischener (2015) considera que apesar das
condições negativas que muitas vezes são encontradas no campo, como a exposição às
tarefas que exigem força e o desgaste muscular, alguns jovens preferem estar no campo.
Segundo o autor, a qualidade de vida no campo, na maioria das vezes, é melhor do que na
cidade, onde não ocorre garantia de melhoria de vida.
558
que as ocupações urbanas são melhores nos critérios de qualidade de vida e remuneração,
em comparação às áreas rurais.
De acordo com a Tabela 9, constatou-se que os principais motivos que levam (ou
levaram), os jovens a pensarem em sair da comunidade são: Busca de oportunidade
profissional em emprego que não está relacionado com o meio rural; e busca de
independência financeira, trabalhando assalariado mensalmente (46,6%) e estudar para
mais tarde retornar para a comunidade com mais qualificação e poder (16,7%). Porém,
36,7% dos jovens afirmaram não terem o desejo de sair da comunidade.
Respostas Nº de jovens %
De acordo com a opinião dos jovens em relação a qual alternativa faria com que
melhorasse a vida do jovem na comunidade, todos os entrevistados abordaram a mesma
alternativa como sendo a inclusão de cursos profissionalizantes que auxiliassem a melhorar
a atividade rural, e cursos profissionalizantes que não estivessem relacionados com as
atividades rurais, como: informática, estética, entre outros. A opinião desses jovens pode ser
comparada com a pesquisa de Ruzany (2012), pois aborda que os jovens possuem o desejo
de ter acesso à educação e às outras áreas de conhecimento como a informática, sem
deixar de permanecer na localidade rural, o que permitiria uma inclusão de um
conhecimento ilimitado e desconhecido para o meio rural.
559
Quando perguntados se os jovens acreditam que a agricultura familiar irá crescer
ainda mais na comunidade e isso irá contribuir para a sua permanência, a maioria dos
jovens afirmou que ―Sim‖ (63,3%) e outra parte dos entrevistados, constituindo 36,7%,
disseram que ―Não‖ (Tabela 10). Os resultados coincidiram com as respostas dos jovens
que planejam ou não continuar morando na comunidade e com aqueles que acreditam ou
não que o processamento da mandioca nas casas de farinha é uma boa oportunidade de
trabalho, configurando dessa forma, uma concordância nas respostas. Porém observou-se
no decorrer da pesquisa, o desejo da maioria dos jovens em sair da comunidade para
buscar oportunidades profissionais nas cidades, pelo fato de não considerarem as atividades
agrícolas da localidade como uma boa oportunidade de trabalho, mesmo que a maioria as
pratique por falta de outras opções de emprego.
Os entrevistados que afirmaram, abordaram que isso irá favorecer para a geração
de mais oportunidades de renda para os jovens que residem na comunidade, caso os
mesmos não consigam encontrar boas oportunidades de trabalho nas cidades. Aqueles que
negaram, disseram que possuem o desejo de sair da comunidade para morar nos centros
urbanos na busca de qualificação profissional. O desejo de sair desses jovens pode ser
explicado por meio da pesquisa de Brumer (2007), pois afirma que para a categoria dos
jovens rurais, os principais fatores motivadores para a saída do campo estão relacionados
às incertezas de rentabilidade, o que foi observado no decorrer da pesquisa. Ainda segundo
a autora, a preocupação no que se refere aos aspectos estruturais que definem o lugar e o
papel da juventude rural, que delimitam a liberdade de escolhas dos jovens, é recorrente na
literatura sobre juventude rural. Portanto, nota-se que o aspecto econômico está ligado aos
principais motivos que levam os jovens a permanecerem ou não no campo, uma vez que,
limitações econômicas ainda continuam a persistir no meio rural.
560
11). Observou-se que os entrevistados tiveram dúvidas nessas respostas, dessa forma
constatando uma incerteza em relação à permanência no campo.
Respostas Nº de jovens %
boas, irei permanecer por mais um tempo e
19 63,3
depois decido se continuo ou não.
No que se refere à forma de lazer predileto dos entrevistados eles abordaram que as
principais formas de lazer são: ter acesso ao igarapé ou rio próximos da comunidade
(100%); ir em festas nas comunidades vizinhas (56,6%); ir em festas nas cidades (56,6%);
jogar futebol (60,0%); assistir televisão (56,6%) e frequentar cultos ou missas (30,0%).
Sendo que cada jovem entrevistado abordou mais de uma resposta como forma de lazer
predileto (Figura 8). Portanto, todos os entrevistados afirmaram que o acesso ao igarapé ou
rio próximos da comunidade se configura como a principal forma de lazer dos jovens da
comunidade.
100%
30,0%
Ir em festas nas Ir em festas na Jogar futebol Gosta de ficar Cultos / missas. Igarapé / rio.
comunidades cidade. em casa vizinhas. assistindo TV.
561
Dessa forma, de acordo com Kummer (2013), os jovens moradores de comunidades
rurais realizam uma valorização dos espaços rurais no que se refere à apreciação da
natureza local como principais formas de diversão.
CONCLUSÃO
Por meio das análises dos dados coletados, é possível afirmar que os objetivos desta
pesquisa foram alcançados. Dessa forma, observou-se que para a geração atual da
comunidade estudada, o perfil da maioria dos jovens é caracterizado pela ativa participação
nas atividades do meio rural relacionadas ao processamento dos subprodutos da mandioca
nas casas de farinha. Uma vez que a maioria desses jovens auxilia os pais nas atividades
de campo.
Outro ponto importante que foi analisado no decorrer da pesquisa, é que os jovens
entrevistados não percebem a divisão sexual de trabalho que acontece na comunidade, uma
vez que, na localidade ocorre a ausência da masculinização do campo, devido a ativa
participação das mulheres jovens nas atividades de processamento nas casas de farinha.
A maioria dos jovens entrevistados afirmam que as atividades nas casas de farinha
são uma boa oportunidade de trabalho e renda para a juventude rural, pela falta de outras
opções de empregos no meio rural. A outra parcela dos entrevistados que negaram, também
aborda que existe uma carência de oportunidades de trabalho para os jovens da
comunidade, e por isso a maioria deles realizam atividades nas casas de farinha por não
terem outra escolha. Dessa forma, todos os entrevistados possuem percepções parecidas
em relação às atividades agrícolas, por não as considerarem como prioridade de escolha.
562
oportunidade trabalho. Logo, por mais que a maioria dos jovens tenha afinidade de morar na
comunidade, os mesmos possuem o desejo de sair para alcançar realizações profissionais.
Pois, é notório perceber que tratam-se de jovens com muitas vontades, desejos e
perspectivas de um futuro melhor. Dessa forma, existem possibilidades de maiores estudos
no que se refere à juventude rural, como a avaliação de políticas públicas voltadas para
essa categoria social e a análise da organização dos jovens no contexto da sociedade
moderna.
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por elas mesmas. In.: ABRAMOVAY, Miriam; ESTEVES, Luiz Carlos Gil. 2007.
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563
KERGOAT, Daniele. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA,
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564
GEOGRAFIA, GÊNERO E INJUSTIÇAS SOCIOAMBIENTAIS:
Reflexões sobre a comunidade de Piquiá de Baixo em Açailândia-MA
https://doi.org/10.29327/527231.5-37
RESUMO
O interesse pelo tema deste artigo surgiu através de minha vivência enquanto mulher,
moradora de Piquiá de Baixo em Açailândia-MA, educadora popular ao longo de quatro anos
na comunidade em razão de ter vivenciado as injustiças socioambientais presentes na
comunidade de Piquiá de Baixo. Assim sendo, o objetivo deste trabalho é refletir sobre forte
protagonismo feminino desta comunidade frente as injustiças socioambientais. Para
desenvolver esse trabalho, além do referencial teórico, foram realizadas entrevistas
semiestruturadas com o grupo de mulheres da comunidade de Piquiá de Baixo. Pelos
estudos desenvolvidos, notou-se que a organização do trabalho feminino na comunidade de
Piquiá de Baixo além de ser um ato político na conquista de espaços na sociedade é um dos
caminhos a serem percorrido na autonomia dessas mulheres. Este Trabalho é também de
grande valia para o processo de organização e visibilidades do protagonismo feminino das
mulheres de Piquiá de Baixo e outras comunidades também impactadas por grandes
projetos de mineração, no entendimento que envolve o exercício de organização e coleta de
informações sobre as injustiças socioambientais causadas às comunidades por esses
grandes projetos de exploração, tendo em vista as dificuldades de estudos mais
aprofundados nesse âmbito.
565
2. JUSTIFICATIVA
566
Com base no exposto é que apresentamos a seguir as principais indagações que nortearam
os caminhos desse estudo.
3. PROBLEMA
Questão Norteadora
Questões Específicas
567
Com base nestas indagações, ou seja, nos questionamentos apresentados é
que elaboramos as principais finalidades (Objetivos) para a realização deste estudo.
5. OBJETIVOS
Objetivo Geral:
Objetivos Específicos
autonomia e resiliência aos padrões impostos pela sociedade ao longo dos tempos.
568
como espaço privilegiado para atuação ampliada do capital. (SOUSA, 2009,
P. 75).
Com esse novo contexto, acontece a implantação do projeto grande Carajás que
abarca os estados do Pará e Maranhão no início da década de 1980 e paralelamente a
instalação do polo siderúrgico no bairro de Piquiá de Baixo no município de Açailândia - MA.
O município de Açailândia apresenta população de 104.047 mil habitantes de acordo
com o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010).
Para o ano de 2019 o IBGE registrou um quantitativo total de 112.445 mil habitantes, sendo
que destes 78.237 residem nas áreas urbanas e 25,810 residem nas áreas rurais. A cidade
de Açailândia teve o seu reconhecimento no dia 6 de junho de 1981, a partir do processo de
fragmentação territorial ocorrido no município de Imperatriz no início da década de 1980.
Vale ressaltar que Açailândia era vista por integrar forte disponibilidade de matéria-
prima e localização favorável para a produção mineral da região de Carajás. Sousa (2015)
esclarece muito bem este aspecto quando escreve que
569
[...] entende-se que em razão da localização privilegiada e em face dos
determinantes políticos e econômicos é que o município de Açailândia foi
escolhido como uma área prioritária para os processos de produção e
transformação do ferro -gusa, com vistas também a integrar o complexo
industrial siderúrgico do sudeste do estado do Pará. (SOUSA, 2015, p. 214)
Fica claro nas ideias de Raffestin (1993) o quanto a apropriação do território impacta
na vida dos indivíduos habitados. ―Controlar o território significa mais que usar o recurso,
significa controlar determinada área geográfica, recursos e indivíduos ali presentes‖. O
bairro de Piquiá de Baixo existe desde os anos 1970. A primeira escola pública de
Açailândia-MA está sediada nesse bairro e foi construída nessa época antes da implantação
do pólo siderúrgido. As indústrias chegaram posteriormente, na segunda metade da década
de 1980.
570
Piquiá de baixo conta com 320 famílias (mais de mil pessoas) que residem neste,
sendo circundado por cinco indústrias de ferro-gusa e Estrada de Ferro Carajás.
571
Atualmente, a empresa Fergumar está fechada e as empresas Simasa e Pindaré
foram adquiridas pela empresa Queiróz-Galvão. Além das siderúrgicas, funcionam uma
usina termelétrica, uma fábrica de cimento e uma aciaria, ainda em fase de construção, mas
já parcialmente ativa. Ou seja, o município de Açailândia abriga um dos maiores setores
indústrias do estado do Maranhão. No entanto, a modernização que se faz presente neste
município tem sido questionada constantemente em razão dos problemas socioambientais
que geram às comunidades.
Rossini (apud ENGELS, 1998, p. 7) destaca que ―a história da origem da família liga-
se, na sua base, à distribuição das tradições e das estruturas igualitárias, a partir do
momento em que os indivíduos começaram a apropriar-se do excedente de produtos
criados pelo trabalho coletivo da comunidade‖.
572
Santos (apud NADER, 2016, p. 38) ―tradicionalmente, a história reservou para a
mulher um lugar pequeno, porque, por muito tempo, privilegiou os espaços e as cenas
públicas (…) os registros sobre a mulher, considerada como pertencente a uma categoria
inferior, ficaram ligados à sua condição, ao seu lugar na família e na sociedade. Por isso, as
fontes de pesquisas para um estudo sistemático sobre elas são uma memória do mundo
privado, relacionada com o domicílio familiar, ao qual ela fora ligada por determinação e
convenção‖.
573
Todas as coisas implicam um processo, como já vimos. Esta lei é
verdadeira para todo o movimento ou transformação das coisas, tanto para
as reais quanto para seus reflexos no cérebro (ideias). Se todas as coisas e
ideias se movem, se transformam, se desenvolvem, significa que
constituem processos, e toda extinção das coisas é relativa, limitada, mas
seu movimento, transformação ou desenvolvimento é absoluto. (LAKATOS
e MARCONI, 2003. P.102).
Por conseguinte, com a observação direta intensiva que são aplicadas duas técnicas
a da observação, e a entrevista (padronizada e despradonizada) na qual utilizaremos in
lócus. E também a pesquisa de campo, caracterizando uma pesquisa empírica. Conforme
GIL:
574
Ela se ocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não
pode ou não deve ser quantificado. Trabalha com o universo dos
significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das
atitudes. Esse conjunto de fenômenos é entendido como parte da realidade
social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar
sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade
vivida e partilhada com os seus semelhantes. (MINAYO, 2010, p. 21).
575
Estruturamos o roteiro de entrevista em três categorias: identificação, trabalho
e emancipação das mulheres de Piquiá de Baixo. Compreendemos que essa
estrutura facilita e contempla as finalidades central do estudo em questão.
As indagações que justificaram a necessidade de compreender o
protagonismo feminino na comunidade de Piquiá de Baixo. São eles:
576
fortemente um sentimento histórico de acolhimento e pertencimento em relação ao
lugar.
Adoro morar aqui, porque foi o lugar que cresci e tenho muita
afinidade. (Entrevista: Rosecleia Reis, Auxiliar de Serviços
Gerais, 2019)
6
5
4
3
2
1
0
0a3 4a6 acima de 6
Quadro: 1
Profissões das mulheres de Piquiá de Baixo
Profissão Quantidade
Auxiliar de Serviços Gerais 2
Vendedora 2
Administração 1
Secretaria 1
Professora 4
Organização: Jordânia Silva, 2019.
577
Em relação a emancipação das mulheres da comunidade de Piquiá de Baixo é
possível salientar um significado maior do trabalho, para além da necessidade de manter-se.
Revela sua autonomia em relação as tomadas de decisões e a não dependência financeira
relacionada historicamente aos maridos como mantedores da família. Nas respostas das
entrevistas abaixo enfatizam esse desassossego pela dependência financeira e pela
satisfação em poder manter-se.
578
REFERÊNCIAS
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
DOS SANTOS¹, Thaís Pereira et al. Adeus à Resignação? Mulheres Antagonistas aos
Projetos Minerários no Município de Riacho dos Machados. Revista do Departamento
de Ciência Social da Unimontes, 2016.
ROSSINI, Rosa Ester. As Geografias da Modernidade – Geografia e Gênero – Mulher,
Trabalho e Família. O Exemplo da Área de Ribeirão Preto – SP, Revista do Departamento
de Geografia, 1998.
579
MULHERES NO COMANDO: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DESAFIOS E
PERSPECTIVAS DE MULHERES EM CARGO DE GESTÃO
https://doi.org/10.29327/527231.5-38
580
INTRODUÇÃO
Joan Scott (1995), analisa o fato de que os papéis sociais são pré-determinadas para
cada gênero desde antes do nascimento, ou seja, o papel de agente passivo que é
destinado a mulher, se estabelece desde antes o seu nascimento, o que ela vai fazer, se
vestir, se comportar já está pré-determinado. Diante dessas condições sociais femininas, ao
observar que uma mulher ou que várias mulheres ocupam espaços e profissões que sejam
diferentes aos que historicamente foram impostos à elas, de agente passivo, é rica de
análise, para que assim se compreenda toda a realidade dessas mulheres, explicando e
analisando toda a sua trajetória até a sua atual posição.
Diante disso, existem diversas dificuldades enfrentadas pelas mulheres para que
trabalhem fora de casa, pelo fato de que elas são responsáveis por diversos papéis dentro
da sociedade, como por exemplo, a maternidade e o casamento, que durante gerações cabe
a mulher cuidar desse papel, sendo até muitas vezes obrigadas a escolher entre o trabalho
e/ou a família, assim como também as questão biológicas, o fato de engravidar, que com
isso sofre retaliações pelos tradicionalistas, pois ela terá que se ausentar no período de pré
natal e pós natal, como determina a lei, como aponta Amalia Sina (2005).
DESENVOLVIMENTO
Em uma observação feita na empresa privada a qual o estudo foi realizado, surgiu a
primeira vontade de entender e escrever sobre essa realidade logo ao entrar e observar a
seguinte situação, em que existia mais mulheres gerenciando os setores em relação ao
número de homens, onde eu observei que existia 15 setores ao todo, e que 11 são de
responsabilidade feminina.
581
primeira vez no espaço onde ocorreu a pesquisa, me deparei com essa mulher, assumindo
um papel de maior cargo dentro da empresa. Assim me sentindo de certo modo
representada, tendo em vista os diversos obstáculos que as pessoas negras passam na
sociedade atual, sendo vítimas de preconceito e sendo colocadas à margem da sociedade
por muito tempo, assim sendo negados à eles posições como esta, uma herança histórica
vinda do processo de escravidão no Brasil, como relata Maria Aparecida (2002). Assim
quando pessoas negras, e sobretudo mulheres negras assumem esses espaços, tem um
grande peso de representatividade dignas de serem analisadas.
Nessa perspectiva, Djamila Ribeiro, em sua obra Lugar de fala (2017), faz referência
a Grada Kilomba, é escritora e professora de departamento de estudos de gênero de
Humboldt Universitat, em Berlim, trazendo a discursão sobre a mulher no âmbito da
concepção de Simone Beauvoir, representada dentro do ambiente social como ―o outro‖ e
nunca como ―um‖ sujeito social, ou seja, sempre vista a partir da figura masculina. É uma
oposição ao masculino! Tudo que fugia a figura do homem era caracterizada como mulher,
não tendo figura própria e concreta, como diz Beauvoir (1970), que se encaixa em uma
indagação feita por ela sobre o ―ser mulher‖, sendo ela uma das pioneiras a discutir sobre
essa temática, e que reflete sobre a mulher negra, onde diz que ela é ―O outro do Outro‖, ou
seja, fazendo um recorte também de raça, a mulher negra sofre duas opressões, de gênero
e de raça, assim Djamila Ribeiro (2017) apud Grada Kilomba,
Djamila Ribeiro (2017), considera que na sociedade existe uma hierarquia social,
onde em ordem decrescente vem primeiramente o homem branco, depois a mulher branca,
o homem negro e pôr fim a mulher negra, consolidando ainda mais essa opressão.
Uma das categorias de analise deste estudo é o gênero, então nessa perspectiva
Joan Scott (1995) aborda que:
Categoria que indica por meio de desinências uma divisão dos nomes
baseada em critérios tais como sexo e associações psicológicas. Há
gênero masculino, feminino e neutro (...) o uso mais recente, o
―gênero‖ parece ter aparecido primeiro entre as feministas americanas
que queriam insistir no caráter fundamentalmente social das
distinções baseadas no sexo. (JOAN SCOTT, 1995, Pg. 3).
A ideia de gênero surgiu a partir de uma análise social que verificou que mulheres e
homens eram tratados de forma desigual socialmente. Além de ser um termo que ganhava
582
força dentro das discussões a respeito de estudos sobre mulheres, onde se acreditava que
esses estudos acrescentariam e muito para o conhecimento cientifico na sociedade.
Com a crescente luta de mulheres por direitos, ocorre o aumento pelas discussões
relacionado a gênero, onde elas se unem em prol de um mesmo objetivo serem livres, ser e
ter o que quiserem. Com isso, surge as lutas feministas, que teve grande importância para a
libertação de mulheres em diversos âmbitos, profissional, sexual ou dessexualização do
corpo feminino, até mesmo a descoberta do clitóris na década de 60, essa era uma das
pautas dessas lutas históricas feministas, segundo Margareth Rago (2011).
583
rotina, baixos salários e grandes jornadas de trabalho, como aponta Amalia Sina (2005).
Diante dessa realidade, as ativistas feministas, lutavam para mudar esse cenário trabalhista
feminino, garantindo direitos de melhores condições de trabalho.
Mesmo com todo os avanços, devido as lutas feministas, para a conquista por
espaços dentro desse novo modelo de trabalho e organização social, as mulheres
continuavam ocupando cargos considerados menos importantes dentro dos ambientes de
trabalho, onde eram divididos a partir do que seria função inata do homem e/ou função inata
da mulher, que são reflexos dos estereótipos criados aos sexos vinculados desde a infância,
segundo Mertz (2014), assim, as mulheres não esperavam que se tornassem líderes e não
almejavam tais cargos. Com esses estereótipos as mulheres eram vistas apenas para
exercerem tarefas do lar, e\ou cuidados dos filhos, cultura patriarcal implantada na
sociedade, que faz com as mulheres sejam submissas ao sexo masculino dominante desse
meio social, utilizando de uma das justificativas dessa submissão, a biológica, onde o fato
da mulher menstruar e engravidar, o seu peso, medida, força, julgava ela como incapaz ou
como inferior ao homem, ideia explicada na obra de Simone de Beauvoir (1970). No livro de
Amalia Sina (2005), apud. Rachel Soithet contem sobre essas condições impostas ao sexo
feminino, onde ela diz que
Com isso a ideia de que a mulher deveria gastar toda sua inteligência para seu
marido e filho, desmotivando por vezes de ascenderem socialmente, economicamente e até
mesmo sexualmente.
Ainda nessa concepção de estereótipos criados para cada cargo e/ou função, as
mulheres que assumiam funções de gestão, acabam que utilizavam de características ditas
masculinas, para poderem ganhar espaços dentro das empresas, a exemplo, a
competitividade, como relata Amalia Sina (2005)
Com isso, muitas gestoras assumiram e\ou assumem essas posturas, e as que não
apresentam essas características, acabam que por vezes sendo deslegitimadas diante de
sua autoridade dentro do ambiente de trabalho.
584
A mulher, atualmente, representa 40% da população economicamente ativa no brasil,
mas apenas 14% exerce cargos de gestão\gerência, mesmo tendo escolarização superior
em relação aos homens, segundo Mertz (2014). Mulheres estudam em média 8,2 anos,
1
enquanto os homens 7,8 anos, segundo DHM , que é um fator muito importante, haja vista
que durante a primeira metade do século XIX as mulheres eram impedidas de estudar,
sendo a educação delas apenas a escola de primeiro grau, onde atingir níveis mais altos era
abertos apenas para os homens, para elas eram ensinados tarefas do lar, ao invés da
escrita ou leitura, como mostra Maria Teles (1993), apenas em 1881 ouve o primeiro
ingresso de uma mulher ao ensino superior.
A seguinte pesquisa teve um estudo com uma abordagem qualitativa descritiva, que
segundo Gil (2008), é um tipo de pesquisa que se preocupa em investigar de forma
subjetiva um sujeito ou um grupo social, no caso as mulheres do local estudado, procurando
entender sobre sua rotina, suas atribuições dentro da empresa.
A pesquisa contou com uma abordagem do tipo etnográfica, com a técnica do tipo
observação participante, participando da rotina profissional dessas mulheres, como elas
exercem suas tarefas diárias, quais as relações que elas fazem no decorrer do dia. Esse tipo
de pesquisa faz com que haja uma maior aproximação entre pesquisador e pesquisador,
fazendo com que tenha confiança e maiores dados sejam obtidos para a pesquisa, como
mostra no texto de Vagner Silva (2015):
Nesse parágrafo, ele reforça a ideia de se colocar de fato na pesquisa, ou seja, não
observando de longe, mas conversando de dentro, algo que revolucionou muitas pesquisas,
Direitos humanos das mulheres, a equipe das nações unidas no Brasil. Julho, 2018.
585
que defendiam suas teses dentro de seus escritórios, salas, bibliotecas, mas nunca iam até
o local para de fato comprovar o que estavam dizendo. Julgo essa ação muito importante,
para que de fato os pesquisadores tenham coerência e veracidade no que estão falando, ou
tentando falar, é uma ação a qual utilizarei na minha pesquisa, que conviverei diariamente
com elas na hora do trabalho, observando, conversando, entendendo essas relações e
ações de chefia diária.
Um outro método utilizado foi história de vida, pois com esse método pude identificar
os caminhos, decisões e desafios enfrentados por elas até chegar a essa posição, se houve
incentivo da família, amigos, parceiros (as), para se chegar nesse cargo, e até mesmo se
elas mesmas pensaram e/ou almejaram ocupar essa posição.
Vale ressaltar que por princípio epistemológico, não utilizei de discursos masculinos,
havendo prioridade e exclusividade dos discursos das mulheres, enfatizando ainda mais que
elas são e serão protagonistas dos relatos, de suas histórias e vivencias, consequentemente
da pesquisa, por meio dos discursos. Ainda nessa mesma perspectiva, utilizei durante o
decorrer da pesquisa, nas referências o nome das mulheres com primeiro e último nome,
para dar mais visibilidade para as mulheres pesquisadoras.
Em uma conversa informal com uma das mulheres dessa empresa, que se identifica
enquanto parda, de 46 anos de idade e exerce cargo de chefia de um determinado setor a
20 anos, cuja forma de inserção no cargo foi que a antiga gerente gostou da forma como ela
trabalhava em outro local, sua forma de conversar e tratar as pessoas, fizeram com que ela
à quisesse em sua empresa.
Ela relata que enquanto criança e\ou jovem, não era incentivada a chegar em um
patamar mais alto na profissão e também a fazer um curso superior, seu pai era muito rude
para com ela em relação aos estudos, na época o ensino médio era agregado ao ensino
técnico, onde existia algumas áreas para se especializar, dentre elas tinha o magistério e a
administração, a qual o pai queria que ela fizesse o magistério, por se melhor para ela, pois
era uma mulher, entretanto, ela se opôs, e fez administração, o pai não apoiou e a proibiu
de se formar nesse curso. Lutando contra isso, ela conseguiu terminar e só após o
casamento que conseguiu adentrar na universidade. Outro ponto que a entrevistada
2
apresenta, é o preconceito sexista que sofreu em seu ambiente de trabalho, onde por dois
relatos demonstrou tais fatos, em um ela diz que por ser responsável por um setor, ela era a
única que recebia informações diretas da gerencia local e regional, sendo assim, um homem
Ato de discriminação e objetificação sexual, é quando se reduz alguém ou um grupo apenas pelo gênero ou orientação
sexual. Um dos casos mais comuns de sexismo é estipular que a cor rosa está relacionado ao gênero feminino, e o azul
ao gênero masculino.
586
a qual ela comandava apresentava uma certa dificuldade em aceitar ou acatar as ordens
que ela repassava, como ela mesma diz: ―(...) por vezes percebia que era por puro
machismo, sempre duvidava do que eu falava e não me repassava as informações (...)‖.
Outra situação relatada, foi que um outro homem quis impor suas ideias a ela em
relação a organização do espaço de trabalho, por vezes em voz alta, mas ela contornava a
situação, mostrava confiança e segurança no que estava falando, fazendo que ele à
respeitasse.
Essas situações, nos mostra como a criação da criança é fundamental, pois assim
encoraja suas filhas, principalmente, a sair dessa condição que muitas são colocadas, como
―Rainhas do lar ―, termo que a Amalia Sina (2005), retrata em sua obra. Mas, não apenas a
criação da criança de sexo feminino, mas também a criação da criança do sexo masculino,
pois assim os homens também cresceram com consciência de que se deve respeitar uma
mulher, seja no ambiente profissional ou não. Além de mostrar, que as mulheres têm que
mostrar a todo momento que é capaz de estar nessas ocupações, mostrando e
demonstrando sua eficiência a todo momento.
CONCLUSÃO
Assim, pode-se perceber que ainda existe uma resistência masculina para lidar com
mulheres em cargos superiores aos deles. Sendo muitas vezes agressivos e/ou displicentes,
até mesmo com seu próprio trabalho, pois devido a esses desvios nas atribuições, como por
exemplo, obedecer aos comandos dela e até mesmo dar satisfação das atividades
desenvolvidas, faz com que o seu desempenho caia, sendo um funcionário que vive sendo
chamado a atenção pela gerente da unidade. Como relata a mulher pesquisada, que
algumas vezes em reuniões com a gerente, ela conversa e chama a sua atenção na frente
de todos, e ele não reage muito bem, o machismo falando mais alto. Com essas atitudes,
até a relação deles, pessoal e profissional, mudou de uma forma considerável. A sociedade
dinâmica e muda constantemente, mas esses pensamentos e atitudes, muitas vezes
mudam lentamente.
587
Diante disso, levando em conta um pensamento de Amalia Sina (2005), sobre
o trabalho feminino:
Assim, toda mulher merece respeito, seja qual for seu cargo ou ocupação, analisar
essas vidas trará voz a essas mulheres sobre suas condições, seja ela positiva ou não.
588
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil para a análise histórica. New York, 1995.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 edição. Difusão europeia
do livro. São Paulo, 1970.
GIL, Antônio C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4° edição. Editora atlas. São
Paulo, 2008.
MARTINS, Carlos Benedito. O que é sociologia. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982.
MARGARETH, Rago. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo em
Perspectiva, 15 93). 2001.
589
ETNOCONHECIMENTO E CONSERVAÇÃO DA AGROBIODIVERSIDADE PELAS
MULHERES CAMPONESAS NO PROJETO DE ASSENTAMENTO MÁRTIRES DE
ABRIL/PARÁ
https://doi.org/10.29327/527231.5-39
1
Regina Oliveira
Cyntia Meirelles²
2
Ruth Helena Almeida
RESUMO
ABSTRACT
This paper aimed to investigate the knowledge of agrobiodiversity products and the
role of women in rural social relations and in PAS Mártires de Abril - Belém, Pará state,
Brazil. Participatory and ethnoecology methods were used to map out agricultural
diversity and the knowledge of women farmers in this Settlement, emphasizing the
question of gender. The application of semi-structured questionnaires and a survey of
local history contributed to understanding the organization of social space experienced
by women, production systems and the lifeways of a peri-urban settlement. We
interviewed 59,2% of the settlers. A total richness of 256 ethnospecies were registered,
distributed in 63 botanical families that are cultivated and extracted. Production is not
earmarked for the market as most of it is geared towards food security. Women play an
important role in the settlement´s agricultural diversity.
590
INTRODUÇÃO
591
sociais, econômicas e políticas que se interagem no processo de ocupação para
definir as práticas agrícolas.
Material e métodos
592
Figura 1- Localização do Projeto de Assentamento Mártires de Abril e as áreas de uso.
593
segundo os assentados há presença de mamíferos como macaco-prego, capivara e
cutias. Além de ofídios, répteis, quelônios e aves como tucanos e gaviões. A
distribuição espacial no PAS-MA, segundo os assentados é caracterizada como:
agrovila (local das moradias e quintais); lotes (áreas de produção familiar); área
patrimonial (locais de infraestrutura da fazenda e área de preservação); área de
projetos coletivos (locais onde se desenvolveram os projetos agrícolas coletivos) e as
áreas de sobra de terra (que são doadas ou se permite o uso para as novas famílias
que chegam ao PAS).
Além da consulta aos registros nas fontes secundárias de informação foi realizada
atividade de campo combinando técnicas de pesquisa-ação com entrevistas
semiestruturadas e observação participante. A pesquisa-ação como uma prática que
promove interação entre os pesquisadores e os sujeitos sociais e a pesquisa
participante com o objetivo de conhecer melhor as formas vida social, política,
econômica e cultural dos moradores para o estabelecimento de ações (THIOLLENT
2003; HAGUETE 2003). Nesse contexto, a pesquisa de campo teve como pressuposto
a interdisciplinaridade, sendo possível a realização de uma abordagem sob diversas
perspectivas.
O trabalho de campo foi realizado nos períodos de julho de 2011, quando da visita à
coordenação local para apresentação do projeto; de 9 a 12 de agosto de 2011 quando
da aplicação dos questionários e entrevistas às pessoas-chave e reconhecimento da
área e em 24 a 29 de novembro de 2011, ocasião em que se percorreu os lotes e se
realizou levantamentos etnobiológicos. O questionário aplicado abordou temas
concernentes à identificação da família, a origem e histórico de migração dos
moradores, aspectos socioeconômicos, aspectos da produção e do uso da terra,
agrobiodiversidade, fundiários e percepção e sua relação com o meio ambiente.
594
Os dados foram sistematizados no programa Excel (versão 2007), e as análises
realizadas por meio de métodos da estatística descritiva, com auxilio de
representações gráficas e em tabelas. Para se verificar a suficiência amostral, foi
construída a curva de rarefação cujo o objetivo é estabelecer o número de espécies
conhecidas ou utilizadas por um determinado grupo humano, considerando o número
de citações de cada etnoespécie em cada entrevista que compõe uma amostra
(Hanazaki et al. 2000; Peroni et al. 2008). Para este estudo foi utilizado o estimador
Bootstrap, o qual é calculado pela fórmula:
Sobs
Onde:
Tanto a curva de rarefação quanto a curva do estimador foram geradas por meio do
programa EstimateSwin 8.20. Para se calcular a diversidade de usos dos recursos da
agrobiodiversidade, empregou-se o índice de Shannon-Wiener (BEGOSSI, 1996). A
fórmula para calcular o Índice de Shannon-Wiener é:
Onde:
S = número de espécies;
pi = ni/N;
Resultados e Discussão
595
Os moradores do assentamento são na sua grande maioria emigrados das periferias
de Belém, Ananindeua e Castanhal no estado do Pará, além de Amazonas, Maranhão,
Goiás e Minas Gerais. Muitos foram arregimentados e cadastrados pelo trabalho de
base do MST. As razões da migração incluem a expulsão de suas regiões de origem,
mudança de área de assentamento, a falta de oportunidades e as dificuldades
enfrentadas para estabelecimento de condições de vida; não caracterizando todos os
assentados como oriundos da agricultura familiar. A idade dos entrevistados variou
entre 17 a 69 anos, a média de idade foi de 44 anos. A chegada dos moradores no
assentamento ocorreu em dois momentos: o primeiro quando da ocupação em maio
de 1999 e o segundo após os períodos de despejo quando algumas famílias
abandonaram o assentamento, já no segundo ano de ocupação. A maior parte dos
assentados está na área há mais de 10 anos. Os mais recentes chegaram convidados
por suas famílias ou após a saída ou falecimento de outros assentados.
596
organizar a produção, representando as famílias junto aos órgãos públicos; e a partir
de 2008 surge a Associação Agroecológica Familiar do Assentamento Mártires de
Abril (Aproaf), ligada a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar e que
emergiu da divisão política do MST.
597
enfoque multifuncional da agricultura familiar e sua relação rural-urbana, considerando
a proximidade do PAS-MA com a Capital Belém.
Está nos quintais e lotes a maior parte dos produtos cultivados. Quintais são
considerados como um sistema agrícola tradicional muito difundido na maioria das
regiões tropicais do mundo (LAMONT et al.,1999). Ressalta-se que os quintais no
PAS-MA, estão presentes nos lotes e na agrovila, sendo o mesmo reconhecido como
a área próxima da casa. Alguns assentados mensuram e delimitam esse espaço em
seus lotes em até 100m ao redor da casa. Nele estão os criadouros de pequenos
animais, frutíferas, hortas, plantas medicinais e até produtos comercializados. Os
quintais na agrovila são utilizados de forma semelhante aos dos lotes, porém em
menor proporção, servindo como área experimental para a produção de mudas.
Com relação à riqueza botânica por família, Fabaceae foi mais representativa com
nove gêneros/espécies, seguida das famílias Lamiaceae, Arecaceae, Brassicaceae,
Anacardiaceae, Curcubitaceae com sete, seis representantes para as duas primeiras
respectivamente e as demais com cinco. A família botânica Fabaceae está
representada por espécies de importância alimentar como o feijão e o ingá, medicinal
como o jucá (Caesalpinia férrea Mart) e de recuperação de solo como a mucuna preta
(Mucuna aterrina (L.) D.C. var.utilis). Resultados semelhantes onde Fabaceae foi a
família com maior número de espécies foram encontrados por Ming; Amaral-Junior
598
(2005) e Lima et al (2011) na Amazônia e Cunha e Bortolotto (2011) em Mato Grosso,
todos com plantas medicinais.
A maioria das plantas presentes nos lotes e quintais do PAS-MA é cultivada, com
destaque para açaí (Euterpe sp.), produtos da roça como mandioca
(Manihotesculenta, Crantz), macaxeira (Manihotesculenta, Crantz) e feijão (Phaseolus
sp.) e frutíferas como maracujá (Passiflora edulis), acerola (Malpighia glabra L),
cupuaçu (Theobromagrandiflorum (Willd.exSpreng) e hortaliças.
599
Figura 3 - Espécies com maior número de etnovariedades e citações pelos
assentados. Em rachurado o número de etnovariedades e em traços inclinados o
número de citações.
possível perceber que no PAS os assentados que estão a mais tempo residindo na
área citaram mais etnoespécies e muitos afirmaram que aprenderam com seus pais
sobre a espécie cultivada, pode-se afirmar que essa transmissão cultural é mantida
nas práticas agrícolas em seus lotes (Tabela 1).
600
Tabela 1- Número de etnoespécies citadas por tempo de moradia dos assentados
(N=36).
A obtenção das plantas foi classificada como compradas, ganhas ou trocadas. Há uma
intensa preocupação com o enriquecimento da diversidade agrícola como constatado
durante uma entrevista ―As sementes é um vício que nós temos, por onde anda traz‖.
Com exceção das plantas que chegaram via projetos (N=18), às demais são
adquiridas no próprio assentamento onde ocorrem as trocas de sementes ou mudas
(N=92) entre os vizinhos e dos assentamentos próximos como o PAS Paulo Fontelles
e o PAS Elizabeth Teixeira. A relação familiar, reuniões e viagens são responsáveis
pela chegada de 98 das etnoespécies citadas e as feiras e os mercados por 54 das
etnoespécies.
601
ornamentais foi expressivo (N=25), há uma preocupação por parte das mulheres em
―enfeitar e perfumar‖ seus quintais.
Conclusões
Agradecimentos
602
Referências
603
LOURENÇO, J.N.P.; SOUSA, S.G.A.; WANDELLI, E.V.; et al 2009.
Agrobiodiversidade nos Quintais Agroflorestais em Três Assentamentos na Amazônia
Central. Revista Brasileira de Agroecologia. 4(2): 965-969.
MING, L.C. & JUNIOR, A.A. 2005. Aspectos Etnobotânicos de Plantas Medicinais na
Reserva Extrativista ―Chico Mendes‖: Florística e Botânica Econômica do Acre, Brasil.
The New York Botanical Garden. http://www.nybg.org/bsci/acre/www1/medicinal.html
(acesso em 20/05/2012).
PERONI, N.; MARTINS, P.S; ANDO; A.1999. Diversidade inter e intra-específica e uso
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estudo de caso. Science Agricultural 56: 587-595.
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além da produção: multifuncionalidade e agricultura familiar. Rio de Janeiro. MAUAD.
604
USO DE RECURSOS NATURAIS COM ÊNFASE EM GÊNERO NO
SALGADO PARAENSE
RESUMO
ABSTRACT
This research was developed during the studies for creation of Conservation Unit for
Sustainable Use (UC) in the Salinópolis region. This UC has as porpose make nature
conservation compatible with the sustainable use of natural resources. The social division of
labor in these localities is of organized by gender end places and this factor implies aspects
of the economy and the market. The use of natural resources focused on gender studies was
characterized through qualitative and quantitative research. Secondary data were analyzed
with possession of institutional field documents. The social division of labor for natural
resource use activities in the mangrove region is developed by men and women, however,
women are inserted in the activities of lower commercial value, lower monetization and lower
valuation, while work.
605
INTRODUÇÃO
606
necessário que as propostas de sustentabilidade desses recursos naturais tenham como
base o saber dessas populações e dialogando com técnicas que contribuam para o repasse
e valorização desses conhecimentos (CASTRO, 2016).
Os manguezais são ecossistemas de transição entre o continente e o mar e
apresentam grande importância econômica e ecológica, pois formam áreas de estuário que
são ambientes onde o encontro da água do mar e do rio, geram um ambiente muito rico de
nutriente e com diversas formas de vida, tais áreas servem também como berçário para
numerosas espécies tanto da fauna quanto da flora amazônica (VIEIRA et al. 2015). De
acordo com Diegues (1995) comunidades humanas que desenvolvem sua vida econômica,
social e cultural em relação com a fauna e a flora do mangue e que apresentam suas
moradias situadas perto desses estuários podem ser chamadas de civilização do mangue.
A divisão social do trabalho é marcada nessas regiões (HIRATA & KERGOAT, 2007).
Por exemplo, ao homem cabe a ir ao mangue, coletar o caranguejo e seus primeiros
tratamentos, já a mulher, é responsável no colhimento de sua carne e seu preparo para a
venda.
A relação dessas populações está fortemente organizada a lugares de gênero, dessa
forma as atividades masculinas estão predominantes ligadas a algo fora do ambiente
doméstico sendo visto como ―algo perigoso‖, já as mulheres estão intimamente ligadas a
afazeres domésticos, como cuidar da casa e dos animais capturados pelos maridos, isso
ocorre devido à estruturação social existente, a qual repassa, que a principal função da
mulher é a domesticidade. E tal fator implica no mercado e autoconsumo as mulheres
apresentam as atividades de menor valor comercial, menor monetarização e menor
valorização da atividade enquanto trabalho (VIEIRA et al. 2013).
Dessa forma, o estudo buscou caracterizar e analisar o uso de recursos naturais em
unidades de conservação do Salgado Paraense com foco em estudo de gênero
METODOLOGIA
Área de estudo
607
Figura 1 - Divisão municipal e as microrregiões. Fontes: Atlas de Integração Regional do
Pará/ UAS/ MPEG.
Apresenta elevado potencial ecológico e ambiental, em virtude da alta interação com
os fatores naturais (clima, geomorfologia, pedologia, hidrografia, vegetação e mar). Tais
interações, deram origem às praias e extensas áreas de campos de dunas e uma
considerável área onde predominam ambientes de manguezais (MARINHO, 2009).
Assim como grande parte dos municípios brasileiros, Salinópolis sofreu várias
transformações sócias espaciais as quais datam desde o período de colonização, ocasião
que surgiram os primeiros núcleos de povoamento formados ao longo da zona costeira.
Entretanto, a partir da década de 60 o município teve seu processo de urbanização
intensificado, dessa forma se especializou em função dos atributos paisagísticos agregados,
a criação de um polo turístico. Portanto, apresenta uma nova dinâmica na estrutura espacial
que se reflete, principalmente, no modo de vida da população local (SILVA, 2002).
De acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) em 2010, a população total do município é de 37.421 habitantes que
estão distribuídos em uma área de 237.050km². A densidade demográfica é de 157,57
hab/km² e a estimativa da população em 2018 foi de 40.424habitantes (IBGE, 2019).
Dessas, 4.030 pessoas vivem na zona rural e 33.391 na zona urbana, sendo 19.096 homens
e 18.325 mulheres. No município as atividades produtivas concentram-se na pesca, na
agricultura, na pecuária e no turismo.
608
levantamentos bibliográficos de artigos, de revistas científicas, dissertações e teses. Os
dados correspondentes as atividades de gênero neste território foram tabuladas e
analisadas por meio da estatística descritiva.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A divisão sexual do trabalho decorre das relações sociais entre os sexos, a qual é
modulada historicamente e socialmente designando ao homem a apropriação de funções
voltadas a esfera produtiva e com maior valor social, enquanto as mulheres estão
relacionadas a esfera reprodutiva. Com isso, é notório a divisão de dois princípios para a
divisão social do trabalho, sendo eles o princípio da separação – no qual demonstra que há
trabalhos de homens e mulheres – e o princípio hierárquico – um trabalho de homem ―vale‖
mais que um trabalho de mulher (HIRATA & KERGOAT, 2007).
609
Figura 2 – Principais atividades econômicas declaradas pelos entrevistados. Fonte: Dados
do diagnostico socioambiental referente a criação da Resex em Salinópolis.
610
Quadro 1- Divisão sexual do trabalho.
Em geral este processo aponta que as atividades exercidas pelas mulheres quando
no âmbito domiciliar podem ser categorizados como domesticidade. De acordo com Almeida
(2002), as mulheres assumem uma sobrecarga de funções sem o reconhecimento social de
611
sua importância no processo de produção, demonstrando a invisibilidade do seu trabalho.
Dessa forma, muitas vezes o trabalho feminino é ―gratuito‖ no sentindo de que elas
trabalham na elaboração, confecção e manutenção dos equipamentos, porém, não recebem
o conhecimento social necessário pois as atividades exercidas por elas apresentam menor
valor comercial, menor monetarização e menor valorização, enquanto trabalho (VIEIRA et al.
2013).
REFERÊNCIAS
612
MAUÉS, M. A. Quando chega essa ―visita‖? in Amazônia e a crise da modernização.
Organizado por M. A. D’incao; I. M. Silveira, pp. 227-240. Belém. Museu Paraense
Emílio Goeldi. 1994.
VIEIRA, N; SIQUEIRA, D.; EVER, M.; GOMES, M. Divisão Sexual do Trabalho e Relações
de Gênero em Contexto Estuarino-Costeiro Amazônico. Amazônica Revista de
Antropologia. v. 5, n. 3, p. 806-835, 2013. Disponível em:
http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/amazonica/article/viewArticle/1606. Acesso em: 03
jul 2019.
613
MODIFICAÇÕES DO PAPEL DAS MULHERES NA PESCA ARTESANAL
NO MUNICIPIO DE MAPARANIM-PA.
https://doi.org/10.29327/527231.5-41
Layse Rosa Miranda da Costa /Museu
Paraense Emilio Goeldi (MPEG);
RESUMO
ABSTRACT
614
1. Introdução
Este artigo tem como proposta explanar sobre as modificações que estão
ocorrendo em relação ao papel das mulheres na pesca artesanal no município de
Marapanim, localizado no Estado do Pará. A construção do mesmo terá base nos
manuscritos já produzidos sobre esta temática no Nordeste Paraense juntamente com
experiências empíricas e pesquisa de campo realizado no ano de 2018 na localidade
por pesquisadores do Museu Paraense Emilio Goeldi vinculados ao projeto Renas na
fase IV- Recursos Naturais e Antropologia das Populações Marítimas, Ribeirinhas e
Estuarinas: Populações Tradicionais Haliêuticas no Contexto das Relações
Interculturais. Vale ressaltar que as experiências empíricas foram observadas e
analisadas a partir de vínculos pessoais com a localidade, e a pesquisa de campo que
ocorreu no ano de 2018 foi para subsidiar o Relatório Final de Iniciação Cientifica
chamado Uma arte milenar: curral de pesca na Ilha de Marudá, sendo assim, este
artigo é um dos desdobramentos que esta pesquisa possibilitou.
Segundo Alencar (1993), a pesca não se resume apenas no ato de capturar espécies aquáticas, pois
consiste na confecção e conserto de materiais de pesca, a captura do pescado e venda do que foi
adquirido. Dessa forma, todo o processo antes e depois da captura relacionado ao manuseio dos
recursos aquáticos, é chamada de processo de trabalho da pesca.
615
pesqueiras localizadas no Litoral do Nordeste Paraense, as mulheres atuam nos
setores econômicos, domésticos e políticos, de modo que são tão protagonistas
quando os homens, mas ainda existe o pensamento de que estejam sempre
submissas aos seus companheiros ou homens da família. Diante da diversidade do
papel das mulheres em comunidades pesqueiras, o foco deste artigo é sobre as
modificações observadas em relação ao papel da mulher na pesca no Município de
Marapanim, Estado do Pará. Ressaltando que dentre diversos distritos existentes na
localidade, os mais evidenciados são: Marudá e Camará, pois foi onde a presença das
mulheres na pesca apresentou-se de forma mais frequente e autônoma em relação a
captura de espécies aquáticas.
Sendo assim, este artigo pretende expor sobre algumas mudanças observadas
em relação à divisão das tarefas na pesca artesanal na atualidade e quais os
possíveis motivos que ocasionaram essas modificações. Como dito anteriormente,
essas analises terão como base manuscritos produzidos nas décadas passadas
juntamente com experiências empíricas e trabalho de campo feito no ano de 2018,
pois para citar sobre o que foi proposto, o presenta e o passado não podem estar
desvinculados, pois ambos se complementam (BLOCH, 2001).
2. Área de Trabalho
616
Mapa de alguns municípios do Nordeste Paraense.
617
Marapanim, localizado no Estado do Pará, é um dos municípios da região onde a
pesca encontra-se muito evidente, a partir de práticas e apetrechos pesqueiros
tradicionais, pois ocorrem há anos e são repassadas de geração para geração. As
práticas tradicionais mais recorrentes na localidade atualmente são: currais de pesca e
rede de pesca.
Outra pratica recorrente atualmente de forma mais ativa que o curral de pesca são as
redes de pesca. Segundo Furtado (1987), as redes foram implantadas na década de
1960 e seu manuseio é mais simples e a captura de espécies aquáticas ocorre em
menor tempo que o curral de pesca. Atualmente, muitos pescadores da localidade,
principalmente os do distrito de Marudá, estão preferindo as redes de pesca.
618
4. Mulheres na Pesca no Nordeste Paraense
Foi observado durante a pesquisa de campo realizada no ano de 2018 no município de
Marapanim, mais especificamente em alguns distritos da localidade, como, Guarijubal,
Araticum-Mirim, Marudá, Camará e na sede do município, que as mulheres atuam em
diversas atividades, sendo estas voltadas ou não para a pesca. Muitas são independentes
e sustentam a família sozinha, trabalhando em comércios que vendem artigos pesqueiros;
umas são lideranças de associações de pescadores; outras atuam nas tarefas domesticas
enquanto seus maridos trabalham; uma delas opera como vice presidente da Reserva
Extrativista do município de Marapanim; muitas estão liderando algumas atividades
pesqueiras. Além do mais, assim como os homens, as mulheres são responsáveis por
repassar o conhecimento tradicional. Mas em relação ao papel das mulheres na pesca, pra
elas começarem a atuar como líderes de algumas práticas pesqueiras, passaram e
passam por algumas modificações sociais na localidade.
Furtado (2015) alega sobre a percepção do papel das mulheres na pesca, pois
são vistas como „‟ ajudantes‟‟ dos homens. Isto ocorre, pois segundo Alencar (1993),
existe a visão de que a parte mais importante do processo de trabalho na pesca é o
ato de capturar espécies aquáticas, ação essa que era feita majoritariamente por
homens. Porém, tal atividade é um processo de trabalho da pesca que vai desde de a
confecção dos apetrechos até a limpeza do peixe, desempenho que era feito mais
pelas mulheres (ALENCAR, 1993). Esses pensamentos em relação as mulheres na
pesca, ou seja, de que são menos importantes que os homens, ocorrem até os dias
atuais, porém, de acordo com o que foi observado durante a pesquisa de campo no
ano de 2018 e a partir de observação empíricas praticadas em diversos momentos, em
alguns distritos do município de Marapanim, como, Camará e Marudá, foi perceptível a
autonomia das mulheres em relação ao manejo dos recursos naturais, ou seja,
algumas mulheres estão adentrando como líderes de práticas pesqueiras existentes
na localidade, principalmente a pratica curral de pesca.
Segundo relatado por alguns pescadores de Marudá, da sede do município de
Marapanim e de Camará, os homens estão se afastando da pesca, pois afirmam que
preferem atividades mais lucrativas e imediatas, dessa forma, muitos pescadores
estão preferindo trabalhar com atividades ligadas ao turismo (já que a localidade é
turísticas, principalmente no mês de Julho), outros estão migrando para os centros
urbanos com o objetivo de conseguirem emprego e por fim, muitos estão adentrando a
da criminalidade ocorrendo devido. Vale ressaltar que Furtado (1987) já alegava o
afastamento dos homens na pesca artesanal desde a década de 1980. Dessa forma,
atualmente, para ajudarem a manter a renda familiar, algumas mulheres no município
de Camará e Marudá, estão liderando práticas pesqueiras. Em consonância com os
619
dados obtidos em pesquisas de campo, mulheres curralistas que foram entrevistadas
no distrito de Marudá, relatam que utilizam o curral de pesca afim de ajudar na
2
contribuição da renda de suas residências, para garantir pelo menos a bóia do dia,
visto que segundo elas a renda não é muito boa.
Em comunidades pesqueiras as mulheres assumem as funções de manutenção da
casa e participação no processo da pesca, portanto a sua atuação como ser social é
de extrema importância no contexto das relações de gênero, sobretudo no âmbito da
pesca artesanal, evidencia Woortmann:
Palavra utilizada pelos conterrâneos de Marapanim para refincarem comida, ou seja, boia significa refeição.
620
pescado e catação de caranguejo A partir desse momento a mesma começou a ser
tornar cada vez „ativa‟ no processo, por segundo ela, melhor administrar a renda da
família que é baixa, portanto viu benefícios em assumir o protagonismo de provedora
do sustento familiar.
Considerações finais
621
Dessa forma, compreende-se que este artigo servirá de direcionamento para um
trabalho futuro que se proponha a aperfeiçoa-lo da melhor forma possível.
Referências
622
MULHER E DIVISÃO SÓCIO/SEXUAL DO TRABALHO NO CONTEXTO DA POLÍTICA DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL
https://doi.org/10.29327/527231.5-42
Gessyca Anne da Silva Baracho - Universidade Federal do Pará
Resumo:
Abstract:
The purpose of this article is to highlight discussions involving women and the socio / sexual
division of labor in the particularity of the Brazilian social assistance policy, in order to
understand how female participation is configured in this social policy. From the dialectical
historical materialism, with emphasis on the approach of Marxist feminism, debates will be
presented with classic and contemporary authors who articulate social class, gender, race /
ethnicity and highlight feminist studies that incorporate and expand the necessary knowledge
in understanding the movement of reality. . In conclusion, despite advances in social
assistance policy, the sense of caring for the family still remains centered on the social
representation of women, which is associated with the reproduction function that permeates
the double presence: user and worker.
Keywords: Woman. Social / Sexual Division of Labor. Social Assistance Policy
623
INTRODUÇÃO
A observação deste dado inicial, bem como alguns acúmulos adquiridos em estudos
anteriores referente a política de assistência social e o lugar das mulheres, impulsionaram a
escrita desta reflexão que, a partir do materialismo histórico dialético, com ênfase na
abordagem do feminismo marxista, irá apresentar um raciocínio que segue na construção de
três tópicos, os quais irão evidenciar discussões que envolvem Mulher e divisão sócio-sexual
do trabalho, bem como a política de Assistência Social no Brasil.
624
REFLEXÕES SOBRE DIVISÃO SÓCIO/SEXUAL DO TRABALHO NO PATRIARCADO E
NO GÊNERO
Estudos históricos sobre as sociedades antigas têm afirmado que a divisão sexual não
emergiu com a propriedade privada, antes dela homens e mulheres dividiam as tarefas, e o
trabalho desenvolvido por eles tinha o mesmo valor e reconhecimento social (SAFFIOTI,
1992), deixando claro que não é inerente à divisão sexual a desigualdade. Ela se constitui
como tal a partir de um determinado momento da história da humanidade. Nesse sentido,
algumas discussões foram fundamentais para contribuir neste entendimento e possibilitar um
conjunto de reflexões para pensar a divisão sócio/sexual do trabalho.
Esta noção de divisão sexual do trabalho é mencionada de forma pioneira pelos etnólogos
que faziam referência à complementariedade de tarefas entre homens e mulheres
625
das sociedades que realizavam seus estudos. Segundo Kergoat (2009, p. 67), Lévi-Strauss
fez o uso para formular explicações acerca da estruturação das sociedades em famílias e
finalmente as antropólogas feministas se destacam como precursoras na vinculação de um
novo conteúdo que se estende não apenas ao complemento de tarefas, mas como relação
de poder dos homens sobre as mulheres.
Segundo Kergoat (2009), alguns estudiosos como Héritier-Augé (1984) afirmam que
esta divisão é válida para todas as sociedades e desde o início da humanidade. Os
princípios da separação e hierarquia podem ser legitimados mediante o que a autora
menciona como ideologia naturalista, pois ―relega o gênero ao sexo biológico e reduz as
práticas sociais a „papéis sociais‟ sexuados, os quais remetem ao destino natural da
espécie‖ (KERGOAT, 2009, p. 68), quando a teorização oposta da divisão sexual do trabalho
afirma que as práticas sociais são construções sociais.
Como advertido anteriormente, Kergoat (2009, p. 68) evidencia que apesar da divisão
sexual do trabalho, e outras formas de divisão, permanecerem com os mesmos princípios
organizadores da estrutura, suas dimensões apresentam variações de tempo e espaço, ou
seja, a percepção de trabalho produtivo, lugar das mulheres no trabalho mercantil etc. A
autora reforça que não se trata de um pensamento determinista, já que as tarefas atribuídas
aos sexos podem se diferenciar dependendo da sociedade, mas enfatiza a necessidade de
problematizar a divisão sexual do trabalho, já que:
626
Trata-se de pensar a dialética entre invariantes e variações, pois, se supõe trazer à
tona os fenômenos da reprodução social, esse raciocínio implica estudar ao mesmo
tempo seus deslocamentos e rupturas, bem como a emergência de novas
configurações que tendem a questionar a própria existência dessa divisão
(KERGOAT, 2009, p. 68).
notória a centralidade dada nestes estudos quando trata de abordar o trabalho e suas
divisões na evidência de que as relações sociais, por significarem tensões produtoras de
fenômenos sociais, trazem a presença de grupos com interesses antagônicos, que neste
caso são grupos sociais constituídos por homens e mulheres, logo a proposta de reflexão
permite o entendimento de que, as relações sociais de sexo e a divisão sexual do trabalho
são expressões inseparáveis.
Neste sentido, as reflexões de Hirata, Laborie, Doaré e Senotier (2009) e Kergoat (2009)
enfatizam compreensões fundamentais para entender a complexidade das relações sociais
de sexo, bem como da divisão sexual do trabalho, contribuindo de maneira relevante com as
discussões que envolvem o entendimento conceitual.
627
Estas reflexões contribuem para o raciocínio de conceitos que se apresentam diante das
novas configurações advindas com a divisão sexual do trabalho e que vinculam com o
contexto, sobretudo, ideológico da sociedade capitalista. A perspectiva feminista, ligada ao
marxismo clássico, procurou desenvolver a análise dando destaque para a categoria
patriarcado, entendendo este como a tentativa de posse do homem em relação às mulheres,
ou seja, o homem socializado pelo capitalismo torna-se, também, um homem socialmente
reprodutor de desigualdades em todos os campos da vida social.
Saffioti (1992, p. 184), ao estabelecer interlocução crítica com Badinter (1986) sobre a
onipresença do patriarcado, ressalta que ―a relação de dominação-exploração não presume
o total esmagamento da personagem que figura no polo de dominada-explorada. Ao
contrário, integra esta relação de maneira constitutiva a necessidade de preservação da
figura subalterna. Sua subalternidade, contudo, não significa ausência absoluta de poder.‖.
Em relação à interlocução crítica relativa ao gênero, Saffioti (1992) tem como uma das
principais expoentes a americana Scott (1995), que é responsável pela introdução e difusão
da categoria gênero no Brasil nos anos 1980. Na análise de Scott, ―o gênero é
compreendido como uma forma de classificar fenômenos, um sistema socialmente
consensual de distinções e não uma descrição objetiva de traços inerentes‖ (SCOTT, 1995,
p. 72), ou seja, uma compreensão que possibilita distinções e torna evidente o entendimento
enquanto grupos separados. Quando trata da discussão do termo entre as feministas
americanas, a autora aponta para a ênfase no caráter fundamentalmente social das
628
distinções baseadas no sexo, pois ―a palavra indicava uma rejeição do determinismo biológico
implícito no uso de termos como „sexo‟ ou „diferença sexual‟‖ (SCOTT, 1995, p. 75).
Scott (1995, p. 75) alertou para a centralidade da construção biológica do sexo negando
a dimensão social do mesmo. Nesse sentido, a autora compreende que gênero supera o
entendimento restrito dado ao sexo. Este mesmo pensamento é encontrado em Saffioti
(2004, p. 45), ao identificar um campo de consenso, ainda que limitado entre os aspectos de
gênero e do sexo, em que se considera como ―a construção social do masculino e do
feminino.‖
Para Saffioti (2004), este não é o limite da interpretação de Scott (1995), mas sua
ênfase ao discurso, a linguagem como se a representação das pessoas fosse autônoma das
relações sociais. O eixo do debate de Scott (1995), segundo Saffioti (2004), era uma noção
de poder desconectada das relações de exploração. Nesse sentido, as determinações
estruturais como classe e, por conseguinte, o patriarcado, tornam-se irrelevantes, do ponto
de vista de uma contribuição política sobre o lugar da desigualdade entre os sexos e os
modelos de gêneros no contexto da sociedade estruturada pela luta de classes.
629
enfatizado no proximo item deste trabalho é importante destacar este raciocínio
considerando as discussões no campo teórico.
Nesse sentido, embora seja compreendido que o patriarcado enquanto sistema presente
nas relações sociais não esteja restrito ao sexo biológico da mulher, se faz presente na
construção social do mesmo, o qual ―se associa ao frágil, ao desvalorizado, ao subalterno e
subserviente, enquanto o „modelo‟ patriarcal do homem é o da força, virilidade, poder e
dominação‖ (CISNE; SANTOS, 2018, p. 43).
Como é possível observar, as autoras destacam quatro relações que dão base à
estrutura do patriarcado, mas que não se configuram como processos naturais e isolados, a
saber: relações sociais de sexo/sexualidade; constituição da família heteropatriarcal-
monogâmica, divisão sexual e racial do trabalho; e a violência contra a mulher e a população
LGBT. Para Cisne e Santos (2018), os estudos de gênero têm alcançado maior aceitação
nas instituições multilaterais e governamentais quando comparados aos estudos feministas
de perspectiva marxista, atualizando a hipótese de Saffioti (2004).
630
com a subvalorização do trabalho feminino e a supremacia masculina, quanto no plano
estrutural, em que a mulher com o desenvolvimento das forças produtivas era marginalizada
de funções no campo da produção, assim, ―torna-se clara, no novo regime, a divisão da
sociedade em classes sociais e a exploração econômica de que é alvo uma delas por parte
da outra‖ (SAFFIOTI, 2013, p. 66).
Neste contexto a autora acentua a interface com o sexo e a raça/etnia, situando estas
condições como fonte de inferioridade social da mulher, dado que interferem de maneira
positiva na atualização da sociedade competitiva, bem como no estabelecimento das classes
sociais destacando: ―O primeiro contingente feminino que o capitalismo marginaliza do
sistema produtivo é constituído pelas esposas dos prósperos membros da burguesia
ascendente‖ (SAFFIOTI, 2013, p. 67), um trecho que permite, ainda que de maneira
preliminar e resgardadas as particularidades, pensar na relação expressa hoje com o lugar e
função que muitas mulheres de governantes são convidadas a ocuparem no contexto
político considerando a figura do que se denomina com o termo primeira-dama.
Diante dessa retomada histórica, Saffioti (2013, p. 307), ressalta para o campo da
escolarização, advertindo que era bastante reduzido o número de mulheres que antes de
1930 conseguiram diplomar e a representação nas escolas de nível superior da cidade de
São Paulo era bastante divergente em relação aos homens e concentrava-se em cursos
específicos como Farmácia, que passava por um processo de desvalorização social.
631
homens e dividem sobremaneira o mercado de trabalho, ainda que, permeado de ideologias
que subvalorizam a mulher e tudo aquilo que a ela se vincula.
632
Este contexto ressalta sobre a convergência que os movimentos sociais com
participação de mulheres tiveram com o movimento feminista, pois embora apresentassem
objetivos divergentes, considerando as vertentes do feminismo, chamavam atenção para a
necessidade de ―transformação da situação da mulher na sociedade, de forma a superar a
desigualdade presente nas relações entre homens e mulheres‖. A autora considera que
ambos os movimentos contribuíram para abranger a perspectiva de gênero na agenda
pública como uma forma de desigualdade que necessitava ser superada.
notório observar esta diferença que Farah (2004) se propõe a fazer entre estes
movimentos. Embora ambos tragam a perspectiva de lutas pelas melhorias nas condições
de vida da mulher, o questionamento de determinadas vertentes do movimento feminista,
acerca da transformação da situação da mulher na sociedade, parece ir mais além da busca
de algumas reivindicações específicas para as mulheres, permitindo a compreensão, por
exemplo, do debate que envolve a divisão sexual do trabalho.
Diante disso, as mulheres seguem na luta pela sua participação não apenas como
usuárias de políticas públicas, mas também na formulação, na implementação e no controle
das mesmas. Estes indicativos, além de permitirem visualizar propostas articuladas com a
perspectiva de gênero, chamam atenção para as recomendações do Banco Mundial acerca
de políticas focalizadas no combate à pobreza, a saber: políticas de educação, saúde,
geração de emprego e renda, com ênfase diretamente nas mulheres.
633
Sobre este aspecto, autoras como Bandeira (2005, p. 5) abordam a transversalidade da
perspectiva de gênero nas políticas públicas, compreendendo-a como matriz orientadora
para que os setores públicos possam superar as assimetrias de gênero nas esferas de
governos. Nesta discussão, é dela que vem a crítica das confusões elaboradas por parte dos
elaboradores e executores da política relativa a gênero e sexo. Assim, ela chama atenção
para o uso universal do masculino que além de associar os feitos humanos às realizações
masculinas estende-se para as políticas que se direcionam ao homem como referente.
Diante desta diferenciação, a autora sinaliza para a necessidade de se ter clareza, pois
ao se centrar na mulher configura-se ―numa política pública que enfatiza a responsabilidade
feminina pela reprodução social, pela educação dos filhos [...] e não necessariamente seu
empoderamento e autonomia‖ (BANDEIRA, 2005, p. 8-9). Para ela, é preciso haver uma
possibilidade de ruptura com as visões tradicionais e, por isso, as políticas para as mulheres
devem ser ao longo do tempo transformadas em políticas de gênero.
634
Este contexto também sinaliza para um debate importante que Nascimento (2012), com
base em autoras feministas, afirma ocorrer na América Latina o fenômeno da feminização da
pobreza. Nestas reflexões, ela chama atenção para os investimentos que foram realizados
no período de 2003 a 2012 em programas de transferência de renda mínima, os quais
apresentavam como sujeito principal, as famílias chefiadas por mulheres. Nascimento (2012,
p. 16) esclarece que o fenômeno da feminização da pobreza é problematizado a partir do
contexto feminista de 1970 em que nos Estados Unidos a pobreza, também, apresentava
maior expressividade nestas famílias chefiadas por mulheres.
Com as reflexões acerca das contribuições da teoria feminista, bem como as propostas
de entendimento das políticas públicas na perspectiva de gênero, Nascimento (2012, p. 36)
sinaliza a importância da responsabilidade familiar conjunta, ou seja, com a participação de
homens e mulheres para superar o que ela considera como bipolaridade público privado, a
qual ainda se apresenta na concepção de família vigente. Assim, no tocante à participação
das mulheres no contexto das políticas públicas, quer seja como usuárias ou mesmo como
trabalhadoras, permeia o debate da divisão social/sexual do trabalho como fundamental
neste entendimento.
635
de gênero no contexto dos anos 2000, com a proposta de identificar a condição do que
denomina de sujeito feminino nos programas da política mencionada, destacando as
inflexões que sua participação em programas de transferência monetária poderiam provocar
no interior da família e no Estado, como processo de superação da subordinação de gênero
a que elas têm estado submetidas historicamente.
A autora chama atenção para o caráter patriarcal do Estado e das políticas sociais e
adverte para a importância na discussão de alguns aspectos históricos que possibilitam
apreender as desigualdades de gênero que permeiam a sociedade, em especial no Brasil,
com expressiva presença de mulheres na esfera da política de assistência social. Neste
sentido, Duque-Arrazola (2008) discorre sobre as profundas transformações na organização
da produção e do trabalho, tanto nos países de capitalismo avançado quanto nos periféricos
que, conforme a autora, foram ocasionadas pelas medidas adotadas para conter a crise do
capital iniciada na década de 1970, a saber: as inovações tecnológicas, a flexibilização dos
processos de trabalho e o desemprego estrutural globalizado.
Pelo exposto, fica claro o esforço que as intelectuais têm feito no sentido de pensar a
divisão sexual do trabalho no contexto da divisão social e, por conseguinte, a elaboração
636
das políticas públicas, principalmente a Assistência Social como resultado desta
configuração maior. A radicalização do neoliberalismo no Brasil com a adoção de medidas
drásticas pelo governo federal coloca novas questões para o debate na medida em que a
bibliografia mencionada tinha como objeto de reflexão crítica políticas públicas, que
expressavam, com contradição, as reivindicações dos movimentos sociais.
CONSIDERAÇÕES
637
continuaram reproduzindo a trajetória marcada por práticas que resistiam a sua valorização
como direito, condição que muitas vezes a mantinha como segundo plano entre as políticas
públicas. A feminilização da pobreza destacada por algumas autoras, bem como os dados
acerca dos recursos humanos desta política evidenciando nas estatísticas oficiais as
mulheres como maioria dentre as/os trabalhadoras/es, são elementos que possibilitam
vincular o pensamento de que a política de Assistência Social ao ter na sua estrutura atual
um conjunto de programas, serviços e benefícios centrados na família, ainda relaciona as
mulheres com a função do cuidar, independente do lado que ela esteja nesta política social.
REFERÊNCIAS
FARAH, Marta Ferreira Santos. Gênero e Políticas Públicas. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v.12, p.1-20, 2004.
HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise, DOARÉ, Hélenè Le. et al. (Orgs). Dicionário Crítico
do Feminismo. São Paulo: Unesp, 2009.
KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, H.;
LABORIE, F.; DOARÉ, H. Le. et al. (Orgs). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo:
Unesp, 2009.
638
NASCIMENTO, Maria Antônia Cardoso. Bolsa família e Renda Para Viver Melhor: reflexões
a partir da teoria feminista. Revista Gênero na Amazônia, Belém, PA, n.1, p. 15-39, jan/jun,
2012.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Rearticulando gênero e classe social. In COSTA, A. O.;
BRUSCHINI, C. (Orgs.). Uma Questão de Gênero. Rio de Janeiro. Rosa dos Tempos São
Paulo. Fundação Carlos Chagas. 1992.
_________. Gênero, Patriarcado, Violência, São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2004.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul/dez, p. 71-99. 1995
639
AS RELAÇÕES GEOGRAFIA, GÊNERO E TRABALHO: uma abordagem a partir das
expressões e significados do trabalho feminino rural no município de Imperatriz-MA
Este artigo expõe alguns resultados acerca das relações de trabalho no mundo
contemporâneo, enfatizando nesse cenário, as relações entre Trabalho, Geografia e Gênero. É
reconhecido que os temas e problemas que envolvem o conhecimento geográfico conheceram
significativas transformações, a partir da década de 1970. A geografia, enquanto área do
conhecimento humano não tem se furtado a estes debates. A renovação do conhecimento
geográfico, a partir de 1970 e a incorporação de teorias e metodologias fundamentadas na
perspectiva humanista tem confirmado estas inquietações. Nesse cenário, merece atenção os
estudos relacionados às questões de gênero, uma vez que desde 1980, as pesquisas sobre
gênero passaram a ser abordadas. Neste estudo, ressaltamos como inquietação central a
necessidade de reconhecer o protagonismo social das mulheres trabalhadoras rurais do
assentamento Vila Conceição I. Buscamos inicialmente reconhecer a produção bibliográfica
acerca desta temática, bem como através dos trabalhos de campo, procuramos identificar as
formas e modalidades de trabalho desenvolvidos no assentamento e o protagonismo social
exercido por estas mulheres. O trabalho rural feminino além de promover a visibilidade
destas, também assegura a geração de renda e emancipação. Do ponto de vista metodológico
este estudo se apoia na adoção da abordagem na geografia humanista, tendo como
fundamentos a apreensão das relações entre Geografia, gênero e trabalho. O trabalho rural
feminino no assentamento rural Vila Conceição I é utilizado como recorte para investigação
da realidade social destas mulheres. Assim, esta pesquisa busca desnudar as subjetividades
das mulheres no espaço rural de Imperatriz e as atividades rurais. Sobre os procedimentos
metodológicos desta pesquisa, utilizamos a abordagem qualitativa, fundamentada na adoção
das técnicas de observação simples e a realização de entrevistas semiestruturadas.
640
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A partir da segunda metade do século XX, esta temática vem sendo cada vez mais,
abordada pelas ciências humanas e sociais. A geografia, enquanto área do conhecimento
humano não tem se furtado a estes debates. A renovação do conhecimento geográfico, a partir
da década de 1970 e a incorporação de metodologias e teorias fundamentadas na perspectiva
humanista têm confirmado estas inquietações.
Este objetivo geral está associado aos seguintes objetivos: Refletir sobre relações de
gênero e produção do espaço constituídas historicamente tendo como mediação as relações de
trabalho construídas por homens e mulheres; Entender os papéis desenvolvidos pelas
mulheres e a produção e reprodução do espaço que estas estabelecem no meio rural, através
das atividades laborais; Investigar, a partir das relações de trabalho desenvolvidas pelas
mulheres residentes no assentamento rural de Vila Conceição I acerca da emancipação destas.
A saber: a Vila Conceição I é um distrito do município de Imperatriz.
641
Fenomenologia e das abordagens Culturais, observa-se uma aproximação da Geografia com as
subjetividades que permeiam os processos de produção do espaço. Do ponto de vista
metodológico, cumpre ressaltar que a pesquisa se apoia nas abordagens humanistas, conduzido
pela Fenomenologia, enfatizando também as contribuições da pesquisa de natureza qualitativa.
642
as suas particularidades numa perspectiva totalizante.
Estes estudos buscam valorizar as subjetividades emanadas da sociedade, através da
construção de hábitos e valores, fundados em uma abordagem que ressalta a necessidade da
incorporação da essências nos processos analíticos do espaço. Esta é a tarefa central que se
delineia ao desenvolvimento da presente proposta de investigação, uma vez que a nova
preocupação repousa na necessidade de estabelecer reflexões pautados nas relações de gênero
e trabalho, tendo a Geografia como mediadora desse processo.
Estas ideias enfatizadas por Claval (2010) se apresentam como denúncia às relações
desiguais de gênero também incorporadas como uma inquietação do conhecimento
geográfico. As preocupações do conhecimento com temas que envolvem as subjetividades só
ganham fôlego em um período recente, ou seja, a partir da década de 1980, quando a
perpectiva humanista passa a figurar no centro dos estudos geográficos. A esse respeito,
Gomes (1996) destaca:
A geografia humanista, sobretudo a que privilegia as dimensões espaciais, em
particular o espaço vivido, trata exatamente das representações de ordem simbólica
que estruturam uma atitude e uma concepção dadas em relação a um espaço de
referência. A ordem simbólica não está ligada à racionalidade da mesma forma que
os comportamentos e as atitudes no espaço também não advêm desta racionalidade.
(GOMES, 1996, p. 322-323).
643
As relações entre geografia, gênero e trabalho, muito mais que permitir a adoção de
nova abordagem para compreender as relações espaciais, busca legitimar os direitos negados
às mulheres ao longo da história. As relações de trabalho, constituem nesse contexto analítico,
um caminho singular para apreender os sentidos e significados de produção e reprodução da
vida, a partir das concepções, dos modos de vida e todas as expressões socioespaciais
edificados pelas mulheres trabalhadoras do/no campo, ou seja, em áreas rurais de Imperatriz.
Dessa forma, por meio da presente incursão científica, buscaremos desvelar as
subjetividades de mulheres (trabalhadoras rurais) no espaço rural de Imperatriz, ou seja a
busca pela compreensão das relações de trabalho no campo, tendo o feminino como foco
central de estudo. Assim sendo, a Geografia expõe a necessidade de ampliação do temário
geográfico, quer fazer jus às desigualdades de gênero estabelecidas secularmente. Estas
desigualdades são perceptíveis e podem ser constatadas por meio dos estudos de Rossini
(1998) ainda na gênese da sociedade industrial.
Com a Revolução industrial, a incorporação da mulher no mercado de trabalho se
consolidou em função da ideologia sustentada historicamente. Preconceitos sobre o sexo
feminino na esfera do trabalho são visíveis, salários mais baixos para as mulheres,
designação para tarefas consideradas menos qualificadas, aceitação de dupla jornada de
trabalho para a mulher, trabalho doméstico e má remuneração, massas que servem para o
capital industrial são alguns dos ingredientes que norteiam as relações de trabalho e
gênero na sociedade industrial. (ROSSINI, 1998, p. 9).
Estas ideias destacadas por Rossini (1998) confirmam o caráter excludente e desigual da
mulher na sociedade hodierna. As expressões dessas desigualdades se intensificam no Brasil em
face da emergência da sociedade urbano-industrial que se edifica, a partir da década de 1940. Em
razão dessas desigualdades é que sentimos a necessidade apreender as expressões e os
significados destas, a partir de uma leitura das mulheres trabalhadoras do/no campo.
Destarte, a geografia e os conhecimentos por esta ciência edificados podem e devem
prestar contribuições com vistas a dirimir a problemática que envolve as relações de gênero na
sociedade brasileira. Tomamos como ponto de partida para esta mediação as relações de
trabalho desenvolvidas por mulheres trabalhados do campo.
Como recorte espacial, elegemos para esta interpretação as mulheres trabalhadoras rurais
de Imperatriz, enfatizando como cenários e cenas, as mulheres residentes no assentamento rural
Vila Conceição I. Trata-se de um espaço de resistência das populações rurais de Imperatriz.
Quando fazemos esta escolha corroboramos com as ideias de Joseli Silva (2016) que compreende,
“conceber a ciência, a partir do feminismo implica, portanto, constituir uma prática científica
desconstrucionista dos conceitos concebidos no campo geográfico, os quais
644
foram incapazes de produzir a visibilidade de grupos sociais que ficaram invisibilizados pelo
saber hegemônico. (SILVA, 2016, p. 509).
Assumir posturas e o desenvolvimento de práticas científicas fundadas no humanismo,
implica muito mais que reconhecer os sujeitos que foram invisibilizados por um longo período da
história das sociedades, significa colocar em volta da mesa, os sentimentos de exclusão, o silêncio
desses sujeitos e significados que foram obscurecidos de suas presenças no meio social.
esta a tarefa central que se coloca para esta pesquisa. Queremos na verdade,
apreender os significados deste silêncio, fornecendo às mulheres trabalhadoras rurais, os
direitos que competem a estas. Estes fatos elencados é que justificam a necessidade de
realização da presente proposta de investigação científica.
645
A dialética fornece as bases para uma interpretação dinâmica e totalizante da
realidade, já que estabelece que os fatos sociais não podem ser entendidos quando
considerados isoladamente, abstraídos de suas influências políticas, econômicas,
culturais etc. Por outro lado, como a dialética privilegia as mudanças qualitativas,
opõe-se naturalmente a qualquer modo de pensar em que a ordem quantitativa se
torne norma. Assim, as pesquisas fundamentadas no método dialético distinguem-se
bastante das pesquisas desenvolvidas segundo a ótica positivista, que enfatiza os
procedimentos quantitativos. (GIL, 2008, p.14)
Para desenvolver este estudo, também trabalhamos com a observação simples que é a
técnica de pesquisa que possibilita ao investigador uma série de vantagens, dentre elas: possita
obtenção de elementos para definição de problema e favorece a construção de ideias com base
no problema estudado. Pela observação simples entende-se
aquela em que o pesquisador, permanecendo alheio à comunidade, grupo ou
situação que pretende estudar, observa de maneira espontânea os fatos que aí
ocorrem. Neste procedimento, o pesquisador é muito mais um espectador que um
ator. Daí por que pode ser chamado de observação-reportagem, já que apresenta
certa similaridade com as técnicas empregadas pelos jornalistas. (GIL, 2008, p.101).
Optou-se por realizar entrevista formais que segundo Gil (2008, p.111): “[...] o quese
pretende com entrevistas deste tipo é a obtenção de uma visão geral do problema pesquisado,
bem como a identificação de alguns aspectos da personalidade do entrevistado”. As
contribuições destas metodologias são utilizadas como a melhor formar de compreender a
realidadde a qual esta pesquisa se volta, visto que a realidade não é passível de explicações e
nem objetiva, aparando também na fenomenolgia as realidades se explicam de forma
subjetivas segundo Gil (2008. p. 14): “Do ponto de vista fenomenológico a realidade não é
tida como algo objetivo e passível de ser explicado como um conhecimento que privilegia
explicações em termos de causa e efeito”.
Entende-se que a metodologia apresentada proporcionará melhor compreensão da
problemática abordada neste estudo. Assim sendo, por meio da adoção da abordagem
humanista, amparada na pesquisa de natureza qualitativa, compreendemos ser possível
apreender a essência das relações entre Gênero e Geografia, mediatizadas pelo trabalho.
646
O quantitativo de famílias 254 de assentados. Organizado pelo Sindicato dos
Trabalhadores Rurais. Entre conflitos ocorridos no campo, algumas famílias deixaram do
assentamento. A divisão dos lotes foi para entorno de 137 famílias, por meio de sorteio cada
família tinha seu lote. Somente após nove anos de ocupação é que o assentamento passou a ter
assistência do governo, e durante esse período de não atuação do governo a organização era
feita pelos próprios membros do assentamento.
O trabalho de campo foi realizado foi realizado no dia 08 de setembro de 2019 em
um domingo visto que este dia podemos encontrar os sujeitos em suas residências. Nos
deslocamos da parte urbana da cidade de Imperatriz-MA, até zona rural Vila Conceição cerca
de 30 km de distância. 12 foram mulheres foram entrevistadas, incialmente para se ter uma
visão geral da problemática que envolve Geografia, Gênero e Trabalho a partir das
trabalhadoras rurais e caráter inicial selecionamos 3 vozes destas entrevistas.
RESULTADOS
Os resultados foram obtidos por meio das entrevistas que foram sistematizados em
dois blocos distintos, sendo que expomos a seguir o primeiro bloco de indagações traçando
um perfil socioeconômicos das trabalhadoras rurais residentes no assentamento Vila
Conceição I, para tanto buscamos identificar a idade; quanto tempo moram no assentamento;
a procedência; escolaridade; renda mensal; profissão. Assim os questionamentos serão
sucedidas das respostas das três vozes de destaques que foram entrevistadas.
Tenho 73 anos, moro aqui muito mais que 5 anos, sou de outro lugar
rural. Escolaridade analfabeta funcional. Sou aposentada e dona de
casa, mas minha profissão era lavradora. Sobrevivo com 1 salário
mínimo. (Residente 1. Entrevista realizada no mês de setembro de
2019).
Minha idade 55 anos, moro a mais de cinco anos, venho de outro lugar
também da zona rural. Minha escolaridade superior completo. Sou
professora. Minha renda mensal é entre 1 a 3 salários mínimo.
(Residente 3. Entrevista realizada no mês de setembro de 2019).
647
Continuando com quarta questão pergunta o motivo que levaram a gostarem de
morar no assentamento em síntese das três vozes.
Gosto de morar no assentamento principalmente pelas relações
sociais; e também por o lugar ser tranquilo. (residentes rurais 1, 2,e 3).
Por conseguinte com a décima questão que trata se existe alguma associação voltadas
para as mulheres no assentamento. Em síntese respostas similares.
Não tem. Não existe coisa específica pra mulher, a associação é pra
todo mundo. Desconheço uma associação voltada para as mulheres
(residentes 1, 2, e 3).
E por fim a décima primeira questão que que aborda as dificuldades e as conquistas
que as mulheres encontram no assentamento.
As mulheres toda vida tiveram dificuldades, ela trabalhava na roça toda
vida com o companheiro; ela nunca teve ideia nunca teve oportunidade de
optar pra venda e não venda. Então a dificuldade que toda a vida tiveram
foi de ter a sua renda. A renda mais fácil que a mulher teve na vida foi o
coco... e assim mesmo com muita dificuldade de venda, aqui nunca teve
comprador pra vender pra fora, era difícil. Ou ela tinha uma profissão e
deixava de ser trabalhadora rural; se ela costurava pra vender aí elas tinha
um pouquinho da sua autonomia financeira. Sobre as conquistas: hoje a
maioria tem profissão fora do assentamento. (Residente 1. Entrevista
realizada no mês de setembro de 2019).
Relatado então as vozes desta pesquisa (mulheres residentes do meio rural) apontamos
algumas divergências em questões objetivas como: idade; escolaridades; renda; profissão. Os
resultados das entrevistas apontam para algumas perspectivas inerentes aos objetivos desta
pesquisa, por mais que a contemporaneidade nas relações de trabalho tenham se transformado
648
aos poucos, a condição e emancipação da mulher referente a sua renda mensal se acha
incipiente no meio rural relacionadas questão de serviços encontrados no assentamento
estabelece relações socioespaciais no que tange as condições das mulheres.
As questões subjetivas convergem para um mesma perspectivas, de ambas as vozes
relatadas. As impressões de gênero tem grande relevância, visto que é a partir dessa relação
que o espaço é produzido. As grandes dificuldades desta emancipação está vinculada
principalmente com a relação de trabalho, por meio da qual a mulher rural ainda se acha
deficitária no sentido de que a pouca disponibilidade de trabalho existente no meio rural é um
dos principais agentes que converge para essa relação desigual de gênero.
649
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Carlos R. Préfácio. In: PESSÔA, Vera Lúcia; RAMIRES, Júlio Cesar.
CLAVAL, Paul. Terra dos homens: geografia. Tradução Domitilia Madureira. São
Paulo: Editora Contexto, 2010.
ROSSINI, Rosa Ester. Mulher, família e meio ambiente. In: Anais do VII Encontro
de Estudos Populacionais da ABEP, 1993, p. 15-40.
650
AT 5 - Gênero, Saúde e Violência
Coordenação
Adelma Pimentel/UFPA
651
O PERFIL DAS VÍTIMAS DE FEMINICÍDIO NA REGIÃO
METROPOLITANA DE BELÉM DO PARÁ A PARTIR DAS
REPORTAGENS DO CADERNO POLICIAL DO JORNAL “DIÁRIO DO
PARÁ”, NO PERÍODO DE 2006 A 2015
https://doi.org/10.29327/527231.5-44
RESUMO
ABSTRACT
In the present paper, we will address the crime of femicide from the analysis of the
newspaper Diário do Pará, from 2006 to 2015. Studies on femicide emphasize that this crime
is part of the final stage of a history of domestic violence that women suffer to the point of
death. Thus, the objective is to track the student profile and show statistics computed by the
Map of Violence, monitor the performance of these Amazonian women, represented in
journalistic discourses and the extent to which the newspaper studies for the perpetuation of
structures of female oppression. The temporal record of the study is marked by the
implementation of Law Nº 11,340 known as the Maria da Penha Law in force from
September 22 in 2006 and Law Nº. 13,104 sanctioned on March 9 in 2015 that criminalizes
Feminicide.
652
INTRODUÇÃO
O assassinato de mulheres no Brasil tem uma característica específica categorizada
como Feminicídio Íntimo, o maior contingente de vítimas tem a vida ceifada por parceiros ou ex-
companheiros. São mulheres invisibilizadas, mortas tragicamente, espancadas, mutiladas,
violentadas cruelmente, negligenciadas pelo Estado e Instituições públicas. São mortes
1
silenciadas por uma sociedade alicerçada no patriarcado , dentro de uma construção
cultural na qual as vidas protegidas pelo Estado e pela sociedade seguem padrões
hierárquicos de poder. Nesse contexto, os assassinatos de mulheres, o genocídio da
população negra e a morte de pessoas LGBTI em função de crimes homofóbicos,
correspondem ao contingente de mortes menos valorizadas nessa hierarquia.
Os estudos sobre o Feminicídio destacam que esse crime, na maioria dos casos, é o
estágio final do histórico de violência doméstica, isso significa dizer que ―Feminicídio é uma
palavra nova, criada para falar de algo que é persistente e, ao mesmo tempo, terrível: que as
2
mulheres sofrem violência ao ponto de morrerem‖ . Assim, as mortes de mulheres no Brasil
podem ser consideradas desfechos evitáveis, tendo em vista a omissão das Instituições Públicas
responsáveis por coibir a violência contra a mulher e a naturalização do crime pela sociedade.
Nesse cenário, emerge a importância de nomear o Feminicídio e chamar atenção para a
necessidade de conhecer sua dimensão e contextos de forma mais acurada, além de
desnaturalizar concepções e práticas enraizadas nas relações pessoais e instituições que
3
corroboram a permanência da violência fatal contra as mulheres em diferentes realidades .
653
No percurso metodológico utilizado optou-se por verificar os cadernos policiais do
periódico publicados nos doze meses de cada ano, durante os 10 anos nos quais a pesquisa
se propõe analisar (2006-2015). Foram coletadas 388 reportagens do jornal ―Diário do Pará‖
retratando casos de Feminicídio na Região Metropolitana de Belém, não sendo levados em
consideração as tentativas de assassinato, as graves agressões e os casos de Feminicídio
referentes as outras Regiões do Estado do Pará. Os jornais estavam disponíveis para
consulta no acervo de periódicos da Biblioteca Arthur Vianna pertencentes à Fundação
Cultural do Estado do Pará.
O artigo trabalha com a hipótese de que o jornalismo popular auxilia na perpetuação
do discurso de dominação masculina e que essas narrativas corroboram para
desumanização das vítimas do crime de Feminicídio, não contribuindo de modo didático à
problematização desse tema controverso e de saúde pública, pois categoriza tais fatos como
crimes passionais ou como atos isolados. .
5 Machado, MRA. (Coord). et al. A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no
Brasil. Governo Federal. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário; 2015.
6 Essas categorias serão especificadas, analisadas e explicadas a seguir.
654
brancos, não brancos ou negros, considerando um julgamento baseado em conceitos
7
como colorismo .
655
nos periódicos, propondo reflexões a respeito das relações encontradas nesses discursos e
destacando os agentes sociais envolvidos.
Figura 1 - Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―Homem ―despacha‖ a namorada para o
cemitério‖.
656
Nesse contexto, emerge o debate sobre o uso da arma de fogo em crimes contra
mulheres em Belém, tendo em vista que 195 dos casos encontrados foram executados com
a arma de fogo, considerando que estes dividem-se estatisticamente entre crimes
protagonizados por parceiros ou ex-parceiros íntimos das vítimas, tráfico de drogas, casos
de execução, latrocínio e crueldade. Ainda que o maior número de mortes veiculadas no
jornal tenha ocorrido com armas de fogo, os números de mortes masculinas envolvendo o
mesmo instrumento é maior na realidade brasileira ocupando 73,2% dos casos enquanto
9
para mulheres são 48,8% .
Diante disso, outro debate pertinente pode ser apontado a partir dos dados envolvendo
arma de fogo nas reportagens, considerando que ―somente em 2015, no Brasil, 41.817 pessoas
sofreram homicídio em decorrência do uso das armas de fogo, o que correspondeu a 71,9% do
10
total de casos‖ , observa-se um cenário delicado, os Feminicídios por arma de fogo
encontrados no jornal (excluindo os que não foram executados por pessoas do círculo social da
vítima) referem-se a mortes por tráfico de drogas e execuções, essas mortes são resultados de
dívidas com o tráfico, por denúncias contra traficantes da localidade, por disputas de áreas
dessa comercialização ilegal, por vingança a algum parente da família com envolvimento no
varejo das drogas (alguns desses casos ocorrem com as mães dos traficantes) e por violência
direta contra a comunidade (quando algum traficante busca impor autoridade no local), esses
dados não foram elencados na tabela dos perfis, mas foram retirados dos discursos jornalísticos
do Diário do Pará.
Uma das grandes problemáticas em relação a estes casos é a distorção que ocorre
na veiculação dessas notícias, no caso de usuárias de drogas percebe-se em grande parte
das narrativas nota-se insensibilidade e até mesmo espetacularização dos assassinatos,
subtende-se nas reportagens que se a vítima não tivesse problemas com entorpecentes,
fosse uma ―cidadã de bem‖ o desfecho letal não aconteceria. Como ocorreu no caso de
Mariely Silva Miranda de 33 anos onde o jornal intitula ―Mulher perde a vida para as
11
drogas‖ , nesse contexto o jornal não discute a temática das drogas como problema
social, estrutural e de saúde pública, como também não ocorre nos casos de Feminicídio.
657
Figura 2: Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―Mulher perde a vida para as drogas‖.
658
exercendo a mesma função de homens, e, por fim, racismo pois a maior parte das pessoas
que vivem na periferia são pessoas negras.
Nesse tópico serão tratados os casos de Feminicídio nos quais foram usadas armas
brancas como faca, terçados, martelos, pedaços de pau e a força física dos algozes no que
tange os assassinatos por asfixia, estrangulamento, lesões/espancamento. Esses casos
foram divididos com o objetivo de destacar o nível de brutalidade exercida pelo assassino
contra a vítima, isso não implica dizer que os outros desfechos letais não sejam
considerados cruéis, mas a categoria crueldade foi utilizada na pesquisa quando o jornal
não aponta uma justificativa para o crime e o mesmo ocorreu com as características de
perversidade comuns ao crime em questão.
17
―O amor com a corda no pescoço‖ retrata a morte de Cilene Pinheiro dos Anjos,
35 anos, desfecho de uma relação conturbada com o marido, ela foi asfixiada até a morte
por seu marido Sandro Melo Carneiro de 32 anos, que após o ato tentou simular suicídio
18
amarrando a vítima pelo pescoço com uma corda no telhado. ―A afiada lâmina do amor‖
noticia a morte de Maria Núbia Faria, 29 anos, assassinada com golpes de faca pelo marido,
segundo o jornal, desfecho do relacionamento de 5 anos permeados por agressões.
15
IBGE Mostra Cores da Desigualdade. Agência IBGE 2018. Disponível em: <
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-denoticias/noticias/21206-ibge-
mostra-as-cores-da-desigualdade > Acesso em: 14 jun 2019.
16 CERQUEIRA, Daniel. (Coord). et. al. Atlas da Violência 2017. Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. IPEA/ FBSP. Rio de Janeiro, jun. 2017.
Diário do Pará. 03 de junho de 2006. p. 4 e 5.
Ibidem. 21/ de janeiro de 2006. p. 4 e 5.
659
Figura 3: Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―A afiada lâmina do amor‖.
MACHADO, MRA. (Coord). et al. A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no
Brasil. Governo Federal. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário; 2015.
20 É uma variante do sabre com lâmina reta ou ligeiramente curva, de ponta aguçada, usada
tanto para cortar como para perfurar, popularmente conhecida em Belém do Pará.
660
Percebe-se através das narrativas que os assassinos continuam ferindo-as mesmo depois
de mortas, as características reveladas pelos estudos desse crime demonstram que os
locais das lesões e o uso de extrema violência são comuns, as vítimas costumam ser
gravemente feridas nas regiões da cabeça, rosto, pescoço, e nos locais que identificam a
anatomia feminina como seios, ventre e vagina, buscando submeter a mulher a intenso
21
sofrimento . Nesses crimes o caráter misógino fica evidente, o assassino não se contenta
com a morte, ele expurga todo o ódio contra a vítima, conta a mulher, em muitos casos das
reportagens foi observado que as vítimas tiveram seu rosto desfigurado com a intensidade
dos golpes desferidos pelos assassinos.
Nesse contexto, a grande maioria dos casos encontrados no Diário do Pará cumpre
22
essa característica de barbaridade, ―Mulher é assassinada com 12 facadas‖ , ―Jovem
23 24
morre com 20 facadas‖ , ―Amarrada e morta com 9 facadas‖ , ―Matou a mulher com
25 26
terçado na frente dos filhos‖ , ―Namoro termina com gritos, facadas e morte‖ , ―36
27 28
facadas‖ , ―10 facadas no pescoço‖ .
A partir destes casos, pode-se enfatizar o primeiro caso de Feminicídio do estado do
Pará, após a instauração da Lei do Feminicídio, ocorrido em 20 de abril de 2015. Ingred
Cássia Israel, 28 anos, foi assassinada por seu personal trainer, com quem tinha
envolvimento afetivo/sexual, o algoz desferiu contra Ingred, 20 facadas, segundo o jornal ele
29
também utilizou uma tesoura. A vítima foi encontrada sem roupa no chão de seu quarto .
21 Feminicídio: Invisibilidade Mata/ Organização: Débora Prado, Marisa Sanematsu; Ilustração Lígia
Wang; editor: Fundação Rosa Luxemburgo. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão, 2017. p. 38.
Diário do Pará. Belém, 03 de maio de 2012. p.2.
Ibidem. Belém, 06 de junho de 2012. Capa.
Ibidem. Belém, 30 de julho de 2012. p.7.
Ibidem. Belém, 20 de setembro de 2012. p. 9.
Ibidem. Belém, 26 de setembro de 2012. Capa.
27
Ibidem. Belém, 08 de dezembro de 2015.
28
Ibidem. Belém, 23 de setembro de 2015.
Diário do Pará. Belém, 21 de abril de 2015. p. 6 e 7.
661
Fonte: Jornal Diário do Pará. Belém, 21 de abril de 2015. p. 6 e 7.
O local do crime é outro padrão evidente dentro dos crimes de Feminicídio Íntimo,
comprovado também nas reportagens jornalísticas do Diário do Pará, diante dos 388
assassinatos veiculados, 198 foram cometidos em casa, 42 deles sendo testemunhados
pelos filhos, contexto que sinaliza essas mortes dentro do ambiente familiar, considerando
que 244 desses casos foi protagonizado por namorados, maridos ou ex companheiros.
Nesse sentido, pode-se entender que as mulheres estão inseguras em todos os ambientes
que convivem, as reportagens desses crimes, muitas vezes, fazem alusão ao amor, mas
não existe lógica entre esses excessos de ódio, menosprezo contra a mulher e o sentimento
de afetividade, o que deve ser destacado nessas reportagens é a capacidade de ferir, a má
formação da masculinidade desses algozes, o jornal deve promover o combate e
30
conscientização a respeito do crime .
―No caso do feminicídio cometido por parceiros ou ex, muitas vezes eles
matam a mulher em casa, no bairro ou no trabalho, na frente de outras
pessoas. São comuns os casos em que o autor não faz questão de ocultar o
crime de testemunhas, o que significa que exibir aquilo reforça sua
masculinidade, ele se sente autorizado pela sociedade a ter controle de vida
e morte sobre a mulher‖ , exemplifica Andrea Brochier Machado, perita
criminal do Instituto Geral de Perícias do governo do Rio Grande do Sul.
(PRADO; SANEMATSU, 2017, p. 56)
30 Feminicídio: Invisibilidade Mata/ Organização: Débora Prado, Marisa Sanematsu; Ilustração Lígia
Wang; editor: Fundação Rosa Luxemburgo. São Paulo: Instituto Patrícia Galvão, 2017. p. 52.
662
A masculinidade é, nesse cenário, observada como fator primordial para a
permanência dos assassinatos de mulheres, existe uma formação cultural na sociedade que
em grande medida ainda naturaliza, tolera e legitima os excessos de violência expressos
quando o homem ceifa a vida de sua companheira por razões envolvendo ciúme, traição, fim
do relacionamento. Nesse sentido, a sociedade tende a compreender que a vítima é
culpada, como já apontando na pesquisa, esses Feminicídios lidos pelo judiciário como
―passionais‖ eram compreendidos como razoáveis, por terem acontecido em razão da honra
masculina.
Segundo a promotora Mariana Seifer Bazzo, nos casos de Feminicídio, fazem parte
do discurso popular a busca por respostas do crime nas ações tomadas pela vítima, e não
pelo autor do assassinato, existe uma afirmação implícita de que a mulher fez por ―merecer‖
31
a violência , buscou tal desfecho, talvez se ela tivesse seguido os padrões de
comportamento correto ainda estivesse viva, fato que não aconteceria, a problemática
encontra-se nas estruturas sociais impostas à formação de feminilidade e masculinidade. O
fato da mulher adquirir autonomia, não obedecer os padrões comportamentais jamais
justificará a violência da qual é vítima, se a violência contra mulher não fosse banalizada e
tolerada pela sociedade brasileira, nem negligenciada pelas instituições do Estado
responsáveis por esses crimes, muitas dessas mortes seriam evitadas, pois sabe-se que o
Feminicídio é a última fase de relacionamentos permeados pela violência em sua grande
32
maioria.
REQUINTES DE CRUELDADE
São os casos de Feminicídio nos quais não foi possível identificar o assassino,
geralmente essas notícias apontavam requintes de crueldade e violência sexual. Como
exemplo desses casos foram escolhidos duas mulheres conhecidas pelos moradores da
Idem. p. 52.
Ibidem. p. 58.
663
localidade como ―Morena‖, os crimes aconteceram em Ananindeua, um aconteceu em
33 34
2013 e o outro em 2014 . A primeira ―Morena‖ era garota de programa, sem mais
identificações o jornal aponta a idade dela entre 25 e 30 anos, ―ela foi encontrada com a
35
cabeça enterrada na vala‖ , com marcas de luta corporal, a imagem que acompanha a
reportagem é chocante, demonstrando barbárie por parte do algoz.
Figura 5: Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―Garota de programa é morta com a
cabeça na vala‖.
36
A segunda ―Morena‖ foi ―torturada, assassinada e desovada em terreno baldio‖ ,
com aparentes 30 anos, sem mais identificações, ela foi encontrada ―torturada, amarrada
com arames, cordas, fitas adesivas e colocada dentro de sacos também fechados‖, a polícia
não teve pistas para encontrar o assassino em ambos os casos. A imagem que acompanha
a reportagem do assassinato de 2014 também é muito explícita e causa desconforto, em
ambos os casos a crueldade é evidenciada.
664
Figura 6: Reprodução Fotográfica do Diário do Pará. ―Mulher é torturada e morta com golpes na
cabeça‖.
665
Interpreta-se a partir da tabela que nas reportagens nas quais puderam ser
observadas a cor das vítimas e assassinos, existe uma significativa discrepância entre
pessoas brancas e pessoas negras/não brancas. A quantidade de pessoas brancas
envolvidas nesses crimes (onde as vítimas estavam expostas) é igual a 45 casos, enquanto
que o número de pessoas negras/não brancas é de 249, envolvendo nesse cálculo as
vítimas e algozes. A identidade racial dos algozes foi verificada quando o jornal
disponibilizava fotografias deles, geralmente quando eram capturados pela polícia ou nos
casos que eles cometiam suicídio após matar a vítima. A categoria ―não branca‖ e ―não
branco‖ surge nessa pesquisa para se referir a pessoas negras de pele clara, metodologia
adotada ao perceber que em muitos casos os corpos expostos eram negros, porém não
retintos, por isso faz-se necessário explicar o colorismo como quesito de análise, essa
metodologia só foi possível em razão das imagens coletadas do ano de 2006 a 2015, com
39
vítimas e assassinatos expostos, serem coloridas no periódico.
O conceito de colorismo foi cunhado pela primeira vez na década de 80 por Alice
40
Walker no contexto norte-americano, a partir disso adaptado por algumas autoras ao
41
cenário brasileiro, a teórica Lélia Gonzalez suscita reflexões a respeito desse conceito
que está atrelado tanto a discriminações como a privilégios. O colorismo torna-se eminente
a partir do contexto de mestiçagem da população brasileira, ele situa-se nas relações sociais
determinando os níveis de violência, oportunidades, ou nos casos de Feminicídio o direito à
vida, baseados no tom de pele, quanto mais escura for a pele, mais vulnerável poderá estar
sua qualidade de vida. Evidentemente esse conceito não torna estáticas as dinâmicas
sociais, assim, excluindo as exceções dessa análise, essa perspectiva corrobora com as
estatísticas, principalmente ao enfocar as mulheres negras, entendendo aqui que as
mulheres ―não brancas‖ são também mulheres negras só que de pele clara.
Nesse contexto Giovana Nascimento conceitua, a partir de autoras norte-americanas,
o colorismo como ―o sistema de segregação intrarracial baseado na tonalidade da pele,
trazendo como consequência a ―pigmentocracia‖. Ou seja, o privilégio da pele clara (light
A categoria de análise definindo a identidade racial das vítimas e dos assassinos (não brancas e não
brancos) não estava definida pelo jornal Diário do Pará, foi um critério meu, por achar essa definição
coerente com a análise, a partir de Giovana Xavier da Conceição Nascimento em seu artigo ―Os
perigos dos Negros Brancos: Cultura Mulata, classe e beleza eugência no pós-emancipação (EUA,
199-1920)‖. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 35, nº 69, p.155-176, 2015.
Alice Malsenior Walker (Condado_de_Putnam_(Geórgia), 9 de fevereiro de 1944) é uma escritora
estado-unidense e ativista feminista. Romancista, contista, poetisa, ensaísta, feminista e ativista. Em
1983, aos 39 anos de idade, ganhou o Prêmio Pulitzer pelo aclamado romance A Cor Púrpura.
Disponível em: <https://www.geledes.org.br/hoje-na-historia-9-de-fevereiro-de-1944-nascia-alice-
walker/> acesso em: 14 jun de 2019.
Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial denunciando que o sistema
escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e
sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Disponível em: <
https://revistacult.uol.com.br/home/colorismo-e-o-mito-da-democracia-racial/> acesso em: 14 jun de
2019.
666
42
skin) em relação à escura (dark skin) no tocante às oportunidades de mobilidade social‖ .
Gonzalez aponta que os privilégios associados aos negros de pele clara no Brasil,
estabelecendo hierarquias baseadas no colorismo, advém do período da escravização,
seguido pelas teorias eugenistas em 1883 que propagavam a miscigenação como a causa
da degeneração racial e social, destacando que as capacidades humanas estavam ligadas a
hereditariedade, perpassa a imagem negativa da mestiçagem propagada desde a década de
43
1930, alcançando o mito da democracia racial brasileira.
Esse processo é diretamente influenciado pelas políticas eugênicas e pelos
valores da supremacia branca, que estimularam o colorismo negro, um
sistema de hierarquização dos sujeitos com base na cor mais clara ou
escura.‖ (NASCIMENTO, 2015, p. 157)
42 NASCIMENTO, Giovana Xavier da Conceição. Os perigos dos Negros Brancos: Cultura Mulata,
classe e beleza eugência no pós-emancipação (EUA, 199-1920). Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 35, nº 69, p.155-176, 2015.
43
GONZALEZ, Lélia. Colorismo e o Mito da Democracia Racial. Disponível em:
<https://revistacult.uol.com.br/home/colorismo-e-o-mito-da-democracia-racial/> Acesso em: 14 jun.
2019.
44 Feminicídio: Invisibilidade Mata. op. cit. p. 39.
667
não são as mesmas para todas, os riscos e a incidência são maiores a depender de
45
categorias sociais ou identitárias .
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante disso, essa pesquisa busca elucidar que as discussões a respeito da violência
de gênero e dos assassinatos de mulheres, envolvem definidos recordes sociais que
subalternizam grande parte da população brasileira, envolvendo diretamente o contexto
amazônico, refletindo nas representações encontradas do tema na Região Metropolitana de
668
Belém do Pará. Dar visibilidade ao tema suscita um movimento político, ideológico
e epistemológico que poderá promover reverberação social.
REFERÊNCIAS
669
IBGE MOSTRA CORES DA DESIGUALDADE. Agência IBGE 2018. Disponível em: <
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-denoticias/noticias/2120 6-
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IZUMINO, Wânia Pasinato; SANTOS; Cecília MacDowell. Violência contra as Mulheres e
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670
MULHERES EM SITUAÇÃO DE RUA: o perfil das mulheres acolhidas no Abrigo João
de Deus - Belém – PA
Adriana Clícia Ferreira
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-45 Ramos 2 3
RESUMO: Este artigo objetivou caracterizar o perfil das mulheres em situação de rua
acolhidas no Abrigo João de Deus. Realizou-se análise documental em 08 prontuários
referentes ao período de janeiro a agosto de 2019. O estudo teve abordagem quantitativa, a
partir das seguintes variáveis: faixa etária; escolaridade; uso de álcool e outras drogas,
motivos que levaram a situação de rua, tempo de institucionalização e vinculo familiar. A
análise dos dados apontou que 63% das mulheres acolhidas são idosas, 62% não são
alfabetizadas, 62% faziam uso de álcool e outras drogas, o conflito familiar com 50% dos
motivos que levaram a situação de rua, 50% estão a mais de cinco anos institucionalizadas
e 63% não possui vínculo familiar. Verificou-se que os conflitos familiares aparecem com o
principal motivo das mulheres terem vivenciado situação de rua, seguido de algum tipo
transtorno mental.
ABSTRACT: This article aimed to characterize the profile of homeless women in the João
de Deus Shelter. Documentary analysis was performed in 08 medical records from January
to August 2019. The study had a quantitative approach, based on the following variables:
age group; schooling; use of alcohol and other drugs, reasons that led to homelessness, time
of institutionalization and family ties. The analysis of the data showed that 63% of the women
received are elderly, 62% are not literate, 62% used alcohol and other drugs, family conflict
with 50% of the reasons that led to homelessness, 50% are more five-year institutionalized
and 63% have no family relationship. It was found that family conflicts appear with the main
reason women experienced homelessness, followed by some kind of mental disorder.
1 Assistente Social pela Universidade Federal do Pará - UFPA, Especialista em Gestão e Planejamento
de Políticas Públicas e Serviço Social pela Escola Superior da Amazônia - ESAMAZ. E-mail:
adrianacliciaas@gmail.com
Assistente Social pela Universidade Federal do Pará - UFPA, Especialista em Gestão e Planejamento de
Políticas Públicas e Serviço Social pela Escola Superior da Amazônia – ESAMAZ. E-mail:
jessica.ssufpa@gmail.com
Assistente Social pela Faculdade Pan Amazônica – FAPAN. E-mail: gorethsantos33@hotmail.com
671
1 INTRODUÇÃO
672
diferentes formas, destacando-se a vulnerabilidade social a que estão expostas, tanto pela
questão de estar vivenciando situação de rua, como pela questão de gênero.
Desta forma, se buscará traçar o perfil dessas mulheres que vivenciaram situação de rua
e que atualmente residem no espaço de acolhimento Institucional Abrigo João de Deus
– AJD, em Belém/PA, a partir das seguintes variáveis: faixa etária; escolaridade; uso de
álcool e outras drogas, motivos que levaram a situação de rua, tempo de institucionalização
e vinculo familiar. Para isso será realizada análise documental em 08 prontuários de
atendimento das mulheres acolhidas na Instituição no período de janeiro a agosto de 2019.
De acordo com Costa (2008), quando se fala em relação de gênero, se está falando
de poder, na medida em que as relações entre masculino e feminino são relações desiguais,
assimétricas, que mantém a mulher subjugada ao homem e ao domínio patriarcal.
Na perspectiva cultural patriarcal, somos frutos da educação diferenciada, baseada na
desigualdade e na metamorfose das relações. Entende-se por patriarcado:
673
O patriarcado construiu a visão sobre o sexo feminino de forma violenta, desde os
estágios da infância, onde este começa a se instalar na consciência de ambos os sexos
para delinear seu futuro, moldando a mente dos indivíduos de tal forma que a desconstrução
do modelo machista assimilado torna-se difícil, já que este passa a ser um traço cultural da
sociedade na qual se insere. O sistema patriarcal buscou formas de se justificar no meio
social (BORGES, 2009).
Deste modo, conforme ressalta Borges (2009), a hierarquia pautada pela condição
masculina era construída na afirmação de que este sexo era o dominante, enquanto as
mulheres foram convencidas de que seu lugar social era de subordinação sendo fortalecida
pelas instituições, a religião, a família e o próprio Estado que serviram de apoio para sua
expansão.
O debate sobre este tema tem se concentrado em diversos movimentos que
levantam variadas possibilidades de interpretação sobre, como a sociedade conduz e impõe
as relações de gênero, seja como um debate em torno das relações de poder, bem como a
questão da participação no mercado de trabalho e vida política, este discurso é encontrado
nos movimentos feministas e de masculinidades (LISBOA, 2010).
Assim, de acordo com Lisboa (2010), as relações de gênero criam padrões fixos do
que é próprio para o feminino e para o masculino e reproduzem estas regras como um
comportamento natural do ser humano criando condutas e modos únicos de se viver sua
natureza sexual. Isto significa dizer que a questão de gênero tem uma ligação direta com a
forma que está organizada na sociedade, os valores, desejos e comportamentos acerca da
sexualidade.
A discussão em torno de gênero perpassa pela observação que fazemos das relações
sociais, no trabalho, no lazer, na política e etc. convivemos permanentemente com relações
de dominação, relações de poder. Entende-se então que o gênero é ainda uma das
primeiras formas de distribuir e significar o poder, sendo que o que é classificado como
masculino tende a ser mais forte superior e poderoso, ao passo que o que é considerado
feminino é visto como mais fraco, com menos poder, e por isso deve ficar sob a esfera de
proteção e de submissão ao masculino (SARTI, 2015).
Nesse contexto, Borges (2009) assevera que, ao analisar a realidade em estudo do
ponto de vista de gênero percebe-se que irão aparecer algumas diferenças e
particularidades da situação de rua vivenciada por mulheres, que são resultantes da
construção social que permeia a questão de gênero. Contudo, homens e mulheres estão
expostos aos mesmos determinantes que conduzem a essa situação.
Para fins de melhor compreensão da PSR, se fará uso do conceito de População em
Situação de Rua utilizado pela Política Nacional para Inclusão Social da População em
Situação de Rua, que o considera como:
674
Grupo populacional heterogêneo, caracterizado por sua condição de pobreza
extrema, pela interrupção ou fragilidade dos vínculos familiares e pela falta de
moradia convencional regular. São pessoas compelidas a habitar logradouros
públicos (ruas, praças, cemitérios, etc.), áreas degradadas (galpões e prédios
abandonados, ruínas, etc.) e, ocasionalmente, utilizar abrigos e albergues para
pernoitar. (BRASIL, 2008, p. 08).
´
675
Historicamente a população em situação de rua sempre foi tratada pelo Estado de
forma omissa, com ações pontuais e assistencialistas. A promulgação da Constituição
Federal de 1988 instituiu o tripé da seguridade social brasileira, composta pela saúde,
previdência social e assistência social, o que representou um marco para a proteção social
no pais. Segundo o Artigo 194 da CF/88: ―a Seguridade Social compreende um conjunto
integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a
assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. ‖ No que diz
respeito a assistência social a CF/88 traz:
676
11.258 de 30 de dezembro de 2005, que alterou a LOAS e constitui a obrigatoriedade de
criação de programas direcionados à população em situação de rua.
No ano seguinte o Governo Federal criou um Grupo de Trabalho Interministerial -
GTI, com a intenção de elaborar estudos e propor políticas públicas para a inclusão social
da população em situação de rua. Em 2007/2008 foi realizada a pesquisa nacional a fim de
conhecer o perfil da PSR, e em 2009 foi instituído o Decreto 7.053 de 23 de dezembro de
2009, instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e o seu Comitê
Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento.
Desta forma foram constituídas as primeiras políticas públicas instituídas
nacionalmente, voltadas às pessoas em situação de rua, com destaque a Política Nacional
para a População em Situação de Rua e as políticas públicas formuladas especificamente
para esse público, como por exemplo, o Consultório na Rua e o Centro Pop. A Política
Nacional para a PSR tem como princípios:
Assim, por meio de muito tensionamento político e mobilização social, a PSR passa
a ser reconhecida pelo estado como um segmento com direitos de cidadania.
A PNAS divide os tipos de Proteção Social em Proteção Social Básica - PSB e
Proteção Social Especial de média e alta complexidade – PSE, que, a partir da
implementação do SUAS passa a ofertar serviços específicos a PSR na Tipificação Nacional
de Serviços Socioassistenciais.
A PSR é atendida em todos os níveis de proteções. Todavia, é por meio da PSE que
se busca dar conta das particularidades demandadas pela PSR. E tem a oferta de serviços
desenvolvidos no Cetro de Referência de Assistência Social – CREAS, por meio do Serviço
Especializado em Abordagem Social – SEAS, que atende demanda espontânea e realiza
busca ativa nas ruas que fazem parte do seu território de abrangência, para realizar oferta
de serviços sociossitenciais. E no Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua
desenvolvido no Centro POP, fazendo parte da média complexidade. O serviço e ofertado a
pessoas que moram e/ou sobrevivem de atividades desenvolvidas nos logradouros públicos.
O Serviço de Alta Complexidade irá ser demandado quando a PSR necessita de
abrigo e acolhimento institucional. Compreendendo assim: serviços de proteção integral
677
(moradia, alimentação, higienização, trabalho protegido) para famílias e indivíduos que se
encontram sem referência e/ou em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu
núcleo familiar e/ou comunitário.
Esse tipo se serviço de acolhimento institucional é ofertado pelo Abrigo João de
Deus desde a década de 1980, porém sem vínculo estatal, o que será apresentado no
próximo tópico.
Assim, embora os avanços alcançados pela Política Nacional Para a PSR se observa
que existem particularidades que merecem atenção, como a situação de rua vivenciada por
mulheres.
Sabe-se que existe todo um estigma e marginalização que permeia a PSR de uma
forma geral, porém, no caso da mulher todo esse processo é acentuado em razão da
dominação masculina. Sobre isso asseveram Sarmento e Pedroni:
678
De acordo com o mesmo, este projeto teve início a partir do dia em que um homem
em situação de rua o abordou na escadaria da Igreja das Mercês (centro de Belém), e lhe
questionou a respeito de um lugar para se alimentar e descansar. Desta forma, por não ter
naquele momento nenhum lugar para ―abrigar‖ aquela pessoa, o padre decidiu reunir apoio
com pessoas religiosas e criar um espaço para acolher pessoas naquelas condições. E,
assim, com auxílio de alguns paroquianos da Igreja das Mercês e a doação de uma casa
nasceu o Abrigo João de Deus, em 1981, e inaugurado oficialmente em 1982, que se
encontra localizado na TV. Joaquim Távora, nº 305, bairro da Cidade Velha, Belém/PA.
O abrigo João de Deus é uma associação de direito privado, constituída por tempo
indeterminado, sem fins econômicos, de caráter organizacional, beneficente, filantrópica,
cultural e de assistência social, sem cunho político ou partidário que funciona como espaço
de acolhimento de curta ou longa permanência, e é considerado de utilidade pública para a
sociedade. Seu principal objetivo é fornecer acolhimento institucional e assistência às
pessoas adultas em situação de rua e idosos, sendo priorizados os que apresentam algum
tipo de enfermidade e que se encontra com vínculos familiares fragilizados e/ou rompidos.
(ESTATUTO DO ABRIGO JOÃO DE DEUS, 2017).
A instituição é mantida, principalmente, por meio de arrecadações feitas em eventos
por sua diretoria voluntária e doações de parceiros em geral, que contribuem com materiais
de higiene, limpeza, alimentação, etc., e por meio de trabalho voluntário e ainda parceria
com algumas instituições por meio de estágio supervisionado (Universidade Estadual do
Pará – UEPA, Universidade Federal do Pará – UFPA, Universidade da Amazônia – UNAMA,
Centro Universitário do Pará – CESUPA, Secretaria Municipal de Saúde – SESMA por meio
do Consultório na rua, etc.). Atualmente a entidade tem como presidente a Irmã Maria Rayol
Gonçalves (madre superiora), co-fundadora da obra e como coordenadora a Irmã Maria
Goreth Soeiro. Possuí no seu quadro de funcionários 10 (dez) profissionais contratados
(uma contadora, um porteiro, um motorista, uma cozinheira, uma lavadeira, um de serviços
gerais e quatro cuidadoras). A equipe técnica é composta por profissionais voluntários, entre
estes, duas assistentes sociais, uma terapeuta ocupacional, dois advogados, quatro
médicos geriatras, um clínico geral, uma enfermeira, um oftalmologista e uma dentista.
O Abrigo possui uma filial localizada em Marituba/PA, a casa Cidadela João de Deus
que passou a funcionar desde a década de 1990 com perfil voltado especificamente para
idosos.
5 RESULTADOS GRÁFICO
I: FAIXA ETÁRIA
679
FAIXA ETÁRIA
37%
ACIMA DE 60 ANOS
MENOS DE 60 ANOS
63%
Observa-se que do universo pesquisado 63% das mulheres residentes no AJD são
idosas, ou seja, podemos inferir com isso que essas pessoas podem ter sofrido um
processo gradativo de perda de direitos, ao ponto de chegarem a essa fase da vida e não
terem garantidos direitos básicos como moradia (CF/88), e que, combinado com outros
fatores, as fizeram vivenciar situação de rua atualmente precisarem estar em uma instituição
de longa permanência, já que agora sofrem dupla exclusão conforme Brêtas:
680
ESCOLARIDADE
38%
ALFABETIZADA
NÃO ALFABETIZADA
62%
681
USO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS
16%
SIM
NÃO
84%
Pode-se observar que um percentual de 16% das mulheres fez uso de álcool ou
outras drogas durante o período que estiveram nas ruas. De acordo com Silva (2009) o uso
de álcool e outras drogas aparecem como um dos fatores que envolvem a população em
situação de rua que estão relacionados a outros, e que muitas vezes aparece como
consequência da vivencia nas ruas, como uma forma de enfrentar dificuldades e privações
vivenciadas no cotidiano das ruas.
37%
CONFLITO FAMILIAR
50% VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SAÚDE MENTAL
13%
682
De acordo com o gráfico IV, observou-se que 50% do universo pesquisado, tiveram
como predominância os conflitos familiares, que tornou-se a causa e/ou consequência da
situação de rua. Sobre isto, Pereira e Gomes (2005) ressaltam que esta realidade pode ser
explicada por conta do esgarçamento familiar, sendo a família um espaço de convivência
permeado por conflitos e por diversos fatores interligados, entre eles a desigualdade social é
um dos motivos que mais levam ao desmembramento da família, já que os elevados níveis
de pobreza excluem parte significativa de sua população ao acesso as condições mínimas
dos direitos básicos sendo expostas a risco pessoal e social.
Na realidade das mulheres institucionalizadas no AJD, percebe-se ainda que 37%
têm algum tipo de transtorno mental e 16% sofreram violência doméstica. De acordo com
Santana (2016) a realidade vivenciada pelas pessoas em situação de rua como: pouca
longevidade, fragilização e/ou rompimento dos vínculos familiares, violências domesticas,
discriminação, direitos negados, entre outras expressões da questão social, colaboram para
o aparecimento e/o agravamento dos transtornos mentais, que por muitas vezes são fatores
que contribuem para que uma pessoa viva em situação de rua.
VÍNCULO FAMILIAR
37%
VÍNCULO TOTALMENTE
ROMPIDO
VÍNCULO FRAGILIZADO
63%
Conforme o Gráfico V percebe-se que 63% das mulheres acolhidas têm seu vínculo
familiar totalmente rompido. Como verificou-se no gráfico IV, o conflito familiar predomina
entre os motivos que levaram a situação de rua. De acordo com Gomes e Pereira (2005), a
família compreende a convivência entre seus membros e traz consigo a dimensão de sua
683
complexidade, como seus encontros e desencontros, pois por ser um espaço privilegiado de
convivência não significa que não haja conflitos nesta esfera.
Neste sentido, de acordo com as autoras mencionadas, por conta dos diversos
conflitos neste espaço de convivência, muitas pessoas se afastam do seu ambiente de
origem (esgarçamento familiar), perdendo o contato/convivência familiar e
consequentemente sendo mais agravado pela situação de rua, quando muitos perdem até
sua própria referência de família, naturalidade, cidadania e dignidade humana. Sobre esta
realidade, Silva (2009) ressalta que, a situação de rua é a expressão radical da questão
social.
TEMPO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO
38%
MENOS DE 5 ANOS
MAIS DE 5 ANOS
62%
CONSIDERAÇÕES FINAIS
684
A população em situação de rua é composta por homens e mulheres de diferentes
etnias, raça, cor, faixa etária, orientação sexual e etc. Apesar das pesquisas apontarem que
número de mulheres sempre é menor que o dos homens que vivem em situação de rua, não
diminui a necessidade de dar enfoque a essa dura realidade. Tendo em vista que a questão
de gênero acaba por agravar ainda mais essa situação, em razão das especificidades
demandas por mulheres, e ainda pelo papel historicamente construído em relação ao papel
conferido a mulher na sociedade.
Observa-se que houve um significativo avanço no que concerne aos direitos sociais
da PSR, a instituição da Política Nacional de Assistência Social, promoveu ampliação e
fortalecimento das redes assistenciais direcionadas à população em situação de rua, bem
como a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Porém, dada a
complexidade que envolve a atenção a esse segmento, torna-se necessário estudos mais
cuidadosos no sentido de criar políticas que levem em consideração as especificidades
principalmente no que diz respeito a questão de gênero.
A análise dos dados apontou que 63% das mulheres acolhidas são idosas, 62% não
são alfabetizadas, 62% faziam uso de álcool e outras drogas, o conflito familiar com 50%
dos motivos que levaram a situação de rua, 50% estão a mais de cinco anos
institucionalizadas e 63% não possui vínculo familiar.
Podemos inferir com isso, que essas mulheres passaram por um processo de
negação de direito que se estendeu por toda vida, em que chegam a condição de pessoas
idosas tendo negados direitos básicos garantidos constitucionalmente como moradia, o
direito a convivência familiar. Não tiveram acesso ao mínimo de educação, ficaram expostas
ao uso de álcool e outras drogas. Verificou-se que os conflitos familiares aparecem com o
principal motivo de essas mulheres terem vivenciado situação de rua, seguido de algum tipo
transtorno mental.
Desta forma, é imprescindível que se fomente o debate sobre essa temática, a fim de
dar maior visibilidade a essa demanda que faz parte de uma das mais degradantes
expressões da questão social, a população em situação de rua, com todas as
particularidades que envolve a questão de gênero. Tendo certo que essa discussão não se
encerra, necessitando de novos debates e reflexões.
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687
A ROMANTIZAÇÃO DO ABUSO PELAS HISTÓRIAS DE FICÇÃO
https://doi.org/10.29327/527231.5-46
Alice Cáritas Almeida Amarante
Universidade Federal do Pará
RESUMO
O presente trabalho aborda a romantização do abuso pelas histórias de ficção, com ênfase
em relacionamentos heterossexuais, onde a mulher é a vítima de abuso. Com o objetivo de
expor a carga problemática de machismo, e diversas formas de violência contra a mulher
que existem por trás de tantas histórias consideradas românticas que refletem-se na
realidade, realizei entrevistas com mulheres vítimas de relacionamentos abusivos e associei
os relatos obtidos com uma análise crítica de três ficções científicas que camuflam tais
relacionamentos, em diálogo com autoras que também teceram suas considerações a
respeito das obras: o filme Esquadrão Suicida, onde conversarei principalmente com Nikolly
dos Santos Neto (2017), e a saga Crepúsculo, juntamente com a trilogia 50 tons de cinza,
onde partilharei de ideias de Priscila Santiago Sousa (2018). Afim de embasar as discussões
referentes a relacionamentos abusivos e formas de violência, terei como aporte teórico
Tânia Mendonça Marques (2005). Com a finalização da pesquisa, conclui-se que a
romantização do abuso pelas histórias de ficção, segue na contramão das lutas de combate
violência contra a mulher e que, portanto, é necessário que tenhamos sempre cautela com
o que estamos consumindo e exaltando, para não contribuir ainda mais para que mulheres
sofram presas em relacionamentos abusivos.
Palavras chave: romantização; histórias de ficção; relacionamentos abusivos; violência
contra a mulher.
ABSTRACT
This paper addresses the romanticization of abuse through fiction stories, with an emphasis
on heterosexual relationships, where women are victims of abuse. In order to expose the
problematic burden of male chauvinism, and the various forms of violence against women
that exist behind so many stories considered romantic that are reflected in reality, I
conducted interviews with women victims of abusive relationships and associated the reports
obtained with a critical analysis of three science fictions that camouflage such relationships,
in dialogue with authors who also made their considerations about the works: the movie
Suicide Squad, where I will talk mainly with Nikolly dos Santos Neto (2017), and the Twilight
saga, along with trilogy 50 shades of gray, where I will share ideas of Priscila Santiago
Sousa (2018). In order to support the discussions regarding abusive relationships and forms
of violence, I will have as theoretical support Tânia Mendonça Marques (2005). With the
conclusion of the research, it is concluded that the romanticization of abuse by fiction stories,
goes against the struggles to combat violence against women, and therefore, we must
always be careful with what we are consuming and extolling, not to further contribute to
women being trapped in abusive relationships.
Key Words: romanticization; fiction stories; abusive relationships; violence against women.
688
CONTOS DE FADAS: FELIZES PARA SEMPRE, QUEM?
Quem nunca foi ao delírio cantando com a Bela pela aldeia e pelo palácio da Fera?
Ou com a Cinderela, enquanto ela limpava a casa, com os ratinhos? Ou com a Branca de
Neve, junto com os sete anões e com a Aurora, pelas florestas? E com a Barbie, então?!
Com suas inúmeras histórias diferentes, cheias de aventuras e músicas originais?
Esse termo vem sendo utilizado atualmente para substituir antigo “heteronormativo”, pois compreende-se não somente a
heterossexualidade é compulsoriamente imposta, mas também a cisgeneridade, ou seja, que o gênero esteja em
conformidade com o sexo.
Quando se trata de gênero, considera a possibilidade apenas do masculino e feminino, sendo estes determinados pela
genitália das pessoas: masculino (para quem nasce com pênis) e feminino (para quem nasce com vulva).
689
Vimos mulheres (brancas e loiras) terem todos os seus problemas resolvidos por
homens (brancos e ricos) e achamos incrível; torcemos pelo amor entre uma mulher e o
homem que lhe aprisionou; comemoramos ao ver homens beijando mulheres desconhecidas
e desacordadas. E para além de tudo isso e de tantos outros fatos extremamente
problematizáveis, romantizamos todas essas histórias.
Dessa forma, meninas crescem com a ideia de que devem ser delicadas e manterem
um padrão de beleza europeizado para esperarem seus ―príncipes encantados‖, pois
precisam deles para serem sustentadas e terem todos os seus problemas resolvidos,
almejando viver sua grande história de amor e acreditando que esse será o momento mais
feliz da suas vidas; e meninos, por sua vez, crescem com o entendimento de que suas
atitudes devem ser baseadas em força física e o mínimo de sensibilidade possível e ainda,
que é natural que homens sejam agressivos, o que faz com que considerem-se superiores
às mulheres.
Crianças crescem, por fim, enraizadas em uma cultura machista, que naturalizando e
romantizando esses aspectos de divisão de gênero constrói uma hierarquia marcada pelo
masculino como ser superior e dominante, o que se configura como masculinidade tóxica.
690
penetrem nosso cérebro, nos levando a considerar outras formas do que é chamado de
amor e mais uma vez, almejar a reprodução do que lemos o assistimos, em nossas próprias
vidas.
RELAÇÃO SUICIDA
Harleen Quinzel, mais tarde apelidada como Harley Quinn, foi criada para a
série animada para televisão Batman: A Série Animada, aparecendo pela
primeira vez em 1992. Após uma aceitação positiva do público, seus
criadores, Paul Dini e Bruce Timm, incluíram a personagem em vários
outros episódios e mais tarde ela também apareceria nos quadrinhos do
Universo DC e posteriormente na adaptação para cinema Esquadrão
Suicida. Ela aparece na trama como a psiquiatra de Coringa, que
manipulada e seduzida pelo mesmo, desenvolve uma empatia pelo paciente
ajudando-o a fugir do Asilo de Arkham e torna-se uma seguidora do vilão
seguindo suas ordens em viés do sentimento que ela acredita ser amor
(Nikolly do Santos Neto, 2017, p. 172).
Alerquina e Coringa, desde os quadrinhos, já eram o ―casal dos olhos‖ das(os) fãs,
que naturalizavam e romantizavam o relacionamento de ambos, mesmo tratando-se
explicitamente de um relacionamento abusivo. Ao serem levados às telas dos cinemas, o
nível de romantização do casal pelo próprio filme, alcançou níveis ainda maiores do que nos
quadrinhos e desenhos. Na trama, não há uma preocupação por meio da produção, de
buscar meios para problematizar a toxicidade da relação, como aponta Thay (2016), que ―os
idealizadores de Esquadrão Suicida perderam uma grande oportunidade de lidar com o
tema do relacionamento abusivo com as cores e dores reais que algo assim trás para a vida
de uma pessoa‖. Pelo contrário, o filme ―enfeita‖ o relacionamento causando a sensação de
691
diminuição da gravidade do mesmo e, consequente, romantização do abuso sofrido por
Alerquina.
A primeira cena de abuso disfarçado de amor que o filme mostra, é quando conta a
história de Alerquina, ainda doutora Harleen Quinzel, psiquiatra designada para tratar do
caso do Coringa. Durante as sessões de terapia, começa a ser manipulada pelo palhaço e
desenvolver uma doentia paixão por ele, o que lhe leva, inconscientemente, a ajudá-lo a
fugir do manicômio onde se encontrava.
Na sequência, o filme nos coloca diante de uma cena de tortura: Coringa aprisiona a
doutora e, antes de lhe aplicar um choque na cabeça, diz que não vai lhe matar, só vai lhe
machucar e que vai doer demais, ao que ela responde que aguenta. Nesta cena, além da
explícita violência física à qual Harleen Quinzel é submetida, podemos observar também
que a manipulação alcança níveis mais elevados, fazendo com que ela acredite que é capaz
de passar por situações de extrema dor e sacrifício, por ele, o famoso ―se sacrificar por
amor‖.
692
satisfeitas com determinadas imposições e ordens, de serem submetidas à práticas que lhes
causavam agonia, mal-estar ou até mesmo dor. “Tinha que dizer pra ele onde eu ia, com
quem e se ele não gostasse, eu não ia. Tinha que ter relações com ele mesmo quando eu
não queria, porque ele fazia toda uma pressão psicológica pra eu aceitar aquilo”.
importante ressaltar que essa prática de ser induzida a manter relações sexuais,
mesmo sem vontade, é uma situação cada vez mais corriqueira dentro dos relacionamentos,
onde inúmeras mulheres que passam por isso, nem se quer, percebem que estão sendo
vítimas de violência sexual.
preciso deixar claro, principalmente para nós mulheres que somos as maiores
vítimas, que qualquer prática que ultrapasse a nossa vontade, dentro de uma relação
sexual, é estupro e que não devemos ceder nos relacionar sexualmente com alguém,
apenas para satisfazer o desejo da pessoa, independentemente de ser namorado ou
marido. Essa prática de manipulação para que ocorra o sexo, que automaticamente gera
uma relação não prazerosa e muitas vezes, incômoda e desconfortável para a parte
manipulada, é igualmente, estupro.
693
na boate e ela, prontamente, obedece a sua ordem. Percebemos dessa forma, que
Alerquina é reduzida a um objeto submisso do Coringa e sente prazer em ocupar este lugar,
como se fosse uma honra satisfazer aos desejos do seu amado.
De acordo com Nikolly dos Santos Neto, o filme nos permite identificar que além da
Síndrome de Estolcomo, a personagem também sofre um transtorno de personalidade
histriônica, cuja principal característica é a necessidade que a pessoa desenvolve de estar
em evidência, ser o centro das atenções o tempo todo.
E mais uma vez o filme brinca com uma questão muito séria: rimos das atitudes de
Alerquina, lhe achamos fofa, chata, tola, insuportável, mas raramente paramos para analisar
a gravidade do fato de desenvolver transtornos psicológicos devido ao relacionamento
abusivo que sofre, justamente porque o filme esforçou-se o suficiente para mascarar todas
essas implicações problemáticas e preferiu que ovacionássemos o casal.
Segundo Marques:
694
Manter a mulher em estado de ansiedade é outro método usado para
controle psicológico. O homem toma providências para que ela nunca tenha
certeza se ele irá machucá-la, se os seus esforços irão agradá-lo, enfurecê-
lo, ou se pode cumprir suas ordens adequadamente. A incerteza é uma
maneira de desestabilizar a mulher psicologicamente (MARQUES, 2005, p.
87).
Ainda nos mostrando a origem de Alerquina, chegamos à cena em que o Coringa lhe
pergunta se ela morreria e viveria por ele e ela responde que sim, às duas perguntas e em
seguida pula em uma banheira de ácido, demarcando o momento em que Harleen Quinzel,
transforma-se em Harley Quinn. Essa é a cena mais romantizada pela trama. Depois da
atitude de uma mulher claramente transtornada e obcecada por seu abusador, o mesmo
pula também na banheira de ácido para salvá-la e depois a beija, o que transmite ao
espectador, toda carga romantizada de que o homem pode ter inúmeros defeitos e até
chegar a machucar a mulher, física ou psicologicamente, mas qualquer atitude sua que a
faça se sentir minimamente valorizada, faz com que este seja novamente colocado em um
pedestal e considerado o melhor e mais romântico homem do mundo.
São esses lapsos de demonstrações afetivas, que fazem com que muitas vítimas
acreditem que no fundo, seus abusadores as amam e, portanto, que esse amor é suficiente
para manter sustentar o relacionamento, como apontaram algumas das entrevistadas:
“acabei acreditando que o amor é a base...”, “depois eu voltei a ir na casa dele, ele se
tornava um bom namorado”.
“ – Como entrou
695
“ – Não chega perto de mim, eu preciso de espaço! -
Um dos best sellers que mais fez sucesso e colocou sua escritora como uma das
mais bem pagas do mundo foi o idolatrado Crepúsculo. Não é novidade para ninguém que
desde a publicação do primeiro livro, em 2005, pela escritora Stephenie Meyer, Crepúsculo
virou uma das maiores febres literárias entre as(os) jovens, tornando-se uma das sagas que
mais marcou a infância e adolescência de inúmeras pessoas. O romance entre a garota de
Phoenix de 17 anos, Isabella Swan, e o vampiro centenário, Edward Cullen, viralizou de tal
forma, que conquistou avassaladoramente o coração de inúmeras(os) fãs ao redor de todo o
globo. De acordo com Priscila Santiago Sousa:
[...] viria a se tornar uma saga de quatro volumes, cinco adaptações para o
cinema, dois livros spin offs recorde de vendas, sucesso de bilheteria e uma
legião de fãs apaixonados e fiéis aos personagens da história que
conquistou corações de milhares de pessoas ao redor do mundo. Em uma
trama envolvendo humanos, vampiros e lobisomens, Meyer construiu na
saga Crepúsculo um romance misterioso e sedutor que até hoje, treze anos
após a primeira publicação, faz muito sucesso (SOUSA, 2018, p. 42)
3
Abreviação de “fanfictions”, no Brasil também popularmente conhecido apenas por “fics”.
696
Dessa forma, a trilogia 50 Tons de Cinza, de E.L. James, publicada em 2011, torna-
se a mais famosa entre as fanfics de Crepúsculo, que eternizado no coração das(os) fãs,
ainda serviu de inspiração para uma história que rendeu três livros, seis anos depois de seu
lançamento.
Assim como Crepúsculo, 50 Tons de Cinza, também fez grande sucesso, tanto nas
livrarias quanto nas bilheterias, levando os mais diferentes tipos de público ao delírio com o
romance erótico entre Anastasia Steele e o empresário Christian Grey.
Tanto Isabella Swan, quanto Anastasia Steele, são meninas virgens, que segundo as
narrativas, não possuem grandes atrativos femininos, não possuem muita personalidade,
tem baixa autoestima e bombardeiam-se de características negativas. São o perfeito retrato
das inseguranças femininas, fazendo com que inúmeras mulheres vejam retratadas nas
personagens ao menos uma de suas inseguranças, já que as mesmas parecem ter todas
que existem no mundo e diante dessa identificação, comecem a sentir-se atraídas pelas
histórias.
Ambas as protagonistas conhecem os homens que vem a ser seu par romântico na
saga e os dois são caracterizados por homens bonitos, ricos, desejados e que passam uma
imagem de inacessíveis.
697
conservadores e possibilitando a emancipação de diversas mulheres. Entretanto, exaltar as
fragilidades femininas e a plena segurança e estabilidade masculina, reforça nas mulheres o
sentimento de impotência, de que não são autossuficientes para ter suas próprias
conquistas e serem vitoriosas sozinhas, de que no fundo, precisam mesmo de um homem
que lhes faça sentir segura e protegida, mesmo que para isso, devam se submeter a
situações hostis e desagradáveis.
Depois que começam a se envolver, ambos os ―mocinhos‖ dizem para suas supostas
amadas, que elas devem ficar longe deles, porque são perigosos, Edward chega a dizer
para Bella que tem um desejo incessante pelo seu sangue como nunca teve na vida, por
ninguém.
Este para mim, é o ápice da falta de cuidado com o público juvenil, que é o principal
consumidor desses produtos. Os casos de mulheres desaparecidas, espancadas,
estupradas e mortas, são números que nunca param de crescer. Saímos de casa e não
sabemos se voltaremos vivas ou nos tornaremos estatísticas. Além disso, com o advento da
internet e os avanços da globalização, crianças e jovens saem da segurança de suas casas
através das redes de comunicação em massa e estão cada vez mais vulneráveis e expostas
aos perigos do mundo ―lá fora‖, como por exemplo, à manipulação de psicopatas pedófilos.
E diante de tudo isso, as narrativas de Stephenie Meyer e L.S. James induzem meninas a
não fugirem de homens que lhe digam que são perigosos e que querem lhes matar, e sim, a
acharem isso fascinante, atrativo e aceitarem manter uma relação com esses homens.
698
Anastasia. Atitudes como perseguição, invasão do quarto, aparecer sem ser convidado e até
mesmo, colocar um rastreador na pessoa, são vistas como bonitas e românticas, utilizando-
se do argumento de que querem apenas o bem de suas amadas, que por sua vez, precisam
de sua proteção a todo momento do dia.
Mais uma vez, as narrativas ressaltam a fragilidade feminina e dão respaldo para
homens exercerem sobre mulheres esse tipo de comportamento obsessivo compulsivo,
fazendo com que muitas, mesmo mergulhadas nas situações e sentimentos mais
desagradáveis e desconfortáveis possíveis, a se sentirem privilegiada por ter alguém que,
em seu entendimento, lhes ama tanto a ponto de abdicar de sua própria vida, para estar em
constante proteção da vida de sua suposta amada.
Sabemos que vício e pensamentos suicidas são graves problemas cada vez mais
recorrentes na sociedade e, portanto, que precisam de sérios tratamentos de saúde. Exaltar
vícios e morte é uma forma de implantar nas mentes a ideia de que tudo bem você ser
dependente de algo ou de alguém, tudo bem você não conseguir viver sem uma pessoa e
preferir tirar sua vida por isso, que o melhor a fazer então, é lutar a qualquer custo para
manter por perto o objeto de sua dependência, ao invés de se livrar dela.
Alguns dos relatos que coletei, trouxeram à tona esse tipo de situação. “Os primeiros
sinais que foram me deixando mal e eu não evitei, foi o fato dele começar a afastar de mim,
699
meus amigos. Ele sempre dava a entender que meus amigos estavam errados, que eles
queriam meu mal, queriam me separar dele e que ninguém me amava mais do que ele. Que
eu não iria encontrar alguém como ele, porque só ele era capaz de amar alguém como eu.
Aí fui me afastando dos meus amigos que sempre iam me mostrando como ele não prestava
e ele me fazendo pensar que quem não prestava eram eles. Ele fazia eu entrar em conflito
com meus pais para poder fazer do jeito que ele queria. Meus pais já vinham tentando me
mostrar que o relacionamento não prestava e eu não queria ver porque achava que tava
tudo bem, mesmo me sentindo mal.
Faço questão, entretanto, de destacar que o protagonista age dessa forma quase
sempre, pois em alguns momentos, como quando revela para Bella sua verdadeira
identidade, deixa que venham à tona seus instintos do predador que realmente é e
reproduza um comportamento assustador e agressivo.
Tratando-se de vida real, inúmeros são os casos de mulheres que estão presas a
relacionamentos, cujos parceiros demonstram ser uns verdadeiros príncipes encantados de
contos de fadas quase que cem por cento das vezes, até mesmo por muitos anos, mas que
em determinados momentos, tem lapsos de atitudes agressivas, que variam em diferentes
700
níveis, geralmente começando com alterações no tom da voz ou alguns toques no
corpo com aplicação maior de força, como apertar o braço ou empurrar.
Mesmo com a exposição de todos os pontos negativos de Edward, que fazem com
que pareça inaceitável a idolatria do relacionamento abusivo que tem com Bella,
percebemos que a falsa imagem que constrói de romântico, apaixonado, compreensivo e
respeitador, torna mais fácil a manipulação psicológica de Bella e de todas as fãs da saga. O
que dizer então, da idolatria do casal de 50 Tons de Cinza?
Assim como a maioria das pessoas que fazem críticas negativas sobre a trama,
também deixo claro aqui, que em momento algum, estou criticando as(os) adeptas(os) de
BDSM, porém a trama faz com que a relação de dominador e submissa ultrapasse os limites
do sexo e se instaure em todos os âmbitos da vida do casal.
701
controlados por ele, e ela deverá, por exemplo, vestir, comer, beber, praticar exercícios,
manter suas práticas de higiene de acordo com o que ele determinar e ainda, ser obrigada a
tomar anticoncepcionais, não se masturbar, tratá-lo como se fosse uma serva, entre tantas
outras aberrações, mediante a castigos, caso não sejam cumpridas. Em síntese, o contrato
representa uma auto declaração de propriedade.
Assim, decorre-se uma trama cheia de agressões, físicas psicológicas, sexuais, onde
a protagonista é tratada com desprezo, machucada, estuprada, tem suas questões
particulares ignoradas. O agressor, consegue fazer a vítima acreditar que é um prazer
satisfazê-lo, além de transferir a culpa de seus próprios atos, para ela, fazendo-a sentir-se
sempre culpada pelos erros dele.
Mais uma vez vemos a ficção entrar em choque com a realidade, nas palavras das
mulheres entrevistadas. “Ele jogava fora as coisas que eu dava pra ele, quando a gente
brigava e fazia eu me sentir culpada”, “ele me traia e fazia eu me sentir culpada”, “vivia
terminando comigo e eu que tinha que me humilhar pra voltar”, “eu falei que estava grávida
ele tocou o foda-se.”
702
Nos relatos das entrevistadas, muito ouvi sobre essa crença na mudança, que às
vezes até chegava a parecer que era real, mas no fim das contas, a única coisa real, foram
graves traumas extremamente difíceis de serem curados e que apesar de já estarem mais
amenos, são marcas que permanecem até hoje.
fato que HQs, assim como Contos de Fadas, são eternizadas no coração de fãs e
tendemos a idolatrar as histórias de ficção que marcam positivamente algum momento de
nossas vidas, especialmente a infância. Entretanto, é necessário que tenhamos a mente
aberta para olharmos com cada vez mais cautela, observarmos e propormos novas analises
sobre os produtos que consumimos. Não podemos deixar que nossas idolatrias sejam
maiores que nossa empatia e, portanto, precisamos nos permitir enxergar em nossas
queridas histórias de infância, aparentemente inofensivas, os constructos de uma sociedade
cadê vez mais machista e misógina,
Não é legal uma mulher que passa anos de sua vida com um homem que chega em
casa alcoolizado, agredindo a tudo e a todas (os), por acreditar que deve manter a imagem
de mulher guerreira e permanecer ao seu lado por amor, confiante de que um dia ele vai
mudar e que ela será sua cura. Mulher não é remédio para curar ninguém, não é bonito nós
termos que ser guerreiras. A sociedade nos impõe esse status que implica em uma carga
muito desgastante e pesada que precisamos carregar, lutando para que cada vez menos
mulheres precisem assumir esse lugar que, portanto, não deve ser romantizado.
Infelizmente, enquanto muitas mulheres seguem nessa labuta constante pela sua
emancipação e conscientização de outras mulheres, tais histórias de ficção caminham na
contramão desse sentido, impulsionado à proliferação cada vez maior de relacionamentos
abusivos, consequência da elevada idolatria e do consumo destas histórias, que implantam
nas mentes o desejo de as verem reproduzidas em suas vidas.
703
uma relação tóxica, até ter coragem o suficiente para deixá-la. Por isso, muitas mulheres
passam a vida toda nesse lugar, sem nunca conseguir se libertar.
E para além disso, acredito que o trabalho mais efetivo para essa mudança de
pensamento romantizado sobre relações abusivas, deva ser feito na infância, fase onde as
crianças ainda estão despidas de preconceito e começando a construir suas noções sobre o
que é certo ou errado.
704
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de Luca, Dana Brunetti, E. L. James. Focus Features, Michel de Luca Productions, Tigger
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A BELA ADORMECIDA (Sleeping Beauty). Direção: Clyde Geronimi, Les Clark, Eric Larson
e Wolfgang Reitherman. Produção: Walt Disney. Walt Disney Animation Studios, 1959. 75
min.
ESQUADRÃO SUICIDA (Suicid Squad). Direção: David Ayer. Produção: Zack Snyder, Deborah Snyder,
Colin Wilson, Geoff Johns, Steven Mnuchin. DC Entertainment, RatPac-Dune Entertainment, Atlas
Entertainment, Warner Bros. Pictures. 2016, 122 min.
NETO, Nikolly dos Santos. Relações abusivas no cinema: uma breve análise da
personagem Harley Quinn. Seja, gênero e sexualidade no audiovisual. Universidade
Estadual de Goiás – UEG, campus Goiânia – Laranjeiras. 22 a 24 de novembro de 2017.
SOUSA, Érica Renata de. Questão de gênero na infância e na escola. - Campinas, São
Paulo: [s, n.], 1999.
THAY. Abuso não é amor: porque a cultura pop deve parar de romantizar relacionamentos
tóxicos. Violes: Grupo de Pesquisa sobre Tráfico de Pessoas, Violência e Exploração Sexual
de Mulheres, Crianças e Adolescentes. Postado em 19 de dezembro de 2016 - disponível
em: http://grupovioles.blogspot.com/2016/12/artigo-abuso-nao-e-amor-porque-cultura.html -
acesso em 08/11/19.
705
O EMPODERAMENTO FEMININO NO PROCESSO DE ROMPIMENTO DO CICLO
DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
https://doi.org/10.29327/527231.5-47
Mariana Ferreira Bezerra (UEPA)
Me.Carla Figueiredo Marinho Saldanha (UFPA/UEPA)
RESUMO
O presente artigo é resultado do recorte estabelecido na pesquisa que vem sendo realizada junto
a uma rede de mulheres vítimas de violência doméstica, no município de Igarapé Açú, localizado
no Região Nordeste, do estado do Pará. O mesmo visa compreender como mulheres que se
encontravam em relacionamentos violentos conseguiram se „desvencilhar‟ de seus agressores,
tendo o empoderamento feminino como ponto de partida. Para isso, além da leitura realizada
que direcionou nosso olhar, foi realizado o mapeamento das interlocutoras, que nos narraram
suas histórias de vida, expandindo assim as possibilidades de análise. Analisar a partir dessa
perspectiva fez-nos entender a importância do empoderamento, enquanto realocação do poder
que visa a igualdade entre os gêneros, que vem causando transformações significativas e reais
na vida das mulheres vítimas de violência.
Abstract: This article is the result of the study established in the research that has been carried
out with a network of women victims of domestic violence, in the municipality of Igarapé-Açu,
located in the Northeast Region of the state of Pará. Found in violent relationships managed to
―break free‖ from their abusers, with female empowerment as their starting point. For this, besides
the reading that directed our eyes, the mapping of the interlocutors, who narrated their life stories
to us, thus expanding the possibilities of analysis. Analyzing from this perspective has made us
understand the importance of empowerment as a reallocation of power aimed at gender equality,
which has been causing significant and real changes in the lives of women
victims of violence.
706
Introdução
A mulher por anos tem sofrido com a cultura machista que a inferioriza e a coloca como
destituídas de poder. Entre os fatores que as levaram a tal situação estão as ideologias
biologizantes, que estabeleciam sua diferença biológica como fator para discriminar e oprimir,
assim como ideologias pautadas na religião, que prezava pela família tradicional ( homem,
mulher e filhos). ―As religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio‖
(BEAUVOIR, 1970, p. 16). A construção do ―eterno feminino‖, foi usada para abafar
manifestações femininas sobre os direitos trabalhistas durante a revolução industrial no século
XIX, e disseminava a figura da mulher ideal, que seria a frágil, sensível, com vocação para os
afazeres do lar e da maternidade. Assim, não teve um fato histórico marcante que definiu a
inferioridade feminina, é uma ideologia construída socialmente por um gênero dominante que
não quer perder seus privilégios, ―[...] a construção social na supremacia masculina exige a
construção social da subordinação feminina‖ (SAFFIOTI, 1987, p.29).
O patriarcado estabelece a sociedade em volta do patriarca, logo, do homem,
determina as relações de poder como unidirecional, na qual a mulher se encontra no
patamar abaixo. Essa cultura machista, incorporada, faz com que muitas mulheres não
questionem o que é imposto, sua submissão é naturalizada, Como se fizesse parte de sua
essência biológica, quando na verdade ―somos seres sociais, afinal de contas, e
internalizamos as ideias através da socialização‖ (ADICHIE, 2014, p.37). Como afirma
Durkheim (2000), esse binarismo estabelecido entre os gêneros foi criado por uma lógica
que está composta dentro da hierarquia social. É uma unidade do conhecimento que se
estende da coletividade ao universo.
Essas classificações opressoras geram uma série de consequências à mulher em
sua vivência. Já que foram criadas para se reprimir, não falam e não exprimem seus desejos
sexuais, são passivas, ―como se a feminilidade se medisse pela arte de „se fazer
pequena‟‖(BOURDIEU, 2002, n.p). Desde a infância somos ensinadas como devemos nos
comportar, agir, porém não de uma forma autônoma, mas sim em função do agente
dominador, ―[...] criamos as meninas de maneira bastante perninciosa, por que as
ensinamos a cuidar do ego frágil do sexo masculino‖ (ADICHIE, 2014, p.33). A virilidade do
homem, se constitui nessa relação, um aspecto do seu poder e deve ser provado perante a
sociedade, é o poder do macho, que não demonstra emoções, que sustenta a família, que é
potente no sexo.
Essa virilidade legitimadora do seu poder, constitui também, segundo Saffioti (1987), na
castração do homem, no qual reprime sua sensibilidade e seus desejos em prol do bom
desempenho do papel de ―macho‖. Uma forma de demonstrar sua ―masculinidade‖ é a prática de
violência doméstica. Pois no casamento ele é o chefe da família. ―Ele é a autoridade moral,
responsável pela respeitabilidade familiar. Sua presença faz da família uma entidade moral
707
positiva, na medida em que ele garante o respeito.‖ (SARTI, 1994, p.78). Logo, muitas
mulheres se submetem por anos a violência de seus companheiros e cônjuges, pois lhe foi
repassado cada papel social estabelecido dentro da união. E como mesmo afirma Louro
(2007), papéis sociais são normas e regras arbitrárias, padrões de comportamento que
enclausuram as identidades dos sujeitos, que não dão conta da complexidade social. A
padronização do comportamento resulta muitas vezes na rotinização da violência sem ação
da vítima para a denúncia, o que prejudica muito o combate ao problema social.
708
se encontra abaixo do homem e mulher brancos e ainda abaixo do homem negro, faz com
que a opressão social a partir do patriarcado seja ainda mais árdua, e a dominação
masculina sobre elas mais violenta.
Segundo Saffiotti (1987), o sistema de dominação está pautado em um sistema único
de poder em que se relacionam Patriarcado-racismo-capitalismo, no qual são indissóciaveis
para compreender torda a opressão sobre o gênero feminino. Ela afirma que a luta de
classes isoladamente não se faz suficiente para combater a violência contra a mulher , pois
até mesmo revolucionários de esquerda são capazes de agredir suas parceiras tão
violentamente quanto conservadores de direita, e ainda sim dissimular perante a sociedade
como um homem desconstruído. O ideal para o dominador é não perder sua posição de
privilégio, de detentor do poder.
Diante disso, pode-se perceber o quanto violência e poder estão intimamente
relacionados. E o empoderamento surge nas discussões feministas no EUA em meados dos
anos 70 com o objetivo de reconduzir os focos de poder, para que funcione em coletividade
como capacitador e não como forma de opressão. Sardenberg (2006) afirma que o termo
dentro do feminismo tem um fim em si próprio, pois significa autonomia, autodeterminação e
libertação opressões de gênero. Porém esse termo tem sido usado atualmente com
significado difuso e contrário à essência feminista.
―Um movimento que antes priorizava a solidariedade social e agora celebra
empreendedores femininos. Uma perspectiva que antes valorizava o „cuidado‟ e a
interdependência e agora encoraja o crescimento individual e meritocracia‖ (FRASER, 2017,
p.2). Ou seja, se tornou um elemento individualizante voltado apenas para o crescimento
econômico. Como exemplo, cita-se os sete princípios criados pela ONU mulheres em 2010
voltados para a inserção da mulher na comunidade empresarial. Conforme Cândido e
Freitas (2016), esses princípios tem como objetivo estabelecer a igualdade de gênero,
aumentar a participação feminina nas atividades sociais e econômicas de maneira
igualitária. Não obstante, para Fraser (2017), essa outra significação do empoderamento
feminino só age a favor do individualismo (neo)liberal e do crescimento do capitalismo.
Pontua a necessidade de retomar o verdadeiro objetivo do empoderamento feminino de
tornar mulheres autônomas, donas de si e ainda de promover a mobilização feminina para
lutarem contra as desigualdades de gênero.
esse conceito que é importante para o estudo da superação da violência contra a
mulher. ―O empoderamento como auto-confiança e auto-estima deve integrar-se em um
sentido de processo com a comunidade, a cooperação e a solidariedade‖ (LEON apud
SARDENBERG, 2006, p.5). É na união entre as oprimidas que se criam forças para
combater um problema social tão complexo e frequente que é a violência doméstica.
709
Caminhos metodológicos
710
uma se define, enquanto a primeira é muito aflorada em emoções, a outra se vê como
resiliente dos traumas vividos.
A coleta das informações, através de anotações escritas e gravações de áudio, foram
realizadas após a autorização verbal prévia das pesquisadas, após a explicação dos
objetivos do estudo e finalidade dos resultados. A ―explicitação dos métodos e
procedimentos utilizados pelo pesquisador, de modo que fique claro „como‟ foram obtidas as
informações‖ é essencial para a ética do estudo. (LUDCKE e ANDRÉ, 1986, p. 52)
711
Morais e Rodrigues (2005) afirmam que nesse primeiro estágio, é uma relação de
confiança, porém os estágios posteriores configuram o rompimento dessa confiança tal como:
primeira agressão e sentimento de culpa; 2) vítima assume o modelo mental do agressor;
3)desenvolvem uma síndrome semelhante a ―síndrome de estocolmo‖, chamado ―síndrome
da mulher espancada‖. Essa síndrome constitui sintomas como dependência, idealização e
defesa do agressor, raiva, desesperança, culpa alcóol e drogas e não denunciam por medo.
eu insistia na relação porque a gente acha que é amor na verdade né, a
gente acha que a gente tem aquela esperança de que vai mudar né „ah!
ele vai mudar „, „Ah! vai ser diferente‟ , „ Ah! porque ele chorou, porque
ele disse que vai mudar" e nada muda. (ÔNIX, 2019)
Além disso, há a crença de que a mulher irá mudar o companheiro, torná-lo uma
pessoa melhor e assim se submete a violências que destroem vários aspectos de sua vida
social gradualmente, inclusive, em casos extremos, à morte.
O sentimento de onipotência experimentado pela maioria das
mulheres transforma-as, não em cúmplices, conduta que exigiria
plena consciência do contexto social, econômico e político que
comporta as relações patriarcais de gênero, mas em colaboradoras,
em inocentes úteis. ( SAFFIOTI, 2002, p.69)
712
diferente da consciência do dominador. Ou seja, falam de categorias sociais em que um
exerce o poder sobre o outro, logo, não consentir, e sim ceder diante da violência e das
pressões sociais.
Aconteceu uma vez de eu estar grávida do H., Eu tava grávida do meu
segundo filho, eu tava com uns seis meses eu acho , então como já falei
eu não aceitava drogas né, então ele tinha sumido o dia todo e eu já
conhecia. Então quando ele chegou em casa, como falei, sempre fui
muito pra frente e então fui tirar satisfação, mas fui tirar satisfação
conversando com ele, em nenhum momento eu agredi ele. Ele tava
bebido e com certeza ele tava drogado, porque ele tava bastante
alterado, e eu tava com seis meses e essa minha gravidez foi um pouco
complicada, eu tive uns problemas de saúde nessa gravidez e aí ele me
agrediu muito dessa vez, que eu fiquei com o joelho muito inchado e a
gente morava numa vila e as pessoas , no caso a dona da vila e o dono
da vila tiveram que entrar em casa, porque eu já tinha caído né e ele
continuava me batendo. (Ônix, 2019)
Como pode-se perceber, outro fator que pesa para que essas mulheres não
abandonem seus maridos é a dependência financeira. Porém, percebe-se também que eles
agem para mantê-las nessa condição, pois não deixam elas trabalharem.
Ele não deixava eu estudar, não pagava curso pra mim. Eu consegui
um emprego, mas quando eu tinha que ficar até mais tarde na loja,
ele não entendia, sentia ciúmes. Fiquei só um mês lá. Uma vez,
nessas festas de fim de ano, fiquei o dia todo em pé atendendo
clientes e quando saí morta de cansada, ele tava na frente da loja
com minha filha pra eu amamentar. (QUARTZO ROSA, 2019)
Muitas mulheres também vivem com o agressor devido aos filhos. Pois cabe a mulher o
papel fundamental de mãe, o julgamento da sociedade da mãe que deixa o marido e ―não pensa
nos filhos‖ pesa quando ela vai fazer uma denúncia, ou, sair de casa. ―Então eu fui
713
muito covarde né? É, pra preferir viver com ele desse jeito, amando ele eu acho né, na minha
cabeça, pensando que pudesse ser amor, melhor do que voltar pra casa da minha mãe, com
filho na barriga e outro já grandinho.‖ (ÔNIX, 2019)
Em muitos casos, a própria família induz a mulher a suportar a violência em prol da
manutenção da moral da família. Como podemos ver na fala da interlocutora, ela tinha medo
dos julgamentos de voltar para a casa da mãe com dois filhos. Além disso, quando o pai faz
seu papel de zelar e cuidar dos filhos (sem ser uma tarefa atribuída só mulher) isso serve de
justificativa para que a mulher suporte a violência sofrida ―Você tem que perdoar ele, porque
pelo menos ele te ajuda com as meninas, faz as coisas dentro de casa e não gasta o dinheiro
dele com prostituta.‖ (QUARTZO ROSA, 2019). Assim, não há um perfil específico do
abusador, pois pode ter uma vida social absolutamente normal e aparentar boa índole, e ser
violento no ambiente doméstico.
Nunca se conseguiu estabelecer o perfil do agressor [...], uma vez
que, geralmente, eles possuem um emprego no qual se relacionam
convenientemente, desempenhando a contento também outros
papéis sociais visíveis. Na esfera privada, todavia, obscurecida pela
invisibilidade, muitos homens comportam-se violentamente, contando
com a mudez da companheira dominada e, se esta denunciá-lo, com
o auxílio de sua libada reputação, se não houver marcas corporais,
finalmente, com a impunidade. (SAFFIOTI, 1999, p.451)
714
se eu tivesse me depilando era pra alguém. Fiz academia uma vez,
mas quando ele viu que eu tava emagrecendo começou a sabotar
minha dieta. Levava lanches pra casa e comia na minha frente
sabendo que eu tava fazendo um esforço enorme pra não comer.
Hoje em dia, eu uso os hidratantes que quero, pratico o esporte que
amo, que é o vôlei. (QUARTZO ROSA, 2019)
Como afirma Bourdieu (2002), a dominação masculina que objetifica a mulher, faz com
que elas se sintam inseguras com o próprio corpo. Destarte, reduz sua auto-estima para
satisfação do ego masculino. O incômodo com a prática de esporte também se dá pelo fato de o
corpo feminino mudar sua significação de corpo apenas para o olhar do outro e passa a atribui-
lhe uma função ativa, este constitui então a sua própria ação diante da sociedade.
A terceira fase é a política, em que reconhece as desigualdades de poder e
possibilita maior mobilização coletiva. Segundo SILVA (2017), A mobilização das mullheres
tem sido importante para a visibilidadde dos crescentes numeros de violência doméstica,
para combater a desigualdade de gênero e para desnaturalizar valores discrinatórios.
A partir do momento que tu vê que tal mulher conseguiu superar isso,
tu se espelha. Se ela conseguiu, eu também posso conseguir.
Depois que a Lei Maria da Penha veio, quantas mulheres já não
deixaram de morrer e também quantas já não morreram. Eu acho
que a gente tem que se unir, pra não deixar que isso aconteça, assim
como aconteceu comigo. ( ÔNIX, 2019)
715
uma rede articulada entre defensoria pública, Instituto Médico Legal, Tribunal de Justiça e
ainda profissionais capacitados em gênero para atender as demandas. Os Centros de
Referências como o CRAS ( Centro de referência em assistência Social ), o CREAS (Centro
de Referência Especializado em Assistência Social) e o CRAM ( Centro de Referência de
Atendimento à Mulher), também são imprescindíveis no atendimento à mulher vítima de
violência, pois ―são espaços de atendimento psicológico, social, educacional, orientação e
encaminhamento jurídico à mulher em situação de violência.‖ ( SILVA e CARRERA, 2017, p.
105). Segundo as autoras acima, a educação também é um meio eficaz de combater a
violência contra a mulher. É importante que docentes da educação básica estejam ciente do
sistema de dominação que incide sobre as mulheres e ensinem seus alunos sobre igualdade
e respeito aos direitos humanos.
Outro ponto importante, é a rede de apoio, que constituem família e amigos que
podem fornecer não só a proteção contra a violência, como também podem dar o apoio
financeiro para que saiam dessa condição. Sem essa rede de apoio, o impacto é a ―
vulnerabilidade frente à violência, já que os sujeitos se mostram isolados e sem apoio
afetivo‖ ( LETTIERE e NAKANO, 2011, p.5).
Considerações finais
Diante do exposto podemos perceber o quanto o empoderamento favorece a
autonomia e impulsiona transformações significativas nos relacionamentos aos quais a
violência se faz frequente. As mulheres não são as culpadas como vários ditados do senso
comum costumam afirmar. São vítimas de um sistema integrado de dominação, em que
pesa sua condição feminina, sua categoria de classe e sua cor de pele, pois, quando
negras, sofrem uma dominação tripla. A mulher não consegue se emancipar sozinha,
precisa-se muito mais do que apenas ―querer‖ sair dessa condição.
O ―querer‖ romper com o ciclo de violência é importante sim, pois demonstra que a
vítima já passou pela primeira fase de se situar e compreender as forças sistêmicas
opressoras. Não obstante, como explanado no trabalho, necessita-se muito mais que isso. O
Estado tem um papel imprescindível nessa luta, pois deve romper com os paradigmas
vigentes que o constituem. A impunidade faz com que muitos casos não cheguem à justiça,
além da burocracia que prejudica o andamento do processo. O aumento de pena e
mudanças legislativas são necessárias, porém a garantia do cumprimento deve ser a
prioridade no enfrentamento à violência doméstica.
A constituição de esteriótipos moralistas sobre as mulheres também fazem com que não
haja a denúncia e ainda podem servir como forma de inverter a situação para culpabilizá-las. Por
isso, a transformação da sociedade é também o outro ponto essencial no processo, pois é
perpetuadora das desigualdades sociais através da tradição, do machismo inculcado.
716
O empoderamento feminino como forma mobilizações políticas, age como colaborador dessa
desconstrução, da conscientização e de fator essencial de luta contra a violência doméstica.
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Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994.
718
Doença Falciforme, Ancestralidade e Aconselhamento Genético: Relações de Gênero
e Direitos Reprodutivos no Estado do Pará, Amazônia.
https://doi.org/10.29327/527231.5-48
Ariana K L S da Silva, ² Roseane B Tavares, ³ Lígia A Filgueiras
Resumo
A Doença Falciforme (DF) é a síndrome genética mais prevalente do mundo. No Brasil, 3.500
crianças nascem por ano com Anemia Falciforme (AF), a forma sintomática da doença e 200 mil
nascem com o Traço Falciforme (TF), assintomáticos. No Pará, 1% da população possui AF e 4,4%,
o TF. Avaliamos sintomas clínicos, ancestralidade e autodeclaração de raça/cor. No Hemocentro
regional do Pará investigamos 60 pessoas com AF, com formulário semiestruturado, a fim de
compreender manifestações clínicas, relações sociorraciais, gênero, renda, direitos reprodutivos,
aconselhamento genético e identidade. É incipiente o aconselhamento genético no Pará e inexiste
um setor específico no Hemocentro. As pessoas relatam ―evitar filhos porque podem nascer
doentes‖. 90% do grupo se autodeclara negro, mas 41% tem aDNA Europeu. As mulheres têm
sintomas mais severos e convivem com renda 50% menor que os homens.
Sickle Cell Disease, Ancestry and Genetic Counseling: Gender Relations and
Reproductive Rights in the State of Pará, Amazonia.
Abstract
Sickle Cell Disease (SCD) is the most prevalent genetic syndrome of the world. In Brazil, 3,500
children are born a year with Sickle Cell Anemia (SCA), the symptomatic way of the disease and
200 thousand are born with the Sickle Cell Trait (SCT), the asymptomatic way. In the State of
Pará, 1% of the population has SCA and 4.4% has SCT. Clinical symptoms, ancestry and
race/color self-declaration were analyzed from 60 people with SCA of the Pará Regional Blood
Center, with semi structures form, in order to understand clinical manifestations, socioracial
relationships, gender, income, reproductive rights, genetical counseling and identity. Genetic
counseling in the State of Pará is incipient and there is no specific sector in this Blood Center.
People report ―avoid having children because they may be born sick‖. 90% of the group self-
declared as black, but 41% have European aDNA. Women have more severe symptoms and live
with income 50% lower than men.
719
Introdução
Sendo uma doença crônica e hereditária, que causa complicações em vários órgãos
e sistemas do corpo, como icterícia, AVC, dores musculares intensas, infecções, febre,
úlceras e necroses ósseas, causando inúmeros momentos de internações hospitalares e
tratamento rotineiro, ela afeta toda a família, pois prejudica o desenvolvimento e a qualidade
de vida das pessoas com AF (Guimarães e Coelho, 2010; ANVISA, 2001). Assim, é
importante que seja feito o diagnóstico precoce da doença, como o Teste do Pezinho (Teste
720
de Guthrie), para que seja tratada e acompanhada adequadamente. Isso pode evitar
complicações e consequentemente reduzir a morbimortalidade do grupo em questão
(ANVISA, 2001).
Segundo Kikuchi (2007), a triagem neonatal no Brasil está dividida em três fases
específicas e, dependendo dos exames que vão sendo incluídos pelo Ministério da Saúde
(MS), podemos classificar as fases da seguinte maneira: ―Fase I – realiza fenilcetonúria e
hipotiroidismo; Fase II – realiza fenilcetonúria, hipotiroidismo e doença falciforme; Fase III –
realiza fenilcetonúria, hipotiroidismo, doença falciforme e fibrose cística‖ (Kikuchi, 2007, p.
334). Atualmente, o Estado do Pará está na Fase II de acesso a triagem neonatal (Naoum e
Bonini-Domingos 2007; Cardoso e Guerreiro 2010; Silva 2015).
721
o que não os priva do direito de se reproduzirem. No entanto, é fundamental que a população
esteja ciente de alguns riscos genéticos, o que pode envolver também a forma de diagnóstico e
tratamento da doença, o sofrimento, não só físico, mas também biopsicossocial de conviver com
AF, a rede de apoio e o acesso a tratamento e acompanhamento de saúde desde o nascimento
até a fase adulta, que nem sempre é regular, com atendimento hematológico centralizado nas
capitais, as dificuldades financeiras de manter o tratamento, além do enfrentamento do racismo,
do racismo institucional, entre outras dificuldades. Nesse processo de aconselhamento existe
também o desafio de fazer pessoas sem acesso a informações em saúde ou educativas a
entenderem sobre herança genética, ancestralidade, autocuidado, entre outras questões ligadas
AF (Guimarães e Coelho, 2010; Pina-Neto, 2008; Guedes e Diniz, 2007; Diniz e Guedes,
2013; Silva e Silva, 2013; Silva et al., 2018).
Para Pina-Neto (2008, p. 24), há ainda ―barreiras educacionais, linguísticas e sociais,
sentimento de culpa, persistência de sentimentos de raiva e revolta contra profissionais,
disfunções maritais, etc.‖. Vale ressaltar que esse tipo de aconselhamento deve se basear
em princípios éticos (Bertollo et al., 2013; Guimarães e Coelho, 2010; Pina-Neto, 2008), ou
seja, deve haver o comprometimento com esses princípios, como por exemplo: autonomia
reprodutiva e pluralismo moral (Diniz e Guedes, 2003).
Assim, a importância do aconselhamento genético é uma questão em debate não
apenas na Amazônia, Região Norte, Estado do Pará, como em todo o Brasil. É necessário
buscar esforços para iniciar tais procedimentos para que os grupos afetados por alterações
genéticas consigam as informações que tem direito (Bonzo, 2013; Silva 2015). Nesse
interim, estabelecemos objetivos com o intuito de tentar responder algumas categorias de
análise bioantropológica sobre genética, ancestralidade, gênero e identidade sociorracial,
como veremos a seguir.
Objetivos
Objetivo Geral
722
Objetivos Específicos
Metodologia
723
usando software STRUCTURE v.2.3.3, assumindo as três populações parentais: Europeu,
Africano e Ameríndio‖ (Silva 2018: 29; Santos et al 2010).
Os dados estatísticos foram obtidos pelo Programa SAS ASSIST Software 9.4
(Statistical Analysis System) a fim de realizar ―o cálculo dos dados, realizando estatística
descritiva, testando a normalidade das variáveis quantitativas com as estatísticas de Durbin-
Watson antes de realizar testes paramétricos, além disso, utilizamos testes não
paramétricos quando os pressupostos de testes paramétricos foram violados‖ (Silva 2018:
31). Tais estatísticas utilizaram as categorias raça/cor, gênero, renda familiar, racismo e
nível de escolaridade do grupo analisado e contribuíram para a realização de novas
análises a partir dos relatos dos participantes da pesquisa, que dialogaram a respeito de
informações clínicas sobre AF, aconselhamento genético e direitos reprodutivos, gerando
resultados importantes do ponto de vista epidemiológico e biocultural, como veremos a
seguir (Silva e Silva 2013; Pie, 2013; Panepinto et al 2009; Felix et al 2010).
Resultados
724
Unidades Básicas de Saúde (UBS’s), Unidades de Pronto Atendimento (UPA’s), hospitais
de urgência e emergência na capital (Belém) e no interior, assim como em atendimentos
clínicos nos setores públicos e privados em geral, diversas informações sobre a AF ser uma
―doença de ancestralidade negra‖, devido a provável origem da doença ser ―africana‖ (Silva
2018; Ramos et al 2016; Pante-de-Souza et al 1998).
Relatos não raros notaram a indicação sobre a necessidade de não ter outros filhos
para que não nascessem com a mesma síndrome, sem considerar os fatores apropriados
de probabilidade genética ou epidemiológica, além de ouvirem que a ocorrência da AF era
devido a algum ―parente negro na família‖, porque nem todos os entrevistados possuíam um
fenótipo ―preto‖ ou ―negro‖, conforme podemos observar nos trechos descritos abaixo:
André - Eu queria terminar [os estudos], mas não pude. Fui impedido
pela doença. Agora tô sem idade já, me preocupo mais com meus filhos.
Às vezes só que eu me estresso. [Se estressa com o que?]. André:
Comigo, com meus filhos. [Quantos filhos tu tens?]. André: Dois: ela e
um. [Eles têm o traço?]. André: Todos dois. Filha do André [que
acompanhou o pai na entrevista]: Eu tenho? André: Tem. Filha do André:
Não sabia dessa! André: Hummm, já te falei. Eu conversei com vocês
quando forem casar tem que vim aqui no [referência em hematologia], tu
e teu namorado, antes de namorar. Assim é teu irmão. [Quantos anos o
irmão dela tem?]. André: 13, ela 11. [Para poder fazer o planejamento
familiar?]. André: É, isso! [Tu tens quantos irmãos?]. André: Eu tenho 5.
Agora eu tenho quatro porque um faleceu, tenho duas irmãs e dois
irmãos. [Algum tem AF?]. André: Nenhum, nem traço, nem nada!
[Fizeste o teste para o Transplante de Medula Óssea?]. André: Tô
fazendo, até falaram, até comentei com a mamãe, eu disse: ―Mãe, eu
sou seu filho mesmo, não fui trocado no hospital? Aí ela disse: ―Por que
rapaz?‖, porque só eu que tenho essa doença, eu sou todo diferente dos
meus irmãos, só eu que sou calvo, só eu que tenho cabelo no peito, sou
totalmente diferente dos meus irmãos, até o papai não tinha certas
coisas, aí fico notando, né? Já pensei: Será que não me trocaram?‖.
[Resposta da mãe]. ―Só se te trocaram, porque eu não sei, até onde eu
sei tu é meu filho‖. [É o mesmo pai e a mesma mãe?]. André: Mesmo
pai, mesma mãe. Nós éramos 9, 11, ela teve 11 filhos, a mamãe. Só
ficaram adultos. Eu fui o último (André, Autônomo, 46 anos, Ilha do
Marajó).
725
Elza - [E sobre a tua genética na família?] ―Não [no especialista]. Não
[em qualquer posto de saúde]. Já perguntaram na... [plano de saúde
privado]. Mãe da Elza: Perguntaram no atendimento clínico
[hematologista], quando descobriram que ela [Elza] tinha anemia
falciforme, a doutora perguntou se na família tinha gente negra,
assim pelo fato de ser clara [não perguntaram sobre a cor da
paciente]. Elza: É... E tem aquelas piadinhas de vez em quando, tipo,
é... Já me chamaram de vampiro, porque toma sangue, confundiram
anemia falciforme com leucemia, me chamaram de amarela, pálida,
mandaram colocar batom porque tava muito pálida. Mãe da Elza:
Também falaram que eu fico inventando nome pra doença, que é
leucemia, fico dizendo que é anemia, as pessoas que não entendem.
Elza: Às vezes também quando, tipo, vai almoçar na casa de uma
amiga, aí tem que tomar remédio, aí confunde com remédio
controlado, tipo, fica perguntando sobre o remédio, se eu tenho que
tomar porque tenho que controlar, essas coisas (Elza, Ensino Médio,
16 anos, Marabá).
Outro item importante em relação ao gênero, é que a renda familiar mensal é 50%
menor entre as mulheres quando equiparadas ao salário mensal dos homens, o que
também pode contribuir para a situação de maior vulnerabilidade social para o grupo
feminino, fator fundamental que deve influenciar no agravo da AF entre elas (Silva et al
2018; Figueiró e Ribeiro 2017; Amaral 2015).
726
30,2% da amostra e aDNA Ameríndio, com 28,8%. Todavia, 91% dos/a entrevistados/as se
autodeclaram negros ou pardos. O aDNA (Autosomal DNA) é o resultado genético da soma
de genes herdados tanto do pai quanto da mãe e é largamente utilizado para estimar o
perfil populacional em diversas regiões do mundo, especialmente em países com alto índice
de flutuação genética, como é o caso do Brasil (Silva 2015; Santos et al 2010; Cardoso et al
2010).
Conclusões
Quando se trata de aconselhamento genético, deve-se ter em mente que: a) este será
um momento em que, durante as consultas hematológicas, será transmitida a um
paciente/pessoa com AF que há o risco provável de ocorrer uma doença genética a ela/e e/ou a
sua família; b) que a/o mesma/a precisa compreender o diagnóstico, a doença em si, as
possíveis condutas, quais as consequências para algum membro da família; c) este é o
momento de discussão dos métodos mais adequados e alternativas de tratamento disponíveis
para o paciente, levando em consideração os riscos, objetivos familiares, situação psicológica,
padrões religiosos e éticos, com respeito e apoio irrestrito em suas decisões.
727
Tendo como base todas essas informações, pode-se avaliar a situação reprodutiva
do paciente/pessoa com AF para que com isso, o paciente/casal e sua família possam
entender como a história genética de sua condição pode influenciar as próximas gerações,
ou seja, haverá esclarecimentos sobre a sua genômica de modo amplo, visando o
tratamento, as consequências psicológicas, socioeconômicas e a prevenção de doenças
genéticas e, o mais importante de tudo: atender a livre escolha das mulheres com AF ou TF
que queiram levar adiante a gravidez, garantindo o seu direito reprodutivo e amplo
acompanhamento de saúde para que os possíveis riscos sejam dirimidos.
Não existe uma definição em relação a quem tem o dever ético de aconselhar
geneticamente uma pessoa com uma condição genética peculiar, mas é de comum acordo
que haja uma equipe multidisciplinar, com profissionais habilitados, ou através de
programas de orientações tanto genéticas quanto sociais e psicológicas, a fim de apresentar
às pessoas com AF todas as informações em saúde necessárias sobre a sua condição
genética, garantindo um aconselhamento humanizado e institucionalizado de fato,
conformando-se em um direito humano e de plena cidadania.
728
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731
A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA
AS MULHERES NO PARÁ (2015-2018)
https://doi.org/10.29327/527231.5-49 1 2
Carla Ramirez e Raquel Serruya Elmescany
Resumo
A Lei Maria da Penha institui a obrigatoriedade dos Estados em implementar políticas
públicas voltadas a combater à violência de gênero, como a criação de serviços
especializados. No entanto, observa-se desafios na implementação destes serviços, como
restrições orçamentárias e descontinuidade das políticas, em especial na região Amazônica.
O objetivo do artigo é analisar o processo de implementação das políticas públicas de
gênero no Estado do Pará, com uma análise a partir dos recursos orçamentários alocados
pelo governo estadual nos últimos 4 anos, por intermédio do programa Pro Paz Mulher.
Trata-se de pesquisa de caráter descritivo e exploratório, com base em dados secundários e
bibliográficos. Os resultados mostram que apesar dos avanços, nota-se falta de
integralidade na prestação dos serviços, insuficiência de dados disponíveis e ineficiência nos
serviços prestados à mulher.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha, Políticas Públicas, Violência contra as Mulheres
Abstract
The Maria da Penha Law establishes to the States the obligation to implement public policies
aimed at combating gender-based violence, such as the creation of specialized services.
However, there are challenges in implementing these services, such as budget constraints
and policy discontinuity, especially in the Amazon region. The objective of the article is to
analyze the process of implementation of gender public policies in Pará, with an analysis
based on the budget resources allocated by the state government over the last 4 years,
through the Pro Paz Mulher program. This is a descriptive and exploratory research, based
on secondary and bibliographic data. The results show that despite advances, there is a lack
of integrality in the provision of services, insufficient data available and inefficiency in
services provided to women.
Key-words: Maria da Penha Law, Public Policies, Violence Against Women
732
1 INTRODUÇÃO
3 Fonte: Pro Paz Mulher – atendimento humanizado à mulher em situação de violência doméstica,
familiar e sexual no Pará. Disponível em: http://www.propaz.pa.gov.br/pt-br/content/pro-paz-mulher-
atendimento-humanizado-%C3%A0-mulher-em -situa%C3%A7%C3%A3o-de-viol%C3%AAncia-
dom%C3%A9stica-familiar-e [Acesso em 23 de abril de 2019]
733
bibliográfica e documental baseada em materiais (artigos científicos, dissertações e teses de
doutoramento) já publicados sobre tema da implementação de políticas públicas, violência
contra a mulher e violência de gênero. Também se baseia em documentos oficiais como
Diários Oficiais, Relatórios Oficiais, consultas em sistemas governamentais do Governo do
Estado do Pará afim de coletar indicadores relativos ao Programa Pro Paz Mulher,
executado pela Fundação Pro Paz.
Desta maneira, o presente trabalho organiza-se nas seguintes seções: esta
introdução; uma breve explanação sobre a Lei Maria da Penha e sua importância como
política pública; detalhamento do Programa Pro Paz Mulher, realizado em Belém; a análise
dos indicadores Pro Paz com a política de combate à violência doméstica; as considerações
finais sobre o tema; e as referências utilizadas no estudo.
734
implementação da Lei Maria da Penha (PASINATO, 2016). Dentre as principais funções da
SPM, destaca-se a formulação da Política de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres,
implantação das Normas Técnicas e Diretrizes de Uniformização dos serviços oferecidos
pela Rede de Atendimento e a apresentação orçamentária de atividades de enfrentamento à
6
violência contra as mulheres .
Após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o vice presidente Michel Temer
7
implementou a Reforma Ministerial que extingue os ministérios da Secretaria de Políticas
para as Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, vinculando-os ao Ministério
da Justiça e Cidadania. Em junho de 2018, uma nova mudança institucional com a criação
do Ministério dos Direitos Humanos com leque amplo de áreas de atuação como: igualdade
racial, pessoa idosa, crianças e adolescentes, pessoa com deficiência, políticas para
Mulheres, LGBT e educação em direitos humanos.
Com a vitória eleitoral de Jair Messias Bolsonaro em 2018, por meio da Medida
8
Provisória nº 87 , o governo federal realizou mudanças significativas na estruturação dos
Ministérios, com a extinção de pastas como do Esporte, Cultura, Planejamento, Fazenda,
Indústria e Comércio, Trabalho e Segurança Pública e a criação do Ministério da Economia
e da Cidadania. No que tange as políticas das mulheres, a pasta do Ministério de Direitos
Humanos muda para Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos abrangendo a
Secretaria de Direitos Humanos (SDH), Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM),
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e A Secretaria
Nacional da Juventude (SNP).
importante salientar que a perda de status ministerial da SPM nos últimos quatro
anos acarretou do ponto de vista orçamentário, em cortes nas políticas públicas de
promoção da autonomia e enfrentamento à violência do Governo Federal. De acordo com os
9
dados disponíveis no Portal SIGA BRAIL apontam que em 2015, foram destinados R$
127,1 milhões de reais reservados do Orçamento para a SPM enquanto que em 2018, o
valor caiu 42,9 milhões (valores corrigidos pelo IPCA).
735
3 O PROGRAMA PRO PAZ MULHER NO PARÁ
Nesse sentido, o Pro Paz Mulher (PPM) visa integrar os serviços especializados como
assistência social, psicologia, policial, pericial e judicial em um mesmo espaço, oferecendo
atendimento humanizado e integral às usuárias. Assemelha-se parcialmente com a metodologia
de atendimento oferecida pela Casa da Mulher Brasileira (CMB), presente em 5 Estados (Mato
11
Grosso do Sul, Paraná, Ceará, Maranhão e Distrito Federal) .
736
Especializada como é o caso do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) ou
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) mais próximo da
residência da mulher em situação de violência.
Posteriormente, o atendimento na Delegacia Especializada no Atendimento à
Mulher (DEAM) consiste no registro do boletim de ocorrência, instauração do inquérito
policial, encaminhamento do processo à justiça, solicitação de exames periciais e expedição
de medidas protetivas de urgência ao juiz no prazo máximo de 48 horas. No setor pericial
são realizados os exames de lesões e a coleta de material biológico para o encaminhamento
para análise no laboratório. No setor de psicologia, são realizados os acompanhamentos
das usuárias, podendo ter a emissão do laudo psicológico e tanto o perito quanto o
psicólogo podem participar de audiência quando convocados.
Fonte: Elaboração própria a partir do Relatório cedido pela Fundação Pro Paz (2018)
737
13
ao público das unidades do programa .
Parte das observações sobre o Programa Pro Paz Mulher provém da participação da autora como
bolsista voluntária no projeto de pesquisa ―Efetividade e superação dos entraves dos Serviços de
Atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar do Estado do Pará 2007-2014‖
(Chamada Universal MCTI/CNPq nº1 /2016) escrito, apresentado e coordenado pela Doutora Maria
Luzia Miranda Álvares, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Eneida de Moraes (GEPEM),
da Universidade Federal do Pará.
Para os fins desse artigo, não se consideraram as despesas realizadas pelos demais órgãos executores,
que realizaram dispêndios de 2013 a 2015 com o programa, fazendo-se a opção por um recorte apenas da
Fundação Pro Paz.
738
Gráfico 1 – Despesas da Fundação Pro Paz, por Programa Orçamentário
Isso significa que pouco mais da metade das despesas da Fundação se destinam à
atividade fim (58,01%), enquanto que o restante dos gastos se dá com a manutenção da
gestão (41,18%) e outros programas de apoio ao funcionamento da fundação (0,81%).
739
possível perceber que não há no planejamento orçamentário uma ação detalhada
para registro das despesas específicas com o combate à violência contra a mulher, sendo
os registros feitos na ação ―Pro-Paz Integrado‖, que engloba despesas tanto com o
atendimento às mulheres, como de crianças e adolescentes em situação de violência – e
que registra R$4,5 milhões de despesas no período.
Considerando que a forma como o orçamento foi constituído impõe esta limitação
na análise, optou-se por avaliar os indicadores do Pro Paz Integrado, conforme a
metodologia sugerida por JANNUZZI (2002, 2004 e 2007), avaliando os indicadores de
15
insumo (financeiros), de processo e de resultado .
O Pro Paz Integrado teve dispêndios na ordem de R$4,5 milhões de 2015 a 2018,
representando 13,21% do total das despesas com o programa, e gastos para a implantação
dos espaços na quantia de R$671,9 mil, com obras, instalações e outras despesas. O
detalhamento anual da execução financeira desta ação está na Tabela 2.
Os indicadores podem ser classificados de acordo com a natureza do que se indica: se recurso, classifica-se
como indicador-insumo; se processo, como indicador-processo; se realidade empírica, como indicador-produto,
conforme Jannuzzi (2002). Os indicadores-insumo (input indicator) correspondem às medidas associadas à
alocação de recursos financeiros ou de equipamentos, para a consecução de um programa. Já os indicadores-
processo (throughput indicator) são indicadores que traduzem o esforço operacional de alocação dos insumos.
Por sua vez, os indicadores-produto (output indicator), ou de resultado, referem-se à realidade empírica, sendo
medidas representativas dos avanços ou retrocessos das políticas formuladas.
740
forma significativa, os investimentos: de R$462,8 mil gastos em 2016, a Fundação passou a
investir R$948,2 mil em 2017, praticamente dobrando o valor, e mais ainda em 2018,
quando gastou R$3,1 milhão com a ação.
Apesar da limitação, a execução física indica que, apesar dos gastos dispendidos
pela Fundação, a ação tem alcançado cada vez menos resultados. Em 2015 foi estipulada
741
uma meta de atendimento de 48 mil pessoas, tendo sido atendidas 28 mil, 60% do previsto.
Em 2016, foram atendidas 27 mil pessoas pelo PROPAZ, a título desta ação de governo –
que conseguiu superar a meta prevista, cumprindo 156% do que fora planejado no
orçamento. Em 2017, por sua vez, há uma brusca redução do quantitativo de atendimentos,
alcançando 17 mil pessoas, cumprindo 82% daquilo que foi estabelecido inicialmente. No
entanto, tal percentual de execução física é razoavelmente compatível com a execução
financeira deste ano, que somou 86% do planejado. Já em 2018 verifica-se que foram
atendidas 12 mil pessoas, correspondendo a apenas 58% do que foi planejado inicialmente
– sendo que 100% do orçamento previsto no ano foi gasto, e que no ano de
2018 representou o maior investimento do Governo nesta ação até então.
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados coletados no SIAFEM 2015-2018 (SIAFEM,
s.d) e Relatórios de Avaliação de Programas 2015-2018 (SEPLAN, 2016, 2017, 2018, 2019).
Isso explicita que, apesar da Fundação Propaz estar investindo cada vez mais
recursos na ação de atendimento integrado às crianças, adolescentes e mulheres em
situação de violência, menos pessoas estão sendo atendidas pela ação a cada ano.
742
estabelecido nenhum parâmetro deste tipo no Plano Plurianual 2012-2015. Já em 2016, o
Plano Plurianual estabeleceu como indicador de resultado a Taxa de Violência contra a
mulher a cada 100 mil habitantes, estipulando uma meta a ser alcançada em 2019,
segregada por regiões geográficas do Estado. No entanto, como a metodologia de
mensuração estipulada pela SEPLAN estabelece a mensuração apenas ao final do período,
não se acompanhou a evolução indicador a ano a ano, sendo divulgado como resultado da
política pública desempenhada apenas em 2020, o que limita o acompanhamento e controle
social da ação.
Taxa de homicídios de
mulheres por 100 mil
Ano
habitantes no Pará
2015 6,4
2016 7,2
2017 7,5
Fonte: Atlas da Violência 2019 (IPEA, 2019).
16
De acordo com o Atlas da Violência (2019), há indícios significativos baseado na literatura
internacional que uma significativa parcela das mortes violentas de mulheres ocorre dentro das
residências e são praticadas por conhecidos das vítimas.
743
Maria da Penha como a Lesão Corporal, Ameaça e o Estupro, o que fragmenta a
compreensão do número total de mulheres atingidas pela violência doméstica e familiar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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doméstica e familiar. Brasília, DF. 2006 Disponível em:
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746
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<http://www.who.int/iris/handle/10665/85239>
747
AS PRINCIPAIS DEMANDAS DE CUIDADO NA ASSITÊNCIA A SAÚDE DA
POPULAÇÃO LGBTI+
http://lattes.cnpq.br/5655764129270339
Ana Lídia Nauar Pantoja - Universidade do
Estado do Pará -
http://lattes.cnpq.br/3597087400356373
http://lattes.cnpq.br/7462867565430728
https://doi.org/10.29327/527231.5-50
RESUMO
INTRODUÇÃO: Tem-se que a sexualidade humana é a combinação de três principais
fatores: biológico, psicológico e social. Composto por três elementos, sexo biológico,
orientação sexual e identidade de gênero. Portanto, entende-se que a cultura está
relacionada diretamente a ideologias arcaicas e conservadoras, a qual possui influência
direta na assistência que será ofertada a esse grupo, além de se destacar como um dos
principais fatores que interferem na saúde do grupo LGBTI+. OBJETIVOS: Identificar as
principais demandas de cuidados em saúde de um grupo LGBTI+ em Belém-PA e região
metropolitana. METODOLOGIA: Trata-se de estudo de natureza descritiva, com abordagem
qualitativa, de objetivo exploratório, utilizando a pesquisa etnográfica. A pesquisa contará
com participantes de todos os gêneros e sexualidades que se identifiquem e se enquadrem
pertencentes ao grupo LGBTI+ e residentes do município de Belém-PA e região
metropolitana. RESULTADOS: Tratando-se de uma pesquisa aprovada no Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade do Estado do Pará (UEPA),
Edital N° 013/2019, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) que ainda está em tramitação no Comitê de Ética e Pesquisa na
instituição em que ocorrerá a coleta de dados, ou seja, ainda não há resultados parciais ou
finais significativos. Entretanto, busca-se responder a seguinte questão: Quais as principais
demandas de cuidado que um grupo LGBTI+ pertencente ao município de Belém-Pa e
região metropolitana?
PALAVRAS-CHAVES: Minorias Sexuais e de Gênero, Cuidados de Enfermagem, Equidade
em Saúde e Determinantes Sociais em Saúde.
748
ABSTRACT
INTRODUCTION: Human sexuality is a combination of three main factors: biological,
psychological and social. Consisting of three elements, biological sex, sexual orientation and
gender identity. Therefore, it is understood that culture is directly enabled by archaic and
conservative ideologies, which has a direct influence on the assistance that will be offered to
this group, besides highlighting as one of the main factors that interfere in the health of the
LGBTI + group. OBJECTIVES: To identify as the main health care demands of an LGBTI +
group in Belém-PA and metropolitan region. METHODOLOGY: This is a descriptive study
with a qualitative approach, exploratory objective, using an ethnographic research. A survey
contains participants from all genders who identify and fit into the LGBTI + group members
and residents of the municipality of Belém-PA and metropolitan region. RESULTS: This is a
recommended research in the Institutional Program of Scientific Initiation Scholarships of the
University of the State of Pará (UEPA), Announcement 013/2019, funded by the National
Council of Scientific and Technological Development (CNPq) that is still in the Ethics and
Research Committee in the institution where data collection occurs, ie, there are no partial or
final results. However, ask yourself the following question: What are the main care demands
that an LGBTI + group belongs to the municipality of Belém-Pa and the metropolitan region?
KEYWORDS: Sexual and Gender Minorities, Nursing Care, Health Equity and Social
Determinants in Health.
749
INTRODUÇÃO
750
momento em que se realiza a ultrassonografia na gravidez, padronizando o ―bebê‖ em
menino ou menina e agregando cores e brinquedos específicos para cada um,
demonstrando de maneira ímpar a construção social de gênero (BRASIL, 2012).
Por conseguinte, têm-se que a diversidade sexual é a maneira que cada indivíduo
pode expressar e vivenciar a sua sexualidade, podendo ser composta por um amplo
espectro que inclui homossexuais, bissexuais, panssexuais, assexuais e heterossexuais.
Referindo-se à conceituação de homossexualidade, sabe-se que esta é relacionada as
pessoas que se relacionam sexualmente, emocionalmente ou afetivamente com pessoas do
mesmo gênero e que pode ser dividido em pessoas denominadas de gays e lésbicas, os
quais são homens que relacionam-se com homens e mulheres que relacionam-se com
mulheres, respectivamente. Sendo o contrário das pessoas heterossexuais, as quais se
relacionam com pessoas do gênero oposto. Já a bissexualidade é compreendida por
indivíduos que se relacionam com dois gêneros, a assexualidade é a ausência de atração
por qualquer tipo de gênero e a panssexualidade é a atração por mais de dois gêneros
(BEZERRA; SOUSA; MAIA et al., 2013).
No que se refere a identidade de gênero, deve-se analisar que esta é a essência de
cada ser, no que confere ao indivíduo o seu reconhecimento quanto ao seu corpo e suas
expressões de gênero, que podem ser tanto as suas vestimentas, quanto ao seu
comportamento. É notório identificar que a relação entre identidade de gênero que é
constituída por meio do desenvolvimento humano, considerando seus rituais, personalidade
e gestos e o sexo biológico, já que este se constitui como uma forma de padronização e
repressão do ser humano, considerando o conteúdo cultural que influencia a sociedade.
Desta forma, deve-se entender que a identidade de gênero vai muito além do que permeia o
sexo biológico em si (ARÁN; JÚNIOR, 2007; BRASIL, 2012).
Ressaltando a importância da distinção entre gênero e sexualidade, os quais são
definidos unicamente por cada indivíduo a sua autodeclaração, cabendo a sociedade o
respeito e não segregação. Como por exemplo, uma pessoa que se identifica como mulher
transsexual (referindo-se ao gênero), mas identifica-se, quanto a sua sexualidade, como
bissexual.
Em harmonia com Brasil (2012), a identidade de gênero pode ser diversificada,
como cisgêneras que são os indivíduos que se identificam com o seu sexo biológico,
transgêneras aquelas que possuem uma identidade que difere do seu sexo biológico e
realizam a escolha de transicionar para o gênero que se identifica ou não, não-binárias são
as pessoas que não se identificam com os dois gêneros binários (homem ou mulher),
transexuais são pessoas que não se identificam com o seu sexo biológico e possuem o
desejo de realizar além da hormonioterapia a cirurgia de readequação ou resignação de
sexo, travestis são pessoas que possuem seus papéis e expressões sociais de gênero
751
femininas, e sentem-se insultadas quando são tratadas no masculino, como por exemplo, "o
travesti", neste caso, deve-se usar o pronome feminino como "a travesti", por fim,
crossdressers que são pessoas que vivenciam diferentes papéis e expressões de gênero
diferentes, através do uso de adereços e vestimentas diferentes das atribuídas ao seu
gênero e quase sempre não realizam modificações corporais.
Tem-se que quatro principais fatores influenciam diretamente para a assiduidade
deste grupo nos serviços de saúde, tais como: a somatização dos preconceitos, estigmas
impostos ao grupo LGBTI+, barreiras discriminatórias e a falta de acolhimento nos serviços
de saúde. Todos esses fatores contribuem para que o mesmo procure por vias alternativas
na clandestinidade, o que aumenta consideravelmente as vulnerabilidades existentes para
esse grupo (MERHY, 1997).
Enfim, propõe alcançar a resposta da seguinte questão: Quais as principais
demandas de cuidado que um grupo LGBTI+ pertencente ao município de Belém-Pa e
região metropolitana possui? Qual a relação entre os determinantes sociais e culturais e o
acesso e/ou permanência de um grupo LGBTI+ no serviço de saúde?
OBJETIVOS
ESPECÍFICOS:
METODOLOGIA
752
região metropolitana de Belém-PA conta com os municípios de Ananindeua, Benevides,
Castanhal, Marituba, Santa Bárbara e Santa Izabel.
Os participantes que serão escolhidos deverão se enquadrar no critério de
pertencer ao grupo LGBTI+ sem distinguir por orientação sexual ou gênero, residentes do
município de Belém do Pará e/ou região metropolitana, acima de 18 anos e que se sentirem
confortáveis para a participação na pesquisa mediante a assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aqueles que não se enquadrarem no grupo
LGBTI+ ou que não estejam presentes por quaisquer motivos no dia da entrevista e que não
haja possibilidade de remarcação não entrarão como participantes e utilizando-se como
instrumento de coleta de dados um roteiro de entrevistas semiestruturada e que será
gravado por um smarthphone Lenovo C2.
Possuindo como amostra inicial um coletivo de militância LGBTI+ militância situado
em Belém-PA com sede na Universidade do Estado do Pará conhecido como ―Coletivo
Todas as Cores‖ que conta com trinta e três (33) membros; dentre esses membros, 17 são
bissexuais, 3 são transgêneros, 3 panssexuais, 10 são gays e 3 são lésbicas, a partir disso,
esse grupo irá ajudar a convidar outros indivíduos que se enquadrem nos critérios de
inclusão da pesquisa, dando início a captação de participantes pela amostragem por bola de
neve.
A amostra desse estudo será classificada como ―bola de neve‖, em que para Vinuto
(2016) esse tipo de amostra é classificado como não probabilístico e se utiliza de cadeia de
referência para finalizar a amostra. Na amostragem por bola de neve, os pesquisadores
preparam convites formais em cartilhas ou nas redes sociais e convidarão participantes-
chaves que sabidamente são pertencentes do grupo que será estudo.
A partir do convite e coleta dos dados dos participantes-chaves, esses irão indicar
pessoas com características que se enquadrem nos critérios de inclusão da pesquisa e,
assim, sucessivamente. A amostragem por bola de neve serve para atingir o maior número
de participantes para compor uma amostra fidedigna e é indicada para trabalhar com grupos
de estudo de difícil alcance, ou que não possuem um local fixo de análise ou que estejam
estigmatizados/excluídos da sociedade.
Por fim, pretende-se utilizar para a análise do conteúdo que é proposta por Bardin,
a qual consiste em três fases fundamentais, que são: pré-análise, exploração do material e
tratamento dos resultados (BARDIN, 2011).
RESULTADOS
Por se tratar de uma pesquisa que ainda está em período de submissão no Comitê
de Ética e Pesquisa na instituição que será realizada a pesquisa e foi aprovada no
753
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade do Estado do Pará
(UEPA), Edital N° 013/2019, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), ainda não possui resultados parciais ou finais.
Não obstante, este estudo pretende alcançar o público alvo de no máximo 70
participantes, partindo do grupo focal e a partir dele os demais participantes que se
interessarem pela pesquisa.
Sendo assim, espera-se encontrar os resultados que são frequentes nas literaturas
vigentes sobre o tema, como por exemplo, o grupo LGBTI+, o qual é denominado
socialmente por minorias sexuais, compreende em 3% a 12% da força de trabalho nos
Estados Unidos da América (EUA), deixando evidente como maior força de trabalho as
pessoas autodeclaradas heterossexuais, as quais fomentam e carregam consigo as cargas
culturais que foram construídas socialmente pela aversão e discriminação as pessoas que
não se encaixam no padrão heteronormativo. Justificando, assim, o fato de 47% das
pessoas que se definem como LGBTI+ já sofreram com a discriminação em seu local de
trabalho (MINER; COSTA, 2017).
Torna-se necessário a discussão de que no contexto de pesquisas com este grupo,
são de pouca frequência as pesquisas que não tenham relação com HIV/AIDS e a violência,
a qual é relacionada com o tema HIV/AIDS na maioria das vezes, podendo ser individual ou
coletiva, sendo relacionada também com outras patologias ou ao uso de substâncias
psicoativas. Sendo assim, sendo de suma importância enriquecer a literatura com outros
temas que permeiam a rotina e a vida dessa população, podendo compreender de maneira
ampla as suas reais necessidades e buscando o avanço em diversos setores da sociedade,
como saúde, educação, jurídica e etc (GOMES et al., 2018).
Soma-se também ao grupo de minorias sexuais e de gênero a Teoria do Estresse
Minoritário, proposta por Goldbach et al. (2014), o qual aponta que todos os indivíduos que
desviam do padrão aceito pela sociedade sofrem cargas diárias de discriminação e
preconceito, devido a Tríade de Estigma, que influencia para situações de maiores
estresses, o que contribui para a somatização de possíveis patologias que podem alterar a
saúde mental destes indivíduos.
Contudo, como último achado na literatura, deve-se destacar que a falha existente
na formação de profissionais de saúde influenciam diretamente para a marginalização e
afastamento do grupo LGBTI+ dos serviços de saúde, já que para Popadiuki, Oliveira e
Signorelli (2017), este grupo sofrem violências sexuais e psicológicas que os profissionais
de saúde não sabem notificar, travestis e transexuais apresentam uma incidência relevante
de vômitos, náuseas, flebites, infartos e acidentes vasculares encefálicos por conta a
prescrição ou orientações incorretas das medicações, além de rotineiramente serem
desrespeitadas em público pela não aceitação de seu nome nos serviços, não há o incentivo
754
mulheres lésbicas para a realização do exame preventivo do câncer de colo de útero
(PCCU) e a prevenção a Infecções Sexualmente Transmissíveis são as dominantes
recomendações para homossexuais, destacando que este grupo não necessita somente
dessas orientações, porém as demais são consideradas como ―irrelevantes‖ no que se diz
respeito a promoção à saúde.
de total importância considerar que estes resultados podem ser
diferentes baseados nos resultados que serão obtidos com a pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
755
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novembro de 2019.
756
“UMA APARÊNCIA SÃ E FLORESCENTE”: REPRESENTAÇÕES DA SAÚDE
1
FEMININA NOS JORNAIS PARAENSES (1910 – 1920)
https://doi.org/10.29327/527231.5-51
Resumo
No início do século XX, os jornais publicavam diariamente uma série de anúncios que
propagavam o ideal de corpo feminino saudável e belo. Apontavam o sexo como dado
biológico determinante na condição de doenças nas mulheres, isto é, mulheres estavam
condicionadas a loucura, histeria e ataques nervosos. Assim, era necessário controlar o
corpo das mulheres para que esses ―males‖ não as impedissem de cumprir os papéis
estabelecidos socialmente. Partindo disso, o objetivo principal do trabalho é investigar os
discursos das propagandas referentes ao corpo feminino em jornais paraenses entre 1910 a
1920 e, de modo específico, identificar, as propagandas voltadas para o público feminino,
bem como entender as representações femininas veiculadas nas propagandas pesquisadas.
A documentação usada foram principalmente as propagandas encontradas nos jornais
Estado do Pará e Folha do Norte no período entre 1910 a 1920.
Palavras – chave: Propagandas; Doenças; Remédio; Pará; Século XX.
Abstract
757
INTRODUÇÃO
No início do século XX, os jornais publicavam diariamente uma série de anúncios que
propagavam o ideal do corpo feminino saudável e belo. Apontavam o sexo como dado
biológico determinante na condição de doenças nas mulheres, isto é, mulheres estavam
condicionadas a loucura, histeria e ataques nervosos. Além disso, o cansaço, as dores e as
indisposição que as assolavam não seriam resultados dos ―excessos de trabalhos‖, e sim
das ―perturbações genitais‖ que a chegada da ―edade crítica‖ manifestava, como fica
evidente no anúncio acima de um medicamento bastante popular chamado ―A Saúde da
Mulher‖ publicado em 1914. Diante disso, era necessário controlar o corpo e a natureza das
mulheres para que esses ―males‖ não as impedissem de cumprir os seus papéis
estabelecidos socialmente, como a realização dos ―labores domésticos‖ e o cuidado com a
família, vistas como base do projeto normalizado proposto pelo Estado.
Nesse contexto, parte da economia de Belém, bem como de toda a região amazônica,
girava em torno da economia extrativista da borracha que já começava a dar sinais de crise
em virtude da concorrência asiática (SANTOS, 1980) De fato, desde meados do século XIX,
a borracha se constituiu no principal produto voltado para o comércio internacional,
permitindo, desta forma, o maior surto econômico já verificado na região. O fruto dessa
economia foi investido no setor público, como calçamentos das ruas, construções de
palacetes residenciais, praças e outros, que visava reorganizar e embelezar o espaço
urbano da capital paraense. (SARGES, 2000, p. 46).
758
saúde familiar, buscavam também alterar os hábitos e os comportamentos dos indivíduos,
utilizando – se de um discurso higienista e moralizador que estabelecia padrões normativos e
práticas que penetravam o espaço público, bem como do privado, sendo cidades e as pessoas
intendidas como um corpo doente que precisava ser curado. (CANCELA, 1997, pp. 35)
Para tanto, vários profissionais estavam inseridos e fizeram parte desse projeto
modernizador, entre eles os médicos e farmacêuticos. Era dever destes e da família
assegurar a saúde feminina, considerada de grande importância para a sociedade. Ainda
que as mulheres não compartilhassem a mesma posição social dos homens, como mãe e
esposa, eram responsáveis, além do cuidados do lar, pela educação dos filhos e pelo bem-
estar dos seus maridos. Por esse motivo, a discussão acerca da saúde das mulheres
acontecia, nesse momento, em vários lugares, desde a revistas e jornais até as escolas e
faculdades de medicina. (VACARO, 2011)
A historiadora Tânia de Luca alerta que ao se trabalhar com jornais não devemos
somente verificar o que escreveu-se, mas também como se escreveu, identificando-se o
público a que se era destinado, o motivo, os proprietários, o período e outras muitas
especificidades. (LUCA, 2015, pp. 142).
Assim, que diz respeito ao uso de jornais observa-se que a imprensa teve um papel
importante na difusão do discurso higienista da época. Os periódicos eram responsáveis pela
divulgação de várias propagandas que disseminavam o ideal do corpo belo e saudável e
2 Jornal diário e independente, fundado em 1911 pelo político Justo Chermont. Inicialmente, combateu
a gestão do intendente Antônio Lemos e apoiava o adversário politico Lauro Sodré. Saiu de
circulação em 1980. (PARAOARAS, Jornais, pág. 241)
Jornal de circulação diária, independente, noticioso, político e literário. Foi criado por Enéas Martins,
Cipriano Santos e outros com p objetivo de lutar pelo desenvolvimento político e social da região
combatendo a política de Antônio Lemos e dependendo o Partido Republicano Federal cujo um dos
chefes era Lauro Sodré. (PARAOARAS, Jornais, pág. 154)
759
reforçavam, dessa forma, os papéis sociais do masculino, representando o homem como forte,
trabalhador e provedor da família, e do feminino, como esposa, mãe e cuidadora do lar.
Desse modo, tratar as propagandas encontradas nesses jornais como fonte histórica
possibilitou ―um trabalho que não esteja somente no campo do verbal ou do escrito. Mas de
imagens que representam também a possibilidade de leitura da vida social‖. (SANTOS, 2006, p.
2). Nesse sentido, Cunha e Nascimento (2008) enfatizam que as propagandas, em grande parte
das vezes, são algo racional, e não objetivam apenas vender o produto, mas também modificar
comportamentos e criar novos conceitos por meio de ―simbologias que se envolvem de forma
íntima com o imaginário do indivíduo.‖ (CUNHA; NASCIMENTO, 2008, p.2)
Machado (2007), acerca destes documentos, nos lembra que nas últimas décadas do
século XX, alguns historiadores utilizavam a publicidade buscando compreender na
sociedade que a produziu, entretanto, é fundamental compreender que a sua influência não
implica em reconhece – las como um reflexo verdadeiro da sociedade. (MACHADO, 2007).
Chislene Carvalho dos Santos ressalta que as propagandas não podem ser entendidas
como simples ilustrações ou ―panoramas da época‖, e sim como‖ representações do vivido
associada a perspectiva da história como construção do que selecionamos como
„passado‟‖. Dessa forma, sendo os periódicos e as propagandas uma produção humana,
logo são frutos de manipulações, de interesses pessoais, possuem, por vezes, ideologias e
um único ponto de vista - não podem, assim como qualquer outra fonte, escapar de uma
análise profunda e crítica do historiador (MACHADO, 2007).
760
processo histórico, ou seja, não se explicava a ausência da atenção às mulheres no
passado e dessa maneira não se alterava as definições estabelecidas dessas categorias.
(SCOTT, 1994, p. 14 – 15).
Portanto, além de reconhecer que existe uma história das mulheres e que esta tem
suas próprias especificidades, é necessário, como nos alerta Scott, a construção de um
aporte teórico que responda por que as mulheres foram excluídas da história e que possa
efetivamente promover mudanças epistemológicas que transformem a dicotomia entre o
feminino e o masculino.
SAÚDE E BELEZA
Em 1911, em Belém do Pará, não era incomum os leitores do jornal Estado do Pará
se depararem com o anúncio acima do Regulador Uterino Carvalho, que era vendido na
Farmácia e Drogaria Belém. Assim, dentre outras funções o referido remédio serviria para
acalmar os ―acessos nervosos e histéricos‖ tratados pelo anunciante como ―enfermidades
próprias das senhoras‖. Essas enfermidades seriam causadas pelas irregularidades do ciclo
menstrual, por isso era necessário regularizá-lo, daí o nome desses medicamentos. A
761
propaganda de reguladores ocupava bastante espaço nas páginas dos periódicos,
principalmente porque o útero era visto como órgão central do corpo feminino, uma vez que
representava a fertilidade e também por ser tratado como o principal responsável pela
grande maioria das doenças que assolavam as mulheres.
De acordo com Chrislene Santos (2006), no final do século XIX, foi criada a imagem
de ―mulher nervosas, cujos sintomas eram entre outros histeria e irritabilidade para as
mulheres que almejavam desenvolver atividades intelectuais. Ainda mais, argumentavam os
médicos que as mulheres estavam mais suscetíveis a esterilidade caso ousassem
desenvolver o cérebro, pois tal desenvolvimento traria grandes problemas ao útero podendo
causar até mesmo a morte da mulher. Assim, ter saúde significava ter um útero sadio.
Além de propagarem nervosismo, histeria e mau humor como sendo algo da natureza
das mulheres, reguladores e outros medicamentos também disseminavam a ideia de que saúde
e beleza eram indissociáveis no universo feminino. Como é o caso do Regulador Madre
762
Beltrão, chamado pelo anunciante de ―O remédio das Senhoras‖, que prometia
―conservação da saúde e da beleza‖ ao fazer-se uso do medicamento.
763
indispensável ―no toucador das senhoras‖, já que fazia ―desaparecer as rugas, realçando a
beleza‖, desenvolvendo ―os contornos do busto, hombros e braços.”
Alguns medicamentos de fato eram indicados tanto para os homens quanto para as
mulheres. Contudo, as propagandas dos remédios eram direcionadas de modo diferente e
separado para ambos. Se alternavam na publicação dos jornais, um dia tinha como público
alvo principal os homens e em outro as mulheres.
764
Figura 6: Uma aparência sã e
florescente, Somatose, jornal Estado
do Pará, quarta feira, 4 de novembro de
1914
765
voltar a ser saudável, o homem se tornaria, ativo e alcançaria suas aspirações. Juntamente
por isso, um mesmo produto poderia ter mais de uma propaganda, uma para os homens
com representações acerca da força e da virilidade e outra para as mulheres com
representações de mulheres belas e jovens.
766
o anunciante prometia reanimar a ―virilidade do homem‖ despertando a ―sensibilidade na
mulher‖.
Essas propagandas, na verdade, pelo teor do que era anunciado, parecem ter como
público alvo principal as chamadas ―donas de casas‖ – provavelmente mulheres da classe
media e alta, em sua maioria brancas. Cunha e Nascimento (2008) ao trabalharem com
propagandas de medicamentos populares no início do século XX, afirmam
767
Nesse sentido, ao fazer uso do medicamento, a mulher mãe-esposa-dona-de-casa voltaria a
realizar suas ―funções‖ normalmente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contexto da chamada crise da borracha na Amazônia tem sido estudado por várias
perspectivas especialmente no que tange às questões econômicas considerando-se os
impactos da perda do monopólio gomífero pela região, em virtude da concorrência da
borracha asiática. Uma outra perspectiva de estudo desse contexto se volta para práticas que
dizem respeito à sociabilidade, ao lazer, às práticas higienistas, e até mesmo sobre a saúde e
doença. Desse modo, uma possibilidade de pesquisa que permite os entendimentos desta
sociedade é a que diz respeito às múltiplas experiências vivenciadas pelas mulheres. Este foi
o caminho de uma investigação ainda inicial que trilhamos nesse texto, enfatizando anúncios
de jornais voltados quase sempre para as chamadas ―doenças de senhoras‖. Tal perspectiva
permite a investigação de sujeitos sociais, no caso mulheres, quase sempre envolvidas nos
negócios da borracha de forma indireta. Assim, tratou-se aqui de pensarmos nas
representações femininas no espaço da cidade de Belém, nesse contexto de declínio das
exportações de látex, a partir de anúncios de remédios e produtos voltados para esse público.
Nos discursos das propagandas dos jornais paraenses pesquisados é possível notar
dois aspectos relacionados exclusivamente a figura feminina: a primeira é referente a ideia
de que certas doenças estavam condicionadas às mulheres, como ataques nervosos e
histéricos e o segundo é de que a saúde feminina estava associada a beleza e a bom
comportamento social. Um único corpo feminino devia servir como modelo de saúde e
beleza: O corpo branco, jovem e bem comportado. Uma mulher saudável era uma mulher
bonita, bem vestida e que realizava todo o trabalho doméstico e que contribuiria para a
ordem e o progresso da sociedade.
768
Referências
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mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, p. 322, 2004.
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Mundo Nuevos, v. 7, 2007.
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: NOVAES,
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770
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Acesso em 16 out. 2019
SARGES, Maria Nazaré. Belém: Riquezas produzindo a Belle Époque (1870 – 1912).
Belém: Paka - Tatu, 2010.
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Novas perspectivas. São Paulo: Unesp, p. 63 – 96, 1992.
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade.
v. 2, jul./dez. 1995.
771
POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENDIMENTO ÀS MULHERES VÍTIMAS
DE VIOLÊNCIA NO ESTADO DO PARÁ: DA PROPOSTA
ORÇAMENTÁRIA À IMPLEMENTAÇÃO DOS SERVIÇOS
https://doi.org/10.29327/527231.5-52
RESUMO
Esta investigação se pautou em analisar a aplicação dos recursos estaduais e federais recebidos
para implementação de políticas públicas para mulheres e caracterizar os serviços de
atendimento as mulheres vítimas de violência implementadas no estado do Pará, tais como os
Centros de Referência Especializados e Delegacias Especializadas de Atendimento as
Mulheres, no período de 2007 a 2016. Trata-se de um estudo de caso, com a metodologia
usando procedimentos de levantamento de dados documentais e orçamentários e formulário de
entrevistas aplicado as/aos funcionários/as atuantes nos serviços de atendimento às mulheres
vítimas de violência, dados apresentados pelo método quantitativo e qualitativo, em conjunto.
Houve diálogo com a literatura sobre violência de gênero, feminismos, políticas públicas, partidos
políticos, orçamento público e outros conceitos trabalhados na ciência política. Nos resultados
verificou-se que no planejamento orçamentário do estado existem políticas especificas com
recursos definidos, e na implementação dessas políticas também houve utilização de recursos
federais conveniados, no entanto, houve uma ruptura organizacional na origem dos recursos e
na estrutura dos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência no decorrer desses
10 anos, devido à mudança governamental.
ABSTRACT
This investigation was based on analyzing the application of the state and federal
resources received for the implementation of public policies for women and
characterize the services of women victims of violence implemented in the State of
Pará, such as specialized referral centers and specialized police departments for
women, in the period from 2007 to 2016. This is a case study, with the methodology
of using procedures of documentary and budgetary data survey and interview forms
applied to the employees/workers working in the services of women victims of
violence, altogether data that is presented by the quantitative and qualitative method.
There was dialogue with the literature on gender violence, feminisms, public policies,
political parties, public budget and other concepts worked in political science. In the
results it was found that in the budgetary planning of the State there are specific
policies with defined resources, and in the implementation of these policies there was
also use of federal resources agreed on, however, there was an organizational
rupture in the origin of resources and in the structure of services for women victims of
violence over the course of these 10 years, due to governmental change.
772
INTRODUÇÃO
A violência contra mulher consiste num problema persistente que atinge mulheres nos
mais diversos estratos sociais e em condições sociais e culturais distintas. É inegável a relação
com as desigualdades que se mantem no campo político, social, econômico e cultural. Todos os
dias muitas mulheres adultas, jovens, crianças, idosas são violentadas fisicamente, moralmente,
psicologicamente, etc. Segundo dados compilados no dossiê Violências contra as mulheres,
acontecem 5 espancamentos a cada 2 minutos (FPA/SEAC, 2010), a cada 11 minutos ocorre um
estupro, a cada 2 horas uma mulher é assassinada (FBSP, 2017), 503 mulheres são vítimas de
agressão a cada hora (Data Folha/FBSP,2017). Os números acima são alarmantes, entretanto,
há ainda outro dado, tão assustador quanto o apresentado nas estatísticas, que são os crimes
não registrados. Diante da situação entende-se que a violência contra mulher não é um
fenômeno intolerável para o Estado e para a sociedade em geral, pois é decorrente de fatores
sociais e culturais que garantem a hierarquia entre os gêneros. Portanto, esses dados refletem
um problema que se mantém em índices altíssimos, mesmo com os recursos institucionais e no
campo social. Um avanço de grande importância foi a implementação da Lei Maria da Penha, em
2006, que deu inicio a uma nova realidade jurídica para o enfrentamento da violência doméstica
e familiar contra a mulher no Brasil. As mobilizações dos movimentos de mulheres contribuíram
para a construção da agenda de gênero, e com base nas discussões ao longo das últimas
décadas, políticas e programas de governos estaduais e municipais incluíram o tema sobre a
situação de gênero com o foco sobre as mulheres. No Estado do Pará, o combate à violência
contra mulher através das políticas públicas, embora palidamente constituída desde meados da
década de 1970, se fortalece com a assinatura do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência Contra as Mulheres, assinado em dezembro de 2007, pela governadora Ana Julia
Carepa (PT).
Na aplicação das políticas públicas o orçamento se constitui um dos principais
esteios para sustentar e viabilizar tanto a elaboração como a implementação de políticas,
neste caso, no atendimento às vítimas de violência doméstica. As políticas públicas
necessitam de, primeiramente, haver planejamento orçamentário definindo as prioridades
recursais e as metodologias de ação. O planejamento público, através dos Planos
Plurianuais, as diretrizes orçamentárias e, por fim, o orçamento anual destinado será, dessa
maneira, o gradiente escolhido para dar visibilidade a um processo essencial que define, na
sua origem, quais as prioridades e demandas que serão atendidas, evidenciando, neste
caso, o problema da violência contra mulher.
O objeto de estudo foi com relação ao planejamento e percurso de investimentos
públicos destinados à proteção da violência contra a mulher, no estado do Pará, no período de
10 anos após a implantação da Lei Maria da Penha. A proposta foi desenvolver uma análise
773
do percurso de investimentos, desde a fase do planejamento, passando pela diretriz
orçamentária, chegando ao orçamento anual disponibilizado a utilização dos recursos, ou seja, a
avaliação. Assim foi verificado no orçamento público estadual, o que foi destinado para a
promoção de políticas de combate a violência contra mulher no período proposto, além da
identificação das políticas públicas voltadas para as mulheres em situação de violência,
existentes do estado, evidenciando os avanços e retrocessos na Rede de Atendimento.
Trata-se de um estudo de caso, com a metodologia usando procedimentos de
levantamento de dados documentais e orçamentários, junto às secretarias estaduais e os
órgãos que são responsáveis pelo planejamento e execução dessas políticas, além de
formulário de entrevistas aplicado as/aos funcionários/as atuantes nos serviços de
atendimento às mulheres vítimas de violência, dados apresentados pelo método quantitativo
e qualitativo, em conjunto. Houve diálogo com a literatura sobre violência de gênero,
feminismos, políticas públicas, partidos políticos, orçamento público e outros conceitos
trabalhados na ciência política.
Esta pesquisa é parte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), e sua importância
está na necessidade de dar visibilidade a um dos aspectos fundamentais da formulação de
políticas públicas, e que influi diretamente na efetividade dessas políticas e dos serviços. É
evidente que a eficiência dos serviços não necessariamente está atrelada a altos
investimentos, no entanto, sem investimentos não há políticas. O recurso orçamentário
disponível, ou a falta dele, nos planos e diretrizes governamentais direcionadas as mulheres
evidenciam a importância que é dada ao problema da violência contra mulher. Levando em
consideração que há documentos nacionais e internacionais que tratam do problema da
violência de gênero e exigem a posição do Estado, além dos índices continuarem a crescer,
tanto no Brasil como no estado do Pará. Nesse sentido, o estudo tem por finalidade trazer
dados que se achavam deficientes nos relatórios, como o da Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), e projetos onde foram
minimamente expostos os investimentos do estado do Pará, dificultando a análise mais
abrangente, e acender o debate, a partir da amostra das discrepâncias entre os planos e as
execuções orçamentárias para que os gestores públicos que formulam as políticas públicas
voltadas ao tema estudado continuem a consolida-las, buscando melhorias e, portanto,
garantir a maior segurança e acolhimento às mulheres em situação de violência.
774
passando a constituir uma das áreas fundamentais para estudos feministas no Brasil.
Autoras que abordaram essas questões como Scott (1988), Saffioti (2004), Butler (2003)
trouxeram à luz outras perspectivas, divergindo da ideia de que gênero se tratava,
simplesmente, da divisão biológica entre homem e mulher. É evidente que estes estudos
estão, também, atrelados ao processo de redemocratização brasileira e ao crescimento dos
movimentos de mulheres, os quais provocaram debates, buscando explicação para a
posição de subordinação das mulheres.
Nas análises da violência contra mulher é evidenciado que este fato consiste num
problema social que se entrelaça aos estudos de gênero, classes socais, raça/etnia e, está
imbricado ao patriarcado. Assim, partindo da argumentação teórica das feministas, de
acordo com Saffioti (2004) é reconhecendo as heranças da ordem patriarcal, que passamos
a entender como as relações de gênero explicam as variadas formas de violência contra as
mulheres. Com efeito, os estudos sobre a violência contra as mulheres têm por ponto de
apoio a hierarquia de poder associada à cultura que defende papeis diferenciados para
homens e mulheres, propiciando, assim, relações de desigualdade de gênero, onde as
mulheres são colocadas em situação de inferioridade.
Em linhas gerais, entende-se gênero como uma construção social do masculino e do
feminino, ou seja, dizem respeito a símbolos culturais, organizações sociais, identidade e
relações entre homem e mulher; bem como entre mulheres, evidenciando a hierarquia de
poder. Como reafirma Saffioti (2004), a desigualdade, longe de ser natural, é posta pela
tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações
sociais. Nas relações entre homens e entre mulheres, a desigualdade de gênero não é
dada, mas pode ser construída, e o é, com frequência (Saffioti, 2004, p. 71).
Nos estudos das políticas públicas contextualizando o Brasil, se compreende a
influência direta dos movimentos sociais na criação das políticas públicas, especialmente
das políticas públicas que garantem os direitos das mulheres. Os estudos de gênero se
intensificaram a partir da década de 70 do século XX, juntamente com o fortalecimento dos
movimentos feministas no Brasil. Portanto, a incorporação da questão de gênero nas
políticas públicas é algo recente. De acordo com Marta Farah (2014, p. 47), ―política pública
pode ser entendida como um curso de ação do estado, orientado por determinados
objetivos, refletindo ou traduzindo um jogo de interesses‖. Segundo Souza (2006, p. 2): ―A
formulação de políticas públicas constitui o estágio em que os governos democráticos
traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão
resultados ou mudanças no mundo real‖.
A agenda de gênero que se constituiu nos anos 70, e se refere a assuntos relacionados
essencialmente a questão de gênero, ou seja, temas e propostas formulados por mulheres
775
dos movimentos femininos e feminista, esta agenda é integrada a uma mais abrangente que
diz respeito à democratização. Mas, inicialmente, houve resistência por parte do Estado na
integração de gênero às políticas públicas, no entanto, nas últimas décadas houve maior
abertura e passou a adotar leis e programas de proteção aos direitos das mulheres, devido
o processo de democratização e principalmente a luta em mobilizações do feminismo
internacional, como Estado assinando pactos, tratados e acordos internacionais, na busca
pela igualdade entre as pessoas.
3 POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO
ESTADO DO PARÁ
Com base na agenda de gênero constituída ao longo das últimas décadas, políticas e
programas de governos estaduais e municipais incluíram a questão de gênero e
direcionando a mulher. Assim, antes da implantação da Lei Maria da Penha, no Pará, já
havia políticas públicas de enfrentamento a violência contra mulher. Em 1986 foi instituído
no Estado do Pará o Conselho Municipal da Condição Feminina de Belém (CMCF),
regulamentado pela Lei nº 7.348. E um dos primeiros serviços foi a Delegacia Especializada
de Atendimento à Mulher – DEAM- criada em 1987. No entanto, só em 1997 foi implantada a
Unidade de Atendimento Temporário – UAT – que consistia num espaço para abrigar
mulheres em situação de risco. E foi a primeira instituição que abrigava mulheres, criada na
região norte, e acolhia mulheres vítimas de violência doméstica. Conforme o relatório do
Observatório Regional da Lei Maria Da Penha de 2011, esta instituição foi adequada à
política de assistência social do Sistema de Único de Saúde de Assistência Social/SUAS-
passando a ser uma casa abrigo inserida na estrutura da Fundação Papa João Paulo XXIII,
órgão da administração direta responsável pelas políticas de assistência social no município.
Estes serviços passaram a funcionar num mesmo espaço físico. Contudo, é
perceptível a fragilidade dessas ações enquanto políticas públicas efetivas, eficientes e
eficazes. Nesse período, havia muitos desafios a serem enfrentados, pois vários fatores
dificultavam o acesso aos serviços de atendimento especializado a vítimas de violência
doméstica devido a extensão territorial do estado do Pará que dificultava a locomoção das
vítimas; além disso, eram poucos os recursos materiais e também déficits nos
procedimentos de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica.
Em 1991, pela Lei nº 5.67, foi criado o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher –
CEDM – composto por instituições do governo do Pará e representações dos movimentos de
mulheres. É importante ressaltar que até o ano 2005 a política de enfrentamento a violência
contra mulheres no estado, se resumiam nas casas abrigos, delegacia da mulher, e um centro
de referência. Os serviços começaram a se expandir depois que o Estado aderiu ao Pacto
Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, em 2007, pacto assinado pela então
776
governadora Ana Júlia Carepa (PT). Em abril de 2007 foi realizada a 1ª Conferência
Estadual de Direitos Humanos, na qual foi levantada a questão da violência e da situação
das mulheres e reafirmada a necessidade de desenvolver políticas públicas eficazes.
Com a restruturação da SEJUDH, foram criadas dez coordenadorias, dentre elas a
Coordenaria de Promoção dos Diretos da Mulher (CPDM), que durante os anos de 2008,
2009 e 2010 realizou diversas ações, iniciando com a elaboração de um diagnóstico sobre a
situação da mulher do Pará, no qual retrata a realidade social da violência de gênero
mostrando a necessidade de intervenções de enfrentamento mais urgentes e abrangentes.
1
De acordo com a assistente social Rosana Moraes (2012) , o governo do estado do Pará foi
um dos primeiros a aderir ao Plano Nacional, e dessa forma, procurou fazer um diagnóstico
sobre a situação das mulheres paraenses, levando em consideração os indicadores sociais
e demográficos - educação, trabalho e renda, saúde, violência, organismos de políticas para
as mulheres, de controle social e movimentos sociais existentes, além de serviços
destinados ao atendimento às mulheres em situação de violência, que teve como resultado,
o projeto ―Ações Integradas para o Enfrentamento à Violência contra a Mulher no Estado do
Pará‖, enviado à Brasília em setembro de 2007, objeto de convênio pactuado entre a
SPM/PR e o Governo do através da SEJUDH/ CPDM.
A atuação da CPDM foi muito importante, nesse período, na construção dos projetos.
Esses projetos são apreciados e se começa as ações da rede de enfreamento a violência
contra mulher. Como resultado, foram criados os Centros de Referencias Maria do Pará em
vários municípios do estado, esse serviço se destaca como marca do governo no
enfrentamento a violência contra mulher, e será abordado mais detalhadamente em outro
tópico. Além disso, foram realizadas melhorias da infraestrutura e capacitações dos
profissionais atuantes nos serviços, além das realizações de eventos como a Campanha dos
16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres. Também foi criada Câmara
de Monitoramento e Avaliação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a
Mulher, e um Sistema de Informação sobre Violências contra as Mulheres (SIV – Mulher),
entre outras ações.
A CPDM foi reconfigurada, atualmente é denominada Coordenação de Integração de
Política para Mulheres - CPIM, e suas ações foram reduzidas, a equipe é responsável,
basicamente, por dois projetos que são o de capacitação e o monitoramento da rede. É
importante ressaltar que houve uma reconfiguração na política, não apenas em nível estadual,
mas também em nível nacional. Nesse sentido, houve cortes, a CPIM não mais elaborou
projetos, consequência também da falta de abertura para financiamento federal, a SPM deixou
de lançar os editais, assim, os cortes vieram de cima e foram afetando a política do estado.
777
Com influência das três conferencias dos direitos da mulher (2004, 2007, 2008),
colocaram-se várias propostas de enfrentamento à violência, e a CPDM e o CEDM
elaboraram o I Plano Estadual de Políticas as Mulheres, aprovado através do Decreto n.
2150, de 4 de março de 2010, publicado no Diário Oficial no dia 15 de março de 2010, o qual
foi baseado no Plano Nacional, que prevê políticas para as mulheres do Estado.
3.1 CENTROS DE REFERÊNCIA “MARIA DO PARÁ”
De acordo com a ―Norma técnica...‖ era necessário um serviço especializado de
atendimentos às mulheres vítimas de violência de forma abrangente; nesse sentido é criado
o Centro de Referência Maria do Pará (CRMP). O Projeto ―Maria do Pará‖ nasce com o
intuito de oferecer serviços de prevenção, promoção defesa e reparação à mulher em
situação de violência, numa gestão articulada onde os serviços pudessem ser integrados,
garantindo a eficácia no atendimento aos usuários. Dessa forma, os CRMPs visavam
realizar o atendimento multidisciplinar, com os profissionais da área da Assistência Social,
psicologia, pedagogia, enfermagem, terapia ocupacional. E tinham a proposta de trabalhar
em conjunto com outros órgão e serviços. Um dos diferenciais do serviço era o atendimento
para as crianças, filhas/os das mulheres vitimadas.
O primeiro Centro de Referência foi inaugurado em março de 2008, em Belém.
Nesse ano foram atendidas 463 mulheres. Nos anos posteriores foi implantado em outros
municípios. Assim, na gestão de 2008 a 2010 da CPDM foram construídos e implantados 09
(nove) Centros de Referências ―Maria do Pará‖, nos Municípios de Belém, Santarém,
Capanema, Xinguara, Abaetetuba, Tucuruí, Jacundá, Ananindeua e Itaituba. Com o total de
atendimento de 2.224 mulheres. Os CRMPs funcionavam de 08h às 18h de segunda a sexta
e, em Belém, o serviço se estendia as manhãs de sábado.
De acordo com entrevista com gestor da política, o Pará foi referência nacional no
atendimento de forma diferenciada às mulheres vítimas de violência, porque tinha uma
equipe qualificada de profissionais para trabalhar essa questão, uma forma especial de
atender as mulheres. Esse serviço foi essencial, num período em que ainda estavam se
constituindo as políticas de combate a violência no estado, no entanto, houve déficits nessas
politicas como relatado no relatório do OBSERVE, em 2011:
Os espaços destinados ao atendimento para as mulheres não são
adequados e representam um desrespeito a sua dignidade, violando todas
as recomendações nacionais e internacionais quanto ao atendimento para
mulheres em situação de violência, que deve ser pautado na privacidade e
no respeito a sua situação de vulnerabilidade. As condições são precárias
também para os (as) funcionários (as) que não encontram estruturas físicas
e materiais adequadas para o desempenho de suas atividades (OBSERVE,
2011. p. 21).
Ressalte-se que apesar do projeto prever o atendimento jurídico, somente depois de
um ano de funcionamento a defensoria passou a prestar atendimento uma vez por semana,
reafirmando-se como mais um serviço psicossocial. (Souza, 2016, p. 167)
778
Os Centros de Referência Maria do Pará foram criados durante um governo estadual
de esquerda (2007-2010), era uma política de governo, portanto, com a eleição de um
partido opositor (2011-2014) essa política começou a ser desarticulada e foi desenvolvida
outra política: o Pro Paz Mulher. Em alguns municípios os antigos Centros Maria do Pará
passaram a ser absorvidos pelo Pro Paz Mulher, como foi o caso de Belém e Tucuruí. Em
outros municípios, como Capanema e Abaetetuba, foram reestruturados em Centros de
Referência de Assistência Social. De acordo com a Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito - CPMI de Violência contra Mulher, foi denunciado pelos movimentos que ―os
Centros de Referência de Atendimento à Mulher estão sendo descaracterizados e fechados
paulatinamente e não funcionam à tarde‖ (CPMI, 2013, p. 494).
779
O horário de funcionamento do Pro Paz mulher é o horário comercial, de 8h as 18h
de segunda a sexta, e esse é um ponto negativo, pois a demanda dos casos de violência é
maior nos finais de semana. Assim, as mulheres são orientadas a voltar noutro dia para ter
atendimento psicossocial, e muitas delas não voltam. Esse déficit no serviço é questionado
tanto pelos movimentos de mulheres quando pelos funcionários, como ressalta a
3
Coordenadora , que para funcionar 24 horas, além da questão orçamentária é necessário
um perito, para que serviço funcione direito, e ter mais recursos humanos e isso já é um
déficit, falta pessoal.
3.3 AVALIAÇÃO DAS DELEGACIAS ESPECIALIZADAS DE ATENDIMENTO A
MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA: VISÃO DOS GESTORES DAS POLÍTICAS
A Delegacia da Mulher é o serviço especializado mais antigo e geralmente é a porta de
entrada para a rede de atendimento à mulher vítima de violência. Para Pasinato e Santos (2008),
as delegacias da mulher ―constituem ainda a principal política pública de enfrentamento à
violência doméstica contra mulheres‖. Até o ano de 2011, em todo o estado havia cinco (05)
Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Belém, Marabá, Santarém, Castanhal e
Paragominas). Atualmente, há 17 DEAMs no Pará, duas localizadas na Região Metropolitana,
em Belém e Ananindeua, e as outras quinze estão localizadas no interior do estado: Breves e
Soure, no Marajó; Castanhal, Capanema, Bragança, Abaetetuba, Barcarena e Paragominas, no
nordeste do Estado; Altamira, no sudoeste do Estado; Marabá, Parauapebas, Redenção e
Tucuruí, no sudeste do Pará, e Santarém e Itaituba, no oeste paraense. Assim, todas as Regiões
de Integração contam com uma Delegacia da Mulher.
A ―Norma Técnica...‖ é um importante instrumento para impulsionar as melhorias no
funcionamento das DEAMs, e faz parte do desafio da implantação da Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra a Mulher. De início houve muita dificuldade no estabelecimento
dessas normas e, ainda há. Em Belém, a DCCIM não tinha uma sede própria e estava localizada
em um prédio cedido pela SEDES – Secretaria de Desenvolvimento Social, assim, encontrou
grandes dificuldades para se adequar as normas, segundo Souza (2018), ―a Delegacia possuía
um modelo que passou a ser muito criticado pelos movimentos de mulheres, pois comportava
em um mesmo espaço: uma triagem, um setor social, um setor policial, um abrigo para mulheres
ameaçadas de morte (Unidade de Acolhimento Temporário
– UAT) e a carceragem para os homens que abrigava também presos trazidos de outras
delegacias‖. Um dos problemas era o espaço físico, que não foi criado para abrigar a
demanda do serviço especializado, mantendo o abrigo no mesmo espaço onde há também
a carceragem, é um agravante para a sensação de segurança da vítima, e o abrigo deve
necessariamente ser mantido em local sigiloso.
780
4
Só em 2014 foi inaugurada a nova sede da DEAM , a qual é vinculada ao Programa
5,
Pro Paz Mulher, portanto, os serviços funcionam num mesmo prédio e reúnem
atendimentos, policial pela DEAM; psicossocial; de perícia criminal do Centro de Perícias
Científicas ―Renato Chaves‖; sala de atendimento para a Defensoria Pública e sala de
6
audiências. De acordo com a Delegada ,
―quando a vítima chega na delegacia ela é primeiro acolhida pelo serviço
social, onde ela vai narrar o que aconteceu, e será redigido numa ficha,
nesse atendimento aos assistentes já farão os encaminhamentos sociais,
então, se aquela mulher precisa além de um atendimento policial, ela
precisa resolver a questão dela de separação, de solução da união de fato,
de guarda das crianças, essa assistente já vai fazer o encaminhamento pra
defensoria, ou pro conselho tutelar, enfim, tudo o que aquela vítima daquele
momento disser que ela tá precisando, porque o serviço social as vezes
pode nem ter uma questão policial, pode até nem ter um crime, muitas
vezes ela vai pra pedir orientação. Caso a vítima peça, ou a assistente
social perceba que é caso policial, a vítima é encaminhada para o
atendimento policial, e a partir da ficha vai registrar o boletim de ocorrência
e oferecer para a vítima o que a lei Maria da Penha oferece‖.
Esse processo no atendimento pode ser demorado, dura por volta de 2 horas se
7
seguir o fluxo normalmente . De acordo com Souza (2018, p. 139) ―tem causado
insatisfação nas mulheres que querem ser atendidas imediatamente pela polícia, o que
provoca desistência de ocorrência, por parte das mulheres devido à demora nesse fluxo‖.
Vale considerar outro ponto levantado pelo escrivão: muitas mulheres querem um resultado
imediato, como por exemplo a prisão do acusado e, muitas vezes isso é improvável, e por
isso desistem de realizar a denúncia, mas se esta mulher passa pelo atendimento
psicológico primeiro é mais provável que ela dê continuidade com a denúncia, pois tem um
acompanhamento. Assim, ―seria fundamental a estruturação de um protocolo que
delimitasse melhor o curso do atendimento e o papel de cada setor‖. (SOUZA, 2018, p. 139).
Com o funcionamento e concentração dos serviços num mesmo espaço, facilita a
articulação na rede de atendimento Belém, de acordo com a delegada, atualmente há
ligação com outros serviços como as casas abrigo, a Santa Casa de Misericórdia, e ressalta
ainda que o ideal seria ter uma equipe do centro de perícias no Pro Paz em período integral,
pois há esse serviço, mas apenas em dias marcados, justamente por não ter perito
suficiente. Com relação ao ambiente físico, o prédio tem uma boa estrutura.
A DEAM/PROPAZ de Belém atende mulheres dos municípios da Região Metropolitana,
e, mais recentemente, com a criação da DEAM de Ananindeua, a demanda pode ter sido
reduzida. Quanto às DEAMs do interior do estado, todas funcionam juntamente com a Delegacia
Especializada no Atendimento a Criança e Adolescente (DEACA). O horário
A construção desse prédio teve início no governo de Ana Júlia Carepa dois anos antes de sua saída do governo do Estado.
Endereço: Travessa Mauriti nº 2394 - Bairro Marco. Município: Belém.
Entrevista confindencial.
Informação dada pelo escrivão, numa visita da equipe de pesquisa do Gepem, à DEAM, no dia 5 de novembro de 2017.
781
de funcionamento é das 8h às 12h e 14h às 18h de segunda a sexta, não há plantão nos
finais de semana nas DEAMs, apenas na delegacia comum, que encaminha para DEAM.
Com exceção da DEAM de Santarém que tem plantão 24h nos finais de semana, e essa foi
uma conquista recente8.
Foi relatado nas nove DEAMs visitadas pela equipe de pesquisa do Projeto
Efetividade.../GEPEM, sem exceção, que o principal problema para o bom funcionamento é
o número limitado de servidores, ou seja, é a falta de recursos humanos, devido a demanda
ser grande e concentrar duas delegacias num mesmo ambiente, assim, ficam
sobrecarregados. Os servidores acumulam outras funções, como por exemplo, em
Castanhal, onde está a DEAM que mais realiza procedimento em todo o estado, por dois
anos consecutivos. O desvio de função é recorrente até mesmo na DEAM de Belém que tem
um corpo de funcionários mais estruturado.
Outro problema que é recorrente em todas as delegacias é a má articulação com a
área da saúde, com o encaminhamento para o IML. Em todas as delegacias visitadas foram
relatados problemas ou dificuldade para realizar o exame de corpo de delito, ou a mulher
reclamou do atendimento etc., foi relatado até mesmo à recusa no atendimento. Nesse
sentido, a solução apontada foi ter um perito especializado atrelado ao sistema da
DEAM/PROPAZ. Isto é mais provável nos lugares onde funciona o Pro Paz Integrado,
entretanto, existe apenas 7 núcleos em todo o estado.
Nos municípios onde existe o Pro Paz Integrado, o serviço é mais abrangente,
evidentemente, mas ainda há déficits. Nos municípios onde não tem, as dificuldades para o
bom atendimento às vítimas de violência aumentam. Por isso é importante que o PPI
chegue a outros municípios, pois a rede de atendimento ainda é muito deficiente.
4 SITUAÇÃO ORÇAMENTÁRIA E DE PLANEJAMENTOS: 2007 A 2016 NO PARÁ
Vários aspectos devem ser considerados o analisar o orçamento público, sua
utilização e eficiência, neste trabalho um ponto será avaliado dentro do orçamento do estado
9
do Pará, que serão as políticas especificas direcionadas para as mulheres. Na LOA está
todo o orçamento, os recursos disponibilizados, no entanto, o que é disponibilizado não
necessariamente é obrigatório de ser utilizado e investido, isso vai depender da gestão
governamental, das prioridades, e de outros fatores. No orçamento público do estado do
Pará existem as políticas especificas direcionadas as mulheres, as quais serão
apresentadas a seguir.
Como vimos, no processo de formulação de uma política pública é essencial que haja
avaliação, e esta deve estar presente em todas as etapas. Nesse sentido, na avaliação dos
782
10
Planos Plurianuais - PPAs disponibilizada pela Secretaria Estadual de Planejamento e
Orçamento, podemos notar que os recursos disponibilizados nas LOAs, não foram utilizados
em sua totalidade, nem nas ações, nem nos programas e muito menos pelos órgãos. E os
recursos disponibilizados para as ações detêm especificações ao direcionamento a várias
regiões do estado, porém, os investimentos não chegam a grande parte dessas regiões.
No ano de 2007 as três ações especificas de combate à desigualdade de gênero, fizeram
parte do programa ―Começar de Novo‖, que tinha como objetivo garantir atendimento
mulher vítima de violência e discriminação. Os dados orçamentários disponibilizados para
cada ação foram apresentados nas LOAs, no entanto, não há registros dos recursos que
foram devidamente utilizados, e, também, não há dados referentes aos resultados físicos de
implementação das ações, não tinham relatórios e dados avaliativos disponibilizados para o
ano de 2007.
Dentre as ações elaboradas no PPA 2008-2011 duas são direcionadas ao combate da
violência de gênero. A ação de Implementação das Ações dos Centros ―Maria do Pará‖, que
objetivou garantir o atendimento multidisciplinar às mulheres vítimas de violência, ficou sob
responsabilidade da SEJUDH. Através desta ação foram realizados 475, 544, 1.358
atendimentos, nos anos de 2008, 2009, 2010 respectivamente. As ações não atingiram a meta
de atendimentos previstos no planejamento nenhum dos anos de vigência do programa. E não
foram disponibilizados dados referentes ao ano de 2011. Com relação aos recursos
orçamentários, não há informações sobre os recursos aplicados na ação Implementação das
11
Ações dos Centros ―Maria do Pará‖. De acordo com a coordenadora da CDPM, na
formação da Coordenaria foi criada uma equipe mínima para produzir os projetos, e ressalta
que o governo do estado não tinha recursos específicos pra essa política, então a maneira
de levar adiante os projetos era fazer uma pactuação entre o governo do estado e o governo
federal, e isto foi feito através do Sistema de Convênios – SICONV. O quadro a seguir
mostra os projetos financiados com recursos federais.
10
é um plano de médio prazo, que estabelece as diretrizes, objetivos e metas a serem seguidos pelo Governo
Federal, Estadual ou Municipal ao longo de um período de quatro anos.
11
Entrevista
783
―Ampliação consolidação da rede de
serviços especializados de DCD
SPM/ 2009- 1.994.000,0
atendimento à mulheres em situação H/CP
PR 2010 0
de violência no Estado do Pará‖ DM
784
a ser realizadas no âmbito da ação "Promoção da Educação em Direitos Humanos", no
mesmo Programa, nos exercícios de 2014 e 2015.
A ação ―Pro Paz Mulher‖, que no ano seguinte foi renomeada como ―Pro Paz
Integrado Mulher‖, que tinha por objetivo garantir o atendimento integral e interdisciplinar às
mulheres em situação de violência. Foi executada pelo CPCRC, Polícia Civil, SEAS e
SEJUDH, que programaram atender a demanda de diversos municípios integrantes das 12
Regiões de Integração. Em 2012, foram realizados 25.337 atendimentos, ultrapassando a
meta proposta, em relação ao investimento financeiro foi utilizado 2% do disponibilizado. No
ano de 2013, a execução da ação se concentrou nas regiões Metropolitana, Xingu, Baixo
Amazonas e Lago de Tucuruí, e foram realizados 19.201 atendimentos, que corresponde a
64% do número proposto, e foi utilizado 42% do orçamento disponibilizado para o exercício.
Já no exercício 2014-2015, esta ação foi incorporada à Ação "PRO PAZ Integrado",
potencializando a atuação do estado quanto ao enfrentamento à violência. O financiamento
ocorreu exclusivamente com recursos ordinários do estado, embora na previsão inicial
constassem recursos de convênios que não foram efetivados.
A ação Pro Paz Integrado foi executada pelo CPCRC, FSCMPA, PCPA, SEAS,
SEJUDH e SESPA que programaram realizar atendimento nos municípios das 12 regiões de
integração. Neste exercício o atendimento específico à mulher em Belém foi disponibilizado
com o funcionamento do Pró Paz Integrado Mulher, que realiza atendimentos e
encaminhamentos necessários de acordo com cada situação apresentada. No interior do
estado foi implantado o Núcleo de Paragominas. Os recursos financeiros aplicados são
oriundos do Tesouro Estadual, e foi investido 97% da dotação atualizada, que era de 1,3
milhões. No resultado físico, a ação obteve um resultado de 27.595 atendimentos no ano do
exercício, o que corresponde a 57% do resultado esperado. No exercício de 2015, esta ação
foi executada pelo CPC "Renato Chaves", FSCMPA, Polícia Civil e Fundação PRO PAZ. De
acordo com a SEPLAN, os atendimentos foram registrados nos espaços Pro Paz Integrado
de Belém (20.474), Santarém (2.853), Tucuruí (913), Altamira (902), Paragominas (559) e
em mais 26 municípios do estado. Os recursos financeiros aplicados são originários do
Tesouro do Estado e do Fundo Estadual de Saúde.
A ação ―Implantação de Espaços Pró-Paz Integrado‖ que teve como meta viabilizar
espaços para o atendimento integrado de crianças, adolescentes e mulheres em situação de
violência, faz parte da Ação de Agenda Mínima de governo. Na realização desta ação, foi
implantado o Espaço Pró-Paz Integrado de Paragominas, além deste, foram implantados o
Pro Paz Mulher/DEAM em Belém, e o PRO PAZ Integrado de Altamira, por meio de recursos
do Fundo de Investimento de Segurança Pública (FISP), além disso também foi concluída a
reforma do espaço Pró Paz Integrado em Tucuruí. A ação é financiada com operações de
785
crédito interna (SEGUP) e recursos ordinários do Tesouro Estadual e, foram investidos
100% do valor disponibilizado, que corresponde a R$ 241.000,00. Já em 2015 a ação tinha
como programação inicial a implantação de unidades em Belém, Breves, Castanhal e
Parauapebas, com um valor de $3 milhões. Com a reprogramação ocorrida no exercício
esse valor foi reduzido para R$619 mil, e aplicado na continuidade da obra do Núcleo de
Atendimento Integrado em Belém, que finalizou o exercício com 55% de medição física, e na
aquisição de equipamentos para a nova Fundação. A implantação dos espaços de Breves e
Castanhal foram reprogramadas para o PPA 2016/2019. A ação é financiada com recursos
ordinários do tesouro estadual.
Com relação aos recursos federais disponibilizados por meio do SICONV, em 2011,
foram disponibilizados pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos a SEJUDH
recursos no valor de R$ 312.956,00 para realização do projeto ―Sensibilização e
Capacitação Dos Profissionais Da Rede de Atendimento a Mulher‖. Foram acolhidos quatro
projetos, no ano de 2012:
O projeto Monitoramento E Diagnostico Das Ações Do Pacto Nacional Pelo
Enfrentamento A Violência Contra À Mulher No Estado Do Pará, para o qual foram
disponibilizados R$ 210.000,00. Na execução foi relatado dificuldade de conciliar os
prazos do convênio com a realização da meta, devido a redução inesperada do
número de profissionais da Coordenação de Promoção dos Direitos da Mulher-
CPDM (que atualmente está sendo suprida). (SEJUDH).
O Projeto ―Apoio a Ações Da Coordenadoria e do Conselho Estadual de Promoção
dos Direitos Da Mulher‖, com valor de 600.000,00.
Para o Projeto Capacitação de profissionais para atendimento a Mulheres em
situação de Violência: em foco o atendimento a vítimas de tráfico de pessoas, foi
disponibilizado recursos no valor de 271.340,00.
Para o projeto ―Implantação e Implementação da Casa-Abrigo para Mulheres em
Situação de Violência e Risco na Região do Marajó / Breves‖, foi disponibilizado o
valor de 222.222,22. Porem esta ação não foi executada.
Desde 2012 não foram registrados convênios com o governo federal, para políticas
de combate a violência contra mulher. Ao adentrar o orçamento direcionado as políticas para
mulheres no estado do Pará é perceptível dois momentos diferentes no que diz respeito a
origem dos recursos aplicados nas políticas e serviços da rede de atendimento à mulher
vítima de violência. Nos primeiros anos relacionados a período pesquisado, grande parte
dos recursos utilizados veio de fontes federais, ainda que conste recursos nos orçamentos
estaduais, não há dados referentes a aplicação, como já exposto. A SEJUDH, através da
Coordenadoria da Mulher tinha uma atuação muito boa, que foi perdendo força,
786
principalmente quando o estado assume outro governo, com estratégias diferentes, mesmo
havendo uma tentativa de com o projeto de Apoio a Ações Da Coordenadoria e do Conselho
Estadual de Promoção dos Direitos Da Mulher. Do outro lado a criação da Fundação Pro
Paz, pode garantir a concentração de recursos e o melhor aproveitamento na
implementação das políticas, mas ainda com a problemática da descentralização das
políticas especificas para mulheres, pois a demanda também inclui crianças e adolescentes.
Nesse sentido um dos principais problemas referentes a esse tema, é a
descentralização do orçamento direcionado as políticas para mulheres, ter o orçamento
distribuídos em diversos órgãos é um empecilho, já que há diversas outras prioridades. O
ideal seria a criação de uma secretaria de política para mulheres no estado, pois
concentraria os recursos e teria maior liberdade de investimento.
Outro momento se apresenta no orçamento público do estado, mesmo se mantendo
o governo, o Plano Plurianual apresenta conotações diferentes. O PPA 2016-2019 que teve
como orientação estratégica em sua elaboração, a ênfase na regionalização, a qual já se
apresentava nos planos anteriores. Assim, foram identificadas quatro (04) ações neste plano
para o exercício de 2016. A ação de Implantação de espaço do PROPAZ Integrado foi
executada como previsto na LOA, na Região Marajó, no município de Breves, atingindo a
meta física proposta, já a execução orçamentária teve modificação, o valor inicial era de
99.000 foi atualizado para 462.000 e utilizado integralmente.
A ação de Capacitação dos Profissionais da Rede de Atendimento à Mulher em
Situação de Violência, programada pela SEJUDH para as regiões do Araguaia, Baixo
Amazonas, Guajará, Marajó, Rio Caeté e Xingu, foi elaborada com objetivo de qualificar
agentes públicos no tema, em alinhamento ao Plano Estadual de Políticas para Mulheres.
Foi utilizado 87% do recurso disponível, que corresponde a 19 mil e, esta ação apresentou
como única fonte de recursos o tesouro estadual. Já com relação a meta física, observou-se
baixa execução, apenas 18% do planejado. Uma das principais atividades no período foi a
realização do Encontro da Rede de Serviços de Atendimento à Mulher em Situação de
Violência, como atividade integrante da Campanha 16 Dias de Ativismo pelo Fim da
Violência Contra a Mulher, em Belém.
A ação Monitoramento da Rede de Atendimento à Mulher também foi programada pela
SEJUDH para as regiões Araguaia, Baixo Amazonas, Carajás, Guajará e Marajó, e alinha-se ao
Plano Estadual de Políticas para Mulheres. Foi utilizado apenas 9% dos recursos, vale ressaltar
que o recurso previsto na LOA, foi de 60.000 e o valor da dotação atualizada foi de 461.000, teve
crescimento significativo, mas a utilização foi de 41.000, abaixo na dotação inicial. No entanto, a
ação apresentou 100 % da meta física. A ação Atendimento Integrado a Crianças e
Adolescentes e Mulheres em Situação De Violência, sob responsabilidade da
787
Fundação PROPAZ, foi programada e executada pela Fundação PROPAZ, Fundação Santa
Casa de Misericórdia do Pará - FSCMP e CPC Renato Chaves, que desenvolveram ações
por meio de equipes multidisciplinares. Esta ação obteve resultado superior ao previsto em
oito regiões de integração que possuem atuação do PRO PAZ Integrado: Belém (17.430),
Santarém (3.228), Tucuruí (1.110), Altamira (1.100), Paragominas (577), Castanhal (2.940),
Breves (426) e Bragança (897). Com relação aos atendimentos resultantes desta ação,
observa-se que por incluir crianças e adolescentes não é possível ter os dados exatos dos
atendimentos as mulheres vítimas de violência.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho o enfoque esteve em torno do orçamento público e das políticas para
as mulheres evidenciadas nele. Verificou-se que há políticas especificas para as mulheres
no planejamento orçamentário do estado do Pará, e os investimentos específicos são
direcionados a questão da violência. O problema da violência envolveu diversos órgãos, os
quais atendem a diversas demandas, portanto, os recursos vieram de diferentes fontes. O
período analisado abrangeu quatro Planos Plurianuais, onde foi identificado políticas e
estratégias diferentes, além de ter uma ruptura ideologia já que é marcado por dois
governos opositores, de direita e esquerda. Assim, houve uma quebra na estrutura das
políticas e nos serviços de atendimento as mulheres vítimas de violência.
Com relação ao Centro de Referência especializado, de um lado estão os Centros de
Referência Maria do Pará, sendo implementados num momento em que a política de
enfrentamento a violência contra mulher no estado começa a crescer, também por impulso da
política nacional, porque os recursos aplicados são de origem federal, não há registros de
recursos estaduais para essa política, pelo menos não de forma específica apresentados pela
SEPLAN. Até 2010, ano que termina o mandato governamental de Ana Julia Carepa, foram
disponibilizados o valor total de 4.289.195,11, para construção e implantação dos centros, bem
como, para o fortalecimento da Coordenadoria da Mulher e realização de campanhas. Ainda foi
identificado através do SICONV, recursos para a DEAM, no valor de 1.171.572,00.
De outro lado estão os Núcleos do Pro Paz Mulher e Pro Paz Integrado, fazendo
parte do programa em outro mandato governamental, o de Simão Jatene e teve como
principal fonte os recursos estaduais. Nos anos de 2011 a 2015 foi feito investimento no
valor total de 3.921.000,00 na implantação e funcionamento do Pro Paz Mulher e Integrado.
importante ressaltar que recursos se concentraram na Região Metropolitana de Belém e,
até 2015 apenas seis núcleos foram implantados em todo o estado, atualmente existem 9
núcleos. O investimento foi menor se comparado ao período anterior. Dos recursos federais
foi identificado o valor total de 1.616.518,22 para realização de capacitação, monitoramento,
apoio a coordenadoria da mulher e, também, para a construção de casas-abrigos, nos anos
788
de 2011 e 2012. Por tanto, não houve convênios nos últimos anos, e isso se dá devido a
desestruturação da Secretaria Nacional de Política para Mulher, a qual já teve status de
ministério.
A mudança de governo e a descontinuidade de uma política já existente para a
elaboração de uma nova, com atribuições semelhantes, influenciam na melhoria dos
serviços e afeta a população que os utilizam, além, de aumentar a demanda de recursos
para uma ―nova‖ rede de articulação.
Levando em consideração que a formulação do Pro Paz Mulher tem dimensões mais
abrangentes do que os Centros Maria do Pará, no entanto, o serviço só é disponibilizado na
região metropolitana, nas outras regiões dispõe de um serviço que inclui outro publico, não
exclusivo as mulheres. Além disso, o PPI funciona com déficits, não são oferecidos todos
os serviços que lhe é atribuído, assim, em questão de funcionamento se assemelha aos
centros Maria do Pará.
Verificou-se que os serviços que são a porta de entrada para a rede de atendimento
a mulheres vítimas de violência funcionam de maneira defeituosa. O atendimento dos
centros de referência não funciona nos finais de semana, justamente quando a demanda é
maior, nem mesmo as DEAMs apresentam atendimento em tempo integral. Das delegacias
visitadas apenas Belém e Santarém dispõem de atendimento nos finais de semana. É um
avanço ter dezessete (17) DEAMs em todo o Estado, ainda que com déficits, apresentam
atendimento especializado as mulheres, que se sentem mais acolhidas, no entanto, a
problemática da falta de recursos humanos atrelado a altas demandas dificulta o bom
funcionamento da DEAM. As capacitações são esporádicas nas Delegacias especializadas
e quando se trata das delegacias comuns é quase inexistente ainda que as normas exijam
que as delegacias comuns devam ter capacitação na área da violência doméstica e familiar,
e estar aptas para atender as vítimas, mas, isso não é uma realidade no estado.
Outra problemática é referente aos dados sobre o perfil das usuárias que são
fragmentados e parciais nas delegacias. Houve dificuldade para adquirir os dados da
violência doméstica e familiar, feminicídio, ou qualquer tipo de violência sofrida pelas
mulheres pelos órgãos responsáveis, no estado. Foi relatado pelas delegadas que há
informações detalhadas sobre as vítimas, como cor, idade, etc, nos Boletins de Ocorrência,
mas os dados não estão sistematizados. Para reunir as informações com dados detalhados
seriam necessários verificar os B.Os um a um e, isso demanda tempo, além da
disponibilização desses dados pelas delegacias.
evidente que houve avanços nas políticas de combate a violência contra mulher no
Estado no decorrer desses 10 anos, mas ainda há muito por ser melhorado, principalmente nas
regiões do interior do estado. A região metropolitana detém uma estrutura muito boa tanto
789
física quanto de funcionalidade, mas ainda não atingiu a proposta das normas técnicas dos
centros de referências e nem das delegacias especializadas. A criação da Fundação Pro Paz
um avanço no que diz respeito a concentração dos recursos, pois com orçamento próprio
tem maior liberdade de investimentos. Nesse sentido, o ideal seria a criação de uma
secretaria de política para mulheres no estado.
Essas políticas foram resultado de um longo processo de estudos, reinvindicações,
mobilizações por parte dos movimentos sociais, especialmente feministas e de mulheres.
Por isso, é essencial que movimentos de mulheres paraenses se fortaleçam, assim como os
conselhos da mulher existente em todo o estado e a criação de novos para que haja debate
sobre o enfrentamento da violência de gênero. É importante estreitar a relação desses
movimentos com a gestão governamental, especialmente com os órgãos que promovem as
políticas para mulheres.
REFERÊNCIAS
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Cristine Rufino Dabat. Recife: SOS-Corpo. 1988 (mimeo).
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Alegre, No. 16, dez. 2006. Disponível em http//www.scielo. br. Acesso em: 05.10.2012
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Departamento de Ciências da Administração / UFSC; [Brasília] : CAPES : UAB, 2015.
HÖFLING, Eloisa De Mattos. Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos Cedes, ano
XXI, nº 55, novembro/2001.
790
LISBOA, João. ALVARES, Gerson. Orçamento Público e planejamento: a estrutura do
PPA, LOA e LDO. Artigo apresentado à REDOR/2016.
PINTO, Céli Regina. Elementos para uma análise de discurso político. 2009. Disponivel em:
https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/view/821.
Políticas Públicas: Conceitos e Práticas / supervisão por Brenner Lopes e Jefferson Ney
Amaral; coordenação de Ricardo Wahrendorff Caldas – Belo Horizonte: Sebrae/MG, 2008.
Documentos:
791
Caracterização dos delitos contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar em Belém-Pará.
Na década de 70 a violência contra a mulher passou a ser questionada e desde então pequenos
avanços no que diz respeito a igualdade de gênero vêm se fixando na sociedade brasileira. Este
trabalho objetiva apresentar a caracterização da violência contra a mulher em Belém. Abordagem
metodológica quantitativa, utilizando-se da técnica estatística de análise descritiva, com dados
fornecidos pela Secretaria de Inteligência e Análise Criminal, dos registros policiais da Divisão
Especializada em Atendimento à Mulher de Belém (2016-2018). Os resultados indicam que 34,4
das mulheres foram vitimas de violência psicológica, e que os delitos ocorrem no período noturno,
aos finais de semana, motivados por ódio/vingança. O quantitativo de mulheres agredidas ainda é
alarmante, sendo, portanto, necessário o estudo do fenômeno, para fomentar o desenvolvimento de
ações preventivas e repressivas.
INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher faz parte da história do Brasil, e somente ao final da década de
1970 a temática ganhou visibilidade e passou a ser a prioridade dos movimentos feministas,
principalmente com a realização de protestos em razão da absolvição pelos tribunais de assassinos
de mulheres com base na tese da “legítima defesa da honra”, (SANTOS, 2010). Nos anos 80, as
mulheres conseguiram importantes avanços, a exemplo da representação política com a
Constituição Federal de 1988 e a implantação das Delegacias de Defesa das Mulheres, com a
primeira unidade inaugurada no Estado de São Paulo, em 1985, composta apenas de policiais do
sexo feminino (SÃO PAULO, 1985).
A primeira Delegacia de Proteção à Mulher (DCCIM) foi criada no Estado do Pará em 1987
aos moldes da Delegacia de São Paulo (PARÁ, 1987) daquele ano e por meio do Decreto Nº 2.690
foi alterada para Divisão Especializada em Atendimento à Mulher em 2006, em razão de alterações
previstas Lei Nº 11.340/2006 que atendeu naquele ano cerca de 7500 mulheres vítimas de violência
doméstica (PARÁ, 2006). Com a promulgação da Lei Maria da Penha se fez necessária a
implantação de novas bases policiais, com meios eficientes de funcionamento, recursos humanos e
materiais (SPANIOL; GROSSI, 2014).
Das de 357 Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres no Brasil, presentes em
todas as capitais brasileiras, 17 funcionam no Estado do Pará, distribuídas geograficamente entre as
Regiões Integradas de Segurança Pública- RISPS, para atender as vítimas de todo o Estado (PARÁ,
2017). Cabem às Delegacias de Especializadas não só a investigação de crimes, como também
possuem a função de organizar as informações dos registros, em forma de banco de dados, visando
o estudo e o fomento de ações estratégicas no enfrentamento a violência doméstica.
Reconhecer que os danos causados pela violência doméstica e familiar contra a mulher
atingem não somente a vítima acarretam consequências para a familiar e também para a sociedade
792
de um modo geral, é um importante passo. Assim como é preciso observar as especificidades da
temática, conhecer a fundo as características da violência para realizá-lo um planejamento
estratégico, com diretrizes capazes de alcançar os pontos críticos da temática, a fim de alcançar
resultados mais efetivos no sentido do enfrentamento à violência de gênero.
METODOLOGIA
793
RESULTADOS
A Lei 11.340/2006, no Capítulo II, apresentou os tipos de violência doméstica e familiar contra
mulher, os classificando em (i) violência física, (ii) violência psicológica, (iii) violência sexual,
(iv) violência patrimonial e (v) violência moral e em alteração recente tipificou a conduta do
descumprimento de medidas protetivas, atribuindo penalidade de detenção, de 3 (três) meses a 2
(dois) anos, em casos de não obediência a decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência
previstas na referida legislação (BRASIL, 2006).
Conforme Gráfico 1, no triênio estudado 34,24% das mulheres atendidas na Divisão
Especializada no Atendimento à Mulher de Belém relataram ter sido vítimas de violência
psicológica, enquanto que 32,63% relataram violência física e 16,28% sofreram violência moral.
Enquanto que as violências sexual e patrimonial 3,16% e 1,77% respectivamente. No plano
nacional, as mulheres brasileiras responderam ter sofrido mais violência física (67%) do que
psicológica (47%), de acordo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa DataSenado, em parceria
com o Observatório da Mulher contra a Violência (BRASIL, 2017).
Psicológica 34,24
Física 32,63
Moral 16,28
Descumprimento 4,63
Sexual 3,16
Patrimonial 1,77
A violência psicológica pode ser entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e
diminuição da autoestima, que controle ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, (BRASIL, 2006), como
por exemplo o delito de ameaça, o qual foi o mais registrado, com 5117 registros representando
35,8% das ocorrências. Outra forma de violência psicológica é a contravenção penal de perturbação
da tranquilidade que se caracteriza pela insolência, pelo desrespeito quando não pela grosseria e, até
pela ousadia, conforme Gandra (2019) foi citada 943 vezes, 6,6% dos BOPs (Tabela 1).
794
Tabela 1: Quantidade e Percentual de BOPs, por Delito (dez maiores) referente à violência contra
a Mulher, registrados na DEAM-Belém, no Período de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2018.
Variável Categoria Quantidade Percentual
Ameaça 5117 35,8
Lesão Corporal 3644 25,5
Injúria 1876 13,12
Vias de fato 1160 8,11
Perturbações da Tranquilidade 943 6,6
Delitos Registrados (Os Dez Maiores) Descumprimento de medidas protetivas 686 4,8
Difamação 386 2,7
Calúnia 168 1,18
Estupro 157 1,1
Constrangimento ilegal 156 1,09
Total 14293 100,00
Fonte: Construção dos Autores com informações da Secretaria de Inteligência e Análise
Criminal (SIAC), 2019.
Tabela 2: Quantidade e Percentual de BOPs, por motivo do fato, referente à violência contra
a Mulher, registrados na DEAM-Belém, no Período de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2018.
795
Sobre a motivação, a Tabela 2 mostra que a maioria dos casos de violência contra a mulher,
registrados na DEAM Belém, são presumidamente causados por ódio ou vingança (69,23%),
seguido do uso de substâncias capazes de alterar o funcionamento do corpo humano, como álcool
e/ou entorpecentes (12,63%) e ainda como causa ciúme (11,82%). Os dados ratificam informações
recebidas pelo serviço oferecido pelo Governo Federal onde mulheres podem registrar denúncias
acerca de violência doméstica, o Disque 180, as vítimas atendidas informaram como causa
presumível dos fatos denunciados ao serviço telefônico o uso e/ou abuso de álcool ou entorpecente
(29%), discussão (19%) e ciúme(17%) (BRASIL, 2017).
Dia
Quanto a frequência semanal, a maior parte dos delitos é identificada no Gráfico 2, aos
domingos (19,11%), seguido de sábado (15,26%) e da segunda-feira (15,05%) dos registros. Nos
dias de terça-feira (12,45%) e quarta-feira (12,72%) nota-se uma pequena redução das denúncias.
Nas quintas-feiras (12,45%) e sextas-feiras (12,96%) as ocorrências aumentam com a aproximação
do final de semana. O que pode ser relacionado com o aumento do tempo em que o autor da
violência permanência no domicilio (MOURA; VASCONCELOS; PRATESI, 2009).
796
Gráfico 3: Percentual de Delitos contra a Mulher na cidade de
Belém, no Período de Janeiro de 2016 a Dezembro de 2018, por
turno do fato.
40,00 37,11
35,00
30,00 25,41 26,19
25,00
20,00
11,29
15,00
10,00
5,00
0,00
Turno
De acordo com o Gráfico 3, observa-se que a maior parte dos crimes ocorreram no período
noturno (37,11%), entretanto Bernardo, et al. (2019) explicam que dos BOPs de violência
doméstica registrados em Belém no mesmo período, a maior parte (44.73%) foram registrados no
período noturno, o que segundo os autores, as vítimas de violência doméstica não procuram
imediatamente por atendimento na Delegacia Especializada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve por objetivo caracterização dos delitos contra a mulher, no âmbito da
violência doméstica e familiar em Belém, o conhecimento e o agrupamentos das informações é
necessário para o diagnóstico do atual contexto da violência contra mulher, de forma que fomentar
o desenvolvimento de ações na prevenção e repressão a esses delitos. O objeto de análise nesse
estudo versa quanto aos delitos contra a mulheres registrados na Divisão Especializada de
Atendimento à Mulher em Belém, de janeiro de 2016 a dezembro de 2018, por meio de abordagem
de análise estatística e na crítica dos dados apresentados.
Os resultados indicam que a cerca do tipo de violência sofrida a violência psicológica se
destaca (Ameaça, Perturbação tranquilidade), seguida da violência física (Lesão corporal e Vias de
fato) e de violência moral, os delitos contra a honra (Injúria, Calúnia e Difamação) e em menor
quantidade de registro o descumprimento de medidas protetivas. Os registros de violência sexual e
patrimonial aparecem de forma discreta.
797
De acordo ainda, com os resultados obtidos a maior parte dos delitos ocorre aos domingos,
sábados e segunda-feira no turno noite, e com motivos presumíveis de ódio e/ou vingança e uso de
substâncias capazes de alterar o funcionamento do organismo humano, como álcool e droga. O pico
de registros no primeiro dia útil da semana e ocorre principalmente no inicio da noite, o que indica
que as vítimas primeiro realizam suas atividades laborais e somente depois procuram a unidade
Especializada para atendimento. De onde pode se concluir que a junção de elementos como final de
semana, bebida alcoólica e período noturno, representa o contexto de perigo quanto à violência
contra a mulher.
Estes resultados apontam para um contexto violência, extrema e fútil, contra as mulheres, após
mais de uma década da Lei Maria da Penha, diante do quantitativo de registros. Representam
também que os avanços legislativos acerca do tema, embora sejam positivos no sentido do
empoderamento da mulher, da busca por justiça, ainda há a necessidade de evoluir quanto à
repressão dos delitos, visto que quase 15 mil vítimas violadas, em um triênio, é inaceitável, na
busca pelo respeito e equidade de gênero.
Desta feita, a análise dos registros de violência contra mulheres é importante para planejamento
estratégico da Rede de Enfrentamento da Violência Doméstica Contra Mulher, permitindo que ações
pontuais, sejam direcionadas ao foco do problema. Assim como permite que a Rede de Acolhimento
e Assistência de Mulheres e da Sociedade possa desenvolver ações sentido de ações de prevenção e
conscientização social visando ao hoje, ideológico, fim da histórica violência de gênero.
798
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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800
Litigância Estratégica em Prol da Descriminalização do Aborto: Usos,
Sentidos e Prática na Clínica de Atenção à Violência
https://doi.org/10.29327/527231.5-54
Maura Sabrina Alves do Carmo
Universidade Federal do Pará (UFPA)
RESUMO
801
ABSTRACT
This work comes from the search for central foundations of the strategic litigation in
women's health rights, from the investigation of notions and perspectives of this
phenomenon and the case study of the production of Amicus Curiae – ADPF 442 by the
Violence Care Clinic, which uses this strategic method to assist cases of violence against
vulnerable groups free of charge, interdisciplinary and humanized, observing the violence
together with the reality in which it occurs to prioritize the psychosocial factors of victims, in
addition to litigating and communicating to the state the demands of social movements,
through dialogue with him. Amicus Curiae, from Latin ―friend of the court‖, is an entity,
person or body with which it is involved as a third party, as it is instigated by the greater
legal interest of the parties present in the process, being the entity concerned concerned
with the lives of women. that were harvested by unsafe abortion, as well as the possible
diseases developed by the practice and incarceration of those who abort to guarantee their
right to family planning, emphasizing that criminalization mainly affects low-income women,
who are inserted in more than one context of oppression, which would be intersectionalities,
as Crenshaw argues. Therefore, according to Piovesan, the decriminalization of abortion is
a matter of public health.
802
INTRODUÇÃO
A combinação de diversas estratégias de prática com o fim de se reivindicar, por
meio do poder judiciário, a intervenção das entidades públicas em certa questão social é o
fundamento da litigância estratégica em direitos humanos, método este imprescindível para
instituições que buscam a efetivação e o resguardo das garantias fundamentais durante a
jovem democracia do Brasil. Neste contexto, em prol da democracia e dignidade da mulher,
é de suma importância conceder alternativas de acesso à justiça que usem o método da
litigância estratégica para tratar as demandas das mulheres, como a Clínica de Atenção à
Violência (CAV) da Universidade Federal do Pará (UFPA) - que assiste aos casos de
violência contra grupos vulneráveis de modo interdisciplinar, gratuito e humanizado.
O sistema clínico de ensino teve sua origem nos Estados Unidos na década de
1930, enquanto via alternativa de ensino jurídico tradicional, tendo por fim o combate ao
leque de deficiências na formação comum dos advogados, relacionando o estudo à ação,
frequentemente submetida a ponderação. Jerome Frank, em 1933, lança sua obra
intitulada ―Why not a clinical Lawyer-school?‖, na qual critica incisivamente o ensino jurídico
em vigor na época e apresenta o método clínico do estudo das ciências jurídicas, baseado
nas escolas de medicina, que se valem da supervisão de professores, da familiarização
dos estudantes com a ação profissional, pois assim o acadêmico aprende a operar de
acordo com a realidade. Não obstante as particularidades da América Latina, as
contribuições do autor também enriquecem o ensino jurídico latino-americano obsoleto,
baseado na memorização de conteúdos de normas e doutrinas.
O contexto político atual de crise econômica e arrefecimento dos direitos das
mulheres requer uma reavaliação contínua de vias atuantes em prol de avanços em
demandas sociais negligenciadas pelo Estado, como a saúde feminina. Observa Flávia
Piovesan (2007), que são realizados aproximadamente dois abortos por minutos no país,
logo, a ilegalidade desta prática não a impede de ser feita, todavia piora as condições em
que são realizados e agrava os riscos inerentes a essa prática; bem como defendem
Faúndes e Barcelatto (2004) sobre as existência de sequelas físicas e psicológicas e até
mesmo a falência decorrentes do estado precário e inseguro em que os abortamentos
ilegais acontecem.
Portanto, as clínicas jurídicas emergem nas terras brasileiras com a proposta de um
estudo crítico do direito em conjunto com intervenções na sociedade que respeitem a
conjuntura social, como corroborado na CAV ao ajuizar o Amicus Curiae–ADPF 442 em
prol das mulheres em invisibilidade social atingidas pela criminalização do aborto.
803
LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA EM DIREITOS
HUMANOS 1.1 ORIGEM E CONCEITO
A partir de Cardoso (2012, p. 41) e Vilarreal (2007, p.18) outras
expressões podem referenciar a prática do litígio estratégico, as quais seriam litígio de
impacto‖, ―litígio de caso-teste‖, ―litígio paradigmático‖, ―litígio de interesse público‖, ―litígio
das causas justas‖ e ―litígio de prueba‖. O conceito de litigância estratégica tem como
cerne a efetivação do ―interesse público‖, sendo este, segundo Villarreal (2007, p.17)
responsabilidade de todos, em especial dos profissionais da esfera jurídica, pois estes
devem comunicar à sociedade as premissas das garantias fundamentais e da democracia,
resultando, assim, no conceito de interesse público como a associação das práticas
jurídicas em prol da sociedade (VILLAREAL, 2007, p. 21).
Vilarreal (2007, p.17) defende em sua tese que os tribunais são o lugar apto para a
prática do litígio estratégico, assim, este método é instrumento específico dos advogados,
em especial, à linha judicial, sem negligenciar o valor de outros meios para a efetivação da
804
democracia, ou seja, do ―direito de interesse público‖, como a política, as ciências sociais e
jurídicos não litigiosos.
Há quem discorde dessas perspectivas, como posto por Baker e Carvalho (2014, p.
468), que o a ação do litigante é orientada às mudanças e empoderamento na sociedade,
uma vez que o elo com a vítima é primordial, não se atendo à pessoas alheias à
adversidade, para que as políticas públicas não sejam somente a ―necessidade de
mercado‖, que o trabalho em prol dos direitos humanos não adquira carga de empresas,
evitando, assim, que os movimentos sociais não sejam espectadores, mas participem das
decisões dos processos políticos.
O acesso à justiça e aos direitos humanos pela litigância estratégica é debatido pelo
livro denominado ―Litigância Estratégica em Direitos Humanos: Experiências e Reflexões‖
(2016) do Fundo Brasil de Direitos Humanos, que adveio da experiência da instituição ao
lançar, em 2014, ―Litigância Estratégica, Advocacy e Comunicação para a Promoção,
Proteção e Defesa dos Direitos Humanos‖. Neste livro, Ana Valéria Araújo conceitua
litigância estratégica, como exposto a seguir:
805
A reparação de violações históricas dos direitos humanos, avaliando os contextos
nos quais a violência está inserida não somente pela perspectiva individual, todavia pela
amplitude do problema para o amparo e fortalecimento da democracia, tal como operava
Luiz Gama, advogado negro do Brasil Império e Patrono da Abolição da Escravidão do
1
Brasil (Lei nº 13.629/2018) .
O juiz Rubens Casara defende que o Estado Democrático de Direito vive uma ―crise
paradigmática‖, assim, a ―Pós-democracia‖ conseguiria explicar como o atual Estado opera.
Neste regime, a essência da democracia se perde, pois seria um instrumento para a oprimir
pessoas não quistas, objetivando maiores lucros e acumulações, negligenciando a
mobilização do povo para as deliberações políticas em conjunção com os atores estatais em
prol de efetivação e salvaguarda dos direitos, logo, ―na pós-democracia não existem
obstáculos ao exercício do poder: os direitos e garantias fundamentais também são vistos
2
como mercadorias que alguns consumidores decidem como usar ou descartar.‖
Acarretando, assim, no arrefecimento de políticas populares, conforme Casara:
806
―O Poder Judiciário na pós-democracia deixa de ser o garantidor dos
direitos fundamentais (função que deveria exercer mesmo que para
isso fosse necessário decidir contra maiorias de ocasião), para
assumir a função política de regulador das expectativas dos
consumidores. Por um lado, a pós-democracia induz à produção
massificada de decisões judiciais, a partir do uso de modelos
padronizados, chavões argumentativos e discursos de
fundamentação prévia, tudo como forma de aumentar a
produtividade, agradar parcela dos consumidores, exercer o controle
social da população, facilitar a acumulação e proteger o mercado. De
outro, o Poder Judiciário passa a gerir/dirigir julgamentos que
passam a seguir a lógica própria aos espetáculos, que agradam aos
espectadores (também consumidores) do sistema de justiça.‖
(CASARA, 2016)
807
de Práticas Jurídicas – NPJ da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará –
UFPA, que se faz presente enquanto trincheira de resistência aos direitos dos grupos
vulneráveis na Amazônia.
Cabe destacar que a CAV corrobora com as perspectivas ressaltadas por Celeste
Melão, as quais são: a interdisciplinaridade nas práticas de litigância estratégicas; o
―investimento na formação dos(as) estudantes, dado que esse é um caminho que possibilita
a longo prazo mudanças na cultura do Judiciário‖; a presença da educação jurídica popular,
que ―possibilitará a apropriação de conhecimentos pelos grupos sociais que sofrem
constantes violações de seus direitos‖ (FUNDO BRASIL DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p.
21).
Até porque o trabalho da CAV visa tratar, combater e prevenir a violência pelo uso e
prática do litígio estratégico, observando a violação segundo o contexto em que a vítima
4
está inserida, bem como conceder à comunidade nacional e internacional atendimentos
interdisciplinares às vítimas e transpassar os muros da universidade com palestras em
escolas e demais instituições sociais. A Clínica possui profissionais das mais diversas
áreas, tais como odontologia, enfermagem, psicologia, serviço social, direito. Desenvolve
assim, numa perspectiva interdisciplinar, intervenções concretas e integradas junto a
instâncias sociais, de saúde, educacionais e jurídicas.
A CAV assistiu ao caso da dinamarquesa que requereu refúgio no país e ação de divórcio litigioso
com pedido liminar de alimentos e guarda por ter fugido para o Brasil com seus filhos por ter sofrido
violência física e psicológica por parte do seu marido, visto as legislações estaduais e federais que
resguardam as mulheres. O departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica
Internacional do Ministério da Justiça pediu ao STF a prisão cautelar de Lisbeth para que aguardasse
a extradição após a refugiada ter seu nome inserido no rol dos procurados pela Interpol –
Organização Internacional de Polícia Criminal, que atua na cooperação de polícias de diferentes
países.
808
como se houvesse um vetor unidirecional que não considera a experiência e autonomia da
pessoa atendida – trata-se de uma perspectiva assistencialista; a segunda pelo fato de que
na Clínica não se exige uma contraprestação econômica pelo atendimento já que serviço
público vinculado à Faculdade de Direito da UFPA (buscar resolução para provar o vínculo).
809
Clínica de Atenção à Violência que produz pesquisas, estudos e assistência aos grupos
vulneráveis.
810
ou ambos, causando a principal consequência da criminalização do aborto, que gera o ato
do aborto inseguro, é o grande índice de mortes de gestantes.
―Aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil‖, afirma pesquisadora. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2018/07/31/aborto-e-a-quarta-causa-de-morte-materna-no-brasil-
afirma-pesquisadora/index.html>. Acesso em: 16 nov. 2019.
Portugal, Espanha e Uruguai: o que aconteceu após a legalização do aborto? Gênero e Número,
set. 2018. Disponível em: <http://www.generonumero.media/portugal-espanha-e-uruguai-o-
que-aconteceu-apos-legalizacao-do-aborto/>. Acesso em: 16 nov. 2019
811
podem realizar o procedimento em clínicas adequadas e aquelas que
põem em risco a própria vida e a possibilidade de futuras gestações
desejadas em clínicas sem a menor condição ou em auto-abortos.
São essas últimas que batem às portas do Sistema Único de Saúde
com as seqüelas de abortamentos realizados de forma insegura.
Somente em 2004, cerca de 240.000 internações foram motivadas
por curetagens pós-aborto, correspondentes aos casos de
complicações decorrentes de abortamentos inseguros‖ (FEGHALI,
2006, p.224)
A questão econômica não está alheia à racial, como mostra a pesquisa intitulada
―Desigualdades Sociais por Cor ou Raça‖ publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), expõe que em 2018 as pessoas pretas e pardas constituíam 75,2% da
categoria com menos renda no país (composta pelos 10% com menos rendimento), sendo
12
que as pessoas negras correspondem à somente 27,7% dos 10% mais ricos . Dessa
forma, na pirâmide da desigualdade social, os homens brancos representam o topo, as
mulheres brancas aparecem em seguida, ficando à frente dos homens pretos e na base
13
estão as mulheres pretas. Por conseguinte, segundo dados do IBGE, o índice de
abortamento por mulheres pretas (3,5%) é o dobro entre as brancas (1,7%), sendo o quadro
de uma mãe negra de até 19 anos o que mais busca a prática do aborto, como
complementa a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA). As estruturas escravocratas ainda
vigentes no país são refletidas por Luíza Bairros:
Na análise IBGE, os estudo tiveram foco somente nas desigualdades entre brancos, pretos ou
pardos devido às restrições esstatísticas impostas pela baixa representação dos indígenas e
amarelas no total da população brasileira ao se utilizar dados amostrais.
13
MENDONÇA, H. Mulheres negras recebem menos da metade do salário dos homens brancos no
Brasil. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/12/politica/1573581512_623918.html>.
Acesso em: 16 nov. 2019.
812
que se proclamar garantidor dos direitos humanos. A sociedade supremacista branca não
considera a mulher negra como sujeito político por não serem nem homens e nem brancas,
desempenhando o papel de ―outro‖ do outro, como defende Grada Kilomba (2012), autora
negra que inclui sua imprescindível pauta sobre negritude no comparativo de Simone de
Beavouir (1970, p.11), no qual o homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. Sendo o
Outro em associação a um mundo predominado pelos homens, que o orienta a partir de si,
as mulheres são concebidas na posição de subordinação pela sociedade patriarcal. Então,
para Kilomba a visão de sujeitos pode ser usufruída por mulheres brancas e homens negros
em certas situações, o que não contempla as mulheres negras.
813
Na literatura feminista brasileira, a antropóloga Lélia González é a pioneira na
problematização sobre interseccionalidades. No texto ―Racismo e Sexismo na Cultura
Brasileira‖ (1980), González relaciona racismo e sexismo ao destacar demandas
peculiares às mulheres, além de conceber as opressões raciais, sexuais e classistas
transpassadas da hierarquização. Logo, a classe é a deliberativa e preceito organizacional,
a raça e o sexo é a coluna vertebral que estrutura o capitalismo, ratificando, assim, a
concepção de Crenshaw de que a convergência das dominações de raça e gênero que
caracterizam a interseccionalidade.
No cenário brasileiro também se faz presente a ativista negra Luiza Barros, finada
em 2016, que na obra ―Nossos Feminismos Revisitados‖, de 1995, aborda sobre o
encontro dos recortes sociais de raça e gênero ao alegar que:
―Raça, gênero, orientação sexual reconfiguram-se mutuamente
formando [...] um mosaico que só pode ser entendido em sua
multidimensionalidade. [...] Considero essa formulação
particularmente importante não apenas pelo que ela nos ajuda a
entender diferentes feminismos, mas pelo que ela permite pensar
em termos dos movimentos negro e de mulheres negras no Brasil.
Este seria fruto da necessidade de dar expressão a diferentes
formas da experiência de ser negro (vivida através do gênero) e de
ser mulher (vivida através da raça) o que torna supérfluas
discussões a respeito de qual seria a prioridade do movimento de
mulheres negras: luta contra o sexismo ou contra o racismo? - já
que as duas dimensões não podem ser separadas. Do ponto de
vista da reflexão e da ação política uma não existe sem a outra.‖
(BAIRROS, 1995, p. 461).
814
detrimento da vida humana, da fauna e da flora na região mais rica em biodiversidade do
14
mundo.
Neste prisma, é evidente o descaso e desconhecimento do quadro de violência de
gênero na região amazônica, conforme a declaração da atual Ministra da Mulher, Família e
Direitos Humanos, que justifica que os abusos sexuais sofridos pelas meninas da Ilha de
Marajó, no Pará, ocorrem por falta de calcinhas, corroborando e mascarando a pedofilia e
os estupros de vulneráveis, que representam índices alarmantes de ocorrência.
Em 2017, segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa
Social (Segup), foram registrados 2.399 casos. Mas em 2018, de agosto a julho, já são
1.496 casos, o que representa cerca de 62% do total do ano anterior. Em média, são
quase 7 ocorrências por dia no Estado. Na Região Metropolitana de Belém, no ano de
2017, foram registradas 544 ocorrências. Em 2018, já são 323 casos, entre os meses de
janeiro e julho. Conforme dados divulgados pela Comissão de Direitos Humanos e Defesa
do Consumidor da ALEPA, a maior incidência de estupro de vulneráveis está em Belém,
seguida por Santarém e Ananindeua. No entanto, em alguns municípios do Estado, como
Placas e Mãe do Rio, o crescimento de casos registrados chega a 400%. Outros
municípios também apontados são Garrafão do Norte, Jacundá e Santa Luzia do Pará.
A realidade na Amazônia perpassa a debilidade da malha de assistência e das
políticas públicas, quadro que provoca a morte exponencial de mulheres, sendo estas
submetidas à violência de gênero, de classe e de raça. Comumentemente, o abortamento
pela mulher amazônica acontece num cenário de intimidações e injúrias psicológicas feitas
pelos companheiros, além do quadro de extrema miséria, que não apresentam o mínimo
de higiene e segurança para a prática feita por parteiras/aborteiras. Os índices desses
abortamentos, chamados popularmente de “fetos engolidos” na Ilha do Marajó,não são
recolhidos, visto a falta de acesso aos locais onde ocorrem, os quais seriam rios e
povoados do interior paraense alheios à políticas públicas por desinteresse estatal.
O índice quantitativo sobre violência contra a mulher é duvidoso no quadro da Ilha
do Marajó (local que apresenta 7 dos 21 municípios com menor IDH do país), no Baixo
Amazonas (especificamente Santarém), nos garimpos em carajás e Itaituba, nos fartos
empreendimentos de Barcarena (que compõe a Região Metropolitana de Belém) e
Altamira, nas propriedades do Sul do Pará que cultivam de soja e gado, em Belém e
cidades adjacentes.
Todavia, nas regiões supracitadas, as violações são naturalizadas pela cultura
local, na qual as mulheres não são reconhecidas como donas do seu próprio corpo pela
justificativa de terem o papel de completa submissão aos homens, sejam seus parentes,
14
―Caderno I: Direitos e Democracia - Lutas criminalizadas no Pará‖, da Sociedade
Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.‖
815
trabalhadores rurais, garimpeiros, peões de obras e fazendeiros. Como exemplo, o quadro
amazônico apresenta o estupro paterno, que é encoberto pela famosa lenda do boto cor de
rosa que sai das águas na forma de um rapaz robusto e belo que encanta e engravida
meninas e mulheres antes de voltar para os rios.
Neste quadro para evitar o nascimento de criança sem o reconhecimento paterno,
por ter sido concebida por relações não estáveis com os peões dos grandes latifúndios e
empresas, além da extrema pobreza devido à mínima oportunidade de emprego para a
gestante, ela opta pelos ―fetos engolidos‖, mesmo sem amparo institucional. Já quando se
trata de fazendeiros ricos, os caros abortamentos são bancados para acontecerem até
mesmo em Hospitais Públicos Municipais, como denuncia a operação ―Sexto Dia‖ da
15
Polícia Civil do Estado do Pará.
15 POLÍCIA CIVIL- PA. Polícia Civil deflagra operação para apurar venda de partos e abortos ilegais
em Redenção. Disponível em: <http://www.policiacivil.pa.gov.br/pol%C3%ADcia-civil-deflagra-
opera%C3%A7%C3%A3o-para-apurar-venda-de-partos-e-abortos-ilegais-em-
reden%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 22 out. 2019.
―As autoras de Estupro: crime ou „cortesia‟? (1998) explicitam outra contradição nos processos envolvendo o
delito de estupro: apesar da jurisprudência brasileira ser unânime em conferir maior credibilidade à palavra da
vítima em crimes sexuais, na avaliação das provas em caso de estupro é dado pouco ou nenhum valor à palavra
da vítima quando não se caracteriza sua „honestidade‟ – que é avaliada pela vida sexual, afetiva e familiar da
vítima‖. (ANDRADE, 2018 p.76)
17
Pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que somente 10% a
15% dos casos de estupro são reportados às autoridades e entram para as estatísticas.
816
CONCLUSÃO
817
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: 1. Fatos e mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1970. Tradução de: Sérgio Milliet.
818
FUNDO BRASIL DE DIREITOS HUMANOS. Litigância estratégica em Direitos
Humanos. Experiências e reflexões. São Paulo: Fundo Brasil de Direitos Humanos. 124
Disponível em: < http://www.fundodireitoshumanos.org.br/wp-content/uploads/2016/12/
litigancia-estrategia-1.pdf>. Acesso em: 09 nov. 2019.
O aborto dos outros. Revista Fórum, 8 fev. 2012. Disponível em: <
https://revistaforum.com.br/noticias/o_aborto_dos_outros/>. Acesso em: 22 out. 2019
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Aborto sem riscos: guia técnico e políticas para
sistemas de saúde. Genebra. OMS, 2003.
819
RELAÇÕES DE GÊNERO E TERRITÓRIO: considerações sobre as violações de
direitos humanos de meninas ribeirinhas do Arquipélago do Marajó
https://doi.org/10.29327/527231.5-55
Letícia Costa de Carvalho
Universidade Federal do Pará – campus
universitário do Marajó – Breves
RESUMO: Tratamos sobre o quadro de violações de direitos humanos vivido por meninas
ribeirinhas que vivem nos rios do Marajó. Objetivos: i). Debater sobre a exploração sexual e
trabalho infantil a partir dos conceitos de interseccionalidade e território e ii). Realizar
levantamento de registros sobre as principais violações sofridas por meninas ribeirinhas no
Marajó. Realizamos pesquisa bibliográfica e documental, tendo como corpus matérias
disponibilizadas em sites e jornais eletrônicos. Se torna necessário processos analíticos que
tomem a problemática das violações de direitos humanos da infância no Marajó numa
perspectiva de totalidade, visto que é resultado da pobreza, aliada às relações de gênero
que foram historicamente impostas às mulheres marajoaras, que elaboram estratégias de
resistência diante um território que concentra diferentes desafios para a efetivação de
políticas públicas.
PALAVRAS-CHAVE: Interseccionalidade. Território. Amazônia Marajoara. Direitos
Humanos. Ribeirinhos.
ABSTRACT: We deal with the situation of human rights violations experienced by riverside
girls living in the Marajó rivers. Objectives: i). Debate on sexual exploitation and child labor
from the concepts of intersectionality and territory and ii). Conduct survey of the main
violations suffered by riverside girls in Marajó. We carry out bibliographic and documentary
research, having as corpus materials available on websites and electronic journals. Analytical
processes are needed to address the problem of human rights violations of children in
Marajó from a total perspective, since they are the result of poverty, allied to the gender
relations that were historically imposed on Marajo women, who elaborate strategies of
resistance to a territory that concentrates different challenges for the implementation of public
policies.
820
INTRODUÇÃO
821
Partindo desse pressuposto já é possível assinalar que em cada espaço geográfico,
ou melhor, em cada região do mundo existe uma forma de vida diferente, com gostos,
comportamentos e identidades distintas, pois é justamente esses fatores que diferenciam
cada espaço, não se limitando à fauna e a flora ou a quaisquer outros tipos de definição
ambiental, mas se estendendo aos povos que estão inseridos nesses territórios. Assim,
situamos o arquipélago do Marajó como um espaço distinto por possuir diversas
características que são próprias da região amazônica, aqui destacamos a forma de
locomoção, que nesta região é feita pelos rios.
A região Marajoara tem como principal característica a população da área rural, que
formada por pessoas que residem as margens dos rios, e utilizam deste o meio central de
sua subsistência, sendo por este motivo denominados como ―ribeirinhos‖. Chaves (2001,
p.78) diz que ―[...] a localização espacial nas áreas de várzea, nos barrancos, os saberes
sócios históricos que determinam o modo de produção singular, o modo de vida no interior
das comunidades ribeirinhas, concorrem para determinação da identidade sociocultural [...]‖
afirmando que os mesmos por possuírem uma relação intrínseca com a fauna e a flora
configuram uma referência de população tradicional da Amazônia.
822
contam com a presença de um representante da igreja que assume a ―liderança‖ da
comunidade.
823
Como podemos observar, as imagens acima retratam o cenário dos serviços
prestados na zona rural dos municípios marajoaras, que além de estarem em situação
precárias, são os únicos em quilômetros de rios, atendendo uma parte considerável das
comunidades ribeirinhas. De acordo com relatos dos moradores, o posto de saúde da foto
acima, não dispõe de materiais necessários para o atendimento básico, obrigando a única
enfermeira que o posto possui, realizar procedimentos com pouco ou quase nenhum
material.
Lopes (2012, p.21) argumenta que ―[...] questões relevantes que estimulam o
interesse de compreender a infância ribeirinha está relacionado às expressões da questão
social na Amazônia, ou seja, a pobreza, a miséria, a violência, a falta de saneamento básico,
saúde e etc.‖, o que nos permite observar que as mais atingidas por esse quadro de
violação são as mulheres e meninas, principalmente quando nos voltamos para as meninas
negras, pois segundo Biroli (2018) as mulheres negras acompanhadas de seus filhos,
824
ocupam a faixa mais pauperizada da sociedade . Comumente nos deparamos com
notícias que envolvem em suas chamadas palavras chaves como ―Marajó‖, ―prostituição‖ e
―meninas‖, por tal fato, não nos é estranho o termo equivocado ―meninas balseiras‖, que
estigmatiza as meninas ribeirinhas vítimas de exploração e abuso sexual.
Temas como prostituição infantil no Marajó tem ganhado visibilidade desde meados
de 2008, quando denúncias do então Bispo do Marajó, Dom José Luiz Azcona, tomaram
notoriedade. De acordo com o Jornal Extra, em matéria publicada em abril de 2008, o Bispo
afirma que crianças se prostituíam em troca de comida, sendo muitas vezes levadas pelos
próprios pais nas embarcações. O mesmo tema foi abordado pelo G1 Pará, em matéria
publicada em agosto de 2015, no qual o bispo afirma que já viu uma mãe que levava uma
menina de aproximadamente 10 anos para uma dessas balsas.
Em novembro de 2019, a BBC News Brasil, publicou a matéria ―por que a Amazônia
é o pior lugar do Brasil para ser criança‖, esta matéria traz em sua redação visões diferentes
825
de educadores, agente de saúde, pesquisadores acadêmicos, promotores de justiças,
ONGS e moradores locais, que trazem o seu olhar sob as diversas notícias que envolvem a
região. É importante destacar a necessidade aqui do local de fala, deixando claro a
existência de diversas iniciativas já realizadas na região marajoara por profissionais que aqui
estão, movimentos sociais e pela própria Universidade, que na fala infeliz da então ministra
Damares foram atacados e invisibilizados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
826
REFERÊNCIAS
ACOSTA, Ana Rojas e VITALE, Maria Amália Faller. Família: Redes, Laços e Políticas
Públicas. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2005.
BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo:
Boitempo, 2018.
Bispo do Marajó denuncia a exploração sexual na região. Jornal On-line Extra. 14 de abril
de 2008. Disponível em: www.extra.glo.com. Acesso em: 09 de novembro de 2019.
CHAVES, Maria P.S.R. Uma experiência de pesquisa- ação para gestão comunitária de
tecnologia apropriadas na Amazônia: O estudo de caso do assentamento da reforma
agraria Iporá. 2001. Tese (Doutorado em política cientifica tecnológica)- Universidade
Estadual de Campinas, SP.
Crianças são vítimas de exploração sexual na ilha do Marajó, no Pará. Brasil. G1PA, 2015.
Disponível em: www.g1.globo.com. Acesso em: 09 de novembro de 2019.
DANTAS, Eugênia Maria; MORAES, Ione Rodrigues Diniz (org.). Território e
Territorialidade: abordagens conceituais. UFNR/ Biblioteca Central ―zilia Mamede‖, 2008.
Disponível em: www.ead.uepb.edu.br. Acesso em: 07 de novembro de 2019.
FONSECA, Claudia; SCHUCH, Patrice (org). Políticas de proteção à infância: um olhar
antropológico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.
GUEDES, Leonildo Nazareno. “BALSEIRAS” NA IMENSIDÃO FLUVIAL: UMA
ETNOGRAFIA SOBRE RELAÇÕES COMERCIAIS E AMOROSAS PELO RIO TAJAPURU
(MARAJÓ DAS FLORESTAS). Disponível em: www.eventoufal.br. Acesso em: 8 novembro
de 2019.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <ww2.ibge.gov.br>. Acesso
em: 20 de julho de 2019.
LOPES, Adrea Simone Canto. A construção da identidade da infância na Amazônia
ribeirinha: Ilha de Cotijuba. Belém- Pará. 2012.. 209f. Tese (Doutorado) –Faculdade de
Ciências Econômicas da UFRS. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
PACHECO, Agenor Sarraf. Cartografias & fotografia das águas: modos de vida e luta na
Amazônia marajoara. Iluminarias, Porto Alegre, v. 19, n. 46, p. 63 – 98, jan/jul. 2018.
Por que a Amazônia é o pior lugar do Brasil para ser criança. BBC News. Brasil, 2019.
Disponível em: www.g1.globo.com. Acesso em: 09 de novembro de 2019.
827
AT 6 - Gênero, Corpos, Sexualidade
Coordenação
828
ARCO-ÍRIS EM PROSA: REPRESENTAÇÕES DAS HOMOSSEXUALIDADES
E DE TRAVESTIS EM REPORTAGENS DOS PERIÓDICOS DA DÉCADA DE
1970.
https://doi.org/10.29327/527231.5-56
Alana Albuquerque de Castro
RESUMO
ABSTRACT
829
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
uma geração pronta para quebrar todas as regras impostas pela sociedade em busca
de se auto-afirmarem e de agir da maneira que achassem que era mais conveniente
para si. Era um momento de descobertas e de uma luta pela liberdade de ser quem
quisessem ser. Por outro lado, existia uma Ditadura pronta para inviabilizar qualquer
comportamento visto como ―impróprio‖. E o surgimento da Revolução Sexual reflete no
surgimento do movimento Gay Power, que surgiu nos E.U.A e logo foi crescendo no
Brasil.
1 Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade
desviante- homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não
deseja ser integrado e muito menos tolerado. Queer é um jeito de pensar e de ser que não
aspira ao centro e nem o quer como referencias; um jeito de pensar que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do
indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda perturba, provoca e fascina. - LOURO,
Guacira Lopes. – “O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer”. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004.
Os veículos de comunicação da impressa de Belém, mais expressivos na época, Folha do
Norte, A Província do Pará e O Liberal, que mesmo defendendo interesses aparentemente tão
diversos no plano local, refletiam uma certa unidade editorial em relação ao plano federal, a partir
da opinião de seus articulistas e redatores responsáveis pela edição das páginas que tratavam do
noticiário político nacional. Ora mais, ora menos, ora ostensivamente, ora disfarçadamente, a
imprensa em geral clamava pelo golpe. - FERREIRA, Paulo Roberto – ―A
Imprensa e o Golpe Militar de 1964”. Belém, 2007, p. 3.
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São
Paulo: Planeta, 2011, 254p.
830
Em contrapartida a esses movimentos em prol da liberdade sexual que
cresciam, havia uma Ditadura, contrária a qualquer manifestação que fosse de contra
ao seu discurso de ―moral‖ e ―bons costumes‖. O AI-5, instaurado em 1969,
reconfigurando o departamento de censura e propaganda. As censuras se
concentravam em concepções que, supostamente, agredissem o padrão moral da
nação brasileira e, também, em políticas de esquerda que eram consideradas
subversivas. Jornais, novelas, canções e filmes estavam submetidos ao comitê de
4
censura (FICO, 2004, p. 265-270) .
FICO, Carlos. ―A pluralidade da censura das propagandas da ditadura”. In: REIS, Daniel
Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). O golpe e a ditadura militar: 40
anos depois (1964-2004). São Paulo: Editora Edusc, 2004. P. 265-270.
CHARTIER, Roger. ―História Intelectual e História das Mentalidades: Uma Dupla
Reavaliação”. In: A História Cultural: Entre Práticas e Representações. São Paulo: Difel, 2002.
Relatório - Tomo I - Parte II – “Ditadura e Homossexualidades: Iniciativas da
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo” - ―Rubens Paiva‖. P. 2- 5
831
repercussões para o público LGBT, nas publicações que circulavam em 1968, já notava-se
um espaço para uma articulação política, havia no Brasil a tentativa de articular novas
ideias sobre sexualidade, sobre gênero mas, em 1968, com o Ato Institucional n° 5, isso
acaba e os homossexuais começam a ser severamente perseguidos pelos Militares, por
infringirem a ―tradicional família brasileira‖ e a ―moral e os bons costumes‖.
7
Foucault (1988) , não aceita a forma com que a sexualidade é censurada e
malvista pelo sistema. Ele acredita que a sociedade capitalista liga o prazer ao poder. E
ele continua destacando que na Idade Clássica (XVII) e na Idade Antiga, o sexo não era
visto como irregular e não possuía uma moral unificada, imposta à todos da mesma
maneira, como é o caso das mulheres – exceto pelas cortesãs – que não possuíam toda
essa liberdade. O mesmo, diz que a sexualidade começou a ser regrada depois que o
capitalismo burguês juntamente com o cristianismo a tornou pagã pela sua moralidade,
FOUCAULT, Michael. In: A História da Sexualidade, V2. 1ª ed. São Paulo/SP. Graal, 2010.
832
com o discurso de ―Vigiar e Punir‖, com o intuito de definir o que devia ser permitido e o
que devia ser proibido, e que se acaso não possuíssemos controle sobre a sexualidade,
estaríamos condenados a adultérios, à homossexualidade e a falta de castidade. Depois,
esse modelo acabou sendo substituído, pelo controle capitalista e pela ―polícia do sexo‖,
decidindo o que devia e o que não devia ser dito sobre sexualidade, tanto pela mídia,
quanto pelos demais meios de conhecimento. Trazendo assim, controles pedagógicos e
tratamentos médicos em torno de qualquer coisa sexual que fosse considerada
―imprópria‖, os moralistas e os médicos trouxeram a abominação. Tornou-se um controle
de população, não se pretendia apenas uma sociedade sexualmente relevante
economicamente, mas que a mesma estivesse ligada à política conservadora. Contudo,
embora a homossexualidade tenha sido condicionada pela moralidade, ela não deixou de
existir, não deixava de ser presente, ainda que fosse escondida.
833
denominada de ―a profissão mais velha do mundo‖. E que atende as
necessidades fisiológicas dos homens não casados. Mas se enquadra
no comércio dos sexos, dentro das leis naturais da fisiologia. A
homossexualidade, ao contrário, aberra da própria natureza e por isso
sempre foi condenada pelos códigos. (ANDRADE, Theophilo de.
Crime Contra a Natureza. A Província do Pará, Belém/PA, 28 agost.
1970. Caderno 3, p. 5 – Biblioteca Pública Arthur Viana. CENTUR.
Belém/PA.)‖ ―Esta (união entre homem e mulher), foi criada pela
natureza como um engôdo, visando a reprodução, engôdo que o
homem na marcha ascencional do espírito, sublimou no amor. Sair
disto é uma degradação e chegar ao ponto de defender juridicamente,
casamento entre pessoas do mesmo sexo, como acaba de fazer
aquela advogada, é querer rebaixar o homem a nível inferior ao dos
animais. E o homossexualismo é considerado um crime contra a
natureza. (ANDRADE, Theophilo de. Crime Contra a Natureza. A
Província do Pará, Belém/PA, 28 agost. 1970. Caderno 3, p. 5 –
Biblioteca Pública Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA.)‖
834
Jordão Vasconcelos refutou a ideia de alguns padres holandeses, que
aconselham a realização do casamento entre pessoas do mesmo
sexo desde que seja respeitada a fidelidade entre os nubentes e que
estes tenham realmente vida em comum. E acrescentou: ―além dos
impedimentos de ordem legal, existem as reprovações morais que
tornam impossível a celebração do casamento entre homossexuais, é
um ato sem sentido e seria absurdo que esta ideia fosse admitida pois
faria surgir uma população inteiramente degenerada.‖ (Juiz contra
casamento de Homossexuais. - Jornal Folha Vespertina, 06 de
outubro de 1970, p. 3 – Biblioteca Pública Arthur Viana, CENTUR.
Belém/PA)
Podemos perceber com essa manchete, que já contém um título chamativo,
para ganhar o olhar do leitor, que o jornal dando voz a esse juiz, acaba perpetuando
seu discurso repleto de uma repressão linguística clara evidente sobre a
homossexualidade. Utilizando palavras como ―reprovação moral‖ e ―inteiramente
degenerada‖, comprovam a aversão do juiz a homossexualidade, e a contribuição do
jornal banhado das mesmas ideias por ser um periódico apoiador da Ditadura e acabar
transmitindo isso em manchetes com esse tipo de teor.
―A esta altura do campeonato vai ver cês já tão (olá, Transbrasil!) por
dentro do perereco. No que dá a gente ser forçado a escrevinhar com
relativa antecedência. De qualquer forma lá se vai: Saibam que, Ney
Matogrosso, o nossa amizade que dá aquelas de segurar bandeja no
―Secos e Molhados‖ né nada do que vocês pensam. Pai de família, dois
filhos, sujeito sério, coisa e tal. Ney, que já tem 32 anos é sim, um
batalhador. E se faz aquilo tudo é só mesmo para garantir o mingau das
crianças. Post-scriptum – Vocês não acham que o cara também não
precisava de exagerar no rebolado? (A Província do Pará, Belém, Pará,
23 março, 1974. Coluna do Chacrinha, Caderno 6, p. 5)‖
835
a moral sexual. Outros grupos trilhavam caminhos parecidos, como, por exemplo, os
"Secos e Molhados", cuja figura mais expressiva, Ney Matogrosso, continua na
mesma linha, ainda que hoje choque menos que antes. Como se vê, as coisas mudam
e é interessante observar como o questionamento dos papeis sexuais pode ser
transformado em produções artísticas legitimas e amplamente "curtidas", até pelo
atual público de Ney, em que parecem predominar respeitáveis vovozinhas e seus
netinhos. Enquanto durava o sufoco, pouco mais era possível e a contestação
permanecia confinada a pequenos grupos ou a um minúsculo setor social frequentador
deste tipo de espetáculo teatral. (FRY, Peter, 1985, p. 20)
O jornal esclarece que Ney tem dois filhos e que só se porta de tal modo para
―garantir o mingau das crianças‖, associam a imagem de Ney a um homem batalhador
e condizente com um ―sujeito sério‖. Subentende-se com isso, que se tornava
inadmissível aceitar que um artista do porte de Ney, fosse considerado ―afeminado‖,
como a homossexualidade era rejeitada pela sociedade, era necessário esclarecer a
orientação sexual de Ney, por causa da sua visibilidade, por medo que as pessoas se
acostumassem com a ideia e também com o intuito de ―defender a honra do artista‖.
No fim da reportagem, eles perguntam se a sociedade também achava que ele deveria
exagerar menos no rebolado, de uma forma um tanto irônica, criticando a postura de
Ney, dando a entender que um homem de família, de boa postura, não deveria se
portar daquele modo, deixando claro mais uma vez a postura intolerante do jornal em
relação a qualquer resquício de diferença dos ―padrões‖.
836
a travestis expostas ao olhar vigilante da repressão, sobretudo nos
pontos de prostituição, onde eram enquadradas nos crimes de
vadiagem (por não terem emprego com registro) ou de perturbação
da ordem pública; censura à imprensa, ao teatro, às artes e as outras
formas de expressão que simbolizavam de forma aberta as
sexualidades, muitas vezes com o respaldo do sistema de justiça;
homofobia e lesbofobia institucionalizadas nos órgãos de repressão e
controle... expurgos de cargos públicos... difusão, pela imprensa, do
preconceito contra os „desvios‟, para reforçar a ideia de degeneração
dos valores morais e o estereótipo do „inimigo interno‟ que justificava
a repressão e agravava os preconceitos... Isso sem mencionar os
casos de homofobia e de machismo, velados ou não, cometidos no
interior do próprio campo da resistência à ditadura.‖ (QUINALHA,
Renan, 2014)
Como vimos anteriormente, o Ato Institucional n°5, trouxe à tona uma série de
mudanças que ocorreriam em nosso País, censuras aumentaram, mais órgãos de
repressão foram criados e inaugura-se então os anos que seriam conhecidos como
―anos de chumbo‖ da Ditadura. Priore (2011), fala de como as coisas ficaram mais
difíceis com a explosão da Ditadura Civil-Militar, com a censura e a repressão do Ato
Institucional n°5. É nesse contexto, pós AI-5, mais precisamente no dia 09 de janeiro
de1971, é quando a censura atinge as travestis.
837
estavam escondidas, como elas estavam procurando seu espaço e resistindo a
censura. Logo após a censura, que foi anunciada em janeiro, em fevereiro do mesmo
ano começou a organização para o carnaval, contudo, como as travestis estavam
proibidas de saírem ―montadas‖ as ruas, nem mesmo a comissão organizadora queria
interceder, por medo da polícia.
838
do teatro deparava-se costumeiramente com viaturas da polícia fazendo questão de
mostrar seu poderio bélico, apontando canos de metralhadoras pelas janelas, o deboche
bem-humorado dos Dzi Croquettes parecia abrir uma brecha para a expressão de alguma
forma de não-conformismo. Se não era possível criticar publicamente o regime ou o
sistema econômico, questionava-se as bases sagradas da vida cotidiana.
839
Como podemos perceber com a manchete acima, embora as travestis
estivessem tentando achar mecanismos de conseguir organizar e frequentar seus
espaços, havia uma ditadura pronta para punir com prisões se fosse necessário, na
tentativa de não manchar a ―moralidade‖ da nação. O jornal dá bastante destaque
colocando a manchete em primeira página mas não deixa de usar uma linguagem
repressiva e pejorativa no tratar com este grupo identitário.
Segundo Mary Del Priori (2011), com os movimentos pela valorização das
minorias que a questão da mulher começou a mudar de forma. A sexualidade deixava
de ser considerada algo mágico ou misterioso que escaparia aos progressos técnicos
ou à medicina. A pílula foi aceita por homens e mulheres, não só porque era confiável,
mas, sobretudo, por ser confortável. As mulheres começavam a ganhar voz, e a ter
possibilidade de falar de assuntos que antes não eram falados abertamente. Ainda
assim, essa liberdade não era bem quista pelo Regime Militar. O momento em que o
Brasil vivia, era uma total contradição as liberdades individuais que vinham ganhando
força no mesmo período e não é equívoco dizer que tenha sido por isso as tantas
formas de protestos que existiram como maneira de combater a repressão. Eram os
anos de ―chumbo‖, pós Ato Institucional Número 5, que fez com que a censura aos
meios de comunicação e a questão da ―subversão‖ fossem tratadas com mais afinco
pela Ditadura.
840
―Pois bem, uma das diferenças fundamentais entre a homossexualidade
masculina e a homossexualidade feminina, é que – em geral – o
lesbianismo consiste muito mais na manifestação dos ―sentimentos
amorosos‖ , do que na realização de verdadeiros atos sexuais. (ROSSI,
Ornela. Lesbianismo, a homossexualidade ―platônica‖. A Província do
Pará, Belém/PA, 15 out. 1978. Caderno da Mulher, p. 11. – Biblioteca
Pública Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA.)‖ ―A homossexualidade
feminina (que é, portanto, mais frequente entre solteiras) aumenta com a
idade: é assinalada, de fato, num índice de 2-3 por cento entre os 15-20
anos de idade – num índice de 5-8 por cento entre os 20-30 anos de
idade – de 10 por cento entre os 30-40 anos de idade. Sucessivamente,
tende a diminuir. Na maioria das mulheres a atividade homossexual
permanece circunscrita num determinado período de tempo, que – em
geral – não ultrapassa 3 anos. (ROSSI, Ornela. Lesbianismo, a
homossexualidade ―platônica‖. A Província do Pará, Belém/PA, 15 out.
1978. Caderno da Mulher, p.
– Biblioteca Pública Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA.)‖ ―Não se
trata de um comportamento inato e sim adquirido. Isso é, uma mulher não
nasce lésbica, mas lésbica pode tornar-se no decorrer do seu
desenvolvimento psico-sexual. (...) Não se trata de uma verdadeira
doença e muito menos de ―perversão‖ ou de um ―vício‖. É – isso sim –
uma variante do comportamento feminino usual. Finalmente, nas
mulheres que tem forte motivo para recusá-lo e que desejam integrar-se
também socialmente na heterossexualidade, o lesbianismo pode ser
eventualmente eliminado, com tratamentos psicológicos e psiquiátricos.
(ROSSI, Ornela. Lesbianismo, a homossexualidade ―platônica‖. A
Província do Pará, Belém/PA, 15 out. 1978. Caderno da Mulher, p. 11. –
Biblioteca Pública Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA.)‖
Ainda que o jornal diga que não considera uma doença e muito menos uma
perversão, ele se contradiz em vários pontos. Primeiramente, dizendo que as relações
homossexuais entre os homens se diferem da feminina porque na feminina existe
afeto, deixando claro portanto que o jornal acredita que a masculina é algo carnal e
superficial, mais uma vez mesmo que de forma implícita demonstrando seu
desconforto para com a homossexualidade.
841
manchete traz críticas a integração das lésbicas ao movimento feminista, dando um
exemplo de um filme que se divulgava sendo um filme feminista, mas que trazia duas
lésbicas como protagonista, o que causa um claro descontentamento da colunista da
reportagem.
Além de uma moralidade imposta pela ditadura, vemos nessa manchete uma
moralidade que recorria até mesmo dentro do movimento feminista e assim como na
reportagem anterior, enquadrando a homossexualidade feminina mais uma vez como
uma ―neurose‖ e como algo que se torna possível devido as ―decepções
heterossexuais‖. Sobre essa relutância do movimento feminista em acolher as
mulheres lésbicas, Peter Fry (1985), fala que no Brasil, como em outros países, as
lésbicas encontraram uma forte relutância inicial, mas agora já superada, por parte das
feministas, em admitir em suas organizações mulheres que faziam questão de se
assumirem publicamente como homossexuais. A orientação sexual das lésbicas não
deixava de causar estranheza e até repulsa nas feministas heterossexuais. Isto ocorria
apesar de muitas mulheres homossexuais já estarem vivendo suas vidas de acordo
com os ideais de autonomia pessoal que, para muitas das feministas, ainda não
passava de aspirações a serem realizadas em um futuro não-imediato.
842
nas reportagens e a exclusão das lésbicas até dentro do movimento feminista.
Contudo, o trato para com o lesbianismo é bem mais brando e mais sutil, mas não
deixam de através da sutileza revelar uma repressão simbólica. É importante lembrar
que se trata de uma década travada pela Ditadura, e que que as representações
contidas no jornal muito se atribuem ao fato de que essas também eram as opiniões
propagadas pelo governo. Podemos perceber claramente essa diferença no tratar com
as homossexualidades, voltando para a reportagem da censura as travestis, que foram
censuradas, proibidas de participar abertamente do carnaval, contribuindo para o que
Foucault (1988) fala sobre a moralidade capitalista e cristã, onde a feminilidade do
homem não era aceita e muito menos bem vista. Se atrelarmos esse discurso a
Ditadura, acaba fazendo total sentido, principalmente pelos discursos da mesma
sempre se basearem na moralidade e no respeito para com a família tradicional e fica
evidente isso nas reportagens que acabei de citar. Onde homossexuais masculinos e
travestis são considerados aberrações, ameaças que não podem conviver com a
sociedade e a homossexualidade feminina tida como passageira e mais ―amorosa‖.
843
governo e seus apoiadores, que frequentemente utilizavam de discursos hostis para defini-
la. A censura do Regime Militar, compactuando com o conservadorismo da sociedade da
época, faziam com que esse pensamento homossexual e das travestis, fosse excluído,
mesmo com as tentativas de se viabilizarem por meio de seus grupos de sociabilidade,
eram silenciados. Havia apenas um modelo ideal para ser considerado seguido pelos
cidadãos e os ― arco-íris‖ estavam longe de ser esse padrão ideal.
REFERÊNCIAS
FOUCALT, Michael. In: A História da Sexualidade, V2. 1ª ed. São Paulo/SP. Graal,
2010.
ANEXOS
844
Fonte: Jornal A Província do Pará, 28 de agosto de 1970, p. 5 – Biblioteca Pública Arthur Viana,
CENTUR. Belém/PA.
845
Fonte: Jornal A Província do Pará, 23 de março de 1974, Coluna do Chacrinha, p. 6 –
Biblioteca Pública Arthur Viana, CENTUR. Belém/PA.
Fonte: Jornal A Província do Pará, 09 de janeiro de 1971, p. 2 – Biblioteca Pública Arthur Viana,
CENTUR. Belém/PA
Fonte: Jornal Folha Vespertina, 31 de julho de 1971, p. 1 – Biblioteca Pública Arthur Viana,
CENTUR. Belém/PA
846
Fonte: Jornal A Província do Pará, 15 de outubro de 1978, p. 11 – Biblioteca Pública
Arthur Viana. CENTUR. Belém/PA
847
EROTIZAÇÃO E SEXUALIZAÇÃO DO CORPO:
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA MULHER BRASILEIRA
https://doi.org/10.29327/527231.5-57
Resumo:
Abstract:
It is understood that social representations are multiple ways of knowing and making known, and
this diversity resulting from the expression of different intentions. This text proposes to discuss
the social representations that eroticize and sexualize Brazilian women in the city of Oiapoque.
To this end, the bibliographical research of this literature was conducted on how the media
represent the Brazilian woman. The reflected empirical data were collected in two trips to the city
of Oiapoque in May 2017 and October 2018, when it was applied the technique of direct
observation. As a result, the social representations that sensualize and sexualize Brazilian
women have direct consequences on the migratory projects of these women.
848
Introdução
Aqui são apresentados resultados parciais de uma pesquisa mais ampla a respeito
das mulheres brasileiras em casamentos exogâmicos na Guiana Francesa. Para os limites
deste texto se propõe discutir as representações sociais que erotizam e sexualizam a mulher
brasileira. Entende-se que as ―[...] representações sociais são uma forma de conhecimento
socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a
construção de uma realidade comum a um conjunto social [...]‖ (JODELET, 2002, p. 22).
A ideia é utilizar dessa conceituação para interpretar como se organiza a sociabilidade
das brasileiras em suas experiências de vida quando se encontram em situação de imigração na
Guiana Francesa. Se tem a hipótese empírica que o primeiro contato que essas mulheres
tiveram com indivíduos da Guiana Francesa aconteceu na cidade de Oiapoque.
Sociabilidade se refere a forma lúdica de associação, conceito apresentado por
Simmel ao discutir a autonomização dos conteúdos sociais em relação aos indivíduos,
processo pelo qual as intencionalidades e finalidades são liberalizadas, as formas de
associação passam a existir ― [...] puramente por si mesmas e por esse estímulo que delas
irradia a partir dessa liberação, uma vida própria, um exercício livre de todos os conteúdos
materiais; esse é justamente o fenômeno da sociabilidade. (2006, p. 64) ‖.
A migração de brasileiros e brasileiras para a Guiana Francesa se inicia em meados
de 1960, ocasião em que indivíduos oriundos das mais diferentes regiões do Brasil
ingressaram nessa coletividade territorial do ultramar da França para trabalhar na
construção da base aéreo-espacial de Kourou. Cumpre lembrar que nesse contexto não
havia exigências burocráticas e/ou legais para a entrada desse contingente de pessoas, que
se sustentou por aproximadamente uma década (MARTINS, 2016), atualmente é exigido um
visto para entrar na Guiana Francesa.
Nessa primeira onda migratória a presença de mulheres migrantes era bem pequena,
geralmente aquelas que se aventuravam em um projeto migratório o faziam para
acompanhar um homem, fosse marido ou outro membro familiar. Aproximadamente três
décadas depois um outro evento passa a atrair novos movimentos migratórios para território
guianense: a garimpagem de ouro. (DUARTE, 2016; PINTO, 2016).
Muitos desses novos migrantes, mesmo entrando sem os documentos requeridos
pelas autoridades franco-guianenses conseguiam se regularizar por meio de um contrato de
trabalho ou casando-se com pessoas de nacionalidade francesa, sendo que nessa última
situação a maioria dos imigrantes era formada por mulheres (HIDAIR, 2008). Esse fato teve
como efeito problemas na sociabilidade das mulheres brasileiras imigradas para a Guiana
Francesa, em especial com as mulheres francesas. A problemática transcende a vaidade
que alimenta a rivalidade, pois o que Hidair capturou em sua pesquisa revelou que
849
De um lado, as mulheres brasileiras de origem socioeconômica
extremamente humilde, que abandonam seus lares em busca de
melhores condições de vida e na esperança de enriquecer. De outro
os homens metropolitanos – em situação profissional bem melhor do
que a delas – que projetam nessas mulheres a ideia de que a vida
sexual é mais liberada nos países quentes do que na Europa. (2008,
p. 137).
850
conhecimento e com ele opera num mundo da vida caracterizado por essa diversidade
em articulação.
O texto está organizado em três seções, na primeira parte se procura caracterizar a
fronteira franco-brasileira para situar o leitor em relação ao lócus da pesquisa. A seguir são
tecidas ponderações sobre o conceito de representações sociais e sua funcionalidade como
saber prático nas vivências cotidianas. Na sequência são feitas algumas inferências sobre o
fenômeno da migração transfronteiriça na fronteira franco-brasileira. Nas considerações
finais se indicam caminhos que conduzem a searas ainda carentes de escrutínio pela
pesquisa, particularmente em áreas de fronteira internacional.
Entre Amapá e Guiana Francesa localiza-se a fronteira que coloca como vizinhos um
país sul-americano (Brasil) e um europeu (França). No mapa 1 encontra-se a representação
do espaço da fronteira franco-brasileira com a localização da cidade de Oiapoque e a vila de
Saint Georges. A travessia de aproximadamente vinte minutos numa pequena embarcação
motorizada através do rio Oiapoque garante a manutenção da mobilidade de pessoas entre
as duas coletividades.
A faixa de fronteira brasileira possui cerca de 17 mil quilômetros de extensão,
correspondendo a 27% do território nacional, seu desenho inclui 11 estados fronteiriços, 10
países vizinhos e 32 cidades gêmeas (BRASIL, 2009). Dentre essas Oiapoque e Saint
Georges ou São Jorge (mapa 1), localidades classificadas como cidades-gêmeas devido ao
alto grau de interação entre seus moradores.
851
Fonte: elaborado por Eduardo Q. de Lima (2018)
Espaço definido como o conjunto que agrega a margem do rio, o muro de arrimo, as ruas Joaquim Caetano da Silva e Santos Dumont, as avenidas
Barão do Rio Branco, Coaracy Nunes e Nair Guarani.
852
tema do qual partilham ou sobre o qual querem se entender, na vida
sociável, o discurso se torna um fim em si mesmo [...] como arte de
conversar (SIMMEL, 2006, p. 75, grifo do autor).
853
subjetivas. Nas ciências sociais a noção de representação social torna-se relevante para
entender o processo em que intencionalidades passam a produzir demandas coletivas.
Afirma que a teoria das representações sociais é organizada em torno da premissa
relativa a existência de múltiplas formas de conhecer e se fazer conhecer, ou seja de se
comunicar; sendo essa diversidade decorrente da manifestação de distintas
intencionalidades. A autora organiza duas dimensões da vida social onde se manifestam tais
formas, a consensual que ―[...] se constitui principalmente na conversação informal, na vida
cotidiana [...]‖; sendo a outra a científica ―[...] com seus cânones de linguagem e sua
hierarquia interna‖. (2002, p.130), sendo essa última enfatizada na presente reflexão.
Podemos trazer à discussão um exemplo que Jodelet (2002) utiliza no caso das
representações sociais da AIDS. Quando a síndrome surgiu na década de 1980 não se
sabia muito sobre contágio, sintomas, sequelas e tratamento; mas esse início foi
acompanhado da emergência de uma concepção moral e social que passou a funcionar no
sentido de interpretar sua significação e assim a visão moral converteu a AIDS em estigma
social que produziu o ostracismo dos portadores da síndrome e, ato contínuo, sua rejeição.
Por outro lado, os estigmatizados ou excluídos, foram induzidos a submissão ou revolta.
Com essas inferências a autora explica que as representações sociais servem a
agência dos indivíduos sobre o mundo e sobre os outros, pois compõem um conjunto de
ideias e concepções capazes de influenciar diretamente na estrutura de um objeto ou nas
vidas das pessoas. São capazes de criar um conhecimento que é compartilhado
socialmente e interpretado em diferentes dimensões sociais, contudo a autora lembra que
colocar em circulação uma determinada representação é um ato de vontade do indivíduo:
para partilhar e preciso acreditar.
Nesse sentindo, compreendendo as representações sociais como sistemas de
interpretação que possuímos com o mundo, temos a erotização e sexualização da mulher
brasileira publicizadas através de diferentes meios de comunicação, tais como o rádio,
televisão, internet; e de discursos como novelas, letras das músicas, notícias, propagandas.
Saberes anteriores que se atualizam em práticas existenciais também funcionam
como campo estruturado e estruturante de representações sociais. Na busca de provocar
algumas discussões sobre as questões relacionadas as representações da mulher brasileira
2
se destaca a Carta de Pero Vaz de Caminha , primeiro documento escrito sobre o Brasil,
nele são citadas meticulosamente „as vergonhas‟ das mulheres indígenas, fomentando um
imaginário de erotismo, beleza e sexualidade aflorada.
Pero Vaz de Caminha, escreveu “A Carta” registrado suas impressões sobre a terra que depois foi chama de Brasil, este é o
primeiro documento escrito da história do Brasil. Disponível em
http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf
854
Nessa carta a mulher indígena é retratada como exótica e em certo trecho ela é
comparada à mulher europeia por meio de discurso com forte apelo sexual: ―E uma
daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e
tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da
nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela‖.
No romance ―Iracema‖ (1865) de José de Alencar consagram-se o nacionalismo e
indianismo como fundamentos da ancestralidade do povo brasileiro. A obra traz como
alegoria da construção da história nacional o relacionamento amoroso e sexual entre o
homem europeu e a mulher indígena. O corpo curvilíneo de Iracema é puro e doce, mas
indutor aos prazeres da carne. A metáfora dos „lábios de mel‟é usada para conotar que sua
virgindade é a honra e o mel dos lábios é como o favo que a abelha fabrica no tronco da
andiroba: tendo na doçura o veneno (ALENCAR, 1865).
O romance atribui centralidade tanto a beleza quanto aos sentimentos de Iracema
em sua relação com Martín, uma paixão que lhe torna disposta ao sacrifício; pois mesmo
sendo a matriz da nação Brasil, carrega o desejo de se relacionar com o colonizador
guerreiro. Essa concepção foi identificada nas conversas com mulheres brasileiras
entrevistadas na cidade de Oiapoque de conseguir se casar com um francês. Cumpre
ressalvar que primeiramente elas imaginam a união a um francês da França continental, o
guianense é uma opção tangencial (Diário de campo, maio de 2017, Oiapoque).
Outro exemplo é a obra ―Casa grande & senzala‖ (1933) de Gilberto Freyre, a partir
da qual foi se organizando uma matriz conceitual fundamentada na sexualização do
desenvolvimento sócio-histórico brasileiro. Bastante divulgada tanto nacionalmente, como
internacionalmente, a obra acabou por se tornar referência no conhecimento sobre o Brasil
e sua população, pois que ―... Ele fala do Brasil a partir de dentro e não como objeto natural.
Seu pertencimento ao seu objeto dá ao seu texto uma impressão de autenticidade, de
verdade imediata e interior ‖ (REIS, 2003, p. 52).
Freyre (2006) ao etnografar as vivências cotidianas nos engenhos da região açucareira
do nordeste do Brasil caracteriza o colonizador português como um tipo contemporizador no
relacionamento com indígenas e negros, esse comportamento decorria das imanências
herdadas do período em que a península ibérica foi objeto de ocupação do Islã.
Dessa convivência dos ibéricos com os mouros resultou a construção de
representações sobre a mulher moura, de corpo curvilíneo, lábios carnudos e pele escura. A
imagem da mulher moura veio a compor o pensamento do colonizador na fundação de uma
sociedade nos trópicos, de maneira que o ―[...] ambiente em que começou a vida brasileira
foi quase de intoxicação sexual [...]‖ com mulheres da terra se entregando nuas aos ―[...]
brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses‖.
(FREYRE, 2006, p. 161).
855
O exotismo e o apelo sexual são explícitos nessas representações das mulheres
indígenas, que são inseridas no contexto da colonização com seu interesse sexual no
colonizador. Ao discutir a relação entre feminino e masculino em ―Casa grande & senzala‖
Fátima Quintas argumenta que
A mulher índia, indefesa, logo se encantou diante da
―excentricidade‖ do Ocidente. Atraiu-se por ninharias. O
europeu trazia a ―modernização‖, o progresso, as
vantagens de uma mágica civilização. Fechou os olhos
essa mulher ingênua, para possíveis desacertos e
lançou-se freneticamente à loucura da cupidez. De tudo
fez para copular. E copulou. (QUINTAS, 2008, p. 25,
grifos da autora).
856
brasileira gosta de sexo, é uma mulher fácil e/ou está em
busca de um relacionamento com um estrangeiro pode
acabar por ser reforçada nos imaginários dos receptores
dada a constante presença deste tipo de notícias nos
meios de comunicação. (BADET, 2016, p. 25).
A partir dos estudos de gênero temos por definição que ―Gênero não pretende significar
o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma
pessoa, gênero está ligado à sua construção social como sujeito masculino ou feminino. ‖
(LOURO, 1996, p. 9). Com isso temos uma estrutura de relação de poder entre esses,
nos quais dentro da sociedade patriarcal existe papéis específicos para cada um.
857
Há representações dos homens subjacentes a estrutura de dominação sobre as
mulheres, apoiadas em ideias, valores, crenças, símbolos, tradições, ritos constituídos em
instituições estatais, religiosas, civis e comerciais. Isso se observa também em questões
relativas a sexualidade humana, de acordo com Peres e Toledo (2011) existem linhas
disciplinadoras – sexo/gênero/desejo – que generificam os corpos em masculino e feminino.
Com isso machos são eroticamente designados para corpos femininos e fêmeas do mesmo
modo aos corpos masculinos.
Dessa perspectiva compreende-se que a erotização e sexualização da mulher
brasileira ―[..] intervêm na ação sobre o mundo social, na medida em que essa ação se apoia
no conhecimento que os atores sociais têm deste mundo e de sua própria posição
(JODELET, 2018, p. 428). Como exemplo as propagandas comerciais publicizadas pela
Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), criada em 1966 durante o período da ditadura
militar e subsidiada pelo governo brasileiro com objetivo de implantar uma infraestrutura
turística no Brasil.
Algumas peças publicitárias (Ilustração 1) divulgadas no exterior vendiam a imagem
do Brasil tendo como aporte a mulher brasileira como um produto turístico. Especialmente
nos anos 1970/80 as imagens de mulheres de biquíni, sem um contexto ou grandes
explicações expressa a valorização dos corpos femininos, particularmente o „bumbum‟
3
Fonte: Guias da Embratur (1970; 1980)
MONTOVANI, Flávia. No passado, Brasil já teve material oficial de turismo com apelo sexual. G1 São Paulo. 27/02/2014. Disponível em:
http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2014/02/no-passado-brasil-ja-teve-material-oficial-de-turismo-com-apelo-sexual.html. Acesso
em: 25 de set. 2019.
858
São imagens que incitam o pensamento criado pelo próprio colonizador, reiterado pelo
colonizado: a simbolização do corpo da mulher brasileira em sensualidade e prazer sexual.
Ideias de que as mulheres brasileiras são sensuais, exóticas, submissas e, principalmente,
disponíveis para o sexo é explicitado pela afirmação de Jodelet (2002) que o sentido simbólico
atribuído por um sistema de pensamento tem sua efetividade não na sua circulação entre muitos
indivíduos e sim em como esse compartilhamento passa a ter efeitos nos indivíduos que também
o pensam, ou seja, como o grupo passa a pensar em relação ao objeto pensado.
produção dessas representações repercutiu―[...] nas modalidades de elaboração
dessas produções mentais sociais, mas também à forma pela qual elas intervêm na
linguagem e nas práticas sociais para gerara efeitos sociais. (JODELET, 2018, p. 430) ‖.
Deste modo fica evidenciado o poder de desvelar, constituir e instituir uma realidade que se
reproduz em diferentes escalas espaciais.
Essa construção frente a mulher se encontra dentro do Brasil, mas historicamente foi
exportada em diferentes meios no cenário internacional. Temos a ―mulher brasileira‖
compreendida aqui como objeto de análise, como um produto em uma ação performática
das relações históricas de poder, além da relação dos outros elementos como os
estereótipos sobre as mulheres brasileiras ligando gênero, raça e classe social.
Assim podemos compreender que esses estereótipos também são fruto do processo
da colonização brasileira. Connell (1998) aponta que o colonialismo teve impacto na
construção de uma ordem global de gênero, a qual construiu masculinidades diferentes e
hierarquizadas entre homens da metrópole e homens das colônias, além de fomentar
estigmas e violências contra as mulheres criando um imaginário colonial associando ao
erótico e exótico.
Essas concepções provenientes do imaginário colonial estão presentes sobre as
mulheres no Brasil, no seu dia a dia, e em um cenário maior, pois esses estigmas são
carregados como características natas das mulheres brasileiras, então dentro de um projeto
migratório, as mulheres brasileiras são identificadas e compreendidas através dessas
representações sociais. Essas que podem influenciar diretamente no projeto migratório de
uma mulher compreendida como nacional brasileira.
Migração e gênero
No que tange aos fluxos migratórios, a Guiana Francesa pode ser considerada como
um local de imigração. No total, os imigrantes representam 35,5% dos habitantes. Os grupos
mais expressivos são os surinameses, os haitianos e os brasileiros. Hoje, esses indivíduos
respectivamente, ocupam as seguintes posições numa escala percentual: 13,8%, 8,8% e
8,7% da população (INSEE, 2015).
859
A mobilidade humana no espaço é um fenômeno que envolve ―[...] frequências,
distâncias, e formas diferenciadas, e é uma condição da migração [...]. Migrar, além da
mobilidade geográfica, implica troca o ambiente familiar e social [...]‖ (ARAGÓN, 2013, p. 215).
Dessa perspectiva se entende que se mover/migrar é intrínseco a existência humana, tendo
desdobramentos no tocante ao ambiente, a cultura; a sociedade, a política e a economia. Com
as inovações tecnológicas que ampliaram a conectividade no espaço movimento passou a ser
uma palavra que caracteriza os modos de perceber, pensar, sentir na contemporaneidade.
No tocante a migração e gênero temos dentro dos estudos migratórios uma certa
lacuna no que tange aos estudos migratórios que têm mulheres como protagonistas, devido
a vigência da tese de o migrante é sempre um homem; isso acabou por restringir ―[...] as
possibilidades da pesquisa empírica e produziu premissas teóricas equivocadas [...]‖
(PERES, 2004, p. 2). Cumpre chamar atenção que os temas mais interessantes aos
pesquisadores eram voltados a aspectos laborais, demográficos, leis migratórias, ações dos
estados entre outros.
Com a crescente relevância dos movimentos de mulheres e estudos de gênero, a
temática mulheres e migração passa a ter mais relevância no cenário internacional e debates
sobre a temática se tornam mais explorados. Percebe-se uma feminização da migração, não
tanto por um aumento quantitativo no número de mulheres em situação migratória, mais pelo
protagonismo delas na construção de projetos autônomos e redes migratórias no mundo todo.
No entanto, ainda que o ato de migrar traduza uma agência, nos contextos em que a
migração consiste em uma estratégia de busca por melhores condições de vida para si e
para suas famílias, é relevante notar outro ponto: a vulnerabilidade e possíveis condições de
exploração, discriminação a que as mulheres migrantes ficam submetidas. (SACKUR et al.,
2015). Nessa direção, o excerto abaixo explicita a condição da mulher brasileira migrante na
Guiana Francesa ―[...] a maioria dos homens metropolitanos usa e abusa de sua condição
de superioridade para atrair as mulheres brasileiras sem o menor intuito de lhes oferecer
uma relação estável [...] ‖ (ALMEIDA, 2004 apud HIDAIR, 2008, p. 138).
Sobre isso podemos destacar as mulheres brasileiras migrantes em Portugal, que já
possuem uma identificação própria, carregada de estereótipos específicos (simpatia, alegria,
sexualidade aflorada, sensualidade) que condicionam posições que os brasileiros vão
ocupar no mercado de trabalho e experiências que têm de enfrentar cotidianamente
(PADILLA et al., 2010).
Destaca-se no trabalho de Mariana Gomes (2013) um exemplo presente na mídia
portuguesa foi a reportagem de capa da revista Focus, cujo título ―Eles adoram-na, elas
odeiam-na: Os segredos da mulher brasileira‖ A reportagem, já no primeiro parágrafo,
aborda os casamentos entre portugueses e brasileiras, definindo-as como oriundas das
―Terras de Vera Cruz‖ alusão direta ao processo de colonização.
860
Ilustração 3- Imagens na Revista Focus, capa da edição 565, 2010
4
Fonte: Revista Focus (2010) .
861
por fim na organização de sua sociabilidade. São mulheres em situação de discriminação,
sujeitas a múltiplas violências.
sabido, que o perfil da imigrante brasileira é fundamentalmente composto por
jovens que trabalham em espaços específicos voltados ao atendimento ao público e nos
setores envolvendo limpeza e cuidados de crianças e idosos. E que carregam consigo essas
representações sociais referentes a sua nacionalidade, que ora podem se orgulhar e
demonstrar que são mais do que essa concepção de um corpo, ora podem se manter
caladas aos estigmas que sofrem.
As representações sociais são concepções transcendentais as especificidades,
são produzidas nas vivências sociais, sendo também sua expressão.
Considerações finais
As representações do que é ser mulher e brasileira, em algumas situações são bem
antigas. Datando do período colonial no Brasil, quando colonizadores se aproveitavam das
mulheres indígena e negra para satisfazerem suas necessidades sexuais (FREYRE, 1998).
Esse fato histórico relaciona a mulher brasileira ao sexo e à nudez. Essa herança colonial
permanece viva na história oficial contada pelos portugueses porque foi um discurso do
colonizador em relação ao colonizado.
Percebe-se como as representações sociais sobre a categoria ―mulher brasileira‖
influencia diretamente no projeto migratório das brasileiras que saem do país, carregando
estereótipos frente a sua própria nacionalidade. Como Jodelet (2002) destaca, as
representações sociais se inserem em conjuntos de valores, cuja variação exprime a
diversidade de grupos que lhes originam.
Como ocorreu dentro do processo histórico do Brasil essa representação dos corpos
das mulheres brasileiras, essa visão do corpo colonizado, reiterado por questões de raça e
classe social, temos os resquícios desse pensamento voltado à exposição e exploração das
mulheres brasileiras. Ainda hoje, há uma perspectiva voltada aos corpos, as curvas
voluptuosas, a sensualidade, ao exótico.
Reforçado pela mídia brasileira e exportado para o cenário internacional, temos nos
livros históricos, essa representação das mulheres brasileiras. Até mesmo dentro da
Empresa Brasileira de Turismo temos a contribuição das peças publicitária que por décadas
reforçaram a venda do turismo brasileiro a partir das mulheres desse país.
O reflexo disso foi a compreensão de um turismo sexual voltado para o Brasil, a
busca pela mulher brasileira como um produto nacional aberto para o consumo, reforçado
pela Embratur (Empresa Brasileira de Turismo) e pelo próprio governo brasileiro.
Dentro dessas representações sociais temos um conjunto de características que
reforçam maiores estigmas, como a erotização e sexualização de mulheres indígenas e
862
negras. Além disso ainda hoje há uma compreensão que a mulher brasileira tem o ideário de
busca pelo marido europeu, o marido vindo do estrangeiro e isso é visto dentro dos
exemplos citados, em especial as peças publicitárias das revistas portuguesas.
Correlacionando as informações discutidas neste trabalho, percebemos o quanto a
representação social das mulheres brasileiras foi construída através de uma compreensão
machista, patriarcal e colonizadora. Os corpos das mulheres brasileiras ainda são
compreendidos como como corpos coloniais disponíveis ao sexo e exóticos. E essa
compreensão é pautada no nosso processo histórico e reforçada dentro dos meios de
comunicação, rádios, novelas e peças publicitárias.
Assim, as mulheres brasileiras migrantes sofrem diretamente com os estigmas que
o objeto de análise ―mulheres migrantes‖ possui. Influenciando diretamente no seu processo
migratório, suas vivencias e como vão reagir frente a possíveis discriminações e violências.
Referências
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863
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A GAROTA DINAMARQUESA: FUGA AO PADRÃO DICOTÔMICO DE HOMEM
E MULHER NO SÉCULO XX
https://doi.org/10.29327/527231.5-58 1
Flamilda de Moraes Paiva
2
Sandra Nazaré Dias Bastos
O filme inspirado na vida real de Einar Wegener (Lili Elbe) na década de 20 transcende o
tempo tornando-se atual e urgente à discussão sobre o tema abordado. O presente trabalho
objetiva apresentar uma análise do que é ―ser‖ mulher e homem dentro dos padrões sociais
do início do século passado e que ainda são tão vigentes atualmente, distinguir teoricamente
os conceitos de sexo e gênero, proporcionando reflexões teóricas para melhor compreender
pessoas transgêneros e seus enfrentamentos. Para tanto, adota-se uma metodologia de
pesquisa bibliográfica, já que, se faz pungente fomentar discussões a respeito dos direitos
velados, os enfrentamentos e resistências desta parcela da sociedade; assim, sendo, pensa-
se o recurso midiático ancorado à literatura como ferramenta que proporcione problematizar
as construções históricas, sociais e culturais de corpo, gênero, sexualidade lançando um
olhar que repense essas afirmações possibilitando a desconstrução do ser.
The real-life film by Einar Wegener (Lili Elbe) in the 1920s transcends time, making it current
and urgent to discuss about the present topic. The present work aims to present an analysis
of what it is to be ―woman‖ and man within the social standards of the beginning of the last
century and which are still so current today, theoretically distinguish the concepts of sex and
gender, providing theoretical reflections to better understand transgender people. and their
confrontations. Therefore, a bibliographic research methodology is adopted, since it is
poignant to foment discussions about the veiled rights, the confrontations and resistances of
this part of society; Thus, it is thought the media resource anchored to the literature as a tool
that allows to problematize the historical, social and cultural constructions of body, gender,
sexuality, launching a look that rethinks these statements allowing the deconstruction of
being.
1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia –
PPLSA/UFPA, Campus Universitário de Bragança. E-mail: flamildamp@gmail.com
2 Doutora em Educação em Ciências, Docente do Programa de Pós Graduação em Linguagens e
Saberes na Amazônia – PPLSA/UFPA, Campus Universitário de Bragança. E-mail:
sndbastos@gmail.com
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Mesmo que aborde episódios ocorridos há um século, o filme A Garota
Dinamarquesa trata de questões de gênero urgentes e atuais (ALVES, 2017). Iniciamos o
texto abrindo reflexões, sobre a perspectiva do que é "ser" mulher e homem no início do
século passado, e mais do que isso, de que a forma vigente ainda se manifesta como
produto de uma sociedade moldada sob os termos biológicos, marcando os corpos e
definindo formas de ser e estar em determinados espaços.
Essas reflexões nos levam às teorias de Laurete (1994) a referir-se às questões de
gênero como construção, que se faz por meio de sua desconstrução, quer dizer, em
qualquer discurso (feministas ou não) que veja o gênero como apenas uma representação
falsa. O gênero como o real, e não apenas o efeito da representação, mas também o seu
excesso, aquilo que permanece fora do discurso.
A autora reforça o sentido de construção como processo que vem se efetuando hoje
no mesmo ritmo de tempos passados, como na era vitoriana, por exemplo, pois continua a
ocorrer não só onde espera que aconteça como na mídia, nas escolas públicas e
particulares, nos tribunais, na família nuclear, extensa ou monoparental. A construção do
gênero também se faz, embora menos obviamente, na academia, na comunidade
intelectual, nas práticas artísticas de ditas de vanguarda, nas teorias radicais, e até mesmo
de forma bastante fecunda, no feminismo (LAURETE, 1994).
Desse modo, os meios midiáticos, como as telas cinematográficas por exemplo, são
importantes ferramentas na construção e sustentação nos modos de subjetivação. Para
Fischer (2006), a tela opera como uma espécie de processador daquilo que ocorre no tecido
social, de tal forma que ―tudo‖ deve passar por ela, ―tudo‖ deve ser narrado, mostrado,
significado por ela, dando ação ao produzir determinados modos de ser.
Assim, nota-se que as questões de gênero fazem-se presentes em uma ampla rede
de produções, moldando e configurando perfis que se apresentam socialmente, justificativa
que nos remete a pensar os diferentes modos de estabelecer as relações de corpo,
sexualidade, identidade e gênero ao pensa-lo como produto e produção das categorias
sociais.
Pensemos no corpo como um processo em modulações, variações de existência
sendo o primeiro lugar onde a sociedade sempre esbarra, imprimindo sobre ele uma espécie
de escrita viva na qual as forças imprimem ―vibrações‖, ressonâncias que cavam
―caminhos‖, o sentido no qual o próprio corpo se desdobra e nele se perde como num
labirinto ((LE BRETON, 2003).
Ao percebermos o corpo como campo de escrita, onde os membros passam por um
sistema simbólico de ressignificação, Beatriz Preciado (2015), afirma que sendo o gênero
também um jogo de escrita, o corpo é socialmente construído como texto em
868
desdobramento, um arquivo da história humana, do qual certos códigos se naturalizam,
alguns ficam à margem e outros são sistematicamente eliminados ou riscados.
Corpo em processo, modulações, vias da diferença, fala- se de um corpo
desconhecido, fora das fixações, não anexado, que é pessoal, que não se faz em molduras
biológicas, que foge às regras e que ao subverter os padrões, quebra as lógicas identitárias
hegemônicas que fazem da carne lugar existencial de pertencimento. Mas, afinal de contas,
o que (ou quem) compõe esse corpo? Quais são os espaços que o atravessa? O próprio
corpo aqui emerge como ponto de interrogação, como uma problemática, um código, um
incômodo das imagens confortáveis que criamos para nós mesmos.
Para Silva e Valença (2016) é preciso, a partir das imagens que projetamos como via
de regra, problematizar o corpo como construção social, política, histórica e cultural.
Percebê-lo enquanto texto que constantemente fala, problematiza, educa ou deseduca
aquele que o lê. Desta forma, é pertinente lembrar os fatores que levam alguns corpos a não
serem ―aceitos‖ durante o curso da história.
Nessa vertente, Castro e Moira (2016), nos falam de um corpo que existe em sua
inscrição, atravessado por um campo discursivo determinado. É este limite discursivo que a
experiência trans extrapola ao articular estratégias que rompem o campo da inteligibilidade
de gênero, dando espaço a novos fluxos que desestabilizam a fixidez das identidades e da
norma. Ou seja, o corpo é lugar de um processo constante de construção e movimento,
fazendo-se lugar primordial de passagem, transição, e sobretudo, apropriação de identidade.
Sevar os corpos, avaliar, medir e classificar a partir das concepções de Louro é:
Dar-lhes uma ordem; corrigi-los sempre que necessário, moldá-los às
convenções sociais. Fazer tudo isso de forma a que se tornem aptos,
produtivos e ajustados - cada qual ao seu destino, um trabalho incessante,
onde se reconhecem - ou se produzem - divisões e distinções. Um processo
que, ao supor "marcas" corporais, as faz existir, inscrevendo e instaurando
diferenças (LOURO, 2000, p. 61).
A autora fala de corpos que são configurados por padrões sociais desde o
nascimento a seguir caminhos previamente determinados, falas a serem pronunciadas,
cores a serem usadas e modos de ser que cumprem papéis sociais ―aceitáveis‖ ou não. O
que faz com que determinados espaços nos ensinem sobre ser e estar no mundo, nos
educam e nos fornecem conteúdos a serem reproduzidos em corpos como produto
carregado de imagens e símbolos advindo principalmente dos recursos midiáticos. Sob este
viés, o sistema midiático.
tornou-se nas sociedades modernas talvez o principal fator gerador e
difusor de símbolos e sentidos. Símbolos e sentidos estes que geram
tanto sentimentos de identificação e de pertencimento como de
anomia e exclusão. Onde a partir dos discursos e das visões de
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mundo produzidos pelos sistemas de representação simbólica, os
sujeitos podem se posicionar e construir sua identificação com
determinados papéis, perfis, significados (MOREIRA, 2003, p.11).
Logo, estes recursos que alcançam e atravessam todo o corpo social estão
presentes na contemporaneidade não apenas como fonte de informação ou entretenimento,
mas como uma eficiente maquinaria que ensinam e, mais do que isso, intensificam olhares.
Nesse sentido, Fischer (2006) faz referência à tela como um lugar privilegiado de
diversos e diferentes modos de aprendizagem, diz que ―aprendemos com ela desde formas
de olhar e tratar nosso próprio corpo, até modos de estabelecer e de compreender
diferenças: diferenças de gênero, políticas, econômicas, étnicas, sociais e geracionais‖. Isso
nos leva a problematizar como narrativas midiáticas são eficientes em dar visibilidade a
formas de ser e estar na sociedade em que vivemos, modulando performances de gênero
que transitam como falas, gestos, sentimentos, vestimentas, que conferem não apenas
visibilidade, mas regimes de verdade às modulações das categorias de gênero.
As películas cinematográficas produzem posturas reservadas para homens e para
mulheres em determinados contextos, compondo roteiros para produzir sujeitos, passando
pelos modelos constituídos a priori para caracterizá-los. Nesse sentido,
870
Levando em considerações os padrões atribuídos socialmente para homens e
mulheres é válido questionar como essas diferenças são construídas e que as relações de
gênero são compreendidas como aquilo que diferencia socialmente as pessoas. Dessa
forma, Louro (2007) defende que as questões de gênero foram conceitos desenvolvidos
para contestar a naturalização das diferenças sexuais em diversos espaços de disputa,
enquanto a sexualidade é formada sobre como as pessoas se expressam através de seus
desejos e prazeres na relação com os outros indivíduos e com seu próprio corpo.
A autora chama a atenção para as representações produzidas sobre essa questão.
Para ela não são propriamente as características sexuais, mas a forma como essas
características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas
que que vão construir efetivamente o que é feminino ou masculino em uma dada
sociedade e em um dado momento histórico.
Por essa perspectiva, Judith Butler (p. 25, 2003), refere-se ao sexo como sendo ele
próprio, uma categoria tomada em seu gênero; ele também é o meio discursivo/cultural pelo
qual a ―natureza sexuada‖ ou um ―sexo natural‖ é produzido e estabelecido como ―pré-
discursivo‖, uma superfície politicamente neutra, sobre a qual age a cultura.
Nesse sentido, a identidade não é algo inerente ao sujeito, mas um efeito que se
manifesta em um regime de diferenças, num jogo de códigos. Ao discutir a produção das
diferenças e desigualdades, é preciso considerar os desdobramentos nos processos sociais
mais amplos que marcam e conformam sujeitos como diferentes, em função do gênero,
corpo, raça, sexualidade, classe sociais, incluindo num processo significativo que restitui no
discurso e na matéria, as representações valorativas que dão sentido às relações sociais
(TONELI, 2012). Sendo assim, por um primeiro impulso consideramos que o aprendizado
em torno de ―ser homem‖ e ―ser mulher‖ ocorre por meio de uma socialização de ―papéis
sexuais‖ (SENKVICS E POLIDORO, 2012, p. 18).
O gênero, então, fornece um meio de codificar o significado e de compreender as
complexas conexões entre várias formas de interação humana, de acordo com as
características visíveis e invisíveis, travado em um contexto histórico, que associa tempo,
lugar e espaço, incorporado para homens e para mulheres. Nessa perspectiva, Stuart Hall
(2005) fala que, as identidades não são fixas como tendo um único ponto de partida. Elas
são móveis, formadas e transformadas nas diversas relações às quais somos submetidos.
Nós somos representados ou interpretados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Como
definição histórica e, não dado de forma inata, o sujeito assume identidades diferentes em
determinados momentos de sua história e da história da humanidade.
O que nos remete que falar de identidade é falar de identificação, das maneiras
como os olhares nos atravessam e nos definem como sujeitos inatos, constituídos dentro
dos diversos espaços sociais, preenchendo o nosso exterior e interior, nas formas através
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das quais nos imaginamos ser vistos por outros. Pensamos na identidade como parte de
nossa natureza essencial com a qual nascemos e desenvolvemos no decorrer de nossa
existência. No entanto, sob a perspectiva de Hall (2005, p. 47,) essas identidades não estão
literalmente impressas em nossos genes, elas estão sendo constantemente formadas e
transformadas.
Diante desse cenário, trazemos nesse texto algumas discussões e
problematizações que versam sobre corpo, sexualidade, gênero e identidade. Fazemos isso
a partir de um filme que pretende contar a história real do corpo transexual de Lili Elbe,
artista que em seu processo de construção identitária desmonta e desconstrói as marcas de
seu corpo biológico.
Exercitar o olhar sobre as telas cinematográficas, de acordo com Furlani (2013 p.
não somente é importante como necessário, pois nos ajuda no processo de desconstrução
de determinadas normalidades que nos são impostas. Considerando o fato de que ―a mídia
não apenas veicula, mas também constrói discursos e produz significados, identidades e
sujeitos‖ (FISCHER2001, p. 588), é preciso colocar em questão as diferenças que ali são
instituídas de maneira sutil e continuada considerando que as regras linguísticas são criadas
num contexto histórico de poder, e se assim acontece, elas também poderão ser
modificadas.
Essas discussões cabem na atualidade por compreendermos que corpos trans
vivenciam intensa exclusão social tanto no mercado de trabalho como nas escolas sendo
esse espaço um locus de construção, apropriação e assimilação das diferenças. Isso nos
leva a questionar: até que ponto a escola inclui em suas rotinas o corpo diferente? Quais os
corpos estão autorizados a transitar por ali? Em quais espaços? De que maneira esse corpo
que é dito diferente desenha resistências para viver as rotinas escolares?? Nessa direção,
Louro pontua que:
Em sua materialidade física, o prédio escolar, informa a todos/as sua razão
de existir. Servindo-se de recursos materiais, de símbolos e de códigos, a
escola delimita espaços, afirma o que cada um/a pode ou não pode fazer,
separa e institui. Para aqueles e aquelas que são admitidos em seu interior,
a escola determina usos diversos dos tempos e do espaço, consagra a fala
ou o silêncio, produz efeitos, institui significados [...] é na instituição que
imprime, através de um aprendizado eficaz, continuo e perspicaz, que
ambos, incorporam gestos, absorvem movimentos, habilidades e sentidos,
simultaneamente, eles e elas respondem, reagem, acatam e rejeitam.
Envolvidos/as por inúmeros dispositivos e práticas, os sujeitos constituem
suas identidades ―escolarizadas‖ (LOURO, 2001, p. 87).
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como uma das referências empíricas dos corpos que não seguem uma estética de gênero
dominante, pois, o currículo proposto pela escola tende a sugerir uma equivalência e caráter
homogêneo aos que nela habitam (SILVA e VALENÇA, 2016). Não raramente episódios de
violência marcam, apontam e são direcionadas àqueles corpos apontados como ―fora do
padrão‖. Esse corpo sofre constantemente por não se enquadrar nos esquemas sociais de
gênero, o que podemos observar nas vivências narradas no filme A Garota Dinamarquesa.
A partir desse filme, pretendemos discutir como práticas discursivas falam (e por isso
produzem) o corpo transexual, analisando as representações do feminino e do masculino a
partir de seu personagem principal.
3
A invenção de identidades sociais em A Garota Dinamarquesa : visitando os perfis de
Gerda, Einar e Lilli
O filme mostra a cinebiografia de Lili Elbe, que nasceu Einar Mogens Wegener e foi a
primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mudança de gênero. Como trama central o
filme focaliza no relacionamento amoroso do pintor dinamarquês com sua esposa Gerda e
4
sua descoberta como mulher .
No enredo Gerda nos é apresentada como uma mulher em dissonância aos padrões
da época. Independente e moderna era estudiosa e culta. Mesmo que vivesse à sombra do
talento de seu marido, procurava se afirmar como pintora de retratos, gênero considerado
menor uma vez que não exigia processos criativos mais elaborados.
Gerda é a principal responsável pelo surgimento de Lilli. A partir de um pedido inocente,
para finalização de um quadro, ela pede a seu esposo Einar que use o vestido de sua amiga
Ana para que possa terminar os detalhes de seu quadro. Ela pede: ―Poderia me ajudar como
uma coisa?‖. Gerda seria capaz de fazer um pedido tão transgressor a seu marido, se antes
não tivesse percebido nele qualquer traço de feminilidade ou desejo reprimido de ver seu
corpo em uma roupa feminina?
Ante a resposta de que faria ―qualquer coisa‖ para ajudá-la, Einar é envolvido pela
possibilidade e experimentar algo novo. Relutante em princípio, ele pede que a mulher
guarde segredo. Como num jogo, ele se aproxima do belo vestido e observa seus detalhes,
acaricia sua textura, coloca-o à sua frente experimentando a imagem no espelho. Masculino
e feminino se sobrepõem numa espécie de flerte. Um início de reconhecimento. O encontro
de Einar e Lilli (que nesse momento ainda não tem nome) é assim descrito:
Ficha Técnica: Título do filme: A Garota Dinamarquesa; Título Original: The Danish Girl; Cor
filmagem: Colorida; Origem: EUA; Ano de produção: 2015; Gênero: Drama; Duração: 120 minutos;
Classificação: 14 anos; Direção: Tom Hooper; Elenco: Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Amber
Heard, Matthias Schoenaerts..
4 Sinopse e trailer do filme disponíveis em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140552/
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Algo naquele vestido – o brilho opaco da seda, o peitinho de renda no
corpete, as casas dos botões nos punhos desabotoados e escancaradas
feito pequenas bocas – fez Einar ter vontade de tocá-lo. - Gostou? –
disse Gerda.
Ele pensou em dizer não, mas seria mentira. Gostava do vestido, e quase
podia sentir a própria carne amadurecendo embaixo da própria pele
(EBERSHOFF, 2016, p. 20).
Não é possível afirmar se antes dessa ocasião Einar vivesse algum conflito identitário de
gênero. Seria provável que Gerda já o identificasse, porém não era capaz de repudiar? Teria
ela usado essa oportunidade para, propositalmente, despertar em Einar um novo olhar para
seu corpo?
Em outras cenas do filme (e do livro) Gerda é retratada em ações não esperadas para
mulheres daquela época. Ela insiste para ser acompanhada por Lilli em baile onde a
apresenta como prima de Einar. Lá, ela observa à distância, Lilli atrair olhares e ser
cortejadas por vários homens que ficam fascinados pela beleza e delicadeza de sua
acompanhante. Também é ela quem busca procedimentos médicos que pudessem ajudar
Lilli a se sobrepor a Einar que aos poucos vai desaparecendo da vida social.
Embora se perceba uma subversão do sujeito Gerda aos patrões sociais de
representatividade da figura feminina, ainda é possível identificar características
desempenhadas por ela que correspondem aos estereótipos traçados para uma mulher: Ela
mostrada como carinhosa, sensível aos problemas do esposo, ela se mantém fiel a ele e o
acompanha em todas as fases de sua transformação. Ela se submete às modificações
corporais em nome do amor que sente por ele. Renuncia ao seu bem estar, ao amor que
sente por Einar para que Lilli possa, não apenas aparecer, mas assumir de uma vez por
todas o lugar de Einar. Em outras palavras, são essas as responsabilidades impostas pela
sociedade a uma mulher casada e que são assumidas pela mulher como condição de vida.
Butle (2003) considera que ainda que tentemos nos distanciar da construção do patriarcado
universal não sendo mais possível lhe dar tanta credibilidade como se fez no passado a
concepção genericamente compartilhada das ―mulheres‖ no corolário dessa perspectiva,
tem se mostrado muito mais difícil de superar.
Nesse caminho, o filme nos faz refletir sobre os diferentes espaços ocupados pelas
mulheres, em especial na sociedade ocidental. Sabemos que a mulher quase nunca foi
objeto de análise para a compreensão de uma sociedade. Quase nunca eram citadas ou
consideradas como peças importantes ou determinantes conquistas sociais. Tampouco lhes
era conferida a possibilidade de falar e escrever sobre si mesmas. No entanto, quando
analisamos obras semelhantes à Garota Dinamarquesa e lança-se o olhar para Gerda,
esposa de Einar, observa-se uma mulher que está além do seu tempo? ou simplesmente
uma mulher que não conhecíamos porque não se tinha registros sobre ela, não era vista em
espaços públicos e não era mencionada nas grandes histórias da humanidade?
874
Em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem
parte da ordem das coisas. É a garantia de uma cidade tranqüila. Sua
aparição em grupo causa medo. Entre os gregos, é a stasis, a desordem.
Sua fala em público é indecente. "Que a mulher conserve o silêncio, diz o
apóstolo Paulo. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi
Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão.
Elas devem pagar por sua falta num silêncio eterno (PERROT, 2007, p.16).
.
A história bíblica é uma das justificativas para a história da invisibilidade feminina, assim
como alguns conceitos advindos da ciência, principalmente da área das Ciências Biológicas
que enfatizou em determinado momento histórico que o corpo feminino era incompleto
portanto, inferior e incapaz de ter as mesmas possibilidades de vida tal e qual o corpo
masculino. Seja pelo viés bíblico ou científico o que se aponta é o silêncio no qual as
mulheres estiveram submetidas por séculos, mas tal condição, não pode ser vista como
inata do gênero feminino, mas sim uma construção social e arbitrária.
Por sua vez, Einar também é mostrado como diferente ao que se espera, ou se
desenhava, para o papel masculino daquela época.
Fisicamente Einar era um homem incomum; disso Gerda sabia. Pensava
nisso quando a camisa se abria ainda mais e todos à mesa espiavam o
peito dele, que era obsceno feito o seio de uma menina recém-entrada na
puberdade. Com aquele cabelo bonito e o queixo liso feito uma xícara, ele
apresentava um quadro intrigante. [...] seus lábios eram mais rosados do
que os bastões coloridos que Gerda comprava (EBERSHOFF, 2016, p.28).
Um sujeito inicialmente em ascensão profissional como pintor, tinha reconhecimento e
uma boa colocação como artista de prestígio, na qualidade de pintor produzia pinturas de
pântanos e paisagens tristes como se fosse a forma encontrada para expressar sua própria
vida. A vida que adormecida dentro de seu corpo ainda não havia encontrado a fresta por
onde sair e se dar a conhecer.
Aquele quadro específico era escuro, um pântano ao crepúsculo durante o
inverno. Uma linha fina de neve encardida era a única distinção entre o solo
esponjoso e o céu (EBERSHOFF, 2016, p. 34).
Einar pintava constantemente as mesmas paisagens com as mesmas cores escuras
deixando transparecer o homem melancólico, frágil e nada viril o que o afastava de um perfil
masculino que socialmente é desenhado para os homens. No relacionamento conjugal se
mostra sem voz ativa e se deixa ser confortavelmente e convenientemente conduzido pelas
ideias da esposa. Em sua busca por sanar seus conflitos interiores que refletem na sua
inconformidade com a aparência física e biológica é identificado como louco, pervertido e
esquizofrênico. Tais adjetivos são frutos de uma época na qual se tinha pouco conhecimento
sobre a fabricação de sujeitos que se afastavam da norma. Qualquer
875
configuração corporal ou de comportamento que fugisse ao pré-estabelecido socialmente
era entendido como anormalidade. Esse transtorno mental, portanto, era passível de
tratamento e, portanto, uma cura deveria ser procurada e alcançada.
Contemporaneamente, já se tem outros discursos sobre esses sujeitos pautados nos
diversos estudos que comprovam que o sujeito e seu corpo estão imersos as configurações
sociais e culturais, havendo assim diferentes possibilidades existência. Sob essa perspectiva
Bento (2014), defende que o corpo como um texto, se encontra em constante construção
social, como tal, se trata de um arquivo vivo da história do processo de construção e
reprodução sexual, portanto, não se deve pensar no corpo como algo pronto, uma essência,
pois essa visão caracteriza-se como reducionista e insuficiente, uma vez que corpo e gênero
são plurais e por isso, capazes de se reatualizar e ressignificar discursivamente.
876
nova vida apaixonando-se por homens cisgêneros e alimenta a esperança de ser mãe. A
maternidade se mostra a Lilli como o ápice de sua nova vida, apogeu de sua existência.
Tanto é assim que seu último investimento é submeter-se a um transplante de útero e
ovários, procedimento esse totalmente novo e arriscado que lhe custa a vida. Lilli é uma
mulher singular, lutadora, que se arrisca a ir até o fim em nome de alcançar sua felicidade.
Ela é diversa e plural que é agente ativa na fabricação de seu ―eu‖
o "eu" que se oporia à sua construção é sempre parte dessa construção de
alguma maneira para articular sua oposição; Além disso, o "eu" obtém em
parte o que é chamado de "capacidade de ação" pelo próprio fato de estar
envolvido nas mesmas relações de poder às quais pretende se opor
(BUTLER, 2010, p. 181).
Em consonância, Lili vivem uma relação dialética com o ser e existir superando seus
limites, os limites da medicina, o limite social e o limite cultural impostos a ela. Lili Elbe torna-
se precursora na caminhada de resistência contrariando todas as expectativas de vivencia
de gênero, sexo e sexualidade para a sua época, a história do seu corpo como o primeiro a
ser submetido a uma cirurgia de redesignação de sexo, e a opção de viver conforme a
identidade feminina, num momento histórico tão poroso de instabilidades políticas, iminência
de guerras, nazismo entre outros conflitos humanos e sociais, atitudes que a imortalizam e a
torna referência no campo da luta contra preconceitos de mulheres trans, assim como para
os estudos acerca das desconstruções de gênero, ainda que não fosse essa a sua
pretensão.
Considerações finais
Em nosso cotidiano, se passando por diferentes espaços, o sujeito é confrontado
com afirmações que delimitam as posições que pode (ou deve!) ocupar. Essas instâncias
estão ao alcance dos olhares e dos desejos que localizam não só os espaços, mas quais
sentimentos ou ações cada um deve assumir.
Nesse sentindo, Paraíso (2001, p. 142) argumenta que ―quando acionamos o
controle remoto da televisão ou o olhar sob as telas da mídia, somos conduzidos/as a um
leque de entretenimento que funcionam como uma espécie de "educadora eletrônica" das
novas gerações‖. A incidência das realidades tecnológicas é cada vez mais evidente, sobre
todos os aspectos da vida social e os deslocamentos visíveis que ocorrem na esfera
intelectual. Diante disso, somos obrigados a reconhecer que as tecnologias atuais e,
especialmente a televisão, como um tema político de grande importância nesse novo tempo.
Nesse sentido, o mundo irreal da televisão, pode afetar as formas de pensar o mundo real
(Morais; Oliveira; Marangoni, 2011).
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Essas materialidades que rompem as cores, o romance e os dramas das telas do
cinema e que adentram as salas de aula, estruturado como espaço que constrói formas de
pensar, escapa por entre as rachaduras dos atravessamentos deslocando o corpo e
marcando constantemente o lugar da diferença. Esse lugar não é somente de espaço, mais
de próprio corpo.
Dentro do espaço escolar, segundo Silva e Valença (2016) por muitas vezes os
corpos passam por um processo de silenciamento, aprendendo no silêncio o que deve se
efetivar no social sobre todas as questões que não podem ser retomadas e
problematizadas, pelo motivo de que um discurso dominante a subjugou como algo
impróprio de se falar ou questionar.
Não apenas na escola, mais por outras instâncias sociais como a família e a igreja,
os conceitos e normas culturais fazem dos corpos transexuais um espelho da diferença,
excluindo essas pessoas por não preencherem as normas escritas para elas. Ocorrendo
assim, o silenciamento do corpo, da voz, dos modos de ser e estar em na camada social, ao
ser apresentado como construção que resulta de interpretações que traz como pano de
fundo as relações de poderes (COLLING, 2004).
Nesse contexto, podemos frisar que é na escola que se tem o primeiro contado com
a diferença, por se tratar de um espaço que acolhe as muitas formas de existência. A mídia
como ferramenta de educação, pode ser ponto de referência para marcar discursões acerca
das temáticas de preconceito, violência e modos de sentir o mundo, compreendendo que é
nesse espaço que os corpos são visualizados, apontados e configurados dentro de
determinados conceitos. Pensando assim, ser possível trilhar esse caminho no olhar para
além das identidades fixas e impostas, e pensar que a escola pode aproximar o cinema em
consonância com a literatura como e objeto que difunde o conhecimento (FANTIN, 2007).
Pensar a mídia e a escola como difusor de conhecimento, trazendo para dentro dos
muros escolares essas discussões, visamos provocar a desnaturalização desses discursos
e municiar nosso olhar com outras formas de ver o que nos remete ser "natural". Olhares
que nos incitem a ver e pensar de forma múltipla, encarando os corpos como produção
singular de sua identidade, borrando o termo da diferença, como conceito que define uma
pessoa, e não como armadilha para velar o preconceito.
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878
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880
TERRITORIALIDADES HOMOSSEXUAIS NA CIDADE DE IMPERATRIZ-MA:
reflexões a partir da realidade social vivenciada no bar ―Imigrantes‖
https://doi.org/10.29327/527231.5-59
Jackson Santos de Sousa/UEMASUL
Jailson de Macedo Sousa/UEMASUL
Resumo
In the present study we reflect and seek to understand about the territorialities
constituted by LGBT groups, in which gays and / or lesbians appropriate a certain
territory, projecting their identities on it. It can be noted that the construction of the
territory and, consequently, the territorialities of the subjects contribute to the
construction of their identities. We tried to understand at first the multiple meanings of
territory and territoriality, considering the territorial identity of the bar Imigrantes. We
seek to work in this research the conception of territory, taking into account the
symbolic-cultural dimension, which is characterized by building the territory through
people's experiences, which symbolize the cultural practice.
881
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Cisgeneridade (Cis) em estudos de gênero, é um termo para pessoas cuja identidade de gênero
corresponde ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento com base em seu sexo biológico.
Sabe-se que a comunidade LGBT engloba lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e
transgênero. Porém, nosso estudo está direcionado aos gays e lésbicas, pois, são os
frequentadores de maior rotina do bar Imigrantes.
882
múltiplos significados de território e de territorialidade, tendo em vista a identidade
territorial do bar Imigrantes, que é popularmente conhecido como um bar gay, sendo
que os proprietários não são e afirmam que o bar é um espaço hétero.
Porém, os frequentadores3 do bar se reconhecem como gays, lésbicas e
alguns héteros, que vão ao bar tomar uma cerveja gelada, conversar, socializar entre
si, sem discriminações. Assim, o bar se torna um ambiente de diversidade. Com isso,
fica explicito que estes sujeitos projetam suas identidades neste território.
Em vista disto, o crescente aumento das construções de um pensamento
livre, faz com que esses sujeitos coloquem em questão, os seus direitos. Portanto, fica
explicita a construção das territorialidades homossexuais neste bar.
A partir desse cenário, o homossexual ocupa espaços dos quais poderá
manifestar as suas identidades, podendo assim, os sujeitos se sentirem mais
confortáveis e livres, fora das represálias, repreensões impostas pela sociedade.
reconhecido que, essa temática foi introduzida no contexto das ciências
humanas, incluindo, a Geografia, neste período recente, ou seja, a partir da década de
1980. Percebe-se que a ciência geográfica não tinha muita preocupação com o
território em seus estudos. Evidentemente, a Geografia introduziu esta concepção com
muito atraso. Teve como base os estudos desenvolvidos no âmbito das ciências
sociais que já vinham discutindo sobre essa temática, através das correntes
humanistas, como afirma Roberto L. Corrêa (2000):
O bar, ou seja, o território investigado abriga toda a comunidade LGBT, mas, é importante
ressaltar que na cidade podemos encontrar outros estabelecimentos direcionado a esse
público, havendo uma partilha de público em diferentes estilos.
883
grupos sociais estigmatizados, carecem dos seus próprios territórios, para sua
sociabilidade.
Essa pesquisa traz consigo um conhecimento muito valioso, não somente
para mim, como pesquisador, mas para tantos outros que poderão ter acesso a ela, e
poderão romper os preconceitos e quebrar o tabu que muitas pessoas têm de
territórios ou localidades de Imperatriz-MA ou qualquer outro lugar que tenha no
ambiente essa identidade gay ou de diversidade, assim, contribuindo para erradicar a
intolerância e a crueldade contra os homossexuais.
A construção da pesquisa cientifica se materializa por meio de um
planejamento que se estrutura através diversas etapas. O processo de planejamento
da pesquisa cientifica exige o levantamento de indagações pertinentes para
transformar o estudo em pesquisa. A problemática direciona o caminho da pesquisa e
os procedimentos que serão usados para respondê-la.
Segundo Gil (2008, p. 33), na acepção cientifica, problema é ―qualquer
questão não resolvida e que é objeto de discussão, em qualquer domínio do
conhecimento‖. Assim, podem ser considerados como problemas científicos no âmbito
das ciências sociais as indagações que rodeiam a vida social das pessoas. Usaremos
esse argumento para compreendermos o território do bar Imigrantes e as dinâmicas
das relações socais dos frequentadores. Com base nesta afirmação destacada por Gil
(2008) sobre o problema essa investigação científica, apresentamos a seguir, as
principais indagações que nortearam este estudo.
Questão Norteadora:
Questões Específicas:
884
Objetivo Geral:
Objetivos Específicos:
Refletir sobre os padrões sociais que fazem com que os gays e/ou as lésbicas de Imperatriz se
identifiquem e produzam os seus territórios.
885
―o objetivo de conhecimento para a fenomenologia não é o sujeito nem o mundo, mas
o mundo enquanto é vivido pelo sujeito‖. Como afirma Gil:
Por isso, para reforçar a construção dessa pesquisa, serão utilizadas técnicas
de pesquisa como observação e entrevistas no bar Imigrantes, sendo este o território
de análise do estudo em pauta, assim, pode-se analisar as territorialidades existentes.
Dessa forma, será possível apresentar resultados, relatos e falas dos próprios sujeitos
inseridos nesse dinâmica de território, territorialidade e identidade territorial.
Segundo Gil (2008, p. 100) a observação constitui elemento fundamental para
a pesquisa. Desde a formação do problema, passando pela construção de hipótese,
coleta, análise e interpretação dos dados, a observação desempenha papel
imprescindível para a pesquisa. A observação é o uso dos sentidos com vista a
adquirir conhecimento necessário para o cotidiano.
Para Gil (2008, p. 101), segundo os meios utilizados, a observação pode ser
estruturada ou não estruturada. De acordo com o grau de participação do observador,
pode ser participativa ou não participativa. Podemos classificar segundo Gil (2008) três
tipos de observação nesse contexto, observação simples, participante e sistemática.
Nesse ponto de vista, podemos dizer que observação simples vai se
caracterizar como aquela em que o pesquisador terá um contanto superficial com o
886
grupo ou situação que pretende estudar. A observação participante consiste na
participação rela no conhecimento na vida do grupo ou de uma situação determinada.
A observação sistemática normalmente é utilizada em pesquisas que tem o objetivo de
descrever com mais detalhes os fenômenos estudados.
Conforme Gil (2008, p. 109) pode-se definir entrevista como a técnica em que
o entrevistador se apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o
objetivo de obtenção dos dados que interessam à investigação. Portanto, a entrevista
a interação social entre as partes que compõem a pesquisa, tanto o pesquisador
quanto o fenômeno pesquisado, sendo de um lado a busca de dados e o outro a fonte
que disponibilizará.
Nesse sentido Gil (2008, p. 113) afirma que a entrevista estrutura ou semi-
estruturada desenvolve-se a partir de uma relação fixa de perguntas, cuja ordem e
redação permanece invariável para todos os entrevistados.
Assim, podemos afirmar que as entrevistas são muito utilizadas nas
pesquisas sociais para coleta de informações, com isso são fundamentais para o
confronto da teoria e da prática. Dessa forma, através destes instrumentos de
pesquisa serão organizados documentos para o embasamento da proposta exposto
por meio de fotos, e delimitação territorial. Além de apresentar resultados, relatos e
dos próprios sujeitos inseridos nesse processo de territorialização.
887
social – estas duas disciplinas estiveram quase sempre dominadas
por uma orientação em direção ao Estado enquanto o poder por
excelência, e inclusive estiveram historicamente comprometidas com
a elaboração de discursos legitimados do Estado. (SOUZA, 2000. p.
83)
888
Nessa linha de raciocínio, destaca-se a concepção do território através da
vertente simbólico-cultural, em que há a constituição das identidades, que serão
abordadas em nosso estudo sobre as territorialidades dos sujeitos.
889
estes conceitos de forma separados. Haesbaert (2004) aponta que há três
referências sobre os estudos de território na Geografia, dentre estes:
Com base nas ideias antes expostas, entende-se que é necessário distinguir
as principais concepções que envolvem os esquemas de estudos e práticos do
território segundo uma perspectiva funcional e o território concordante a perspectiva
simbólico-cultural
Buscamos trabalhar nesta pesquisa com a concepção de território, levando-se
em conta a dimensão simbólico-cultural, que é caracterizada por produzir o território
através das vivências das pessoas, simbolizado a partir das práticas simbólico-cultural,
que explora a subjetividade dos sujeitos, e se preocupa com os aspectos simbólicos.
890
O território numa visão da vertente simbólico-cultural segundo Haesbaert, é
entendido como espaço de manifestações culturais, no qual, prioriza dimensões
simbólicas e mais subjetivas, tendo em vista que o território é fundamentalmente tido
como produto da apropriação feita através do imaginário e/ou identidade territorial,
compreende que o território é palco das territorialidades numa conexão entre os
sujeitos e o espaço.
Na concepção do geógrafo brasileiro Milton Santos, o território é visto
segundo a perspectiva orientada pelo viés econômico e simbólico-cultural, afirmando
que:
891
O território envolve sempre, ao mesmo tempo, mas em diferentes
graus de correspondência e intensidade, uma dimensão simbólica,
cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos
sociais, como forma de ―controle simbólico‖ sobre o espaço onde
vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma
dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação
e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização
dos indivíduos (HAESBAERT, 1997, p. 42).
892
no segundo elemento, o qual carrega essa definição de simbolização e identificação
dos sujeitos através de suas ações e dos grupos sociais, sendo condizente com a
pauta do nosso estudo.
Robert Sack (1986) destaca que ―a territorialidade corresponde as ações
humanas‖, ou seja, a forma como cada indivíduo age no seio da sociedade. A
territorialidade e o território são ambos efetuados nos níveis do indivíduo, da casa, do
bairro, do estado, do país e em nível internacional‖. Os elementos econômicos,
políticos e culturais são um alicerce, conforme Roberto Sack (1986) para caracterizar
território e territorialidade enfatiza:
893
São as ações dos sujeitos, mas também são sentimentos vinculados à nossa
existência em uma fragmentação do espaço habitado. Conforme Raffestin (1993, p.
trate-se ―da descoberta de que primeiro se pertence a um território lato sensu,
para depois se pertencer a uma sociedade‖.
Santos e Silveira (2001, p. 19), utilizam a territorialidade como sinônimo de
pertencer àquilo que nos pertence, assim, ―esse sentimento de exclusividade e limite
ultrapassa a raça humana e prescinde da existência do Estado‖. Segundo os autores,
a territorialidade se estende aos animais, sendo a primeira forma de territorialidade
estudada pelos naturalistas, como área de vivência e reprodução.
Desse modo, Haesbaert (2008, p. 21) sustenta que ―a territorialidade, além de
incorporar uma dimensão estritamente política, diz respeito também às relações
econômicas e culturais‖. Busca em razão das ideias antes expostas, destacamos a
nossa inquietação no sentido de entender o território a partir das relações
multidimensionais. Desse modo, são várias as dimensões que lhes fornece
sustentação. No entanto, neste estudo nos preocupamos em entendê-lo a partir das
contribuições da dimensão simbólico-cultural.
894
social de referências simbólicas heterossexuais, levando assim a exclusão do
homossexual por esse discurso dominante de uma dada cultural. Molina (2011)
explicita esse contexto de exclusão da seguinte forma:
895
os sexos pode servir como ponto auxilio para compressão da
exclusão das pessoas que vivem a experiencia homoerótica como
entes capazes de direitos e obrigações (OLIVEIRA, 2009, p. 161).
896
dominar os parâmetros de sua organização e de classificação da
homossexualidade; e com a demanda de desconstruir as identidades
homossexuais cristalizadas em busca de possibilidades de vivencias
mais positivas (MOLINA, 2011, p. 956).
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
5
Heterossexismo é a atitude de
preconceito, discriminação, negação, estigmatização ou ódio contra toda sexualidade que não
seja a heterossexual, expressa de forma sistêmica. É a suposição de que as pessoas são todas
heterossexuais ou de que a heterossexualidade é superior e mais desejável do que as demais
orientações sexuais.
6
Compreende-se que o termo orientação sexual é considerado mais apropriado do que
opção sexual ou preferência sexual.
897
avanço é essencial para o desenvolvimento individual, interpessoal e social. O
território é peça chave neste processo, já que as territorialidades são a base das
manifestações culturais, e a sua construção de identidade.
Portando, verifica-se que a temática desenvolvida é muito complexa, pois,
podemos constatar que a partir do momento em que uma minoria da população é
excluída ou ocultado, viu-se a necessidade de esses grupos se manifestarem e
criarem suas próprias vozes em luta aos seus interesses, porém, percebe-se que está
luta ainda anda a passos de vagarosos, que ainda há muito o que conquistar.
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899
PARA ALÉM DO ARCO-ÍRIS: A RELAÇÃO DOS HOMENS GAYS COM A
CULTURA MATERIAL NA 18° PARADA DO ORGULHO LGBTI DE BELÉM
https://doi.org/10.29327/527231.5-60
José Carlos Almeida da Rosa - Universidade Federal do Pará
Resumo
Abstract
Studying the objects that are part of contemporary societies is a subject that helps to
understand how cultural material is present in the lives of actors and from that creates
connections, strengthens the idea of belonging to a particular social group and,
consequently, helps in the process of sociability between the subjects. This becomes
even more complex when we look at things related to the categories of sexuality. Thus,
this research stems from an ethnography performed at the 18th LGBTI Pride Parade in
Belém and aims to analyze objects such as: clothing, shoes, brands, haircuts,
accessories, among other materialities that were observed during the event and that
make up the Belenian gay man universe. The study starts from the concept of agency
that these things have over the bodies of actors and other homosexual individuals, thus
influencing their existing social relations within the movement. The data that will be
presented during this essay is preliminary to an ongoing research.
900
Chegando na Parada do Orgulho: considerações iniciais
901
Porém, a realidade foi outra, a sensação que tive foi de que estava em um
tradicional bloco de rua no período do carnaval, em que as pessoas que caminham e
dançam pelas ruas atrás dos trios-elétricos usam trajes que são comuns no dia-a-dia
da sociedade belenense. Deste modo, tampouco, aquela realidade remetia a ideia que
eu tinha sobre uma parada gay relacionado a tudo o que já havia visto por imagens
das manifestações nas outras capitais do Brasil, como em São Paulo, por exemplo.
Todavia, compreendo que estamos lidando com realidades simbólicas e expressivas
de vidas sociais bem diferentes e as pessoas agem a partir das suas percepções de
mundo e das suas construções.
Após esse primeiro estranhamento, resolvi continuar a pesquisa de acordo com
algo parecido que Fredrick Barth nos propõe a fazer quando estamos dentro de
campo, no qual ―devemos tentar olhar para nosso objeto de estudo sem que nossa
visão seja excessivamente determinada pelas convenções antropológicas herdadas‖
(BARTH, 2000, p. 108). Então, prossegui a observação reunindo os dados que
estavam fora de um estereótipo que tinha em mente antes de chegar ao local, mas
que me direcionou a entender de forma mais profunda e clara quem é o homem gay
belenense contemporâneo que participa do principal evento do movimento LGBTI na
cidade. Assim, ―a teoria e os conceitos antropológicos devem ser testados na análise
da vida tal como ela ocorre em um determinado lugar do mundo. Qualquer lugar pode
servir como provocação para desafiar e criticar a teoria antropológica‖ (BARTH, 2000,
p. 108).
Durante a análise, consegui acompanhar uma conversa de duas pessoas que
1
estavam ao meu lado na manifestação, uma delas (que chamarei de Rafael ),
comentou que bastava dar uma olhada ao redor que era perceptível que naquele local
havia mais pessoas heterossexuais do que gays. Ao ouvir isso me questionei sobre
como aquele homem tinha tanta certeza ao afirmar aquilo, em que ele se baseava
para dizer se uma pessoa que estava ali era ou não homossexual, já que estávamos
em um evento voltado, preponderantemente, para as pessoas que são referentes à
sigla.
Só a partir desta conversa e das considerações que tive ao chegar pela
primeira vez na Parada do Orgulho que surgiu a inquietação para descobrir como as
pessoas pertencentes ao movimento conseguiam reconhecer os seus pares a partir do
uso da cultura material que estava presente naquela manifestação que era aberta para
1
O interlocutor pediu para que não divulgasse o seu nome verdadeiro.
902
que toda sociedade pudesse participar, em que não havia um estereótipo definido que
indicasse que um determinado ator social era ou não um homem gay.
Para conseguir responder essas e outras questões contei com a participação
do rapaz que ouvi a conversa, o Rafael, que se identificou como uma pessoa gay, tem
entre 25 e 28 anos, possui ensino superior, tem um corpo forte, não malhado, estava
vestido no mesmo estilo de outros atores que estavam na passeata (short curto preto
2
com desenho, camisa lisa simples e chinelos do modelo slide/slider ). Ele disse que
todos os anos vai à Parada do Orgulho, porém neste ano achou o evento muito
contraditório, se referindo tanto sobre as pessoas que estavam lá caminhando, quanto
às situações políticas que envolveram a organização do evento.
A contribuição deste interlocutor foi fundamental para o desenvolvimento deste
estudo, pois pessoas que já tiveram outras vivências com as manifestações anteriores
―podem também supor, baseados na experiência passada, que somente indivíduos de
determinado tipo são provavelmente encontrados em um dado cenário social‖
(GOFFMAN, 2009, p. 11).
Portanto, esta pesquisa objetiva fazer uma reflexão por meio das descrições
que foram feitas a partir da técnica de observação em que, por vezes, parecem ser
incoerentes em um primeiro momento dentro do campo, mas que organizadas e
analisadas em conjunto com as conversas que ocorreram com o interlocutor após o
evento, são de importância para a compreensão que se tem da ideia sobre o
pertencimento dos indivíduos a um determinado grupo social por meio do uso dos
objetos presentes dentro da Parada Gay de Belém e, com isso, consequentemente,
entender também a facilidade que existe de ocorrer um processo de sociabilidade
entre os atores com os seus pares, uma vez que eles criam uma relação com as
coisas que funcionam como marcadores identitários/sociais que atuam diretamente
sobre estes indivíduos e em seus relacionamentos.
2
Chinelos com tiras horizontais no peito do pé.
903
elementos materiais, formas de falar, ações, entre outros exemplos que em alguns
casos são perceptíveis e fáceis de conseguirmos identificar quando os sujeitos são
gays, já em outras ocasiões, pode ocorrer que não seja algo visível para outros
indivíduos, mas que sempre são fáceis de serem reconhecidos por outros rapazes
homossexuais.
A partir dessa resposta, podemos compreender que os exemplos que o
interlocutor dá para identificar outros homens gays trata-se do conceito de ―fachada
corporal‖ que está ligado ―(...) aqueles que de modo mais íntimo identificamos com o
próprio ator, e que naturalmente esperamos que o sigam onde quer que vá‖
(GOFFMAN, 2009, p. 31).
Entre os exemplos de funções/categorias presentes nesta fachada podemos
citar questões relacionadas ao vestuário, aparência, atitudes, linguagem, gestos,
olhares, determinadas marcas que os indivíduos usam, entre outros elementos que
estão presentes, especificamente, no universo do homem gay e, consequentemente,
provocam reconhecimentos e reações nos seus pares.
Diante disso, faço uma conexão com o pensamento de Alfred Gell (2005), que
diz que as coisas são fontes de poder que exercem um agenciamento sobre os atores
sociais, atraem o seu olhar por meio da tecnologia do encanto e com isso provocam
reações nestes indivíduos dentro de um determinado contexto.
Ainda que o autor utilize este conceito de agência dentro do campo da
antropologia das artes, o qual diz que um quadro age dentro de um ambiente e com as
pessoas que com ele interage, conseguimos pensar esta mesma ideia a partir de
outras perspectivas, como é o caso do poder de agenciamento/encanto da cultura
material sobre os homens gays e dentro das suas relações interpessoais.
Para o autor, esse ―encanto‖ trata-se,
Logo, ao buscar a compreensão acerca dos objetos das pessoas que foram
observadas dentro da Parada do Orgulho de Belém, deve-se considerar que não se
trata de analisar os casos de forma individual, porque além de serem algo em comum
entre os atores, eles funcionam e agem de forma conjunta dentro do grupo, quer seja
904
de modo consciente ou inconsciente, sobre os outros indivíduos. Essa ―materialidade e
agência funcionam simultaneamente e em registro não-dualista, pois pessoa e coisa
encontram-se fundidas e é o resultado dessa interação que é capaz de ―chamar a
atenção‖ (MIZRAHI, 2007, p. 234).
Isso também pressupõe uma experiência que busca fazer parte do mundo da
vida com o outro de forma natural, ou seja, é algo que possui um sentido dentro de um
meio social. Portanto, uma vez questionado sobre a sua fala, Rafael só consegue dizer
de forma enfática quem pode ser ou não considerado um homem gay, por causa das
vivências que o mesmo já teve com as outras pessoas pertencentes ao movimento.
Essa perspectiva pode ser relacionada também ao conceito de sociação (
Vergesellschaftung), o qual ―é constituído pelos impulsos dos indivíduos, ou por outros
motivos, interesses e objetivos; e pelas formas que essas motivações assumem‖ (SIMMEL,
1983, p. 21). Neste caso, o que ficou perceptível no discurso do interlocutor sobre as
vestimentas e acessórios que os homens gays estavam utilizando no evento, foi uma
reprodução de padrões que aos olhos de outrem provavelmente poderiam não ser
perceptíveis, mas que para ele e para os outros homens gays que ali estavam,
conseguiam se compreender enquanto pertencentes ao mesmo grupo, já que os objetos
utilizados por eles possuíam um interesse do qual estes atores compartilham dentro de um
determinado meio, que se transforma em uma prática social.
Desta forma,
905
qual determinados símbolos são tão camuflados, invisíveis e periféricos aos olhos
humanos que, por vezes, passam imperceptíveis dentro da sociedade. Com isso, o
papel que estes objetos exercem no cotidiano e nas relações das pessoas não
chegam a ser questionados. Quando ocorre casos comos estes compreende-se que
quanto maior for o silêncio dos objetos no meio social, maior é o seu poder de
atuação, pois aquela coisa já é vista como algo naturalizado entre os indivíduos.
Essa questão da invisibilidade das coisas referentes aos atores dentro do
evento pode então ser considerada e explicada também, porque a ―fachada, portanto,
o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconsciente
empregado pelo indivíduo durante sua representação‖ (GOFFMAN, 2009, p. 29).
No momento em que o interlocutor diz que em certos casos o que ocorre é uma
forma de intuição no reconhecimento dos seus pares, na verdade trata-se de um
agenciamento dos objetos que não é possível observar de forma tão clara como em
outros casos, mas que estão ali, mesmo que de maneira mais modesta, dependem de
uma certa experiência e atenção do olhar do outro.
Nos próximos tópicos discutiremos de forma mais detalhada o agenciamento
que os objetos dos indivíduos presentes no evento tiveram sobre outros atores e
dentro das suas relações.
são bem curtos (mais ou menos ficam um pouco acima dos joelhos ou no meio das
coxas), possuem diversas cores, estampas e, normalmente, ficam bem justos nos
corpos desses homens. Segundo ele, esta indumentária possui um estilo vintage dos
anos de 1970-1980 e os gays da atualidade costumam usar bastante nas festas
alternativas e LGBTI que o mesmo frequenta.
3
Tecido feito com fibras sintéticas.
906
De acordo com isso, podemos considerar que em um ambiente que contém
muito calor, música para dançar e agitação como é o caso da Parada Gay, esse tipo
de peça torna-se algo essencial pois possibilita que os atores se movimentem de
maneira mais confortável, façam seus passos sensuais e sincronizados descendo até
o chão com mais facilidade ao som dos ritmos que exigem uma maior flexibilidade dos
indivíduos, como é o caso do ―funk‖, ―brega-funk‖ e algumas músicas ―pop‖, estilos
estes que foram tendência durante toda a passeata.
A partir disso compreende-se que ―a relação entre o artefato e o seu usuário
envolve uma consideração da materialidade do primeiro em relação ao corpo do
segundo. (...) Trata-se de um corpo em movimento e inserido em um contexto
específico de dança‖ (MIZRAHI, 2007, p. 234). No qual, estes materiais e os corpos
dos atores naquele momento se integraram em um só movimento e juntos realizaram
um jogo de perfeita combinação e conexão.
Além de ser um tipo de roupa apropriada para o evento por conta do clima
quente que estava na cidade e também por promoverem uma leveza, maior
elasticidade e mais praticidade para que os indivíduos conseguissem realizar os seus
movimentos corporais sensuais, esses shorts também carregam uma simbologia e
intencionalidade sexual tanto para quem está usando, pois pelo fato de serem bem
curtos e justos aos corpos, valorizam e realçam as pernas e os glúteos desses atores,
como também provocam sensações no outro que observa enquanto os indivíduos
dançam sensualmente.
Algo que percebi em relação a esta indumentária, é que a maior parte dos
homens que estavam usando-a tinham corpos magros e/ou malhados, possuíam
pernas com formas e contornos bem definidos e, normalmente, seus membros
inferiores estavam completamente depilados. Aqui é necessário enfatizarmos que
estes corpos são símbolos culturais e efeitos de uma dinâmica de poder que atuam de
forma direta no processo de sociabilidade, já que por si só são geradores de códigos
comunicativos.
Um fato curioso que chamava a atenção de quem percebia, é que alguns
atores que estavam sem camisa e utilizavam estes estilos de shorts, faziam questão
4
de mostrar que por baixo deles usavam cuecas do estilo jockstrape , modelo este
perceptível porque eles deixavam apenas o elástico da cueca aparecer um pouco mais
acima dos shorts e não era possível ver a continuação da parte do tecido de trás da
Modelo de cueca que é aberta na parte de trás, originalmente ela foi criada para proteger os testículos e
os pênis dos atletas que praticavam esportes como o rugby, por exemplo. Com o passar do tempo esses
modelos se tornaram populares dentro do mundo gay.
907
indumentária. Assim, quem conhecia ou não tal peça, sabia que havia um interesse
por trás daquela vestimenta que por si já repassava uma mensagem. Essa situação,
ao longo de toda a passeata, foi o exemplo de objeto mais próximo que pude perceber
que passava a ideia de que uma Parada Gay contava com elementos que remetiam ao
apelo do universo erótico.
Neste tipo de exemplo, ficou bastante claro o poder de agência que esta peça
provocou sobre os outros atores naquele contexto, por mais sutil que elas pudessem
estar ali (haja visto que estes homens não estavam com as suas bundas para fora,
apenas o elástico estava a mostra), o vestuário chamava atenção de quem passasse
por perto, algumas pessoas riam, outras se assustavam, uns ficavam apenas
observando de forma curiosa, tiveram pessoas que olharam com repúdio, alguns com
segundas intenções, já em certas ocasiões surgiam comentários com quem estava ao
lado, entre outras reações.
Destarte, percebe-se que esta peça naquele contexto possuía um forte poder
de atração e provocava sensações em outros atores, quer seja pelas experiências que
eles já poderiam ter tido com a mesma, quer pelo jogo simbólico de erotização e
fetichismo que estava contido ali ou apenas voltado para um lado mais cômico e de
repúdio. O que é importante salientarmos aqui, é que tanto quem observava, como
quem também estava usando a vestimenta, foram agenciados por aquele objeto. No
caso dos atores que a vestiram, o agenciamento ocorre desde o momento em que eles
escolhem colocar a peça em um determinado evento que por si só possui um peso
voltado para uma sexualização no imaginário popular. Assim, podemos considerar que
estes atores,
908
homens estavam com as sobrancelhas muito bem desenhadas de diversos modelos:
arqueadas, arredondadas, reta com risco nas pontas, reta curvada na ponta, entre
outras formas (inclusive, o interlocutor que conversei também possuía uma
sobrancelha com design arqueada); e segundo, é que eles usavam camisas com o
nome de grifes internacionais caras e conhecidas de forma bem destacada.
Deste modo, em relação a essas vestimentas, é necessário considerar que
mesmo que as peças não fossem trajes originais das marcas estrangeiras, aparecer o
nome delas nas camisas com um certo realce funcionava como um sinônimo de
chamar atenção dos outros que estavam no evento pelo valor econômico e social que
elas carregam dentro da nossa sociedade contemporânea capitalista.
Naquele momento, em meio a uma multidão de pessoas, estar com uma peça
com o logotipo grande da Louis Vuitton, Dolce & Gabanna e Gucci, por exemplo, seria
uma forma que os atores poderiam ser vistos com mais facilidade por outros indivíduos
por transmitirem a ideia de possuírem uma posição socioeconômica elevada dentro de
uma manifestação que era pública e que contava com a participação de pessoas de
diversas classes sociais.
De acordo com as vestimentas e suas relações com os sujeitos, Daniel Miller
(2013) nos diz que devemos compreender que o que está sendo visto é apenas o que
está externo aos atores sociais, logo, essas roupas nada mais são do que uma
constituição das pessoas, ou seja, esses objetos formam as suas identidades,
funcionando como a construção do ―eu‖ e não, necessariamente, condiz com as
realidades desses indivíduos.
Tudo isso chega a ser curioso, porque ao mesmo tempo que essa aparência de
um ―status econômico‖ estava presente nas camisas, em relação aos calçados dos
atores era perceptível que eles não ligavam muito em manter esse padrão
socioeconômico, pois, majoritariamente, estavam usando sandálias de borracha (estilo
havaiana, mas que em alguns casos não era da marca original), ou chinelos do tipo
slide/slider, que foi sucesso na década de 1990 e agora também é tendência no meio
desses atores.
Outrossim, o interlocutor chamou atenção para o grupo de rapazes que
estavam usando sapatos de marcas caras como: o Tênis Old School Vans, Nike,
Cavalera e chinelos de couro, em contrapartida, eles trajavam bermudas de cores mais
escuras, na altura dos joelhos, camisas ou camisetas simples, de uma única cor e
coladas em seus corpos, sem a necessidade de destacar a marca de grifes
909
estrangeiras, ficando assim, o propósito de que apenas os seus braços
musculosos chamassem atenção no evento.
Neste caso, percebe-se que para esses atores o que mais importava era que
seus corpos fossem percebidos e que as suas peças ficassem em um segundo plano,
passando o mais invisível o possível e, neste ponto retomo a discussão sobre o
conceito de humildade das coisas trabalhado por Daniel Miller (2013), que por mais
imperceptíveis e menos chamativas que elas pudessem parecer aos olhos do ator que
as usava e do outro que estava participando da Parada, essas peças acabaram
exercendo um forte agenciamento para ambas as partes. Primeiro, no momento em
que o dono da vestimenta a escolheu, pois havia uma certa intenção, consciente ou
não, em preferir peças que evidenciasse os seus braços malhados e, segundo em
quem viu esse ator com a indumentária, considerando que foi atraído justamente pelo
fato delas serem justas aos corpos destes indivíduos e chamavam atenção para o que
eles queriam que fosse visto naquele momento.
De acordo com o interlocutor, no universo gay há um ―cuidado‖ maior em
relação a escolha de suas roupas. Isso ocorre porque os homens homossexuais se
preocupam um pouco mais com a imagem que pretendem passar e com a estética de
seus corpos que eles pretendem mostrar. Em suma, casos assim podem ser
compreendidos como uma aparência estereotipada desses homens, em que
―provavelmente não são hereditárias, mas meras expressões da reação do corpo a
condições externas, sujeitas a novos ajustamentos, sob novas condições‖ (BOAS,
2010, p. 91).
Além de uma aparência padronizada do homem gay que ganha novos
ajustamentos com o passar do tempo, a cultura material também se renova e se
ressignifica dentro de novas condições e contextos em que estão inseridas. Esta
―modernização‖ das coisas foi possível observar dentro da Parada do Orgulho e
iremos discorrer mais sobre este tema nos próximos tópicos.
910
O que mais me provocou uma certa indagação não foram os objetos em si,
ainda que entenda que naquele ambiente eles tinham um poder de agência bem forte,
haja visto a nossa admiração ao vê-los, porém mais intenso que isso, foi perceber a
forma com que eles estavam sendo usados pelos participantes, ou seja, a composição
do conjunto como um todo.
Esse foi o caso dos rapazes que possuíam características compreendidas
como ―masculinas‖ no jeito como se expressavam, estavam vestidos com roupas que
podemos designar como ―voltadas para o público masculino‖, conforme os exemplos
que foram descritos no item anterior, porém em alguns casos, estes atores estavam
com objetos e símbolos que normalmente são reconhecidos como ―pertencentes ao
universo e aos corpos femininos‖, como por exemplo, o uso dos longos cílios postiços,
as unhas grandes pintadas e as maquiagens bem produzidas (no caso da maquiagem
mais simples, o interlocutor salientou que no momento a tendência entre os gays era o
5
uso do Lip Tint ). Haviam também os atores que estavam utilizando os três itens ao
mesmo tempo, porém seguiam com peças de ―roupas masculinas‖.
Foi justamente esta composição de união de elementos referente aos ―dois
mundos‖, masculino e feminino, que faziam com que estes atores fossem percebidos
por meios das coisas das quais não estão presentes e não são comuns de serem
vistos no cotidiano social. É importante salientar também a relação que estes atores
possuíam com esses objetos, que parecia ser algo bem natural pela forma confortável
com que eles estavam se relacionando com eles.
De acordo com o interlocutor, tal composição de vestimenta com o uso desses
acessórios são mais comuns de serem vistos em locais que são especificamente para
o público LGBTI. O mesmo relatou também que ainda que tais eventos fossem
voltados para o público gay, esse tipo de atitude sempre chamava a atenção de outros
atores gays, seja de forma positiva ou não, alguns ainda julgam essas pessoas com
um olhar de reprovação e inferioridade dentro do próprio movimento.
A partir desta fala do ator sobre o julgamento que ocorre com as pessoas gays
dentro do próprio movimento, podemos fazer uma ligação com o pensamento de
Judith Butler (2002) que diz que os corpos que importam desempenham um poder
dentro da sociedade e, portanto, não podem ser vistos como algo separado das
normas que regulam e governam a materialidade baseada em um pensamento
heteronormativo, como uma prática social de repetição contínua.
5
Um tipo de batom versátil feito a base de líquido, gel e óleos.
911
Assim, para que esses corpos passem a importar de maneiras diferentes, é
necessário que haja uma ruptura com essa materialidade no que se entende enquanto
uma oposição masculino/feminino binária, assim como ocorrer a ocupação de novos
espaços, principalmente, dentro do meio em que eles costumam socializar.
Sobre a questão que relatei do estranhamento de homens utilizando coisas que
são relacionadas ao ―universo feminino‖, é necessário refletirmos que por trás de todo
este discurso há uma relação de poder imposta por uma sociedade que é construída
baseada em práticas reguladoras heterossexuais que são constantemente reforçadas
em nosso cotidiano e ao mesmo tempo excludentes, como é o caso dos estigmas que
estes atores sofrem por atribuirmos gêneros aos objetos. Diante disso, Butler nos diz
que,
Atentas a essa discussão sobre roupas sem gênero, algumas marcas já tem se
posicionado e abolido o conceito de roupas e acessórios que são feitas
exclusivamente para homens ou para mulheres, os próprios desfiles de modas como
foi o caso da 47° São Paulo Fashion Week (SPFW), trouxe para as passarelas
6
discussões sobre representatividade racial e de gênero .
A partir dessa mudança do olhar mercadológico sobre a necessidade de se
repensar a moda a partir dos debates sobre as questões de gênero e também a
atenção empresarial sobre o consumo das pessoas pertencentes ao movimento,
torna-se necessário produzir pesquisas que venham compreender quem são estes
consumidores que cada vez mais ganham espaço e poder de compra, porém mais que
isso, é fundamental entender que,
6Ver mais em ―SPFW aposta em marcas sustentáveis e sem gênero‖. Disponível em:
https://vejasp.abril.com.br/blog/liquidacao-cia/spfw-2019-marcas-sustentaveis-sem-genero/
Acesso em: 18 de novembro de 2019.
912
ação política é exercida, independentemente de aderirmos ou não a
noções como ―sociedade do consumo‖. Nessas esferas, também se
negociam direitos, disputam-se significados, enfrentam-se ou
reforçam-se desigualdades. (FACCHINI; FRANÇA; BRAZ, 2014, p.
123)
913
Considerando que trata-se de um produto unissex, perguntei para o interlocutor
se os homens gays tinham uma preferência por cor ou modelo dessas pochetes que
serviria como um código para que eles se reconhecessem enquanto pares, o mesmo
respondeu que não existiam modelos ou cores exatas, mas que eles costumavam usar
as coloridas que melhor combinasse com as suas roupas.
Diante do depoimento dele, percebo que esse acessório funciona como uma
extensão das suas vestimentas e dos seus corpos, uma vez que eles as usam
conforme o tom de suas roupas e coladas ao seus peitos, neste caso também
podemos perceber um exemplo de agenciamento das coisas sobre outras coisas.
Assim, compreendemos que estes objetos e os seres humanos não podem ser
estudados separadamente, porque são construídos de forma mútua e não devem ser
considerados como algo superficial, uma vez que eles exercem em ―nós o que
pensamos ser‖ (MILLER, 2013, p. 22-23). Sobre estes materiais que voltam a compor
o armário do homem gay e os ajuda no processo de pertencimento dos pares, é
importante analisar como eles tem se ressignificado na contemporaneidade,
considerando a própria intencionalidade que carregam, os seus valores e memórias.
O “picumã” do poder
Procedendo a discussão sobre estilos que são referentes a décadas passadas
e viram tendências nos dias de hoje, nesta última seção abordarei uma característica
que está presente na vida da maioria dos homens gays e que talvez possa ser um dos
símbolos mais importantes dentro de toda a composição da aparência deste ator,
9
trata-se do seu cabelo, também conhecido como ―picumã‖ , segundo o interlocutor.
A forma que compreendi enquanto fazia a pesquisa dentro do evento, é que a
ligação e a relação daquelas pessoas com os seus cabelos era bastante forte,
passava a impressão de algo relacionado a um dispositivo de poder que se misturava
em meio às jogadas de cabelo que ganhavam vida e, aparentemente, faziam parte dos
passos das coreografias dos rapazes que dançavam com as jogadas de cabeça para
um lado e para o outro, como também ajudava na hora da conquista por meio da leve
―passada de mão‖ nos fios de forma sutil, mas que por trás havia uma certa
insinuação. Assim, podemos relacionar esses cabelos como uma
914
outro. O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim
porque provém de todos os lugares. (FOUCAULT, 1988, p. 89)
Considerações Finais
Em meio a agitação, o calor, o cheiro forte de fumaça de cigarro, alguns
momentos de sufoco e corpos suados de todos os estilos se esbarrando, a Parada do
Orgulho LGBTI é um exemplo de campo antropológico curioso e ao mesmo tempo
desafiador, haja visto que naquele contexto é possível encontrar uma diversidade de
atores que confraternizam juntos e em prol de uma mesma causa.
Observar a forma com que eles interagem e se reconhecem enquanto pares de
um mesmo grupo social por meio dos objetos e com os objetos, por mais difícil e
complexo que possa parecer em um primeiro momento, aos poucos vamos nos
familiarizando com este mundo que está presente no cotidiano do belenense e ao
915
mesmo tempo nos desconstruindo de preconceitos que ainda fazem parte de uma
sociedade que possui regras heteronormativas como práticas sociais a serem
seguidas.
Diante de tudo o que foi visto, é interessante entender como estes atores se
reconhecem enquanto gays por meio de objetos que muitas vezes passam
despercebidos dentro do dia a dia dos indivíduos que residem na capital paraense
(principalmente, para quem não faz parte do universo LGBTI). Porém, o mesmo não
pode ser dito no caso dos homens que se consideram homossexuais, pois ficou claro
no decorrer da conversa com o interlocutor e, partindo do início da concentração
quando o mesmo diz para o amigo que eles sempre sabem quando outros rapazes
são ou não gays, que tal reconhecimento parte por conta das suas experiências com
outros atores pertencentes à sigla.
A partir desta fala, para entender melhor esse caso parti do conceito de
agência trabalhado por Alfred Gell (2005), porém por meio de uma perspectiva no que
tange o entendimento de cultura material que são, em primeira instância, dispositivos
de poder que atuam de forma direta no processo de encantamento e sociabilidade
entre os atores. Assim, busquei relacionar tudo o que tinha observado dentro de
campo, as minhas afetações e estranhamentos, para que fosse possível descrever de
forma mais verídica possível o cenário do principal evento do movimento social na
cidade, junto ao olhar e a experiência que o interlocutor me proporcionou por meio de
suas contribuições que foram fundamentais para um melhor entendimento sobre o
campo e os conceitos que trabalho.
Importante enfatizar que este é um primeiro estudo que conta com dados
preliminares de uma pesquisa que está sendo desenvolvida dentro do universo do
homem gay belenense, porém a partir de outros espaços que envolve a relação da
cultura material e o processo de sociabilidade por meio do conceito de agência.
Referências Bibliográficas
916
______________. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
917
MULHER-ARTESÃ DO MIRITI: ENTRE A ESFERA PÚBLICA E
PRODUÇÃO DA DIFERENÇA
https://doi.org/10.29327/527231.5-61
Lídia Sarges Lobato/UFPA
Joyce Otânia Seixas Ribeiro/UFPA
Resumo: O presente trabalho resulta de uma experiência etnográfica, que se estendeu por
quatro meses, em um dos ateliês de produção de brinquedo de miriti, na cidade de
Abaetetuba/Pa. Nosso objetivo para o momento é tecer uma reflexão acerca da mulher-
artesã do brinquedo de miriti, emaranhada pelas relações de gênero e a produção da
diferença. Embasadas nos aportes teóricos dos Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero,
estamos sendo desafiadas a pensarmos tais questões. A etnografia foi a metodologia
escolhida. Os resultados foram: temos uma mulher que cruza as fronteiras do espaço
privado e da esfera pública, em uma trama de aceitação, negociação e resistência; ao entrar
na bicentenária tradição do brinquedo de miriti, a mesma começa a borrá-la, reinventado
seus significados, diluindo binarismo, produzindo casais homoafetivos, tensionando a
heterossexualidade compulsória.
Abstract: The present work results from an ethnographic experience, which lasted for four
months, in one of miriti toy production studios, in Abaetetuba / Pa. Our goal for the moment is
to weave a reflection on the artisan woman of the miriti toy, entangled by gender relations
and the production of difference. Based on the theoretical contributions of Cultural Studies
and Gender Studies, we are being challenged to think about such issues. Ethnography was
the chosen methodology. The results were: we have a woman who crosses the boundaries
of the private space and the public sphere, in a web of acceptance, negotiation and
resistance; as it enters the bicentennial tradition of miriti's toy, it begins to blur it, reinvented
its meanings, diluting binaryism, producing homosexual couples, tensing compulsory
heterosexuality.
Keywords: Woman. Genre. Sexuality. Miriti's toy. Culture.
918
1. Introdução
919
2. O ateliê Rodrigues Pacheco
Na chegada, avistei uma casa rústica, levemente tombada para o lado esquerdo,
com paredes de madeira bem deterioradas, telhas levemente afastadas uma das outras.
No inverno amazônico, a chuva é uma ameaça e no verão, o sol, atravessa as janelas e as
brechas das tábuas, aquecendo as roupas e passando para o corpo. A casa tem uma
grande calçada de cimento recém construída, e uma porta que fica sempre entreaberta. Na
fachada da casa está colado um cartaz apagado contra o trabalho infantil. O ateliê
Rodrigues Pacheco fica no Bairro do São João, no município de Abaetetuba e funciona na
antiga casa de Dona Pacheco.
O ateliê de brinquedo de miriti, assim denominado ao longo dos anos, é um espaço
de criação, produção e resistência dos brinquedos. Na grande maioria, os ateliês
apresentam características bastantes marcantes relacionadas a localização e
espacialização: geralmente são casas antigas de madeiras ou o que restou delas,
transformadas em ateliê, local de produção do artesanato, situadas em bairros periféricos,
nas ilhas e estradas; alguns ateliês como o de Dona Pacheco estão localizados na faixa da
rua, mas a maioria estão localizados nos fundos das casas.
A aparência rústica, com pouco conforto acomoda artesãos e artesãs, jovens e
crianças na produção do brinquedo; nas paredes as imagens dos santos e santas
simbolizando a fé e a devoção católica; as sacolas penduradas nas paredes guardam peças
de brinquedos que a qualquer momento podem serem acionadas; embalagens de margarina
transformam-se em recipientes para a mistura das tintas; o rádio ou o televisor os mantém
conectados ao mundo, e atualizados.
920
A profusão de cores dimensiona o ateliê como um arco-íris. Cotidianamente,
buscando atingir o tom desejado, as artesãs misturam bisnagas com cores variadas e tinta
branca, e experimentam as misturas até alcançar a tonalidade considerada perfeita, com
cores que vibram, iluminam, alegram o lugar e a vida e, sem querer marcam, também,
definitivamente as roupas daqueles que se aproximam da bancada dos brinquedos.
A representação dos brinquedos de miriti está para além dos modos de vida caboclo,
do Pará Amazônico e de suas encantarias que fascinam e encantam o imaginário ribeirinho,
essa energia que consome a todos e todas. O que estamos querendo dizer é que além de
tudo que durante todos estes anos já foi dito a respeito dos brinquedos de miriti, por homens
e mulheres, queremos ressaltar que tais brinquedos também exprimem as normas e
condutas tidas consideravelmente corretas, que compreendem a orientação sexual dos
gêneros.
921
se vestir e comportar-se para cada corpo, com minuciosos detalhes: às mulheres com
cabelos cumpridos, a saia com estampa floral acima dos joelhos, o lugar das mãos; aos
homens os cabelos curtos, o uso de calça e camisa. Os brinquedos de miriti consistem em
grandes inspirações para aqueles que buscam aventurar-se na análise cultural, como uma
rica fonte de conhecimentos e aprendizagens.
Abordando mais especificamente o processo de feitura do brinquedo, Dona Pacheco
uma mulher-artesã-chefe corta, modela, monta, lixa, aplica massa, pinta e embala. Diante
das atividades, seu Antônio companheiro da artesã realiza boa parte das atividades, porém,
não pinta.
O Antônio não pinta (Dona Pacheco, 2017).
922
Ninguém nasce mulher, tornar-se mulher é uma afirmação clássica de Simone de
Beauvoir, que muitas pensadoras remetem ao gênero e que, de forma tímida, mas com um
pouco de ousadia, fazemos um movimento de aproximação para a tradição do brinquedo de
miriti, dizendo que as mulheres não nasceram para as tarefas leves, como a delicadeza dos
pincéis, elas tornaram-se mulheres-artesãs para o trabalho leve, bem como os homens
tornaram-se artesãos-chefe para o trabalho bruto.
Hoje, com seu carisma e desenvoltura Dona Pacheco, mulher-artesã recepciona
turistas e pesquisadores que vão à sua procura. Nas peças modeladas por ela, expressa a
sensibilidade e a representação da realidade a qual faz parte, realizando o trabalho bruto, o
trabalho leve e o governo do ateliê. Sempre arrumada, com esmaltes nas unhas e tintura no
cabelo, a artesã borra a tradição do brinquedo de miriti, negociando e contestando a tradição
bicentenária do brinquedo de miriti, transitando na esfera pública e no espaço privado,
comprovando que ―[...] a cultura é contestada, temporal e emergente‖ (CLIFFORD, 2016, p.
53).
A experiência do contato e o movimento, o trânsito pela cidade, produziu a artesã. A
princípio, em sua primeira viagem a Belém, sua função era de vendedora de brinquedo de
miriti no Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Bastou uma viagem acompanhando o marido
nas vendas, para que ela se apaixonasse por toda aquela movimentação, agitação, profusão
de vozes, cores e sabores, despertando o desejo de produzir seus próprios brinquedos.
De certo que foram muitas tentativas, ferimentos nas mãos, até que as peças
atingissem o formato esperado. Com o passar dos anos, sua técnica foi se aprimorando,
com a participação em cursos de aperfeiçoamento; com os estudos na bagagem, aprendeu
a negociar e a transitar na esfera pública. Por mérito de suas habilidades com as mãos, a
artesã tornou-se mestre em miriti por inovação e criatividade, diferentemente do que foi
1
constatado em pesquisa realizada nos anos 2013-15 , de que para produzir um brinquedo
de miriti era necessário ser homem e ter o dom ou que o talento precisaria necessariamente
estar no sangue, como uma tradição de família; a artesã rompe com todos esses discursos.
A autonomia da artesã resultou também das lutas que foram travadas ao longo da
história das mulheres. Segundo Louro (1997), as manifestações contra a discriminação
feminina adquiriram visibilidade e expressividade maior durante o chamado ―sufragismo‖, ou
seja, o movimento voltado para estender o direito do voto às mulheres. O sufragismo passou
a ser considerado a primeira onda do feminismo, e naquele contexto ―[...] seus objetivos
mais imediatos (eventualmente acrescida de reivindicações ligadas à organização da
família, oportunidade de estudar ou acesso a determinadas profissões) sem dúvida estavam
923
ligados aos interesses das mulheres brancas [...]‖ (LOURO, 1997, p. 15). Mas, de qualquer
forma, refletem em todas as mulheres de classes, etnias e gerações diferentes. Já na
segunda onda há um avanço e as preocupações que giravam em torno de questões sociais
e políticas, agora passam ao âmbito das construções em nível teórico, deslocando a pauta
para a ampliação de opções de escolarização.
De acordo com Louro (1997, p. 17) ―[...] é preciso notar que essa invisibilidade,
produzida a partir de múltiplos discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo
doméstico, como o ―verdadeiro‖ universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompido
por algumas mulheres‖. Del Priore (2001) argumenta que desde os primórdios, a luta pela
própria sobrevivência ou a dos seus, foi a marca das nossas ancestrais. A dupla jornada de
trabalho existiu e continua existindo, o trabalho no campo ou na cidade, em casa ou nas
ruas, acrescidos das muitas tarefas, fundamentais para a estabilidade da família e os
afazeres domésticos. A mulher é ―[...] obrigada a utilizar estratégias complicadas para dar
conta do que sociólogos chamam de ―dobradinha infernal‖ (DEL PRIORE, 2001, p. 101),
para conquistar sucesso na profissão, tendo que dar conta do trabalho doméstico, da
educação dos filhos e da atenção às demandas do companheiro.
Del Priore (2001) ressalta que a negociação, a mediação como modo de resolução
dos conflitos, são preferíveis ao autoritarismo, até nas práticas de certos dirigentes políticos.
A cooperação e a solidariedade, a assistência ao outro, esvaziam o espírito de competição e
o egoísmo. ―As mulheres reivindicam não mais serem reduzidas a uma só dimensão: elas
querem ser ao mesmo tempo mães, trabalhadoras, cidadãs e sujeitos de seu lazer e prazer.
E isso tudo com o estilo próprio com que cada uma constrói suas relações com o homem‖
(DEL PRIORE, 2001, p. 88). Mediante negociações, a artesã consegue administrar e
transitar entre o público e privado.
Já fiz e faço casal gay, casal negro; tem cada moreno que casa com cada
mulher brancona; faço brinquedo deficiente, sem braço; é um jeito de
acabar com o preconceito. Uma vez uma mulher perguntou porque eu fazia
esses brinquedos? Eu respondi porque eles já sofrem muito preconceitos
(Dona Pacheco, 2017).
Para a artesã essa é uma forma de amenizar os preconceitos que estão enraizados
924
em nossa sociedade. A sensibilidade e perspicácia de Dona Pacheco para observar o real, o
mundo a sua volta salta aos olhos; segundo ela, a maioria desses casais são personagens
representados de sua própria realidade cultural, amigos, vizinhos, dentre tantas outras
formas de ser, de viver a diferença.
925
mulher‖, um discurso ligado a multiplicação e a continuidade da humanidade.
Então, a cultura de gênero hegemônica produziu um padrão aceitável pela
sociedade, o casal heterossexual e branco. Os brinquedos de miriti representam a fauna, a
flora, o trabalho, o modo de vida ribeirinho, as palafitas da região perfeitamente. Mas quando
se trata da estética do homem e da mulher cabocla, ribeirinha, esta é ignorada, em favor do
casal europeu, branco e com as madeixas louras, ocultando os casais homoafetivos, negros,
nativos, interraciais da história.
A heterossexualidade como norma é materializada nos brinquedos de miriti com os
casais de namorados/dançarinos, configurando uma heterossexualidade compulsória.
926
século XXI com homens e mulheres ―[...] imersos em uma cultura de gênero conflitante e
paradoxal: por um lado a normatividade tradicional; por outro, traços de uma outra cultura de
gênero que ocasiona uma fissura profunda na primeira‖, o que acaba por influenciar
artesãos e artesãs em suas práticas cotidianas e também no próprio brinquedo de miriti
(RIBEIRO, 2010, p.125). A normatividade é diferente para homens e mulheres. Gênero e
sexualidade estão sendo bastante acionadas sob diferentes perspectivas teórico-
metodológicas, mas nem sempre foi assim. A partir da segunda metade do século XX,
gênero e sexualidade começam a aparecer, oriundas das transformações ocorridas na
sociedade, mais precisamente na década de 60, a partir de movimentos, manifestações,
contestações organizadas por grupos feministas, movimento negro, e coletivos gays. O
movimento feminista ganhou força, avançando em várias partes do mundo, desembocando
na chamada segunda onda, no final dos anos 60; no Brasil eclodiu já na década de 80 nas
manifestações contra a ditadura militar, contudo, com algumas modificações.
Os corpos são constituídos socialmente, com as marcas de gêneros masculino ou
feminino. Explicando as diferenças, Scott (1995, p. 86) argumenta que o ―[...] gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e [...] é uma forma primária de dar significado às relações de poder‖; em outras
palavras, gênero é uma forma de ser homem e de ser mulher produzido em sociedade.
927
Neste casal homoafetivo inspirado dentro do modelo aceitável pela
heteronormatividade de gênero, vemos os sujeitos vestidos conforme o gênero masculino,
com o cuidado de manter certa distância um do outro, para não haver constrangimento do
público, de classe média, sem a sugestão de beijo ou qualquer troca de carícias que possam
despertar, insinuar a sexualidade; o cachorro deixa claro que não há crianças entre os dois.
928
contestável, devido a própria construção do que é chamado ―sexo‖ seja tão culturalmente
construído quanto o gênero; a rigor, porém, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero,
dentro de tal forma que a distinção entre sexo/gênero, gênero/sexo revela-se absolutamente
nenhuma.
O gênero passará a não ser meramente concebido como inscrição cultural de um
sexo; noutras palavras, gênero não estará para a cultura como o sexo para a natureza, e
sim num domínio pré-discursivo que antecede a cultura. Seria este um discurso a priori
histórico, que antecedesse a própria cultura?
929
históricas. Em outros termos ―[...] gênero é uma complexidade cuja totalidade é
permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura
considerada‖ (BUTLER, 2003, p. 37). A noção de gênero é em muitas ocasiões
corroboradas pelo discurso popular tanto no caso de homens quanto de mulheres a uma
suposta noção de gênero, o que leva a certa conclusão de que a pessoa pertence a um
determinado gênero em virtude de seu sexo, devendo consequentemente atender aos
desejos sexuais notavelmente do sexo, uma estrutura aparentemente e moralmente
coerente, correta. Uma naturalização tão fortemente estabelecida e poucas vezes criticada,
mas que não é impossível de contestar e alterar.
Butler (2003) destaca que essa coerência entre dos gêneros homem ou mulher,
exige uma heterossexualidade estável e opcional, exige e produz a um só tempo, a
univocidade, ou seja, única correspondência de cada um dos termos marcados pelo gênero
que constituem o limite das possibilidades do sistema binário, numa relação entre sexo,
gênero e desejo. Por exemplo, uma fêmea, do gênero feminino que tivesse tão somente o
desejo direcionado ao oposto masculino, como se o desejo refletisse o gênero e o gênero
exprimisse o desejo, confirmaria a heterossexualidade compulsória e naturalizada.
Gênero mostra-se performativo. Na discursão delineada em torno da construção
performativa do gênero, que se manifesta nas práticas e matérias da cultura, Butler,
contestando a temporalidade das explicações que confundem „causa‟ e „resultado‟, faz uma
comparação entre Monique Wittig e Luce Irigaray; a primeira refere-se ao sexo como uma
marca que de algum modo é aplicada pela heterossexualidade institucionalizada, marca que
pode ser apagada por meio de práticas que efetivamente contestem essa natureza; por
outro lado, Irigaray compreende a marca de gênero como parte da economia de gênero
hegemônica centrada no masculino, que opera mediante a auto elaboração. Ambas tentam
elaborar explicações capazes de esclarecer as marcas de gênero nos corpos. A partir disso,
pensarmos nas relações de poder que de alguma forma estão aí imbricadas.
930
corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente
rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma
classe natural de ser‖ (BUTLER, 2003, p. 59); desse modo, há várias forças que policiam os
corpos, seus atos e gestos a uma aparência social do gênero e da própria necessidade da
aparência naturalizada.
Butler (2003) escreve que desde sempre o corpo estabelece limites para os
significados imaginários que ocasiona, mas nunca está livre de uma construção imaginária.
O corpo fantasiado, por assim dizer, jamais poderá ser compreendido em relação ao corpo
real, porém, só pode ser compreendido em relação a outra fantasia cultural. Todavia, os
limites do real são produzidos no campo da heterossexualização naturalizada dos corpos,
estabelecendo uma relação entre os fatos físicos e os desejos, ou seja, os fatos físicos
servem como causas e os desejos como efeitos inexoráveis dessa fisicalidade. A estratégia
do desejo é em parte a transfiguração do próprio corpo desejante, a condição imaginária do
desejo excede o corpo físico pelo qual ou no qual atua.
Descofiamos que a incorporação sobre um corpo sustenta a ideia de prazeres, em
que emanam e residem somente a determinados órgãos, naturalizando-os. Partes do corpo
tornam- se desejantes, concebíveis de prazeres; ―[...] em certo sentido, os prazeres são
determinados pela estrutura melancólica do gênero pela qual alguns órgãos são
amortecidos para o prazer e outros, vivificados‖ (BUTLER, 2003, p. 108), tornando-se tabus.
Sexo-Gênero-Corpo são regulamentados por mecanismos culturais, com vista a
transformação de masculinos e femininos hierarquizados, comandados a um só tempo pelas
instituições culturais, como a família, a escola, a igreja e as leis, encarregadas de produzir e
reproduzir as estruturas sociais e subjetivas, impulsionando o desenvolvimento individual de
cada um, dentro dos marcos de uma distinção entre a heterossexualidade legítima e
homossexualidade ilegítima.
4. Conclusão
Concluimos, com a investigação que buscou tecer uma reflexão acerca de uma
mulher-artesã do miriti, conhecida popularmente como Dona Pacheco, seguindo a trilha
etnografica, emaranhada pelas relações de gênero e a produção da diferença. Assim, temos
uma mulher-artesã-chefe que cruza as fronteiras do espaço privado e da esfera pública, em
uma trama de aceitação, negociação e resistência; ao entrar na bicentenária tradição,
começa a borrá-la, reinventado seus significados, diluindo binarismo, produzindo casais
homoafetivos, tensionando a heterossexulaidade compulsória.
931
5. Referências
932
O aborto e as interpretações kantianas frente à concepção
gestacional
https://doi.org/10.29327/527231.5-62
1
Lorena de Paula Ferreira do Nascimento
2
Katherine Vitoria Damásio Silva
3
Luanna Tomaz de Souza
Resumo
O referido artigo tem como objeto principal a explicação das duas interpretações da teoria
do filósofo Immanuel Kant diante à questão moral e ética do aborto, relacionando-as às
concepções dogmáticas da igreja católica e o movimento feminista de autonomia da
mulher. Busca-se analisar a aplicação do campo teórico ao prático a fim de demonstrar
criticamente a dificuldade de concretização de uma possível resolução de conflitos
oriundos das duas percepções.
Abstract
This article has as its main object the explanation of the two interpretations of the theory of
the philosopher Immanuel Kant regarding the moral and ethical issue of abortion, relating
them to the dogmatic conceptions of the Catholic Church and the feminist movement of
woman autonomy. It seeks to analyze the application of the theoretical field to the
practical one in order to critically demonstrate the difficulty of realizing a possible
resolution of conflicts arising from both perceptions.
Keywords: abortion, ethics, Immanuel Kant, Church, feminist movement.
INTRODUÇÃO
O artigo proposto tem como objetivo central expor a análise das interpretações do
filósofo Immanuel Kant no que se trata à concordância ou dissonância moral em torno do
aborto, exemplificadas em circunstâncias práticas: o posicionamento do movimento
feminista e o dogmatismo cristão. Nesse sentido, cabe destacar que enquanto uma posição
se vale do discurso da autonomia feminina, outra defende com veemência a supremacia do
direito à vida desde a fecundação.
Quanto à divisão da explanação do referido trabalho, conceituamos, primeiramente,
as polêmicas morais e a concretização em si do ato do aborto, bem como os dados
estatísticos e a associação de tal problemática com as duas interpretações kantianas sobre
Acadêmica do sexto semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (FAD/UFPA). E-mail:
lorena.depaula.n@gmail.com.Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0735252580673849.
Acadêmica do sexto semestre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (FAD/UFPA). E-mail:
katherinedamasios@gmail.com.Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6044971767525319.
Prof. Dra. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (FAD/UFPA). E-mail:
luannatomaz@hotmail.com.Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5883415348673630.
933
a discordância ou não do processo abortivo. No segundo tópico, é abordado uma breve
exposição dos conceitos kantianos, enquanto no tópico seguinte é realizada a análise da
percepção desse filósofo quanto à ideia do dogmatismo cristão, seguido do tópico sobre a visão
kantiana sobre a concepção pró escolha dos movimentos feministas. Por fim, reunimos a síntese
sobre os tópicos já mencionados em torno da discussão sobre aborto, no
934
feto, enquanto de outro é vislumbrado a necessidade de autonomia feminina para decidir
sobre a interrupção da gravidez. Os debates são assíduos e carregados de subjetividade,
uma vez que trata das concepções morais de início da vida e como esta deve ou não
possuir supremacia frente à vida das mulheres.
Sendo assim, é necessário analisar as questões sobre a dignidade da pessoa
humana, as liberdades individuais e a atuação da religião frente à formulação da legislação
no Estado secularização. Diante disso, as interpretações kantianas quanto aos
posicionamentos pró-vida e pró-escolha possuem notória relevância para o aprofundamento
da descriminalização do aborto, assim como para a tentativa de resolução dessa
problemática a fim de evitar o aumento no número de morte de mulheres que abortam de
forma insegura pela ausência de aparato médico de qualidade garantido pelo o Estado
brasileiro.
935
modo, conforme aponta Vaz e Resende (2017), o sujeito ético kantiano seria, portanto,
aquele livre para determinar, de forma autônoma, os princípios que definem o seu agir.
Nesta diapasão, autonomia para Kant designa a competência da razão humana em
ditar suas próprias leis, sem derivá-las de algo exterior. Seria, portanto, uma capacidade de
autogoverno oriunda da razão, na qual os indivíduos estão sujeitos apenas às leis que dão a
si mesmos (KANT, 1995). Nesse ditame, conforme elucidam Vaz e Resende (2017), o
sujeito autônomo é aquele cuja capacidade de se auto impor o imperativo categórico
também o torna capaz de racionalmente compreender e submeter-se a uma lei jurídica -
sendo elas próprias uma autêntica representação da lei moral - e, ao mesmo tempo, pensar-
se como livre para seguir os desígnios dessa lei (VAZ e RESENDE, 2017).
nesse conceito de autonomia que se fundamenta a dignidade (KANT, 1995). Em
um universo em que todos os sujeitos se subordinam ao imperativo categórico - ao que
filósofo nomeia reino do fins - as relações seriam mediadas por uma consideração subjetiva
que se baseia em uma das dimensões da lei moral kantiana: o agir de tal forma que a
humanidade em si e no outro seja sempre e simultaneamente utilizada como fim, jamais
como meio (KANT, 1995). No reino dos fins, a ação subjetiva - antagônica à objetiva que
condiciona a vontade aos estímulos atrativos de uma finalidade valorada -, é o que
impulsiona o agir como dever em si mesmo, isento de valoração (VAZ e RESENDE, 2017).
No universo regido pelo imperativo categórico, a única coisa que é despossuída de preço e
que deve ser considerada em si mesma, é o sujeito. E, segundo Kant, quando uma coisa se
sobrepõe a todo o preço e, por isso, não permite substituição por equivalente, então ela tem
dignidade, isto é, um valor intrínseco absoluto através do qual exige respeito para si de
todos os seres racionais (KANT, 1995; 2003).
Perfazendo o tópico, nos valemos do compêndio de Barroso (2012) para dispor a
conceituação abordada na síntese de que o agir moralmente configura o proceder inspirado
por uma máxima que possa ser transformada em lei universal; que o sujeito é um fim em si
mesmo, não devendo ser instrumentalizado para lograr intentos de outrem; que os seres
humanos não possuem preço tampouco podem ser substituídos, haja vista que são dotados
de um valor intrínseco absoluto, ao qual se nomeia dignidade. Ante a exposição dos
conceitos kantianos, cuja relevância no debate proposto pelo presente trabalho é
significativa, nos dedicaremos no próximo capítulo a demonstrar como a conceituação
teórica do filósofo está sendo interpretada no contexto das postulações favoráveis ou não à
legalização do aborto.
936
Algumas conceituações kantianas são utilizadas para fundamentar as teses que
advogam pela proibição do aborto. A saber, Dutra (2015) correlaciona a vedação do aborto a
um trecho de Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre, no qual o filósofo defende que
o ato de procriação, isto é, no qual os pais trazem uma pessoa ao mundo, acarreta aos
progenitores a obrigação de não ―eliminar o seu filho‖ ou abandoná-lo, além de estatuir
também como fundamento o dever de conservação e cuidado para com a criança. A partir
disso, ele atrela o pensamento às bases da teoria obrigacional, a qual prescreve que em
sendo a gestação originária de um relação sexual consentida, não se poderia falar em uso
indevido do corpo da gestante, já que seria a filiação oriunda de ato voluntário e, portanto,
fonte de obrigações inescusáveis para o corpo da autora do ato.
Correligionárias dessa mesma premissa, mas relacionando-a ao conceito de
autonomia kantiana, Joviano e Câmara (2015) defendem que o direito da mulher de dispor
sobre o próprio corpo da maneira que lhe aprouver finda no instante em que se tem início
uma gravidez oriunda de ato sexual consentido, assim fazendo prevalecer a máxima "o
direito de um termina quando o do outro começa".
Outros autores, como Hart e Gensler, também se valem dos ideais de Kant para
fundamentarem suas posições pró-vida, porém nenhuma das teses dessa corrente tem mais
notoriedade do que aquela que despreza a interrupção gestacional baseada na crença de
que o embrião, enquanto ser humano, possui um valor intrínseco que lhe assegura o direito
à vida. Como sumo expoente dessa resolução se destaca a Igreja Católica.
Como Zilles (2007) bem enuncia em sua acepção teológica, o imperativo categórico
equivaleria a um respeito incondicional da dignidade humana, significando, portanto, o
reconhecimento da sacralidade da vida. Segundo ele, um representante do conceito
kantiano de dignidade tenderá, a partir da afirmação da dignidade incondicional, a vincular a
exigência incondicional da proteção da vida e tudo que é necessário para mantê-la. Essa
compreensão é representar, em absoluto, o cerne da concepção defendida pelas instituições
religiosas.
O aborto, de acordo com a visão da igreja católica, é considerado como prática
contrária aos seus valores, uma vez que para essa instituição a concepção da vida é tida
desde a fecundação do óvulo e, logo, qualquer impedimento para gerar a mesma é
vislumbrada de forma errônea segundo a moral cristã.
No campo prático das discussões do processo abortivo, a voz da igreja católica é
colocada como meio tradicional, devido sua temporalidade, para legitimar a sua dogmática
quanto ao aborto – veementemente contrária a tal procedimento (KREBS, 1999). Dessa
forma, utiliza-se da capacidade de convencimento, legitimado na tradição, na fé e na crença
937
no que tange ao debate moral, ético e até mesmo legislativo do aborto nas circunstâncias
em que esta efetiva a fundamentação filosófica e teológica ao impedimento da
descriminalização do desse processo no país, tal como foi ocorreu na argumentação dessa
instituição na votação sobre a legalização do aborto na Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul (KALSING, 2000).
Outra exemplificação também foi tratada por Luna (2010) ao verificar
minuciosamente a Campanha da Fraternidade e Defesa da Vida de 2008, feita pela Igreja
Católica Apostólica Romana, a qual demonstrou que a primazia do direito do feto em prol da
gestante possui fundamentação pautada, além de aspectos econômicos, sociais e bioéticos,
também na representação do indivíduo kantiano autodotado e detentor de dignidade
intrínseca e, por isso, a vida deste deve ser garantida desde a sua concepção.
Dessa maneira, a visão kantiana relaciona-se com o posicionamento pró-vida da
igreja católica ao fundamentar o feto legítimo do direito de vida, de modo que esta instituição
fundamenta seu posicionamento com justificações baseadas subjetivamente na fé e na
crença, enquanto, de maneira objetiva, impõe-se por meio da interferência nas decisões
Estatais (como a legalização do aborto) e na imposição de discurso na sociedade.
938
Já no que concerne à autonomia, Barroso postula que as pessoas devem ter a
liberdade de tomar decisões pessoais básicas que repercutem em suas próprias vidas.
Desse modo, estaria dentro limites da autonomia da mulher - logo, de sua liberdade -,
escolher se deseja ou não interromper uma gravidez. Perante uma possível objeção de que
a interrupção gestacional se contrapõe a um hipotético desejo de nascer do feto, o autor
redargue que, muito embora se presuma o valor intrínseco do feto, é mais difícil reconhecer
sua autonomia devido ao fato de ele não ter qualquer grau de autoconsciência. E ainda que
esse primeiro argumento fosse superado, ainda haveria de se avaliar que o feto depende da
mãe, mas não o contrário. De tal forma, se o hipotético desejo de nascer do feto
prevalecesse e a mulher fosse obrigada a manter a gestação, ela se tornaria, pois, um mero
meio para a satisfação da vontade de outrem, sendo assim instrumentalizada e não
considerada como um fim em si mesma.
Corolário da mesma acepção, a perspectiva dos movimentos feministas baseia-se
diante da necessidade de afirmação da autonomia da mulher, constituída, portanto, de que é
preciso que somente esta possui a decisão de seguir ou não com uma gestação. A análise
ética, dessa maneira, advém da liberdade, tal como defendida pelo filósofo Immanuel Kant,
sobre o seu corpo e suas decisões. É esta concepção que sustenta a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 de 2017, na qual solicita-se ao
Supremo Tribunal Federal do Brasil a não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código
Penal, os quais criminalizam o aborto à exceção dos casos de gravidez decorrente de
estupro, anencefalia e risco à vida materna.
A tese central defendida por autoras é que criminalização do aborto e a consequente
imposição da gravidez compulsória compromete a dignidade da pessoa humana, a
cidadania e a não discriminação das mulheres, pois não lhes reconhece a capacidade ética
e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu projeto de
vida. Ainda, a proibição do aborto acarreta em impacto à vida, à liberdade, à igualdade, à
proibição da tortura, à saúde e ao planejamento familiar das brasileiras (BOITEUX et al.,
2017).
Além disso, o movimento feminista busca considerar os fatos e as estatísticas em
prol da legalização do aborto, uma vez que afirma que o mesmo ocorre com ou sem a
autorização legislativa do Estado, conforme é explicitado com o quantitativo de abortos no
país (DINIZ, 2000). Sendo assim, a autonomia, aliada à ideia de liberdade, bem como o
valor intrínseco, entendido como a dignidade, fundamentam e relacionam a interpretação
kantiana pró-escolha para proporcionar a garantia da liberdade feminina frente ao aborto, de
939
forma segura e legal, com todos os aparatos legais que a mulher necessita para realizar
tal procedimento.
CONCLUSÃO
O presente trabalho expôs que o debate sobre o aborto é permeado por polêmicas
que circunscrevem a ideia de início da vida, a qual resulta das construções éticas e morais
que se formaram histórica e socialmente a partir da concepções e influências dos institutos
sociais. Nesse embate, ganham destaque as posições antagônicas entre as ideias
defendidas pelas igrejas cristãs - da supremacia da vida do feto - e os preceitos postulados
pelos movimentos feministas - o prevalecimento da dignidade e autonomia da mulher.
Com objetivo de contribuir para o acervo teórico que cerca este debate, o presente
trabalho buscou abordar alguns conceitos da ética kantiana que ocupam papel central nas
teses das posições pró-vida e pró-escolha. Procuramos, pois, elucidar que, pela perspectiva
de Kant, o agir moralmente configura o ato inspirado por uma máxima que possa ser
convertida em lei universal; que o sujeito é um fim em si mesmo, não devendo ser
instrumentalizado para lograr êxito nos projetos de terceiros; e que os seres humanos detém
um valor intrínseco absoluto, entendido como dignidade.
luz dessas considerações filosóficas, apresentamos as diversas acepções que as
correntes que pleiteiam a legalização ou proibição do aborto fazem delas, contextualizando -
as às bandeiras que levantam. A corrente contrária ao aborto sustenta sua posição baseada
nos preceitos do valor intrínseco - que assegura ao feto o direito à vida -, bem como na de
que a autonomia materna sobre o próprio corpo deve ser limitada quando a gravidez resulta
de relação sexual consentida. Por seu turno, os partidários da legalização da interrupção
gestacional se fundamentam no valor intrínseco - que garante à mulher o direito à dignidade,
que abarca sua integridade física e psíquica e o direito à igualdade -, bem como a de que
autonomia feminina compreende a liberdade em fazer escolhas que digam respeito a sua
própria vida.
As bases teóricas das representações são analisadas como um exercício do
monopólio da verdade (LUNA, 2010), em que há uma tentativa de conflito de direitos
fundamentais, porém os posicionamentos estão relacionados às ideias de um grupo social.
Diante disso, o cercamento do conceito ético sobre esse conflito é conturbado pelo
engajamento excessivo ideológico dos agentes envolvidos, o que não permite a
concretização completa da problemática do aborto em face do caso concreto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
940
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contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 101, v.
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pedido de medida cautelar. Brasília-DF: [s.n], 2017. Disponível em:
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DINIZ, Débora. Aborto e Saúde Pública:20 anos de pesquisa no Brasil. Brasília. Jan.
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DUTRA, Delamar J. V. Três objeções contra o argumento pró-aborto com base no valor
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v.10, n. 13. p. 119-136. mar. 1999. Disponível em: <http://www.oquenosfazoensar.fil.puc-
rj.br/indez.php/oqnfp/article/view/138>. Acesso em: 07 de jan. 2018.
941
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/viewFile/2717/2065>. Acesso
em: 04 jan. 2018.
942
GÊNERO E SEXUALIDADE INTEGRADOS ÀS BASES CONCEITUAIS E
TEÓRICAS DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA.
https://doi.org/10.29327/527231.5-63
ABSTRAT
Studies that address the theme of gender and sexuality, related to education and work,
suggest that there is a yearning for deepening the articulations between these thematic axes.
This article presents a synthesis of research under development in the Professional and
Technological Education program (PROFEPT CAMPUS / BELÉM), and aims to contribute to
the greater visibility and broadening of the debate on gender and sexuality in both academic
productions and educational practices in teaching. integrated medium. The methodology is
based on literature review, participant observation and action research, and has the
collaboration of 10 students of the Integrated Design course at EETEPA in Icoaraci-PA.
Preliminary results point to the low academic production on gender and sexuality in
vocational and technological education and the absence of educational practices in
integrated high school daily life, which demonstrates the relevance of the persistence of
studies and research on this subject.
943
INTRODUÇÃO
Estudos relativos aos temas gênero e educação (LOURO, 1997; 2001; 2007);
(MACIEL & GARCIA, 2018) e gênero, sexualidade e trabalho (LIMA NETO,
CAVALCANTI & GLEYSE, 2018); (FRIGOTTO, 1999; 2009; 2015) sugerem que há um
anseio pelo aprofundamento das análises que articulam esses eixos temáticos, a fim
de refletir os efeitos das pedagogias que buscam a intervenção crítica das relações de
gênero e sexualidade, no ensino e no cotidiano escolar. Neste sentido, este artigo
apresenta resultados preliminares, de pesquisa em desenvolvimento, relativo ao
mestrado profissional em Educação Profissional e Tecnológica (EPT) – PROFEPT
CAMPUS BELÉM, que tem como foco a elaboração de um produto pedagógico sobre
gênero, sexualidade e trabalho, articulado à concepção do ensino médio integrado à
educação profissional.
A presença, no cotidiano da sala de aula, enquanto professora de Sociologia,
na rede estadual de educação do estado Pará, me posiciona diante do incômodo que
a vivência dos afetos entre estudantes lésbicas parece causar, principalmente entre o
corpo docente. A percepção, de que a heteronormatividade regula as vivências e os
comportamentos nos espaços educacionais, e a inquietação e o ―desajustamento‖
revelados nos gestos, olhares atravessados e discursos, de professores e técnicos,
suscitaram os seguintes questionamentos:
Em que medida a escola contribui para reconhecimento da diversidade sexual
e de gênero no cotidiano escolar? Quais componentes curriculares discutem o tema
na sala de aula? A escola promove discussões que possibilite a valorização e o
reconhecimento de estudantes LGBTI+? Como a escola promove a formação de
estudantes LGBTI+ tendo em vista a inserção com qualidade no mundo do trabalho?
A aliança perigosa entre política e religião, promoveu em 2018, a ascensão ao
poder de um governo visivelmente alinhado a forças políticas ultraconservadoras, que
utilizando-se de valores e crenças tradicionais, constrói um discurso de defesa da
família brasileira, segundo a qual na sua formação, deve obedecer a uma moral cristã
fundamentada em preceitos bíblicos, determinando regras sobre corpos generificados
como masculinos e femininos, atribuindo ao corpo do homem e da mulher a função de
reprodução da espécie humana, e coloca na marginalidade outras relações, que não
atendam aos critérios estabelecidos, pelo viés ideológico defendido por este governo.
nesse contexto que pesquisadores, ativistas sociais, professores,
desenvolvem suas produções acadêmicas, científicas e atividades pedagógicas, sob a
vigilância e a ameaça, de setores ligados às igrejas e demais instituições políticas e
944
sociais, que servem de base de apoio ao governo. Dentre as preocupações, do estado
brasileiro com a educação, encontram-se as discussões sobre gênero e sexualidade
na sala de aula, compreendida por este setor como propagação da ―ideologia de
gênero‖.
Dessa forma, existe forte pressão dentro dos espaços de decisão e de poder,
em todas as esferas (municipal, estadual, federal), para que o estado atue interferindo
nas publicações científicas e acadêmicas, peças de teatro, exposições culturais,
produção de filmes, apontando quais temas possuem, de acordo com a ideologia
1
defendida pelo governo, legitimidade para receber financiamento público , para suas
realizações, numa perspectiva evidente de regulação dos comportamentos, corpos e
sexualidade dos sujeitos. Figotto (2017, p18), destaca o sentido ideológico do
momento atual da educação no Brasil no contexto de um projeto denominado escola
2
―sem‖ partido
Frigotto. Gaudêncio (org). Escola ―sem‖ partido: esfinge que ameaça a educação e a
sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.
945
de ensino, experiências de pessoas LGBTI+, pesquisa-ação (HAGUETTE, 1992;
BARBIER, 1985), desenvolvida de maneira colaborativa com 10 estudantes do curso
de Design Integrado, turma 2017, do turno da manhã na Escola Estadual Técnica do
Estado do Pará professor Francisco das Chagas Ribeiro de Azevedo – CACAU,
responsáveis pelas reflexões cujo resultado é a produção de uma história em
quadrinho sobre gênero, sexualidade no ensino médio integrado, e etnografia crítica
3
de sala de aula.
Para melhor compreensão, dividimos o artigo em quatro seções: na primeira
apresentamos o encontro entre o ensino, a pesquisa e o campo de investigação, em
seguida, a breve história de uma educação do sexo. A terceira seção, discute as
bases conceituais e teóricas da educação profissional articuladas aos conceitos de
gênero e sexualidade, por fim os resultados e discussões e considerações finais.
Por sua natureza descritiva da realidade, rigorosa quanto ao entendimento do significado das
ações sociais para o outro, quando associada a uma visão crítica da justiça social enquanto
abordagem teórica, não pode deixar de reivindicar a parceria do professor para a análise dos
processos interativos de sala de aula. MATTOS (1995 p.101)
A Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, alterou o art. 36 da Lei nº 9.394/96 que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas
obrigatórias nos currículos do ensino médio, passando a ser obrigatória em todas as séries do
ensino médio.
946
privilégio de mulher cis heterosexual, e me impõe maior responsabilidade ao tratar
sobre gênero e sexualidade, em sala de aula. Louro (1997; 2001), César (2010),
Junqueira (2013), Maciel e Garcia (2018) advertem que a ―heteronormatividade‖ é
norteadora dos processos pedagógicos e curriculares, com fortes implicações no
cotidiano escolar.
Perceber o trânsito na escolas, de estudantes lésbicas e gays, livremente
experimentando seus afetos, mãos dadas, o carinho no cabelo, abraços, expressões
de gênero estampadas nos corpos das/os estudantes, me leva a pensar que enquanto
comunidade escolar, estamos preparados para as transformações culturais e sociais
que vem ocorrendo no mundo desde meados do século XX, pela força dos
movimentos sociais, principalmente o LGBT (Lésbicas, Gays, Bisexuais e
Transgêneros), reivindicando o reconhecimento de suas identidades e reclamando a
presença e espaço nas diferentes instâncias da sociedade.
Ao abordar a diferença entre gênero e sexualidade(cultura) e (sexo), durante
uma aula na turma do segundo ano em 2017, percebi entre as/os estudantes olhares
atentos, alguns indiferentes, outros curiosos. A narrativa de uma estudante lésbica,
contando da sua vivência, da relação com a família e amigas/os, das relações afetivas,
do medo da agressão devido ao fato de ser lésbica, a escuta atenta dos outros
estudantes, enquanto ouvíamos os relatos, me ocorreu que a escola pública pode
contribuir para o empoderamento de pessoas LGBTI+ diante da difícil tarefa de
afirmação de suas identidades.
Entretanto, a sala de aula é um aspecto da totalidade, a percepção sobre a
presença de estudantes LGBTI+ atravessa outros espaços. Durante um mpmento de
descontração na sala dos professores, conversas aleatórias, troca de impressões
sobre as aulas, conteúdos, turmas e estudantes, o tema sexualidade e orientação
sexual entra na pauta da maneira mais grotesca possível, e violenta para quem não
atende às expectativas sociais em relação à sexualidade, apresento aqui o diálogo
entre duas professoras:
947
abandono escolar, traumas, sentimentos de baixa estima, para Frigotto (1997), é
necessário refletir sobre o compromisso ético e político quando educamos. Ramos
(2008) aponta duas perspectivas: uma excludente, discriminatória, que fragmenta os
sujeitos e lhes nega direitos; outra inclusiva, que reconhece e valoriza a diversidade e
5
a capacidade de produção da vida, assegurando direitos sociais plenos .
Louro (1997), defende que o pessoal é político, neste sentido, as narrativas
apresentadas e as reflexões realizadas a partir delas, me transportaram de um lugar
ao outro: da sala de aula no ensino médio regular, para o campo de pesquisa sobre
gênero, sexualidade e trabalho no ensino médio integrado.
5
Ramos (2008, p.5) propõe um projeto de ensino médio que supere a dualidade entre
formação específica e entre formação geral e que desloque o foco de seus objetivos do
mercado de trabalho para a pessoa humana. Sujeitos que têm uma vida, uma história e uma
cultura. Que têm necessidades diferenciadas, mas lutam por direitos universais.
O Decreto nº 5154/04 regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), estabelece as diretrizes e bases para a
educação profissional.
948
7
distrito de Icoaraci , até 2010, integrava-se à rede da Organização Social Escola de
Trabalho e Produção do Pará – OS/ETPP, quando passou a ser gerida pela Secretaria
Executiva de Educação do Pará-SEDUC, sob a Coordenação de Educação
Profissional.
Trata-se de um prédio térreo de grande porte, com estrutura ampla, de aspecto
acolhedor em função das inúmeras áreas verdes existentes na parte interna da escola,
que ornamentam os corredores de acesso, os espaços pedagógicos e salas de aula. A
escola dispõe de biblioteca, sala de informática, auditório, quadra de esportes, um
espaço amplo para o serviço da merenda escolar, e espaços de sociabilidade em que
foram observados o ir e vir dos estudantes, bem como as reuniões típicas entre os
adolescentes para as conversas descontraídas (Figura 1).
Atualmente, a EEETPA Francisco das Chagas Ribeiro de Azevedo - CACAU
funciona com vinte e nove turmas, distribuídas entre os quatro cursos ofertados
(Design, Hospedagem, Informática, Técnico em Manutenção de Computadores e
Suporte) totalizando setecentos e trinta estudantes matriculados. A escola oferta nos
turnos manhã e tarde o ensino médio na modalidade integrado à educação básica, e
no noturno funcionam as modalidades Educação de Jovens e Adultos e
Subsequentes.
De sesmaria a fazenda, passando a povoado, vila e finalmente distrito, a área que hoje
compreende o distrito administrativo de Icoaraci (DAICO), é formado por vários bairros, e em
2010 (Censo/IBGE) possuía uma população de 167.035 mil habitantes. Desfruta de uma
posição geográfica privilegiada de fácil acesso à jazidas de argila que se concentram nos rios
Paracuri e Livramento, característica que possibilitou transformar a área em um dos principais
polos de produção artesanal de cerâmica do Estado do Pará.
949
A autora destaca que na década de 1960, as manifestações de grupos
específicos da sociedade (direito civis, feministas, gays e lésbicas) contribuíram para a
evolução e transformação ideológica e participativa da instituição escolar,
principalmente no discurso e abordagem de temas delicados e polêmicos para a
época, tais como: discriminações étnico-raciais, políticas ditatoriais e liberdade sexual.
Essa nova postura pedagógica começou a transformar as concepções relativas a
sexualidade e gênero, que existia até então.
Ao final da década de 1980, com a divulgação das descobertas médicas
relativas ao Human Immunodeficiency - Síndrome da Imunodeficiência Humana
Adquirida (HIV/AIDS) – a educação do sexo nas escolas sofreu um grande impacto,
principalmente devido as insuficientes (e até mesmo errôneas) informações acerca do
contágio e da prevenção que se popularizaram e promoveram pânico e discriminação
social. Dessa forma, a informação se tornou a melhor aliada para combater à epidemia
e o caos social que se instalou nos primeiros anos da descoberta.
950
fascículo sobre o Tema Transversal Orientação Sexual, publicado em
1997, consolidou definitivamente a escolarização de uma educação
do sexo.
951
GÊNERO, SEXUALIDADE E TRABALHO: BASES CONCEITUAIS E MUNDO DO
TRABALHO
Lima Neto; Cavalcanti & Gleyze (2018), em ―(In)visibilidades epistemológicas:
considerações sobre corpo, gênero e sexualidade na produção do conhecimento em
educação profissional‖, sublinham os modos como às questões de gênero e
sexualidade são tratadas na Educação Profissional, a partir de consulta a quatro
fontes do domínio epistêmico.
Utilizando diferentes repositórios de pesquisa: Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Colóquio Nacional sobre a
produção do Conhecimento em Educação Profissional; Programa de Pós Graduação
em Educação Profissional - Instituto Federal do Rio Grande do Norte (PPGED/IFRN);
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), entre os
anos de 2008 a 2018, os pesquisadores analisaram 415 trabalhos publicados,
conforme podemos observar abaixo.
TRABALHOS
PERÍODO BANCO DE DADOS PALAVRAS CHAVE
PUBLICADOS
COLÓQUIO
NACIONAL SOBRE
2013-2017 CONHECIMENTO GÊNERO / SEXUALIDADE
175
EM EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL
PPGEP/IFRN
2013-2018 GÊNERO / SEXUALIDADE 52
(DISSERTAÇÕES)
EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL E 102
PORTAL DE
GÊNERO
2008-2018 PERÍODICOS
CAPES (ARTIGOS) EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL E 14
SEXUALIDADE
2008-2017 ANPED GT 09
(TRABALHO E GÊNERO/SEXUALIDADE 72
EDUCAÇÃO)
Fonte: Autores com base no levantamento de LIMA NETO; CAVALCANTI;
GLEYZE (2018)
952
Alguns trabalhos apenas mencionam a temática, e a maioria não faz nenhuma
referência ao tema, constatando uma inexpressividade numérica entre as pesquisas
nestes campos de estudo.
Ao direcionar o olhar sobre as publicações com os temas sexualidade ou
orientação sexual, os pesquisadores observam que no recorte entre 2008 e 2017, não
foram encontrados nenhum trabalho, o que reforça a lacuna por eles apontada. De
acordo com os autores, os estudos apontam caminhos para um novo eixo de pesquisa
na Educação profissional.
953
mundo do trabalho por conta da orientação sexual e garanta condições de
empregabilidade dignas para transexuais e travestis.
A experiência com estudantes LGBTI+, a partir da sala de aula no ensino
médio, não me habilita a tecer narrativas, sobre as expectativas desses estudantes,
quanto a inserção no mundo do trabalho, tendo em vista a orientação sexual. Minha
identidade de gênero (mulher cis) e sexual (hétero), atribui certo privilégio e restringe
meu lugar de fala, sendo necessário buscar essas narrativas junto aos protagonistas
na luta por esse espaço. Neste sentido, apresento as narrativas de duas mulheres
transgêneros
―É mais difícil ser trans do que ser gay ou lésbica porque externamos
nossa identidade...não adianta levar para as ruas o discurso da
empregabilidade se não tem projetos de empregabilidade para
pessoas trans. como será o futuro das pessoas trans? Questões
como aposentadoria, moradia?‖ (RODA DE CONVERSA ONG
OLIVIA/UFPA)
―não adianta subir num trio elétrico e gritar por empregabilidade para
as pessoas trans, se não cobrar projetos para a empregabilidade.
Onde estão essas pessoas (as que se fazem presentes no dia do
orgulho LGBT) na hora do enfrentamento? (RODA DE CONVERSA
ONG OLIVIA/UFPA).
954
O ensino profissionalizante, quando desenvolvido com foco no mercado, de
acordo com Frigotto (2007), aliena o potencial de transformação das pedagogias de
base social, que tem a ―[...] função de desenvolver nos estudantes a capacidade de
agir crítica e conscientemente e de adaptar a realidade às suas necessidades e não o
oposto [...]‖ (ARAÚJO, FRIGOTTO, 2015, p. 73). Considerando a realidade do mundo
do trabalho para as pessoas travestis, transexuais ou transgêneros, faz-se necessário
discutir de maneira crítica a existência de estudantes Lésbicas, gays, bissexuais,
transgêneros no ensino médio integrado tendo em vista a inserção com qualidade no
mundo do trabalho.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Frequentemente as relações disciplinares que se estabelecem no cotidiano
escolar se caracterizam por relações de poder em todas as dimensões. Quando se
trata das questões sobre identidades sexuais e de gênero, Junqueira (2013, p. 75)
observa que o poder age sobre os corpos objetivando ―sua normalização, por meio da
qual uma identidade específica é arbitrariamente eleita e naturalizada, e passa a
funcionar como parâmetro na avaliação e na hierarquização das demais‖.
Tratados como fenômenos discursivos e culturais, gênero e sexualidade
transitam na fronteira dos projetos societários em disputa, e assim se inserem nos
projetos educacionais. Referências a estudantes homossexuais como: ―aquele
gayzinho‖, ou ―você viu a aluna A? Estava abraçada com a aluna B. Um absurdo! Tem
que chamar os pais dessas meninas, depois fica reprovada e vai culpar a escola‖, são
reveladoras dos efeitos arbitrários da generificação dos corpos no cotidiano escolar.
Para traçarmos um perfil dos estudantes colaboradores nas atividades de
produção da história em quadrinho, e conhecermos suas intenções em participar da
atividade, foi elaborado um formulário, que apresenta a narrativa dos estudantes sobre
suas identidades, vivências, percepções de si e da escola no contexto das abordagens
sobre gênero, sexualidade e trabalho no ensino médio integrado. Quem são esses
sujeitos?
Onze estudantes compõem o quadro de colaboradores nas atividades de
produção do quadrinho (Figura 2). Considerando os marcadores sociais, quanto à
identidade de gênero e orientação sexual (Quadro II) são três mulheres-cis-hétero;
duas mulheres-cis-bissexuais; dois homens-cis-hétero; um homem-cis-bissexual. Uma
estudante identificou-se somente como mulher-cis (identidade de gênero) e outra
estudante não respondeu ao formulário. Louro (1997, p. 24) salienta que o gênero faz
955
parte da formação da identidade dos sujeitos, e estes tem ―[...] identidades plurais,
múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que
podem, até mesmo, ser contraditórias‖.
TOTAL 10
TOTAL 10
956
Questionados sobre o interesse, em participar das atividades de produção da
história em quadrinho, as/os estudantes manifestaram que é uma oportunidade de
desenvolverem suas habilidades com o desenho além de discutir a temática gênero e
sexualidade. Sobre esse tema, é importante registrar que todos os estudantes (dez)
que responderam ao formulário, afirmaram que a temática é discutida, somente no
segundo bimestre do 2º ano no componente curricular de Sociologia (eixo comum) e
que nas disciplinas base técnica (eixo profissional), o assunto não é abordado.
Outro ponto referenciado, diz respeito à participação dos estudantes em
atividades sobre gênero e sexualidade durante sua trajetória escolar, também aqui,
todos responderam que nunca participaram. Esse dado indica o silenciamento das
abordagens sobre gênero e sexualidade, na trajetória escolar dos estudantes, bem
como o ocultamento do tema também no currículo, e nos impõe a reflexão sobre as
possíveis causas do silenciamento e do ocultamento.
957
Ao observar a sala de aula no ensino médio integrado em colaboração com a
9
professora C , que desenvolvia sua prática discutindo a organização do trabalho, no
contexto do fordismo/taylorismo, percebi o quantitativo reduzido de estudantes em sala
de aula. A professora explicou que as/os estudantes conseguem trabalho e / ou
passam para o turno da noite, ou evadem da escola, frisou também que os cursos não
10
parecem muito atrativos para os alunos, e referiu-se ao curso de hospedagem que
encerrou a oferta de novas matrículas devido a baixa demanda dos estudantes pelo
curso. No decorrer da aula, a professora C, para contribuir com a pesquisa sobre
gênero e sexualidade no ensino médio integrado, teceu alguns comentários sobre e os
estudantes começaram a se manifestar.
Característico do tabu que envolve a abordagem sobre gênero e sexualidade
em sala de aula, a discussão provocou um frisson entre as/os estudantes, entretanto,
a professora ―E‖, falou muito rapidamente sobre respeitar a orientação sexual de cada
pessoa, e direcionou a fala para questões como como gravidez na adolescência,
infecções sexualmente transmissíveis, cuidados com o corpo, e higiene íntima
masculina. Percebe-se que quando o assunto é sexualidade, conforme já apontado
por César (2009) ainda predomina a abordagem biologizante do tema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
9
―Fazer etnografia crítica de sala de aula sem o professor é continuar a falar sobre a realidade
dele sem que ele possa sequer opinar sobre o significado de sua prática‖. MATTOS, Carmen
Lúcia Guimarães de. ―Etnografia Crítica de Sala de Aula: o Professor Pesquisador e o
Pesquisador Professor em Colaboração‖. R. bras. Est. pedag., Brasília v.76 p.98-116, jan-
agosto 1995.
FONTE: Secretaria da Unidade Escolar abril/2019.
958
Ao considerarmos a fala das militantes travestis e transexuais sobre o mundo
do trabalho, percebe-se a existência de uma possível despolitização, percebida pelas
lentes das próprias militantes. Pode ser que não represente a opinião da maioria
organizada em torno do Movimento LGBTI+, entretanto, por se tratar de protagonistas
com grande representatividade nos espaços de mobilização e de luta, deste segmento
social, é importante registrar.
Como resultado da pressão de Organizações Não-Governamentais (ONG) e do
Movimento LGBT, resultado da pressão de ONGs (OLIVIA), existe na Câmara
Municipal de Belém, um projeto de lei, de autoria do vereador Fernando
Carneiro/PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), denominado ―Mais trans, menos
ISS‖, que prevê incentivo fiscal, para empresas que contratarem profissionais travestis,
transexuais ou transgêneros. Fernando Carneiro entende, que as pessoas transexuais
são as mais estigmatizadas, e entram nas clivagens das opções como o extremo da
marginalização.
Em atividade realizada em 31/10 nas dependências da Universidade do
Federal Pará, sobre o combate ao preconceito de transgêneros no ―mercado‖ do
trabalho o vereador do PSOL, informou ao público presente a existência do projeto
―Mais trans menos ISS‖, e a intenção de reapresentá-lo uma vez que foi rejeitado em
2015. A justificativa da Casa para a rejeição do projeto, fundamentou-se na Lei
Orgânica do Município, segundo a qual a câmara dos vereadores não possui amparo
legal para legislar sobre questões tributárias, e que gerem despesas ao município,
sendo atribuição somente do executivo.
Entretanto, sabe-se, e o vereador Fernando Carneiro refere, que câmara
municipal enquanto espaço de poder, é constituída por grande número de vereadores
ligados às igrejas neo – pentescostais, de diversas denominações, e compõem a ala
conservadora, contrária à pauta defendida no projeto.
A disputa por modelos de educação e de sociedade está posto, e conforme foi
discutido neste artigo, a aliança entre forças políticas, movimentos sociais, ensino e
pesquisa, e práticas educativas, compromissadas com uma formação humana integral,
pode constituir-se em contra – hegemonia, na tentativa de apagamento e
silenciamento de experiências das pessoas LGBTI+ qualquer que seja o espaço de
atuação, a escola ou o mundo do trabalho.
959
REFERÊNCIAS
960
http://forumeja.org.br/go/sites/forumeja.org.br.go/files/concepcao_do_ensino_medio_in
tegrado5.pdf. Acesso em: 11 ago. 2019.
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os
planos de educação brasileiros. Educação & Sociedade, v. 38, n. 138, p. 9-26, 2017.
Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/873/87350459002.pdf. A cesso em: 13 out.
2019.
961
CORPORIEDADES E IDENTIDADES -HIP-HOP E MULHERES QUE DANÇAM BREAK
Resumo
O Hip Hop que em sua construção teve quatro elementos fundantes: Break, Mc, DJ e o Grafite.
Entendendo também contextos atuais a expressão do Quinto elemento, o conhecimento sobre as
construções físicas e simbólicas. Objetivo é analisar a trajetória femininas no Break, construção do
conhecimento sobre hip-hop e a permanência de mulheres, espaço (organização e resistência) de
segurança. Metodologia utilizada foi a observação participante na perspectiva decolonial. Resultados
são perspectivas construídas em uma década da construção dessas trajetórias, resistir transitando
sobre a necessidades de fala desta corporeidade e o dançar, o fazer hip-hop conjunto as relações que
são construídas com outras mulheres dentro e fora dos espaços, para estratégias de permanência e
(re)construção das suas identidades, afirmação no movimento político cultural e artístico,
enfrentamento
a invisibilidade.
Palavras-chave: Mulheres, Hip-hop, Juventudes, Break, Quinto Elemento.
Abstract
The Hip Hop, which in its construction had four founding elements: Break, Mc, DJ and Graffiti.
Understanding also current contexts the expression of the Fifth Element, the knowledge about the
physical and symbolic constructions. The objective is to analyze the female trajectory in the Break, the
construction of knowledge about hip hop and the permanence of women, security space (organization
and resistance). Methodology used was participant observation from the decolonial perspective.
Results are perspectives built in a decade of the construction of these trajectories, resisting the speech
needs of this corporeality and dancing, doing hip hop together the relationships that are built with
other women inside and outside the spaces, for strategies of permanence and (re) construction of their
identities, affirmation in the cultural and artistic political movement, confronting invisibility.
Keywords: Women, Hip Hop, Youth, Break, Fifth Element.
962
O Hip Hop teve seu surgimento na transição entre os estilos funk e o soul music, por volta do
final da década de 1960 tendo seu reconhecimento oficial em 1973 no surgimento de uma das maiores
organizações Hip-Hop do mundo, a Universal Zulu Nation, na periferia de Nova York, no bairro do
Bronx – data que também é vista como a junção dos elementos o que caracteriza o hip-hop. Com
heranças afrodiaspóricas da Jamaica e sua influência Soud Sistens, e parte de danças porto-riquenhas
no contexto de mudanças sociais de crise do final da década de1960 com problemas sociais de
ausências de políticas públicas, de estrutura, desemprego, habitação, a elevação da pobreza, ausência
de lazer, etc. à população negra, latina que ali residiam, como resgate e transformação de suas
realidades – os jovens transformaram essas narrativas em imagens, sons e movimentos, transformando
em elementos que transitam entre várias formas de expressão que em sua construção teve quatro
elementos fundantes: Break(dança), Mc(mestre de cerimônia), ou DJ(disque joquey -mixador, etc) e o
Grafite (artes visuais plásticas de intervenção urbana). Entendendo também contextos atuais a
expressão do Quinto elemento, o conhecimento sobre as construções físicas e simbólicas.
O hip-hop ao mesmo tempo em que se caracteriza enquanto movimento social também se
1
destaca por desempenhar aspectos culturais de comportamento destes grupos inseridos nestes
elementos, partimos então dessa concepção para pensar a trajetória de ser mulher neste espaço, em
específico no break que é o elemento da dança, neste sentido discutiremos aspectos sociais e culturais
do hip-hop.
Compreendendo também a capacidade de adaptação reajustes regionais o Hip-hop por tem
ampla difusão mundial, percebe-se em cada território especificidades, como no Brasil há relatos que
em seu surgimento movimentos de capoeira foram acrescentados aos movimentos estadunidenses para
não se tornarem reproduções, sendo visto hoje um fator decisivo em batalhas a capacidade de
adaptação e improvisação, criatividade; estas especificidades com as quais os sujeitos se relacionam,
contudo a estrutura que organiza e sustenta e apropria os sujeitos deste se identificar enquanto sujeitos
do hip-hop, seja de qual elemento for está ligado também as amarras que também causam essas
percepções gerais tanto positivas quanto negativas, e a percepção de mulheres neste lugar em que o
2
break está à dança e seus dançarinos o Break Boy e Break Girl (b.boy e b.girl) uma vez que percebe-
se a
“Hip hop " um terno que vai além. significa cultura, mas também significa movimento, arte, expressão, paz,
amor, soluções, lutas e igualdade de direitos.” (MOTTA, BALBINO, 2006.p. 10).
“O termo break, idealizado pelo DJ Kool Herc, nos anos 1970, define-se como trecho de maior impacto de uma
música que valoriza mais a batida. Os jovens que dançavam nas quebradas das mixagens começaram a ser
chamados de break boys, o que deu origem aos termos b-boy e b-girl. Os principais movimentos da dança hip
hop são: o eletroboogie, com movimentos robotizados; o up rock, o sapateado do break; e o breakdancing, que
são os movimentos acrobáticos e giros no solo.”).” (ALVES, 2009.p. 33).
963
3
predominância masculina Os contextos diferenciados de entrada do hip-hop nos diferentes territórios
do brasil também nos faz pensar como a juventude da época se organizou para a realização dos
4
primeiros movimentos organizados da época e suas influencias globais.
As contra narrativas deste movimento estão sobretudo nas histórias de resistência dessas
mulheres que adentram as rodas, os ensaios, as batalhas e resistem na luta por igualdade de
oportunidades e de conquista de espaços físicos e simbólicos. A corporeidade trabalhada em
movimentos por corpos femininos, seja de mulheres ou de homens que apresentam esses elementos em
suas danças, são contestados pela hegemonia do ser masculino e inferiorizados pela incapacidade de
reprodução plena do padrão másculo.
A corporeidade de mulheres na dança break é contestada e reafirmada por diversas vezes como
inferior ao movimento praticado por homens, cujas capacidades são exacerbadas como artificie e
manutenção desta figura principal em detrimento de uma imagem secundária, por vezes nem citada,
que são as vozes das mulheres que falam com seus corpos as narrativas de insegurança de si e de suas
novas atribuições de “incapacidades” de reprodução dos modelos masculinos. Em que a subjetivação
destes sujeitos está ligado não somente na sua expressividade mas em transpassar a competição antes
vista por rivalidades de grupos e gangues hoje nas performances de corpo indivíduo nos grupos,
também chamados de Crew.
As constantes narrativas masculinas sobre a permanência das mulheres e a recusa de perceber
a necessidade de diálogos sobre corpo e seu controle, estes não percebem também as situações de
vulnerabilidades que estão sujeitas sobre a exposição de um corpo que é hiper sexualizado ou que este
também necessite de sua negação para aceitação, seja nos ambientes coletivos seja em seu privado,
sobre o controle de mobilidade e cerceamento de trânsito das mulheres em detrimento dos afazeres
domésticos ou mesmo familiares, sobre a permissão invisível do estar na qual há de se perceber que a
não aceitação desta presença cria mal estar para que seja explicito o não querer a presença física e
simbólica de
“O hip hop, em parte por ser uma cultura de rua, apresenta alta predominância masculina. [...]O break, por ser
composto de movimentos vigorosos e de força, supostamente não favoreceria a presença feminina. Nos grupos
estudados por Weller (2005), a participação feminina é pequena e se restringe a um papel secundário, com as
mulheres disponibilizando seu corpo para melhorar a imagem do grupo, como apresentadoras, ou como
decoração no fundo do palco. Nas teses e dissertações existentes sobre o break, a mulher não é objeto de estudo
e, no movimento hip hop como um todo sua participação só é tema central em quatro estudos num grupo de
oitenta e sete: Matsunaga (2006), Lima (2005), Magro (2003) e Magalhães (2002).”(ALVES, 2009.p. 33 – 34).
4
Esse movimento como aqueles também chegou a Belém e também coincidiu com o momento em que o
movimento punk chegou por aqui. Assim, quando o hip hop se torna um movimento consolidado em Belém ele
estva em contato com os punks. (FERREIRA,2013. p. 41).
964
5
mulheres no que é visto como espaço de narrativas de poder , cujo poder está associado a roda e sua
competição, os treinos para um ritual, em que a coadjuvância da mulher está diretamente associada ao
âmbito doméstico e seus transito nesse lugar, e mesmo no rompimento desta cerca as figuras
masculinas tentam associar a vitória desse rompimento aos homens que dela buscam partilhar, como
mais um artifício de suprimir a presença das mulheres e mais uma vez pôr-se em destaque.
O objetivo deste trabalho é fazer algumas observações sobre o contexto sociocultural das mulheres no
break, é analisar a trajetória no Break em Belém, a construção de seus conhecimentos sobre hip-hop e
a permanência de mulheres, espaço (organização e resistência) de segurança como construção de suas
identidades enquanto mulheres que se identificam como “Mulher/ garota que dança break”.
Metodologia
6
As análises partiram da observação participante , em que a pesquisa se dá pelo processo de
interação com os/as sujeitos/sujeitas relacionados, cujo processo de pesquisa se dá pela interação e
participação, no qual não se trata como objeto de pesquisa mas sujeitos os quais possuem ação e a
relação
vista como processo de investigação. Acompanhando eventos, ensaios, conversas cotidianas com as
mulheres e os homens que transitam neste elemento, mantendo o contato por redes sociais,
aproximando para entender a rotina destes participantes e os momentos de competição. Percebendo a
relação de seus participantes na visão decolonial, cujas reproduções de modelos são também rompidas
para criação de novos referenciais.
Além do acompanhamento das relações estabelecidas pelas atividades as quais os indivíduos
partiram, tanto de diálogos interseccionais orientados a partir da pedagogia libertadora assim como a
“educação entre pares” - em que jovem trabalha com jovem, bem como traçar a continuidade de
relação e envolvimentos trazidos pela linguagem corporal e a psicologia da dança na compreensão dos
sujeitos participantes.
“Relatos de mulheres praticantes dizem que a maioria dos B-boys não aceitam que a mulher atue nessa vertente
e acham que elas não são capazes de executar os movimentos necessários.” (Trecho reportagem do blog Geek
Al tratar de conceptualizar la metodologia cualitativa se presentan dos tentaciones fáciles que deberán obviarse
en menor o mayor medida: Una, consistente en apoyarnos en el concepto aparentemente mejor delimitado de
metodologia cuantitativa, y otra relativa a las técnicas que abarca o incluye. En la actualidad, en efecto, buen
número de discusiones se plantean en base a dicotomias diversas: investigación nomotetica (nomológica) /
idiografica (ideográfica), investigación psicometrica / etnometodologia, investigación de laboratori0 / de campo,
investigación experimental / naturalista, ... (Álvarez, 1986). [...]” (apud in ANGUERA ARGILAGA, 1986. P 24.)
965
A percepção sobre a performance em relação ao corpo, o corpo enquanto identidade étnica e
7
racial composto por seus significados de resistência em que a dança será a fala deste corpo , e os
gestos e expressões os seus signos comunicando seus significados. Assim a performance no breaking
se assemelha as origens e reporta a transição desta rivalidade de grupos, transpassada em movimento,
em competição que pode ser recorrente apresentado como verdadeiras batalhas de dança.
RESULTADOS
Essa expressão vem também dos diálogos com minhas interlocutoras, que contesta a validação
do homem sobre o que é ser b.girl, enfatizando que a natureza do ser b.girl está no ser garota que
dança break.
São perspectivas construídas em uma década da construção dessas trajetórias, resistir
transitando sobre a necessidades de fala desta corporeidade e o dançar, o fazer hip-hop conjunto as
relações que são construídas com outras mulheres dentro e fora dos espaços, para estratégias de
permanência e (re) construção das suas identidades, afirmação no movimento político cultural e
artístico, enfrentamento a invisibilidade. O trânsito destas mulheres que normalmente articulam es
estrutura ao lado de seus companheiros ou mesmo compartilham de pensamentos sobre organização e
suas percepções sobre estes espaços são emudecidas nas narrativas sobre hip-hop, sobretudo no
elemento do corpo/movimento e da dança.
Corpo e Performance do corpo - “O ser humano está familiarizado ao seu corpo e assume uma postura de
proximidade com os demais corpos do grupo social em que vive. A performance, neste aspecto, salienta esses
movimentos e os desloca da sua normalidade, provocando assim um realce e um pensar sobre essa atitude.
O corpo é social e individual, expressa metaforicamente os princípios estruturais da vida coletiva. Essa estrutura
somática humana abriga uma sacralidade pura e uma impura. Há no organismo, forças controladas e forças que
ignoram o controle. O corpo pode ser belo ou nojento, ser amável ou agressivo, mesmo involuntariamente. O corpo
um composto que vive em um equilíbrio dinâmico entre as duas forças, social / individual, mas, talvez, muito mais
tensionado pelo aspecto individual. No caso do corpo negro a maior tensão encontra-se no aspecto social é o
corpo marcado pelo racismo.” (AMADOR DE DEUS, Z. 2011. P. 5).
966
Figura 1 e Figura 2Espectadoras, espectadores e Bboys assistindo a competição – Cypher Amazon Crew. Abril/2019
Suas passagens nesses lugares não são invisíveis a outras mulheres que narram as trajetórias de
batalhas passadas, de mulheres que transitam nesses espaços e das que alcançam voos entre as
batalhas, criam espaços de escuta e troca, as vezes fragilizados pela rotina doméstica a qual está
relacionada diretamente com este lugar, cuja casa e família caminham junto com o sentimento de
grupo/coletivo/crew.
As batalhas são momentos que beiram a tensão entre a rivalidade, a competitividade e elos de
respeito e a espontaneidade da arte e movimento. A competição não mais está associada a rivalidade de
gangues, mas a competição de ritmos, de criatividade, de desenvolvimento e reação, de habilidades e
967
domínio das bases da dança. A competição então cria condições de interação cujas famílias que estão
inseridas neste meio compartilham os valores desta relação.
O corpo então transita pelo aceitável e estimado, o que é estigmatizado pelo ser do homem, em
que a história deste homem, comumente apresentado como afrodescendente, está na disputa pelo
discurso deste corpo manifesto, em que lutas do cotidiano, de seus contextos sociais estão colocados
em suas performances.
As performances proporcionadas pelo compartilhamentos de signos/movimentos e histórias de
vidas de pessoas antes com corpos colonizados, que para Frantz Fanon estrutura este corpo de maneira
que o mesmo reproduz um comportamento colonial de individualização em que sem um colonizador
como elo não constitui a comunidade que precisa se reabilitar, reintegrar esse corpo colonizado, os
quais precisaram reaprender a falar com o corpo todos os silêncios impostos pela sociedade que por
muito tempo impôs sobre seus corpos uma “normalidade” cuja ansiedade da fala e da dança se cruzam,
onde dores e afetos se combinam, cuja dicotomia nada mais se fora do que uma etapa em busca de
relacionar o corpo antes “privados e públicos”, com conceitos e afetos que agora se tornaram elo entre
as pessoas que participam. O permitir entre os movimentos e os entraves que estão invisíveis nas
amarras que afastam as mulheres destes espaços.
968
Figura 9 – Foto divulgação campeonato Red Bull BC One, 2018. Vencedora Mini Japa, Mayara Collins.
Assim, a performance a disputa de narrativas de mulheres neste espaço, em que seus corpos
falam de um contexto próximo a realidades dos homens, mas em distinção de comportamento, sobre
novas narrativas de outros corpos não presentes e silenciados nessa construção histórica do
movimento, como a subalternidade nas oportunidades destes em ter espaços de evidência para
competição. Em entrevista à Tv Globo, programa de Fátima Bernardes – Encontro Mayara comenta
sobre a dificuldades de estar ativa na dança e sair do norte do país, cuja ausência de oportunidades,
comenta também a dificuldade de competições equitárias de breaking, cuja premiação não seja
meramente simbólica as dançarinas ou de valor menor, enfatiza ainda que a competição de 2018 é a
primeira vez que o Campeonato Red Bull BC One premia na Categoria de B.Girl com a mesma
premiação da categoria de B. Boys. Este ano a b.Girl Mini Japa competiu novamente na regional
brasileira da competição, sendo a única da Amazônia a chegar entre as 16 melhores, e após a perda
para a atual representante brasileira, a mesma conseguiu participar da mostra da competição sendo
uma das selecionadas por seu vídeo performance, apontada em algumas reportagens como uma das
melhores b.girls do país.
969
Figura 10 e Figura 11 - Mayara Trabalhando no evento de sua Cew (Amazon Crew), ao lado imagem da Bgirl junto com
o Bboy Leony da sua Crew/2019
A tragetórias das mulheres nesses espaços muitas vezes estão entre afastamentos causados pela
violencia do controle sobre corpos femininos, e da não aceitação destes corpos es espaços públicos, ou
mesmo hipersessualizando seus corpos publicizando e criando novas situações de constrangimento.
Estas situações geram uma série de dificuldades em partilhar histórias e geram isolamento nas que não
conseguem perceber as sutilezas do machismo, das falas despretenciosas, dos deméritos associados as
mulheres, muito embora a resistencia e a performidade de algumas destas mulheres em empenhar-se
por criar novas referências de comportar e de enfrentar situações de machismo nos espaços do break
trazem novas ares, em muitos lugares no Brasil surgem novos movimentos de mulheres, de Crews de
Mulheres, ou que estas também criam espaços de convivência e segurança para outras mulheres e
comunidades lgbtqi+.
Estes novos espaços de discussão e formação política são desde oficinas livres a performances
coletivas que incluem mulheres e lgbtqi+, em que as muheres que caminham neste sentido constroem
a partir de suas tragetórias espaços de segurança e de boa comvivência, repensando a estrutura de
desinvizibilizar estes corpos insurgindo seus discursos pelo corpo presente. Performidades como na
competição de break de 2016 em Belém, que foi trabalhada pelas b.girls Mini Japa, Sara Laman,
Thaysa, Paulinha, uma competição em que as mulheres foram o foco, e além de diálogos sobre o
movimento criaram um espaço de acolhimento para as mães em Belém. Hoje cada uma desenvolve sua
militancia no break tanto virtual como nas suas apresentações em campeonatos e batalhas.
“Ainda falta muito, mas estamos conseguindo conquistar nosso merecido
espaço dentro do breaking. A revolução é feminina.” FabGirl . (Entrevista - RedBull,
2019).
Outro exemplo de atividades construídas e ressiguinificadas pelas mulheres sobre a atuação no
break e suas invizibilidades está nas construções e articulações da b.girl “FabGirl”, oriunda de Brasília
onde atua com sua Crew BSB, cria espaços de segurança e convivência, em que a mesma realatou em
diálogo realizado em dezembro de 2018 em Belém pela Caravana Hip-hop sobre a necessidade de
970
enfrentar e colocar a diversidade para falar, sobre como nos eventos da sua Crew (que é responsável
por um dos eventos mais inportantes do meio, pensado para B.Girls – a Batlhe Batom), sobre suas
atendentes no evento serem mulheres trans, e em todos os eventos ser pautado a diversidade deste
meio que por muito tempo fora invizibilizado.
Assim, as discussões sobre o repensar um novo meio hip-hop, um novo meio break e
evidenciar esta diversidade de relações está em constantes diálogos protagonizados e tencionados por
mulheres, que estão em todo Brasil pensando novos meios de sociabilidades, de não reprodução das
amarras do machismo, e do repensar do break em suas especificidades regionais, como feito em
Belém.
971
REFERÊNCIAS
ALVEZ, Ana Paula. Mulheres na dança do movimento hip hop: a construção do sujeito reflexivo a partir de
uma nova pedagogia de gênero. Rev Genero v 10 n 1.indb. Niterói, v. 10, n. 1, p.31-46, 2. sem. 2009.
ANGUERA ARGILAGA, Maria Teresa Metodologia de la observación en las Ciencias Humanas, 1986.
23-50.
AMADOR DE DEUS, Zélia. Os Herdeiros de Ananse: Movimento Negro, ações afirmativas, cotas
para negros na universidade. Zélia Amador de Deus, orientadora: Marilu Campelo. – 2008.Tese
(doutorado). Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais, Belém, 2008.
__________, O corpo negro como marca identitária na diáspora africana. Congresso Luso Afro
Brasileiro de Ciências Sociais, Diversidade e (Des)Igualdades. Salvador. 2011.
_____________. Pele negra, máscaras brancas / Frantz Fanon; tradução de Renato da Silveira. -
Salvador: EDUFBA, 2008.
FERREIRA, Leila Cristina Leite “E ai, vai ficar de toca? Cola com nós”: lata na mão, grafiteiros na rua,
arte nas paredes: a juventude grafiteira em Belém / Leila Cristina Leite Ferreira. UFPA. Belém – 2013.
MENDES, Ana Flavia. Abordagens criativas na cena, os múltiplos olhares da Companhia Moderno de
Dança. São Paulo. Escrituras Editores, 2010. Coleção processos criativos em Companhia.
MOTTA, Anita; BALBINO, Jessica. Hip hop: a cultura marginal: do povo para o povo. 2006.
SAVAGE, Jon. A criação da juventude: Como o conceito de teenage revolucionou o século XX. Rio de
Janeiro: Rocco, 2009
Reportagem Red Bull BC One: Mini Japa vence batalha de b-girls durante final nacional - Acessado:
https://www.redbull.com/br-pt/red-bull-bc-one-b-girl-mini-japa-vence-duelo-nacional Dia 16 de
novembro de 2019 as 22h10m.
972
Reportagem MINI JAPA VENCE A BATALHA DE B-GIRLS DO RED BULL BC ONE CYPHER
BRAZIL – Acessado: https://rapnarua.wordpress.com/2018/06/12/mini-japa-vence-a-batalha-de-b-
girls-do-red-bull-bc-one-cypher-brazil/ Dia 16 de novembro de 2019 as 22h15m.
973
BINARIEDADE DE GÊNERO: PERCEPÇÕES SOBRE CORPOREIDADES ENTRE UM
GRUPO DE JOVENS EM BELÉM, PARÁ.
Resumo: Neste texto realizamos reflexões em cima dos recorrentes debates que ocorrem
dentro do grupo de estudos e pesquisa, com as temáticas de gêneros e sexualidades, no
qual também fazemos parte na Universidade do Estado do Pará. Nosso objetivo é discutir os
aspectos da binariedade de gênero como marcadores das corporeidades dos jovens. Com o
uso de uma pesquisa exploratória, foram empregadas técnicas de análise dos relatos de
experiência presentes nos discurso feitos por um grupo de estudantes da graduação,
atentando à dicotomia feminilidade/masculinidade. Devemos ressaltar que as questões
discutidas estão sendo debatidas à luz da interseccionalidade, pois dentro do grupo
referimos, com frequência, a construção de argumentos e ponderações sob os temas a
partir do nosso próprio. local de fala. Observamos que a abordagem realizada configura-se
como uma discussão dos impactos binários de gênero em subjetividades e corporeidades de
indivíduos na sociedade, e compreendemos o quanto precisamos fomentar cada vez mais
esta discussão.
Palavras-chave: Binariedade. Corporeidade. Feminilidade. Masculinidade. Subjetividade.
Abstract: In this text we perform reflections on top of the recurrent debates that take place
within the study and research group, with the themes of genders and sexualities, which are
also part of the University of the State of Pará. Our goal is to discuss the aspects of gender
binariety as markers of the corporeities of young people. With the use of an exploratory
research, techniques were used to analyze the reports of experience present in the
discourses made by a group of undergraduate students, paying attention to the
femininity/masculinity dichotomy. We should emphasize that the issues discussed are being
discussed in the light of intersectionality, because within the group we often mention the
construction of arguments and weightings under the themes from our own. place of speech.
We observed that the approach performed is a discussion of binary gender impacts on
subjectivities and corporeities of individuals in society, and understand how much we need to
foster this discussion more and more.
Keywords: Binariedade. Corporeity. Femininity. Manhood. Subjectivity.
974
INTRODUÇÃO
O debate que aqui será realizado acaba sendo uma possível discussão que fez com
que a autoria se aproximasse no contexto de questões que atingem em comum e que dê
para se repensar, adotando a questão dos aspectos binários do gênero, por identificarmos
como uma composição que possui influência nos demais indivíduos que estejam vivendo em
sociedades vinculadas a uma composição que trata como linearidade as questões de uma
dualidade exclusiva de um feminino e de um masculino .
Como este material acaba sendo resultado de uma pesquisa exploratória do próprio
grupo de estudos que estamos inseridos, foram empregadas técnicas de análise dos relatos
de experiência que foram expostos entre o grupo de estudantes da graduação, além de
sempre nos atentarmos à dicotomia feminilidade/masculinidade.
As questões trabalhadas ao longo dos debates e do texto são sempre abordadas por
uma perspectiva interseccional, devido compreendermos como é importante que as pessoas
consigam discorrer sobre suas próprias vivências e apontar quais composições da sociedade
influenciam em suas vidas, fazendo com que tenhamos um retorno, também, a noção do local de
fala, sendo este um grande conceito para realizar a elaboração de textos acadêmicos.
975
A BINARIEDADE DE GÊNERO EM EVIDÊNCIA: UMA DISCUSSÃO SOBRE PAPÉIS DE
GÊNERO EM UMA PERSPECTIVA BINÁRIA
Em grande parte do mundo Ocidente, isso de forma bem generalizada, todos os
indivíduos possuem papéis e manifestações sociais, nas quais seguem muitas das vezes o
sistema binário de gênero, homem e mulher, que consiste em delimitar as funções, os
gostos e o pertencimento das pessoas.
A partir disso podemos pensar inclusive os próprios aspectos que estão veiculados a
idealização de uma feminilidade, nos remetendo em como as mulheres estão condicionadas
a papéis de subserviência, de desigualdade, dentre outros contextos que as tornam em
pessoas que vivem sendo cobradas a se enquadrar nos próprios segmentos dos papéis
impostos, como Santos (2016) destaca que
976
ou lipoaspiração. Este conjunto de práticas corresponde a uma „disciplina
feminina do corpo‟, que têm como principal objetivo a modelação ou
transformação do espaço corporal feminino no sentido de se aproximarem
de um modelo estandardizado de feminilidade (SANTOS, 2016, p. 226-227).
Devemos destacar que todas as pessoas que são expostas a sociedade fundada em
composições binárias acaba trazendo consigo uma bagagem de construções sociais. Afinal
todos somos criados para seguir uma linha convergente de pensamentos, por isso, quando
o indivíduo passa a demonstrar interesse por algo que foge a narrativa desse padrão social
de masculinidade e de feminilidade, e ainda vai mais além, que é o caso de tornar-se
externo ou abjeto a essa manifestação, muitos padrões passam a ser quebrados. E assim
como Abreu (2013), ao tratar de performatividade de gênero em redes sociais,
compreendemos que esse rompimento traz outras possibilidades de corpos, principalmente
com a categoria LGBTQIA+, pois
977
rompimentos com algumas noções de como se dá o impacto binário de gênero na vida das
pessoas. Podemos pensar em como os campos das identidades sofrem constantes
questionamentos sobre as suas reivindicações, pois existe uma influência dicotômica de
como o gênero funciona que tende a desvalidar toda e qualquer manifestação que fuja com
a normatização feminina/masculina.
Devemos discutir que os papéis de gênero irão seguir uma relação conjunta com as
representações sociais vinculadas a um contexto de binarismo de gênero, assim como
aponta Sayão (2006) trabalha ao dizer, em relação aos papéis de gênero, que
Esses variam de uma cultura para outra e dentro de uma mesma cultura.
No Brasil, encontramos uma rica diversidade cultural, e os papéis de
homens e mulheres evidenciam isso, ou seja, há diferentes formas de ser
mulher e ser homem em nossa sociedade, que se expressam, por
exemplo, na dança, na música, no trabalho doméstico e extradoméstico,
nos gestos, no meio rural ou no meio urbano, e, no caso das crianças, nas
brincadeiras. (SAYÃO, 2006, p. 6)
Devemos discutir que a partir desses aspectos culturais dos papéis sociais de gênero
seguem um impacto nos demais espaços e relações pertencentes a vida dos indivíduos, de
modo que podemos elucidar inicialmente a questão do contexto familiar, tal qual Botton et al.
(2015), debatem sobre as relações de gênero com os papéis parentais da família.
978
atingir a vida das pessoas. Com as discussões de um grupo de jovens universitários em
Belém do Pará percebemos como isso funciona na prática.
Essas construções não surgem do nada. Elas são legitimadas pelo grupo e
repassadas de geração em geração. Evidentemente cada novo profissional
que chega à escola tem a possibilidade real de provocar as mudanças de
que ela necessita, até porque ele a percebe com maior facilidade pelo fato
de ainda não ter sido moldado pelo olhar do grupo. (CRUZ, 2013, p. 111)
Já para o que muitos dos homens que fazem parte do grupo de estudantes discutem,
eles repensam bastante a própria questão da masculinidade, e de como a cobrança
constante de seguir o papel social do homem pode ser desgastante e cruel, pois assim
como as mulheres, chega ser impossível alcançar de fato o modelo ideal do que é ser um
homem. Vale ressaltar que mesmo com as ponderações sobre a questão da masculinidade,
o grupo de jovens não deixa de reconhecer o quanto são favorecidos estruturalmente, ou
seja, não deixam de pontuar como funcionam os seus próprios privilégios, mas ao lado do
reconhecimento se enquadram as questões de questionar essa própria normatização.
Está questão se torna interessante de pensarmos, pois não devemos seguir uma
linha maniqueísta e linear das coisas, pois quando nos atendemos a questão da
corporeidade e a relação de gênero, precisamos entender que é equivalente a diversos tipos
de corporeidades, como proposto na análise de Pereira (2015), a qual nos diz que
Outro ponto que é apontado no grupo de jovens é a perspectiva trans e como essas
condicionantes padronizações de gênero em uma perspectiva binária funciona em tal
979
realidade. As colocações discutidas neste sentido de vivência é de como um sistema que
delimita os indivíduos a seguirem uma lógica binária acaba sendo violenta com corpos que
transcendem, rompem com esta relação, pois para as pessoas trans existe a questão de as
pessoas quererem uma normatividade, de que as pessoas trans precisam se enquadrar a
um outro paradigma de corporeidade, sendo que não é assim que funciona.
As pessoas trans neste caso se encaixam como sujeitos plurais que rompem com a
composição binária do gênero, mas que são constantemente pressionadas a se enquadrar
neste mesmo quadro binário, é como a análise do armário que Sedgwick (2003) realiza ao
dizer que quando se sai de um armário a sociedade tenra ter colocar em outro para que a
lógica normativa não seja atingida.
Assim o corpo será pensado como lugar de inscrição simbólica que refletirá
posições sociais na estrutura de 'todas as' relações de poder (seja de classe,
gênero e raça, etc.), sendo um campo profícuo para a leitura do mundo social,
na medida em que operaria a partir de uma lógica também dual, em que é
fincado no processo de interiorização das disposições vigentes no social, e
enquanto tal apreende essas disposições e reproduz a ordem do mundo, sendo
um legitimador da ordem binária existente. (DAMÁSIO, 2011, p. 215).
Essas configurações que o grupo aponta em suas subjetividades nos faz perceber o
quanto as suas próprias corporeidades são marcadas por aspectos binários de gênero que
são externos a cada um. Em como o seu cotidiano são entrelaçados por relações de gênero,
de classe, de raça, dentre outros aspectos socioculturais e históricos, fazem com que esses
indivíduos repensem as suas próprias vivências quanto pessoas.
Dentre esses noções conseguimos perceber como a análise feira pelos sujeitos sabe
ao ambiente da realidade em que estão inseridos, e que as suas discussões seguem uma
linha se estão de acordo ou não com tudo aquilo que lhe fora exposto, seguindo um tipo de
posição, tal como Goularth (2015) fala ao tentar (re)conceituar gênero e sexo, nos dizendo
que
980
Essas observações acabam servindo para que possamos de fato realizar nossas
percepções sobre as corporeidades dos indivíduos mencionados adotando a noção de que
esses corpos são realmente demarcados por aspectos de um binarismo de gênero, no qual
as pessoas passam a refletir e se manifestar relação ao quadro somente no momento em
que se achar necessário, nos levando a considerar que algumas pessoas podem nem se
importar em como se dão essas relações por este ponto de vista.
nesta questão que queríamos chegar, pois, mesmo com a nossa constante
identificação de que exista uma projeção da binariedade impactando na vida das pessoas,
devemos evidenciar que não é uma postura ou visa o adotada por todos os indivíduos.
Neste ponto, ao compreendermos que as ideias desenvolvidas ao longo do texto
construídas ao estudar e discutir as relações de gênero, entendemos, também, que para o
todo da sociedade, são questões que nem sempre são olhadas com uma única perspectiva.
Ao contrário, entendemos que com graças ao conceito da interseccionalidade, conforme
Akotirene (2018), os recortes que fazem os indivíduos repensarem as suas vivências
seguem muito além de dicotomias universais.
981
indivíduos em caixinhas controláveis fazendo os alternar conforme o interesse da
normatividade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da análise construída em cima de binariedade de gênero acreditamos que é um
tema que atinge todos os grupos sociais de uma sociedade e que precisamos refletir sobre isso
para podermos adotar as posturas que acharmos coerente. Ou seja, após entender como o
sistema binário funciona, fica a critério individual a projeção social que será tomada.
Defendemos que é preciso romper algumas ideias sobre como a sociedade precisa
ser estigmatizada por um modelo dicotômico de feminilidade/masculinidade, pois
precisamos pensar a realidade social e de gênero por uma perspectiva plural de identidades,
onde um condicionador de dualidade é um grande problema para qualquer ser que rompa
com esse contexto.
Ao tratarmos a subjetividades dos jovens estudantes que debatem o gênero,
conseguimos pontuar algumas questões que achávamos pertinentes para compreender
tanto como se realizam essas imposições quanto o que podemos delimitar como problemas
que devem ser repensados dentro da sociedade.
Ao discutirmos os impactos binários de gênero na subjetividade dos indivíduos nós
compreendemos o quanto é preciso continuarmos com o debate do binarismo de gênero nas
relações sociais. Tal discussão, conforme adotamos ao longo do texto, entendemos que o
binarismo de gênero afeta toda relação social. Sendo assim, é algo que deve ser
constantemente pautado na sociedade, justamente por ser algo que causa inúmeras
problemáticas na vida das pessoas.
982
REFERÊNCIAS
ABREU, Carla de. Performatividade e Corporeidade nas Redes Sociais: Escrevendo gêneros
e sexualidades não-hegemônicas nas redes sociais.In: Anais do VI Seminário Nacional de
Pesquisa em Arte e Cultura Visual. Goiânia (GO): UFG, FAV, 2013.
DAMÁSIO, Anne Christine. Botando corpo e (re)fazendo gêneros. Revista Bagoas, n. 06,
2011, p. 211-241.
983
AT 7 - Feminismos, Gênero e Interseccionalidade
Coordenação
Esta área temática tem procurado realizar estudos relativos ao projeto feminista
na teoria do conhecimento, analisando os fundamentos culturais que circulam
na epistemologia e metodologia das ciências e a contribuição da crítica
feminista contemporânea para a desconstrução de saberes marcados por
representações discriminatórias aos gêneros e suas práticas, valores,
identidades, subjetividades, articulando-se a questões relativas à
interseccionalidade, com evidência entre gênero, raça, classe social e geração.
984
GESTORAS E OS CASOS DE SEXISMO, MACHISMO E INVISIBILIDADE NAS
ESCOLAS DO CAMPO.
RESUMO
Este artigo socializa o resultado de uma pesquisa realizada com gestoras de escolas do campo da
cidade de Tomé-Açu, PA, abordando a histórica invisibilidade das mulheres e a violência dos
processos de educação no campo, especialmente o machismo que atinge as gestoras. Para tal, a
metodologia utilizada foi a entrevista com mulheres gestoras de escolas do campo na cidade de
Tomé-Açu. Tendo como objetivos: reconhecer os desafios e superações profissionais
relacionados ao gênero dessas mulheres, a partir das relações estabelecidas entre elas e os
demais funcionários da escola, além de evidenciar as diversas formas de preconceitos, machismo,
sexismo nas escolas do campo do município, sob a ótica das gestoras pesquisadas e
principalmente dar voz as gestoras do campo e suas superações e dificuldades nas escolas do
campo. Ao fim do trabalho, apresenta-se uma sugestão de plano de aula interdisciplinar sobre
feminismo, a ser utilizado nas escolas do campo.
PALAVRAS-CHAVES: gestoras, escolas do campo, feminismo, Tomé-Açu.
SUMMARY
This article socializes the result of a research carried out with managers of rural schools in the city of
Tomé-Açu, PA, addressing the historical invisibility of women and the violence of education processes
in the countryside, especially the machismo that affects women managers. To this end, the
methodology used was the interview with women managers of rural schools in the city of Tomé-Açu.
Having as objectives: to recognize the challenges and professional overcoming related to the gender of
these women, from the relationships established between them and the other school employees,
besides highlighting the various forms of prejudice, machismo, sexism in the rural schools of the
municipality, under the optics of the surveyed managers and mainly give voice to the field managers
and their overcoming and difficulties in the field schools. At the end of the paper, a suggestion of an
interdisciplinary class plan on feminism, to be used in rural schools, is presented.
985
1- A HISTÓRICA INVISIBILIDADE DA EDUCAÇÃO DOS POVOS DO CAMPO
As escolas são compostas por muitas mulheres fortes e determinadas, sendo possível
observar que se organizam em busca de seus objetivos há algum tempo. Temos, em 1995, como
exemplo, a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR), que reunia as
mulheres dos movimentos autônomos, da CPT, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), da Pastoral da Juventude Rural (PJR), do Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), de alguns sindicatos de trabalhadores rurais e, no último período, do Movimento dos
Pequenos Agricultores (MPA) segundo Paludo e Daron (2012).
Muitas são as pautas da luta dos movimentos de mulheres, que são contra o modelo
capitalista e patriarcal, por uma sociedade mais igualitária, que as reconheçam e as valorizem,
986
contra a opressão, discriminação, violência e pela sua dignidade. A união e as reivindicações
desses movimentos culminaram com a demarcação de datas históricas para todos nós, como o 8
de março que é o dia Internacional da mulher, 12 de agosto, morte de Margarida Alves, dia de luta
contra a violência no campo, pela ampliação dos direitos previdenciários, pela saúde pública, por
um novo projeto de agricultura, pela Reforma Agrária, pela campanha de documentação e pela
formação política.
Algumas dúvidas nos acompanham quando a temática é voltada para a mulher e suas
produções acadêmicas, seus conhecimentos, importância para sociedade e até o tratamento
destinado a nós durante milênios. A questão principal dessa indagação se faz presente no
momento em que descobrimos que a participação e produção de mulheres sempre existiu, no
entanto, a invisibilidade em relação aos homens também as acompanhou.
Atualmente temos um pouco mais de espaço para debatermos questões de gênero e seus
desdobramentos, mesmo enfrentando embates. Este trabalho é fruto de resistência, uma vez que os
espaços educativos em que estamos inseridas são repletos de machismo e misoginia. Porém, o não
aparecimento da figura feminina em fatos históricos importantes em diversas sociedades nos impõe
barreiras reais ao tentar analisar ações de mulheres na sociedade patriarcal.
Acreditou-se por muito tempo que ao falar dos homens, se estaria contemplando,
também, as mulheres de forma igual, sabe-se que isso não corresponde à realidade. Quando se
estuda sobre as mulheres da Grécia do período clássico (sécs. V-IV a. C.) um dos entraves é o
fato de que grande parte dos documentos foram feitos por homens e, dessa forma, são
carregados de visões, idealizações masculinas sobre o feminino.
987
negra é vítima prioritária da violência homicida no País‖ (p. 7). A taxa de homicídio das mulheres
brancas vem caindo e das negras alarmantemente subindo.
As mulheres gestoras que deram cheiro, sabor e vida a essa pesquisa foram quatro e
têm entre trinta e quarenta anos. Estão atuando no campo de três a quinze anos e relataram suas
vivências pessoais e profissionais, assim identificando, reconhecendo os moldes sociais
relacionados aos papeis destinados a mulher e aos homens, com o desafio de ser mulher do
campo, local este marginalizado por séculos. Por receio de represálias algumas das entrevistadas
disseram preferir ser identificadas por codinomes. Assim, adentrar o universo das minhas
informantes foi tarefa difícil e delicada.
Duas das quatro gestoras atuam em escolas multisseriadas e as outras duas em escolas
pólos, estas últimas aturam como coordenadoras pedagógicas antes de aceitar a função de
gestoras. Para facilitar o entendimento, por sugestão das informantes, elas serão identificadas
como: gestora da escola pólo 1, gestora da escola pólo 2, gestora da multissérie 1 e gestora da
multissérie 2.
As escolas multisseriadas correspondem àquelas em que o gestor por muito tempo foi e
em Tomé-Açu ainda é reconhecido pelo termo professor dirigente, pois é aquele que, além de
988
lecionar, executa a parte administrativa da escola, que por sua vez está localizada em uma
comunidade que tem um número pequeno de alunos e eles estão em séries/ano diferentes e
estudam juntos.
A escola do campo, seja multissérie ou polarizada, precisa ser uma das principais
motivadoras da afirmação da identidade dos camponeses, além de mostrar a importância da
tradição e valorização da agricultura familiar. Só assim deixará de expulsar seus jovens dela, uma
vez que estes não se sentem representados e sem enraizamentos na localidade.
As escolas que as pesquisadas atuam são compostas mais por mulheres do que por
homens. E existe um estereótipo atribuído aos gestores, principalmente se o cargo for exercido
por alguém do sexo feminino, como bem mostrou a gestora da escola pólo 1: “Algumas vezes,
talvez pelo meu tipo físico e pela minha simplicidade aparente no vestir, ás vezes, quando
estamos reunidos em equipe e alguém chega procurando a diretora, percebo que o olhar da
pessoa procura alguém com outras características".
989
e sexualmente, sendo tratada como uma extensão de todos os bens
possuídos pelo homem. (p.70)
No livro ―Sejamos todos feministas‖ Adichie (2015) declara que a palavra ―feminista‖ tem
um peso negativo: a feminista odeia os homens, odeia sutiã, odeia a cultura africana, acha que as
mulheres devem mandar nos homens; ela não se pinta, não se depila, está sempre zangada, não
tem senso de humor, não usa desodorante. Este é um estereótipo criado sobre a mulher que
afirma ser feminista. Não se pode esquecer, também, que muitas mulheres são contra o
feminismo e isso revela a força do patriarcado.
O movimento feminista foi de suma importância para nós, mulheres, fazendo que nos
vejamos como personagem principal de nossas vidas, tendo poder de decidir e opinar abertamente ou
até tornando a sociedade mais sensível aos obstáculos enfrentados por nós, porém em muito
precisamos melhorar como sociedade para sermos mais justos e democráticos. Um exemplo é a maior
participação das mulheres na política para, assim, dialogarmos sobre temáticas femininas que são
atualmente decididas por homens no congresso. O feminismo é libertador.
O machismo e o desrespeito com nosso corpo atingem a todas nós na rua, em casa,
entre amigos e familiares, até no trabalho. Algumas das gestoras já foram surpreendidas com
cantadas por parte de alunos, funcionários ou pais de alunos, com olhadas indiscretas, cochichos,
principalmente as que são solteiras. A gestora da multissérie 2 declarou: “finjo que nem é comigo”.
Por que geralmente com as solteiras? Porque eles têm medo dos maridos das casadas. Homens
têm receio de outros homens e não de mulheres. Essa gestora acredita que se fosse casada
talvez o assédio não acontecesse. Logo, uma mulher solteira pode ser vista como alguém que
merece ser desrespeitada.
O estado civil de uma mulher não define seu caráter, e há a disputa entre mulheres. Falta
a sororidade, que faz com que mulheres se ajudem, lutem juntas e não uma contra as outras
como o patriarcado deseja. Compactuo com Chimamanda, que em seu livro intitulado ―Sejamos
todos feministas‖ afirma que nós criamos nossas filhas para enxergar as outras mulheres como
rivais e não como irmãs de lutas e dores. Nós, mulheres, temos os corpos vigiados pela sociedade
e pelas igrejas.
990
As mulheres enfrentam diversas dificuldades para atuar nesse cargo, por diversos motivos,
sejam eles de cunho pessoal ou profissional. Uma delas relatou que não podia sair para um bar ou
festa na cidade que era severamente criticada. Mas, apesar das angústias que mulheres sofrem na
sociedade, as gestoras não acreditam que se fosse um homem na gestão da escola algumas
situações seriam diferentes ou mais fáceis, uma vez que a escola têm profissionais qualificados para
diversas funções e habilidades. A gestora da escola polo 1 destacou que “nos casos de tarefas mais
pesadas fisicamente, entra em ação a parceria e o trabalho em equipe”.
A gestora da multissérie 2 destacou que sua fala foi interrompida diversas vezes por pais
que eram chamados para falar sobre o comportamento de seus filhos. E complementou
apontando outra atitude machista: ―organizei um torneio de futebol na escola e o vigia e os pais
dos alunos tomaram a frente por acharem que eu não conseguiria”. Essas ações machistas
podem parecer sutis ou explícitas nas falas dos sujeitos.
Ter a fala interrompida é apenas uma das ações machistas como bem relembrou a
gestora da escola pólo 1 dizendo que já teve ideias furtadas por homens e que eles ficaram com o
mérito, quando ela atuava como coordenadora pedagógica e que isso aconteceu incontáveis
vezes. A gestora relatou, também, casos de preconceito entre alunos, uma vez que as escolas
são ambientes que recebem sujeitos muitos diferentes, com visões de mundo ainda limitadas.
Ao lidar com o PDE, que é o Plano de Desenvolvimento da Escola, considerado pelo MEC
(Ministério da Educação e Cultura) como um processo de planejamento estratégico desenvolvido pela
escola para a melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem, Mais Alfabetização, Novo Mais
Educação e outros programas que envolvem dinheiro e prestação de contas, algumas gestoras já
sentiram certas estranhezas, como se tivessem inaptidão para a função.
A gestora da escola pólo 1 declarou ―com incapacidade, não, com desconfiança, sim... por
isso procuro prestar contas de cada centavo”. Todas as gestoras que contribuíram com este artigo são
graduadas, três delas especialistas, ou seja, instruídas e aptas a atuar em seus respectivos cargos.
Mesmo assim, o fato de serem mulheres, é o suficiente para que duvidem de seu trabalho.
991
Para lutarmos por nossos direitos é preciso conhecê-los, para valorizarmos as conquistas
passadas é necessário estudar a história dessas mulheres. Exemplo disso é o voto feminino. Muitas
mulheres criticam o feminismo sem saber que o movimento contribuiu para a obtenção dessa
conquista, por exemplo. Pensando nessas questões, deixamos aqui uma sugestão de aula
interdisciplinar sobre feminismo para escolas do campo, haja vista que, se nos propomos a trabalhar
isso em sala de aula, temos que começar a colocar em prática e, a nossa intenção aqui, é apresentar
plano de aula para que seja utilizado por educadoras e educadores que têm interesse em trabalhar a
temática de gênero no ensino básico por um mundo menos violento e misógino para todas nós.
I- Identificação
Justificativa
Trabalhar essa temática faz-se necessário, uma vez que as mulheres são invisibilizadas
pela sociedade patriarcal. Conceituar o termo Feminismo conhecendo a luta das mulheres do
campo, possibilitando ao aluno a compreensão do papel da mulher na sociedade contemporânea
contribui no empoderamento dos sujeitos do campo.
III- Objetivo: Conceituar o termo Feminismo conhecendo a luta das mulheres do campo.
IV- Competências e habilidades
992
-Respeitar ambos os gêneros conhecendo os privilégios dos homens na sociedade. (Ensino
Religioso)
-Identificar as formas de violências sofridas pelas mulheres do campo e conhecer a Marcha das
Margaridas (Geografia)
Ler o dossiê ―Feminismo, História e Poder‖, de Celí Regina Jardim Pinto, para
entender como surgiu o movimento feminista. Dividir a turma em grupos e debater as
principais conquistas do movimento (História) Tempo: 2 aulas de 45 min.
993
Ler o texto buscando interpretar, ver o videoclipe ouvindo a música: “Respeita as mina‖,
de KelSmilth. Abrindo para o debate com a turma em forma de roda de conversa. (Língua
Portuguesa.) Tempo: 2 aulas de 45 min.
Ler o texto: “Mulheres ganham 20% a menos que homens, segundo IBGE‖, de Bia
Cardoso, do site ―‖Blogueiras Feministas, e analisar os dados no site do IBGE. Em seguida
montar gráficos com os dados. (Matemática).Tempo: 2 aulas de 45 min.
Ler o texto e ouvir a música ―Mulheres Negras” de Izalú e dialogando em forma de
perguntas para a turma sobre o texto e escrever um texto enaltecendo a figura feminina negra,
não apenas com elogios físicos mas também sua luta e conquistas (ERER). Tempo: 2 aulas
de 45 min.
Dividir a turma em grupos destinar a cada grupo a leitura um capítulo do livro
―Sejamos todos feministas‖, de ChimamandaNgoziAdichie e traduzido por Christina Baum,
apresentando em forma de seminário (Ensino Religioso) Tempo: 2 aulas de 45 min.
Dividir a turma em grupos destinar a cada grupo a leitura um capítulo do livro
―Como educar meninas feministas‖, de Chimamanda Ngozi Adichie. Produzir um texto sobre a
compreensão que tiveram do livro, dialogando sobre o papel da mulher na sociedade no
passado e atualmente (Geografia) Tempo: 2 aulas de 45 min.
Apresentar o texto: ―Movimento de Mulheres Camponesas: um movimento
camponês e feminista‖, de Valdete Boni, já resumido previamente pelo professor. Fazer a
leitura com a turma e debater os pontos principais. (Ciências)Tempo: 2 aulas de 45 min.
Utilizar também o texto: ―Movimento de Mulheres Camponesas: um movimento
camponês e feminista‖, de Valdete Boni, dialogar sobre a agricultura e as mulheres
localmente, quais atividades exercem as mulheres da comunidade, quais culturas plantam,
dentre outros. (Educação Ambiental)Tempo: 2 aulas de 45 min.
Apresentar em slide, resumidamente, trechos do ―Mapa da violência 2015 homicídio
de mulheres no Brasil‖, de Julio Jacobo Waiselfisz, identificando as formas de violências
sofridas pelas mulheres do campo. O professor explica o movimento denominado a Marcha
das Margaridas e sugere que alunos relatem possíveis violências sofridas por mulheres na
comunidade. (Geografia)Tempo: 2 aulas de 45 min.
O professor dialoga com os alunos sobre a invisibilidade da mulher na sociedade e
sugere uma pesquisa (em grupo) na internet sobre artistas femininas e seus trabalhos, cada
grupo pesquisa uma arte diferente (escritoras de livros e poemas, cantoras, artista plásticas,
dentre outras) e apresenta a pesquisa em forma de slides. (Artes) Tempo: 2 aulas de 45 min.
Dialogar com a turma a supervalorização dos homens em certos esportes (ex:
futebol) comparando o mesmo esporte praticado por mulheres, enfatizando a questão salarial
e visibilidade na mídia. Após isso, assistir o filme: ―Menina de ouro‖ com a turma. Questionar
os alunos sobre o que acharam do filme e as dificuldades encontradas pela personagem
principal. (Educação Física) Tempo: 3 aulas de 45 min.
994
O professor apresenta os termos em inglês: manterrupting, bropriating,
mansplainingegaslightin para a turma, assim como sugere a tradução. Depois, debatem juntos
sobre o significado das palavras e questiona se as mulheres da turma já sofreram essas
violências e se os homens da sala já praticaram, assim como o que cada um sentiu sofrendo
ou praticando a ação. (Inglês) Tempo: 2 aulas de 45 min.
VII- Recursos:
6- SEGUINDO NA LUTA
Não podemos aceitar que nos impeçam de sermos ativas, produtivas academicamente,
que sejamos ou façamos o que quisermos por medo de retaliações machistas e sexistas. Ensinar
que mulheres não podem fazer certas coisas só pelo fato de serem mulheres é errado. (ADICHIE,
2017, p. 20). Reforçar estereótipos que desqualificam negros, gays, mulheres e homens não
contribui com as mudanças que necessitamos na sociedade e que almejamos em nossas escolas.
Não podemos mais permitir que continuem violentando simbolicamente as educadoras do campo,
a gestoras e a todas as outras mulheres pelo simples fato de sermos quem somos: mulheres.
Esperamos que as escolas do campo consigam levar aos seus educandos e famílias
através de métodos pedagógicos o respeito à diversidade (de gênero, religião, sexo, e outros),
valorizando a figura da mulher na sociedade, pois nós desempenhamos papéis importantes. Não
basta defendermos a causa, precisamos problematizar nas salas de aulas, salas dos professores,
secretaria, diretoria, na roda de amigos e familiares.
995
7- REFERENCIAS
ADICHIE, ChimamandaNgozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. 1a ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
ADICHIE, ChimamandaNgoziSejamos todos feministas. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.
CALDART, Roseli Salete. Educação do campo. Dicionário da Educação do Campo./ Organizado
por Roseli Salete Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudêncio Frigotto. – Rio de
Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
MOLINA, Mônica Castagna. SÁ ,Lais Mourão. Escola do Campo. Dicionário da Educação do
Campo./ Organizado por Roseli Salete Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e
Gaudêncio Frigotto. – Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
Expressão Popular, 2012.
PALUDO, Conceição. DARON, VanderleiaLaodete Pulga. Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC Brasil). Dicionário da Educação do Campo./ Organizado por Roseli Salete Caldart, Isabel
Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudêncio Frigotto. – Rio de Janeiro, São Paulo: Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
SILVA, AD. Ser homem, ser mulher: as reflexões acerca do entendimento de gênero. In: Mãe/mulher
atrás das grades: a realidade imposta pelo cárcere à família monoparental feminina [online]. São
Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 51-100.
SOIHET. Rachel. PEDRO. Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das Mulheres
e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 54, p. 281-300
– 2007. WAISELFISZ, JulioJacobo. Mapa da violência 2015 homicídio de mulheres no Brasil.
1ª Edição Brasília – DF – 2015.
996
A SUBALTERNIZAÇÃO NA VIDA DE MULHERES NEGRAS COMO EMPREGADAS
DOMÉSTICAS NO MERCADO DE TRABALHO EM BELÉM:TRAJETÓRIAS DE
VIDA NO SECULO XXI
1
https://doi.org/10.29327/527231.5-67 Alessandra Viviane Vasconcelos Pereira
2
Danielle Silva Silva
RESUMO
O presente trabalho objetiva tratar de vidas de mulheres negras no mercado de
trabalho na capital de Belém do Pará, a partir das minunciosas pesquisas já
existentes, documental e bibliográfica, entrecruzando dados se observa a posição
social em que mulheres negras domésticas amazonidas estão, como consequência de
um histórico escravista que a condiciona a situação subalterna. Procura-se observar
suas especificidades de mulher negra, sua classe raça e gênero. A partir de relatos de
mulheres negras no ofício de empregadas domésticas se observam seus sonhos e
suas perspectivas, as faltas de políticas publicas para sua ascensão e inclusão social.
Analisa-se a partir de recursos epistemológicos da interseccionalidade que é a base do
femninismo negro para que se compreenda os fenômenos sociais?
Palavras-chaves: empregadas; domésticas; mercado; feminismo;
negro ABSTRACT
The presente work aims to deal with the lives of black women the labor market in the
capital of Belém of Pará, based on the minute researches, documentary and.
bibliografhic, introducing data to observe the social position in which domestic black
woman amazonian are, as a consequence of a slave history that conditions it to the 6
situation. We seek to observe her specificities as a black woaman, her race and gender
class. From reports of black woman working as maids, their dreams and perspectives
are observed, the lack of public policies for their is the basis of black feminism to
undertand social phenomena.
Keywords: maisd; households; market; feminism; black
1 INTRODUÇÃO
Inicialmente abordar vidas de mulheres negras como empregadas domésticas no
mercado de trabalho em Belém, é complexificar o tema e por em debate a luz da teoria do
feminismo negro, sendo assim compreendendo tais fenômenos sociais que são ignorados
dos poderes públicos, como também da sociedade, logo essas vidas são invisibilizadas, no
entanto sua importância nos interiores das famílias se torna imprescindível para que outras
mulheres venham estar no mercado de trabalho, é nesse modelo que se observa o serviço
subalterno em que está condicionada as empregadas domésticas negras e é demarcada o
racismo e a forma perpetuada de servidão.
1.1 Críticas Teóricas do Feminismo Negro
997
A princípio, é de se esperar que o movimento feminista trouxesse com ele
mudanças significativas para as mulheres, entretanto frequentemente via-se que
muitas pautas políticas interessantes às mulheres negras não estavam inseridas
como questões essenciais no processo de reivindicações, tendo poucos
reconhecimentos entre as críticas feministas mainstream/dominantes.
Consequentemente o feminismo negro surge dentro de um complexo contexto de
crítica social, pois se situa dentro da luta antirracista do movimento negro e ao mesmo
tempo como crítica ao movimento feminista dominado por mulheres brancas e
agendas políticas excludentes, portanto considera o gênero, a raça e a classe social,
e, inclusive, aponta que a luta da mulher negra inicia com sua luta abolicionista e
antiescravista no século xx, nos Estados Unidos (PINTO, 2010)
Portanto, desde cedo, a luta das mulheres negras não somente era por liberdade e
direitos iguais, mas também por sua sobrevivência, por sua condição de escrava
fugitiva, pelo direito à cidadania e até mesmo pela dignidade de ser humano, ora
aprisionada a uma condição serviçal segundo Davis (2016)
Além disso, a autora destaca que as mulheres negras também estavam no
movimento sufragista, reivindicando o direito ao voto pelas mulheres negras, no
entanto essa luta foi complexa e cheia de paradoxos, devido os homens negros não as
incluíram em suas pautas, segundo Pinto (2010) a luta pelo direito ao voto se inicia na
Inglaterra e reflete também no Brasil com Bertha Lutz.
O Feminismo Negro como teoria recebe contribuições das norte-americanas, Ângela
Davis, Bell Hooks, Audre Lorde, Patrícia Hill Collins, Kimberley Crenshaw, Alice Walker
ativistas sul-americanas negras como Sara Gomes e Vírginia Brindis de Salas,
também as africanas como Grada Kilomba, Chimamanda Ngozi Adichie, as teóricas
brasileiras que tiveram participação ativa na política nos anos de Ditadura Militar como
Lélia Gonzáles, Suely Carneiro, Luiza bairros, mais atualmente Djamila ribeiro, dentre
outras, essas escritoras e autoras de célebres obras trouxeram legitimação ao
arcabouço teórico do feminismo negro.
Logo, não se pode deixar de citar mulheres negras amazônidas, com características
peculiares, o que é uma diversidade do movimento feminista e principalmente o
feminismo negro, se caracteriza por ser diverso, os universos são diferentes, as pautas
são diversas, não se pode falar de feminismos sem que se fale de pluralidades,
diversidades, como afirma Prates (2012) há muito de se entender e conhecer suas
histórias, outrora apagadas, como também acrescentar a luta LGBTQI+, lutas por
direitos e representatividade no mercado de trabalho, na arena política, econômica,
acadêmica, no setor privado e público.
998
Por conseguinte as contribuições teóricas do feminismo negro, expressado por
Davis (2016), recebem influências de suas precursoras. Essas mulheres são figuras
essenciais. Logo, se torna impossível negligenciar e passar por cima de suas lutas,
pois deixaram um legado extremamente rico para as ativistas contemporâneas.
Contudo, trazer para a contemporaneidade era desafiar o sistema vigente
hegemônico, que omite da história personagens heroicas, que estariam invisibilizadas
e protagonizaram lutas por direitos das mulheres negras no século XIX.
Ella Reeve Bloor nascida em 1862 também
ativista e articuladora operária lutou pelas
causas do direito das mulheres negras Lucy
Parsons, nascida em 1887, era ativa no
partido Trabalhista, líder operária e
defensora do anarquismo, escrevia poemas
e artigos, ficou conhecida por ser uma das
fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores
de Chicago (DAVIS, 2016, p. 49).
Logo a exclusão se dava através da raça e consequentemente da classe,
conforme análises feitas por Crenshaw (2002), a qual foi a primeira a mencionar
interccionalidade, segundo Ribeiro (2016) reforçando com Audre Lorde (2014), que
trouxe novas demandas e especificidades das mulheres negras, abrindo diálogos para
sexualidade, e fazendo analogia entre o erótico e o poder. Pois dentro do próprio
feminismo negro existiam diversidades, e Lorde (2014) chama a atenção para essas
peculiaridades das mulheres negras.
Ângela Davis em sua obra ―Mulheres, raça e classe‖ de 1982, posteriormente
traduzida para o português em 2016, não cunhou o termo interccionalidade mas
afirmou ser indissociável a etnia, o gênero e a classe, afirma Ribeiro (2016). Entretanto
necessário enfatizar que a crítica do feminismo negro denunciou a ausência de
olhares interseccionais na luta pela igualdade de gênero, de modo a sugerir que
mulheres negras não eram consideradas mulheres femininas, eram estereotipadas,
ora na figura da mãe Preta ora a figura hipersexualizada, assim, elas não serviam para
o casamento (DAVIS, 2016; RIBEIRO, 2016)
Consequentemente, na terceira onda, na década de 70, no EUA, refutam as teorias
feministas pré-estabelecidas e se levanta a bandeira do antirracismo, fazendo a
análise teórica central, de que mulheres negras estavam em condições de classes
desiguais por questão não só de raça, como também de gênero o que as
condicionaram a classes inferiorizadas, devido à falta de oportunidades por seu
passado histórico escravista (GONZALEZ,2018)
Apesar de ter em sua genealogia forte relação com as contribuições teóricas e
ativistas de feministas negras norte-americanas, é fato que o feminismo negro não se
limita apenas aos Estados Unidos, pois é um movimento que repercute por vários
999
lugares do mundo, como também no Brasil. Adquirindo marcas específicas de lutas de
classes, as mulheres negras não se enquadraram no padrão hegemônico de luta
feminista, não se identificaram e buscaram representatividades nas arenas políticas,
na vida social e no mercado de trabalho(GONZALEZ, 2018)
Portanto no Brasil, são diversos os nomes que compõem o feminismo negro: Lélia
Gonzalez, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro. Fortificaram-se os movimentos ideológicos
por menos preconceitos às mulheres negras brasileiras e minorias, que incluem em
suas pautas, as causas LGBTQI+, sendo assim, essa representatividade ganhou
forças no espaço acadêmico como também em movimentos organizados.
Logo, o feminismo negro tem grandes nomes de brasileiras lutando por uma
sociedade mais justa, representados por movimentos que já deixaram suas marcas na
história da mulher negra brasileira, sem citar os grupos de pesquisas dos centros
acadêmicos em todo o Brasil, proporcionando conhecimento e produção (RIBEIRO,
2016)
1.2 Mulheres Negras no mercado de trabalho em Belém
Primeiramente basear a vida de mulheres negras, a luz da teoria do feminismo
negro, é a análise necessária para a compreensão da inserção da mulher negra no
mercado de trabalho, segundo Hooks(2015), sendo assim ela vai denominar ―algo a
mais‖ como profissões, esse espaço, a mulher negra já ocupava, o que se busca , é a
ascensão a espaços em que outrora a mulher negra é excluída.
Por conseguinte ao se observar mulheres negras amazônidas, com um perfil de
lutas e resistências, na atual conjuntura do século XXI, faz-se uma analogia ao seu
passado escravista, conclui-se que no mercado de trabalho ela se apresenta como
uma mulher que ascendeu, ocupou espaços que supostamente não poderiam, devido
seu histórico de vida de exclusão, na atual conjuntura ela está nas arenas políticas,
como ativistas, exercendo liderança, nas grandes instituições, nos espaços
acadêmicos, na cultura de entretenimento.
No entanto, é de imprescindível e de total importância observar e problematizar os
espaços que elas em sua maioria ainda não ocupam, espaços subalternos no mercado de
trabalho em Belém, assim, sendo invisibilizadas pelo estado e pela sociedade, o que
mostram estudos desde 2003, enquanto houve mudanças nas famílias e no mercado de
trabalho a mulher negra ocupa a base da pirâmide social, a mulher negra amazônida está
em desvantagem quando comparada com outras regiões do Brasil, ela tem menos acesso
educação, a qualificação, a saúde, logo, fica demarcado os lugares subalternos a qual
foi condicionada, e inviabilizada ao longo de sua formação histórica essa é umas das
críticas do feminismo negro (IPEA/UNIFEM, 2003)
1000
de grande relevância rever a questão racial no Brasil, pois, diferentemente do resto
do mundo é considerado um país de uma miscigenação muito forte, carrega o mito que
essa miscigenação se deu de forma pacífica, no entanto para Gonzalez (2018), ocorreu
por meio de lutas e resistências de escravas que foram violentadas por seus senhores.
Sendo assim, preconceito, racismo, segregação racial , ainda permeia a sociedade
brasileira, logo, deve ser debatida em todos os espaços, portanto o feminismo negro e
os movimentos de lutas estão mudando esse retrato, mulheres que não se
consideravam negras, apenas pardas, por terem a pele mais clara, nas últimas
pesquisas já se autodeclararam negras e estão na mesma categoria dos pretos,
observou-se quando nas pesquisas elas afirmavam serem negras, obtendo uma auto
afirmação de sua identidade como um ser que modifica e transforma sua própria
realidade, que foram criadas (IBGE, 2018).
As contribuições do feminismo negro foram relevantes para a inserção das mulheres
negras nos espaços que havia predominância de brancos, atualmente a realidade está
muito aquém da igualdade de direitos às mulheres, quando se menciona a mulher negra
esses números diminuem consideravelmente. No entanto, precisa-se lutar por mais
avanços, no que tange o mercado de trabalho em Belém, logo, as crises financeiras,
impactam e arrastam mulheres negras para a informalidade, mas essa busca pelo
empreendedorismo é por necessidades, sendo assim ela não é planejada, segundo
DIEESE (G1/PA, 2016)
Embora houvessem poucos avanços abriu-se espaços para diálogos constantes e
crescentes, em Belém não é diferente das capitais brasileiras a mulher negra amazônida
lutadora, de grupos formados, a citar Zélia Amador, uma das fundadoras do CEDENPA-
Centro de Estudos do Negro do Pará, mulher negra e de descendência humilde que com
determinação e insistência marca a história da mulher belenense, formando uma
instituição que se ocupa das causas negras e de mulheres negras que reivindicam por
representatividade.
Portanto é a ocupação de espaços, posições de destaques no setor público e privado, é a
crítica do feminismo negro, pois apenas 24% é empregada com carteira assinada, dessas
empregadas formalmente 21% dessas mulheres negras na posição de empregadas
domésticas, as mulheres negras estão atrás dos homens negros, nas grandes corporações,
44% dos dirigentes são homens brancos, enquanto as mulheres negras são apenas 9,3%
esses são espaços considerados predominantemente masculinos e brancos, a luta do
feminismo negro são por implementações de políticas públicas de inclusão, para que a mulher
negra deixe de ser periférica e sem qualificação, e exista a possibilidade de mudar, a
exemplos das cotas nas universidades, diminuindo os contrastes (DEUS,2008)
Consequentemente a população de mulheres em 2012 era de 51% da população, e de
1001
mulheres negras quase 52%, no norte do país o percentual sobe para 72,2% contra 23%
de mulheres brancas, RASEAM, (2014), dados de 2013, 53,6% das mulheres negras são
chefes de famílias. No entanto, a mulher negra é a grande massa da população, ainda
marginalizada e não ocupa espaços privilegiados como a maioria de mulheres brancas,
além de iniciar o trabalho com menos idade, ela também trabalha mais horas diárias. É
uma problemática de interseccionalidade que se estruturou, afirmam (CRENSHAW,
GONZALEZ, 2003).
Contudo, afirmar que as relações de trabalho no Brasil foram projetos políticos de
Estado, excluindo a população negra, empurrando para a marginalidade toda uma
população afrodecendentes, demarcando uma relação racial do trabalho, segundo
Gonzalez (2018), logo, afirma que as mulheres negras eram excluídas para vagas de
empregos a partir dos anúncios nos jornais, quando se pediam ―boa aparência‖, se
relacionava a cor, ficando demarcado o racismo e exclusão da mulher de cor negra e
cabelos crespos e curtos.
Por conseguinte, a herança que se adquiriu em um passado escravista, ainda perpetua no
século XXI, uma pesquisa realizada em 2001 em dois shoppings centers da Capital de Belém,
analisou o biotipo da mulher que trabalha em sua lojas, deve ser branca, jovem , loura,
cabelos longos, de preferência olhos claros, logo, a mulher negra era preterida pela mulher
branca, os processos seletivos selecionaram os perfis de pessoas negras a ficarem com as
vagas de serviços de limpezas , caracterizando o racismo.(AMARAL, 2001)
Conclui-se que a mulher negra da capital de Belém, ainda em sua maioria ocupa
postos de trabalhos informais, em sua maioria mão de obra ―desqualificada‖, ocupando
assim o posto de empregada doméstica, nas residências, nas empresas, serviços de
limpeza em geral, na informalidade, diaristas, cozinheiras, ambulantes, feirantes
(PEIXOTO e SILVA, 2016)
Portanto, complexificar a subalternidade a que essas mulheres estão por seu passado
escravista, é debater com o governo, academia e a sociedade, espaços que foram
negados a ela por falta de politicas de inclusão social, sendo assim debater o tema é
expor e mostrar a sociedade que ela tem voz e pode ter vez, pode e deve ascender, logo
essa é a essência da luta dos movimentos das mulheres negras, e sua agenda global
defendida pelo feminismo negro (COLLINS, 2017)
1.3 Empregadas Domésticas: experiências do Cotidiano
A fim de complexificar o debate do ofício de empregadas domésticas no mercado de
trabalho, foram entrevistadas quatro mulheres, buscou-se ouvir suas experiências a partir
de seus relatos, com entrevistas semiestruturadas elas expõem suas vidas, sonhos e
esperanças, como também suas indagações, a partir disso, se observa cada
particularidade da mulher negra como empregada doméstica em Belém, ela é negra,
1002
periférica, sem estudos concluídos e com muitos sonhos, cheia de garra e determinação,
não tem medo do trabalho operacional, braçal (PINSKY,PEDRO, 2012)
Consequentemente, a função de empregada doméstica nos interiores das famílias se
dá em um espaço privado, logo, problematizar tal tema é um recurso recente, que as
pautas do feminismo nas décadas de 70 e 80, vem usando para expor o debate que vidas
de mulheres trabalhando a subjetividade e que questões pessoais importam, podendo
impactar toda a sociedade, pois elas formam a base, partindo do privado para o público,
no entanto, estão desprovidas de políticas publicas que as incluam nas esferas sociais
(MENEGHEL,MARANHÃO, 2005)
Contudo afirmar, que as mulheres negras sempre estiveram no mercado de trabalho
ainda que de forma invizibilizada, é uma das premissas do feminismo negro, é expor essa
mulher que esteve ao lado das mulheres brancas para que elas pudessem ir as ruas e
reivindicar por espaços de trabalho segundo Collins (2017) elas eram as amas,
cozinheiras, governantas, um papel de suma importância para a mulher branca criar seus
filhos e administrar suas casas (PINSKY, PEDRO,2012).
A mulher negra belenense, amazonidas, urbana, que batalha por sua sobrevivência,
ela na maioria da vezes, não tem acesso ao estudos, saúde e educação de qualidade,
não podem muitas vezes continuar e concluir os estudos, devido as longas jornadas de
trabalho, pois já assumiu obrigação com filhos e netos, ela é na maioria das vezes até
alheia a lutas dos movimentos feministas que ocorrem, por não dispor de tempo para os
estudos de certo que não está nos movimentos de ativismos, e na maioria das vezes
surge um grande abismo entre as teorias, os movimentos, os centros acadêmicos e as
mulheres periféricas negras que trabalham por longas jornadas de trabalho em
residências, segundo (COLLINS, 2017)
T.P.V mãe de 2 filhos, 33 anos, cursa o técnico de radiologia, tem companheiro, há 8
anos trabalhando em casa de família, iniciou como babá, mas ao longo dos anos foi lhe
atribuída várias funções.
Eu trabalho com carteira assinada, tenho folga no sábado a tarde, trabalho das 9 as 19,
eles pagam certo, mas claro que sempre tem ser melhor pro lado deles, né? Meu sonho
continuar os estudos, ter um curso técnico, não parar mais de estudar, é difícil, muito
difícil, mas Deus vai me ajudar a seguir em frente.
1003
doméstico continuaria o serviço mais comum das mulheres pobre urbanas‖ (PINSKY;
PEDRO, p.53, 2011)
A.H.L.A, 55 anos, cursou até o 3º ano do ensino fundamental , sempre trabalhou
deixou os estudos para ajudar nas despesas de sua casa, trabalha com carteira assinada
em casa de família, mais faz horas extras, como encomenda de comidas, faxinas em
outras residências, não tem companheiro, e fala que ajuda suas filhas e seus parentes, e
também tem condições de manter uma mercearia. Ainda tem sonhos de mudar de vida,
fazer um curso de massagista porque já criou suas filhas e agora tem mais tempo para si.
Eu sempre trabalhei, por isso deixei os estudos para trabalhar ajudar minha mãe, vim
do interior, e dai não pude voltar a estudar , mas hoje tenho o sonho de ser
massagista, gosto muito de fazer massagem em idosos, gora com minhas filhas já
criadas, tenho mais tempo pra mim.
Fui levando, levando sem carteira assinada fazendo faxinas aqui e alí, que agora não
adianta mais, já quero me aposentar, vai ser difícil, mas vou atrás, não pude completar os
estudos, agora não dá mais.
Apesar dos ganhos pela lei com a PEC das domésticas, como ficou conhecida a lei que
regulariza o serviço das empregadas domésticas, não abrange ganhos como salário-
família, horas extras, como também jornada de trabalho, a lei conseguiu se equiparar com
as categorias trabalhistas, no entanto a realidade para implementação das mesmas
diferem na prática. (SILVA et al, 2017)
M.G.V 58 anos, 1 filho, seu companheiro faz pequenos serviços informais, ficando por
sua conta o sustento da família, mora de aluguel, sempre trabalhou em casa de família,
mas procurou cursar o auxiliar de enfermagem e passou, mas há muitos anos não se
empregou mais em hospitais, sempre que ficava desempregada ela passa a trabalhar em
casa de família, nos últimos 2 anos como babá, lavava, faxinava, cozinhava, dormia no
1004
emprego, só voltava em sua casa aos finais de semana, mas sempre está a procura por
empregos como auxiliar de enfermagem.
Sempre dei duro, minha patroa me ajuda, procura vaga de auxiliar de enfermagem pra
mim na internet, sei que to temporário aqui, mas espero dias melhores.
Conclui-se a partir dos relatos das quatro mulheres entrevistadas, apenas duas
possuem carteira assinada, e apenas uma delas, vai da continuidade aos estudos e se
mostra com sonhos e cheias de esperanças, pois isso só demonstra, que ela não
trabalha por uma vida melhor, para fazer viagens, ou se vestir melhor ,ela trabalha por
sobrevivência.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo se propôs a expor vidas de mulheres negras no mercado trabalho,
mulheres que já ascenderam com o poder do feminismo negro como movimento, e do
ouro lado mostramos mulheres negras como empregadas domésticas, relatos dos quais
observamos realidades distantes, até mesmos antagônicas, dos ganhos já alcançados na
constituição, como também a partir dos movimentos feministas, pois elas não fazem parte
de redes feministas de ativismos, elas estão apenas sobrevivendo, e procurando sua
dignidade através do trabalho pesado, braçal, por longas horas de jornadas. Logo trazer
essa mulher para a academia e ouvir sua voz, é contudo fazer a ponte entre a teoria, a
prática, estudá-la, compreende-la. Desse modo as epistemologias da interseccionalidade
nos mostra a verdadeira práxis dos estudos de feminismos e feminismo negro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS: Disponível em: > Acesso em 16 de junho de 2018,
23:35.
1005
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Tradução Heci Regina Candiane. 1.ed.-
São Paulo: Boitempo, 2016
HOOKS, Bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminist Black women shaping
feminist theory Revista Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de
2015, pp. 193-210.
1006
“QUE MULHER CAPOEIRA!”: TRAJETÓRIAS DE RESISTÊNCIA FEMININA NA
CAPOEIRA NO PARÁ DO SÉCULO XXI
RESUMO
ABSTRACT
This research intends to discuss the trajectory of some women capoeiristas in Pará, who are
from different places, locations and styles, interlocutors of my master degree research made
between 2017 and 2019. The title ―What capoeira woman‖, is one of oldest historical
evidence of women as capoeiras, a historical source told by Oliveira and Leal (2009).
Nowadays there are a large number of capoeiristas on these spaces, however the struggle
for visibility, protagonism and place for speech gets on with constantly. In this paper I analyze
the resistance trajectories of some active women capoeiristas in Pará and the gender
relations noticed. Specifically, I intend to reflect on their experiences in capoeira and the
actions that make this purpose becomes stronger. The main authors who were reference on
this work are: Oliveira and Leal (2009) and Camões (2019) about capoeira and gender;
Carneiro (2003) and Hooks (2018), about black feminism. The methodology was a field
research, looking for contributions from the interpretative anthropology of Geetz (2008), and
theorists who dialogue about oral history, Portelli (1997). The research shows advances in
recognition and graduation, but women still have experienced situations of violence and
reproduction of machismo and sexism.
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APRESENTAÇÃO
Este trabalho é fruto de minha pesquisa acadêmica de mestrado realizada entre 2017
e 2019, onde realizo uma discussão teórica sobre o feminino na capoeira no Pará a partir de
uma perspectiva de gênero. Uma história que durante séculos foi silenciada e que vem
sendo re-construída em um contexto de lutas e resistências. Até o século XX, ―em muitas
sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas. É a
garantia de uma cidade tranquila. Sua aparição em grupo causa medo‖ (PERROT, 2017, p.
17). Nesse sentido a sociedade patriarcal era pautada por uma hegemonia masculina, sendo
palco de lutas e resistências.
As capoeiras de outrora estão entre o contingente de mulheres que fugiam a
representação estereotipada do feminino. Essas mulheres citadas como ―arruaceira‖,
―desordeiras‖, da ―pá virada‖, ―vagabundas‖, dentre outras (OLIVEIRA; LEAL, 2009), eram
mau vistas pela elite da época. Na verdade elas apareciam nos noticiários e boletins de
ocorrência como maus exemplos, era o caso de Jerônima Cafusa, mulher negra escravizada
e capoeira. Cafusa e outras capoeiras, ―desconstruía a representação do feminino,
reforçadas pelos discursos do patriarcado‖ (CAMÕES, 2019, p. 57). O título deste trabalho
―Que mulher capoeira!‖ é a epígrafe do jornal ―A Constituição‖ de novembro de 1876, ―o caso
mais antigo de prisão de uma mulher capoeira‖ (OLIVEIRA; LEAL, 2009, p. 149).
Apesar deste trabalho ter como objetivo dialogar sobre a trajetória das capoeiras do
século XXI, é interessante ressaltar essa fonte para evidenciar que a história do feminino na
capoeira não é algo recente. Durante séculos foi construída uma história única sobre a
capoeira, onde homens assumiam o lugar de protagonistas. Jerônima é uma referência do
feminino na história da capoeira e é partindo desse e outros indícios que estamos
construindo uma nova história sobre essa prática, onde mulheres assumem o lugar de
protagonistas.
No Pará, mulheres como Maria Meia-noite, Joana Maluca e Jerônima Cafusa ficaram
reconhecidas pela prática da vadiagem. Elas são algumas de nossas referências do
feminino na capoeira, mulheres que lutaram e resistiram ao sistema de opressão patriarcal e
que nos impulsionam a resistir nessa prática, pois a capoeira como uma manifestação da
cultura negra continua sendo alvo de preconceitos. Nesse sentido, analiso as trajetórias de
resistência de algumas capoeiristas atuantes no Pará e as relações de gênero evidenciadas
em suas práticas. De modo específico, analiso suas experiências na capoeira e as ações de
fortalecimento construídas.
Sendo assim, foi realizada uma pesquisa de campo participante, A pesquisa foi
norteada pela abordagem Qualitativa, pois há um convívio denso com o objeto pesquisado,
facilitando a análise dos dados (CHIZZOTTI, 2003). Para análise dos dados busco
1008
contribuições da antropologia interpretativa de Geertz (2008), o qual utiliza a etnografia
como uma interpretação densa.
Fazer etnografia é como ler (no sentido de „construir uma leitura de‟) um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos, escritos não com os sinais
convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento
modelado (GEERTZ, 2008, p. 7).
A interpretação densa tem sido um exercício que antropólogos/as tem realizado para
analisar os fatos da forma mais fiel possível. Neste trabalho busco a contribuições de
instrumentos utilizados por antropólogas/os e que são primordiais para realização da análise
da pesquisa. Para análise das entrevistas busco as contribuições de teóricos que dialogam
sobre história oral, pois as ―fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o
que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez‖ (PORTELLI,
1997, p. 31). Sendo assim, as fontes históricas tornam-se primordiais para compreendermos
as trajetórias das mulheres capoeiras.
A partir das análises dos dados foi possível perceber que as mulheres continuam
vivenciando situações em que há reprodução do machismo, sexismo e violência, e alguns
avanços quanto ao reconhecimento e graduações. Para as discussões traçadas buscamos
contribuições dos escritos sobre gênero e feminismo negro, uma vez que essas discussões
tornam-se necessárias para análise sobre o feminino nas práticas de capoeira.
1009
desvio, das tentações‖ (SOIBET, 2017, p. 365), lugar onde ―bêbados‖, ―prostitutas‖ e
capoeiras trafegavam livremente.
Nesse sentido, não podemos negar que a participação do feminino na prática de
vadiagem contribuiu para quebrar ―a norma de comportamento imposto a mulher, permeado
por uma cultura de passividade feminina, na qual brigar com muitas pessoas era um
comportamento reservado ao homem, atributo de extrema masculinidade‖ (OLIVEIRA;
LEAL, 2009, p. 128). As capoeiras desconstruíam a representação do feminino disseminada
pelos discursos daquele contexto histórico. Atualmente o cenário de vadiagem é outro, e a
capoeira está dividida em dois estilos, pois desde a primeira metade do século XX que na
Bahia são criados dois novos estilos de capoeira, a capoeira Angola de mestre Pastinha e a
Regional de mestre Bimba (REGO, 1968).
Atualmente a participação do feminino na capoeira está cada vez mais significativa.
No Pará temos uma mestra de Capoeira atuante em Belém e uma mestra reconhecida in
memoriam, além de contramestras, treineis, professoras, dentre outras. É um dado mínimo
diante do número de mestres de capoeiras homens no estado, entretanto é possível
perceber que as mulheres continuam resistindo e persistindo nas práticas de vadiagem.
A persistência com certeza é um adjetivo que pode ser relacionada às trajetórias das
capoeiras, uma vez que estas por serem mulheres vivenciam situações onde os estereótipos
de gêneros são constantemente fortalecidos. Nos espaços de capoeira é possível perceber
que esses estigmas construídos sobre o feminino são estabelecidos através das relações de
poder, em um contexto de dominação.
Obviamente, os homens gostam de ideologias machistas, sem sequer ter
noção do que é uma ideologia machista, mas eles não estão sozinhos.
Entre as mulheres, socializadas todas na ordem patriarcal de gênero, que
atribui qualidades positivas aos homens e negativas, embora nem sempre,
às mulheres, é pequena a proporção destas que não portam ideologias
dominantes de gênero, ou seja, poucas mulheres questionam sua
inferioridade social (SAFFIOTI, 2015, p. 36).
1010
as difíceis jornadas de trabalho de uma mulher, questões evidenciadas nos relatos
de algumas capoeiristas.
De acordo com os dados observados, das 19 capoeiristas entrevistadas, 12
são mães, aproximadamente 63%. Dentre as capoeiristas mães os dados se
dividem: 08 engravidaram quando estavam na capoeira (ativas), ou seja,
66% do total das capoeiristas mães. Entre as capoeiristas ativas que
engravidaram: 06 continuaram treinando até o final da gestação, ou seja,
75%; os outros 25% se afastaram da capoeira no período gestacional.
Sendo assim, o número de mulheres que continuaram a treinar mesmo
estando em estado gestacional foi bem superior se comparado às mulheres
que se afastaram (CAMÕES, 2019, p. 119).
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O poder do macho tem sido justificado ao longo da história por um ―mito‖ sobre a
fragilidade feminina, pois ―a norma oficial ditava que a mulher devia ser resguardada em
casa, se ocupando de afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento
da família trabalhando no espaço da rua‖ (FONSECA, 2017, p. 517). Sendo assim, a rua não
era considerada um espaço seguro para as mulheres, entretanto era o espaço dos e das
capoeiras.
Apesar de toda essa carga que recai sobre a vida das capoeiristas e o esforço
constante que, como mulheres, realizamos para continuarmos em tais práticas, precisamos
nos solidarizarmos umas as outras de modo que o crescimento feminino na capoeira seja
mútuo. É possível perceber que das 19 capoeiristas que participaram da pesquisa 07 tinham
entre 01 a 05 anos de prática, 03 entre 06 a 10 anos, 04 entre 11 e 15 anos, 01 entre 16 a
21 anos, 01 entre 21 a 25 anos, e 02 com mais de 26 anos de prática. É possível
depreender a partir desses dados que quanto mais tempo de prática na capoeira, há um
número menor de capoeiristas. Quanto às atividades de trabalho e a escolaridade.
15% de nossas interlocutoras trabalham efetivamente com a capoeira, as
85% restantes tem suas profissões. No que diz respeito a formação escolar
e acadêmica: 26% das capoeirista possuem nível médio; 15% o nível
superior, 26% o superior incompleto; e 26% tem nível superior e fizeram
pós-graduação. A partir desses dados percebemos que 67% das capoeiras
possuem nível superior ou estão concluindo. Isso quer dizer que as
capoeiristas estão buscando formações acadêmicas (CAMÕES, 2019,
p.114).
―Cântico de capoeira, realizado ao final da ladainha, quando acontece a saudação entre o solista e os demais
jogadores‖ (LIMA, 2007, p. 88)
1012
sobre as experiências em que as relações de gênero se estabeleceram. Os estereótipos de
gênero são construídos constantemente nos espaços de capoeira, os quais estão tão
―naturalizados‖ pelos discursos que é necessário realizar um exercício de reflexão sobre a
prática.
quando nos propomos a discutir a produção de diferenças e desigualdades
de gênero, considerando todos esses desdobramentos do conceito, também
estamos ou deveríamos estar, de algum modo, fazendo uma análise de
processos sociais mais amplos que marcam e discriminam sujeitos como
diferentes, em função tanto de seu gênero quanto em função de articulações
de gênero com raça, sexualidade, classe social, religião, aparência física,
nacionalidade, etc. (MEYER, 2003, p. 19).
1013
única mulher grupo em Belém, até crianças assim quase não iam, era só
meninos (JULIENE, entrevista realizada em 2018).
1014
ele é reprimido. Então, assim, uma dificuldade com a ginga, de mexer o
quadril [...] (CAMÕES, 2019, p. 123).
Assim como mestra Catita outras mulheres também sofreram alguma forma de
violência na capoeira, violência que muitas vezes são justificadas pelo estilo de jogo, ou por
uma falsa ―igualdade‖ no jogo. Essa igualdade deve ser problematizada, pois quando
pensamos em igualdade, tão discutida nos diálogos feministas, nos referimos a igualdade de
direitos e oportunidades, a qual é pensada em termos equidade, solidariedade e alteridade.
Quando eu conheci a [capoeira] angola, eu vi que as mulheres podem tá ali
dentro inseridas e conhecer o próprio corpo. Porque quando eu iniciei eu
não sabia fazer a bananeira de... a bananeira né, e o professor Leal
[contramestre] sempre falava, é, que isso é com o tempo que vai
construindo, a pessoa conhecer o seu próprio corpo, a gente te limitações, e
a gente pode superar essas limitações. E eu percebo que com os treinos
regularmente o meu corpo tá se adaptando a esses movimentos que a
capoeira angola tem. E hoje eu já consigo fazer várias movimentações
assim que pra mim eu olhava e era impossível, mas, é, eu fui, me colocara
assim que é possível sim e eu tô descobrindo isso com o tempo
(LUCENIDA, entrevista realizada em 2018).
A angoleira Lucenilda assim como a maioria das mulheres tinha ―limitações‖ com o
seu corpo, entretanto a capoeira contribuiu para ela tivesse mais autonomia sobre o seu
corpo. Além disso, Lucenilda fala sobre o incentivo de seu formador quanto a superação de
limites, a qual só é alcançada com o treino. Esse incentivo aos aprendizes tem um valor
simbólico significativo.
1015
Para valorizar a capoeira como um ritual e não como um simples
esporte/luta, os praticantes da Capoeira Angola costumam elogiar o „jogo
bonito‟, ou seja, aquele em que existe a interação, parceria e diálogo entre
as diversas facetas do jogo (BARBOSA, 2005a, p. 84).
1016
Antes de quatro meses eu treinava normal, como se não tivesse grávida, a
gente fazia os alongamentos, a gente fazia o jogo, é o treinos pesados. A
gente fazia por exemplo o abdominal e ai depois pisavam na nossa barriga
pra enrijecer.
E quando foi que tu descobriu que tu estavas grávida?
Em uma roda de capoeira eu fui jogar. Foi uma roda de aniversário, não
lembro de quem, e um aluno, um capoeirista, foi jogar comigo e fez um jogo
mais duro e me deu, me carregou, tipo pelo joelho, pela perna assim e me
jogou no chão de costas e nisso eu bati as minhas costas, só que eu
levantei, fui embora, pedi desculpas não sei o que e fui embora. Ai quando
eu cheguei em casa eu comecei a sangrar. [...]
1017
eu ficar sem treinar era bem difícil, mas a minha principal dificuldade com a
maternidade é ainda é hoje organizar essa logística de treinar cuidar do
Luanda, Luanda é o meu chicletinho então embora ele esteja dentro do
grupo ele exige uma atenção, e ai é muito difícil para mim (LIRA, entrevista
realizada em 2018).
A capoeirista Pretta, assim como Lira, tem como companheiro afetivo seu formador,
mas independe disso eles vivenciaram a experiência de treinar mulheres gestantes.
Mulheres que jogam, que participam dos treinos, mas que possuem certas limitações. De
certa forma eles passaram por processos de aprendizagem e isso com certeza contribuiu
para que eles e outros homens dos grupos, percebessem que mulheres gravidas, assim
como mães, devem ser acolhidas nesses espaços. São situações como essa que nos fazem
refletir sobre como a história vai se re-construíndo e refletir sobre outros processo em que
fazem parte do cotidiano feminino como a menstruação e TPM por exemplo.
―Cântico de capoeira que marca o instante em que o jogo pode ter andamento, quando o coro é
fundamental, devendo entrar desde o início‖ (LIMA, 2007, p. 92).
1018
A história da capoeira no Pará foi re-contada e re-construída pelas diversas vozes
das mulheres atuantes no Pará no século XX. Essa história de mulheres reais, assim como
as capoeiristas de outrora, suas lutas por protagonismo e suas conquistas, nos fazem refletir
que ainda temos muito para alcançar nas práticas de vadiagem. Apesar das capoeiristas
estarem alcançando graduações e terem conquistado espaço de fala, ainda temos muitas
batalhas pela frente. Mas não podemos negar a importância que os diálogos feministas
tiveram em meios a essas conquistas e especialmente do feminismo negro.
O Movimento Negro sempre esteve ―identificado com as lutas populares e com luta
pela democratização do país‖ (CARNEIRO, 2003, p. 118), a participação de mulheres
negras no movimento feministas contribuiu para construção de uma nova categoria de
feminismo, o feminismo negro, desconstruindo uma visão universalizante sobre as mulheres.
Nesse sentido, os diálogos construídos pelo feminismo negro servirão de base para
analisarmos a participação do feminino na capoeira, evidenciando as situações de racismo,
opressão e a desconstrução dos estereótipos de gênero.
―Falar de racismo, opressão e de gênero, é visto geralmente como algo
chato, mimimi‖ ou outras formas de deslegitimação. A tomada de decisão
sobre o que significa desestabilizar a norma hegemônica é vista como
inapropriada ou agressiva porque ai se está confrontando o poder
(RIBEIRO, 2017, p. 80).
1019
Além disso, atualmente mulheres estão construindo cartas de repúdio contra ações de
violência dentro da capoeira. No âmbito nacional mestra Janja, mulher negra, angoleira,
acadêmica e feminista, é um dos mais importantes nomes na luta anti-racista e feminista na
capoeira angola. Mestra Janja é a pioneira nas discussões e realizações de ações do
feminismo angoleiro.
Ela é uma pessoa encabeçadora dessas discussões [sobre o feminismo
angoleiro]. É quem deu a cara à tapa, né, nessas situações. Então ela é a
nossa grande liderança dentro do RAM, é a Janja né. É uma referencia de
mulher na capoeira, embora eu, por exemplo, eu tenho outras referências de
jogo, que é a Gegê. A minha referência de jogo de capoeira é a Gegê,
porque eu não conheço a prática dela, né. A prática enquanto sujeito
mulher, conheço o jogo, sei que é uma mulher capoeirista. É a minha
referência de mestra mulher. Mas a Janja, além de tudo ela é uma mulher
negra, traz na pele, no corpo (lésbica negra). Trás no corpo os marcadores
sociais muito fortes (ANTONIA LIRA apud CAMÕES, 2019, p. 74).
Antônia Lira cita mestra Janja como uma grande referência para as angoleiras, sendo
3
uma liderança na Rede Angoleira de Mulheres (RAM). A RAM foi criada no ano de 2004
para construir diálogos e ações de resistência, as quais se intensificaram com a construção
de um grupo virtual no ano de 2017. O grupo virtual tem contribuído para intensificar
diálogos, aproximar mulheres de diferentes lugares do Brasil e de outros países, e fortalecer
ações como rodas feministas, rodas de conversas, eventos, manifestações públicas e cartas
de repúdio.
No Pará, o Movimento Capoeira Mulher (MCM) foi construído a partir de uma
proposta de desconstrução de práticas machistas e para contribuir com o protagonismo
feminino na capoeira. A capoeirista Gisele (Tsuname), ressalta sobre a criação do MCM.
[Silvia Leão] pensou o Movimento Capoeira Mulher, por conta da dificuldade
que ela observava não só na vida pessoal, como dentro da capoeira. Então,
aquela história, a história da discriminação, a história do machismo, ela era
muito... ela é muito forte dentro da capoeira! Então, ela percebeu isso, e ela
viu o potencial das mulheres. Essas palavras tipo: protagonismo, iniciativa
feminina, tudo era muito pensado por ela [...] (GISELE TSUNAME,
entrevista realizada em 2018).
Nesse sentido, Silvia Leão, a mestra Pé de Anjo, era uma mulher que pensava a
frente de seu tempo e já se preocupava com a participação do feminino na capoeira. A
história de luta e resistência de Silvia Leão, desde a criação do MCM no ano de 2002, foi
primordial para o seu reconhecimento como mestra de capoeira, in memoriam. Mas, vale
ressaltar que mestra Janja foi protagonista no processo de reconhecimento de mestra Pé de
Anjo, pois no ano de 2016, quando participava do ―I Colóquio Patrimônio, Gênero e Saberes
Tradicionais‖, conheceu a sua história de resistência e a reconheceu como mestra.
3
Informações retiradas do Jornal da capoeira, edição 52 de 4/dez a 10/dez de 2005. Disponível:
<http://www.capoeira.jex.com.br/cronicas/encontro+europeu+de+angoleiras> Acesso: 05 de outubro
de 2018.
1020
Ações como essa demonstram que o envolvimento coletivo e práticas de
solidariedade estão contribuindo para que as mulheres conquistem espaços de fala e
protagonismo na capoeira. O Feminismo negro e angoleiro tem sido relevantes nos debates
construídos sobre o feminino na capoeira. Atualmente temos outros coletivos feministas
como o ―Bando da Brava‖ que vem lutando pela desconstrução de estereótipos de gênero e
a valorização de mulheres e homens, cis ou trans, pois a capoeira é para todos/as, ―ela é
para o deficiente, ela é para o gordo, ela é para o magro, ela é para o jovem e ela é para o
velho‖ (ILCA BATATONA, entrevista realizada em 2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste espaço falamos sobre algumas experiências do feminino capoeira, partindo de
diálogos construído no III capítulo da dissertação de Camões (2019) e outros relatos que
não haviam sido evidenciados em outros escritos. A partir desses diálogos foi possível
perceber que do século XIX para a atualidade houve muitas mudanças na história da
capoeira, começando com a sua divisão em dois estilos, a configuração dos jogos e o
aparecimento dos coletivos feministas.
Embora o feminismo não seja diretamente responsável pela presença da
mulher na capoeira, ele legitimou a reinvindicação de igualdade entre os
sexos, deu impulso a vários debates sobre a paridade de gênero e garantiu
novas propostas de vida para as mulheres. Portanto o grande número de
mulheres que participam ativamente de esporte, que colocam a sua energia
e o seu poder aquisitivo no mercado de trabalho e que lutam pelos direitos
da mulher teve papel decisivo na sua infiltração na capoeira, pois os
homens capoeiristas já não podiam facilmente segregar e discriminar a ala
feminina (BARBOSA, 2005, p. 14).
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1021
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