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CADERNO DE ANAIS

ISSN: 2594-911X

CARUARU
2017
CENTRO UNIVERSITÁRIO DO VALE DO IPOJUCA – UNIFAVIP

Reitor do UNIFAVIP/Devry
Ricardo Ciriaco

Pró- reitor UNIFAVIP/Devry


Pedro Ivo de Oliveira Rodrigues

Coordenação – Curso de Direito


Maria Emília Miranda de Oliveira Queiroz
Janne Dayse Silva Soares

Comissão Organizadora
Fernando da Silva Cardoso
Grupo de Estudos e Pesquisa Interdisciplinares sobre Direitos Humanos
GEPIDH-UNIFAVIP

Comissão Científica
Aristóteles Veloso da Silva Muniz
Emerson Silva Santos
Fernando da Silva Cardoso
Filipe Antonio Ferreira da Silva
Flávia Roberta de Gusmão Oliveira
Glebson Weslley Bezerra da Silva
José Walter Lisboa Cavalcanti
Luísa Vanessa Carneiro da Costa
Paloma Raquel de Almeida
Pollyanna Queiroz e Silva
Roberta Rayza Silva de Mendonça
Vera Creusa de Gusmão do Nascimento
REALIZAÇÃO

Centro Universitário do Vale do Ipojuca


Coordenação do Curso de Direito
Grupo de Estudos e Pesquisa Interdisciplinares sobre Direitos Humanos
GEPIDH-UNIFAVIP

GRUPOS DE TRABALHO

Arte, Educação e História dos Direitos Humanos


Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos
Direito, Movimentos Sociais e Cidadania
Interseções entre Sociologia, Raça, Religião e Direitos Humanos
Criminalidade, Violência, Estado Penal e Direitos Humanos
Teoria Feminista e os Direitos das Mulheres na América Latina
Direitos Humanos e Pessoa com Deficiência
Trabalhos Artísticos
CARDOSO, Fernando da Silva; et al.
Anais do Anais do III Seminário de Direitos Humanos e II
Congresso Regional de Direitos Humanos. Centro
Universitário do Vale do Ipojuca, Caruaru, Pernambuco: O
Autor, 2017.

1.054 fls. Vol. I, 2017 – 2594-911X (CD-Rom) Agência


Brasileira de ISSN.

1. Direitos humanos. 2. Arte. 3. Gênero. 4. Sexualidade. 5.


Estado.
SUMÁRIO

GT 01 - Arte, Educação e História dos Direitos Humanos

Educação, Arte E Direitos Humanos: A Perspectiva Do Direitos À Educação No


Curta De Animação “Vida-Maria”
Antonio Justino de Arruda Neto e Danilo Henrique de Sousa Melo...............................09

Extensão Universitária e Educação em Direitos Humanos


Danilo Henrique de Sousa Melo e Denize Luz................................................................24

Precaução, Educação E Sustentabilidade: Caminhos Para Preservação Ambiental


Na Era Do Consumismo
Ingrid Tereza de Moura Fontes e Joan Kleber Amorim da Silva...................................43

Crítica Política No Universo De Star Wars–A Busca Pela República E Pelo Fim Do
Império
Nadeje Pereira dos Santos, Hipólito de Moura Junior e Nayara Paulino de
Carvalho..........................................................................................................................61

“Apesar De Você Amanhã Há De Ser Outro Dia”: Reverberação Das Lutas Sociais
Na Música Brasileira
José Welligton de Oliveira..............................................................................................73

Novas Dimensões Do Eurocentrismo: Percepção De Alunos/As De Direito Sobre


Direitos Humanos E Questões Indígenas
Déborah Ellen Araújo de Lima e Wesllayny Alana Silva do Nascimento.......................93

Educação, Ética E Currículo No Contexto Integral


Ranuzia Moreira de Lima Netta....................................................................................114

Direito à memória e à verdade no brasil: uma breve discussão sobre a


(in)constitucionalidade da lei da anistia
Wine Santos Silva..........................................................................................................132

GT -02 Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos

Ethos Indígena: Uma Construção Histórico-Literária Da Mulher Indígena A


Partir Da Obra De José De Alencar
Rafaela Verônica Barbosa Bezerra e Alan Marcionilo do Nascimento........................150
A Tutela Penal Do Estado Nos Crimes Motivados Pela Homofobia
Mychel Christian Santos de Lucena..............................................................................165

Intersecções Entre Gênero E Tráfico De Drogas: Sobre O Lugar Da Mulher


Luísa Vanessa Carneiro da Costa e Alex Bruno Feitoza Magalhães...........................175

Simplesmente Homem – Relatos sobre a experiência cotidiana de homens trans


Luiz Fernando Prado Uchoa.........................................................................................194

Heteronormatividade E Negação Da Diversidade Sexual: Um Paradigma Cultural


De Discriminação Contra A População LGBT
Joan Kleber Amorim da Silva e Caroline Bezerra da Silva..........................................214

A Visibilidade Da Violência Obstétrica Na Assistência Ao Parto No Brasil


Rayanny Campos Melo, Arquimedes Fernandes Monteiro de Melo e Elba Ravane Alves
Amorim..........................................................................................................................230

Deficiência Intelectual E Sexualidade: A Construção Do Desejo Como


Anormalidade
Gabriel Carlos da Silva Carneiro Maranhão, Marina Reis de Souza Guerra de
Andrade Lima e Tatiana Craveiro de Souza.................................................................250

A Pornografia De Vingança Como Violação À Dignidade


Joane Suzanil de Lima Alves, Maria Simone Gonzaga de Oliveira e Lorenna Verally
Rodrigues dos Santos.....................................................................................................267

Homoparentalidade E Adoção: Melhor Interesse Para Quem?


Anne Gabriele Alves Guimarães, Antônio Lopes de Almeida Neto e Caio Emanuel
Brasil Fortunato............................................................................................................290

O Crime De Infanticídio Sob A Ótica De Uma Cultura Patriarcalista


Wilson Álvares de Lima Júnior.....................................................................................309

Um Grito De Alerta Para A Necessidade Do Empoderamento Feminino


Maria da Conceição Carneiro Barros............................................................................329

Uma Breve Análise Acerca Da Prova Na Lei Maria Da Penha


Giseani Bezerra da Silva...............................................................................................348

Mulas Do Tráfico: Análise Dos Determinantes Para Entrada Da Mulher No


Tráfico De Drogas
Maria Luiza Rodrigues Dantas e Letícia Andrade Santos............................................369
O Movimento Ecofeminista Brasileiro: O Desenvolvimento Do Trabalho De
Margarida Maria Alves E A Crescente Necessidade De Uma Nova Perspectiva No
Direito Ambiental
Cleody de Almeida Santos e Rita de Cássia Souza Tabosa Freitas..............................387

As Implicações Do Conceito De Gênero Na Construção Da Dimensão Subjetiva


Bruna Emmanuelle Nemézio Duarte, Edileide da Silva Pereira e Rivaldo Mendes da
Silva...............................................................................................................................410

Entre Silêncios: Um Estudo Sobre A Violência Sexual Intrafamiliar Contra


Crianças E Adolescentes Em Uma Cidade Do Agreste De Pernambuco
Mariane Izabel Silva dos Santos...................................................................................426

BDSM: Um Estudo Das Práticas Sexuais A Partir Do Gozo No Sadomasoquismo


David Francisco de Amorim, Rosanne Roseilda da Silva e Roberyka Tallyta Muniz de
Souza..............................................................................................................................441

Mães Do Cárcere: Interfaces Entre Cárcere, Maternidade E Condição Feminina


Maria Simone Gonzaga de Oliveira, Lorenna Verally Rodrigues dos Santos e Joanne
Suzanil de Lima Alves....................................................................................................451

O Estigma Da Loucura: Em Interface Com O Campo De Gênero


Luanda Ferreira da Silva, Claudeni Maria de lima e Emanuelle Lacerda Sales.........472

Potencialidades Do Pensamento Pedagógico Feminista Para As Questões De


Gênero À Luz Da Teoria Do Imaginário, A Partir Da Obra Literária De Cida
Pedrosa
Clécia Juliana Gomes Pereira......................................................................................490

Transexualidade Nos Países Lusófonos: Entre Conquistas E Desafios


Claudeni Maria de Lima e José Kleberson Rodrigues de Almeida Ananias.................503

Um Negócio De Homem: Prostituição, Feminismo E Direito–Algumas Notas


Jakeline Amorim Silva..................................................................................................524

Práticas Xenofóbicas: Da Intersecionalidade Das Violações De Direitos Humanos


Às Práticas Do Povo Brasileiro
Lorenna Verally Rodrigues dos Santos, Maria Simone Gonzaga de Oliveira e Joanne
Suzanil de Lima Alves....................................................................................................536

Equidade De Gênero Na Agenda 2030 Da ONU: (Há) A inserção dos homens (?)
Priscilla Viégas Barreto de Oliveira.............................................................................552
GT 03 - Direito, Movimentos Sociais e Cidadania

Vítimas Da Invisibilidade: Ausência De Direitos Sociais As Pessoas Em Situação


De Rua
Iolanda de Oliveira Silva...............................................................................................565

A questão da infância e da adolescência no processo justransacional brasileiro


Mariane Izabel Silva Dos Santos...................................................................................575

Análise sobre os fatores sociais que contribuem para o crescimento anual da


violência contra os jovens no Brasil
Paulo Gonçalves De Andrade, Camylla Galindo Cezar. De Olivera Silva, Jessyca
Iasmim De Sousa Farias...............................................................................................585

GT - 04 Interseções entre Sociologia, Raça, Religião e Direitos Humanos

Um Debate Sobre Religião E Direitos Humanos: Desafios E Possibilidades


Alan Marcionilo do Nascimento e José William Lopes Torres.....................................598

Lei Nº 10.639/03: Desafios E Conquistas No Ensino De História E Cultura Afro-


Brasileira
Emanuelle Lacerda Sales, Claudeni Maria Lima e Debora Cardoso da Silva.............607

Calundunzes, Terreiros E Rua: Da Colonização À Formação Dos Terreiros De


Caruaru
Hugo Weslley Oliveira Silva..........................................................................................623

Intolerância Religiosa: A Importância Dos Direitos Humanos Na Inclusão Das


Religiões De Origem Africana No Brasil
Maria Isabel Queiroz dos Santos..................................................................................640

GT 05 - Criminalidade, Violência, Estado Penal e Direitos Humanos

Segurança Pública: O Papel Dos Municípios Na Prevenção E Combate A Violência


E A Criminalidade
Acácia Severina de Lima Diniz.....................................................................................655

Transtorno De Personalidade Antissocial: As Diversas Definições Da Psicanálise E


Seus Reflexos No Direito Penal
Alicia Rafaely da Silva Oliveira e Stella Monteiro do Nascimento..............................670
LGBTQI Criminal Justice: Um Estudo Sócio-Construtor Sobre Os Elementos Que
Ensejam A Criminalização Da LGBTQIFOBIA
Claudio Matheus da Silva Gomes e João Antônio Nunes Silva Barbosa Piancó.........686

Direito Penal E Suas Interfaces: Um Breve Estudo Sobre Criminalidade, Violência


E Direitos Humanos
Edileide da Silva Pereira, Bruna Emanuelle Nemézio Duarte e Rivaldo Mendes da
Silva...............................................................................................................................705

Eficientismo Penal, Encarceramento Em Massa E A Despersonalização Do Sujeito


Encarceramento
Érick Florêncio Lagos...................................................................................................719

A Imagem Do Linchado: Análise Semiótica De Imagens Midiáticas De


Linchamentos
Hannah Damires Torres de Lima Silva.........................................................................734

A Desmistificação Do Sistema Punitivo: Uma Abordagem Crítica Acerca Da


Utopia Do Discurso Ressocializado
Rodrigo Mariz e Benick Santana...................................................................................754

A Carne Mais Barata Do Mercado É A Carne Negra: O Racismo Comofator


Determinante Para O Aumento Da Taxa De Homicídios Porarma De Fogo No
Brasil
Sílvio César de Oliveira Ramos Filho e Rita de Cássia Tabosa Souza Freitas............771

O Perfil Do Criminoso: Um Estudo Comparativo Dos Marcadores Sociais Do


Preso Da Cidade De Caruaru-PE
Weslayny Alana Silva do Nascimento e Déborah Ellen Araújo de Lima......................786

Atuação De Equipe Técnica De CREAS Mediada Pela Justiça Restaurativa: Um


Relato De Experiência
Márcio Rubens de Oliveira............................................................................................808

GT 06 - Teoria Feminista e os Direitos das Mulheres na América Latina

A Regulamentação Do Trabalho Feminino No Brasil Como Mecanismo De


Minimização Da Dedigualdade Entre Gêneros: Vedação Da Gestante E Da
Lactante Exercer Atividade Insalubre À Luz Da Recente Reforma Trabalhista
Julia Fernanda Sousa Calado, Lucas Evangelista Costa e Bruna Maria Jacques Freire
de Albuquerque..............................................................................................................823
As Relações De Gênero Nas Práticas Pedagógicas E A Coeducação Como Prática
Feminista Possível Ao Enfrentamento Das Desigualdades De Gênero
Rubem Viana de Carvalho.............................................................................................838

A Mulher E Seus Direitos: Encontros E Desencontros Em Documentos


Natália de Oliveira Melo...............................................................................................857

GT 07 - Direitos Humanos e Pessoa com Deficiência

O Empoderamento Como Processo Dentro Das Propostas De Assistência Ao


Usuário De Saúde Mental Na Rede De Atenção Psicosocial
Silvio Alexandre Damasceno de Oliveira......................................................................875

O Direito Do Discente Surdo: Reflexões Acerca Da Influência Do Intérprete De


Libras Na Sua Aprendizagem
Rayssa Feitoza Felix dos Santos...................................................................................885

Política Nacional De Educação Inclusiva Articulada Numa Instituição Municipal


De Belo Jardim/Pe
Cinthia Genelice dos Santos, Ingrid Albuquerque Araújo e Thayline Soares
Ferreir...........................................................................................................................905

Pessoas Com Deficiência E Um Desafio Interdisciplinar: A Análise Da Exclusão


Social Nas Cidades
Dirceu Lemos Silva e Clarissa Marques.......................................................................912

Direitos E Conquistas Na Inclusão De Pessoas Deficiêntes Nas Escolas De Ensino


Regular: Reflexão Acerca Doestatuto Da Pessoa Com Deficência
Risonete Rodrigues da Silva, Samuel Pereira da Silva e Ana Maria Tavares
Duarte............................................................................................................................929

Garantia Dos Direitos Fundamentais E A Consolidação Do Acesso À Educação


Para Crianças Autistas Noc Contexto Da Escola Pública Regular: Um Estudo De
Casoem Caruaru
Vanda Maria da Silva e Cicera Mirelle Florêncio da Silva..........................................944

Desafios Para Atenção Integral À Saúde Mental: Uma Reflexão Sob A Ótica Da
Saúde Da População Negra E Sua Religiosidade
Pedro Henrique Melo Alves e Valquíria Farias Bezerra Barbosa...............................962
GT 08 - Trabalhos Artísticos

As Pétalas que ela Continha


Mateus Alves de Melo....................................................................................................978

O Lobo Em Pele De Cordeiro – Conto


Maria da Conceição Carneiro de Barros......................................................................986

Mãozinhas Na Areia, Perigoà Vista - Conto


Maria da Conceição Carneiro de Barros......................................................................991

De Sangue, Suor e Lágrimas - Poesia


Victor José Guedes Vital...............................................................................................996

Ensaio Da Essência - Conto


Rachel de Melo Farias..................................................................................................999
EDUCAÇÃO, ARTE E DIREITOS HUMANOS: a perspectiva do direito à
educação no curta de animação “ vida maria”.

Antonio Justino de Arruda Neto1


Danilo Henrique de Sousa Melo2

GT 01: ARTE, EDUCAÇÃO E HISTÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS.

RESUMO

Descrevendo o contexto em que está inserido o direito à educação e refletindo sobre a


aplicação e inferências deste no Curta de animação "Vida Maria" de 2006 (Ceará),
buscou-se analisar a perceptiva de educação no meio rural e ciclo limitador da qualidade
de vida que atinge a vida das mulheres sertanejas pela não efetivação deste direito.
Traçando o contexto de enquadramento deste direito no Ordenamento jurídico
brasileiro, este trabalho resultou em uma amostra da necessidade da educação para
mulheres no meio rural, enaltecendo a importância pela alfabetização deste grupo e
concluindo na imprescindibilidade de políticas públicas inclusivas para este grupo
social em específico. Além de discorrer comentário sobre a crise na educação numa
perspectiva de autoridade. Pois o a crise na mesma, transcorre pela perda ou contestação
da autoridade no Estado. Por isso, o filme em questão representa um indicativo e um
alerta sobre a melhoria na condição da educação, com isso que essa condição de ―Vida‖,
seja transformada em ―Marias‖ que sejam agentes transformadoras.

Palavras-chave: Educação, Vida-Maria, Direitos Humanos.

INTRODUÇÃO

A arte sempre foi uma das principais manifestações da cultura humana e esta, em
áudio-vídeo, pode transmitir e transformar muitos conceitos sobre debates e
questionamentos realizados diariamente por aqueles que desta arte utilizam. Pensando
em abordar a educação no meio rural e sua relação com a vida humana digna, viu-se no

1
Universidade de Pernambuco – Campus Arcoverde, Graduando em Direito e
netojustinoarruda@gmail.com.
2
Universidade de Pernambuco – Campus Arcoverde, Graduando em Direito e
danilo2010henrique@hotmail.com
documentário ―Vida-Maria‖ -que é repleto de cenas para análise da violação de
Direitos- a oportunidade de interagir o Direito à educação, a arte (meio) e o contexto
exposto por essa arte.
O curta de 2006 baseia-se na relação familiar e social entre vários personagens em
várias gerações, no cenário rural sertanejo, com enfoque nas mulheres e os conceitos
sociais pré-existentes acerca destas, que concluem em várias reflexões sobre a
educação, preconceito, gênero e Direitos Humanos.
A relevância dessa análise faz-se da necessidade de destacar a importância dos
instrumentos audiovisuais para a observação de questões que possam afetar (direta ou
indiretamente) direitos básicos do cidadão.
O Estado possui medidas políticas (governança) para a garantia do Direito à
educação, mas a indagação sobre a efetividade e alcance destas medidas sobrevieram
neste trabalho a partir da visualização pelos autores do Curta ―Vida-Maria‖ que possui
um enfoque na mesma indagação outrora citada. Assim, este trabalho guiou-se pelas
manifestações governamentais em matéria de educação e pelos escritos acadêmicos que
relatam a atual situação da educação brasileira (ou a falta desta).
Então, objetivando relacionar o direito à educação com a situação das sertanejas
no meio rural, pretende-se analisar a perspectiva da educação neste cenário com base no
que fora apresentado no Curta ―Vida-Maria‖. Partindo do método indutivo, com
pesquisa básica, bibliográfica e documental buscam-se elementos informativos da
educação e a necessidade de políticas públicas para efetivar o alcance destas no meio
rural.

1.DO DIREITO À EDUCAÇÃO

Educar nada mais é do que um processo de transmissão de conhecimentos de


modo a estimular o raciocínio do educando para a formação de uma consciência cidadã.
Educar envolve mais do que a educação formal, educa-se para a vida e para a defesa de
seus direitos como pessoa humana, como cidadão.
A educação, enquanto instrumento do verbo ―educar‖, é o veículo direcionador
que estimula no indivíduo a busca pelo seu reconhecimento enquanto membro de uma
sociedade, atentando para os seus direitos e deveres perante esta.

Afirmando este enunciado, Silva e Tavares (2013) compreende que por meio da
educação, as pessoas podem tornar-se sujeitos de direitos, conhecedoras das conquistas,
avanços e recuos em relação à manutenção de seus direitos.

A educação, enquanto produtor de cultura é um direito, que mesmo não estando


em um dispositivo legal, vincula-se como ele essencial ao desenvolvimento humano e a
vida digna. Felizmente, o direito à educação é um direito declarado em lei, embora que
recente, remontando ao final do século XIX e início do século XX. Mas seria pouco
realista considerá-lo independente do jogo das forças sociais em conflito. (CURY,
2012)

Nesse mesmo contexto, Cury (2012, p.16) afirma que:

O direito à educação parte do reconhecimento de que o saber sistemático é


mais do que uma importante herança cultural. Como parte da herança
cultural, o cidadão torna-se capaz de se apossar de padrões cognitivos e
formativos pelos quais tem maiores possibilidades de participar dos destinos
de sua sociedade e colaborar na sua transformação. Ter o domínio de
conhecimentos sistemáticos é também um patamar sine qua non a fim de
poder alargar o campo e o horizonte desses e de novos conhecimentos.

Embora por vezes estruturada para atender os anseios políticos de determinado


período governamental, a educação faz-se essencial como direito que o é revelando
também a necessidade de expandi-la a todos os nacionais para a concretização deste
direito.

2.O DIREITO À EDUCAÇÃO COMO DIREITO HUMANO

A discussão internacional em Direitos Humanos iniciou-se pelas concepções


iluministas do século XVIII e intensificou-se após o genocídio imposto pelos nazistas
durante a segunda guerra mundial (1939-1945), resultando em 1948 na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, constituída assim na Cidade de Paris – França -no
mesmo ano.

Os direitos humanos são nada mais do que direitos naturais, inatos ao ser humano,
que pertencem a cada um de nós, direitos baseados no respeito ao indivíduo e que
buscam salvaguardar a dignidade de todos, por isso são garantias universais a todos os
seres humanos.

Inicialmente T. H. Marshal (1967) simbolizou a divisão dos Direitos Humanos em


três grandes grupos: os direitos civis, os políticos e os sociais. Os direitos civis estão
relacionados ao preceito de da liberdade, em que se integram os direitos resultantes da
não intervenção do Estado na vida privada do indivíduo. Os direitos políticos referem-se
à participação do indivíduo na política, ora como eleitores, ora como integrantes dos
organismos representativos populacionais. E por fim os direitos civis estão relacionados
ao bem-estar social, em que se englobados os direitos relativos a expressão da dignidade
humana como: o lazer, o consumo, a segurança e neste contexto também: a educação.
(FERNANDES; PALUDETO, 2010)

Em 1979, Karel Vasak traçou a teoria intitulada ―teoria das gerações de direitos‖,
segundo o autor, os Direitos Humanos eram divididos em três categorias geracionais,
baseadas nos princípios advindos das revoluções francesa e americana.
Segundo Canotilho (1995), os direitos de primeira geração são os direitos ligados
a liberdade, a defesa, estabelecendo limitações ao Estado frente à seara particular dos
nacionais. Os direitos de segunda geração são aqueles associados à uma prestação
efetiva do Estado, como mantenedor de políticas para gestão social como a seguridade,
educação, trabalho, dentre outros. Os direitos de terceira geração estão relacionados as
garantias de toda a sociedade (comunal), como o direito ao desenvolvimento, direito à
paz, direito à autodeterminação e o direito ao meio ambiente equilibrado. (RAMOS,
2015)
Tanto como direito social, como direito de segunda geração, a educação é
reconhecida como direito humano básico, descrita no art. 26 da Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948) que dita:
1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos
nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será
obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem
como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos
e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e
coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que
será ministrada aos seus filhos. (UNESCO, 1998, p. 14)

Segundo Batista, Muniz e Lucena (2015, p.05)

O direito humano à educação nos faz entender a importância dos outros


direitos humanos e sociais enunciados pelas Nações Unidas em seus
instrumentos reguladores. O direito humano à educação é visto e tratado
como uma pré-condição para o exercício dos direitos civis, políticos, bem
como a liberdade de informação, expressão, associação, direito ao voto e
muitos outros.

É importante destacar que não só a educação escolar se compõe na representação


do Direito Humano à educação, o ensino familiar, comunal ou institucional são meios
fomentadores na concretização desse direito e são essenciais para não tornar o ensino
puramente técnico e pouco social.

Visto isso, a educação como direito humano é um elemento essencial para a


produção de conhecimento, e por meio dela o indivíduo transformar a natureza,
organizar-se socialmente, e elaborar a sua cultura.

2.1 O DIREITO À EDUCAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

A Constituição Federal de 1988 foi o grande marco para regularização da


educação como direito básico e fundamental para todo indivíduo nascido em terras
brasileiras. Além disso, diversos dispositivos governamentais foram implementados nas
políticas estruturais do Estado, com destaque aos Planos Nacionais de Direitos
Humanos I, II e III (SILVA; TAVARES, 2013).
No Brasil, a educação garantida pela Constituição Federal de 1988, está descrita
em seu art. 6º, considerando o direito à educação como um direito social.

Logo à frente no art. 205 da Constituição Federal (1988) afirma-se:


A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.

No Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) que dispõe de normativas


acerca das crianças (indivíduos com menos de 12 anos de idade) e adolescente (aqueles
com idades entre 12 e 18 anos) afirma que estes indivíduos têm direito à liberdade, que
compreende: direito de ir e vir; de opinião e expressão; de crença e culto religioso; de
brincar, praticar esportes e divertir-se; de participar da vida comunitária sem
discriminação, sendo dever de todos fortalecerem a busca pela concretização desses
direitos para a dignidade humana destes. E, no mesmo contexto, o documento legal dita
que as Crianças e adolescentes têm direito à educação, gratuita -conforme a
Constituição Federal- e dotada de características que propiciem a formação cidadã e
humanística dos educandos. (FERNANDES; PALUDETO, 2010)
Descrevendo o contexto da educação atual, Fernandes e Paludeto (2010, p.6)
explanam:
Entendendo que a educação é um direito, as lutas pela educação pública,
gratuita, obrigatória e laica ganham espaço no contexto nacional. Observa-se,
a partir do final da década passada e início desta, a expansão do ensino
fundamental e a abertura para novas vagas no ensino médio; o Estado começa
a focar na educação básica, influenciado pelas exigências das instituições
financeiras internacionais, como FMI e Banco Mundial.

Neste começo de um novo milênio, a educação apresenta-se numa dupla


encruzilhada: de um lado, o desempenho do sistema escolar não tem dado conta da
universalização da educação básica de qualidade; de outro, as novas matrizes teóricas
não apresentam ainda a consistência global necessária para indicar caminhos realmente
seguros numa época de profundas e rápidas transformações. (GADOTTI, 2000).
Por isso, nos próximos tópicos do texto - o mesmo trará uma abordagem sobre a
crise na educação nacional e a necessidade de transformar ―vidas Marias‖ em algo que
ajude a transformar o meio que essas mulheres vivem.

3.UMA REALIDADE EM BUSCA DE UMA SOLUÇÃO: CURTA DE


ANIMAÇÃO “VIDA MARIA”

O Curta de animação ―Vida Maria‖ produzido em computação gráfica 3D e


finalizado em 35mm, mostra personagens e cenários modelados com texturas e cores
pesquisadas e capturadas no Sertão Cearense, no Nordeste do Brasil, criando uma
atmosfera realista e humanizada. Dirigido por Márcio Ramos em 2006, a película de 09
(nove) min reflete sobre diversas questões atentatórias à direitos do homem pertinentes
na temática de gênero e pobreza rural, com destaque para Educação (alfabetização) e
Cidadania; Condição da mulher no Brasil, gravidez precoce e planejamento familiar;
Desigualdades sociais e trabalho infantil; Condição da infância, direitos das crianças e
adolescentes.

Em uma abordagem sucinta, Cláudia Mogadouro (2006, p. 5) resume o curta da


seguinte forma:

Trata-se de uma animação que conta a história de uma mulher que vive na
região rural do Brasil. Ela aparece menina (chama-se Maria José) e gosta de
―desenhar as letras‖ num caderno. A mãe a repreende, dizendo que ela está
―perdendo tempo‖ e ordena que ela vá ajudá-la, varrendo o pátio ou levando
água para os bichos. Com pouquíssimos diálogos, a câmera vai mostrando a
vida de Maria que cresce trabalhando (sem estudar), casa-se e tem um filho
atrás do outro. Ao final, bastante amarga e envelhecida, ela repreende a filha,
que ―perde tempo desenhando o nome‖, repetindo um ciclo de analfabetismo
e falta de perspectiva, especialmente para as mulheres.

São apresentadas no filme imagens que mostram uma semelhança muito grande
com a realidade: traços bem parecidos com o real, suas cores pálidas e sombrias e os
formatos humanos foram bem selecionados que tornaram a atmosfera atraente para
reflexão sobre a vida interiorana das sertanejas/nordestinas/ruralistas.
Na perspectiva de José Leonardo Nascimento (2010, p. 1):

Vida Maria, de Márcio Ramos, é um curta que deveria ser visto por todos os
brasileiros. Duvido que haja um "sertanejo" que assista e que não "trema na
base". Utilizando-se de poucas palavras, todas elas facilmente encontradas no
vocabulário de quem nasceu sob o sol do nordeste – "bença, pai", "bença,
mãe" – nos é mostrada a história de Maria José, cuja mãe implicava com a
vontade que ela tinha de aprender a escrever. Não dá pra contar mais nada, só
que é preciso ser valente para não se perder no sol causticante, na poeira do
dia-a-dia.

A menina Maria do início do filme simboliza as muitas Marias que não têm
oportunidade de estudar, o que é bem representado, ao final, pelas tantas inscrições de
Marias no mesmo caderno. Nota-se que existe o prévio interesse em descobrir o ―algo
novo‖ quer seja, aprender, mas a necessidade de sobrevivência se sobrepõe aos anseios
particulares das jovens sertanejas.

O analfabetismo é latente na temática da película, em todas as gerações de Marias


(representadas pelas diversas páginas folheadas no final da película), é apresentada a
protagonista ainda em processo de criação básica das letras para a formação do seu
nome e a forma da escrita das outras Marias também apresentam traços de escrita que
prezam pela forma e não pelo movimento (característica de escrita rústica).

O curta também apresenta o analfabetismo como uma condenação à vida pobre,


sem perspectiva de desenvolvimento intelectual, social e econômico. O fato de adquirir
apenas conhecimento manual e repetitivo para as tarefas domésticas diárias revela-se
como um sistema natural, bem aceito pela realidade social, mas que não traz a
expectativa de uma vida digna, conforme os preceitos nacionais e internacionais em
Direitos Humanos.

O mesmo também mostra que as experiências educacionais na infância


repercutem na vida adulta. As Marias reproduzem na vida aquilo que fora aprendido em
vida pela sua genitora, configurando na proposta da película em mostrar o ciclo da vida
Maria – fático, repetitivo, natural- como um fator impeditivo para a concretização de
uma vida digna para a sertaneja.
A educação se mostra desnecessária para as protagonistas, pois quando se depara
com as necessidades, o processo de aprendizagem – que não tem retorno imediato- é um
fator fútil e de mero lazer (apenas desenhar nome) denotando a perspectiva que apenas o
laboro poderá fornecer o mínimo para a sobrevivência do indivíduo e de seus pares.

Por fim, a educação geracional das ―Marias‖ mostrou-se como possível solução
para a mudança na perspectiva de vida, mas que sempre fora afastada por outra Maria
que não viu na educação a oportunidade de mudar.

3.1 UMA CRISE: A FALTA DA EDUCAÇÃO

A relação ou a condição de crise que nosso sistema educacional vive é de fato


preocupante. No que narra nossa história nacional os exemplos que tivemos de uma
forma de educar ―os nativos‖, o primeiro momento foi pela força, através da
catequização. No Brasil colônia, Império e até mesmo na época da República os filhos
dos senhores de engenho, café, da borracha ou do algodão – foram enviados para
estudar em Portugal, especialmente em Coimbra (VICENTINO; DORIGO, 2010).

Pelo visto nossa educação sempre esteve em crise e ela nunca foi objeto de
realização política e sim sempre ficou no discurso. Pois educação não soa bem aos
políticos (ARENDT, 2014). Por isso, é que com a dificuldade de se construir um
sistema de educação que der oportunidade aos seus habitantes, já que é um direito
tutelado pela Carta da República. O acesso por muito tempo foi negado às classes mais
pobres desse país, por isso a condição que ―as Marias‖ têm no vídeo é um determinismo
que acentua milhares e milhares de sertanejas, a ruptura do mesmo dar-se-á através de
mecanismos de inclusão e oportunidades.

De acordo com o ensaio ―Crise na Educação‖ temos:

Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou
velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna um
desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com
preconceitos. (ARENDT, 2014, p.223).
Pelos ensinamentos da autora, as crises são momentos de reflexão, mas o que
ocorre no nosso País é que a mesma demora em passar, caracterizando algo perene. O
momento de refletir se faz com rapidez, sendo que as soluções advindas, essas sim – há
uma ineficácia quanto a sua aplicação.

Mas nossas ―Marias‖ do dia-a-dia são guerreiras, pois parafraseando Euclides da


Cunha na Obra Os Sertões, ― as Marias sertanejas são antes de tudo, fortes‖. Contudo, a
vontade de vencer não basta em um Estado que depende da boa vontade de políticos
que enveredem pelo caminho de colocar a educação em primeiro plano. Com isso, ―na
América, um de seus aspectos mais característicos e sugestivos é a crise periódica na
educação, que se tornou, no transcurso da última década pelo menos, um problema
político de primeira grandeza‖ (ARENDT, 2014, p 221).

Na citação acima, há de se destacar que a periodicidade, indica momentos de crise


no sistema Norte América, mas quantos as características algumas se assemelham com a
realidade nacional. Quanto a América o aspecto que pesou aos imigrantes foi questão da
língua, quanto a nossa realidade – pesou o foi o planejamento e inserção dos povos
nacionais no mundo o ensino público. Esses dois pontos que foram citados são os
aspectos, que convergem de acordo com o que Hannah Arendt trouxe sobre a crise na
educação.

Na realidade brasileira, temos um recorte de localidade, quando é citada a


realidade e falta de oportunidade dos sertanejos e principalmente da mulher sertaneja,
que aprende, apenas, a rabiscar seu nome – sendo o rabisco - princípio que não ganha
prosseguimento, pois a necessidade e não a imposição é que leva ―as Marias‖ a
desempenharem as tarefas domésticas. Pois a língua, não é impedimento para a
oportunidade de estudar e sim a seca, a necessidade de trabalhar e principalmente a falta
de escola, esses casos em especial ao nordeste do Brasil.

Conforme o papel que a educação assume está ―na educação, essa


responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade‖ (ARENDT, 2014, p 239).
Nesse sentido, vale salientar que o processo de uma sociedade, que tenha um ensino de
qualidade tem como consequência os pré-questionamentos.
Continua a autora, ―a crise da autoridade na educação guarda a mais estreita
conexão com a crise de educação‖ (ARENDT, 2014, p. 243). Ou seja, a falta de
políticas voltadas para a evolução na educação é que se faz perder a autoridade de um
governo ou Estado, pois o pleno exercício de direitos, não está sendo usado pelos
agentes políticos para manter uma sociedade coesa em relação ao ensino público.

Pois, ―o diagnóstico arendtiano a respeito da crise contemporânea nos modos de


ensinar e aprender insere-se no contexto teórico de sua discussão da condição humana e
da crise política da modernidade, temas centrais de sua reflexão filosófico-política‖
(CÉSAR e DUARTE, 2010, p.825). Por isso, são necessários alguns caminhos para a
solução do problema.

4.O CAMINHO CONTRA A CRISE

Nesse sentido, tem um indicativo de que mesmo pela indicação do problema é o


primeiro passo para sua solução, nesse sentido:

―O problema da educação no mundo moderno está de fato de, por sua


natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser
obrigada apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem
pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição‖ (ARENDT,
2014, p.246).

E com isso temos um indicativo de movimento de recuperar a educação no País,


há destaque o movimento Todos pela educação, uma organização formada por vários
setores da sociedade brasileira, que tem como objetivo ter um olhar carinhoso pela
educação nacional. O movimento tem como objetivo 5 (cinco) metas, como forma de
acompanhamento do Plano Nacional de Educação.

Quanto a esse movimento foi criado um observatório com o intuito de


acompanhar o Plano Nacional de Educação e as metas estabelecidas por ele, que ao todo
são 20.

E de acordo com Ricardo Falzetta, ―gerente de conteúdo do Todos Pela Educação,


o ritmo de implementação está muito lento e falta um plano de ação que determine
metas prioritárias‖ (FALZETTA, 2017), outro dado que o observatório nos mostra é em
relação à infraestrutura das escolas que atende a classe pobre, pois apenas 1,6% é o
número que representa todos os artífices necessários para uma escola de qualidade. E
quanto à percentagem de artífices nas escolas que atendem a classe nobre o número
chega 70,2% (FALZETTA, 2017). Cifras que corroboram a desigualdade no acesso à
educação. E o último dado é que, após três anos do Plano de Educação, o mesmo só
cumpriu apenas 20% das metas, sendo assim milhares continuam sem ter acesso ao
ensino público.

Mesmo com as dificuldades e passos lentos, a educação torna a ser pauta de


políticas públicas e o acesso à educação por aqueles que não tinham condições foi algo
que se tornou uma realidade, ou seja, o filho ou filha do agricultor teve acesso ao ensino
superior. Programas sociais, como o FIES, PRONATEC e o PROUNI, foram exemplos
de ações afirmativas de um governo, mas que na verdade é para ter sido programa de
Estado. Outras ações foram às criações dos Institutos Federais e sua expansão pelo
interior nesse caso teve um forte movimento de interiorização de Universidades e
Institutos – além das escolas em tempo integral ao ensino médio e básico. Mesmo
assim, há um grande caminho para percorrer – mas os passos foram dados, pois enfim, a
educação está no sentido de reparar um déficit.

Por fim, não é só do governo que se faz uma educação – pois alguns movimentos
sociais e advindos da sociedade civil ganham corpo e são desenvolvidos no semiárido
nordestino, como exemplo: transforma sertão, voluntários do sertão, instituto livre ser,
amigos do bem, etc. Todos com um só objetivo: transformar e dar oportunidades as
tantas ―Marias‖ que tem nesse sertão, além de romper com esse determinismo histórico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisado o Curta de Animação ―Vida-Maria‖, dentre tantas temáticas passíveis


de análise, buscou concentrar-se na observação das informações e dos anseios atinentes
a educação no contexto rural em que se encontram as sertanejas Marias.
Esta análise fez-se relevante por esclarecer o desenvolvimento para abranger a
educação em grupos sociais que por vezes são esquecidos pelas políticas públicas e que
tais geram implicações em vários setores como a economia nacional e a inclusão social.
Os resultados obtidos denotam que o curta mostra uma realidade bem abrangente
em tempos remotos, mas que mesmo com mudanças valorativas, tais situações ainda
não mudaram por completo nos tempos atuais.
Observou-se que a educação é um direito que não mede o sujeito que deva ser
atingido por ele, assim tanto o direito a uma boa educação existe em nosso ordenamento
como o direito a ter uma educação também precisa ser garantido pelas medidas políticas
nacionais.
Como bem evidenciado pelo curta, há certos estigmas sociais que impedem a
educação de se tornar um fator valorativo para a mudança de vida das sertanejas, mas
também se torna evidente que a citada educação é o provável – ou melhor- meio de se
conquistar uma vida digna na esfera em que se passa o curta.
As soluções necessárias - embora que não sejam tão efetivas sem a ruptura com o
senso comum que circunda a educação da mulher sertaneja – são a busca por políticas
públicas que ampliem o alcance do ensino a todos os nacionais, enaltecendo a
necessidade destas políticas no meio rural das regiões nordestinas em que se passa o
curta ―Vida-Maria‖.
REFERÊNCIAS

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Perspectiva 2014, p. 221 – 247.
BATISTA, Jéssica Holanda de Medeiros; MUNIZ, Iranice Gonçalves; LUCENA, Mara
Ilka Holanda Medeiros de. Políticas públicas e educação em Direitos Humanos: O
PNEDH e o caso brasileiro.
BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos;
Ministério da Educação, UNESCO, 2003.
_______. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007.
_______. Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988.
______. Lei Federal n. 8069, de 13 de julho de 1990. ECA, Estatuto da Criança e do
Adolescente. DUO: 16 jul. 1990.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1995.

CÉSAR, Maria Rita de Assis; DUARTE, André. Hannah Arendt: pensar a crise da
educação no mundo contemporâneo. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.36, n.3, p.
823-837, set/dez 2010.
CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à educação: Direito à igualdade, direito à
diferença. Cadernos de Pesquisa, n. 116, v. 2, julho, 2002.
DHESCA, Plataforma. Coleção Manual de Direitos Humanos. Vol. 07. Direito
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FALZETTA, Ricardo. Disponível em:


http://www.observatoriodopne.org.br/noticias/apos-3-anos-so-20-das-metas-do plano-
nacional-de-educacao-foram-cumpridas. Acesso em: 31 de Julho de 2017

FERNANDES, Angela Viana Machado; PALUDETO, Melina Casari. Educação e


Direitos Humanos: Desafios para a Escola contemporânea. Cad. Cedes, Campinas, vol.
30, n. 81, p. 233-249, mai./ago. 2010

GADOTTI, M. Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre, Ed. Artes Médicas,


2000.
MOGADOURO, Cláudia. Plano de aula ―Vida Maria‖. Disponível em:
http://grupocinemaparadiso.hospedagemdesites.ws/cursos/Plano_Curta_Vida_Maria.pdf
. Acessado em 31 jul. 2017
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Disponível em: https://catalisecritica.wordpress.com/2010/09/11/vida-maria-de-marcio-
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RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem
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SILVA, Ainda Maria Monteiro; TAVARES, Celma. Educação em direitos humanos no


Brasil: contexto, processo de desenvolvimento, conquistas e limites. Educação, Porto
Alegre, v. 36, n. 1, p. 50-58, jan./abr. 2013.
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Conferência mundial sobre educação superior. v. 14. Paris: UNESCO, 1998.

VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História geral e do Brasil. 1 ed. São


Paulo: Scipione, 2010.
EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E EDUCAÇÃO EM DIREITO HUMANOS.

Danilo Henrique de Sousa Melo3


Denise Luz4

GT:01 – Arte, Educação e História dos Direitos Humanos

RESUMO

Este trabalho analisa as atuais perspectivas da educação brasileira, atentando para a


vinculação não prescindível entre o ensino de direito humanos e a prática extensionista
universitária. Utiliza-se de análises bibliográficas, desde a conceituação dos institutos
até a demonstração da relação analisada, objetivando identificar ganhos em aquisição de
conhecimento e produção de saberes novos quando da aplicação conjugada. Utiliza-se
também de dados obtidos junto a projeto de extensão desenvolvido em Arcoverde, PE.
O problema de pesquisa que se busca enfrentar é: Os direitos humanos podem ser
aprendidos somente por atividades de ensino em ―sala de aula‖ ou a vivência prática em
ações de extensão é condição de possibilidade? Os resultados se direcionam para a
inclusão da extensão universitária como condição sine qua non para a educação
completa em direitos humanos e vivência na área. Até alcançar tais conclusões, aborda-
se sobre educação em direitos humanos de modo amplo; em seguida, analisa-se o papel
da extensão universitária; para, logo após, verificar as conquistas de algumas atividades
de extensão na área e divulgar as deduções já alcançadas com o Escritório de Defesa da
Mulher, projeto de extensão voltado ao combate da violência doméstica e familiar, da
Universidade de Pernambuco – UPE/Arcoverde.
Palavras-chaves: Extensão universitária. Educação. Direitos Humanos. Escritório de
Defesa da Mulher.

INTRODUÇÃO

3
Graduando em Direito pela Universidade de Pernambuco. E-mail: danilo2010henrique@hotmail.com
4
Mestre e doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Professora de Direito Penal e Direito
Processual Penal da Universidade de Pernambuco (UPE). E-mail: denise.luz@upe.br
Este trabalho foi motivado em reflexões sobre a relevância da educação em
direitos humanos e para os direitos humanos. Embora notável a sua necessidade, a
indagação sobre a eficiência do ensino ―em sala de aula‖ na formação humanística
universitária se mostrou importante, tendo em vista que o Brasil possui um déficit
gigantesco na proteção desses direitos, seja em razão da fragilidade de suas instituições
jurídicas, seja em decorrência de políticas restritivas que perpetuam tradições
autoritárias, seja em razão da precariedade da educação superior sobre o tema.

Assim, em busca de uma solução adequada para reduzir os efeitos nefastos desta
problemática educacional, notou-se que as extensões universitárias têm grande potencial
para fechar algumas dessas lacunas quando promove participação cooperativa entre
docentes, discentes e comunidade em temáticas que envolvem violação e proteção de
direitos humanos. Nesse cenário, identificou-se o seguinte problema de pesquisa: os
direitos humanos podem ser aprendidos somente por atividades de ensino em ―sala de
aula‖ ou a vivência prática em ações de extensão é condição de possibilidade?

Este artigo mostra-se inédito, tanto na abordagem da temática da educação em


direitos humanos, quanto por ser fruto de caso vivenciado em grupo de extensão da
Universidade de Pernambuco (UPE), o Escritório de Defesa da Mulher.

A lógica do trabalho envolve a produção de conhecimento acerca do direito


humano à educação e suas garantias, assim como sobre a educação propriamente em
direitos humanos.

Sabe-se que existem muitos projetos extensionistas que enfrentam problemáticas


que envolvem algum aspecto dos Direitos Humanos, mas nem todos encerram com
contribuições efetivas para a formação dos agentes envolvidos. Então, utilizando do
método dedutivo, observacional, de pesquisa básica, bibliográfica e documental com
acepções do tipo qualitativa, objetiva-se esclarecer e estimular a importância de levar o
discente ―a campo‖, proporcionando-lhe vivências essenciais para sua formação em
Direitos Humanos, conforme planejado pelas políticas nacionais em educação.
Nessa linha, o artigo foi estruturado em três seções. Na primeira, aborda-se sobre
educação em direitos humanos. Na segunda, analisa-se o papel da extensão
universitária. Na terceira, verificam-se as conquistas de alguns projetos de extensão na
área e divulgam-se, especificamente as deduções já alcançadas com o Escritório de
Defesa da Mulher, projeto de extensão voltado ao combate da violência doméstica e
familiar, da Universidade de Pernambuco – UPE/Arcoverde.5

1. EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos foram construídos com base na ideia primordial de dignidade


da pessoa humana de matriz Kantiana. Por este pensamento, independentemente de
qualquer condição pessoal, deverá ser resguardado ao indivíduo o respeito e a proteção
jurídica de seus direitos pelo simples fato de ele ser humano. Para se chegar a essa
construção, foram travadas diversas lutas: camponeses, comerciantes, intelectuais,
escravos, homossexuais, quilombolas, dentre outros, que viram a oportunidade de
manifestar seus interesses nesse espaço para adquirir garantias antes não previstas em
contexto legal, para a formação de um ideal político e social denominado ―Direito
Humano‖ (DHESCA, 2011).

Após a afirmação dos direitos essenciais, no documento intitulado ―Declaração


Universal dos Direitos Humanos‖, seu reconhecimento internacional representou um
passo histórico decisivo para as políticas públicas que ali viriam a surgir, pois, partindo
desta declaração, os direitos humanos ganharam status que os colocaram acima das
contingências das políticas dos países, fortalecendo a luta contra regimes que não
representavam ideologia congruente com a Declaração (DHESCA, 2011).

5
Confira a página do Projeto na rede social Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/Escrit%C3%B3rio-de-Defesa-da-Mulher-NPJUPE-
345985242420655/?hc_ref=SEARCH>. Acesso em: 1.ago.2017.
Decorrente de longo processo histórico, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, só vingou com o documento aprovado pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, em 10 dezembro de 1948, a qual inicia pela afirmação de que ―o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo‖. Acima do status de cidadão de um Estado em particular está a condição de
Ser-humano, a quem se dispensa qualquer outra qualificação, seja de raça, gênero,
nacionalidade ou religião. ―Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares,
reconhecido como pessoa perante a lei‖ (RAMOS, 2015, p. 5).

Em 1979, Karel Vasak lançou, durante conferência do Instituto Internacional de


Direitos Humanos, a chamada ―Teoria das gerações de direitos‖. Segundo Vasak, os
Direitos Humanos são divididos em três categorias geracionais, baseadas nos princípios
advindos das revoluções francesa e americana, sendo estes a ―liberdade, igualdade e
fraternidade‖ (LIMA, 2003).

São de primeira geração os chamados direitos a prestações negativas do Estado,


na qual este não deve intervir na autonomia privada. Segundo Canotilho (1995), são
direitos de liberdade, de defesa, possuindo o caráter de estabelecer limitações e
competências para o Estado, restringindo seu poder sobre as pessoas. Os direitos a
prestações negativas são, em regra, classificados como direitos civis e políticos.

São de segunda geração os direitos humanos que clamam por uma intervenção do
Estado, uma prestação positiva, exigindo-lhes um papel ativo, não apenas um mero
fiscal. Esse papel ativo, de início, foi visto com tom de desconfiança, passando a ter
aporte favorável com a influência de doutrinas socialistas que os consideram direitos
necessários para fomentar a igualdade. Já os direitos de terceira geração são aqueles de
titularidade da comunidade, como o direito ao desenvolvimento, direito à paz, direito à
autodeterminação e, em especial, o direito ao meio ambiente equilibrado. (RAMOS,
2015).
Assim, o direito à educação é de segunda geração. Ele foi reconhecido no art. 26
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) que dita:
1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos
nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será
obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem
como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos
e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e
coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que
será ministrada aos seus filhos. (UNESCO, 1998, p. 14).

Dada a sua importância, várias normas internacionais fortaleceram o


reconhecimento de tal direito, principalmente o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação
no Campo do Ensino, a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Protocolo
Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos
Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DHESCA, 2011).

Tratar a educação como um direito humano significa que sua efetivação não pode
depender das condições econômicas dos estudantes ou estar sujeita unicamente às regras
de mercado. Tampouco, tal direito humano social pode estar ligado a qualquer limitação
cultural, de gênero ou racial.

Visto a conceituação e situação do direito à educação como direito humano, é


necessário distinguir sua zona de aplicação, onde esta é dividida em três grandes grupos.
O primeiro deles intitulado Direito Humano à educação refere-se ao ensino capaz de
promover o pleno desenvolvimento da pessoa, para que esta possa atender aos interesses
próprios e de sua comunidade. O segundo intitulado Direito humano na educação
refere-se à universalidade dos direitos humanos, o que significa que devem estar
presentes em todas as atividades que ocorram no espaço educativo. Ele pode ser
sintetizado como o respeito aos direitos humanos na educação. E, por fim, o terceiro
grupo denominado Educação em direitos humanos explana que os currículos
escolares deverão conter a disciplina de direitos humanos ou outra equivalente para
fazer parte do processo educativo. E, baseado neste último preceito, foi criado o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos, cuja segunda versão foi concluída em
2006 e terceira em 2009 (DHESCA, 2011).

A educação em direitos humanos é entendida como uma educação para a


democracia e trata-se de um processo que deve ser vivenciado de maneira
que, em momento algum, o educando se esqueça de que é um cidadão. Deve
contemplar a formação intelectual e a informação, a educação moral e a
educação do comportamento, formando uma tríade que envolve tanto o
conhecimento, quanto os aspectos político e axiológico. (TEIXEIRA,

2005, p. 8).

Na estrutura dos Estados soberanos, para a Escola positivista, os Direitos


Humanos são englobados na Constituição para assumirem um estatuto normativo
superior. Para esta Escola, o fundamento dos direitos humanos consiste na existência da
lei positiva. Assim, os direitos humanos justificam-se graças a sua validade formal,
sendo, então, relevante identificar a maioria deles no próprio corpo da Constituição.
―Tal evidente tautologia enfraquece a proteção dos direitos humanos, quando a lei for
omissa ou mesmo contrária à dignidade da pessoa humana‖, na visão de Ramos (2015,
p.34).

No entanto, no que toca ao direito à educação, a discussão acima é despicienda no


Brasil, pois se trata de direito social garantido nos artigos 6º e 205 da Constituição da
República. Este último prevê:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e


incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.

Embora as construções atinentes aos direitos humanos tenham relevante valor


documental, sua concretização, na prática, não é um processo simples, nem natural. Ao
contrário, ela decorre do processo histórico e sempre sucedeu traumas causados por
experiências concretas de arbitrariedade e violência contra a pessoa na sua essência de
humanidade. Por isso, educar em direitos humanos implica em proporcionar
―significados práticos a uma vivência baseada na pluralidade de modos de vida e no
respeito à diversidade‖ (DIAS; PORTO, 2010, p. 32).

Elevando a necessidade do estudo sobre direitos humanos, faz-se necessária a


abordagem de sua aplicação, não como ―mera construção de lei fria‖ e, sim, como
disciplina necessária à formação e geração de estudantes com senso crítico para o
desenvolvimento dos direitos humanos em nível global.

2. O PAPEL DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA PARA A EDUCAÇÃO EM (E


PARA OS) DIREITOS HUMANOS

A extensão universitária se revela como manifestação educacional essencial para a


formação em Direitos Humanos.

A extensão universitária é uma forma de interação que deve existir entre a


universidade e a comunidade na qual ela está inserida, uma espécie de ponte
permanente entre a universidade e os diversos setores da sociedade. Funciona
como uma via de duas mãos em que a universidade leva conhecimentos e/ou
assistência à comunidade e recebe dela influxos positivos em forma de
retroalimentação, tais como suas reais necessidades, anseios e aspirações.
Além disso, a universidade aprende com o saber dessas comunidades.
(SILVA; NUNES, 2011, p.2).

Segundo o Plano Nacional de Extensão, formulado pelo Fórum de Pró-Reitores de


Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e pela Secretaria do Ensino Superior
do Ministério da Educação e do Desporto, a extensão universitária é o processo
educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável
e viabiliza a relação transformadora entre universidade e sociedade.
Nota-se que, em geral, as universidades ofereciam em seus cursos regulares
somente o ensino e, por vezes, a pesquisa a ele atrelada. As atividades extensionistas
surgiram da necessidade de uma interação universidade-sociedade, tornando-se prevista
no sistema de ensino superior brasileiro a partir da Lei federal nº 5.540, de 28 de
novembro de 1968, conhecida como Lei da Reforma Universitária.

É importante também destacar que, antes de ser regulamentada em lei,


algumas universidades promoviam atividades de caráter extensionista,
embora estas fossem desenvolvidas apenas esporadicamente e com o objetivo
de difusão cultural ou objetivos sociais filantrópicos. (SANTOS, 2012, p. 3)

A relevância da educação superior deve ser avaliada em termos da concordância


entre o que a sociedade espera da instituição e o que a instituição realmente faz
(UNESCO, 1998). ―A extensão, enquanto responsabilidade social faz parte de uma nova
cultura, que está provocando a maior e mais importante mudança registrada no ambiente
acadêmico e corporativo nos últimos anos. ‖ (CARBONARI; PEREIRA, 2007, p. 27).
A educação universitária, pela via da extensão, pode promover alterações
transformadoras e interventoras na realidade para a promoção de políticas públicas em
direitos humanos.

―A universidade deve ser mais do que um laboratório, objeto de estudo ou campo


de pesquisas, mas também uma instituição com pessoas, demandas, reivindicações,
anseios e saberes que se encontram dentro e fora da universidade‖. (SILVA; NUNES,
2011, p.5). Por isso, é preciso assumir o papel e a responsabilidade social e política (não
no sentido de política partidária) da universidade, não apenas das públicas, mas também
das instituições privadas, porque elas formam pessoas e fazem nascer ideias que vão
compor o ―DNA‖ de uma época da história.

A extensão universitária traz em seu bojo o diferencial de proporcionar aos


estudantes uma sólida e significativa aprendizagem técnica e humanística, de modo que
eles podem ampliar horizontes acerca da realidade social e, com consciência crítica,
pensar na adoção de estratégias político-profissionais de intervenção qualitativa. A
extensão, como processo que possibilita a interação entre universidade e sociedade,
constitui-se elemento fundamental capaz de operacionalizar a relação teoria-prática e a
articulação com o ensino e a pesquisa científica, promovendo, dessa forma, troca entre
os saberes erudito e popular.

Daí a importância da universidade não se pôr contrária à realidade social,


voltando-se apenas para dentro de si mesma, autorreproduzindo-se. Essa constatação
impõe, sobretudo na seara jurídica romper com a arrogância academicista que pretende
apenas ―transmitir para a sociedade conhecimento produzido na universidade‖. É
preciso assumir métodos dialógicos e a academia precisa aceitar que tem também tem a
aprender com a realidade social e não apenas (mas, também) ―transmitir conhecimento‖
com base em formulações teóricas prévias. (SANTOS, 2013, p.8).

A universidade deve ir à comunidade, ou mesmo receber os comunitários,


prestando-lhes serviços, assistência, coletando dados, sempre visando o bem-estar da
comunidade. (SILVA e NUNES, 2011). A universidade deve ser um espaço
democrático de pensamento e ação. Ela pode (e deve) servir como instrumento de
empoderamento de grupos sociais, em especial, os mais vulneráveis.

Para Hennington (2005, apud RODRIGUES et al, 2013, p.4), os programas de


extensão universitária mostram a importância de sua existência na relação estabelecida
entre instituição e sociedade. Eles acontecem por meio da aproximação e troca de
conhecimentos e experiências entre professores, alunos e população, pela possibilidade
de desenvolvimento de processos de ensino-aprendizagem, a partir de práticas
cotidianas, juntamente com o ensino e pesquisa e, especialmente, pelo fato de propiciar
o confronto da teoria com o mundo real de necessidade e desejos. Ela define e
possibilita a apreensão dos conteúdos trabalhados entre professor e aluno e beneficia-se
com isso a partir do momento em que há o contato com o mundo real.

Especificamente no curso de Direito, em que se tende a valorizar a oratória e,


assim, os métodos tradicionais de ensino com aulas expositivas que reproduzem teorias
―provadas‖ no pretérito, a extensão ganha força vital em um mundo em constante
transformação. No ensino do Direito persistem métodos tradicionais pelos quais o
professor transmite conteúdo e o aluno o recebe, naquela lógica de o educando ―dar as
respostas antes de conhecer as perguntas‖. A extensão rompe este paradigma, porque, a
partir dos problemas que surgem na realidade (perguntas) é que busca a solução
(resposta). Saber lidar cientificamente com o novo, com o não previsto e não teorizado
anteriormente, é algo fundamental para a educação jurídica nesse mundo atual de
frenético devir. No que toca à educação em direitos humanos e para os direitos
humanos é essencial que o graduando desenvolva competências para solucionar
juridicamente problemas gerados na prática, porque tudo o que se sabe nesta área é fruto
do timbre da violência e menosprezo real ao Ser Humano. Nessa área, não há espaço
para teorias ilusórias ou ingênuas e a formação universitária deve ter consciência que
são direitos que experimentam ameaças constantes e reiteradas e que podem, sim, sofrer
retrocessos diante da arbitrariedade que o Direito do Estado soberano, eventualmente,
não consiga frear. Educar para os direitos humanos é educar para resistir à
arbitrariedade e essa habilidade não pode ser alcançada pelos métodos tradicionais de
ensino do Direito.

É necessário questionar o porquê de tanto ceticismo e reivindicação por base


dogmática estável, sem acesso à vista do redor, em um contexto tão multifacetário que é
a sociedade contemporânea (PRADO, 2012).

Assim, pensar a extensão universitária é repensar o próprio modelo universitário,


tanto na questão educacional, quanto na produção de conhecimentos úteis ao novo
paradigma de sociedade vigente em nossa época. Nesse mesmo sentido, a produção de
conhecimentos gerados pelas pesquisas universitárias deve possuir necessariamente a
intenção de transformar a realidade social, intervindo em suas deficiências e não se
limitando ao ensino teórico-abstrato (SILVA e NUNES, 2011), mas também deve estar
aberta para receber saberes não institucionalizados.

O ensino do Direito no Brasil herdou o caráter conservador da Universidade de


Coimbra, com suas aulas-conferência, ensino dogmático acrítico, mentalidade ortodoxa
do corpo docente transplantada para os discentes, a serviço da manutenção da ordem
estabelecida de Portugal, oportunizando aos profissionais por ele formados o prestígio
local (COLAÇO, 2006).
As atividades extensionistas não devem se sustentar apenas no seu conjunto de
valores e princípios. Estes precisam ser traduzidos e concretizados a partir de mediações
que se constroem e se realizam cotidianamente pela atuação profissional na e a partir
da realidade social.

O Direito não deve ser um ente distante e inatingível para a maioria das
pessoas. O Direito a ter direitos deve permear o dia-a-dia dos seres humanos,
ou seja, deve ser valorizado e estar presente no cotidiano dos homens. O
cotidiano é composto por segundos, minutos e cada dia na vida das pessoas.
Isso significa que o Direito deve estar presente o tempo todo e para todos, e
não apenas em momentos de conflitos, de extrema necessidade, de violência
exacerbada, de flagrantes injustiças; ou mostrar-se somente para uma
pequena parcela privilegiada da população. (COLAÇO, 2006, p. 6).

E nisso tem-se a importância associativa entre a extensão e o ensino de Direitos


Humanos. A prática extensionista eleva o senso humanitário do educando e é essencial
para sua formação, pois, sem a crítica da realidade cotidiana, o ensino de direitos
humanos torna-se mero reprodutor de teorias estrangeiras, sobretudo eurocêntricas.
Deve-se produzir conhecimento capaz de criticar o próprio conhecimento (erudito)
(MORIN, 2006).
Nessa perspectiva, a educação em direitos humanos trabalha por uma ―educação
mais humana‖ e procura desconstruir preconceitos, culturas discriminatórias e
ideologias depreciativas históricas.

3. PRÁTICAS EDUCACIONAIS EM DIREITOS HUMANOS

A análise realizada na seção anterior demonstrou que a educação em direitos


humanos na modalidade de ensino, por si, não é suficiente para viabilizar a
aprendizagem em direitos humanos e desenvolver competências profissionais para os
direitos humanos. Feita esta primeira constatação, passe-se a analisar algumas
contribuições concretas de atividades de extensão universitária.
A atividade de extensão universitária Educar Em Direitos Humanos desenvolvida
na Univille (Joinville, SC), observou que as práticas aplicadas no projeto surtiram
grande impacto na formação dos alunos, pois eles passaram a refletir sobre certas
atitudes, aplicando-as nas relações sociais, familiares e no próprio ambiente escolar. O
projeto trouxe benefícios não só ao educador como para os alunos e para toda a
comunidade, pois, uma vez incorporada a prática de educação em direitos humanos,
todos se tornam disseminadores de suas ideias, contribuindo sobremaneira para a
sociedade como um todo. (BELLATO, LAPA e SILVEIRA, 2012).

Na atividade de extensão Direitos Humanos em Tempos de Desumanização,


desenvolvido pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte -UERN, constatou-
se os seguintes aspectos:

a) Divulgação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, através


das atividades de formação realizadas: cursos, seminários temáticos,
audiências públicas;
b) Formação de multiplicadores entre os profissionais da educação Básica
pública através dos Cursos de educação em Direitos Humanos;
c) Inserção de lideranças comunitárias, militantes sociais e representantes da
sociedade civil organizada nos cursos de formação;
(...)
e) Fortalecimento do Comitê Estadual de Educação em Direitos Humanos no
Rio Grande do Norte.
(...)
g) Contribuição nas discussões de inserção na perspectiva da educação em
direitos humanos como eixo norteador dos projetos políticos pedagógicos das
escolas
(...)
n) Ampliação das articulações, em nível de UERN, no campo da extensão
universitária, com instituições da sociedade política e civil, dentre outros
atores sociais que atuam no campo da Educação em Direitos Humanos.
(COSTA; SANTOS, 2008)

Zenaide (2002) destaca a produção acadêmica (artigos, resumos e etc.) resultantes


da aplicação de grupos de pesquisa e extensão das universidades participantes do
conselho de pró-reitores. A autora também destaca que os resultados se contemplaram
áreas mais específicas como violência, gênero, proteção de vulneráveis, dentre outros.

A extensão na área de direitos humanos nas universidades públicas


brasileiras apresenta uma interface construtiva com o ensino e a pesquisa não
só na área jurídica, mas também nas humanas, na saúde e educação. São
ações que resultam em criação de campos de estágios e em intervenções
institucionais e sociais, são pesquisas que implicam em trabalhos
monográficos, dissertações e teses, são cursos de extensão que articulam
projetos e programas sociais e institucionais, são disciplinas em cursos de
graduação e pós-graduação que focalizam a temática nas diversas áreas do
conhecimento, enfim é uma multiplicidade de possibilidades práticas de
interseção da extensão com ensino e a pesquisa que implicam em processos
internos e externos, com rebatimentos institucionais e sociais. (ZENAIDE,
2002, p. 12).

Villar (2011), em seu trabalho sobre extensão universitária da UFRN, identificou,


entre o corpo docente, que o ensino universitário está em crise e em constante
defasagem, mas vê na extensão a possibilidade de fortalecê-lo.

Para que haja a superação dessa crise, é necessário também que ocorra a
superação do ensino alienante que, ainda, na contemporaneidade, é em certa
medida uma marca, ficando a extensão nessa interface entre a pesquisa e o
ensino. Portanto, entende-se, que a superação em termos das atividades de
extensão, de modo a fortalecer o vínculo com a sociedade, implica na
universalização da extensão, envolvendo a totalidade dos alunos, o que
possibilitará maior presença, maior vínculo, maior interação com a
comunidade e a partir desse vínculo, dessa maior interação, ter os problemas
sociais, os problemas da comunidade como fonte, como parte da agenda de
pesquisa da universidade. (VILLAR, 2011, p. 88).

Colaço (2006) invoca o perfil elitista do curso de Direito e propõe a presença da


extensão universitária para quebrar esse paradigma e afetar positivamente a formação
humanística dos discentes.

A extensão propriamente dita transcende a obrigatoriedade da Prática


Jurídica, uma vez que deve ser voluntária e ultrapassar os muros da
universidade para alcançar a sociedade. Além de transformar e melhorar o
cotidiano das pessoas da comunidade envolvida, pelo conhecimento dos seus
direitos básicos, propicia aos professores e acadêmicos participantes conhecer
o cotidiano das pessoas comuns, uma outra realidade, além da universidade,
favorecendo um amadurecimento não só intelectual, mas também um
amadurecimento das relações humanas para os futuros profissionais do
Direito (COLAÇO, 2003, p. 5).

Cumpre destacar que a prática extensionista passa a ser obrigatória na educação


superior brasileira de acordo com a Meta 23 do Plano Nacional de Educação (2001-
2010), Lei Federal 10.172/2001, e com a Meta 12.7 do novo Plano Nacional de
Educação (2011-2020) que assegura, no mínimo, 10% do total de créditos curriculares
exigidos para a graduação em programas e projetos de extensão universitária. Acredita-
se que tal exigência legal tende a conferir maior legitimidade acadêmica para a
extensão, uma vez que esta se concentra na pesquisa. A produção de pesquisa é
altamente valorizada na universidade, mas a atividade educacional de extensão não é
dotada do mesmo prestígio, sendo tratada como atividade subalterna.

3.1 O ESCRITÓRIO DE DEFESA DA MULHER DA UPE/ARCOVERDE

O Escritório de Defesa da Mulher (EDM) é um projeto de extensão do Curso de


Direito da UPE/ Arcoverde iniciado em outubro de 2016, objetivando atingir a educação
em (e para) os direitos humanos de gênero e contribuir para o enfrentamento da
violência doméstica e familiar contra a mulher em Arcoverde. O projeto envolve largo
diálogo com a sociedade, materializada com uma parceria concreta com a
Coordenadoria da Mulher de Arcoverde, órgão municipal.

O EDM é composto por sete docentes do curso de Direito, quinze discentes, sendo
quatorze de graduação e um de pós-graduação, e um servidor administrativo. A equipe
presta assessoria jurídica para mulheres vítimas de violência de gênero. O trabalho é
feito pelos estudantes da UPE, sob a supervisão de professores.

Até agora, percebeu-se que o conhecimento adquirido pelos alunos no projeto


advém da oportunidade conhecer as vítimas e a lógica de perpetuação da violência nas
relações mais íntimas de afeto.
Do ponto de vista educacional dos futuros juristas, pode-se afirmar que esse
contato direto com a vítima, agressor e seus traumas permite a formação
humanística para os bacharelandos. Desloca-se a graduação em Direito de
estudos apenas teóricos ou estágios de gabinete que, sem querer, acabam, às
vezes, por privilegiar o academicismo vão e a perpetuação de estruturas de
poder e modos de discriminação, simplesmente por não proporcionar ao
estudante contato com os fatos da vida que integram o mundo do Direito.
(LUZ; MELO; FREIRE, 2017, no prelo).

Para evoluir, como sociedade livre, é preciso criticar os saberes jurídicos e


políticos construídos pelo academicismo e apropriados pelas estruturas de poder
(GARCIA, 2009).
Os estudos comprovam que o modo tradicional de ensinar, por meio de aulas
expositivas, é percebido pelos alunos, na maioria das vezes, como um método de
disciplina, dominação e pretexto para impedir sua autonomia intelectual (MATOS et al,
2012).
Ao contrário, constata-se que a atividade de extensão executada consegue
promover educação superior livre dessa tradição característica das atividades exclusivas
de ensino.

CONCLUSÃO

Com propósito de abordar a relação e importância entre a prática extensionista


universitária e o ensino de Direitos Humanos, o trabalho mostrou-se relevante para
analisar a problemática do direito à educação, como direito humano, com as atuais
práticas universitárias.

Atividades de extensão são fundamentais para formação humanística do aluno,


bem como viabilizam aos educadores se apoderarem de conhecimento empírico. Os
projetos vivenciados, a partir de resultados no mundo real, testam as teorias acadêmicas
repetidas irrefletidamente para confirmar ou refutar sua validade científico-jurídica.

Assim, conclui-se que a educação baseada apenas no ensino nos cursos de Direito
não é suficiente para a aprendizagem em (e para os) direitos humanos. Tal constatação
advém da verificação da predominância de aulas expositivas no modelo tradicional em
que o professor expõe o conteúdo e o estudante o recebe passivo. As atividades de
ensino jurídico no Brasil sustentam-se em dogmas teóricos criados e mantidos por uma
tradição bacharelista, baseada em teorias eurocêntricas, distantes da realidade local. A
rigidez característica do ensino jurídico não possibilita adaptá-lo e à plasticidade dos
direitos humanos, sempre necessária como instrumento de resistência a investidas
autoritárias em um mundo de frequentes e velozes mudanças.

Não há como educar em (e para os) direitos humanos sem contato direito da
universidade com a experiência concreta da violência, sempre renovável. A
universidade deve produzir saberes em colaboração com o meio social em um processo
de retroalimentação, o que não é realizável sem atividades de extensão. Assim, pode se
dizer que a vivência prática em ações de extensão é condição de possibilidade para a
educação em direitos humanos. Sem extensão, a educação em direitos humanos não é
viável.
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PRECAUÇÃO, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE: caminhos para
preservação ambiental na era do consumismo

Ingrid Tereza de Moura Fontes6


Joan Kleber Amorim da Silva7

GT 01 – Arte, Educação e História dos Direitos Humanos.

RESUMO: O presente artigo busca analisar as relações entre a problemática


contemporânea do consumismo, aqui tida como interdisciplinar, e as constantes
degradações ambientais, bem como, a diferença existente entre consumo (indispensável
à vida humana) e consumismo (necessidades fabricadas através do sistema capitalista).
Destaca-se alguns dos princípios internacionais ambientais, especialmente, a precaução,
o princípio da solidariedade eo papel que desempenham no desafio da preservação em
nome de um meio ambiente equilibrado e sadio. Trata ainda sobre desenvolvimento
sustentável e de como este deve ser colocado em prática o mais rapidamente possível
para que, aliado a políticas de educação para o consumo e preservação ambiental, se
possa fornecer à natureza uma oportunidade de regeneração, possibilitando, dessa
forma, a existência de um futuro ambientalmente sustentável. Desta forma, esta
pesquisa tem como objetivo geral buscar compreender o papel do consumismo nas
relações humanas, bem como o forte impacto que este causa no meio ambiente. Não
obstante, foi utilizada uma metodologia majoritariamente analítica, aliada a uma
abordagem exploratória que resgatou a perspectiva histórica da negação da natureza
como base explicativa para o cenário identificado no texto.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Ambiental. Consumismo. Sustentabilidade.


Precaução. Solidariedade.

INTRODUÇÃO
O consumo é algo natural do ser humano, significando um mecanismo de
sobrevivência desde os tempos mais remotos, como a utilização de água e alimentos
para suprir suas necessidades mais básicas, por exemplo. Porém, a revolução industrial
e os avanços tecnológicos no chamado mundo globalizado ocasionaram o crescimento

6
Graduanda de Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE), membro do Grupo de Pesquisas
Transdisciplinares Sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade/GEPT-MDS, email:
ingridmoura@hotmail.com.
7
Graduando de Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE), membro do Grupo de Pesquisas
Transdisciplinares Sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade/GEPT-MDS, email:
kleberamorim96@gmail.com.
exacerbado do consumismo, passando o mesmo a se tornar um problema com
repercussõesambientais. O modo de vida consumerista tornou-se algo comum no
sistema capitalista no qual estamos inseridos, uma vez que o consumo está diretamente
ligado à ideia de desenvolvimento econômico, justamente porque garante o movimento
e a estabilidade da economia. Não são poucas as vezes em que o hábito de consumir
está relacionado com o ideal de felicidade a ser perseguido, podendo isso ser constatado
através das propagandas nos diversos meios de comunicação com as quais o
consumidor depara-se diariamente, em especial, crianças e jovens.
Zygmunt Bauman, em sua obra "Vida para Consumo" alerta para a diferença
entre consumo e consumismo, o que será objeto de análise do presente trabalho (2007).
O consumismo acarreta diversos problemas ambientais, como por exemplo, a
exploração desmedida dos recursos naturais para satisfazer a crescente demanda da
produção em uma era descartável, na qual os produtos e serviços estão em constante
transformação. Além disso, a sociedade está sempre em busca daquilo que é mais atual,
gerando outro problema que é a alta produção de lixo tanto pelas indústrias como pelos
consumidores, já que é usual que os produtos que se tornam obsoletos sejam
descartados de forma incorreta na natureza devido à ausência de políticas de educação
ambiental. Além disso, falta, também, estímulos à produção com responsabilidade
ambiental, ao consumo consciente e sustentável, o que faz com que esse lixo acabe em
rios, esgotos e aterros sem nenhuma estrutura para tal, contribuindo para a degradação
do meio ambiente cada vez mais acelerada. Mais uma vez destaca-se a necessidade da
educação ambiental para a contenção da degradação do meio ambiente.
Nesse sentido, com o processo de globalização cada vez mais acelerado e o
reconhecimento de suas consequências, é relevantereconhecer a educação ambiental
como mecanismo de enfrentamento da degradação do meio ambiente, promovendo
políticas de educação, tanto nas escolas, como nas comunidades de uma forma geral,
capazes de enxergar a problemática interdisciplinar existente. Faz-se necessário que
haja um comportamento solidário em relação aos cuidados com o meio ambiente, de
forma que estes não sejam tratados como uma responsabilidade individual, mas sim de
todos (MARQUES, 2012). Quando fala-se em desenvolvimento sustentável, é possível
perceber que há uma ideia de natureza como um recurso ou uma matéria-prima, de
modo que sempre será explorada, porém de uma forma ―controlada‖. Partindo desse
ponto, é importante questionar a partir de que momento o meio ambiente deixou de ser
utilizado para a sobrevivência e passou a ser ―comercializado‖.
Com o avanço do capitalismo numa escala global, as pessoas passaram a se
importar cada vez menos com as consequências que suas ações podem acarretar, visto
que o consumismo exagerado parece ter-lhes cegado de tal forma, que não pensam mais
que as próprias podem sofrer com isso. Por isso é de suma importância que haja a
criação de políticas públicas que busquem conter a exploração exacerbada dos recursos
naturais, bem como um amplo debate e participação popular nas tomadas de decisões a
esse respeito. Através da divulgação de informações sobre um meio ambiente
equilibrado e sadio, é possível, inclusive, promover uma grande inclusão social, visto
que inúmeras comunidades (urbanas, rurais, indígenas, quilombolas, entre outras)
uniriam-se para tratar de um assunto comum e de interesse de todos.
A Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA – lei 9795/99) traz em seu
artigo 1º que a educação ambiental pode ser entendida como ―os processos por meio dos
quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos,
habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente,
bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade‖.
Dessa forma, é necessário que haja uma ampla discussão entre o governo do Estado e
seus membros para que se defina o que deve ser feito para a conservação da natureza,
bem como para a conscientização popular.
Nesse sentido, o presente trabalho pretende abordar as diversas transformações
sofridas pelo meio ambiente através da intensa exploração dos seus recursos e como
essas transformações afetam diretamente a vida dos seres humanos e dos demais seres
vivos. Vai buscar também uma análise a respeito da cultura do consumismo e tratar
sobre a forte influência dos meios de comunicação de massa para que isso ocorra. Por
último, comentaremos sobre a importância do consumo consciente e sustentável, além
da indispensabilidade de diversos princípios ambientais, como o da precaução e o da
solidariedade.
A problemática abordada é: como a era consumista influencia, de uma forma
interdisciplinar, a crescente degradação ambiental? O objetivo geral da pesquisa é
buscar compreender o papel do consumismo nas relações humanas, bem como o forte
impacto que este causa no meio ambiente. Os objetivos específicos são: analisar as
relações de consumo e de consumismo na atualidade e buscar compreender como isso
reflete nas interações entre os indivíduos. O artigo utiliza ainda uma metodologia
analítica e indutiva, bem como uma pesquisa bibliográfica e documental e uma
abordagem qualitativa e exploratória.

1 A LIQUIDEZ DA CULTURA AGORISTA E A


(DES)NECESSIDADE DO CONSUMO FABRICADO
Com o sistema capitalista, tornou-se comum a prática da substituição. Quando
algo deixa de desempenhar sua função de forma eficiente ou já está ultrapassado, é
rapidamente substituído por outro. O problema é que essa troca do ―ruim‖ pelo ―bom‖
também passou a ser aplicada com pessoas. Aquelas que já estão há algum tempo em
uma empresa, por exemplo, e não demonstraram nenhum avanço ou não trouxeram
lucro algum, são descartadas. Dessa forma, os seres humanos passam a ser
indiretamente obrigados a sempre estar exigindo mais de si, forçando, por vezes, até
mais do que suportam, para conseguirem continuar no mercado de trabalho. Essa
situação não é nova, mas passou a receber uma atenção extra a partir do surgimento do
Socialismo Científico, quando Karl Marx surge com a tese da mais-valia (COSTA,
2010).
A força de trabalho é o que valoriza o produto no mercado, entretanto não lhe é
dada a devida remuneração, visto que os trabalhadores recebem muito pouco e
trabalham de forma exaustiva. Apesar dessa grande desigualdade entre quantidade de
horas trabalhando e valor recebido pelo trabalho, não é comum que as pessoas
simplesmente desistam da atividade laboral, pois se sabe que há um grande número de
trabalhadores aguardando aquela vaga, ainda que esta forneça condições precárias
(COSTA, 2010). Da mesma forma que com pessoas, o descarte acontece também com
produtos (gerando um enorme impacto ambiental). Pode-se dizer até que somos
educados através do marketing a consumir cada vez mais e a consumir, inclusive, coisas
que não precisamos. Por essa razão, a mídia tem um importante papel quando se trata de
poluição e degradação ambiental. Contudo, é importante esclarecer a diferença entre
consumo e consumismo. O ser humano não consegue sobreviver sem consumir. É
uma questão de necessidade. Bauman (2007) diz que o consumo é essencial à vida
humana e sempre existiu. O consumismo, por outro lado, é incentivado, orientado, de
modo que as pessoas creem que precisam de algo porque lhes é dito isso. É um atributo
da sociedade. Somos conduzidos a acreditar que, ao comprarmos determinado produto,
seremos mais felizes, mais bonitos ou estaremos na moda. Com a grande influência dos
meios de comunicação de massa, está cada vez mais difícil distinguir o que é uma
necessidade real do que é uma necessidade fabricada, surgindo, através disso, um
consumo que não existia, mas que foi implantado.
Como podemos, então, saber o que realmente é necessário à nossa sobrevivência
e o que é descartável? Através de uma educação ambiental, é possível diminuir
consideravelmente essa cultura do consumismo, visto que as pessoas se tornam mais
críticas e conscientes a respeito de suas próprias necessidades e do que essas
necessidades podem causar ao meio em que vivem. Bauman (2007) trata sobre
consumismo e cita, inclusive, exemplos práticos de como as pessoas são forçadas a
consumir para se manterem na vida em sociedade. Aqueles que não acompanham as
grandes novidades da mídia ou que não adquirem determinado produto, são, de certa
forma, excluídos por estarem ―por fora‖ das novidades. Um exemplo muito clássico de
consumismo é quando os mercados lançam promoções do tipo ―leve três, pague dois‖.
Ainda que o indivíduo precise apenas de duas unidades, ele é forçado a levar três, pois a
terceira é gratuita e abrir mão dela não seria tão inteligente, já que levaria mais pelo
mesmo preço. É possível perceber, dessa forma, como a economia influencia fortemente
nos impactos ambientais através do estímulo ao consumismo.
O meio ambiente vem dando cada vez mais sinais de que está deteriorado, pois é
comum ouvir notícias de catástrofes ambientais; recursos naturais que antes eram
renováveis, não são mais considerados adequados para o consumo devido à intensa
poluição; o aquecimento global, que avança cada vez mais rápido e está prejudicando
muito fortemente a vida de espécies que habitam locais mais frios do planeta, entre
outros problemas. É importante também que se perceba que esse consumismo
exagerado não atinge apenas as pessoas que o praticam, mas também as demais e,
inclusive aquelas que ainda nem nasceram. Surge aí o que é chamado de
transgeracionalidade do direito ambiental, o que quer dizer que os danos sofridos pela
natureza na atualidade afetarão também gerações futuras, sem que seja possível calcular
quanto tempo esses danos irão durar ou a extensão que irão atingir (MARQUES, 2013).
A população mundial tem aumentado bastante a cada ano, fazendo com que,
inevitavelmente, o consumo aumente, o que torna cada vez mais indispensável a
disseminação de uma educação ambiental adequada. Esta tem a capacidade de formar
uma consciência mais crítica e que desperte um sentimento de solidariedade entre as
gerações de seres humanos, já que a preservação do meio ambiente é essencial para que
existam vidas futuras. Esse excesso de consumo também faz surgir uma forte
desigualdade, fortalecida ainda mais pelo sistema capitalista, pois aqueles que têm uma
condição financeira razoável podem consumir muito mais (incluindo coisas de que não
precisam) do que aqueles que não a tem. Isso faz com que estes, muitas vezes, nem
consigam satisfazer suas necessidades básicas.
Bauman (2007) faz uma comparação entre a utilização de bens antigamente e na
contemporaneidade. Os bens costumavam ser feitos para durar, o que fornecia uma
segurança a longo prazo e uma certa estabilidade aos seus detentores. A riqueza era
demonstrada através da quantidade de mercadorias estocadas e da sua longa
durabilidade ou solidez, transmitindo uma sensação de poder e de proteção. Atualmente,
a riqueza é demonstrada através da descartabilidade dos produtos (o que envolve
prazeres imediatos, que são facilmente substituídos por outros). Aquele que tem o
produto mais atual, mais avançado ou mais tecnológico é quem detém mais poder e
prestígio, gerando uma disputa de ego, status e constante desperdício. É comum associar
a compra de mercardorias ao sucesso, à felicidade e à realização pessoal, gerando um
consumo excessivo, que não permite mais que a natureza consiga repor de uma forma
satisfatória aquilo que foi retirado dela.
Partindo do que foi analisado nesse ponto, fica bastante clara a necessidade de
uma maior atenção à educação ambiental. Muitos dos problemas que estamos vivendo
hoje, costumavam ser considerados ―do futuro‖, mas acabaram sendo antecipados
devido a grande deterioração e ao enorme descaso com que vem sendo tratado o
planeta. O aquecimento global, que é considerado um processo natural da Terra, está
acontecendo de uma forma muito acelerada, causando desastres e situações com as
quais os seres humanos ainda não sabem como lidar. Sua relação com as práticas de
consumo é inegável.

2 DIFICULDADES DO CONSUMO SUSTENTÁVEL E A


IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DO FUTURO
Com os avanços tecnológicos, os produtos e serviços estão em um constante
processo de atualizações e diariamente as pessoas são estimuladas a adquirir aquilo que
é mais moderno ou que está na moda (BAUDRILARD, 2007), sendo esse ideal de
necessidade fabricado em meio ao sistema capitalista e fortalecido principalmente
através dos meios de comunicação. Isso representa um grave problema ambiental, pois
nesse procedimento de substituição dos produtos que se tornaram obsoletos, toneladas
de resíduos são produzidas e descartadas diariamente. Diante das graves consequências
que o consumismo acarreta para o meio ambiente natural é necessário que se adote uma
nova perspectiva na relação entre o homem e a natureza.
Num sistema no qual as pessoas são influenciadas cotidianamente ao consumo
desmedido, em grande parte das vezes de produtos supérfluos, através de anúncios em
redes sociais, outdoors espalhados pelas ruas, comerciais televisivos etc., e no qual não
se tem o hábito de preocupar-se com os impactos do processo de produção dos bens
adquiridos assim como com o destino que estes terão após serem descartados, faz-se
necessária uma mudança de paradigma de consumo. Porém, esta é uma tarefa árdua já
que pode ser muito complicado para a população adotar uma nova posição perante o
meio ambiente que envolva não só a preocupação com o agora, mas também com as
futuras gerações.
A sobreposição dos interesses econômicos faz com que os processos de
industrialização e modernização tenham apenas seu lado positivo exaltado, já que
significam desenvolvimento e evolução e com isso acaba ficando em segundo plano a
preocupação com o meio ambiente natural, que há algum tempo já vem demonstrando
os impactos negativos resultantes da atividade humana. Os recursos naturais são a base
para este desenvolvimento, seja através da utilização das fontes de energia renováveis e
não renováveis ou como matéria prima na fabricação dos produtos. Sua exploração, por
exemplo, é constante para atender os anseios da sociedade, para satisfazer a demanda
desses bens e serviços, que cresce de forma gigantesca como resultado das influências e
dos estímulos para consumir cada vez mais que o próprio sistema propaganda
(SANTIAGO, MACHADO, 2015). Com isso, se retira tanto da natureza que a mesma
acaba não conseguindo repor de forma satisfatória resultando em grandes devastações a
curtos e longos prazos. Isso nos faz pensar na necessidade em discutir o
ecodesenvolvimento (MONTIBELLER, 1993), as práticas de consumo e a
sustentabilidade.
Devido ao fato de o fortalecimento e a estabilidade da economia serem o foco do
sistema capitalista, dentre os que estão no poder apesar de muitas vezes ser ter
consciência das lesões ambientais e suas temerosas consequências, isto acaba sendo
relativizado e não recebe o tratamento prioritário que deveria (MONTIBELLER, 1993).
Já a população consumidora, que é a base desta economia frequentemente não tem
noção da gravidade da situação, ou quando tem, não se importa a ponto de adotar um
novo comportamento nessa relação entre consumismo e meio ambiente. Isto é um
reflexo de um pensamento cultural, em meio a uma sociedade imediatista, de não se
preocupar enquanto as coisas não atingem diretamente o individuo. Por exemplo, as
pessoas costumam se chocar diante de grandes desastres ambientais frutos da atividade
humana, o que é perfeitamente normal, mas por outro lado as mesmas não se dão conta
do que está ocorrendo gradativamente a sua volta, já que a satisfação da sua necessidade
fabricada de consumir acaba não permitindo que se vejam os riscos causados por tal
atividade.
Assim, a segurança existencial acaba entrando em um paradigma de incertezas.
Vivemos no que Ulrich Beck denomina ―sociedade de risco global‖, isto porque as
consequências das atitudes tomadas no presente podem ser imprevisíveis e a ocorrência
de danos é algo que pode ou não vir a ocorrer (BECK, 2010). Cabe destacar que o risco
se difere do perigo, pois aquele está vinculado a decisões dos seres humanos e é
resultado da sua intervenção enquanto este se refere a fenômenos, naturais ou não, que
podem causar danos e sempre ameaçaram a humanidade. Neste cenário, o consumismo
se mostra como uma variável potencialmente degradadora ao meio ambiente, uma vez
que possui como alguns de seus resultados a criação de uma era descartável, a intensa
exploração dos recursos naturais como base do progresso das tecnologias e para
satisfazer a alta demanda de produtos e serviços, a alta produção do lixo, entre outros,
acarretando, assim, efeitos devastadores cujas consequências provavelmente serão
arcadas pelas futuras gerações.
Beck apud Júlia S. Guivant (2001) aborda, em seu livro Risk Society, que a
produção e distribuição de bens para consumo acabou sendo deslocada para uma
sociedade de risco, na qual o desenvolvimento da ciência não consegue mais
acompanhar e controlar as consequências da crescente industrialização. Partindo disso,
passam a existir, também, consequências de alta gravidade para o meio ambiente, bem
como para a saúde humana, que, não raramente, só são descobertas a longo prazo,
fazendo com que tendam a ser irreversíveis. Beck cita riscos ecológicos, químicos,
nucleares e genéticos, que são externalizados de uma forma econômica, mas que
possuem uma legitimidade científica e são minimizados policitamente.
Ou seja, os riscos gerados pelo processo de industrialização, apesar de bastante
graves, são repassados à sociedade como um ponto positivo no que toca à economia, ao
mesmo tempo em que são legitimados pela ciência (pois são tidos como necessários
para o avanço científico) e a política se acarreta de minimizar suas consequências.
Nesse sentido, surge a necessidade de uma discussão interdisciplinar entre as
diversas ciências e, até mesmo com a sociedade, uma vez que esta é uma das principais
afetadas pelos riscos globais. Através dessa inter-relação, surge uma ação recíproca por
parte dos estudiosos. É inevitável que haja essa interdisciplinaridade, pois a
especialização dos estudos científicos tornou impossível que uma só pessoa possua
conhecimento sobre uma área ampla da ciência. Com a especialização, o todo foi
cindido em pequenas partes por intermédio de uma análise cada vez mais específica
(POMBO, 2005).
Somado a isso, tem-se que o conceito de sociedade de risco se cruza diretamente
com o conceito de globalização, uma vez que os riscos afetam nações inteiras e diversas
classes sociais sem respeitar fronteira alguma (GUIVANT, 2001). Assim sendo, o nível
de impactos ao meio ambiente atingiu um nível tão alto que fala-se atualmente no
Antropoceno (ACOSTA, 2013). Essa tese defende que o mundo está vivenciando um
novo tempo geológico (que supostamente superou o Holoceno). Essa nova era seria
marcada pela influência humana na Terra, o que inclui as catástrofes e diversos outros
problemas causados pela intensa poluição.
O Antropoceno seria ainda mais um motivo para se voltar de uma forma ativa à
educação ambiental, para que se possa minimizar o máximo possível os efeitos que vem
decaindo sobre o planeta. Há que se falar então no princípio da precaução que deve ser
aplicado quando determinada atividade demonstre ser um potencial lesivo ao meio
ambiente mesmo que haja incerteza científica da ocorrência de tal resultado, não se
podendo assumir o risco já que os danos podem ser irreversíveis
(HAMMERSCHMIDT, 2002). Logo, num contexto onde não se sabe a probabilidade da
produção de tais lesões este princípio se revela como uma ética a ser adotada para que
as decisões sejam tomadas de forma que se busque garantir um equilíbrio ecológico. A
precaução passa a representar então um elemento de defesa do direito fundamental ao
meio ambiente, devendo ser adotada numa escala não apenas local, mas sim global já
que possuem também este direito os sujeitos que ainda nem nasceram (JONAS, 2006).
Cristiane Deraniapud Dornelas (2011) sustenta que o princípio da precaução
liga-se ao afastamento de perigo e à segurança das gerações futuras e da
sustentabilidade ambiental. Diz também que:
Este princípio é a tradução da busca da proteção da existência humana,
seja pela proteção de seu ambiente como pelo asseguramento da integridade da
vida humana. A partir dessa premissa, deve-se também considerar não só o
risco eminente de uma determinada atividade, como também os riscos futuros
decorrentes de empreendimentos humanos, os quais nossa compreensão e o
atual estágio da ciência jamais conseguem captar em toda densidade.
Portanto, para que se garanta um meio ambiente minimamente saudável para as
gerações futuras, deve-se ter uma perspectiva transgeracional na relação do homem com
a natureza. Isso quer dizer que é necessário se ter consciência de que as atitudes
tomadas hoje não apenas afetam a geração atual como também os seres não nascidos,
tendo esse vínculo uma função de limitar os atos praticados hoje que possam causar
danos ambientais talvez irreversíveis. É mister uma mudança de atitude em âmbito
global e isso pode ser bastante complicado, pois geralmente é muito difícil para um
indivíduo na nossa sociedade imediatista (BAUDRILLARD, 2007) e que tanto valoriza
o lucro, adotar uma mudança de postura em nome de uma realidade da qual
provavelmente não fará parte e de cujos benefícios o mesmo não irá usufruir, já que os
efeitos provavelmente ocorrerão em longo prazo.
Logo, num contexto onde não se sabe a probabilidade da produção de tais lesões,
o princípio da precaução se revela como uma ética a ser adotada para que as decisões
sejam tomadas de forma que se busque garantir um equilíbrio ecológico. A precaução
passa a representar então um elemento de defesa do direito fundamental ao meio
ambiente, devendo ser adotada numa escala não apenas local, mas sim global, já que
possuem também este direito os sujeitos que ainda nem nasceram.
O direito fundamental ao meio ambiente pertence à terceira dimensão dos
direitos fundamentais, cujos sujeitos para os quais se direcionam são indeterminados e
indetermináveis. Assim sendo, na relação do homem com o meio ambiente, deve
preponderar o interesse coletivo em face dos indivíduos nas suas particularidades. A
humanidade passa a ser o sujeito de direito e, portanto, incluem-se também os sujeitos
ainda não nascidos.
Assim sendo, fica evidente que na busca por uma relação harmônica entre os
indivíduos e o meio ambiente, faz-se necessária a adoção de uma nova postura por todos
os seres humanos, de modo que se possa garantir um equilíbrio ambiental para a
geração presente e as futuras. Porém se passa a questionar a viabilidade em se garantir o
equilíbrio ecológico numa era dominada pela busca de progresso que está diretamente
relacionada à intensa exploração e degradação de recursos naturais.
Cabe-se falar então na proposta da sustentabilidade como um meio de tornar isto
possível. Só que no atual sistema que prioriza o desenvolvimento tecnológico, bélico,
científico, essa mudança de postura se mostra muito dispendiosa. Visa-se, por exemplo,
a redução da exploração de recursos naturais, o combate aos diversos tipos de poluição
resultantes da atividade humana, a utilização de materiais recicláveis nos processos de
produção e a aplicação integral do principio da precaução como meio de se evitar que
atividades que possam representar algum risco de lesão ambiental venham a ser
realizadas, mesmo que não haja provas cientificas da probabilidade de tal fato vir a
ocorrer ou não. Logo, se exige que haja uma transformação de um modo de vida ao qual
a maior parte da humanidade está adequada e que representa um ideal de estabilidade, e
para que isto seja possível haverá custos que serão arcados por diversas instituições e a
população de forma geral.
Sob essa perspectiva, o desenvolvimento sustentável pode ter uma conotação
utópica, já que a preocupação ambiental geralmente fica em segundo plano em face dos
interesses econômicos. Mas, em contrapartida, representa uma ―urgência social
planetária‖ de se constituir um meio ambiente ecologicamente equilibrado do qual
possam desfrutar também os seres humanos que virão a existir no futuro, pois, como
visto, os mesmos também são titulares desse direito. (REIGOTA, 2007)
Um dos norteadores para que essa mudança seja possível é a adoção do princípio
da solidariedade, devendo esta ser entendida num sentido amplo, principalmente em
relação aos seres que existirão nas gerações que estão por vir, isto significa a existência
de um dever para com estes indivíduos de não criar circunstâncias de degradação
ambiental irreversíveis, ou seja, é garantir que os não nascidos, também titulares do
direito fundamental ao meio ambiente, possam desfrutar de uma natureza
ecologicamente equilibrada. Através da adoção de um pensamento solidário para com
aqueles que virão a nascer, busca-se garantir um bem-estar através da elaboração de
formas de controle das possíveis consequências negativas dos atos realizados no
presente para que aqueles não se tornem vítimas dos danos futuros.
Nesse sentido, a degradação ambiental é tida como uma realidade que poderia
ser minimizada com a adoção de um pensamento solidário, uma vez que é
consequência, principalmente, dos constantes avanços científicos e tecnológicos que
preponderam sobre a preocupação com a natureza, em virtude do ser humano muito
retirar os recursos para satisfazer sua vontade de modo que aquela não consegue repô-
los satisfatoriamente.
As ações humanas, neste sentido, são advindas não apenas de um determinado
ramo, mas sim de um conjunto de práticas exercidas por diversas áreas de produção
com vistas ao progresso econômico. O consumismo, por exemplo, está relacionado a
uma pluralidade de setores, entre os quais estão o científico, na busca pelo contínuo
desenvolvimento tecnológico; o industrial, na produção de bens; o setor de prestação de
serviços de comunicação, na divulgação dos produtos perante o consumidor; assim
como, o de prestação de serviços. Cada área se subdivide em diversas outras que de
forma direta ou não estão interligadas, possuindo todas sua parcela de contribuição para
a problemática mais abrangente que se refere às conseqüências do consumismo para a
degradação do meio ambiente.
Assim sendo, além de uma ótica transgeracional acerca dos problemas
ambientais, é indispensável que se adote também uma perspectiva interdisciplinar, tanto
no que diz respeito à identificação dos mesmos, quanto à aplicação de medidas com
vistas a diminuir a produção dos riscos ambientais – em decorrência da atividade
humana – evitando-se que venham a ocorrer lesões ao meio ambiente cujos danos sejam
irreversíveis.
Desta forma, faz-se necessária uma integração entre diversas áreas de
conhecimento que direta ou indiretamente lidam com a problemática ambiental, de
modo que ocorra uma mudança de paradigma, passando as ciências a não mais serem
caracterizadas apenas como especializações disciplinares isoladas, mas sim que se
estabeleça um diálogo entre os saberes (SANTOMÉ, 1998, apud Vieira & Morais,
2003), como meio de concretização também do princípio da solidariedade e com vistas
a se garantir um meio ambiente minimamente sadio em virtude desta e das futuras
gerações.
Portanto, para lidar de forma efetiva com os desgastes que atingem o meio
ambiente, deve haver um intercâmbio entre todas as ciências que de algum modo estão
relacionadas a questões ambientais. Neste sentido, é necessário que haja uma ponte
interdisciplinar ente os âmbitos sociais, políticos, jurídicos, científicos e educacionais,
destacando-se a importância fundamental deste último para que tal objetivo seja
alcançado.
A educação ambiental deve então ser difundida nos meios acadêmicos e
científicos, assim como nos de debates relacionados às praticas sociais no cotidiano,
sendo indispensável sua inserção desde as bases escolares, pois a produção e aplicação
dos seus conhecimentos e princípios ético-políticos servirão como base para
conscientizar e orientar a sociedade para o desenvolvimento sustentável (REIGOTA,
2007). Portanto, nessa mudança de paradigma, é mister que se supere o estímulo ao
consumo exacerbado, a intensa degradação ambiental para a satisfação das vontades
humanas em prol do desenvolvimento social em conformidade com o equilíbrio
ecológico8.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No mundo capitalista atual, somos educados a adquirir cada vez mais produtos e
a substituí-los em curtos espaços de tempo. Logo, faz-se necessário um processo de
reeducação da sociedade na qual o ideal de desenvolvimento esteja aliado a uma
preocupação ambiental prioritária e que isto não seja apenas uma teoria ou um discurso
falacioso, mas sim um objetivo a ser perseguido e efetivamente realizado na prática.
É possível perceber claramente como o meio ambiente está encontrando cada
vez mais dificuldades para conseguir repor os recursos dele retirados de forma exaustiva
e irresponsável, visto que a sociedade de consumo que se apresenta hoje está
acostumada à intensa exploração, fazendo com que não enxergue a escassez na qual

8
De acordo com Sachs, estes são os cinco pilares do ecodesenvolvimento e suas respectivas
características: a) Sustentabilidade Social: produção voltada ao atendimento das necessidades sociais e
redução das desigualdades; b) Sustentabilidade Econômica: manejo eficiente dos recursos e produção
aumentada da riqueza social; c) Sustentabilidade Ecológica: prudência no uso dos recursos naturais,
respeito aos ciclos ecológicos e preservação do meio ambiente para as futuras gerações; d)
Sustentabilidade Espacial ou Geográfica: relação equilibrada entre os meios urbanos e rurais e evitar o
excesso de aglomerações; e)Sustentabilidade Cultural: adaptação das soluções a cada ecossistema e
respeito às formações culturais locais para que se evitem conflitos (1993, apud Montibeller, 1993).
estamos adentrando. Dessa forma, é imprescindível se falar em uma educação ambiental
efetiva, que seja bem divulgada e também cobrada, de forma que as pessoas realmente
se deem conta do imenso prejuízo que estão causando à natureza.
Fala-se da forte contribuição do antropocentrismo para essa era consumista, pois
ao passo que o homem passa a se enxergar como centro, o meio ambiente começa a ser
apenas um meio de exploração de recursos, que está ali apenas para satisfazer as
necessidades humanas. Partindo dessa visão antropocêntrica em que vivemos na
contemporaneidade, fica cada vez mais indispensável se falar em um
ecodesenvolvimento, que seria capaz de gerar uma solidariedade entre as gerações
atuais, entre o homem e o meio ambiente e, inclusive, para com gerações futuras. É
preciso compreender que os recursos naturais são finitos, ao passo que as necessidades
humanas, não. Partindo desse raciocínio, deve-se pensar que o intenso desperdício e
descaso com a natureza afetará muito severamente indivíduos que nem tiveram a chance
de tentar mudar essa realidade, mas que já nascerão condenados.
O desenvolvimento sustentável é definido como ―desenvolvimento que responde
às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras de
satisfazer suas próprias necessidades‖. Em se tratando de um ecodesenvolvimento, deve
existir uma visão a longo prazo, uma preocupação com o bem-estar social, bem como
uma solidariedade com as futuras gerações. Pode-se perceber, então, que não é tão
recente a ideia de transgeracionalidade do meio ambiente. Há esse cuidado com
indivíduos que estão porvir, mas que antes não eram tutelados pelo Direito. O que torna
essa uma situação nova, com a qual os juristas não estão tão habituados. Por isso o
Direito Ambiental é bastante vasto e complexo, o que exige todo um cuidado específico.
Não se pode esquecer-se de mencionar que há certamente um impacto positivo
na sociedade de consumo quando é difundida uma educação ambiental de qualidade,
não só nas escolas, mas em qualquer meio em que haja o mínimo de interação humana,
incluindo pequenas comunidades. Essa educação é capaz de gerar um senso crítico e
responsável, bem como um forte sentimento de solidariedade entre as gerações. Pessoas
passam a se questionar se realmente necessitam consumir determinados produtos e isso
faz com que a era consumerista atual sofra uma desaceleração considerável.
Para isso, há que se falar também nos princípios que caminham ao lado dessa
educação ambiental e que contrubuem fortemente para que haja um desenvolvimento
sustentável e com uma máxima redução de gastos possível, visto que não se pode falar
em uma completa inação do homem no meio em que vive, o que também não significa
dizer que aquele tem o direito de consumir de forma exaustiva e desnecessária. Um
princípio de suma importância é o princípio da precaução, muito comumente
confundido com o princípio da prevenção, porém difere deste por não exigir um perigo
concreto para que seja aplicado. Neste último, o perigo já existe, é conhecido, mas são
tomadas medidas para minimizar o dano ambiental.
Um outro ponto bastante curioso e que deixa clara a extrema importância do
meio ambiente é o que diz respeito à responsabilidade objetiva daquele (pessoa física ou
jurídica, de direito público ou privado) que causa o dano. Isso quer dizer que, uma vez
causado o prejuízo, a pessoa deve responder por ele, independente de ter havido ou não
culpa. Isso importa falar também que essa preocupação com o meio ambiente não deve
se dar apenas dentro dos estados, de forma isolada. Por ser a natureza livre de fronteiras,
os danos a ela causados não se limitarão a permanecer no local onde foram gerados.
Dessa forma, é mister que haja um forte diálogo entre os diversos países para
que se façam acordos e se tomem medidas protecionistas em prol do meio ambiente,
como bem prega o princípio da precaução. É de extrema importância que se tenha essa
preocupação, pois, dependendo da gravidade e intensidade do dano, não se tem como
calcular a área que irá afetar, a quantidade de pessoas atingidas e, muito menos, o tempo
que irá durar.
Deve haver uma consciência de que o meio ambiente não existe apenas para
satisfazer as necessidades do ser humano, mas também é imprescindível para a própria
sobrevivência das espécies. Importante que se crie um pensamento responsável, crítico e
consciente acerca do consumo e também sobre as consequências que os danos
ambientais podem trazer para os seres vivos. Um desenvolvimento sustentável pode
reduzir as taxas de poluição, bem como de degradação ambiental, ao passo que fornece
mais tempo para que a natureza consiga se regenerar e consiguir repor os recursos dela
retirados. Sem falar também no grande benefício que trará às futuras gerações, as quais,
eventualmente, também passarão a ter deveres de perante o meio ambiente.

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CRÍTICA POLÍTICA NO UNIVERSO STAR WARS - A BUSCA PELA
REPÚBLICA E PELO FIM DO IMPÉRIO

Nadeje Pereira dos Santos9


Hipólito de Moura Júnior²
Nayara Paulino de Carvalho³

GT01: Arte, Educação e História dos Direitos Humanos

RESUMO

Regimes de característica fascistas fizeram-se presentes em alguns países após a


Primeira Guerra Mundial, amedrontando o mundo, por ser uma ameaça ao regime
democrático e aos direitos e liberdades individuais e coletivos; Em paralelo surge a
preocupação das mídias de expor estes sistemas e suas características para promover
reflexão sobre os sistemas políticos e assim desenvolver na sociedade um pensamento
crítico a respeito dos mesmos. Para realizar a análise da presente pesquisa serão
explorados, principalmente as obras de Paxton (2004), Bernardo (2015) e Payne (1995).
A metodologia parte do método analítico-dedutivo, para construção dos argumentos
basilares, é ainda analítico para avaliação mais profunda das informações (GIL, 2009), e
ainda bibliográfico-exploratória de abordagem qualitativa, a fim de proporcionar maior
aproximação com o problema a ser apresentado, envolvendo dessa maneira um
levantamento bibliográfico (GIL, 2009). Conclui-se a crítica política contida na saga
Star Wars é de grande relevância para a construção do pensamento político e para
análise e reflexão sobre os sistemas governamentais, e a promoção dos Direitos
Humanos, tendo em vista os impactos sociais que os governos inevitavelmente causam.

Palavras-chave: Star Wars, Totalitarismo, Política.

9
1 Graduanda em Direito pela DeVry|UNIFAVIP, Pesquisadora e extensionista no GEPIDH Mércia
Albuquerque; Extencionista DHiálogos . E-mail: nadejepsantos00@gmail.com
2 Graduando em Engenharia Mecânica pelo Instituto Federal de Pernambuco. E-mail:
sirjuniorhipolito@gmail.com
3 Graduanda em Direito pela DeVry|UNIFAVIP . E-mail: nayara.paulino@hotmail.com
INTRODUÇÃO

O movimento Fascista surge na Itália durante o início do século XX, realizando


a partir do seu nascimento uma revolta na ordem, objetivando a mobilização em massa
da nação mediante um Estado totalitário, que tem como princípio o extremismo político
autoritário nacionalista. Esse sistema tem como essência a devoção ao Estado, e
retomando o discurso de Hobbes e Maquiavel, atribui a este um caráter de soberania e
domínio sobre o seu povo.
O fascismo traz consigo algumas ideologias tais quais: hostilidade ao socialismo,
ao comunismo e ao liberalismo, crença na superioridade de um grupo sobre outro
através de uma interpretação do darwinismo, autoritarismo, redução de direitos,
supremacia militar, aristocracia industrial e empresarial, controle das mídias de massas,
entre outras, entre outras, que ao serem colocadas em prática como regime político,
começam a despertar a atenção do mundo, tendo em vista que o controle absoluto do
Estado era uma ideia preocupante e com isso a noção de opressão começou a se
difundir.
Ao passo que o regime fascista foi tomando forma e acontecendo em paralelo a
outros regimes totalitaristas como o Nazismo, as concepções mundiais a respeito dele
começaram a ser formadas, debatidas passaram a ser pensadas criticamente, tendo em
vista que o sistema externava natureza política imperialista e cada vez mais opressora,
principalmente no sentido de que a população e a estrutura do país eram completamente
submetidas à ideologia do Estado, logo, esse sistema mostrou-se sólido de mais para se
combater, claramente oponente a ideais que não fossem compatíveis com o regime, e
extremamente militarizado, garantindo a completa ―proteção do Estado‖.
Com o surgimento dos regimes totalitários, a democracia, os direitos
fundamentais e liberdades individuais, estavam sendo dirimidos e, em contrapartida, as
denúncias e críticas a estes sistemas começam a se propagar através de artigos, livros,
propagandas, filmes etc.
Nesse seguimento, tem-se como problema de pesquisa: De que maneira a
abordagem de sistemas políticos nos filmes do Universo Star Wars contribuem
para a construção e desenvolvimento do pensamento crítico sobre o regime fascista
e sobre o regime republicano? Nesse sentido, o presente trabalho proporciona a
reflexão sobre os impactos sociais que sistemas políticos causam, afetando diretamente
o indivíduo, haja vista que as decisões sobre o país, as definições de direitos, deveres e
liberdades ficam a cargo do governo, que precisa ser estabelecido nas possibilidades de
regimes políticos.
Dessa maneira, o objetivo geral do presente trabalho é analisar o conhecimento
político transmitido por filmes como potencial mecanismo para a construção crítica da
perspectiva política e social no sujeito, assim como para o despertar da importância de
ser um cidadão político.
Os objetivos específicos que se orientam o presente trabalho são:
i) Apresentar a crítica política contida no universo Star Wars a fim de
proporcionar um olhar mais profundo sobre as questões políticas abordadas;
ii) Debater sobre os impactos dos sistemas políticos na sociedade;
iii) Discutir a relevância da mídia visual e da literatura enquanto arte, para
disseminação de idéias políticas para os indivíduos no geral.

O artigo é construído a partir da metodologia analítica que visa uma avaliação


mais aprofundada das informações coletadas em um determinado estudo na tentativa de
explicar o contexto de um fenômeno no âmbito de um grupo, grupos ou população
(GIL, 2009) e indutiva, pois a partir desse método, partimos da observação de fatos ou
fenômenos cujas causas desejamos conhecer e assim comparam-se estes fatos
objetivando descobrir as relações existentes entre eles. (GIL, 2009). O caráter da
pesquisa é bibliográfica, pois faz análise de material já publicado com o fim de compor
a fundamentação teórica a partir da avaliação sistemática de livros, periódicos,
documentos, textos, mapas, fotos, manuscritos e, até mesmo, de material
disponibilizado na internet (GIL, 2009) e de abordagem qualitativa que é o tipo de
pesquisa apropriada para quem busca compreender fenômenos complexos, específicos
de natureza social a partir de descrições, desconsiderando questões numéricas (GIL,
2009), e exploratória, tendo em vista que esta pesquisa busca proporcionar maior
aproximação com o problema a ser apresentado, envolvendo dessa maneira um
levantamento bibliográfico (GIL, 2009).
O presente artigo pretende proporcionar aos leitores a contemplação acessível
que os filmes e livros da saga Star Wars sugerem em relação aos regimes políticos
fascistas e republicanos, assim como promover a possibilidade de reflexão sobre os
impactos da política no desenvolvimento da sociedade como um todo, haja vista esta
limita e origina direitos, deveres e liberdades.
Esta pesquisa baseia-se principalmente nas idéias do autor Robert O. Paxton,
expostas no livro A anatomia do fascismo, do autor João Bernardo, na obra Labirintos
do Fascismo e do autor Stanley G. Payne, na obra A História do Fascismo. Além do
mais, para o estudo do nexo entre o fascismo e a saga Star Wars foram analisados os
filmes e livros da saga, buscando dessa forma a fundamentação do presente trabalho.

DESENVOLVIMENTO

1. Conexões entre ficção e realidade

As características fascistas contidas em Star Wars não deixam escapar os


detalhes, considerando, por exemplo, que até mesmo o figurino é inspirado no regime, e
o termo utilizado para se referir aos soldados do império ―Stormtroopers‖ é um termo
usado pelos regimes totalitários para descrever um grupo de soldados especiais (tropas
de assalto). A saga Star Wars desta maneira traz mensagens políticas no filme, as quais
provocam curiosidade no público, que ao vislumbrar as circunstâncias em que se
encontram as personagens, encontra paralelos com o presente, em regimes atuais, que
embora não sejam declaradamente fascistas, adotam posturas e atitudes que inclinam-se
para esta direção.
Outrossim, ao fazer uma relação entre a resistência rebelde com resistências
populares a governantes ao redor do mundo atualmente, nota-se consequentemente que
os líderes políticos, em alguns aspectos, se alinham à filosofia fascista, e, portanto, a
população desperta para o fim de tal governo. A instauração do império ocorre a
princípio em razão dos problemas econômicos que os planetas estão enfrentando,
entretanto, após a instauração do novo regime político, o preço da participação na
economia galáctica passa a significar a aceitação de regras que irritam os novos
governos planetários, e assim tais governantes buscam manter a participação econômica
cada vez mais restrita.
No Episódio II, a ―Confederação de Sistemas Independentes‖ decide separar-se
da República em resposta às medidas que alegam impor um fardo econômico sobre os
planetas mais pobres, e em oposição a tal atitude, a Aliança Rebelde, que combate o
Império, tenta restaurar a democracia e a República nos planetas, já que tal poder
começou a danificar a integração econômica, e mais tarde, consegue fragmentar
totalmente a economia dos planetas.
Em paralelo, o governo fascista de Benito Mussolini em sua terceira fase de
governo, começa a apresentar uma grande desorganização política, em contradição com
o início da sua chefia, e em razão disso, ocorre a queda intensa da sua popularidade, a
resistência italiana ganha força, e como produto dessa decadência acontece a
desestruturação da economia italiana.
A relevância de ter a franquia Star Wars retratado fatores políticos ao longo dos
filmes é de notável importância, pois torna a realidade de estar sob um regime opressor
acessível ao público, já que no geral as práticas regressistas de regimes políticos são
omitidas e mascaradas, e ao fornecer uma apresentação de forma lúdica desses
acontecimentos desperta-se os sujeitos para fatores políticos e sociais reais, tais quais a
forma de instauração do regime, a sede de poder, a reação da população aos episódios
políticos, a forma como a resistência ao governo é agressivamente tratada e apresentada
à população como algo que deveria ser imediatamente impugnada.
Refletir sobre isso significa ampliar o pensamento crítico mediante a formação
de uma concepção mais clara sobre política, haja vista que isso é essencial para a
articulação da sociedade que almeja viver sob um regime que defende a promoção de
direitos, limites ao poder do Estado, divisão dos poderes do Estado, participação
popular, garantia de liberdades, proteção dos Direitos Humanos, poderes limitados à
polícia, tolerância, integridade no poder e, sobretudo, Democracia.

Benito Mussolini ao afirmar que:

O indivíduo só existe enquanto está no Estado: está subordinado às


necessidades do Estado e, à medida que a civilização toma formas cada vez
mais complexas, a liberdade do indivíduo restringe-se sempre mais. (...)
Neste sentido, o fascismo é totalitário (...). Nem partidos, associações,
sindicatos nem indivíduos fora do Estado. (...) Nós representamos um
princípio novo no Mundo, representamos a antítese nítida, categórica,
definitiva da democracia (...). (MUSSOLINI, 1931)

E esse tipo de pensamento levou a população Italiana a viver dias temerosos, e o nexo
que a saga Star Wars faz com a realidade busca conduzir a sociedade a ter cuidado com
esse tipo de pensamento sobre regimes políticos instaurado em países.

2. Consequências políticas no desenvolvimento social

Os filmes da franquia Star Wars fazem analogia entre o regime fascista, e a


figura do império intergaláctico junto com seus representantes. Na trama, todo o poder
político da galáxia é mantido nas mãos do Imperador, e todos os esforços militares são
feitos para garantir a manutenção deste poder, reprimindo severamente as tentativas de
formação de qualquer tipo de resistência organizada contra o governo.
As características do fascismo são externadas na forma de tentativas de exaltar a
imagem do imperador como salvador e protetor soberano da galáxia, no intuito de criar
a consciência coletiva de que o Império é uma solução para a galáxia e que aliança
rebelde é uma ameaça à ordem, pois são inimigos do Estado como um todo, e não
apenas do sistema político vigente.
Além do mais, os meios de repressão a qualquer tipo de pensamento contrário ao
império são dos mais extremos, assim como no fascismo, onde os fins justificam os
meios, ainda que os meios envolvam morte, tortura, exílio, e violação total dos direitos
humanos.
Tal qual no fascismo, há esforços para justificar atrocidades, restrições de
liberdade e medidas extremas, como a criação de uma arma de destruição em massa
para terraplanar bases rebeldes.
O período de ascensão do regime fascista é o pós Primeira Guerra Mundial, no
qual os países envolvidos na guerra passavam graves problemas, tais como reerguer
obras públicas, restabelecer a produção industrial, gerar empregos e pagar dívidas de
guerra. Nesse sentido, a democracia liberal, foi apresentada como fraca de mais para
sanar tais problemas, e assim as elites dos países Europeus foram favoráveis à formação
de governos fortes e autoritários, capazes de impor a disciplina social para recompor a
ordem capitalista - os regimes totalitários.
A respeito desse cenário de caos social e econômico no país, Bernardo (2015)
descreve a situação que suscitou o poder do regime:

Uma massa agitada pelo descontentamento, mas sem nenhuma


expectativa que não se cingisse à sociedade existente — eis a base popular da
revolta dentro da ordem. Foi nessa gente que o fascismo se apoiou para
eliminar as chefias operárias tradicionais, isolar as vanguardas combativas e
reorganizar o Estado consoante um novo modelo totalitário. E fê-lo tanto
mais facilmente quanto o refluxo do movimento revolucionário havia
fragilizado a base de sustentação de socialistas e comunistas, e a repressão
conduzida contra os trabalhadores mais ousados comprometera qualquer
prestígio de que os governos liberais tivessem podido gozar entre a
população humilde BERNARDO (2015, P. 26)

Sob essa perspectiva, nota-se que os impactos sociais do regime são inevitáveis
tanto antes da instauração, como depois, porquanto a reorganização do Estado só é
possível diante da fragilidade socioeconômica de um país, tornando assim, os potenciais
movimentos revolucionários debilitados, e dessa maneira, a consolidação do fascismo
torna-se inabalável.
De acordo com Bernardo, (2015) Em cada país onde vigorou, o fascismo
procurou legitimar-se com o argumento de que era indispensável ao restabelecimento do
passado heróico nas ambicionadas dimensões (p.259) , e assim igualmente correspondia
às exigências modernas da sociedade, portanto para a cultura liberal ou conservadora
agregar a perspectiva do fascismo é um excelente pretexto para reerguer os ideais
totalitários, atribuindo por conseguinte ao fascismo um verniz de inocência e
modernidade.
Os líderes fascistas seguem esse sistema em todas as suas manifestações, e os
impactos sociais da opressão estão presente em todos os governos, haja vista que os
ideais norteadores do regime fascista são: Falta de um partido que consiga competir
com a burocracia civil, ou serviço civil em uma ditadura genérica; a radicalização do
movimento fascista e a existência de suporte de todas as classes (PAXTON, 2007).
Todos esses ideais são claramente representados na figura do império, em Star Wars,
fazendo assim uma provocação à reflexão sobre como o regime absolutista pode se
instaurar mascarado de democracia, mas na realidade, os parâmetros são de opressão
social e política.
O filme retrata no discurso do Supremo Chanceler Palpatine, o qual dirige o
golpe contra a república, a manobra de instauração do novo governo de forma
dissimulada: "É com uma grande relutância, que eu aceito este chamado. Eu amo a
democracia. Eu amo a República. Os poderes que me concederam, deixarão de ser
usados quando a crise for contornada. E como meu primeiro ato, com esta nova
autoridade, eu criarei um Grande Exército da nossa República, para conter as crescentes
ameaças dos Separatistas".
Tal discurso sucede uma onda de aplausos e aclamações a seu nome, e ao ser
concedido poderes emergenciais perante a crise da República diante da ameaça
separatista, Palpatine intensifica o desenvolvimento da atividade Bélica e Militar, assim
como dá início ao planejamento dos cursos de ação que submeteria a Galáxia aos
interesses próprios do governante, gerando consequentemente graves sequelas à
população.
Em paralelo com a realidade, assim ocorreu ao líder fascista Benito Mussolini
quando em seu discurso declarou: ―O meu programa é simples: quero governar‖
Mussolini (1883-1945), no entanto, ele definiu esse governo fascista de tal maneira: ―A
concepção fascista é voltada para o Estado, e é para o indivíduo, na medida em que ele
concorde com o Estado [...] O liberalismo negou ao Estado em nome do indivíduo, o
fascismo reafirma os direitos do Estado, como expressão da verdadeira realidade do
indivíduo‖ Mussolini (1883-1945), tornando os indivíduos vítimas do Estado.
Dessa maneira, Mussolini afirmou que os homens estavam cansados de liberdade e
em paralelo, no episódio três da saga Star Wars, quando o império claramente carregado
de características fascistas é instaurado, o povo aplaude e comemora fortemente tal
instauração, e nesse momento a ex-senadora Padmé Amidala diz ―Então é assim que a
liberdade morre - com um estrondoso aplauso.‖ A partir desse paralelo, percebe-se que
a falsa sensação de liberdade que os regimes totalitários trazem pode aparentar ser tão
verdadeira quanto a liberdade que a democracia possui.

3. Os pilares do fascismo

Paxton, o autor de múltiplos livros, incluindo ―A Anatomia do Fascismo‖


Vintage (2005) afirmou que o fascismo é mais baseado em sentimentos do que em
idéias filosóficas. Em seu trabalho de 1988 ―Os Cinco Estágios do Fascismo‖,
publicado no Jornal da História Moderna, ele definiu sete sentimentos que agem
como ―paixões motrizes‖ para regimes fascistas.
Estes são:

a. A primazia do coletivo. Apoiar o coletivo é mais importante que manter


tanto direitos individuais como coletivos.
b. Acreditar que o coletivo é uma vítima. Isso justifica qualquer
comportamento contra os inimigos do coletivo.
c. A crença de que o individualismo permite uma decadência perigosa e tem
efeito negativo no grupo.
d. Um forte senso de comunidade. A ―unidade e pureza deste coletivo são
forjadas por convicções em comum, se possível, ou por violência seletiva se
necessário‖.
e. Auto-estima individual está atrelada à grandeza do grupo. Paxton chamou
isso de ―sentimento de identidade e propriedade expandido‖.
f. Extremo suporte a um líder ―natural‖, que é sempre homem. Isto resulta em
um homem tomando o papel de salvador nacional.
g. ―A beleza da violência e da força de vontade, quando elas são devotadas ao
sucesso do grupo na competição Darwiniana‖, escreveu Paxton. A ideia de
um grupo naturalmente superior se encaixa na interpretação fascista do
Darwinismo.

A saga Star Wars consegue expressar estas características no modelo


político que representa o fascismo na saga, o império. Quanto à primazia do
coletivo, é evidente nos filmes discursos enaltecidos que justificam ações
radicais como a total substituição do modelo de governo, com a premissa de
sobrevivência do coletivo, ou seja, da galáxia.
Nesse sentido, realizar a vitimização do coletivo perante a existência de
oposição aberta fortalece na mente da sociedade o sentimento de ameaça à
estabilidade e ao bem coletivo, sendo assim justificadas como ―necessárias‖ as
medidas de combate à ameaça rebelde.
Garantir um forte senso de comunidade, como acontece no filme, alude à
pretensão fascista de promover sentimentos comuns a todos em relação ao
governo, de forma tão rígida a ponto de que seja totalmente aversivo se opor, ou
não ser influenciado por essa gama de ideias que envolve a sociedade ao modelo
político.
Na saga Star Wars, toda a figura do império gira em torno de Palpatine
(Lord Sidious), o qual trabalhou de formas manipulativas para ser apontado
como o governante que traria um fim à situação debilitada da galáxia e à ameaça
imposta pelo Conselho Separatista. Em nenhum momento foi passada alguma
imagem que não fosse carismática e polida do governante e da transição do
poder.
Esta preocupação pode ser evidenciada em vários discursos de Palpatine,
como por exemplo: ―para garantir a segurança e a estabilidade contínua, a
República será reorganizada no primeiro Império Galáctico! Para uma sociedade
segura e protegida‖.
No episódio VII, O Despertar da Força, a Primeira Ordem, que se ergueu
dos remanescentes do império caído, é a expressão da fria lógica de uma
sociedade altamente aristocrática. É demonstrado ainda enaltecimento pelo
poderio militar e por demonstrações de sua supremacia, no discurso do General
Hux, instantes antes de acionar uma arma de destruição em massa contra
planetas habitados, como na fala ― [...] Esta máquina feroz que vocês
construíram, sobre a qual nós estamos, vai trazer o fim ao Senado, e à sua amada
frota. Todos os sistemas remanescentes se curvarão à Primeira Ordem e
lembrarão deste como o último dia da República!‖.
Este discurso dissemina fortemente o raciocínio fascista da supremacia
de um grupo político sobre o outro, e o objetivo de sobressair-se assim como
aconteceu no momento da instauração do governo absolutista.
Portanto, o posicionamento extremista que do regime fascista, aponta que
o fascismo foi sem dúvida uma ditadura do grande capital. De acordo com
BERNARDO (2015, p.294), ―se tivesse sido apenas isto não se diferenciaria
substancialmente das formas parlamentares de domínio desse mesmo grande
capital.‖ Dessa forma, é necessário para compreender a importância primordial
da mobilização popular, mobilização esta que conforme BERNARDO (2015),
transportou para o meio operário os temas caracterizadamente nacionalistas das
esferas conservadoras e conferiu à direita um dinamismo político que até então
fora apanágio da base trabalhadora animada pela esquerda (p.294).
Por conseguinte, chega-se à conclusão de que o fascismo é uma forma de
comportamento político com características peculiares, tal como a preocupação
obsessiva com a decadência da comunidade, além do mais, esta é vista como
vítima, e para superar esta condição, necessita de unanimidade, no qual um
partido, de acordo com Paxton, (2004) de base popular formado por militantes
nacionalistas engajados, operando em cooperação desconfortável, mas eficaz
com as elites tradicionais, repudia as liberdades democráticas e passa a perseguir
objetivos de limpeza étnica e expansão externa através de uma violência
justificada e redentora, sem estar subordinado a limitações éticas ou legais de
qualquer natureza.
Nesse liame, a Saga Star Wars consegue demonstrar de forma acessível e
verossímil ao longo dos filmes e livros o quanto os mecanismos do fascismo
acima apresentados podem se tornar invisíveis aos olhos de um país que passa
por uma crise política e econômica, chegando a acolher o regime e confiar
totalmente no poder absoluto e tirano de um governo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo como problemática o seguinte questionamento: De que maneira a


abordagem de sistemas políticos nos filmes do Universo Star Wars contribuem
para a construção e desenvolvimento do pensamento crítico sobre o regime fascista
e sobre o regime republicano? Este trabalho objetivou esclarecer a abordagem
política apresentada na Saga Star Wars com o intuito de corroborar com a lapidação das
idéias a respeito dos regimes políticos apresentados, assim como buscou discutir e
apresentar as características primárias do regime fascista e seus impactos na sociedade
no geral.
Dessa forma observou-se que embora se trate de filmes e outras mídias, com teor
inicialmente de entretenimento, contém a representação de modelos reais de governo,
seu processo de instauração e suas consequências, proporcionando assim ao público de
maioria jovem uma oportunidade de pensar, refletir e criticar regimes políticos.
As análises propostas pela pesquisa levaram em consideração também que os
regimes políticos atuais, em sua maioria democráticos e republicanos apresentam
características fascistas e totalitárias, e portanto, a saga serve de alerta nos dias de hoje
para que se discuta e se repense essa questão.
Nesse sentido, é necessário conhecer e analisar os sistemas políticos como um
todo para que se pleiteie por um sistema que respeite, defenda e promova os direitos
humanos, haja vista que os impactos sociais que os governos inevitavelmente causam
podem desestruturar toda uma nação, assim como ocorreu em países que passaram pelo
totalitarismo e como alude a saga Star Wars em seus episódios.
Em suma, a história contada na ficção através do Universo Star Wars, faz um
paralelo com a realidade, traz uma crítica política forte sobre o regime totalitário
fascista que ocorreu na Itália, e conduz a um discernimento sobre o quanto a opressão e
poder concentrado nas mãos de um único líder é perigoso e pode levar o país para longe
da Democracia, assim como ocorreu à Itália ao receber o discurso do líder fascista
Benito Mussolini, que afirmava que:‖A liberdade é um cadáver putrefato.‖ e mediante
suas falas e os ideais que elas carregam, a população Italiana e tantos outros países
passaram a viver dias temerosos. De acordo com RAUSCHNING (1939) as massas só
se deixam conduzir quando estão fanatizadas, e dessa maneira, caso deixemos de lado
as denúncias, mesmo as mais veladas, o regime fascista encontra o local perfeito para
alojar-se e governar.
.
REFERÊNCIAS

ADIZES, Ichak Kalderon Adizes. Why is Fascismo on the Rise?, 2016.


Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/dr-ichak-kalderon-adizes-/why-
is-fascism-on-the-ris_b_9557664.html> . Acesso em 16 de jul de 2017.

BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: 2. ed. Brasil: Afrontamento, 2015.

GIL, Antonio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 4. ed. São Paulo:
Atlas, 2009.

LIMA, Juliana Domingos de. O que há de política na saga Star Wars, 2016.
Disponível em:< https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/12/23/O-que-
h%C3%A1-de-pol%C3%ADtica-na-saga-Star-Wars>. Acesso em 10 de jul.
2017.

LUCAS, George. Star Wars, a trilogia: esp. ed. Rio de Janeiro: Darkside
Books, 2014.

PAYNE, Stanley G. A história do fascismo: 2. ed. Espanha: Alianza, 1985.

PAXTON, Robert O. A anatomia no fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

SANTOS, Nadeje Pereira dos; JUNIOR, Enevaldo Hipólito de Moura.


CRÍTICA POLÍTICA NO UNIVERSO STAR WARS - A BUSCA PELA
REPÚBLICA E PELO FIM DO REGIME FASCISTA.. In: Anais da Mostra
de Pesquisa em Ciência e Tecnologia 2017. Anais...Fortaleza(CE) DeVry Brasil -
Damásio - Ibmec, 2017. Disponível em:
<https//www.even3.com.br/anais/mpct2017/47887-CRITICA-POLITICA-NO-
UNIVERSO-STAR-WARS---A-BUSCA-PELA-REPUBLICA-E-PELO-FIM-
DO-REGIME-FASCISTA>. Acesso em: 08/08/2017 às 01:55.
“APESAR DE VOCÊ AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA”:
Reverberações das lutas sociais na música brasileira

José Wellington de Oliveira10

GT: ARTE EDUCAÇÃO E HISTÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS


RESUMO
A música é uma das expressões mais variadas da humanidade. Faz parte dos
rituais religiosos e também dos pagãos; é utilizada em muitos momentos como
ferramenta de opressão, mas em outros ecoa a voz da resistência. Negros, mulheres,
LGBT‘s, pobres, estudantes e trabalhadores têm tido seus sussurros, transformados em
gritos por figuras de visibilidade local e/ou nacional que utilizam-se da arte para resistir
as violações que afetam seus corpos e comunidades. Artistas como Geraldo Vandré e
Chico Buarque tornaram-se símbolo de resistência contra a ditadura militar; Linn da
Quebrada, Elza Soares e MC Karol, ecoam nos dias atuais os gritos de negras, pobres
e/ou travestis marginalizadas e oprimidas pelo sistema social vigente. Este trabalho tem
como objetivo vislumbrar as contribuições de tais artistas para as lutas pela garantia de
direitos, assim como observar as reverberações que os movimentos sociais oferecem
para a composição e execução destas canções.

Palavras-chave: Direitos humanos. Música. Movimentos Sociais.

INTRODUÇÃO

―Azar, a esperança equilibrista/Sabe que o show de todo artista/Tem que


continuar‖: ecoava a voz de Ellis Regina no período da ditadura militar brasileira,
anunciando que a arte é expressão de resistência e de luta, na busca por uma sociedade
equânime e justa. Assim como ela, muitos compositores, cantores e músicos desafiaram
e desafiam as desigualdades sociais fazendo de sua voz, amplificação do sussurro das
classes mais invisíveis da sociedade. Do enredo do samba na Sapucaí, as estradas de
terra nos canaviais pernambucanos, onde dançam e cantam os Caboclos de Lança; das
letras e melodias doces e sutis da Música Popular Brasileira, ao escracho necessário das
letras de Funk, há muito mais do que notas, melodias e letras, há histórias, sujeitos e
identidades.

10
Centro Universitário do Vale do Ipojuca - UNIFAVIP/DeVry, graduando em psicologia,
wellingtonpsi83@gmail.com.
A música é uma das expressões artísticas mais antigas da humanidade, tendo no
corpo ponto de partida para a execução de ritmos e melodias, como é o caso dos rituais
indígenas na América do Sul, em que a percussão é marcada pela batida dos pés no chão
e onde a musicalidade assume caráter central no elo entre o terreno e o transcendental,
oferecendo uma rica cadeia de ritmos e cânticos direcionados as ações cotidianas e aos
eventos excepcionais (BASTOS, 2007).
A junção das culturas no processo de colonização brasileiro amplificou ainda
mais as manifestações artísticas de cunho musical, que passaram a apresentar novos
ritmos, cores, passos, versos e letras, além de oferecer a possibilidade de atores sociais
emergirem em meio aos acordes e batuques (BRANDÃO, 2009). Na capoeira, no
maracatu, no reisado, no cavalo-marinho, no pastoril, no bumba-meu-boi ou nas demais
manifestações populares nacionais observamos figuras que tem no ritmo uma das únicas
formas de expressão de sua subjetividade. Seja no agricultor da zona rural
pernambucana, que borda a gola de suas próprias vestimentas carnavalescas, ou no
negro suburbano que associa os passos de hip hop aos versos que ele mesmo cria,
vemos a imagem de populações marginalizadas, tomando voz e forma através da
música.
Para além das manifestações culturais populares, a música costuma apresentar
figuras que tomam o lugar de porta-voz de um grupo ou de uma realidade, transmitindo
suas reivindicações em forma de melodia. Surgem então nomes que dão voz ao que o
sistema opressor quer calar, que tomam significantes e sentidos, muitas vezes oriundos
dos movimentos sociais e lançam-nos através da arte, ora por via de denúncias ora de
pedidos de socorro.
Foi assim no período de ditadura militar quando nomes como Chico Buarque,
Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Ellis Regina e Gilberto Gil, ecoaram contra a censura,
a tortura e a violência (NAPOLITANO, 2004); e é assim quando Elza Soares usa sua
voz a favor do feminismo e das pautas raciais e de classe (LOPES, 2010) ou quando
Linn da Quebrada denuncia a violência transfóbica no Brasil, através da música
(TAKARA, 2017).
O objetivo central deste trabalho é portanto, tomar como referência ícones da
música brasileira, buscando associar suas contribuições para os grupos minoritários
(enquanto representatividade) assim como, analisar de que forma as reverberações dos
movimentos sociais ecoam na maneira de compor e cantar destes artistas, identificando
os elos entre o que se vive e aquilo que é criado a partir daí.
Na tentativa de tornar as explanações mais didáticas, as discussões estarão
divididas em eixos que são propostos a partir de reflexões de recortes sociais. Abordar-
se-ão as contribuições musicais no período da ditadura militar brasileira, e do atual
governo assim como os recortes de classe, etnia, gênero e sexualidade, esboçados ao
longo da história, dando ênfase aos artistas que se encontram em destaque na atualidade.
Este trabalho, traz como justificativa central a necessidade de pensar os direitos
humanos a partir de outras vertentes que não apenas as atreladas ao campo científico. O
conhecimento artístico diz muito dos contextos históricos nos quais está inserido,
afastar a compreensão de direitos humanos, das manifestações artísticas é negligenciar
vivências e experiências ímpares que apontam para resistência e luta de um povo. A arte
é fluida e muitas vezes escapa aos mecanismos repressivos que regimentam outras
esferas do comportamento; nas manifestações subjetivas vemos emergir vozes e gritos
que em forma de versos, ritmos e sons oferecem saídas aos recortes populacionais de
exclusão.
A metodologia utilizada neste trabalho é de natureza qualitativa,
comparada por Denzin e Lincon (2006) como a prática de um tecelão de colchas, que
reúne em sua composição os retalhos de diversos espaços e discussões, compondo uma
figura multifacetada e diversa. Para composição deste trabalho foi utilizada uma
pesquisa bibliográfica na plataforma virtual Scielo, através de marcadores como: LGBT,
negro, mulheres, classe, ditadura e impeachment, atrelados a: música e cantores,
identificando assim trabalhos que dialogam sobre música como instrumento de
revolução social, além disso foi realizada uma pesquisa na discografia dos cantores
citados nas pesquisas, podendo pois, identificar composições que trazem em seu sentido
poético as reivindicações dos movimentos sociais.

“Caminhando e cantando”: A música na Ditadura Militar


O século XX é marcado na história mundial, pelos inúmeros processos de
violência e degradação acontecidos em torno do planeta. A memória evoca guerras
mundiais, nas quais grupos foram massacrados, dizimados e torturados com aparatos
estatais. A nível nacional, carregamos marcas também tenebrosas, onde durante anos, a
população se viu censurada, ameaçada e impotente frente às decisões arbitrárias de
militares que tomaram o poder através de um golpe, instituindo a ditadura que limitou o
acesso as informações e que em seu período mais sombrio, torturou e matou inúmeros
militantes das causas sociais, alguns destes desaparecidos até hoje (SILVA FILHO,
2008).
Apesar dos fortes mecanismos de violência na ditadura, amplificados com a
instituição do AI- 5, que oferecia ao presidente a possibilidade de opressão e
perseguição de seus opositores, sendo a execução de seus atos superior ao poder
judiciário, sempre houveram frentes de resistência. Na surdina, nos becos, guetos,
porões e nos palcos, no caso dos artistas, os insatisfeitos utilizavam de suas artimanhas
para desafiar o governo, o que em muitos momentos culminou em exílios, investigações
infundadas, censura, tortura e/ou morte (COTRIM, 2005).
O cenário musical foi um dos grandes inimigos dos governos da época, tanto
pela possibilidade de perpetuar mensagens de luta e resistência de maneira subliminar, o
que muitas vezes burlava a censura, quanto pela repercussão e aglomerados de pessoas
nos shows e festivais promovidos ora pelos artistas, ora pelos movimentos estudantis,
que foram uma das maiores frentes de resistência ao regime ditatorial. Na tentativa de
calar artistas e consequentemente seu público, músicas eram censuradas, shows eram
vigiados e os artistas constavam nas linhas de investigação da DOPS (Delegacia de
Ordem Política e Social), muitas vezes sendo associados ao partido comunista
(NAPOLITANO, 2004).
A partir do ano de 1964, a Bossa Nova e futuramente, a MPB (Música Popular
Brasileira) como um todo, passam a servir de válvula de escape da insatisfação popular.
As canções de ritmo típico brasileiro, até então perpassadas pela voz da elite, falando
das belezas naturais e da boemia, passam a tomar outros direcionamentos nas
composições de Chico Buarque, Sérgio Ricardo e Chico de Assis, artistas oriundos das
universidades da época, como aponta César (1990).
Sendo mais fácil produzir suspeitas do que provas, os órgãos investigativos,
mantinham tais artistas sobre vigilância todo tempo, criando uma sensação de suspeita
em muitos momentos superior aos ideais dos artistas. A cultura de um modo geral era
analisada com muito afinco, pois segundo os documentos da época era através das
manifestações culturais que infiltravam-se os subversivos, ditos comunistas. O medo
das aglutinações populares lançava os festivais musicais, em especial aqueles sem
ligação com a grande mídia apoiadora do golpe, nas peças acusatórias, que continham
desde denúncias de subversão dos artistas ao cantar músicas censuradas ou dialogar de
forma reacionária à participação de investigados na plateia, sendo analisado qualquer
contato dos artistas com tais pessoas (NAPOLITANO, 2004).
Zan (2001) aponta que figuras como Chico Buarque, Gonzaguinha, Milton
Nascimento, dentre outros foram representantes do que se pode chamar de romantismo
revolucionário, utilizando suas composições e sua voz a serviço do povo e contra as
investidas autoritárias da ditadura, sofrendo com as acusações e fortes represarias.
Como podemos ver no trecho de um informe datado de 1968:
A Música Popular Brasileira vem se constituindo num dos principais
meios de cisão psicológica sobre o público, desenvolvida por um grupo de
cantores e compositores de orientação filo-comunista, atuando em franca
atividade nos meios culturais. Dentre os principais agentes desse grupo
destacam-se: FRANCISCO BUARQUE DE HOLANDA, EDU LOBO,
NARA LEÃO, GERALDO VANDRÉ, GILBERTO GIL, CAETANO
VELOSO, MARILIA MEDALHA, VINÍCIUS DE MORAES, SIDNEY
MULLER, GUTEMBERG, MILTON NASCIMENTO, etc. (APERJ, 1968)

O trecho acima é apenas um, dos vastos informes e denúncias direcionados a


classe artística da época. Alguns destes nomes foram veementemente perseguidos, em
muitos casos exilados, como Caetano Veloso, noutros vendo-se forçados a abandonar a
carreira artística, como Geraldo Vandré, taxado de comunista e tendo sua vida
investigada, sendo levantadas suspeitas infundadas sobre suas visitas ao exterior e sua
influência em possíveis revoluções.
Canções como: Cálice e Apesar de você de Chico Buarque, Aroeira e Pra não
dizer que não falei das flores de Geraldo Vandré, O bêbado e a Equilibrista cantada
por Elis Regina que dialogam diretamente com o regime, dentre outras composições e
interpretações de artistas como: Gonzaguinha, Maria Bethânia, Clementina de Jesus,
Gal Costa, MPB-4, Peninha, Gilberto Gil, Milton Nascimento, dentre outros, eram
entoadas pelos resistentes, muitas vezes irritando o governo que aplicava censuras
incabíveis ou levantava suspeitas de mensagens subliminares, tornando a vida dos
artistas uma constante investigação. Havia ainda os casos em que mais preocupavam as
declarações dos cantores que suas composições, como foi a situação de Caetano Veloso,
acompanhado de perto pelas entidades investigativas, após aparições e declarações
públicas consideradas reacionárias (NAPOLITANO, 2004).
―Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho num pode andá
Ele puxa no bico inté mata.‖11

“Eu não abro mão do que sonhamos juntos”: O atual governo do país
Em 1º de janeiro de 2011, o Brasil via, em transmissão midiática extensiva, a
primeira presidente mulher do país ser empossada. Aquele momento representava um
avanço significativo na história do país, que durante décadas negou os direitos políticos
das mulheres, sendo até hoje falho em representatividade política em todas as esferas. A
―política para todos‖ ainda faz parte de chavões e marketings dos partidos políticos, não
tendo efetividade prática, visto que o congresso nacional, por exemplo, é composto
majoritariamente por homens, brancos, de meia idade (MACHADO et. al., 2016).
A chegada de Dilma à presidência da república foi bastante controversa, tendo
sido alvo de várias críticas, muitas vezes justificadas em discursos machistas que
questionavam sua capacidade de governabilidade, baseada em estereótipos que a
inferiorizavam enquanto mulher. Apesar das controvérsias no ano de 2014, em
campanha acirradíssima a presidente foi reeleita em segundo turno, derrotando o
candidato ligado aos partidos alinhados aos ideais da direita. A partir de então vimos
emergir um novo cenário, onde a vitória foi inúmeras vezes questionada pelos seus
11
Canção escrita por João do Vale e José Cândido e interpretada por Maria Bethânia em 1995,
utilizando a analogia do carcará ao sistema ditatorial vigente.
opositores, que não satisfeitos com o resultado passaram a apoiar a retirada da
presidente democraticamente eleita.
Viu-se no ano de 2016 uma massiva movimentação, que com o apoio da mídia
apontada por Abramo (2016) como instrumento de manipulação a serviço do capital,
encabeçou um processo de impeachment, denunciado pelos movimentos sociais e pelos
partidos ligados diretamente as pautas destes movimentos, como golpe de estado. Na
culminância de um processo cheio de falhas, não por inconstitucionalidade, mas por
manipulação partidária e midiática, Dilma Vana Rousseff foi destituída de seu cargo em
agosto do mesmo ano, assumindo o até então vice-presidente Michel Temer, que já
havia assumido como presidente interino, durante o processo investigativo (RAMOS et.
al., 2016).
O novo governo, alinhado a outros ideais, passou a encabeçar reformas, usando
como justificativa a crise econômica existente no país. Reformas como a do ensino
médio, trabalhista, da previdência, dentre outras foram/são as pautas de maior
repercussão na Câmara dos Deputados e no Senado. Desalinhados com os movimentos
sociais, tais ações têm ocasionado repercussões cada vez mais amplas, mobilizando
intervenções e atos de resistência, principalmente das minorias políticas, que sentem-se
invisibilisadas diante do novo governo.
Como em todo período conturbado da história do país, a movimentação artística
passou a tomar um espaço de resistência. Vimos por exemplo, a forte repercussão da
extinção do Ministério da Cultura, que após a pressão popular, acalorada por artistas de
diversos segmentos foi repensada. Vimos, não nas letras, mas nos pronunciamentos
públicos de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e Tico Santa Cruz a
insatisfação, que partia das ruas, nos atos contra o governo de Temer.
Os grandes atos de resistência foram abraçados por cantores como: Chico César,
Pitty, Emicida, Criolo, Maria Gadú e Tulipa Ruiz, além dos artistas locais de diversas
regiões do país, como é o exemplo de Gabi da Pele Preta, na cidade de Caruaru-PE. Em
meio à falas políticas, discursos dos movimentos sociais e de políticos aliados,
ecoavam-se músicas de resistência, algumas oriundas das lutas das mulheres, dos
negros, dos LGBT; outras da época da ditadura militar dialogavam com o momento
atual, ainda haviam as paródias que eram utilizadas como sátiras as figuras e discursos
proferidos pelas figuras apoiadoras do governo.
Outros artistas utilizaram/utilizam sua influência musical para promover
reflexões em meio aos seus shows particulares, como é o caso de Lenine, Baiana Sister,
Ney Matogrosso, além dos shows de artistas como Elba Ramalho 12, que apesar de não
compactuar com manifestações oriundas da plateia, e não esboçar opiniões sobre o atual
momento político, viu em alguns shows a repercussão do acalorado ―Fora Temer‖,
disseminado por todo país, chegando a recriminar a ação e causar repercussão, em
especial nas redes sociais.
Esse momento da história do país, ainda encontra-se longe de um desfecho,
sendo a pauta de discussão mais recente a votação do relatório que interrompe as
investigações por crime de corrupção passiva proferidas contra o atual presidente.13
Certamente veremos ecoar das ruas mais gritos de resiliência, mais versos de luta e
melodias de indignação, pois a arte tem se mostrado veículo de resistência em diversos
contextos sociais, principalmente naqueles em que a opressão ameaça se amplificar.

―Não queremos menos do que já tivemos


Nós queremos muito, muito, muito mais
Toda Liberdade, Amor, Paz, Respeito
E ninguém por isso vai andar pra trás‖14

“Ai o meu guri, olha aí!”: A desigualdade social brasileira

O Brasil é um país de dimensões continentais, com população aproximada de


duzentos e sete milhões de habitantes.15 Infelizmente boa parte desta população não tem
acesso às condições dignas de sobrevivência, sendo a distribuição de renda, defasada e
injusta e muitos dos direitos negados, em alguns casos ferindo inclusive, o direito à

12
Reportagem disponível em: <http://www.parlamentopb.com.br/Noticias/?elba-ramalho-
repreende-fora-temer-e-discute-com-petista-durante-show-23.04.2017>
13
Reportagem disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/votacao-denuncia-temer-
camara.ghtml>
14
Trecho de canção de Chico César, refletindo sobre o contexto do processo de golpe vivido no
ano de 2016.
15
Projeção estimada pelo IBGE em 04 de agosto de 2017
http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/
vida. Análise aprofundadas do cenário nacional nos últimos anos apontam uma queda
na disparidade da desigualdade, mas diante da discrepância essa redução é mínima.
Barros, Foguel e Ulisseia (2006) apontam que, mesmo com avanços entre os
anos de 2001 e 2005 o Brasil permanecia entre os países mais desiguais do mundo,
havendo concentração de boa parte da renda entre poucas famílias do país, enquanto a
maior parte da população concentrava uma pequena parcela, havendo casos em que as
condições ultrapassam a precariedade.
Souza (2004), reflete sobre a naturalização da desigualdade social, refletindo que
as práticas políticas nacionais criam sub cidadãos, não oferecendo a estes a
possibilidade de emergir e progredir economicamente, uma vez que são as classes
menos abastadas da população que recebem os piores serviços de educação, que não
tem acesso aos serviços de saúde de forma adequada e que consequentemente ocupam
no mercado de trabalho os espaços de menor status e remuneração.
Há muitas tentativas de incluir as pessoas menos favorecidas financeiramente
nas políticas públicas, oferecendo-lhes condições diferenciadas, presando pelo princípio
da equidade, mas em muitos momentos essa inclusão se dá numa perspectiva que
Sawaia (2002), chamaria de perversa, uma vez que oferecem-se oportunidades, como a
obrigatoriedade da matricula das crianças ou possibilidades de emprego para os jovens,
mas quando vislumbra-se a qualidade destes serviços, nos deparamos com o despreparo,
seja dos profissionais que não estão aptos ao trabalho frente a comunidades carentes, a
escassez de materiais ou as condições insalubres de residência e trabalho das populações
carentes.
O acesso aos grandes centros culturais acaba sendo utópico para maior parte da
população que em geral acaba tendo acesso apenas ao que é veiculado pelas grandes
mídias, conteúdos em muitos momentos dispares com a realidade local. Tais barreiras,
não impedem que os guetos, as favelas e os becos construam sua própria forma de
expressão, muito pelo contrário, em muitos momentos é a opressão, a marginalidade e
abjeção que serve de eixo motriz para resistência.
As músicas de Funck e Rap, são fortes exemplos de resistência em meio ao
caótico cenário de desigualdades. Zeni (2004) reflete que em muitos momentos as
músicas de Rap falam de uma realidade na qual os cantores encontram-se inseridos,
enquanto falam também de um processo de construção social que remonta o processo de
colonização onde se matava em nome do ouro e da prata.
Grupos com perfis similares aos Racionais MC‘s, em músicas como: Diário de
um Detento, Jesus Chorou e Negro Drama refletem sobre a realidade da vida nas
comunidades periféricas e suburbanas de nosso país, levantando a bandeira da crítica
social que aponta para os problemas oriundos da desigualdade de classe, mas que por
terem sido naturalizados acabam passando despercebidos frente as lentes dos olhares
dos gestores públicos, da mídia e muitas vezes da sociedade num geral.
O Funck é outro ritmo de grande reverberação das críticas sociais. Dos mais
antigos como Cidinho e Roca, com o famoso hit: Rap da felicidade, aos nomes atuais
como a MC Karol em letras como: Delação Premiada e Não foi Cabral, vemos a
insatisfação frente as desigualdades vividas nas favelas de todo país. Críticas a justiça
seletiva, que prende e mata negros e pobres, além de mensagens de otimismo e
esperança frente a uma realidade que parece não mudar, mas da qual não se desiste, são
algumas das temáticas abordadas pelos cantores e cantoras deste ritmo. A voz da favela
se faz ouvir dentro e fora de seu território, lançando os olhares cegos pela naturalização
para a realidade desigual de nosso país.
As desigualdades sociais brasileiras também já foram cantadas por inúmeros
outros ritmos. Algumas músicas de forró e baião falavam de uma realidade de exclusão
e necessidade de sua época, como foi o caso de canções como A triste Partida de Luiz
Gonzaga, retratando a necessidade de abandono das terras de inúmeras famílias
nordestinas do século passado e ainda vividas de formas reeditadas na atualidade. Ou na
música Cidadão do paraibano Zé Ramalho que nos leva a reflexão sobre a exploração
da mão de obra, muitas vezes em condições análogas à escravidão. Há ainda, canções
como Meu Guri, de Chico Buarque, interpretada também por Elza Soares que retratam
a vida de muitos garotos nos subúrbios brasileiros, que mesmo encontrando meios
alternativos de emergir economicamente, acabam calados pelas lápides ou grades de
uma prisão.
―É mais uma boca
Dentro do barraco
Mais um quilo de farinha
Do mesmo saco
Para alimentar
Um novo João Ninguém
A cidade cresce junto
Com neném‖16

“A carne mais barata do mercado é a carne negra”: As cores da música negra


No Brasil o racismo é considerado crime, entretanto suas nuances ultrapassam os
ditames legais e estão inseridos nas relações de forma naturalizada. Camino et. al (2000)
aponta, em uma pesquisa com universitários, que quase todos os entrevistados
reconheceram a existência do racismo, mas se anularam da responsabilidade por ele. Tal
comportamento dissemina-se nas piadas, letras de música, charges, discurso de bar,
comentários em sala de aula e muitas vezes não se nota o reforço aos estereótipos que
lançam sobre a população negra as reverberações de uma sociedade escravocrata.
Criou-se um mito de que o fato do país ser composto de forma miscigenada
inviabiliza a existência do racismo, entretanto a realidade social dos negros aponta para
outras dimensões. Basta tomar como referência o cenário midiático, no qual as figuras
negras costumam aparecer como coadjuvantes, ocupando os papeis de empregadas,
garçonetes, motoristas, ou figuras subalternas aos resquícios da Casa Grande. A
realidade nacional não é diferente, os cargos de chefia e as profissões de maior prestígio
e status são geralmente ocupadas por pessoas brancas, enquanto os negros são
associados aos trabalhos que exigem maior esforço físico e que oferecem menor
remuneração (ARAÚJO, 2008).
Um dos precursores do mito da democracia racial foi Gilberto Freyre (2005)
uma vez que em análise da realidade estatudinidense, relacionando os componentes
sociorraciais e a importância da mesclagem de etnias para a composição da população
brasileira, afirmava que o Brasil continha vários aparatos de injustiça, mas estaria livre
do preconceito racial. Gomes (2010) apresenta que o exposto por Freyre foi e é refutado
pelos dados estatísticos de participação social e econômica de negros em comparação
aos brancos. Foi pensando nestes espaços de negação de direitos, camuflados no mito da

16
Trecho da música Relampiano de Lenine, numa crítica a realidade de famílias atingidas
diretamente com os efeitos da desigualdade social.
miscigenação que passaram a surgir políticas públicas específicas para esta população,
como é o caso das cotas raciais em concursos e universidades.
Apesar dos avanços no que concerne a inserção da população negra nos entraves
das políticas públicas, o racismo mantém sua perpetuação, que vez ou outra se faz
evidente nos noticiários e jornais. Para além dos casos que ganham notória repercussão
há aqueles onde a vítima se quer entende o que está acontecendo, ou que não sabe o que
fazer com isso. O racismo está tão naturalizado, que a cor das favelas e do cárcere
parece ser entendida como mera coincidência.
É em meio ao preconceito diário que constrói sobre a figura negra estereótipos
de marginalidade e crime, e de uma sociedade que lança para esta população as
migalhas que caem das mesas dos brancos e afortunados, que vemos surgir gritos de
resistência, como a voz estridente de Elza Soares quando canta A carne. Elza carrega
consigo os estereótipos de ser mulher, negra, oriunda da classe pobre, vítima do
preconceito racial e do machismo, sentindo na pele o que é ser mulher negra, no ventre
o peso de sua descendência, que carregará marcas parecidas, e no sangue a pulsação que
exige luta Elza faz das cordas vocais amplificadores de sua dor, usando a metáfora do
açougue, para alertar sobre as injustiças vividas pela população negra que como retrata
trechos da música: ―Que vai de graça pro presídio/ E para debaixo do plástico/Que vai
de graça pro subemprego/E pros hospitais psiquiátricos.‖
Dentre as diversas manifestações de reivindicação contra o racismo, temos a voz
de Gabriel Pensador que denuncia as mazelas deste comportamento aversivo no Rap
Racismo é Burrice. A música fala aquilo que teorias, como a psicologia social, vem
discutindo desde sua concepção. Lança para sociedade reflexões que vão além das
justificativas racionais que apontam a não existência deste tipo de comportamento,
reflete sobre papeis sociais, identidade, representações grupais, dentre outras questões
pertinentes a compreensão do mecanismo do racismo em nosso país.
Recentemente vimos emergir, de diversos ritmos, expressões que dialogam com
a resistência negra de forma clara e evidente, é o caso da cantora Larissa Luz que em
seu álbum intitulado: Território Conquistado, realiza reflexões com base na
interseccionalidade das reverberações do machismo e do racismo. Músicas como:
Descolonizada, Bonecas Pretas e Letras Negras aponta para a experiência de ser
mulher negra na sociedade brasileira. Larissa evoca nomes como o de Carolina de Jesus
e faz parcerias com Elza Soares, lançando para as novas gerações a reflexão sobre a
importância da representatividade, nas vitrines, ruas e na música.
No Hip Hop não tem sido diferente, nomes como o da MC Soffia surgem para
lançar a reflexão sobre a não representatividade negra em nossa sociedade. Uma criança
que canta para outras crianças, passando mensagens de resistência, autoestima e
reconhecimento da cor e dos traços de sua etnia, como podemos ver nas músicas:
Menina Pretinha e Minha Rapunzel de Drad, é fruto das lutas de muitas negras e
negros que exigiram reconhecimento e o construíram e ainda constroem quando este lhe
é negado. Além destas podemos citar cantoras como Karol Conka, MC Karol, Juçara
Marçal e Ellen Oléria, que fazem de suas performances explanações sobre a realidade
negra do país.
―Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
De querer cabelo liso
Já tendo cabelo louro
Cabelo duro é preciso
Que é para ser você, crioulo.‖17

“Mas sou minha, só minha e não de quem quiser”: A música cantada pelas
mulheres

A história brasileira, fruto das expedições marítimas europeias, que invadiram as


terras indígenas e trouxeram a força os africanos, carrega consigo resquícios de
sociedades fundadas na égide de modelos em que o homem exerce o poder e o controle
e a mulher é subserviente e obediente, ocupando os bastidores das grandes ações de seus
pais, irmão e/ou companheiros (PRADO, 1997). O protagonismo feminino só é atingido
nestas sociedades a partir de muita luta, reinvindicações e em muitos casos de mortes, a
realidade ainda não é muito diferente, basta olhar os cargos de chefia, o congresso
nacional e a jornada de trabalho feminina, para ter uma ideia da reedição do machismo
na atualidade (COTRIM, 2005).

17
Trecho da música Sarará Miolo de Gilberto Gil, realizando uma crítica aos padrões de beleza
baseados no modelo eurocêntrico.
Outro dado que aponta para as fragilidades do país para com as mulheres é o
índice de assassinatos. O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial de
feminicídio, tal fato culminou na elaboração da Lei Maria da Penha, que não deve ser
analisada como um ponto de partida das discussões de gênero, uma vez que esta é fruto
de outras reivindicações sociais, alinhadas aos movimentos sociais, mas também não
pode ser considerada um ponto de chegada, uma vez que passados anos da instituição da
Lei Maria da Penha, os índices de violência doméstica têm continuado alarmantes e
outras formas de preconceito de cunho sexista e machista continuam se apresentando
(CAMPOS, 2015).
As mulheres continuam sendo invisibilisadas na política, quando apesar de
serem maior parte da população ocupam uma porcentagem irrisória de mandatos; no
mercado de trabalho, uma vez que continuam recebendo menos que os homens que
realizam a mesma função, com o mesmo nível de especialização e também nas
produções acadêmicas hegemonicamente escritas por homens e muitas vezes
legitimando a disparidade entre os gêneros. Como aponta Haraway (1995) é preciso
produzir conhecimentos que busquem adequar-se à realidade social das mulheres, os
saberes precisam encontrar localização que parta das camadas oprimidas da sociedade e
não na lógica inversa, como grande parte das produções do último século.
Este artigo esteve perpassado pela evocação de nomes femininos que fizeram e
fazem a diferença na música brasileira. Seja no período ditatorial com nomes como o de
Ellis Regina e Nara Leão; na frente de resistência ao atual momento político do país,
como é o caso de Maria Gadú e Gabi da Pele Preta; na luta de classes onde ecoa a voz
de MC Karol ou na resistência negra onde se sobressaem nomes como Elza Soares,
Larissa Luz e MC Soffia. Necessitamos ainda rememorar as mulheres que fazem uso de
suas letras para reforçar o lugar feminino no mundo, negando a opressão e galgando
caminhos de uma sociedade mais justa e equânime.
Muitas das músicas produzidas e repercutidas em cenário nacional, seja no forró,
no sertanejo, no Funk ou MPB, apresentam em suas letras conteúdos de cunho machista
e sexista. Bergamini Júnior (2008) em análise das canções de Chico Buarque realiza um
levantamento e aponta que em muitas delas a mulher ocupa um lugar de inferioridade e
servidão; o mesmo ocorre com outros ritmos e com outros artistas que tornam em suas
letras a mulher num objeto, ou numa propriedade, lançando sobre seus corpos uma
sexualização exacerbada, que é usada como legitimadora de abusos dos mais diversos.
Na contramão destas canções vemos emergir cantoras que usam a voz para
mostrar que podem ser o que quiserem, independente das vontades da população
masculina. O Funk é um dos exemplos desta mudança de posicionamentos; em muitas
letras da década passada a mulher era apontada como objeto; na atualidade cantoras
como a Valesca Popozuda tem invertido esta ordem, mostrando com seus versos
satíricos e escrachados que o espaço da mulher se ampliou e que as normas e bons
costumes que tolhem seus desejos precisam ser ultrapassados. Músicas como Quero te
dar, Traz a Bebida que Pisca e Tá pra nascer homem que vai mandar em mim são
exemplos desta mudança, uma vez que expõem os desejos sexuais femininos e
dissociando-os da lógica sexista que perpassa estes pelo aval masculino.
O mais recente álbum de Elza Soares, A mulher do Fim do Mundo é outro
exemplo que dialoga com a luta feminina, as canções do seu 34º trabalho apontam para
a necessidade de realizar denúncias de violência doméstica e de se fazer mulher
independente dos limites impostos pela opressora sociedade machista. Aos 80 anos Elza
em canções como Mulher de Vila Matilde e Mulher do Fim do Mundo, além de seu
posicionamento público diretivo e contundente sinalizam que a luta por uma sociedade
mais equânime está ainda em processo, é preciso cantar até o fim, para que todas as
mulheres escutem e a partir de então se façam ouvidas.
Algumas bandas também têm apresentado postura crítica em suas canções é o
caso da música Triste, louca ou má da banda Francisco, el Hombre. A canção reflete
sobre os papeis sociais direcionados as mulheres, refletindo as possibilidades de
rompimento com a construção cultural vigente. Há ainda cantoras como Ellen Oléria
que fazem a intersecção do feminismo com a luta contra o racismo, refletindo nuances
de ambos os espaços de segregação, um exemplo claro é a música Antiga Poesia, na
qual há uma forte reflexão sobre as mulheres negras da América Latina e do Caribe.
Poderíamos ainda citar a música 1º de julho de Cássia Eller; Pagú eternizada por
Zélia Ducan e Rita Lee; 100% feminista, resultante da parceria de MC Karol
com Karol Conka, Desconstruindo Amélia, de Pitty, dentre outras.
―Ô moça, ontem eu tava caminhando
Perto daquela praça e um homem me parou
E me deixou marcas
Mas não eram de batom
Não eram de batom‖18

“Ninguém vai poder querer nos dizer como amar: Artistas LGBT‘s

O número de LGBT‘s assassinados no Brasil no ano de 2016 foi o maior desde


que se iniciaram os registros, há 37 anos. Os dados do Grupo Gay da Bahia apontam
que foram registrados 343 assassinatos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros,
havendo ainda alguns casos isolados onde foram assassinadas pessoas próximas,
companheiros de travestis ou sujeitos que defenderam ou foram confundidos com
LGBT‘s. Estes números ultrapassam os índices dos 13 países do Oriente Médio, onde
ser LGBT pode ter como punição a morte (MOTT et. al. 2017).
Nogueira (2016) em análise dos dados da Transgender Europe, postula que entre
2008 e 2015 foram assassinadas na América do Sul aproximadamente 1500 travestis e
transexuais, destes 802 casos foram registrados no Brasil. A Rede Trans Brasil, por sua
vez, registrou no ano de 2017, até o dia 05 de agosto um número de 109 assassinatos,
além de 44 tentativas de homicídio e 3 suicídios. Tal realidade aponta que ser travesti no
Brasil é enfrentar diariamente batalhas, que vão desde o reconhecimento familiar, a
permanência na escola e o ingresso no mercado de trabalho, sem contar os dilemas
pessoais oriundos na dificuldade de aceitação da própria identidade.
A realidade opressora vivenciada pelos LGBT‘s encontra-se difusa em diversos
aspectos da vida. Mulheres lésbicas por exemplo, muitas vezes são violadas com a
justificativa de métodos corretivos, ou são desrespeitadas nos procedimentos de saúde
ginecológica (SANTOS et. al., 2010); os personagens homossexuais na mídia brasileira
são representados sempre de forma cômica, utilizando a orientação sexual como forma
de ridicularizar a população e perpetuar estereótipos (BELELI, 2009); as escolas,

18
Trecho da música Disk Denúncia de Nina Oliveira, refletindo sobre a responsabilização lançada
sobre as mulheres em caso de abusos machistas.
penitenciárias, serviços de assistência social e saúde, assim como a política num todo
ainda encontram-se despreparadas para dar conta das demandas da população LGBT.
Nos últimos anos, vimos emergir na música brasileira personalidades que
reivindicam direitos igualitários, assim como representatividade política e midiática.
Seja com letras que satirizam a realidade social de LGBT‘s, com críticas ao status quo
ou perpassando mensagens de tolerância e respeito o cenário musical vem se
modificando e as figuras, ditas estranhas têm alcançado notória visibilidade, mesmo que
atravessadas pelos mecanismos de opressão e repressão atuantes em diversas esferas.
Gonçalves (2016) realiza um apanhado histórico sobre a representatividade
musical LGBT no Brasil, para tal nos leva a refletir sobre quantos nomes e
personalidades que escreveram ou ecoaram canções que dialogam diretamente com o
movimento e que foram esquecidos, ou silenciadas. Uma destas artistas é Tuca que em
1974 já cantava sobre relações nada convencionais para sua época, como é o caso da
música Girl.
Canções famosas como Geni e o Zepelim, de Chico Buarque já traziam a
reflexão sobre o lugar das travestis na sociedade de sua época, não muito diferente dos
dias atuais. Caetano Veloso por sua vez trouxe em tons discretos eu líricos masculinos
realizando declarações a outros rapazes, como é o caso da canção Amor mais que
discreto. Outra figura de notoriedade é Ney Matogrosso que com suas performances,
rompia com os limites dos estereótipos de gênero, usando da música para expressar sua
liberdade, apesar de seu discurso muitas vezes interpretado como desserviço das causas
sociais.19 Além destes, temos no cenário musical figuras assumidas lésbicas ou
bissexuais, como Anna Carolina, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto, Maria Gadú,
Sandra de Sá, dentre outras,
Rompendo com os padrões até então expostos de forma muito sutil pela
musicalidade brasileira, vemos na última década surgir um grupo de novos cantores que
rompem com os estereótipos e barreiras de gênero e sexualidade, ora nas letras e clipes,
como é o caso de Johnny Hooker nas músicas Amor Marginal, Flutua e Volta; e de

19
Reportagem disponível em: <http://br.blastingnews.com/tv-famosos/2017/07/que-gay-o-caralho-
sou-ser-humano-desabafa-ney-matogrosso-001865331.html>
Silva nas músicas Beija Eu e Feliz e Pronto; ora no seu posicionamento político,
postura de palco e identidade desviante da norma estabelecida, como é o caso dos
cantores Liniker e Lineker.
Vemos ainda figuras como Pablo Vittar e os integrantes da Banda Uó, formada
por dois gays e uma mulher transexual, que tem ganhado visibilidade com suas músicas
dançantes, ou cômicas, tendo Pablo alcançado um espaço, outrora impensado para uma
Drag Queen no Brasil, além das produções mais reflexivas como a música
Indestrutível, que aponta para as dificuldades oriundas do processo de reconhecimento
de sexualidade ou identidade.
Outra característica interessante é que vimos surgir várias cantoras transexuais,
fazendo uso de sua voz para denunciar a violência transfóbica vivenciada no país.
Nomes como a Mulher Pepita, Lia Clarck, Candy Mel e Linn da Quebrada têm
representado as travestis e transexuais. Linn tem ousado em suas letras críticas como
Enviadecer, Mulher, Bixa Preta e Talento. Nelas Linn abusa da sátira, para
escancarar o universo de opressão vivenciados por travestis de todo país, em especial
aquelas oriundas dos subúrbios e de cor de pele escura. A cantora tem ido além das
críticas nas músicas tendo se posicionado em diversas entrevistas e programas,
apontando suas impressões sobre a diversidade de gênero e sexual, sendo apontada
como uma artista inovadora e fluída por autores como Takara (2017).

―Os meus abismos quer habitar


E meu Olimpo vai alcançar
Olhos nos olhos a revelar
Adão e Éden vai superar‖20

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil é um país cujas desigualdades sociais, de gênero, etnia e ideologias


apresentam-se em muitos momentos como empecilhos para a vivência de uma realidade
equânime e justa. Carregamos resquícios de fases da história, onde a censura e opressão
dos diferentes, foi capaz de matar aqueles que divergiam de suas ideias, tendo o
respaldo do Estado na execução de tais ações.

20
Trecho da música Alguém segure esse homem do cantor Lineker, refletindo sobre a realidade
dos homens transexuais.
Atualmente vivenciamos um processo histórico delicado, onde os grupos sociais
menos favorecidos, não representados politicamente, temem por retrocessos. Ocupamos
os primeiros lugares nos rankings mundiais de assassinato de LGBT‘s e mulheres;
descansamos sob o mito da democracia racial, mas as denúncias de racismo não cessam
de aparecer e temos uma das piores distribuições de renda do mundo, mesmo assim
resistimos e conquistamos espaço, fazendo uso de recursos criativos que denunciam e
ajudam a vivenciar as nuances da desigualdade e do preconceito. Muitos artistas têm
feito de sua voz instrumento de resistência e certamente, continuarão a ecoar os gritos e
as melodias que anunciam que são as lutas sociais responsáveis pela garantia, conquista
e manutenção dos direitos humanos.

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NOVAS DIMENSÕES DO EUROCENTRISMO: PERCEPÇÕES DE
ALUNOS/AS DE DIREITO SOBRE DIREITOS HUMANOS E QUESTÕES
INDÍGENAS

Déborah Ellen Araújo de Lima 21


Weslayny Alana Silva do Nascimento 22

GT 01 – Arte, Educação e História dos Direitos Humanos

RESUMO

Este estudo apresenta uma pesquisa sobre Novas Dimensões do Eurocentrismo:


Percepções de alunos/as de direito sobre direitos humanos e questões indígenas. O
objetivo assumido foi o de analisar a percepção dos estudantes dos segundos e décimos
períodos do curso de direito de uma determinada Instituição de Ensino Superior do
Agreste pernambucano, sobre a aplicação dos direitos humanos para povos indígenas.
Os principais autores utilizados na pesquisa foram: Leitão (1997), Lidorio (2007),
Oliveira (2006), Ribeiro (2000), Silva (2014) e Piovezan (2012). Este estudo de cunho
documental, metodologicamente, foi instrumentalizado a partir de uma pesquisa
quantitativa, indutiva e histórica. A técnica de coleta de dados usada no presente
trabalho foi o questionário, aplicado no segundo e décimo periodo do curso de direito de
uma universidade do agreste pernambucano. Concluímos que o estudante do segundo
período possui uma boa persepção histórica acerca do trajeto do indío, como também
possuem uma visão de preservação universal do direito à vida. Já os acadêmicos do
décimo período possuem uma percepção mediana, no tocante a abordagem história, ou
seja, eles não demonstraram um conhecimento aflorado sobre a área abordada. Os
acadêmicos do décimo período possuem ainda uma visão mais relativista sobre garantia
de direitos.

Palavras-chave: Direitos Indígenas. Direitos Humanos. Eurocentrismo. Violação


de Direitos.

1 INTRODUÇÃO

21
Escola Superior de Advocacia, pós-graduanda em Direito Processual Civil. Graduada em
Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Advogada. deborahellenlima@hotmail.com.
22
Universidade Federal de Pernambuco, aluna especial no P.P.G.D.H (Programa de pós-graduação
em Direitos Humanos). Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Advogada. E-
mail: w.alana@live.com,
O presente trabalho aborda sobre o seguinte tema: ―Novas Dimensões do
Eurocentrismo: Percepções de Alunos/as de Direito Sobre Direitos Humanos e Questões
Indígenas‖.
Visamos realçar aspectos críticos sobre o tema apresentado, com intenções de
discutir a percepção dos estudantes do segundo e do décimo período do curso de direito
de uma Instituição de Ensino Superior do Agreste Pernambucano sobre a aplicação dos
direitos humanos na garantia de direitos indígenas, como também o trajeto histórico dos
direitos indígenas e a negação desses direitos ao longo da história.
Esses assuntos possuem relevância nos dias de hoje devido à omissão do Estado
brasileiro em implementar políticas públicas para a preservação do indígena, diante da
omissão é possível verificar uma elevada quantidade de violações aos direitos humanos,
e quando se trata de direitos indígenas a situação é ainda mais grave. A História mostra
que os interesses políticos e econômicos sempre se fizeram presentes na problemática
que envolve os direitos indígenas, repercutindo assim, sobre a proteção jurídica dada a
esses povos desde a colonização do Brasil até os dias atuais.
Assim, buscamos discutir a percepção dos alunos de uma universidade do
agreste pernambucano, a respeito dos direitos humanos como forma de garantia de
direitos, para que os povos indígenas posam sair de uma situação de invisibilidade e
negação de garantias, analisando a Declaração Universal de Direitos humanos e os
tratados internacionais em paralelo o Estatuto do Índio.
O problema estabelecido na pesquisa foi o seguinte: Qual a percepção dos
alunos/as de direito do segundo e décimo período do curso de direito sobre a aplicação
dos direitos humanos para povos indígenas?
Por sua vez, o objetivo geral do estudo foi instituído como: Compreender a
percepção dos alunos de direito do segundo e décimo período sobre a aplicação dos
direitos humanos para povos indígenas. E como forma de delineamento ao tema
abordado neste presente trabalho será apresentado o seguinte objetivo específico:
Analisar as principais abordagens históricas sobre direitos humanos como instrumento
para garantia de direitos indígenas.
Os principais autores que fundamentaram as discussões da presente pesquisa
foram os seguintes: Leitão (1993), Lidorio (2007), Ribeiro (2000), Piovezan (2012),
Sousa Filho (1998), Silva (2014) e Villa Bôas Filho (2003). Não podendo deixar de
citar os dados fornecidos pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
O trabalho apresentado consiste na perspectiva de compreender a percepção dos
estudantes sobre a aplicação de direitos humanos como formas de proteção aos direitos
indígenas, observando como eles entendem que os indígenas são sujeitos de direitos, e
tal devem ser respeitados. E que para aplicação será analisado as teorias universalistas,
relativistas, etnocêntrica e universalista de confluência; observando a que melhor se
encaixa para a afirmação de direitos indígenas.
Uma inquietação pessoal, fez com que houvesse a concretização deste trabalho.
Levando em consideração o desconhecimento da atual situação dos indígenas de
invisibilidade e negação de direitos, surgiu o interesse de entender qual a percepção dos
alunos sobre os direitos indígenas e se eles conseguiam considerar um índio como
portador de direitos e garantias.
Em seguida, surge à justificativa para este trabalho no tocante ao meio
acadêmico. Pois bem, o presente trabalho surge para despertar a curiosidade dos
acadêmicos para analisar e compreender (ou não) a percepção dos estudantes de direito
o quando o assunto é o tema em questão. O intuito do presente trabalho, é que este,
venha contribuir com discussões na sociedade como um todo, para que a realidade
apresentada possa ser rediscutida e repensada. Sempre visando o melhor pra todos.
Esse estudo se apresenta como um importante espaço de discussão acerca dos
aspectos que relacionam os povos indígenas e os direitos humanos.

2 TRAJETOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA


No presente trabalho iremos utilizar na pesquisa o método indutivo e histórico.
Emprega-se na pesquisa o método indutivo o qual permite através da observação de um
contexto específico, se chegar a conclusões mais amplas, para construção de hipóteses
sobre um dado universo (GIL, 2009).
Ainda usando os ensinamentos de Gil (2009), a pesquisa é uma atividade
realizada e planejada para descobrir a proposta de alguma indagação a respeito de
determinado assunto, com a finalidade de levantar respostas para questões mediante a
aplicação do método científico. Acrescenta que a pesquisa envolve inúmeras fases, que
vão da formulação do problema até a apresentação dos resultados.
Se faz necessário o método histórico, pois será desenvolvido uma análise parcial,
estudo e compreensão de fatos ocorridos no passado para que possam explicar os
acontecimentos atuais, objetivando uma melhora do futuro.
O autor Lakatos e Marconi descreve sobre o método histórico:

As instituições alcançaram sua forma atual através de alterações de


suas partes componentes, ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto
cultural particular de cada época. Exemplo: para compreender a noção atual
de família e parentesco, pesquisa-se no passado os diferentes elementos
constitutivos dos vários tipos de família e as fases de sua evolução social;
para descobrir as causas da decadência da aristocracia cafeeira, investigam-se
os fatores socioeconômicos do passado (2007, p. 107).

Esse método se encaixa no presento trabalho, pois se faz necessário uma análise
da história dos direitos humanos dos povos indígenas, pois ao longo dos anos sua
aplicação vem sendo influenciada pelo contexto cultural de cada época. E, sendo
necessário uma observação ao passado para que se possa entender a atual situação
desses povos. Pode ser observado o uso desse método em pesquisas qualitativas.
A presente pesquisa baseia-se no levantamento de dados para compreender e
interpretar determinados comportamentos ou fenômenos. A abordagem usada será a
qualitativa, pois não será apresentado resultados em números, e sim, verificar a relação
da realidade com o objeto da pesquisa, analisando as respostas obtidas dos alunos dos
primeiros períodos e do último período do curso de direito a respeito dos direitos
humanos para povos indígenas brasileiros.
Sobre a abordagem qualitativa o autor Richardson ilustra:

A pesquisa qualitativa não se preocupa com representatividade


numérica, mas, sim, com o aprofundamento da compreensão de um grupo
social, de uma organização, etc. Os pesquisadores que adotam a abordagem
qualitativa opõem-se ao pressuposto que defende um modelo único de
pesquisa para todas as ciências, já que as ciências sociais têm sua
especificidade, o que pressupõe uma metodologia própria. Assim, os
pesquisadores qualitativos recusam o modelo positivista aplicado ao estudo
da vida social, uma vez que o pesquisador não pode fazer julgamentos nem
permitir que seus preconceitos e crenças contaminem a pesquisa (1997, p.
34).

No mesmo sentido Lakatos e Marconi elucidam sobre a abordagem qualitativa:

Metodologia qualitativa preocupa-se em analisar e interpretar aspectos


mais profundos, descrevendo a complexidade do comportamento humano.
Fornece análise mais detalhada sobre as investigações, hábitos, atitudes,
tendências de comportamento., etc (2006, p. 269).

Com a abordagem qualitativa será analisado o comportamento do fenômeno, não


se justificará por métodos estáticos e sim pela qualidade da pesquisa, analisando e
interpretando os aspectos do fenômeno.
Os sujeitos da pesquisa foram escolhidos de acordo com alguns aspectos que
fossem fundamentais para a realização do estudo. Sendo importante que o sujeito fosse,
primeiramente, graduando do curso em direito.
Participantes da pesquisa: estudantes de direito que estejam
cursando períodos iniciais do curso, isto é, alunos do segundo período.
Também fora analisado e estudado as respostas dos alunos que estão
terminado o mesmo curso, ou seja, que estão no décimo período. Receberam
o convite de forma verbal, e responderam o questionário físico, a abordagem
foi feita em sala de aula, e os alunos aceitaram responder.
Foram questionados 25 (vinte e cinco) alunos do segundo período do curso de
direito e 25 (vinte e cinco) alunos do décimo período do curso de direito. Totalizando
50 (cinquenta) questionados de dois turnos diferentes.
A partir da narrativa e entendimento dos estudantes de direito, busca-se analisar
suas percepções sobre direitos de pessoas refugiadas, através das respostas dados frente
ao questionário aplicado.
A análise de conteúdo é usada para interpretar e descrever o conteúdo dos
documentos utilizados na pesquisa. Essa análise está diretamente ligada ao método
qualitativo que será utilizado neste trabalho, sendo usada para atribuir uma visão além
da leitura.
O autor Chizzotti assegura que:

O objetivo da análise de conteúdo é compreender criticamente o


sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as
significações explícitas ou ocultas (2006, p. 98).

Segundo Olabuenaga e Ispizúa:

A análise de conteúdo é uma técnica para ler e interpretar o conteúdo


de toda classe de documentos, que analisados adequadamente nos abrem as
portas ao conhecimento de aspectos e fenômenos da vida social de outro
modo inacessíveis. (1989, p. 185)

A finalidade da análise de conteúdo é compreender criticamente os documentos,


trazendo significados explícitos ou ocultos para um melhor desenvolvimento do
fenômeno.
O presente estudo não foi submetido ao Comitê de Ética devido à aplicação da
Resolução 510/2016 que dispõe em sua matéria sobre as novas normas aplicadas a
pesquisas em ciências humanas e sociais.
Esse documento revela que os procedimentos metodológicos que envolvam a
utilização de dados diretamente obtidos com os participantes, desde que de forma a
aferir apenas opinião e que não seja de modo identificado, passam a ter dispensa de
submissão ao órgão regulador dos aspectos éticos em pesquisas com seres humanos. O
inciso primeiro do parágrafo único do artigo primeiro reporta que:

Art. 1º - Esta Resolução dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas


em Ciências
[...]
Parágrafo único. Não serão registradas nem avaliadas pelo sistema
CEP/CONEP:
I - pesquisa de opinião pública com participantes não identificados
(BRASIL, 2016, p. 01)

As novas disposições sobre o que pode ser feito em termos de pesquisa


envolvendo humanos, dispensável a avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa, estão
relacionadas à impossibilidade de exposição do sujeito, e, por consequência, a
minimização dos riscos, o que fora seguido neste estudo.
Quanto ao sigilo das pessoas entrevistadas, a referida Resolução aduz que: ―[...]
o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com
respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às
liberdades e garantias individuais‖, principio também observado na coleta de dados.
Por fim, a identificação das pessoas a que as informações se referirem não será
revelada, sendo garantido o pleno anonimato das opiniões/percepções.

3 Principais abordagens históricas sobre direitos indígenas


Com a internacionalização dos direitos humanos, compreendido como um
fenômeno após a guerra de 1945 houve a necessidade de se formalizar, em diversas
cartas, declarações e pactos internacionais, um rol mínimo de direitos, individuais e
coletivos, que os Estados e as Organizações Internacionais se comprometem a respeitar,
manter e promover. O objetivo era fomentar o reconhecimento e a valorização da
dignidade da pessoa humana, independentemente, das diversidades culturais e do
regime jurídico adotado por cada Estado.
Então, foi idealizado um sistema de proteção dos direitos humanos, o qual, num
contexto global é exercido pela ONU, e, nas perspectivas regionais, pelas organizações
internacionais. Destacam-se os sistemas: europeu, africano, asiático e interamericano.
Acredita-se que parte das monstruosas violações aos direitos humanos da era Hitler
poderiam ter sido evitadas, caso tais sistemas existissem.
Indagaram-se vários debates, entre eles sobre o universalismo e o relativismo,
analisando o alcance das normas dos direitos humanos e na prática quais seriam seus
resultados.
A posição relativista é assim sintetizada por Piovesan:

Para os relativistas, a noção de direito está estritamente relacionada ao


sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada
sociedade. Sob esse prisma, cada cultura possui seu próprio discurso acerca
dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias
culturais e históricas de cada sociedade. Nesse sentido, acreditam os
relativistas, o pluralismo cultural impede a formação de uma moral universal,
tornando-se necessário que se respeitem as diferenças culturais apresentadas
por cada sociedade, bem como seu peculiar sistema moral. A título de
exemplo, bastaria citar as diferenças de padrões morais e culturais entre o
islamismo e o hinduísmo e o mundo ocidental, no que tange ao movimento
dos direitos humanos. Como ilustração, caberia mencionar a adoção da
prática da clitorectomia e da mutilação feminina por muitas sociedades da
cultura não ocidental (2004, p. 12).

Para os relativistas, a noção de direito está vinculada ao sistema político,


econômico, cultural, social e moral vigente em determina-da sociedade. Onde cada
cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está
relacionado às específicas conjunturas culturais e históricas de cada sociedade.
Nesse sentido, entendem os relativistas que o pluralismo cultural impede a
formação de uma moral universal, tornando-se necessário que se respeitem as diferenças
culturais apresentadas por cada sociedade, bem como seu peculiar sistema moral. Na
visão relativista há a prioridade do coletivismo. Isto é, o ponto inicial é a coletividade, e
o indivíduo é percebido como parte integrante da sociedade. Ainda sobre o relativismo
Vincent afirma:

O que a doutrina do relativismo cultural pretende? Primeiramente, ela


sustenta que as regras sobre a moral variam de lugar para lugar. Em segundo
lugar, ela afirma que a forma de compre-ensão dessa diversidade é colocar-se
no contexto cultural em que ela se apresenta. E, em terceiro lugar, ela observa
que as reivindicações morais derivam de um contexto cultural, que em si
mesmo é a fonte de sua valida-de. Não há moral universal, já que a história
do mundo é a história de uma pluralidade de culturas e, neste sentido, buscar
uma universalidade, ou até mesmo o princípio de universalidade clamado por
Kant, como critério para toda moralidade, é uma versão imperialista de tentar
fazer com que valores de uma determinada cultura sejam gerais. (…) Há uma
pluralidade de culturas no mundo e essas culturas produzem seus próprios
valores (2003, p. 25).

Declaração e Programa de Ação de Viena, em 1993, afirmou a tese da


universalidade dos direitos humanos, que por sua vez, decorre da dignidade da pessoa
humana, na qualidade de valor essencial à condição humana. Defende-se, nesta
perspectiva, o mínimo ético irredutível mesmo que se possa discutir o alcance desse
‗mínimo ético‘ e dos direitos nele abrangidos. Nessa expectativa, pode-se assentar que
o universalismo está mais preocupado com o indivíduo, suas liberdade e autonomia,
enquanto o relativismo tem como premissa maior o coletivismo.
A corrente universalista busca por sua vez, assegurar a proteção universal dos
direitos e liberdades fundamentais de todos, em qualquer lugar. Nesse entendimento,
ainda que a prerrogativa de exercer a própria cultura seja um direito fundamental,
nenhuma concessão é feita às ―peculiaridades culturais‖ quando houver risco de
violação a direi-tos humanos fundamentais.
Isto é, para os universalistas o fundamento dos direitos humanos é a dignidade
humana, como valor intrínseco à própria condição humana. Nesse sentido, qualquer
afronta ao chamado ―mínimo ético irredutível‖ que comprometa a dignidade humana,
ainda que em nome da cultura, importará em violação a direitos humanos.
A Declaração de Viena, adotada em 25 de junho de 1993, buscou responder a
esse debate, sobre o relativismo e universalismo quando estabeleceu, em seu § 5º:

Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis,


interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional
deve tratar os direitos humanos globalmente, de maneira justa e
equânime, com os mesmos parâmetros e com a mesma ênfase. As
particularidades nacionais e regionais e bases históricas, culturais e
religiosas devem ser consideradas, mas é obrigação dos Estados,
independentemente de seu sistema político, econômico e cultural,
promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais (1993, p. 25).

Para Trindade (2004), o universalismo tem a finalidade de enriquecer e


engrandecer nas questões de diversidade cultural, não podendo ser invocado esse
argumento para justificar a violação de direitos humanos.
Analisando os conceitos e abordagens supracitadas, podemos conferir que
aplicando a abordagem do universalismo, para a devida eficácia dos direitos humanos,
coloria a pessoa do índio á cima de sua cultura e de todos os seus costumes.
Seria uma afronta a todos os direitos conquistados ao longo de décadas. E
entramos em uma divergência, pois existe uma enorme relevância em proteger um
indivíduo, como também, proteger o indivíduo com base na sua cultura.
Já o relativismo, analisaria essa aplicabilidade dos direitos humanos com o
enfoque na cultura, resguardando o direto do índio como pessoa e levando em
consideração a sua cultura. No entanto, vários direitos podem ser violados na
abordagem dessa relativização; podemos citar como exemplo o direito á vida, quando se
trata de infanticídio indígena.
Lidorio (2007) em seu artigo ―Uma Visão Antropológica Sobre a Prática do
Infanticídio Indígena‖, analisou as duas abordagens, onde, o relativismo veio para trazer
uma visão de tolerância cultural, tendo como consequência a fomentação da ideia de
igualar o valor humano indistinto de sua raça, cor, língua, cultura ou história.
No que tange ao universalismo pressupõe que os homens, povos ou cultura
fazem parte de uma sociedade maior, sendo esta chamada de sociedade humana. É que
esta possui valores universais de moralidade como a dignidade, sobrevivência do grupo
e a busca pela preservação da vida. Lidório sustenta ainda:

Devemos reconhecer o direito de todo povo de dialogar com outros


povos a respeito do sofrimento e suas soluções. De compreendê-las,
compará-las e decidir sobre qual solução tomar. Devemos reconhecer o
direito de todo indivíduo de levantar-se contra os valores culturais
experimentados e propor novas alternativas, sobretudo nos casos em que há
dano à vida, à dignidade e à subsistência. Devemos reconhecer que nenhuma
cultura é estática ou isolada da sociedade humana. E que, pertencente a esta,
partilha também os mesmos sonhos e conflitos. Que a ação dialógica, sob o
manto da autonomia de cada povo, traz benefícios humanos que não
estancam a vivência cultural pois práticas aceitas na atualidade remontam a
decisões passadas por critérios próprios ou adquiridos (2007, p. 26).

Etnocentrismo é um substantivo masculino de raiz grega, formado pelo prefixo


―ethnos‖ que significa nação, tribo, raça ou povo, mais o sufixo ―centrismo‖, que sugere
centro. Com efeito, é também um importante conceito antropológico para definir
atitudes nas quais consideramos nossos hábitos e condutas como superiores aos de
outrem.
Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado
como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos
valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual,
pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como
sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. Perguntar sobre o que é
etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos
intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos.
O etnocentrismo vai julgar a cultura do outro com base na sua cultura; seria
julgar um índio por defender as suas raízes com base no que ―o homem branco‖ vive
nos centros urbanos.
Flores (2009, p. 35) sustenta que o universalismo de confluência, é um
universalismo com ponto de chegada, mas sem um ponto de partida, que devemos
oferecer a proposta dos direitos humanos como o ponto de partida:

Nossa visão complexa dos direitos aposta por uma racionalidade de


resistência. Uma racionalidade que não nega que é possível chegar a uma
síntese universal das diferentes opções relativas aos direitos. E tampouco
descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferenças étnicas
ou de gênero. O que negamos é considerar o universal como um ponto de
partida ou um campo de desencontros. Ao universal há de se chegar –
universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes) de um
processo conflitivo, discursivo de diálogo ou de confrontação no qual
cheguem a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas. Falamos do
entrecruzamento, e não de uma mera superposição de propostas.

Esse seria então, um processo que necessariamente precisa passar pela


construção de diálogos com outras culturas, o que resultaria no reconhecimento do
outro, ou seja, o desenvolvimento de diálogos interculturais. No entanto esse diálogo
intercultural, não pode ser estabelecido unilateralmente, as partas deveram estão prontas
para que assim, se possam entender os diversos modos de pensar.
Santos (2005, p. 36) desenvolveu a possibilidade de um diálogo intercultural
usando como mecanismo o quer chamou de hermenêutica diatópica. Assim, ele nos
explica:

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topos de uma


dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria
cultura a que pertencem. [...] O objetivo da hermenêutica diatópica não é,
porém, atingir a completude [...] mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a
consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola
por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra.

Fornet-Betancourt (2011, p. 32) considera como essa prática como a única


maneira superar as diversas formas de pensar:

[...] a única alternativa que promete nos conduzir à superação efetiva


de formas de pensar que, de uma ou outra maneira, resistem ao processo da
argumentação aberta, ao condensar-se em posições dogmáticas, determinadas
somente a partir de uma perspectiva monocultural. Resumindo: o diálogo
intercultural nos parece ser hoje a alternativa histórica para empreendermos a
transformação dos modos de pensar vigentes.

O discurso dos direitos humanos não pode ser usado como uma arma de
imperialismo moral, oprimindo outras comunidades e modos de vida, do mesmo modo
que não deve servir de escudo para esconder práticas arbitrárias e violações de direitos.

4 Resultados
O presente trabalho é uma pequena parte de uma pesquisa científica realizada no
ano de 2016, que foi apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção
do titulo de Bacharel em Direito. Para quantificar a percepção dos alunos dos períodos
inicias e do décimo período do curso de Direito de uma Instituição de Ensino Superior
do Agreste Pernambucano foi realizado um questionário de 25 (vinte e cinco) questões
que versavam sobre a aplicação dos direitos humanos para povos indígenas. Onde só
foram trazidos 6 (seis) questões para analise, sendo 3 dos períodos inicias e 3 dos
períodos finais.
A primeira questão trazida para analise foi feita aos alunos do curso de direito
que estão no segundo período, relativa aos direitos humanos que como é sabido à todos
os seres humanos, independente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou
qualquer outra condição. Diante da afirmativa acima, foi perguntado aos alunos sobre a
concordância ou não, destes, na aplicação dos direitos humanos ao povo indígena.
Segue as respostas:
GRÁFICO 1: Percepção de alunos/as de períodos iniciais sobre direitos
humanos ao povo indígena

12%
8%
4%

76%

A- Concordo, pois os direitos humanos são universais, também se aplicam aos indígenas

B- Concordo em partes, os direitos se aplicam aos indígenas mas em caráter excepcional quando a
violação do direito à cultura.
C- Não concordo, os direitos humanos não se aplicam aos povos indígenas, pois só são para homens
civilizados
D- Não consigo opinar sobre o assunto

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa


Percebe-se que 76% dos entrevistados confirmam que os Direitos Humanos são
aplicados aos povos indígenas, apesar de serem estudantes que iniciaram o curso de
direito, a percepção destes alunos é garantista, para eles as proteções de direitos se
aplica os indígenas. Em 12%, não conseguiram opinar sobre o tema, mesmo sendo algo
que vem sido debatido em todas as áreas de informação e comunicação; 4% afirmam
que a aplicação dos direitos humanos só se aplica em caráter excepcional quando
ocorrer violação do direito á cultura, no entanto a Declaração Universal dos Direitos
Humanos se aplica a todos no mundo; ela consegue alcançar os mais remotos lugares;
tendo um caráter universal e que deve ser aplicada a todos.
A mesma pergunta foi feita aos alunos do decimo período relativa aos direitos
humanos que como é sabido são inerentes à todos os seres humanos, independente de
raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Diante da
afirmativa acima, foi perguntado aos alunos sobre a concordância ou não, destes, na
aplicação dos direitos humanos ao povo indígena. Segue as respostas:
GRÁFICO 2: Percepção de alunos/as de períodos finais sobre direitos
humanos ao povo indígena

0%

12% 4%

84%

A- Concordo, pois os direitos humanos são universais, também se aplicam aos indígenas

B- Concordo em partes, os direitos se aplicam aos indígenas mas em caráter excepcional quando a
violação do direito à cultura.
C- Não concordo, os direitos humanos não se aplicam aos povos indígenas, pois só são para homens
civilizados
D- Não consigo opinar sobre o assunto

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa

Percebe-se que 84% dos alunos do décimo período concordaram que os direitos
humanos devem ser aplicados aos povos indígenas. Em minoria, 12% concordam
parcialmente, os direitos humanos só podem ser aplicados quando houver uma violação
de direito á cultura, no entanto o direito a cultura é garantido tanto pela Constituição
Federal de 1988 e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, dois quem tem
uma força grande aplicação no país; violar o direito á cultura é violar um
direito/garantia constitucional. Um aluno discordou totalmente, os povos indígenas não
possuem direito a aplicação dos direitos humanos. Observou-se que todos os 25alunos
entrevistados expressaram uma opinião acerca da questão, e em sua maioria positiva e
garantidora de direitos.
Vale ressaltar que esses alunos já passaram pelas disciplinas de Direito
Constitucional, Direito Civil, Sociologia e Direitos Humanos; disciplinas que trazem no
seu contexto a discursão sobre a igualdades de povos, garantia de direitos e aplicação de
direitos para todos em solo nacional incluindo os indígenas.
A segunda pergunta trazida está relacionada ao direito à cultura dos povos
indígenas. Foi perguntado se os acadêmicos concordavam que tal direito deveria ser
preservado, mesmo que este violasse direitos humanos ou direitos fundamentais. Segue
as respostas:

GRÁFICO 3: Percepção de alunos/as de períodos iniciais sobre direito à


cultura versus violação de direitos humanos e/ou fundamentais

16% 16%

36%
32%

A- Concordo, pois a cultural é algo que está incorporado ao ser humanos

B- Concordo em partes, a cultura deve ser preservada, desde que não viole direitos humanos ou
fundamentais
C- Não concordo, os direitos humanos são universais, e como tal devem ser respeitados.

D- Não consigo opinar sobre o assunto.

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa

Indagados sobre a preservação da cultura sendo colocada sob a aplicação dos


direitos humanos, em 32% optou por preservar os direitos humanos na sua plenitude
universal. Já 36% dos entrevistados concordam que a cultura deve ser preservada por
ser algo intrínseco ao ser humano. Outros 16% concordaram em partes pois, a cultura
deve ser preservada desde que essa preservação não enseje violação a direitos humanos
ou fundamentais. Por fim, 16% não conseguiu opinar sobre o assunto.
A mesma pergunta foi feita aos alunos de ultimo período do curso de direito
sobre a relação ao direito à cultura dos povos indígenas. Foi perguntado se os
acadêmicos concordavam que tal direito deveria ser preservado, mesmo que este
violasse direitos humanos ou direitos fundamentais. Segue as respostas

GRÁFICO 4: Percepção de alunos/as de períodos finais sobre direito à


cultura versus violação de direitos humanos e/ou fundamentais

4% 20%

36%
40%

A- Concordo, pois a cultural é algo que está incorporado ao ser humanos

B- Concordo em partes, a cultura deve ser preservada, desde que não viole direitos humanos ou
fundamentais
C- Não concordo, os direitos humanos são universais, e como tal devem ser respeitados.

D- Não consigo opinar sobre o assunto.

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa

Ao analisar as respostas desta questão, percebe-se que 20% concordam com a


manutenção da cultura por ser algo que faz parte da construção do ser humano; 40% dos
estudantes do décimo período concordam parcialmente que devem ser preservados os
rituais culturais, no entanto, não deve ocorrer a violação de nenhum direito; 36% não
concordam, os direitos devem ser preservados com base na universalidade dos direitos
humanos, 4% não conseguiram opinar acerca do assunto.
Todos direitos é igual, não existe uma hierarquia entre eles, não há um direito
melhor que outro, eles estão no mesmo patamar. O que pode existe é uma flexibilização
de sua aplicação de acordo com o caso concreto. O direito á cultura tem a mesma
importância que outros direitos.

A sexta pergunta está ligada ao etnocentrismo, que é uma visão do mundo do


onde um grupo é tomado como centro de tudo, e todos os outros grupos são pensados e
sentidos através de valores e modelos europeus. Julga-se a cultura do homem branco
como superior a indígena, por exemplo. A resposta versa sobre a concordância dos
alunos em sobre os povos indígenas adotarem essa teoria para recepcionar a cultura não
indígenas. Veja-se:

GRÁFICO 5: Percepção de alunos/as de períodos iniciais sobre


etnocentrismo

12%
24%

16%

48%

A- Concordo, pois os índios devem analisar outras culturas com base na sua.
B- Concordo em partes, os indígenas devem analisar outras culturas com base na sua no entanto
devem está dispostos a dialogar
C- Não concordo, cada grupo cultural tem seu modo de definir os valores, por isso, os indígenas não
devem julgar outros povos
D- Não posso opinar sobre o assunto.

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa


Ao conceituar Etnocentrismo, 48% não concordaram que o etnocentrismo fosse
usado pelos povos indígenas para recepcionar as outras culturas. Os 24% não
conseguiram opinar sobre o assunto. Os demais, 12% concordaram que os povos
indígenas se posicionassem tão modo; 16% concordaram em partes sobre tal aplicação
de como que os indígenas dialogassem com outros povos, mas que mantenham a visão
etnocêntrica para a recepção.
A sexta pergunta está ligada ao etnocentrismo, que é uma visão do mundo do
onde um grupo é tomado como centro de tudo, e todos os outros grupos são pensados e
sentidos através de valores e modelos europeus. Julga-se a cultura do homem branco
como superior a indígena, por exemplo. A resposta versa sobre a concordância dos
alunos em sobre os povos indígenas adotarem essa teoria para recepcionar a cultura não
indígenas. Veja-se:
GRÁFICO 6: PERCEPÇÃO DE ALUNOS/AS DE PERÍODOS FINAIS
SOBRE ETNOCENTRISMO

16%

28%

20%

36%

A- Concordo, pois os índios devem analisar outras culturas com base na sua.

B- Concordo em partes, os indígenas devem analisar outras culturas com base na sua no entanto devem está dispostos a
dialogar
C- Não concordo, cada grupo cultural tem seu modo de definir os valores, por isso, os indígenas não devem julgar outros
povos
D- Não posso opinar sobre o assunto.

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa


Ao conceituar Etnocentrismo, 16% concordam que os povos indígenas devem
julgar a cultura do outro com base na sua; 20% concordam parcialmente com indagação,
acrescentando que os indígenas devem estar abertos para dialogar com outras culturas;
36% com a indagação, os indígenas devem respeitar as outras culturas; 28% dos
estudantes não conseguiram formular uma opinião acerca da questão.

Conclusão
O presente trabalho de pesquisa chega ao fim na busca por repostas ao seguinte
problema de pesquisa: Qual a percepção dos alunos de direito do segundo e décimo
período sobre a aplicação dos direitos humanos para povos indígenas?
Os resultados para que sejam reveladas as respostas do presente trabalho foram
alcançados por meio da análise de um questionário aplicado aos alunos do segundo e do
décimo período do curso de direito em uma Instituição de Ensino Superior do Agreste
Pernambucano. Ao desenvolver da pesquisa e dos demais estudos, constamos que os
estudantes de segundo período possuem uma percepção histórica satisfatória, já os
alunos do décimo período não corresponderam às expectativas. Percebeu-se que os
alunos de segundo período optaram por uma abordagem universalista para aplicação dos
direitos humanos; já os do décimo período optaram por uma abordagem relativista para
a aplicação dos direitos humanos.
No que se refere ao etnocentrismo, em sua maioria discordaram que os indígenas
adotem esse tipo de abordagem; mas a maioria concordou que a sociedade civil é
etnocêntrica e analisa o índio com base nos seus costumes, cultura e crenças. Essa
analise da cultura do outro com base na sua, gera preconceito o que consequentemente
pode vir a ser fruto de violações de direitos. Nesse ponto temos que observar o outro de
forma igual e reconhecer que existem aspectos que podem ser diferentes; mas nunca se
deve observar o outro de forma preconceituosa e com pré-conceitos.
Já, na garantia de direito, mais uma vez, em sua maioria, consideraram que os
indígenas possuem direitos a serem garantidos. Apesar dos estudantes do décimo
período alguns deles ainda afirmaram que esses povos não possuem direito. Os
estudantes de décimo período possuem uma base curricular bem mais ampla á cerca de
garantia de direitos, a própria disciplina de Direitos Humanos traz toda essa carga, o que
chega a ser inamissível que certos estudantes entendam que certos direitos não podem
ser aplicados á determinado povo em função da sua diferença ética ou por qualquer
outro motivo; os Direitos Humanos são universais, é aplicada a toda e qualquer pessoa
independente do lugar em que ela esteja. Precisa-se desconstruir esse conceito de que o
outro não possui direito; se esse outro é um ser humano ele possui direitos, sendo
indígena ou não.
Ao conceituar os direitos humanos e questionar sobre sua aplicação para povos
indígenas 76% dos estudantes do segundo período confirmam que os Direitos Humanos
são aplicados aos povos indígenas, apesar de serem estudantes que iniciaram o curso, a
percepção destes alunos é garantista, para eles as proteções de direitos se aplicam os
indígenas. Já 84% dos alunos do décimo período concordaram que os direitos humanos
devem ser aplicados aos povos indígenas.
Concluímos que há muito que se desenvolver sobre a aplicação dos direitos
humanos para povos indígenas; mas os estudantes possuem consciência de que os
direitos humanos são aplicados a povos indígenas.

REFERÊNCIAS

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Brasil. Brasília, DF, 1988.

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ordem jurídica nacional. São Paulo: Atlas, 2003.
EDUCAÇÃO, ÉTICA E CURRÍCULO: NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO
INTEGRAL23

Ranúzia Moreira de Lima Netta24

GT 01 – Arte, Educação e História dos Direito Humanos

Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo
(Raul Seixas).

RESUMO
Este artigo objetiva compreender as relações vivenciadas na Escola de Referências de
Panelas-PE, mediadas por uma proposta educativa que se manifeste no currículo, e as
práticas educativas da escola visando à formação ética na formação integral que
circunscreve as escolas de referências do estado de Pernambuco. Tal leitura assume
contribuições da filosofia deleuziana, que aponta para novas imagens do pensamento,
potencializando a criação e a invenção. Este estudo assume como percurso
metodológico o enfoque hermêutico, visando descortinar sentidos na relação singular –
múltipla que permeia o espaço educacional através de observações e entrevistas
reflexivas, Tal leitura se encaminha para o reconhecimento das possibilidades de uma
educação menor que resista às aspirações desenvolvidas na linearidade prevista pela
escola. Assim, a escola de Referência de Panelas-PE, desenvolve ações formativas que
revelam aspectos de uma educação moral, orientada pela cultura da trabalhabilidade e a
pretensão da inserção do jovem no ensino superior. Tal prática se constitui em meio ao
paradoxo da adequação à representação de uma educação dogmática, que prima pelas
imagens de pensamentos paralisados.

23
O trabalho resultou da pesquisa de Iniciação Cientifica (PIBIC – FACEPE/2013) realizada no
período de agosto/2013 a julho/2014, intitulada ―Transformações curriculares: o singular e o múltiplo na
formação ética do/a jovem da escola de Referência‖, vinculada ao Projeto de Pesquisa “O Dilema Ético
na formação de jovens no Ensino Médio: Um estudo da proposta de Educação Integral das Escolas
de Referência do Estado de Pernambuco”, coordenado pela Prof. Dra. Maria Betânia do Nascimento
Santiago. Esta ação recebeu financiamento da FACEPE – Fundação de Apoio à Ciência e Tecnologia do
Estado de Pernambuco, como Auxílio a Projetos de Pesquisa – APQ (Edital FACEPE 15/2012).
24
Graduada em Pedagogia pela UFPE-CAA - Universidade Federal de Pernambuco - Centro
Acadêmico do Agreste - ranuzianettinha@hotmail.com. Bolsista PIBIC-FACEPE no período de
agosto/2013 à julho/2014, com o projeto intitulado: Transformações curriculares: o singular e o múltiplo
na formação ética do/a jovem da escola de Referência, no qual este artigo é parte das conclusões.
Palavras-chave: Transformações curriculares. Formação Ética. Escola de Referência de
Panelas. Jovem. Perspectiva Deleuziana.

Prólogo: construindo e desconstruindo sentidos educacionais

O cenário caótico que circunscreve a educação na sociedade brasileira desvela


significados diante de objetivações pré-estabelecidas, através das hierarquizações dos
saberes, do controle da formação das pessoas inseridas nas instituições de ensino,
enquadrando-as mediante as relações vivenciadas no cotidiano escolar. Observa-se aí a
paralisação do devir e a impossibilidade do criar, com as padronizações que imperam
sobre a formação do humano por meio de controles e medidas prescritas com
intencionalidades, na medida em que os objetivos, os conteúdos e as ações
metodologicamente são desenvolvidas na/pela escola. Nessa perspectiva, a educação
está imersa de valores decorrentes da racionalidade moderna, que molda os
pensamentos, a educação, a cultura, as coisas e pessoas. E assim a representação
dogmática do saber é instituída e reproduzida no meio social. Dessa forma, o currículo,
documento que ―orienta‖ as ações desenvolvidas pela escola, é idealizado segundo
estruturações que se petrificam e que são institucionalizadas enquanto regras para serem
cumpridas.
Partindo dessa realidade, esse artigo versa sobre as transformações curriculares
que fazem parte da experiência formativa no contexto escolar das Escolas de Referência
do estado de Pernambuco. Nesse sentido, coloca-se em pauta às pretensões formativas,
diante do ―dilema ético‖ que se evidenciam na formação dos/as jovens, e como de fato
essa pretensão e os princípios que a orientam, tem refletido no dia a dia dos/as docentes,
dos/as discentes, e nas relações que estes/as estabelecem. O sentido de ética, de
formação, assume uma nova roupagem, levando em consideração não um tipo de
formação, mas os processos formativos desenvolvidos ante o reconhecimento da
multiplicidade. E, princípios éticos que deem conta das singularidades dos/as indivíduos
e dos objetos presente no contexto escolar. Através de olhares diferenciados para a
proposta educacional, buscamos compreender a sua contribuição para a formação do
humano; através das possibilidades do pensar que desvelam os limites estabelecidos
pela educação.
Dessa forma, esse estudo objetivou compreender as relações vivenciadas na
Escola de Referências de Panelas-PE, mediadas por uma proposta educativa que se
manifeste no currículo, e as práticas educativas da escola que visam à formação ética. A
elaboração resulta do estudo desenvolvido no PIBIC - Projeto de Iniciação Científica,
financiado pela FACEPE – Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia de
Pernambuco, do período de agosto de 2013 a julho de 2014. Tal elaboração se encontra
vinculada à Pesquisa intitulada O ―Dilema Ético‖ na Formação de Jovens do Ensino
Médio: Um estudo da Proposta de Educação Integral das Escolas de Referência do
Estado de Pernambuco, coordenada pela Prof. Dra. Maria Betânia do Nascimento
Santiago.
A investigação ocupa-se em compreender a proposta de educação Integral que
orienta a ação pedagógica dessas instituições. Dessa forma, esse estudo objetiva
relacionar a contribuição da filosofia deleuziana a compreensão da proposta curricular
das disciplinas da área de ciências humanas e filosofia da escola de referência de
Panelas-PE, assim como às relações e práticas educativas vivenciadas nessa instituição,
e em seus deslocamentos para o campo educacional (GALLO, 2008; LINS, 2005;
KASTRUP, 2005, SCHÉRER, 2005).
A concepção educativa é marcada pela criação conceitual, como ―a arte de formar, de
inventar, de fabricar conceitos‖ (DELEUZE & GUATTARI, p. 10), no reconhecimento da
noção de ―multiplicidade‖. A partir desse viés, pensamos os processos formativos, enquanto arte
que amplia concepções e as (re) significam. Essa discussão oferece a possibilidade de pensar a
educação considerando a noção da multiplicidade e de rizoma (DELEUZE & GUATARRI,
1995; 2010; 2011; 2014; DELEUZE, 1997), que caracterizam a filosofia desse pensador (Gilles
Deleuze), e que auxiliam na compreensão do espaço escolar, em seu aspecto curricular e a
organização educacional (cf. GALLO, 54).
Para tanto, essa leitura partiu da abordagem interpretativa da hermenêutica,
visando descortinar os sentidos de tal realidade, por meio do estudo bibliográfico da
temática e da investigação empírica da instituição, que contemplou a observação da
prática educativa e entrevistas com os/as representantes da instituição – gestoras e
professoras, assim como os/as estudantes da Escola de Referência de Panelas-PE. Nesse
trabalho o direcionamento assumido está marcado pela perspectiva teórico-
metodológica própria à hermenêutica, enquanto percurso investigativo, e as descobertas
realizadas no decorrer do percurso nas aproximações com o método cartográfico da
pesquisa social, dos quais resultaram os apontamentos delineados.
Tal encaminhamento possibilita descobrir novas significações, através de uma
pesquisa do acontecimento, que ―segue-se novas maneiras de pensar e de realizar uma
crítica-escrileitura, que vão até a singularidade da experimentação de cada pesquisador-
professor, num processo de artistagem inventiva da Educação‖ (CORAZZA, 2007, p.
14). Através de procedimentos enquanto devires, que não se preocupa com totalidades,
mas que desenvolve processos inacabados que atravessa o que é visível e o que permeia
os labirintos possibilitando apreender a realidade por meio de aspectos interpretativos,
que busca sentidos reproduzidos em um contexto social, de forma que seja possível
produzir novos conhecimentos através da relação entre pesquisador/a e o objeto de
estudo, propiciando novas compreensões.
Assumindo esse direcionamento, o trabalho está estruturado em três categorizações, a
primeira: educação integral uma perspectiva interdimensional, a segunda: transformações
currriculares: entre ética e ética‘s a subversão da imagem dogmática do pensamento, a terceira:
entre o currículo prescritivo e o currículo real: ações educativas que perfazem a formação,
seguido das CONSIDERAÇÕES FINAIS: Devir – singularidades e multiplicidades nos
labirintos formativos da Escola de Panelas-PE e referências bibliográficas.

1 Educação integral uma perspectiva interdimensional

A educação do século XXI se constitui num contexto marcado por uma ampla crise, que
corresponde ao esgotamento da razão analítico instrumental, que perdura desde o iluminismo,
revelando sua inaptidão para cumprir o que propusera em relação à liberdade, igualdade e
fraternidade (COSTA, 2008, p.13). Nessa perspectiva, podemos perceber no que se refere ao
ser humano a relação regulada pelo medo, pela ansiedade, e o coletivismo. Experiências
marcadas pelo cinismo, pela competição, e que conduzem à perda da dignidade humana.
Nesse cenário, observa-se a fragmentações dos saberes, seguindo uma ótica
unidimensional. A ―educação passa a ser vista como algo utilitário, e a formação dos
sujeitos direcionada a finalidades econômicas‖ (MOURA; SANTIAGO, 2013, p. 3).
Contudo, essa mesma sociedade vivencia um paradoxo: por um lado, o ser humano em
sua totalidade está enfraquecido, devido às questões econômicas, sociais, políticas, e
culturais, e por outro se estabelece uma época de grandes oportunidades, enquanto
enfrentamento dessa crise que abarca as diferentes relações que o humano estabelece.
Nesse contexto de crise e de contraposição à lógica unidimensional, torna-se
uma exigência o debate e a busca de alternativas que se materializem em práticas
educativas direcionadas à formação humana. Diante disso, percebemos que a educação
integral em face de suas possibilidades indica outros direcionamentos, considerando que
a mesma parte do ―reconhecimento das dimensões do humano, à medida que essas se
tornam significativas no espaço educativo, sendo então perceptíveis e acolhidas‖
(MOURA, 2012, p .54).
Com efeito, a problemática da educação integral tem sido objeto de estudo de
diversos pesquisadores (SILVA; SILVA, 2012; ARROYO, 2012; MOLL, 2012). Tais
estudos expressam visões distintas e por vezes complementares no que se refere à
questão (LIMA NETTA, 2014, p. 17).
Assim, a Educação Integral desenvolvida pelo Programa de Educação Integral do
Estado de Pernambuco fundamenta-se nos pressupostos da educação interdimensional que se
propõe a integrar as diversas dimensões do humano (COSTA, 2008, p. 28). Dessa concepção
educativa, destacam-se elementos que se constituem em princípios formativos, são eles: a ideia
de protagonismo juvenil, de presença educativa, a defesa da educação para valores, os
quatro pilares da educação, e o empreendedorismo, relacionado à trabalhabilidade e o
compromisso com inserção dos/as jovens no Ensino Superior (LIMA NETTA, 2014, p. 18-19).

2 Transformações curriculares: entre ética e ética’s – a subversão da imagem


dogmática do pensamento
A educação desvela-se sobre campos múltiplos, aventurando-se sobre alturas e abismos,
sobre o prescrito e o vivido. Assim, há a relação entre o que é normatizado e legitimado
enquanto saberes que tende a construção da moralização do indíviduo, e os saberes que
perfazem no dia a dia da sala de aula, tendo direcionamentos para transformações curriculares
que fazem e desfazem e refazem a formação educacional através das ações escolares
desenvolvidas por um lado diante de totalidades – uma realidade prevista, e de outro devires em
potência que se fazem através das experimentações educativas que permeiam o espaço
educativo.
Nessa perspectiva, novos caminhos são descortinados para refletir sobre o contexto
educacional, sobretudo a escola, ante a possibilidade de que esse espaço favoreça ―uma
aprendizagem inventiva revelando-se como invenção de mundo‖ (KASTRUP, 2005, p. 1277).
Trata-se de apostar numa pedagogia diferenciada, através de uma educação diferenciada, como
afirma Lins (2005) ao defender uma pedagogia: ―da desconstrução e da diferença, do indivíduo
como singularidade. Uma pedagogia que não trabalha com formas, mas com encontros
nômades, desejos, encruzilhadas e bifurcações‖ (p. 1252).
Nessa perspectiva, pensar a educação sob olhares direcionados, tende a materializar
―aquela velha opinião formada sobre tudo‖, expressando a horizontalidade ou verticalidade que
marca o cenário educacional; potencializando a unilateralidade existente nas escolas, nos
currículos, nas individuações que são forjadas mediante a essência do saber. Temos aí a
configuração da razão instituída pela modernidade, na qual o Eu pensante tem primazia na
existência, repercutindo nas concepções educativas na contemporaneidade.
Partindo disso, e tendo como direcionamento a ―metamorfose ambulante‖, pensamos em
uma ―destruição‖; destruição que está apoiada em pressupostos subjetivos e objetivos
(DELEUZE, 2006, p. 189), os quais desvelam a imagem do pensamento, possibilitando que haja
sempre um recomeço no próprio começo. Ou seja, a transmutação da realidade buscando
intencionalidades não previstas, através do criar e do recriar, pensando a educação enquanto
resistência, e oposição à macro política educacional.
Tal questão nos faz refletir sobre o modelo de conhecimento que representa uma forma
de pensar, estruturada e direcionada a objetivos unos, tendo um direcionamento hierárquico,
consolidando a metáfora da arborescente, que caracteriza os documentos que norteiam o campo
educacional, negando as potencialidades existentes numa educação produtora de
multiplicidades. Nesse viés, acredita-se em outras formas de pensar que se distanciam da lógica
hegemônica do conhecimento, outras expressões e ações que enquanto devir se relacione com a
micropolítica.
Pensamos nesse sentido, expressões pedagógicas rizomáticas, transformações
curriculares rizomáticas, formações humanas rizomáticas, pois essa perspectiva delineia-se
diante de movimentos voláteis, potencializando o pensamento. Essa perspectiva anunciada por
Deleuze (2011) em sua noção de Rizoma, orienta-se por seis princípios: 1º e 2º Princípios de
conexão e de heterogeneidade – esses possibilitam conexões de um ponto a outro do rizoma,
sem obedecer a linearidades, através de conexões heterogêneas, que são as individuações, sendo
essas expressões das singularidades rompendo com hierarquizações homogêneas. 3º princípio
de multiplicidade – são composições múltiplas que não possuem unidades, são formas de
desterritorializar, pois não há sujeitos, nem objetos. 4º princípio de ruptura assignificante – o
rizoma não há significação, pois as linhas que o compõe, são possibilidades de fugas, e são
experiências provisórias, que se fazem e refazem. 5º e 6º princípio de cartografia e de
decalcomania, o rizoma é como um mapa, e nesse mapa há várias entradas, sendo um território
marcado com infinitos pontos. E, que possibilita surgir outros territórios com novas facetas,
potencializando outras multiplicidades (2011). O deslocamento desses princípios para o cenário
educacional, sobretudo, as propostas curriculares, pode levar à potencialização da ação enquanto
criação, sem estruturas fixas e intencionalidades que se constitua a partir de uma lógica
sequenciada. Diante disso a escola seria um lócus de encontros e desencontros oportunizando
novos territórios para serem desterritorializados. A metáfora rizomática, (re) significa o
currículo, pois são conexões diversas. Segundo, Deleuze e Guattari (2011, p. 22):

Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a


qualquer outro e deve sê-lo. [...] Num rizoma, ao
contrário, cada traço não remete necessariamente a um
traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza
são aí conectadas a modos de codificação muito
diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas,
etc., colocando em jogo não somente regimes de signos
diferentes, mas também estatutos de estados de coisas.
Os pontos rizomáticos rompem com as funcionalidades pré-estabelecidas, rompe com
os postulados que formam a imagem dogmática do pensamento (DELEUZE, 2006, p.240),
rompe com a compartimentalização e repetição por repetição das áreas do conhecimento. Então,
―é necessário um investimento no pensamento que torne o pensamento de novo possível, um
pensamento da diferença, um pensamento sem imagem‖ (GALLO, 2013, p. 127). Produzindo
pensamentos de outras formas, através do diálogo, ressignificando a educação, inovando os
processos educativos, transformando planejamentos, ou seja, produzindo experiências diferentes
em si mesma. E, com ―instabilidade, incerteza e desordem. Sem tais elementos, talvez não seja
possível exercitar um pensamento em prol da diferença [...]‖ (RODRIGUES, 2013, p. 176).
Nesse sentindo, o currículo torna-se movente, envolvendo processos de subjetivação, de
singularidades e multiplicidades, capaz de superar formas epistêmicas engendradas através da
produção do conhecimento na diferença. Podemos pensar dessa forma, em uma perspectiva
rizomática, a qual rompe com hierarquias que é próprio do paradigma arbóreo (GALLO, 2008,
p. 78). Então:
A metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea,
tomando como imagem aquele tipo de caule radiciforme de alguns
vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas
em meio a pequenos bulbos armazenatícios, colocando em questão a
relação intrínseca entre as várias áreas do saber, representadas cada
uma delas pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que
entrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexo no qual
os elemento remetem necessariamente uns aos outros e mesmo para
fora do próprio conjunto [...] Nunca há um rizoma, mas rizomas; na
mesma medida em que o paradigma, fechado, paralisa o pensamento,
o rizoma, sempre aberto, faz proliferar pensamentos. (GALLO, 2008,
p.76)

O rizoma traz possibilidades curriculares que fazem proliferar pensamentos, sem


paralisar o conhecimento, desdobra-se para implicações variáveis, com interpretações e leituras
diferenciadas, recusando as hierarquizações e racionalidades instituídas pela modernidade, com
vistas a rupturas das imposições das verdades que se tornaram ―absolutas‖.
Esse olhar deleuziando, para além do debate acerca do conhecimento, e integrando-o, é
um convite para pensar a problemática da formação, da ética. Assim, torna-se importante
discutir as proposições éticas que permeiam a sociedade, e que são legitimadas através dos
valores, através do reconhecimento das diferenças, o respeito ao/a outro/a. Nesse aspecto,
pensamos a ética e a moral nos pormenores que circusncrevem os pormaiores através dos
pirncípios fomativos partilhados socialmente, considerando que os ―os valores e as normas,
portanto, nascem e morrem na história‖ (GOERGEN, 2005, p. 989).
A modernidade direciona a ética como uma orientação do humano para o bem. Assim,
as regras, a disciplina, a moralização converte-se em pressupostos formativos do indivíduo, a
fim de conduzi-lo à autonomia e a autodeterminação (GOERGEN, 2005, p. 991). De maneira
que ―a educação ética só pode realizar-se como a indicação de uma ‗capacidade‘ cuja realização
só é possível a partir da liberdade de cada um‖ (Ibid., p.992). O que é determinante para a
concepção moral, sendo esta ―fundamental‖ para nortear as ações de cada ser humano, o qual
―não é um ser moral por natureza, mas precisa ser educado para a moralização‖ (Ibid., p. 993).
Nessa perspectiva, a ética se direciona à formação humana assumindo uma função social que
está presente na realidade e nas experimentações que estão imbuidas de aspectos subjetivos e
objetivos, individuais e coletivos.
Para Hermann (2008) a ética é vista como a arte de viver, que é desenvolvida a partir da
experiência visando modificar o sujeito, pressupondo um ethos permeado pelo diálogo entre os
sentimentos, a imaginação, a sensibilidade, visando sentidos voltados a transformação do
humano, sendo esse criador de suas normas, pondo em xeque as normas categóricas (cf. p.17).
Ou seja:
A arte de viver tem uma dimensão estética em que a própria
obra da vida deve ter a arte como delo, por meio da criação de
diferentes estratégias (desde as interativas até as literárias), articuladas
com princípios universais que refletem nossas lealdades irrenunciáveis
com o mundo (HERMANN, 2008, p. 19).

Essa relação entre a arte e a formação através de diferentes estratégias está relacionada
com a formação cultural – Bildung, tendo em vista a preparação do indivíduo, e relacionando as
normatizações universais e individuais que não se excluem como afirma Hermann (cf. 2008,
p.19). Dessa forma, os valores, os deveres, as normas, que continuam existindo historicamente,
e, presentes na sociedade são percebidos por uma crise atual, que:
Consiste no fato de não haver mais um padrão fixo e
(supostamente) universal, digno de ser aceito por todos como critério
de orientação e de juízo para os atos morais. A crise existe não porque
não haja mais valores, mas porque nos encontramos num momento de
passagem de um contexto de valores relativos às circunstâncias
materiais e culturais de tempo e lugar. (GOERGEN, 2010, p. 160).

Os valores que estão relacionados ao tempo, a cultura e ao lugar, por vezes direcionam a
ações totalizadoras, no que se refere aos casos singulares que são vivenciados na relação com o
todo. Dessa forma, os costumes, o raciocínio, desempenham papéis fundantes na construção do
indivíduo social e particular, moldando as subjetivações, direcionando as experimentações,
levando o humano ao uso da razão através da adaptação no mundo de valores decorrentes
historicamente. Como a Goergen (2010, p. 167), ―o contexto da mundialização totalizadora
envolve e viola veladamente o sujeito que assume formas de ser, de pensar, de julgar e de agir
contrárias aos mais elementares princípios do respeito, da tolerância e da justiça‖.
Essa relação totalizadora é a racionalidade instrumental, que permeia os processos
educativos, onde as construções singulares devem ser prescritas, devem condizer com a moral.
Mas, essas questões são limitadas diante do ethos construído atualmente, pois novos olhares
sociais são perceptíveis, novas construções, novos diálogos, novas interpretações. Assim, os
grupos sociais criam sua própria ética, sendo ―sua morada com normas e leis próprias, tendo em
vista que no mundo globalizado as chances de ter identidade e reconhecimento estão sendo
anuladas‖ (GORGEN, 2010, p.170).
Dessa forma, novas posturas emergem na contemporaneidade, com relações sociais,
políticas, religiosas, culturais que ―são seguramente sintomas de um novo universo de valores
éticos num mundo em transformação‖ (Ibid., p.165). Elas são expressão da busca do diálogo no
entendimento coletivo e, por conseguinte, de uma vida melhor para todos (cf., Ibid. p.165). Tal
entendimento nos faz pensar em novas relações éticas, como assinala Luciano Costa (2006, p.
2):
O ethos não é mais o a morada segura e imutável – talvez haja
mesmo a morada, uma ética como casa [...] que a casa só existe
mesmo para ser abandonada. A ética, portanto, comporta a própria
experimentação do abandono, daquilo que tenciona a fuga, fazendo da
filosofia uma pragmática de dispersão contínua.
Não sendo algo fixo e estático, na perspectiva deleuziana, a ética se expressa através da
relação com o ritornelo que ―se define pela estrita coexistência ou contemporaneidade de três
dinamismos implicados uns nos outros. Ele forma um sistema completo do desejo, uma lógica
da existência (―lógica extrema e sem racionalidade‖)‖ (ZOURABICHVILI, 2004, p. 50). Assim,
três componentes são expressão dessa experiência: o primeiro, está relacionado ao caos a busca
de um território, o segundo, a criação de territórios e o terceiro a saída do agenciamento do
território para outros agenciamentos, o que seria a desterritorialização (COSTA, 2006, p.3).
Expressam implicações éticas diferenciadas, a primeira diz respeito a ética da experimentação
(Mil Platôs), pensando em uma improvisação contínua, invenção. E a segunda seria a ética da
prudência necessária (O que é a filosofia?) está voltada às fugas, escapando dos regimes de
poder e saber através de novas possibilidades de vida (cf., Ibid., p.6). Assim, entre essas duas
éticas - surge a ética do improviso, como destaca o autor:
Nesta circularidade que envolve os ritornelos que nos
compõem, talvez a questão seja a de enxertar a fuga no passo, e que o
passo já seja ele mesmo um ―fugar‖ – não a saída de um lugar para um
outro, previamente, mas um partir suficientemente distraído - e
mesmo que se tenha a certeza do destinatário a ser alcançado, que o
momento do passo seja sempre o da grande improvisação (COSTA,
2006, p. 7).

Na visão de Deleuze, a ética segue linhas de desconstrução, de improviso, de invenção.


Compreendemos melhor essa questão a partir da leitura que esse pensador realiza da obra de
Kafka, por uma literatura menor (DELEUZE, 2014), para pensar a ética. Uma obra que expressa
as linhas rizomáticas que a constitui através de entradas múltiplas, possibilitando assim,
pensamentos, e interpretações que desvelam significações outras, sem instituir totalidades. Pois,
o castelo da obra pode aparentar esse todo, mas em sua formação tem labirintos que são
traçados por linhas de fugas, sendo assim um espaço de desterritorialização. Trata-se de linhas
com inúmeras conexões, e sentidos, não existindo assim começo e fim. Tais questões nos fazem
pensar a ética e a formação, enquanto expressão rizomática, potencializando o criar e o extrair
sentidos e fazer sentidos através das singularidades.
Assim, a partir de duas situações/imagens propostas por Deleuze e Guattari (cf. 2014 p.
13), na referência a duas imagens: a primeira é cabeça curvada (retrato-foto) e a segunda, a
cabeça erguida (som musical). A partir delas é possível pensar um ethos que segue vias de
descontruções relacionadas ao social, ao educacional, ao indivíduo. A primeira
situação/imagem, nos remete ao aspecto da moralização vivenciada sob direcionamentos e
objetivações segundo uma imagem paralisada do pensamento, e a outra, cabeça erguida, refere-
se à ética, enquanto expressão de composições sonoras que formam as linhas de fuga,
expressando a desterritorialização, desconstrução, criação e novas possibilidades do pensar,
através de um pensamento sem imagem ou com novas imagens, (re) significando a hecceidade;
coisas e pessoas. Assim, a ética e a moral são movimentações, são composições, são conexões
sociais:
A ética funciona como vetor que parte de uma situação
instituída (Moral) para uma condição outra, uma desterritorialização
do instituído, formando um novo sentido da existência. A Moral, em
oposição a Ética, não tem potência de desterritorialização, pois é em si
mesma a própria estaticidade se instituindo como uma repetição de um
mesmo espaço psicossocial (PELLOSO & RERRAZ, 2005, p. 126 e
127).

Dentro dessa perspectiva, fazemos um deslocamento duas situação/imagem para a


educação, pensando que a primeira, a cabeça curvada (retrato-foto) seria a expressão e a
configuração da escola, a qual está submissa a hierarquizações e objetivos pré-estabelecidos e
naturalizados, através dos conteúdos e dos resultados escolares, seguindo caracterizações de
uma perspectiva arbórea, e se torna estática como uma foto. E, a segunda, a cabeça erguida
(som musical), são as descaracterizações, as desconstruções, as possibilidades de novas
conexões diante da (re) significação da educação, enquanto micropolítica, movimento,
experimentação – devir, sem direcionamentos pela tradição; sem imposições, hierárquicas do
saber. Dessa forma, as ações educacionais são vistas como matérias sonoras que potencializam a
criatividade. Nessa linha, a cabeça levantada seria a expressão de uma educação
menor, que ―é uma aposta nas multiplicidades, que rizomaticamente se conectam e
interconectam, gerando novas multiplicidades‖ (GALLO, 2008, p. 69). Tal educação possui três
características: a desterritorialização da língua, a ligação política e o agenciamento coletivo (cf.
DELEUZE, 2014, p. 39). É desagregar a língua em si mesma, permitindo criações, permitindo
fugas, encontros, produzindo multiplicidades e singularidades.
A educação menor é rizomática, segmentada, fragmentada, não
está preocupada com a instauração de nenhuma falsa totalidade. Não
interessa à educação menor criar modelos, propor caminhos, impor
soluções. Não se trata de buscar a complexidade de uma suposta
unidade perdida. Não se trata de buscar a integração dos saberes.
Importa fazer rizoma. Viabilizar conexões e conexões; conexões
sempre novas (GALLO, 2008, p.68).

A educação menor é expressão do pensamento criativo, problematizando as propostas


curriculares atuais, e de busca de ―autonomia nos vários campos de saberes‖ (RODRIGUES,
2013, p. 172). Aí se coloca a possibilidade do processo de diferenciação, abrindo-se novos
olhares acerca do currículo e do que ele representa na proposta formativa da escola. Enquanto
potencialidades que faz o: ―currículo mover-se com aquilo que lhe possibilita ressoar com
outros domínios, abrindo mundos através das forças de inovação [...] expandindo a potência do
pensar e, com ela, a vida‖ (Ibid., p.173).
As questões acima indicadas oferecem a possibilidade de (re) significação da proposta
curricular predominante na educação escolar contemporânea, possibilitando-nos aprender
enquanto estrangeiros que através da repetição há sempre a diferença. Diferença no
reconhecimento, diferença na vivência, diferença nas significações, diferenças enquanto
subjetivações, singularidades e multiplicidades, vivenciando no cenário educacional a ―ética do
improviso‖ que: ―trata-se da aventura de improvisar continuamente, do lançar-se eticamente à
experimentação, com a sobriedade necessária para fazer deste movimento um ato criativo‖
(COSTA, 2006, p.8).
Nessa linha, o que é formado por composições absolutas é transformado para
acontecimentos em devir, considerando as multiplicidades e singularidades com
diversas conexões, oportunizando ao pensamento movimentos que não se cristalizam,
experiências formativas com percepções, com sensações, com sentidos diversos que não
buscam respostas totalizantes.
Sendo assim, as transformações curriculares percorrem caminhos alternativos que são
desafiadores. De forma que se põem enquanto peripécias, desvelando conhecimentos, sentidos,
pensamentos, que subvertem a lógica dogmática do pensamento que paralisa as ações, que
paralisa o criar, que paralisa a formação ética do indivíduo. Então, pensamos em transformações
que visibilizem as conexões, que oportunizem as singularidades e multiplicidades.
Possibilitando a (re) significação das implicações educacionais incoerentes na medida em que
dita a coerência, desmoralizantes de forma que impõe a moralização, e a entrada no caos, sem
vias de transformações, portanto, a moralização, a coerência e o caos serão vividos para serem
transformados, seguindo linhas de fugas, encontros, e bifurcações.

3 Entre o currículo prescritivo e o currículo real: ações educativas que perfazem a


formação

Descrever a Escola de Referência enquanto normativa e prescritiva através de


documentos pensados e selecionados por esferas políticas e reproduzido na escola, é percorrer
caminhos óbvios, sem perceber as interrelações que compõe as normas voláteis que emergem no
cenário escolar, através das ações educativas que permeiam compreensões e formações
inovadoras. Tais ações se apresentam como novas práticas sociais, diante de novas atitudes e
ações que estão presentes na escola, e que de modo vísivel, mas também invisível podem ser
relacionados à formação do/a jovem. Tal perspectiva pode ser visualizada na Escola de
Referência de Panelas-PE – EREM-PA, como expressão de multiplicidades e singularidades
que compõe o/a jovem estudante da escola, mas que perpassam outras conexões com os/as
educandos/as, educadores/as e funcionários/as.
Apesar do que é prescrito está instituído em linhagem moderna, e, percorrer caminhos
lineares e controladores, no que se refere à produção do conhecimento, há os ensaios paralelos
na escola, que percorrem vias para novas formações e novas relações no contexto educacional.
Percebemos o reconhecimento de tal direcionamento na fala dos/as estudantes A1 (2014):
Assim: eles explicam o conteúdo, às vezes até brincam durante
as aulas para que a gente entenda melhor. Eles não fazem assim, assim
... Porque passar o dia todinho nesse calor, já é uma coisa cansativa e
se as aulas fosse uma coisa cansativa, ruim, iria ficar pior ainda para a
gente.

Nessa perspectiva, podemos perceber que o que acontece na escola se torna singular na
medida que é múltipla, através das aulas diferenciadas para transformar ―uma suposta rotina‖
que se coloca na construção do conhecimento, na medida em que há a reprodução do saber, com
a intencionalidade de cumprir o que está delineado nos parâmetros curriculares e na proposta
curricular. O que faz da escola uma existência do fora e no fora. Por isso, essas aulas que são
descontraídas, perfazendo a metodologia construída pedagogicamente a priori, podem ser vistas
como ―experiências singulares acontecem no cotidiano da escola e produzem outras escolas e
outros processos educativos‖ (GALLO, 2013, p. 138). Desse modo:
Olhe: os professores, eles são muito amigos, eles, assim, tanto
ensina os conteúdos, como eles preparam a gente para vida lá fora.
Eles dizem: ―Oh! Aqui a gente se preocupa com vocês, mas é para
vocês se preocuparem com vocês também. Porque lá na faculdade não
é todo o professor que vai puxar vocês, entendeu? Aqui a gente se
preocupa para isso, pra vocês aprenderem a ter responsabilidade,
desde já‖. É isso que eles passam pra gente: que a gente tem que ter
responsabilidade com a gente mesmo, se a gente quer alguma coisa.
(A3, 2014).

Desse modo, compreendemos que as ações desenvolvidas pela escola, entre o que é
prescrito e vivido, apontam para o que é previsto nos documentos que regem a instituição, e
para a proposta de educação interdimensional que caracteriza a educação da escola de
Referência. Assim, as ações que percorrem vias de singularidades e experimentações, estão
atreladas a pedagogia da presença com intencionalidades formativas na relação entre o/a
docente e o/a discente (cf., COSTA, 2001, p.21) preparando para a cultura da trabalhabilidade, e
para a inserção dele/a no ensino superior.
Atentos a essas ações, observamos que existem ações educativas que instauram novas
verdades, através do pensar, do significar, de modo que, pensamos em uma certa subversão do
que é instituído, possibilitando novas construções, desestabilizando o território de certezas, e de
intencionalidades prescritas e normatizadas, resistindo às aspirações que são impositivas e que
instalam tempos caóticos no que se refere a formação do indivíduo, através de encontros com
coisas e pessoas. Assim, compreendemos que as ações educativas revelam certa autonomia, no
que diz respeito à flexibilidade curricular que há na escola de forma implícita, mesmo uma
autonomia condicionada a regras maiores – regulada, mas que, sendo assim, possibilita
experiências formativas que potencializam a diferença em sua real diferença, pelo
reconhecimento das peculiaridades que por vezes estão escondidas, encobertas e silenciadas.
Como nos diz CP (2014) ―a gente tem uma autonomia, mas ela é muito pequena, direcionada‖ e
continua explicitando:
Embora que a gente é assim, um ajuda o outro, mas aí já
melhorou muito, nesse sentido. Mas tem hora que tem divergência
sim, tem hora que não quer aceitar muito, professor que queria ter
mais autonomia, e eu também nisso aí, eu acho, eu também sou a
favor. Essa questão do currículo fechado, que você tem que vivenciar
aquele conteúdo e você está vendo que o aluno está necessitando de
outro, nessa autonomia do fazer pedagógico, que a gente aqui tenta
(CP, 2014).

Numa primeira leitura, podemos afirmar que o currículo apresenta-se fechado, mas é
flexibilizado através das posturas pedagógicas assumidas no cotidiano educacional, pois o
pensamento segue outras linhas. Nessa perspectiva, ele assume desdobramentos que difere da
imagem da árvore criticada por Deleuze (2011, p. 34), ao afirmar que muitas ―pessoas têm uma
árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore‖.
Podemos entender o currículo dessa maneira: ele pode ser cristalizado de forma enraizada, sem
ramificações, mas as desconstruções que são pertencentes ao cérebro, que se materializam nas
ações pedagógicas desenvolvidas na escola, podem seguir linhas de uma pedagogia rizomática.
Pensando assim, ele se converte num currículo movente, uma educação que ―não empobrece a
racionalidade com narrativas da certeza, mas que potencializa a criação, a invenção, a diferença,
a variação, outras formas de viver através de um currículo movente‖ (RODRIGUES, 2013,
p.182). Assim, podemos pensar através de outros olhares essa experiência que constitui,
desconstitui e reconstitui a escola, nesse sentido, ―pensar é explicar, desenvolver, decifrar,
traduzir signos‖ (VASCONCELLOS, 2005, p. 1220).
Portanto, o currículo vivido legitima ações moralizantes, correlacionado a formação
do/a jovem da Escola de Referência, em consonância com o currículo prescritivo que é
normatizado pela proposta de Educação Integral. Assim, estabelece-se um paradoxo, de um lado
há a formação voltada para a educação interdimensional (Costa, 2008) e por outro, através das
linhas de fugas, ações que potencializam novas experimentações, no entanto, essas
―experimentações‖ estão atreladas as intencionalidades e objetivações da proposta. O que forja e
direciona a imagem do pensamento, assim, as experiências que possibilitam o pensar, e o criar,
estão em conexão com às conceituações que formam a filosofia da escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Devir – singularidades e multiplicidades nos
labirintos formativos da Escola de Panelas-PE
Há labirintos que permeiam os espaços educativos que não são perceptíveis
visivelmente, e que carregam em si devires que são potências criativas e que destoam de
formações previstas e lineares – e pré-estabelecidas. Desse modo, as experiências, com
profundidades inimagináveis, expressam singularidades diante da multiplicidade na qual ela se
realiza. Constitui-se em significações novas e em relações desmedidas, fazendo daquele
território escolar, que é fechado, um desterritório, com formas diferenciadas de pensar e por
conseguinte agir.
Acreditamos que por vias desses labirintos, conseguimos descobrir relações singulares,
que se distanciam de rotulações, e de definições que se configuram nas ações educativas da
escola, pois, há a dicotomização entre estudantes que se sobressaem diante de valores e ações
moralizantes dos/as que lidam com a construção do conhecimento formal. Nesse sentido, a
experiência da formação segue a incerteza, a desconstrução, de forma implícita subvertendo a
ordem do saber que está instituído sob os moldes modernos do conhecimento, o que é visível e
compreendido na Escola de Panelas-PE. No entanto, as interfaces que são descortinadas nas
experiências formativas, seguem linhas de transformações, o que a nosso ver seriam
desconstruções.
Temos aí um paradoxo: de um lado, a imagem do pensamento universalizante, o que
seria a imagem dogmática do pensamento, através de ações e práticas que diz respeito à
racionalidade como sobreposição a outras formas de pensar, de criar e de aprender. Pois, como
assinala Deleuze (2006, p. 237): ―Os limites das faculdades se encaixam uns nos outros sob a
forma partida daquilo que traz e transmite a diferença. Não há metódo para encontrar tesouros
nem para aprender, mas um violento adestramento, uma cultura ou paidéia que percorre todo o
indivíduo‖. Nessa perspectiva, observa-se a possibilidade do novo através das práticas
formativas desveladas no horizonte escolar, através das diferentes atividades que buscam outros
caminhos formativos. Elas desencadeiam novo devires, através da experimentação, e da
interpretação das singularidades que compõe os indivíduos da escola diante do todo que se
configura como a multiplicidade com inúmeras conexões. Assim, através de filmes, da arte, das
brincadeiras, das conversas, descortinam-se novos sentidos de formação que permeia a
formação dentro e fora da escola.
São ações que nos levam a pensar diante do fechado, o aberto, diante da palavra, a
música, diante da foto, a cabeça erguida, seguindo desse modo possibilidades de libertação,
através de lutas em diversos ângulos e níveis (GALLO, 2008, p. 61). Ela ―deve dar-se no ângulo
do cotidiano da sala de aula‖ (GALLO, 2008, p. 61). Pois o tempo, o espaço, faz com que esses
labirintos sejam vividos nas relações entre estudantes e professores/as, entre estudantes e a
escola, entre estudantes e a gestão, entre estudantes e os/as funcionários/as daquele espaço
educativo. E assim, os territórios são revirados produzindo sentidos que são encontrados nas
frestas formativas que percorrem os devires educacionais, viabilizando encontros e conexões
gerando novas multiplicidades, que seriam essas novas intimidades, esses compartilhamentos
enquanto indivíduo, enquanto docente e discentes.
Nessa perspectiva, compreendemos a formação ética que é tensionada para a
moralização, para os valores, ao comportamento, também ganha novas conexões, novas
interpretações, (re) significando no lócus escolar a vivência dos sentidos previstos moralizantes,
mas também da invenção, e a permissão ao criar, através de novas posturas éticas, que se
proliferam no exercício do pensar.
Desse modo, as singularidades e as multiplicidades ganham visibilidades,
desenvolvendo movimentos que seguem vias desconhecidas produzindo a realidade social, e á
ética formativa da Escola, não se resume à experimentação, ou a prudência, mas ao improviso
enquanto ações criativas (COSTA, 2006), e assim o ―aprender não é reproduzir, mas inaugurar;
inventar o ainda não existente, e não se contentar em repetir um saber‖ (SCHÉRER, 2005, p.
1188).
A escola de Referência de Panelas-PE, em seus labirintos, revela aspectos, mesmo que
tênues da relação entre a potencialidade criativa, assim, a formação ética possibilita novas
construções sociais, através de vivências que emergem do dia a dia, e que potencializa novas
formas de pensar, estudar, e aprender, e, em consequência novas formações, novas
singularidades e novas multiplicidades, seguindo linhas de fugas, e, percebendo-se e formando-
se diante dos territórios provisórios, possibilitando outras entradas, e outras saídas, e assim,
outras formas de atuação na vida. Desvela-se nesse contexto que a educação que permeia esses
espaços educacionais baseados na proposta de educação integral, descortinam sentidos voltados
à formação do ser humano nas várias dimensões: a cognitiva, afetiva, espiritual, e a
corporeidade. Fazendo com que as ações educativas da escola, e os princípios formativos
estejam relacionados à construção social de um jovem autônomo, ético e moral, através das suas
escolhas, dos valores, das posturas, que são experienciadas e visibilizadas no cotidiano escolar.
Assim, compreendemos que a educação integral possibilita nuances acerca da
educação moral, da ética, da relação das dimensões do humano, constituindo-se
enquanto um desafio maior, o qual é transformar a ótica estrutural e organizacional que
a escola assume. Nessa proposição educacional fundamentada na concepção de
educação interdimensional, há elementos formativos direcionados ao protagonismo
juvenil, à educação para valores, à presença educativa, ao empreendedorismo, à
trabalhabilidade, e ao ingresso no ensino superior, buscando com isso, resultados
satisfatórios para alavancar o índice da escola. Nessa perspectiva, a proposta formativa
da escola se materializa em ações que se refere às relações entre pessoas, entre os
saberes. Destaca-se aí o aspecto da moralização como sentido da formação ética,
revelando aspectos constituídos na modernidade, marcados pelo paradigma da
racionalidade, expressão do modelo da recognição. Destacando dessa forma, os saberes,
as ações, as relações, potencializando as experiências sociais.
Com efeito, há relações que são disseminadas, e outras que são potencializadas
através do diálogo das áreas do conhecimento, permitindo assim, que os conteúdos, as
habilidades e competências, sejam (re) significados enquanto processo formativo que
descortinam outros sentidos, no que se refere ao pensamento, ao saber, ao convívio
educacional, ao fazer, ao conviver, de forma que se abrem ações educativas através de
conversas, de filmes, de atividades artísticas enquanto linhas de fugas que transformam
os olhares singulares e múltiplos e, por conseguinte a relação com a vida, com o saber e
consigo mesmo, o uno-múltiplo.

REFERÊNCIAS

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DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO BRASIL: UMA BREVE
DISCUSSÃO SOBRE (IN) CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DA ANISTIA

Wine Santos Silva1

GT 01: Arte, Educação e História dos Direitos Humanos

RESUMO

A Democracia nem sempre foi o regime vigente no ordenamento jurídico


brasileiro. Sendo assim, neste artigo tratei especificamente das afrontas ao regime
democrático e aos direitos humanos ocorridos na década de 60, período onde a junta
militar, através de um golpe político, assumiu o controle governamental do País. Com o
golpe, surgiram diversas manifestações, as quais eram severamente repreendidas pelo
governo através de atos fisicamente degradantes e antidemocráticos, como torturas e
perseguições políticas das mais diversas, entre elas, as prisões e o exílio. Infelizmente,
não são poucos os relatos de pessoas que sofreram agressões em Estados que passaram
por regimes totalitários, com este trabalho, evidenciei a indispensabilidade de
responsabilização dos agentes causadores de violações aos direitos humanos, bem como
discuti brevemente acerca da constitucionalidade da Lei da Anistia, tendo como
parâmetro a necessidade de reparação às vítimas da ditadura, isso, em respeito à
memória e à verdade, pilares da Justiça de Transição. Além disso, analisei alguns
acontecimentos da época da ditadura militar no Brasil, no sentido de reconhecê-los
como marcadores no estudo do direito e sua relação com o conceito de Justiça, levando
em consideração a aplicação da Justiça de Transição no processo de redemocratização
do Brasil.

Palavras-chave: Constitucionalidade. Ditadura. Verdade. Memória.

INTRODUÇÃO

As violações suportadas por cidadãos em Estados que passaram por regimes


totalitários, sem dúvida alguma devem ser reparadas e os responsáveis devem responder
não só pelos danos causados às vítimas diretas do evento, mas também, aos familiares
1
Graduanda em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Pesquisadora do projeto de
Iniciação Cientifica “Direitos Humanos, violência e diversidade humana no período ditatorial, no
Agreste pernambucano (1964-1985)”. Membra do Grupo de Estudo e Pesquisas Interdisciplinares sobre
Direitos Humanos (GEPIDH-UNIFAVIP). E-mail: winnesantos@hotmail.com
que tiveram que suportar a dor de ver seus entes queridos desaparecidos, torturados, e
até presos. No entanto, o procedimento de reparação não é tão simples como aparenta
ser, isso porque, algumas vezes ao longo do processo de redemocratização,
determinadas medidas adotadas pelo governo na tentativa de restabelecer a democracia
e o unir o cidadão com o Estado, na verdade, acaba se tornando um ato de impedimento
a concretização da Justiça, uma vez que a depender da medida adotada, há um
impedimento na investigação dos crimes praticados durante o período de ditadura, e
consequentemente na responsabilização de seus agentes.
Como se sabe anistiar significa perdoar. Com o advento da Lei da Anistia todos
os crimes políticos ou conexos cometidos durante o período de 1964-1985 teriam sua
conduta ilícita perdoada. Inicialmente, a proposta da Lei da Anistia mostrou-se uma
excelente ferramenta para marcar o fim da ditadura, todavia, uma expressão utilizada
pela lei causaria inúmeras discussões, qual seja: “crimes conexos”.
Dessa forma, o presente artigo tem o escopo de elaborar questionamentos a
respeito da constitucionalidade da Lei da Anistia, tendo em vista o paradoxo entre esta e
os pilares da Justiça de Transição, especificamente, em relação aos eixos de Memória e
Verdade. Além disso, o presente trabalho visa expor sucintamente os entendimentos
doutrinário e jurisprudencial sobre a matéria de interesse, isto, com ênfase nas esferas
políticas, judicial e social do Brasil.
A problemática de pesquisa que orientou este trabalho foi: Quem são os
principais beneficiados com a vigência da Lei da Anistia no ordenamento jurídico
brasileiro?
O objetivo geral do presente trabalho é: Promover uma breve discussão a
respeito da constitucionalidade uma lei que redimiu não apenas perseguidos, mas
também, perseguidores e sua eficácia refletida no atual regime democrático,
considerando a aplicação da Justiça Transicional no processo brasileiro de
redemocratização.
Os objetivos específicos desta pesquisa são: Investigar os precedentes históricos
da edição da Lei da Anistia, discutir sobre a repercussão da decisão do Supremo
Tribunal Federal acerca da inconstitucionalidade da Lei da Anistia no Brasil e abordar o
paradoxo existente entre a vigência da Lei da anistia e os eixos da Justiça de Transição,
especificamente, em relação à memória e a verdade.
Para atingir os objetivos almejados por esta pesquisa foi utilizado o método de
pesquisa dialético a fim de promover uma breve discussão sobre a constitucionalidade
da Lei da Anistia, o qual segundo Oliveira (2004) é definido em síntese pela elaboração
de questionamentos a respeito do tema em debate. Considerando que este trabalho se
propõe a debater acerca da constitucionalidade de determinada lei, bem como identificar
quais são os principais beneficiários com sua vigência, utilizei o tipo de abordagem
qualitativa, a qual nas ideias de Oliveira (2004) difere da abordagem quantitativa pelo
fato de não empregar dados estatísticos como centro do processo de análise de um
problema, ou seja, não terem a pretensão de numerar ou medir unidades ou categorias
homogêneas, mas analisar situações complexas ou estritamente particulares.
Haja vista se tratar de uma pesquisa que objetiva promover uma discussão sobre
determinado fato foram utilizados os tipos de pesquisa Bibliográfica, Exploratória e
Descritiva. A pesquisa bibliográfica, segundo Oliveira (2004), é tipo de pesquisa que
tem por finalidade conhecer diferentes formas de contribuição científica que se
realizaram sobre determinado assunto ou fenômeno, além de abranger toda a
bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas,
jornais, livros, monografias, teses etc.
A pesquisa exploratória, por sua vez, conforme dispõe Severino (2013), busca
apenas levantar informações sobre um determinado objeto, delimitando assim, um
campo de trabalho, mapeando as condições de manifestação do objeto.
No mais, a pesquisa descritiva é aquela que visa à identificação, registro e
análise das características, fatores ou variáveis que se relacionam com o fenômeno ou
processo. Esse tipo de pesquisa pode ser compreendida como um estudo de caso onde
após a coleta de dados, é realizada uma análise das relações entre as variáveis para uma
posterior determinação do efeitos resultantes em uma empresa, sistema de produção ou
produto (Perovano, 2014).
A análise de dados foi a documental, que segundo Lakatos e Marconi (2006), é a
fonte de coleta que está estritamente restrita a documentos, escrita ou não, constituindo
o que denomina de fontes primárias ou secundárias, ou seja, na técnica de coleta de
dados documental têm-se como fonte documentos em sentido amplo, não só
documentos impressos, mas, principalmente, outros tipos de documentos tais como,
jornais, fotos, filmes, documentos legais etc. Por fim, por se tratar de uma pesquisa de
abordagem qualitativa, será utilizada a análise de conteúdo como técnica de análise de
dados, que nada mais é que a técnica de análise de informações constantes de
determinado documento. Esta técnica dedica-se a compreender criticamente o sentido
manifesto ou oculto das comunicações (Severino, 2013).
Finalmente, em relação à justificativa do presente trabalho, pesquisando sobre a
Ditadura militar e o processo de redemocratização brasileira, a bibliografia me mostrou
que embora o tema seja muito debatido na academia, não há vasta produção embasada
em aspectos teóricos que considerem a Lei da Anistia como impedimento para
efetivação da Justiça de Transição. Nesse sentido, este trabalho surgiu do desejo de
promover uma discussão acadêmica acerca da vigência da Lei da Anistia no atual
cenário jurídico- constitucional brasileiro. Ademais, este trabalho se justifica no esforço
de explorar temas ainda não debatidos quando a temática é período totalitário no Brasil.
No mais, o presente trabalho em termos de pesquisa dialética, se marca pelo
ineditismo, ao trabalhar a apresentação de questionamentos acerca do paradoxo “Justiça
de Transição versus Lei da Anistia”.

DESENVOLVIMENTO

Os Precedentes Históricos da Elaboração da Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79)

O Regime Democrático foi reinaugurado no Brasil com a Constituição


Federal de 1988, entretanto, isto não quer dizer que todas as espécies normativas de
cunho antidemocrático foram extintas do ordenamento jurídico, prova disso é a vigência
da Lei da Anistia, objeto de estudo deste trabalho.
O conceito de Anistia em si consiste na extinção de fato punível cometido
por outrem em determinada circunstância. A origem do vocábulo “anistia” advém do
grego “amnestia”, traduzindo a ideia de esquecimento. No Brasil, a ideia de anistiar
surge durante o processo de redemocratização ocorrido após o auge do regime militar,
como uma forma de conceder perdão a todos àqueles que se encontravam envolvidos
nos eventos ocorridos entre os anos de 1964-1985.
No entanto, antes da edição da Lei da anistia o Brasil passou por um
momento muito conturbado, isso porque, a partir da segunda metade do século XX
grandes acontecimentos marcaram o cenário mundial, entre eles, a Guerra Fria. Neste
período, grande parte dos países da América Latina, especialmente o Brasil, tiveram
seus regimes democráticos usurpados por militares, os quais sob a alegação de
protegerem a segurança nacional e impedir as ameaças de corrupção e ascensão dos
comunistas, transformaram o país em uma verdadeira ditadura.
Entre os países que foram alvos de golpes militares além do Brasil, temos:
Argentina (1966-1983), Paraguai (1954-1989), Chile (1973-1990) e Uruguai (1973-
1985), dentre outros.

Em 1º de abril de 1964 o Brasil sofreu o golpe através da tomada do poder


pelos militares, quando da derrubada do governo do Presidente da República João
Belchior Marques Goulart e da edição do Ato Institucional nº 1 (AI-1), o qual
objetivando consolidar o regime imposto pelos militares, determinou uma série de
sanções e perseguições que perduraram até pouco antes do início do Regime
Democrático de 1988. Destaca-se que os Atos Institucionais eram implementados pelos
próprios generais, ou seja, não obedeciam qualquer norma ou princípio constitucional.
Neste período sombrio da história do Brasil, vários foram os atos de tortura praticados
contra aqueles que se opunham ao regime ditatorial.

O Ato Institucional nº 1 deu início a uma série de outros atos institucionais


que alteraram todo ordenamento jurídico brasileiro, desprezando todos os valores
constitucionais cultivados nas Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937 e 1946. Os Atos
Institucionais nº 2 e 3 causaram um verdadeiro caos no cenário político brasileiro ao
estabelecerem atos completamente antidemocráticos, como a realização de eleições
indiretas, a extinção dos partidos políticos, o cancelamento de direitos políticos de
inúmeros cidadãos, a ampliação dos poderes da assembleia legislativa e a nomeação
compulsória de entes políticos.

O Ato Institucional nº 4, por sua vez, foi convocado pelo Congresso


Nacional na tentativa de editar uma nova constituição, ou seja, o objetivo era revogar a
excelsa Carta de 1946 e criar uma nova constituição que atribuísse o poder político
totalmente ao Executivo. Este evento se concretizou com a criação da emenda
constitucional nº 1/69 à Constitucional de 1967. Entretanto, não obstante todas as
medidas adotadas pelos militares até o presente momento da história, sem dúvida
alguma, o ato mais violento e arbitrário de todos foi o Ato Institucional nº 5, isso
porque, este concedeu pleno poder ao chefe do executivo para dissolver provisoriamente
o Congresso Nacional e restringir direitos e garantias fundamentais.

Além disso, com a promulgação do Decreto-Lei nº 898/69 que tinha


incidência ativa no campo penal, diversos dispositivos demonstravam o retrocesso dos
ideais cultivados anteriormente no país, como as liberdades individuais e coletivas.

O contexto político brevemente abordado neste trabalho perdurou de 1969


até 1985, quando o Congresso Nacional decidiu por fim a ditadura militar. Todavia,
antes mesmo do encerramento da ditadura, em 1979, foi elaborada a Lei nº 6.683, com o
intuito de anistiar todos civis, funcionários públicos e militares que estavam envolvidos
de alguma forma no regime militar.

Aqui, é interessante questionar o exato momento da edição da Lei da


Anistia, vez que o diante da instabilidade do regime militar e da nítida chegada do
processo de redemocratização, os militares preparam todo um arcabouço jurídico para
garantir a proteção daqueles que praticaram verdadeiras condutas criminosas durante a
ditadura. A promulgação da Lei da Anistia, ora discutida, promoveu ainda o retorno
dos exilados políticos e não impunidade dos agentes públicos responsáveis pela tortura
dos subversores.
Nesse sentido, verifica-se até o presente momento que a anistia não foi
apenas anseio dos militares e de outros indivíduos envolvidos na ditadura militar, mas
anseio de toda uma sociedade que aguardava por um ato que colocasse fim na ditadura.
Assim, a Lei da Anistia torna-se controversa no exato momento que anistia tanto
àqueles que reprimiram o Estado Democrático de Direito quanto aos civis que foram
constantemente perseguidos por militares que reprimiam o Estado Democrático de
Direito.

Pensar na Lei da Anistia como uma “lei de mão dupla” nos leva a elaborar
questionamentos acerca da essência da própria lei e sobre os principais beneficiados
com sua vigência, questão que tratarei ainda neste trabalho.

A Repercussão da Decisão do STF acerca da Inconstitucionalidade da Lei da


Anistia no Brasil

O Regime Democrático de Direito reinaugurado no Brasil com a promulgação


da Constituição Federal de 1988 após um duro período de ditadura, trouxe consigo
significativos avanços no que concerne às garantias individuais e coletivas. No entanto,
o processo em si de redemocratização do país foi e continua sendo mais complexo do
que aparenta ser.
Como sabemos, o processo de redemocratização do Brasil foi estreado com a
edição da Lei da Anistia, no entanto, conforme comentado acima, embora haja a ideia
de “lei de mão dupla”, aparentemente, a Anistia no Brasil beneficiou muito mais os seus
próprios emissores do que a comunidade em geral, existindo o raciocínio de uma anistia
dos militares, para os militares e os civis em benefício deles próprios, e em detrimento
de muitos que foram classificados como contrários ao sistema e tiveram seus direitos
tolhidos.
Inúmeras foram as medidas adotadas pelos militares para restringir os direitos
das pessoas que se posicionavam contra o golpe, entre elas, a prisão. De muitos presos,
jamais se soube alguma informação, cabendo aos familiares a persecução a fim de obter
dos órgãos estatais esclarecimentos sobre a situação dos desaparecidos, no entanto, por
não gozar de legitimidade ante aos Tribunais competentes, os órgãos não tinha como
responder satisfatoriamente a pretensão das famílias, uma vez que sequer possuíam
mecanismos eficazes para fazer valer o direito à informação.
Dessa forma, diante da impossibilidade de outros órgãos disponibilizarem
informações satisfatórias as famílias das vítimas da ditadura, bem como se
sensibilizando pelos inúmeros apelos populares, a Ordem dos Advogados do Brasil,
efetivando a previsão legal, impetrou uma Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental no Supremo Tribunal Federal, considerando ser esta a última esperança
para frear os efeitos indiretos e posteriores da Lei da Anistia. Além disso, por se tratar
de legislação anterior à ordem vigente, essa seria a única ação cabível para paralisar
afrontas e desrespeito a qualquer preceito fundamental insculpido no ordenamento
jurídico.
A ADPF, assim, consiste em um instrumento do sistema de controle de
constitucionalidade brasileiro, a qual ampliou a jurisdição da Suprema Corte
Constitucional do país, sendo cabível para que se pronuncie e deixe sem eficácia
jurídica Lei Federal anterior à Constituição e atente expressamente os seus princípios.

A peça inicial da ADPF impetrada pela OAB questionou inicialmente a


amplitude do artigo 1º da Lei da Anistia em relação aos crimes de homicídio,
desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado
violento ao pudor contra os opositores ao regime militar. Além disso, a OAB indicou
que a lei foi capaz de gerar um esquecimento e provocar uma situação de ficção legal
porque não apaga a infração, mas veda o direito de punir, ou seja, não paga o crime nem
o torna lícito, porém, deixa o Estado que a outorgou sem a possibilidade de penalizar
todo aquele que cometeu ilícitos durante aquele período.
Ademais, sustentava que a Lei da Anistia violava diversos preceitos
fundamentais e consolidações jurídicas, a saber: Foi a primeira vez na história nacional
que se concedeu anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado
encarregados da repressão; Atenta contra o dever estatal de não ocultar a verdade
perante o povo que é o “dono do poder”, que delegou o exercício aos seus
representantes - é inadmissível que ocultem os nomes daqueles que cometeram abusos
contra os seus governados. (ADPF 153, 2008); Sua aprovação foi dada por um
Congresso Nacional eleito sob a mira das armas dos generais, com a intrínseca
obrigação de aprovar os projetos de acordo com a vontade do governo e não em
consonância com a vontade popular.
Todavia, ao apreciar a demanda, em 29 de abril de 2010, o STF por sete votos a
dois, julgou improcedente a referida arguição, exibindo o como parâmetro principal a
afirmação que a Lei da Anistia representou uma etapa necessária no processo de
conciliação e redemocratização do país, portanto, não se tratou de uma autoanistia, uma
vez que a edição da lei ocorreu por solução consensual das partes.
Além disso, os ministros favoráveis à improcedência da arguição expuseram que
não era o caso de invocar a jurisprudência internacional, pois não se tratava de anistia
unilateral e sim de ato consensual onde o cidadão tinha o direito à verdade dos fatos,
entretanto, este não poderia ensejar qualquer finalidade penal.
Em seu relatório, o ministro Eros Grau contrariando todos os argumentos
utilizados na ADPF 153 sustentou:

“Não vejo realmente como possam, esses argumentos, sustentar-se,


menos ainda justificar a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental. Pois é certo que, a dar-se crédito a eles, não apenas o fenômeno
do recebimento --- a recepção --- do direito anterior à Constituição de 1988
seria afastado, mas também outro este verdadeiramente um fenômeno, teria
ocorrido: toda a legislação anterior à Constituição de 1988 seria, porém
exclusivamente por força dela, formalmente inconstitucional. Um autêntico
fenômeno, a exigir legitimação de toda essa legislação pelo órgão legislativo
oriundo de eleições livres ou então diretamente pelo povo soberano, mediante
referendo. Os argumentos adotados na inicial vão ao ponto de negar mesmo a
anistia concedida aos crimes políticos, aqueles de que trata o artigo 1º da lei,
a anistia concedida aos acusados de crimes políticos, que agiram contra a
ordem política vigente no País no período compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. A contradição é, como se vê,
inarredável. O que se pretende é extremamente contraditório: a ab-rogação da
anistia em toda sua amplitude, conduzindo inclusive a tormentosas e
insuportáveis consequências financeiras para os anistiados que receberam
indenizações do Estado, compelidos a restituir aos cofres públicos tudo
quanto receberam até hoje a título de indenização. A procedência da ação
levaria a este funesto resultado.”
Entretanto, a decisão pela improcedência da ADPF 153 não foi unânime, de
modo que os votos vencidos foram os dos ministros Ricardo Lewandowski e Ayres
Britto, os quais embora tenham votado a favor da Arguição, apresentaram certa
estranheza em relação ao pedido, sob a alegação que a OAB foi uma das instituições
que mais lutou pelo processo de abertura da Lei da Anistia.
A decisão do STF, entretanto, não foi recebida de maneira pacífica pela
doutrina brasileira, muitos dos doutrinadores rebateram os argumentos da referida
Excelsa Corte por acreditarem que seria incabível que uma norma completamente
divergente dos valores esculpidos na Constituição Federal de 1988 passasse a integrar a
ordem jurídica criada pela mesma, haja vista que a anistia foi concedida a pessoas que
haviam participado de atos deliberadamente contrários aos princípios da dignidade
humana.
É certo que ao julgar improcedente o pedido e mais uma vez favorecer o Estado,
sob a mera alegação de evitar uma insegurança jurídica, o STF sepultou o sonho de
muitos familiares de conhecerem pelo menos o último paradeiro dos seus, de ter
informações sobre como foram mortos ou se foram exilados.
Investigando ainda a respeito da repercussão desta decisão do STF, observei que
em âmbito internacional a vigência da Lei da Anistia apresenta-se como um obstáculo
para efetivação da Justiça, levando o Brasil a ser condenado diversas vezes na Corte
Interamericana de Direitos Humanos pela aplicação de uma Lei que impede a
investigação, julgamento e punição dos crimes cometidos em determinado período.
Nesse sentido, a decisão do STF vai de encontro à jurisprudência da CortelDH,
que considera a interpretação e aplicação da Lei da Anistia no Brasil viola os tratados
internacionais, dos quais os Estados comprometem-se a investigar e punir crimes
praticados contra os direitos humanos. Assim, a Lei da Anistia tida como constitucional
pela Suprema Corte nada mais é que uma barreira ao julgamento e punição dos
responsáveis pelos fatos ocorridos durante a ditadura.
Direito à memória e à verdade no Brasil: A Lei da Anistia como impedimento
à efetivação da Justiça de Transição

Vários países da América Latina, tais como Brasil, Chile, Argentina e Uruguai,
que passaram por regimes totalitários, inauguraram nas últimas décadas um processo de
redemocratização, e é a partir desse processo que começam a ocorrer consideráveis
mudanças políticas e jurídicas através da implementação da Justiça de Transição.
Segundo Zyl (2011, p. 45) a Justiça de Transição é “o esforço para reconstrução
da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação
sistemática dos direitos humanos.”
Nesse sentido, a Justiça de Transição envolve um conjunto de medidas que
permitem a superação de um regime autoritário para que se construa uma ordem
democrática e garantidora de direitos humanos. A Justiça de Transição é composta por
quatro elementos ou pilares, são eles: O direito à memória e à verdade; As reformas
institucionais; As reparações simbólicas e financeiras; A responsabilização por atos
praticados no período autoritário.
No presente trabalho, tratarei especificamente dos elementos acerca do direito à
memória e à verdade. Os quais, por sua vez, se constituem na busca pela reconstrução
da memória e da verdade histórica dos países que passaram por regimes autoritários.
Isso se faz necessário pois, é comum que regimes ditatoriais apresentem uma versão
oficial distorcida da história, que seja mais atrativa a seus interesses, trazendo à tona,
além de elogios a seu próprio governo, a ocultação das práticas autoritárias cometidas
no período.
Todavia, analisando o caso brasileiro em relação à aplicação da Justiça de
Transição, percebe-se que apenas duas medidas foram concretizadas: a reparação e o
resgate da memória com a promulgação da Lei nº 9.140/95, que foi conhecida como a
“Lei dos desaparecidos”, por meio da qual o Estado promove a indenização daqueles
que desapareceram por motivações políticas, isso, como uma forma de reparação pelos
danos causados.
Memória e verdade são os pontos de partida mais difíceis de concretizar quando
se fala de Justiça de Transição, uma vez que encontram diversas resistências por parte
do Estado para a efetivação, principalmente porque não basta apenas reconhecer e
reparar, mas existe a necessidade de se promover uma verdadeira mudança institucional.
No Brasil, a Justiça de Transição está muito aquém de ser efetivada. Prova disso
é a decisão do STF acerca da ADPF nº 153, que optou por manter os efeitos da Lei da
Anistia, no sentido de perdoar os carrascos ao deixar de aplicar-lhes punições penais
pelos crimes praticados.
Isso porque, a Lei da Anistia elaborada inicialmente como uma promessa de
transição à democracia, acabou se tornando um verdadeiro impedimento à efetivação da
Justiça de Transição.
As atrocidades cometidas durante a ditadura militar no Brasil jamais serão
esquecidas e, assim, devem ser. No entanto, a Lei criada com a expectativa de
reinaugurar o regime democrático no Brasil, deveria dispor, no mínimo, de mecanismos
para contemplar os verdadeiros acontecimentos ocorridos no período de ditadura e
possibilitar alguma investigação e punição daqueles que violaram diretamente os
direitos humanos de diversos cidadãos.
Na verdade, o que, infelizmente, se constata até o presente momento com este
trabalho, é que a Lei da Anistia acabou tornando um empecilho à efetivação da Justiça
Transicional e, tornou-se uma política de esquecimento, alavancada em prol daqueles
praticaram crimes contra a humanidade, absolvendo-os, por conseguinte, aprisionando
as vítimas do sistema ditatorial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando todo o contexto debatido até o presente momento neste trabalho,


caminhamos agora para o debate final a respeito da temática proposta. Analisando a
bibliografia cheguei, por ora, a conclusão que diante do eminente fraco do regime
ditatorial, a única saída para os militares era aceitar o mesmo modelo que já era
realizado pelos países vizinhos, ou seja, elaborar uma forma de entregar novamente o
poder nas mãos do povo sem que isso indicasse quais quer ônus para si próprios. E foi
justamente isso que eles fizeram ao elaborar a Lei da Anistia.
Eles mesmos foram os arautos de todos os atos jurídicos inerentes ao período de
transição do país e tomaram várias iniciativas para que saíssem do poder da mesma
maneira que entraram, com todo o respaldo do organismo estatal numa tentativa de não
dar espaço para punições por suas ações arbitrárias, contrárias aos interesses da
coletividade e aos princípios democráticos do direito.
A Lei da Anistia proveniente inicialmente dos anseios populares deveria
beneficiar as vítimas, mas, a ela foi dada uma interpretação extensiva que amparou os
acusados de crimes políticos, sem, contudo estender-se aos condenados por atentados e
sequestros também de natureza política. Atingia positivamente aqueles que tiveram seus
direitos cassados, os servidores públicos e militares responsabilizados pelos Atos
Institucionais e pela Lei de Segurança Nacional e crimes conexos. (MOTA; BRAICK,
2002). Com isso, verifico que a Lei da Anistia foi um resultado explícito da ação dos
ditadores brasileiros para que os seus próprios agentes militares saíssem ilesos do
governo autoritário.
Diga-se de passagem, que o General Militar Presidente foi muito bem sucedido
em sua empreitada de preparar a nação para os novos anos democráticos, como também
preparou uma boa segurança para seus agentes.
Muitas pessoas foram beneficiadas com o alcance da Lei de Anistia, exemplos
conhecidos são: Leonel Brizola (deputado federal que teve seu mandato cassado),
Miguel Arraes (ex-governador de Pernambuco que retornou após 14 anos de exílio na
Argélia), José Dirceu (na época estudante ligado à UNE), o próprio Luís Inácio Lula da
Silva (à época presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema),
Raphael Martinelli (perseguido e preso por fazer parte do Comando Geral dos
Trabalhadores). “Outros, entretanto, não tiveram a mesma sorte, pois, já haviam
padecido na cruel mão dos torturados e repressores a exemplo dos que foram
brutalmente executados nas guerrilhas urbana e rural.” (RESK, 2009, p. 39-41)
Sendo assim, embora a Lei da Anistia seja considerada uma das leis mais
simples nos sentidos gramatical e de extensão, seus efeitos sem dúvida alguma foram
imensos e perpetuam no tempo e na história brasileira a situação obscura vivida naquele
período, onde a força militar superou a força popular e impôs sua vontade.
A declaração da Inconstitucionalidade da Lei da Anistia deveria ter sido o
primeiro passo para implementação da Justiça de Transição, contudo, o que se viu foi o
inverso, a anistia brasileira no que diz respeito aos perseguidos serviu apenas para que
retornasse à sua pátria e tivessem novamente sua cidadania assegurada, enquanto os
militares foram simplesmente desligados de suas obrigações jurídicas de reparação e
penalização enquanto sujeitos ativos das agressões cometidas durante a ditadura.
Nesse sentido, houve na verdade um verdadeiro decreto de silencia, de
usurpação da memória coletiva de todos acontecidos naquele período ditatorial, já que
com aplicação da Lei da Anistia, os governantes da época saíram ilesos das violações
cometidas.
Por fim, estamos cientes que esta temática não se esgota com este trabalho, o
qual traz apenas algumas considerações sobre um dos temas mais discutidos na história
do Brasil e no campo dos Direitos Humanos. Dessa forma, esperamos que esse trabalho
sirva de incentivo para outras pessoas se aprofundarem no assunto.
REFERÊNCIAS

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Anistia (Lei 6.683/79). Disponível em: Acesso em: 15 mar. 2013. BRASIL. Ato
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as modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da revolução vitoriosa.
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----------. Ato Institucional nº2, de 27 de outubro de 1965. Mantém a


Constituição Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com
as alterações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da Revolução de
31.03.1964, e dá outras providências. Disponível em:< http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm >. Acesso: 04 Ago. 2017.

-----------. Ato Institucional nº3, de 5 de fevereiro de outubro de 1966. Fixa


datas para as eleições de 1966, dispõe sobre as eleições indiretas e nomeação de
Prefeitos das Capitais dos Estados e dá outras providências. Disponível em:<
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/ atoins/1960-1969/atoinstitucional-3-5-fevereiro-
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-----------. Ato Institucional nº4, de 7 de dezembro de 1966. Convocação do


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apresentado pelo Presidente da República. Disponível em:<
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=4&tipo_norma=AIT
&data=19661207&link=s>: Acesso: 04 Ago. 2017.

------------. Ato Institucional nº5, de 13 de dezembro de 1968. São mantidas a


Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da
República poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações
previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo
prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras
providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.
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Brasília, DF, 2011.
ETHOS INDÍGENA: Uma construção Histórico-literária da mulher indígena a partir
da obra de José de Alencar.

Autora: Rafaela Verônica Barbosa Bezerra1


Co-Autor: Alan Marcionilo do Nascimento2

GT 02: Gênero, sexualidade e Direitos Humanos.

RESUMO

O presente trabalho busca compreender a formação do ethos indígena a partir do


movimento literário romântico nacionalista brasileiro, bem como o plano nacionalista
instaurado durante o processo de independência política, instituído pelas elites brasileiras.
Teremos um olhar mais específico no que diz respeito a representação da mulher indígena
no romantismo brasileiro, bem como a relação dessa imagem com um projeto nacionalista.
O presente estudo desenvolve-se a partir da pesquisa bibliográfica, acessada nas obras de
José de Alencar.

Palavras-chave: Indígenas; História; Literatura. Mulher indígena.

INTRODUÇÃO

Tema: A presença da temática indígena nas obras dos representantes do


romantismo brasileiro é algo constante, analisando algumas dessas obras, especificamente
neste artigo o romance ―Ubirajara‖, ―O Guarani‖ e ―Iracema‖ de José de Alencar, podemos
ver como esses povos eram representados nas páginas da literatura nacional, nos sendo de
grande interesse refletir sobre a representação da mulher indígena.

1
Pós-Graduada em latus sensus em Histórias e Culturas dos Povos Indígenas pela UFPE/CAA. Graduada em
História pela FAFICA.
2
Pós-Graduado em latus sensus em História do Brasil pela FAFICA. Mestrando em Direitos Humanos pela
UFPE.
Problema de pesquisa: O movimento romântico na literatura brasileira, buscou
construir os valores do nacionalismo em nosso país, criando imagem para os diferentes
grupos étnicos que formou a nação, nessa perspectiva qual imagem dos indígenas
brasileiro no romantismo?
Objetivo Geral: Identificar a representação dos indígenas e da mulher indígena
durante o romantismo brasileiro.
Objetivos específicos: Contextualizar o romantismo brasileiro com as
características histórico-sociais do Brasil.
Analisar as obras ―Ubirajara‖, ―O Guarani‖ e ―Iracema‖ de José de Alencar, para
pensar sobre a idealização da mulher indígena neste texto.
Refletir como a idealização da mulher indígena na obra de José de Alencar,
representa também uma idealização da mulher brasileira.
A metodologia por nós utilizada foi a análise bibliográfica, tendo como referência
obras literárias do Brasil durante o século XIX, ligadas ao movimento romântico. Nossa
principal referência para escrever esse artigo será a obra de José de Alencar.
Nossa principal justificativa para esse artigo é Pensarmos ser importante a reflexão
sobre as imagens construídas na literatura brasileira no que diz respeito as mulheres
indígenas, inserindo em um debate acadêmico na área de gênero, onde seja possível
discutir aspectos ligados a idealização da figura feminina.

Encontros entre História e Literatura.

Os diálogos entre Clio e Calíope são marcados por diversas tensões, por momentos
de proximidade e também de distanciamento, numa relação de encontros e desencontros
desde a antiguidade. Para Aristóteles a história conta o que aconteceu e a poesia o que
deveria ter acontecido, ou seja, a história traz em sua elaboração e discurso um
compromisso com a verdade, com os fatos e os personagens que compõem o passado. Por
sua vez a poesia, ou literatura, traz no seu bojo diversas possibilidades, tendo por estrutura
a invenção consciente da realidade, a elaboração de um discurso que se deixa levar pela
imaginação, sem compromisso com os fatos e personagens tidos por verdadeiros.
O século XIX, marcado por cientificismo, terminou por construir um muro nas
fronteiras entre o campo historiográfico e o campo literário. O historiador no desejo de
legitimar seu conhecimento enquanto um saber científico, passou a refletir sobre o espaço
de sua disciplina tendo como foco as técnicas e processos das ciências naturais, junto com
uma preocupação por desvelar os fatos enquanto verdade, por extrair dos documentos o
testemunho real do acontecido. No modelo científico da história, Clio e Calíope findaram
por traçar diferentes caminhos, pois as indagações de Clio não encontravam respostas nas
palavras de Calíope.

Com o advento da história Cultural, a produção historiográfica e o pensar sobre


essa produção passou por várias transformações, reaproximando a história da literatura,
tanto no que diz respeito as semelhanças entre a linguagem e os objetivos dos dois campos,
como também na utilização da literatura enquanto uma fonte histórica, capaz de trazer
vestígios do passado à oficina do historiador.

O que mais nos interessa nesse artigo, é a possibilidade de utilizarmos uma


determinada obra literária, em nosso caso os livros de José de Alencar, que tratam sobre a
temática indígena, como principal fonte para pensarmos sobre as representações acerca das
mulheres indígenas construídas na sociedade brasileira do século XIX.

A literatura torna-se fonte principal quando o caminho que buscamos trilhar tem
como objetivo atingir o imaginário de uma época. Cruzando com outras fontes e fazendo a
crítica aos documentos literários, podemos pintar na tela da história, imagens de um
período, maneiras pelas quais os indivíduos davam inteligibilidade e representavam o
mundo da vida enquanto atuavam sobre ele.

A literatura também torna-se uma fonte interessante quando tomamos por objeto de
estudo as mulheres, pois a produção científica à época era marcada por forte presença
masculina, já o campo literário sempre esteve mais próximo do feminino, mesmo não
sendo mulheres as autoras da maior parte das obras, mas as personagens femininas eram
protagonistas de muitos romances, e talvez mais importante do que isso, na maioria das
vezes eram as mulheres as principais consumidoras deste gênero. Portanto o discurso
literário com seus valores sobre o ideal feminino, era recepcionado diretamente por uma
parcela das mulheres na sociedade brasileira.

É importante quando utilizamos a literatura enquanto fonte histórica, que possamos


pensar seus processos de produção, mas para além disso, também seus processos de
recepção, pois no intuito de atingirmos a um imaginário em determinado período, torna-se
relevante analisar os diálogos existentes entre a obra e a sociedade na qual ela foi
produzida.

A literatura mesmo sem compromisso direto com a verdade, não é uma produção
totalmente fantasiosa, o texto literário surge da realidade, é no mundo da vida que o
escritor vai buscar inspiração para escrever, portanto o historiador ao pesquisar a partir da
literatura, tem o dito e o não dito como possibilidade de vestígios sobre um determinado
período.

Não nos debruçamos sobre a obra de José de Alencar com o intuito de extrair dela
uma verdade histórica, se isso não é possível no manejo de ―documentos oficiais‖, quiçá
seria possível através da literatura. Mas como dito antes, buscaremos vestígios de como
mulheres e homens no século XIX representavam o feminino a partir dos povos indígenas.

As representações acerca das mulheres indígenas na obra de José de Alencar, nos


dizem muito mais do que as visões de uma época sobre questões de gênero entre os povos
tradicionais do Brasil, enquanto discursos de uma elite nacional, podemos extrair do texto
do escritor cearense as representações que a elite brasileira fazia do papel da mulher na
sociedade como um todo, e não especificamente nas sociedades indígenas.

O romance nos diz pouco sobre o período ao qual ele se refere, mas muito sobre o
período no qual ele foi produzido. Os ideais nacionalistas da segunda metade do século
XIX no Brasil, da busca por construir uma nação, encontram eco na narrativa de José de
Alencar. O índio não corrompido por contato com os brancos, traz em si os valores da
pátria, os valores nativos do Brasil antes mesmo da chegada dos portugueses. Portanto o
que diz Alencar sobre a mulher indígena, mais do que um ideal de ser mulher indígena,
podemos ver um ideal de ser mulher, quais os valores que as mulheres brasileiras deveriam
ter, qual o tipo feminino tradicional da sociedade brasileira, que pode ser encontrado desde
os primeiros povos a habitar estas terras.

A produção historiográfica, apesar das suas vertentes teóricas, traz em si como toda
produção científica um ideal político e uma proposta de sociedade. Sendo assim, pensar a
mulher indígena a partir da literatura, é pensar não apenas sobre os índios do passado, mas
também do presente, pois mesmo a obra de José de Alencar sendo escrita no século XIX,
muitas das visões acerca dos povos indígenas e das mulheres indígenas existentes na obra,
são ainda hoje encontradas no imaginário da sociedade brasileira, assim como os próprios
ideais sobre o que é ser mulher, independente do grupo étnico ao qual faça parte.

A luta dos povos indígenas no Brasil de hoje é marcada por várias arenas de
combate, uma delas diz respeito ao imaginário social sobre o que é ser indígena, muitos
dos estereótipos sobre esses povos, presentes na sociedade brasileira, foram sendo gestados
ao longo do tempo, quando analisamos obras literárias tal qual a de José de Alencar,
podemos desnudar momentos da invenção do que é ser indígena no Brasil.

O debate dos direitos humanos no que diz respeito aos povos indígenas brasileiros,
além das questões materiais, como a luta pela posse das terras em que estão assentadas as
comunidades, também exige o direito a memória, o direito de cada povo construir sua
história a partir dos símbolos das suas culturas, rompendo quando achar necessário com
visões presentes na sociedade que não dizem respeito a realidade, e mais preocupante do
que isto, visões que deslegitimam a luta dos povos indígenas contemporâneos.

Portanto pretendemos inserir esse artigo no debate de lutas dos povos indígenas por
seus direitos, pensando as representações indígenas existentes na sociedade como produto
de uma determinada época, que por mais das vezes rotulou mulheres e homens indígenas,
relegando a eles papeis específicos na sociedade, seja o de exótico e perigoso à ―sociedade
branca‖, ou o bom selvagem que intocado por uma realidade externa que não a da
―floresta‖, guarda em si os valores ideais de convivência, tendo na sua organização o elo
perdido da humanidade com a natureza.
Tanto uma quanto outra visão termina por estereotipar os indígenas, criando rótulos
que limitam. Como dito antes; despertar para existência desses rótulos é criar
possibilidades para que os povos indígenas sejam o que são, sem que preocupem-se em ter
uma cultura que responda aos anseios dos não índios.

Origens do Romantismo

“Le romantism e’ est la révolution”

(BERLIM 2015)

As raízes do movimento Romântico surgem na Alemanha do século XVIII, diante


de grandes transformações históricas e sociais como o predomínio do pensamento
iluministas, ao qual havia grande ênfase a racionalidade e do método científico. O
Romantismo se propôs a construir e permitir uma releitura das produções literárias,
resultando em interferências no cenário político e social.

A primeira corrente literária romântica, apresenta-se com a intencionalidade de


rompimento de todo os traços dominantes do pensamento racional, contido, e cientificista.
Quebra as correntes com a segurança e harmonia, a calmaria e os padrões da moral que
permeavam a sociedade alemã.

A corrente sentimentalista romântica liberta-se das amarras da retidão, que


aprisiona os sentimentos, as demonstrações de afeto e de erotismo não somente nos textos
literários bem como no cotidiano social e mergulham profundamente em uma onda de
melancolia, neurose, goticismo, amores impossíveis e sentimentalismos exagerados.

Este novo cenário literário alcançou repercussão em toda a Europa, caminhando


para a segunda corrente romancista. Esta, marcada pelo florescimento do sentimento e
consolidação dos estados-nação, tanto na Europa, como tardiamente nas Américas.
A corrente ufanista do romantismo, traz consigo uma perspectiva política em
evidência. Onde antes, na corrente sentimentalista o amor é a mulher sublime,
inalcançável, fora agora substituída pela construção do sentimento pátrio e nacionalista.
Este novo viés literário corroborou diretamente para a formação do caráter nacional 3, na
busca pela identidade nacional. A literatura apresenta-se como agente transformador ativo
tendo assim duas grandes funções, a primeira é a de dessacralizar, de desmistificar, a outra,
e ao mesmo tempo de sacralizar.

É pois, esta vertente romântica que se instaurou no Brasil com a intenção política
por meio dos texto literário. O romantismo brasileiro em sua primeira geração teve como
base o ideal nacionalista, almejando construir no imaginário social a Identidade nacional e
ao mesmo tempo sentimento de amor à pátria.

O romantismo nacionalista aporta no Brasil com Gonçalves de Magalhães e sua


publicação de Suspiros e Saudade, em 1836, onde se fez evidente a veia nacionalista,
exaltação ao sentimento ufanista presente em sua obra. Juntamente com Gonçalves Dias
que publicou Canção do Exilo, em 1843, onde o amor à pátria torna-se perceptível em sua
obra.

A literatura romântica foi capaz de construir onde não havia, um sentimento de


apego à terra, à recente nação, formada principalmente por povos vindos de outras nações a
saber, europeus e em sua grande maioria portugueses e africanos. Este foi o grande desafio
dos romancistas ufanistas brasileiros. Para que tal plano pudesse ocorrer e desta maneira o
Brasil passar a ter um caráter nacional, fez-se necessário desenvolver uma história para a
nova nação que rompesse com a dominação dos portugueses, e a memória de colônia que
tal relação guardava. Nesta busca por um ícone social o africano foi descartado por ser
considerado inferior e ter a identidade de escravo.Deste modo procurou-se a figura do
nativo, ocorrendo assim a heroicização do índio, o projeto indianista tem início.

Mesmo tendo rompido com o pensamento de colônia-metrópole, o caráter nacional


brasileiro, foi construído sob a influencia ideológica do pensamento europeu. A

3
Luiza Baldo (2016), apud Johann Gottfried Von Herder.
idealização das terras brasileiras como paraíso terrestre e os nativos como os novos
―Adões‖ paradisíacos. ―Montaigne, Rousseau e Chateaubriand, cada qual com sua visão
particular, forjaram o arquétipo do novo Adão paradisíaco, a saber, o índio americano; o
bom sauvage.” (SERRA, p.42)

Este projeto nacionalista foi bem aceito socialmente, sendo difundido pelas Artes,
nas obras literárias, no cotidiano brasileiro bem como nos principais documentos oficiais
como o IBGE.4 Tal ideação foi capaz de transcender por longos anos de história colonial
de duras e perversas perseguições, desrespeitos aos direitos individuais e humanos, assim
como massacres, escravização dos povos indígenas reais donos das terras, agora nação
brasileira.

Os indígenas que sempre se fizeram presentes nos textos oficiais e literários de


maneira secundária e com características de inferioridade, passam após o projeto indianista
alçar voos como os novos ícones da nação brasileira. Apagasse anos de conflitos entre
indígenas e colonizadores e consolida-se uma falseabilidade identitária de que o índio é
bem aceito e cordial.

Para se ter uma identidade nacional, é imprescindível que se faça germinar os


sentimentos de nação, a autora Claudia Caldeira faz referência ao conceito de nação
defendido por Hobsbawn onde, nação é uma unidade política, territorial e linguística. Era
preciso portanto, florescer nos brasileiros o sentimento de unidade, de amor a terra e
homogeneização cultural, para que a relação individuo e território seja uma relação
orgânica de identidade. E com a mesma importância é essencial que a nação tenha um
símbolo pátrio.

Para Caldeira (2006) ao modo que se desenvolve o nacionalismo, se abraça o


conceito de Ethos5, onde tal é prática social do nacionalismo são os grupos de indivíduos
que compactam com os traços culturais, roupas, comportamentos de um determinado
grupo étnico. A formação do Estado vem, pois da consciência coletiva de unidade. E com o

4
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
5
Registrado na Enciclopedia Larrousse Cultural.
indispensável uso do discurso, dos textos literários que conseguem alcançar todas as
camadas sociais.

O discurso nacionalista que foi difundido no Brasil deteve caráter indianista,


todavia o índio consagrado nos romances e na historiografia foi o índio mítico, aquele que
ainda detinha as características culturais de antes da chegada dos colonizadores, o índio
que assumia os traços rousseanianas, de bom selvagem.

1.1 José de Alencar, o romancista.

José Martiniano de Alencar Filho nasceu em 1º de maio de 1829 no sítio Alagadiço


Novo, em Fortaleza, então província do Ceará, nasceu da união de Barbara Alencar e José
Martiniano de Alencar. Seu pai senador, presidente da Província do Ceará, com importante
papel político, influenciou a formação política do filho que desde novo que já se envolveu
com a Revolução Pernambucana, conseguindo o perdão real por intermédio do pai.

Ingressou na faculdade de Direito, juntamente com colegas fundou uma revista


semanal, Ensaios Literários. Em 1853, mesmo formado e exercendo a advocacia, se
interessou por trabalhar na redação do jornal Correio Mercantil, chamado ―O grande jornal
das ideias liberais‖. Tendo como principal objetivo publicar textos leves e tornar o jornal
mais popular.

Fez, neste mesmo jornal duras críticas ao poema de Gonçalves de Magalhães, A


confederação dos Tamoios, sob o pseudônimo de IG. Foi em meados dessa discussão que
Alencar publica O Guarani, alcançando grande repercussão popular. Posteriormente
publicou, A viuvinha, adentrou no teatro com peças como ―Rio de Janeiro, verso e
reverso”; “O demônio familiar‖; ―O Credito‖.

Em suas peças teatrais o romancista permutou em torno das questões sócias e


familiares, da escravidão, do patriarcalismo, valores morais, destacando o sentimentalismo
feminino e o racionalismo masculino. Em seus romances Alencar, não destinou grandes
papeis para os negros. ―Alencar não tinha um lugar para a raça negra no seu projeto de
construção da nação brasileira‖. (LOPES, 2009, p.13).
O mesmo embrenhou-se nas então recentes questões femininas e a pertença à esfera
privada, ora exaltando-as em serem fortes e romperem com a limitação do lar participando
da política e da esfera pública, ora apresentando-as como merecedoras de castigos por não
desempenharem os papéis a elas reservados que permeiam as questões religiosas e
familiares. ―Apenas via nos castigos o inevitável controle de uma sociedade que ainda não
estava preparada para a nova mulher‖. (HERCULANO, 2009, p.15).

Tornou-se ainda, Ministro da Justiça e percebeu o apreço pela política, ―A política


assim dizia Alencar, era como uma religião em sua família e o desejo por uma cadeira na
Assembleia já é latente‖. (AFONSO, 2013, p. 35). E em 1861, Alencar foi eleito para a
Câmara em Fortaleza pelo partido conservador. Este partido, ―em sua grande totalidade
estes homens eram representantes de uma sociedade patriarcal, europeizada, escravagista e
machista.‖ (AFONSO, 2013, p. 36).

Alencar apresentou grande disposição para a construção nacionalista por meios de


textos, dos atos literários e teatro. O mesmo dedicou-se ainda a tecer um documento
histórico intitulado de Antiguidade da América, encontrado no arquivo pessoal de Rui
Barbosa. Onde, apresentava uma tese de que a espécie humana teria aparecido na América.
(LOPES, 2009, p.03). Descreve a história do Brasil em fases, Colônia, Estado, Principado
e Reino, defende que a história do Brasil está intimamente ligada com a da Coroa
Portuguesa. ―O povo brasileiro é filho do povo português‖. (LOPES, 2009, p.03). Destaca
neste processo uma diferenciação cultural que no Brasil se apresenta que são os povos
indígenas americanos.

Entretanto, para Alencar um visionário do nativismo político, o indígena que


deveria receber reconhecimento histórico era aquele que o mesmo considerava como
―primitivo‖, aqueles que ainda se mantivessem afastados dos colonizadores, e do processo
de integração ao modo de vida português. Um modelo muito cruel de reconhecimento
histórico visto que grande parte dos povos indígenas durante a invasão portuguesa foram
vítimas de três grandes processos de violência que descaracterizaram os mesmo; A
catequização imposta pelos jesuítas onde se aprendia com os padres católicos a adorar o
Deus cristão, o idioma português e as leis da Coroa; A escravização para trabalhos de
exploração das terras na política mercantilista imposta pelos portugueses e para aqueles
que não aceitassem a dominação dos invasores restava em muitos casos à morte. Alencar
iniciou então, o seu projeto indianista.

1.2 José de Alencar, Indianista.

―A literatura romântica foi arma de ação política e social desde a independência”.

(COUTINHO, 1976, p.169).

O romantismo difundido no Brasil rompeu com a influência humanista e abraçou o


nacionalismo, juntamente com o projeto indianista, ambos corroboraram para os mesmo
objetivos, criação da identidade de nação por meio da valorização do nativo, a partir dos
parâmetros pré-estabelecidos pelo indianismo.

Ressaltando os indígenas como os primeiros formadores da nação brasileira. A


utilização dos gêneros literários sendo estes, a prosa e a poesia forma bastante difundidos
como veículos de disseminação do projeto nativista na sociedade brasileira.

Sendo José de Alencar na prosa de ficção e Gonçalves Dias na poesia, os grandes


representantes indianistas brasileiros, buscaram embasamento na Idade Média europeia
para a idealização do perfil indígena. Um ser guerreiro fazia alusão aos cavaleiros
medievais. ―O indianismo de Gonçalves Dias, é parente do medievalismo coimbrão.‖
(SERRA, 1992, p. 45).

As obras de Alencar teceram uma simbologia acerca da figura do índio, embasado


no conceito do bom selvagem de Rousseau. Características como justiça, heroísmo,
coragem são atribuídas aos mesmos. ―Seus personagens e enredos evidenciam a liberdade
subserviente ao branco, o heroísmo e o sacrifício em virtude da origem do verdadeiro povo
brasileiro‖. (CARDOSO, 2006, p. 05).

A tríade Alencariana, O Guarani, Iracema e Ubirajara, remontam um passado


remoto. A idealização indígena é perceptível nas três obras. O heroísmo, a bondade e a
subserviência são considerados pelo romancista como traços marcantes do caráter indígena
a ser construído.

Nos romances, O Guarani, escrito em 1857, e Ubirajara, escrito em 1874, foram


abordadas as relações entre brancos e nativos. O primeiro romance fica evidente o
sentimento de devoção que o indígena nutre pelo homem branco, fica da mesma maneira
perceptível às relações de superioridades que o romance apresenta e a subserviência
indígena. Revelando-nos mais uma vez que o plano indianista Alencariano está
consolidado pelo pensamento doutrinador europeizado.

No segundo romance, Ubirajara, é possível perceber de maneira objetiva os traços


que exaltam os sentimentos pátrios, a coragem do guerreiro, o sacrifício pela nação.
Alencar busca trazer para este romance as supostas tradições dos povos indígenas, a
valorização do guerreiro em evidencia, a naturalização das guerras, a obediência aos
líderes indígenas, à hereditariedade do prestígio, os papéis masculinos e femininos bem
definidos.

Desta maneira foi criado traços de uma ‗cultura‘ indígena. Para o perfil do índio
brasileiro, a força, a coragem, a virilidade, são características esperadas por um guerreiro
da nação. Estas são características que para o autor deveriam ser preservada e as mesmas,
corroboravam para seu projeto de nacionalização.

Ao modo que Alencar buscou promover um perfil do índio brasileiro sendo


compreendido pela sociedade como traços morais a ser difundidos socialmente, ele
constrói o perfil da mulher indígena, que também detinha a premissa de ser difundida na
sociedade brasileira. Ambos os perfis detém concepções morais e culturais que surgem na
cultura europeizada e que foi instituída na sociedade brasileira no decorrer da colonização.

As mulheres indígenas de José de Alencar

O projeto indianista reservou aos índios valores bem definidos e rígidos, para as
índias, não seria diferente, unindo os valores morais da sociedade europeizada, com
valores atribuídos aos indígenas, Alencar consolidou um perfil para as índias em seus
romances.
Iracema, escrito em 1865, um dos mais célebre romance que tem como
protagonista a índia brasileira, o autor destaca padrões de valores no que tange o universo
feminino para à época. Neste sentido, destaca o nascimento do brasileiro, filhos da nação
brasileira, o mestiço, filho da mãe pátria, esta representada, na figura da índia, junto ao
colonizador branco. A virgem dos lábios de mel revela a valorização da pureza feminina e
sua relação com a Natureza.

Iracema é descrita por Alencar como uma bela mulher, enfatizando sua virgindade,
é vista para alem da natureza humana, é considerada um ser divino, para a sua cultura ela
faz a ponte com o deus Tupã e guarda o segredo da Jurema.

No romance Iracema, conhece Martim, o homem branco, apaixonando-se por ele e


se entregando ao mesmo. No ato da entrega, perde seus poderes mitológicos, e faz o
sacrifício para que a vida do amado seja feliz.

Nesta obra, Alencar difunde duas perspectivas análogas, a primeira, da fecundação


do povo brasileiro, sendo Iracema a América, intocada e pura, enquanto Martim representa
o colonizador. E Moacir, o filho da união de ambos seria o primeiro brasileiro. A segunda,
o papel feminino na sociedade, que surge com as índias e que deve ser absorvido pela
sociedade em questão.

Em Ubirajara, Alencar busca introduzir a imagem do indígena ‗puro‘, que não tem
contato com o colonizador, o autor neste romance buscou unir os traços da suposta cultura
indígena com os valores da colonização portuguesa.

O protagonista do romance em questão é o indígena Jaguarê, que posteriormente se


torna Ubirajara, um guerreiro que pertence a nação dos Araguaias. Todavia, aparece como
coadjuvante do romance a figura de Jandira, ―uma índia formosa, que lhe guarda o seio de
esposa‖. (ALENCAR, 1874, p.03). Logo percebemos que é recorrente a valorização do
corpo feminino nos seus romances, bem como os valores morais da virgindade, que a torna
merecedora do guerreiro.

Outra índia que aparece no referido romance e de essencial existência no mesmo é


Araci, a quem Jaguarê se perde de amores. Mais uma vez Alencar ressalta a virgindade da
índia. Uma virgem da nação Tocantim, que usa um adereço vermelho na coxa que
representa o símbolo de sua virgindade.

Em Ubirajara, nós percebemos que os valores morais os quais Alencar deseja


difundir na sociedade são introduzidos, a submissão feminina ao marido que se faz
presente nas tradições indígenas, vista com naturalidade e aceita pelas mulheres de maneira
a desejar tais funções. ―Já lhe tarda o momento de ver aclamar guerreiro ao jovem caçador,
para ter a felicidade de servi-lo como escrava na paz, e acompanhá-lo como esposa ao
combate‖. (ALENCAR, 1874, p.09).

Alencar definiu o papel das mulheres indígenas como guardiãs e representantes da


pureza da virgindade e das prendas domésticas. As índias deveriam mostrar suas
habilidades ao produzir artefatos domésticos que seriam seu enxoval, a exemplo a sua rede
de casada.

O romancista buscou atribuir valores morais que o mesmo julgou de extrema


importância para a formação social da nova nação. Onde os primeiro formadores repassam
estes papeis com naturalidade. Em suas obras que atingem a sociedade brasileira esses
papéis são introduzidos e disseminados, formando uma identidade da nova nação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O movimento literário romântico que surgiu na Alemanha e expandiu-se por toda a


Europa, promovendo transformações sociais e políticas, chega ao Brasil no propício
momento da Independência brasileira, ocorrida em 7 de setembro de 1822.

O Brasil passar a ser nação, todavia não detinha características de tal. Os povos que
aqui viviam necessitavam de fazer germinar o sentimento patriótico. Construir a relação
orgânica entre o indivíduo e a terra. Deste modo, o romantismo nacionalista culmina com o
projeto nacionalista brasileiro. Ambos caminham para o mesmo fim. Se fez necessário
construir o Ethos brasileiro.
Neste sentido, temos então o projeto indianista, com o seu principal representante,
José de Alencar e sua tríade, O Guarani, Iracema e Ubirajara. Todos esses romances tem
ideais políticos. ―É literatura política, mesmo e justamente quando pretende ser apolítica‖.
(Apud, SERRA, 1992, p.46). Consagrando os povos indígenas como heróis nacionais,
consolidando no imaginário social o mito fundador, onde se busca a ideia que o povo
brasileiro surge com o encontro dos povos indígenas com os portugueses, e os filhos
gerados desse encontro, são desta forma o povo brasileiro, filhos do Brasil, da mãe pátria.

Alencar todavia, mitificou apenas os povos indígenas que ele julgou preservar a
verdadeira essência, a saber o índio selvagem, tendo este, grande influencia do perfil
indígena rousseniano, aquele que habitava apenas as florestas, que guardavam suas
tradições longe dos processos colonizadores, entretanto, o mesmo indígena disposto a
subserviência à elite dominadora branca.

O referido autor fecundou então, no senso comum, as supostas tradições dos povos
indígenas, aos índios, a força, a coragem, o heroísmo, a dedicação à guerra, o sacrifício
pela nação. As índias, a subserviência, os sentimentalismos, os ritos religiosos e atividades
domésticas, seus estereótipos de beleza e sua virgindade. Nota-se que os traços culturais
que foram associados aos povos indígenas eram na verdade, em sua grande maioria
pertencentes a sociedade colonizada em que Alencar se encontrava inserido. Os padrões
machistas, patriarcais, escravagistas europeizados, que as elites brasileira impuseram no
senso comum.

Este é, um dos objetivos do projeto nativista, além da construção da identidade


histórica brasileira, difundir os valores morais que se julgavam serem corretos à época. Nas
entrelinhas dos romances Alencarianos, temos os interesses nacionalistas, patriarcalistas e
colonizadores impregnados.

Covardemente, o indígena que foi reconhecido socialmente como o ser índio,


valorizado na historiografia brasileira, foi por vezes negado a sua verdadeira existência.
Negado a primeira vez durante o processo agressivo e segregador da colonização
portuguesa. Negado posteriormente durante o processo de consolidação de sua identidade
existencial. O Índio fora dos traços definidos no romantismo alencariano simplesmente não
foi reconhecido como tal. Desta maneira, foram atribuídos aos povos indígenas diversos
estereótipos e desfiguração de suas culturas, processo que lamentavelmente ainda
perduram nos tempos presente.

Na atualidade, ainda notamos muitos preconceitos e arquétipos em relação aos


povos indígenas. Isto releva a influencia nociva do projeto indianista aos povos indígenas.
Dificultando a formação de uma nova perspectiva de ser e se fazer povo indígena pela
sociedade não indígena. Nota-se que o imaginário solidificado do perfil indígena ainda são
latentes no senso comum. Inibindo em diversas situações e contextos educacionais o
reconhecimento e protagonismo dos mesmos na historiografia bem como na sociedade
brasileira.

O Estado brasileiro em sua Constituição, reconhece a diversidade indígena e


assegura o direito de ser como tal, reconhecidos;

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, língua, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, progeter e fazer respeitar todos os seus bens.
(Artigo 231, da Constituição Federal de 1988).6

Foi por meio desta, que os indígenas brasileiro passaram a ser reconhecidos pelo
Estado brasileiro com diferentes traços culturais, línguas, identidades e ritos. O ser
indígena foi reconhecido pelo Estado brasileiro. Todavia, não totalmente pela população
brasileira.

O senso comum do brasileiro no que tange a identidade do povo indígena ainda


permeia os traços culturais do índio do romantismo. Aquele índio que habita na floresta,
que pratica as atividades que Alencar em seus romances atribuiu aos nativos.

No Brasil, segundo o Censo do IBGE 2010, temos 896.917 indígenas. 240 Povos,
que habitam o território nacional. Destes, 324.834 indígenas vivem em áreas urbanas e
527.083 habitam áreas rurais. Percebemos deste modo o processo relevante de integração

6
Os direitos constitucionais dos índios estão expressos num capítulo específico da Carta de 1988
(título VIII, "Da Ordem Social", capítulo VIII, "Dos Índios").
social dos povos indígenas e juntamente as transformações impostas pela sociedade não
indígena em suas línguas, tradições, características físicas e demais traços culturais.

Podemos perceber, ao analisar dos dados oferecidos pelo IBGE, que a população
indígena apresenta uma crescente a partir dos anos 80, fato também oportunizado pela
compreensão ampla, de reconhecimento identitário, memória histórica do que é ser
indígena no Brasil.

Temos a obrigatoriedade de compreender que o nosso modelo de colonização,


atrelada ao plano sócio-econômico mercantilista difundido por toda a Europa, teve caráter
agressivo e autoritário para os povos nativos. Tendo seus costumes, tradições, línguas, ritos
subjulgados pelos colonizadores, seja com armas ou com bíblias nas mãos. E a
interferência deste processo, resulta hoje em uma diversidade étnica indígena de uma
beleza incomparável que merece todo o reconhecimento social, histórico e do Estado
brasileiro.

É pois, por meio da educação conscientizadora que poderemos difundir na


sociedade os reconhecimentos dos diversos povos indígenas espalhados pelo Brasil.

No que tange as discussões pedagógicas, faz-se necessário proporcionar aos


discentes a possibilidade de questionar o que foi consolidado ao longo da ação histórica.
Os textos históricos bem como os literários são fontes históricas que precisam ser
problematizadas conforme o espaço e tempo de sua produção. Desta maneira, as mulheres
indígenas, bem como os homens indígenas, que foram retratados como submissos,
guerreiros, dispostos a sacrifícios pela nação, ‗bons selvagens‘ não eram necessariamente
assim, mas era o que se esperavam deles.

O aprendizado histórico e literário deve ocorrer de modo a promover os suportes


necessários aos discentes de modo que os mesmo tornem-se indagadores da perspectiva
retratada ao qual se deparam. Sendo capazes de desenvolver um conhecimento de maneira
a romper com esteriótipos e preconceitos que restringem os povos indígenas, e que limitam
os seus protagonismos.
REFERÊNCIAS

Afonso, Rogério Natal. A dimensão política do pensamento de José de Alencar (1865-


1868) Liberalismo e escravidão nas cartas de Erasmo. EFES. Vitória, 2013.
(Dissertação em História Social).
ALENCAR, José de. Ubirajara. L&PM Pocket, São Paulo, 1999.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de Almeida. Os índios na história do Brasil. Rio de
Janeiro. Editora FGV. 2010.
BERLIN, Isaiah. As raízes do Romantismo. 1ª Ed. Três Estrelas, São Paulo, 2015.
BRASIL. Constituição (1988) Constituição Federal da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF, 1988. (LEGISLAÇÃO)

BURKE, Peter. O que é História cultural? Rio de Janeiro. Zahar. 2008.


CALDEIRA, Cláudia Passos. Revisitando o ethos indígena e a Nação no caminho da
construção das identidades. Belo Horizonte, UFMG, 2006. (Dissertação de Mestrado em
Estudos Literários).
CARDOSO, Miriam Pereira. Identidade e Romantismo brasileiro no séc. XIX: do canto
indianista ao projeto de nação. In: Curso de História da Universidade do Extremo Sul
Catarinense- Unesc. Disponível em:
HTTP://periodicos.unec.net/historia/article/viewFile/207/210. Acesso em novembro de
2015.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil 1: De Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro, FGV,
2006.
SAMARA, Eni de Mesquita. TUPY, Ismênia S. Silveira. História e documento,
metodologia de pesquisa. Belo Horizonte. Autentica. 2007.
SERRA, Tânia Rebelo Costa. Indianismo: evasão e participação do romantismo
brasileiro In: Cerrados: revista do curso de pós-graduação em literatura, Brasília, v.1, n.1,
p.4-46, 1992.
A TUTELA PENAL DO ESTADO NOS CRIMES MOTIVADOS PELA
HOMOFOBIA

Mychel Christian Santos de Lucena7

GT 02 – Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos

RESUMO

Considerando o vertiginoso aumento no número de crimes motivados por ódio e


intolerância, praticados, exclusivamente, em razão do preconceito e discriminação por
orientação sexual ou identidade de gênero, aos quais, amplamente, se tem empregado o
termo homofobia, o presente estudo tem como objetivo demonstrar, a partir de um
referencial teórico e comparativo, uma análise da necessidade e possibilidade da incidência
da tutela penal na prática de crimes manifestamente homofóbicos, como forma de evitar as
reiteradas violações de direitos fundamentais e efetivamente promover a proteção desses
sujeitos em situação de maior vulnerabilidade social. Ante tudo o que será expendido,
restará demonstrado a importância, possibilidade e eficiência da aplicação da tutela jurídica
penal para garantir que seja afastado daqueles, vítimas recorrentes da homofobia, toda
forma de estigmatização social, assim como toda conduta contrária à boa vivência do
indivíduo na sociedade. Para tanto, a metodologia empregada na construção deste estudo
compreende em revisão bibliográfica de livros; análise e interpretação da legislação
nacional e internacional, assim como, de dados consubstanciados em relatórios e o manejo
de documentos hospedados na rede mundial de computadores.

Palavras-chave: Homofobia. Vulnerabilidade. Tutela penal.

INTRODUÇÃO

Na sociedade atual, inúmeros são os conflitos sociais que afrontam o bem estar
social. Tais conflitos aparecem e desaparecem ao longo da história, acompanhando a
evolução da sociedade. Tem crescido com velocidade os números da violência verbal,
psicológica, física e até mesmo de homicídios motivados pela discriminação, ódio e
intolerância, em face da orientação sexual ou identidade de gênero do sujeito, aos quais,
amplamente, se tem empregado o termo homofobia. Desta forma, tem o presente estudo a
pretensão de demonstrar, a partir de um referencial teórico e comparativo, a necessidade e
possibilidade da incidência da tutela penal na prática de crimes manifestamente
homofóbicos, como forma de evitar as reiteradas violações de direitos fundamentais e

7
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
efetivamente promover a proteção desses sujeitos em situação de maior vulnerabilidade
social.
Esta alta vulnerabilidade esclarece a justificativa e relevância social deste estudo,
pois, diuturnamente, condutas determinantemente criminosas são consumadas perfazendo
novas vítimas, todas oriundas da larga difusão social do preconceito e discriminação.
No atual cenário legislativo nacional, não há nenhuma legislação nacional
específica que imponha maior rigor no tratamento e repressão dos crimes motivados pela
homofobia, e, por conseguinte, nenhuma disposição legal que vise evitar a prática de novas
ocorrências e efetivamente proteger o sujeito destinatário, intencionalmente selecionado,
desta violência. Desta maneira, ao longo do que será expendido, intentar-se-á responder a
questão central deste trabalho, condensada em: é possível uma maior repressão penal nos
crimes motivados pela homofobia? A partir desse questionamento serão dispostos aspectos
teóricos e comparativos relacionados à repressão dos crimes manifestamente homofóbicos,
por meio do sistema normativo penal. Assim, serão trazidas referências doutrinárias acerca
do conceito e finalidade do Direito Penal, dos bens jurídicos imprescindíveis para
preservação do indivíduo na sociedade, do poder do Estado de punir condutas que atentam
contra estes bens jurídicos, da teorização do Direito Penal mínimo e do garantismo penal, a
análise de dados da efetiva diminuição dos casos de violência com a edição da Lei Maria
da Penha, estabelecida como medida de proteção do gênero feminino, uma breve síntese do
tratamento legal conferido à homofobia nos Estados Internacionais, um breve histórico
legislativo brasileiro e, por fim, uma breve análise do Projeto de Lei n.º 7.582/2014, em
trâmite na Câmara dos Deputados, que tem como objetivo definir e prever sanções aos
crimes de ódio e intolerância, criando ainda mecanismos para coibi-los.
Para tanto, a metodologia empregada na construção deste estudo foi a apropriada
para as pesquisas no campo das ciências sociais, perfazendo-se em revisão bibliográfica de
livros; análise e interpretação da legislação nacional e internacional; análise e interpretação
de dados consubstanciados em relatórios e ainda o manejo de documentos hospedados na
rede mundial de computadores.

DESENVOLVIMENTO
Segundo o jornal The New York Times (2016), o Brasil é o país mais perigoso do
mundo para gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transgêneros e transexuais, em face da
larga violência perpetrada com cunho homofóbico. A conclusão do jornal considerou os
dados do Grupo Gay da Bahia8, que apenas acompanha as agressões com resultado morte
que guardam relação com a homofobia por meio de notícias veiculadas na mídia nacional,
posto que, inexiste meio oficial de contabilização das agressões diariamente sofridas por
esses sujeitos, ante suas orientações sexuais ou identidade de gênero. Aduzindo os dados
do Grupo Gay da Bahia, a publicação demonstra que em um período de quatro anos e
meio, anteriores ao lançamento da notícia, mais de 1.600 (uma mil e seiscentas) pessoas
foram assassinadas no Brasil por motivações homofóbicas, o que exprime a razão de
aproximadamente uma morte por dia, informação absolutamente devastadora. É de se
ressaltar ainda que, a reunião e exposição dos dados com base em notícias veiculadas,
evidencia o quão alarmante é a matéria tratada, pois, desconsidera as demais agressões que
não culminam em morte, bem como, provavelmente, não se aproxima dos dados reais da
violência sofrida, representando tão somente a ponta de um imenso derramamento de
sangue. Em que pese o amadorismo da reunião dos dados considerados, assim como, o
precário confronto com os dados de outros países, este é um tipo de notícia que não pode
passar sem ser notada, dando fomento a uma relevante discussão, exigindo que seja dada a
devida importância que a matéria carece.
Da mesma forma que os conflitos sociais se modificam na medida em que a
sociedade se desenvolve, com os bens a serem tutelados pelo Direito Penal coisa
semelhante ocorre. Bens que em um dado momento eram tidos como fundamentais e de
exacerbada importância à sociedade e, por conseguinte, mereciam a tutela protetiva do
Direito Penal, hoje, já não carecem de tal proteção. A exemplo disso, com a edição da Lei

8
Associação sem fins lucrativos de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil, fundada em
1980. Membro da International lesbian, gay, bisexual, trans and intersex association – ILGA, The National
Latino/a Lesbian, Gay, Bisexual & Transgender Organization – LLEGO, comitê da Comissão Internacional
de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas – IGLHRC, Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis –
ABGLT e Comissão Nacional de Aids do Ministério da Saúde do Brasil. (O QUE...)
n.º 11.106, de 28 de março de 20059, teve-se a revogação dos delitos de adultério10, ato
pelo qual o homem ou a mulher, legalmente casados violam a fé conjugal, imposta aos
esposos (PLÁCIDO E SILVA, 2012) e sedução11, que em se tratando de Direito Penal,
configurava o fato de se induzir a mulher a que consentisse em manter relações sexuais,
fora do casamento, mediante o emprego de meios ardilosos, ou bastante convincente para
influírem sobre à sua vontade (PLÁCIDO E SILVA, 2012), posto que, a mulher da década
de 1940, período de edição do Código Penal vigente no Brasil12, é completamente diferente
da mulher que participa ativamente da sociedade nos dias atuais.
É certo que o Direito Penal, através de sua estrutura punitiva, é apenas uma das
possíveis formas de resolução dos conflitos sociais e nesse sentido é que, considerando a
atual construção normativa brasileira e a parte majoritária da doutrinária acerca daquela,
que se pretende demonstrar a possibilidade de aplicação do Direito Penal como forma de
garantir maior repressão às condutas criminosas motivadas pela homofobia, conflito social
objeto deste estudo.

Direito Penal: conceito e finalidade

No conceito de Zaffaroni e Pierangeli (2013, p. 84-85):

Direito Penal (legislação penal) é o conjunto de leis que traduzem normas que
pretende tutelar bens jurídicos, e que determinam o alcance de sua tutela, cuja
violação se chama ―delito‖, e aspira a que tenha como consequência uma coerção
jurídica particularmente grave, que procura evitar o cometimento de novos
delitos por parte do autor.

No Brasil, o Direito Penal está inserto no sistema normativo que constitui o Direito
Brasileiro, assentado como um dos ramos do direito público pátrio, o que enseja, portanto,
que os valores tutelados nessa esfera interessam a toda coletividade, distinguindo-se dos
9
Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 – Código Penal e dá outras providências.
10
Art. 240 - Cometer adultério:
Pena: detenção, de quinze dias a seis meses. [...]
11
Art. 217 - Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção
carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança:
Pena: reclusão, de dois a quatro anos.
12
Código Penal Brasileiro: Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de Dezembro de 1940.
demais ramos do direito público pela sua especificidade e consequência associada à
infração penal, qual seja: a imposição de uma pena. A pena, por sua vez, representa o meio
de coerção usado pelo Direito Penal para proteção de valores, bens e interesses
significativos para a sociedade. Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli (2013, p. 85) acerca
da distinção do Direito Penal com os demais ramos do direito e da coerção oriunda do
Direito Penal explicam:

A pena se distingue das restantes sanções jurídicas (distinguindo-se assim a


legislação penal das restantes legislações: civil, comercial, trabalhista,
administrativa etc.) porque procura conseguir, de forma direta e imediata, que o
autor não cometa novos delitos, enquanto as restantes sanções jurídicas têm uma
finalidade primordialmente ressarcitória ou reparadora.

Nessa esteira, segundo preceitua Costa Júnior (2008), dentre as características do


Direito Penal, é de destaque seu caráter valorativo e imperativo, em que o primeiro tem o
condão de valorar a conduta como contrária aos princípios e interesses do direito, enquanto
o segundo pressupõe que a norma impõe ao agente a obrigação de executar determinada
ação ou de abster-se dela.
Greco (2015, v. 1) ensina que: a finalidade do Direito Penal é a proteção dos bens
jurídicos mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade.
Depreende-se desta lição que não é qualquer bem jurídico que merece a tutela protetiva
penal, mas sim aqueles que representam valores importantes e imprescindíveis que
carecem da segurança jurídica imposta pelo Estado para a manutenção e perpetuação da
estabilidade social. Nessa direção, Navarrete (1974 apud PRADO, 2003, p. 25-26) destaca
que:

Um direito penal que ab initio não se propusera, finalmente, em essência,


garantir a proteção dos valores mais transcendentes para a coexistência humana,
seria um Direito Penal carente de base substancial e não inspirado nos princípios
de justiça sobre os quais deve-se assentar todo o ordenamento jurídico, e,
enquanto tal, imprestável para regular a vida humana em sociedade.

Os bens jurídicos
Posto que a finalidade do Direito Penal seja a proteção dos bens jurídicos
indispensáveis para a convivência social estável, oportuna é a noção doutrinária do bem
jurídico.
Por bens jurídicos, entende Roxin (s/d. apud PRADO, 2003, p. 47) que esses são
―pressupostos imprescindíveis para existência em comum, que se caracterizam numa série
de situações valiosas, como por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de
atuação, ou a propriedade [...]‖. Assim, resta evidenciado que a finalidade protetiva do
Direito Penal quanto aos bens jurídicos imprescindíveis à conservação do indivíduo e da
sociedade é, sobretudo, norteada pelos princípios fundamentais presentes no texto
constitucional.
Considerando que a norma penal tenha o fito de promover a segurança comum e de
proteger os bens jurídicos de alta estima para a sociedade, requisitos indispensáveis para
que o ser humano desenvolva sua vida com dignidade, as condutas que violem direitos e
valores fundamentais, indubitavelmente, merecem a imposição deste sistema normativo
repressor, para prever e punir tais comportamentos, evitando, assim, toda forma de
inferiorização, humilhação e agressão. É, portanto, imperioso a repulsa das manifestações
homofóbicas no meio social através da tutela penal, com a finalidade de afastar às condutas
contrárias à boa vivência do indivíduo na sociedade e que potencialmente produzem lesões
aos bens que se espera proteger.

Jus puniendi: o poder do Estado de punir condutas que atentam contra os bens
jurídicos

Segundo Costa Júnior (2008), é possível classificar o Direito Penal em Direito


Penal objetivo e Direito Penal subjetivo. O conjunto de normas penais que visam à
convivência pacífica do indivíduo na sociedade e descrevem os crimes cominando sanções
por sua infração, classifica-se como Direito Penal objetivo. Já o direito de punir do Estado
classifica-se como Direito Penal subjetivo. Nas palavras do autor:

O direito penal subjetivo é o direito de punir (jus puniendi). Só o Estado poderá


exercê-lo, em função do seu poder de império. Vão longe os tempos de vingança
privada, que representou a primeira manifestação da justiça punitiva. É o
imperium estatal que submete o réu ao processo e à pena, nos limites definidos
pelo Direito, para assegurar a convivência social. (COSTA JÚNIOR, 2008, p. 4)

Cada vez que um bem jurídico penalmente tutelado pelo Estado sofre uma violação
e uma norma é transgredida, o próprio Estado, como representante da sociedade, também é
violado. A violação desses bens jurídicos não lesa apenas a vítima, mas por serem bens
jurídicos públicos que carecem de proteção do Estado, alcançam todos os sujeitos no meio
social e visam uma pacífica convivência social, lesa também o próprio Estado. Nesse
sentido, Tourinho Filho (2013, v. 1, p. 28) destaca que:

Muitos autores distinguem, no crime, um sujeito passivo geral, genérico ou


constante, que é o Estado, sob a alegação de que há sempre um interesse público
violado pelo crime e um sujeito passivo particular, que é o titular do bem jurídico
ofendido.

Cabe, pois, ao Estado, a iniciativa de garantir, através da sua atividade, a


observância da norma penal e reprimir as condutas que degradem a ordem e a convivência
social. A esta garantia dar-se o nome de direito de punir, ou jus puniendi, que o Estado o
realiza por meio dos seus órgãos competentes. Para Greco (2015, v. 1, p. 7), jus puniendi é
―a possibilidade que tem o Estado de criar e fazer cumprir suas normas, executando as
decisões condenatórias proferidas pelo Poder Judiciário‖.
Nas lições de Tourinho Filho (2013, v. 1) depreende-se que o jus puniendi
subdivide-se em dois: jus puniendi in abstracto e jus puniendi in concreto, não se
limitando apenas a aplicação da pena ao agente praticante de um delito. Para o autor, surge
o jus puniendi in abstracto quando o Estado, por meio do seu poder legislativo, elabora leis
penais e comina sanções para aqueles que vierem violar o mandamento proibitivo aposto
na norma penal e, como consequência, o dever do particular de se abster de realizar aquela
conduta punível. No entanto, quando o sujeito realiza conduta que transgride a norma
penal, o jus puniendi abstracto se converte em jus puniendi in concreto, nascendo aqui o
dever do Estado em reprimir a conduta do autor, aplicando a este a pena cominada à
infração praticada. É o momento em que o Estado pode exigir que o interesse do autor da
conduta punível em conservar sua liberdade se subordine ao seu dever de restringir a
liberdade do agente violador com aplicação de uma pena, em face do seu comportamento
contrário a estabilidade da convivência social.

Direito Penal mínimo e garantismo penal

Fruto da crítica de Luigi Ferrajoli13 à Teoria do Abolicionismo Penal, que sugere a


extinção do sistema penal por completo, a teoria do Direito Penal Mínimo,
doutrinariamente ainda nomeada de intervenção penal mínima ou teoria minimalista, em
síntese, preconiza que o abolicionismo penal pode gerar constante perigo social, vez que
não oferece oportunidade para o controle de condutas que ampliariam a capacidade de
lesionar os bens jurídicos, defendendo, então, a intervenção mínima do sistema penal na
solução de conflitos sociais. Para Greco (2015, v. 1), segundo esta teoria, o direto penal
deve ser aplicado como ultima ratio14, apenas quando os demais ramos do direito, ou
outras soluções cabíveis, não forem eficazes na solução dos problemas sociais.
Esta teoria minimalista defende que a intervenção do Estado, a quem cabe o jus
puniendi, através do Direito Penal, se dê de forma mínima, somente em casos específicos,
ao qual seu exercício seja imprescindível para a proteção de interesses sociais ou bens
jurídicos fundamentais. Busca, sem dúvidas, minimizar o impacto da legislação penal na
sociedade. Carvalho (2008, p. 89), fazendo uma leitura da teoria em comento nas obras de
Ferrajoli delimita a incidência desta, estabelecendo como pressuposto para sua
caracterização a observância aos princípios da necessidade e lesividade, na qual destaca:

o primeiro critério de intervenção mínima na teoria da lei penal advém do


princípio da necessidade (nulla lex poenalis sine necessitate). Trata-se de um
critério de economia que procura obstaculizar a elefantíase penal, legitimando
proibições somente quando absolutamente necessárias. Os direitos fundamentais,
neste caso, corresponderiam aos limites do direito penal. [...] Aliado ao
pressuposto da necessidade, à pauta minimalista é agregado o princípio da
lesividade, indicando a funcionabilidade do direito penal como instrumento de
proteção dos direitos fundamentais.

13
Juiz italiano entre 1967 e 1975, professor de Filosofia do Direito e de teoria geral do Direito da Università
degli Studi Roma Tre (Roma, Itália) e Università degli Studi de Camerino (Camerino, Itália). (FERRAJOLI,
2004, tradução do autor)
14
Latim. Expressão freqüentemente empregada no Direito com significado de último recurso, razão final,
último argumento. (GUIMARÃES, 2007)
Resta evidente que, ainda que seja invocada a teoria minimalista como forma de
justificar a contenção de uma inflação de legislação penal e, por consequência, afastar a
proteção da lei penal de determinados grupos socialmente minoritários, tal argumento não
prospera, vez que a sólida doutrina acerca desta teoria indica que o Direito Penal deve
encontrar limites nos direitos fundamentais, agindo como instrumento de proteção destes,
como bem se vê na citação acima disposta. Os direitos fundamentais violados nas condutas
tipicamente homofóbicas, como, por exemplo, o da dignidade da pessoa humana, liberdade
e igualdade, são direitos fundamentais atribuídos a toda pessoa humana que não podem ser
negados, lesionados ou desamparados de proteção, pois, juntamente com os demais direitos
assegurados constitucionalmente, representam requisitos indispensáveis para que o ser
humano desenvolva sua vida com dignidade. Nesse sentido, Carvalho (2008, p. 93)
conclui: ―Os direitos fundamentais adquirem, portanto, o papel de objeto e limites do
direito (penal)‖.
Ante o exposto, chega-se à compreensão do que vem a ser o garantismo penal.
Observa Carvalho (2008, p. 82) que:

O modelo garantista pretende instrumentalizar um paradigma de racionalidade


do sistema jurídico, criando esquemas tipológicos baseados no máximo grau de
tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, com intuito de limitar
o poder punitivo e garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência
arbitrária, pública ou privada.

Ou seja, com esteio na racionalidade, justiça e legitimidade da intervenção punitiva,


a teoria do garantismo penal visa assegurar um sistema de proteção dos direitos
fundamentais do cidadão frente aos poderes do Estado e da democracia. A garantia desses
direitos, como bem visto, resguarda a convivência social estável, protege o sujeito e
preserva a sociedade.
Como já afirmado, ao Estado cabe o dever de proteção dos direitos fundamentais, e
estes direitos fundamentais funcionam como objeto e limite do Direito Penal, direcionando
a elaboração das normas penais pelo Estado. No ordenamento jurídico brasileiro, os
direitos fundamentais encontram-se dispostos na Constituição Federal, que, por ser o topo
da estrutura hierárquica do ordenamento jurídico brasileiro, funciona como baliza e ponto
de partida na construção do modelo garantista. Na lição de Greco (2015, v. 1, p. 4):
A Constituição, [...] exerce duplo papel. Se de um lado orienta o legislador,
elegendo valores considerados indispensáveis à manutenção da sociedade, por
outro, segundo a concepção garantista do Direito Penal, impede que esse mesmo
legislador, com uma suposta finalidade protetiva de bens, proíba ou imponha
determinados comportamentos, violadores de direitos fundamentais atribuídos a
toda pessoa humana.

É, pois, para Carvalho (2008, p. 104), diante da compreensão desse Estado


Constitucional, que ―as normas constitucionais que versam sobre os direitos e garantias
fundamentais são dotadas de caráter vinculante‖, estando, então, a Constituição incumbida
de ser referência nos conteúdos suscetíveis às deliberações do Legislador para proteger os
bens jurídicos essenciais para os indivíduos e à comunidade. Para o mesmo autor, a
satisfação das garantias individuais e sociais expressa nas constituições democráticas
indicaria a maior ou menor adesão de determinado Estado ao sistema normativo garantista,
asseverando nesta mesma esteira que ―será garantista o sistema que maximize a tutela dos
direitos fundamentais‖ (CARVALHO, 2008, p. 97).
Desta forma, as considerações teóricas até aqui exploradas permitem concluir que
no tocante aos bens jurídicos protegidos pela atividade penal, estes deverão obedecer aos
óbices estabelecidos na Constituição, que por sua vez, tem nos direitos fundamentais as
bases para auferir o ideal de bem jurídico de valor socialmente estimado a ser protegido
mediante a tipificação de condutas a ele ofensivas e através da punição para quem violar,
ainda que seja invocada a teoria minimalista.

A Lei Maria da Penha e a diminuição dos casos de violência doméstica e de gênero

Conforme apresentado até aqui, teoricamente é inegável a grande contribuição que


a edição de normas com a finalidade punitiva tem para proteger os bens jurídicos e os
direitos fundamentais. Isto posto, este tópico apontará para a necessidade de criminalizar
condutas específicas em problemas sociais isolados, a exemplo da temática que envolve o
presente estudo, qual seja: discriminação e intolerância em face da orientação pessoal do
sujeito ou de sua identidade de gênero, amplamente conhecida como homofobia. Para
tanto, será usado como base a análise do impacto da Lei Maria da Penha publicado pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2015, para demonstrar a
efetividade desta lei, dada a diminuição dos casos de violência por ela tutelados, em que
pese já previstos nos tipos penais genéricos.
A Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 - Lei Maria da Penha -, editada com o
objetivo de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, criou juizados especiais
para matéria, alterou o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução
Penal, além de ter dado outras providências. Cumpre destacar que, a nova lei não criou
novos tipos penais, mas, em face da violência doméstica e familiar exercida contra a
mulher, modificou as penalidades de tipificações gerais, assim como, o tratamento dado
pelo Estado ao transgressor.
É de fácil percepção que a violência doméstica contra a mulher no Brasil tem
origem no modelo de família patriarcal, em que há uma relação de poder do homem sobre
a mulher, razão suficiente para, tardiamente, merecer a atenção do legislador. Embora já
existissem tipos penais gerais que abarcavam as condutas ofensivas, a Lei Maria da Penha,
considerando o alarmante número de violência perpetrada no ambiente doméstico e a
vulnerabilidade da mulher, estabeleceu, essencialmente, o aumento da pena para o
agressor, condições favoráveis para a vítima acionar os canais de denúncia e estruturou o
judiciário para os atendimentos de tais casos.
Certo de não ter a Lei Maria da Penha como foco o homicídio de mulheres, a
análise do IPEA partiu do pressuposto de que a violência doméstica ocorre em ciclos, onde
inúmeras vezes há um acentuado grau de agressividade envolvido, o que, eventualmente,
culmina de forma inesperada na morte do cônjuge, por isso, é possível imaginar que a lei,
ao fazer cessar ciclos iniciais de agressões, resulte também num efeito de segunda ordem
para fazer diminuir os homicídios ocasionados por questões domésticas e de gênero
(CERQUEIRA et al., 2015).
Ainda segundo o IPEA, para estabelecer a efetividade da Lei Maria da Penha, os
dados utilizados para a análise versam sobre as agressões letais no Brasil e foram obtidos
por meio do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Os
registros nesse sistema são contabilizados com base nas informações das declarações de
óbitos fornecidas pelos Institutos Médicos Legais. Assim, o estudo utilizou a taxa de
homicídios de mulheres dentro dos lares considerando as variáveis incidentes, excluindo
outras influências não relacionadas às questões de gênero. Os resultados da análise
indicaram que a introdução da Lei Maria da Penha gerou efeitos estatisticamente
significativos, reduzindo em cerca de 10% (dez por cento) a taxa de homicídio de
mulheres, associados à questão de gênero, dentro das residências, num período
compreendido entre os anos 2000 e 2011 (anterior e posterior a edição da Lei).
Imperioso reconhecer que a Lei Maria da Penha cumpriu o papel extremamente
relevante de conter a violência de gênero dentro das residências, ainda que para isso tenha
apenas asseverado a tipificação de condutas e procedimentos já existentes. É, por
correspondência, afirmar que a Lei Maria da Penha foi responsável por reprimir muitos
casos de violência doméstica no Brasil, algo que também se espera com a edição de uma
lei que guarde proteção contra manifestações homofóbicas.
Assim, constata Dias (2012):

Cada vez mais se reconhece a indispensabilidade da criação de leis que atendam


a segmentos alvos da vulnerabilidade social. A construção de microssistemas é a
moderna forma de assegurar direitos a quem merece proteção diferenciada. Não
é outra a razão de existir, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor, o
Estatuto do Idoso e da Igualdade Racial.

Breve síntese do tratamento legal conferido à homofobia nos Estados Internacionais

Com base na última edição do relatório A world survey of sexual orientation laws:
criminalisation, protection and recognition15 publicado pela ILGA - International lesbian,
gay, bisexual, trans and intersex association16 - no mês de Outubro de 2016, será exposto
neste tópico uma brevíssima síntese do tratamento legal conferido à homofobia nos
Estados Internacionais.
A ILGA é uma federação global com 1.200 organizações membros de 125 países
que fazem campanha por direitos lésbicos, gays, bissexuais, trans e intersexuais desde
1978. Publica anualmente o relatório que mapeia as leis que criminalizam a prática sexual

15
Tradução do autor: Uma pesquisa mundial de leis de orientação sexual: criminalização, proteção e
reconhecimento.
16
Tradução do autor: Associação internacional de lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexuais.
entre pessoas do mesmo sexo, leis que protegem o sujeito contra lesões e manifestações de
ódio em face de sua orientação sexual ou identidade de gênero e leis que reconhecem
direitos igualitários a estas minorias como união estável, casamento, adoção, pensão e
outras coisas.
Segundo este 11º relatório mundial (CARROLL, 2016), em sua maioria países do
continente Europeu: 14 países possuem disposições constitucionais que proíbem a
discriminação por orientação sexual (p. 47-48), 36 países possuem expressa proibição da
incitação ao ódio por orientação sexual (p. 52) e 40 países consideram a orientação sexual
da vítima como circunstancia agravante de delitos (p. 49-51). Noutro giro, é também de se
considerar que 73 países, em sua maioria dos continentes africano e asiático, criminalizam
o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo (p. 38-39) e 13 desses países, em sua
totalidade dos continentes africano e asiático, possuem pena de morte para o
relacionamento entre pessoas do mesmo sexo (p. 39).
Voltando o olhar para a América do Sul17, depreende-se deste relatório ainda que,
dos doze países que a compõe, metade destes (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia,
Equador e Uruguai) já editaram seus Códigos Penais para incluir desde a tipificação e
previsão de pena para a incitação da discriminação e discursos de ódio até agravantes da
pena no delito principal cometido com base na orientação sexual ou identidade de gênero
da vítima. A maior parte dessas edições ocorreu depois do ano de 2010, com exceção do
Uruguai, que segunda data das alterações legislativas, de forma pioneira na América do
Sul, ainda em 2003, editou seu Código Penal para incluir a orientação sexual ou identidade
de gênero nas tipificações de incitação e realização de atos de ódio, desprezo ou violência e
do Equador que as fez nos anos de 2005 e 2009. Nota-se, também, ainda em relação ao
Equador, que a edição de sua legislação foi a que mais estabeleceu proteção penal a
potencial discriminação do indivíduo.
Frise-se que, os demais países da América do Sul (Brasil, Guiana, Paraguai, Peru,
Suriname e Venezuela) não possuem legislação que preveja criminalização da incitação ou

17
São países da América do Sul: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai,
Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.
realização de crimes de ódio e agravante de pena em face da orientação sexual ou
identidade de gênero do indivíduo.
Por fim, é de destaque ainda que, a Guiana possui previsão, em seu Código Penal
vigente, de condenação de prisão por 10 (dez) anos pela prática tentada de sodomia e
prisão perpétua para a prática da sodomia, da forma que segue:

Art. 353 – Tentativa de ato não natural. Todos que:


a) tentar cometer sodomia; ou
b) intervir com outra pessoa com a intenção de cometer sodomia; ou
c) sendo homem, intervir com outro homem de maneira indecente, comete
crime grave e será punido com prisão de 10 anos.18 (Tradução do autor)

Art. 354 – Sodomia. Quem cometer sodomia, seja com um ser humano ou
qualquer outro ser vivente, comete delito grave e será punido com prisão
perpétua.19 (Tradução do autor)

Breve análise da criminalização da homofobia no Brasil: histórico e o Projeto de Lei


n.º 7.582/2014

Acompanhando as modificações legislativas de metade dos países da América do


Sul, no Brasil, a primeira iniciativa de afastar as condutas homofóbicas do seio social se
deu com a apresentação do Projeto de Lei n.º 5.003/2001 no plenário da Câmara dos
Deputados pela Deputada Iara Bernardi (Partido dos Trabalhadores – São Paulo) em 7 de
agosto de 2001. Seu teor previa atos de discriminação e determinava sanções civis às
práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas. Durante a tramitação
do Projeto de Lei n.º 5.003/2001 outros projetos de lei foram apensados ao mesmo por
terem conteúdos semelhantes. Em 2005, o Deputado Luciano Zica (Partido dos
Trabalhadores – São Paulo), relator responsável pelo projeto de lei na Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, apresentou parecer
favorável ao projeto com algumas alterações, sendo tudo aprovado no plenário da Câmara

18
Texto original: Art. 353 - Attempt to commit unnatural offence. Everyone who:
a) attempts to commit buggery; or
b) assaults any person with intent to commit buggery; or
c) being a male, indecently assaults any other male person, shall be guilty of felony and liable to
imprisonment for ten years.
19
Texto original: Art. 354 - Buggery. Everyone who commits buggery, either with a human being or with
any other living creature, shall be guilty of felony and liable to imprisonment for life.
dos Deputados e submetido à análise do Senado Federal em 2006, onde o projeto passou a
ser denominado e numerado como Projeto de Lei da Câmara n.º 122 de 2006 (CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 2006).
Dadas as alterações aprovadas na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei da
Câmara n.º 122 de 2006, tramitou no Senado Federal com o propósito de, segundo
disposição da ementa, alterar a Lei n.º 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes
resultantes de preconceito de raça ou de cor, o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de
1940 (Código Penal) e o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação das
Leis do Trabalho – CLT) para definir os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero, bem como
estabelecer as tipificações e delimitar as responsabilidades do ato e dos agentes. Em 2009,
o parecer dado pela Senadora Fátima Cleide (Partido dos Trabalhadores – Rondônia),
relatora responsável pelo projeto de lei na Comissão de Assuntos Sociais do Senado
Federal, fez modificações no projeto para incluir a criminalização do preconceito e
discriminação contra pessoas idosas e com deficiência, bem como para retirar alguns
artigos do projeto de projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados (CLEIDE, 2009).
Posteriormente, o projeto foi direcionado à Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa do Senado Federal, sob a relatoria do Senador Paulo Paim (Partido dos
Trabalhadores – Rio Grande do Sul) e, pendente de análise pela Comissão de Constituição
Justiça e Cidadania do Senado Federal (PAIM, 2013), foi arquivado ao final do ano de
2014 pelo término da 54ª Legislatura do Senado Federal, tudo conforme o art. 332 do
Regimento Interno e do Ato da Mesa n.º 2, de 201420, ambos do Senado Federal
(SENADO FEDERAL, 2015).

O Projeto de Lei n.º 7.582/2014

Também em 2014, novo Projeto de Lei com semelhante matéria, identificado sob o
n.º 7.582/2014 foi proposto pela Deputada Maria do Rosário (Partido dos Trabalhadores –

20
Art. 1º Este Ato regulamenta os procedimentos e condições a serem observados para a aplicação do art.
332 do Regimento Interno do Senado Federal (RISF), que trata do arquivamento de proposições ao final da
legislatura (BRASIL, 2014).
Rio Grande do Sul) na Câmara dos Deputados, tendo recebido pareceres favoráveis pela
aprovação em 2015, perante a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da
Câmara dos Deputados, sob a relatoria do Deputado Luiz Couto (Partido dos
Trabalhadores - Paraíba), e em maio de 2017 perante a Comissão de Direitos Humanos e
Minorias, da mesma casa legislativa, sob relatoria do Deputado Paulo Pimenta (Partido dos
Trabalhadores – Rio Grande do Sul), pendente, então, de apreciação e aprovação pelo
plenário da Câmara dos Deputados (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015).
Segundo sua ementa, o projeto de lei define os crimes de ódio e intolerância e cria
mecanismos para coibi-los, não só em face da orientação sexual, identidade e expressão de
gênero do sujeito, mas também, em face da classe e origem social, condição de migrante,
refugiado ou deslocado interno, idade, religião, situação de rua e deficiência. A proposta,
além de definir todos esses grupos de vítimas frequentes de estigmatização social,
estabelece agravante de pena em um sexto até a metade para os crimes de ódio motivados
por preconceito e discriminação, pena de prisão de um a seis anos e multa para os crimes
de intolerância ou de incitação ao ódio, políticas públicas para coibir os crimes de ódio ou
intolerância e ainda assistências às vítimas desses crimes.
Para a Deputada autora do projeto, no tocante a criminalização da homofobia:

Se a lei contra o racismo pode ser usada, e deve ser, contra alguém que aja de
forma racista, precisamos também de uma lei que puna e criminalize a
homofobia e os crimes de ódio contra as pessoas, pela sua identidade de gênero e
orientação sexual (ROSÁRIO, 2016 apud SILVA, J., 2016).

Ultimando as considerações acerca da homofobia, convém destacar a fala de Carlos


Ayres Britto, Ministro do Supremo Tribunal Federal entre os anos de 2003 e 2012, quando
questionado pelo Jornal Folha de São Paulo acerca da criminalização da homofobia em 04
de julho de 2011, em que concluiu: ―O homofóbico exacerba tanto o seu preconceito que o
faz chafurdar no lamaçal do ódio. E o fato é que os crimes de ódio estão a meio palmo dos
crimes de sangue‖ (NUBLAT; SELIGMAN, 2011).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil vem garantindo a expansão de direitos e políticas antes não previstos à
lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e transexuais, tais como a permissão para
adoção por casais homossexuais, bem como a averbação nos registros civis de ambos
adotantes como pais, a autorização para alteração de prenome e de sexo no assento de
nascimento no registro civil, o uso do nome social, a concessão da condição de
dependentes nos planos de saúde em que figure como titular pessoa do mesmo sexo e
titulação de pensões por dependência decorrente de vínculos homoafetivos estáveis,
reconhecimento e indenização de despedidas trabalhistas discriminatórias, reconhecimento
da união civil entre pessoas do mesmo sexo, dentre outros. Entretanto, nem tudo é avanço.
O crescente número e evidências assustadoras da violência cotidianamente vivenciada em
face da orientação sexual e identidade de gênero do sujeito, deixa claro que, alguns grupos,
especialmente os majoritários e socialmente dominantes, não estão caminhando no mesmo
sentido e ritmo das evoluções já vivenciadas.
Os impiedosos crimes marcados pelo ódio e intolerância são consumados
exclusivamente em virtude do preconceito e discriminação, sendo as vítimas
intencionalmente selecionadas. A resposta repressiva diante toda e qualquer forma de
discriminação e inferiorização no meio social serve de fortalecimento ao Estado
Democrático de Direito - qualidade própria da formação do Estado brasileiro, explícita já
nas primeiras disposições da nossa Lei maior -, especialmente, quando se trata de
estabelecer normas que se destinam a conceder proteção a todos àqueles que se encontram
em situação de maior vulnerabilidade social. Existem ausências legislativas que carecem
de resposta imediata para garantir legalmente a indistinta proteção dos indivíduos e, por
conseguinte, o tratamento mais severo de condutas que não se coadunam com o Estado
Democrático de Direito e repetidamente violam direitos fundamentais.
A orientação sexual e a identidade de gênero é, indubitavelmente, característica
pessoal, restrita a individualidade e privacidade do sujeito, tão somente por isso já
merecedora de tantos quantos forem os esforços para garantir sua inviolabilidade, e, com
base nos princípios jurídicos constitucionais brasileiros e na noção doutrinária de bens
jurídicos que se espera proteger, tais características não podem ser objeto de
reprovabilidade ou estigmatização social e ter afastada de si a tutela jurídica protetiva do
Estado. Ignorar a exteriorização dessas discriminações, marcadas em não poucas vezes
pelo sangue, só propicia seu crescimento e favorece a injustiça social.
Observando as legislações dos demais países sul-americanos, é possível perceber
que metade dos países editaram seus Códigos Penais para incluir a tipificação do crime de
incitação da discriminação e discursos de ódio, bem como para prever agravantes da pena
no delito principal cometido com base na orientação sexual ou identidade de gênero da
vítima, essas alterações legislativas tendem a demonstrar que uma sociedade fraterna e
democrática não pode, de modo algum, conviver com tamanha barbárie, indicando a
imprescindibilidade das legislações acompanharem as modificações sociais. Nesta esteira
de mudanças legislativas, o Brasil, por sua vez, tem em trâmite um projeto de lei com
objetivos semelhantes, afinal, não se espera outro posicionamento de um país que traz no
núcleo do seu sistema jurídico a preservação da dignidade da pessoa humana.
É de se considerar, portanto que, no Brasil, as manifestações homofóbicas ainda
carecem de tratamento jurídico apropriado. Essas manifestações são determinantemente
contrárias à preservação do bem estar social e em nada colabora para a vida em sociedade,
pelo contrário, estigmatiza pessoas determinadas que em nada difere das demais como
cidadãos produtivos e partícipes de uma sociedade que roga pelo respeito da diversidade
presente na orientação sexual e identidade de gênero, bem como, clama por justiça social.

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2013.
INTERSECÇÕES ENTRE GÊNERO E TRÁFICO DE DROGRAS: SOBRE O
LUGAR DA MULHER21

Luísa Vanessa Carneiro da Costa22


Alex Bruno Feitoza Magalhães23

GT: GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS

RESUMO

Palavras-chave: Gênero. Tráfico de Drogas. Mulher

INTRODUÇÃO

Buscaremos nesta pesquisa relacionar as intersecções entre gênero e tráfico de


drogas, a partir dos contornos da política antidrogas brasileiras e o encarceramento da
mulher por tráfico de droga.
Refletindo sobre as questões da política antidrogas, envolvendo o tráfico de
entorpecentes e a posição ocupada pelo feminino na sociedade. Também, as repercussões
do encarceramento por tráfico de drogas no Brasil: sobre o lugar da mulher e a inserção das
questões de gênero como elemento para pensar o tráfico feminino.

21
Esta pesquisa é resultado dos estudos que atualmente vêm sendo desenvolvidos no âmbito do Grupo de
Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre Direitos Humanos (GEPIDH-Mércia Albuquerque) do
UNIFAVIP, sob a coordenação e orientação do Prof.º Msc. Fernando da Silva Cardoso, do curso de Direito.
22
Mestranda em Direito – Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Pós-graduanda em Direitos
Humanos: Educação e Ressocialização – UCAM. Graduada em Direito – Centro Universitário do Vale do
Ipojuca - UNIFAVP, Pesquisadora Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre Direitos Humanos
Mércia Albuquerque - GEPIDH, Extensionista do Ciclo de Debates sobre Sociedade e Direitos Humanos -
DHiálogos. E-mail: luisavanessa1@hotmail.com
23
Centro Universitário do Vale do Ipojuca, Graduando em Direito, Pesquisador do Grupo de Estudos e
Pesquisas Interdisciplinares sobre Direitos Humanos (Mércia Albuquerque/UNIFAVIP), Pesquisador do
Projeto de Iniciação Científica: “Direitos humanos, violência e diversidade humana no período ditatorial, no
Agreste pernambucano”, Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio
Ambiente, Diversidade e Sociedade (UPE/CNPq), Extensionista no Projeto de Extensão Universitária
DHiálogos: Ciclo de Debates sobre Sociedade e Direitos Humanos, E-mail: amagalhaesb@outlook.com
Assim, propõe-se analisar e discutir as seguintes problemáticas: Quais as
intersecções entre tráfico e as questões de gênero em relação a posição social das mulheres
presas? Qual a posição social das mulheres mulas do tráfico?
O objetivo geral da pesquisa consiste em compreender as intersecções entre gênero
e tráfico de drogas a partir da posição social ocupada pelas mulheres mulas.
Tem-se como objetivos específicos: discutir sobre a política antidroga no Direito
Brasileiro; refletir sobre tráfico de drogas e questões de gênero; e analisar as intersecções
entre tráfico e gênero sobre mulheres mulas.
De início nossa pesquisa se propõe a discutir sobre a política antidroga no Direito
Brasileiro e o lugar da mulher nesse contexto; em um segundo momento trataremos sobre o
encarceramento da mulher por tráfico de drogas; e, por fim analisaremos as intersecções
entre gênero e tráfico de drogas.
Esta pesquisa se justifica por ser de fundamental importância o estudo em questão,
tanto para a esfera acadêmica e social, quanto no âmbito pessoal, devido a desigualdade e
indiferença que existe com a mulher presa, frente às perspectivas humanistas
A metodologia utilizada em nossa pesquisa é de caráter bibliográfico-exploratório,
assim, proporcionando uma maior familiaridade com o tema.
É documental, pois utiliza-se de materiais já elaborados, especialmente da Lei de
Drogas Brasileiras e suas principais controvérsias.
Assim, entendemos que esse estudo é importante para compreender os aspectos de
vulnerabilidade feminina neste espaço, no qual o preconceito é aumentado devido ao
grande volume de preconceitos sociais.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Questões sobre tráfico de entorpecentes e política antidrogas

Neste tópico iremos discutir as questões da política antidrogas, envolvendo o tráfico


de entorpecentes, se pode observar que a legislação se preocupa em manter o sujeito longe
da sociedade, acreditando ser a solução mais eficaz para o problema, colaborando dessa
forma para o caos instalado no nosso caótico Sistema Penitenciário, decorrente da
superlotação.
A regulamentação da política de combate às drogas até agosto do ano de 2006
estava definida nos termos das respectivas Leis n°. 6.368/76 e nº. 10.409/02. Esta segunda
Lei objetivava, assim, dar um tratamento diferenciado aos temas disciplinados pela
primeira, mas, os artigos vetados pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso fizeram dela
letra morta, uma colcha de retalhos de difícil aplicação. Para sanar as divergências criadas
com o último diploma penal, os Tribunais Superiores conduziram no sentido de considera–
las complementares, sendo a primeira de natureza material, descrevendo os tipos penais
(crimes) e a segunda processual, criando regras para a forma de aplicação da Lei
(MOREIRA, 2006).
É possível observar que o legislador tão pouco se importa em adequar uma política
de drogas à sociedade em que se vive, insistindo em pensar em práticas punitivas e
opressivas para as pessoas que praticam esse ―ato delituoso‖.
Posteriormente, em 23 de agosto de 2006, fora sancionada a Lei 11.343/2006, que,
no lugar de substância entorpecente utilizada pelas Leis 6.368/76 e 10.409/02, conceitua
―drogas‖ como: ―[...] substâncias ou produtos capazes de causar dependência, e que
estejam especificadas em Lei ou relacionadas em lista atualizadas, de forma periódica, pelo
Poder Executivo da União, (§ único do art. 1º). Trata-se, portanto, de uma norma penal em
branco‖ (GOMES, 2006, p. 21).
Se percebe que a Lei 11.343/06 não tem um aparato de implementação adequada
para uma política de drogas, visto que é notória a aplicação de medidas retributivas, em
detrimento de medidas restaurativas e socioeducativas.
Nesse contexto, a atual política pública brasileira sobre drogas é comandada pela
Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (SENAD), que foi criada pela Medida
Provisória n° 1669, de 1998 e posteriormente transferida para a estrutura do Ministério da
Justiça por meio do Decreto de n° 7.426, de 2011. Assim como o Conselho Nacional de
Políticas sobre Drogas, (CONAD) e a gestão do Fundo Nacional Antidrogas, o (FUNAD).
Não obstante, o título II da Lei de Tóxicos, que trata do Sistema Nacional de
Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), mais especificamente em seu artigo 3º, vem
nos dizer que: O (SISNAD) tem a finalidade de articular, integrar, organizar e coordenar as
atividades relacionadas com: a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social
de usuários e dependentes de drogas, bem como a repressão da produção não autorizada, e
do tráfico ilícito de drogas (BRASIL, 2006). Portanto, o caráter inovador dessa norma é a
reinserção social e atenção aos dependentes de substâncias entorpecentes em geral.
Dessa feita, o que se observa é que não existem, ainda, oportunidades educativas,
de saúde básica ou medidas que possam trazer oportunidades para o reingresso no meio
social, sem que possam enfrentar toda a vergonha e constrangimento para com a sociedade
e até mesmo seus familiares, assim sendo, a intenção que o legislador teve ao criar o
(SISNAD), não foi tão eficaz.
O bem jurídico tutelado pela Lei de drogas seria a saúde pública, a redução de
danos, não sendo necessário o tipo penal do art. 39, qual seja:

[...] conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a


dano potencial a incolumidade de outrem: Pena detenção, de 6 (seis) meses a 3
(três) anos, além da apreensão do veículo, cassação da habilitação respectiva ou
proibição de obtê-la, pelo mesmo prazo da pena privativa de liberdade aplicada,
e pagamento de 200 (duzentos) a 400 (quatrocentos) dias/multa (BRASIL,
2006, p. 07).
Em seu artigo 1º, a Lei que Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de
usuários e dependentes de drogas. Estabelece também normas para repressão à produção
não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes, desse modo, nota-se que
inexistem perspectivas quanto a uma política antidrogas por parte do Estado (BRASIL,
2006).
Há de se observar que a Lei em questão, não traz um aparato preventivo, podendo
primar pela redução de danos, apenas tratando de penas em relação às condutas já
praticadas, o que realmente ocorre na prática.
Nesse sentido, ocorre uma grande falha do Estado com a falta de centros próprios e
adequados para atender às necessidades das mulheres, por exemplo; a falta de atenção e
cuidados aos problemas de saúde física ou psíquica das detentas, e, até mesmo, sobre as
filhas e filhos destas, que na grande maioria das vezes, ficam abandonados por não terem
uma base familiar.
A respectiva Lei de Drogas, com fulcro no artigo 4º, estabelece como princípios
basilares para sua criação, o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, o
respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes, a promoção dos
valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro, a promoção de consensos
nacionais, de ampla participação social, promoção da responsabilidade compartilhada entre
Estado e sociedade, reconhecimento da intersetorialidade dos fatores correlacionados com
o uso indevido de drogas, integração das estratégias nacionais e internacionais de
prevenção do uso indevido (BRASIL, 2006).
Ainda, articulação com os órgãos do Ministério Público e dos Poderes Legislativo e
Judiciário, adoção de abordagem multidisciplinar, observância do equilíbrio entre as
atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social, observância às
orientações e normas emanadas do Conselho Nacional de Drogas (CONAD) perfazendo os
incisos do referido artigo 4ª da Lei 11.343/06 (BRASIL, 2006).
O inciso I do artigo 4º, da Lei 11.343/06 se refere ao respeito aos direitos
fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade,
de modo a ser uma garantia legal determinada, inclusive na Constituição Federal.
Desta forma, consta da Constituição Federal que todas/os são iguais, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo direito a liberdade, tendo em vista que tal princípio
manifesta-se no direito de ser livre em qualquer das circunstâncias, possuindo autonomia
garantidora de manifestar a própria vontade, como bem relata Kant (1994), ao inovar nos
fundamentos de construção da sociedade e suas regras, ressaltando a liberdade como traço
essencial.
Ao dispor o inciso II, do artigo 4º, da Lei 11.343/2006, Lei de Tóxicos, o legislador
prima pelo respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes, devendo-se
observar aqui, a essência do valor constitucional, independente das várias concepções de
justiça, como bem-dispõe Gomes (2007), onde o Estado democrático não se encontra
legitimado a impor, pela força, a ―justiça sobre a terra‖. Seu objetivo mais modesto deve
ser fazer política social.
O inciso III, do artigo 4º, da Lei de Drogas, dispõe que deve ser levada em
consideração a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro,
reconhecendo-os como fatores de proteção para o uso indevido de drogas e outros
comportamentos correlacionados, no que consiste em reconhecer fatores de risco para
possíveis técnicas de prevenção, que viabilizem eficazes modelos de preocupação com esse
público, como muito bem ilustra a Resolução 3, de 27 de outubro de 2005:
1. Prevenção

1.1 Orientação geral

[...]

1.1.3 As ações preventivas devem ser pautadas em princípios éticos e pluralidade


cultural, orientando-se para a promoção de valores voltados à saúde física e
mental, individual e coletiva, ao bem-estar, à interação socioeconômica e a
valorização das relações familiares, considerando seus diferentes modelos
(BRASIL, 2005, p. 10).

Já o inciso IV, do artigo 4º, da Lei 11.343/06, estabelece a promoção de consensos


nacionais, de ampla participação social, para o estabelecimento dos fundamentos e
estratégias do (SISNAD), contudo, o que acontece na prática, é exatamente o oposto, uma
afronta a todos esses princípios e garantias fundamentais, tendo em vista a extrema
importância dessa medida.
Enquanto que no inciso V da Lei 11.343/06, o princípio a ser tratado é o da
promoção da responsabilidade compartilhada entre Estado e sociedade, reconhecendo a
importância da participação social nas atividades do (SISNAD), apesar de ser uma vertente
extremamente importante a ser seguida, na prática não é o que acontece, devido a falta de
parceria entre o Estado e a sociedade no que se refere à contribuição de ambos para uma
nova política de drogas, uma política mais voltada aos aparatos da inclusão social.
Já o inciso VI, do artigo 4º, da Lei de Tóxicos trata do reconhecimento da
intersetorialidade dos fatores correlacionados com o uso indevido de drogas, com a sua
produção não autorizada e o seu tráfico ilícito, porém, pode-se observar o quanto esse
princípio não se correlaciona entre si, se encontrando, por vezes indissociáveis. Dessa
forma, trata-se de uma análise global do tema, percebendo, então a intersetorialidade que o
caracteriza (GOMES, 2007, p. 42).
Posteriormente, vem o inciso VII, do artigo 4º, da respectiva Lei de Drogas, a Lei
11.343/06, que dispõe do princípio da integração das estratégias nacionais e internacionais
de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de
drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao seu tráfico ilícito, dessa forma e a
respeito desse princípio podemos concluir que a política de drogas deveria ser voltada à
realidade social em que vivemos, tanto nacional, quanto internacional, havendo, portanto,
um equilíbrio de experiências entre as realidades.
O inciso VIII, do artigo 4º, da Lei de Drogas, trata da articulação com os órgãos do
Ministério Público e dos Poderes Legislativo e Judiciário visado à cooperação mútua nas
atividades do (SISNAD), tratando-se de uma articulação entre os Poderes, é possível
observar o quanto seria enriquecedor se realmente fosse executado esse artigo, então seria
algo interessante para conduzir uma justa política de drogas.
É importante destacar o inciso IX do artigo 4º da Lei 11.343/06, que trata da adoção
de abordagem multidisciplinar que reconheça a interdependência e a natureza
complementar das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de
usuários e dependentes de drogas, repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito
de drogas, a respeito disso, Gomes (2007) trata que o grande problema das drogas poderia
ser amenizado, ou melhor, equacionado, quando os profissionais evolvidos articulassem
em um projeto comum, levando em conta a complexidade do assunto, da sociedade, do
humano.
De modo que seriam necessários estudos realizados na esfera sanitária (medicina,
psiquiatria e farmacologia), bem como as pesquisas desenvolvidas na área das ciências
humanas (antropologia, sociologia, história, psicanálise, psicologia), sendo questões
fundamentais no trato da questão (GOMES, 2007, p. 44).
Ainda se tratando da Lei de Drogas, em seu artigo 4º, inciso X, está disposto sobre
a observância do equilíbrio entre as atividades de prevenção do uso indevido, atenção e
reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não
autorizada e ao seu tráfico ilícito, visando a garantir a estabilidade e o bem-estar social,
apesar de ser de grande importância, o Estado nada faz para que haja um equilíbrio entre a
prevenção e a repressão, pois o que ocorre, na realidade, é a prática repressiva e punitiva.
A observância às orientações e normas emanadas do Conselho Nacional
Antidrogas, está previsto no artigo 4º, inciso XI da Lei 11.343/06, neste sentido é
importante destacar que o (CONAD) é um órgão colegiado, criado pela Lei 10.683/2003,
regulamentado pelo Decreto 5.912/2006 e constitui órgão normativo de deliberação,
vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GOMES,
2007, p. 46).
De modo que, compete ao (CONAD), na qualidade de órgão superior ao
(SISNAD), acompanhar e atualizar a política nacional sobre drogas, valendo observar que
a respectiva política de drogas fora sancionada no ano de 2006, e já se passaram 10 anos de
sua efetividade, mostrando-se, portanto, o quanto o Estado não se preocupa com o
acompanhamento de tal política, restando demonstrado que o que ele busca é a punição
com atos repressivos, logo, uma política criminal de drogas.

2.2 Dilemas do encarceramento por tráfico no Brasil: sobre o lugar da mulher

É possível observar a violação de inúmeros princípios constitucionais, assim como


a quebra de garantias e ampla defesa perante a incidência da Lei em comento24, havendo
um paralelo entre Política Pública de Redução de Danos e a Política Criminal de Drogas -
intenção de reprimir de forma mais ostensiva condutas consideradas mais lesivas à
sociedade.

Um aspecto importante para se destacar é que o posicionamento da clínica de


redução de danos rompe com a perspectiva moralista e repressora com relação ao uso das
drogas. A percepção que o problema está nas drogas ilegais e que elas são mais perigosas é
ilusória. Relatórios destacam que o álcool, mais do que outra substância psicoativa ilegal,
produz mais prejuízos financeiros e de morbimortalidade, seja pelo seu próprio efeito ou
associados a crimes violentos, acidentes de trânsito e adoecimentos cardíacos e do aparelho
circulatório (ANDRADE et. al., 2010).

24
Retrocessos fáceis de serem notados com a leitura da Lei 11.343/06 são exemplos de resistência do Estado em relação a uma
política pública de drogas: a não efetividade de uma política de prevenção ao uso de drogas, de assistência e de reinserção social
do usuário; a não distinção entre usuário e traficante; um rigor extremamente punitivo contra quem comete delitos relacionados à
Lei de Drogas; obscuridade na configuração do rito procedimental, assim como um inequívoco intuito de que sejam apreendidos,
arrecadados e, porventura, leiloados os bens e vantagens que forem obtidos através do delito de drogas.
Deveria existir uma Política de Drogas sabedora das necessidades básicas de
usuários/as e/ou traficantes, de modo que todas/os pudessem ser alertadas/os dos efeitos
que as drogas causam.
Ainda, de acordo com o Relatório Sobre a Saúde Mental no mundo, da Organização
Pan-americana da Saúde/Organização Mundial de Saúde/ONU, em 2001, as mulheres têm
maior probabilidade do que os homens de receber prescrição de psicotrópicos. Com
relação à depressão, nos levantamentos epidemiológicos psiquiátricos, uma referência a
isso é encontrada em mulheres, perfazendo um total de 1,6 e 3,1 mulheres para cada
homem. (MORENO et al, 2004).
Contudo, toda a controvérsia direcionada a Lei de Drogas pode ter sido reflexo das
diferentes realidades socioeconômica e cultural de países da própria América Latina,
decorrente de uma estrutura traçada por padrões estereotipados.
No direito pátrio, o legislador acredita que a solução mais eficaz para repreender
alguém que comete ato delituoso é isolá-lo inteiramente do mundo social25, quando, na
verdade, apenas está colaborando para que haja um descaso com a dignidade da pessoa
humana, acarretando no caos encontrado hoje, no sistema carcerário. Há no cenário
mundial uma tendência de se enxergar o usuário dependente de drogas não como um
criminoso, mas sim uma vítima daquilo que se pode chamar de violência estrutural
(MANSUR JUNIOR, 2013).
Vários podem ser os fatores que levam uma pessoa a se envolver no mundo das
drogas. Por exemplo, as limitações pessoais, quer sejam de ordem física ou psicológica, ou
ainda, aquelas impostas pelo sistema em que se vive (MANSUR JUNIOR, 2013).
As drogas são podem ser consideradas como algo benéfico, de forma a serem
utilizadas por quase todas as culturas a partir de algumas necessidades médicas, religiosas,
por exemplo. Tornando-se parte indispensável dos ritos da sociabilidade, da cura, da
devoção, do consolo e do prazer. Dessa forma as drogas foram divinizadas em inúmeras
sociedades (CARNEIRO, 2002, p. 03).

25
Além disso, o legislador coloca em situação de vulnerabilidade social, aquela ou aquele que comete ato delituoso, de
forma a serem submetidos a práticas disciplinares do Estado, como por exemplo, o pagamento exorbitante de multa; ou
ainda instalando pessoas em lugares de inferioridade, de forma a serem alojadas ou alojados em estabelecimentos
insalubres.
Segundo Mansur Junior (2013), o consumo de drogas ilícitas, o tratamento e a
punição de usuários são temas recorrentes na sociedade brasileira e, na
contemporaneidade, ganham força várias tendências argumentativas que criticam a eficácia
da legislação nacional, a letargia do poder público e a inaptidão do Estado para lidar com a
questão.
No plano jurídico-normativo, há uma série de dispositivos que tratam da questão,
cabendo se certificar, qual seria a solução ou a busca de consensos para resolver os
problemas decorrentes de tal fenômeno social necessita de uma abordagem isenta a
respeito de como as instituições públicas e a sociedade devam se posicionar a respeito de
tão alarmante situação.
Há uma intensa controvérsia, ainda, quando se trata das penas aplicadas ao usuário
dependente. Observando se as políticas públicas adotadas pelo Estado por intermédio da
legislação atual têm obtido o êxito almejado em sua implementação, no que concerne ao
viciado reincidente, por exemplo.
A doutrina vem questionando a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei n.
11.343/06.26 Defendendo que a Constituição Federal, no seu art. 5º, inciso X assegura o
direito à vida privada e à intimidade e que o art. 28 pune uma conduta que pertence, tão-
somente, à esfera particular do indivíduo, dizendo respeito exclusivamente a ele, enquanto
não lese direitos de terceiros, não sendo passível de qualquer intervenção pelo Estado.
Assim, faltaria ao art. 28 um bem jurídico a ser tutelado, o qual, em tese, seria a
saúde privada. Contudo, faltando ao Estado o poder para intervir nessa esfera particular,
restaria o disposto no art. 28 inconstitucional, o que esvaziaria o bem jurídico
constitucional-penal tutelado por esse dispositivo legal.
De modo que, nota-se a violação de princípios constitucionais e penais pela Lei nº
11.343/06, princípios estes basilares do Estado Democrático de Direito, por ferirem os
direitos fundamentais da pessoa humana.
Ainda, o art. 5º, inciso X da CRFB protege a liberdade e a privacidade individual,
ao dispor: que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das

26
A respeito disso, já se tem o Recurso Extraordinário 635.659 - São Paulo, voto do Relator Gilmar Mendes.
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua
violação (BRASIL, 1988).
De forma que, com uma política de drogas inteiramente proibicionista, e, por vezes,
contraditória, o consumo e o tráfico tendem a aumentar cada vez mais e a guerra às drogas
não colabora para sua diminuição, contribuindo tão somente para a ampliação do mercado
ilegal, cada vez mais lucrativo, vez que cresce também a condição do crime organizado.
Modelos extremamente repressivos, que ensejam legislações extremamente
rigorosas abandonando por completo a observância aos direitos fundamentais e violando
princípios como o da taxatividade, o da intervenção mínima, o da proporcionalidade, o da
humanidade, enfim, criando mecanismos que não só se apresentam inócuos a reduzir o
consumo de drogas e outros crimes decorrentes desse proibicionismo, como fomentam as
violações aos direitos fundamentais (MANSUR JÚNIOR, 2013).
A política de descriminalização tem objetivo de poupar gastos e trazer melhores
resultados para a sociedade. Com o mercado regularizado de alguns psicoativos poderia ser
reduzido o poder do crime organizado e melhorar a segurança dos cidadãos, pois esses são
os que mais sofrem com essa guerra desnecessária (SANTOS, 2011).
O atual sistema internacional de controle de drogas, do qual o Brasil faz parte, além
de não alcançar seus objetivos, gerou uma série de recordes negativos para o nosso país.
No Brasil, em junho de 2014 foram registradas pelos gestores de unidades
prisionais 37.380 mulheres no sistema prisional, conforme informação fornecida pelo
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).
Segundo relata Guimarães (2015), o documento aponta que 63% das mulheres
encarceradas respondem por crimes relacionados ao tráfico de drogas: 5.096 são acusadas
de tráfico, 421 por tráfico internacional e 832 mulheres, por associação com o tráfico.
No ano de 2005, antes da aprovação da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, 34%
da população carcerária feminina respondia por crimes ligados ao tráfico. Comprova-se
que em aproximadamente dez anos, essa proporção ultrapassa o dobro. Esta informação
acompanha um fenômeno internacional de aumento do encarceramento feminino pelo
crime de drogas: 50% da população feminina mundial responde por crimes de tal natureza,
informação (GUIMARÃES, 2015). É possível observar o quanto a política criminal de
drogas é tendenciosa ao aumento carcerário, de modo a torna-lo cada vez mais precário e
opressor.
No documento aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2010, conhecido como
―Regras de Bangkok‖, traçaram-se diretrizes para o tratamento de mulheres presas e de
medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Porém, verifica-se que
mesmo assim, as penalidades sofridas pelas mulheres são atribuídas em grau de
marginalização superior às masculinas devido ao patriarcalismo instaurado nas práticas do
Estado.
Diante dessa perspectiva, é comum observar que, devido ao proibicionismo, o
sistema carcerário foge do controle do Estado, de forma que o Estado não possui recursos
administrativos suficientes para construir estratégias que envolvam uma política judicial
eficaz.
Assim, poderia ser observada a realidade de cada detenta, como por exemplo, suas
condições físicas e psicológicas, de modo a implementar práticas utópicas e mais
acessíveis a uma realidade humana e justa.
A respeito disso, Salmasso (2004) dispõe que deve se observar, em primeiro plano,
em qual meio social essas mulheres estão inseridas (área de trabalho, ambiente doméstico e
etc) e, num segundo plano, revelar as condições biológicas e psicológicas que podem ou
não contribuir para a incidência e o grau dessa criminalidade.
Nos Estados Unidos, país com a maior população carcerária mundial, o aumento de
prisões de mulheres por tráfico aumentou em até 800% nos últimos trinta anos. Os dados
foram fornecidos da organização internacional de direitos humanos: The Witchcraft and
Human Rights Information Network (WHRIN), de acordo com entendimento de
Guimarães (2015).
O Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), ligado ao Ministério da Justiça,
constatou que a maioria das mulheres presas pela criminalização de drogas ocupa uma
posição coadjuvante nessa modalidade de crime, realizando serviços de transporte de
drogas em pequeno comércio, muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades
de gerência do tráfico.
De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (2014, p. 39), o
ritmo de crescimento da taxa de mulheres presas na população brasileira chama a atenção.
De 2005 a 2014 essa taxa cresceu numa média de 10,7% ao ano. Em termos absolutos, a
população feminina saltou de 12.925 presas em 2005 para 33.793 em 2014.
É importante observar que grande parte dessas mulheres que estão presas, são
rendas de suas próprias famílias, são as chefes de suas famílias, de forma que o
aprisionamento interfere na família inteira.
A retração no número de mulheres entre junho e dezembro do mesmo ano deve-se a
inconsistências nas informações prestadas pelos estados de São Paulo e Rio de Janeiro no
levantamento de junho. Nomeadamente, foi registrada no levantamento de junho a
presença de mulheres no Centro de Progressão Penitenciária Dr. Edgard Magalhães
Noronha, em São Paulo, e nos presídios Ary Franco e Evaristo de Moraes, no Rio de
Janeiro, quando nenhuma das unidades custodia mulheres (DEPEN, 2014, p. 39).
O tratamento e o comportamento dos homens, em relação às mulheres, ainda é
baseado no patriarcado, vivenciando, ainda um grau hierárquico distinto em vários
aspectos, dentre eles, na coação para a prática de delitos, sendo movidas através de atos
violentos.
2.3 Intersecções entre gênero e tráfico de drogas: posição social das mulheres mulas

Infelizmente a sociedade ainda enxerga a mulher como sendo subordinada a


um patriarca, seja ele o genitor ou o companheiro, desde que do sexo masculino. Um dado
encontrado foi um documento do Consórcio Internacional sobre Política de Drogas (IDPC)
que estudou a população feminina no cárcere, analisando os papéis desempenhados pelas
mulheres nas redes criminosas na América Latina, bem como os processos de
envolvimento.
O levantamento feito pelo IDCP revela que existe um grande aumento de mulheres
presas por delitos vinculados à venda e transporte de drogas ilegais e que isso se vincula,
não só com o seu maior envolvimento nas redes de tráfico, mas também ao crescimento da
perseguição penal dessas atividades.
Dessa maneira, o referido estudo mostra como as mulheres ocupam o lugar de mão
de obra barata e facilmente substituível nas redes do crime, elas são apresentadas como
cultivadoras; coletoras; vendedoras de varejo; correios humanos, onde são conhecidas,
geralmente como ―mulas‖, dentre outras nomenclaturas e introdutoras de drogas em
centros de reclusão, conforme aponta o estudo.
Segundo Del Priore (2013, p. 06): ―não importa a forma como as culturas se
organizaram‖, a diferença entre masculino e feminino sempre foi hierarquizada. No Brasil
Colônia, o patriarcalismo brasileiro conferia aos homens uma posição hierárquica superior
às mulheres, de domínio e poder, sob o qual os ―castigos‖ e até o assassinato de mulheres,
pelos seus maridos, eram autorizados pela legislação.
Segundo os últimos dados de junho de 2014, o Brasil conta com uma população de
579.7811 pessoas custodiadas no Sistema Penitenciário, sendo 37.380 mulheres e 542.401
homens. No período de 2000 a 2014 o aumento da população feminina foi de 567,4%,
enquanto a média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%,
refletindo, assim, a curva ascendente do encarceramento em massa de mulheres, conforme
dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN –
MULHERES, 2014, p. 5).
É surpreendente como o sistema carcerário utiliza-se de instrumentos contraditórios
ao manter prisioneira(o) de seu sistema, pessoas que possivelmente tenham praticado ato
delituoso, de forma que vão de contrário aos próprios ditames legais que asseguram a
utilização da pena privativa de direitos, levando à excepcionalidade a restrição de
liberdade.
De acordo com os dados levantados pelo Infopen (2014, p. 5), as mulheres em
submetidas ao cárcere são jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento
familiar, possuem baixa escolaridade, são oriundas de extratos sociais desfavorecidos
economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao
aprisionamento.
Através da disposição a cima mencionada, é possível observar que o Estado trata
aquela ou aquele que comete crime, como instrumento de poder, o qual pode ser objeto da
miséria e desconforto oferecido no cárcere, consequentemente, fica cada vez mais difícil o
controle da situação em que se encontra cada detenta, por parte do Estado.
É possível identificar o quanto o sistema carcerário é arcaico e conservador de
precedentes históricos, ao notar que o índice de mulheres encarceradas é bem maior
quando se trata de questões de vulnerabilidade social, no tocante a cor da pele, tendo em
vista que é possível observar o quanto o Estado trabalha com estereótipos sociais.
O espaço que as mulheres ocupam em grau de privilegio ainda é, de certo modo,
insignificante, de forma que a opressão e a violência contra a vida social da mulher ainda é
traçada por desigualdades.
É possível notar o quanto a falta de apoio às mulheres presas ainda é significativa,
de maneira que é interessante que estas sejam protagonizadas, ajudando umas as outras, a
resistir às opressões do Estado, vivenciando as renovações dos tempos.
Conforme dispõe Fernandes (2015), em relação à faixa etária dessas mulheres,
cerca de 50% das encarceradas têm entre 18 e 29 anos; 18%, entre 30 e 34 anos; 21%,
entre 35 e 45 anos; 10% estão na faixa etária entre 46 e 60%; e 1%, tem idade entre 61 e 70
anos. Segundo o levantamento, em junho do ano passado não haviam presas com idade
acima dos 70 anos, dessa feita, quando o assunto é escolaridade, apenas 11% delas
concluíram o Ensino Médio e o número de concluintes do Ensino Superior ficou abaixo de
1%. Metade das detentas possui o Ensino Fundamental incompleto, 50%, e 4% são
analfabetas.
Vale observar que o sistema carcerário se utiliza de perfis estereotipados para
distinguir quem é o autor de determinado crime, ou não, de modo que é possível notar que
o entendimento estatal seria que a transgressão das mulheres ocorre porque são pobres e
submissas, tendo em vista que essa realidade ultrapassa a pessoa da presidiária, abarcando
seus familiares, inclusive, seus filhos.
Com as informações obtidas ver-se com clareza a situação que as penitenciárias
femininas se encontram, e consequentemente, a situação de invisibilidade que as detentas
sofrem por parte do Estado e da sociedade.
Para Saffioti (2004, p. 14) o grande desequilíbrio social está inerente ao
capitalismo, de forma que a acumulação de bens em poucas mãos e a farta distribuição da
miséria para muitos, habita o inimigo, ou seja, a contradição fundante deste modo de
produção está inerente à injustiça e a iniquidade.
Ainda, vale ressaltar que, em diversos casos, a grande maioria das mulheres
―mulas‖ do tráfico, são pessoas que, não possuem qualquer envolvimento na prática de
crimes anteriores e possuem quase sempre um baixíssimo poder aquisitivo. Há de se
refletir que, por inúmeras circunstâncias, mulheres acabam sendo aliciadas e induzidas a
transportarem substâncias consideradas entorpecentes, utilizando-se de seus corpos ou
bagagens, ainda passando pelo transtorno que é uma humilhação frente à sociedade.
Musumeci (2001) assevera que várias são as funções desempenhadas pelas
mulheres no tráfico, caracterizando atividades mais centrais, como abastecedora ou
distribuidora, traficante, caixa ou contabilidade, gerente e dona de boca; e atividades mais
subalternas como consumidora, cúmplice, assistente ou fogueteira, vendedora, bucha,
mula, avião ou vapor. Desta forma, as mulheres são as principais protagonistas da
pobreza, sendo tratadas como meros correios humanos, no que tange ao transporte de
entorpecentes.
De acordo com Fernandes (2015) os estabelecimentos prisionais em que as
mulheres se encontram (mistos ou femininos), condições de lotação, existência de
estruturas de berçário, creche e cela específica para gestantes. Sobre os tipos de
estabelecimentos, do total de unidades prisionais do país (1.420), apenas 103 são
exclusivamente femininas (7% do total), enquanto 1.070 são masculinas e 239 são
consideradas mistas (abrigam homens e mulheres). Em 8 unidades não há informação
sobre divisão de gênero.
O que se vê no Sistema Penitenciário Brasileiro, é que o cárcere foi adepto às
características masculinas, projetado a partir das necessidades dos homens, a partir daí,
nota-se uma falta de atenção para com os cuidados femininos e suas exigências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se que as mulheres encarceradas são invisíveis para a sociedade e para o
Estado de modo a se tornarem cada vez mais vulneráveis incapazes de expressarem seus
desejos, vontades ou escolhas. O Estado apenas pensa em isolar o sujeito, de modo a alojar
mulheres como se fossem meros objetos do crime, afastando-as da sociedade.
É possível notar o quanto são apedrejadas por terem cometido um delito, como se o
crime apenas pudesse ser cometido por homens, embora a mulher que o faça, pode
permanecer em um lugar inadequado para atender suas condições de saúde básica, seja
física ou psicológica, não se observando, portanto, o que as levou a praticar determinado
ato.
Vale perceber o quanto o Estado é preservador de comportamentos opressores e
tradicionais, ao ponto de ser contraditório, em sua própria ação, quando se fala na
legalidade de antidepressivos, por exemplo, que grande parte das pessoas hoje em dia,
fazem uso desse tipo de medicação.
Retomando a questão das mulheres mulas, vale mencionar o quanto o machismo se
faz presente e supera qualquer mínima condição de que essas mulheres se sobressaiam
dessa situação. Assim, importante perceber o grau de invisibilidade sofrido por mulheres
mulas, inclusive nas prisões. Diante de práticas que só desfavorecem suas condições de
vida, notando-se, a partir disso, a ausência de humanização em relação às mulheres, de
forma tão drástica.
Nota-se, portanto, o quanto as mulheres são corriqueiramente iscas do
aprisionamento, tendo em vista as circunstâncias em que são presas e as quantidades de
drogas que levam consigo, ficando notória a hierarquia de gênero instalada no meio social
e carcerário que estamos submetidas.
Constata-se a necessidade da reforma da política de drogas, que prime pela redução de
danos e não pelo alojamento de mulheres diante do caótico sistema penitenciário de nosso
Estado. É preciso dialogar com as vivências de mulheres presas, considerando a posição
que elas ocupam, para pensar o enfrentamento desse cenário, a partir da Lei 11.343/2006.
A pesquisa retrata o quanto se faz necessária a implementação de uma nova política
de drogas que pense particularmente no(a) usuário(a) e no traficante, de modo que seja
dada prioridade a saúde do sujeito, assim como a responsabilidade condizente com a
conduta praticada, e, consequentemente, um acompanhamento processual mais célere, e,
portanto, uma melhor organização no sistema carcerário.

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do Vale do Ipojuca, Pernambuco, Caruaru, 2011.
Simplesmente Homem – Relatos sobre a experiência cotidiana de homens trans

Luiz Fernando Prado Uchoa

GT: 02 – Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos

RESUMO

Este trabalho que tem como objetivo apresentar relatos variados de homens trans de
diferentes faixas etárias, segmentos profissionais, estágios no processo transexualizador e
orientações sexuais utilizando-se do formato “New Journalism” – mais conhecido como
jornalismo literário visando aproximar pessoas heterossexuais/cisgêneras (lésbicas, gays ou
bissexuais) da realidade deste segmento social para assim se criar uma ponte empática
dessa forma promovendo questionamentos do binário de gênero existente socialmente.
Como também mostrar como estes sujeitos buscam superar as adversidades impostas em
virtude de sua identidade de gênero nos mais diferentes espaços e convívios sociais.

Expor o funcionamento do processo transexualizador, a visão dos homens trans em


relação ao serviço, diferenças entre orientação sexual e identidade de gênero, os diferentes
tipos de masculinidade existentes no segmento transmasculino.

Ilustrar que conceitos de autoidentificação e de desejo sexual não podem ser


ensinados, a exemplo do que é mostrado na comédia criada, escrita, dirigida e duplamente
realizada pelo ator francês Guillaume Gallienne em ―Eu, mamãe e os meninos‖, lançado no
Brasil em maio de 2014. A película relata a trajetória de Guillaume, um menino que
vivencia sua infância, adolescência e parte da vida adulta como homossexual, postura
altamente efeminada, incentivada pela mãe que acredita em sua suposta homossexualidade
e, a partir disso, ele vivencia uma longa e penosa jornada até descobrir seus
questionamentos sexuais e, o mais importante, conhecer seu verdadeiro EU. E, como
frequentemente, o meio social suprime o sujeito de expressar-se e, na maioria das vezes
isso prejudica a psique levando a sérias patologias ou até suicídio.
Palavras-chave: Transmasculinidade, transexualidade, processo transexualizador,
orientação sexual e identidade de gênero.

INTRODUÇÃO
Ter uma em ―identidade‖ que lhe foi designada em conformidade a cromossomos e
a características corpóreas e, com isso, um nome, vestimentas, comportamentos, desejos
sexuais são atribuídos quase automaticamente. E quando, essa pessoa rompe com toda essa
estrutura social organizada, as oportunidades de emprego, estudo e afeto são negadas e a
sensação é similar à vivida por Gregor.
Kafka mostra três períodos da relação da família perante Gregor. No primeiro, ela
sente medo, num segundo, o aceita, mas o esconde do mundo, já no terceiro, odeia-o e o vê
como um peso que deve desaparecer.
Esses ciclos vividos pela personagem em Metamorfose são iguais àqueles vividos
por homens trans em que a família sente um estranhamento inicial, e posteriormente, uma
pseudoaceitação por aceitá-lo isolando-o e não mais convivendo com eles e, a fase final em
que todos o percebem com um fardo e desejavam intimamente a sua não existência naquele
seio familiar.
Ailton Santos27, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo refuta a
ideia de migração de gênero, pois parece indicar que o sujeito nasceu em um gênero
especifico por conta de anatomia e genitália? E decidiu ir para outro gênero. As pessoas
transexuais com as quais ele conviveu e outras que são descritas por outros pesquisadores
reiteram em seus relatos, entre tantas diferenças, que sempre tiveram a sensação de estar no
―corpo errado‖. Neste caso, as modificações corporais são realizadas com o objetivo de
tornar o gênero vivido inteligível.
Pode-se perceber que a transmasculinidade apesar de não ser tão conhecida
socialmente é possível visualizá-la em muitos produtos audiovisuais como o filme Tomboy
(2011) dirigido pela cineasta francesa, Céline Sciamma, que relata a história de Laure
interpretada por Zoé Héran. Ela vive com os pais e a irmã caçula, Jeanne. A família tinha
se mudado há pouco, e, com isso, não conheciam os vizinhos. Um dia, Laure resolve ir à

27
Professor, militante e pesquisador da violência e vulnerabilidade na periferia e doutor em letras pela
Universidade de São Paulo.
rua e conhece Lisa que a confunde com um menino. Laure, que usa cabelo curto e gosta de
vestir roupas masculinas, aceita a confusão e diz chamar Michaël. A partir de então, ela
vive uma vida dupla, já que seus pais não imaginam que se apresenta como menino perante
a vizinhança e de sua nova amiga.
Durante a vivência social com os outros meninos, Laurie passa a sentir cada vez
mais com menino. Uma cena que ilustra isso é quando ela está vestindo uma sunga para
tomar banho em um rio com seus novos amigos e coloca um pano em um formato peniano
para se sentir melhor e também ninguém perceber que, na realidade, ela era uma garota.
No desenrolar do filme, a mãe questiona Laurie sobre os modos de vestir e de se comportar
da garota, como por exemplo, não usando roupas femininas e mantendo o cabelo curto. A
mãe a interroga sobre o porquê não deixa o cabelo crescer e se veste de modo mais
feminino. O pai logo interrompe dizendo que Laurie é apenas uma criança e tem de se
vestir como se sentir melhor.
Um dia, Lisa resolve ir até a casa de Michaël/Laure chamá-lo para brincar e sua
mãe atende a porta dizendo que não tinha ninguém com esse nome morando na casa. Ela
permanece escondida por um tempo até que a menina a vê e a sua mãe revela a Lisa o seu
verdadeiro nome. Ela fica em estado de choque vendo que perderá a sua vivência social
como menino, e ainda, não terá mais chances de ter algo romântico com Lisa, já que
tiveram um primeiro contato romântico por intermédio de um beijo.
A mãe desesperada e inconformada pela mentira decide revelar para todos da
vizinhança a verdadeira identidade da filha obrigando-a usar vestidos e andar dessa forma
para que todos possam vê-la e entender o que ela é na verdade.
Em Boys don´t cry – Garotos não choram – (1999) baseado na história real de
Teena Brandon, relata a vida de um jovem garoto que nasce com um corpo biologicamente
feminino, mas identifica-se com o gênero masculino. O filme retrata sua trajetória
enquanto homem trans e os embates que vive diante da sociedade.
Na cidade de Falls City, no estado de Nebraska. As mulheres o adoravam e quase
todos que conheciam esse recém-chegado carismático eram atraídos por sua inocência
encantadora. Porém, a personagem mais famosa e amiga fiel da cidade tinha um segredo:
ele não era quem as pessoas pensavam. Em Lincoln, sua terra natal, a apenas 120
quilômetros dali. Brandon Teena era uma pessoa diferente, envolvida numa crise pessoal
que a assombrou durante toda sua vida.
Cenas que são bem impactantes nessa película são: Quando Candace por estar
apaixonada por Brandon por vê-lo como figura paterna para sua filha e também um
companheiro sensível lhe empresta um cheque e, ao ir à loja, questiona a razão dele ter
sido devolvido. A vendedora lhe diz é do rapaz que está em sua casa. Sem entender nada,
Candace mexe nas coisas de Brandon e vê absorventes, cintas compressoras e a intimação
por multa de trânsito com o seu verdadeiro nome.
Dirigindo-se ao tribunal do município de Hunt, a atendente consulta o número do
RG contido na multa de trânsito e lá consta o número de RG de Charles Brayman, amigo
de Brandon/Teena levando um policial a intimá-lo e a prendê-lo por não ter comparecido a
uma audiência em Lincoln.
Em seguida, encontra Lana brincando com sua irmã e lhe conta sobre a prisão de
Brandon e chegando na prisão ele revela à sua maneira a sua condição dizendo que é
hermafrodita. Ela o aceita e logo o tira da prisão pagando multa e pedindo habeas corpus.
Confusa e frustrada, Candace em uma conversa com John e Tom conta sobre a real
condição de Brandon/Teena.
Algum tempo depois, eles mostram o jornal para a mãe de Lana sobre a prisão dele
contendo o nome verdadeiro. Ela se mostra chocada e indignada com aquela informação.
Minutos depois, Brandon/Teena entra na casa de Lana e é intimado diante da mãe e irmã
de Lana e Candace a revelar tudo. Lana propõe a John que fique a sós com Brandon para
dizer a todos se ele é ou não é homem. Tom John, e as demais pessoas não acreditam nela.
Por esta razão, Tom e John se trancam com ele no banheiro para verem com seus
próprios olhos e como Lana está batendo na porta e eles a chamam para dizer olha como o
seu namoradinho é de verdade.
Depois de um tempo, em que Brandon é exposto a um interrogatório vexatório
devido ao ocorrido na casa de Lana. O policial fica lhe questionando o tempo todo, eles
vendo que era é do sexo feminino, não lhe colocaram os dedinhos e não tentaram fazer
nada.
Ele diante de tanto constrangimento afirma que nada fizeram. E é dispensado e na
saída da sala de interrogatório. É abordado novamente por John e Tom que o levam para
um lugar deserto e ao chegarem nesse local o violentam sexualmente.
Após esse incidente, ele procura Lana propondo fuga, para assim, serem felizes em
outro local e ela aceita. Mas, de repente tudo, ela o atrai para uma armadilha em que Tom e
John acabam matando-o.
Na descrição desses fatos, pode- se ver a confusão feita pelas pessoas em relação à
identidade, expressão de gênero e orientação sexual. Pois, Tom e John ao ver o corpo de
Brandon passam a vê-lo como mulher e rapidamente esquece-se de toda a camaradagem
que existia entre eles por um corpo falar mais do que a afirmação de uma pessoa sobre o
que ela seja. E a mãe de Lana que lhe tinha comprado um presente a ele, diante da verdade
passa vê-lo como aberração e má influência para a sua filha, e a Candace por mais que
tenha tido um sentimento por ele se vê enciumada e inconformada por ele não ser
exatamente o que havia dito mesmo conhecendo o caráter violento de seus amigos lhes
revela tudo sem pestanejar.
Em nenhum momento, Brandon foi respeitado em sua identidade de gênero quando
as pessoas sabiam de toda a sua história. Por isso, teve de falsificar documentos e ter uma
vida errante para poder minimamente ser como é sem ninguém o julgar.
A exploração das contradições da identidade e juventude norte-americana através
da vida e da morte de Brandon Teena é mostrada em ―Garotos não choram‖. Em uma
narrativa cheia de caos e assassinato, surge a trajetória de um jovem à procura do amor, de
si mesmo e de um lugar para chamar de lar.
―Metamorfose‖ de Franz Kafka traz a seguinte narrativa: Gregor Samsa, um
caixeiro viajante que abandona suas vontades e desejos para sustentar a família e pagar a
dívida dos pais. E em certa manhã, Gregor acorda metamorfoseado em um inseto
monstruoso. Kafka descreve este inseto como algo parecido com uma barata gigante. Nos
primeiros momentos o livro descreve as dificuldades iniciais de Gregor em sua nova
forma. Uma ironia presente neste trecho do livro é que Gregor não se preocupa com sua
transformação, mas sim com o atraso para o trabalho.
No decorrer da história, Gregor antes visto como filho ideal e um bom empregado
passa a ser encarado com um intruso na própria casa, por seus pais, sua irmã, e pela
empregada. Todos se sentem incomodados por sua nova forma e não sabem lidar com algo
considerado asqueroso e fora dos padrões sociais.
―Ao despertar de um sonho inquieto, certa manhã, Gregor descobriu que se havia
transformado num gigantesco inseto.‖ (KAFKA, 1915, p.1) esta frase ecoa e faz com que
se entenda que a partir daquele momento toda a sua vida mudaria e os sentimentos das
outras pessoas em relação a ele também seriam modificados.
Durante parte da vida habitar em um corpo e uma vida que lhe foram designadas
em conformidade a cromossomos e a características corpóreas e, com isso, um nome,
vestimentas, comportamentos, desejos sexuais são atribuídos quase automaticamente. E
quando, essa pessoa rompe com toda essa estrutura social organizada, as oportunidades de
emprego, estudo e afeto acabam sendo negadas e a sensação é similar à vivida por Gregor.
Kafka mostra três períodos da relação da família perante Gregor. No primeiro, ela
sente medo, num segundo, o aceita, mas o esconde do mundo, já no terceiro, odeia-o e o vê
como um peso que deve desaparecer
Os estágios iniciais vividos pelo Gregor em Metamorfose são iguais àqueles
vividos por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres transexuais e homens trans em
que a família sente um estranhamento inicial, e posteriormente, uma pseudoaceitação por
aceitá-lo trancando-o em casa e não mais convivendo socialmente com eles e, a fase final
em que todos o percebem com um fardo e desejavam intimamente a sua não existência
naquele seio familiar.
O preço que muitos homens trans pagam por apresentarem uma masculinidade
distinta a imposta pela heterocisnormatividade é a falta de oportunidades no mercado de
trabalho, a não possibilidade de continuarem seus estudos, situações de violência,
rompimento familiar, com amigos, impossibilidade de viver um amor e acesso à saúde.
O pesquisador carioca Guilherme Almeida diz que ao elaborar um conceito
fechado, mesmo que apenas didático, sobre os sujeitos que nascem com genitália e corpo
de mulher, mas vivem a sua existência social e de gênero no masculino ditados pelas
normas da sociedade.
Segundo Almeida, compilando as diferentes características dos grupos que ele
analisou, pode-se montar apenas para efeito de ilustração, um conceito ―fabricado‖, como
tantos outros, que definem homens trans como pessoas que nascem como genitália
feminina, mas assumem uma identidade de gênero masculina, adotam nomes masculinos e
remodelam seu corpo para dar inteligibilidade ao gênero, apesar de existir alguns sujeitos
que não fazem o caminho da remodelação corporal e se sentem homens do mesmo jeito.
Conforme a professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro especialista na
Teoria Queer, Eliane Borges Berutti (data), a comunidade transgênera americana utiliza o
termo Female to Male (FTM) para ―designar os transexuais masculinos-mulheres
biologicamente que optam por transformar seu corpo em masculino por meio de hormônios
ou cirurgia‖, diz a docente. A autora utiliza o termo ―opção‖ para identidade de gênero
transexual, propondo a reflexão a partir da ideia de que existem múltiplas identidades de
gênero e sexuais, e que a opção por uma ou mais delas implica na assunção dos encargos
sociais que todas elas trazem em seu bojo e no silenciamento de tantas outras identidades
sociais que se pode assumir no cotidiano.
Sandra Palma Saleiro doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Lisboa
(ISCTE-IUL), conceitua os homens trans como pessoas a quem foi atribuído o sexo
feminino e se expressam permanentemente no masculino, sendo mais familiar a expressão
anglo-saxônica FTM. Para a autora, a transexualidade expressa um processo de migração
de gênero e não uma oscilação ou transgressão, como em outras expressões trans.
Por conta da sua forma de viver o gênero, que se contrapõe ás imposições
essencialistas sobre a relação sexo e gênero, os homens trans enfrentam, no cotidiano,
situações de violência voltadas à identidade de gênero masculina. Uma dessas situações é o
desrespeito ao nome social adotado e a possibilidade desses homens viverem a sua
masculinidade para além dos marcadores falocêntricos, característicos do universo
cismasculino.
Sobre esse processo, Almeida afirma que, nas narrativas dos homens trans:
Há frequentes experiências de discriminação compostas de marcos, como a
rejeição do lugar outorgado pelo binarismo de gênero, baseado na leitura inicial
de sua genitália, e por experiências sociais variadas de sexismo e transfobia em
decorrência dessa rejeição, ainda na infância e prolongando-se na vida adulta.
(ALMEIDA, 2012, p.517).
Almeida também comenta sobre a passibilidade poder favorecer uma vivência
menos estressante da identidade masculina e, ao mesmo tempo, torná-los invisíveis, o que,
em sua opinião, dificulta a produção de estudos sobre eles. Segundo o autor, uma das
restrições em relação aos estudos transidentitários:
É a sua rápida capacidade de passing, estreitamente vinculada ao
desconhecimento social da condição FTM, mas também relacionada á bem
elaborada construção de ‗corpos sociais masculinos‘, que se torna especialmente
eficaz após a realização da mastectomia e do uso prolongado de testosterona. Em
outras palavras, o uso da testosterona no caso dos homens trans, ao contrário do
que ocorre com as mulheres transexuais, torna-os bastante próximos fisicamente
ás expectativas sociais de como deve parecer um homem, o que contribui para
invisibilizá-los. Essa invisibilidade adquirida com frequência à duras penas
significa para a maior parte um agradável momento de trégua na estressante e
continua batalha por respeito à identidade/expressão de gênero. (ALMEIDA,
2012, p.519).

De acordo com o pesquisador da USP, a passabilidade é mais fácil para os homens


trans do que as mulheres, ainda assim, existem tensões nessa passagem do universo
feminino para o masculino. Essa tensão é registrada por Berutti ao relatar drama vivido
pelos homens trans na transição entre a comunidade lésbicas, em que são vistos como
butches (mulheres masculinizadas) e a masculina. Conforme a pesquisadora, para muitos
homens trans os problemas da inserção no mundo dos homens cisgêneros28 são bastante
complexos.
Para se desmistificar que possuir afeto e/ou atração sexual pelo mesmo gênero não
é algo atual, mas sim milenar e que esta condição não faz com que alguém se sinta
incomodado em possuir um corpo feminino ou masculino a professora dr. Claudia
Bomfim, da Claudia Bomfim, da Unicamp diz:

28
Homens cisgênero ou cis - são pessoas do gênero masculino que possuem concordância com o gênero
designado no seu nascimento. Isto é, configura uma concordância entre a identidade de gênero e o sexo
biológico de um indivíduo e o seu comportamento ou papel considerado socialmente aceito para esse gênero.
Disponível em: <http://www.significados.com.br/cisgenero/>, acesso em 26/05/2016.
O conceito de gênero é o que determina aquilo que culturalmente seriam
características do ser ‗masculino‘ e do ‗feminino‘: forma física, anatomia,
maneira de se vestir, falar, gesticular, enfim as atitudes, comportamentos, valores
e interesses de cada gênero (lembrando que essas características são designadas
pela cultura, pela sociedade dominante). Essas diferenças são estabelecidas
historicamente, de acordo com a sociedade influenciados pela cultura.
(BOMFIM, 10. jul. 2009, disponível no link:
http://educacaoesexualidadeprofclaudiabonfim.blogspot.com.br/2009/07/genero-
identidade-de-genero-e.html).

Homem trans29 é aquele que é homem. Porém nasce em num corpo feminino que
proporciona uma série de desconfortos por não refletir a sua real identidade de gênero. E
para amenizar o incômodo corpóreo muitos optam por hormonização, ou seja, aplicação de
testosterona e até cirurgias como mamoplastia masculina (remoção das mamas e/ou
reconstrução de um peitoral masculino), histerectomia (remoção dos órgãos internos
femininos), metoidioplastia (às vezes, informalmente chamada de meto, é uma alternativa à
faloplastia para homens trans. Com os efeitos do tratamento hormonal com testosterona, o
clitóris cresce com o tempo até atingir um tamanho médio de 4-5 cm. Em um
procedimento cirúrgico desses pelo fato do clitóris já ser grande é "solto" de sua posição
original e movido à frente para uma posição que lembra mais a de um pênis) e a faloplastia
(consiste na construção de um pênis de tamanho e aspecto ―normal‖ (igual/semelhante aos
de homens cisgêneros). Cria um órgão sexual funcional masculino com o qual se pode
urinar e ter relações sexuais com penetração.
Nem todos os homens trans realizam procedimentos de mudança corporal devido
aos problemas de saúde ou simplesmente por se sentirem homens sem necessitar de uma
aparência tida como masculina aos olhos sociais. Pois masculinidade e feminilidade nunca
serão definidas por vestimentas, comportamentos, orientação sexual ou papeis sexuais é
algo que está mais relacionado à percepção que o indivíduo possui socialmente acerca de si
mesmo.
A transmasculinidade é uma maneira distinta de se pensar masculinidade por
existirem pessoas que nascidas em uma identidade de gênero oposta ao seu nascimento
29
No primeiro encontro nacional de homens trans realizado na Universidade São Paulo, realizado em
fevereiro de 2015, o movimento social organizado deste segmento expos a sua identidade político social com
a nomenclatura homens trans pelo fato da maioria se reconhecer socialmente na identidade masculina
independente da sua transexualidade. Disponível em:
<http://encontronacionaldehomenstrans.blogspot.com.br/2014/12/o-ibrat-acredita-na-sua-forca.html>, acesso
em 26/05/2016.
reivindicam um tipo de masculinidade distinta ao padrão heteronormativo cisgênero que
atrela hombridade a genitálias e características corpóreas.
Ao longo da história há casos de personagens que vivenciaram o seu gênero de
forma distinta ao modelo social vigente, como, por exemplo, Joana D. Arc, uma mulher
que esteve à frente de batalhas na guerra dos cem anos na França. E, após a expulsão dos
britânicos, os nobres franceses, representados pelo rei Carlos VII, temerosos de uma forte
aliança popular entre Joana D‘Arc e a população camponesa, e também por representar a
possibilidade das mulheres liderarem exércitos saindo totalmente do papel social imposto a
elas de serem donas de casa, artesãs, serviçais ou trabalhadoras do sexo a entregaram para
os ingleses. Ela foi morta, queimada na fogueira, no ano de 1430, sob a acusação de
bruxaria.
A transmasculinidade existe desde que o homem habita a face da terra pelo fato de
masculinidade e feminilidade apesar de imposições sociais existentes não está relacionada
com características corpóreas, genitálias e, muito menos, a comportamentos e vestimentas.
É algo que invoca o sentimento mais profundo de pertencimento ao um determinado
gênero.
Isso é percebido na literatura através do personagem como Diadorim no livro
Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa em que uma pessoa nascida no gênero
feminino vivencia toda a sua vivencia toda a sua existência no gênero oposto por ansiar
uma liberdade só proporcionada aos homens naquele contexto social e, também, possuir
uma inquietação interna muito grande em relação ao não desejo de uma feminilidade em
seu ser e, o mais curioso dessa história, ele mesmo possuindo um forte sentimento de
masculinidade tem em seu ser aflorado um afeto por seu amigo Riobaldo e é
correspondido. Mas, em um mundo de cangaceiros, a vivência desse amor se torna
impossível e só no momento da morte a tal verdade é revelada, na verdade, era ela por
todos pelo fato de naquela conjuntura avaliarem através da corporeidade o que seja
feminino ou masculino.
Ao nascer uma criança, declara-se: ―É uma menina!‖ ou ―É um menino!‖. Nesse
momento, realizada uma espécie de ―viagem‖, ou melhor, é instalado um processo que,
supostamente deve seguir um rumo ou direção. Segundo a docente Louro, a afirmativa,
mais do que uma descrição, pode ser compreendida como definição ou decisão sobre um
corpo. ―E esse processo totalmente baseado em características físicas que são vistas como
diferenças, às quais se atribui significados culturais. Afirma-se e reitera-se uma sequência
de muitos modos já consagrada, a sequência sexo-gênero-sexualidade‖, diz Louro.
O objetivo do livro-reportagem é trazer informações sobre o universo
transmasculino. Tais informações referem-se às dificuldades, a exclusão social, religiosa,
afetivo, familiar, mercado de trabalho, saúde, entre outras. Pretende-se, ainda, divulgar e
refletir sobre os conceitos do gênero masculino & feminino que a sociedade estabelece e a
realidade.
Publicizar ao leitor os males sociais que uma masculinidade padronizada e
preconizada pela heteronormatividade cisgênera nos setores diversos como: igreja, escola,
família, relacionamentos, amizades, mercado de trabalho, universidade e outros afeta a
qualidade de vida dos homens trans – desde a inserção na sociedade até a saúde.
Divulgar relatos de homens trans que sofrem o preconceito social conhecido como
transfobia, e como o pensamento doutrinal das igrejas e grupos sociais, da sociedade como
um todo, a hipocrisia existente provoca um sofrimento grande nesse segmento.
Trazer ao receptor dados sobre o processo histórico da construção do conceito de
transmasculinidade e também como ele sofreu mudanças ao longo dos anos e também
mostrar como é a atuação de profissionais da saúde como psicólogo, psiquiatra,
endocrinologista e clinico geral que atuam no processo transexualizador ofertado pelo SUS
(Sistema Único de Saúde), plano de saúde ou consultórios particulares para saber como é
realizado o acompanhamento aos homens trans nos âmbitos físico e mental e também
como os hormônios impactam mentalmente e corporalmente nestas pessoas.
Informar que a transmasculinidade é vista em muitas correntes do feminismo como
uma tentativa de escape do machismo e da misoginia sofridas por mulheres heterossexuais,
bissexuais e lésbicas na sociedade e com isso, há uma isolamento social dos homens trans
em relação a amizades e até relacionamentos tidas anteriormente a sua transição assim
como noticiar os diferentes níveis de recepção em relação à transmasculinidade nos setores
religiosos existentes em nosso país para com isso trazer a tona como a religião encara as
questões de gênero e sexualidade
Por meio de levantamento de dados, pesquisa bibliográfica, e entrevistas de
entrevistas com psicólogo, psiquiatra, clínico geral, endocrinologista, , homens trans, e
sites que são referência na temática, decupagem de entrevistas dadas por homens trans em
programas de entrevista e depoimentos reais em documentários e filmes.
Explorar a trajetória de vida das personagens, trazer recortes históricos em que a
transmasculinidade não era conhecida dessa forma. Porém, era vivenciada por muitas
pessoas e também apresentar índices que mostram a vulnerabilidade sofrida pelo segmento
de homens trans.
Por não haver dados estatísticos sobre quantos homens trans existem no Brasil, tão
pouco os índices de violência, de desemprego, de situação escolar, familiar e sentimental,
psíquico-mental e de suicídio deste segmento buscar informações com o objetivo de trazer
ao leitor informações sobre o cotidiano destas pessoas para assim estabelecer uma empatia
e questionamento do porquê de tanto preconceito em relação à transmasculinidade.
Inicialmente serão feitas entrevistas com 20 homens trans e, no mínimo, um
profissional de cada especialidade como endocrinologia, ciências sociais, humanas,
jurídicas e teológicas como as principais vertentes religiosas existentes no Brasil:
candomblé e umbanda, evangélica, católica, islâmica e outras vertentes que se mostrassem
acessíveis a conversarem sobre o tema para o desenvolvimento estrutural de capítulos do
livro-reportagem e estruturação dos conceitos existentes no universo transmasculino.
O homem trans existe desde primórdios como descreveu o rei Hamurabi,
aproximadamente em 1772 a.C. No código de leis elaborado por ele, há a descrição de um
ser descrito como "Salzikrum", uma figura que se caracteriza como uma "mulher-homem"
que poderia ter uma ou várias esposas e direitos exclusivos da hereditariedade. A palavra
Salzikrum significa "filha-macho", como citado na introdução deste pré-projeto.
Em vista disso, falar de transmasculinidade é essencial para que o leitor possa
refletir e quebrar paradigmas acerca do conceito de masculinidade e também garantir a
visibilidade do segmento de homens trans para se garantir a elaboração de políticas
públicas nas áreas de saúde, educação e de trabalho para uma parcela da população que é
lida como lésbica masculinizada e, com isso, são desrespeitados desde não serem
chamados por seu nome social a invisibilização de suas especificidades em um
atendimento médico fazendo com que muitos desenvolvam doenças como câncer de mama
ocasionado a uso continuo de faixas compressoras (binders) para disfarçar as mamas e o
uso prolongado de hormônios sem acompanhamento médico especializado.
Como a pauta transexualidade está em evidencia na mídia, hoje, é necessário trazer
reflexões que refutam e questionam que a ideia de ser homem ou mulher é apenas algo
corporal, comportamental ou sexual. E, também, que não há um tipo de
transmasculinidade. Pois, mesmo que o homem trans não opte por todas as transformações
corpóreas e sua passabilidade seja tida como questionável ele é homem a partir do
momento que assim se identifique.
Trazer para o leitor diferentes modelos de masculinidade e de feminilidade, com
isso, fazer com o mesmo repense seus conceitos acerca do padrão vigente de virilidade e
dos papéis sociais impostos pelo binarismo de gênero imposto socialmente.
Ainda hoje, a transexualidade é apontada na Classificação Estatística Internacional
de Doenças e Problemas relacionados com a Saúde (CID), publicada na Organização
Mundial de Saúde (OMS), como um transtorno mental.
Quando um homem trans assume a condição de transexual passa a transgredir
todas as normas sociais vigentes ao reivindicar masculinidade em um corpo feminino. Nas
sociedades, a socialização do sujeito está ligada totalmente à corporeidade e, romper com
este ciclo heterornomativo cisgênero, é afirmar categoricamente que gênero é algo muito
mais ligado aos padrões sociais do que necessariamente um item biológico.

DESENVOLVIMENTO

Por meio de levantamento de dados, pesquisa bibliográfica, e entrevistas de


entrevistas com homens trans, docentes, psicólogo, psiquiatra, endocrinologista, advogados
especializados em questões de retificação de nome e gênero em documentação de travestis,
mulheres transexuais e homens trans, sites que são referência na temática, decupagem de
entrevistas dadas por homens trans em programas de entrevista e depoimentos reais em
documentários e filmes.
Explorar a trajetória de vida das personagens, trazer recortes históricos em que a
transmasculinidade não era conhecida dessa forma. Porém, era vivenciada por muitas
pessoas e também apresentar índices que mostram a vulnerabilidade sofrida pelo segmento
de homens trans.
Por não haver dados estatísticos sobre quantos homens trans existem no Brasil, tão
pouco os índices de violência, de desemprego, de situação escolar, familiar e sentimental,
psíquico-mental e de suicídio deste segmento buscar informações com o objetivo de trazer
ao leitor informações sobre o cotidiano destas pessoas para assim estabelecer uma empatia
e questionamento do porquê de tanto preconceito em relação à transmasculinidade.
Serão feitas entrevistas com homens trans de várias faixas etárias e regiões do país
para explorar a variedade de perfis existentes e, no mínimo, um profissional de cada
especialidade como endocrinologia, ciências sociais, humanas e jurídicas para o
desenvolvimento estrutural de seis capítulos do livro-reportagem e estruturação dos
conceitos existentes no universo transmasculino com ilustrações e quadros explicativos
visando facilitar a compreensão acerca do tema.
Após o termino da elaboração do livro-reportagem serão feitas apresentações orais
e expositivas em seminários, bienais, workshops, palestras do material desenvolvido ao
longo de um ano de pesquisas acerca de transmasculinidade e posteriormente, envio do
original do livro-reportagem a editoras com a finalidade de publicá-lo para assim trazer aos
leitores através de uma linguagem jornalístico-literária bem acessível o universo
transmasculino em toda a sua diversidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas entrevistas realizadas com os homens trans foram percebidas muitas


dificuldades no entendimento do que seja orientação sexual e identidade de gênero por
grande parcela da sociedade e, com isso, muitos alegam que transmasculinidade é algo
inexistente dessa forma, invisibilizando o segmento transmasculino. Portanto, se faz
necessário expor o tema com o objetivo de visibilizar as demandas político-sociais deste
grupo social.
Diante de todo o cenário transfóbico social seja necessário explicar que a
transexualidade não trata-se de um fenômeno biológico objetivo, mas sim de um discurso
cisheteronormativo existente pelo fato da sociedade criar e determinar padrões de
comportamento a partir do dispositivo binário de gênero. Se estes valores forem
modificados a transexualidade simplesmente deixará de ser uma condição transgressora,
tornando-se perfeitamente integrada e harmonizada numa passagem social livre da
―ditadura de gênero‖.
Mesmo com uma suposta transgressão de gênero constata-se que muitos homens
trans mesmo reafirmando a sua masculinidade cotidianamente se utilizam na maior parte
do tempo de artifícios como binders para esconderem seios ou usam calças largas para
disfarçarem quadris ou se utilizarem géis para desenvolverem pelo no rosto para terem
uma aparência mais masculinizada enquanto os hormônios não fazem esse efeito em seus
corpos. Eles fazem por entenderem inatamente que para serem homens precisam ter essa
aparência ou fazem para ser lidos socialmente como tais.
Um fator que motivou a criação do projeto, com esta temática, aconteceu no
processo de pesquisa bibliográfica e de sites que são referência em diferentes
masculinidades. Pelo fato de não terem sido foram encontradas obras que abordassem
perfis de homens trans. Somente três biografias e vários artigos acadêmicos foram
encontrados, com uma linguagem extremamente inacessível para pessoas desconhecedoras
de termos acadêmicos. Visando tecer uma possível solução para este impasse pensou-se
em transmutar algo tido como complexo para uma abordagem mais simplificada e, com
isso, ocorrer a possibilidade da discussão por um viés compreensível e desta forma criando
pontes de aproximação entre familiares, conhecidos, amigos e agentes sociais com os
homens trans, que necessitam ser parte integrante da sociedade com todos os direitos
assegurados.
Em cada relato percebeu-se o sofrimento cotidiano dos homens trans quando
tentam vivenciar relações amorosas e/ou sexuais por serem constantemente questionados
sobre a sua identidade de gênero e, com isso, têm de explicar suas particularidades a
pessoas que muitas vezes não irão entendê-los, o quanto são ignorados e rechaçados por
amigos e conhecidos com quem tinham contato antes da transição, o permanente
questionamento em relação a sua masculinidade, a incerteza de quanto são desejados por
serem quem são ou somente vistos como aquele ―amigo diferente‖, lidarem com a rejeição
social devido a sua transexualidade, ouvir diariamente comentários maldosos envolvendo a
ausência do pênis e caracteres masculinos tidos como padrões, e, assim, se a orientação
sexual for distinta da heterossexual automaticamente ter a sua identidade de gênero
invalidada e o pior de tudo, quando afirmam que genitália não define gênero lidam com
deboches em redes sociais e na vida cotidiana.
Em um relatório ―Entre a Invisibilidade e a Demanda Por Políticas Públicas Para
homens Trans‖ foi feito pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH-
UFMG) e pelo Departamento de Antropologia e Arqueologia (DAA-UFMG) que teve com
foco na população de homens trans e/ou transmasculinos de 18 a 37 anos das regiões de
Belo Horizonte, São Paulo e Campinas revelou 85% desta população evita procurar
serviços de saúde, mesmo quando precisam.
Os dados ainda revelam que 78,57% declararam não ter realizado nenhuma
cirurgia, 7,14% declararam sentir satisfação plena com o resultado das cirurgias realizadas
e 7,14% declararam sentir insatisfação com as cirurgias realizadas, ou seja, são pessoas que
não possuem acesso ao processo transexualizador ofertado desde 2008 pelo Sistema Único
de Saúde e devido a isso, vivem situações de baixa autoestima e falta de reconhecimento
social por muitos ainda terem uma aparência feminina mesmo reivindicando
masculinidade.
Em uma sociedade habituada em classificar o masculino e feminino usando
determinadas físicas e biológicas pessoas que rompem com as fronteiras do que é
determinado como masculino e feminino e se atrevem a reivindicar uma identidade de
gênero oposta àquela informada pela genitália que se tem e quando o fazem, serão
aprisionados pela normatização de gênero através de medicalização e patologização.
As principais dificuldades vivenciadas constatadas na elaboração de Simplesmente
Homem por homens trans são a constante necessidade de reafirmação da masculinidade
pelo fato que na cultura não há espaço para homens em um corpo com características
femininas leia-se seios e vagina. E, também, inicialmente a maioria ser reconhecido como
lésbica masculinizada devido à falta de informações, de apoio ou para não expor aos pais
sua transmasculinidade. A maioria no início de hormonioterapia e, por esta razão, os
caracteres masculinos até então encontram-se em desenvolvimento. Estão preocupados
como a reação dos pais, como adquirir a receita médica para se comprar o hormônio ou
que dosagem tomar. Procuram em sites por ―dicas‖ ou produtos que aumentem seus
músculos, conversam sobre os diversos efeitos colaterais do uso da testosterona, procuram
por órteses do tipo binder, packer/play, pump e STP2 e discutem suas dúvidas acerca de
como se apresentar no trabalho, na escola, na academia ou nas suas relações afetivas.
Para a criação de uma imagem masculina afim de se evitar constrangimento sociais
nos diversos setores homens trans utilizam-se de aparelhos ou dispositivos ortopédicos, de
uso provisório ou não, destinados a alinhar, prevenir ou corrigir deformidades ou a
melhorar a função das partes móveis do corpo. O binder (colete) e a faixa torácica servem
para esconder as mamas; packer/play é a órtese em forma de pênis (flácido e/ou rijo);
pump é a bomba para aumentar o clitóris; e STP é o dispositivo para urinar em pé.
Conclui-se que a principal demanda da maioria dos homens trans é a
hormonioterapia. Na fase pré-testosterona, existem relatos de ansiedade, depressões,
síndrome do pânico, diagnósticos errados de transtorno afetivo bipolar, paralisias motoras,
tentativas de suicídio, e outras afecções; quase todas como resultantes da transfobia e que
cessam quando começam a transição. A hormonização tem demonstrado acalmar o
segmento.
É considerada mais importante do que as cirurgias. O processo pode ser lento, com
resultados diferentes de pessoa para pessoa. Muitos não o fazem por questões pessoais,
seja por problemas de saúde, pelo receio de assumir a transformação perante a família, por
conta do local de trabalho, por questões políticas ou porque não o desejam. Existem várias
formas diferentes de se usar testosterona, como: injeções, gel, pílulas, adesivos bucais,
patch na pele, inalador de aerossol e implantes de microdifusão.
Neste panorama vivido por grande dos trans homens e das suas readequações
corporais, há uma ligação direta com a discriminação/intolerância/transfobia sofridas por
conta dos conflitos das normas de gênero. As hormonizações e/ou cirurgias tornam-se
quase que obrigatórias para esses corpos não alinhados às normas binárias de gênero. Os
homens trans provam que é o gênero que determinará a anatomia. É necessário ser mutante
nesta sociedade, se quiser ter uma inteligibilidade identitária e humana. O objetivo deste
livro-reportagem, é a criação de diálogos e tornar visíveis as transvivências masculinas e
consciente que tal projeto não cessará o assunto por haver muito a ser discutido.
As vozes das personagens precisam ser ouvidas urgentemente para assim se
compreender demandas e especificidades do segmento de homens trans. Esse grupo social
é invisibilizado e marginalizado por um ambiente extremamente hostil a sujeitos que
rompem com a norma vigente de masculinidade impostas de forma compulsória e, diante
do desenvolvimento de Simplesmente homem constatou-se que o combate as opressões
vividas no meio social por homens trans deve ser combatida através de uma maior
propagação do tema em escolas, universidades, igrejas e na mídia para assim estes sujeitos
poderem exercerem livremente a sua transmasculinidade sem prejudicar o seu
desenvolvimento psicológico.

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HETERONORMATIVIDADE E NEGAÇÃO DA DIVERSIDADE SEXUAL:
um paradigma cultural de discriminação contra a população LGBT+

Joan Kleber Amorim da Silva 30


Caroline Bezerra Silva 31

GT: GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS

RESUMO

A diversidade sexual é algo que sempre existiu, entretanto ao longo da história foram se
criando padrões de gênero, sexo e sexualidade que – devido a uma concepção binária e
heteronormativa – geraram um processo de subjugação dos indivíduos que não se
encaixam a tais normas, sendo os mesmos subalternizados e inseridos num sistema de
violência. O presente artigo possui como tema: Heteronormatividade e negação da
diversidade sexual: um paradigma cultural de discriminação contra a população LGBT+. O
objetivo geral deste trabalho é compreender como o estabelecimento da
heteronormatividade como regra de comportamento corrobora para a formação de um
sistema de discriminação contra as minorias sexuais. Não obstante, faz-se uso da
metodologia de pesquisa bibliográfica e exploratória, através de uma abordagem
qualitativa. Por fim, demonstra-se a necessidade de se romper com os ciclos de violência
diante das minorias sexuais por meio da adoção de um novo olhar sobre os sujeitos queer,
respeitando-os nas suas diferenças e valorizando-se a diversidade.

Palavras-chave: Diversidade sexual. Heteronormatividade. Minorias sexuais. Queer.


LGBTfobia.

INTRODUÇÃO
Distintas foram as formas de se abordar a diversidade sexual, em especial a
homossexualidade, ao longo da história. A mesma já passou por um processo de
legitimação social na Grécia Antiga, posteriormente, tornou-se alvo de repulsa social na
cultura ocidental, principalmente em virtude da propagação do Cristianismo, assim como,
também foi considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde até o início da

30
Graduando de Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE), membro do Grupo de Pesquisas
Transdisciplinares Sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade/GEPT-MDS, email:
kleberamorim96@gmail.com
31
Graduanda de Direito pela Universidade de Pernambuco (UPE), email: carolbezvp45@gmail.com
década de 90. Na contemporaneidade há um processo de transição, no qual se luta pela
visibilidade das minorias sexuais, que visa fortalecer e legitimar o respeito à diversidade.
No decorrer do tempo, foi se estabelecendo um padrão heteronormativo – baseado
no binarismo de gênero e numa espécie de heterossexualidade compulsória – como único
modo de comportamento correto a ser seguido, gerando como conseqüência a construção
de diversos estigmas acerca das demais expressões de gênero e sexualidade que não se
adequam a esta regra instituída, o que resulta na discriminação e subjugação das pessoas
que com estas se identificam.
Assim, o presente trabalho possui como objetivo geral compreender como o
estabelecimento da heteronormatividade como regra de comportamento corrobora para a
formação de um sistema de discriminação contra as minorias sexuais – direta ou
indiretamente – em razão da sua não adequação à normatização social dos corpos e das
expressões de sexualidade.
Já no que diz respeito aos objetivos específicos, busca-se analisar a forma com que
a heteronormatividade se instituiu na sociedade, e a maneira como ocorre a consolidação
deste processo através da reprodução de normas regulatórias que naturalizam um ideal
binário de sexo e gênero. Assim como, objetiva-se também descrever as múltiplas formas
de violências sofridas pela população LGBT+ e como isto é fortemente presente na
realidade brasileira, em razão da reprodução contínua dos discursos de intolerância diante
das minorias sexuais, como resultado justamente de uma herança cultural que reforça
reiteradamente estes padrões heteronormativos e cuja base se assenta no patriarcado, no
machismo e na influência de crenças religiosas que renegam a diversidade sexual.
Não obstante, o presente artigo tem como problema de pesquisa a seguinte
indagação: ―como o estabelecimento de padrões comportamentais fundados na
heteronormatividade resulta num paradigma de violência contra as minorias sexuais? ‖,
sendo utilizada para responder tal questionamento a metodologia de pesquisa bibliográfica
e exploratória, através de uma abordagem qualitativa, tendo como principal base teórica os
ensinamentos de Butler (1999), Miskolci (2009) e Louro (2004).
Por fim, será observado que mesmo com alguns progressos na conquista de direitos
pelas minorias sexuais, no que diz respeito à discriminação contra gays, lésbicas,
bissexuais, transsexuais, travestis, a situação ainda é muito preocupante. Na medida em
que se avança no sentido de lhes dar maior visibilidade e promover o respeito diante deste
grupo, a intolerância tem ganhado bastante espaço na sociedade, em especial no que diz
respeito à intensa propagação de discursos de ódio e à quantidade alarmante de homicídios
praticados contra a população LGBT+. Desta forma, fica evidenciada a importância e a
urgência em se discutir e se rever os padrões heteronormativos estabelecidos como
―normais‖, bem como de se refletir sobre a necessidade da adoção de uma nova
perspectiva em relação diversidade sexual baseada no respeito e na tolerância.

1 BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DA DIVERSIDADE


SEXUAL
A diversidade sexual não surgiu na contemporaneidade como muitos costumam
pensar. Pelo contrário, é algo que existe, segundo alguns antropólogos, desde os
primórdios da humanidade. Inclusive, também já foi identificado o comportamento
homossexual e bissexual em animais, demonstrando-se que isto é uma coisa inerente à
natureza. A forma de lidar com questões relacionadas à sexualidade dos indivíduos é que
varia de acordo com o que a sociedade de certo local estabelece como moral predominante
em detrimento dos aspectos sócio-históricos em que se situa. Assim sendo, a diversidade
sexual foi tratada de formas diferenciadas ao longo da história, de acordo com as
peculiaridades culturais de cada povo.
Na Grécia Antiga, por exemplo, a prática sexual entre homens estava relacionada à
transmissão de conhecimento, uma vez que era comum o fato de adolescentes-aprendizes
(efebos) prestarem favores sexuais aos seus preceptores. Significava um verdadeiro ritual
de passagem, no qual o jovem era iniciado por um homem mais velho que lhe transmitia
sabedoria e com ele mantinha relações sexuais (VECCHIATTI, 2012), sendo não só
legitimado pela sociedade naquela época, como também considerado até um dever moral.
A partir da idade média, com a difusão do Cristianismo, todas as expressões de
sexualidade que não fossem entre um homem e uma mulher, unidos pelo vínculo do
matrimônio e com fins de procriação, passaram a sofrer um intenso processo de repressão,
visando assim, acabar com a ―libertinagem sexual‖ existente na sociedade.
Desta forma, sob a justificativa de que a única função do ato sexual deveria ser a
reprodução, e de que o casamento só poderia ser realizado entre pessoas de sexos distintos,
a ―prática homossexual‖ passou a ser considerada um grave pecado e a igreja determinava
que as pessoas que não se adequavam aquele modo de vida cristão, imposto como correto a
ser seguido, deveriam ter seus atos coibidos, sofrendo punições severas, por exemplo,
através da inquisição (VECCHIATTI, 2012).
Posteriormente, baseando-se também na construção desse paradigma
discriminatório em relação à homoafetividade, mesmo sem comprovação de que fosse uma
doença, a homossexualidade já foi assim considerada no meio científico, sendo inserida na
Classificação Internacional de Doenças (CID) pela Organização Mundial da Saúde, em
1948, quando ainda possuía a denominação de ―homossexualismo‖, sendo somente em
1985 o sufixo ―ismo‖, que se refere a doenças, substituído pelo sufixo ―dade‖, que
significa modo de ser. Este estigma, em tese, só veio a ser superado a partir de 1990,
quando a OMS enfim retirou a homossexualidade da CID, assumindo que esta não se trata
de distúrbio, doença ou perversão. (KOEHLER, 2013).
Sob um panorama ainda mais grave, apesar da luta mundial pela preservação da
vida e promoção de Direitos Humanos como a não discriminação, a liberdade, a igualdade
etc., assim como ocorreu em diversos períodos da história, ainda hoje a homossexualidade
é considerada um ato criminoso em diversos países. Segundo um relatório elaborado pela
ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association) em 2016, 73
países ainda consideram crime a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo, se
estabelecendo sanções que variam entre pagamento de multa, prisão e até mesmo pena de
morte, como ainda ocorre em 13 localidades.
Na contemporaneidade, após muita luta dos movimentos e grupos organizados
compostos pelas minorias sexuais, hoje inseridas na denominada comunidade LGBT+, na
qual se incluem gays, lésbicas, bissexuais, transsexuais, transgêneros, interssexuais, entre
outros, em conjunto com as entidades que lutam em defesa dos Direitos Humanos e Civis
das pessoas que sofrem processos de discriminação, em algumas localidades foram obtidas
certas conquistas no sentido de se promover a diversidade sexual e de gênero, como, por
exemplo, o casamento ou união civil entre pessoas do mesmo sexo, a adoção por casais
homoafetivos, o direito das pessoas transsexuais utilizarem seu nome social e a
possibilidade de realização da cirurgia de mudança de sexo.
Assim, no decorrer da história foi se impondo um modo de comportamento – dito
adequado – fundamentado num parâmetro heterossexista, cujas bases são de cunho moral,
ideológico e com forte influência de crenças religiosas. A heteronormatividade se funda e
se fortalece através justamente desses processos históricos que reproduzem o ideal da
binariedade de gênero/sexo e da heterossexualidade como pressuposto para uma existência
plena (BUTLER, 1999). Adiante será analisado como ocorre esse processo de
normatização de corpos e sexualidades através da reiteração dos padrões heteronormativos.

2 PROCESSO DE HETERONORMATIZAÇÃO DOS CORPOS E DAS


SEXUALIDADES
Já se cria expectativas em relação às vivências que um indivíduo deverá ter durante
sua vida antes mesmo do seu nascimento. Ao se descobrir o sexo do bebê durante a
gestação, por exemplo, imediatamente são estabelecidos padrões comportamentais –
categorizados como ―femininos‖ ou ―masculinos‖ – que condicionam a pessoa durante
toda a sua vida. Estas normas de vivência consideradas pela sociedade como a forma
adequada de se portar, exercem influência sobre vários aspectos na vida do ser humano,
desde coisas mais corriqueiras como o tipo de brinquedos que deverá possuir durante sua
infância, a forma como deverá se vestir, até no exercício da sua sexualidade e na sua
identidade como pessoa.
Assim, evidencia-se então a existência de uma concepção de corpos sexuados,
posto que de acordo com o sexo biológico com o qual se nasce, são os seres humanos
distinguidos – sob uma ótica binária – como ―machos‖ ou ―fêmeas‖, de modo que isto é
considerado pela sociedade como o ―natural‖ e, portanto, ―estabelecido como ‗pré-
discursivo‘, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a
cultura‖ (BUTLER, 2003, p. 25). Da mesma forma, também é entendida como ―normal‖ a
necessidade de haver uma identificação de cada corpo com um determinado gênero –
masculino ou feminino – o que seria fruto de uma construção cultural.
Não obstante, em razão do estabelecimento da heteronormatividade como regra de
comportamento, este binarismo sexo/gênero possui sua significação interrelacionada, de
modo a se considerar que um deve ser efeito do outro, ou seja, o ―adequado‖ é que haja
uma conformidade entre o sexo biológico e o gênero com o qual a pessoa se identifica.
Logo, de acordo com a genitália com a qual nasce o indivíduo, prontamente será designada
a sua caracterização como mulher e feminina, caso possua uma vagina, ou como homem e
masculino, se possuir um pênis.
Porém, a realidade fática nem sempre condiz com este padrão imposto, uma vez
que em virtude da diversidade sexual não existe uma linearidade universal na relação entre
gênero e sexo. Judith Butler (2003) questiona justamente essas noções pré-constituídas
acerca de sexo/gênero, sob a perspectiva de se tratarem de uma determinação social e não
apenas de algo naturalmente biológico/cultural, bem como também analisa a sua relação
com a manutenção das estruturas de poder, diante de um sistema que privilegia
determinado grupo social em detrimento da subjugação dos que não se encaixam às
normas instituídas.
Costuma-se pensar a diferença sexual como algo inerente à natureza e relacionado
apenas a diferenças materiais, entretanto, como preleciona Butler (1999), o sexo não é
―simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele
é uma das normas pelas quais o ‗alguém‘ simplesmente se torna viável, é aquilo que
qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural.‖ (p.
152), ou seja, o ―sexo‖ é dotado de normatização, isto porque as categorias nas quais o
mesmo se divide são constituídas por uma ―demarcação discursiva‖, cujas práticas
reguladoras são reiteradamente reforçadas e resultam na materialização de um ideal
construído em torno do mesmo. Nesse sentido, pois:
O "sexo" não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática
regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória
manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir —
demarcar, fazer, circular, diferenciar — os corpos que ela controla (BUTLER,
1999, p.151).

O meio através do qual a manutenção dessa normatização se realiza é denominado


por Butler (1999) como ―performatividade‖, sendo por intermédio desta que o individuo
materializa o que é instituído pelas normas regulatórias como natural em relação às noções
de sexo e gênero, ou seja, o ideal de fixidez do ―sexo‖ bem como a noção de gênero como
uma construção cultural que se impõe sobre o corpo são reflexos de um poder normativo,
continuamente reproduzido por meio da performace que se manifesta através dos sujeitos.
Assim, ―a performatividade deve ser compreendida não como um ‗ato‘ singular ou
deliberado, mas, ao invés disso, como a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso
produz os efeitos que ele nomeia‖ (BUTLER, 1999, p. 152).
Devido à reprodução contínua dessa norma corporal, o ser humano se vê obrigado a
assumir um determinado sexo – que é identificado através do seu órgão genital, segundo
conceitos atribuídos pela biologia – e consequentemente, a partir do momento em que este
processo ocorre com o mesmo, em virtude da heteronormatividade imposta como regra de
comportamento, o exercício da sua sexualidade também estará restrito a uma forma
especifica de manifestação que é considerada natural – o indivíduo deverá se relacionar
com alguém que ―possua‖ um sexo oposto ao seu (BUTLER, 1999).
Pode-se aferir, então, um dos principais reflexos da heteronormatividade,
denominado por Adrienne Rich (2010) como ―heterossexualidade compulsória‖, cujo
significado retrata a existência de um padrão em relação à sexualidade o qual determina
que o ―normal‖ é ser heterossexual, ou seja, há uma imposição social que condiciona
homens e mulheres a se relacionarem afetiva e sexualmente com pessoas necessariamente
de sexo oposto ao seu, para que sejam aceitos e respeitados perante a sociedade. Portanto,
sob a ótica da expressão da sexualidade, a heteronormatividade pode ser definida como:
[...] um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e
controle, até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto.
Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma
denominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que
evidencia seu objetivo: formar todos para serem heterossexuais ou organizarem
suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e ―natural‖ da
heterossexualidade (MISKOLCI, 2009, p. 156-157).
Entretanto, em meio à diversidade sexual característica à sociedade, não há uma
conformidade universal dos indivíduos a estas regras, de maneira que os sujeitos
dissidentes da heteronormatividade são inseridos num processo de exclusão e subjugação.
Estes indivíduos que resistem aos processos de normatização dos corpos e da sexualidade
passaram receber a denominação de ―queer‖. Este termo inicialmente tinha uma conotação
pejorativa e era usado diante das minorias sexuais como ―um xingamento que denotava
anormalidade, perversão e desvio‖ (MISKOLCI, 2009, p. 151). Mas, posteriormente foi
adotado como sinônimo de resistência, de modo que:
Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da
sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transsexuais, travestis, drags.
É o excêntrico que não deseja ser ―integrado‖ e muito menos ―tolerado‖. Queer é
um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência;
um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade [...]
(LOURO, 2004, p. 7-8).
Surgiu, então, uma teoria queer como um contraponto aos estudos
socioantropológicos dominantes cuja lógica, direta ou indiretamente, reproduzia um
pressuposto heterossexista em seus pensamentos sobre a sexualidade. Assim, os estudos
queer – com bases no pós-estruturalismo francês – objetivam problematizar as concepções
predominantes em relação a sujeitos e identidades, no sentido de se desconstruir certos
saberes socialmente considerados como naturais e imutáveis, mas que na verdade foram
culturalmente estabelecidos e são utilizados como meio para a manutenção de estruturas de
poder que condiciona o individuo a um padrão heteronormativo hegemônico (MISKOLCI,
2009). Bem como, busca também esta teoria a valorização dos sujeitos, corpos e
identidades subalternizados no meio social e que se subvertem à normatização,
questionando e fazendo balançar estabilidades e certezas (LOURO, 2004).
Contudo, este processo de subversão gera diante das minorias sexuais desafios
constantes a serem enfrentados, e muito se falta para haja uma real concretização dos seus
diretos, uma vez que a discriminação e o preconceito ainda são uma realidade que afeta as
pessoas LGBT+ em todos os sentidos, desde o convívio familiar, escolar e social no geral,
passando as mesmas a serem vítimas de abusos e agressões e viver nesta permanente
incerteza quanto a sua própria existência e sobrevivência, como será a seguir exposto.

3 AS MÚLTIPLAS FACES DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MINORIAS SEXUAIS


Inicialmente, é importante destacar que embora seja muito comum a utilização do
termo homofobia para caracterizar a discriminação e o preconceito contra as pessoas
LGBT+, a violência contra as minorias sexuais abrange um campo mais amplo, e o fato de
no senso comum geralmente haver uma associação da expressão homofobia apenas ao
homossexual masculino, pode resultar numa falta de visibilidade diante das violências
sofridas pelos demais indivíduos pertencentes a este grupo.
Portanto, é indispensável que se entenda esta amplitude para se combater
efetivamente todas as formas de discriminação, fazendo-se necessário que o termo
homofobia seja interpretado num sentido mais abrangente, já que como pontua Peres
(2013, apud KOEHLER, 2013, p. 134): ―temos a LGBTfobia: a lesbofobia, a homofobia, a
transfobia e a bifobia‖.
A discriminação contra as minorias sexuais se expressa de diversas formas, desde a
violência psicológica, a propagação de discursos de ódio e os processos de estigmatização
e exclusão, até agressões físicas e homicídios.
O Brasil é um país propenso à difusão deste tipo de violência, uma vez que se
internalizou na nossa cultura o estabelecimento de padrões machistas, resultantes também
de um modelo de sociedade patriarcal, no qual o homem heterossexual está cercado de
privilégios e é o centro de poder nas relações sociais, econômicas, etc., assim como, devido
ao fato da heteronormatividade ter sido estabelecida como o ―normal‖ a ser seguido.
Consequentemente, por fugirem ao que a sociedade impõe como modelo de
comportamento correto, as minorias sexuais tornam-se vítimas de um sistema de
desigualdades e subjugação.
Outro fator que contribui fortemente para o fortalecimento deste processo de
segregação das minorias sexuais é a difusão de ensinamentos baseados em crenças
religiosas, em especial as relacionadas ao cristianismo. Isto porque, embora o Brasil seja
considerado um país laico, é evidente que ainda sofre grande influência de religiões cristãs
em todos os setores da sociedade. E em relação à sexualidade, as mesmas pregam nos seus
discursos uma espécie de ―reiteração da heterossexualidade compulsória‖ que ―pode se
manifestar de maneiras e graus distintos, variando desde o total silêncio acerca da
diversidade sexual e de gênero até a produção de estereótipos que operam por uma franca
estigmatização de pessoas LGBT‖ (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009).
Assim sendo, por estes fatores estarem intrínsecos à sociedade de uma forma
cultural, acabam sendo reproduzidos constantemente e, consequentemente, se fortalecendo.
Inclusive, geralmente acabam se refletindo também nos modelos educacionais perpetrados
tanto no meio familiar quanto nas bases escolares. A sexualidade ainda é um tabu em
processo de desconstrução, de modo que a diversidade sexual é um tema pouco discutido e
em torno do qual se criam estigmas que implicam em pensamentos equivocados acerca das
minorias sexuais.
Resulta isto num processo de naturalização de preconceitos, silenciamento, e até
mesmo na negação da existência da homossexualidade, assim como as demais expressões
de sexualidade que não a heterossexual, e da transgeneridade, passando as pessoas que
assim se identificam a ser vistas e tratadas como seres inferiores dentro de um ciclo de
marginalização e exclusão.
É muito comum que ocorra no ambiente familiar o primeiro contato com o
preconceito e a discriminação contra as minorias sexuais, seja como ator, seja como vítima.
Infelizmente, frequentemente é em casa que a população LGBT+ se depara com as
primeiras faces da violência em razão de sua condição sexual ou identidade de gênero, que
como preleciona Schulman (2010, p. 70), vão desde ―pequenos desrespeitos a graus
variados de exclusão, chegando a ataques brutais que deformam a vida da pessoa gay, ou
até a crueldades diretas e indiretas‖.
Inclusive, são comuns os casos em que as pessoas são expulsas de casa devido a sua
sexualidade ou identidade de gênero, sendo expostas a diversos tipos de perigos e tendo
violada a sua dignidade humana. Da mesma forma que o meio familiar, a escola
comumente também é um setor no qual as minorias sexuais são vítimas da hostilidade,
exclusão e violência. Estes processos de marginalização têm como consequências o
crescimento no número de pessoas com depressão e um aumento significativo de suicídios
entre jovens. Em 2012, foi realizado um estudo sobre a relação entre a condição sexual e o
suicídio pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, com cerca de 32.000 jovens
anônimos participantes, os resultados foram alarmantes:
Os dados analisados pela equipe são provenientes de uma pesquisa anual
realizada pelo estado do Oregon, a Oregon Healthy Teens Survey. Os
participantes são alunos de escola púbica entre 13 e 17 anos. Com base nas
respostas dos jovens, a pesquisa concluiu que a probabilidade de um
homossexual cometer suicídio é cinco vezes maior do que um jovem
heterossexual (Revista Galileu, 2012).
O ambiente escolar possui fundamental importância na formação do indivíduo,
porém, devido a nossa cultura, ainda há certa resistência a temas relacionados à
diversidade sexual, de modo que o meio educacional muitas vezes acaba produzindo e
reproduzindo diante dos estudantes, padrões normativos de gênero e sexualidade, o que
contribui para o silenciamento das minorias sexuais e dificulta a propagação da tolerância e
do respeito às diferenças (DINIS, 2008).
Isto ocorre justamente por ser o sistema educacional fruto de um pensamento social
cujas raízes culturais propiciam a existência deste tipo de discurso discriminatório. De
outro lado, há também a manifestação de grupos mais conservadores no sentido de se
impedir que a educação sobre gênero seja trabalhada nas escolas, sob a equivocada
alegação de que esta resultaria na ―doutrinação‖ dos estudantes para que escolham adotar
uma orientação sexual diferente da heterossexualidade – como se isto fosse uma questão de
escolha – dificultando ainda mais este processo de educação para a diversidade.
Pode-se observar também que com o decorrer do tempo, o processo de violência
contra as minorias sexuais tem se intensificado, principalmente no que diz respeito aos
crimes de ódio, tanto o discurso quanto as agressões físicas e homicídios.
Devido à facilidade no acesso à internet hoje existente, em conjunto com uma ideia
de liberdade de expressão absoluta, este se tornou mais um ambiente propício à
disseminação do discurso de ódio contra a comunidade LGBT+. Pela ausência de uma
legislação específica que puna este tipo de crime, e por se confiarem no fato de estarem
atrás de uma tela, muitas vezes em anonimato, muitas pessoas aproveitam estas
circunstâncias para propagar o ódio e a discriminação em relação às minorias sexuais sob a
alegação de estarem apenas exercendo seu direito de opinião. Mas, é importante lembrar
que nenhum direito é absoluto, valendo destacar a velha máxima ―seu direito termina onde
o do outro começa‖.
Essa situação fica evidente principalmente nas redes sociais. Basta que qualquer
página jornalística veicule qualquer notícia em relação a situações que envolvam lésbicas,
gays, bissexuais, travestis, transsexuais etc., para se observar uma enxurrada de
comentários LGBTfóbicos. Da mesma forma, existem os indivíduos que fazem questão de
ir até as páginas na internet que tratam especificamente sobre o tema e buscam dar
visibilidade ao movimento LGBT, apenas com o intuito de humilhar, silenciar e
deslegitimar as lutas das minorias sexuais,
As alegações mais comuns são de que estes indivíduos ―só querem aparecer‖,
―estão buscando privilégios‖, ―não são melhores que ninguém‖, enquanto os mesmos só
estão lutando por igualdade e pelo direito de existir. Isto ocorre porque, devido ao
preconceito e a discriminação intrínsecos à sociedade, é muito mais fácil acusar as pessoas
que sofrem processos de exclusão e são consideradas inferiores no meio social de estarem
buscando superioridade, do que reconhecer os próprios privilégios, uma vez que ninguém
está disposto a perdê-los.
Além desta negação de direitos, sob uma ótica mais extremista, também existem
pessoas e grupos que consideram as pessoas LGBT+ como o grande mal da sociedade e
que, portanto, deve ser combatido, de modo a tentar se legitimar os abusos e agressões
praticadas contra as mesmas para ―virarem gente‖, ou seja, para que se adequem a um
padrão considerado por esses indivíduos como natural, atingindo a propagação do ódio um
nível em que se chega a haver incitação à morte, tentativas e assassinatos das minorias
sexuais.
Tudo isto resulta num cenário alarmante de violência contra gays, travestis,
transsexuais, lésbicas e bissexuais. Além das diversas formas de violência psicológica
sofridas, diariamente as minorias sexuais são vítimas também de violência física.
Incontáveis são os casos diários em que as mesmas são agredidas apenas em razão da sua
existência, motivando-se os agressores no ódio em relação à condição sexual ou à
identidade de gênero do indivíduo.
Tão aterrorizante quanto, é a situação em relação à quantidade de homicídios, de
modo que o Brasil é o país em que mais se mata LGBTs no mundo. De acordo com o
relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2016 houve 343 mortes de gays, lésbicas,
bissexuais, transsexuais e travestis, de modo que ―a cada 25 horas um LGBT é
barbaramente assassinado vítima da ‗LGBTfobia‘, o que faz do Brasil o campeão mundial
de crimes contra as minorias sexuais. Matam-se mais homossexuais aqui do que nos 13
países do Oriente e África onde há pena de morte contra os LGBT‖.
É importante destacar que estes números tratam-se apenas de estimativas, uma vez
que o banco de dados do grupo é baseado em notícias veiculadas na mídia, publicadas na
internet e em informações pessoais, já que não há estatísticas feitas por órgãos
governamentais. Desta forma, apesar das estatísticas já serem alarmantes, é provável que
na realidade sejam ainda maiores, tendo em vista a existência de muitos casos
subnotificados.
E mesmo diante deste panorama de violência, cabe destacar que no Brasil ainda não
há uma legislação que trate sobre o crime de homofobia – ou LGBTfobia – e com isto se
dificulta a repressão a este grave problema social, já que esta sensação de impunidade ou a
falta de meios mais severos de coibição especificamente em relação a este tipo de fato,
acaba se tornando mais um estímulo ao cometimento e propagação de crimes contra as
minorias sexuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se pode negar que já houve alguns avanços em relação à conquista de direitos
pela população LGBT+, mas o caminho a ser percorrido para que haja a consolidação de
fato da igualdade, da liberdade e da não discriminação é longo. Na medida em que se
avança no sentido de dar visibilidade às minorias sexuais, buscando-se propagar o respeito
à diversidade, também vem ressurgindo e se fortalecendo na contemporaneidade uma onda
de conservadorismo, cujas crenças e padrões de moralidade envolvem o silenciamento dos
que não se identificam como heterossexuais e cisgênero32, e contribuem para a manutenção
de um sistema preconceituoso que resulta na exclusão e marginalização dos mesmos.
Vários são os tipos de violências sofridas pela população LGBT+ unicamente em
razão da sua existência como ser humano. As experiências podem envolver abusos e
violência física e psicológica, e ocorrem dentro do próprio ambiente familiar, no meio
escolar, assim como, no convívio social em geral. A situação é alarmante também em
relação à quantidade de mortes em razão do ódio pela orientação sexual ou identidade de

32
Cisgênero é a pessoa que se reconhece como pertencendo ao gênero que foi compulsoriamente designado
quando nasceu – determinado de acordo com a sua genitália. Ou seja, há uma conformidade entre o ―sexo‖
que possui e o gênero com o qual o sujeito se identifica.
gênero do indivíduo, de modo que o Brasil o país em que mais se mata LGBTs no mundo,
como já exposto.
Este paradigma tem como fundamento o estabelecimento de uma
heteronormatização social – através da reprodução reiterada da construção binária de
corpos sexuados – que exige dos indivíduos a conformidade com os padrões de gênero e
sexualidade, consequentemente gerando um processo de marginalização e discriminação
perante os sujeitos dissidentes destas normas, resultando num ciclo de violência diante das
minorias sexuais, no intuito de transformá-las em seres ―normais‖ ou simplesmente como
forma de castigo por não se submeterem ao que lhes foi imposto como forma natural de se
viver.
Além da adoção da heteronormatividade como modelo de comportamento, este
processo de discriminação contra a população LGBT+ é legitimado também por um
sistema social de bases patriarcais, fundado em padrões culturais machistas e fortemente
influenciado por religiões cristãs que corroboram para o silenciamento da diversidade
sexual.
Daí a necessidade em se repensar as concepções hegemônicas sobre sujeitos, corpos
e sexualidade, as quais significam a reiteração de um padrão fundando na
heteronormatividade cuja reprodução resulta na marginalização de quem não se encaixa às
normas, bem como se torna indispensável a adoção de um novo olhar sobre estes sujeitos
queer, de forma a valorizá-los em suas diferenças e a buscar meios de se quebrar os ciclos
de violência diante dos mesmos, respeitando sua dignidade e seus direitos como cidadãos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A VISIBILIDADE DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NA ASSISTÊNCIA AO
PARTO NO BRASIL

Autora Rayanny Campos Melo33


Co-Autor Arquimedes Fernandes Monteiro de Melo 34
Co -Autora Elba Ravane Alves Amorim 35

GT: GT 02 – Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos

RESUMO

O presente trabalho propõe uma análise do reconhecimento da violência no âmbito da


assistência à saúde da mulher, bem como aponta a violação de direito reprodutivo e sexual
no exercício da parturição, seja ela manifestada no momento gravídico, parto, pós-parto ou
abortamento. Busca expor a insegurança jurídica que paira sobre os casos de vítimas de
violência obstétrica, sendo este o fator gritante para promoção de impunidades e injustiças.
Explora a necessidade da implementação da humanização na saúde reprodutiva e sexual,
com o propósito da disseminação desta através de práticas obstétricas éticas na qual não
afrontem a dignidade humana e a saúde. Para isso foi utilizado o método hipotético
dedutivo, além de pesquisas bibliográficas, legislação, documentos eletrônicos, em
especial o Dossiê Parirás com Dor de 2012.

Palavras-chave: Violência obstétrica. Direitos Humanos. Dignidade humana. Saúde da


mulher.

INTRODUÇÃO

O nascimento de uma vida é um evento especial, onde compõe um momento


inesquecível na vida de uma mulher. Este momento significativo deve ser inesquecível e
saudável, deste modo, a maneira de nascer interfere muito na valoração da lembrança e na
saúde da mulher, visto que, se o parto for violento acarretará traumas, dor, além de
violações a direitos garantidos.

33
Faculdade ASCES-UNITA, graduanda em direito. melorayanny@gmail.com
34
Mestre em Ciências Farmacêuticas. Doutor em Produtos Naturais e Sintéticos Bioativos, Professor da
ASCES/UNITA Arquimedesmelo@asces.edu.br
35
Mestra em Direitos Humanos, Professora da ASCES/UNITA. elbaravane@gmail.com
A violência obstétrica é um tipo de violência relacionada ao gênero, que se perfaz
com a violação de direitos no exercício da reprodução feminina, alçando o período
gravídico, parto, pós-parto ou abortamento.
2. METODOLOGIA
O objetivo do presente estudo possui o intuito de visibilizar a existência da
violência obstétrica no Brasil. Apontar as formas que caracterizam a violência obstétrica,
bem como, destacar a ausência de legislação específica. Almeja cooperar na diminuição
dos casos de violência contra a mulher. Desta forma, elucida também a importância de
implementação da assistência humanizada na prestação de serviço obstétrico, onde
propicie formas acolhedoras e dignas à parturiente.
O problema de pesquisa está atrelado a indicar a existência da violência obstétrica
no Brasil, além de explanar a falta de legislação especifica.
Para tanto, foi utilizado o método hipotético dedutivo, além de pesquisa
bibliográfica, legislação e documentos eletrônicos. Utilizamos também dados baseados no
Dossiê Parirás com Dor de 2012 e Cartilha do Ministério Público de Pernambuco sobre
Humanização no Parto de 2014.
A Justificativa para a formação deste trabalho se respalda, na relevância do
enfretamento à violência obstétrica, a fim de tolher a naturalização da violência obstetrícia,
tal como os casos de impunidades.
Vale ressaltar que o presente estudo faz parte das pesquisas para produção do
Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de bacharela em Direito pela
ASCES UNITA, orientado por Arquimedes Fernandes Monteiro de Melo.

3. DISCUSSÃO E RESULTADOS:

3.1 Do reconhecimento da violência obstétrica

Na construção social, o tratamento naturalizado em relação à violência voltada à


mulher não é novidade, e no campo da assistência à saúde no parto não é diferente.
Acontece que, a temática é timidamente reconhecida socialmente, além de ser de difícil
divulgação ou denúncia, já que concerne à vida privada da mulher.
A publicação do Dossiê Parirás com Dor, do ano de 2012, para a CPMI de
Violência Contra as Mulheres, sucedeu a revelação de irregularidades na área da saúde da
mulher no que tange ao processo reprodutivo, através de um estudo detalhado sobre a
violência obstétrica e importância da humanização no parto. Para mais, ele reuniu relatos
de mulheres que vivenciaram o lado ―invisível do parto‖, sejam eles a dor, vulnerabilidade,
desrespeito e o desamparo jurídico. O Dossiê também analisou leis vigentes em países
vizinhos como a Venezuela e Argentina, para a construção da classificação das
modalidades previstas concernentes à violência camuflada na assistência à saúde
reprodutiva no Brasil.
É cediço que, os direitos humanos voltados para a mulher constituem parte
inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais (PIOSEVAN, 2012), ao
passo que os direitos reprodutivos representam o complexo de direitos básicos pertinentes
ao livre exercício da reprodução e sexualidade. Todavia, a violência obstétrica tolhe o
direito ao exercício destes.
A Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a
Mulher de 1994 em seu artigo primeiro definiu violência contra a mulher como: ―Qualquer
ato ou conduta baseada no gênero, causando morte, dano ou sofrimento de ordem física,
sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada‖. Na qual
reforça o princípio 4º da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do
Cairo, de 1994, que põe a pauta da importância da equidade e a igualdade dos sexos, bem
como a eliminação de todo o tipo de violência contra a mulher. Além disso, reforça a
pertença do controle de sua fecundidade a esta.
A violência obstétrica está atrelada à violência de gênero, na proporção que é
direcionada tão somente a mulheres em período gravídico, parto, pós-parto ou
abortamento. Esta se perfaz através de atos praticados contra a mulher em virtude do
exercício de sua reprodutividade e sexualidade, na qual abrange qualquer profissional de
saúde, servidores, profissionais técnico-administrativos sejam eles de instituições públicas
ou privadas, bem como civis (PARTO DO PRINCIPIO, 2012).
Deste modo, a violência obstétrica ocorre devido à apropriação do corpo e a
violação do processo reprodutivo feminino, por profissionais envolvidos na assistência ao
parto, através da medicalização e patologização dos processos naturais, que incidem
negativamente na autonomia e capacidade da mulher no exercício reprodutivo e sexual.
A temática não é apenas uma preocupação nacional, ao passo que no âmbito
internacional, a Organização Mundial de Saúde ao se deparar com o cenário da saúde
feminina em todo o mundo, se pronunciou no ano de 2014, na Declaração sobre
Prevenção, Eliminação de Abusos, Desrespeito e Maus-tratos durante o parto em
instituições de saúde, com o objetivo de mobilizar o mundo sobre a importância da
erradicação da violência obstétrica, tendo em vista que os direitos humanos trata a temática
esclarecendo que toda mulher é merecedora de padrões atingíveis de saúde e, que o
tratamento desumano viola os direitos das mulheres, além de ameaçar o direito à vida, à
saúde, à integridade física.
Para mais, a OMS (Organização Mundial de Saúde) informa que em 2015, as
Taxas de Cesáreas no Brasil lidera o ranking mundial no uso da cirurgia cesárea, pois
ultrapassa o índice que a OMS considera seguro, ou seja, percentual de 15% de cirurgias
cesáreas anuais.
Observa-se a existência da violência de gênero através da emissão de declarações
da OMS sobre a temática, na criação de movimentos nas redes sociais, na mobilização para
o enfrentamento da violência obstétrica, e na necessidade da criação do Dossiê para CPMI
de Violência contra as Mulheres, na qual traz um rico estudo sobre a violência obstétrica
no Brasil.
Contudo, mesmo que violência obstétrica seja reconhecida como questão de saúde
pública pela OMS, devido a temática ser recente e desafiadora, é necessário a proposição
de uma análise de suas definições, origens, impactos na saúde materna, responsabilidade
dos profissionais atuantes na área de saúde, políticas de prevenção e atual estrutura dos
serviços de saúde.

3.2 A maleficência dos procedimentos de rotina considerados invasivos e danosos à


saúde da mulher na assistência ao parto
O despreparo e ausência dos profissionais nas unidades de saúde e a ausência de
políticas públicas, resultam na má assistência a mulheres que necessitam de procedimentos
obstétricos. Em decorrência dessa deficiência, aproximadamente 287 mil mortes de
mulheres no mundo inteiro anualmente (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000), por motivo de
complicações gestacionais, além do desamparo social de mulheres e crianças em situação
de risco, um dos fatores cruciais de sua morbidade.
Segundo o livro criado em 2000 pelo Ministério da Saúde sobre ―URGÊNCIAS E
EMERGÊNCIAS MATERNAS: Guia para diagnóstico e conduta em situações de risco de
morte materna‖, as causas predominantes de morte materna são as diretas (são aquelas que
ocorrem devido a complicações e não por motivo de doenças), sendo seu perceptual
alarmante de 74%. Dentre essas, a hemorragia, infecção puerperal, eclampsia e aborto.
Além disso, ressalta que a maioria dos óbitos poderiam ser evitadas caso houvesse uma
assistência com qualidade no pré-natal, parto, puerpério e nos casos de emergências
maternas.
Embora a violência obstétrica, possa se camuflar em determinadas atitudes ou
procedimentos de rotina nas instituições de saúde, a irresponsabilidade dos profissionais na
prestação da assistência digna no parto resulta inúmeras consequências. Neste sentido
podemos observar que a violência obstétrica não ocorre apenas pela ausência destes nas
unidades de saúde, mas também decorre da desumanização no atendimento.
O Dossiê Parirás com Dor, prevê modalidades de violência obstétrica, sejam elas de
cunho físico, institucional, material, midiático, psicológico e sexual.
Em relação ao caráter físico, são consideradas todas as ações danosas sem
recomendações e ausência de embasamento científica, onde incidam sobre o corpo
feminino, e causem dor ou dano físico. Como por exemplo: tricotomia (raspagem dos pelos
pubianos); privação de alimentos; manobra de Kriteller (ato de empurrar a barriga da
gestante para ―facilitar‖ na saída do bebê); uso de ocitocina (substância química para
acelerar o processo de parto); cesárea eletiva sem indicação médica; ausência de analgésico
na cirurgia ou na curetagem (procedimento para retirar o feto morto nos casos de aborto).
A violência obstétrica de cunho institucional ocorre através de ações ou formas de
organizações relacionadas aos serviços de saúde, sejam eles de natureza públicos ou
privados, que impossibilitem, atrapalhem, procrastinam o acesso da mulher aos direitos
ressalvados na Constituição Federal 1988 e Direitos Humanos. Decorre nos casos em que,
as mulheres são impedidas ao acesso de serviços concernentes à saúde, ao direito de
amamentar, omissão ou violação dos direitos das mulheres durante o período gravídico,
parto e puerpério, ausência de fiscalização das agências reguladoras e órgãos competentes,
protocolos institucionais que confrontam as normas vigentes.
O ato violento de caráter material é detectado quando a pessoa jurídica ou física age
ativamente ou passivamente auferindo recursos financeiros da mulher em processo
reprodutivo, violando o direito já garantido por lei. A exemplo pode-se apontar os
profissionais ou planos de saúde que cobrem valores econômicos indevidamente; indução a
plano de saúde privativo, sendo a única maneira de garantir a presença de um
acompanhante.
Quanto a forma de caráter midiático, ocorre por ações de profissionais que laboram
na área de comunicação, onde atingem psicologicamente mulheres no processo gravídico,
tal como violem seus direitos por intermédio de imagens, mensagens ou símbolos
expandidos publicamente, propagandas de apologia às práticas contraindicadas, para fins
econômicos, sejam elas: cirurgias cesarianas, ridicularização do parto normal,
merchandising de substituição do aleitamento materno, incentivo ao desmame precoce.
A violação à mulher de caráter psicológico é aquela que, ocorre em toda ação
verbal ou comportamental, que provoque sentimento de vulnerabilidade, inferioridade,
abandono, receio, insegurança, dissuasão. As humilhações, ofensas, ameaças, omissão de
informações relevantes, mentiras, desonras, desrespeito aos padrões culturais da mulher,
são exemplos de violência obstétrica de caráter psicológico.
Para mais, a violência obstétrica também pode ser de caráter sexual, quando há
violação da intimidade ou pudor feminino atingindo a integridade sexual e reprodutiva,
podendo ter acesso ou não as partes íntimas e sexuais do corpo. Como exemplo
destacamos, os exames de toque invasivos (agressivos e constantes), sejam eles para
identificar dilatação ou para fins didáticos, as cirurgias cesarianas sem consentimentos,
lavagem intestinal, exames repetitivos dos mamilos sem esclarecimentos, a episiotomia.
A episiotomia talvez seja o procedimento de rotina mais temido das mulheres. A
cirurgia na vulva realizada com um bisturi ou tesoura, algumas vezes sem anestésicos, tem
sido utilizado rotineiramente em centenas de milhões de mulheres, por volta de meados do
século XX (PARTO DO PRINCIPIO, 2012). É preciso salientar que a dor da episiotomia é
atrelada ao ―ponto marido‖, denominação utilizada para o fechamento desta para fins de
deixar o canal vaginal mais rígido e preservar o prazer masculino no ato sexual. No entanto
está associada a dores na relação sexual e até mesmo a impossibilidade da penetração.
De acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, de 2014, 53,5% das mulheres sofreram
episiotomia, no entanto, este número pode ser maior, vez que inexiste registro oficial sobre
ele. Sendo assim, invisibilizando tal problema que decorre da falta de fiscalização. Ela é
única cirurgia realizada no Brasil sem o consentimento da paciente e sem que a mesma seja
informada sobre a necessidade de realizá-la, seus riscos ou sobre possibilidade alternativa
de tratamento (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012).
O Parto do Princípio nos esclarece que:
No caso brasileiro, a questão da episiotomia é marcadamente um
problema de classe social e de raça: enquanto as mulheres brancas e de
classe média que contam com o setor privado da saúde, em sua maioria
serão "cortadas por cima" na epidemia de cesárea, as mulheres que
dependem do SUS (mais de dois terços delas) serão "cortadas por baixo",
passarão pelo parto vaginal com episiotomia (PARTO DO PRINCÍPIO,
2012, p. 89).

É evidente que há intervenções diferentes na assistência ao parto no Sistema Único


de Saúde e na rede privada. Acontece que, as mulheres que dependem do SUS, estão mais
vulneráveis à cirurgia de episiotomia algumas vezes executados sem consentimento e
anestesia, como expõe o Dossiê de autoria da Rede parto do Princípio.
Por outro lado, o favoritismo das mulheres pelo parto intervencionista é maquiado
pela crença de que a qualidade do atendimento obstétrico será melhor, já que é associado à
tecnologia utilizada nos procedimentos operatórios. Conquanto, a preponderância de
cesáreas no Brasil é atrelada a fatores socioeconômicos como aponta o texto acima, e na
maioria das vezes não é relevante os riscos clínicos. Todavia, é importante salientar que a
cesariana deve ser utilizada de maneira adequada e quando há indicação.
Destarte, o abuso dos procedimentos aqui citados sem razão clínica devem ser
evitados de acordo com as orientações da Organização Mundial de Saúde e do Ministério
da Saúde. Contudo, há uma necessidade de implementação do princípio humanizador na
qual estimula o vínculo de proximidade entre paciente, médicos, alunos e todos envolvidos
na assistência ao parto.

3.3. Violação à dignidade da pessoa humana e a saúde

A trajetória histórica em relação aos serviços de saúde da mulher exprime


discriminação, insatisfação e violações de direitos, na qual esteve vinculada a tensão e mal-
estar psíquico-físico. Ao decorrer do tempo houve pontos positivos em relação à
assistência à saúde devido à expansão dos programas de saúde e ao alcance de todas as
fases da vida feminina (RIOS, 2009).
No entanto, em relação à assistência do parto, em pleno século XXI, mesmo com os
avanços da tecnologia, aprimoramento de técnicas, é observado que o atual cenário
obstétrico é preocupante e assustador, pois mesmo com as garantias teóricas belíssimas que
a mulher possui em relação ao acesso a saúde de forma digna e com qualidade,
independente da instituição ser pública ou privada, ainda ocorre discriminações, abusos,
desrespeitos e violações aos direitos das mulheres (PARTO DO PRINCIPIO, 2012).
Tendo em vista esses aspectos, é oportuno vislumbrar um dos princípios mais
importantes, consagrado e respeitado pela Constituição do Brasil de 1988: a dignidade da
pessoa humana. O termo ―dignidade‖ no latim significa dign itas ―o que tem valor‖, sendo
assim, remete-se ao respeito, consciência de valor, e honra em relação ao ser humano,
sendo este digno de tratamento respeitoso. Porém, a dignidade da pessoa humana, possui
diferentes interpretações, mas numerosos autores compactuam que este princípio é o valor
interno insubstituível em relação ao homem em razão do seu ser, não pela utilidade que
venha a propiciar, mas pelo simples fato de ser humano (BERMEJO, 2008).
O princípio aqui tratado, consiste no respeito à vida, seja este sem dúvida o mais
importante princípio dentre todos os direitos constituídos na Carta Magna brasileira. Ele
está atrelado ao direito à dignidade da pessoa humana, haja vista a ressalva da Constituição
Federal de 1988 prevista em seu art.1º, e tratado como direito fundamental.
Além de está descrito na Constituição brasileira, é o principal objetivo da criação
dos direitos humanos, sendo a dignidade da pessoa humana direito inalienável. Ele é
considerado o cerne das sociedades democráticas de direito e, fundamento limitador das
ações estatais e humanas (PIOVESAN, 2010).
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral relacionado à pessoa,
de notória manifestação através da autodeterminação consciente e responsável da própria
vida e que estabelece por si só a pretensão de respeito por parte das demais pessoas, sendo
importante todo estatuto jurídico assegurá-los, e excepcionalmente limitá-lo ao exercício,
mas sempre sem desmerecer a pessoa enquanto ser humano (MORAIS, 2014).
A reflexão mais precisa sobre a dignidade de cada individuo respalda-se em sua
racionalidade, sociabilidade, liberdade, responsabilidade (BERMEJO, 2008). Sendo assim,
este princípio é uma potencial bússola ética para a harmonia social e a não violação de
direitos das mulheres na assistência no parto.
Nesse mesmo compasso, a violência obstétrica atinge a saúde humana, na qual pode
ser compreendida, pela definição da OMS, como o bem-estar social entre os indivíduos. A
saúde, portanto, é o bem-estar dos indivíduos e toda coletividade no meio social, sendo
capazes de alcançar equilíbrio existencial, através de fatores biológicos, sociais, políticos,
culturais, comportamentais e ambientais (FORTES; ZOBOLI, 2003). Na reprodução e
sexualidade feminina, não é diferente, o bem-estar corresponde à saúde. Entretanto a
violência obstétrica deturpa o real significado da saúde, podendo ocasionar marcas
psicológicas, físicas que repercute de modo negativo na vida da mulher.
A Constituição Federal de 1988, ressalva o direito à saúde e específica que é um
dever do Estado garanti-los, se destacam os artigos 6º e 196, onde estabelecem que:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.
[...]
art. 196 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação‖.(grigos nossos)

Para garantir o acesso à saúde de forma universal no Brasil, foi criado o Sistema
Único de Saúde-SUS, um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, que garante o
acesso integral, universal e gratuito como política de atendimento à saúde para toda
população do país. É regulado pelas leis Orgânicas da saúde, Leis n.º 8080/90 e nº
8.142/90 com propósito de diminuir a desigualdade na assistência à saúde populacional,
determinando obrigatório o atendimento público a qualquer cidadão, sendo vedada
cobrança pecuniária em relação à prestação do serviço.
Acontece que, o SUS disponibiliza acesso universal, no entanto a Organização
Mundial de Saúde reconhece que, a oferta de saúde a todas as pessoas que compõem a
totalidade populacional de um país não é possível, sendo assim, sempre será necessário
estabelecer prioridades na distribuição de recursos. Desse modo é necessário analisar as
localidades onde há mais demanda assistencial, ausência desta, tal como particularidades
de cada região, para que exista equidade na distribuição de recursos, destaca-se aqui, as
políticas voltadas à saúde da mulher já que no Brasil representam mais da metade da
população.
Neste contexto Zoboli e Fortes (2003, p.35), elucidam:
As escolhas de uma justa distribuição de recursos de saúde podem ser
fundadas em alternativas teóricas que procuram interpretar o princípio
ético de justiça distributiva. Essa reflexão remete a discutir qual a
responsabilidade do Estado na implementação de políticas públicas, quais
e quantos recursos devem ser dirigidos à assistência à saúde, quais as
prioridades para a distribuição de recursos entre programas, projetos, e
instituições de saúde.

Da teoria para a prática, o acesso à saúde deve ser estabelecido, conforme as


imprescindibilidades de cada região, dando ênfase às localidades onde há menor incidência
do acesso à saúde feminina, ou regiões que, necessitam de programas para maior
acessibilidade e respeito de mulheres pobres, negras, adolescentes, prostitutas, deficientes,
portadoras de HIV, usuárias de drogas, imigrantes, indígenas, lésbicas, e àquelas em
situação de cárcere e etc. Conforme, o Dossiê Parirás com Dor de 2012 apontou a
incidência de desrespeitos no atendimento ao parto na assistência a alguns segmentos.
Deste modo, a humanização é o pilar essencial para desmistificar os desrespeitos e
maus tratos na assistência obstétrica, à medida que a Declaração da Organização Mundial
da Saúde (OMS) sobre a ―Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos
durante o parto em instituições de saúde‖ (p. 01 á 02, 2014), compactua a humanização,
assim:
Todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde
atingível, incluindo o direito a uma assistência digna e respeitosa
durante toda gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre
da violência e discriminação. Os abusos, os maus-tratos, a
negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma
violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como
descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados
internacionalmente.

Destarte, a humanização surge como resposta à violência obstétrica, propondo a


necessidade de assistência digna e respeitosa (REDE FEMINISTA DE SAÚDE, 2002) na
assistência ao parto. Deste modo, o movimento da humanização, no sentido filosófico, é
atrelado ao humanismo, corrente que busca investigar e compreender o homem e sua
natureza, e a relevância da dignidade do ser humano e seus valores morais e (RIOS, 2009).
Sendo assim o princípio humanizador está atrelado às atitudes éticas dos profissionais de
saúde, doulas, de modo geral, ao integrantes desse processo.
É válido mencionar que, o Dossiê Parirás com dor, elucidou que a desumanização
atrelada à violência obstétrica se perfaz comumente na rede pública ou privada, através da
peregrinação da gestante em busca de vaga para parir, no atendimento desrespeitoso à
parturiente ou à mulher em situação de abortamento visualizada como homicida e
submetida ao processo da curetagem (processo cirúrgico para retirar o feto sem vida) sem
analgesia.
A inclusão da humanização na prestação de serviços de assistência ao parto, se
respalda na unicidade de cada pessoa, tomando por base a diversidade humana
(BERMEJO,2008). Além desse fator, o protagonismo também deve ser incluído no
atendimento à saúde das usuárias, onde a paciente deve receber informações claras e
objetivas, e se possível escolher as opções terapêuticas disponíveis.
Nesta perspectiva, o imperativo categórico do filósofo alemão Immanuel Kant
(1724-1804), nos permite refletir quão relevante é o respeito à humanidade, ao passo que
devemos tratar o outro como se fosse a nós, não como um meio para chegar a um
determinado fim, mas como ponte para chegar a um bem comum de forma graciosa. Desta
maneira compreendemos a necessidade da humanização no bojo da saúde assistencial à
mulher para alcançar um sistema universal humanizado, na qual busca promoção da saúde
sem desrespeito e violações de direitos previamente constituídos e ressalvados pelo nosso
ordenamento jurídico.

3.3.1 Direito à dignidade humana: Parturientes em situação de cárcere

As mulheres em situação de cárcere estão sujeitas às mesmas desigualdades que


passam as outras, somatizadas às precárias condições prisionais brasileiras. Neste sentido,
pouco se fala em políticas de saúde para este segmento pairando a vulnerabilidade destas
no período gravídico, parto, pós-parto ou abortamento.
A 1º Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres de São Paulo, 2004,
explanou a necessidade da capacitação dos profissionais que compõem o sistema prisional,
bem com destinou o alcance ao tratamento respeitoso e digno, além de criação de
mecanismos para informação e acesso a programas específicos relativos ao acesso à saúde,
onde garantam o exercício dos direitos reprodutivos e sexuais, para o respeito da cidadania
das mulheres em situação de cárcere à margem da sociedade, muitas vezes esquecidas pela
máquina estatal.
Kant sustenta em A Metafísica dos Costumes:
Desprezar os outros (contemnere), ou seja, negar-lhes o respeito devido
aos seres humanos em geral, é em todas as situações contrário ao dever,
uma vez que se tratam de seres humanos [...] Aquilo que é perigoso não
constitui objeto de desprezo [...] Contudo, não posso negar todo respeito
sequer a um homem corrupto como ser humano; não posso suprimir ao
menos o respeito que lhe cabe em sua qualidade como ser humano, ainda
que através de seus atos ele se torne indigno desse respeito. (KANT,
2003, pp. 306-307).
Kant considera que qualquer indivíduo é merecedor de dignidade, independe da
mais vil ação que venha a cometer no meio social. Considera também que, o princípio da
dignidade da pessoa humana pertinente à condição dos seres humanos. E, na seara
obstétrica não é diferente, se tratando de assistência à parturiente, a mulher merece
tratamento honroso independentemente da cor de sua pele, raízes culturais, sexo, condição
financeira ou crime que tenha praticado.
Ademais, a parturiente em situação de cárcere merece tratamento humanizado para
preservar a dignidade sua saúde. Ela deve ser englobada nas políticas de acesso à saúde
reprodutiva, assistência digna sem o uso das algemas no momento de partejar, além de,
direito à acompanhante, às informações sobre o estado de saúde da neonato, entre outros
direitos garantidos pelos dispositivos legais vigentes do Brasil. Portanto, o acesso à
assistência no parto e o respeito à dignidade da pessoa humana atrelada ao tratamento
humanizado, devem ser alcançados por todas as mulheres.

3.4 Dos dispositivos legais vigentes no que concerne a assistência ao parto e uma
breve análise do Projeto-Lei 7633/14 e sua lacunosidade

Atualmente no Brasil não existe lei específica que verse sobre a violência
obstétrica, para prevenção e punição nos casos do tal ato infame e perverso no momento
mais vulnerável da vida gravídica da mulher no exercício do partejamento ou abortamento.
Há dispositivos legais soltos que podem ser aplicados para assegurar direitos da
parturiente, onde se encontram ressalvados nos Direitos Humanos, Constituição Federal de
1988, Código Civil, Código Penal, leis e portarias.
Dentre as Convenções mais relevantes podemos vislumbrar a ―Convenção sobre a
eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher‖, recepcionada pela
Resolução 34/180 da Assembleia Geral das Nações Unidas em 18/12/1979, ratificada em
1° de fevereiro de 1984 pelo Brasil, e a‖ Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência Contra a Mulher‖, conhecida também como "Convenção de Belém
do Pará‖, na qual foi amparada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados
Americano na data de 6 de junho de 1994, e ratificada pelo Brasil no ano de 1995 em 27
de novembro.
Esta estabeleceu o que pode ser considerada discriminação contra a mulher, seja
ela, toda forma de distinção que tenha como objetivo prejudicar a mulher, com base na
igualdade de gêneros, direitos humanos e liberdade fundamental na seara social, cultural,
econômica, e civil ou qualquer outra área.
A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher de 1979 em seu artigo 12 dispõe:
Artigo 12 - 1. Os Estados partes adotarão todas as medidas apropriadas
para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados
médicos, a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e
mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive referentes ao
planejamento familiar.
2. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 1º, os Estados partes garantirão
à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao
período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando
assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a
gravidez e a lactância.

No referido artigo, nos deparamos com o amparo à gestante na assistência ao parto,


ao passo que, ele assegura o atendimento apropriado à mulher em situação gestacional, e
posterior a este, proporcionando acesso gratuito à saúde, responsabilizando os países que a
ratificaram a garanti-lo, como é o caso do Brasil, que garante o acesso à saúde pelo
Sistema Único de Saúde.
No entanto, não basta apenas disponibilizar o acesso à saúde gratuitamente se ele
funciona de forma precária e desumanizada. Sendo assim, essa Convenção surgiu com a
proposta de eliminar desigualdade de gênero e foi muito além, quando incluiu o direito ao
acesso à saúde para as mulheres gestantes, obrigando os Estados-partes o cumprimento de
todas medidas contidas na própria Convenção, a fim de alcançar melhoras no que tange a
temática de discriminação contra a mulher, combatida há décadas pela militância
feminista.
Aquela, em seu artigo nono respalda a adoção de medidas que os Estados-partes
deverão assegurar em relação à violência que as mulheres possam sofrer em decorrência de
sua raça ou raízes étnicas, mulheres refugiadas, migrantes, desterradas. Atenta também a
considerar às mulheres submetidas à violência na condição de gestante.
Em relação à codificação brasileira, a nossa carta magna de 1988, estabeleceu o
princípio a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental e norteador dos
demais dispositivos legais. Assegurou também o acesso universal igualitário à saúde.
Ademais, criou o SUS, um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, que garante
o acesso integral, universal e gratuito como política de atendimento à saúde para toda
população do país.
No âmbito do direito civil, o Código Civil de 2002 garante à mulher o direito de
perceber o dano estético, dano moral e etc.
Nos casos de violência obstétrica, o Código Penal brasileiro estabelecido pelo
Decreto-Lei nº 2.848 de 1940, pode ser utilizado nos casos que levem à morte da gestante
pela tipificação do homicídio art. 121, observando a modalidade culposa ou dolosa que
interferirá na penalidade. No evento de xingamentos, constrangimentos e desrespeitos,
sendo estes ensejos para injúria, previstos no artigo 140 do Código Penal. Na ocorrência de
lesão corporal há previsão no art. 129.
Com relação às leis mais relevantes, podemos observar a Lei no 11.108/2005, que
alterou a Lei no 8.080/1990, para assegurar o direito às mulheres parturientes a presença de
um acompanhante durante o trabalho de parto e pós-parto. Mas os relatos de mulheres do
Dossiê da Rede Parto do Princípio, algumas gestantes não tiveram garantida a presença
contínua de um acompanhante. Diante do exposto, a vigência da lei não pressupõe
efetividade, é necessária a fiscalização das prestadoras de serviços à saúde, ao passo que,
alguns hospitais não respeitam o direito estabelecido por essa lei.
A Lei nº 15880 de 17/08/2016, lei estadual de Pernambuco, também é importante,
pois autoriza o direito à presença de doulas no trabalho de parto e pós-parto, nas
instituições que prestem serviços relacionadas a assistência ao parto, independente de ser
pública ou privada, foi um grande avanço no que tange a assistência humanizadora durante
o parto em Pernambuco. Frisamos que pouquíssimos Estados possuem lei que verse sobre
a figura doula.
Em relação às portarias, elas amparam os direitos das mulheres parturientes e dos
bebês, dentre algumas a Portaria 466/2000, institui pacto pela redução de cesarianas, pois
esse mecanismo deve ser utilizado apenas quando houver necessidade como objetivo de
proteção a mãe e bebê, e a Portaria 1459/2001, uma das mais importantes portarias, pois
instituiu a rede cegonha, que assegura à mulher o direito de planejamento reprodutivo e
humanização no ciclo gravídico.
Com relação a lei específica que trate da temática em estudo não há. Todavia,
tramita há anos o Projeto de Lei nº 7.633/2014 proposto pelo deputado Jean Wyllys,
composto por 31 artigos. O Projeto-Lei está divididos por três capítulos. O Título l aborda
a temática sobre diretrizes e princípios relacionados aos direitos da mulher durante a
gestação, pré-parto, parto e puerpério. Neste capítulo, além de resguardar o respeito a
mulher e a cultura de suas raízes o que nos chamou atenção foi a elaboração obrigatória de
um plano de parto, onde será estabelecido disposição de vontade da parturiente, bem como
o estabelecimento de sua escolha para ser realizado o pré-natal e o parto.
Nos casos que sejam inviáveis a escolha, mesmo assim, constará o nome e a equipe
responsável, a presença ou não de um acompanhante de livre escolha da gestante nos
termos da lei n° 11.108/2005, o uso da posição verticalizada no parto, a questão do
alojamento conjunto e a utilização de métodos de analgesia e direito a informação aos
riscos e benefícios.
Além disso, a mulher deve ser informada de forma clara e precisa a respeito dos
procedimentos de rotina e de assistência ao parto. O plano de parto só poderá ser alterado,
caso seja comprovado a urgência ou emergência dos riscos de morte fetal ou materna, bem
como explanado justificativamente o procedimento clinico adotado.
Em seu artigo 11 esclarece as condutas vedadas em relação aos profissionais
integrantes da equipe de saúde, no entanto, não é detalha a sanção.
No artigo 13 do projeto lei em estudo, encontra-se respaldado o conceito de
violência obstétrica, considerando como apropriação do corpo e a violação do processo
reprodutivo feminino, através do tratamento desonrante dos profissionais envolvidos na
assistência ao parto, abrangendo o abuso de medicamentos e apontando a patologização do
parto onde incidam negativamente na autonomia e capacidade feminina na tomada de
decisões relativas ao seu corpo e sexualidade,
No entanto, o artigo mencionado prevê apenas os profissionais de saúde como
individuo responsável pela violência obstétrica, todavia o Dossiê da Rede Parto do
Princípio reconheceu que a violência obstétrica não é de cunho exclusivo de profissionais
de saúde, ela pode ser
O art.14 especifica as formas de caracterização da violência obstétrica, na
modalidade verbal ou física. Dentre as demais ofensas explanadas foram abordadas as
concernentes à cultura, religião, etnia, estado civil, escolaridade, orientação sexual,
condição socioeconômica, da parturiente. Entretanto mais uma vez, constatamos a
inobservância do legislador já que, não recepcionou as fontes plurais previstas no Dossiê
Parirás com Dor de 2012.
O Título ll, discorre sobre a erradicação da violência obstétrica. O artigo 17 nos
chamou atenção, pois ele trata da comunicação da violência obstétrica através de
ouvidorias dos serviços de saúde e às comissões de monitoramento dos índices de
cesarianas e de boas práticas obstétricas- CMICBPO.
O parágrafo primeiro do artigo 17 relata que os profissionais de saúde estarão
submetidos à responsabilização civil, criminal e administrativa caso violem os direitos da
parturiente. Todavia, o Projeto-Lei deveria especificar as sanções direcionadas aqueles que
violentaram á mulher, sendo assim, faltou especificidade já que a violência obstétrica se
perfaz através de fontes plurais. Além disso, a sanção não deve ser obscura, branda ou
flexibilizada, entendemos, portanto, que há lacunosidade na criação do Projeto-Lei em
estudo.
No que tange a implementação da humanização na assistência ao parto, o Projeto-
Lei nº 7.633/14 incentiva o parto humanizado. Ele determina que, todo estabelecimento de
saúde voltado ao atendimento no parto.
O Título III tem como objetivo instituir mecanismos que controlem os índices de
cesarianas, e que promovam as boas práticas obstétricas. Para maior controle dos índices
de cirurgias cesarianas. Contudo, o Projeto-Lei em estudo, não abordou a fiscalização do
procedimento de laqueadura onde não há efetiva fiscalização no Brasil no momento da
cirurgia cesariana. O Projeto-Lei deveria trazer essa temática e propor monitoramento
desse procedimento maléfico às mulheres brasileiras.
Em relação aos índices de cirurgias cesarianas, o Projeto-Lei propõe no §8 do
artigo 26 a criação das comissões de monitoramento do índice de cesarianas e das boas
práticas obstétricas (CMICBPO), de caráter temporário. Contudo, analisamos que, essas
comissões deveriam ter caráter permanente à medida que, o cenário da assistência ao parto
necessita de fiscalização constante, não apenas no controle dos índices de cesarianas, mas
do padrão de qualidade nos serviços obstétricos oferecidos nos hospitais-maternos, seja do
seguimento público ou privado. Em seguida, as disposições gerais contidas no Título IV,
alude que seus princípios e as observações da lei, pelas instituições de saúde e profissionais
da área de saúde.
Logo, percebemos a grande valia da criação do Projeto-Lei 7633/14 com o objetivo
de sanar o caos na seara obstétrica no combate e enfrentamento à violência na assistência à
saúde da mulher, no que concerne o exercício reprodutivo ou sexual. Todavia, em sua
criação não foram observados minuciosamente o importante Dossiê da Rede parto do
Princípio, na qual deveria ser utilizado como material base para a criação do Projeto-Lei,
tendo em vista que, ele abordava a temática e já subsistia antes do Projeto-Lei.

CONCLUSÕES

A violência no parto é uma preocupação atual, visto que o cenário da assistência no


parto demanda uma análise urgente e a implementação de medidas fiscalizadoras de
combate, a fim de modificá-lo e propiciar melhorias na saúde reprodutiva da mulher.
Neste sentido, a assistência ao parto deve ocorrer de forma mais natural possível
utilizando procedimentos adequados e, intervindo nos casos de complicações no parto. Por
isso, há necessidade da implementação da humaniza na assistência, vez que esta oferecer
assistência digna, ética, solidaria à parturiente e ao neonato.
O Dossiê Parirás com Dor nos elucidou a existência da violência obstétrica no
Brasil, bem como destacou a lacunosidade da legislação. Todavia, para solucionar a
insegurança jurídica da problemática, tramita no congresso nacional o Projeto-Lei n°
7633/14 que respalda a humanização da assistência à mulher e do neonato, responsabiliza
aqueles que praticam atitudes desumanas na assistência e cria meios para o enfrentamento
da violência. Portanto, oportuna a criação dessa lei.
Destarte, compreendemos que a violência obstétrica deve ser combatida, aliás, toda
e qualquer desigualdade de gênero e violência. Portanto, a reflexão do atual modelo
obstétrico e da ausência de lei que verse sobre a temática é primordial para o
enfrentamento de impunidade a possíveis violações ao exercício reprodutivo, incidindo
negativamente na saúde da mulher bem como inflamando o principio da dignidade da
pessoa humana. Dessa maneira, é imprescindível a fiscalização na assistência ao parto, o
reconhecimento jurídico da violência obstétrica, bem como ajustes de algumas
lacunosidade apontadas neste estudo.

REFERÊNCIAS

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Guilherme Laurito Summa. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

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editores LTDA, 2012.

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ugal.com/primeira-serie/portaria-n-o-466-h-2000-saudecursodisposto-licenciatura-146071.
Acesso em: 28 de setembro de 2016

BRASIL. Portaria de nº 1.459 de 24 de junho de 2011. Disponível em:http://bvsms.sa


ude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html.Acesso em: 28 de detembro de
2016.

Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher,


1994.

Convenção Sobre A Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher,


1979.

DESLANDES, Suely Ferreira (org.) Humanização dos cuidados em saúde: conceito,


dilemas e práticas. Coleção Criança, Mulher e Saúde 1.Humanismo.2 Assistência à saúde.
3. Relações médico-paciente. 4. Saúde da mulher. 5. Saúde infantil. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 2006. p. 416.

DOSSIÊ HUMANIZAÇÃO DO PARTO. Rede Nacional Feminista de Saúde. Direitos


Sexuais e Direitos Reprodutivos. São Paulo, 2002. p. 40. Disponível em:http://www.rede
saude.org.br/home/conteudo/biblioteca/biblioteca/dossies-da-redefeminista/015.pdf.Acesso
em: 19 de outubro de 2016.

FORTES, Paulo Antônio de Carvalho; ZABOLI, Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli
(orgs.) Bioética e Saúde Pública. Centro Universitário São Camilo. São Paulo: Loyla,
2003, p. 167.

KANT, Immanuel (1724-1804). A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini.


Bauru/São Paulo: EDIPRO, 2003. Disponível em:https://saudeglobaldotorg1.files.wor
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dezembro de 2016.

PARTO DO PRINCÍPIO. Violência Obstétrica: Parirás com Dor, 2012. Disponível


em:http://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf
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RIOS, Izabel Cristina. Caminhos da humanização na saúde: prática e reflexão. São Paulo:
Áurea, 2009.

VADE MECUM, Saraiva. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração
de Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti. 17.ed.atual , e ampl. São Paulo:
Saraiva ,2014.
DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E SEXUALIDADE: A CONSTRUÇÃO
DO DESEJO COMO ANORMALIDADE
Gabriel Carlos da Silva Carneiro Maranhão36
Marina Reis de Souza Guerra de Andrade Lima37
Tatiana Craveiro de Souza38

GT: Gênero, Sexualidade E Direitos Humanos


Resumo: o presente artigo tem o intuito de refletir como a sexualidade das pessoas com
deficiência intelectual ainda permanece um tabu no seio social, a partir de discursos que ora
invisibilizam ora rejeitam o desejo sexual entre indivíduos deficientes. A partir do pensamento de
autores como Michel Foucault, Jeffrey Weeks e Gayle Rubin, o enfoque principal será
perceber como a lógica de normalização da sexualidade se opera, categorizando os indivíduos em
―normais‖ e ―anormais‖, segundo uma hierarquia de práticas sexuais. Este estudo traz à tona o caso
da blogueira de moda pernambucana Julia Salgueiro para analisar como o preconceito em torno do
desejo dos deficientes intelectuais, em pleno século XXI, impõe o silenciamento da sexualidade
desses indivíduos, tratando-a como imprópria, imoral, inaceitável. Com isso, há o reforço da
marginalização e exclusão histórica desse grupo social, intensificando os estigmas voltados àqueles
que não se enquadram no padrão de indivíduo ―saudável‖ ou ―sem problemas‖.

Palavras-chaves: Deficiência. Sexualidade. Discriminação. Direito Humanos.

Introdução – Precisamos falar sobre deficiência e sexualidade


Basta uma simples consulta ao dicionário Aurélio39 para perceber que na própria
definição do vocábulo ―deficiência‖ o mais frequente é notar o uso recorrente de palavras
como insuficiência, falta, imperfeição. São sinônimos que carregam consigo o poder dos
estereótipos em torno das pessoas tidas como ―deficientes‖. A ideia de ser ―carente de

36
Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGDH -UFPE), advogado e
jornalista, e-mail: gabrielcarlos_@hotmail.com
37
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGDH -UFPE), psicóloga,
e-mail: marina.rs@gmail.com
38
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGDH -UFPE), assistente
social; e-mail: tatianacraveiro@hotmail.com
39
Ao pesquisar na página online do Dicionário, os resultados para a palavra ―deficiência‖ foram os seguintes:
Imperfeição, falta, lacuna; 2 - Deformação física ou insuficiência de uma função física ou mental; 3 -
Imperfeição, falta, lacuna; 4 - Deformação física ou insuficiência de uma função física ou mental. Para mais
detalhes, ver o link: https://dicionariodoaurelio.com/deficiencia
algo‖ é responsável por impor a esses indivíduos uma aparência de dependentes, pessoas
que não são capazes de gerir sua própria vida.
Quando se enfoca a pessoa com deficiência, não raras vezes, há uma propensão a
conferir um tratamento indulgente, de pena. É como se houvesse uma tendência de encarar
esses cidadãos como sempre necessitado de cuidados, dependentes, inválidos. Em
contrapartida, na mente dos intitulados ―não-deficientes‖, parece passar despercebido que o
direito de almejar a felicidade e realização pessoal não deixa de ser legítimo em razão da
limitação física e/ou psíquica.
Entretanto, é preciso salientar que o termo deficiente não representa em si uma
categoria homogênea, indistinta. Como regra, os estudos científicos apontam quatro
diferentes naturezas da deficiência: 1) deficiência física: relacionada ao comprometimento
ou limitação de membro do corpo humano; 2) deficiência sensorial: relativa aos sentidos,
especialmente audição ou visão; 3) deficiência mental: que envolve transtornos
psiquiátricos e afetam a saúde mental; 4) deficiência intelectual: referente à atividade
cognitiva, intelectual do indivíduo.
A Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, ratificada pelo
Brasil em 2009, vai além ao trazer a deficiência como um conceito em evolução que
dialoga diretamente com a forma de interação entre os deficientes no seio da sociedade:
(...) a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da
interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao
ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na
sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas (BRASIL,
2009, p.2)

Neste artigo, a atenção principal volta-se especificamente aos indivíduos que


possuem alguma deficiência intelectual, a exemplo dos autistas e das pessoas com
síndrome de Down, visando perceber como o rótulo de ―deficientes‖ permite a construção
de um discurso acerca da sexualidade. Discurso esse que tende a ver o desejo sexual do
deficiente como inaceitável. Nesse sentido, a construção de uma ―incapacidade‖ própria a
esses indivíduos possui suas bases históricas, que, desde a Antiguidade, reproduzem e
atualizam argumentos que colocam os pejorativamente chamados de ―débeis mentais‖ à
margem da sociedade.
Seja por atos discriminatórios explícitos, como chacotas, insultos voltados às
pessoas com deficiência, ou por meio de omissões das instituições públicas e da própria
sociedade em enxergar para além da suposta ―incapacidade‖, tem-se como resultado uma
invisibilidade dos deficientes e a negação de qualquer direito ao exercício de sua
sexualidade. Fica claro, portanto, que, como denunciado por Michel Foucault, os
indivíduos são constantemente enquadrados em ―normais‖ ou ―anormais‖ e a partir disso
são instituídas quais práticas são ou não consideradas aceitáveis perante a moral social.
Indo ao encontro do pensamento de Foucault, este estudo pretende, inicialmente,
perceber como a lógica da sexualidade ―normal‖ foi desenvolvida paralelamente à
rotulação de outras práticas sexuais como ―inaceitáveis‖. O intuito é perceber que as
relações de poder em torno da sexualidade elegem sujeitos aptos a darem vazão aos seus
desejos sexuais e outros que devem permanecer silenciados.
Com base nessa hierarquização, a vivência plena da sexualidade para as pessoas
com deficiência ainda parece distante. Afirmar que um ―doentinho‖ poderia exercer sua
sexualidade em pé de igualdade com os ditos ―normais‖ é provocar uma reviravolta em
uma ordem social ainda pautada na normalização da sexualidade. Pela ditadura da
heteronormatividade, a sexualidade continua a pertencer ao homem branco, heterossexual e
―saudável‖. Qualquer desvio a esse modelo imposto soa como ―anormalidade‖ e passa a
ser encarado como proibido.
Para demonstrar o quão flagrante ainda é a discriminação frente à sexualidade das
pessoas com deficiência intelectual, será abordado como estudo de caso a recente
publicação, na rede social Facebook, dos comentários preconceituosos da blogueira
pernambucana Julia Salgueiro em uma foto, na qual aparecia um bebê com síndrome de
Down. A partir da discussão em torno do desejo sexual da pessoa com deficiência e dos
teóricos que trabalham com sexualidade, a exemplo de Michel Foucault, Jeffrey Weeks e
Gayle Rubin, o objetivo geral é problematizar em que medida a perpetuação de discursos
discriminatórios em torno da sexualidade da pessoa com deficiência intelectual é
responsável por manter o desejo dos deficientes em um lugar de marginalidade.
Como objetivos específicos, este artigo se propõe a perceber como, ao longo da
História, a sexualidade foi utilizada como um dispositivo histórico de poder, sendo
responsável por valorizar uns indivíduos e inferiorizar outros. Pretende-se ainda identificar
como a deficiência foi marginalizada e tida como reflexo de imperfeição e incapacidade.
A presente pesquisa, pela natureza dos dados, se classifica como qualitativa, tendo
em vista que não há intenção de criar estatísticas ou conclusões numéricas sobre o tema.
Através do método dedutivo, este artigo desenvolverá um estudo de caso, utilizando a
aplicação das teorias sobre a sexualidade para analisar os comentários da blogueira Julia
Salgueiro.
Como contribuição, procura-se caminhar na contramão de uma visão das relações
sexuais voltadas para a reprodução e manutenção de uma sociedade opressora, a fim de
destacar a importância de uma abordagem interseccional capaz de perceber a sexualidade
como parte integrante da própria subjetividade do ser humano. Sendo assim, as conclusões
deste estudo levam em conta que conhecer-se e reconhecer nos seus desejos e práticas
sexuais, é, portanto, um direito que não pode ser negado às pessoas com deficiência.

2.1 O discurso da sexualidade e a construção da anormalidade

Partindo da teoria de Michel Foucault, destrinchada no volume I da obra ―A História da


Sexualidade‖, é possível desconstruir a hipótese repressiva, segundo a qual o sexo sempre
foi um assunto abafado, proibido, sobre o qual as pessoas não podiam falar. Para Foucault,
a sexualidade deve ser compreendida como um dispositivo histórico de poder e, ao
contrário de ter sido reprimida, esteve sempre presente nas relações sociais.
Foucault defende, portanto, que, desde o século XVIII, houve uma explosão discursiva
em torno dos aspectos sexuais dos indivíduos, nos seguintes termos:

Em vez da preocupação uniforme em esconder o sexo, em lugar do recato geral


da linguagem, a característica de nossos três últimos séculos é a variedade, a
larga dispersão dos aparelhos inventados para dele falar, para fazê-lo falar, para
obter que fale de si mesmo, para escutar, registrar, transcrever e redistribuir o
que dele se diz. (FOUCAULT, 2014, p. 38)

Neste cenário de produção e reprodução do discurso sobre a sexualidade, o século


XIX é marcado pelo surgimento do ramo da sexologia e a construção de teorias médicas
sobre as perversões sexuais e o reforço do padrão monogâmico heterossexual voltado à
reprodução. Tudo que estivesse fora desse eixo recebia o rótulo de ―anormal‖, patológico.
Ao longo do século, multiplicaram-se as pesquisas científicas voltadas a identificar e
catalogar as perversões sexuais. Cresce, nessa época, uma intensa preocupação com a
sexualidade das mulheres, das crianças e dos ―pervertidos‖.
Foucault salienta que é no contexto do final do século XIX, que surge a figura do
homossexual como ―espécie‖ (FOUCAULT, 2014, p. 48). Até então, as relações sexuais
envolvendo pessoas do mesmo sexo eram enquadradas como sodomia e concernentes à
vida privada. Com o advento da tendência a patologizar a sexualidade, surge uma
necessidade de enquadrar os indivíduos em ―normais‖ ou ―anormais‖, a partir de suas
práticas sexuais. O homossexual como ―espécie‖ se apresenta, por assim dizer, como a
grande ameaça ao discurso de normalização da sexualidade.
Fica evidente, a partir do discurso médico, a tentativa de controlar todos os
impulsos sexuais que não estivessem pautados em uma relação marital heterossexual para
reprodução humana. Mais do que um controle, os especialistas da época procuram
―consertar‖ aqueles que possuíam uma sexualidade desviante. O caso mais emblemático
foi da hermafrodita Herculine Bardin que, tendo sido criada como ―menina‖ durante a
infância, foi forçada, após processo judicial, a assumir uma identidade masculina e
comportar-se como um ―verdadeiro rapaz‖. Não se adaptando à modificação, cometeu
suicídio.
Na análise do sociólogo e historiador Jeffrey Weeks, o caso de Bardin apenas
confirma a necessidade de se impor um modelo padrão para a sexualidade. Nesse contexto,
a obsessão pelas perversões sexuais se justifica pelo fato de que definir a ―anormalidade‖
faz-se indispensável para sedimentar a própria ideia de que existe um comportamental
sexual amparado pelo moral social.

(...) Esse caso deveria ser visto como símbolo de um processo mais amplo: um
processo completamente interconectado, pelo qual a definição precisa das
―verdadeiras‖ características femininas e masculinas está aliada a um novo zelo
em definir, nos discursos judiciário, médico e político, o que é ―normal‖ ou
―anormal‖. De fato, ao definir o que é anormal (uma moça com evidências
corporais de masculinidade, neste caso), tornou-se plenamente possível tentar
definir o que é verdadeiramente normal (uma plena correspondência entre o
corpo e a identidade de gênero socialmente aceitável) (WEEKS, 2000, p.
44).
Para Foucault, a criação das perversões sexuais surge como instrumento para
ampliar as relações de poder pautadas pela sexualidade, salientando que:

A implantação das perversões sexuais é um efeito-instrumento: é através do


isolamento, da intensificação e da consolidação das sexualidades periféricas que
as relações do poder com o sexo e o prazer se ramificam e multiplicam, medem o
corpo e penetram nas condutas (FOUCAULT, 2014, p. 54).

Nessa perspectiva de comportamentos sexuais ―anormais‖, os sujeitos que não se


encaixam no padrão social imposto, passam a ser estigmatizados e, a partir daí, surgem os
processos de exclusão. A sexualidade constitui um argumento para intensificar a
hierarquização social e fortalecer as relações de poder. A rejeição do prazer sexual dos
homossexuais, das mulheres, dos ―loucos‖ corrobora a estratégia de definir um
comportamento sexual aceitável, legítimo, normal.

2.2 Pessoas com deficiência e o histórico de marginalização

Quando se analisa o lugar na sociedade conferido às pessoas com deficiência, não é


frequente notar uma efetiva participação, inclusão nos espaços sociais. Ao longo da
História, os processos de exclusão desses indivíduos estiveram extremamente relacionados
ao estereótipo da imperfeição, deformação.
Na Grécia Antiga, por exemplo, a presente dicotomia entre o ―belo‖ e o ―feio‖ e a
influência das figuras míticas dos deuses como imagem e semelhança dos seres humanos
repercute numa necessidade de preenchimento de requisitos para aceitação social. Aos
deficientes era conferido tratamento diferenciado por representarem a face imperfeita do
humano.
No que concerne ao período da Idade Média, quando um recém-nascido possuía
alguma deficiência era tido como ―deformado‖ e, na maioria dos casos, acabava por ser
abandonado pelos seus familiares. Para a época, “O nascimento de indivíduos com
deficiência era encarado como castigo de Deus; eles eram vistos como feiticeiros ou como
bruxos. Eram seres diabólicos que deveriam ser castigados para poderem se purificar”
(FERNANDES; MOSQUERA e SCHLESENER, 2011, p. 134)
Trazendo à discussão para o século XX, as atrocidades no contexto da Segunda
Guerra Mundial, pautadas numa superioridade da “raça ariana”, foram responsáveis por
vitimar aproximadamente 275 mil pessoas com deficiência, entre adultos e crianças. O
escancaramento dos horrores do regime nazista e fascista no pós-guerra teve como efeito
o despertar da preocupação com os Direitos Humanos, a exemplo da criação da ONU, em
1945, e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
É a partir da segunda metade do século passado, mais especificamente na década
de 1970, que surgem os movimentos sociais de defesa das pessoas com deficiências,
compostos e dirigidos por indivíduos deficientes. No ano de 2006, houve a adoção da
Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, ratificado
pelo ordenamento brasileiro em 2009.
Cabe salientar, entretanto, que no Brasil, até 2015, a limitação cognitiva de uma
pessoa teria o condão de classificá-la, segundo o Código Civil de 2002, como
absolutamente ou relativamente incapaz. Assim, o exercício de direitos de um deficiente
não poderia ser possível sem a intervenção de um representante ou assistente legal.
A promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em vigor desde 2016,
rompeu, ao menos do ponto de vista legal, o vínculo entre deficiência e incapacidade. Pelo
novo diploma legal, a deficiência, por si só, não pode ser utilizada como argumento para
declarar a incapacidade civil de um indivíduo.
O texto do Estatuto traz expressamente a necessidade de se garantir os direitos
fundamentais das pessoas com deficiência e as considera, em regra, plenamente capazes,
inclusive para o exercício da sexualidade. É o que se pode extrair do art. 6º, da lei:

Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive


para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a
informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou
adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas (BRASIL,
2015, p. 1226) Grifos Acrescidos.

O Estatuto traz ainda como importante contribuição o dever do Estado em garantir


às pessoas com deficiência o exercício de direitos e liberdades fundamentais com intuito de
promover a inclusão social e cidadania. Mais especificamente no Capítulo II, intitulado
―Da Igualdade e da não Discriminação‖, o legislador assevera que deve ser assegurada a
pessoa com deficiência a igualdade de oportunidades e a ausência de qualquer tipo de
discriminação em razão da limitação física e/ou psíquica.
A sexualidade e as relações afetivas voltam a ganhar menção expressa no art. 8º, do
referido Capítulo quando o Estatuto elenca direitos que devem ser assegurados aos
deficientes, nos seguintes termos: ―É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar
à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à
saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à
educação (...)‖ (BRASIL, 2015, p.1226) Grifos Acrescidos.
Pelo conteúdo do artigo acima destacado, fica evidente que a partir da promulgação
do Estatuto, as pessoas com deficiência, sempre que possível, têm a mesma legitimidade
para o exercício da sua sexualidade como qualquer outro cidadão. Por assim dizer, à luz do
Direito brasileiro, negar a possibilidade de os deficientes efetivarem o seu direito à
sexualidade, em razão exclusivamente da sua limitação cognitiva, constitui lesão ao
princípio da igualdade e flagrante discriminação que deve ser coibida pelo ordenamento
pátrio.
Apesar do aparente avanço legislativo, o reconhecimento da sexualidade das
pessoas com deficiência está longe de ser uma unanimidade social. Há quem considere
inadequado aceitar as relações afetivo-sexuais entre indivíduos que não possuem o devido
―discernimento‖ para tanto. Novamente, impõe-se o discurso que insiste em considerar os
deficientes intelectuais como um grupo homogêneo, seres humanos que não são capazes de
alcançar a independência e se relacionar afetivamente. Em outras palavras, o sexo entre
pessoas com deficiência não se enquadra no padrão de normalidade, e assim é considerado
como proibido, perigoso e motivo de desaprovação social.
O preconceito e a discriminação voltados às indivíduos com deficiência constroem
barreiras para que essas pessoas possam exercer a sua sexualidade, assim como os ditos
―normais‖. A maioria dos argumentos se baseia em ―mitos‖ que colocam as pessoas com
deficiência em patamar de inferioridade e renegam o desejo sexual de quem possui alguma
limitação intelectual:
Um deles [dos mitos], relacionado principalmente a pessoas com deficiência
intelectual, é o de que pessoas com deficiência são hipersexuadas, apresentando
desejos incontroláveis e exacerbados. Outro é o de que pessoas com deficiência
são pouco atraentes, indesejáveis e incapazes de manter um relacionamento
amoroso e sexual. Também está presente o mito de que pessoas com deficiência
são estéreis, geram filhos com deficiência ou não têm condições de cuidar deles,
além da ideia identificada nos estudos de Tepper (2000) de que pessoas com
deficiência não conseguem usufruir o sexo normal e têm disfunções sexuais
relacionadas ao desejo, à excitação e ao orgasmo (GESSER;
NUERNBERG, 2014, p. 853).

Sendo assim, um passo fundamental para enfrentar o estigma da anormalidade


voltado à pessoa com deficiência é identificar como, por meio do discurso de uma
normalização, a discriminação se manifesta no seio social e quais os argumentos
reproduzem o estigma de uma sexualidade das pessoas com deficiência como inaceitável.

2.3 Sexualidade “normal” X sexualidade “anormal”: o caso da blogueira Julia Salgueiro

O preconceito em torno da sexualidade das pessoas com deficiência intelectual, longe de


ser uma problemática superada, ainda é responsável por discursos discriminatórios, mesmo
depois de quase dois séculos do pensamento científico que categorizava os indivíduos de acordo
com os seus desejos e práticas sexuais. Não é à toa que, como bem aponta o filósofo Sandro
Sayão, “há algo nas regras de interdição que decaem sobre o tema da sexualidade e no próprio
modo como este é tratado pela sociedade de um modo geral, que mostram uma fundamental
alergia e indiferença para com as questões da alteridade (...)” (SAYÃO, 2014, p. 136).
A intolerância para o “diferente” continua sendo motivo para a perpetuação de atitudes
de desrespeito e discriminação seja velada ou explícita. Para aqueles que propagam os discursos
de ódio, a ideia de igualdade não é bem vista, como bem ressalta Jayme Benvenuto, ao analisar o
pensamento dos teóricos Grenz e Rorty:
(...) em razão da percepção de que algumas pessoas se sentem “ofendidas com
a sugestão de tratar pessoas que elas não reconhecem como humanas como se
fossem humanas” (Grenz, 1996, p. 127). Para Rorty, muitas pessoas,
particularmente aquelas que não se deixaram tocar pelo Iluminismo,
simplesmente não admitem a ideia de igualdade na prática e para todos.
(BENVENUTO, 2015, p. 128-129)

Ao se perceberem como adequados ao ―padrão de normalidade‖, alguns indivíduos


se sentem legitimados a apontar as características no outro que o tornam inferiores e
indignos de tratamento e garantia de direitos iguais. Neste ano de 2017, uma publicação
nas redes sociais ganhou repercussão, especialmente no estado de Pernambuco, por retratar
a discriminação das pessoas com deficiência intelectual, mais especificamente com os
indivíduos com síndrome de Down, trazendo à tona a incompreensão quanto à sexualidade
dos deficientes.
No dia 21 de março, conhecido como Dia Internacional da Síndrome de Down, em
meio às mensagens comemorativas da data, um comentário feito pela blogueira de moda
pernambucana Julia Salgueiro chamou atenção da mídia pelo conteúdo preconceituoso
dirigido às pessoas com deficiência. Em uma foto que mostrava um bebê Down de 11
meses na rede social Facebook, Julia fez os seguintes comentários: ―É que nem filhote de
cachorro. Lindos quando são pequenos mais quando crescem só pensam em trepar‖. E
logo em seguida, acrescentou: ―Vai sair um monte de filho toin ton. Não vale aquela dos
zumbis. Sei que apesar de ser muito filosófica, ela é nojenta (assim como sexo entre
deficientes mentais)‖40.
A partir das postagens da blogueira, é possível levantar a discussão de como a
anormalidade do desejo sexual dos deficientes é um argumento ainda utilizado para
perpetuar a ideia de uma sexualidade ―saudável‖. Esse um comentário grosseiro e
discriminatório isolado, revela, em segundo plano, a reprodução de uma hierarquia em
torno da sexualidade que não permite aos deficientes intelectuais a expressão do desejo.

40
O conteúdo das postagens foi extraído da reportagem publicada no site do jornal Diario de Pernambuco
em 27/03/2017. O texto original dos comentários na rede social Facebook foi excluído por Julia Salgueiro
devido à repercussão midiática do caso. Para acessar a matéria na integra, ver link
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-
urbana/2017/03/27/interna_vidaurbana,696094/blogueira-processada-por-injuria-se-diz-arrependida-de-
comentario-prec.shtml
De antemão, é importante salientar que, segundo o Estatuto da Pessoa com
Deficiência (Lei 13.146/2015), as publicações de Julia Salgueiro configuram crime
previsto no art. 88, já que o dispositivo legal pune quem ―praticar, induzir ou incitar
discriminação de pessoa em razão de sua deficiência‖ (BRASIL, 2015, p.1235). No caso
aqui analisado, o crime ainda teria a pena agravada por ter envolvido uma publicação,
como bem ressalta o parágrafo 2º do mesmo dispositivo:

Art. 88. Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua


deficiência:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
§ 1o Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço) se a vítima encontrar-se sob cuidado
e responsabilidade do agente.
§ 2o Se qualquer dos crimes previstos no caput deste artigo é cometido por
intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer
natureza:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (BRASIL, 2015, p.
1235)
Grifos Acrescidos
Em que pese o enquadramento jurídico próprio, uma análise mais atenta ao
conteúdo das mensagens contribui para perceber como a discriminação ainda é flagrante
quando se relaciona o tema da sexualidade com a deficiência cognitiva ou intelectual,
sendo responsável por reproduzindo mitos e preconceitos.
No primeiro comentário, ao publicar que as pessoas com síndrome de Down,
quando adultas, ―só pensam em trepar‖, tem-se o reforço da necessidade de ver a
sexualidade na deficiência como algo patológico. Seguindo esse raciocínio, os deficientes,
por não terem o discernimento completo, são vistos incapazes de controlar os seus
impulsos sexuais. O descontrole em relação ao sexo se mostra, por assim dizer, uma
justificativa para o controle da sexualidade da pessoa com deficiência.
A lógica do deficiente como incapaz e dependente se revela no trecho em Julia
Salgueiro compara o bebê com Down ao filhote de cachorro. Aqui fica claro que seria
intrínseco ao indivíduo com deficiência um desejo irracional. Há o reforço dos ―mitos‖ em
torno da prática sexual entre pessoas deficientes intelectuais que repercute em uma
reprovação por parte da sociedade. Sobre a necessidade de ir de encontro a esses
preconceitos, ressaltam os pesquisadores Ana Cláudia Bortolozzi Maia e Paulo Rennes
Marçal Ribeiro:
Conhecer e esclarecer os mitos e idéias errôneas sobre sexualidade de pessoas
com deficiências é uma tarefa importante porque essas crenças podem afetar a
todos, quando por meio delas se incentivam as relações de discriminação e de
dominação que podem ocorrer entre não-deficientes sobre os deficientes, entre
homens com deficiência sobre as mulheres com deficiência, entre pessoas com
deficiências menos comprometedoras sobre as que têm maior comprometimento
etc. Anderson (2000), Baer (2003) e Kaufman, Silverberg e Odette (2003)
argumentam que se essas crenças são assimiladas por pessoas deficientes isso
poderá aumentar seus sentimentos negativos de desvalia e inibir a expressão de
uma sexualidade favorável. (BORTOLOZZI; RIBEIRO, 2010, p. 163)

Ao mencionar que por meio das relações sexuais entre indivíduos com síndrome de
Down ―vai ser um monte de filho toin toin‖, cabe destacar a preocupação com a
―reprodução saudável‖ da espécie humana e a reafirmação da função geracional do sexo.
Nas palavras de Foucault tal preocupação tem suas origens na relação entre sexo, biologia
e hereditariedade:

(...) a análise da hereditariedade colocava o sexo (as relações sexuais, as doenças


venéreas, as alianças matrimoniais, as perversões) em posição de
―responsabilidade biológica‖ com relação à espécie; não somente o sexo podia
ser afetado por suas próprias doenças, mas, se não fosse controlado, podia
transmitir doenças ou criá-las para as gerações futuras; ele aparece, assim, na
origem de todo o capital patológico da espécie. (FOUCAULT, 2014, p.128)

Seguindo essa lógica, por não servir a uma lógica reprodutiva, a sexualidade da
pessoa com deficiência torna-se objeto de controle que procura marginalizar o desejo que
não se enquadra na lógica heterossexual marital, cujo objetivo primordial é a procriação.
Nessa esteira, a ideia de indivíduos ―doentinhos‖ gerando filhos também ―doentinhos‖
surge como uma ameaça à sexualidade ―normal‖. Nesse sentido, Gay Rubin, no artigo
―Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da sexualidade‖, ressalta que
―muitos dos discursos sobre o sexo sejam eles religiosos, psiquiátricos, populares ou
políticos, delimitam uma porção muita pequena da capacidade humana como consagrada,
segura, saudável (...)‖ (RUBIN, 2003, p. 15-16).
Na última parte da postagem, a menção a uma suposta natureza ―nojenta‖ do sexo
entre ―deficientes mentais‖ sugere uma possibilidade de estratificação das práticas sexuais.
Por assim dizer, segundo os estudos de Rubin, através da hierarquização sexual,
estabelece-se uma linha imaginária entre o bom e o mau sexo. Os atos que estão do lado
ruim da linha divisória são caracterizados como repulsivos e tidos como má-experiência,
―são entendidos como o trabalho do demônio, perigosos, psicopatológicos, infantis, ou
repreensíveis politicamente‖ (RUBIN, 2003, p. 16).
Na contramão da visão dualista sobre a sexualidade, a preocupação de Rubin com
uma análise progressista da sexualidade ainda se mostra extremamente atual e necessária.
Pelo menos em matéria de deficiência intelectual persiste a concepção de que qualquer
relação afetiva e sexual envolvendo duas pessoas deficientes é problemática e tal
entendimento só corrobora o argumento de que os atos sexuais são avaliados de acordo
com um sistema hierárquico de valores sexuais, no qual ―heterossexuais maritais e
reprodutivos estão sozinhos no topo da pirâmide erótica‖ (RUBIN, 2003, p. 13-14).

Considerações Finais – a necessidade de um olhar interseccional às pessoas com


deficiência intelectual

Partindo da premissa apontada por Rubin de que ―as formas institucionais concretas
da sexualidade em um determinado tempo e lugar são produto da atividade humana‖
(RUBIN, 2003, p. 1), uma revisão acerca dos paradigmas da heteronormatividade incluiria
também uma melhor compreensão da sexualidade das pessoas com deficiência.
Na tentativa de romper com a noção de uma sexualidade ideal, o desejo das pessoas
com deficiência cognitiva carece de uma maior reflexão dentro dos estudos sobre as
opressões sociais das minorias políticas. Mesmo quando as pesquisas procuram enfatizar a
deficiência, o resultado obtido ainda é uma construção dos deficientes baseada
exclusivamente na deficiência. Tal dificuldade já foi apontada por Virgínia L. Olense
quando analisa os estudos feministas:

Ao elaborarem resenhas que tratam do surgimento do tema das mulheres


portadoras de deficiência como uma questão problemática para as feministas,
Asch e Fine (1992) chamaram atenção para o fato de que até mesmo as
pesquisas que se solidarizavam com o tema das mulheres portadoras de
deficiência estavam inclinadas a enxergar essas mulheres exclusivamente em
termos de suas deficiências, ignorando seus papéis de trabalhadoras,
amantes, mães, amigas, esportistas e ativistas (OLENSE, 2010, p. 225).
Grifos Acrescidos
A proposta de uma análise interseccional das opressões sociais se mostraria
inteiramente cabível para perceber as opressões sociais em torno da deficiência. Como
acréscimo aos eixos centrais de classe, gênero e raça, a pesquisadora Patrícia Mattos traz à
tona a necessidade de se perceber novos eixos de desigualdade para uma melhor
compreensão das relações de poder e dominação. Sobre essa proposta, a autora salienta:

Há um consenso entre os/as pesquisadores/as das áreas referentes aos estudos de


gênero, Queer Studies, teoria social e da sociologia, da desigualdade a respeito
da necessidade de incorporação de vários ―eixos da desigualdade‖ ou ―eixos da
diferença‖ para o desenvolvimento de pesquisas sobre as relações dominação e
de opressão na modernidade tardia. (MATTOS. 2011, p. 4)

Entretanto, por mais urgente que seja a produção das pesquisas acadêmicas pelo
viés da interseccionalidade, a própria Mattos salienta a existência de um ―déficit teórico
central‖, que resulta em pesquisas concentradas em apenas um dos níveis de investigação,
no máximo dois. Sendo assim, não é tão comum deparar-se com estudos que incluam uma
análise da sexualidade das pessoas com deficiência como foco central da pesquisa.
A percepção da deficiência como eixo de desigualdade, portanto, se revela
extremamente salutar para a desconstrução de uma sexualidade dissidente desses
indivíduos. Uma maior percepção dos pesquisadores e pesquisadoras sobre a construção do
desejo sexual dos deficientes intelectuais contribuiria para desconstruir uma ideia de
―anormalidade‖. Não se trata de investigar a deficiência pelos seus aspectos médico,
patológico, mas estimular, no campo das Ciências Sociais, o interesse por desmistificar
uma sexualidade anómala dos deficientes.
Como bem afirma Mattos, um olhar mais atento às categorias de diferenciação
―permite que se tornem visíveis as construções dos eixos das diferenças, que são
naturalizadas e hierarquizadas nas relações, práticas sociais e institucionais, gerando, das
mais variadas formas, exclusão social, dor e sofrimento‖ (MATTOS, 2011, p. 21). Ampliar
a construção de um conhecimento interseccional em prol das pessoas com deficiência é
salutar para perceber os meandros da discriminação voltada a esses indivíduos e como tal
segregação se relaciona com as categorias de raça, gênero, classe social e orientação
sexual.
É necessário o incentivo a pesquisas que procurem dar voz às pessoas com
deficiência, e que possam respeitar o ―lugar de fala‖ desses indivíduos para perceber quais
as dificuldades encontradas por eles para expressar a sua sexualidade. São indispensáveis
estudos acadêmicos que discutam a orientação sexual das pessoas deficientes não como
algo anormal ou patológico, mas como um campo de possibilidades que não pode ser
negligenciado pela existência de uma limitação intelectual.
Portanto, a desconstrução do discurso de anormalidade quanto à sexualidade das
pessoas com deficiência precisa ser reforçada através do entendimento de que ser
deficiente intelectual não exclui a busca pelo desejo e pelo prazer. É preciso perceber esses
indivíduos para além de suas limitações. Retomando as ideias do filósofo Sandro Sayão:

(...) se falamos aqui em sexualidade, nos seus interditos, nos discursos que são,
na verdade, dispositivos de poder, falo agora da necessidade de se estar junto e
observar como, no fundo, o que todos almejam é uma vida feliz e que para nos
aproximarmos da felicidade é preciso desagregar verdades, encontrar o outro e
desmistificar identidades. (SAYÃO, 2014, p. 155)

Sendo assim, a possibilidade de construir a afetividade não pode está atrelada ao


fato de alguém ser ou não deficiente. Uma limitação cognitiva não necessariamente
inviabiliza a construção da subjetividade e do interesse sexual. Esse raciocínio de
―anormalidade‖ só persiste porque o olhar para o deficiente tende a maximizar a
deficiência, sem perceber que, por trás dela, mora um ser humano que pede para ser visto,
ouvido e respeitado.
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2207-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em 28 de
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pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, Editora Autêntica. 2013.
A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA COMO VIOLAÇÃO À DIGNIDADE SEXUAL
FEMININA

Joanne Suzanil de Lima Alves41


Maria Simone Gonzaga de Oliveira42
Lorenna Verally Rodrigues dos Santos43

GT 2: Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos

RESUMO

Entre os novos desafios da globalização, encontra-se, lidar com determinadas condutas difundidas
no ciberespaço, tal qual a violência de gênero na figura da pornografia de vingança Foram
estudadas as interfaces entre gênero e a pornografia de vingança, fundamentada a partir de
Beauvoir (1970), Neto e Gurgel (2014). Foi utilizado o método de pesquisa fenomenológico,
abordagem qualitativa, tipo de pesquisa descritiva e exploratória, coleta de dados bibliográfica e
exploração dos dados através da análise de conteúdo. Fora verificado que a globalização e a
consequente consolidação da sociedade da informação e evolução digital, pressionaram o direito
penal a evoluir para atender os anseios e necessidades do novo contexto social, no entanto, apesar
do desenvolvimento do Direito Penal em relação ao crime no ciberespaço, este ainda não é
suficiente no combate às dificuldades encontradas, como a incapacidade técnica de apuração dos
crimes virtuais, o surgimento de novas condutas criminosas, e principalmente, a garantia dos
direitos sociais de cada indivíduo.

Palavras-chave: Pornografia de vingança, Violência de gênero, Ciberespaço, Globalização.

41
Graduada em Direito no Centro Universitário do Vale do Ipojuca - DeVry|UNIFAVIP. Extensionista no
DHiálogos: ―Ciclo de Debates Sobre Sociedade e Direitos Humanos‖. Pesquisadora voluntária e
extensionista no GEPIDH Mércia Albuquerque. E-mail: jsuzanil@gmail.com
42
Maria Simone Gonzaga de Oliveira, aluna Especial do Mestrado em Direitos Humanos – UFPE. Graduada
em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP|DeVry. MBA em Gestão Pública pelo
Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP|DeVry. Pesquisadora e extensionista no GEPIDH
Mércia Albuquerque. Extensionista no DHiálogos: ―Ciclo de Debates Sobre Sociedade e Direitos
Humanos‖.E-mail: Simone.gonzaga@outlook.com.br
43
Pós-Graduanda no curso Direito Processual Civil pela ESA/ OAB-PE. Graduada em Direito pelo Centro
Universitário do Vale do Ipojuca – DeVry|UNIFAVIP. Pesquisadora Voluntária no GEPIDH Mércia
Albuquerque. E-mail: lorennaverallyrds@gmail.com
INTRODUÇÃO

A evolução tecnológica originou o informacionalismo, que consequentemente se


tornou base da nova sociedade, onde a comunicação aberta e a liberdade individual se
tornaram supremas.
Com a globalização a tecnologia passou a representar papel principal em todos os
aspectos no contexto social atual, estruturando uma nova concepção de sociedade, a
sociedade em rede, onde a tecnologia da informação caracteriza-se como peça chave para o
desenvolvimento social, cultural e econômico.
Apesar de todos os benefícios proporcionados pela evolução tecnológica à
sociedade, o universo virtual, especificamente, por proporcionar essa comunicação fluida a
nível global, também proporciona ao mundo do crime uma atuação silenciosa e muitas
vezes quase inalcançável pelo direito penal, visto a vastidão encontrada no ciberespaço, e,
principalmente, nas suas profundezas.
Com o ambiente favorável, graças à consolidação da internet, para a expansão das
atividades criminosas, não apenas foi facilitado o cometimento de crimes, como também o
surgimento de uma infinidade deles. A Revenge Porn ou, traduzindo, Pornografia de
Vingança é vista como mais um fruto ruim gerado da mecânica do crime na internet, que
se apresenta como prejudicial à dignidade, à honra e a imagem da pessoa humana.
No respectivo trabalho foi analisado acerca da perspectiva da globalização, a
evolução das práticas que violam a liberdade sexual da mulher, observando a conduta da
Revenge Porn, como mais uma destas práticas abusivas e atentatórias contra a mulher.
Observa-se que tal prática é consequência da sociedade patriarcal e machista em
que vivemos e aliada a ausência de normativa específica que buscasse coibir a propagação
desta conduta atentatória à figura feminina.
Este artigo tem como objetivo analisar a conduta da Pornografia de vingança no
ciberespaço como violadora da dignidade sexual feminina, verificando-se também as
decisões judiciais acerca do tema estudado.
O método de pesquisa utilizado será o do estudo fenomenológico, buscando relatar
os fenômenos como acontecem na realidade social e como estes são interpretados,
analisando-se as várias interpretações.

De acordo com Gil:

Nas pesquisas realizadas sob o enfoque fenomenológico, o pesquisador


preocupa-se em mostrar e esclarecer o que é dado. Não procura explicar
mediante leis, nem deduzir com base em princípios, mas considera
imediatamente o que está presente na consciência dos sujeitos (1999, p.32).

Para o pesquisador que aborda esse método em sua pesquisa, o que importa é
proporcionar uma descrição direta da experiência ―o modo como o conhecimento se dá‖
(GIL, 1999, p.33).
Será desenvolvida a pesquisa dentro da abordagem qualitativa, analisando o
problema através de uma investigação mais profunda, constando-se alta carga de
subjetividade.
A pesquisa será descritiva, uma vez que será pautada na técnica de coleta de dados
através da análise documental, observando, registrando e analisando o fenômeno
pesquisado, uma vez que ―as pesquisas descritivas têm como objetivo primordial a
descrição das características de determinada população ou fenômeno ou, então, o
estabelecimento de relações entre variáveis‖ (GIL, 2008, p.42).
Ainda de acordo com Gil (2008, p.42) a pesquisa exploratória busca ―proporcionar
maior familiaridade com o problema (explicitá-lo). Pode envolver levantamento
bibliográfico, entrevistas com pessoas experientes no problema pesquisado. Geralmente,
assume a forma de pesquisa bibliográfica e estudo de caso‖.
A técnica utilizada para análise de dados será a análise de conteúdo, visto ser
conduzida a pesquisa com descrição sistemática de dados para se chegar a uma
compreensão maior do objeto pesquisado.
O presente artigo tem como problemática compreender a abordagem do crime de
Pornografia de Vingança sob a ótica da violência contra a mulher.
Para concluir, resta evidenciado que quando exposto o material íntimo, não é
causado apenas prejuízo a moral da vítima, mas sim a todo o seu cotidiano, pois são
abaladas suas relações pessoais, profissionais e, principalmente, seu estado psicológico.
Trata-se de situação que pode causar prejuízo, na maioria das vezes, permanente.

DESENVOLVIMENTO
As Condutas Violadoras à Liberdade Sexual no espaço virtual

A falta de fronteiras do mundo virtual não permite a atuação eficaz, onde ―leis
materiais e processuais dos Estados, concebidas para atuarem dentro de limites territoriais,
perdem a efetividade‖ (BADDAUY, 2009, p. 1763).
Pode ser verificado que os meios virtuais são utilizados muitas vezes com a ideia
deturpada de propagar a liberdade de expressão, mas, no entanto, acabam violando o
direito à intimidade e a privacidade do outro. Os direitos da personalidade se encontram
desprotegidos e vulneráveis diante da difícil tarefa de limitar o que é privado e o que é
público no mundo virtual.
Com o desenvolvimento das mídias digitais, e em especial a internet, ―O Estado
perdeu o controle da informação, importante forma de conter as forças criminosas, o que
fragilizou a segurança internacional‖ (MARWELL, 2011, P. 04). A globalização
tecnológica deu margem ao surgimento de uma diversidade de crimes, onde qualquer
indivíduo pode se tornar vítima ou criminoso.

De acordo com Bruno:


A consolidação da internet, a tecnologia da informação e a globalização
tecnológica, tem nos trazido inúmeros benefícios e possibilidades no dia a dia,
mas nem todo avanço da tecnologia está livre de contratempos, especialmente
quando somado a estupidez humana, e esse é também o caso da web, pois
estamos nos deparando com incontáveis malefícios diretamente ligados a
dignidade, a intimidade, a honra e a imagem da pessoa humana (2015, p. 01).

De acordo com Gasparian ―A questão da privacidade, no mundo virtual, adquire


então uma dimensão maior: a privacidade na Internet é mais privativa do que no mundo
real, e sua violação representa um enorme dano, como se a invasão operasse no ego da
própria pessoa‖ (2003, p. 37).
A pornografia de vingança surgiu como a mais nova e popular espécie de crime
cometida através das mídias digitais. A pornografia de vingança apresenta-se como a
divulgação não consentida de material íntimo, fotografia ou vídeo, de conotação sexual,
divulgado na internet por parceiros ou ex-parceiros (CITRON; FRANKS apud
GUIMARÃES; DRESCH, 2014).
Diante deste debate, é importante frisar que por trás da pornografia de vingança há
um problema cultural e bem mais antigo que a globalização, sendo este a violência de
gênero, e mais precisamente, a violação à liberdade sexual feminina.
Toda essa situação de subordinação da mulher ao homem advém da história de
Adão e Eva. O homem veio primeiro, por isso deve comandar a mulher, pois esta veio
posteriormente e, principalmente, por ela ter sido criada de uma parte do seu corpo, a
costela. Ainda, a mulher é julgada como fraca, pois de acordo com a história bíblica, Eva
fora a responsável por comer da maçã da árvore proibida, e fazer com que Adão também
provasse do fruto, o que levou a expulsão de ambos do paraíso.
A mulher desde o seu nascimento, tem sua sexualidade ―anulada‖, enquanto ao
homem tem seu extinto sexual estimulado com o intuito de transforma-lo em macho alfa.
Beauvoir (1970) comenta em sua obra sobre a reação de pais e familiares acerca dos
genitais de seu filho do sexo masculino ao nascer, de sua preocupação com o tamanho do
órgão sexual e as brincadeiras tecidas, enquanto em relação à criança do sexo feminino,
―Nem mães nem amas têm reverência e ternura por suas partes genitais; não chamam a
atenção desse órgão secreto de que só se vê o invólucro e não se deixar pegar; em certo
sentido a menina não tem sexo‖ (BEAUVOIR, 1970, p. 14).
A menina é direcionada a ser a mãe perfeita, a dona de casa perfeita, a esposa
perfeita, isso acontece na sua infância no momento que ela ganha uma boneca, uma
cozinha de brinquedo entre outros utensílios do lar que a estimulam a uma vida doméstica.
Também, a garota é impulsionada a anular a sua sexualidade, é empurrada ao ideal de
repressão dos seus impulsos sexuais, pois atender a eles é tido como repugnante, denegri
sua imagem, e, no entanto, deve ser garantida a postura moral exigida dela.
Perdura a imagem da qual a mulher deve ser submissa ao homem, pois ela é
condicionada a pensar que é o ―sexo frágil‖, que não é capaz de tomar decisões sem o aval
de um homem. Por isso que ainda muitas mulheres se posicionam de forma machista em
relação à mulher vítima da pornografia de vingança.
Como suscitado por Beauvoir:
Na boca do homem o epíteto ―fêmea‖ soa como um insulto; no entanto, ele
mesmo não se envergonha da sua animalidade, sente-se antes orgulhoso se lhe
chamam ―macho‖. O termo "fêmea" é pejorativo, não porque enraíze a mulher na
Natureza, mas porque a confina no seu sexo (1970, p. 25).

Diante do discutido até agora, faz-se necessário um esclarecimento conceitual sobre


do que se trata a violência de gênero. Primeiramente, deve ser esclarecido o conceito de
gênero.
O gênero deve ser compreendido como a maneira de produzir, através da cultura, as
diversidades biológicas, bem como se dá os tratos de poder e social (NETO; GURGEL,
2014). O que os autores procuram esclarecer é que, o gênero não significa a diferença
biológica entre homem e mulher, vai além disso, pois trata-se da diferença cultural que foi
construída entre ambos.

Entender o gênero como uma construção cultural, implica superar os binarismos


baseados no sexo, isto é, nas diferenças físicas e biológicas entre macho e fêmea,
que opõem o feminino ao masculino, geralmente não em um plano de igualdade,
mas sim em uma ordem de hierarquia (NETO; GURGEL apud SCOTT, 2000, p.
13).

A violência de gênero não se encontra ligado a discriminar alguém simplesmente


pelo fato da diferença biológica, mas sim por uma questão cultural, onde é visto na grande
maioria das vezes a preponderância do pensamento masculino, em detrimento do feminino,
o que leva de fato a desigualdade das relações entre homens e mulheres.
E como a identidade de gênero é uma construção cultural, esta com o passar dos
tempos e a transformação cultural, consequentemente, vai havendo a modificação das
formas de propagar a discriminação, o que faz com que a violência de gênero seja realizada
por diversas formas e mecanismos (SÁ NETO; GURGEL, 2014).
A violência contra a mulher é tida como violação aos direitos humanos, visto ser,
ainda de acordo com o pensamento de Sá Neto e Gurgel (2014, p. 15): ―produto da
discriminação histórica, que a sua vez propicia e promove outros cenários de discriminação
baseados em relações desiguais de poder, que reproduzem ideias de superioridade do
masculino‖.
É inegável que a violência de gênero é algo cultural e vem atravessando os séculos
como algo normal na sociedade, no entanto, o que pode ser verificado é que com o tempo
essa conduta foi aprimorando a forma de se propagar. É observado que:
Em poucos anos, e com o aumento do uso da internet e dos telefones celulares,
os casos de violência contra as mulheres no ciberespaço ou com o uso de novos
dispositivos tecnológicos aumentam diariamente e suas consequências para a
vida e a liberdade das mulheres não são menos graves nem perigosas que na vida
real (PLOU, 2013, p.121).

Pode ser afirmado que a violência de gênero, o controle do homem sobre a mulher e
essa relação desigual dominam qualquer espaço. Não diferente seria o espaço virtual,
sendo este utilizado como o novo mecanismo para se exercer essa dominação, praticando-
se a violência de gênero através do mundo virtual da mesma maneira que ocorre no mundo
real (TRINDADE apud PLOU, 2013).
Neste diapasão, percebe-se que a pornografia de vingança, na era da informação e
tecnologia, representa mais uma violação à intimidade da mulher ―como ato de violência
de gênero‖ (GUIMARÃES; DRESCH, 2014, p. 06).
No entanto, é preciso esclarecer que a pornografia de vingança não se trata de
conduta que fere apenas os direitos da mulher, apesar de na grande maioria dos casos esta
ser a vítima, os homens também podem se encontrarem no papel de vítima (TRINDADE,
2015).
Ainda de acordo com Trindade (2015), 90% das mulheres são vítimas da Revenge
Porn, isso segundo pesquisa requisitada pela campanha ―End Revenge Porn‖ 44.
Para Trindade (2015, p.01) ―O substantivo ―vingança‖ está no termo, pois,
inicialmente, a RP tratava-se da reação a um possível término de um relacionamento
duradouro‖. Ou seja, o termo vingança se encontra na nomenclatura, pois se entende que a
divulgação deste tipo de material é realizada como retaliação pelo término ao ex-parceiro,
com o qual teve uma relação longa. Contudo, deve ser destacado que esses
relacionamentos, nem sempre se tratam de relações duradouras, pois podem decorrer de
uma relação casual, muitas vezes de uma noite só.

Pornografia de vingança: decisões judiciais acerca do tema

44
A campanha é uma das ações do Ciber Civil Rights Initiative – instituição criada por um grupo de
profissionais norte-americanas (da área jurídica, da psicologia, entre outras) para auxiliar mulheres que são
alvo de Revenge Porn e de outras ações que ferem os direitos civis, sobretudo a privacidade na rede
(TRINDADE, 2015, p. 4).
No Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, foi analisada apelação criminal de réu
condenado pelos crimes de injuria e difamação por ter divulgado imagens intimas, de
conotação sexual, na internet de sua ex-namorada, como forma de retaliação por esta ter
acabado o relacionamento de aproximadamente 3 (três) anos. Vejamos:

Comete os crimes de difamação e de injúria qualificadas pelo emprego de meio


que facilita a sua propagação - arts. 139 e 140, c.c. 141, II do CP - o agente que
posta na Internet imagens eróticas e não autorizadas de ex-namorada, bem como
textos fazendo-a passar por prostituta. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA Apelação
Criminal nº 756.367-3).

Visto não haver a tipificação da conduta, o Tribunal de Justiça do Paraná ainda se


pronunciou na apelação criminal nº 756.367-3, afirmando que:

Hoje, o Supremo Tribunal Federal agasalhou a doutrina, aceita que o magistrado


observe os avanços para adaptar o texto da lei aos fatos criminosos que surgem
com o avanço do modernismo, vícios, tecnologia, moral etc. Igualmente, na
mesma esteira, observamos o gravame praticado pelo primeiro qualificado que
mesmo tendo convivido em relacionamento íntimo com a vítima, feriu os
princípios constitucionais dos cidadãos abusando da mesma e de sua boa índole.
Em várias oportunidades, a vítima fora usada para que o mesmo criasse material
que lhe difamasse perante o periódico onde trabalhava (TJ-PR, Relator: Lilian
Romero, Data de Julgamento: 07/07/2011, 2ª Câmara Criminal).

Esse caso analisado pelo Tribunal teve como vítima uma jornalista conhecida na
cidade de Maringá, e os danos sofridos por esta foram muito além do constrangimento de
ter sua intimidade revelada, pois além de ter sua imagem vinculada como prostituta, esta
perdeu a guarda de seu filho mais novo e o emprego. Vale destacar que o ex-namorado da
vítima teve como cúmplice um assistente técnico que prestava serviços de manutenção dos
computadores da empresa do réu.
Visto todas as consequências extremamente graves, sofridas pela vítima, bem como
comprovada a materialidade e autoria da conduta por parte do réu, o então apelante, o
Tribunal de Justiça do Paraná manteve a pena estipulada na sentença condenatória,
culminada em 1 (um) ano, 11 (onze) meses e 20 (vinte) dias de detenção, mais 88 (oitenta
e oito) dias-multa, cumprido com regime inicial aberto, no entanto revertida a pena a
restritiva de direito, o réu pagará através de prestação de serviços a comunidade e também
com o pagamento mensal do valor de R$1.200,00 (um mil e duzentos reais) destinados a
vítima pelo período estipulado da pena.
Como observado, a pena estipulada ao réu foi ínfima diante dos danos ocasionados
a vítima, uma vez que está foi afetada em seu âmbito familiar, profissional e social, isso
demonstra a necessidade da devida tipificação da conduta, e com buscar meios mais
efetivos de coibir essa conduta, visto que a penalidade imposta não atua repressivamente e
mal cobre os prejuízos causados à vítima.
Verificar-se-á que na maioria das vezes a conduta não é punida no âmbito penal,
sendo tratado como mero caso de danos morais, como é verificado em decisão proferida
pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do sul. Vejamos:

RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. UTILIZAÇÃO


DESAUTORIZADA E INADEQUADA DE IMAGEM. USO VEXATÓRIO,
OFENSIVO A REPUTAÇÃO. Hipótese em que a imagem, captada sem
autorização, e ainda que consentida fosse, foi divulgada na internet. Tudo isto,
obviamente, sem a autorização e o conhecimento da dona da imagem. Inegável a
ofensa à honra. Poder-se-ia dizer que o uso, no caso, foi inadequado e
desautorizado, dando ensejo, por estas duas razões, à indenização pelos danos
que a exposição causou. A lei tutela o direito à imagem, mormente quando o uso
é abusivo e ofensivo à reputação, causando... (TJ-RS, Relator: Marilene
Bonzanini Bernardi, Data de Julgamento: 12/12/2012, Nona Câmara Cível).

Com isso, verifica-se que a pornografia de vingança no Brasil é enquadrada como


apenas mais uma conduta ofensiva à honra, não se obtendo então a penalização almejada
pelas vítimas, pois independente do quantum estabelecido em nível de indenização, a
situação vexatória enfrentada pelas vítimas e a repercussão trazida as suas vidas, é de
impossível reparação financeira.
Além disso, foi divulgada decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais de
apelação cível nº 1.0701.09.250262-7/001 em 2ª instância onde são constatados
argumentos absurdos utilizados pelos desembargadores para justificarem seus votos que
analisaram o caso.
Trata de ação de danos morais, movida uma mulher que teve imagens íntimas
divulgadas na internet por um ex-namorado. Em primeira instância foi atribuída
indenização no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais). No entanto, em segunda instância
a indenização acabou sendo diminuída ao valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais).
O que mais causou indignação não foi apenas a diminuição considerável do
quantum da indenização, mas, principalmente, a justificativa machista e retrógrada
utilizada como fundamento para a atribuição deste valor de indenização.
O relator responsável, desembargador José Marcos Rodrigues vieira,
primeiramente, estabeleceu a diminuição da quantia da indenização ao valor de R$
75.000,00 (setenta e cinco mil reais), contudo, a sugestão não foi acatada pelo Revisor, o
Desembargador Francisco Batista de Abreu que foi responsável pela considerável
diminuição do valor.
Basicamente, a vítima foi considerada culpada pela divulgação das imagens
íntimas. O revisor justifica seu posicionamento afirmando que:

A vítima dessa divulgação foi à autora embora tenha concorrido de forma bem
acentuada e preponderante. Ligou seu webcam, direcionou-a para suas partes
íntimas. Fez poses. Dialogou com o réu por algum tempo. Tinha consciência do
que fazia e do risco que corria (Voto do revisor Francisco Batista de Abreu. 16ª
Câmara Cível. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Ap. Cív. 1.0701.09.250262-
7/001, Relator José Marcos Vieira, julgado em 11 de junho de 2014).

Continua as acusações contra a vítima, fazendo questionamentos acerca da moral da


apelada, relatando o revisor que, ―Dúvidas existem quanto a moral a ser protegida. Moral é
postura absoluta. É regra de postura de conduta - Não se admite sua relativização. Quem
tem moral a tem por inteiro‖ (Voto do revisor Francisco Batista de Abreu. 16ª Câmara
Cível. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Ap. Cív. 1.0701.09.250262-7/001, Relator José
Marcos Vieira, julgado em 11 de junho de 2014).
Ao Tribunal não cabia julgar a vítima, sua conduta não estava para ser julgada, o
que o magistrado deveria analisar, com vista ao princípio da imparcialidade do magistrado,
era a conduta ofensiva e abusiva que sofrera a vítima, e não julgar um ato de confiança
depositado em uma pessoa errada. Afirma o Revisor que:

As fotos em momento algum foram sensuais. As fotos em posições


ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são
sensuais. Fotos sensuais são exibíveis, não agridem e não assustam. Fotos
sensuais são aquelas que provocam a imaginação de como são formas femininas.
Em avaliação menos amarga, mais branda podem ser eróticas. São poses que não
se tiram fotos. São poses voláteis para consideradas imediata evaporação. São
poses para um quarto fechado, no escuro, ainda que para um namorado, mas
verdadeiro. Não para um ex-namorado por um curto período de um ano. Não
para ex-namorado de um namoro de ano. Não foram fotos tiradas em momento
íntimo de um casal ainda que namorados. E não vale afirmar quebra de
confiança. O namoro foi curto e a distância. Passageiro. Nada sério (Voto do
revisor Francisco Batista de Abreu. 16ª Câmara Cível. Tribunal de Justiça de
Minas Gerais, Ap. Cív. 1.0701.09.250262-7/001, Relator José Marcos Vieira,
julgado em 11 de junho de 2014).
Porém, o que fica bastante claro é que ao invés de buscar diminuir ou exaurir os
danos advindos da conduta violadora, o magistrado preocupou-se em analisar a postura
moral e a falta ou não de amor próprio da apelada, ao afirmar que ―A imagem da autora na
sua forma grosseira demonstra não ter ela amor-próprio e autoestima‖ (colocar voto do
revisor).
Pelo exposto pode ser afirmado que o arcaísmo presente nesta decisão é
assombroso, que não foi observado a proteção constitucional à intimidade e à honra da
pessoa, ou melhor, neste caso, o que não foi respeitado na decisão do magistrado, foi a
honra e intimidade da mulher, podendo concluir que a decisão está impregnada de
fundamentação machista e desrespeitosa.
Por todo o observado, é visualizado que por mais que seja feita a adequação da
pornografia de vingança a outros tipos penais, e que haja a responsabilização no âmbito
cível da conduta, pelo que fora apresentado, nota-se que o modo em que são solucionados
os casos, não se mostra eficazes para reprimir o ato violador, e muito menos, reparar as
consequências sofridas pelas vítimas, e com isso, é averiguada a necessidade da tipificação
da Revenge Porn ou Pornografia de Vingança, para que haja mecanismos mais eficazes de
combate e punição da conduta.
Contudo, vale salientar que o problema que foi percebido não se encontra apenas na
não atualização legislativa em relação à pornografia de vingança, o problema antes de
qualquer coisa é cultural, e, principalmente, moral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No espaço virtual surgiram novas condutas criminosas, dentre estas, se verificou a


figura da Revenge Porn, ou como intitulada no Brasil, pornografia de vingança. Essa
conduta se caracteriza por ser atentatória à imagem, à honra, à privacidade, e,
principalmente, à dignidade sexual da mulher.
Verificado que grande parte das vítimas são pessoas do sexo feminino, constatou-se
ao analisar a história da mulher perante a sociedade, que desde os primórdios a mulher é
subjulgada ao patamar da inferioridade, da submissão em relação ao homem, sendo
condicionada a se anular em sua sexualidade.
Atos de violação desta espécie ocorrem há décadas, e hoje, se encontra configurado
no espaço virtual na figura da pornografia de vingança, visto que a conduta de divulgar
vídeos ou imagens íntimas da mulher, de expor a intimidade sexual desta, ainda hoje,
perante a sociedade, é algo que a exclui, reprime e marginaliza, causando danos muitas
vezes irreversíveis em sua vida, mesmo se encontrando esta na condição de vítima.
Ao que diz respeito às decisões dos Tribunais sobre a pornografia de vingança, fora
analisado acórdão onde, nos votos proferidos por desembargadores, foram realizadas duras
críticas à conduta moral da mulher que se permite filmar ou tirar fotos íntimas. Com isso,
restou-se confirmado que, infelizmente, o pensamento machista e, consequentemente,
repressor a liberdade sexual feminina, é persistente também nas Cortes do País, ou mais
precisamente, na cabeça dos magistrados.
Diante do exposto, conclui-se que no Brasil muito tem que se evoluir, não se
restringindo esta evolução apenas ao que diz respeito às técnicas para coibir o crime
virtual, mas também a evolução de pensamento, visto que o mais preocupante não é o
universo virtual, mas sim, a utilização deste espaço por pessoas de pensamentos machistas,
retrógrados e sem senso de moralidade.

REFERÊNCIAS

BADDAUY, Letícia de Souza. Crimes da globalização. In: XVIII Congresso nacional do


conpedi. vol. 18. Anais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 1759 - 1774.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Millet. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1970.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação criminal nº 756.367.3. Apelante: E. G.
S. Apelada: R. L. Relator: Desembargadora Lilian Romero. Curitiba, 2011. D.J. 681.
______. Tribunal de Justiça de Minas Gerais (16ª região). Apelação cível nº
1.0701.09.250262 7/001. Apelante: Fernando Ruas Machado Filho. Apelada: Rubyene
Oliveira Lemos Borges. Relator: Desembargador José Marcos Rodrigues Vieira. Uberaba,
10 de jun. de 2014. Diário do Judiciário, 27 de jun. de 2014.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação cível nº 70051206464.
Apelante: T. B. R. Apelada: L. B. Relator: Desembargadora Marilene Bonzanini Bernadi.
Porto Alegre, 12 de dez. de 2012. Diário de Justiça, 2012.
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(Revenge porn). 2015. Disponível em:<http://marybruno.jusbrasil.com.br/artigos> Acesso
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intimidade e à privacidade como formas de violência de gênero. Revista
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155 fls. Dissertação (mestrado em Direito) – Universidade Católica de Brasília, Brasil.
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PLOU, Dafne Sabanes. Novos cenários, velhas práticas de dominação: a violência contra
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conceito de violência de gênero no direito internacional dos direitos humanos a partir dos
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TRINDADE, Lorena de Andrade. Como agir em caso de Revenge Porn? O processo de
judicialização e as alternativas para os alvos de Revenge Porn na ausência de uma lei
específica. In: IV ENADIR – Encontro nacional de antropologia do direito -. 2015, São
Paulo. Anais... São Paulo: USP, 2015. p. 01-11.
HOMOPARENTALIDADE E ADOÇÃO: melhor interesse para quem?

Anne Gabriele Alves Guimarães45


Antônio Lopes de Almeida Neto46
Caio Emanuel Brasil Fortunato47

GT 2: GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS

RESUMO

O presente trabalho assinala a dificuldade de quem instrumentaliza o direito em efetivar o


mandamento constitucional de igualdade das entidades familiares socialmente constituídas.
A partir de questionários de múltipla escolha respondidos por serventuários da justiça de
duas cidades pernambucanas, Arcoverde e Serra Talhada, nota-se um receio no que tange
ao deferimento de processos de adoção quando os requerentes são do mesmo sexo. Este
―pânico moral‖ evidenciado no Judiciário é reflexo da concepção de obrigatoriedade da
heterossexualidade, que impede a realização do conceito ampliado de ―famílias‖. Os
estigmas associam o homoafetivo ao patológico, ao subversivo, portanto, suspeito para
educar e criar. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é o ponto
problemático na medida em que sua aplicação, em pedidos de adoção homoparental,
assume ora um caráter ético, ora um caráter de diretriz determinante a depender de quem
sejam os adotantes. Está patente a insegurança jurídica e, mais ainda, a incoerência
argumentativa das decisões judiciais em relação ao ECA e a CF/88.

Palavras-chave: Adoção. Gênero. Melhor interesse. Homoparentalidade. Direitos


Humanos.

INTRODUÇÃO

Dentre os ramos do Direito Civil, o que mais sofreu mudanças de função, natureza,
composição e concepção foi o direito de(as) família(s). Diz-se que, após o advento do
Estado social, especificamente ao longo do século XX, houve um claro interesse estatal
pelas relações familiares (LÔBO, 2011).

45
Universidade de Pernambuco – campus Arcoverde, graduanda em Direito, annegabrielebj@hotmail.com
46
Universidade de Pernambuco – campus Arcoverde, graduando em Direito, lopes.n8@gmail.com
47
Universidade de Pernambuco – campus Arcoverde, graduando em Direito, caiobrasilf@gmail.com
A família patriarcal entrou em crise a partir da promulgação da Constituição de
1988. Crise denota, portanto, uma transição de um paradigma para outro. Este novo
paradigma seria a afetividade (affectio), alçado à categoria de princípio jurídico balizador
dos vínculos conjugais e/ou parentais. Sob este mesmo fundamento e considerando ainda a
revolução copernicana ocasionada pela CF/88, infere-se que família é não somente
afetividade, mas também solidariedade. Por isso, uma relação familiar não advém apenas
do casamento ao serem reconhecidas outras entidades familiares constituídas.
Um ponto crucial e polêmico, porém visto igualmente como desdobramento da
conjuntura contemporânea deste ramo do direito, é que a família não deve ser tratada como
domínio da política, mas enquanto integrante da sociedade civil, bem mais ampla, sendo
merecedora da proteção do Estado.
Na prática social, as relações consanguíneas são menos importantes que as oriundas
de laços de afetividade e da convivência familiar, devendo prevalecer estas últimas quando
houver conflito com o dado biológico, salvo se o princípio do melhor interesse da criança
ou o princípio da dignidade da pessoa humana indicarem outra orientação (LÔBO, 2011).
A referida citação alude, em meio à discussão sobre biologização e afetividade, a
alguns princípios constitucionais aplicáveis ao direito de(as) família(s): dignidade da
pessoa humana e melhor interesse da criança. Este último, enquanto decorrência da própria
dignidade, núcleo existencial comum às pessoas humanas, norteará o escopo da pesquisa.
Assim sendo, busca-se analisar aqui como os responsáveis pela judicialização do
processo de adoção veem o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e
ainda como este é relativizado de acordo com as características dos requerentes. Percebe-se
que ora o princípio assume um caráter de recomendação ética - portanto, não obrigatório -
ora de diretriz determinante, mostrando como modificamos, sem um mínimo de
cientificidade e segurança jurídica, suas hipóteses de incidência.
Ao conhecermos tais entraves na construção dos perfis familiares contemporâneos,
fica explícito que os princípios acabam não sendo realizados, sendo fulminado o ―critério
significativo na decisão e na aplicação da lei‖ de que se revestem, segundo a visão de
FACHIN (1996, p. 125).
A visão progressista sobre as múltiplas famílias, apesar de reconhecida
constitucionalmente e mais recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, ainda carece de
uma reflexão cultural, dissociada de questões como a mera sexualidade.
Em suma, dizer que a família passa a ser espaço de realizações existenciais, cuja
unidade está na affectio e cujo perfil foi repersonalizado, a partir do Constituinte de 1988,
esbarra em dificuldades de cunho jurídico, contaminadas pela moral e religião do Poder
Judiciário e serventuários da justiça.
Tal constatação é formulada baseando-se nos trajetos metodológicos selecionados
para o presente trabalho. A abordagem mista, qualitativa e quantitativa, buscou, a partir da
coleta de dados, compreender os elementos mais relevantes sobre o objeto da pesquisa,
empírica e estatisticamente.
Os questionários de múltipla escolha foram realizados com juízes, analistas e
técnicos do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, nas cidades de Arcoverde e
Serra Talhada. Na primeira, as questões foram aplicadas na Vara Especializada da Infância
e Juventude. Já no segundo município, as mesmas questões foram respondidas pelas Varas
Cíveis.
As perguntas, fechadas, apresentavam uma série de possíveis respostas, sendo
respondidas por escrito e sem a presença dos entrevistadores, garantindo o anonimato dos
participantes. Entre os assuntos abordados estavam os direitos das crianças e adolescentes,
conhecimentos gerais sobre adoção, adoção homoparental e gênero.
Ao todo, foram 31 gráficos (tabelas também foram utilizadas) para cada uma das
cidades já mencionadas, sendo que para a pesquisa em comento, utilizaremos apenas 2
tabelas para Arcoverde e 1 gráfico e 1 tabela para Serra Talhada.

1 MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA: CONCEITO E PRÁTICA

As mudanças de paradigmas vivenciadas nas relações familiares ocasionaram


também uma completa inversão de prioridades no trato entre pais e filhos. Antes o pátrio
poder existia em função do pai. Hoje o chamado poder familiar funciona no interesse do
filho.
O melhor interesse da criança e do adolescente pressupõe, então, que estes sujeitos
de direito devem ser vistos com prioridade pelo Estado, família e sociedade civil, não
somente na elaboração, mas também na aplicação de direitos a eles relacionados. Um
exemplo é na separação dos pais, tendo em vista que qualquer decisão neste processo será
tomada considerando o melhor interesse da prole. Ou assim deveria ser.
A concepção que sustenta a definição deste princípio já foi mencionada no
parágrafo anterior: crianças e adolescentes são sujeitos de direito, pessoas em
desenvolvimento. Mais ainda, neles se vislumbra o referencial de continuidade das
próximas gerações ou gerações do porvir.
Vale salientar que nosso objetivo não é fazer uma digressão acerca de como a
infância era pensada em outros momentos históricos. Mas que fique claro:

O sentimento de infância, construído historicamente, apresenta diferentes


significados, pois ele surge para redefinir as relações familiares de grupos
heterogêneos, dentro do modo de produção capitalista. Há grupos que
desfrutaram desse sentimento, como as famílias dos nobres franceses. Há outros,
contudo, que não exerceram esse sentimento, como no Brasil, onde a negação da
infância foi vivenciada pelas crianças escravas e pelas crianças filhas de escravos
(ZEOLA, 2007, p. 25).

Neste ínterim, o sentimento de infância posto como importante para a presente


pesquisa é, por óbvio, o da Constituição de 1988. Neste diploma, o artigo 227 fala em
―assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação...‖. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, ao realizar o
mandamento constitucional, estabelece, no artigo 3º, que ―a criança e o adolescente gozam
de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que trata esta Lei...‖.
Este sistema de respeito à cidadania das pessoas em desenvolvimento inaugura, sob
a ótica da Doutrina de Proteção Integral, políticas públicas preventivas e não mais
puramente assistencialistas.
Assim sendo, em um confronto entre verdade biológica e verdade socioafetiva, a
criança e o adolescente são protagonistas, devendo o juiz apurar o melhor interesse dos
mesmos. Figurativamente, é como se o menor fosse colocado ao centro, para ele
convergindo relações biológicas e sociais. Não tem mais lugar aquela construção piramidal
ou hierárquica, com o menor na escala inferior.
Importante enfatizar que o princípio analisado, pela sua relevância jurídica, não é
uma recomendação ética. É, na verdade, uma orientação determinante toda vez que
estiverem presentes vínculos entre crianças, adolescentes, pais, famílias, sociedade e
Estado.

2 ADOÇÃO: CONJUNTURA HISTÓRICA E PANORAMA ATUAL

No antigo direito romano, a adoção servia para prover a falta de filhos e perpetuar o
culto dos deuses familiares (COULANGES, 1989). Gaio, por sua vez, falava em dois tipos
de adoção: a) ad rogatio (adotante interrogado se desejava que o adotando fosse seu filho
legítimo; consentimento do adotando; aprovação do populus); b) adoptio (adoção nos
moldes atuais).
As Ordenações Filipinas pouco trataram sobre adoção, tendo em vista a influência
do direito canônico, que ―desconheceu a adoção, em relação à qual a Igreja manifestava
importantes reservas.‖ (WALD, 2002, p. 219).
Com o Código Civil de 1916, este instituto passa a ser disciplinado
sistematicamente. Porém é somente com o Código Civil de 2002 que o sistema de adoção
plena é instituído. Nestas circunstâncias, ―tanto para os menores quanto para os maiores, a
adoção reveste-se das mesmas características, sujeitas à decisão judicial.‖ (LÔBO, 2011, p.
276).
A partir da CF/88, não há mais filho adotivo, o que existe é o processo de adoção.
Este último, concluído (sentença judicial e registro de nascimento), faz com que o adotado
se converta em filho integralmente. O artigo 227, §6º, do referido diploma é claro: ―os
filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação‖.
Significa dizer que as normas do CC/2002 e ECA deverão seguir a hermenêutica
constitucional da igualdade entre os filhos, independentemente da origem. O filho é
integrado à nova família totalmente, sendo sua condição de filho jamais questionada, seja
pelos pais que o adotaram, seja pelo próprio adotado.
Ao adotado é admitido conhecer sua origem biológica, pois o acesso ao processo
judicial de adoção é direito da personalidade. Isso não altera a natureza jurídica da adoção
de ato jurídico em sentido estrito, pois o estado de filiação é indisponível, não podendo ser
revogado.
É sempre importante ressaltar a função do instituto para além do direito das
famílias e lembrar que a adoção, diferente do que pensavam tratadistas do século XIX, não
constitui remédio consolatório para aqueles que não têm ou não podem ter filhos. Também
não concordamos com a ideia de que é uma medida excepcional como se a família
socioafetiva não fosse dotada de mesma dignidade que a família biológica.
Por isso, segundo LÔBO (2011, p. 277):
Condicionar a adoção ao interesse prévio de parentes pode impedir ou limitar a
criança de inserir-se em ambiente familiar completo, pois, em vez de contar com
pai e (ou) mãe adotivos, acolhido pelo desejo e pelo amor, será apenas um
parente acolhido por outro, sem constituir relação filial.

2.1 Requisitos do processo judicial de adoção

A adoção é encarada como instituto de interesse público, dependente, portanto, da


intervenção estatal através do Poder Judiciário. O processo é de competência exclusiva das
Varas de Infância e Juventude quando o adotado for menor de 18 anos e das Varas de
Família, quando o mesmo for maior.
Os requisitos necessários constam no artigo 47 do ECA. Após a conclusão do
processo, será expedido um mandado ao oficial do registro civil de nascimentos para que a
sentença seja inscrita.
O artigo 50 do ECA estabelece que os postulantes à adoção tenham seus nomes nos
cadastros nacionais e/ou estaduais. A ordem de inscrição deve ser respeitada pelo juiz. Ao
manter esses cadastros atualizados, o Poder Judiciário acaba desenvolvendo também
atividades administrativas.
A adoção, segundo o que já foi falado, precisa satisfazer a essência do melhor
interesse, ou seja, contemplará o benefício efetivo do adotado, seja ele maior ou menor de
18 anos. Por benefício efetivo, entenda-se os indicadores de um bom relacionamento
(afinidade) entre as partes envolvidas e as condições para um ambiente sadio de
convivência familiar. As orientações dos artigos 167 e 168 do ECA são importantes para
tal avaliação.
Conforme BITTENCOURT (2010, p. 127), o objetivo deste procedimento é
analisar as:
condições objetivas e subjetivas dos postulantes, a probabilidade de sucesso de
uma paternidade socioafetiva e sua compatibilidade com o perfil da criança
desejada. [...] Trata-se de procedimento de jurisdição voluntária, com dois
objetivos: averiguar se os postulantes serão pais adequados para a criança ou
adolescente e prepará-los para a compreensão das peculiaridades da paternidade
adotiva.

Por fim, sempre que possível e, assemelhando-se aos costumes romanos, o adotado
será ouvido. Inclusive, para os maiores de 12 anos, o consentimento é obrigatório.

3 HOMOAFETIVIDADE E ADOÇÃO: RELATIVIZANDO O MELHOR


INTERESSE

Desde o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental


(ADPF) 132- união homoafetiva - e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 -
união estável homossexual, o STF reconheceu o conceito ampliado do termo ―família‖.
Logo, as uniões homossexuais são entidades familiares protegidas constitucionalmente.
Nesta mesma linha de pensamento, entende-se que a adoção é permitida a qualquer
pessoa, independente de estado civil. Não há impedimento, portanto, para que duas pessoas
do mesmo sexo, que vivam afetivamente, possam adotar a mesma criança. Como bem
mencionou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Ap. 70013801592), já em 2006, ―é
hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica,
adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é
assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal)‖.
O direito à orientação sexual, portanto, é personalíssimo, atrelado à liberdade,
inviolabilidade da intimidade e vida privada.
Contudo, antropologicamente falando, existe uma divisão no mundo ocidental
sobre o que se considera ―sexo bom‖ ou ―sexo ruim‖ (RUBIN, 2012). Como em um pensar
de oposições binárias, lembrando o pensamento da escritora e feminista francesa Hélène
Cixous, a classificação das práticas sexuais se dá segundo o hegemonicamente
estabelecido. A distribuição desigual de poder entre os termos de uma oposição binária
pode ser associada às próprias divisões sociais. Neste ínterim, os preconceitos e as
violências perpetradas surgem quando um padrão de moralidade sexual é responsável por
ditar o que é aceito e o que é desprezível.
O caráter compulsório da heterossexualidade (BUTLER, 2003), a função de
normalizar o comportamento sexual exercida pela escola e pela família (FOUCAULT,
1988) e a homossexualidade enquanto ameaça ao status quo (MISKOLCI, 2007) são
problemáticas diretamente relacionadas ao exercício da sexualidade, assentadas em uma
construção cultural de estigma que ainda interfere no modo de decidir do Judiciário.
Por mais que tenhamos uma consolidação de posicionamento por parte do STF ou
ainda o mandamento constitucional acerca da igualdade entre entidades familiares,
insistimos em associar o sujeito homossexual à promiscuidade por estar ele, segundo os
padrões sociais, fora da norma heterossexual. Novamente o pensar dicotômico e desigual
de Cixous se faz presente...
Em um processo de adoção cujos requerentes são homossexuais, essas concepções
distorcidas tendem a ser reproduzidas pela jurisdição e por quem a instrumentaliza, os
juízes. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, em caso de
judicialização da adoção por duas pessoas do mesmo sexo, se torna uma arma proliferadora
da discriminação e da insegurança jurídica.
A depender do entendimento do juiz e sua equipe técnica, o princípio assume um
caráter meramente ético, questionando a homoparentalidade como algo patológico ou
evidenciando o ―mal menor‖, discutido posteriormente nos gráficos. Por vezes, este mesmo
princípio é argumentado como diretriz determinante, deferindo o pedido de adoção sem se
ater a meros caracteres de sexualidade boa ou ruim.
4 ANÁLISE DOS RESULTADOS EM ARCOVERDE E SERRA TALHADA/PE

Para que se trabalhassem os temas referentes à adoção nas comarcas já citadas, os


participantes foram abordados inicialmente sobre o princípio do melhor interesse, o que
possibilitou não só uma análise qualitativa da percepção daqueles sobre a temática e qual
resposta estes consideram mais adequada, como também de uma proposta dialética, na qual
o conceito elencado na questão é colocado como tese e as demais questões como possíveis
antíteses.
Deste modo, foi possível aferir que, embora cem por cento dos participantes48 nos
dois municípios tenham assinalado que o princípio do melhor interesse da criança
―considera, sobretudo, as necessidades da criança acima dos interesses dos pais, devendo
realizar-se sempre uma observação caso a caso‖, essas necessidades são ―na prática‖
relativizáveis.
Neste sentido, então, faz-se necessário um retorno às lições de Tércio Sampaio ao
destacar que através do processo se dá a conversão da linguagem social para a linguagem
jurídica (FERRAZ JUNIOR, 2015) em que serventuários da justiça e Poder Judiciário
atuam nessa espécie de tradução tendo importância - agora mais especificamente na
proposta do trabalho - desde o primeiro momento na garantia de direitos, onde toda a
argumentação construída irá se dirigir ou não ao deferimento do pedido de adoção.
Demonstrada a importância daqueles que atuam diretamente nos processos de
adoção, deve-se observar, como já fora dito, dialeticamente, como estes se manifestam
diante do que deve ser o cerne de qualquer questão que envolva crianças e adolescentes:
seu melhor interesse. Faz-se mister a exposição de alguns resultados, levando em
consideração que algumas das perguntas aplicadas oportunizavam ao participante marcar
mais de uma alternativa. Nestes casos, no momento de tabular os resultados, optamos por
usar tabelas.

48
Dados provenientes da pesquisa realizada pelos autores.
A importância da adoção no meio social no Judiciário em Arcoverde

Alternativas Para realizar o Para que os Visa o melhor Para que pais de Não há uma
sonho de orfanatos interesse da homossexuais importância
paternidade de fiquem vazios criança realizem o principal
pais que são sonho de ter
estéreis. netos

Repetição da 3 1 18 1
resposta

Porcentagem 16,66% 5,55% 100% 5,55%

da repetição

da resposta

Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

Assim se observou que quando questionados sobre o objetivo principal da adoção e


a sua importância para a sociedade, 100% dos entrevistados declararam que adoção tem
como essência o melhor interesse da criança, que era a alternativa correta.
Os demais resultados, todavia, demonstraram certo grau de incoerência com a
resposta majoritária, pois, o que se observa é um distanciamento do princípio do melhor
interesse da criança a partir do momento em que se declara que a adoção serve para
realizar o sonho de paternidade de pais que são estéreis (16,66%) ou, ―Para que pais de
homossexuais realizem o sonho de ter netos‖ (5,55%) e ainda ―Para que os orfanatos
fiquem vazios‖ (5,55%).
Sendo assim surge o paradoxo: de que forma estas pessoas acreditam que ao
sobrepor a realização dos pais e avós ou ainda o ―bater a meta‖ de deixar orfanatos vazios,
está se considerando os interesses do menor que já foi exposto a algum tipo de violência?
Essas contradições, ou incoerências, como já citado, permitiram uma maior
aproximação do ponto de vista dos participantes, que se sobreleva pela importância da
atuação destes no processo. Neste sentido, diz Ricardo Coitinho:
[...] as decisões judiciais envolvendo a destituição de poder familiar (DPF) e a
colocação em família substituta – por meio da adoção, dentre outras formas
possíveis – têm sido movidas pela compreensão do que atende ao princípio do
melhor interesse da criança e do adolescente [...] que resulta do entendimento do
juiz, dos membros da equipe técnica psicossocial e demais operadores do direito
acerca de cada caso em sua
especificidade (COITINHO FILHO, 2017, p. 505).

Os resultados da pesquisa, todavia, chamaram mais a atenção ao serem abordadas


questões relativas a gênero e homoparentalidade, refletindo uma realidade social que se
estende ao Judiciário e denota toda a construção histórica sobre o homossexual e como este
ainda é visto como uma ameaça à manutenção de um status quo heteronormativo e que, de
acordo com MISKOLCI (2007, p. 103), pode ser classificada como pânicos morais,
entendidos como ―aqueles que emergem a partir do medo social com relação às mudanças,
especialmente as percebidas como repentinas e,
talvez por isso mesmo, ameaçadoras.‖

A opinião sobre a família homoparental do Judiciário em Serra Talhada

Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

Em um primeiro momento foi questionado aos participantes sobre o que eles acham
do reconhecimento de famílias compostas por pais homossexuais. Os resultados, expostos
acima, apontaram que, ao entrar na seara do gênero, a perspectiva do melhor interesse foi
afastada do debate, pois as porcentagens no sentido de discordância à família homoparental
revelaram também que 67% dos participantes desconsideraram completamente a única
alternativa que citava o afeto e o bem estar da criança.
Faz-se então necessário relembrar a dura realidade dos menores que estão no
cadastro nacional de adoção (CNA). Estes, apesar de sua tenra idade foram expostos a
algum contexto de violência e/ou abandono, que os levaram até instituições de acolhimento
e ao cadastro de adoção. Marcas que infelizmente levarão consigo pelo resto de suas vidas.
Possibilitar uma família a estes traz não só a chance de um recomeço – além
daquele oferecido pelos abrigos - como também a garantia de uma proteção após a
maioridade, posto que esta é a idade limite, estabelecida em lei para o acolhimento.
Essa possibilidade, no entanto, se torna cada vez mais remota mediante a recusa de
alguns aos novos arranjos familiares. Que não só os desclassifica como também reduz a
oferta de possíveis adotantes. Deve-se ainda destacar que nas adoções homoparentais há
uma menor exigência quanto às características do adotando, o que traz consequências
muito positivas numa realidade em que se observa o desprezo por certos perfis, que não se
encaixam nas expectativas dos adotantes.
Não se pretende, todavia, defender a chamada teoria do ―mal menor‖, estabelecida
por Uziel (2012), causa de controvérsias doutrinárias, mas que se faz pertinente à
discussão. A autora irá estabelecer que nas adoções movidas por gays e lésbicas, a adoção
aparece como uma espécie de salvamento às crianças que não se adequam ao perfil de
adoção e que por isso permaneceriam nas instituições, nisto consistindo o chamado mal
menor.
Assim não se pretende aqui a propositura da adoção homoparental como uma forma
de escape ou de solução a um problema social e que somente certos perfis devem ser
―ofertados‖ a homossexuais, e sim a observação que estes têm despertado e se mobilizado
por uma realidade social patente e que fortalece a defesa das adoções homoparentais.

Conhecimento sobre as consequências da família homoparental na vida da criança do


Judiciário em Arcoverde

Alternativas Sim, as crianças Não, afinal a Sim, pois Sim, pois há Concordo, o
criadas por pais família, estas uma que deve
homossexuais independente da crianças probabilida - ser pensado
consequentemen orientação serão de maior de na família é
-te se tornarão sexual dos pais, frustradas crianças serem o afeto e o
é uma pelo exploradas bem estar
homossexuais. instituição preconceito sexualmente da criança.
legitimada a que irão por pais
educar, proteger sofrer da homosse-
e dar amor as sociedade. xuais.
crianças.

Repetição da 1 13 3 1
resposta

Porcentagem 5,88% 76,47% 17,64% 5,88%

da repetição

da resposta

Fonte: Dados provenientes da pesquisa.

Neste ponto, as respostas obtidas indicaram a insegurança e até o caráter de


ilegitimidade que os serventuários atribuem aos requerentes pelo simples fato de estes se
identificarem como gays, lésbicas ou transgêneros. Embora 76,47% tenham declarado
entenderem que a adoção homoparental não oferece riscos aos adotados, 17,64%
afirmaram que os adotados seriam de alguma forma frustrados pelos preconceitos que
sofreriam na sociedade. Esta
afirmação se constrói, no entanto, num senso comum e que por vezes termina se
vinculando, através de relatórios produzidos por estes profissionais, todavia, deve-se
observar que pesquisas científicas já tem demonstrado que a orientação sexual dos pais não
importa para o desenvolvimento da criança e do adolescente (LÔBO, 2011). No mesmo
sentido, Maria Berenice Dias:

[...] é alegado que a falta de referências comportamentais pode acarretar seqüelas


de ordem psicológica e dificuldades na identificação sexual do filho. Mas
estudos realizados a longo tempo mostram que essas crenças são falsas. O
acompanhamento de famílias homoafetivas com prole não registra a presença de
dano sequer potencial no desenvolvimento, inserção social e sadio
estabelecimento de vínculos afetivos (DIAS, 2010, p. 5).

Outro ponto preocupante foi a opção dos participantes por alternativas no sentido
de que as crianças ou adolescentes criadas por homossexuais poderiam se tornar
homossexuais (5,88%), assertiva que não possuía qualquer grau de cientificidade e ainda
outros 5,88% que assinalaram que há uma probabilidade maior de crianças serem
exploradas sexualmente por pais homossexuais. A preocupação citada decorre do fato de
que além de possuírem uma ignorância no assunto, os profissionais que responderam as
questões atuam também produzindo pareceres relevantes nos processos - classificados
como ―conhecimentos peritos‖ por Coitinho Filho (2017) - que podem favorecer ou não a
adoção.
A opção por essas questões demonstra um imaginário social sobre a
homossexualidade, manifestado mediante a decisão de casais ou solteiros homossexuais
pela adoção. Neste sentido:

Além da axiologia do sufixo ―ismo‖, os léxicos homoafetividade,


homossexualidade, homoparentalidade e homoconjugalidade herdam, também, a
força do tabu/desconfiança em relação ao casal homossexual, que teria a intentio
pervertida à sombra do aparente desejo de adotar crianças. Tal intenção seria
realizar uma fantasia libidinosa velada ou condicionar os filhos adotivos também
à homossexualidade (CARDOSO e CAVALCANTI, 2013, p. 127-128).

A mesma questão na comarca de Serra Talhada apresentou um resultado distinto,


que, no entanto, não foi satisfatório, segundo o entendimento do trabalho. Isto porque
houve um grande número de abstinências (50% não responderam) e ainda 25% se
posicionaram no sentido de que a adoção homoparental traz consequências negativas ao
desenvolvimento do adotado. Deste modo apenas 25% responderam a alternativa
considerada ideal, já citada por ter sido a mais marcada no munícipio de Arcoverde.
Não se pode negar que há uma dificuldade e até um medo na sociedade em tratar
assuntos relativos a gênero. O desconhecimento sobre o tema e a crescente judicialização
de crimes relacionados à temática terminam por criar em alguns uma espécie de política da
boa vizinhança, que evita o debate e a (des)construção de alguns paradigmas. Todavia, ao
se tratar de profissionais que integram uma rede de proteção, responsável por lidar com
essas questões, essa omissão é considerada negativa, pois do exercício de suas funções
decorre também a necessidade de um maior senso crítico, sempre no intuito de garantir o
melhor interesse do menor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar dos esforços constitucionais em admitir outras entidades familiares
socialmente constituídas, é necessário um processo de assimilação cultural por parte dos
serventuários da justiça para que tais mandamentos sejam efetivamente contemplados.
Existem muitos estigmas que circundam as uniões homoafetivas, posicionando-as como
associadas à promiscuidade. Esta forma de pensar através de um senso comum, portanto,
desprovida de cientificidade, atinge as decisões dos processos de adoção.
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, responsável por balizar
as relações familiares nacional e internacionalmente, acaba se tornando um ponto
problemático no que tange ao deferimento (ou não) do pedido de adoção quando os
requerentes são homossexuais. Não precisamos dizer que a relativização deste princípio é
realizada no próprio fazer jurisdicional, pelos magistrados e equipe técnica.
Acredita-se que não há nenhum óbice jurídico na adoção por pessoas do mesmo
sexo. O óbice é cultural, pautado na ideia de heterossexualidade enquanto norma padrão.
No Judiciário, há uma reprodução de preconceitos quanto à relação adotantes do mesmo
sexo/adotado. Por isso, técnicas argumentativas são utilizadas para encobrir o receio, entre
elas, o mal menor. Significa que, ao invés de afirmar os ganhos da inserção da criança em
uma família, os argumentos giram em torno da salvação das crianças de destinos que
seriam ainda piores (UZIEL, 2012). Ou seja, ser adotado por uma família homoparental é
ruim, mas livraria o adotado de um futuro ainda mais drástico.
Ao utilizar o contexto de duas cidades do sertão pernambucano, Arcoverde e Serra
Talhada, a partir do método qualitativo e questionários com perguntas fechadas, buscou-se
um entendimento geral sobre características da adoção e, principalmente, adoção
homoparental, como ela é vista, se é deferida, sua relação com o princípio do melhor
interesse.
Após o reconhecimento do conceito amplo de ―famílias‖, dado pelo STF, é
inconcebível que ainda se pense em ―periculosidade‖ da homoparentalidade como se
estivesse relacionada à pedofilia. Porém Arcoverde e Serra Talhada, em questões
específicas sobre tais temáticas, acabaram demonstrando que a hermenêutica utilizada para
decidir nem sempre é a do melhor interesse. O moralismo, o caráter ético e a não aplicação
dos princípios como diretrizes determinantes falam mais alto quando o assunto é
―sexualidade boa‖ ou ―sexualidade ruim.‖
Dizer que crianças criadas por pais do mesmo sexo terão um desenvolvimento
negativo é disseminar jargões desprovidos de cientificidade. Revela o quanto a sociedade
tem aversão às mudanças que versam sobre conjugalidade e parentalidade de gays e
lésbicas. O clima de suspeita, cunhado de ―pânico moral‖, foi evidenciado nos
questionários, mostrando que as duas cidades da pesquisa ainda não superaram as velhas
oposições binárias desiguais: a heterossexualidade ainda perfaz a ordem moral considerada
aceitável. O que se considera fora da norma (heterossexual) é relativizado e, o pior, de
maneira legitimada.

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Brasília, DF, 1988.

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Educação, Centro de Ciências Humanas e Sociais. Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul, Campo Grande, 2007.
O CRIME DE INFANTICÍDIO SOB A ÓTICA DE UMA CULTURA
PATRIARCALISTA.

Wilson Álvares de Lima Júniorvi

GT 02 – Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos.

RESUMO

O presente trabalho analisa a relação entre a prática do crime de infanticídio e a cultura


patriarcalista brasileira, apontando as punições dadas as mulheres que cometem este delito.
É importante mencionar alguns dos autores que contribuíram para o embasamento teórico
desta pesquisa, entre eles: Maggio (2004), Ribeiro (2004) e Nucci (2013). Foi utilizada a
pesquisa bibliográfica, na qual, com a utilização do método analítico-dedutivo, procurou-se
analisar as opiniões doutrinárias acerca do tema, com análise de livros e artigos científicos,
a fim de construir um melhor embasamento teórico. É importante conhecer a historicidade
do infanticídio e o quanto este delito possui ligação com a cultura extremamente machista
e, embora modificada com o passar dos anos, ainda vislumbrada no Brasil. A mulher vem
conquistando seu espaço, mesmo que de forma bastante sutil, aja vista que há, ainda,
resquícios de uma cultura patriarcal, onde o homem é visto como uma figura mais
relevante que a mulher. Essa distinção de gênero como competição é altamente prejudicial
para o contexto social, acarretando em graves problemas, como é o caso da prática de
determinadas condutas criminosas, devendo haver um novo olhar acerca de questões tão
delicadas quanto estas.

Palavras-chave: Infanticídio. Cultura Patriarcalista. Gênero.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda a questão da influência de uma cultura patriarcalista no


crime de infanticídio, levando mulheres ao longo da história do Brasil a praticarem este
delito, devido, entre outros fatores, ao machismo altamente preponderante.
Mesmo a forma de punição tendo passado por diversas fases, até mesmo de
permissividade, isto é, a prática não era tida como crime e, portanto, passível de punição,
vê-se que ela está relacionada com o ceifar do maior bem jurídico tutelado pelo Direito,
que é a vida.
Assim, a discussão toma uma proporção maior, pois a vida deve ser preservada e,
portanto, questões relacionadas ao machismo não deveriam interferir na vida da mulher e,
consequentemente, do seu(ua) filho(a).
Desta forma, por ser um tema bastante relevante, se faz necessário realizar esta
abordagem, pois, ainda hoje, em muitos países, apesar da existência de diplomas legais
acerca do tema, ainda não há uma legislação uníssona, acarretando, muitas vezes, grandes
divergências doutrinárias, inclusive em nosso país.
Neste sentido, o presente estudo pautou-se sobre o seguinte problema de pesquisa:
Quais as intercessões entre a prática de infanticídio e questões de gênero?
Assim sendo, o objetivo geral está em compreender as intercessões entre questões
de gênero e infanticídio frente ao contexto histórico. E, em relação aos objetivos
específicos, são: discutir sobre o infanticídio no Direito Penal Brasileiro; estudar sobre
infanticídio e questões de gênero; e analisar as intercessões entre a prática do infanticídio e
questões de gênero.
Para que tal objetivo seja alcançado, será realizado um levantamento histórico
acerca no infanticídio na sociedade brasileira, uma abordagem sobre como tal crime é visto
hoje pelo Direito Penal brasileiro e, por fim, serão apontadas as principais relações
apontadas pela doutrina entre o infanticídio e a cultura patriarcalista.
Todos estes pontos trabalhados pretendem contribuir para com um embasamento
teórico que possibilite conhecer mais detalhadamente o quanto o machismo pode interferir
num contexto social.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Levantamento histórico acerca no infanticídio na sociedade brasileira

O Direito Penal dos Silvícolas, segundo alguns relatos de teóricos, não existia um
sistema de governo, nem mesmo instituições públicas estruturadas. Estes povos viviam sob
uma economia de subsistência, tendo métodos bastante rudimentares.
Pierangeli afirma:
Quando se deu o descobrimento do Brasil, os nossos indígenas não ostentavam
um grau de desenvolvimento cultural semelhante a outros povos que habitavam o
continente americano, como os incas, os astecas e os maias, cujo grau cultural
chegou a impressionar favoravelmente os conquistadores. (2004, p. 41)

Seu ordenamento jurídico era precário, visto que, na maior parte das vezes,
solucionavam seus conflitos penais através do direito costumeiro, não havendo um código
escrito.
Segundo relato de Gonzaga, os silvícolas:

[...] fontes não revelam a instituição de órgãos judiciários, nem a existência de


um Direito como conjunto de normas, ainda que orais e consuetudinárias,
racionalmente organizadas e impostas metòdicamente por um Poder superior,
para assegurar a justiça e a disciplina social. O que encontramos, mais
modestamente, são meros costumes tradições oralmente conservadas, em geral
de natureza mística; e simples regras de convivência, fruto das necessidades
naturais, como forçosamente tem de existir em todo agregado humano. (1972, p.
21)

Assim, os índios, mesmo não tendo organizações políticas ou jurídicas, tinham um


certo equilíbrio social em suas relações, possuíam uma hierarquia familiar, a qual cabia ao
marido manter a ordem entre as pessoas subordinadas a ele. Dentre eles, havia indivíduos
que detinham mais destaque do que outros, a exemplo do cacique e do pajé.
A definição do que seria um delito variava entre os diversos grupos indígenas. Seus
critérios para estabelecer os métodos punitivos se assemelhavam à Lei de Talião, pois
utilizavam, sobretudo, a vingança privada. Esta vingança é chamada, por muitos autores,
de lei da compensação.
Como bem relata Gonzaga:

Em princípio, o homicídio estava vedado e a sua prática levava à vingança


compensatória, a recair de preferência sôbre o assassino ou, subsidiariamente,
em pessoas do seu grupo, familiar ou social. Idem quanto à lesões corporais, a
não ser que se resolvesse o caso de imediato, através de uma luta em que os
contendores se infligissem recíprocas feridas, sem que os circunstantes
interferissem. (1972, p. 134)
Contudo, em certos casos, não havia proibição em tirar a vida de outrem, como era
o caso do aborto e do infanticídio. Assim, ―(...) o aborto, que parece ter sido praticado
livremente entre os nossos povos indígenas, tinha o condão de vingança oposta pela mulher
grávida ao marido que a maltratava. Também o infanticídio se constituía como um
indiferente penal‖. (PIERANGELI, 2004, p. 43)
Mulheres que eram maltratadas pelos maridos ou feitas prisioneiras de guerra,
muitas vezes, optavam por abortar a criança. Mas, em geral, a prática do infanticídio era
utilizada, de forma mais corriqueira, quando a criança nascia com alguma deformidade,
aparentando uma certa disponibilidade da mulher sobre o seu próprio corpo.
No período do Brasil-colônia vigoraram no país as Ordenações do Reino, e tais
ordenações seriam um tipo de ordenamento jurídico português, o qual foi aplicado,
também, em suas colônias. Contudo, no Brasil, havia alguns preceitos legais que não
podiam ser aplicados, tendo em vista as peculiaridades do país.
As Ordenações Afonsinas vigoraram, no Brasil colonial, entre os períodos de
1500 e 1514, tendo sido inspiradas pelo direito romano e pelo direito canônico.
Afirma Pierangeli, em citação de Augusto Thompson, que tais Ordenações:

Usando por padrão ou moela a doutrina do Corpus Juris, seguiu quanto ao


método e à disposição do Papa Gregório IX. Assim, têm largo assento nele o
Direito romano de Justiniano e o Direito Canônico [...] que fez célebre na
Europa, logo depois do meio do século XII, debaixo do nome de Direito
Comum, com as doutrinas dos glosadores e intérpretes. (2004, p. 52)

Eram dispostas em cinco volumes, os quais abrangiam diversos assuntos, como,


por exemplo, competências e organizações jurídicas. E, após as Ordenações Afonsinas,
vieram as Ordenações Manuelinas, as quais começaram a ser aplicadas em 1514, sendo
substituídas, apenas, em 1569, pelo Código Sebastiânico, o qual perdurou até 1603.
As Ordenações Filipinas, datadas do período de domínio espanhol, começaram a
viger no Brasil em 1603, tendo, por objetivo, atualizar as inúmeras leis esparsas daquela
época.
Sobre esses períodos citados, Maggio relata:
O crime era confundido com o pecado e com a ofensa moral. As penas eram
severas e cruéis (açoites, mutilação, queimaduras etc.), visavam infundir temor
pelo castigo. Nesta época, era também largamente cominada a pena de morte,
executada pela forca, pela tortura, pelo fogo etc. (2004, p.45)
Houve vários projetos para incorporar o infanticídio como tipo penal no
ordenamento brasileiro. O principal projeto foi o de Pascoal José de Melo Freire dos
Reis, o qual foi autor de um projeto do Código Penal, publicado em 1823. Seu projeto
tipificava o infanticídio no Título ―Do Homicídio Qualificado‖, tendo o seguinte texto
dito por Maggio:

A mãe que, esquecendo-se de o ser, matar de propósito o seu filho infante, não
por malignidade do coração, nem por outra paixão vil e baixa, mas com o fim
de encobrir o seu delito, e de salvar a sua fama e reputação, será para sempre
presa e reclusa na casa de correção. (2004, p.46)

O Código de Melo Freire serviu como base para a feitura do Código Criminal de
1830, o qual teve seu projeto apresentado por Bernardo Pereira de Vasconcelos. No
Brasil, este código foi pioneiro no abrandamento da pena de infanticídio, adotando o
critério honoris causa, privilegiando o infanticídio perpetrado pela mãe. Neste caso, a
pena variava entre 1 e 3 anos de prisão com trabalho. Ele foi sancionado após o advento
da independência, trazendo dois tipos de infanticídio.
No primeiro tipo, constava a seguinte redação, in verbis: ―Artigo 197. Matar
alguém recém-nascido. Penas – de prisão por três a doze anos, e de multa correspondente
à metade do tempo‖. Já no segundo tipo, estava expresso, in verbis: ―Artigo 198. Se a
própria mãe matar o filho recém-nascido para ocultar a desonra. Penas – de prisão com
trabalho por um a três ano‖.
Maggio faz uma crítica veemente a tais institutos:

Quanto a primeira figura, [...] Em razão da pena cominada, verifica-se


instaurado um flagrante contrassenso, considerando que pode ser sujeito ativo
do delito o agente, mesmo sem ter qualquer parentesco com a vítima, ainda,
que presentes as circunstâncias agravantes do homicídio [...] Quanto a segunda
figura, [...] a pena cominada em abstrato era de um a três anos de prisão com
trabalho, pena sensivelmente amena, tanto na quantidade como na qualidade,
em relação a do homicídio. (2004, p. 47-48)
Por conta disso, o código sofreu duras críticas quando se comparava a pena do
homicídio e do terceiro que matasse recém-nascido nos seus primeiros sete dias, ainda
que não tivesse motivo de honra. Este tinha penas de 3 a 12 anos de prisão, já aquele, 6 a
24 anos de prisão, acarretando uma concepção de que a vida de uma criança valeria
menos que a vida um adulto.
Além disso, muitos estudiosos da época alegaram que o legislador se expressou
de forma incorreta ao adotar a expressão ―recém-nascido‖, visto que deixa o nascente, o
qual seria uma fase entre o feto e o recém-nascido em desamparo.
Como no Código de 1830, o Código Penal de 1890 também tornava a pena mais
branda por conta do fator honoris causa. Entretanto, diferente do código anterior, este
equiparou a pena do infanticídio, perpetrado por estranhos, com o chamado homicídio
simples.
Tal código também foi duramente criticado, acarretando a feitura de diversos
projetos para novos códigos penais, tendo, muitos deles, utilizado critérios diferentes
para tipificar o infanticídio.
Como bem relata Bitencourt:

O Projeto de Galdino Siqueira não considerava o infanticídio crime autônomo,


mas uma espécie de homicídio privilegiado. O projeto de Sá Pereira, ao
contrário, previa o infanticídio como crime autônomo, incluindo as
elementares ―durante o parto‖ e ―sob a influência do estado puerperal‖, a
exemplo do que estabelecia o Código suíço de 1916, nos seguintes termos:
―Aquela que, durante o parto, ou ainda sob a influência do estado puerperal,
matar o filho recém-nascido, será punida com prisão de até 3 anos, ou com
detenção de seis meses, no mínimo‖. O Projeto Alcântara, por sua vez,
retornava ao critério do Código Criminal de 1830, fundamentando o privilégio
na honoris causae. (2014, p. 150)

Convém destacar que o Diploma penal de 1890 só foi revogado com a feitura da
Consolidação das Leis Penais. O desembargador Vicente Piragibe, inconformado com
sistematização penal da época, a qual englobava o Código Penal de 1890 e leis penais
especiais, resolveu agrupá-las de uma maneira mais organizada. Tal aglutinação dos
diplomas penais foi denominado de Consolidação das Leis Penais, também denominado
de Código Piragibe, sendo instituída pelo Decreto nº. 22.213, de 14 de dezembro de
1932.
Quanto ao crime de infanticídio, a Consolidação das Leis Penais não trouxe nada
diferente do que já estava previsto no Código Penal de 1890. Esta consolidação vigeu até
1940, visto que, neste ano, foi feita a redação do Código Penal de 1940, o qual está
vigente até hoje no ordenamento jurídico brasileiro.
Segundo Damásio de Jesus, existem 3 (três) critérios para conceituação legislativa
do infanticídio nos diferentes diplomas penais instituídos no Brasil, conforme a seguir
disposto:

De acordo com o critério psicológico, o infanticídio é descrito tendo em vista o


motivo de honra. Ocorre quando o fato é cometido pela mãe a fim de ocultar
desonra própria. [...] Nos termos do critério fisiopsicológico, não é levada em
consideração a honoris causa, isto é, o motivo de preservação da honra, mas
sim a influência do estado puerperal. É o critério de nossa legislação penal
vigente. [...] De acordo com o conceito misto, também chamado de composto,
leva-se em consideração a um tempo, a influência do estado puerperal e o
motivo de honra. [...] (2004, p. 106)

O critério psicológico foi utilizado no revogado Código Penal de 1969. Já o


critério fisiopsicológico ou fisiopsíquico, é o critério do Código Penal vigente. O critério
misto foi adotado no Anteprojeto de Código Penal de Nelson Hungria, em 1963.
Por ter adotado o critério de natureza fisiopsicológica da influência do estado
puerperal, o Código Penal de 1940 acarretou uma grande mudança, tendo em vista que
nenhum dos códigos predecessores havia adotado tal posicionamento. Neste diploma
legal, o infanticídio está tipificado no artigo 123, o qual tem a seguinte redação: ―Matar,
sob a influência de estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena –
detenção, de dois a seis anos‖.
Em relação ao período Greco-romano, Ribeiro, em citação de Fustel de Coulanges,
na Grécia Antiga, afirma:

[...] o pai era o chefe supremo da religião doméstica, cabendo ao mesmo a


direção de todas as cerimônias do culto como bem entendesse, ou antes, como as
viram praticar seu pai. Ninguém na família lhe contestava a supremacia
sacerdotal. A própria cidade e os seus pontífices nada podiam alterar no seu
culto. Como sacerdote do lar, o pai não conhecia hierarquicamente superior
algum. Daí deriva todo o conjunto de direitos, dentre os quais o de se desfazer de
qualquer recém-nascido que tivesse resultado de seu casamento legítimo. (2004,
p. 19)

Também Nucci, em citação de Ricardo Levene, assevera:


Na antiguidade, matava-se bebês recém-nascidos quando escasseavam alimentos,
ou quando eram oferecidos em cerimônias religiosas. Tampouco era delito matá-
los quando eram disformes ou tivessem um defeito físico tão grave que
evidenciava sua futura inaptidão para as guerras. (2013, p. 664)

Na cidade grega de Esparta, os meninos, desde os sete anos, eram preparados para
serem soldados e, por conta disso, quando uma criança nascia com alguma deformidade,
era jogada em um vale denominado Apotetas, o qual era situado no monte Taigeto. Tais
fatos ocorreram, sobretudo, em meados de 800 a.C.
Em Atenas, cidade grega considerada o berço da democracia, por conta de seu
ordenamento, impossibilitou o infanticídio de ser um crime punível. Isso se deu pelo fato
de a parte lesada ou seu representante legal ter que intentar o processo, visto que, naquela
época, não havia um ministério público ou outro órgão que possuísse suas prerrogativas.
Por conta disso, muitos crimes ficavam impunes, inclusive o infanticídio, pois, por
exemplo, se o pai matasse seu filho recém-nascido, não existiria ninguém que pudesse
levar o delito às autoridades competentes daquela época.
Em Roma, a Lex Duodecim Tabularum (Lei das XII Tábuas), a qual era uma antiga
legislação do direito romano, tendo sido o cerne da constituição da república romana,
assim como em Esparta, autorizava a morte dos recém-nascidos disformes. Além destes, se
o filho fosse motivo de desonra, os também estavam autorizados a mata-lo após o
nascimento.
Como leciona Ribeiro, em citação de Gustave Glotz: ―Em Roma, o filho estava
totalmente submisso à autoridade paterna, que podia vendê-lo e condená-lo à morte‖.
(2004, p. 20)
Tal fato ocorria em virtude do ius vitae et necis, ou seja, o direito de vida e morte
sobre as pessoas dependentes. Nesse contexto, o pater familiae era o magistrado no seio
familiar. Caso a mãe matasse o próprio filho, sua punição seria a pena de morte, pois, para
o direito romano antigo, ela, assim como os filhos, estaria submissa à vontade do pater
familiae.
Nesse momento histórico, a principal forma de cometimento do infanticídio era
abandonando os recém-nascidos. Normalmente, isto era feito pela manhã, pois, muitas
vezes, quem abandonava, tinha a esperança de que alguém visse a criança e a acolhesse.
No período conhecido como Intermediário, o qual teve seu início no século V e seu
final no século XVIII, foi de grande reação em favor dos recém-nascidos.
No direito romano deste período, não se conhecia a expressão infanticidium. A
expressão que tinha o significado mais próximo seria parricidium, a qual significava, de
forma ampla, qualquer tipo de homicídio.
À época de Justiniano, houve o desaparecimento do ius vitae et necis, tendo, as
Institutas, aplicado pena de morte a quem praticasse tal delito. Tal pena era chamada de
culeus ou ―pena do saco‖.
Jesus descreve como esta pena era feita:

Não seja (o parricida) submetido à decapitação, nem ao fogo, nem a nenhuma


outra pena solene, mas cosido num saco de couro, com um cão, um galo, uma
víbora e um macaco, e torturado entre as suas fúnebres angústias, seja, conforme
permitir a condição do lugar, arrojado ao mar vizinho ou ao rio (―Institutas‖, 4,
18, 16). (1970, p. 25-56)

Segundo Ribeiro, ―Na Idade Média não se fazia diferença entre homicídio e
infanticídio‖ (2004, p. 21), tendo, tal fato, ocorrido, também, à época de Justiniano.
Com a influência do Cristianismo, o infanticídio, além de se distinguir do
homicídio, tornou-se um delito mais grave. Nesse momento, a Igreja Católica estava em
grande ascensão, acarretando um maior seguimento, dos intelectuais da época, aos seus
ensinamentos. Tais pensadores pregavam uma doutrina de não supressão da vida de um ser
humano pelas mãos de outro.
Quanto aos recém-nascidos, esta doutrina era ainda mais repressiva, visto que estas
pessoas não poderiam sequer se defender, acarretando, ao infanticida, violentas
condenações.
Para Fragoso, ―a repressão rigorosa inspirava-se no fato de ser o infanticídio
violação da própria lei da natureza e do especial dever de proteção dos pais em relação aos
filhos; na premeditação que, geralmente, acompanha esses crimes; na debilidade da
vítima‖. (1988, p. 89)
Em países como a Inglaterra, era comum a utilização do overlaying para o
cometimento deste delito, o qual consistia na sufocação indireta do recém-nascido, pela
mãe, quando ambos estavam deitados no mesmo leito. A tais fatos, muitas vezes, não era
atribuído crime algum, pois as mães alegavam ter sido um acidente.
Na baixa Idade Média inglesa, diferente de muitos outros locais, havia uma
flexibilização nas punições de quem cometia o infanticídio, falando-se, sobretudo, em
penitência, pois a mulher, além de não ser presa, era considerada uma pecadora. As
penitências variavam entre um ano a pão e água, nos casos de sufocação do infante, até a
morte, quando o ―pecado‖ do infanticídio fosse mais grotesco, sendo cabível à Igreja o
julgamento de tais casos.
Segundo Maggio, em citação de Nelson Hungria, Carolina, a qual era a Ordenação
Penal de Carlos V, estatuía:

As mulheres que matam secreta, voluntária e perversamente os filhos, que delas


receberam a vida e membros, são enterradas vivas e empaladas segundo o
costume. Para que se evite o desespero, sejam estas malfeitoras afogadas, quando
no lugar do julgamento houver para isso a comodidade de água. Onde, porém,
tais crimes se dão frequentemente, permitimos, para maior terror dessas
mulheres perversas, que se observe o dito costume de enterrar e empalar, ou que,
antes da submersão, a malfeitora seja dilacerada com tenazes ardentes. (2004, p.
42)

Para este crime, as leis francesa e inglesa não necessitavam de confissão, contudo, a
lei alemã, para que a mulher fosse acusada, precisa confessar o delito.
Ribeiro diz que:

O recurso habitual para obtenção de confissões era a tortura. Mas, antecipando a


tendência predominante nos séculos vindouros, o Código Carolino trazia, em
suas notas explicativas, orientações para a realização de docimasias destinadas a
verificar se a criança realmente havia nascido viva. (2004, p. 23)
Tais docimasias, instituídas pelo referido código, as quais seriam um conjunto
probatório para verificação da vida-extrauterina, tornaram-se base para a medicina legal,
sendo utilizadas até hoje para tal verificação.
Por fim, no Período Moderno, o qual iniciou a partir do século XVIII e continua até
os dias de hoje, vê-se claramente que é uma época de reação em favor da mulher
infanticida.
Nucci diz: ―Até ao início do século XIX, punia-se severamente em toda a Europa
este crime. Beccaria e outros autores protestaram contra tal dureza, em atenção à mãe que,
para ocultar a desonra, matava o filho no ato do nascimento‖. (2013, p. 664)
Em 1764, houve o marco inicial da mudança dos ideais instituídos nos períodos
anteriores: a publicação do livro Dos delitos e das penas, de Cesare Bonesana Beccaria.
Este livro provocou discussões contundentes sobre a instituição da pena de morte como
meio de punição.
O marquês de Beccaria alegava que a função das penas era exclusivamente
intimidatória. Neste sentido, Ribeiro atesta que, para este iluminista italiano:

A finalidade da punição seria impedir o réu de causar novos danos aos seus
concidadãos e demover os demais de fazer o mesmo. O meio adequado para
atingir esta meta é o que ele chama de ―a doçura das penas‖; não é necessário
que as penas sejam cruéis para serem dissuasórias, basta que sejam garantidas.
(2004, p.23)

Ribeiro ainda assevera que, para Beccaria, um outro argumento relevante é o de que
―a intimidação nasce não da intensidade da pena, mas de sua extensão‖. (2004, p. 23)
Neste contexto, o iluminista entende a perda total e definitiva da liberdade como
sendo um meio de intimidação mais eficaz do que a pena de morte.
Em virtude destes ideais liberais e individualistas, emergiram, no século XVIII,
protestos, feitos pelos filósofos do direito natural e pelos iluministas, buscando um
tratamento privilegiado para o infanticídio, tendo como embasamento, sobretudo, a
intenção, por parte da mãe, de ocultar a própria desonra.
É importante mencionar que o critério justificador deste privilégio concedido à
infanticida era de cunho psicológico.
Bruno, comentando tal critério, defende o princípio da defesa de honra da seguinte
forma:

Tomava-se por fundamento da especialização dessa figura delituosa, o conflito


tão dramaticamente descrito [...] em que se debate a mulher que concebeu em
situação ilegítima, entre matar o filho nascente ou submeter-se às duras
conseqüências da perda do seu estado de mulher honrada. Têrmo final da longa e
angustiosa elaboração de uma consciência diante das negras perspectivas de
desonra e do destino a que está condenada ela mesma e o fruto de suas relações
ilícitas [...] O motivo da preservação da honra encerra em si mesmo outros
também importantes, que justificam o privilégio – os de ordem econômica ou o
da compaixão para com o filho em face do provável futuro que o espera. (1966,
p. 144)

Por conta desses movimentos humanistas do século XVIII, houve o abrandamento


das penas instituídas às infanticidas, influenciando diversos países a mudarem suas
legislações penais e adicionarem o privilégio honoris causa ao infanticídio. Em 1786, a lei
toscana foi a primeira a abolir a pena capital de seu ordenamento.
Logo depois, o Código Austríaco, em 1803, começou a considerar o infanticídio
uma forma de homicídio privilegiado. Em seguida, a Baviera, em 1813, aboliu a pena de
morte para este delito. Contudo, o Lord Ellenborough´s Act (lei inglesa), de 1803, o
Código Napoleônico, de 1810, e o Código Penal português continuaram com a pena de
morte.
Quanto a tais diplomas legais, Ribeiro afirma:

O dispositivo concernente ao – Código Napoleônico – foi revogado por uma lei


de 21 de novembro de 1910. Posteriormente, com o advento da lei de Vichy, de
2.9.41, a pena do infanticídio na França foi atenuada, tendência mantida por
outra lei de 13 de abril de 1954. Na Inglaterra, o Infanticide Act, de 1927, insistiu
na intolerância antiga. Todavia, a Lei de 9.11.64, Abolishment of Death Penalty
Act, aboliu a pena de morte. (2004, p. 24-25)

Conforme o exposto, depreende-se que, no decorrer da história, o infanticídio


apresentou diversos entendimentos divergentes, muitas vezes, nem sendo considerado
um crime. Até hoje, vários países continuam a apresentar pensamentos díspares sobre tal
tema, mostrando o quanto esta matéria jurídica é mutável e importante para o Direito.
O infanticídio no Direito Penal brasileiro

A expressão infanticídio está relacionada à morte de uma criança, mais


especificamente de um recém-nascido, onde a mãe devido a seu estado puerperal comete
este crime.
Uma definição bem clara é apontada por Maggio:
A expressão infanticídio (do latim: infanticidium) sempre teve no decorrer da
história, o significado de morte de criança, especialmente do recém-nascido. Sua
prática era comum entre os povos primitivos para evitar que crianças fracas e
deformadas continuassem a viver, visando, assim, a constituição de uma raça
saudável e vigorosa. (2004, p. 23)

A visão primitiva de se descartar uma criança considerada fraca e deformada,


embora seja vista hoje como inconcebível, era bastante comum em épocas remotas,
inexistindo, portanto, manifestações populares contra este tipo de atitude, tipificada
posteriormente como crime.
O infanticídio, portanto, é um crime previsto no Código Penal brasileiro, no artigo
123, com uma característica bem própria, já que é o homicídio praticado pela própria mãe
contra seu filho, geralmente ainda recém-nascido, tendo em vista que a mesma está sob a
influência do estado puerperal.
Nesse sentido, convém mencionar o que afirma Nucci:

Trata-se do homicídio cometido pela mãe contra seu filho, nascente ou recém-
nascido, sob a influência do estado puerperal. É uma hipótese de homicídio
privilegiado em que, por circunstâncias particulares e especiais, houve por bem
o legislador conferir tratamento mais brando à autora do delito, diminuindo a
faixa de fixação da pena (mínimo e máximo). Embora formalmente tenha o
legislador eleito a figura do infanticídio como crime autônomo, na essência
não passa de um homicídio privilegiado, como já observamos. (2013, p. 663-
664)

Esta espécie de homicídio foi devidamente tratada pelo legislador a fim de que não
fosse entendido este crime como um homicídio geral, e sim, específico e/ou privilegiado,
tendo em vista que existe um elemento normativo para que a conduta criminosa seja
entendida como tal, isto é, para que realmente seja configurado o crime de infanticídio.
Ainda quanto a conceituação, é importante observar as palavras de Capez:

Segundo o disposto no artigo 123 do Código Penal, podemos definir o


infanticídio como a ocisão da vida do ser nascente ou do neonato, realizada pela
própria mãe, que se encontra sob a influência do estado puerperal. Trata-se de
uma espécie de homicídio doloso privilegiado, cujo privilegium é concedido em
virtude da ―influência do estado puerperal‖ sob o qual se encontra a parturiente.
É que o estado puerperal, por vezes, pode acarretar distúrbios psíquicos na
genitora, os quais diminuem a sua capacidade de entendimento ou auto inibição,
levando-a a eliminar a vida do infante. (2014, p. 134-135)
Percebe-se que é justamente devido a possíveis distúrbios psíquicos gerados com o
parto, que a genitora pode matar o seu próprio filho, sendo por isto o crime de infanticídio
considerado um homicídio doloso privilegiado, tendo a característica peculiar de que foi
cometido sob a influência do estado puerperal.
Corroborando com este entendimento anteriormente citado, Jesus afirma
claramente que, ―[...] o infanticídio não deixa de ser, doutrinariamente, forma de homicídio
privilegiado, em que o legislador leva em consideração a situação particular da mulher que
vem a matar o próprio filho em condições especiais‖. (2004, p. 106)
A mulher, portanto, mata seu filho por estar sob a influência do estado puerperal,
estado este que tende a trazer transtornos de natureza psíquica, e por isso explica a conduta
da genitora.
É justamente por influência do estado puerperal que a genitora mata e, por isso, é
importante conhecer maiores detalhes sobre esta característica que é tão relevante, a ponto
de ser o elemento normativo do crime de infanticídio.
O estado puerperal é definido por Guimarães como ―[...] uma alteração temporária
em mulher previamente sã, com colapso do senso moral e diminuição da capacidade de
entendimento seguida de liberação de instintos, culminando com a agressão ao próprio
filho‖. (2003, p. 10)
Diante do exposto, vê-se que o estado puerperal é algo bastante complexo, tendo
em vista que altera a sanidade da mulher, o que é amplamente aceito como prejudicial e
por isso causador de um crime, mas também é temporário, embora não seja definido o
tempo real que o mesmo pode durar.
Essa impossibilidade de delimitação temporal é muito discutível em âmbito
doutrinário, tendo em vista que já há autores que estipulam um período de duração do
estado puerperal, embora tal período não seja amplamente aceito.
Em relação a esta divergência no período do estado puerperal, Araújo afirma:

O estado puerperal é o período pós-parto ocorrido entre a expulsão da placenta


e a volta do organismo da mãe para o estado anterior a gravidez. Há quem diga
que o estado puerperal dura somente de 3 a 7 dias após o parto, mas também há
quem entenda que poderia perdurar por um mês ou por algumas horas. (2017,
p. 2)
Essa inconsistência quanto ao tempo é que deixa ainda mais complexa a definição
do estado puerperal quanto a sua duração, fazendo com que ocorra opiniões diversas nesse
sentido.
É importante apontar o que diz Muakad sobre as divergências no tocante a duração
do estado puerperal:

[...] a expressão estado puerperal tem sido considerada controvertida e merecido,


através dos tempos, severas críticas denominadas por alguns, simples ficção
jurídica, para justificar o abrandamento do tratamento penal; é algo fantasioso e
sem limite de duração definido. (2002, p. 198)

Este entendimento do autor a pouco citado demonstra que enquanto alguns autores
defendem que o estado puerperal é bastante danoso e duradouro, há outros que discordam,
acreditando que embora ocorra o estado puerperal, este não é de tamanha proporção que
justifique a imputação de uma pena mais branda a genitora que cometeu o crime sob a
influência deste estado puerperal.

Infanticídio x Cultura Patriarcalista

Ao longo da história é possível perceber que o infanticídio passou por


transformações e que houve íntima relação da prática deste, hoje, considerado crime, com
questões ligadas a uma cultura patriarcalista.
São vários os motivos que relacionam o infanticídio com a cultura patriarcalista,
conforme podemos observar nas palavras de Hungria:

Uma maneira de salvar a dignidade, a reputação e o constrangimento ante as


mais ingratas perspectivas de um destino de condenada pelo fruto de suas
relações clandestinas. Dizem os defensores desse estado: a ideia de redimir-se
pelo infanticídio começa, consciente e inconscientemente, formando-se numa
alma angustiada e sofrida. De princípio, consegue a mulher esconder a prova
do pecado, mas a cada dia começa a crescer o período do escândalo que a
gravidez lhe trará. Perde a coragem de simular um sorriso, o ânimo é
enfraquecido e as ideias e os sentimentos descoordenados e desconcertantes. Já
não demora o tempo em que tornará a esconder o momento fatal da desgraça,
da desonra e da humilhação ante uma família e uma sociedade impiedosa e
inclemente. (1981, p. 243-244)

A sociedade discriminatória e com altos resquícios de intolerância leva a mulher a


querer livrar-se do filho, pois este é tido como motivo de desonra, humilhação, vergonha,
enfim, a nova vida não é bem-vinda devido a tanta intolerância e discriminação que existe
na sociedade, fruto de uma cultura machista.
A mulher carrega uma culpa e uma vergonha devido a um fruto que foi criado com
outra pessoa (homem), o qual, resguarda-se o direito de sair ileso desta situação, não
assumindo seus atos.
Convém mencionar as palavras de Rohden:

O infanticídio é inegavelmente e antes de tudo, um delito social, praticado na


quase totalidade dos casos, por mães solteiras ou mulheres abandonadas pelos
maridos e pelos amásios. Raríssimas vezes, para não dizer nenhuma, têm sido
acusadas desses crimes mulheres casadas e felizes, as quais, via de regra, dão a
luz cercadas de amparo do esposo e do apoio moral dos familiares. (2003, p.
172)

Tal posicionamento só enfatiza ainda mais que o infanticídio tem grande relação
com a cultura social, onde ao homem é permitido escolher, ou não, assumir suas
responsabilidades, enquanto que a mulher sofre com todos os medos, discriminações,
enfim, com o fruto que, embora gerado conjuntamente, passa a ser encargo seu.
Diante disto, vê-se que o infanticídio torna-se prática de mulheres que, em geral,
não possuem o apoio do genitor e são vistas com maus olhos pela sociedade, sociedade
esta que insiste em manter-se conservadora a costumes discriminatórios, os quais deveriam
ser urgentemente banidos.
É mais fácil criminalizar a mulher, a praticante do infanticídio, conforme menciona
Coelho Netto:

A criminalização das mulheres é, portanto, um processo historicamente


construído sobre as bases do exercício do poder político e econômico de um
Estado e de um Direito fundados em bases patriarcais e machistas, onde a
unidade dialética consenso-coerção é mais intensamente aplicada quanto maior
for a vulnerabilidade do grupo de risco, e as mulheres encontram-se, sem
dúvidas, na posição de maior vulnerabilidade no sistema coercitivo penal
brasileiro. Vulnerabilidade esta que pode ser comprovada quando feita uma
análise concomitante de gênero, raça e classe social dos grupos criminalizados
no Brasil. (2013, p. 321-322)

Assim, a postura jurídica adotada no crime de infanticídio, demonstra que a sanção


recai sobre o vulnerável (genitora/mulher), dando continuidade a posturas machistas e
discriminatórias, onde há a responsabilização segregada, apenas para a mulher.
Neste sentido, é relevante mencionar o que afirma Beccaria:

O infanticídio é também o resultado quase inevitável da cruel alternativa em que


se encontra uma infeliz que cedeu por violência ou fraqueza. De um lado a
infâmia, de outro a morte de um ser incapaz de sentir a perda da vida: como não
havia de preferir esse último partido, que rouba à vergonha, à miséria,
juntamente com o desgraçado filhinho? (1997, p. 112)

Vê-se que a mulher é, na verdade, uma vítima, pois o quadro social não lhe dá
muitas oportunidades de escolhas, sendo sua ação reflexo do contexto social no qual ela
está inserida.
O fato é que a prática do infanticídio pode ser tida como uma fraqueza (a mulher
não consegue lidar com tantas adversidades) ou como uma violência, fruto da infâmia
sofrida.
Em ambos os casos, o prejuízo recai exclusivamente sobre a mulher que, além de
ter que conviver com as críticas à sua pessoa e sua conduta, tem ainda um problema bem
maior, sentir-se eternamente culpada, mesmo que sua ação tenha origens totalmente
distintas de sua vontade, ou seja, há todo um histórico anterior que deram causa a execução
da conduta delituosa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A legislação penal brasileira é bastante clara ao tratar o infanticídio relacionado ao


crime praticado pela genitora que está sob a influência do estado puerperal, o que é uma
característica própria, recebendo por isso um olhar e, consequentemente, uma pena
diferente do crime de homicídio.
A crítica reside justamente pelo fato de não se ter comprovação científica da
duração do estado puerperal, só havendo uma ampla concordância no tocante ao estado
puerperal poder trazer sérias alterações psicológicas na mulher.
Além disso, apenas a questão do estado puerperal é levada em consideração
quando, na verdade, vários outros fatores podem estar relacionados a esta tomada de
decisão por parte da genitora, dentre eles, o constrangimento, a vergonha, o abandono,
entre outros.
Neste sentido, fica claro que a cultura patriarcalista implicou e implica no crime de
infanticídio, pois são vários os fatores que levam a mulher a praticar esta conduta, fruto de
problemas vislumbrados ainda no período gestacional.
O problema é que, em geral, tende-se a analisar o fato (crime) de maneira isolada,
isto é, o acontecimento, deixando de perceber todo um contexto anterior, que pode ter
contribuído significativamente para o resultado final.
Assim sendo, é urgente um novo olhar, isto é, uma adequação ao tratamento que é
dado no caso do crime de infanticídio, pois a mulher, mesmo tendo sofrido discriminação,
rejeição, intolerância, medos, enfim, todo um conjunto de danos a sua saúde física e
mental, ainda tem que responder judicialmente por uma prática que possui outros fatores
envolvidos, como a ausência do homem, que mesmo tendo contribuído ativamente para a
gravidez, reserva-se o direito de manter-se inerte, ainda contando com o apoio social, já
que não há uma cobrança para que ele assuma igualmente seu ato.
REFERÊNCIAS

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CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. Parte especial: dos crimes contra a pessoa a
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UM GRITO DE ALERTA PARA A NECESSIDADE DO EMPODERAMENTO
FEMININO

Maria da Conceição Carneiro de Barrosvi

GT02-Gênero, Sexualidade e Direitos


Humanos.

RESUMO

Em uma sociedade patriarcal, guiada por um conjunto de normas machistas e


conservadoras, a mulher, por um viés, coercitivo e alienante, acaba por adquirir um lugar
desfavorável e submisso ao homem. Encontra-se em sua jornada da vida, em um papel de
vítima, posiciona-se em meio a um embate conflitante, devido à desigualdade de gênero
existente. Busca por direitos, por conquistas, por defesa de opinião, por defesa do seu
corpo, em fim, por um lugar, digno, na sociedade. Em um cenário de perdas e ganhos, a
mulher por uma necessidade de uma digna sobrevivência, tenta conquistar um lugar de
igualdade ao homem, um lugar de valor e respeito, onde possa ser visivelmente enxergada,
valorizada e respeitada. A conscientização e a luta coletiva das mulheres, vem a fazer
valer todo um processo de desalienação embasado pelo empoderamento feminino, sendo
de total relevância para novas conquistas e para a construção de caminhos rumo à
emancipação feminina perante o machismo. O emporedamento não pode limitar-se,
apenas, de forma estrutural ou social, mas, também, de forma politicamente ideológica,
uma vez que a cultura patriarcal e machista se faz, ainda, muito presente na sociedade.

Palavras-chave: Mulher na sociedade. Empoderamento. Vítima da reprodução patriarcal.

INTRODUÇÃO

Em meio a um contexto sócio-histórico, guiado por normas patriarcais, o


gênero feminino vem a ser subjugado e ao mesmo tempo violentado, não apenas
fisicamente, mas, nas mais diferentes formas de violência, decorrente de práticas
preconceituosas, estigmatizantes e machistas. Coercitivamente a mulher sofre a realidade a
ela ―destinada‖, uma vez que o ―molde‖ esculpido pelo machismo patriarcal se faz presente
em seu dia a dia. Silva (2012) em suas entrelinhas fala que, ―A incumbência das esposas
era a satisfação das necessidades da ordem doméstica no seio da família, garantindo a
infraestrutura para manutenção e reprodução da força de trabalho[...]‖, porém, tais
incumbências se faz presente na vida de todas as mulheres, não apenas, das mulheres
casadas, ou mais precisamente, as esposas, mas sim do ser mulher, sendo essa uma forma
de afastá-la da esfera pública e de negar sua voz perante a sociedade.

Este estudo tem como principal intuito enfatizar a importância do empoderamento


feminino, uma vez que algumas mulher em condição de vítima, mesmo que empoderada,
acaba por reproduzir conceitos e práticas patriarcais e machistas, bastante presentes na
sociedade. Sua hipótese subtende-se que há uma relação de submissão e alienação
feminina, diante da ideologia patriarcal, ainda que o empoderameto venha a fazer parte da
vida dessas mulheres, porém há uma possível fragmentação da luta, que vem a resultar em
um processo difícil de se obter um êxito por completo. O empoderamento, de forma geral,
se faz presente, mas a ideologia dominante ainda é embasada pela falácia construída pela
classe masculina. Na metodologia realizou-se, através de aportes teóricos, sendo todos via
internet, pesquisas contidas em artigos científicos, dissertações, revistas, livros, cadernos,
monografia e dados do Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (IPEA)2015, referente à
pesquisa sobre Percepção Social 2014. Diante de tal realidade, o problema, vem a
perguntar: Porque algumas mulheres, ainda que empoderadas, acabam reproduzindo, de
forma alienada, algumas práticas machistas e patriarcais? Sendo assim, o objetivo geral,
traz como respostas, a importância de uma análise reflexiva diante de alguns pontos, que
possivelmente venham a contribuir para tal reprodução pelo público feminino, chamando a
atenção para a necessidade do empoderamento. Nos objetivos específicos, dá-se ênfase em
dois pontos: primeiramente, de forma sutil, explana-se um pouco do contexto sócio-
histórico envolvido, assim como o conceito de algumas nomenclaturas, junto a sua
importância na temática, para uma melhor compreensão introdutória. Em segundo, a
exploração de algumas possíveis causas que venham a contribuir para reprodução de tais
práticas, diante de estudos literários e resultados da pesquisa atual(IPEA,2015), trazendo a
teoria, junto à realidade.
Em sua justificativa, traz-se a inquietação pelo fato de algumas mulheres
acabarem por reproduzir práticas machistas e patriarcais, provocando assim o desejo de
entender melhor o que faz levar a essa realidade, uma vez que estruturou-se
historicamente, socialmente e culturalmente o ―império masculino‖ em um sistema de
produção capitalista que tem como base, a exploração. Logo este passa a ser um estudo
relevante para as duas classes, mas enfatiza-se mais o gênero feminino, a fim de levar a
conscientização da importância do empoderamento feminino, em sua totalidade.
Para a elaboração deste artigo, seu referencial teórico, fora dividido em três
subtópicos, onde destrincha-se primeiramente a contextualizar a mulher em meio à
sociedade, perpassando pelo o valor do seu papel junto às suas particularidades, como, a
mulher junto às mudanças na esfera familiar, a limitação feminina em função da esfera do
âmbito privado, ou seja, o espaço de reprodução social, a rotulação de inferioridade
feminina pelo sistema, o aprisionamento referente às causas e a mulher vista pela
perspectiva de gênero.Em segundo, explora-se um pouco do movimento feminista,
perpassando pelo conceito do empoderamento, juntamente a alguns estudos referentes a
ele, sendo este conceito, a peça chave do artigo, e a classificação da mulher na categoria
de polivalente. Para finalizar, expõe-se alguns pontos que veem a contribuir para a
situação de exploração e submissão da mulher na sociedade, assim também ao
levantamento de dados do IPEA, direcionado sobre a diferença de gênero e sobre a
perspectiva social sobre à violência contra à mulher. Para conclusão do estudo foram
expostos as discussões, e logo mais as considerações finais. Nas discussões expõe-se um
pouco de cada ponto que relaciona-se à trajetória desvalorizada da mulher e discussões a
respeito das às frases trabalhadas na pesquisa, fazendo uma abordagem crítica e reflexiva.
Através do estudo embasado por pesquisas junto aos dados do IPEA, chega-se a conclusão
de que realmente há a necessidade de um empoderamento mais preciso e completo, sem
fragmentações e perdas de ideologias, mais que urgente e comprometedor por parte de
todos que lutam e buscam pela mudança do papel da mulher na sociedade, uma vez que ao
analisar a pesquisa, e a aceitação dos participantes, composto também por mulheres, é
bastante expressivo o viés conservador, preconceituoso e machista, quando o assunto é
mulher. Diante de tais resultados constata-se que algumas mulheres, mesmo que
empoderadas, acabam por reproduzir tal ideologia, mostrando-se, ainda, vítima do sistema
machista, dominante e opressor formado pela figura masculina, posicionando de forma
elevada e superior a figura masculina.

DESENVOLVIMENTO

Particularidades da mulher em meio à sociedade patriarcal


A sociedade, composta por indivíduos, regidos por normas e regras, delimitam a
maneira pela qual o indivíduo vive. A mulher por sua vez, tem um papel árduo e
desvalorizado. Obtendo um lugar submisso às práticas preconceituosas e machistas,
advindas do homem, uma vez que este solidificou sua história, através de pilares
patriarcais, fazendo dessa uma forma de exclusão da mulher, não só na história da
sociedade, mas ao mesmo tempo usurpando dela, a sua liberdade.

Mas o sentimento de poder do homem pela mulher, é um sentimento construído


socialmente, resultante da relação de subjugação da mulher pelo sexo masculino. É com tal
relevância que deve-se direcionar um olhar crítico diante da situação de violência que
inúmeras mulheres sofreram e sofrem até os dias atuais na história. O comportamento de
posse do homem chega a ser naturalizado por muitas pessoas, porém, hoje, tal
posicionamento, vem sendo reprimido por uma parcela da sociedade, direcionada pela
desconstrução dessa prática violenta e opressora, relacionada à mulher. Conforme
mostram alguns autores em seus estudos, esse quadro de violação de direitos, de
obscuridade do ser feminino em meio à sociedade dar-se às devidas transformações
sociais, iniciando-se com o surgimento da propriedade privada. Conforme (SILVA, 2012)
fala, a transição da sociedade em suas relações, fizeram surgir mudanças na esfera
familiar, antes poligâmica, passando a ser monogâmica, logo depois do surgimento da
propriedade privada, juntamente com o patriarcado, que retém o poder diante dos outros
membros da família. Outra característica que a autora aponta é a divisão social do trabalho,
sendo crucial as três pontuações para a existência do processo de opressão da mulher pelo
homem.

Além desses três pontos, é importante frisar a necessidade que o machismo


patriarcal tem em direcionar como sendo a esfera privada, o reduto destinado à mulher, a
excluindo da esfera pública, vindo assim a afastá-la das decisões, das inclusões e das
participações, tirando-lhe o direito de interagir, opinar e se fazer valer socialmente. Dando-
lhe como unicamente a condição de atuar limitadamente nos papéis de esposa e mãe. Uma
alienação ideológica em forma de ―aceitação‖ foi ao longo da história se fortalecendo, em
meio aos dois gêneros, consequentemente, introduzindo-a cada vez mais na esfera do
trabalho reprodutivo, afastando-a de seus verdadeiros direitos e valores. Ao mesmo tempo
traz-se para as discussões sociais, o motivo pelo qual a mulher por muitas vezes e anos
acaba calando-se em forma de subjugação e humilhação, que não é vivenciado apenas na
âmbito doméstico, reproduz-se para além do lar, além da vida privada, partindo para a
vida pública, tendo como consequência as mais diferentes formas discriminatórias.

―Essa separação entre espaço público e privado tem como base a divisão sexual
do trabalho, que responsabiliza as mulheres pelo trabalho doméstico e os
cuidados com os filhos, privando-as de viver em pé de igualdade com os homens
a vida pública‖. (SILVA et al 2016, p.18).

O reduto da reprodução social destinado à mulher, acaba por direciona-la a uma


posição de ―limitação‖ relacionada ao homem, posição essa tão forte e entranhada na
sociedade, que passa a ser um dos pontos que vem a incorporar ao ―cordão‖ do
preconceito, através da subjugação da mulher, em sua capacidade, sendo considerada
como uma pessoa limitada e incapaz, onde não chega-se nem a colocar em dúvida sua
competência, mas, logo, determina-se conforme o machismo quer que seja, tachando de
forma negativa e discriminatória o posicionamento feminino. Porém, há a necessidade de
se ter um olhar crítico a respeito dessa prática reprodutiva e alienante. Com tudo o
processo histórico dialético, traz discursos, contradições e mudanças, sendo essencial que
na trajetória da feminilidade desconstruam-se velhos argumentos e construam-se novas
percepções e novas tendências sociais. Sabe-se da importância de se trabalhar esse
conceito taxativo de ―inferioridade feminina‖, onde por muitas vezes a própria mulher
acaba se intitulando como inferior, repassando e naturalizado tal posicionamento social.

De acordo com Saffioti, (1987) , sabe-se que a tal ―inferioridade‖ dar-se devido ao
fato da determinação do viés preconceituoso, imposta através de uma superioridade
masculina, por meio de um processo de exclusão, onde, para o patriarcado, as habilidade
femininas restringe-se aos afazeres domésticos e a família, sendo a capacidade para demais
habilidades impossível no meio feminino, restringindo, o conhecimento, o contato, a busca
pelo novo, apenas ao homem, através da sociabilidade nos mais diferentes espaços.
Em meio a impossibilidade de uma interação social de forma construtiva,
consciente e libertária, a mulher por submeter-se a uma vida regida pelos mais diferentes
tipos de violência, acaba sendo vítima das mais diferentes formas de violência. Ou seja,
além da ideologia embasada pelo viés do conservadorismo, do machismo e do patriarcado,
o homem ―sente a necessidade‖ de ir além, colocando em prática todo o seu desejo de
possuir tudo como propriedade sua, inclusive, a mulher, passando a fazer surgir um
quadro de violência.

Sabe-se do gritante impacto que é a violência à mulher pode gerar. As marcas


podem chegar a serem fatais. Mas ainda assim, a submissão vem a perpassar por diversas
causas, que acaba por vir a atrelar-se, por muitas vezes, ao sentimento da emoção. Há toda
uma gama de processos sociais existentes envolvidos, naquela condição de vida que vem a
contribuir para tal realidade. De acordo com Varela (1998), a resistência em manter o
casamento, ou qualquer forma de relacionamento é grande, seja, por amor, seja por doença,
configurando assim um silêncio junto a submissão, a mulher acaba esquecendo de si
mesma e passa a viver através das condicionalidades impostas pelo seu companheiro,
enfatizando mais ainda o papel da esposa e ao mesmo tempo de mãe, agora também, de
seus companheiros. (SAFFIOTI, 2001, pág.115) “Com efeito, a ideologia de gênero é
insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca,
tendo este necessidade de fazer uso da violência.‖
Não poderia continuar o devido estudo sem falar um pouco do conceito de gênero,
que em sua essência acabar por trazer várias contradições e resistência socialmente em
aceitá-lo.

Para Carvalho (2011), o gênero é construído através de conceitos culturais e


sociais, destinando-o assim conforme a perspectiva atribuída pela sociedade, que tem como
resultado, um posicionamento de posse, erguido através das desigualdades, guiadas pelo
fator biológico e cultural, constituídos em um dialético processo histórico. Observa-se
que a partir da construção do gênero, é imprescindível, não só apenas buscar conceitos
teóricos, mas colocar em prática uma lógica de desconstrução imposta de forma falaciosa,
onde vem a contribuir e desfavorecer a mulher, lhe colocando em situação da fragilidade,
impotência e desigualdade. É fato tal segregação em meio às identidades de gênero, uma
vez que é trabalhado desde a hora que nasce, pelas diferentes esferas, o seu
posicionamento, restringindo-se, com exatidão, à mulher.

Porém o papel da mulher, como gênero feminino, na sociedade, não foi apenas e
unicamente de suplício, perdas e exclusões, mas de vitórias e conquistas, ainda que por
meio de sofrimento e muita luta, até de fato ir reafirmando seu lugar na sociedade. A
mudança não só vinha a acontecer na esfera social, mas, também, no interior feminino. Na
fala de Besse (1999), ela argumenta que, após a Primeira Guerra Mundial, no Brasil, diante
de um processo industrial, regido por mudanças sociais, políticas e econômicas, as
mulheres começaram a transparecer-se em meio ao público, de forma exploratória, por
muitas vezes, sendo por um viés mercadológico, mas apareciam também seguindo um
direcionamento emancipatório, ainda que de modo encetado, pois, as mudanças durante
esse período eram constantes e as mulheres se faziam presente cada vez mais, sendo na
academia, nas ruas ou nas indústrias. O conceito de gênero estava em discussão mediante
perspectivas contraditórias na sociedade, porém, as mulheres em si, buscavam cada vez
mais fortalecerem-se através de práticas ativistas por intermédio de discussões e inserção
em diversas esferas sociais. O movimento feminista vai aos poucos ganhando espaço em
suas lutas e conquistas.
A voz da mulher em meio às suas atitudes

Em meio a tais mudanças, a mulher junto às articulações, fortalece-se cada vez


mais, fazendo surgir assim, o movimento feminista que se fez e faz presente, até os dias
atuais, com maior participação e mais intensidade, diante de seus propósitos e seu
comprometimento com a classe. Faz-se necessário conhecer um pouco de sua história e
sua luta, que veio a dar o início de uma desconstrução de conceitos e a realidade atual que
se tem hoje, fruto do ontem, conquistado através de muita luta. O papel da mulher era de
suma importância no âmbito familiar, mas também, era de total responsabilidade, a partir
do momento em que houvesse alguma ―falha‖, ou ―descuido‖, que viesse a colocar em um
papel vulnerável e comprometedor à família e não à mulher. Blay(2003), em suas
entrelinhas diz que o fato da mulher exercer sua atividade laboral, assim como o homem
exercia, fora do recanto domiciliar, era considerada como a protagonista do desajuste do
casamento e da separação, logo, através dessa perspectiva, fizera surgir, o crime
relacionado às mulheres, não que já não existisse, mas agora com o conceito de crimes
passionais, onde trazia para o movimento feminista mais um desagravo contra a mulher.
Porém, o movimento feminista guiado pelo enfervecer das mudanças sócio-históricas,
considerado com mais rigor a partir das décadas de 60 e 70, consolida assim, a união das
mulheres, inseridas nos mais diversos setores de luta, inclusive no viés da violência, por
uma busca de justiça e igualdade de gênero.

As conquistas foram se multiplicando, e ao mesmo tempo a necessidade de se


impor novamente e se fazer valer, como tinha o seu lugar de igualdade com o homem,
antes da sociedade privada, mencionada anteriormente. Com isso entra em cena a questão
do empoderamento feminino, sendo necessário e essencial à mulher, resultado de muitas
lutas, de uma aproximação com o seu real lugar na sociedade, de uma árdua caminhada,
onde têm como obstáculos uma tradição, guiada por uma concretude preconceituosa,
racista, sexista e machista.

Mas ao se tratar de empoderamento, em uma breve explanação pode-se destacar


um pouco do seu processo, através do estudo de Kleba e Wendausen (2009) que vem a
falar que o empoderamento, distinguisse em duas dimensões, sendo uma psicológica e
outra política. Atribui-se a psicológica direcionada para o eu da pessoa, juntamente ao
processo de autoajuda e de emancipação do indivíduo, estimulando ao mesmo tempo o
meio do auto-reconhecimento, embasado pela segurança e valorização de si próprio. Já à
dimensão política, é voltada a todo um processo exterior, melhor, processos sociais
existentes que passa a ser essencial e fundamental um engajamento mútuo por parte dos
atores envolvidos, em prol de mudanças coletivas sociais.

Mas em seu processo histórico, a mulher traz em sua essência a condição de


acolhedora de todas as situações, ocasionando-lhe assim uma multiplicidade de tarefas,
condicionada a ―contribuir‖ para um processo alienante e submisso. Diante dessa
perspectiva emancipatória, acaba por tornar-se uma mulher, rotulada como polivalente.
Em meio às conquistas do dia a dia, a mulher ganha seu espaço, mas sobrecarrega-se de tal
forma que por muitas vezes esquece-se de si própria, trazendo para si a necessidade de
obter o controle de tudo ao seu redor, sem perceber esse desenvolver cotidiano, que a
assola de uma forma ou de outra. Conforme Moraes (2012), a mulher a multivalentia vem
a fazer parte da vida da mulher nos dias atuais, onde procura dar respostas a todos os
problemas.

Ainda assim, é fundamental estigar a mulher na lógica do empoderamento,


direcionando-a de forma consciente, o máximo possível, para que cada vez mais obtenha-
se conquistas. A superioridade masculina, em sua ―soberania‖, encontra-se ainda, bastante
entranhada na sociedade. Logo, quando a mulher vem a alcançar espaços nesta sociedade
seletista, passa, ainda que de forma direta ou indireta, ligadas a movimentos ou não,
exprime-se um fortalecimento à luta pelo espaço feminino.

Souza E Cortêz (2008) falam que, no momento em que a mulher consegue atribuir
inúmeras conquistas, sendo as mais diferentes possíveis, nas diferentes esferas, realizando-
se internamente e externamente, ela ganha campo, e com isso uma indescritível e
intolerável aceitação do homem, uma vez que pode chegar, ou até passar da condição em
que encontra-se o homem, logo diante dessa realidade de conquistas femininas, o homem
sente a necessidade de impor sua masculinidade, para não perder o controle sob a mulher,
mostrando-se de forma violenta com a mesma.

Realidade feminina: a força da ideologia machista sobre o gênero feminino mostrada


em dados.

Alguns autores vêm a apontar alguns entraves que contribuem para as possíveis
causas que podem vir a contribuir para a reprodução de algumas práticas machistas pelo
público feminino.

Oliveira e Santos (2010), fala sobre o poder de situação e de voz por parte da
classe masculina, por um perspectiva ―normal‖ e ―aceita‖ pela sociedade, fazendo assim
desfavorecer a mulher em sua posição social, colocando-a em situação de submissão e
vítima da redução de seus direitos, sendo essa posição de poder político do homem, uma
das características que compõem a organização estrutural, imbuída de seus determinantes
sociais junto às relações de gênero.

Cisne (2004, pág.99) ―[...] fundamentalmente, a verdadeira emancipaçao das


mulheres só pode ser alcançada com a ruptura com o modo de produção capitalista [...]‖,
diante disso a autora fala sobre a importância da luta de classes uma vez que a
desigualdade, junto ao processo exploratório, acaba por construir uma esfera de submissão
e domínio entre os gêneros envolvidos, assim também entre pessoas de um único gênero.
Sendo assim a luta pelo fim de um viés exploratório, de violência e preconceituoso se dá
por enfrentar o sistema capitalista, em sua totalidade, logo, entende-se o quanto o sistema
capitalista está embutido na questão das classes sociais, assim como da sociedade por
completo, refletindo posicionamentos danosos e comprometedores, à sociedade e
principalmente à mulher, pela posição desfavorável em que se encontra.

È necessário fazer um recorte relacionado às condições estruturais e sociais que


encontram-se as mulheres, diante da realidade vivida por essas. Realidade diferenciada por
questões socioeconômicas, que resultam em um processo exploratório, seguido de
violência pelas mulheres que encontram-se, principalmente, na classe oprimida (ibid). Não
que as mulheres em uma posição socioeconômica não sofram violência e sejam oprimidas,
sofrem e são, mas as condições em que encontram-se as mulheres de poder aquisitivo
menor, é muito mais gritante e expresso diante da opressão, da humilhação, da submissão,
por inúmeros fatores, sejam sociais ou econômicos.

Há a necessidade de um olhar crítico para o processo de desvalorização da


mulher, uma vez que o não reconhecimento dela mesma na sociedade, implica em uma
fragilidade na questão do empoderamento, pois passa-se a reconhecer-se através de um
papel fragmentado e fragilizado, refletindo um enfrentamento pela luta na busca de direitos
na sociedade.(ibid)

O desconhecimento, a desinformação, acaba por resultar às mulheres, um


processo de submissão, opressão e violência. Estruturado tal processo pelo viés patriarcal
imbuído na sociedade, através das famílias estruturadas e condicionadas por determinadas
práticas. Resultando à mulher, o desconhecimento do poder sob seu corpo,
vulnerabilizando-a, perante tais práticas estabelecidas pela sociedade.

Muhlen em suas entrelinhas fala que:

As mulheres são donas de seus corpos, como há muito ressaltam as feministas


em slogans, tais como "nosso corpo nos pertence", mas a desinformação
associada a formações familiares desestruturantes e ao patriarcardo ainda
presente não contribuem para que as mulheres construam a consciência da
inviolabilidade de seus corpos assim como da propriedade que têm (ou que
deveriam ter) sobre ele.(2014, pág.291).

Adiciona-se a esse estudo, os dados referentes a uma pesquisa feita pelo


IPEA, onde foram apresentados tipos de posicionamento que se contradiziam,
pois uma hora a sociedade vem a defender a punição para casos relacionados à violência
contra mulher, outra hora, embriagada pelo fortes laços do patriarcado e do machismo,
vem a estigmatizar a mulher colocando-a no lugar de culpada. IPEA(2014).

Pesquisavi sobre Percepção Social - tolerância social à violência contra a mulher:


 Homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia. Concordaram com esta
afirmação, total ou parcialmente, 91% dos entrevistados em maio e junho de
2013[...]
 um homem pode xingar e gritar com sua própria mulher”. [...]89% tenderam
a discordar[...]”grifo do autor”

Se faz necessário destacar esse resultado, para o resultado, revelando assim


que, ainda sobre conceitos machistas e opressores, a sociedade vive um
processo, lento, de mudança, relacionado à violência contra mulher.”grifo do
autor”

 ―a roupa suja deve ser lavada em casa‖; 89% dos entrevistados tenderam a
concordar[...]
 ―em briga de marido e mulher não se mete a colher‖.82%.
 ―casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros
da família‖. [...]63% concordaram, total ou parcialmente[...]
 ―mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar‖: 65% dos/as
respondentes concordaram total ou parcialmente com a afirmação [...]
 ―se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros‖ Quase três
quintos dos entrevistados, 58%, concordaram, total ou parcialmente[...]
 ―os homens devem ser a cabeça do lar‖ Quase 64% dos entrevistados e das
entrevistadas afirmaram concordar total ou parcialmente[...]
 ―toda mulher sonha em se casar‖( Mais da metade dos entrevistados concordou
totalmente com esta frase).
 ―uma mulher só se sente realizada quando tem filhos‖ Quase 60% dos respondentes
disseram concordar total ou parcialmente com essa afirmação[...]
 ―a mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tem
vontade‖ 14% dos entrevistados afirmaram concordar totalmente, e 27,2%
concordaram total ou parcialmente.
 ―tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama‖ Mais da metade dos
respondentes concordou total ou parcialmente com a afirmação[...]
 ―o que acontece com o casal em casa não interessa aos outros‖. Dos respondentes,
quase 82% concordam com a frase[...]

Discussões:

Para uma melhor compreensão do estudo, utilizou-se alguns pontos, retirados de


artigos e teses, além da pesquisa do IPEA, que vem a mostrar de forma pontual
características que contribuem para elaboração desse estudo. De forma pontual pode-se
citar, a naturalidade que o homem tem sob o controle de situação e do poder político,
excluindo totalmente a mulher, principalmente da esfera pública. Porém, hoje, no quadro já
há a inserção da mulher em vários espaços sociais, levando sua fala e defendendo o que
acredita.

Pode-se citar também, o modo de produção capitalista, que vem a reproduzir a


todo um processo exploratório, onde envolve homem e mulher, porém as maiores vítimas
desse sistema capitalista é a mulher, onde em suas diferentes atuações acaba por desdobrar-
se diante da esfera pública e privada, sem o devido reconhecimento e com a injusta
desvalorização.

As condições socioeconômicas vêm a refletir na vida das mulheres de menor


poder aquisitivo, colocando-a em um lugar de total vulnerabilidade. A violência, a
submissão do gênero masculino pelo feminino existe, independente de classe, porém
quando se tem um poder aquisitivo menor, além de deparar-se com as imposições e
indiferenças desencadeadas pelo homem, há um posicionamento diferenciado por mulheres
com um melhor poder aquisitivo, resultando na desigualdade existente entre o mesmo
gênero.
O reflexo da desvalorização da mulher, acaba por atingir a própria mulher uma
vez que não se reconhece, de forma plena perante à sociedade, reproduzindo a
―naturalização‖ da valorização do homem e subestimando a si mesmo.

A falta de informação acaba por disseminar , o patriarcado, sendo base das


famílias em suas tradições e gerações, perpassando por muitas vezes, sob um processo de
desinformação, além de ser algo que está muito forte socialmente, que traz dificuldade de
mudança devido ao cotidiano existente, onde tempo é lucro.

Ao falar do IPEA, os dados utilizados que vieram a compor esse artigo foram de
suma importância para sua estruturação. A pesquisa foi adquirida no site do IPEA, sendo
destinada ao Sistema de Indicadores de Percepção Social - Tolerância social à violência
contra as mulheres 04 de abril de 2014.

Diante das frases expostas no artigo e trabalhadas na pesquisa, chega-se a


conclusão que em sua parcela total e parcial, o machismo, junto ao preconceito relacionado
ao gênero feminino, perpassa de forma ―naturalizada" pela sociedade. Ressalva-se para a
participação feminina em meio ao consenso no resultado da pesquisa, porém é necessário
fazer um recorte para o grande poder ideológico patriarcal entranhado na sociedade, que
por sua vez acaba alienando a mulher, uma vez que é vítima de tal sistema patriarcal, mas
não consegue por muitas vezes, ou só consegue, apenas, mais tarde enxergar com um
olhar crítico.

Expressa-se com bastante ênfase, a necessidade de se manter no âmbito privado


qualquer que seja a situação referente à mulher, certo que dessa forma apenas o homem
terá o controle, sem interferência pública.

O estigmatismo se reproduz com frequência quando associasse à moralidade.


Culpabilizar a mulher pelo seu comportamento, pelas suas vestes, assim como coloca-la
em posição de uma submissa violência, afirmando que seja por gostar, significa retirar do
homem, a culpa, garantindo o sentimento de posse e ao mesmo tempo de coisifica-la. Ao
especificar que a realização da mulher está através da família, com o casamento e o
nascimento de filhos, bastante nítido na percepção da sociedade, reproduz-se a figura
mulher e materna com uma notoriedade significativa, enviesada pelo devido papel da
mulher na sociedade patriarcal, que é na esfera familiar.

Desejo de posse e estupro resume-se a lógica de ver a mulher como um objeto de


necessidades sexuais. Tal sentimento de posse, se faz presente em qualquer situação, ainda
que siga de forma estereotipada, a distinção entre mulher que serve para casar e mulher
que não serve para casar, sendo bastante enfático socialmente, onde, simplesmente não é
aceitável e ao mesmo tempo faz-se quebra de regra, ou melhor, vai contra a ordem, a
mulher que expressa a sua liberdade, ao mesmo tempo que não acata ordens ou não
concorda com tais convicções conservadoras e patriarcais.

Entende-se que os números ainda são altos, onde acaba por gerar uma disparidade
na desigualdade e violência de gênero, porém, aos poucos notasse também, mudanças nas
percepções, com tudo, leva-se a crer que é essencial o desconstruir das praticas ideológicas
construídas unicamente pela ―sublimação‖ masculina, resultante da opressão feminina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da realidade exposta pela pesquisa, evidencia-se de forma concreta, a


força do patriarcado, onde reduz e desvaloriza, injustamente, os espaços referentes à
mulher. A partir daí é observável que, a mulher, por fazer parte da sociedade e viver sobre
o processo de alienação patriarcal, acaba sendo vítima e reprodutora de tal ideologia.

Hoje, através de um processo constante de desalienação, por parte da própria


mulher, através de toda uma luta estabelecida desde longos anos, envolvendo inúmeros
atores, como, diversas instituições, dos mais diferentes segmentos, assim também como
políticas públicas voltadas para a questão do papel da mulher na sociedade, seja por
igualdade, seja pelo fim da violência associada à mulher, é possível identificar as
mudanças alcançadas. Porém, através da pesquisa do IPEA(2014), observa-se que há, mais
do que nunca, a necessidade de se trabalhar o processo de empoderamento feminino, uma
vez que mesmo alcançando os mesmos espaços obtidos pelo homem, mesmo atribuindo as
mesmas responsabilidades impostas ao homem, mesmo adquirindo empoderamento, uma
boa parte das mulheres ainda se veem na posição de submissão ao homem, posição essa,
determinada pelo sistema patriarcal, resultando por uma continuidade da reprodução da
ideologia dominante, referenciando a figura do homem como absoluta e imutável,
fazendo-o valer como um ser sublime sobre as mulheres.

Ao concordar com as frases da pesquisas, parcialmente ou totalmente, conclui-se


que, apesar das conquistas estruturais e sociais adquiridas pelas mulheres, a mudança da
percepção ideológica e política ainda continua entrelaçada aos conceitos machistas. Vale
ressaltar que na pesquisa foram entrevistados homens e mulheres.

Há mudanças relacionadas a conceitos referentes à mulher, por parte da


sociedade, mudanças onde certas perspectivas já não são mais as mesmas, favorecendo,
agora, o mundo feminino, mas, há a necessidade de um trabalho contínuo e incansável
perante os mais diferentes viés construídos (viés estes de cunho machista e patriarcal), para
que a partir daí possa-se desconstruir a ideologia de desigualdade de gênero, de práticas e
normas patriarcais, machistas e preconceituosas construídas falaciosamente sobre um
interesse único, de uma classe que se considera ―opressora e dona da situação‖, como a
classe machista. Deve-se atentar-se para um processo educativo, para os dois gêneros,
como já se faz, mas, mais intensamente para o gênero feminino, uma vez que o gênero
masculino, interessasse unicamente pelo controle e poder sobre o gênero oposto ao seu, já
as mulheres, acabam sendo vítimas das práticas machistas, de forma contínua e
humilhante.

Finalizando, constata-se um patriarcado bastante intenso na sociedade,


desencadeado pela forma de pensar, pela forma de agir, estabelecendo um território
impróprio e inseguro para a figura feminina, porém, vale ressaltar que todo o processo de
submissão, opressão e violência vivenciado pela mulher, está associado ao modo de
produção capitalista, à divisão de classes, ao surgimento da propriedade privada, elevando
o homem a uma condição de superioridade à mulher. Diante disso é necessário atentar-se
às fragilidades aparecidas na luta da mulher por um lugar, digno, na sociedade, uma vez
que há uma possível quebra de interesses, uma vez que a causa, segue fragilizada, por
alguns grupos da classe, acabando por desvirtuar o intuito maior que é extinguir o
causador disso tudo, sendo este, o sistema capitalista, logo, constata-se que o
empoderamento, tem que ser completo, direcionado a todos os viés, para que a partir daí
possa-se surgir, de fato, efeitos.

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UMA BREVE ANÁILISE ACERCA DA PROVA NA LEI MARIA DA PENHA

Giseani Bezerra da Silvavi

GT 02: Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos

RESUMO

Aborda uma breve análise, não exaustiva, acerca da valoração probatória na Lei Maria da
Penha (LMP), como esse instituto vem sendo tratado nas doutrinas majoritárias e
minoritárias e seus respectivos entendimentos das Cortes Superiores, juntamente com as
jurisprudências atualizadas. O estudo foi desenvolvido a partir da necessidade sentida pela
autora em trazer à tona um tema ainda não muito difundido e não tão bem aceito pelas
Cortes Superiores, pela doutrina majoritária e, sobretudo, pela sociedade brasileira em
geral. Uma vez que, tal temática talvez traga consigo certo ranço de ―andar na contramão‖
do que vem sendo pregado pelos movimentos feministas de modo geral, destacando-se o
emponderamento feminino. Baseou-se em referenciais teóricos, com alguns dos principais
nomes da doutrina especializada no assunto. Pesquisa teórico-científica realizada através
de estudos bibliográficos, artigos científicos, sites especializados na área, dentre outros.

Palavras-chave: Direito Penal. Lei Maria da Penha. Valor Probatório. Processo Penal
Brasileiro.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como finalidade desenvolver uma breve explanação acerca
da prova na Lei Maria da Penha (LMP), como esse instituto vem sendo abordado nas
doutrinas majoritárias e minoritárias e respectivos entendimentos das Cortes Superiores,
juntamente com as jurisprudências atualizadas.

Todo o estudo teve seu embasamento em referencial teórico (através de pesquisas


bibliográficas, periódicos especializados na área, sites etc.), com alguns dos principais
nomes da doutrina especializada no assunto. Entretanto, a temática não foi tratada de
maneira exaustiva, o que houve foi a tentativa de explanar-se o maior número de
argumentos possíveis para trazer o leitor a uma reflexão no tocante à aplicabilidade da Lei
Maria da Penha.
O trabalho foi desenvolvido a partir da necessidade sentida pela autora em trazer à
tona um tema ainda não muito bem aceito pelas Cortes Superiores, pela doutrina
majoritária e, sobretudo, pela sociedade brasileira em geral. Uma vez que, tal temática
talvez traga consigo certo ranço de ―andar na contramão‖ do que vem sendo pregado pelos
movimentos feministas de modo geral, destacando-se o emponderamento feminino.
Leia-se, não é o intuito desta pesquisa teórico-científica querer desmerecer todos os
ganhos advindos com a Lei Maria da Penha. Eles são, sem dúvida, algumas das maiores
conquistas da sociedade brasileira. Pois, a LMP não atinge apenas a mulher, quando se
encontra em uma situação de hipossuficiência, e sim, a família, os amigos, os parentes das
vítimas, enfim, a sociedade como um todo. É algo tão significativo que o País foi
pressionado internacionalmente para que houvesse a implementação de políticas públicas
que assegurassem a condição feminina, que protegessem as mulheres de uma cultura
societária arraigada de patriarcalismo e costumes extremamente machistas.
No primeiro capítulo deste estudo, tem-se a introdução, trazendo como será
abordada a temática ao longo de seu desenvolvimento no trabalho. No segundo capítulo,
tem-se a prova no processo penal brasileiro. Já no terceiro capítulo, tem-se a Lei Maria da
Penha e alguns de seus avanços na sociedade brasileira. No quarto capítulo, tentou-se fazer
uma breve análise acerca do valor probatório na LMP. E, por último, mas com
características de extrema importância para finalização deste estudo, são mencionadas as
considerações finais, com o objetivo de promover um apanhado geral do que foi abordado
no discorrer de toda a pesquisa teórica. Além de mostrar quais os entendimentos trazidos
pela autora ao término desta obra.

2 A PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

O sistema adotado no âmbito do processo penal brasileiro é o de livre


convencimento motivado ou persuasão racional, como previsto na Constituição Federal,
nos termos do art. 93, IX, que diz:
[...] todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou
somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do
interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (BRASIL,
1988).

Acerca da temática, o art. 155 do Código de Processo Penal, preceitua:


Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida
em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente
nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas
cautelares, não repetíveis e antecipadas. (BRASIL, 1940).

No processo penal brasileiro a prova assumirá um papel crucial, uma vez que esta
terá valor preponderante no desencadear de uma ação penal, na qual não pode haver
dúvidas (precisa-se sempre respeitar o princípio do in dubio pro reo – na dúvida da autoria
do cometimento de ato ilícito, o réu será sempre beneficiado).
A imprescindibilidade da prova no processo penal é destacada pelo processualista
Fernando Capez da seguinte maneira:
Sem dúvida alguma, o tema referente à prova é o mais importante de toda a
ciência processual, já que as provas constituem os olhos do processo, o alicerce
sobre o qual se ergue toda a dialética processual. Sem provas idôneas e válidas,
de nada adianta desenvolverem-se aprofundados debates doutrinários e variadas
vertentes jurisprudenciais sobre temas jurídicos, pois a discussão não terá objeto.
(CAPEZ, 2011, p. 344).

Aqui, diferentemente do que ocorre num processo da esfera civil, o juiz não poderá
encerrar um processo sem prévia análise das provas, mesmo sendo o caso de réu confesso,
sempre priorizando e respeitando os princípios constitucionais do contraditório e da ampla
defesa. Uma vez que, a prova no âmbito criminal tem o condão de condenar ou absolver o
réu, de validar ou tornar nulo um ato ou um julgamento. A imputação do cometimento de
um crime pode trazer resultados irreversíveis e irreparáveis à vida de um cidadão, por isso,
faz-se necessário que a prova não deixe dúvidas quanto à autoria e materialidade ou não de
um ilícito penal.
O termo prova é proveniente do latim, cujo conceito pode ser estabelecido, sob a
óptica de Fernando Capez (2011, p. 344), da seguinte forma:
Do latim probatio, é o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz (CPP,
arts. 156, I e II, com a redação determinada pela Lei n. 11.690/2008) e por
terceiros [...], destinados a levar ao magistrado a convicção acerca da existência
ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação. Trata-
se, portanto, de todo e qualquer meio de percepção empregado pelo homem com
a finalidade de comprovar a verdade de uma alegação.
O objeto da prova é toda circunstância, fato ou alegação referente ao litígio sobre
os quais pesa incerteza, e que precisam ser demonstrados perante o juiz para o
deslinde da causa. São, portanto, fatos capazes de influir na decisão do processo,
na responsabilidade penal e na fixação da pena ou medida de segurança,
necessitando, por essa razão, de adequada comprovação em juízo.

Segundo o teórico Nicola Framarino dei Malatesta, há na prova um valor agregado


que extrapola o mero procedimento processual penal. Seria a necessidade do conhecimento
do estado de espírito humano, a dependência do ser em busca da verdade real dos fatos já
que nem sempre é possível haver testemunhas, gravações, filmagens etc., que possam
narrar de maneira fidedigna os fatos ocorridos no passado.
Sendo a prova o meio objetivo pelo qual o espírito humano se apodera da
verdade, a eficácia da prova será tanto maior, quanto mais clara, ampla e
firmemente ela fizer surgir no nosso espírito a crença de estarmos de posse da
verdade. Para se conhecer, portanto, a eficácia da prova, é necessário conhecer
como a verdade se refletiu no espírito humano, isto é, é necessário conhecer qual
estado ideológico, relativamente à coisa a verificar, que ela criou no nosso
espírito com sua ação.
Conseguintemente, para estudar bem a natureza da prova, é necessário começar
por conhecer os efeitos que ela pode produzir na consciência, e para este
conhecimento é necessário saber antes de mais nada os estados em que pode
encontrar-se o espírito, relativamente ao conhecimento da realidade.
Conhecendo, portanto, qual destes estados de conhecimento se induziu na
consciência pela ação da prova, obter-se-á a determinação do valor intrínseco
desta. [...] o espírito humano, relativamente ao conhecimento de um dado fato,
pode encontrar-se no estado de ignorância, ausência de todo o conhecimento; no
estado de credulidade, no sentido específico, igualdade de motivos para o
conhecimento afirmativo; no estado de certeza, conhecimento afirmativo,
triunfante. (MALATESTA, 1927, p. 19-20).

No tocante ao uso da prova proibida ou ilegal, no sistema processual penal


brasileiro, não é admitida a aceitação de provas que possam ferir o direito material. É de
tamanha importância que está até regulado como cláusula pétrea na Constituição Federal
de 1988, em seu art. 5º, inciso LVI, que versa: ―São inadmissíveis, no processo, as provas
obtidas por meios ilícitos‖.
Nas palavras de Eugênio Pacelli Oliveira (2009, p. 303):
Além da proteção aos direitos e garantias fundamentais, a vedação das provas
ilícitas também funciona como uma forma de controle da regularidade da
persecução penal, atuando como fator de inibição e dissuasão à adoção de
práticas probatórias ilegais. Cumpre, assim, eminente função pedagógica, ao
mesmo tempo em que tutela direitos e garantias assegurados pela ordem jurídica.
É importante salientar que o ordenamento jurídico brasileiro faz diferenciação entre
prova ilícita X prova ilegítima. Como fica evidente nas palavras de Renato Brasileiro de
Lima:
Nesse prisma, a prova será considerada ilegal sempre que sua obtenção se der
por meio de violação de normas legais ou de princípios gerais do ordenamento,
de natureza material ou processual. A prova será considerada ilícita quando for
obtida através da violação de regra de direito material (penal ou constitucional).
Portanto, quando houver a obtenção de prova em detrimento de direitos que o
ordenamento reconhece aos indivíduos, independentemente do processo, a prova
será considerada ilícita. [...] Outra característica da prova ilícita é que esta, em
regra, pressupõe uma violação no momento da colheita da prova, geralmente em
momento anterior ou concomitante ao processo, mas sempre externamente a
esse. Daí se dizer que a prova ilícita é aquela obtida fora do processo com
violação de direito material.
De seu turno, a prova será considerada ilegítima quando obtida mediante
violação à norma de direito processual. A título de exemplo, suponha-se que, ao
ouvir determinada testemunha, o magistrado se esqueça de compromissá-la.
Assim o fazendo, incorreu em violação à regra do art. 203 do CPP, dispositivo
este que obriga o juiz a compromissar a testemunha. [...] Outro traço peculiar das
provas obtidas por meios ilegítimos diz respeito ao momento de sua produção:
em regra, no curso do processo. A prova ilegítima, como se vê, é sempre
intraproccessual (ou endoprocessual). (LIMA, 2016, p. 609-610).

Em regra, o ordenamento jurídico brasileiro tende a inadmitir as provas que são


lícitas em si mesmas, entretanto, foram produzidas a partir de alguma ilegalidade. Dá-se o
nome a este instituto de provas ilícitas por derivação, que pode ser conceituado como
sendo ―[...] os meios probatórios que, não obstante produzidos, validamente, em momento
posterior, encontram-se afetados pelo vício da ilicitude originária, que a eles se
transmitem, contaminando-os, por efeito de repercussão causal‖. (LIMA, 2016, p. 609-
610). Um exemplo clássico na literatura é a confissão da prática de um crime extorquida
mediante tortura, que venha a informar o local no qual se encontra o produto do crime, por
exemplo.
As características e definições no tocante ao ônus da prova, em esfera criminal,
poderiam ser definidos como o encargo que as partes têm de provar os fatos que alegam,
estando positivados no CPP (Código de Processo Penal), no art. 156, caput, ao afirmar que
o ônus da prova será de quem fizer a acusação, sendo também facultado ao juiz de ofício. vi
Regra geral, o mais aceito pela doutrina majoritária é que caberá à acusação provar a
existência do fato delituoso, a autoria e também a prova dos elementos subjetivos do crime
(se doloso ou culposo). Entretanto, tal regra não é absoluta, já que, ―[...] pela Lei n.
11.690/2008, é facultado ao juiz de ofício: determinar, no curso da instrução, ou antes de
proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvidas sobre o ponto relevante
[...]‖. (CAPEZ, 2009, p. 381).
Nas palavras de Badaró (2003, p. 173):
[...] o importante é definir o ônus como uma posição jurídica a qual o
ordenamento jurídico estabelece determinada conduta para que o sujeito possa
obter um resultado favorável. [...] a não realização da conduta implica a exclusão
de tal benefício, sem, contudo, configurar um ato ilícito.

3 A LEI N° 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA) E SEUS AVANÇOS NA


SOCIEDADE BRASILEIRA

A Lei de nº 11.340/2006, mais conhecida como a Lei Maria da Penha, recebe esse
nome em homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, brasileira, que
passou vários anos de sua vida sofrendo graves agressões de seu próprio marido, um
professor universitário colombiano, o Sr. Marco Antonio Heredia Viveros.
Entretanto, só após quase onze anos desde a primeira ocorrência de homicídio
tentado, o caso veio ter maior repercussão quando Maria da Penha publicou, em 1994, seu
livro, intitulado: ―Sobrevivi...Posso Contar‖. A partir de então, o caso foi levado à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos
(OEA), o que culminou, no ano de 2001, na condenação internacional do Brasil por
negligência, omissão e tolerância em relação aos casos de violência doméstica contra a
mulher no País.

É de suma importância destacar que os objetivos da Lei Maria da Penha são os de


coibir e prevenir, pois ela não tem caráter meramente punitivista. Os legisladores estavam
muito mais preocupados com a questão da prevenção do que efetivamente com a punição.
Muitos doutrinadores asseveram que apenas cerca de 10% da lei tem caráter criminal, os
90% restantes seriam aspectos não criminais, aspectos preventivos.
Para que seja aplicada a supracitada lei, além de a vítima precisar necessariamente
ser do sexo feminino e estar numa relação de subordinação ou fragilidade, a conduta deve
ocorrer entre pessoas que mantenham íntima relação de afeto ou que resulte do convívio
familiar, em que haja preponderância da supremacia do agressor sobre a vítima. Sendo
assim, a mera circunstância de existir conflito entre familiares não é suficiente para atrair,
por si só, a incidência da lei n.º 11.340/06.
Nas palavras de Montenegro:
A violência doméstica, exercida contra as mulheres, é um fenômeno
característico das sociedades patriarcais. Várias são as perguntas que permeiam
esta temática, porém a mais frequente é: como combater esse tipo de violência?
Punir o agressor é a resposta dada quase sempre a essa pergunta. Nesta
situação, como em várias outras, a lei penal aparece como uma ‗fórmula
mágica‘ para a resolução dos problemas sociais. Todavia, aqui, o agressor e a
vítima se conhecem e podem ser mãe e filhos, irmã e irmão, e ainda, marido e
mulher. (MONTENEGRO, 2015, p. 28)

Para a supracitada autora (MONTENEGRO, 2015, p. 27), a dicotomia masculino


x feminino, sobretudo no tocante à divisão de papéis, já está tão arraigada na sociedade
que traz até um falso cunho de normalidade, algo que é totalmente aceito e tolerado pelas
próprias mulheres. Torna-se mais latente e evidente quando se fala em diferentes e
aceitáveis características que absolvam a menor ―honestidade‖ masculina, reproduzida
pelo próprio Direito.

3.1 DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO E DOMÉSTICA

Todos os dias há alarmantes números de casos de violência (em seu sentido


amplo) contra as mulheres, simplesmente por elas serem do gênero feminino (tidas como
o ―sexo frágil‖) e se verem constantemente ameaçadas por cada esquina mais escura por
onde precisem passar para prosseguirem seu caminho e alcançarem seu destino.
Rotineiramente, muitas mulheres são vítimas da conhecida ―cultura machista‖ que assola
o país, aliás, não só o país, mas o mundo.
Para o direito penal brasileiro, pode-se dizer que há dois tipos de violência:
violência explicitamente consumada (aquela que é de fácil percepção e notoriedade) e a
violência implícita (por exemplo, uma ameaça de violência). Assegurando tais fatos,
Batista traz as seguintes palavras:
[...] a violência constitui, em direito penal, um modo de execução que integra,
implícita (como no homicídio ou no dano) ou explicitamente (como no roubo ou
no estupro), inúmeros tipos objetivos, no último caso muitas vezes emparelhada
à ameaça; frequentemente, seu emprego enseja o aparecimento de um tipo
derivado por qualificação (como na injúria real ou violação de domicílio
qualificada). (BATISTA, 2007, p. 45).

Nas palavras de José Naaman Khouri:


A violência de gênero está caracterizada pela incidência dos atos violentos em
função do gênero ao qual pertencem as pessoas envolvidas, ou seja, há a
violência porque alguém é homem ou mulher. A expressão violência de gênero
é quase um sinônimo de violência contra a mulher, pois são as mulheres as
maiores vítimas da violência. (KHOURI, 2012).

Há inúmeros relatos de mulheres que sofreram estupros e são condenadas


―moralmente‖ pela sociedade por terem, de algum modo, ―facilitado‖ a ação do agente,
como por exemplo, por estarem vestidas ―inadequadamente‖ ou por estarem na rua após
determinado horário.
Nos mais ínfimos e singelos gestos residem certo ranço de sentimento de que uma
pessoa do sexo masculino estaria em determinada situação de superioridade apenas por
ser homem. Quantas vezes não já se ouviu a expressão: ―Ah, mas ele é homem!‖. E, na
realidade, todos deveriam também ―poder‖, independentemente de sexo, cor, orientação
sexual, religião etc.
Na literatura, faz-se mister destacar a distinção entre os termos violência contra
mulheres, violência de gênero e violência doméstica. Podendo-se destacar ainda um tipo de
violência mais abstrato e quase imperceptível, que se mostra de uma forma muito sutil, a violência
simbólica. Nesta violência há a presença de fortes laços costumeiros e culturais em determinada
sociedade, no caso em particular, a sociedade brasileira. Ideias como a ―fragilidade feminina‖ é a
maior virtude em uma mulher, ou de que só mulher pode passar por determinadas situações
constrangedoras, e.g., ser insultada porque saiu de casa com um vestido justo a seu corpo e mais
curto que o convencional. Não se ouve falar que um homem foi assediado sexualmente por estar
vestindo uma camiseta que deixava um pouco à mostra os seus mamilos, e.g. Acreditar que
determinada tarefa só deverá ou só conseguirá ser executada por alguém do sexo masculino, dentre
outras diversas situações que por serem tão corriqueiras, nem são percebidas, já acontecem no
―modo automático‖. E é acerca desse tipo de violência, a violência simbólica, que Maíra Zapater
afirma:
Mas a violência também pode ser simbólica, correspondendo a uma forma de
coerção exercida pela fabricação de crenças no processo de socialização.
Constroem-se social e culturalmente ideologias a respeito dos lugares sociais de
cada grupo de pessoas, e as condições de participação social de cada um desses
grupos passam a se basear na herança dessas crenças, diferentes para cada grupo.
É também, portanto, expressão de poder, e das mais eficazes, pois conta com a
adesão dos dominados que também compartilham dessas crenças sobre seu lugar
social – são as situações que permitem conclusões presentes no senso comum,
tais como afirmar que ‗negros são racistas‘, ou que ‗mulheres são machistas‘. Na
verdade, o que se quer dizer com isso é que mesmo as pessoas que se encontram
em um lugar social marcado pela violência simbólica são socializadas dentro
desta ideologia, e por isso aprendem que essas crenças são ‗corretas‘, sem
perceber o quanto é prejudicial para si mesmas. (ZAPATER, 2016).
Os tipos de violência contra a mulher podem ser classificados, segundo o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da seguinte maneira:
a. violência de gênero – aquela praticada apenas pelo simples fato de a vítima ser
mulher;
b. violência doméstica – regra geral, aquela que ocorre dentro do lar onde habita a
vítima, mas também poderá se estender a outros ambientes;
c. violência familiar – a que ocorre por se haver algum laço familiar ou grau de
parentesco;
d. violência intrafamiliar/violência doméstica – aqueles dois últimos seriam gênero, e,
este, espécie;
e. violência física – ―Entende-se como violência física qualquer ato que atinja a
integridade física da mulher ou a sua saúde. É a violência propriamente dita, a vis
corporalis‖. (CRAIDY, 2008, p. 15).
f. violência institucional – refere-se às desigualdades vivenciadas na sociedade, de
maneira mais ampla;
g. violência psicológica – geralmente, vem transvestida em cuidados e a vítima
demora um tempo muito maior para perceber que está sendo agredida. São ―[...]
condutas omissivas ou comissivas, que implicam em lenta e contínua destruição da
identidade e da capacidade de reação e resistência da vítima, sendo comum que
progrida para prejuízo importante à sua saúde mental e física‖. (HERMANN, 2007,
p. 108-109);
h. violência sexual (considerada por muitas mulheres como uma das piores formas
de violência) – este tipo de violência está previsto no inciso III, do art. 7º, da
LMP;
i. violência patrimonial – encontra-se positivada no inciso IV, art. 7º, da LMP: ―[...]
qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de
seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e
direitos ou recursos econômicos [...]‖ (BRASIL, 2006);

j. violência moral – de maneira geral, este tipo de violência vem acompanhado da


violência psicológica, pois é quase indelimitável a linha tênue que os separa, se é
que podem ser delimitados. Previsto no inciso V, do art. 7º, da LMP, que define:
―[...] qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria‖. (BRASIL,
2006).

4 O VALOR PROBANTE NA LEI MARIA DA PENHA

Neste estudo foi possível observar, de forma não exauriente, que a proposta deste
trabalho é apenas expor de maneira teórica algumas questões gerais acerca das provas no
processo penal e como estas incidem na aplicabilidade da LMP. Incluindo-se, neste
contexto, a fragilidade que há, em muitos casos práticos, no momento da utilização de
alguns dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico pátrio, tais como a palavra
da vítima e a prova testemunhal.
Faz-se mister destacar a prova testemunhal, pois, geralmente, a testemunha nem
sempre está no momento em que ocorreu o fato, valendo-se assim apenas de opiniões
particulares e deduções que são inerentes ao ser humano. Deduções estas que vêm
imbuídas de sentimentos de empatia e afinidade, além da carga de parcialidade presente.
Além do mais, a memória humana, com o tempo, vai perdendo um pouco o ―poder‖ de
guardar as informações de forma fidedignas e esmiuçadamente, com riqueza de detalhes, o
momento correto do acontecimento dos fatos, por exemplo. Muitas vezes, precisa-se de um
olhar mais ―clínico‖ e profissional para saber confrontar os fatos e as versões, pois vale a
conhecida máxima de que ―nem tudo é o que parece ser‖.
O que não pode ser esquecido, ou deixado à margem, é o fato de que o ser
humano em sua essência é passível de agir sendo impelido por sentimentos que trazem
em si determinado animus de prejudicar alguém. Salientando-se que a palavra da vítima
não poderá ser fator preponderante, sendo apenas ela de maneira isolada, para
consubstanciar embasamento suficiente a uma possível condenação penal. Faz-se latente a
seguinte indagação: ―Porém, até que ponto somente a palavra da suposta vítima deve ser
valorada como prova? Será que uma mulher rejeitada não poderia ter o mesmo desejo de
vingança que uma mulher traída?‖. (RANGEL, 2017, [p. 1]).
É importante mencionar que na grande maioria dos casos, a palavra da vítima vem
imbuída de sentimentos que podem ser tidos como ―nobres ou não tão nobres assim‖. Tais
sentimentos impulsionadores podem ser o ciúme, raiva, ódio, vingança, rejeição, a mera e
pífia necessidade de prejudicar o outro, dentre outros.

4.1 A PREPONDERÂNCIA DA PALAVRA DA MULHER PERANTE A PALAVRA


DO SUPOSTO AGRESSOR NA LEI MARIA DA PENHA
Para muitos operadores do direito, teóricos e doutrinadores, a Lei Maria da Penha
nem sempre tem sido bem utilizada pela sociedade, sobremaneira por parte das mulheres,
pois, de acordo com Sampaio (2009, [p. 2]): ―[...] é de se ressaltar [...] os incontáveis casos
em que mulheres se utilizam das benesses protecionistas da lei para importunar seus (des)
afetos‖.
Neste arcabouço, há muito a ser discutido:
Um dos pontos, pouco discutidos, mas bem criticados para quem vivencia o dia a
dia dos casos de violência doméstica no Brasil, é o mau uso ou uso abusivo da
Lei 11.340 de 2006. Em um pequeno artigo, publicado pela Redação da Folha
Vitória, em 02 de abril de 2012, com o título ―cinco a cada trinta casos
registrados são de mau uso da Lei Maria da Penha‖, o defensor público Carlos
Eduardo Amaral relata que a má utilização da presente lei é constante na vara de
violência doméstica; na maioria das vezes, a vingança se mostra como
motivadora para esse tipo de conduta. Segundo o defensor:
‗De cada 30 casos, cinco são de mulheres que fazem o mau uso da Lei Maria da
Penha. Geralmente, elas são motivadas pela perda de alguma ação na justiça
como o direito de ficar com a casa do casal. Elas decidem entrar com a lei Maria
da Penha dizendo que foram agredidas dentro da residência. O homem então é
obrigado a se retirar da casa.‘ [...] ‗Assim como todas as outras leis, como o
Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso e o do Índio, existem
casos de mulheres que se valem da Lei Maria da Penha na tentativa de obter
alguma vantagem, seja ela patrimonial ou moral‘.
Sabe-se que essas leis não são criadas para possibilitar esses tipos de abusos, mas
frequentemente, nas Leis que dão vantagens a um determinado tipo de classe,
ocorrem esses tipos de desvio da finalidade, cabendo ao juiz à utilização de
meios que consigam filtrar casos realmente importantes, não possibilitando que
imperem aqueles que existam má-fé, até que o legislativo efetive as mudanças
necessárias, para no mínimo, conseguir diminuir a utilização indevida do
judiciário. Mesmo não tratando de dados oficiais, o defensor público Carlos
Eduardo Amaral afirma que, cerca de 16,6% dos casos que para este são
encaminhados, seriam de má utilização da Lei, logo, em 16,6% dos casos, a
máquina judiciária estaria sendo utilizada incorretamente e gerando um grau
elevado de marginalização do homem sem uma justificativa válida. (SANTOS,
2015, [p. 28-29]).

Esses vieses de deturpação no tocante à aplicabilidade e usabilidade da LMP são


casos de excepcionalidade e não a regra, embora precisem ser analisados e revistos a fim
de se evitar uma generalização de tais atos. Pois, de acordo com Sampaio:
Não se trata de discurso deste ou daquele jaez, mas de uma realidade que bate
às nossas portas, consubstanciada em mulheres acusando levianamente seus
companheiros de maus tratos, imputando falsamente abusos sexuais cometidos
contra si e contra suas filhas, ignorantes do que isso representa, quer para o
acusado, quer para a falsa vítima criança e muito menos para o Poder Judiciário,
já tão massacrado pelas pilhas de processos inertes. É fenômeno endêmico.
Nenhuma etnia, classe social ou religião está imune, tampouco é característico
da pobreza. (SAMPAIO, 2009, [p.2]).

A propósito, não pode ser deixado de mencionar o fato da contrapartida da Lei


Maria da Penha, pois, hoje, é notório perceber o quanto o papel da mulher tem merecido
destaque na sociedade. É certo que muito ainda precisa ser feito, muitos tabus e
preconceitos precisam ser transpassados, pois há, sim, discriminação em relação aos
gêneros; há, sim, uma inferiorização da mulher enquanto pessoa, cidadã, profissional, mãe
etc. Mulher em seu papel como mulher! Entretanto, como este não é o objetivo do
presente estudo, serão expostas as opiniões de alguns autores acerca do viés de
―contramão‖ que a Lei Maria da Penha vem tendo, até porque nem sempre a mulher estará
em situação de hipossuficiência.
Para Minayo, em seu artigo ―Laços perigosos entre machismo e violência‖, a
figura patriarcal é intrínseca ao macho, à figura masculinizada dotada de ação, de poder,
de autoridade, sobremaneira em uma relação familiar:
Na visão arraigada no patriarcalismo, o masculino é ritualizado como o lugar da
ação, da decisão, da chefia da rede de relações familiares e da paternidade como
sinônimo de provimento material: é o ‗impensado‘ e o ‗naturalizado‘ dos valores
tradicionais de gênero.
Da mesma forma e em consequência, o masculino é investido significativamente
com a posição social (naturalizada) de agente do poder da violência, havendo,
historicamente, uma relação direta entre as concepções vigentes de
masculinidade e o exercício do domínio de pessoas, das guerras e das conquistas.
O vocabulário militarista erudito e popular está recheado de expressões
machistas, não havendo como separar um de outro. (MINAYO apud DOTOLI;
LEÃO, 2015, p. 1648-1650).

Não pode ser deixada à margem deste estudo a questão das excepcionalidades
(foram chamadas de ―vantagens gigantes‖, por Santos) contidas na LMP e que em
decorrência delas, nada mais plausível que ao menos serem questionadas tais ―vantagens‖,
pois, de acordo com Santos:
A Lei Maria da Penha já dá um arcabouço de vantagens gigantes às vítimas,
como às medidas protetivas, delegacias da mulher, casas ‗Maria da Penha‘
oferecidas às mulheres vítimas de violência doméstica, a impossibilidade da
suspensão condicional do processo, da transação penal, do termo circunstanciado
e da reparação civil de danos. Desse modo é minimamente viável questionar se
os entendimentos das Cortes Superiores estão corretos em considerar que apenas
a palavra da vítima basta para a condenação do réu.
Na atualidade, a maior parte da doutrina e jurisprudência considera a
possibilidade de uma condenação baseada na palavra da vítima. Determinados
autores afirmam que, em alguns tipos criminais, reputados como exceção, (casos
de violência doméstica, que vão contra liberdade sexual, os crimes patrimoniais,
etc.) a palavra da vítima tem valor fundamental para o esclarecimento dos fatos e
para efetivar uma condenação, principalmente quando não exista nenhuma prova
no processo que possa corroborar as versões ali apresentadas. (SANTOS, 2015,
[p. 32]).

A corrente majoritária assegura que apenas a palavra da vítima por si só já seria


suficiente para dar ensejo a uma condenação na Lei Maria da Penha, mas desde que
houvesse embasamento firme e consistente, não sendo imprescindível alguma testemunha
ratificar a versão desta mesma vítima. Pois, segundo Guilherme de Souza Nucci:
―Sustentamos que a palavra isolada da vítima, sem testemunha a confirmá-la, pode dar
margem à condenação do réu, desde que resistente e firme, harmônica com as demais
circunstâncias colhidas ao longo da instrução.‖ (NUCCI, 2008, p. 457).
Em contrapartida ao atual entendimento das Cortes Superiores, têm-se o
posicionamento de alguns autores que defendem a corrente doutrinária minoritária. A
saber, nas palavras de Adalberto José Aranha:
A situação psicológica da vítima no processo é bem paradoxal: de um lado, está
capacitada mais do que qualquer outra de reproduzir a verdade, e, do outro, a sua
vontade não pode ser considerada como isenta de fatores emocionais. Em
primeiro lugar, por ter suportado a ação [...] estaria a tal ponto desperta que
possibilitaria uma reprodução fiel do ocorrido, inclusive minúcias e detalhes.
Contudo, sua vontade fatalmente estaria atingida, possuída de indignação ou dor,
a ponto de ser impossível uma total isenção. Não se pode encontrar uma vítima
despida totalmente de sentimentos, com tal frieza emocional que seja possível
falar-se em imparcialidade. Além do mais, não podemos esquecer que não são
raros os casos de pseudovítimas, criadas por uma imaginação traumatizada [...].
(ARANHA, 2004, p. 141).

A partir das palavras de Aranha, fica de fácil observação que a palavra da vítima
sempre virá com uma carga muito elevada de sentimento negativo em relação a seu
possível agressor, como afirma Santos:
[...] a palavra da vítima, por menor que seja, sempre conterá uma carga
emocional em si. Indaga-se nesse momento se a possibilidade de condenação na
mera palavra da vítima pode ser absoluta. Analisando tal parâmetro, inegável é a
constância de casos de pseudovítima ou de vítimas provocadoras no âmbito da
Lei 11.340, evidenciando dessa forma, para os autores que seguem a corrente
minoritária, a impossibilidade da condenação sustentada somente na palavra da
vítima [...]. (SANTOS, 2015, [p. 36]).

E, ainda:
Percebe-se que com o uso distorcido da Lei Maria da Penha o (suposto) agressor
na verdade é a grande vítima onde, mesmo que não lhe seja aplicada qualquer
punição ao final do processo, o mesmo terá que respondê-lo, sujeitando-se a uma
condição humilhante, angustiante e desnecessária pelos meses ou anos
subsequentes a denúncia. (LICER, 2017, [p. 4]).

Santos faz menção ao acima descrito da seguinte forma:


Imperioso é citar a importância dos julgadores sensíveis à realidade do caso.
Sabe-se que, com a permissiva apresentada pelas Cortes Superiores, muitos
julgadores acabam por recepcionar a palavra da vítima como prova única para
efetivar condenações sem ao menos interagir com as versões apresentadas pelas
partes; é comum no âmbito do direito a descriminação dos réus apenas por
estarem nessa posição processual, com total descaso à versão apresentada por
este. É certo que solução para a punição dos infratores de violência doméstica
não é a condenação, com o possível encarceramento, sendo muito mais eficaz
nesses casos a implantação de políticas socioeducativas que melhormente
atendem aos casos, que até já estão presentes nas Varas de Violência Doméstica,
mas que são esquecidas por muitos juízes. (SANTOS, 2015, [p. 37]).

4.2 A SUPERVALORIZAÇÃO DOS INDÍCIOS E A NÃO APLICABILIDADE DO IN


DUBIO PRO REO
De acordo com Nucci, o indício por si só não consubstanciaria uma prova para
justificar uma condenação: ―[...] o indício apoia-se e sustenta-se numa outra prova. [...] Em
síntese, o indício é um fato provado e secundário (circunstância) que somente se torna útil
para a construção do conjunto probatório ao ser usado o processo lógico da indução‖.
(NUCCI, 2014, p. [379-380]).
Muito se discute acerca da possibilidade de se condenar alguém com base única
e exclusivamente em indícios. A nosso juízo, com a incorporação ao processo
penal do sistema da persuasão racional do juiz (CPP, art. 155, caput, e CF/ 88,
art. 93, IX), e a consequente exclusão de qualquer regra de prova tarifada,
permite-se que tanto a prova direta como a prova indireta sejam em igual medida
válidas e eficazes para a formação da convicção do magistrado. Obviamente, não
se pode admitir que um indício isolado e frágil possa fundamentar um decreto
condenatório.
[...] em relação à autoria ou participação, não se exige que o juiz tenha certeza,
bastando que conste dos autos elementos informativos ou de prova que permitam
afirmar, no momento da decisão, a existência de indício suficiente, isto é, a
probabilidade de autoria. (LIMA, 2016, p. 582).

O núcleo da questão aqui levantada é o de que na Lei Maria da Penha os indícios


acabam ―ganhando‖ mais força, maior preponderância, se comparados em relação a outros
processos nos quais não haja a incidência da LMP.
Ressalta Santos:
Correto é que tal lei teve o intuito de oferecer benefícios a um determinado
gênero da sociedade, mas como tais benefícios foram exacerbados acabou, por
possibilitar o mau uso, o que é repudiado pelo nosso Direito Penal. Atualmente,
o mau uso se tornou frequente, prova disso são as constantes denúncias de
homens que se sentiram marginalizados e feridos por tal lei. (SANTOS, 2015, [p.
38]).

Esse mesmo sentimento de marginalização atribuído aos homens vem sendo


motivo de destaque em alguns debates por especialistas da área, pois há certa necessidade
ao se defender a priori o princípio da presunção de inocência e não o inverso. A saber:
O processo de marginalização do homem se inicia com a falsa denúncia
registrada na delegacia onde, para o deferimento das MPU‘s, basta a palavra da
suposta vítima, sem provas, conseguindo assim a almejada medida cautelar que
pode variar desde a proibição de aproximação até o afastamento do lar ou a
prisão.
Importante observar que a grande maioria das denúncias têm como objeto os
crimes de ameaça (art. 147 do Código Penal) ou Injúria (art. 140 do Código
Penal), crimes estes que não deixam vestígios físicos não sendo cabível qualquer
exame pericial para sua averiguação, ou seja, apenas a palavra da mulher tem
peso para a instauração de inquérito policial e deferimento das medidas
protetivas de urgência.
Certa vez tive acesso a um processo em trâmite no Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro onde o suposto agressor foi condenado pelo crime de ameaça. O processo
foi para a 2a instância através de uma Apelação e tal recurso foi julgado
improcedente pelos desembargadores sob a alegação de que: ‗Os crimes de
ameaça costumam ocorrer dentro do ambiente doméstico, entre quatro paredes,
na intimidade do casal, motivo pelo qual não deixam vestígios ou testemunhas
bastando a palavra da vítima como prova‘. Percebe-se assim o perigo e o estrago
que a Lei Maria da Penha pode fazer nas mãos de pessoas erradas que buscam
por vingança.
Por estas razões que muitos estudiosos e criminalistas clamam por melhores
critérios para a aplicação da Lei Maria da Penha, especialmente por não ter o
(suposto) agressor o direito ao contraditório e ampla defesa conforme estipula o
tão importante Princípio da Presunção de Inocência. (LICER, 2017, [p. 3]).
―É estarrecedor que o STJ venha dinamitando o princípio do in dubio pro reo em
razão de uma política criminal vitimista [...]. Se a palavra da vítima basta para sustentar
uma condenação, inverte-se o ônus da prova em desfavor da defesa‖. (CAVALCANTI,
2014, [p. 1]).
Deste modo, Cavalcanti destaca a importância hierárquica das normas no ordenamento
jurídico pátrio da seguinte maneira:
Estando a Constituição no ápice do ordenamento jurídico, todas as demais
normas infraconstitucionais devem-lhe sujeição, sendo inconstitucional qualquer
decisão que subverta seus fundamentos, pois num Estado que se proclame como
Democrático de Direito, a eficácia de qualquer intervenção penal não pode se
atrelar à diminuição das garantias individuais.
Ora, a Lei Maria da Penha é uma norma processual penal infraconstitucional,
não sendo nenhuma exceção à regra no que toca à observância dos princípios
constitucionais, devendo, do mesmo modo que outras normas da mesma estatura,
respeitar a mesma sistemática acusatória delineada mais acima.
Todavia, vem se consolidando no seio do Superior Tribunal de Justiça
entendimento subversivo, talvez na intenção de ―dar satisfações‖ à sociedade
para que se possa ver que o Judiciário vem cumprindo a contento com seu papel
de política criminal, combatendo a violência doméstica e familiar contra a
mulher condenando mais e mais ―agressores‖.
Parece que na contramão de um processo penal democrático, pelo menos nos
crimes que envolvem a aplicação da Lei Maria da Penha em ambiente de
clandestinidade, prevalece uma comodista visão de que o acusado deva ser
condenado, mesmo em estado de dúvida, de sorte que o princípio do in dubio pro
reo é substituído pelo princípio do in dubio pro societate. (CAVALCANTI,
2014, [p. 3], grifo do autor).
Licer corrobora com as supracitadas críticas, acrescentando que, na maioria dos
casos, são levadas as denúncias para a seara criminal, mas, na verdade, tais questões
deveriam mesmo ser discutidas nas varas de família, na esfera civil, como mencionado
abaixo:
O ponto principal da discussão é justamente o mau uso da Lei, ou seja, mulheres
que em momento algum foram vítimas de quaisquer dos crimes previsto na
legislação (ameaça, injúria, lesão corporal, etc) buscam as delegacias
especializadas de atendimento à mulher objetivando saciar seus desejos,
vontades, coagir o homem a algo que o mesmo se recusa ou simplesmente
vingança baseada em alguma mágoa ou rancor deixado ao longo do
relacionamento. Assim percebe-se que a legislação criada para a proteção das
mulheres ante as conhecidas agressões masculinas acabou por dar-lhes também
uma arma contra seus companheiros e excompanheiros. A principal motivação
que leva essas mulheres a buscar as delegacias especializadas é justamente a
obtenção das medidas protetivas de urgência (MPU‘s) objetivando, entre outros,
o afastamento do companheiro do lar, o afastamento do companheiro dos filhos
em comum, o afastamento do excompanheiro da própria denunciante mesmo que
aquele não tenha causado-lhe qualquer mal. Muitas vezes as falsas denúncias são
usadas como mecanismo de chantagem especialmente quando há um processo de
divórcio em trâmite com discordâncias na divisão de bens, ou seja, leva-se para a
seara criminal o que em verdade deveria ser discutido nas Varas de Família.
(LICER, 2017, [p. 2]).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes da efetividade das sanções provenientes da aplicabilidade da Lei Maria da


Penha, deve-se entender que o cerne principal da questão é a preservação e a manutenção
da dignidade da pessoa humana; independente de gênero ou condição social, além da
preservação da família (fala-se da família em sua mais variada estrutura, não se
restringindo apenas ao modelo tradicional de família biológica), pois é através da
preservação da estrutura familiar, dos valores que esta instituição social incute na
população, que se pode ter uma sociedade com alicerces mais solidificados, já que a
família é a base até para a prevenção de futuros delitos. Ela, a estrutura familiar, é uma das
principais fontes de educação primária e da empatia para com o próximo. É nela que são
desenvolvidas as primeiras formas de interação humana, os laços de sentimentos que unem
uma pessoa a determinado clã, incutindo uma sensação de pertencimento e cuidados
recíprocos.
Ainda podem ser vislumbrados muitos casos nos quais a Lei Maria da Penha é
utilizada mais como sendo uma ―arma de vingança‖ concomitante com a alienação parental
para punir o parceiro. Lembrando-se que estes ainda são uma minoria, porém, mesmo
assim, não deveriam ser desprezados pelas Cortes Superiores no ordenamento jurídico
brasileiro.
Na prática, os homens acabam se sentindo mais ―acuados‖ pela incidência dessa
Lei e também pela cobrança e pressão da sociedade, pois eles acabam sendo
ridicularizados e julgados socialmente como ―aproveitadores‖, com exacerbada fragilidade.
Embora, mesmo que em proporções bem menos significativas em relação aos casos de
violência doméstica contra a mulher, houve um crescimento tímido no número de casos de
violência doméstica contra o homem.
A propósito, não pode ser deixado de mencionar o fato da contrapartida da Lei,
pois, hoje, é notório perceber o quanto o papel da mulher tem merecido destaque na
sociedade. É certo que muito ainda precisa ser feito, muitos tabus e preconceitos precisam
ser transpassados, pois há, sim, discriminação em relação aos gêneros; há, sim, uma
inferiorização da mulher enquanto pessoa, cidadã, profissional, mãe etc. Mulher em seu
papel como mulher!
Mediante o exposto, é importante que haja uma reflexão e uma discussão mais
amplas em relação à exacerbação ou não da aplicabilidade da LMP nos casos práticos do
cotidiano. O cenário mundial tem mudado muito rapidamente, sobretudo os movimentos
sociais (principalmente o feminismo) que reivindicam os direitos igualitários sem distinção
de sexo, cor, raça, gênero etc. Por isso, muitos estudiosos da área asseveram que ainda há
muito a ser feito no campo da reeducação de uma sociedade culturalmente e historicamente
patriarcalista.

REFERÊNCIAS

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ZAPATER, Maíra. Violência contra mulheres, violência doméstica e violência


de gênero: qual a diferença?. Justificando: mentes inquietas pensam direito.
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<http://justificando.cartacapital.com.br/2016/03/10/violencia-contra-
mulheres-violencia-domestica-e-violencia-de-genero-qual-a-diferenca/>.
Acesso em: 02 abr. 2017.
MUSAS DO TRÁFICO: análise dos determinantes para entrada da mulher no tráfico de
drogas

Maria Luiza Rodrigues Dantasvi


Letícia Andrade Santosvi

GT: 01 – Arte, Educação e História dos Direitos Humanos


RESUMO

A pesquisa visa mostrar a mulher, levando em consideração o contexto social o qual essa
está inserida, como agente social do crime. Essa não mais ocupando o polo passivo da
criminalidade, mas como autora da violência. O estudo da mulher na esfera social do crime
ainda caminha a passos lentos e se mostra de uma maneira muito tímida. Partindo disso,
faz-se uma análise de quais são os determinantes para a entrada dessa mulher na
criminalidade. Nesse sentido, buscaremos analisar como a pobreza, as desigualdades de
gênero e o amor podem influir ou servir como justificativa para a delinquência feminina. A
partir da perspectiva de que ambas em conjunto intensificam a dominação do homem pela
mulher.

Palavras-chave: Mulher. Tráfico de drogas. Gênero. Criminalidade.

INTRODUÇÃO

A história da mulher, sobretudo como protagonista de ações é muito escassa


na historiografia brasileira e carregada de preconceitos, aumentando o grau de dificuldade
de um estudo, porquanto exige um trabalho maior de análise dos documentos e dados,
levando em consideração os padrões estabelecidos na época e toda a carga sexista social.
A criminologia feminina deve ser revelada, sobretudo no ambiente eminentemente
masculino como o criminal, para que possa ser vista e tratada de forma mais honesta,
diminuindo os estereótipos criados, auxiliando no entendimento do papel feminino atual e
na dificuldade da mulher de ser aceita e vista em outras esferas sociais. Hermeticamente
falando transparece que ao universo feminino não é dado direito à violência, somente
podendo atingir seus fins maléficos com a malícia ou sendo restrita a fragilidade. Não lhes
é permitida a prática de condutas que demonstrem a capacidade de inverter o papel social
de inferioridade que lhes é imposto, o uso de violência por parte das mulheres choca, pois
demonstra, em verdade, a equivalência dos seres na espécie humana.
Não restam dúvidas com relação à estatística penitenciária, que as mulheres sempre
foram minoria nos estabelecimentos prisionais, no entanto, esse fato parece que não se
deve a questões ligadas a sua suposta "natureza dócil", mas por razões relacionadas ao
nosso modelo de construção social. Nos últimos anos houve um aumento exponencial na
população carcerária feminina o que nos chama atenção por esse crescimento ser superior
ao crescimento da população carcerária no geral e a maior parte das condutas delituosas
femininas estarem ligadas ao tráfico de drogas, tipificado pela lei 11.343/06. Assim, o
objetivo geral é analisar quais são os fatores determinantes para a entrada da mulher no
tráfico de drogas. Nesse sentido, nossos objetivos específicos são compreender a pobreza
como motivador da criminalidade; compreender a influência das desigualdades de gênero
como fator contribuinte para a inserção da mulher na criminalidade; por fim destrinchar
como a pobreza e desigualdade transformam as relações de subalternidade em amor.
A partir da metodologia dedutiva, partindo de analises gerais, para pôr fim tornar o
perfil perceptível. O trabalho vale-se de pesquisa bibliográfica e documental. Utiliza-se
uma abordagem qualitativa, uma vez que os resultados obtidos partem de uma análise de
situações que se relacionam à mulher no polo ativo na criminalidade. O tema mostra-se
relevante do ponto de vista social em razão de denunciar o processo de estigmatização e violência
de gênero o qual está por traz da ―escolha‖ da mulher que entra para rede do tráfico de drogas.
Devemos alertar que o tráfico de entorpecentes é muito mais que um problema de segurança
pública.

1. A MULHER GENI
A pobreza é considerada uma forma violência e exclusão social, na medida em que,
a população pobre é a vítima preferencial da marginalização ficando alheio a qualquer
processo de desenvolvimento. Em outras palavras podemos dizer que a criminalização da
pobreza tornou-se um meio legitimador das políticas de exclusão e marginalização das
classes menos favorecidas. Nessa perspectiva, o distanciamento social e a alienação, a
discriminação e a estigmatização que recaem sobre a pobreza não ajudam a encontrar
soluções para o problema da pobreza e nem evitam que as desigualdades sociais
aumentem. (COSTA, 2005)
Duarte (2008) ressalta que a exclusão social e marginalização provocadas pela
pobreza resultam na a criminalização das minorias sociais. Estes excluídos são a parcela da
população marcada pela vagabundagem, mendicância e criminalidade. Os lugares
ocupados pelos pobres, geralmente, as margens da cidade são vistos como lugares
propícios ao desenvolvimento da criminalidade, visto que, o Estado não presta a devida
atenção, tornando precária a saúde, educação, saneamento e, principalmente, segurança.
Cria-se, em relação a essas minorias sociais, um sentimento de desconfiança e de
insegurança. Há uma relação entre o crescimento dessa população e o aumento da
criminalidade nos grandes centros urbanos que se evidencia tanto na mídia como nos
estudos de caráter científico. O perfil social dos criminosos também ajuda a reforçar essa
associação entre pobreza e criminalidade, os autores sociais dos crimes, sejam eles homens
ou mulheres são geralmente analfabetos, desempregados ou trabalhadores sem qualificação
e predominantemente de cor negra (COSTA, 2005)
Destarte, Eduardo Bittar (2015) analisa, a partir das contribuições do sociólogo
Amartya Sem, a definição de pobreza como privação de capacidades. Amartya Sem afirma
que:

Ser pobre não significa viver abaixo da linha da pobreza - por


exemplo auferir um rendimento igual ou inferior a dois dólares por
dia. Ser pobre é ter um nível de rendimento insuficiente para
determinadas funções básicas, levando em conta as circunstâncias e
requisitos sociais circundantes, sem esquecer a interconexão de
outros fatores.

Nessa esteira, segundo Bittar, a partir do conceito de pobreza de Amartya Sem


podemos fazer um contraponto com o conceito de desenvolvimento, dado pelo mesmo, não
devendo esse ser entendido como apenas o progresso material, mas a capacidade que uma
sociedade tem de produzir inclusão social e, com isso, conduzir o desenvolvimento
humano, ou seja, ao atendimento de fatores que condicionam a dignidade humana.
É nesse contexto que a pobreza gera criminalidade, realidade social marcada por
um esquecimento por parte do Estado que deixa de oferecer serviços básicos,
desigualdades sociais gritantes com uma concentração de renda gigantesca. Nesse sentido,
a exclusão e marginalização das camadas mais pobres que veem no crime uma
oportunidade de ascensão econômica e social.
Destarte, a ideia de "precariedade", segundo Judith Butler (2009, p. 322 a 323),
induz aquilo que é determinado politicamente para uma condição à parte da população a
partir da falta de redes de suporte, de apoio social e econômicos, deixando as populações
vulneráveis marginalmente expostas a danos, violência e morte. Nesse sentido, de acordo
com Duarte, a ausência e negação dos direitos e garantias oferecidas pelo o Estado
Democrático de Direito favorece a disseminação e aumento violência criando e mantendo
grupo vulneráveis em sociedade caracterizada pela desigualdade social.
Esta realidade pode ser observada no Brasil, a incompetência no combate à pobreza
ou no oferecimento de oportunidades de emprego, estudo ou qualificação para as classes
menos favorecidas e que as medidas públicas têm sido mais de policiamento, vigilância e
violência do que de resolução do problema (COSTA, 2005).
A situação de vulnerabilidade associadas às difíceis condições socioeconômicas
ocasionam uma grande tensão entre os grupos vulneráveis e o processo de integração
social e em algumas situações fomenta o aumento da violência e da criminalidade.
(ABROMOVAY, 2002). Quando abordamos o sistema prisional, é necessário reconhecer
que a mulher pertence a um dos grupos mais vulneráveis dentro da sociedade, em um
segmento já vulnerável, que é a população carcerária.
Para Sena (2013, p. 344), inclusive, a atividade do tráfico de drogas é uma
expressão ―não determinada pela configuração de um espaço, mas que nele encontra
condições favoráveis, ou não, ao seu desenvolvimento‖. Nesse sentido podemos afirmar
que o espaço pode ser um catalizador de determinadas condutas ou um inibidor delas,
diferenciando se, portanto, o que se espera das atitudes das mulheres com acesso às
políticas sociais dos que residem onde seus direitos sociais são negados ou o acesso a eles
é dificultado. É o que acontece, mormente, nas comunidades de periferia do país e demarca
a existência de uma vulnerabilidade socioespacial.
No Brasil o perfil da mulher presidiária é o da mulher com filho, sem estudo formal
ou com pouco estudo na escola elementar, pertencente às camadas de menor poder
aquisitivo dentro da sociedade e que, na época do crime, encontrava-se desempregada ou
subempregada. (BIANCHINI). As mulheres criminosas são negras ou pardas advindas,
geralmente, das favelas ou das zonas mais pobres da cidade. Nessa perspectiva, a mulher
que pratica crimes, antes de ser mulher é pobre.
O tráfico se expressa como uma real oportunidade de trabalho para as mulheres
reclusas. Essas que muitas vezes sem ajuda dos seus parceiros tornam- se as ―chefas de
família‖ passam a ter que prover a casa e seus filhos e sem nenhuma oportunidade o tráfico
apresenta-se como um meio de sobrevivência e, facilmente, absolve essa mão de obra
desqualificada e descartada pelo mercado de trabalho (MOURA, 2005).
De acordo com o levantamento nacional de informações penitenciárias do
Ministério da Justiça (INFOPEN) a população carcerária feminina subiu de 5.601 para
37.380 detentas entre 2000 e 2014, um crescimento de 567% em 15 anos e a maioria dos
casos é por tráfico de drogas, motivo de 68% das prisões. A compreensão desse dado nos
leva afirmar que o tráfico começa a perder o aspecto de atividade exclusiva para homens e
que muitas vezes é alternativa escolhida pelas as mulheres que procuram um complemento
de renda dada sua difícil realidade socioeconômica.
Interessante observar que, um dos primeiros crimes associados à criminalidade da
mulher é a prostituição. A partir dos estigmas da objetificação e sexualização da mulher,
uma minoria, acabava por se desviar do padrão de mulher do lar, uma vez que a pobreza e
o desemprego não permitiam condições de vida básica.
As características comuns às mulheres presas no Brasil, como a má distribuição de
renda, baixa escolaridade, dificuldade de inserção no mercado de trabalho, objeto da baixa
qualificação, contribuem para que o mercado do tráfico de drogas tenha crescido de forma
tão significativa absolvendo a mão de obra feminina desqualificada. É notório que o
mercado de trabalho, com a industrialização, tornou-se mais competitivo e seletivo visto
que é requisito essencial para o alcance de uma vaga no mercado uma formação
qualificada, sendo essa uma importante barreira, não superada, para o aproveitamento
dessa mão-de-obra. (DUTRA, 2012, p.10)
A inserção da figura feminina no tráfico de drogas, está amplamente ligada à
posição no mercado de trabalho na qual aquela possui. Visto que, este exige a qualificação
da mão de obra para adquirir uma posição no mercado. Portanto, a mulher que trafica visa
na comercialização de drogas uma forma de melhorar as condições de vida, sendo assim a
pobreza dos motivadores da entrada da mulher na criminalidade
O contexto social o qual essa mulher está inserida dificulta a busca por uma
formação profissional visto que a insuficiente condição financeira obriga as mesmas a
trabalharem desde cedo. Essa problemática gera um aprofundamento das desigualdades e
da exclusão criando-se o germe para criminalidade. O tráfico torna-se um meio de vida
para essas mulheres que sem oportunidades, sem perspectivas e esquecidas pelo Estado
precisam adquirir renda de alguma forma para supressão de suas necessidades.
O crime é uma questão social de grande relevância. No entanto, quase todas as
discussões e pesquisas realizadas, especialmente no Brasil, consideram apenas a
criminalidade masculina. (MAGALHAES, 2006) Poucos são os estudos que tratam do
envolvimento da mulher na criminalidade, sendo dedicado o grande número de pesquisas
quando tratam da mulher como agente social na violência, essa ocupa a posição de vítima.
A baixa produção acadêmica justificava-se anteriormente pela dificuldade de se detectar os
delitos femininos já que esses se relacionavam, quase sempre, com o âmbito privado. Outra
justificativa seria o baixo número de detentas quando comparados à massa carcerária
masculina.
Mesmo sendo inferior o número de mulheres que praticam crimes quando
comprado com o número de homens criminosos, não deixa de ser importante o
problema. A questão da criminalidade torna-se importante pelo fato de que se
relaciona com as trajetórias de vida humanas que são conduzidas ao extremo da
exclusão social, ou seja, ao encarceramento (MAGALHAES, 2006).
2. A MULHER RECATADA
As mulheres, desde a sociedade primitiva, sofreram processos de estigmatização e
objetificação, na qual pode ser considerada por antropólogos própria da cultura de
dominação na qual está inserida (KOLLONTAI, 2016). A mulher encontra-se numa
posição de subalternidade, ou seja, está numa posição inferior aos homens, numa posição
de dominação relativa (BIDASECA, 2008).
Para Bourdieu, a incorporação da dominação se deu através da diferença biológica
(corporal) entre os sexos e se desenvolveu através da construção social. Assim, ao homem
foi dada a virilidade como característica, em virtude do ―falo‖ (símbolo da fecundidade)
(BOURDIEU, 2003), e à mulher restou ser considerada frágil, devido ao seio (símbolo da
maternidade) (KOLLONTAI, 2016). Neste sentido, através da diferença anatômica dos
órgãos sexuais pode-se justificar a diferença social construída. Esse discurso proporcionou
a diferenciação entre os gêneros e através da definição social que proibiam ou
desencorajavam condutas impróprias, principalmente relacionadas ao outro gênero.
A ordem social funciona, assim como Bourdieu (2002) fala, funciona como uma
máquina simbólica, que tende a autenticar a dominação masculina, esta se legitima na
divisão social do trabalho com atividades atribuídas a cada um dos sexos. Dessa forma, foi
dado ao homem o espaço público e à mulher o espaço privado, transformando a divisão
social não apenas da reprodução biológica, bem como do trabalho (BOURDIEU, 2002).
No ordenamento pátrio existia a expressão ―mulher honesta‖, na qual não
significava mulher íntegra, decente, diferentemente do que ―honesto significa para o
homem, na qual corresponde ao que cumpre seus deveres, paga suas contas em dia etc. Nos
costumes absorvidos pelo Direito, honesta é aquela mulher que tinha sua sexualidade
controlada por uma figura masculina, podendo ser o pai ou marido (PEREIRA, 2000).
Assim, a mulher honesta era a mulher recatada e do lar.
Em sentido oposto, tem-se a expressão "mulher pública", cujo significado baseia-se
na conduta sexual duvidosa ou alguém que faz de sua sexualidade um mercado, ou seja,
uma prostituta. Entretanto, quando fala-se em "homem público", dar-se-á um sentido
contrário, ou seja, é aquele que tem sua vida dedicada à política.
Em detrimento das guerras e pobreza, as mulheres começaram a ocupar o espaço
público (FRIEDAN, 1971), somados a contribuição movimentos feministas na luta pelos
direitos iguais. Todavia, esses direitos foram alcançados pelas mulheres burguesas, ficando
de fora as mulheres proletárias (KOLLONTAI, 2016), em sua maioria negras de periferia.
A interseção de etnia e gênero na relação de dominação é explicada por Aníbal
Quijano (apud LUGONES, 2008) a partir da observação de que o poder está estruturado
nas relações de dominação, exploração e conflito entre atores sociais que disputam o
controle em âmbitos, tais como o trabalho, o sexo e os produtos. Assim, essas observações
pressupõem uma compreensão patriarcal e heterossexual das disputas de controle de sexo e
produtos. Ao aceitar que existe uma compreensão capitalista, eurocêntrica, global de
gênero, pode-se pressupor o motivo das mulheres não brancas serem subordinadas e
desprovidas de poder. Assim, a dominação das mulheres está amplamente ligada aos
fatores econômicos específicos, as características naturais têm sido um fator secundário
neste processo (KOLLONTAI, 2016).
Nesse sentido, se encontra o processo de feminização da pobreza e do aumento da
criminalidade feminina. A precariedade, em conjunto com o desemprego estrutural,
constitui um dos aspectos fundamentais para a inserção da mulher na criminalidade, pois
antes de se constituir numa infração penal, ela é percebida como uma forma e oportunidade
de trabalho (MOURA, 2005 apud CHERNICHARO, 2014). Segundo Luciana
Chernicharo, a participação das mulheres no tráfico de drogas é ainda mais subalterna e
além de apontar a marginalização social apontam desigualdades de gênero. Assim, é
necessário considerar a divisão social e sexual do trabalho, na qual acaba sendo acentuado
no mercado de drogas ilícitas.
É notório que o mercado de trabalho sofreu grandes transformações no mundo
contemporâneo, resultantes da globalização e reestruturação dos meios produtivos, visando
o crescimento econômico e uma maior qualidade nos serviços prestados, trazendo
mudanças nas ofertas de emprego. Isto sugere o estudo acerca da modernidade líquida
(BAUMAN, 2001), cuja compreensão da globalização constrói uma relação de fluidez a
qual provoca uma divisão entre aqueles que são globalizados (elite) e os que são
localizados (classes mais pobres, que acabam sendo exploradas).
Assim, a qualificação profissional como principal requisito para a possibilidade de
ingresso e melhores condições de trabalho, gerou um mercado de trabalho mais
competitivo e seletivo, criando uma barreira para aqueles que não se enquadram neste
perfil. Essa valorização da formação profissional apontada como condicionante para o
alcance de melhores remunerações realçou as disparidades encontradas na sociedade,
criando uma expansão no desemprego.
Propostas tentadoras, sem a necessidade de experiência e garantias de renda mais
considerável em meio a uma economia que intensifica o desemprego acaba por se tornar
uma possibilidade de aumento de renda sem prejudicá-los diante de tantas ofertas
lucrativas que não são encontradas no mercado de trabalho lícito (DUTRA, 2012).
Todavia, dentro do tráfico é destinado às mulheres papeis inferiores ao do homem
dentro da hierárquica do tráfico. De maneira semelhante ao mundo do trabalho legal, no
trabalho ilegal, a divisão sexual e social assumida na configuração do capitalismo
contemporâneo fez crescer a exploração do trabalho, e de modo ainda mais acentuado em
relação ao trabalho feminino. Às mulheres além de serem destinadas funções de hierarquia
inferior, são entregues baixos salários (menores que o dos homens), em atividades
consideradas ―inerentes‖ à aptidão feminina. (MOURA, 2005 CHERNICHARO, 2014).
A população carcerária feminina, no Brasil, alcançou nos últimos anos um número
significativo de detentas, a grande maioria por condenação pelo crime de tráfico de drogas.
Assim como na sociedade em geral, no mundo do crime as mulheres ocupam uma posição
de subalternidade em relação figura masculina o que pode explicar o número alto de
condenações. Essas por ocuparem na rede criminosa a linha de frente do tráfico, ou
melhor, as posições inferiores são mais facilmente apreendidas.
Nesse sentido sujeitas a esse contexto de violência, inferiorização e humilhação é
inconcebível afirmar que se comete crimes por mera escolha pessoal, existem motivos,
fatores e toda uma conjuntura social que precisam ser levados em consideração. Quando se
fala em motivação para a entrada da mulher no mundo do crime devemos considerar que
são múltiplos os fatores que levam essa mulher a delinquir.
Apesar das relações íntimas afetivas se mostrarem como a causa preponderante,
esse não é o único motivo responsável pela inserção das mulheres na criminalidade. O
universo das mulheres que são presas envolvidas com o tráfico de entorpecentes pode ser
resultado de uma verdadeira pluralidade causal que nem sempre corresponde ao que pensa
a maior parte da população acerca do que seja um traficante de drogas: uma pessoa que
vive das drogas e para as drogas. (PIMENTEL, 2007).
O crescimento exponencial da criminalidade feminina nos últimos anos é
um fato na realidade brasileira e sua relação existente entre tráfico de
entorpecentes, violência de gênero, violência intrafamiliar deve ser levada em
consideração no momento de formular políticas públicas de proteção à mulher,
considerando que o envolvimento com o tráfico de drogas, quando resulta de uma
“escolha pessoal”, não deixa de ser marcado por um contexto de violência de
gênero e oportunidades escassas (SOUZA, 2013).

3. A MULHER DE MANOEL CARLOS


Assim como a divisão sexual, o amor é uma construção social, na tese de Beall e
Sternberg (1995 apud DAS NEVES, 2007), pode ser traduzida em uma experiência
emocional definida de forma diferenciada em função das culturas na qual enseja. Isto
posto, os significados do amor dependem do espaço/tempo na qual se encontram e das
relatividades culturais subjacentes à sua conceituação.
Definir amor como uma realidade subjetiva da construção social abriu possibilidade ao
estudo sociológico das relações afetivas, permitindo novas análises e abordagens. Assim,
sabendo das diferentes conceituações na cultura e histórica pode-se perceber que o amor
tem um coneito plural, sendo considerado um produto social e discursivo (DAS NEVES
2007).
Ao fazer uma análise cronológica, na Grécia, para Platão, o amor é caracterizado pelo
desejo daquilo que falta (PIMENTEL, 2007, p. 81). Retratado nos filmes, literatura, mídia
e telenovela, este amor (Eros) é definido como sofrimento e frustração, o desejo de se unir
à sua metade. As transformações e a luta pela igualdade das mulheres ensejaram uma
transição do modelo de amor romântico para o amor confluente (GIDDENS, 2001 apud
DAS NEVES, 2007, p. 615), esta transição decorreu da exigência de relações intimas
igualitárias, a luta pela sexualidade feminina.
A partir do conceito de que algumas sociedades representam espaços sociais cujos
eixos de diferenças entre o masculino e o feminino passam a ser ditos como naturais
(BOURDIEU, 2002), foi atribuído à mulher, na definição social dos papeis de gênero, a
vocação para o amor. Nesse sentido, o estereótipo da realização feminina, mesmo após a
proposta do deslocamento da sentimentalidade para sexualidade, persiste em se destacar na
realização amorosa. Como o amor é um produto discursivo e social, foi dado a mulher
diferente percepção do amor, assim Elaine Costa (2007, p. 79) propõe que o amor tem
universos diferentes para os homens e para as mulheres, assim como suas funções sociais
dentro da sociedade.
O amor romântico presume algum grau de autoquestionamento, que acaba por
promover uma ―história compartilhada‖, um amor prolongado e duradouro. Diferente do
que ocorre no amour passion, cujo modo irregular elimina o amor romântico. Assim,
proporciona uma trajetória de vida prolongada, orientada para um futuro previsto, mas
maleável (GIDDENS, 1993 apud COSTA, 2008). Se assemelhado ao conceito de amar na
modernidade liquida de Bauman (p.10), este redesenha o amor como uma natureza, uma
condição de ―estar‖ apaixonado. Para o sociólogo, ao estar apaixonado, o ser humano se
condiciona ao destino, a sua misteriosidade e incertezas, na qual esta regozija uma
liberdade do ser para com aquele cujo amor pertence. Entretanto, ao mesmo tempo o amor
torna-se desinteressado, fluído, assim como as relações de consumo, sendo estruturado
pelo desejo carnal.
A idéia de uma ―história compartilhada‖ põe no campo da construção da identidade.
Ao ir além do campo da intimidade o amor romântico faz com que o outro sujeito, seja
quem for, preencha um vazio, cuja completude do amor o torna o indivíduo inteiro
(GIDDENS, 1993 apud COSTA, 2008).
Os ideais do amor romântico sempre afetaram a construção social das aspirações das
mulheres mais do que as dos homens, apesar de estes serem também influenciados por
eles. Entretanto, o homem que ama é um sujeito diferente, endeusado pelas mulheres. Um
sociólogo afirma que Giddens (Apud DAS NEVES, 2007, p. 615) o amor pode ser
considerado uma conspiração engendrada pelos homens contra as mulheres, para que estas,
se mantivessem com sonhos impossíveis e continuassem dominadas.
Inclusive nas relações sexuais é esperado que elas sejam mais românticas do que os
homens, assim sendo, que se comportem em conformidade. Para os homens o ato de
relação sexual é uma conquista, uma dominação, as mulheres são encorajadas a ver o sexo
em termos da sua romanticidade (BOURDIEU, 2002). Nesse sentido, os arcabouços
culturais impregnados com a ideia de que, no que tange a sexualidade, o sexo feminino
deve ser passivo, ao invés de ativo (DAS NEVES, 2007). Assim, a relação de dominação
proposta na divisão sexual e divisão do trabalho se estendeu as relações amorosas, para
promover a maior dominação masculina.
Para Bourdieu (2002), ―o amor é dominação aceita, não percebida como tal e
praticamente reconhecida, na paixão feliz ou infeliz‖. Assim, segundo Bourdieu, a
dominação masculina é uma expressão de poder que comporta uma dimensão simbólica na
qual a mulher, polo dominado da relação submete-se a uma forma de aceitação que não é
uma decisão deliberada, mas sim um objeto da submissão e subalternidade sobre o homem.
(BOURDIEU, 2002).
Assim, as mulheres traficantes de drogas tem uma dependência emocional, que as
sujeitam, na relação patriarcal, à opressão masculina, tornando-as sem vida própria
(COSTA, 2008, p. 97). Nesse sentido, a mulher traficante de drogas é vista em segundo
plano, como a substituta do homem, este protagoniza como sujeito pelo qual a mulher deu
sua liberdade em troca de amor. Bem como, a subalternidade da mulher traficante remete a
relação de poder e dominação, na qual obteve a sustentação do protagonismo masculino
através do discurso androcêntrico, ao longo da história.
O amor, em conjunto com a desigualdade de gênero e a pobreza torna-se um
motivador para a mulher que pratica crimes. Nesse sentido, a construção social da divisão
de trabalho torna as mulheres objetos ou símbolos cuja função é de contribuir para a
perpetuação do capital simbólico em poder dos homens (BOURDIEU, 2002). Sendo assim,
a mulher que trafica drogas, age, na maioria das vezes, por influência do parceiro.
Muitas das mulheres traficantes, não se reconhecem criminosas, inclusive cria-se
uma facilidade maior de arrependimento, visto que, há uma consciência de que o ato
cometido representa uma transgressão ao código penal. Nesse sentido, elas não se
reconhecem devido às identidades relacionadas à vida doméstica, as quais sobrepõem-se
àquelas que dizem respeito à sua condição de traficante. Assim, a mulher age em nome do
afeto, na medida em que suas práticas estão diretamente relacionadas a sua identidade na
relação afetiva. Enquanto que os fundamentos do homem baseiam-se nos aspectos
financeiros e na necessidade de se firmar no âmbito da res publica (PIMENTEL, 2007, p.
3).
A incompletude feminina baseia-se no ideal de identidade construído socialmente,
no processo de construção dos corpos e da divisão sexual. Nesse sentido, a identidade
afetiva da mulher sempre foi submetida ao outro. Na própria literatura moderna, as
mulheres retratadas sempre relatavam juras de um amor incondicional, transparecendo o
ideal de que a vida da mulher não tem sentido sem a presença de um sujeito masculino que
a ama (PIMENTEL, 2007, p. 11). A exemplo das telenovelas, na qual a mocinha se
apaixona pelo rapaz perfeito.
A mídia também traz a representação de mulher dominadora, segundo Bourdieu há
uma inversão da relação de dominação, na qual a mulher é retratada na arte como
misteriosa e manipuladora, que exerce sob o homem uma força que o domina, retirando
sua dignidade social. Nesse sentido, essa inversão dos polos retrata a mulher dominadora
como símbolo sexual, na qual a sua sensualidade domina o homem, reforçando o
patriarcado e o homem como um homem digno.
A mídia tornou-se um espaço promotor da dominação masculina, a partir da
solidificação desses ideais. A falta de senso crítico contribui para a formação de uma
identidade subalterna feminina. Nessa perspectiva, a mulher de periferia que sofreu dos
processos de exclusão e encontra-se desqualificada vê no tráfico uma oportunidade, o amor
torna-se agente motivador apenas como resultado das desigualdades sociais e de gênero.
As necessidades matérias básicas inerentes à vida de qualquer ser humano tornam-se
justificativa para a entrada no tráfico de drogas. Nesse sentido, Elaine Pimentel afirma que
o cotidiano à dois influencia à mulher a entrar na criminalidade para ―estar junto‖ daquele
que ela ama.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta do presente trabalho foi o de analisar os determinantes para entrada da


mulher no crime de tráfico de drogas, partindo do pressuposto que o processo para entrada
da mulher na criminalidade se difere ao do homem, em virtude dos papeis sociais e da
identidade do sujeito, construções sociais na história da sociedade.
Para fazer a análise foi necessário perceber os diferentes motivos de inserção
feminina neste delito e como eles estão relacionados à sua vulnerabilidade, tanto social
quanto de gênero, que nos revelam um perfil muito homogêneo de mulheres privadas de
liberdade, bem como, uma homogeneidade na relação de dominação perante o homem.
A partir da análise foi possível observar um padrão da mulher criminosa, na qual
entendeu-se que a pobreza anda de ―mãos dadas‖ a desigualdade de genêro em conjunto a
dominação advinda também do amor, contribuem para a entrada da mulher na
criminalidade. Obtendo-se, assim, um padrão da mulher que trafica drogas.
As estruturas do mercado de drogas ilícitas se assemelham ao do mercado do
trabalho legal, na qual as mulheres ocupam posições mais subalternas, como mula, avião,
etc. Estas posições são também as mais vulneráveis, pois são atividades que demandam
contato direto com a droga, por isso acabam sendo presas com facilidade, visto que há uma
maior exposição.
A realidade do mundo ilícito transparece um espelho na qual em ambos os lados a
mulher é considerada subalterna ao homem. Na criminalidade são ainda mais subalternas
na estrutura hierárquica do tráfico. Nesse sentido, ao homem são destinados altos cargos de
chefia, com maior ganho de capital e à mulher atividades em níveis mais baixos e simples.
Assim, as representações de papeis sociais de gênero e a dominação da mulher tem um
papel funcional na dinâmica do tráfico, remetendo a divisão sexual.
Essa entrada no tráfico expõe uma entrada subalterna na esfera pública, de maneira
ilícita. No sentido que há uma limitação para adentrar essa esfera, visto que esta é
reservada ao homem. Assim, foi possível observar que existia uma relação de ambivalência
entre trabalho doméstico e a atividade ilícita, ou seja, existia uma relação antagônica na
identidade da mulher ao entrar no tráfico.
Diante do processo de agravamento da pobreza a imagem da mulher traficante não
pode ser dissociada das desigualdades e do processo de construção da divisão sexual do
trabalho, da mulher dona de casa. Assim, apesar da situação econômica ser de extrema
importância para a análise, torna-se mais compreensível a análise ao observar o contexto
do sujeitamento aos modos ilícitos como meio para cumprir um papel social imposto à
mulher culturalmente. Bem como, é necessário observar toda a análise através de uma
visão interseccional de gênero e raça
Deve-se destacar que por traz do contexto de pobreza e ausência de oportunidades,
na maioria das vezes, há uma história de violência de gênero e abandono dessas mulheres
que identificam o tráfico não como uma atividade ilícita, mas sim como uma alternativa a
difícil situação enfrentada por elas.
A guerra contra drogas se deu principalmente contra segmentos específicos da
sociedade, o aumento exponencial da população carcerária pelo crime de tráfico pode ser
explicado pela criminalização do perfil traçado. Mulheres parda e negras, com filhos e
advindas das camadas mais baixas da sociedade foram os grupos sociais mais afetados pela
guerra contra as drogas. Tais fatos chamam a atenção para a necessidade de se construírem
políticas públicas voltadas para mulheres prisioneiras, a atenção deve recair sobre a
segurança, o contexto social econômico e saúde da mulher, sendo essa vítima ou autora da
violência, antes de tudo são mulheres.

REFERÊNCIAS
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Zahar, Rio de Janeiro, 2003. 141pp.
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Zahar Editor, 2004
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<https://www.academia.edu/3151571/Perturbando_el_texto_colonial> Acesso em: 30 de
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O MOVIMENTO ECOFEMINISTA BRASILEIRO: O DESENVOLVER DO
TRABALHO DE MARGARIDA MARIA ALVES E A CRESCENTE
NECESSIDADE DE UMA NOVA PERSCPECTIVA NO DIREITO AMBIENTAL

Cleody de Almeida Santosvi


Profa. Dra. Rita de Cássia Souza Tabosa Freitasvi

GT: Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos.


RESUMO

O presente trabalho visa analisar de maneira prática a atual conjuntura do movimento


ecofeminista, sobretudo no Brasil, como instrumento de luta pelos direitos humanos e
garantidor da efetivação deste último no que concerne aos direitos ecológicos pertencentes
à terceira dimensão de direito, tendo como mote a história de vida e luta de Margarida
Maria Alves como pioneira dos movimentos que surgiram ou, foram inspirados em sua
história. Quanto à metodologia foi feito o uso da abordagem qualitativa, do método
dialético e, do método histórico, além disso, a pesquisa é descritiva e, também,
documental. Com isso, utilizamos, sobretudo, as obras de Puleo (2010), Castro e
Abramovay (2005) e Siliprandi (2007). O objetivo geral consiste em apresentar o
movimento ecofeminista como elemento para a consolidação dos direitos ambientais
enquanto direitos de terceira geração. Como primeiros resultados, identificamos resquícios
de uma sociedade ainda patriarcal incutidos nos diversos setores sociais que dificultam a
maior discussão da legitimação e abrangência do ecofeminismo. Todavia, considerando as
diversas ações populares tendentes a garantir e discutir a preservação ecológica trouxemos
o ecofeminismo como um novo método de abordagem de um sistema opressor não só de
gênero, mas também da natureza.

Palavras-chave: Direitos humanos. Movimentos ecológicos. Ecofeminismo.

INTRODUÇÃO

A opressão e submissão feminina podem ser verificadas historicamente desde que


os povos deixaram de ser nômades e utilizaram a divisão social do trabalho como forma de
organização. Dessa forma, as mulheres permaneceram mais ligadas ao lar e aos filhos,
enquanto os homens se ocupavam prioritariamente com as caçadas, por serem, na maioria
das vezes, dotados de maior força física. Assim, as mulheres descobriram a agricultura e
passaram a ter uma relação mais próxima com a natureza. Nessa perspectiva, com o
desenvolvimento do feminismo, surge em meados do século XX, um movimento
denominado Ecofeminismo que pode ser apresentado em diversas correntes, levando
críticas nesse sentido, todavia, se apresenta como uma nova postura social, com novas
práticas de relação de gênero e no trato com a natureza. Assim, tomando como ponto de
partida a luta pela Igualdade de Gênero e, tendo em vista o papel basilar que tem o Direito
como patrono dos anseios sociais traremos em discussão a atual conjuntura da luta dos
direitos ecológicos como direitos humanos de terceira geração numa visão ecofeminista.
Assim, apontaremos a (in)eficaz participação feminina nas tomadas de decisões de cunho
ambiental e, os elementos incutidos no ordenamento jurídico pátrio que a obstaculizam,
com fins a um desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente democrática,
sustentável e igualitária.
Buscamos, por fim, apresentar a manifestação desse movimento no cenário
brasileiro, a partir do trabalho da líder sindical Margarida Maria Alves, assassinada em
1983. Que levando consigo estereótipos arraigados numa sociedade patriarcal e
preconceituosa contribuiu, através de sua luta, para a formação de diversos movimentos
feminista de combate à degradação ambiental.
Visando compreender o inexpressivo desenvolvimento do movimento
ecofeminista no Brasil e percebendo a importância de seus ideais como instrumento de
modificação dos paradigmas sociais, e os fatores que o limitam, nosso trabalho será
norteado no seguinte problema de pesquisa: à luz da manifestação do movimento
ecofeminista no Brasil, quais os obstáculos encontrados dentro do ordenamento jurídico-
ambiental tendentes a impedir a igualdade de gênero e a efetivação dos direitos
ecológicos?
Para tanto, reuniremos as peculiaridades de cada corrente em que se subdivide o
ecofeminismo, reconhecendo as suas limitações e proposituras para sua melhoria.
Quanto à metodologia utilizada, trouxemos a abordagem qualitativa, por este
compreender e interpretar determinados comportamentos, sem necessariamente ter o
intuito de obter números como resultados, mas sim, reunir ideias que possam nos indicar os
melhores caminhos para aperfeiçoamento do ecofeminismo. Além disso, utilizamos o
método dialético o qual assevera que nenhum fenômeno da natureza pode ser
compreendido isoladamente dos demais que o circundam, ao contrário, ―qualquer
fenômeno pode ser compreendido e explicado, quando considerado do ponto de vista de
sua ligação indissolúvel com os fenômenos que o rodeiam‖ (LAKATOS, 2003, p. 101).
Além de valer-se do método histórico por investigar processos e instituições remotas e sua
consequente influência na sociedade atual, pois ―as instituições alcançaram sua forma atual
através de alterações de suas partes componentes, ao longo do tempo, influenciadas pelo
contexto cultural particular de cada época‖ (LAKATOS, 2003).
Quanto à técnica, a pesquisa assume um caráter descritivo por visar à
―identificação, registro e análise das características, fatores ou variáveis que se relacionam
com o fenômeno ou processo‖ (PEROVANO, 2014). Pode ser classificada como
documental, pois exploramos documentos, escritos ou não, constituindo o que se denomina
de ―fontes primárias‖, retrospectivas ou contemporâneas. Tais como a análise de recortes
da legislação brasileira; de documentações datadas na década de 1980, período em que
viveu e foi assassinada Margarida Maria Alves, bem como entrevistas fornecidas pela
mesma e por seus amigos e companheiros de luta. Além de trazer a coleta e interpretação
de dados estatísticos, inclusive censitários, de órgãos como o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
dentre outros elementos.
Portanto, nosso trabalho é academicamente importante devido ao caráter de
inovação trazido a partir do movimento ecofeminista, pouco pesquisado no meio jurídico,
mas abundante em conhecimento científico, a partir de um novo jeito de pensar o mundo.
Através da interdisciplinaridade, com ferramentas analíticas e interpretativas, propõe uma
leitura mais ampla. Baseando-se nos fundamentos teóricos do feminismo e do
ambientalismo, questionando a desigualdade de gênero, onde a mulher é tratada como ser
inferior. Quando somamos essa perspectiva ao anseio dos ambientalistas, produziremos
certamente novas ferramentas para as discussões em prol do desenvolvimento sustentável e
da comunidade.
Também tem uma grande importância social, pois após identificar os sintomas do
insistente retrocesso, encontramos o desafio de superar as raízes patriarcais que perduram
nos valores da sociedade brasileira e, no modelo de desenvolvimento socioeconômico que
foi adotado. Além de trazer o reconhecimento dos trabalhos de diversos indivíduos em prol
dessa significativa mudança de paradigmas, comprovando, assim, que o ecofeminismo é
um importante instrumento modificador do pensar, possibilitando esta reação através da
conscientização e preservação ambiental, em si defendida.
Portanto, como objetivo geral apresentaremos à luz da manifestação do
movimento ecofeminista no Brasil, quais os obstáculos encontrados dentro do
ordenamento jurídico-ambiental tendentes a impedir a igualdade de gênero e a efetivação
dos direitos ecológicos.

1 RAÍZES DO FEMINISMO: SUPERANDO ESPEREÓTIPOS NA BUSCA


POR DIREITOS

As mulheres vêm enfrentando, ao longo de muito tempo, discriminações e


estereótipos opressores baseados no sexo. Em um cenário social identificado pelo
pensamento feminista como regime de patriarcado, ocorre uma distribuição desigual de
poderes entre homens e mulheres que resulta em violência e segregação sociais e
institucionais (SIQUEIRA, 2015). É, pois instrumento de dominação constante na história
da sociedade o qual também se agregaram, sucessivamente, diferentes modalidades de
organização da produção: escravista, feudal e capitalista (SAFFIOTI, 1987).
Neste cenário, não é possível determinar com precisão uma definição para o
feminismo, uma vez que se manifesta em um processo de libertação contra opressões
arraigadas num passado que permanecem na contemporaneidade, passando agora a
manifestar-se de forma mais sutil, o que pode torná-lo mais difícil de ser combatido devido
seu caráter de ―invisibilidade‖ social.
Destarte, para melhor análise sobre os avanços alcançados e sobre as mudanças
dentro da prática e da teoria feministas, autoras e autores, costumam seccionar o
feminismo em períodos cronológicos denominados ondas (ou fases).
Defende-se que, conforme a época, os movimentos feministas apresentavam
demandas específicas, evoluindo em direção a outras matérias conforme a passagem do
tempo e as mudanças na sociedade, que traziam questões novas e o amadurecimento do
próprio movimento feminista. Desse modo, as lutas de gênero iniciam-se no século XIX e
se prolongam até meados do século XX, onde ganhou força e voz, tendo seu ápice entre os
anos 60 e 80 (Aragão, 2015). Período este, em que o feminismo ganhou caráter de um
movimento de massa e, posteriormente, o reconhecimento que tampouco são todas iguais
entre si, pois sofrem as consequências da diferença de outros elementos, tais como raça,
classe, localidade ou religião.
Assim, os movimentos feministas não constituem um movimento ou discurso
ressentido, mas sim, um movimento inclusivo. Não há embates pela supremacia da ideia de
identidade feminina. Há sim, uma batalha pelo fim das identidades rígidas. O feminismo
não é uma guerra das mulheres pelas mulheres. Talvez o feminismo enquanto movimento
marcado historicamente pelo radicalismo seja uma luta por um mundo onde ser homem ou
mulher não faça diferença alguma. Essa perspectiva, dessa maneira, não tem o sentido de
igualar mulheres e homens. Longe disso, é a luta constante contra discursos e práticas que
nos fazem pensar que há alguma vantagem em ser homem ou mulher (CONCEIÇÃO,
2009).

2 Repensando os direitos humanos: o florescer do ecofeminismo

No dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um


construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução
(ARENDT apud PIOVESAN, 2006, p. 2). Considerando a historicidade destes direitos,
pode-se afirmar que a definição de direitos humanos aponta a uma pluralidade de
significados. A concepção contemporânea dos Direitos Humanos veio a ser introduzida
com o advento da Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos
Humanos de Viena de 1993. Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização
dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história,
surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos
durante o nazismo. O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja,
a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana.
Assim, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do
genocídio concebido como projeto político e industrial. É neste cenário que se delimita o
esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a
orientar a ordem internacional contemporânea. Se a Segunda Guerra significou a ruptura
com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução (PIOVESAN,
2006).
Destarte, mister destacar que utilizaremos a expressão originalmente desenvolvida
por Karel Vazak, diretor do departamento jurídico da UNESCO, que em 1979 ao proferir a
aula inaugural da Décima Sessão do Instituto Internacional dos Direitos Humanos em
Estraburgo, fez uso do termo buscando metaforicamente demonstrar a trajetória dos
direitos humanos fundamentais com base no lema da revolução francesa: liberdade,
igualdade e fraternidade. Embora compartilhamos as ideias de alguns autores com relação
ao uso da expressão, pois ao invés de gerações mais adequado seria falar em dimensões de
direitos fundamentais, nesse contexto, reforçando o sentido de que as gerações anteriores
não desaparecem com o surgimento das mais novas (FRANCO FILHO, 2009).
Modernamente, a constituição protege como direitos de terceira geração os
chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um meio
ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à
autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos, ou seja, interesses de grupos
menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há vínculo jurídico ou fático
muito preciso (MORAES, 2011).
Os direitos humanos vêm se ampliando no decorrer do tempo. Este fenômeno é
uma resposta às demandas sociais, embora as violações sejam mais notáveis que o respeito
a estas conquistas. Dessa forma, atualmente se fala em uma nova geração de direitos, que
não se limitam àqueles fruíveis individualmente ou por determinados grupos, como foi o
caso dos direitos individuais e dos sociais (ANTUNES, 2010). Quanto aos direitos de
terceira geração, Norberto Bobbio declara que ―o mais importante deles é o reivindicado
pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído‖ (BOBBIO,
1995 apud ANTUNES, 2010).
Todavia, a nova perspectiva de interação entre Direitos humanos e ambientalismo
não está imune a limitações. O fato das normas internacionais de proteção ambiental,
serem estruturadas por normas de soft lawvi. Ou seja, Apesar de indicarem ―obrigações
morais‖ dos Estados, as normas de soft law não possuem status de norma jurídica e por
isso, não tem força vinculante. Assim, os Estados que vierem a descumprir suas
―obrigações morais‖ relacionadas à proteção ao meio ambiente, não podem sofrer sanções
da comunidade internacional. Ademais, a falta de poder e influência do Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) nos foros diplomáticos e pela
incapacidade ou falta de interesse dos Estados em criar uma organização
intergovernamental especificamente voltada a questões ambientais, se une a estes desafios
(MAZZUOLI, 2013).
Portanto, para vincular temas ambientais a questões de proteção aos direitos
humanos a abordagem mais apropriada caminha no sentido de se buscar sua interconexão
aos mecanismos de proteção aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais já
existentes.
No Brasil, desde a metade dos anos 80 tem havido um notável desenvolvimento
do socioambientalismo, onde movimentos sociais, movimentos de trabalhadores e ONGs
têm incorporado preocupações ambientais às suas agendas e atividades. Este
desenvolvimento pode ser visto em uma variedade de áreas, a exemplo, algumas parcelas
do movimento de mulheres têm conectado feminismo e preocupações ambientais (VIOLA;
NICKEL, 1994, p.176-177). Nessa última perspectiva, passaremos a conhecer o trabalho
da líder sindical Margarida Maria Alves e sua luta por igualdade, justiça social e proteção
dos recursos ambientais.

3 Margarida Maria Alves: “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”


Na década de 1980 verificamos um dos tantos movimentos pela defesa do meio
ambiente e demais direitos sociais, oriundo, primordialmente, da longa marcha do
campesinato brasileiro, escrita nas lutas muitas vezes (ou quase sempre) sangrentas desta
classe social (OLIVEIRA, 2001). Aqui, apresentamos a resistente figura de Margarida
Maria Alves que dá início ao que mais tarde viria a inspirar um dos maiores movimentos
de luta contra a exploração ambiental e o combate à desigualdade de gênero.
Nascida em Alagoa Grande-PB, em 05 de agosto de 1933, em uma família de
nove irmãos, Margarida Maria Alves desde cedo passou a trabalhar no campo, obrigada
como muitos pelo instinto de sobrevivência. Desde sua infância, Margarida vivenciou a
realidade de pobreza e submissão em que viviam os camponeses na Paraíba e foi com a
expulsão de seus pais da terra na qual a família vivia e trabalhava que a futura líder
sindical teve sua primeira ação trabalhista, contra os patrões que expulsaram seu pai da
terra, sendo bem sucedida (BARBOSA apud RODRIGUES, 2016). Era casada e mãe de
um filho, pessoa simples e semi-analfabeta. Durante toda sua difícil trajetória de trabalho
como camponesa, indignava-se com a triste realidade do homem do campo. Ante a isso,
resolve fazer a escolha decisiva em sua vida – posteriormente seria causa de sua morte, em
12 de agosto de 1983– se inserir no Sindicato Rural de Alagoa Grande. Não tardou para
que todos reconhecessem o seu espírito de liderança e, a escolherem como presidente do
sindicato em meados de 1973 (SILIPRANDI, 2010).
É válido ressaltar que desde o período de juventude até o seu amadurecimento
político, Margarida vivia em um contexto em que o Brasil estava deixando de ser um país
cujo sistema político era baseado em ―trocas de favores‖ entre o governo central e os
poderes locais, o coronelismo, no qual os trabalhadores rurais, desprovidos de qualquer
estrutura que lhes possibilitasse mudança de vida, econômica, intelectual, etc., eram
dependentes do coronel (SILIPRANDI, 2010)
Já no início de 1982, a sociedade brasileira assistia a um programa televisivo,
intitulado ―o povo e o presidente‖, criado pelo governo do então presidente João Baptista
Figueiredo, que tentava apresentar uma imagem democrática ao país. No programa,
Figueiredo respondia cartas e conversava com telespectadores, quando, durante um desses
programas, comentou uma carta que recebia de uma mulher paraibana, moradora de uma
cidade a cerca de 120 quilômetros da capital João Pessoa – Alagoa grande fica no brejo
paraibano, uma das mais violentas do Estado. Na carta, Margarida, presidente do sindicato
dos Trabalhadores Rurais do município escrevia uma carta veemente, denunciando o que
acontecia aos trabalhadores rurais, uma vez que no Estado da Paraíba, era muito frequente
o desrespeito à legislação trabalhista. Os canavieiros ganhavam muito mal e, nunca tinham
seus direitos assegurados em lei, garantidos na prática. O presidente Figueiredo ―surpreso‖
com as denúncias, afirmava que as providencias para eliminar aqueles abusos já tinham
sido tomadas. Ainda assim, nada foi feito de concreto por parte do governo federal que
pudesse ser constatado como medida, uma ação, ou programa específico de combate à
violência no campo, mais precisamente no Estado da Paraíba. Até porque, para ser
realizada alguma ação no Estado, deveria ser trabalhado algum tipo de parceria
institucional entre governo federal e local, e este último estava atrelado aos grupos que
praticavam ou encobriam as ações de violência (ROCHA apud FERREIRA, 2010).
As distinções de gênero não importavam para ela. O que a movia era o
reconhecimento de pertencer à determinada categoria social e política, que atribuía
indistintamente a homens e mulheres uma única identidade coletiva (CARNEIRO, 1994).
As palavras de Margarida Alves ilustram esse momento:

Eu sentia que os direitos da gente /são iguais, ninguém é mais do que ninguém. E
se eu estava aqui era porque certamente tinha vontade de trabalhar. Porque tinha
coragem de lutar. Não tinha medo e achava que este negócio de homem e mulher é
besteira. A mulher pode ser até presidente de sindicato, pode ser (NOVAES apud
CARNEIRO, 1994, p. 12).

Assim, como principal desafio, tinha a luta pelas demandas da região paraibana
que habitava. Uma delas, a luta contra usineiros latifundiários que exploravam e
prejudicavam o desenvolvimento da agricultura familiar na região de Alagoa Grande e
municípios vizinhos. Covarde e brutalmente, foi assassinada na porta de sua casa
enquanto estava na companhia de sua mãe e seu esposo Severino Casemiro Alves e o filho
do casal, José de Arimatéia Alves. Os mandantes da barbárie eram ligados à usina da
região. Assim, Margarida foi assassinada por enfrentar o poder estabelecido na opressão e
exploração da classe camponesa, um poder assentado no monopólio territorial, lastreado
na violência econômica constitutivas das relações de produção que moviam as usinas de
açúcar do Brejo paraibano. Todavia, a paraibana deixou na justiça centenas de demandas
daqueles que defendia, todas ganhas. Sua morte repercutiu nacionalmente, chegando à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, todavia, mais de trinta anos depois,
nenhum dos mandantes foi condenado (LOURENÇO, 2015).

Margarida não se restringia a uma jornada de trabalho no campo; era esposa, mãe,
dona de casa e líder sindical. O início de suas atividades nas organizações de
trabalhadores rurais foi como tesoureira do sindicato rural, acabando por ser eleita
como presidente do sindicato tendo lá permanecido por 12 anos. Período em que
moveu mais de 600 ações trabalhistas contra usineiros e senhores de engenho da
região o que fez dela uma liderança política na região. (SANTANA, 2010.).

Assim, inspiradas em sua luta, desde o ano 2000, em agosto, sempre se reúnem
milhares de mulheres trabalhadoras rurais em Brasília. Intitulado como Marcha das
Margaridas, o movimento – organizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (Contag) e Central Única dos Trabalhadores (CUT) – traz demandas a respeito
da garantia permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, sem
comprometer outras necessidades essenciais; o acesso a terra e valorização da
agroecologia, uma educação que não discrimine as mulheres, o fim da violência
sexista, o acesso à saúde, a ser ou não ser mãe com segurança e respeito; autonomia
econômica, trabalho, renda, democracia e participação política (AGÊNCIA BRASIL,
2015).
Sendo mulher, negra, nordestina, trabalhadora rural, pobre; reunia em si
estereótipos calcados em uma sociedade patriarcal e preconceituosa. No entanto, não
permitiu ser vítima da opressão muito pelo contrário, dias antes de ser assassinada, em seu
discurso de comemoração de 1º de maio de 1983, na cidade de Sapé, Paraíba, Margarida
proferiu um dos lemas mais expressivos símbolos de sua luta e empoderamento:

Companheiros, a prepotência dos proprietários rurais de Alagoa Grande estão


oprimindo a diretoria do Sindicato de Trabalhadores Rurais e ainda na última
sexta-feira recebemos uma agressão, mas quero dizer a vocês que não tememos
qualquer ameaça e vamos a luta até o fim por melhores condições de vida dos
trabalhadores rurais da Paraíba doa isso em quem doer, goste quem gostar,
porque entendo que é melhor morrer na luta de que morrer de fome
(BARBOSA apud RODRIGUES, 2016, p.5, grifo do original).

Sua força atravessou o tempo e, germinou em várias margaridas que lutam em


prol dos direitos sociais. Dessa forma, assumiu a frente de seu tempo, e sociedade, a
liderança no combate à exploração ambiental e social. Com isso, mesmo sem conhecer o
termo ―ecofeminismo‖, timidamente iniciou no Brasil, na década de 1980, um dos vários
movimentos reflexos desse novo modo de pensar o mundo.
Com isso, anos mais tarde a Rio-92 se destaca na literatura feminista no Brasil
como o tempo/espaço em que as discussões sobre gênero e meio ambiente, a estruturação
de ações por parte do movimento de mulheres tomaram impulso, em dinâmica conjunta
com o movimento feminista internacional. De fato, pela participação de milhares de
mulheres, incluiu-se na Agenda 21 dos governos um capítulo especial sobre as
necessidades das mulheres e sua importância para um desenvolvimento sustentável e
equitativo (CASTRO; ABRAMOVAY, 2005, p. 79)

4 A raiz conceitual ecofeminista da pesquisa

O ecofeminismo é uma teoria surgida na década de 1970, na Europa. A feminista


francesa Françoise d´Eaubonne estabelecia, em 1974, a primeira relação entre ecologia e
libertação das mulheres ao afirmar que estas tinham de ter o poder de controlar a sua
fertilidade, para salvar o planeta da superpopulação. Assim, seus preceitos asseveram que
possuem as mulheres o poder-dever e capacidade de impulsionar a verdadeira mudança em
seu meio social com fins de libertar o meio ambiente da exploração degradante, ao passo
que aquela se autoafirma como ser não submisso ao arcaico pensamento patriarcal, que
ainda perdura na sociedade, limitando a verdadeira evolução e desenvolvimento
sustentável (SILIPRANDI, 2000, p. 61).
A dicotomia cultura/natureza determinava para as mulheres papéis sociais ligados
à reprodução e sujeitava-as a um determinismo biológico que marcou a sua vida durante
séculos. Onde, nas sociedades primitivas seu papel é unicamente nutriente, não criador; em
nenhum domínio ela cria: mantém a vida da tribo dando-lhe filhos e pão, nada mais;
permanece voltada à imanência; encarna somente o aspecto estático da sociedade, fechado
sobre si. Ao passo que o homem continua a assumir as funções que abrem essa sociedade
para a Natureza e o conjunto da coletividade humana. Os únicos trabalhos dignos dele são
a guerra, a caça, a pesca que representam uma expansão da existência, sua superação para
o mundo, ou seja, a ele à exploração e a cultura de seu povo (BEAUVOIR, 1970, p. 194).
A associação das mulheres com a natureza e como suas guardiãs surgiu como uma
mensagem positiva por parte das primeiras ecofeministas, pois as mulheres não tinham as
―mãos sujas‖ dos processos de industrialização que em nome do desenvolvimento
destruíam o ambiente. As ações das mulheres indianas abraçadas a árvores, defendendo-as
das empresas de exploração florestal são bem conhecidas, criando-se um movimento
próprio que se espalhou por outras regiões do mundo – o movimento Chipko, do qual fez
parte Vandana Shiva que mais tarde se tornou uma das principais idealistas do
ecofeminismo espiritualista. Estas ações reforçaram ainda mais a mística ligação das
mulheres à terra e à natureza. No entanto, o ecofeminismo parecia ressuscitar algo que
tinha sido combatido durante décadas pelas feministas: ―a natureza feminina‖ e os
estereótipos patriarcais que estavam por detrás da separação das esferas doméstica e
pública. A luta pelos direitos políticos, cívicos, sociais ficava assim secundarizada por
projetos pessoais de vida e de mistificação das mulheres como seres puros com uma
ligação privilegiada à natureza, destinadas às tarefas do cuidado (TAVARES, 2003).
De todo modo, é um conceito inovador, que vem tomando vulto no decorrer dos
anos, com a contribuição de várias personalidades que filiam sua linha de pensamento
conforme melhor identificam-se. Nesse sentido, é importante analisar que no
Ecofeminismo existem várias ideias e práticas que se podem consubstanciar em várias
correntes, destacamos três que nos parecem importantes para clarificar a proposta do
movimento: o ecofeminismo Clássico, o Espiritualista e o Construtivista (BONI, 2013).
A primeira vertente é a do ecofeminismo clássico, tendo como uma de suas
representantes Mary Daly. O ecofeminismo caracterizado como clássico recupera a ideia
do ―bom selvagem‖ rousseniano, já que a mulher conseguiu se libertar da alienação
masculina. Este biologicismo suscitou fortes críticas dentro do feminismo, acusando de
demonizar o homem. (GARCÍA, 2009). Para o ecofeminismo espiritualista, as mulheres
estão próximas da espiritualidade presente na Terra. Celebram a energia que emana das
mulheres por serem portadoras de vida e de uma espiritualidade sensual que não separa a
matéria do espírito. (BONI, 2013). O Ecofeminismo Construtivista é defendido, sobretudo,
por Karen Warren, Bina Agarwal e Val Plumwood. Segundo os seus pensadores, a
interligação da mulher com o meio ambiente se dá por sua experiência social a partir do
processo biológico, ou seja, não é pelas características do ser feminino que se dá a
interligação com a natureza, mas pelo papel que tem a mulher na garantia da sobrevivência
da família. Papel fruto da divisão social do trabalho e das relações desiguais inerentes às
famílias (BONI, 2013).
Além disso, Warren (1996) defende que o ecofeminismo é o recurso necessário
para as feministas e os ambientalistas. Ele busca criticar o machismo em todas as esferas
em que se encontre, seja na ética (incluindo ética ambiental) que não contém preconceitos
sexistas, ou qualquer outra área. Nesse sentido, afirma a autora que o feminismo é
intrinsecamente ―antinaturista‖. O ―antinaturismo‖ é a rejeição de qualquer forma de
pensar ou agir em relação à natureza não humana que reflete lógica, valores e atitudes de
dominação. Ou seja, o ecofeminismo possui caráter antinaturista, anti-sexista, anti-racistas
e anti todos outros "ismos‖ de dominação social.
Neste sentido, é válido ressaltar o objetivo do ecofeminismo, que não busca a
inserção da mulher nas discussões socioecologicas, pois já está concretizada, o que se
questiona é a situação de desigualdade que subsiste em seu papel. Assim, ainda que
representando cerca de 51,3% da população brasileiravi, distribuída em área urbana e rural,
está subordinada à cultura patriarcal de nossa sociedade e submetida à posição de incapaz.
Nessa perspectiva, observamos que a mulher vem transformando seu papel social
e familiar. A imagem da dona de casa, ser frágil que deve obediência e assistência ao seu
marido e, que provem alimentação de seus filhos, e cuidado do lar, sede através do
ecofeminismo. Trazendo a realidade onde aquela passa em muitas situações a posição de
único chefe familiarvi e que tem a consciência da necessidade de proteger os recursos para
sua sobrevivência não só pelo seu reconhecimento, mas pela proteção ambiental.

5 Proposituras para consolidação do ecofeminismo como instrumento de


efetivação dos direitos ecológicos
Utilizando o pensamento da filósofa, Alicia H. Puleo, trazemos ideias
desmistificadas até aqui. Assim, o feminismo é a reivindicação de igualdade de gênero, não
a proclamação da superioridade de um sexo sobre o outro. No mesmo sentido, ecologismo
não possui como única preocupação a vida silvestre alheia à sociedade. Este nasceu no
início do século XX como um desejo de preservar áreas naturais que estavam
desaparecendo e, mais tarde, foi evoluindo e se tornando plural, de modo que, atualmente,
busca conciliar os problemas e conflitos sociais decorrentes da degradação ambiental
(PULEO, 2010)vi. Por fim, ecofeminismo não é um pensamento ou uma práxis que
identificam as mulheres com a natureza, mas sim a busca por igualdade entre mulheres e
homens, entre grupos étnicos, até mesmo entre outras espécies (FERRE, 2015)vi.
Isto posto, verificando que oriundo principalmente no campesinato, o
ecofeminismo brasileiro se inicia com questões trabalhistas que por vezes se tornava mais
importantes que as de gênero, posteriormente, se intensifica nos anos 90, despontando
entre as militantes questões propriamente feministas(PAULILO, 2000). Neste caso,
ecofeminista. Uma vez que, os lugares ocupados pelas mulheres trabalhadoras rurais, são
espaços não destinados a elas. Dessa forma, ao estabelecerem relações diretas com o
movimento feminista e realizar uma interlocução que dialoga com uma plataforma política
feminista, os movimentos de mulheres trabalhadoras rurais buscam modificar o próprio
exercício de poder (SILVA, 2008).
Destarte, abordar meio ambiente e desenvolvimento sustentável como direitos de
terceira geração, implica fazer referência a fatores ligados à degradação ambiental dos
ecossistemas em geral, por exemplo, o desmatamento, a contaminação da água, do solo e
do ar, assim como a superexploração e inadequado manejo dos recursos naturais. Contudo,
sabemos que o discurso da conservação tem sido abordado numa perspectiva puramente
biológica, sem considerar a relação que os homens e as mulheres e suas distintas formas de
organização estabelecem com o seu entorno. Nesse sentido estão as relações dos seres
humanos entre si e com os outros entes da natureza, através de criações mais simples, ou
elaboradas, ou mesmo desconformes, como no contexto da sociedade mais
ampla(CASTRO; ABRAMOVAY, 2005).
Destarte, o ecofeminismo já se constituiu como uma proposta valorizada dentro
dos movimentos de mulheres e dos movimentos ecológicos, colocando em pauta a questão
da dominação da natureza pelos seres humanos da mesma forma como os homens
historicamente vem oprimindo as mulheres e como a superação dessas questões, para essa
corrente de pensamento, terá que ocorrer de forma interligada. Se, por um lado, essas
afirmações abriam caminhos para interpretações essencialistas (que identificavam o
feminino com o natural, versus o masculino e a cultura), por outro, dão visibilidade para
temas mais amplos, que outros movimentos sociais, em geral, não enfocavam (como a
diversidade cultural, a necessidade de preservação dos diferentes biomas, da água, etc.)
(SILIPRANDI, 2007).
Nesse sentido, consideramos a visão ecológica de Hans Jonas que, à luz do
princípio responsabilidade, afirma que nem o socialismo nem o capitalismo seriam capazes
de lidar com a possibilidade da vida futura, reconhecendo a necessidade absoluta de uma
ética da responsabilidade que se aplique tanto aos humanos quanto ao planeta como todo
(MOREIRA; REIMER, 2010).
Desse modo, apresentando o ecofeminismo como instrumento emancipatório da
dicotomia Homem/natureza e homem/mulher, percebemos suas contribuições presentes
não somente em uma corrente ou linha de pensamento, mas no próprio movimento em sua
essência (não essencialismo). Este, por sua vez, deve ser abraçado pelas causas em prol dos
direitos humanos não se adotando uma visão essencialista como incorreu neste risco
algumas ecofeministas, especialmente nos primeiros anos do ecofeminismo. O
ecofeminismo enquanto movimento precisa unir-se para poder então progredir em suas
perspectivas, de modo a não ater-se a críticas frívolas às demais ações sociais, mas não
necessariamente exigir fé como o ecofeminismo espiritualistas apresenta como requisito
de luta para o movimento, embora reconheçamos o caráter emancipatório que tem essa
premissa nos países no qual a religiosidade se faz importante como objeto de luta e
emponderamento social. Assim sendo, procura discutir o legado da modernidade, uma vez
que traz seus encargos (alterações climáticas, degradação, poluição, entre outros), mas
também tem um caráter emancipatório pois visa o reconhecimento dos direitos humanos, o
estabelecimento da igualdade como um paradigma e o feminismo como uma aplicação da
ideia de igualdade (PULEO, 2010).
Isto posto, percebemos as contribuições práticas que este movimento vem
trazendo no seio da sociedade, por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu, no Tocantins,
como tantos outros, é considerado bem-sucedido; as mulheres dizem que conseguiram as
terras, estão assentadas, têm os filhos estudando e os homens perceberam a força feminina.
Passaram a discutir Constituição, e se organizaram enquanto movimento social. Desde sua
formação em 1987, vieram fazendo oficinas locais e foram se tornando líderes. A
organização das mulheres quebradeiras de coco têm colaborado na recuperação da
autoestima daquelas, na luta por reconhecimento na comunidade de temas considerados
domésticos, nas críticas e denúncias sobre a pobreza e na luta pela terra (CASTRO;
ABRAMOVAY, 2005).
No entanto, de uma forma mais geral a questão aponta que o problema não está
apenas no fato de que vivemos em um mundo com desigualdades de gênero, mas sim na
existência de uma ordem patriarcal de gênero, ou seja, um mundo onde os homens exercem
decididamente poder sobre as mulheres, e esse poder se expressa de várias formas
(SILIPRANDI, 2007). Assim, à luz do movimento ecofeminista construtivista o
capitalismo, o patriarcado e a destruição do planeta surgem ligados. Não se trata somente,
como defendem alguns ecologistas ―liberais‖, de se criticar um crescimento demasiado
rápido, não acompanhado por um desenvolvimento social e sustentável, nem apenas de
uma legislação pouco eficaz no controle dos processos resultantes da produção com
utilização de tecnologias nocivas para a saúde humana e ambiental. Para estas
ecofeministas, o problema é mais profundo e coloca-se ao nível das estruturas das
sociedades, na forma como estão organizadas em função da subjugação das mulheres e da
natureza (TAVARES, 2013).
Além disso, com base na proposta jonasiana rumo ao fortalecimento do
movimento ecofeminista, se torna necessário pensar a unidade entre ética e educação
ambiental, direcionada, sobretudo, para a formação interdisciplinar e objetivando, a partir
desta, a formação de um novo modo de agir e interagir com a natureza, na perspectiva de
um novo olhar do homem sobre si e sobre os demais seres. Tal perspectiva implica a
construção de um novo cidadão responsável e preocupado com a conservação e
preservação dos bens naturais do planeta em que habita proposta que ultrapassa a
consideração simplesmente utilitária da natureza (BARRETO, 2010).
Por fim, é necessário valorizar os avanços que o ecofeminismo trouxe às lutas
ambientais, trazendo a compreensão da forma particular de ser mulher e da perspectiva
política que abre uma ‗visão‘ feminista e de gênero na questão do poder, da cultura, da
organização social, da natureza e do desenvolvimento sustentável e, indo mais além, do
lugar da mulher em uma estrutura social dada e das reivindicações de igualdade com os
lugares privilegiados dos homens em uma ordem estabelecida (SILIPRANDI, 2007).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Destarte, o ecofeminismo traz consigo um novo jeito de pensar o mundo. Não
trata unicamente da dialética ―homem-mulher‖, mas inova propondo uma verdadeira
revolução do agir e pensar da sociedade. Através da interdisciplinaridade, com ferramentas
analíticas e interpretativas, propõe uma leitura mais ampla. Baseando-se nos fundamentos
teóricos do feminismo e do ambientalismo, questiona a desigualdade de gênero, onde a
mulher é tratada como ser inferior. Torna-se, dessa forma, importante ferramenta de
renovação e construção de novos conhecimentos para as ciências.
Por sua vez, crescendo em conhecimento, vem adquirindo novos adeptos pelo
mundo que buscam reproduzir seus ideais a partir do aglomerado de suas diversas
correntes. Todavia, percebe-se a timidez de seu desenvolvimento em nosso país. Como
fruto de nossas primeiras conclusões, encontramos o desafio de superar as raízes
patriarcais que perduram nos valores da sociedade brasileira e, o modelo de
desenvolvimento socioeconômico que foi adotado. Assim, pudemos identificar nuances do
retrocesso impregnado nos patrimônios culturalmente preservados, bem como as visões de
desenvolvimento baseados unicamente em critérios como renda, produção e produtividade.
Felizmente, conseguimos identificar o crescimento, a pesar de tímido, do
movimento, já marcado desde a década de 1980, a partir do trabalho de Margarida Maria
Alves, das Quebradeiras de coco babaçu, entre outros. Assim, enquanto movimento social,
o ecofeminismo torna-se exemplo do verdadeiro progresso que está havendo nas
comunidades e, deve ser fortalecido pela academia, com sua contribuição intelectual, por
toda sociedade através da conscientização e preservação ambiental.
Finalmente, identificamos a maneira com que o papel do ecofeminismo encontra-
se, na atual conjuntura. Percebemos que tal modelo de feminismo se adéqua às
necessidades sentidas para o fortalecimento das lutas dos movimentos ecológicos e de
direitos humanos,bem como nas discussões das campesinas por espaço dentro da
propriedade e nas relações sociais. Porém, os ideais do ecofeminismo buscam mais do que
direitos para as mulheres, buscam transformações de relações que vão além das diferenças
de gênero, verdadeiras transformações políticas. Então, o que falta para que o
ecofeminismo atue em sua plenitude na nossa sociedade? Quais os paradigmas a serem
quebrados? A resposta percebemos na preservação dos próprios Direito Humanos.
Enquanto não nos desprendermos das amarras do preconceito social, da própria
consciência cultural marcada pela segregação de papéis dos indivíduos – homem e mulher
– e tendo menosprezado seus conhecimentos, não será possível superar nossas limitações
enquanto sociedade democrática e sustentável. Identificamos, assim, que o movimento
embora possua caráter inovador, assim como foi no movimento feminista em seu início,
deve reconhecer que é diversificado, possui traços particulares em cada país, em cada
região que estabelece. Portanto, carrega em si mesmo um grande dever de aprendizado:
superar seus próprios preconceitos culturais, e fortalecer-se para que suas diversas visões
ecofeministas caminhem rumo a uma democracia participativa e um mundo sustentável.
Com isso, as principais correntes ecofeministas estudadas, a espiritualista, a
construtivista e a clássica, veem a exploração ambiental como próprio fator de destruição
da humanidade. Nesse ponto, percebem que a mulher ao longo dos séculos foi silenciada
em suas ideias, suas ações, e participação. Defendem, assim, a inserção destas na seara
política, nas reuniões de suas comunidades ou, nos diversos movimentos sociais. Claro,
que em decorrência da própria diversidade humana, o ecofeminismo se aproxima da
comunidade tendo respaldo de alguns valores culturais, em países como a Índia, por
exemplo, interligado a uma grande crença religiosa, a corrente espiritualista abraça a ―mãe
terra‖ como uma divindade digna de proteção. Nos países ocidentais, a corrente
construtivista aproxima-se dos ideais um tanto céticos da sociedade, associando a
preservação ambiental e de combate a desigualdade de gênero como instrumentos de
garantir a própria sobrevivência da humanidade e o desenvolvimento sustentável, além de
se basear em direitos estabelecidos e conquistados, que devem ser exercidos. A corrente
clássica, embora tenha sido uma das primeiras correntes, recebendo críticas por estar
marcada por essencialismos, se constitui num esboço para o aperfeiçoamento de novas
questões.
No Brasil, percebemos grandes movimentos ecofeministas. Todavia, as discussões
estão em sua maioria concentradas no campo rural e do campesinato. Percebemos a
necessidade de participação dos movimentos feministas urbanos dialogarem com estes
novos movimentos, com a finalidade de levar para o meio ambiente artificial tais debates,
uma vez que os grandes centros industriais e, as grandes metrópoles são responsáveis por
boa parte da poluição ambiental. Além disso, no campo político brasileiro, vez que é nesse
ponto onde o poder de decisão se concretiza, percebemos uma tímida participação
feminina. De outro ponto, os debates ecológicos também se mostram insignificantes, tidos
como questões acessórias. Permanecem, então, os debates ecofeministas no campo dos
movimentos sociais e, timidamente, nas pesquisas e estudos da academia.
Em vista disso, é imperioso reforçar a educação social, voltada por um saber não
só ecológico, mas por direitos e por igualdade de participação e de oportunidades. Por isso,
a atual demanda é buscar um método que possibilite um novo modo de interagir com a
natureza, ao passo que nosso olhar para a sociedade seja de fraternidade e cooperação
mútua, vez que compartilhamos o mesmo ―lar‖. O Ecofeminismo, por conseguinte,
manifesta, uma libertação de ideias limitadas, de valores patriarcais. Convoca, dessa
maneira, a sociedade a lutar pela distinção de qualquer natureza ou, exploração do
ambiente, pois este ultimo é um bem comum a todos e, não somente, para aqueles que
usurpam o monopólio do poder.
Finalmente, tal como objetivamos a partir de Margarida, desabrochamos em
nossas observações vestibulares que a linha de pensamento ecofeminista é relevante
instrumento emancipatório das amarras sociais e como movimento defensor dos direitos
humanos que, somado à atual visão ecológica e sustentável que propõe a nova doutrina
ambiental e filosófica, permitirá a superação de mais um paradigma na luta por uma
verdadeira mudança estrutural e organizacional da sociedade, onde os tabus do capitalismo
patriarcal sejam substituídos pela frutificação de relações de parceria e solidariedade.

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CONSTITUIÇÃO DA DIMENSÃO SUBJETIVA

Bruna Emanuelle Nemézio Duarte vi


Edileide da Silva Pereira vi
Rivaldo Mendes da Silva vi

GT: GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS

RESUMO

Esse artigo mostra que fatores culturais e históricos presentes em uma sociedade são e que
são influenciadores diretos no processo de construção do indivíduo. Assim o presente
estudo tem como objetivo reunir discussões acerca de Gênero, Sexualidade e Direitos
Humanos, articulando essas temáticas e buscando um maior conhecimento sobre as
mesmas. Portanto esse estudo traz um panorama sobre minorias sociais, políticas de
identidade, Direitos Humanos, direitos sexuais, performances, corporalidades, gênero,
interseccionalidades e tudo aquilo que esteja intimamente relacionado com a ideia central
onde se impulsione o caráter prioritário das dimensões subjetivas e suas especificidades.

Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Direitos Humanos. Fatores Culturais. Dimensão


Subjetiva

INTRODUÇÃO

Compreender as características que formulam a potencialidade das dimensões


subjetivas, ainda na contemporaneidade é um fenômeno de análise de diversificadas
ciências e filosofias, principalmente quanto aos fatores que se interligam e formam uma
sistematização responsável pelo repertório de comportamentos, pensamentos e sentimentos
de cada indivíduo. A sexualidade, os papéis sociais que constituem a noção de gênero têm
sido modificados com o passar dos tempos e atualmente assume uma posição inovadora e
revolucionária, pois como afirma Scott (1990), o conceito de gênero foi criado para opor-
se a um determinismo biológico nas relações entre os sexos, dando-lhes um caráter
fundamentalmente social. ―O gênero enfatizava igualmente o aspecto relacional das
definições normativas da feminidade‖.
Este aspecto relacional vem da preocupação de alguns de que os estudos femininos
se centravam sobre as mulheres de maneira demasiada e estreita, assim a noção de gênero
daria conta de que as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e não
poderia ser entendido separadamente, compreendendo o ápice histórico de lutas pela
igualdade quanto ao fator sexualidade e gênero tendo por base e diretriz os Direitos
Humanos e os principais autores, livros, estudos e pesquisas que complementam essa
manifestação a um patamar intelectual e pertinente na contemporaneidade.
Onde ainda para Scott (1992): ―A emergência da história das mulheres como um
campo de estudo envolve, nesta interpretação, uma evolução do feminismo para as
mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política para a história especializada e daí para a
análise‖. Proporcionando uma junção de discussões sobre a temática e demonstrando a luta
pelos direitos através da ascensão acadêmica que vislumbra os aspectos realísticos dos
fenômenos sociais é possível vislumbrar as compreensões sobre o conceito de gênero e
sexualidades e as formas de vivencia-los.
Como observa Vianna e Lacerda (2004), a trajetória dos Direitos Humanos parte da
afirmação da liberdade individual, primando pela definição de direitos universais
soberanos em relação às circunstâncias estatais, e avança na direção da responsabilização
dos estados na garantia de direitos que passam a ser depurados e especificados segundo a
particularidade dos indivíduos e grupos sociais. A discussão sobre os Direitos Humanos
apresenta, portanto, um movimento pendular que explicita o antagonismo que o
caracteriza, ao afirmar sincronicamente o direito à igualdade e à diferença, à universalidade
e à especificidade.
A presente revisão literária analisa as interseccionalidades que existem no processo
de construção da dimensão subjetiva envoltas em uma imersão de envieses culturais e
sócio-históricos. Visualizando os aspectos que compõem os indivíduos como seres sociais,
com características intersubjetivas, não obstante também são presentes singularidades com
personificação, sobre diferentes formas em que a realidade se interioriza.
Nessa perspectiva de produção do ser, o sexo é produzido pelo gênero. O gênero é
performático e múltiplo, é ação e não identidade ou totalidade, e está associado a outros
vetores de distinção como classe, etnia e geração. E finalmente, as diversidades
intracategorias revelam tanto quanto aquelas entre categorias, o que politicamente leva às
coalizões por afinidades e não por identidades, de forma a superar as matrizes identitárias
totalizadoras (HARAWAY, 2000; BUTLER, 1990).

DESENVOLVIMENTO

O conceito de gênero não é similar ao conceito de sexo. Segundo Teles (2007, p.


38- 39), ―gênero se constrói socialmente de acordo com o tempo histórico vivido em cada
sociedade, enquanto ‗sexo‘ teria uma caracterização biológica com destaque para os
aspectos físicos do ser feminino ou ser masculino‖.
A mesma autora aponta que:
Gênero deve ser empregado para explicitar uma ordem social e institucional que
impulsiona a construção sociocultural de ser mulher e de ser homem, o que tem
determinado desigualdades históricas entre os sexos. A construção institucional
se dá em níveis econômico, social, político e cultural. Essa construção
direcionada para a proteção do status quo reproduz a discriminação contra as
mulheres e poderá ser denominada também ―discriminação de gênero‖ (TELES,
2007, p. 50, grifo da autora).

A constituição dessa percepção social da diferença de gênero dá-se, conforme


Harding (1996), através de três processos distintos assim identificados: simbolismo de
gênero, estrutura de gênero e identidade de gênero. Esses processos não são isolados e
interagem entre si. O simbolismo de gênero configura a atribuição de metáforas dualistas
de gênero a diversas dicotomias percebidas, mas não necessariamente relacionadas ao
sexo. A estrutura de gênero refere-se à divisão do trabalho de acordo com o gênero e a
identidade de gênero diz respeito à construção da subjetividade.
Essas dimensões de gênero propostas por Harding são similares à concepção de
Scott (1990), para quem o ―gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de
significar relações de poder‖. A definição de Scott comporta duas proposições essenciais:
na primeira parte, o processo de constituição dessas relações e, na segunda, a dimensão do
poder.
Dessa forma, pode-se afirmar com Butler (1990) que:
O gênero pode também ser designado como o verdadeiro aparato de produção
através do qual os sexos são estabelecidos. Assim, o gênero não está para a
cultura como o sexo para a natureza; o gênero é também o significado
discursivo/cultural pelo qual a ‗natureza sexuada‘ ou o ‗sexo natural‘ é
produzido e estabelecido como uma forma ‗pré-discursiva‘ anterior à cultura,
uma superfície politicamente neutra sobre a qual a cultura age (BUTLER, 1990,
p. 7).

Simultaneamente, essas proposições permitem pensar a sexualidade como


construções sociais e históricas que sempre implicam certo tipo de conexão com as
relações de poder. Nos dizeres de Gayle Rubin (1998):

O âmbito da sexualidade (...) tem sua própria política interna, iniquidades e


modos de opressão. Como acontece com outros aspectos do comportamento
humano, as formas institucionais concretas da sexualidade humana, num espaço
e num tempo determinados, são produtos da atividade humana. Elas são repletas
de conflitos de interesse e manobra política, tanto de natureza proposital quanto
circunstancial. Nesse sentido, sexo é sempre politizado. Há, porém, períodos
históricos nos quais a sexualidade é mais contestada e abertamente politizada.
Nesses períodos, o domínio da vida erótica é efetivamente renegociado (RUBIN,
1998, p. 100).

O gênero como constitutivo das relações sociais implica em quatro elementos:


primeiro, os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas,
frequentemente dualistas (ex.: Eva, Maria e também os mitos de luz/escuridão,
purificação/poluição, inocência/corrupção); segundo, os conceitos normativos expressos
pelas teorias religiosas, jurídicas, educativas, científicas que põem em evidência as
interpretações de sentido dos símbolos, esforçam-se para limitar e conter suas
possibilidades e tomam a oposição binária para afirmar o sentido categórico do feminino e
masculino, como se fosse fixo e não conflituoso (SCOTT, 1990).
Como afirma Júnior et al. (2010), papéis sociais de gênero relacionam-se com o
conjunto de comportamentos associados à masculinidade e feminilidade. Assim, a ideia da
homossexualidade refere-se não apenas a uma condição, mas sim á um papel social. Ao
papel que é assumido pelo individuo na sociedade em que está inserido.

Terceiro, a dimensão política que estrutura essas relações sociais, que inclui a
família, as relações de parentesco, a divisão sexual do trabalho, a educação e o sistema
político. Por fim, a identidade subjetiva, na qual interagem os elementos de ordem
subjetiva e as relações sociais. A segunda parte da proposição de Scott refere-se à
dimensão do poder, isto é, o gênero é o primeiro meio através do qual o poder é articulado.
Para Scott, ―estabelecidos como um conjunto de referências, os conceitos de gênero
estruturam a percepção e a organização simbólica de toda a vida social‖ e ―na medida em
que estas referências estabelecem distribuições de poder o gênero torna- -se envolvido na
concepção e na construção do poder em si mesmo‖ (SCOTT, 1990).
Corrêa (2006) tece uma análise crítica sobre o processo de consolidação da
associação do direito à sexualidade, tendo sido os direitos sexuais, nas conferências das
Nações Unidas que trataram do tema, restritos à consideração da condição das mulheres,
excluindo do debate os demais atores que têm seus Direitos Humanos violados em função
da sexualidade, tais como GLBT e profissionais do sexo.
Para Rios (2007), fundamental é que o debate avance segundo a direção apontada
pelas ciências sociais, ao desassociar a sexualidade necessariamente da noção de
reprodução, bem como problematizando a noção de ―saúde sexual‖, abrindo o campo para
a consideração de diferentes expressões e possibilidades do exercício da sexualidade para
além da naturalização da heterossexualidade.
Ainda para Rios (2007), o mesmo se propõe a formulação de um direito
democrático da sexualidade, enfatizando a necessidade da discussão sobre direito e
sexualidade a partir da perspectiva da universalidade dos Direitos Humanos. Para o autor,
três grandes eixos têm estruturado o debate atual sobre direitos sexuais: (1) a questão das
identidades, relativas às expressões da sexualidade, onde se insere notadamente a questão
das homossexualidades e das identidades de gênero; (2) as consequências e condições da
relação sexual, referentes, sobretudo, às práticas de prevenção ou planejamento da
concepção, bem como às abortivas; e (3) a busca pela fundamentação dos direitos sexuais,
que estaria historicamente referida à noção de ―saúde sexual‖.

A pesquisa mais panorâmica da situação dos direitos GLBT na região (Latino-


américa) revela, ainda, a ausência de uma regulamentação fundada na
perspectiva dos direitos humanos quando se cuidada situação específica da
transexualidade ou de travestis. Nestas frentes, aliás, costumam prevalecer
abordagens biomédicas, especialmente no que respeita à transexualidade. Quanto
ao tratamento dirigido a travestis, mesmo nos países onde tal condição não é
considerada ilícita, predomina uma abordagem repressiva, a partir da
criminalização de atos considerados obscenos na via pública e da repressão à
prostituição (RIOS, 2007, p. 5).

Desta forma, nas relações de gênero, instituídas em nossa sociedade, constituíram-


se valores dominantes, colocando a mulher em situação de subordinação, sendo as
diferenças biológicas transformadas em desigualdade. As desigualdades de gênero se
expressam das mais variadas formas, seja no campo econômico, com discriminação de
cargos de trabalho, de remuneração e sobrecarga de funções; no campo político com pouca
participação e representação em cargos políticos ou no âmbito dos direitos. (GUIMARÃES
2013, p.9)
Como afirma Holanda (1994), enquanto as políticas e as teorias pós-modernas
trabalham com as ideias da possibilidade do fim da história, do social, e do político, a
crítica feminista insiste, contrariamente, na articulação de suas questões com as
determinações históricas e políticas. Se os primeiros falam de uma crise da representação e
da morte do social, o segundo fala exatamente de uma luta pela significação.
A esta forma ideológica de organização da sociedade, estabeleceu-se, como um
caso específico de relação de gênero, o patriarcado, onde ―as relações são hierarquizadas
entre seres socialmente desiguais‖ (SAFFIOTI, 2004, p. 119), elevando os homens às
condições de seres superiores, donos das mulheres, dos filhos, da produção, dos saberes e
dos poderes, nos espaços públicos e domésticos, recusando qualquer direito e
potencialidade de igualdade.
Este sistema é carregado de heranças culturais, no qual os valores e a moral,
construídos social e historicamente pelos indivíduos sociais, ―com determinações impostas
pelos antagonismos de classe e por densas e hierarquizadas relações de poder‖ (SILVA,
2011, p, 52) incluindo as desigualdades advindas da condição de pertencimento de gênero,
classe 9 social, raça/etnia, contribuem para a manutenção da subalternidade das mulheres
em relação aos homens, expressando-se em relações de dominação e exploração. Porém,
―o valor central da cultura gerada pela dominação-exploração patriarcal é o controle, valor
que perpassa todas as áreas da convivência social‖ (SAFFIOTI, 2004, p, 122).
Como afirma Rago, (1998), para Joan Scott, muitas relações de dominação da
história, na Revolução Francesa, nos regimes autoritários, no conceito de classe estão
ancoradas e se constituem na categoria do gênero, e para entendê-las é necessário entender
o gênero. Ele ainda promove dentro da história a emergência de um ―contradiscurso
feminino‖, uma epistemologia feminista que elimina [ou deveria eliminar] a preocupação
de fortalecimento da identidade mulher, ao contrário do que se visava inicialmente com um
projeto alternativo de uma ciência feminista.
Um fator importante no desencadeamento da consideração de direitos sexuais na
região latino-americana, segundo Rios (2007), foi à resposta à epidemia de HIV/Aids que,
ainda que de início tenha associado travestis e homossexuais a grupos de risco, incitando a
estigmatização a esses grupos sociais, avançou em suas estratégias de enfrentamento para a
consciência dos efeitos discriminatórios bem como a da relação necessária entre a questão
da sexualidade e a do Direito:

Nem, o caráter natural, a igualdade e a universalidade são suficientes. Os


Direitos Humanos só se tornam significativos quando ganham conteúdo político.
Não são os direitos de humanos num estado de natureza: são os direitos de
humanos em sociedade. São os Direitos Humanos vis-à-vis uns aos outros. E são
direitos que requerem uma participação ativa daqueles que os detêm (HUNT,
2009, p.19).

Nessa perspectiva, Rios (2007) afirma que o desenvolvimento dos direitos GLBT
avançou e se consolidou na consideração de questões relativas ao acesso dos serviços de
saúde. Trata-se de uma peculiaridade da experiência latino-americana no processo
desconstrução de direitos sexuais que contemplem a população GLBT, e que diferencia a
lógica jurídica da região em relação aos processos análogos na América do Norte e na
Europa.
Joan Scott (1992) busca a atenção para a necessidade de se entender o gênero
enquanto a relação entre os sexos, de como é assegurado um significado para os conceitos
de homem e mulher e as práticas pelas quais os significados da diferença sexual são
definidos. Já para Amussen (1985), o gênero dá significado às distinções entre os sexos,
ele ―transforma seres biologicamente machos e fêmeas em homens e mulheres, seres
sociais‖.
[...] A concepção oficial e formal de Direitos Humanos compreende o conjunto de
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, e é pautada nos princípios da
universalidade, indivisibilidade e interdependência. São princípios constitutivos da sua
dimensão filosófica, que amalgamam o discurso legal, mas provocam polêmicas no debate
político (ALMEIDA, 2005, p. 16).
Assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, demarcou e
reconheceu que o âmbito que compõe os Direitos Humanos são todas as dimensões
relacionadas à vida com dignidade, sendo uma unidade universal, indivisível,
interdependente e inter-relacionada (TRINDADE, 2002).
Portanto, Guimarães (2013), ressalta que construir possibilidade de realização dos
Direitos Humanos significa dar passos efetivos ao acirramento das condições históricas
que poderão ampliar as perspectivas de igualdade de gênero, sem perder de vista que
interior a esse debate há diferentes visões de mundo que expressam concepções variadas
sobre o ser social.
De acordo com Áran (2006) não é complicado compreender a rigidez das leis
estruturalistas, que consolida por meio da matriz heterossexual os posicionamentos
legítimos, toda a concepção diferenciada torna-se incompreensível e é contemplada como
um excesso que não deve ser inscrito ao âmbito simbólico, pois representa uma ameaça ao
sistema binário- hierárquico. Aquilo que é passível de simbolização estará comprometido
por uma operação de violência e exclusão e as consequências dessas ações são pertinentes
na flutuação de questionamentos acerca da construção do corpo sexuado, do ego corporal e
do estabelecimento de seus limites espaciais, contornos e fronteiras. Esses questionamentos
desembocam no patamar da ideia concebida a priori que contextualizam conceitos e
identificações sobre o que acaba por fixar ou restringir as manifestações das sexualidades.
A consideração das regulações de gênero compreende uma forma específica que
possui efeitos construtivos sobre a subjetividade. As regras que coordenam a identidade
são parcialmente consolidadas a partir da matriz de pensamento que hierarquiza a
heterossexualidade compulsória, dessa forma o gênero não é nem a nomeação de uma
essência endógena, nem ao menos um simples fator rudimentar de construção social. O
indivíduo gendrado seria primeiramente a resolução de repetidas construções que
determina noções substancializantes, afirmando a autora que o gênero por si próprio é uma
norma. (BUTLER, 2006).
Freire, (2011) afirma que a supressão emocional provoca a inibição do
comportamento expressivo, mas não a vivência negativa ao qual vem associada. Suprimir a
expressão das emoções conduz a menor experienciação das emoções positivas e maior de
emoções negativas levando a um afastamento social, a graduações mais ampliadas da
sintomatologia depressiva e níveis decaídos de satisfação com a vida, autoestima e
otimismo. De forma onde a autoestima parece se interligar-se a uma medida específica de
bem estar subjetivo, o que pode vir a estar discriminado com a definição e conceitualização
dos constructos. A avaliação do self, a satisfação com a vida e a análise da vida por uma
visão holística demonstram ter em comum um fator de valoração e emocional que seria
gostar de si e da vida que possui. Concluindo um enviese amplamente essencial no que se
concerne o estudo do gênero em um patamar subjetivo, principalmente aos que se
encontram á parte do modelo patriarcal e imposto pelas sociedades heteronormativas.
Moore, (2000) pontua a fatorialidade do contexto cultural em que o gênero está
inserido quando evidencia o envolver dos indivíduos nas posições oferecidas quando os
mesmos reproduzem o discurso cultural dominante, não obstante também edifica a
existência de muitas feminilidades e masculinidades, ou seja, diversificadas formas de ser
feminina ou masculina dentro de um mesmo contexto. O gênero não pode ser contemplado
isoladamente, mesmo que como uma forma de diferença. A mútua imbricação de
constituições distintas e pertinentes implica dizer que uma forma de diferença vem a
substituir a outra, sendo uma caracterização de processos e estruturação da vida humana
que permanece acessível a mudanças requerendo, portanto cautelosa especificação de
análise. Como uma solidificação do contexto apresentado Louro (2004) afirma:
Esse embate, como qualquer outro embate cultural, é complexo
exatamente porque está em contínua transformação. No terreno dos gêneros e da
sexualidade, o grande desafio, hoje, parece não ser apenas aceitar que as
posições se tenham multiplicado, então, que é impossível lidar com elas a partir
de esquemas binários (masculino/feminino, heterossexual/homossexual). O
desafio maior talvez seja admitir que as fronteiras sexuais e de gênero vem sendo
constantemente atravessadas e o que é ainda mais complicado admitir que o
lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira. A posição de
ambiguidade entre as identidades de gênero e/ou sexuais é o lugar que alguns
escolheram para viver.
Compreende-se, portanto que a cultura determina os padrões sociais que incluem as
especificações de imposição de gênero e sexualidades e que os indivíduos abarcados por
esses fatores determinam essa cultura proveniente de acúmulos informacionais de gerações
antecessoras.
A categoria do gênero não detém o caráter de exclusão das outras categorias que
definem a subjetividade, mas é altamente necessária a amplificação de uma verbalização
específica para vislumbrar a diversidade das extensões construtivas das práticas individuais
e sociais. A extensão sexual obteve sua participação na incorporação histórica da
identidade pessoal e coletiva, principalmente no Brasil. (RAGO, 1998).
Ainda para Rago (1998) torna-se relevante pontuar que essa construção ao qual o
conceito de gênero se define é um fator atuante nas disparidades quanto às noções da
sociedade, onde uma das categorias se sobrepõe sobre as outras. Ainda na
contemporaneidade existem discursos que validam a inferioridade física e mental das
mulheres, provocando a divisão de mão de obra no trabalho, reunindo as classes em
empregos específicos que estão nivelados em um nível inferior na hierarquia das profissões
e estabelecendo salários abaixo de um patamar justo de subsistência e também que
corresponde a competência enquanto profissional.
Nessa perspectiva Belle (1993) aponta que a prioridade masculina no mercado de
trabalho atualmente é mal avaliada e que o direito ao emprego deve pertencer a todos os
sexos e gêneros referindo que houve uma queda no nível de segregação de gênero,
principalmente em empresas visionárias, todavia nem todas as organizações partilhas dessa
mesma ideologia, onde em muitos contextos essa segregação limita o acesso feminino a
múltiplos espaços.
O fenômeno do teto de vidro, estudado por Steil (1997), é uma das facetas da
generificação presente nas instituições empregatícias que impede a ascensão das mulheres
a níveis mais elevados em suas configurações profissionais. Para ultrapassar o teto de
vidro, as mulheres devem gerenciar uma nova identidade que envolva um inovador
mecanismo de adaptação às exigências organizacionais, contudo existem variáveis tetos de
vidro que se apresentam nas mais diversas organizações acreditando que as regras aos
quais se manifestam são relativas e atuam de acordo com as especificações do espaço.
Bourdieu (1999) assinala a permanência das posições relativas de desigualdades
entre homens e mulheres. Onde os homens têm articulado movimentos de resistência, pois
se sentem ameaçados, mesmo que de forma simbólica que se relaciona com sua imagem de
dominação e posição sócio- histórica de virilidade e poder. A identificação desses pontos
de resistência e elos onde as relações de poder são atribuídas vem a contribuir com a
dinâmica ao qual se estabelece os papéis sociais, portanto a manifestação do conceito de
gênero nas subjetividades.
Na visualização de Nicholson (2000) as identidades de gênero são estabelecidas
seguindo uma mesma lógica de apropriação em qualquer cultura:
Os sentidos, a atribuição de significados e valores dos corpos (e de partes dos
corpos) mudam através do tempo e das comunidades‖. Ainda que a maioria das
sociedades tenha estabelecido, ao longo dos séculos, a divisão
masculino/feminino como uma divisão fundamental e tenha compreendido tal
divisão como relacionada ao corpo, não se segue daí, necessariamente, a
conclusão de que as identidades de gênero e sexuais sejam tomadas da mesma
forma em qualquer cultura. ―Perceber uma diferença física ou mesmo atribuir a
ela uma significação moral e política não é o mesmo que usá-la para ‗explicar‘
divisões básicas na população humana.

A politização e a compreensão das interdisciplinaridades dessas relações que


envolvem a identidade de gênero nas organizações e em outros contextos das sociedades
indicam a constante necessidade de considerar essa abordagem teórica e como formas de
manifestação do caráter repressivo que assumem as subjetividades desse sistema.
Sistematizando que os estudos sobre as abordagens de gênero devem ascender,
ultrapassando a simplicidade que habita na polarização do que é ser masculino e feminino.
(AZEREDO, 1994)
CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer desse estudo procurou-se entender sobre as diversas formas de gênero


na contemporaneidade. Gênero é algo socialmente construído e, portanto tem se mostrado
uma vasta visibilidade sobre o assunto. Dessa forma, esse artigo deixa uma reflexão sobre
o tema em questão, entendendo como os assuntos gênero, sexualidade e Direitos Humanos
estão sendo contextualizados na sociedade, buscando minimizar o preconceito, visando
uma sociedade justa e igualitária.

Compreender sobre a construção dos papéis sociais é também adquirir


conhecimento acerca dos envieses sociais de repressão e discriminação ao que se fomenta
como trasicional da cultura linearizada e imbricada a padrões rudimentares. Visualizando o
movimento de aquisição de novos modelos que se institucionalizam nas convenções sócio-
histórico- culturais.

Assim como em diversificados âmbitos é visível à presença das diferentes formas


de contemplação do gênero que vêm a ser muitas vezes um mecanismo de opressão ao que
foi estabelecido culturalmente por níveis inferiores das hierarquias sociais, que
compreendem a classe minoritária e excluída dos privilégios políticos e econômicos. Essas
vivências tornam-se acopladas aos enquadres das dimensões subjetivas, onde as mulheres
devem atuar de uma forma específica e os homens de outra forma, ou seja, as
subjetividades são moldadas de acordo com o gênero de forma onde são inseridas
caracterizações impostas por esse conceito.

Portanto, entende-se que o gênero é construído pelas experiências que se tem na


vida, no ambiente em que estão inseridos, levando em consideração às condições que se
vivem como a cultura, as experiências, as interiorizações da sociedade entre outras. Por
isso gênero é algo construído socialmente e não uma condição genética. Conclui-se,
portanto que, sexo é biológico, gênero é social, a sexualidade e os Direitos Humanos estão
inseridos nas diferentes culturas e interferem no meio em que o sujeito habita.

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Mariane Izabel Silva dos Santosvi

GT 02 – Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos

RESUMO

Este estudo apresenta uma pesquisa sobre crimes sexuais contra a criança e o adolescente
no âmbito intrafamiliar e as consequências que eles trazem para suas vítimas. Discute-se
acerca da violência sexual a partir de um estudo documental em um Centro de Referência
Especializado em Assistência Social - CREAS em uma cidade do Agreste de Pernambuco.
O objetivo assumido nesse trabalho foi o de estudar o cenário relacionado a crimes sexuais
contra crianças e adolescentes em uma cidade do Agreste de Pernambuco. Os principais
autores utilizados na pesquisa foram: Sanderson (2005), Brasil (1990), Ariès (1978), Frota
(2007) e Aberastury e Knobel (1981). Este estudo de cunho documental,
metodologicamente foi instrumentalizado a partir do método dialético, com uma
abordagem mista, quantitativa e qualitativa, e através de uma pesquisa exploratória,
descritiva e bibliográfica. As conclusões alcançadas com essa pesquisa permitem-nos
depreender que os crimes sexuais na cidade do Agreste de Pernambucano estão
intimamente relacionados a questões de gênero, pois, todos os agressores são do sexo
masculino, enquanto 87,5% das vítimas são do sexo feminino. Além disso, percebemos a
escassez de dados quanto aos agressores nos processos administrativos arquivados em um
CREAS, bem como a ausência de articulação e eficácia no trabalho da rede de atendimento
as crianças e adolescentes.

Palavras-chave: Crimes sexuais. Violência Intrafamiliar. Crianças. Adolescentes.

1 INTRODUÇÃO

Buscamos nesta pesquisa analisar a realidade dos crimes sexuais contra crianças e
adolescentes, no âmbito intrafamiliar, na cidade do Agreste de Pernambuco, com o intuito
que haja/houvesse maior visibilidade para esses sujeitos em desenvolvimento.
Desse modo, ao deparar-nos com um tipo de violência tão assustadora e que carrega
outras consigo, buscamos catalogar dados de um Centro de Referência Especializado em
Assistência Social - CREAS de modo que fosse possível responder o seguinte problema de
pesquisa: Qual o cenário relacionado a crimes sexuais no âmbito intrafamiliar contra
crianças e adolescentes em uma cidade do Agreste de Pernambuco?
De forma a responder esse questionamento a pesquisa direcionou-se a partir de um
objetivo geral, qual seja, ―estudar o cenário relacionado a crimes sexuais contra crianças e
adolescentes em uma cidade do Agreste de Pernambuco‖.
De modo a alcançá-lo, essa pesquisa se propôs, de início, a discutir as concepções
sobre crimes sexuais a partir da Lei nº 12.015/2009, bem como identificar as concepções
de infância e adolescência e os crimes sexuais e, por fim, analisar o cenário relacionado a
crimes sexuais contra crianças e adolescentes em uma cidade do Agreste de Pernambuco.
A metodologia utilizada em nossa pesquisa se fez a partir do método dialético
(LAKATOS, 2003), tendo em vista que esse instrumento possibilita uma melhor
apropriação da realidade. A abordagem desta pesquisa é mista, apresentando aspectos
quantitativos e, sobretudo, qualitativos, para que tenhamos uma visão do fenômeno
estudado a partir de estatísticas e da vivência no meio natural com os personagens, que de
alguma forma, estão envolvidos no fato.
Além disso, foram aplicadas três tipos de pesquisa: a exploratória, a descritiva e a
documental. Este último tipo de pesquisa foi utilizado para a coleta de dados no CREAS,
com o intuito de criar alguns indicadores a partir dos documentos, levando em
consideração o tema desse trabalho.
Assim, a análise documental foi realizada nos processos administrativos que ficam
no CREAS, e sobretudo pelos relatórios sociais ou psicossociais que é desenvolvido pelos
profissionais desse órgão, no período entre jan./2013 a out./2015.
Por fim, a técnica de análise de dados foi a análise de conteúdo (BURDIN, 2007),
de modo que pudemos interpretar os dados que foram coletados no CREAS.
Nossa pesquisa se justifica ao observarmos a complexidade e particularidade que a
violência sexual traz consigo. Dessa forma, através de um tema como esse, esperamos que
a sociedade se acostume a tratar sobre sexualidade, a quebrar tabus, a alertar os seus filhos,
as suas crianças e adolescentes sobre o sexo e o próprio corpo, antes que sejam vítimas
desse tipo de violência. Ademais, com essa pesquisa esperamos ter contribuído para que as
famílias, profissionais e a própria sociedade possa identificar e ajudar as vítimas desses
crimes sexuais.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Diálogos sobre crimes sexuais contra crianças e adolescentes a partir da Lei nº
12.015/2009

Quando as relações são desenvolvidas de forma precoce observamos que o


sofrimento pode invadir o ser, em todos os seus aspectos. Com o sexo não é diferente,
quando realizado da forma correta, com o consentimento dos indivíduos, os melhores
sentimentos são desenvolvidos.
No entanto, quando realizado de forma indesejada, com violência, seja ela física,
psicológica ou emocional, gera traumas e transtornos jamais sentidos. É nessa perspectiva
que idealizamos o nosso trabalho, focando não apenas na discussão sobre sexo, mas os
crimes em seus desdobramentos, especificamente aquelas ações tipificadas no Código
Penal Brasileiro, contra as crianças e adolescentes.
Assim, ao observar os crimes contra a dignidade sexual previstos no Código Penal
Brasileiro – CPB (BRASIL, 1940), percebe-se que a sociedade atual não é a mesma da
década de 1940, quando o CPB foi promulgado. Várias alterações ocorreram em seu texto,
justamente porque os costumes sociais mudam, o que resulta em alteração da lei.
No Congresso Nacional foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
(CPMI), em 2003, para investigar a violência sexual contra crianças e adolescentes. Dessa
forma, em 2004, terminou a investigação dessa comissão e trouxe resultados alarmantes,
sendo criado um Projeto de Lei nº 253/2004 que, mais tarde, resultou na Lei nº
12.015/2009 (GRECO, 2013).
Observamos, que diferentemente do que ocorreu em 1940, que só trazia tipos
penais com causas de aumento de pena quando o crime era praticado contra crianças e
adolescentes do sexo feminino, com o advento da Lei nº 12.015/2009, temos seis tipos
penais de um total de sete, que traz na própria tipificação, ou como causa de aumento de
pena, o fato do crime ser cometido contra esses sujeitos, que são eles: o estupro, o assédio
sexual, estupro de vulnerável, satisfação de lascívia mediante presença de criança e
adolescente e o favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de
vulnerável.
Dentre as alterações trazidas pela Lei nº 12.015/2009 (BRASIL, 2009), uma das
mais significativas é quanto à legitimidade para proposição de ação referente aos crimes
sexuais contra crianças e adolescentes, considerados(as) pelo CPB como vulneráveis. O
que, antes do advento da Lei acima mencionada, era ação privada, através de queixa, hoje,
trata-se de ação pública incondicionada. Ou seja, o que antes ficava a critério da parte em
saber se denunciava ou não, agora basta o Ministério Público tomar ciência do fato para
denunciar, é um dever funcional e não uma faculdade do Parquet.
O problema, ainda, reside justamente nisso: o Ministério Público tomar
conhecimento do fato delituoso. Por se tratar de um crime que está ligado a tabus sociais o
silêncio acaba sendo potencializado e torna-se difícil que as autoridades competentes
tomem ciência.
Observa-se, pois, que as mudanças que vieram através da Lei nº 12.015 nada mais
são do que a tentativa de responsabilização dos agressores dos crimes sexuais contra a
criança e o adolescente, e uma consequente implementação do que é assegurado nos
documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como também do que é
garantido no ECA (BRASIL, 1990).
Portanto, apesar do Brasil estar, lentamente, buscando efetivar o que diz o caput do
art. 226 da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), quando assegura que a criança e o
adolescente estejam a salvo de toda forma de violência e negligência, ainda há um grande
abismo. Isso porque, a sociedade como um todo, ao invés de ser uma grande ativista e
guerreira contra a violência sexual contra esses sujeitos, acaba sendo uma grande aliada da
propagação dessa violência, pois silencia diante dos fatos que acontecem em seu âmago.

2.2 Concepções de infância e adolescência e os crimes sexuais

Ao estudar a história percebe-se que o entendimento atual sobre o que é infância


passou por vários processos de transformação. Por longos anos, a criança foi vista como
um ―pequeno adulto‖, era inserida desde muito cedo na vida adulta e tinha as
responsabilidades de um.
Antes de analisar a concepção de infância ao longo da história, é válido refletir algo
importante. Apesar das longas e dolorosas desvalorizações para construirmos o que
conhecemos hoje sobre a infância, temos começado a voltar no tempo e regredir a época
em que a criança era um pequeno adulto. Aliás, o que mais vemos hoje em dia são
familiares que vestem suas crianças como sendo pequenos adultos, além de todo ano surgir
propagandas colocando as crianças inseridas nesse universo do mercado e consumo
exacerbado.
O fato da criança, com poucos anos de vida vestir-se, comportar-se, andar e viver
como um adulto, tirava dela a oportunidade de passar pelas etapas que a vida oferece e
amadurecer à medida que o tempo fosse passando (ARIÉS, 1978).
Ariès (1978, p. 3), sobre esse aspecto assim diz:

A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o filhote
do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança então, mal adquiria algum
desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus
trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em
homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem
praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das
sociedades evoluídas de hoje.

Desse modo, percebe-se que a concepção de infância varia de acordo com a época,
bem como a cultura de cada povo. Ou melhor, a existência ou não da concepção de
infância, varia de cada época e cada cultura.
Passamos do período chamado de Infância Negada (SILVA, 2005), que
compreendia os primeiros séculos, até a Infância de Direitos (final do século XIX e início
do XX) que é a que vigora atualmente. Neste último período começa a surgir um grupo
familiar preocupado com a sua prole, que se dedica a construção de afeto na família e
direcionado especificamente à criança (FROTA, 2007).
É importante destacar que essa nova visão que começou a surgir da criança foi
influenciada pelo Cristianismo. Tanto católicos quanto protestantes, pregavam sobre o
olhar de cuidado para com a criança, de maneira que pudesse conscientizar os pais a
cuidarem de seus filhos, bem como contribuir para que os governantes e a própria
sociedade começassem a combater as atrocidades cometidas contra as crianças. Nesse
contexto, Ferrari e Vecina (2002, p.46) contribui: ―Em alguns povos pagãos iniciou-se um
movimento de piedade pelas crianças, porém a verdadeira obra de redenção se deve ao
Cristianismo‖.
Entretanto, foi um longo caminho a ser percorrido para que a infância, como se tem
hoje, fosse reconhecida. A sociedade até começou a ter um olhar para a criança, mas em
um primeiro momento, e por muitas décadas, a criança foi vista como o ―menor‖. Leite
(2011, p. 20), assim comenta sobre o surgimento desse ―menor‖:

A infância passa a ser ―visível‖ quando o trabalho deixa de ser domiciliar e as


famílias, ao se deslocarem e dispersarem, não conseguem mais administrar o
desenvolvimento dos filhos pequenos. É então que as crianças transformam-se
em ―menores‖, e como tal rapidamente congregam as características de
abandonados e delinquentes.

Observa-se que com a necessidade da saída dos pais para o trabalho, inclusive da
mulher, que era a cuidadora oficial das crianças, esses sujeitos em desenvolvimento
começam a ser enquadrados na categoria dos excluídos, os seres marginalizados da
sociedade. ―Abandonados, mendigos e infratores frequentemente foram confundidos sob o
nome de ‗menor‘, que nunca designa filhos de famílias das camadas médias e altas, e tem
conotações negativas desqualificantes‖ (LEITE, 2011, p.21).
Desse modo, essa estigmatização era designada às crianças que pertenciam as
famílias pobres, até porque eram esses grupos sociais que precisavam sair de suas casas
para trabalhar e garantir o sustento do lar.
Ainda nessa perspectiva, a educadora e psicóloga Frota (2007) acrescenta:

O "menor" foi entregue à alçada do Estado, que tratou de cuidar dele,


institucionalizando-o, submetendo-o a tratamentos e cuidados massificantes,
cruéis, e preconceituosos. Por entender o "menor" como uma situação de perigo
social e individual, o primeiro código de menores, datado de 1927, acabou por
construir uma categoria de crianças menos humanas, menos crianças do que as
outras crianças, quase uma ameaça à sociedade.

Nesse contexto, ainda no século XVIII, foi criado, no Brasil, a chamada ―roda dos
expostos‖ que era uma instituição que prestava assistência as crianças abandonadas,
ressaltando-se que essa instituição já existia desde o Medievo na Europa (MARCILIO,
2011). No entanto, o que tinha o papel de assistir a criança, era apenas mais um meio para
marginalizá-la, bem como foi um dos institutos que mais negligenciaram essas crianças:

Na realidade, a quase totalidade destes pequenos expostos nem chegavam à


idade adulta. A mortalidade dos expostos, assisitdos pelas rodas, pelas câmaras
ou criados em famílias substitutas, sempre foi a mais elevada de todos os
segmentos sociais do Brasil, em todos os tempos – incluindo neles os escravos,
como já tivemos a oportunidade de comprovar (MARCILIO, 2011, p. 55) .

É desumano saber que a roda dos expostos só deixou de existir na década de 50. Ou
seja, até meados do século passado essa era a realidade das nossas crianças abandonadas,
esse era o caminho percorrido por elas.
Marcilio (2011, p. 79) traz as transformações que ocorreram após a roda dos
expostos deixar de existir:

Só a partir dos anos de 1960, houve funda mudança de modelo e de orientação


na assistência à infância abandonada. Começava a fase do Estado do Bem –
Estar, com a criação da FUNABEM (1964), seguida das instalação, em vários
estados, das FEBEM‘s. Com a Constituição Cidadã de 1988, inseriam-se em
nossa sociedade os Direitos Internacionais da Criança, proclamados pela ONU
nos anos de 1950. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 e
a LOAS (1993), o Estado assume enfim sua responsabilidade sobre a assistência
à infância e à adolescência desvalidas, e estas tornam-se sujeitos de Direito, pela
primeira vez na História.
Diante disso, observamos que as crianças e os adolescentes foram estigmatizados
de todas as formas, seja pelos governos, pela sociedade, pela família e até, e,
principalmente, pela lei. Como dito por Marcilio (2011), somente com a Constituição de
1988 e o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA em 1990 foi possível
instrumentalizar as conquistas e combates realizados por séculos.
Além do que foi exposto sobre a infância, passa-se a analisar a concepção de
adolescência. No senso comum, até hoje, ser adolescente é passar por um caos, viver
problemático, ser revoltado contra todos, é ser um ―aborrecente‖. É uma fase da vida no
qual se passa da infância para a adultície, da inocência para a responsabilidade.
A adolescência é uma fase na qual as mudanças ocorrem sem que haja controle ou
vontade, a começar pelo exterior. O corpo, da até então criança, começa a se transformar, e
um ser, que era ―assexuado‖, se assim podemos dizer, transforma-se em um do sexo
feminino ou do sexo masculino, começando a desenvolver a sexualidade.
Isso implica diretamente nas mudanças internas. Os hábitos infantis começam a
morrer e surge, o que Aberastury e Knobel (1981, p. 13) chama de ―luto pelo corpo da
criança, pela identidade infantil e pela relação com os pais da infância‖.
Uma característica importante para este trabalho é quanto ao processo de
construção de identidade sexual. Quando essa identidade é violentada, especialmente, por
adultos, dificulta-se o processo de identificação pelo adolescente, pois ocorrerá a chamada
identificação com o agressor, que resulta na absorção da personalidade de quem o
violentou (ABERASTURY; KNOBEL, 1981). Dessa forma, um adolescente agredido
sexualmente nesse processo da vida, desenvolverá problemas quanto a sua sexualidade,
pois poderá assimilar aquela experiência como o paradigma da sua vida, podendo chegar a
reproduzi-la em outras pessoas.
Por isso, para se discutir os impactos e os sinais e sintomas dos crimes sexuais
contra a criança e o adolescente, é necessário que se tenha uma visão do que é infância e
adolescência, hoje, e como se chegou a essa concepção.
Nesse ínterim, percebemos que o pacto do silêncio em revelar o abuso sexual,
muitas vezes é mantido pelo que, Sanderson (2005) chama de efeitos da violência sexual,
que seria, em linhas gerais, o medo, a vergonha, a solidão, a timidez, entre outros fatores.
É nesse contexto que incide um elemento conhecido na psicologia como ―Síndrome
do Segredo‖, que consiste diretamente na psicopatologia do agressor, que por está em um
situação de repúdio social utiliza de ameaças e, até presentes, para calar a vítima
(HABIGZANG, et al, 2005). Isso só corrobora a ideia que a violência psicológica que a
criança e o adolescente, vítima de um crime sexual, tende a passar.

2.3 Resultados da Pesquisa


Como dito acima, a pesquisa foi desenvolvida a partir da análise de processos
administrativos de um CREAS, em uma cidade do Agreste do Estado de Pernambuco. Para
que pudéssemos encontrar resultados, dividimos a pesquisa em quatro categorias, que são
elas: 1º Dados gerais sobre o quantitativo de casos em cada ano; 2º Os agressores: o que
eles trazem por trás dessa condição?; 3º Vítimas: protagonistas e alvo da violência e 4º
Circunstâncias, condições e cenário das violências. Assim, passaremos a demonstrar os
dados que encontramos.
Na primeira categoria, que trata sobre o quantitativo de casos em cada ano,
observamos que só houve 24 casos denunciados, divididos entre os anos de 2013, 2014 e
2015. Os cinco primeiros casos referem-se ao ano de 2013, seguido de mais nove no ano
de 2014 e os dez últimos dos meses de janeiro a outubro do ano de 2015.
Verifica-se que com o passar dos anos o número de denúncias foi aumentando, o
que resultou em um número maior nos dez primeiros meses do ano de 2015 do que o
correspondente ao ano inteiro de 2013 e de 2014 e isso pode estar atrelado à ausência de
campanhas educativas sobre o tema.
Podemos verificar, na prática, essas especulações quando observamos o CREAS no
ano de 2015 em comparação aos anos de 2013 e 2014. Está sendo desenvolvidos ao longo
do ano vários encontros, denominados de ―Seminário de prevenção e enfrentamento ao
abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, para a rede municipal de educação‖,
um evento pioneiro e que através dos números de denúncias já podem ser verificados os
resultados.
Enquanto isso, a segunda categoria, que trata sobre os agressores, levou-nos a
confirmação de um dado já suscitado nas pesquisas bibliográficas, como também nos fez
atentar para uma lacuna importante. Em primeiro lugar, dos vinte e quatro casos analisados
na nossa pesquisa, todos os agressores são do sexo masculino, o que veio ratificar o que já
diziam os livros, artigos e pesquisas que tratam do assunto.
Isso é preocupante, porque na maioria dos estudos a predominância dos agressores
são homens, e na pesquisa em tela, todos os casos tem como propagador dessa violência
pessoas do sexo masculino. Isso demonstra-nos que a violência sexual ainda está
intimamente relacionada a questões de gênero, como já dizia Esber (2008).
Outro aspecto importante encontrado com a pesquisa é a lacuna dos dados quanto
aos agressores. Apesar do agressor não ser o objeto de assistência do CREAS, observa-se
que não colher as informações mínimas sobre o agressor pode prejudicar o desempenho da
proteção às vítimas, objetivo almejado pelo órgão.
Na terceira categoria, que é a mais importante, trata sobre as vítimas, nela
constatamos, de início, que apesar da vítima ser sujeito de assistência do CREAS, há casos
que não há elementos pormenorizados sobre elas, o que é uma falha grave, tendo em vista
que elas são um dos objetivos desse órgão existir.
Nessa categoria, fizemos uma análise sobre cada ano, como abaixo explicamos.
No recorte do ano de 2013 observamos vítimas com faixa etária de 2 a 17 anos de
idade, havendo uma portadora de deficiência. Só em dois casos houveram informações
sobre a classe social e nos dois são de classe social baixa. Esse último dado é um indicativo
muito forte de que as classes sociais menos favorecidas são as que mais procuram os
órgãos públicos, pois as mais favorecidas procuram silenciar. Percebemos, então, que se
torna ainda mais difícil ajudar as vítimas abastadas.
Ademais, observamos que 80% das vítimas desse ano são do sexo feminino, sendo
apenas 20% do sexo masculino. Outro indicativo importante é quanto aos sinais que as
vítimas apresentaram após o abuso, como o medo, um dos sinais mais presentes no que
tange a esse tipo de violência (SANDERSON, 2005).
Quanto aos casos do ano de 2014, percebemos que a faixa etária das vítimas variou
dos 3 aos 15 anos, sendo 88,9% das vítimas do sexo feminino e outros 11,1% do sexo
masculino. Além disso percebemos sinais da violência sexual que levaram os adultos a
perceberem que algo estava ocorrendo, como o déficit de atenção na escola, o estresse, a
vontade do suicídio, a culpa e o medo.
Assim, sintetizamos o ano de 2015 no que diz respeito às vítimas da seguinte
forma: estão elencadas em uma faixa etária de 2 aos 16 anos, tendo sido identificada a
classe social de quatro delas, sendo todas de classe social baixa. Além disso 90% das
vítimas são do sexo feminino, sendo apenas 10% do sexo masculino. Temos a
identificação da cor de pele de uma das vítimas, que é branca.
Após observarmos o relato dos casos sob a perspectiva da vítima, percebemos que,
assim como foi dito na categoria dos agressores, está intimamente ligada a violência de
gênero. Dos vinte e quatro casos coletados temos apenas três vítimas do sexo masculino,
todas crianças, sendo uma de 4 anos, uma de 8 e outra com 9, e essa última é deficiente
mental, o que equivale a 12,5% dos casos. Dessa forma, enquanto 100% dos agressores em
uma cidade do Agreste de Pernambuco são do sexo masculino, 87,5% das vítimas dos
crimes sexuais são do sexo feminino, e isso só pode ser explicado por questões de gênero e
poder.
E por fim, na quarta e última categoria, constatamos as violências utilizadas, os
ambientes em que ocorreram as violações, bem como qual crime foi praticado. No que diz
respeito aos tipos de violências, observamos dos dados coletados de cada caso que houve a
ocorrência de três tipos: a sexual, a psicológica e a física. Desse dado observamos que
quase sempre a violência sexual não vem sozinha, estando atrelada em praticamente todos
os casos da violência psicológica. A incidência da violência física não é tão recorrente
como a violência psicológica, mas também tem uma incidência considerável.
Por outro lado, quanto aos espaços que ocorreram os crimes, observamos que
66,66% foi na casa do agressor, 29,16% ocorreram na casa da vítima e 4,16% ocorreu em
um açude na Zona Rural de uma cidade do Agreste de Pernambuco.
E por último, quanto aos tipos penais em que os agressores se enquadrariam temos
os arts. 213 (estupro) e 217-A (estupro de vulnerável) do Código Penal brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo chega a seu fim na busca por respostas a seguinte problemática:
Qual o cenário relacionado a crimes sexuais no âmbito intrafamiliar contra crianças e
adolescentes em uma cidade do Agreste de Pernambuco?
Os resultados encontrados a partir dos dados coletados levam-nos a fazer as
seguintes análises da realidade de uma cidade do Agreste de Pernambuco.
O maior número de denúncias ocorreu no ano de 2015, de modo que percebemos
que isso está totalmente atrelado aos seminários que vem sendo desenvolvido pelo CREAS
ao longo do ano. Para que uma cidade do Agreste de Pernambuco venha receber um
número mais expressivo de denúncias é essencial que sejam desenvolvidas mais ações com
o cunho educativo e esclarecedor sobre o tema, pois muitos familiares por não conhecerem
os sinais que as vítimas apresentam não conseguem identificar as violações aos direitos
sexuais daquelas crianças ou adolescentes.
Além disso, todos os agressores são homens. Essa constatação atraiu nossa atenção,
pois percebemos que a violência sexual tem suas raízes na violência de gênero.
Observamos que para que ocorra uma mudança nesse quadro, diminuindo essas violências,
é necessária uma conscientização coletiva, de forma que a luta contra o machismo seja
uma constante no meio social, especialmente em uma cidade do Agreste de Pernambuco
onde foi o nosso estudo.
Ademais, a idade dos agressores variou dos 10 aos 78 anos durante o período
analisado, de modo que não há um perfil estabelecido de quem pode ser esse agressor.
Qualquer pessoa é um agressor em potencial. Esse resultado mostra-nos a dificuldade
acentuada no combate a esse tipo de violência, por não ser possível identificar a idade, nem
mesmo outras características para traçar um perfil do agressor, sendo necessária assim uma
atenção especial para o comportamento desses sujeitos.
Outra constatação importante foi que em 79,16% dos casos os agressores eram
familiares. Como foi explicado acima, houve a coleta de dados de casos em que terceiros
aproximaram-se da família para aliciar as suas vítimas para depois praticarem os crimes.
No entanto, observamos que mesmo existindo essa outra ―classe‖ de agressores, a maioria
esmagadora são os familiares. Essa porcentagem é lastimável. Constatar que aqueles que
deveriam ser os garantidores do bem-estar da criança e do adolescente, são na verdade os
verdadeiros propagadores de um mal, uma sombra que vai afetar a vítima por toda a vida, é
totalmente alarmante.
Verificamos ainda que as vítimas em sua maioria são do sexo feminino (87,5%),
enquanto 12,5% são do sexo masculino. Observamos através dos casos que a violência
sexual além de estar atrelada a violência de gênero, também está ligada as relações de
poder entre o forte e o fraco, fisicamente e psicologicamente. Isso tem raízes históricas,
pois ao longo dos séculos as mulheres foram subordinadas aos homens legitimando essa
relação de poder ainda existente atualmente.
Nesse contexto percebemos que a faixa etária das vítimas variou de 2 a 17 anos de
idade, de modo que fica demonstrada que as crianças desde muito cedo já são vítimas de
crimes sexuais. Como observamos da pesquisa bibliográfica realizada, quanto mais nova
for uma vítima talvez ela não julgue se o que estar acontecendo com ela tem um cunho
certo ou errado, no entanto, quando o entendimento começa a surgir as consequências são
avassaladoras, podendo chegar a vontade de suicídio, como um dos casos apresentados
acima.
Constatamos ainda que o palco para a violência sexual são as casas dos agressores e
isso estar atrelado ao fato de ser um ambiente que não causa suspeita nas pessoas. Por
serem em sua maioria familiares, geralmente os que convivem com os agressores não
desconfiam e nem vão estar observando qualquer atividade suspeita.
Além disso, houve a predominância de dois crimes: o estupro de vulnerável e o
estupro, de modo que o que mudava para tipificação de cada um era apenas os requisitos,
como a idade da vítima ou se havia ou não deficiência mental.
E por fim, constatamos que a rede de atendimento, assim como já demonstrava
algumas pesquisas em outras localidades do país, também não funciona em uma cidade do
Agreste de Pernambuco. Como visto na análise de dados apenas 8,33% dos casos tiveram
um trabalho bem articulado com os órgãos públicos que compõem o Sistema de Garantia
de Direitos.
Portanto, a partir desses resultados, percebemos que a falta de conhecimento sobre
o tema é um dos primeiros problemas encontrados pela violência sexual, razão pela qual os
Poderes Públicos deveriam investir mais em campanhas educativas para conscientização e
conhecimento da sociedade, para que a própria população comece a ser instrumento de
combate a violência sexual. Ademais, é necessária uma luta contínua contra as relações de
poder, baseado no gênero, ainda tão viva na sociedade contemporânea.

REFERÊNCIAS

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A DESPATOLOGIZAÇÃO, PROCESSO DE RECONHECIMENTO NO
TRANSFEMINISMO
Carmem Emmanuella Santos Costavi
Élida Gleice de Lima Oliveiravi

GT 02 – GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS

RESUMO

No presente trabalho iremos buscar analisar de forma crítica e coerente o transfeminismo,


movimento social – composto principalmente por travestis e transgêneros – que vem
crescendo e ganhando visibilidade nos dias atuais. Abordaremos e explicaremos suas
principais reivindicações, uma vez que, estudos abrangendo tal tema são limitados e
escassos. Foi realizada, além da pesquisa bibliográfica-exploratória, uma entrevista com
uma ativista trans, onde por esses meios expressos buscamos explanar sobre a dinâmica e o
reconhecimento do movimento em questão. Seguindo essa análise, abordaremos,
posteriormente, sobre a despatologização do gênero, buscando esclarecer de maneira
simples como se dá essa problemática nos dias atuais. Tomamos por base teórica as
autoras: Bento (2006, 2008) e Fraser (2000, 2001). Por fim, evidenciaremos o eixo da
pesquisa, fixando-o no seguinte questionamento: como a dinâmica do transfeminismo
ajuda no processo do reconhecimento do EU como pessoa trans? Mostraremos, então que o
viés do movimento é justamente consolidar a identidade trans quando assim for preciso,
mas também descontruir os moldes impostos ao conceito de gênero, pela sociedade. Diante
disto dar-se-á não uma resposta, mas uma explicação para que possamos entender melhor
essa realidade.

Palavras-chave: Transfeminismo. Gênero. Movimento social. Reconhecimento. .

INTRODUÇÃO
Durante muito tempo, fomos educados para ter um pensamento binário e com base
na biologia, onde o genital definiria o modo de agir de cada ser, porém com o passar dos
anos, surgiu a ideia de gênero. O conceito de gênero começou a ser (re)discutido de forma
mais rica e profunda, indo além dos moldes da ciência biológica; gênero seria um conjunto
de aspectos que vem a diferenciar o masculino do feminino, com isto, mostra-se então que
nem sempre o genital corresponderá a identidade de gênero.
A partir dessas ―descobertas‖ movimentos sociais, como o transfeminismo, surgem
para abranger/acolher essas pessoas, que antes eram totalmente marginalizadas e excluídas
da sociedade. Analisamos o transfeminismo, ou feminismo tans, como uma vertente do
feminismo (movimento político que luta pelo fim da dominação de um gênero sobre
outro), composta em sua grande maioria por travetis e mulheres transexuais ou
transgêneros, seu principal objetivo é lutar pelos direitos das pessoas trans.

Além disso, esse movimento vem com o intuito de salientar que a identidade das
pessoas é algo mais abrangente do que o órgão genital, acabando com o conceito
meramente político, uma vez que nos é atribuído direitos e deveres que, socialmente
falando, se enquadram a todo estereótipo social do que é entendido por gênero, como se
nos fosse imposto um manual de instruções, onde a partir dele teríamos condutas
determinadas, como um molde fixo em que tudo que se encontrasse às margens não se
enquadrasse.

Uma das principais reivindicações do transfeminismo é a despatologização do


gênero. Por um longo período as ciências biológicas estudaram para tentar explicar e
afirmavam as pessoas trans tinham alguma alteração no organismo, alguma patologia. Em
1994, o Comitê do DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders)
passou a adotar o termo ―Transtorno de Identidade de Gênero‖, onde a pessoa que portasse
esse transtorno teria uma forte identificação com o sexo oposto e se incomodaria com o
órgão sexual.

Em decorrência disso, nos deparamos com outro problema, para o SUS (Sistema
Único de Saúde) se não for diagnosticado como doença, o mesmo não se diz como
responsável de/para fornecer tratamentos hormonais ou até mesmo a cirurgia de
transgenitalização. Não obstante há uma controvérsia nisso, uma vez que o mesmo já
declarou que ―todo cidadão tem direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de
qualquer discriminação‖.
1. ÀS VEZES O MELHOR REMÉDIO É UM PALAVRÃO

Falar de movimentos sociais hoje, no Brasil e no mundo, é perceber que o ativismo


social tem se mostrado cada vez mais presente em meio a sociedade. Citar esses
movimentos e não mencionar o feminismo é quase impossível, movimento esse que nasceu
na década de 60, onde as mulheres procuraram sua vez em meio a sociedade.

Hoje podemos notar que o movimento cresceu e com ele suas vertentes foram
surgindo. O conceito de gênero que foi se aplicando no feminismo contribuiu com a
desconstrução de crença no que diz respeito ao modelo da mulher. Essa construção social
que advém dos paradigmas atribuídos ao gênero, acaba ―enfatizando a necessidade de
elaborar e exibir uma identidade coletiva autêntica, auto-afirmativa e autogerada, ele
coloca uma pressão moral nos indivíduos para que se conformem a uma dada cultua
grupal‖ (FRASER, 2000, p. 112). Contudo busca-se uma significação para o movimento
que vá além, que o considere ―tanto como uma filosofia quanto como uma práxis acerca
das identidades transgênero que visa a transformação dos feminismos‖ (JESUS &
HAILEY, 2010, p. 14).

Ao decorrer dos anos, o movimento foi ganhando forças e se espalhando pelo


mundo, com isso, muitos grupos tinham seus traços, suas lutas especificas e seus ideais,
entre toda essa mistificação surge o transfeminismo, movimento composto por travetis e
mulheres transexuais ou transgêneros. No âmbito do movimento, a nomeação ―mulheres
trans‖ é utilizada com todas as pessoas que se identificam, apresentam ou vivem como
mulheres, independente da designação sexual do nascimento.

É notório que todos nós buscamos incansavelmente em arrumar meios de impor


uma identidade diante a sociedade, fazendo com que se encaixe nos padrões considerados
como normais, o que acontece com mulheres trans que são, muitas vezes, cobradas a
exporem uma identidade de um ‗ser feminino‘ a fim de serem aceites diante aos padrões
impostos, a mostrarem uma certa feminilidade, a serem, de fato, uma mulher. Assim,
muitas vezes, as mulheres trans, deparam-se muitas vezes em situações onde são obrigadas
a ‗provar‘ o seu ‗ser feminino‘.

Existe um termo denominado de passabilidade, que significa ―passar-se por‖. Esse


termo é atribuído a todas as pessoas trans que exteriorizam um esteriótipo de um homem
ou mulher cisgênero, ou seja, pessoas cisgêneros(cis) são todas aquelas pessoas cujo
gênero é o mesmo do designado em seu nascimento. Nem todas as pessoas trans possuem
recursos ou desejam, de fato, passarem por cirurgias, o que dificulta de certo modo a sua
passabilidade, e é um dos pontos que o movimento procura reforçar, nenhuma mulher trans
(ou homem também) precisa se sentir na obrigação de se impor como uma pessoa cis.

De modo geral, a travestilidade tem sido distanciada da experiência transexual por


questões políticas. A travesti não pode ser considerada como uma imitação da mulher; as
experiências identitárias pelas quais passam as travestis, homens e mulheres transexuais, os
drag kings, os crossdressers, as drag queens, etc, acabam indo chocando-se diretamente
com as normas de gênero empregadas socialmente.

Desse modo, por mais que haja brechas entre os dispositivos heterossexuais que
tenham dado espaço para a criação de novas performances, que ultrapassam do binarismo,
o que acaba se observando é que todo esse processo de formação do gênero ininteligível
consegue localizar dos discursos normalizadores e, posteriormente, a desnaturalizar as
identidades sexuais.

A experiência pode ser plural, ou seja, nem sempre há o desejo de recorrer a


cirurgia de redesignação sexual, e por outro lado, nota-se os problemas ligados a
empecilhos para o gozo da cidadania desses indivíduos. Um deles é o fato de não poderem
mudar no registro civil em decorrência do não reconhecimento da identidade, caso não haja
a cirurgia.

É um fardo que carregam essas pessoas, que precisam ter documentos com um
nome que não está de acordo com o seu gênero e, consequentemente, pode lhe causar
constrangimento público.

O transfeminismo tem o intuito de salientar que a identidade das pessoas é algo


mais amplo, que rompe a o paradigma que a atribui ao órgão sexual, acabando com aquela
tarja que o sexo biológico nos trazia, como se nos fosse imposto um receituário, onde a
partir dele teríamos seguimentos determinados, como uma forma fixa onde aquele pedaço
que estivesse de fora teria que ser eliminado.

Com isto percebemos que esse padrão que nos é atribuído, vêm à ser uma
desvalorização cultural que tem por finalidade criar uma hierarquia de seres sociais, onde
alguns seriam chamados de normais e outros de anormais, essa segunda ‗classe‘ estaria
abaixo, ou seja, seria ignorada. Perante tais coisas, percebemos que olhando por esse
ângulo, a luta por reconhecimento busca a superação da subordinação.

O movimento feminista trans toma esse cuidado, ou seja, assim como o


reconhecimento pregado por Fraser, o mesmo reafirma que os ―padrões institucionalizados
de valor cultural devem expressar igual respeito a todos os participantes e garantir
oportunidades iguais para a obtenção da estima‖ (FRASER, 2001, p. 36), desta forma
existirá uma equidade quanto a participação dos sujeitos sociais e não haverá
subordinação.

Importante ressaltar que, a participação das pessoas afetadas é indispensável para


que se possa arranjar meios pelos quais essa subordinação seja superada, uma vez que, a
partir das relações sociais, dos diálogos, debates, enfim, do conhecimento de/da causa,
pode-se crescer, pois se acontece o inverso, sendo então tirado o direito à fala, os sujeitos
pertencentes a esses determinados grupos sofreram injustiças que os impediram de expor
suas questões.

Essas injustiças podem ser/acontecer de diversas formas, mas focaremos na


cultural, que advém dos costumes que carregamos dos nossos antepassados, contudo o
―remédio‖ para essa injustiça é uma transformação na cultura, onde não só a valorização
dessas identidades difamadas podem ser a chave, mas sim a exaltação positiva da
diversidade dos produtos culturais, sendo então os padrões sociais transformados, tendo
por caminho os meios de comunicações onde irá atingir de forma válida e eficaz o ―eu‖ de
todas pessoas, para que as além do reconhecimento pessoal (eu-sociedade), possa se ter
também por reação o reconhecimento alheio (sociedade-eu).

A desqualificação desse grupo de pessoas é expressa pelos danos sofridos, inclusive


nitidamente a partir das violências generalizadas, da exploração sexual, da objetificação
que a mídia permite e prolonga, uma vez que, os meios usados para divulgação são de fácil
acesso. Por sermos de certa forma apegados ao patriarcado e termos um pensamento
heteronormativo, acabamos naturalizando essa inferioridade dos trans e travestis, mesmo
sem ter de fato a intenção de discriminar essas pessoas, acabamos contribuindo para que
seja mantido essa desvantagem.

Pessoas trans ainda são vistas como pessoas doentes, sendo considerado um
transtorno de identidade sexual pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde – CID 10 (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE).

De um lado a multiplicidade de vivências de gênero e


sexualidade que explicita uma densa e complexa articulação de
identidades, do outro o poder normatizador que afirma um
uníssono: a transexualidade é uma doença. No entanto, a ciência
médica tão vigilante nos seus métodos de observação,
classificação, em seus controles de resultados, considera uma
experiência identitária como doença, sem ter nenhuma prova,
nenhum indicador objetivo que legitime essa explicação
(BENTO, 2008, p. 53).

Os remédios, seguindo a lógica de Fraser podem ser afirmativos – que em geral


promovem a diferenciação, ou seja, enaltece as especificidades de determinado grupo, no
nosso caso as pessoas trans – ou transformativos – que por sua vez, proclama a
desconstrução dos moldes impostos pela sociedade. Exemplificando: os remédios
afirmativos para a população trans seriam políticas públicas que chamam atenção para os
transgêneros e travestis, valorizando essa identidade. Já os remédios transformativos
seriam os que propõe a desconstrução de qualquer identidade, de qualquer coisa que venha
a dividir as pessoas em lados opostos, onde esses lados serão tidos como rivais.

A conciliação desses remédios podem não parecer possível, mas é, se analisarmos


separadamente e visar as igualdades e desigualdades, podemos traduzir essa dualidade com
a frase dita por Santos (1995): ―lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos
discriminem; lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize‖, perante
isto o palavrão (transfeminismo) vem a ser o caminho para a cura dessa sociedade que
padece por falta de conhecimento, informação e empatia, pois o mesmo luta para que
venha a ter um tratamento diferenciado quando se fizer necessário, porém sem significar a
subordinação de um grupo para com o outro.

De maneira geral, o movimento tem crescido aos poucos, no Brasil. Suas atividades
são, em sua maioria, pela internet, como grupos em redes sociais e em alguns sites, o que
deixa claro que as fontes a respeito ainda são bastante escassas e de um acesso mais
dificultoso.

Um dos grandes problemas a serem enfrentados pelo transfeminismo é a transfobia,


ela consiste na rejeição, na falta de empatia e no preconceito advindo da sociedade para
com as pessoas que sua identidade de gênero não é igual ao sexo biológico ou seja, ao
padrão estabelecido pelo meio social. Sendo assim os que se dizem ―normais‖ rebelam-se
contra esses, demostrando ódio, com isto gerando violência e ameaça as vidas das pessoas
trans.

Mas, ao mesmo tempo, apesar de grandes barreiras enfrentadas, o movimento existe


e contempla milhares de pessoas, ajudando no seu processo de reconhecimento social.
Relata Sofia, uma travesti ativista, residente na cidade de Caruaru/PE como o
feminismo/transfeminismo ajudou no seu reconhecimento

O Feminismo e o Transfeminismo me ajudou bastante nesse processo de


empoderamento e de poder me aceitar[...] durante todo o meu processo de
aceitação, o feminismo veio como uma maneira que me ajudou a criar forças,
para eu poder sair na rua e me aceitar do jeito que eu sou, sem precisar entrar em
nenhum padrão[...] e depois que eu me aceitei, eu pude entender onde entrava o
recorte do transfeminismo[...] então eu posso dizer que com o feminismo eu me
empodero como mulher e com o transfeminismo em me empodero a ponto de me
definir como travesti e não ter nenhum problema nisso. Eu sou a primeira
travesti a entrar na Universidade Federal de Pernambuco, e o campus aqui em
Caruaru existe desde 2006.

2. DESPATOLOGIZAÇÃO
2.1.O GÊNERO NA CADEIRA DOS PACIENTES

Quando pensamos na ideia do gênero estar na cadeira dos pacientes, achamos um


absurdo, mas é o que vem acontecendo há um tempo. O gênero é a identidade, é a essência
do ―eu‖, contundo o mesmo começou a ser discutido por vários profissionais da área de
saúde, psicólogos, psiquiatras e psicanalistas.

A partir da década de 1950 artigos começaram a ser publicados falando do


―fenômeno transexual‖, naquela época a discussão era sobre a diferenciação da
transexualidade e da homossexualidade, foi então observado que na transexualidade o que
ocorria era um grande incomodo com o seu corpo em si, para as pessoas trans o seu corpo
era como uma roupa apertada, porém que estava na moda, incomodava mas era o que a
sociedade queria que fosse vestido. Hoje, nos deparamos que inúmeros questionamentos a
respeito de termos utilizados para diferenciar cada tipo de particularidade, como é o caso
também do transgênero, onde a ativista Sofia discute um pouco sobre a diferenciação dos
termos citados

O ‗T‘ da sigla LGBT engloba três t‘s, transexuais, transgêneros e travestis, e


quando falamos da travesti, que é sempre bom reforçar que o corretor é a travesti
e não o travesti, a gente ta falando de um terceiro sexo[...] acaba sendo que todas
as pessoas transexuais são automaticamente transgênero, mas nem todos os
transgêneros são transexuais[...]a pessoa transgênero é aquela que transitou de
um gênero para outro, quando estamos falando da questão transexual é você
transitar de um sexo para outro, biologicamente falando[...]então a partir do
momento que eu pretendo passar por procedimentos cirúrgicos eu me defino
como transexual.

John Money (1955) foi um dos primeiros a discutir sobre isso, o mesmo estudava a
―biologia do gênero‖ e tentou justamente diferenciar o sexo da identidade, em seus
estudos, mesmo com a escassez da época, ele conseguiu de certa forma mostrar isso,
porém para o mesmo a transexualidade seria uma ―disforia de gênero‖.

Com o passar dos anos o procedimento cirúrgico começou a intensifica-se, para


alguns especialistas da saúde a mesma seria um remédio para impedir o suicídio que
poderia advim da crise de identidade que esse ser humano sofreria por não se identificar
com o seu corpo. O mesmo só poderia ser concedido depois de várias terapias onde ao
final a pessoa teria que realmente ter ―certeza‖ que era aquilo que queria.

Em 1980 houve um marco, foi então incluído no Código Internacional de Doenças


a transexualidade. Logo mais a Associação de Psiquiatria Norte-Americana adicionou no
Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais, na parte de ―Transtornos Mentais de
Gênero‖, a transexualidade. Na versão seguinte esse manual apresentou os ―sintomas‖ para
que os profissionais pudessem diagnosticar esse transtorno.

No DSM-IV defende expressamente o dimorfismo, a identidade pessoal seria


construída a partir do gênero e da sexualidade, onde a feminilidade e a masculinidade são
ligadas e explicadas pela heterossexualidade, sendo então a forma fixo, onde quando
estiver algo ultrapassando ou faltando deverá então haver uma intervenção feita por um
especialista, perante esse ponto de vista deve ser especializado em alguma das áreas ―psi‖.
Bento (2006) socióloga brasileira, sua pesquisa é voltada para temas como gênero
e sexualidade começou a fazer um recorte nessas áreas e se firmou em pesquisar sobre
transexuais, e nesses estudos realizados, ela conseguiu de certa forma evidenciar que de
fato sexo biológico e gênero não são a mesma coisa e que quando a identidade não
correspondesse a genitália isso não poderia ser diagnosticado e tratado como doença. A
mesma ainda afirma que

não existe uma identidade transexual, mas sim posições de identidade


organizadas através de uma complexa rede de identificações que se efetiva
mediante movimentos de negação e afirmação aos modelos disponibilizados
socialmente para se definir o que seja um homem e uma mulher de verdade
(BENTO, 2006. p. 201).

Com isto, o dilema que existe entre os ―normais‖ e ―anormais‖, não vem ao caso dentro
dessa perspectiva essa pessoa trans como doente

é aprisioná-la, fixá-la em uma posição existencial que encontra no próprio


indivíduo a fonte explicativa para os seus conflitos, perspectiva diferente
daqueles que a interpretam como uma experiência identitária, é um
desdobramento inevitável de uma ordem de gênero que estabelece a
inteligibilidade dos gêneros no corpo. (BENTO, 2008, p. 16).

Não obstante, existe um medo que rodeiam as pessoas trans e as deixam com um pé
atrás quanto a despatologização, essa tensão se dá pelo fato do Estado já ser ausente e
ineficiente quando se é ligado a suprir as necessidades especificas desse grupo e caso não
seja mais diagnosticado como doença há a possibilidade do Estado não querer mais custear
as despesas com os processos de transformações corporais. Porém, caso isso viesse/vir a
acontecer estaria/estará havendo uma grande contradição, uma vez que os interesses do
Estado estarão sobrepondo os da população. Quando se fala em igualdades de direitos
devemos enxergar as minorias e suas especificidades, a definição de ―normais de gênero‖ e
portadores de direitos não devem vim somente da ideia que o Estado confirma, ou toma
por verdade (ou seja, o que a identidade corresponde ao órgão genital).

Diante disto, percebemos que a luta pela despatologização da identidade trans é


uma das discussões que mais reúne pesquisadores e ativista na atualidade, pois essa visão
desmascara todos os alicerces que seguram a verdade sobre gênero(s) e sobre o o padrão
heteronormativo. Como assevera Bento (2006), as trajetórias dos trans nos levam a refletir
sobre a ligação entre o gênero, a sexualidade e o corpo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante tudo que foi discutido, vimos que a identidade de gênero não está ligada
diretamente a genitália, contudo é socialmente construída. A transexualidade é uma
questão identitária que vem a se opor aquilo que fomos acostumados a chamar de natural,
ou seja, para o meio, essas pessoas estariam burlando as regras instituídas culturalmente,
por isso as mesmas acabam sendo excluídas da sociedade e às vezes até da essência
humana, estando então sujeitos a violências físicas e psicológicas.

O transfeminismo tenta então, remar contra essa maré e proclamar que essa
marginalização, essa negação de direitos e de proteção igualitária, ou seja, todas as
injustiças de reconhecimento sejam de extintas. E para que possamos nos distanciar desse
pensamento heteronormativo sexista é preciso que haja essa transformação cultural, bem
como em suas expressões legais. Havendo então um reconhecimento positivo para esse
grupo que no momento é totalmente rebaixado.

Baseando-se nesse reconhecimento positivo, que o transfeminismo vai atuar, sendo


ele de extrema importância, no que diz respeito a uma incansável tentativa de fazer com o
que o reconhecimento social seja, também, um direito de todos. São movimentos como
esse que vem nos reforçar a importância de discutir sobre gênero nos dias atuais,
reafirmando que fazer isso é trazer um olhar mais humano diante de sociedade, é mostrar
essa importância para o meio acadêmico incluir essas pessoas que aos poucos vão saindo
das margens da sociedade.

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BDSM: Um estudo das práticas sexuais a partir do gozo no sadomasoquismo

David Francisco de Amorimvi


Rosanne Roseilda da Silvavi
Roberyka Tallyta Muniz de Souzavi

GT: Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos.

RESUMO

Falar em sexualidade ainda é uma tabu em nossa sociedade, as pessoas ainda estão
inseridas em modelos normativos sociais antigos em que o sexo é permitido apenas para
fins reprodutivos entre casais heterossexuais. Isso causa de certa forma uma repressão na
sexualidade de muitos indivíduos. O presente artigo tem como objetivo principal realizar
um estudo das práticas sexuais englobadas no BDSM (bondage e disciplina, dominação e
submissão, sadismo e masoquismo o sadomasoquismo) e como essas sexualidade são
desenvolvidas por seus praticantes, desde a infância quando o ser tem seus primeiros
contatos com a sexualidade até a vida adulta. Utilizaremos como método o bibliográfico e
descritivo para tentar melhor entender e explicar essas fases do individuo enquanto ser
sexual.

Palavras-chave: Sexualidade. BDSM. Infância. Práticas sexuais.

INTRODUÇÃO

Temas que envolvem sexualidade estão começando a ganhar mais espaço na


academia atualmente, o que antes era considerado um tabu hoje já é tratado de forma mais
clara por pesquisadores, mesmo a sociedade tendo um certo receio em tocar no assunto.
Tal tabu se dá desde a idade média onde houve uma proibição das relações sexuais; sendo
que esta era permitida apenas para casais heterossexuais – com finalidade apenas de
reprodução e continuidade da espécie, logo qualquer pessoa que não se encaixasse nesse
padrão normativo social era duramente perseguidos. Podemos dizer que é a partir dessa
época que tivemos os primeiros casos de homofobia, visto que antes a relação sexual entre
pessoas do mesmo sexo não era algo tão proibido como agora.
Sobre essas sexualidades podemos as chamar de dissidentes, dentre elas se
englobam várias outras categorias, como a população LGBT, swing, sadomasoquismo,
dentre outros. Neste caso nosso principal objeto de estudo é a última categoria.
Quando falamos em sadomasoquismo ou BDSM (bondage e disciplina, dominação
e submissão, sadismo e masoquismo ou sadomasoquismo), é inevitável não fazermos
associação ao nome do Marquês de Sade, tal associação é feita no momento em que o
termo sadismo deriva de seu nome. Cabe aqui questionarmos e procurarmos diferenciar o
sadismo praticado no BDSM e o praticado nas obras do Marquês, visto que ambos tem
características totalmente diferentes, como falaremos posteriormente.
Pode-se dizer que o comportamento sexual humano é um tanto quanto complexo
em suas variações, porém, eles possuem traços de semelhança entre si. Entre esses traços
podem ser citados, o amor, a busca pelo prazer e pela satisfação. Por conseguinte, ambos
não importando a variação da sexualidade, traçam caminhos para alcançar os objetivos.
Deste modo, foi perceptível a necessidade de diferenciar relações sexuais
denominadas ―baunilhas‖, que seria o sexo tido como casual, onde os indivíduos se
utilizam de alguns fetiches que tem características em comum com o BDSM, de práticas de
BDSM propriamente ditas e consensuais, pois diversas pessoas costumam se denominarem
enquanto praticantes do BDSM, pelo fato de realizarem algumas práticas sadistas ou
masoquistas, inclusive consideradas em algumas circunstancias por eles como
preliminares, essas são muitas vezes não consensuais e até mesmo realizadas apenas para
agradar seus parceiros sexuais.
A pesquisa veiculada no presente trabalho nos inquieta no que diz respeito ao
prazer, ao gozo sexual, através da dor masoquista, ou até mesmo da submissão ao outro na
relação sexual, em que praticantes do BDSM não necessariamente realizam essas
categorias na relação sexual propriamente dita, tampouco enquanto preliminares, mas até
mesmo no seu dia-a-dia. Um exemplo disso é a relação do dominador com seu submisso
como na submissão financeira, que seria quando uma pessoa trabalha para sustentar o
parceiro financeiramente, tomando para si como um modo de vida consensual entre os
praticantes, independente de condição sexual ou identidade de gênero.
A partir de uma levantamento bibliográfico com abordagem psicanalítica,
pretendemos inscrever o projeto nas produções do campo da psicologia e ciências sociais,
para com isso incentivar futuros pesquisadores a produzirem trabalhos relacionados ao
tema e até mesmo outros olhares para o mesmo, já que sexo ainda é encarado com tabu
para alguns profissionais e também pelo meio social.
Sendo assim a presente pesquisa tem como objetivo apresentar como se dá o
desenvolvimento infantil, analisando suas etapas e contribuições acerca das relações
BDSM – tendo como pontos de estudos algumas práticas, também discutiremos a teoria
das pulsões e suas implicações na relação a partir do sujeito com os objetos.
Esta escolha foi feita a partir de nossa inquietação aos estudos de sexualidade e
comportamento humano, principalmente sobre BDSM – visto que tais práticas mesmo não
sendo consideradas não convencionais pela sociedade, desperta em muitos o desejo sexual.
Temos como inquietação e principal ponto de estudo nesse trabalho a pergunta: Como se
dá a sexualidade e o gozo a partir das relações inseridas no BDSM?

METODOLOGIA
O método de pesquisa escolhido para este trabalho, foi embasado em análise
bibliográfica a partir de buscas na plataforma Scielo com análise de artigos, assim como
estudo de livros, se utilizando de escritos de alguns autores referenciados que se implicam
na discussão de temas relacionados a sexualidade, utilizando como critério a busca pela
temática BDSM. Como bem cita Gil (2009):
A pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado,
constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos
os estudos seja exigido algum tipo de trabalho dessa natureza, há pesquisas
desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas [...] (GIL, 2009, p.
44)

Se tratando de uma pesquisa descritiva, pois, segundo colaborações de Gil (2009),


são pesquisas cujo objetivo fundamental é descrever características de estabelecida
população ou fenômeno, bem como as causas que contribuem para integração dos mesmos,
que no caso seriam as categorias sexuais englobadas no BDSM, que envolve variadas
maneiras de sentir prazer, seja ela sexual ou não, tendo como ponto principal a dor, o gozo
através da dor.
Essas pesquisas têm como preocupação central identificar os fatores que
determinam ou que contribuem para a ocorrência dos fenômenos. Esse é o tipo
de pesquisa que mais aprofunda o conhecimento da realidade, porque explica a
razão, o porquê das coisas. Por isso mesmo, é o tipo mais complexo e delicado,
já que o risco de cometer erros aumenta consideravelmente (GIL, 2009, p. 42)

Buscando, portanto, explicar os fatores motivadores de tais atividades,


encontrando barreiras no percurso da pesquisa por se tratar de uma pesquisa a indivíduos
de difícil acesso, devido a exposição de ações tidas como desviantes no meio social.
Um dos pressupostos básicos de nossa pesquisa é a psicanálise, que atravessará
toda a temática do BDSM, buscando explicar as motivações psíquicas inconscientes que
estruturam e organizam essas relações.

DESENVOLVIMENTO
A sigla BDSM é um acrônimo que engloba várias práticas sexuais do individuo,
sendo as mais principais: B e D para Bondage e Disciplina – onde esta primeira palavra
designa o ato de amarrar ou imobilizar o parceiro, através de cordas, algemas, ou qualquer
outro material que deixe a pessoa presa a algo – tal ato é feito para que esta pessoa está
imobilizada chegue ao prazer/gozo a partir do desconforto que lhe é causado, visto que as
amarrações são feitas em lugares estratégicos do corpo para garantir a segurança desta. Em
seguida temos a disciplina, ato de disciplinar o/a submisso/submissa a partir de várias
práticas que podem ser desde o bondage até outras como as relações D/s. Em segundo
momento temos o par D e S para Dominação e Submissão, para estes entendemos como
sendo as relações em que casais (ou não) vivem dentro do meio BDSM; é interessante
frisar aqui que os papeis de dominação ou submissão não estão ligados ao sexo biológico,
mas como a pessoa se sente no meio, podendo então um homem ser dominador ou
submisso e uma mulher ser dominadora ou submissa, outro ponto interessante aqui é que a
orientação sexual também não é um fator determinante nas práticas sadomasoquistas, visto
que podemos ver um homem hetero tendo uma relação D/s com outro homem, seja ele
hetero ou não – isso é possível porque no meio BDSM o prazer sexual se dá através de
várias formas e não apenas no ato de penetração dos órgãos sexuais. Por fim temos o par S
e M para Sadismo e Masoquismo ou Sadomasoquismo; para estes entendemos como as
práticas em que ambas as pessoas terão o prazer e gozo sexual a partir da dor, onde o
masoquista sente prazer em sentir dor e o sádico em infligir dor, ou também o
sadomasoquista que sente prazer em ambas as coisas.
É valido colocar também que há muitas outras práticas englobadas no BDSDM
que podem ser inseridas em uma dessas letras e que para que tais práticas seja possível de
se realizar é preciso ter consensualidade entre os praticantes. Vale salientar também que
nem sempre envolve dor ou muito menos penetração (FREITAS, 2010).
Para que haja essa consensualidade entre o dominador e o submisso, há também
um acordo de designação de uma palavra de segurança, a safeword, que indica o limite de
cada pessoa, que deve ser acionada quando o parceiro ou parceira realizar algo que o outro
não concorde, dessa maneira o outro não persistirá (ZILLI, 2007).
Através de algumas definições básicas o discurso BDSM busca esclarecer que
tipos de comportamentos estão em jogo quando se faz referência às atividades
que ele representa. Para isso constrói-se a ideia de um conjunto de práticas de
cunho sexual e consentidas entre os participantes. O consentimento é a noção
mais elementar do BDSM. Ele limita o universo de que se fala, de forma que
todas as considerações sobre modalidade de práticas e relacionamentos BDSM
subentendem que são atividades consentidas. Ou seja, que não há violação nem
abuso reais daqueles envolvidos. O consentimento separa o BDSM da
criminalidade (ZILLI, 2007, p. 62)

É a partir desta fala que conseguimos fazer uma diferenciação entre o sadismo
praticado no BDSM e o sadismo praticado nos romances do Marquês de Sade. Temos o
primeiro como a busca do prazer através da dor, dor esta que é proporcionada a partir de
práticas consensuais e aprovadas por ambas as partes, do outro lado temos os romances do
Marquês que tinham como principal objetivo o gozo a partir da dor e sofrimento do outro,
logo não se caracteriza como BDSM por não está englobado na consensualidade.

BDSM, um breve conceito histórico


É difícil chagar a um conceito definido de quando e como surgiu as práticas do
BDSM, visto que este é um campo ainda pouco explorado das ciências sociais. Tal
escassez de conteúdo se dá como falado antes do receio ou até preconceito em se falar de
temas que envolvam sexualidade, principalmente estes que tem como base principal o gozo
através de práticas tidas como não convencionais.
Sendo assim, temos como primeiras fontes e registros sobre a história do BDSM a
revista London Life, que tinha em suas páginas alguns conteúdos fetichistas, ela foi
fundada em 1918 e era semanal. Nesse período as roupas eram os elementos mais
presentes em suas páginas, evidenciando o fetiche por roupas e adereços parecidos.
Mas vai ser apenas com o final da segunda guerra mundial que o BDSM vai
ganhar mais força e notoriedade. Com a chegada dos militares da guerra foram se criando
aos poucos grupos de motoqueiros, estes tinham entre si relações homossexuais, tinham
como vestimenta oficial o couro e suas relações sexuais estavam englobadas no S&M. por
isso hoje em dia podemos afirmar que a bandeira do BDSM seja o couro, pois os primeiros
registros de seus fetiches sexuais vão ser as roupas, em especifico o couro.
Sobre esse ponto acima podemos levar em questão mais dois pontos importantes
para discussão do BDSM, primeiro que estes fetiches vão nascer exclusivamente na cena
gay americana, logo seria uma alvo de preconceito ainda maior, visto que na época a
repressão contra a comunidade gay era muito forte e ainda tinha uma tentativa de cura
dessas pessoas, em segundo momento percebemos que estas práticas eram chamadas
apenas de S&M – pois não se tinham ainda tantas práticas como temos hoje.
Mas o B e D do acrônimo não vai ser inserido apenas para colocar em questão as
outras práticas, mas como uma forma de algumas pessoas do meio tentarem se sair da
questão de patologia. Pois quando o psiquiatra Richard Krafft-Ebing fez um estudo das
consideradas ―aberrações sexuais‖, colocou em seu livro psicopatia sexual os termos
sadismo e masoquismo o os definiu como doenças a serem tratadas.
Logo, qualquer pessoa que praticasse o S&M na época era considerado como um
doente que precisava ser tratado, nos piores casos a pessoa poderia ser até considerada
como um psicopata em potencial. Então o B e D veio tanto para acrescentar essas outras
práticas que antes não eram consideradas do meio e também para tentar livrar seus
praticantes da associação a patologia, a perversidade.
O FETICHE A PARTIR DE FREUD
Acerca da temática fetichista, Freud (1905) aponta que oi objeto normal é
deslocado para outro que, de certa maneira, tem uma semelhança com o primeiro, mas que
não é próprio para atender ao alvo sexual normal. É substituído costumeiramente por
alguma parte do corpo pouco idealizada para fins sexuais. Ou até mesmo a um objeto que
possui alguma relação com a pessoa substituída. O que também pode levar o deslocamento
do objeto pelo fetiche seria a ligação simbólica de concepções, que muitas vezes não é
pertencente ao campo consciente para o sujeito.
Em suas variações o submisso, que na maioria das vezes pode se tornar escravo
do dominador, é disciplinado a cumprir punições atribuídas pelo ―dono‖, que variam dentre
o estilo BDSM. A partir dessa ótica, é interessante citar alguns fetiches que estão
englobados no contexto BDSM, como o bondage, Spanking, infantilismo, cropofilia,
dentre outros, que apesar de fetichistas utilizarem essas práticas casualmente em relações
denominadas ―baunilhas‖, que seria o sexo tido como comum, suas origens são tidas como
fetiches específicos próprios do BDSM.
Neste aspecto, não podemos deixar de citar a definição que Stoller (2014) traz
sobre o conceito de perversão enquanto forma erótica do ódio, ou seja, uma fantasia
produzida ocasionalmente ao longo da vida do sujeito, provocada por terceiros. Define
perversão também enquanto aberração comum, por vezes necessária geradora de repleta
satisfação, motivada principalmente pela hostilidade.
[...] Por ―hostilidade‖ eu me refiro a um estudo em que alguém deseja danificar
um objeto – o que a torna diferente da agressividade que, wm geral, implica
apenas o uso da força. A hostilidade, na perversão, toma a forma de uma fantasia
de vingança que se oculta nas ações que a consumam, e que serve para
transformar um trauma de infância em um triunfo de adulto. Para que se produza
o máximo de excitação, a perversão também precisa ser representada como um
ato que envolve algum tipo de perigo (STOLLER, 2014, p. 52)

De certa maneira, a perversão definida pelo autor não enquadra nem patologiza
aos praticantes de sadismo e masoquismo, porém enfatiza que essas práticas se tomam
doentias quando o individuo força o outro, sem consensualidade alguma a realizar
determinada prática sem total consciência e desejo próprio.
Neste aspecto Facchini e Machado (2013), reforçam a ideia de consensualidade
diferenciando as práticas em que o sujeito é forçado a realizar, de práticas consensuais
sexuais, o SSC. Esta sigla significa São, Seguro e Consensual – podemos ver aqui que as
práticas sexuais englobadas no BDSM não partem apenas da consensualidade para ser
consumada, mas também da sanidade de ambas as partes, logo não é comum ver o
consumo de bebidas ou qualquer outra droga que altere a consciências dos praticantes, e
também a segurança – é preciso sabe o que está se fazendo e com quem vai fazer para que
ambas as partes aproveitem ao máximo.
Para melhor compreensão das relações BDSM, uma vez que elas tratem de
submissão, sadismo, dor, prazer na dor, entre outros elementos, faz-se importante
compreender, à luz da psicanalise, o processo de construção das representações da vida
sexual e o desenvolvimento sexual do sujeito. Freud (1905) destaca que, no período da
infância as fases libidinais infantis e suas zonas erógenas, enquanto fontes de prazer
sexual, de inicio tem a intenção de nutrição através do chucar na fase oral e posteriormente
a prática desse chucar torna-se inteiramente fonte de prazer, que no autoerotismo a criança
suga outras partes do próprio corpo, podendo se prolongar na vida adulta ao buscar repetir
a satisfação obtida na fase oral, através deum alvo sexual externo na vida adulta. Tal como
a zona dos lábios, a zona anal também possui papel importante e significante na formação
sexual infantil, de maneira que algumas crianças na fase anal retêm as fezes até que o
acumulo das mesmas provoca fortes contrações que ao passar pelo ânus, podem provocar
sensações prazerosas e ao mesmo tempo dolorosas.
Nos dizeres de Poli (2007), esses acontecimentos de fixação e regressão nas fases
oral e anal, ocupam uma posição de contribuição no desenvolvimento do individuo,
podendo resultar não somente na vida adulta, em comportamentos masoquistas ou até
mesmo sadistas, visto que a criança ao ―negar‖ presentear a mãe com as fezes, está de certa
maneira manipulando e dominando a situação, obtendo prazer desde o dominar até a dor e
o prazer de eliminar as fezes acumuladas.
Antes de mais nada precisamos entender o conceito de pulsão no sadismo e
masoquismo em que Birman (2016), por exemplo, define que é apenas no fim do sadismo
que o movimento pulsional apresentaria a pretensão de humilhar e dominar o outro, ou até
mesmo de punir o outro com dor, não sendo imperativo no sadismo originário. O que se
deseja é a afirmação da capacidade do ser, que mesmo se sucedendo em violência, não
estaria na procura de castigar o outro com dor ou não e sim uma passagem entre a posição
de masoquista, modificando a posição sádica inicial, pretendendo causar dor no outro
subsequentemente com dor e humilhação. A formação da potencia do ser, pulsão de vida,
seria marcada pela violência, não se pretendendo com isso o aniquilamento do outro, mas
assim a afirmação da potência. Isso vem a acontecer pelo fato de que a pulsão está em
busca unicamente de prazer, tentando dessa maneira diminuir o desprazer através da
afirmação da vida.
Dentre as questões relativas à submissão e masoquismo, Azevedo (2013) aponta
para uma diferença. Para essa autora a submissão difere do masoquismo, pois nem todos os
submissos sentem prazer em apontar e sim apenas em submeter-se ao outro. Ela defende
que, comumente o masoquista completamente submisso o é por, na infância, ter apanhado
muito, transformando, dessa maneira, a dor em prazer, cujas surras eram dadas
principalmente nas nádegas, tendo a formação psicológica formada por estimulo de adultos
repressores, logo culminado na vida adulta em papeis submissos. Evidentemente que a
posição de Azevedo (2013) é um dos elementos contributivos para obtenção de prazer e
para a condição de submissão. Porém não é a única.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos perceber a partir deste estudo que a sexualidade e o BDSM vem sendo
desenvolvido de forma lenta no país de forma a dificultar nosso olhar acerca do tema, além
disso, vemos também uma certa relutância entre os praticantes em ser mais abertos com
relação as práticas e compartilhamento de assuntos.
Chegamos a conclusão de que as práticas sexuais englobadas no BDSM que são
tão demonizadas, podem sim (e devem) ser consideradas normais como qualquer outra,
percebemos isto a partir do estudo da consensualidade entre os praticantes e simpatizantes,
onde nada é feito sem permissão de ambas as partes.
Além disso, pudemos perceber que esses desejos sexuais podem se dar inicio
durante a infância do individuo através de gestos simples que já podem ser um indicativo
do desejo pelas praticas dissidentes.

REFERÊNCIAS
FACCHINI, Regina; MACHADO, Sarah Rossetti. ―Praticamos SM, repudiamos
agressão‖: classificações, redes e organização comunitária em torno do BDSM no contexto
brasileiro. Sex, Salud Soc. (Rio J.), Rio de Janeiro, n. 14, p. 195-228, agosto de 2013.
FERREIRA, Glauco Batista. Produção de sujeitos, sexualidades e mercadorias no BDSM:
as técnicas e os circuitos do SM em San Francisco na etnografia de Margot Weiss. Ver.
Estud. Fem. Florianópolis, v; 22, n. 1, p. 375-380, abril de 2014.
FREITAS, Fátima Regina Almeida de. Bondage, dominação/submissão e
sadomasoquismo: uma etnografia sobre práticas que envolvem prazer e poder em
contextos consensuais. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade
Federal de Goiás, Goiânia, 2012.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Editora
Imago, 1989.
STOLLER, Robert J. Perversão: a forma erótica do ódio. São Paulo: Editora Hedra,
2014.
ZILLI, Bruno Dellacorti. A perversão domesticada: estudo do discurso de legitimação
do BDSM na internet e seu diálogo com a psiquiatria. Disponível em
http://www.academia.edu/796864/A_pervers%C3%A3o_domesticada_Estudo_do_discurso_de_leg
itima%C3%A7%C3%A3o_do_BDSM_na_Internet_e_seu_di%C3%A1logo_com_a_psiquiatria._2
007 acesso em: 18 de março de 2017
MÃES DO CÁRCERE: interfaces entre cárcere, maternidade e condição

feminina

Maria Simone Gonzaga de Oliveiravi


Lorenna Verally Rodrigues dos Santosvi
Joanne Suzanil de Lima Alvesvi

GT: GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS


RESUMO

Este trabalho apresenta parte dos resultados da pesquisa intitulada ―Mães do Cárcere:
olhares sobre o feminino na Colônia Penal Feminina de Buíque/PE‖, realizada ao longo do
ano de 2015. Assim, o presente artigo tem por objetivo apresentar algumas intersecções
construídas sobre o sentido do universo feminino no cárcere, perfazendo o quadro acerca
das condições femininas com base do cotidiano investigado. De abordagem qualitativa,
esta pesquisa articula algumas categorias analíticas extraídas da investigação a partir da
técnica de Análise do Conteúdo (BARDIN, 2007). Os resultados apresentados neste estudo
indicam que o estabelecimento prisional estudado nega e/ou exclui a condição do ser
mulher‖ no cárcere por meio de processos que a despersonalizam e que subalternizam seus
direitos. Conclui-se que a mulher/mãe ao ser encarcerada não são observadas as
peculiaridades do universo feminino, especificamente o estado gestacional.

Palavras-chave: Cárcere. Mulher. Maternidade.

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa desenvolvida ao longo do ano
de 2015 na Colônia Penal Feminina de Buíque/PE (CPFB), a qual teve como objetivo
investigar sobre a realidade e os desafios de ser mulher e exercer a maternidade no cárcere.
O presente artigo tem como problemática: Quais as experiências relacionadas com
a expectativa e a realidade do exercício da maternidade e a condição de ser mulher na
CPFB? Ainda tem como objetivo geral analisar o cenário em que é vivenciada a
maternidade e a condição de ser mulher na CPFB. Quanto aos objetivos específicos tem-se:
a) Demonstrar os desafios de vivenciar a maternidade no cárcere; b) Analisar as
intersecções entre maternidade e cárcere, sob a perspectiva de gênero; c) Identificar o
cenário de graves violações de direitos da mulher mãe em situação de cárcere.
Com relação à metodologia utilizada para nossa pesquisa determinamos os
seguintes métodos:
Tipo de pesquisa seguiu a perspectiva exploratória e explicativa. Exploratória por
se tratar de uma pesquisa bem especifica, podemos dizer que ela assume a forma de um
estudo de caso, sempre em consonância com outras fontes que darão base ao assunto
abordado. No entanto, é explicativa devida, esta aprofunda o conhecimento de uma
realidade.
Quanto à abordagem adotamos para esta pesquisa o método qualitativo. Com
relação à abordagem qualitativa, Richardson (1999, p. 80), expõe que:
Os estudos que empregam uma metodologia qualitativa podem descrever a
complexidade de determinado problema, analisar a interação de certas variáveis,
compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos sociais.

Richardson (1999, p. 82) afirma ainda que ―[...] as pesquisas qualitativas de campo
exploram particularmente as técnicas de observação e entrevistas devido à propriedade
com que esses instrumentos penetram na complexidade de um problema‖
A análise das informações coletadas deu-se a partir da técnica da análise de
conteúdo. Por constituir-se em um estudo no campo qualitativo (GIL, 2008), a análise das
informações mapeadas orientou-se com base em descritores que surgiram ao longo das
reflexões e da coleta de informações. Estes descritores possibilitarão a organização dos
dados em categorias temáticas (BARDIN, 2007).
A Análise de Conteúdo permite compreender e evidenciar indicadores não
expressos explicitamente. Assim, a análise não se resumiu a descrição (enumeração das
características sobre algo) e nem da interpretação (a significação concedida a essas
particularidades), mas a um procedimento intermediário que permitiu a passagem, explícita
e organizada, em referenciais teóricos, da descrição à interpretação. Afinal, a análise de
conteúdo, quando trabalha com a palavra, permite produzir importantes inferências no
conteúdo (BARDIN, 2007).
A escolha do tema deu-se pelo interesse de entender como um ambiente frio,
solitário, que tem como função punir mulheres que cometeram crimes, mistura-se com o
sublime sentimento da maternidade.
A contribuição acadêmica dessa pesquisa, dar-se pelo fato de existirem poucas
publicações com o tema, cada vez mais o número de mulheres em presídios vem
aumentando, algumas Leis surgem com o intuito de melhorar a organização prisional, mas
na realidade estas Leis não têm eficácia.
Contudo, faz-se necessário um debate no meio acadêmico sobre o tema,
mostrando a realidade das mães e filhos que vivem em estabelecimentos prisionais,
fazendo com que os pesquisadores voltem seus olhos para essa realidade.
Ainda em análise sobre a justificativa do tema, observa-se que, para a sociedade, é
de fundamental importância o estudo em questão, pois o Brasil é um país de muitas Leis,
porém muitas delas pendentes de efetividades, considerando a ausência do cumprimento
das Leis, afeta a função social da pena.
Para a sociedade o Estado está cumprindo seu papel, ao retirar das ruas a mulher
que cometeu crime, entretanto, há de se dá uma resposta a sociedade no sentido de
demonstrar se, de fato, essas mulheres recebem do Estado a efetivação de seus direitos.
Nesse diapasão, conclui-se a pertinência do presente trabalho, diante da efetiva
demonstração de cabimento de sua análise, na sociedade atual.
DESENVOLVIMENTO

Desafios à maternidade no cárcere


O artigo 5º da Constituição Federal proporciona às presidiárias condições para que
possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação. A Lei de
Execuções Penais-LEP (BRASIL, 1984), determina que os estabelecimentos penais
femininos disponham de berçário e creche para abrigar as crianças com até 7 anos de
idade, ratificando essa legislação entra em vigor em 28 de maio de 2009 a Lei 11.942.
Embora existam todas essas Leis no papel, na prática ainda é bem diferente, exercer
o que está expresso. Ainda é complicado e difícil, como destaca Santos:
Há hoje uma consciência maior da importância dos direitos humanos, um valor
vinculado à própria democracia. No entanto, constata-se um fato inquestionável:
quando estes direitos dizem respeito a presos esbarram no preconceito de uma
sociedade que os estigmatiza. Dita mentalidade precisa, porém ser modificada,
na certeza de que a assistência ao encarcerado não se confunde com
paternalismo: é uma questão de lógica e bom-senso. (2002, p. 5)

A mulher é vista em nossa sociedade como a referência familiar, quando esta


delinque e encontra-se presa, passa a ser descriminalizada tanto pela própria família, como
dentro do presídio. A sociedade não admite que a figura feminina doce e materna,
transgrida. A imagem feminina de docilidade e ternura em oposição à figura da mulher
relacionada à transgressão das regras sociais, tornando-as até masculinizadas, como
descreve o autor:
Todas as normas de comportamento – a maneira de se portar no refeitório, de se
vestir, de pentear-se e falar – indicam adestramentos pautados em um ―dever ser‖
feminino, que preza pelos ―bons modos‖ e pela decência que simbolizam a
―mulher honesta‖. Os condicionamentos trabalhavam os ―excessos‖ de modo a
equilibrar características extremadas, para que as detentas não fossem nem muito
femininas, nem pouco femininas; nem escandalosas, nem apáticas; nem muito
vaidosas, nem desarrumadas (ANGOTTI, 2012, p. 265)

Com relação às mulheres grávidas no estabelecimento prisional, a invisibilidade


para a atual condição desta mulher é notória, a maternidade na prisão envolve vários
fatores que vão da estrutura do estabelecimento às políticas públicas oferecidas para elas.
Neste momento as mães descobrem outra forma de criação de seus filhos, a mulher
passa a exercer o que é denominado de ―hipermaternidade‖ ou seja, passa a ser mãe em
estágio integral, não podendo trabalhar ou estudar o que implica na sua não remição
(BRAGA, 2015).

A relação mãe e filho começa ainda na gestação, podendo ter interferência pelo
ambiente em que a mãe se encontra. Pois, dentro da prisão a mãe não tem autonomia da
maternidade tem que aprender a como criar um filho dentro dos limites e regras
estabelecidas. Mães e filhos devem receber tratamento adequado e especial pois a mulher
no estado gestacional e de amamentação encontra-se em uma situação singular, ocupando
posição diferenciada das demais.
Stella (2006, p. 97) refere que: ―as acomodações para mães e bebês estão longe de
serem luxuosas.‖ A autora defende que o desenvolvimento da criança pode ser afetado pela
dificuldade de envolver criança e cuidadora em atividades, e quando há um ambiente
impróprio para uma criança, que não ofereça meios adequados de locomoção nem objetos
que possam ser usados em atividades espontâneas
Um ponto delicado que a Lei não expressa é o momento da separação, pois mesmo
existindo uma legislação no país não é explícito o momento que mãe e filho devem ser
separados, dependendo da legislação interna do presídio. Normalmente, passados os 6
meses iniciais mães e filhos são separados sem nenhum preparo, aquela mulher que antes
dedicava-se integralmente a maternidade, têm seu filho arrancado de forma cruel. Neste
sentido Kalus, Kennel e Klaus (2000), dispõem: ―o processo emocional que os pais
constroem com seu filho é formado pelas experiências do dia a dia, onde nasce o apego de
ambas as partes‖.
É importante que esse processo de separação decorra de forma gradativa, sempre
levando em consideração o melhor interesse da criança, para que mãe e filho não sofram de
forma brusca com a separação.
Ressalte-se, que o período de amamentação não é, apenas, o momento em que mãe
amamenta seu filho, mas, sim, equivale à todo o período em que a criança precisa de leite
materno. Nesse sentido, Silva:
[...]Mas a cláusula, por outro lado, é condicionada ao período de amamentação.
―Período‖ não no sentido de hora de amamentação, mas do tempo durante o qual
a criança depende do aleitamento, o tempo em que a criança necessita nutrir-se
do leite materno, total ou parcialmente. [...] Mas as autoridades públicas não
podem interferir nesse período [...].(2009, p. 152)

Contudo, não restam dúvidas, que o aleitamento materno é um direito intrínseco da


mãe e do seu filho, por isso, o momento da separação deve ser pensado muito antes do dia
da saída da criança do presídio.
Mas, infelizmente não é o que acontece no Brasil, como a Lei não determina o
prazo de saída da criança, cada estabelecimento prisional determina o critério para o ato da
separação, a administração de cada presídio decide o momento da separação.
Quanto ao momento da separação não há um consenso a respeito do momento ideal
para separação entre a criança e a mãe encarcerada, haja vista, as peculiaridades de cada
caso. Existem mães que amamentam, existem crianças que têm família e existem ainda
aquelas crianças que vão para abrigos.
Corroborando, toda mulher tem o direito de amamentar o filho, mas as condições
de muitos estabelecimentos prisionais não contribuem nem para a amamentação muito
menos para o convívio, as más condições contribuem muitas vezes para que as mães
entreguem seus filhos para familiares, o que dentro dos presídios denomina-se de
maternidade transferida.
Contudo, pode-se perceber que existe um grande desafio em ser mãe no cárcere, as
dificuldades que atravessam o caminho da concretização dos direitos são inúmeros, a
mulher é inferiorizada, invisível. Mesmo existindo Leis que garantam direitos a essas
mulheres, muitos deles não são colocados em prática, as mulheres não exercitam seus
direitos de forma plena.

Intersecções entre cárcere e maternidade a partir de uma perspectiva de gênero;

Neste tópico iremos debater de forma intercalada maternidade e cárcere sob uma
ótica de gênero, que nos levará a examinar questões relativas ao padrão esperado de uma
mulher pela sociedade, da dupla punição que ela sofre ao delinquir e como o Estado
recebe essas mulheres nos estabelecimentos prisionais. Dando ênfase, ao momento da
mulher gestante, e àquelas que se encontram com seus filhos nos estabelecimentos
prisionais.
As mulheres têm um histórico de lutas pelo reconhecimento como sujeitos de
direitos. Mesmo com todo o avanço do século XX alguns fatores sociais ainda impedem
que homens e mulheres sejam vistos de formas iguais. Mesmo sendo um princípio
expresso, a igualdade entre os sexos ainda não é enxergada, havendo discriminação,
muitas vezes disfarçada em relação a mulher. Delas se espera que sejam femininas, isto é,
sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas e até mesmo apagadas
(BOURDIEU, 2002).
Entretanto, sobre a mulher estão os olhos da moralidade, entre elas a questão de
gênero. A mulher é estigmatizada, marcada pela fragilidade, nasce para ser uma boa filha,
mãe, o exemplo do lar, enquanto o homem é designado o poder, ao ser que está acima da
mulher na sociedade.
A construção dos gêneros se dá através da dinâmica das relações sociais. Os seres
humanos só se constroem como tal em relação com os outros. Saffioti (1992, p. 210)
considera que:
Não se trata de perceber apenas corpos que entram em relação com outro. É a
totalidade formada pelo corpo, pelo intelecto, pela emoção, pelo caráter do EU,
que entra em relação com o outro. Cada ser humano é a história de suas relações
sociais, perpassadas por antagonismos e contradições de gênero, classe,
raça/etnia.

Contudo, percebe-se que gênero deve ser compreendido como a maneira de


produzir, através da cultura, as diversidades biológicas, bem como se da os tratos do
poder social (NETO; GURGEL, 2014). O que os autores procuram esclarecer é que, o
gênero não significa a diferença biológica entre homem e mulher, vai além disso, pois
trata-se da diferença cultural que foi constituída entre ambos. Vejamos:
Entender o gênero como uma construção cultural, implica superar os binarismos
baseados no sexo, isto é, nas diferenças físicas e biológicas entre macho e fêmea,
que opõem o feminino ao masculino, geralmente não em um plano de igualdade,
mas sim em uma ordem de hierarquia. (NETO; GURGEL apud SCOTT, 2000, p.
13).

Mesmo com todos os avanços durante os tempos, delinquir tem seu preço, o
indivíduo é punido e paga pelo delito cometido. O que não mudou muito foi o local em
que se cumpre a pena, haja vista que o problema do Sistema Penitenciário Nacional, está
na superlotação e nas violações de direitos, cometidas diariamente dentro dos presídios.
Tratando-se do universo carcerário destaca-se:
O sistema carcerário não foi pensado para as mulheres até porque o sistema de
controle dirigido exclusivamente ao sexo feminino sempre se deu na esfera
privada sob o domínio patriarcal que via na violência contra a mulher a forma de
garantir o controle masculino (RAMOS, 2011, p. 12).

A mulher encarcerada no Brasil é desrespeitada, não é vista a sua condição de


mulher, o crime prevalece a todo momento. Encaminhada para um ambiente totalmente
opressor, propício a violação de direitos, a mulher perde, quase que integralmente, os
vínculos sociais.
As mulheres são tratadas como se homem fossem, o sofrimento das mulheres
encarceradas passa a ser invisível, onde impera uma total violação de direitos,
principalmente no que se refere à dignidade da pessoa humana, onde não se encontra o
básico para que as mulheres tenham o mínimo de dignidade, a inexistência de produtos
para saúde feminina, como consultas com ginecologista ou mesmo assistência social,
dentre outros.
Mesmo nos dias atuais, a mulher é tido o perfil da cuidadora do lar, da mãe de
família, não se espera que ela venha a delinquir, pois vivemos em uma sociedade
patriarcal, onde as Leis são feitas por homens e aplicadas por eles, muitas vezes com
interpretações machistas se distanciando tanto delas.
we cannot predict the outcome of any individual law reform. Indeed, the main
dilemma for any feminist engagement with law is the certain knowledge that,
once enacted, legislation is in the hands of individuals and agencies far removed
from the values and politics of the women s movement.6 (SMART, 1989, p.
164).

Até a concepção de que mulheres delinquem menos é equivocada, inclusive


machista, como se a mulher tivesse menos capacidade inclusive para delinquir, pois desde
que a mulher nasce atuam sobre ela vários controles informais. O direito penal, assume
uma proteção a tutela da mulher vulnerável, que aumentam ainda mais, a discriminação
que a mulher carrega desde sempre para a sociedade.
Segundo Larrauri (1994, p. 76), o Direito Penal pode apenas conceder um auxílio
de forma secundária, que faz com que as mulheres que o procuram não se sintam de fato
acolhidas, pois as diferenças na relação de poder e a desigualdade, onde de fato, contata-se
que o direito penal reforça por muitas vezes a desigualdade de gênero.
Com relação à visita íntima e social o tema dar-se-á sobre uma concepção de
gênero, haja vista, a disparidade entre as visitas para homens e mulheres encarceradas,
determinada diferença é diagnosticada nos dias de visitação. Muitas mulheres são
abandonadas pelos companheiros no momento da prisão ou estes já se encontram presos,
mulheres não abandonam o homem quando preso, o que não acontece em favor delas.
O abandono também acontece pela própria família, o preconceito de ter uma filha,
uma irmã, uma mãe presa é enorme, já as famílias quem têm o desejo da visita, residem
geralmente em cidade diversa do presídio e a falta de condição financeira para a viagem
atrapalha.

Cotidiano e Trajetórias de Vidas na Colônia Penal Feminina de Buíque/PE

A pesquisa foi realizada na Colônia Penal Feminina de Buíque (CPFB), com


Gestantes, lactantes, mulheres que tiveram seus filhos na Colônia e estes já se encontram
com outros familiares e por último com a Chefia Executiva da Colônia.
Buscou-se estudar o cotidiano das mães e filhos, percebendo que contornos
possuem a maternidade no cárcere, e de que maneira maternidade, a condição de ser
mulher e a prisão, são exercidas.
Características das mães encarceradas
Nesse tópico, vamos discutir sobre as características das mães que foram
entrevistadas para a pesquisa. Primeiramente, nós iremos tratar sobre a característica
relacionada a média de idade, foram entrevistadas 11 mulheres, entre elas 2 gestantes, 6
lactantes e 3 que já entregaram seus filhos para suas respectivas famílias, essas mães
possuem entre 18 e 31 anos de idade. Com relação a característica da cor da pele, apenas 4
são brancas e 7 são negras.
Outro dado relevante, é que apenas 2 destas mulheres são mães pela primeira vez,
as demais possuem outros filhos que encontram-se fora da Colônia Penal Feminina de
Buíque – CPFB.
Como relatam dos sujeitos da pesquisa em suas falas:

Tenho mais duas meninas e um menino, estão com minha mãe e irmã
(Entrevistada nº 06)
Tenho uma menina de um ano e quatro meses, mora com minha mãe (Entrevista
nº 03)

Pelas repostas coletadas fica evidenciado o quão comum é entre as mães


entrevistadas, terem sido mães jovens e terem muitos filhos, percebe-se que não há um
cuidado para se evitar a gravidez.
Sobre o grau de escolaridade, 1 (uma) é analfabeta, 3 (três) possuem ensino
fundamental incompleto e 7 (sete) ensino médio incompleto. Quanto a continuidade dos
estudos, apenas 3 das entrevistadas estudam na escola que funciona dentro da CPFB.
No que se refere a profissão dos sujeitos entrevistados, 1 (uma) se diz agricultora, e
as demais do lar, 4 (quatro) dizem que nunca trabalharam, e todas sobrevivem apenas do
programa de transferência de renda Bolsa Família.
Como relatam as entrevistadas:

“Tenho seis filhos, não tenho paciência pra estudo, aqui eu também não
trabalho, aqui é muito difícil”. (Entrevistada nº 09)
“Tenho dois filhos, minha mãe veio na visita e a assistente social deu o papel
com meu nome pra ela ajeitar meu bolsa família e ficar recebendo meu bolsa
família” (Entrevistada nº 02)

A partir dessas respostas, percebemos que a condição econômica e de


vulnerabilidade que encontram-se essas mulheres é extrema. Pois, possuem muitos filhos,
não têm nível de escolaridade para conseguirem um uma renda, e assim sobreviverem
dignamente.
Neste sentido dispõe o autor que a situação econômica e o grau de escolaridade
interfere na criminalidade feminina conforme traz Mello apud Dutra, (2012, p.10):
O comércio ilegal de drogas não exige técnica ou qualificação, até porque se
estas mulheres tivessem tais possibilidades, a probabilidade era de não estarem
incluídas nesta estatística da marginalidade. Vender drogas não requer idade, ou
seja, podem ser recrutadas mulheres novas ou de idade bem avançada, realmente
é um mercado onde o fator idade elevada, não prova a exclusão para o trabalho
como ocorre no mercado formal, ou onde a tenra idade, não importa para fins
trabalhistas, surgindo como possibilidade de auferir renda.

Essas mulheres, geralmente não são viciadas em drogas, entram nesse tipo de vida
ligadas pelo elo emocional com algum parente ou até mesmo o companheiro. As mães
entrevistadas em sua grande maioria tinham como companheiros, homens que já viviam no
mundo das drogas, sejam como traficantes ou usuários.
Os delitos cometidos pelas mães entrevistadas dividem-se em, um homicídio: uma
receptação e os demais tráfico, com outro dado relevante, apenas duas mães das que foram
detidas por tráfico não estavam levando a droga para o companheiro no presídio.
“Não dei sorte, fui levar pra meu marido, mas na hora de passar pela revista eu
caí de lá já vim direto pra cá, hoje ta nós dois preso” (Entrevistada nº 02)
“Cheguei pra visitar meu marido grávida, passei pela revista a agente fez o
toque em mim e não encontrou nada, quando eu estava na cela com ele, eles
(agentes)chegaram falando que tinham recebido uma denúncia, e encontraram
maconha no bolso dele, fui tirada da cela e a agente disse que me revistou e fez
o toque e não achou nada, mas não teve jeito e eu desci pra cá” (Entrevistada nº
04)

O que é muito comum acontecer como dispõe Costa, (2008, p. 26):

Observamos que a mulher traficante quando vende, guarda ou transporta a droga


para dentro de um presídio, por exemplo, não o faz somente porque passa por
dificuldades financeiras e tem no tráfico um meio de subsistência, mas, em
muitos casos, porque tenta dar provas de seu afeto ao companheiro, tio ou irmão.

A mulher quase nunca abandona seu companheiro quando este é preso, e sempre
vai à visita e nessas idas acaba cedendo e levando droga para seu companheiro o que
acarreta muitas vezes em sua prisão.
Vale salientar, que o papel da mulher no tráfico é subsidiário a elas é destinado um
papel inferior, tido como ―mula‖, a que leva a droga ao presídio ou aviãozinho aquela que
vende pequenas quantidades. Estando este fato muitas vezes ligado pelo afeto,
principalmente no que se refere aos companheiros dessas mulheres, e vêm suas vidas
transformadas maneira drástica.
A partir das indagações e respostas dos sujeitos entrevistados nesta categoria, fica
evidenciado que a condição econômica dessas mulheres é extremamente baixa, que a
educação escolar oferecida para elas dentro da CPFB, não tem nenhum atrativo.

Filho como apoio emocional para mãe


Nesta categoria iremos analisar como o filho é importante para esta mãe, como a
presença do filho acalma, e traz para essa mulher o sentido de responsabilidade, como ele
representa a família desta mulher.
Pois, criar uma criança no ambiente prisional não é tarefa fácil pois, muitas dessas
mães ao serem separadas de seus filhos que já tinham antes de serem presas, estabelece
com essa nova criança um vínculo emocional muito grande, pois ela passa a ser a
lembrança dos filhos que estão longe.
Como relata muito emocionada a entrevistada nª 06 que está gestante:
“Tenho mais 3 filhos, 2 meninas e 1 menino esse é outro menino, vou ficar com ele
o tempo que eu puder aqui pra me fazer companhia, é muito difícil esse lugar e a
pessoa sozinha, pior ainda”

A fala da entrevistada acima, evidencia um sentimento de solidão, enquanto presas,


essas mulheres não têm domínio sobre suas próprias vidas, o Estado que disciplina como
elas e os filhos devem viver, estabelecendo regras principalmente no que diz respeito a
criação das crianças que estão diretamente sobre a tutela do Estado conjuntamente com sua
genitora.
Há um choque entre os direitos das crianças em viver em liberdade e os das mães
de viverem com seus filhos. Fica evidente na fala das mães o apoio proporcionado pela
presença dos filhos.
―Em casa eu sei que é melhor pra ele, mas aqui ele é minha companhia, tenho
que me conformar, é melhor pra o filho da gente lá fora mesmo, é mesmo que me
matar pensar nele indo embora, vai ser muito triste, mas mãe vai tomar conta
dele direito” (Entrevista nº04)

A mãe entrevistada é detentora de um sentimento conflitante que há em seu interior,


ao mesmo tempo que tem consciência que o filho terá mais oportunidades fora do
estabelecimento prisional, é uma dor muito grande imaginar o dia que ele vai deixar de ser
sua única companhia.
O convívio entre mãe e filho no ambiente prisional, estabelece na mulher uma
sensação de motivação, de estímulo para o cumprimento da pena, isso faz repensar que
mesmo com prejuízos em criar uma criança no cárcere, também há seus benefícios.

Visita: Uma questão de gênero?


Nesta categoria iremos analisar os aspectos relacionados com a expectativa e a
realidade da visita familiar e da visita íntima, poia a visita traz um revigoramento para
essas mulheres que vivem na solidão, apenas com seu filho, sendo a sua única forma de
referência familiar.
De acordo com entrevista com a Chefia Executiva, a visita familiar, acorre na
CPFB aos domingos de 08:00 às 12:00 entrada e o término às 16:00 horas, cada presa pode
receber até cinco pessoas por visita. Porém nem todas têm o prazer de receberem visitas, o
fato do presídio ser distante da residência de muitas famílias dificulta a visita.
Como demonstra a entrevista nº 07:
“Vi minha menina uma semana antes do dia das mães, ela mora no sítio em
Garanhuns e a gente depende do carro da prefeitura pra vir me ver, sou muito
só aqui, agora que tive menino tenho ele pra me fazer companhia.”
(Entrevistada nº07)
“(Chorando)” É tão bom quando vem gente aqui saber da gente, tô gostando de
conversar com vocês” (Entrevistada nº07)

A fala da entrevista aponta um sentimento de solidão e abandono, este abandono


está ligado a questão financeira da família, que não dispõe de recursos financeiros para
estar todos os domingos na CPFB, é necessário chamar atenção para o local onde funciona
a Colônia, a distância é um fator impeditivo para visita.
Outro relato comum entre as entrevistas que têm companheiro é que o mesmo
encontra-se também preso, como é o caso da entrevistada nº 03: “Meu marido veio me
visitar duas vezes, mas acabou preso também, agora só vem mãe e minha menina de um
ano e quatro meses, uma vez no mês”.
Quando o companheiro é preso, os filhos ficam com suas mães, mas quando a mãe
é presa, e o companheiro encontra-se em liberdade os filhos são entregues a outros
membros da família, raramente o pai assume o papel de guardião da família de responsável
pelo lar.
É necessário chamar atenção para como essas crianças e adolescentes, filhos das
mães presas estão sendo criados, pois geralmente o local onde vivem essas famílias é de
extrema pobreza, deixando essas crianças e adolescentes vulneráveis. No sentido de como
os filhos estão sendo criados encontramos o relato comovente da entrevistada nº 09:
“Tenho seis filhos, e o meu de 15 anos está na FUNASE, foi pego por tráfico
também, saber que ele está ali é a pior dor da minha vida, como deixei ele nesse
mundo?”.

Percebe-se que a entrevistada insere na sua fala o seguinte termo ―Como deixei ele
nesse mundo‖, confirmando o sentimento de culpa por não poder estar ao seu lado,
guiando e orientando, com essa fala a entrevista expõe a dor de saber que o filho encontra-
se também no mundo do tráfico.
Ao entrevistarmos a Chefia Executiva ela nos explicou como funciona e quais
critérios para a visita íntima, ocorre na CPFB, aos sábados das 08:00 às 12:00 a entrada e
às 16:00 a saída, hoje não há mais pernoite, acontece na própria cela, tendo a visita íntima
duração de duas horas, caso haja mais de uma mulher na mesma cela com visita íntima, o
horário será revezado entre elas.
Ressalta-se porém, que mulheres que estão no berçário, ou seja, as gestantes a partir
do sexto mês e as lactantes não têm direito à visita íntima, pois como os encontros são
realizados nas próprias celas e no berçário existem as crianças, elas mães não podem
manter visita íntima.
No entanto, para que possa ser autorizada a visita íntima, alguns aspectos devem ser
respeitados como, a presa deverá passar por exames e o seu companheiro fazer a
carteirinha de acompanhante.
Com relação a visita íntima nos chamou atenção o relato da entrevistada nº 05:

“Todo domingo meu marido traz minha mãe, mas ele espera ela fora da
Colônia, tenho muita vergonha desse lugar, isso aqui é um inferno, já fui muito
humilhada, não desejo isso aqui pra meu pior inimigo”.
“Meu maior desejo aqui é ir pra casa, aqui eu não tenho esse desejo, aqui eu
sou uma mulher morta”.

A fala da entrevistada é reveladora, uma vez que, para ela, o fato de estar presa é
como se ela não tivesse o direito a nada, muito menos de ter desejo, deve ser castigada
mesmo. Isso demonstra o quanto as mulheres se anulam, como não se reconhecem como
mulheres, e não devem sentir desejo.
O critério segundo a Chefia Executiva é o seguinte, quando inicia-se um
relacionamento, comunica-se ao setor psicossocial e passa a contar daquela data seis meses
para o primeiro encontro, caso as presas estejam na mesma cela, estas são separadas.
Durante esse tempo as mulheres passam por exames, após o resultado, precisam de
pareceres da saúde, segurança, psicossocial e por último da chefia executiva da CPFB, só
assim estarão aptas para o primeiro encontro conjugal, que ocorre no mesmo horário dos
demais encontros conjugais, aos sábados.
Esse prazo de seis meses é estabelecido segundo a Chefia Executiva, para que a
troca de parceiras, não seja uma constante na Colônia, pois como muitas nunca
mantiveram relacionamentos homoafetivos, a troca de parceiras as vezes é muito comum
entre as mulheres.
Entre as entrevistadas, precisamente a entrevistada nº 11, mantêm uma relação
homoafetiva e está prestes a ter seu primeiro encontro conjugal: “A gente já fez os exames
e nesses dias vai ser nosso primeiro encontro, é a primeira vez que tenho namoro com
mulher, tô muito bem com ela”
Com a distância da família, e a solidão do cárcere as mulheres desenvolvem o que
elas chama de homossexualidade de momento, na grande maioria estas mulheres quando
saem da prisão voltam a terem relacionamentos heterossexuais.
Contudo, o que percebe-se com os relados obtidos nesta categoria, é que a visita
não é uma constante na vida dessas mulheres privadas de liberdade, a visita familiar em
sua maioria não acontece com frequência devido alguns fatores, como distância da Colônia
e a falta de condições financeiras. Com relação a visita íntima as mães que estão no
berçário não podem manter encontros conjugais, devido ao local em que acontecem, pois
se trata de um berçário.

Condição de ser mãe no cárcere


Nesta categoria iremos analisar um dos aspectos mais importantes da pesquisa, a
condição de ser mãe e mulher no cárcere, como se desenvolve a maternidade em um lugar
feito para punir, como estas mulheres se adaptam a este lugar juntamente com seus filhos e
como a administração prisional compreende este momento da mulher.
A condição delicada da mulher mãe em situação de cárcere começa assim que ela é
presa grávida, ou mesmo quando se desconfia que está grávida. A mulher que entra grávida
de até seis meses na CPFB, vai direto para o pavilhão e fica junto com as demais presas
dividindo o mesmo espaço, não sendo respeitado o seu estado.
Ademais, quando esta engravida na prisão, ou descobre que está grávida, faz o
exame e espera por mais de um mês para saber o resultado, ao ser confirmada a gravidez,
essa mulher fica no pavilhão junto com as demais.
Em conversa com as entrevistadas descobrimos como estas viviam durante a
gestação na CPFB, demonstrando que mesmo grávida prevalece apenas o seu delito, o seu
estado não é respeitado pelo Estado.
“Não sabia que estava grávida quando cheguei aqui, fiz exame demorou muito
tempo pra chegar o resultado. Eu dormia no colchão de solteiro com uma
mulher muito boa, ela era como uma mãe pra mim, (choro), tinha muito cuidado
pra não bater em mim, ela dormia pra cima e eu pra baixo, fiquei lá até 7 mês”
(Entrevistada nº07)

Resta evidenciada na fala da entrevista, o quanto a mulher sofre no ambiente


prisional, mesmo estando grávida, as condições em que se vive não são adequadas para
uma gestante. A fala da mãe corrobora com a ideia de que os presídios foram feitos para
homens.
Indagadas quanto as questões do que o Estado oferta para as mulheres em
estabelecimentos prisionais, ficou constatado que, o Estado não observa o simples fato de
ser mulher, pois, o básico com relação a higiene pessoal da mulher não é ofertado.
Outro fator que afeta a vida dessas mulheres é o momento do nascimento do filho,
esse momento tão sublime para maioria das mulheres, torna-se uma peregrinação para as
gestantes que estão na CPFB. No município de Buíque a falta de estrutura no hospital
impede que sejam realizadas cesarianas, então só as mães que têm seus filhos de maneira
natural parem no município. As demais, que necessitam de uma cesariana são levadas até
as cidades de Arcoverde ou Caruaru.
Além da incerteza, de onde e como terão seus filhos, um problema de segurança
pública afeta essas mulheres na hora do parto, como relata a Chefia Executiva:

“Temos pouco efetivo de maneira geral, e efetivo de mulheres menos ainda, e


durante a custódia nos hospitais, não são aceitos homens, é uma grande
dificuldade pra gente poder administrar essa situação” (Chefia Executiva)

Percebe-se que a questão de segurança pública como também, a questão do sistema


carcerário, não considera o serviço especializado para a mulher.
Ser mãe no ambiente prisional, é ser uma mãe sem autonomia, as regras impostas
pela administração do estabelecimento prisional é que determinam como a criança deve ser
criada. Na CPFB, o prazo estabelecido pela administração para a saída da criança é de no
máximo 6 meses.
Observa-se quem em um lugar que falta tudo, os direitos, tornam-se ―presentes‖, o
ato de levar uma criança doente a um posto de saúde para uma consulta ou até mesmo
levar uma criança para vacinar, para essas mulheres é tido como ato de bondade por parte
da administração prisional.
Quando indagadas sobre se na CPFB há respeitos para com as mães presas, se seus
direitos são respeitados na prisão, vejamos abaixo as frases ditas por elas:

“Sim, tem respeito sim, fazer o que? Aqui é assim, falta tudo, principalmente pra
os bichinhos (filhos)” (Entrevistada nº04)
“Tem respeito sim, aqui é tudo certo com a gente, só é muito difícil, falta muito
as coisas” (Entrevistada nº02)
“É sim respeitada, mas é ruim demais aqui falta tudo” (Entrevistada nº 09)

O que percebe-se é que essas mulheres não fazem ideia do que é respeito e dos
direitos que elas possuem, acham que por terem ido contra as regras da sociedade, têm que
pagar sendo castigadas, como também associam muito o respeito as necessidades básicas
materiais, é o ―ter‖ para serem de fato respeitadas.
Conclui-se nesta categoria, o quanto as condições sub-humanas do espaço, não
atingem o que elas entendem como respeito, dignidade, o exercício da maternidade é feito
sob regras do estabelecimento prisional.

Momento da separação
Nesta categoria iremos analisar um aspecto imprescindível, sobre o tema que
estamos discutindo, o momento da separação entre mães e filhos que vivem em
estabelecimentos prisionais. Nesta categoria iremos relatar a omissão da Lei sobre o tempo
de permanência da criança junto à mãe, e a realidade aplicada na CPFB, sobre quais
aspectos se dá esta separação.
Durante conversa com a Chefia Executiva, na CPFB, ficou evidenciado que
crianças e mães dormem na mesma cama, por motivos sentimentais conforme relato
abaixo:
“Os berços foram abolidos, pois as mães não utilizavam, e é difícil obrigar,
acho que pelo pouco tempo que passam com os filhos preferem dormir
abraçadas a eles”.(Chefia Executiva)

Contudo, durante a entrevista com as mães elas relatam que não é confortável
dormir com seus filhos na mesma cama, como também dividir este espaço que já é
pequeno com outra mãe e outra criança, torna-se um incomodo, haja vista, que se um chora
acorda de imediato a outra criança. Ficando evidente o desconforto na fala abaixo:
É muito ruim dividir a cama, o colchão é muito fino eu tenho dor nas costas
nessa cama de cimento, imagina a bichinha, pequenininha nessa cama, eu fico
bem encolhida pra não bater nela, muito novinha, tenho medo de machucar”
(Entrevistada nº05)

A fala da entrevistada se opõe ao que é dito pela Chefia Executiva, uma vez que o
local onde funciona o berçário, ficaria difícil colocar berços, pois é muito pequeno, para
abrigar móveis e pessoas que se locomovem naquele ambiente.
Com relação ao critério de separação na CPFB, dar-se-á por volta dos seis meses de
vida do bebê, todas as mães entrevistadas sem exceção, falam que é melhor o filho fora da
prisão, mas ao mesmo tempo expressam muito sofrimento ao falarem do momento da
separação com seus filhos. Tanto as que já passaram por este momento como as que estão
perto de vivenciarem este terrível e doloroso dia.
Como expõe abraçada ao filho e chorando, a entrevistada de nº 02:

“Domingo mãe vem buscar ele, não gosto nem de falar, vou ficar muito tempo
sem ver ele, porque mãe não tem dinheiro pra vir me ver, passa seis mês para
vir, acho que ele nem vai mais me conhecer”.

Nesse sentido, podemos observar a dor dessa mulher, que vive a maternidade
integralmente por vinte quatro horas, e de uma hora para outra sem nenhum preparo,
rompe esse laço, a criança é retirada de forma ríspida, causando um sofrimento desmedido
para ambos.
Muito emocionada a entrevistada nº 09 descreve o dia que sua filha foi embora:

“Era dia trinta de dezembro, me agarrei com ela e gritava pra ela não ir, pedi
tanto que deixassem eu passar o ano novo com ela, mas não teve jeito. A menina
foi embora eu chorei tanto, foi uma dor tão grande que eu nunca senti uma coisa
daquela. Vim aqui falar com a senhora, mas não olhei pra o berçário, eu não
gosto de ficar vendo as outras mães com os filhos, eu lembro muito dela, quando
ela foi embora pedi na mesma hora pra subir pra o pavilhão”.

Esse conjunto de sentimentos na fala da entrevista reflete o verdadeiro amor e dor


que se misturam dentro dessas mulheres, conviver vinte quatro horas exercendo a
maternidade durante seis meses e ter que entregar esse filho, com dia e hora marcado é
muito doloroso, fica marcado para sempre na vida dessas mulheres esse dia, como algo
muito ruim que as aconteceu.
O tempo para essas mães é como se fosse um inimigo, um dia a mais é um dia a
menos para ter ao seu lado o filho. Como mães, expressam que com seus familiares estarão
melhor assistidos, porém a saudade fala muito forte, pois são seis meses de total apego,
cuidado, carinho.
Nesta categoria com base nos relatos, fica evidenciado que o momento de
separação é sem dúvida o pior dia dessas mulheres na prisão, haja vista, que este momento
é feito sem nenhum preparo, o laço é rompido de forma brusca, o critério de separação fica
por conta da administração de cada estabelecimento prisional, com isso leva-se em
consideração o que é melhor para a administração prisional e não o que é melhor para
criança.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constata-se que condições em que vivem mães e filhos, contempla um universo
triste, uma realidade comovente, onde fica claro a negação da condição de ser mulher. O
problema percebido, é que o sistema carcerário ao negar as peculiaridades existentes no
mundo feminino comete violações e injustiças perante essas mulheres.
Partindo do princípio da dignidade da pessoa humana, percebe-se que este não faz
parte da rotina das mães e filhos que estão na CPFB. Contudo, mesmo com esforço por
parte da administração prisional da Colônia para adaptar o local para um universo
feminino, tendo em vista, que o prédio foi construído para ser uma cadeia pública
masculina, as condições são desumanas e apresenta situações que levam a entender como
distante está desse princípio ser aplicado.
Quanto ao período de permanência das crianças nos estabelecimentos prisionais, a
legislação trata apenas do período mínimo, que é o da amamentação, já o período máximo
de convivência a legislação é omissa, ficando o critério de separação com a diretoria dos
estabelecimentos prisionais, especificamente na CPFB, o prazo máximo é o de seis meses
de idade, devido à falta de estrutura em acomodar essa criança.
É inquestionável que a convivência entre mães e filhos é de fundamental
importância, principalmente no início da vida da criança, porém em condições dignas de
sobrevivência. Entretanto, mesmo em condições precárias do cárcere, as mães querem seus
filhos por perto, acreditam que eles estão melhor em suas companhias.
Desta forma, conclui-se que mesmo havendo leis que asseguram muitos direitos as
mães com pena privativa de liberdade que convivem com seus filhos no cárcere, elas ainda
estão pendentes de eficácia, como também os legisladores precisam enxergar as
necessidades do ser mulher, que ela tem que ter um tratamento diferenciado.

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construcción cultural de la diferencia sexual. México, Miguél Porruá, 2000.
O ESTIGMA DA LOUCURA: em interface com o campo de gênero

Luanda Ferreira da Silvavi


Claudeni Maria de Limavi
Maria Zenilda Sales Ferreiravi

GT 02 – Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos.

RESUMO
Diante da polarização política e social do nosso país, a qual colocou o Movimento
Feminista e a Luta Antimanicomial novamente em evidência, o artigo busca abordar dois
segmentos historicamente marginalizados trabalhando com as mulheres e com a loucura.
Tendo como proposta central a problematização da interseccionalidade das formas de
opressão pelo gênero, o machismo e pela patologia, a psicofobia. Através de um recorte
sócio-histórico pelos registros da loucura e das mulheres no Ocidente, um tema emergente
diante da tendência de estigmatização aos dois segmentos. Trabalhando ainda, o conceito
de Gaslighting, assim buscando contribuir com a compreensão da violência contra a
mulher para além da violência física. Bem como a promoção de políticas públicas que
levem em consideração a relação de biopoder exercido sobre as mulheres que apresentam
algum transtorno psiquiátrico. Tendo como objetivo problematizar o machismo estrutural e
fomentar o debate sobre a relação de opressão pelo gênero e pela condição psíquica no
campo dos Direitos Humanos.

Palavras-chave: Loucura. Psicofobia. Mulher. Machismo.

INTRODUÇÃO

Além de uma série de preconceitos ainda suscitados em relação à loucura e aos


pacientes de Saúde Mental, as mulheres que sofrem de algum transtorno, ainda são
submetidas ao preconceito atrelado ao gênero. Muitas vezes esse aspecto é ignorado, ou
colocado em segundo plano, mas diante de um recorte sócio-histórico observamos como a
loucura e as mulheres sempre estiveram em um território marginal.
A margem da história, majoritariamente narrada, pelos homens ―sãos‖. Além do
uso do arquétipo da loucura como uma forma de submissão e agressão contra as mulheres,
mesmo as que nunca tiveram nenhuma patologia. A sexualidade feminina é um exemplo da
patologização pelo gênero, já houve tentativas de minimizar sua complexidade atrelando a
mesma o rótulo de mero sintoma histérico.
Diante dessas questões temos como objetivo nos debruçarmos sobre a dupla
estigmatização das mulheres que sofrem de transtorno mental, pelo gênero e pela
patologia. O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa bibliográfica, classificada
como um ―(...) levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios
escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites.‖ (FONSECA,
2002, p. 32).
No primeiro capítulo nos lançaremos pela história da loucura, utilizaremos Foucault
(1997; 1999; 2008), Canguilhem (2009) e Amarante (1995) nessa construção. Já no
segundo capítulo resgataremos a história das Mulheres no Ocidente, além de um breve
recorte da trajetória do Movimento Feminista. Tendo como referenciais, dentre outros,
Laqueur (2001), Badinter (1985) e Beauvoir (1980). Diante desse recorte,
problematizaremos o Gaslightingvi como forma de agressão às mulheres. Para finalizar
trabalharemos a interface das duas formas de estigmatização, psicofobia e machismo na
vida das mulheres acometidas por transtornos mentais, utilizando Zanello; Fiuza e Costa
(2015) e Zanello (2010) como referenciais.

1. A LOUCURA HISTORICIZADA

Historicamente, Foucault (1997) destaca que ocorreu uma ligação entre o


surgimento do hospital e a patologização da loucura. Os hospitais precederam a
patologização da loucura, mas diante do esvaziamento dos mesmos com o recuo da lepra
na Europa, emergiu a necessidade de ocupar esses espaços. Apesar do Hospital já existir no
Oriente desde a Antiguidade, além ter no Ocidente certo lastro histórico, ele não
funcionava como instrumento terapêutico. Mas como um dispositivo de assistência,
Foucault (1999) destaca que apenas no século XVIII o hospital passou a ser uma
ferramenta de caráter terapêutico.
Com o esvaziamento dos leprosários emerge a demanda de ocupação dessas
estruturas, que passou a ser suprida pela população marginalizada da época,
majoritariamente; pobres e loucos. Os loucos como eram menos numerosos tornaram-se o
público ideal para povoar esses hospitais agora ociosos. Nesse sentido, Foucault (1997)
destaca que a lógica de segregação e discriminação presente no ―tratamento‖ dado aos
leprosos, passou a ser repetida na assistência aos loucos. O manicômio nasce assim como
uma reprodução do modelo asilar do leprosário, só ocorreu uma substituição do público-
alvo. O que só acentuou a situação de vulnerabilidade do louco em sociedade, a loucura
que era tida até então como uma manifestação de ordem espiritual ganhará status de
doença sendo delegada à esfera médica, assim o saber/poder médico ganhou espaço
gradativamente.
A loucura como fenômeno psíquico, sempre ocorreu ao longo da história, mas a sua
patologização é um fenômeno recente. Emergiu com a ascensão da Psiquiatria que para se
consolidar como um ramo da Medicina precisava de um objeto de estudo definido, nesse
processo ocorreu a patologização de todo comportamento considerado desviante a norma
vigente. A psiquiatria passou a deter o poder sobre a Loucura, ao categorizá-la como
campo de intervenção. Nesse sentido, Canguilhem (2009) destaca o monopólio da
psiquiatria para definir o que seria normal ou patológico.
Destacamos a contribuição de Philipe Pinel que foi fundamental para o surgimento
da psiquiatria como ramo da medicina, ao classificar as doenças psiquiátricas e romper
com o modelo de assistência dado aos pacientes até então. Esse feito ainda no século XVIII
viria a influenciar toda a lógica de assistência médica dada aos pacientes que sofriam de
algum transtorno psiquiátrico no Ocidente, foi fortemente influenciada pelos ideais
iluministas (MENEZES; YASUI, 2009).
Com o advento da psiquiatria temos um deslocamento da loucura como um
fenômeno da ordem espiritual, ou criminal para o plano da razão. Tendo em vista que na
Antiguidade as alterações de pensamento e percepção eram tidas como manifestações
espirituais, mas na passagem para Idade Média as mesmas passaram a ter uma conotação
demoníaca. Consequentemente ocorreu a associação da loucura ao perigo, antes de se
patologizar a loucura se encarcerou a mesma.
O lançamento por Pinel do Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a
mania, em 1801 é considerado um marco, por representar uma quebra de paradigma na
assistência aos pacientes e o início das classificações nosográficas sobre a loucura. Sendo
assim o primeiro manual de diagnóstico da psiquiatria, além de fruto das experiências de
reformas pinelianas implantadas através de sua prática clínica nos hospitais de Bicêtre e
Salpêtrière. (FACCHINETTI, 2008).
O cenário histórico era promissor para mudanças, o ideal Iluminista, as mudanças
sociais de caráter revolucionário, a sociedade mudava e a assistência dada aos pacientes
também precisava mudar. Coincidiu com a sistematização da produção de conhecimento
sobre a loucura, a humanidade passava por um período de transição entre a experimentação
empírica e o pragmatismo científico. Percepções sobre doença e assistência refletiram
essas mudanças macro de paradigma.

A coincidência exata do corpo da doença com o corpo do homem é um dado


histórico e transitório. Seu encontro só é evidente para nós, ou melhor, dele
começamos apenas a nos separar. O espaço de configuração da doença e
localização do mal no corpo só foram superpostos, na experiência médica,
durante curto período: o que coincide com a medicina do século XIX e os
privilégios concedidos à anatomia patológica. (FOUCAULT, 2008, p. 1-2, grifo
do autor).

Depois do Tratado de Pinel surgiram outros manuais de diagnóstico que viriam a


influenciar a maneira como a medicina e a sociedade abordavam a loucura. A Classificação
Internacional de Doenças - CIDvi, representa um desses dispositivos utilizados na
categorização dos transtornos mentais, de acordo com Di Nubia (2008) o manual surgiu
como Classificação de Bertillon , ainda em 1893. Posteriormente surgiu o DSM-Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentaisvi, editado a primeira vez em 1952. Esses
manuais representam instrumentos de diagnóstico, mas também operam como mecanismos
de controle. (CAPONI, 2014)
Além do saber/poder exercido pela psiquiatria sobre a loucura, outros campos de
conhecimento colaboraram em certos momentos, e rivalizaram em outros para a construção
do Imaginário sobre a loucura e com o modelo de assistência dado aos pacientes de Saúde
Mental. O surgimento no século XIX da Psicologia como ciência e da Psicanálise,
possibilitaram uma descentralização, mesmo que sutil diante do controle hegemônico do
saber médico, sobre a produção de conhecimento a respeito da loucura e do louco.
Apesar da Psicanálise no início ter dado destaque à assistência aos pacientes
neuróticos em detrimento aos psicóticos. E a Psicologia ter se subdividido em várias
correntes que abordam a loucura de maneiras distintas, ambas as áreas do conhecimento
possibilitaram uma ampliação da compreensão do fenômeno da loucura e uma série de
mudanças na assistência aos pacientes. Paralelamente ao surgimento dessas áreas de
conhecimento, ocorreram cisões epistemológicas e pragmáticas dentro da própria
Psiquiatria, Amarante (1995) destaca a influência das Escolas francesa, alemã e
posteriormente da italiana, a última fundamental no processo de ruptura com o modelo
asilar.
O papel da medicamentalização também é evidenciado por Amarante (1995), agora
a psiquiatria tinha a psicoterapia e o auxílio químico no tratamento das patologias. Mas era
necessário ir além, o modelo asilar passará a ser colocado em cheque. O período pós
Segunda Guerra Mundial desencadeou uma série de mudanças de paradigma no cenário
macropolítico que serviram como referência no combate ao modelo manicomial.
Depois da tragédia do Holocausto a questão das minorias entrou em pauta,
tornando-se necessário um dispositivo jurídico que assegurasse proteção mínima para toda
a humanidade. A criação da Organização das Nações Unidas – ONU - em 1945 viabilizou
essa normatização, tendo em vista que as resoluções da ONU são deliberativas e devem ser
seguidas pelos países-membros. A demanda por uma normatização que assegurasse o
mínimo de proteção para os homens e o surgimento da ONU culminou na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em 1948 (JELIN, 1994).
Nesse mesmo período, emerge a intolerância com os manicômios e o combate as
violações dos Direitos Humanos dos pacientes de Saúde Mental. Esse movimento de
empatia foi fortemente influenciado pelos danos psicológicos causados a veteranos de
Guerra. Essa população demandava uma assistência humanizada, mas os manicômios não
representavam essa possibilidade. Dessa forma era necessária a construção de um novo
paradigma na assistência aos acometidos por transtornos mentais.
A proposta mais convincente para substituição do modelo manicomial foi
apresentada pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia. O modelo italiano defendido por
Basaglia propunha uma nova visão da política em saúde mental. Uma nova linguagem para
lidar com a loucura, incluindo a necessidade de ampliar a percepção cultural e social do
sujeito. Baseado no conceito de territorialização e valorizando as relações sociais. A
experiência italiana resultou na lei Basaglia em 1978, que representou um grande avanço
ao abolir os manicômios na Itália, servindo de referência na Luta Antimanicomial em todo
o mundo. (AMARANTE, 1995).
Ainda de acordo com o autor, no Brasil a Reforma Psiquiátrica caminhou ao lado
dos movimentos progressistas que lutaram pela redemocratização do país. Entre o fim da
década de 70 e início dos anos 80 se multiplicaram as denúncias de violações no
atendimento psiquiátrico, tanto na rede privada como na pública. No mesmo período
surgiram pequenos movimentos em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, constituídos
por trabalhadores que atuavam na área de saúde mental. Partiram desses trabalhadores os
primeiros movimentos pela mudança da assistência na área.
Como uma construção coletiva, a Reforma Psiquiátrica construiu uma crítica ao
modelo hospitalocêntrico e ao saber psiquiátrico como hegemônico. Essa luta resultou na
criação da Lei nº 10.216/2001 (BRASIL, 2001), conhecida como Lei da Reforma
Psiquiátrica ou Lei Paulo Delgadovi, a qual dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental.
Apesar dessa longa trajetória e de várias conquistas no campo da Saúde Mental,
séculos de opressão e invisibilidade serviram para criar uma imagem estigmatizada da
loucura. Socialmente muitos associam à loucura ao perigo, ao crime, ou mesmo
infantilizam os sujeitos acometidos por algum transtorno psiquiátrico. Muitas vezes esses
estereótipos tornam-se mais cruéis e fomentam o preconceito aos pacientes de Saúde
Mental.
A psicofobia é caracterizada pelo preconceito contra pessoas deficientes ou com
transtorno mental. Tramita no Congresso Nacional o PLS 236/12 de autoria do então
senador Paulo Davimvi, que prevê a criminalização da Psicofobia. Mas alguns defendem
que o atual Estatuto da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015), já abarcaria essa
necessidade. Porém, compreendemos que transtorno mental e deficiência são
características distintas, mesmo que o Estatuto venha assegurar alguns direitos, em curto
prazo, mas é necessária uma legislação específica para as pessoas com transtorno
psiquiátrico. Depois dessa contextualização histórica sobre a loucura, iremos passar a um
breve recorte sócio-histórico sobre a trajetória da mulher na sociedade Ocidental.

2. AS MULHERES NA HISTÓRIA

Não existe consenso sobre a historicização da mulher no Ocidente, há autores como


Lins (2007) que defendem a existência de um passado matriarcal, outros como Laqueur
(2001) problematizam que na Antiguidade até a diferenciação sexual era negada. Essa
polarização também sinaliza como abordar a história das mulheres não é uma tarefa fácil, a
invisibilidade se dá em várias esferas: desde a falta de registros, censura religiosa, falta de
acesso à escrita e a baixa representação feminina na esfera pública por séculos. Os
registros históricos são majoritariamente descritos por homens, esse aspecto pode parecer
sútil, mas é bem latente da desigualdade histórica estabelecida socialmente entre homens e
mulheres pelo sistema patriarcal.
Outro aspecto que merece atenção, destacado por Lima (2012) é que a tarefa de
categorizar historicamente as mulheres torna-se ainda mais complexa devido à pluralidade
performática das mesmas. Por mais sofisticada e repressora que seja a categoria mulher, a
mesma não esgota as possibilidades de experienciar esse gênero. Diante desse paradigma
qualquer generalização será leviana; mas negar as influências comuns às quais as mulheres
foram expostas historicamente, seria negar novamente as estruturas de controle as quais as
mulheres são submetidas.
Dando sequência ao percurso sócio-histórico das mulheres, de acordo com
Cavalcanti (2009) a categoria mulher seria um conceito moderno. Fruto da sociedade
burguesa, na qual a diferenciação entre os sexos tornou-se emergente. Anteriormente não
havia a diferenciação entre os sexos, remontando ao modelo do sexo único proposto por
Galeno, Laqueur (2001) problematiza o posicionamento do filósofo que defendia que as
mulheres eram na verdade homens imperfeitos, ou melhor, invertidos.
[...] embora sejam de sexos diferentes,/Em conjunto são o mesmo que nós,
Pois os que estudaram com mais afinco/ Sabem que mulheres são homens
virados para dentro (GALENO apud LAQUEUR, 2001, p.16).

Galeno sustentaria esse modelo através da analogia entre os aparelhos reprodutivos


de homens e mulheres, a diferença sexual dessa forma era negada. Em seu lugar imperava
um modelo hegemônico de Ser Humano representado pelo homem. Essa influência do
pensamento greco-latino nas relações de gênero no Ocidente também exerce influência em
outros campos. Nesse sentido, as representações divinas são um exemplo interessante,
Zeus consegue simbolizar o papel de centralidade do homem na vida grega. O papel da
mulher na sociedade grega é problematizado por Canezin (2004), que ao afirmar que a
democracia grega não incluía a participação feminina, porque as mulheres tinham o mesmo
status social dos escravos, devido à noção de patrimônio a que eram delegadas. Com os
Romanos como destaca Badinter (1985), os mecanismos de controle patriarcal foram
aperfeiçoados e universalizados devido ao tamanho de seu Império.
Outras civilizações exerceram forte influência para consolidação do modelo
patriarcal, Lins (2007) destaca que os Hebreus foram fundamentais para perpetuação dessa
lógica no Ocidente. O pensamento judaico influenciou diretamente a cultura cristã, que por
sua vez, manteve a representação do divino atrelada a uma representação masculina.
Apesar de que o Cristianismo mudou a percepção sobre a mulher, pelo menos na figura de
Cristo, que não pregava a diferença entre homens e mulheres, como coloca Badinter
(1985). Sua mensagem, porém, foi sendo deturpada ao longo dos séculos, tendo uma série
de interpretações, muitas de caráter conservador.
A Idade Média por sua vez, foi um período de extrema obscuridade para as
mulheres, nesse período, as que ousavam fugir aos padrões estabelecidos pela Igreja
corriam o risco de terminar nas fogueiras da Santa Inquisição acusadas de bruxaria. Nesse
sentido Rocha-Coutinho (1994) destaca o papel da sexualidade como fator de perseguição,
o prazer feminino era demonizado e poderia ser severamente punido.
O Protestantismo surgiu como um fator de ruptura de paradigma, Nunes (2000)
destaca a importância de Lutero na defesa da universalização da educação, através da
defesa da alfabetização feminina. A transição da Mulher para Idade Contemporânea, ainda
seria marcada pela ruptura do paradigma da diferença sexual, segundo Cavalcanti (2009) o
modelo de Galeno, que defendia o sexo único perdurou do século II até meados do século
do século XVII. Na sequência o modelo dos dois sexos se tornou emergente por volta do
século XVIII.
Mas a mulher só surgiria como sujeito político e consequentemente histórico,
durante a Revolução Francesa, sobre a qual Laqueur (2001, p.242) pontua:
As promessas da Revolução Francesa – que a humanidade em todas as suas
relações sociais e culturais podia ser regenerada, que as mulheres podiam atingir
não só liberdades civis como também pessoais, que a família, a moralidade e as
relações pessoais podiam ser renovadas – fizeram surgir não só um feminismo
novo e genuíno como também um novo tipo de antifeminismo, um novo medo
das mulheres, e fronteiras políticas que criaram fronteiras sexuais.

A Revolução Francesa foi o início da entrada da mulher na esfera pública, como


sujeito político e histórico. A luta pela igualdade de direitos desencadearia em novas
formas de relação entre os gêneros. Para Gurgel (2010) a Revolução Francesa simbolizou a
entrada da mulher na história propriamente dita, como sujeito político.
Avançando historicamente, Lima (2012) destaca que a categorização da mulher se
deu através de uma construção sócio-histórica, na qual destaca as influências do
Iluminismo, do Romantismo e da Família Burguesa na construção dessa imagem. Nesse
sentido Nunes (2000) responsabiliza Rousseau pela aproximação da figura da mulher à
imagem da maternidade, essa aproximação é atrelada a uma ótica valorativa de uma
―essência feminina‖. Para Badinter (1985) estaria nesse período a raíz da romantização da
maternidade, vendida culturalmente como algo da ordem inata.
Entre meados do século XVIII, com a ascensão do romantismo e do iluminismo três
aspectos merecem destaque na história das mulheres no Ocidente; a ascensão do amor
romântico, a consolidação do modelo de família nuclear burguesa (ARIÈS, 2006) e a
maternagem como fator de consolidação da mulher na esfera privada (BADINTER, 1985).
Se já não bastassem essas implicações históricas e discursivas sobre as mulheres, a
contemporaneidade trouxe outras formas de dominação. Nesse sentido, Engel (2007)
destaca o papel da medicina, em especial da psiquiatria, em patologizar os comportamentos
considerados como desviantes à conduta social, a qual se esperava das mulheres,
principalmente no que dizia respeito à sexualidade.
Avançando mais um pouco na história, vislumbramos a revolução industrial, a
mesma demandou mão de obra abundante e de baixo custo. As mulheres se tornaram
atraentes para essa atividade na virada do século XIX para o XX. O que conduziu a mulher
a seguir seu avanço à esfera pública, motivando mudanças econômicas e sociais, como
destaca Arán (2003).
Chegando a contemporaneidade é necessário destacar o papel do Feminismo e suas
principais pensadoras na história das mulheres no Ocidente. Tendo em vista, que as
mulheres não permaneceram passivas diante da sistemática opressão patriarcal.
Historicamente o Movimento Feminista é analisado contextualizando ciclos de militância,
esses ciclos históricos são chamados de ondas.
A primeira onda do Feminismo, segundo Gomes e Sorj (2014) data da virada do
século XIX até a Segunda Guerra Mundial. Militava principalmente pelo sufrágio
universal, nesse período o movimento chegou a ser conhecido pela alcunha de Movimento
Sufragistavi. A segunda onda do Feminismo por sua vez, data de meados da década de 60
até os anos 70, período da Revolução Sexual.
Se na primeira onda o Feminismo reivindicava principalmente o direito ao voto e a
busca pela igualdade, agora as questões eram outras: fazia referência ao próprio corpo, à
liberdade sexual, ao controle de natalidade, além da igualdade de direitos e escolhas, com
os homens. Nesse período, vale ressaltar a contribuição da filósofa Simone de Beauvoir
(1980, p. 9) e sua obra O Segundo Sexo que ao afirmar:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,
econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produto, intermediário entre o macho e
o castrado que qualificam de feminino.

Assim, Beauvoir (1980) rompeu com o determinismo biológico sobre gênero,


passando a influenciar não apenas o Feminismo, mas todos os estudos no campo de gênero
e sexualidade que se sucederam. Esse caminho conduziu à terceira onda do Feminismo que
emergiu entre o fim da década de 80 e início da década de 1990. De acordo com Gomes e
Sorj (2014), a terceira onda do Feminismo fomentou o debate identitário, inaugurando o
conceito de interseccionalidade, trabalhando as múltiplas formas de opressão antes
negligenciadas pelo discurso unitário.
Chegando a interseccionalidade, nos aproximamos do objetivo do nosso trabalho,
nos debruçarmos sobre a dupla estigmatização das mulheres que sofrem de transtorno
mental, pelo gênero e pela patologia. Antes de abordarmos especificamente esse recorte, se
faz necessário trabalharmos sobre a forma de assédio psicológico, que induz mulheres sem
nenhuma patologia a se perceberem como loucas, ou através de uma narrativa pública que
apresenta a mulher como psicologicamente incapaz, através do conceito de Gaslighting. É
uma forma de manipulação psicológica e assédio comum em vários contextos, sendo mais
acentuado no familiar, corporativo e midiático. (KRUGER, 2014). Na sua apresentação
mais comum, o Gaslighting é praticado pelo companheiro da vítima.
Depois de conceituar a forma de assédio do Gaslighting, a qual podemos classificar
como uma pseudo-loucura, ou mesmo um instrumento de opressão que todas as mulheres
podem ser submetidas. Sendo utilizado como forma de desestabilizar emocionalmente a
vítima, seja dentro de uma relação conjugal ou na esfera pública, como ocorre
sistematicamente com mulheres que exercem a vida política partidária. Passemos então a
outra forma de violência, essa representada pela interseccionalidade da opressão sofrida
por mulheres acometidas de transtorno mental.

3. INTERSECCIONANDO FORMAS DE OPRESSÃO: PSICOFOBIA E


MACHISMO

A interface das duas formas de estigmatização, psicofobia e machismo na vida das


mulheres acometidas por transtornos mentais muitas vezes é invisibilizada. O gênero é
pouco trabalhado no campo da Saúde Mental, muitas vezes é relativizado a mera
formalidade de preenchimento de prontuários e outros documentos oficiais e instrumentais.
O gênero por vezes só é levado em consideração diante do controle interno das instituições
que ofertam assistência em Saúde Mental. A separação física e arquitetônica entre homens
e mulheres, atravessou o modelo asilar e chegou aos dispositivos substitutivos da Rede de
Atenção Psicossocial-RAPS. No plano institucional para calar as inquietações e conflitos
as instituições se utilizam da ordem e do controle, estratégia já trabalhada na obra de
Foucault (1987).
Mas além da lógica de controle, o gênero perde protagonismo, passa a ser mera
característica dos usuários, muitas vezes tratados mais em função da patologia do que de
qualquer outra característica subjetiva. As mulheres diagnosticadas com transtorno mental,
muitas vezes se vêem em uma posição na qual a patologia torna-se um fator identitário.
Dessa forma diante de um diagnóstico de transtorno psiquiátrico, subjetivamente e
socialmente essas mulheres tornam-se reféns discursivas de suas patologias.
A linguagem nosográfica seguida dos códigos apresentados nos manuais de
diagnóstico ganham características biográficas, tanto institucionalmente como socialmente.
Infelizmente ainda é comum nos dispositivos da RAPS, encontrarmos profissionais que
fazem referência aos pacientes utilizando a patologia como a característica, como por
exemplo: ―Maria que é esquizofrênica‖ ou ―Ana que é bipolar‖. Dando centralidade a
doença em detrimento a outras características dessas pessoas.
Essa realidade não se limita ao campo da psicose, pacientes acometidos por
transtornos de ansiedade ou mesmo pela depressão também sofrem com esses rótulos. Se
romper com essa lógica de estigmatização ainda é um desafio entre os profissionais da
área, em outros setores da sociedade o desafio é ainda maior. Depois de analisarmos a
trajetória de demonização, encarceramento e patologização da loucura historicamente,
torna-se possível compreender as raízes da psicofobia.
Compreendendo que essa forma de preconceito pode se manifestar em vários
contextos, sendo agravada quando correlacionada com outros preconceitos como o
machismo. Esse fator é importante, tendo em vista a vulnerabilidade histórica a qual as
mulheres são submetidas. Muitas vezes reduzidas a um papel meramente decorativo
socialmente, ―Ela pode ser bonita, deve ser bonita, do contrário não será totalmente
mulher‖ (NOVAES, 2006; p. 85 apud ZANELLO; FIUZA; COSTA, 2015, p. 239).
Outro ponto importante na problematização da interseccionalidade entre gênero e
saúde mental, se apresenta nos registros de experiências exclusivas ou predominantemente
femininas como: a menarca, a maternidade, o aborto, a menopausa e o estupro sendo
marcos que muitas vezes coincidem com o surgimento de uma patologia ou entrada em
uma crise. (ZANELLO; FIUZA; COSTA, 2015). Mesmo assim, a carga simbólica desses
marcos biográficos muitas vezes é subestimada.
No sentido da correlação entre gênero e saúde mental, Queiros (2015) problematiza
o gênero como um dispositivo de controle e a violência como componente para o
adoecimento psíquico das mulheres. Nesse contexto não há como não estabelecer nexo
entre o machismo estrutural e o adoecimento psíquico, ou agravamento do mesmo nas
mulheres. Não se trata de uma percepção descontextualizada, mas de uma série de dados
que corroboram com o maior adoecimento de mulheres por transtornos psiquiátricos,
principalmente de humor e ansiedade.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), os transtornos


mentais comuns (TMC), marcados por sintomas tais como depressão, ansiedade,
insônia, fadiga e irritabilidade, ocorrem principalmente em mulheres, mais do
que em homens (LUDERMIR, 2008 apud ZANELLO, 2010, p.307).

Ainda segundo Zanello (2010), as mulheres representam setenta por cento dos que
utilizam de forma abusiva ou prolongada os benzodiazepínicos no país. Indícios de como a
saúde mental das mulheres brasileiras tem sido negligenciada. Compreendemos que se o
fator de gênero fosse levado em consideração na prevenção, na promoção e na atenção em
saúde mental, provavelmente o adoecimento entre mulheres seria minimizado.
O modelo de atenção à saúde, hegemônico, não abre espaço para a exploração de
novas possibilidades existenciais para as mulheres, na medida em que está
centrado no sintoma, na doença e na crença da neutralidade das técnicas e
intervenções, o qual funciona como dispositivo de normatização social, de
disciplinarização das atitudes e docilização das forças de ruptura. (CARVALHO;
DIMENSTEIN, 2004, apud ZANELLO, 2010, p.309).

Aspectos que remontam a um arranjo social sofisticado e perverso, a violência


como um registro no plano simbólico na vida das mulheres (BOURDIEU, 2002). Se
acrescentarmos esse fator ao controle exercido pelas instituições, mesmo as que não são
asilares, em silenciar conflitos e produzir corpos dóceis (FOUCAULT, 1987). Veremos
que pouco se avançou do modelo hospitalocêntrico até a atualidade. A Reforma
Psiquiátrica, por mais progressista que tenha se mostrado, ainda não ousou tocar nas
relações de gênero. Talvez pelas relações de gênero demandarem um aprofundamento
crítico a respeito das estruturas sociais e não apenas institucionais.
Dessa maneira podemos concluir que não basta combater à psicofobia,
institucionalmente ou socialmente se silenciamos diante do machismo nessas mesmas
esferas. As mulheres que são acometidas de algum transtorno psiquiátrico, antes de
estarem pacientes, ou adoecidas, elas são mulheres. E esse aspecto tem que ser levado em
consideração e como fator na promoção de saúde das mesmas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo sobre a saúde mental através de um recorte de gênero perpassa pela


desconstrução de uma ordem discursiva de caráter patriarcal. Problematizando não apenas
o tratamento dado às mulheres com algum transtorno, mas o silenciamento da opressão
sofrida pelas mesmas, simplesmente por serem mulheres. Principalmente que a
contemporaneidade tornou emergente novos instrumentos de opressão. A entrada da
mulher no mercado de trabalho a expôs também a condições de trabalho insalubres,
perigosas, a jornadas extenuantes e a outras formas de exploração. Submetendo as
mulheres a duplas ou triplas jornadas, tendo em vista que o acesso à esfera pública não
diminuiu suas responsabilidades na esfera privada.
Somados a esses fatores, temos a pressão pela ―mulher perfeita‖, gerando
instabilidade, medo, insegurança e contribuindo para o desenvolvimento de patologias.
Dessa forma, não podemos minimizar os efeitos do machismo estrutural na Saúde Mental
das mulheres, principalmente se levarmos em consideração a vulnerabilidade social a qual
estão expostas. As mulheres sofrem as consequências das desigualdades pelas quais estão
submetidas, sendo a maioria entre as vítimas de violência sexual, de violência
(institucional e doméstica), da desigualdade salarial e da precarização do acesso aos
serviços de saúde.
As políticas e os serviços de saúde precisam ter uma abordagem holística,
desmascarando o machismo velado e dando maior atenção às especificidades relacionadas
ao gênero. Se o combate à psicofobia é praticamente unânime socialmente, o machismo
ainda é negado por vários segmentos da sociedade. Novas perspectivas no campo da saúde
mental precisam ser construídas para reduzir as desigualdades de gênero. Desde a escuta, o
acolhimento, o diagnóstico, as estratégias de intervenção e o tratamento para ambos os
gêneros precisa ser sensível a esse recorte.
Mas precisamos também questionar outras formas de opressão que atravessam o
recorte de gênero e saúde mental. Além do machismo estrutural é necessário problematizar
a centralidade do poder médico e do uso abusivo de psicotrópicos, precisamos ainda,
superar à estigmatização da loucura. Desta forma as mulheres que sofrem com a dupla
estigmatização pelo gênero e pela patologia, não podem ser invisibilizadas.
Ainda precisamos socialmente questionar estruturas discursivas e de poder que
naturalizam a estereotipação da saúde mental das mulheres. As pequenas fragilidades ainda
são rotuladas como manifestações histéricas, até mesmo as alterações de humor são
associadas às alterações hormonais, como se as mulheres se resumissem a essa condição.
Busca-se patologizar aleatoriamente a mulher e a sua sexualidade, mas não se questiona as
opressões machistas enraizadas socialmente.
Podemos concluir que ainda é um grande desafio trabalhar a interseccionalidade
entre gênero e saúde mental, por representarem campos marginalizados historicamente na
nossa sociedade. Mas é diante desses desafios que se faz necessário potencializar o debate,
a pesquisa, a resistência e a militância crítica sobre os temas. A luta pelos Direitos
Humanos historicamente envolveu a luta das Mulheres e pela Saúde Mental, reafirmar e
problematizar essas pautas é um ato necessário e urgente.

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POTENCIALIDADES DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO
FEMINISTA PARA AS QUESTÕES DE GÊNERO À LUZ DA TEORIA
DO IMAGINÁRIO, A PARTIR DA OBRA LITERÁRIA DE CIDA
PEDROSA

Clécia Juliana Gomes Pereira Amaral1

GT: GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS

RESUMO

A referida pesquisa traz discussões interligadas entre os campos da Educação, Gênero, Literatura e
Teoria do Imaginário. Apresenta uma reflexão acerca das construções imagéticas de gênero
presente no pensamento literário-pedagógico de Cida Pedrosa. Assim, determinou-se como
objetivo geral neste estudo: Compreender quais as construções imagéticas de gênero presente no
pensamento literário-pedagógico de Cida Pedrosa. Os principais autores que referenciaram a
presente pesquisa foram: Durand (1994), Butler (1998), Pitta (2005) Freire (1998) e Mariano
(2005). A considerar a pesquisa bibliográfica, exploratória e descritiva, elementos indispensáveis a
essa construção. O estudo dessas obras configura a dicotomia: literatura e prática pedagógica, tendo
na pesquisa bibliográfica todo o apanhado que dará suporte a investigação de documentos
necessários à discussão proposta. A discussão relatada nesse estudo foi de que o gênero é uma
constituição social, a partir de concepções de imaginário constituidos socialmente, e que a arte
literária como expressão do sensível, possibilita uma resignificação aos modelos impostos pela
cultura, observados a partir da análise da obra literária de Cida Pedrosa.

Palavras-chave: Cida Pedrosa, Gênero, Literatura, Teoria do Imaginário.

INTRODUÇÃO

Reconhecer o verdadeiro papel da mulher na sociedade é uma atividade que


tem suscitado diversas pesquisas no campo da educação. Propiciar o debate das questões
de gênero e o reconhecimento das epistemologias femininas é oportunizar uma valorização
das mulheres, que historicamente, foram negligenciadas por concepções redutoras.
Principalmente, quando tratamos da educação, essa que por sua vez atende ao sistema
opressor que lhe configura para manter as hierarquias preexistentes. A considerar esses
fatores surge a seguinte problemática: quais as construções imagéticas de gênero presente
no pensamento pedagógico de Cida Pedrosa?
A tratar desses aspectos aborda-se uma discussão de conhecimentos construídos
fora do eixo redutor, tratamos assim, da problematização do pensamento feminino a partir
de epistemologias que considerem suas construções sociais. Encontra-se na teoria do
imaginário questões que abordam essas proposições, do qual junto ao feminismo analisa
com um olhar específico as sociedades modernas.
O estudo proposto busca estudar as potencialidades pedagógicas e feministas na
obra literária da referida escritora, configurando que a educação popular tem sido uma
alternativa para produções pedagógicas que dão voz aos que foram e continuam sendo
inferiorizados. Acredita-se na capacidade crítica e libertadora que convém do diálogo entre
educação e literatura, na promoção de mudança dos indivíduos.
As perspectivas críticas feministas e suas relações pedagógicas recebem aqui
atenção principal, na compreensão que a literatura é um mecanismo que traduz
intimamente os sentimentos daqueles que a utilizam politicamente, e estabelecem na sua
carga ideológica o poder transformador, não simplesmente como guia de conduta, mas na
sua capacidade didática de mudar os indivíduos, pois transmite, consolida sensibilidades. O
uso da literatura na demanda pedagógica é uma resposta que damos ao considerar a história
de homens e mulheres diversos.
A educação e a cultura têm indispensáveis papéis na (des)construção de imposições
que deixaram marcas no processo de formação dos indivíduos sociais. Estudar fenômenos
educativos que distorcem a lógica padrão, das exigências do sistema escolar oficial, se
torna uma perspectiva deste trabalho, objetivando estudar práticas educativas na
diversidade e em ambientes informais. Tratamos nesta pesquisa da importância da mulher
no processo de educação popular, através da construção de identidades femininas contidas
na obra literária de uma escritora pernambucana, que se utilizam dos recursos e meio que
têm para discutir o papel social da mulher, a considerar que, historicamente, as questões
femininas foram subjugadas a exclusão e ao silenciamento e que na contemporaneidade
tem sido negligenciada, em termos práticos, em diversos setores sociais.
Justifica-se a realização desta pesquisa com base na necessidade de se investigar
academicamente questões de gênero no âmbito da educação, visando (re)conhecimento
conhecimento feminino na construção dos processos educacionais populares, ao passo que
também se constitui esta pesquisa como forma se tornar um reparo histórico quanto à
invisibilidade da mulher nas questões relativas à educação e a literatura . Este estudo
guarda forte relação com a intenção de situar o feminino e o seu verdadeiro papel nas
construções epistemológicas. Por outro lado, a pesquisa tem sua gênese no interesse por
trazer à tona a discussão da linguagem literária como sendo porta voz de mulheres que
criaram mecanismos de resistência às imposições educacionais e sociais.
Assim, levantou-se a seguinte problemática: Quais as construções imagéticas de
gênero presente no pensamento literário-pedagógico de Cida Pedrosa?
Nessa construção elegeu-se como objetivo geral: compreender quais as construções
imagéticas de gênero presente no pensamento literário-pedagógico de Cida Pedrosa. A
pesquisa foi organizada a considerar os seguintes objetivos específicos:
 Problematizar questões de gênero, a partir do pensamento pedagógico feminista
e da teoria do imaginário;
 Discutir as bases de formação para as relações de gênero, a partir dos marcos
feminista da educação popular;
 Identificar as construções imagéticas de gênero presentes nas potencialidades do
pensamento literário-pedagógico de Cida Pedrosa.
A teoria do imaginário foi eleita para fundamentar questionamentos realizados
nesse artigo, por acreditar que a discussão aborda por esse campo de estudo, traduz bem as
questões de história, cultura e gênero, com uma ótica diferente do que, também, é imposto
epistemologicamente, e que considera práticas educativas que estão sendo materializadas
em movimentos outros. Possibilita-nos uma intersecção com práticas educativas diversas,
que nos ajude a compreender e considerar a diversidade da construção de práticas
pedagógicas.
EDUCAÇÃO E GÊNERO, PERSPECTIVAS À LUZ DA TEORIA DO
IMAGINÁRIO.

Discutir educação e gênero à luz da teoria do imaginário se revela como um


pressuposto teórico que permite a compreensão das diversas possibilidades da construção
do sujeito. O imaginário constitui-se como um conector obrigatório pelo qual se forma
qualquer representação humana (DURAND, 2010). Essa abordagem possibilita uma
reflexão a cerca do ponto de partida a construção mítica do ser. Assim, percebe-se que as
construções de sujeito estiveram sempre pautadas por particularidades que se pretendiam
universais. O sujeito é constituído discursivamente, é contingente, é político e essa
constituição dá-se mediante a exclusão (BUTLER, 1998, p.30). Discursos e práticas que
tornam a mulher ou qualquer grupo inferiorizado, inviabilizado.

Um questionamento feminista alinhado à teoria do imaginário atrela a concepção


simbólica que institui o homem e o mundo no campo das ideias. Tendo o ambiente cultural
elemento formador do campo lógico e do campo do significado, uma vez que ambos se
interpelam.

Dar sentido a vida e ao mundo são questões que a companha o homem e que
fizeram constituir suas relações filosóficas, políticas, religiosas e sociais. A perspectiva do
imaginário considera que nada para o ser humano é insignificante. E dar significado
implica entrar no plano do simbólico (PITTA, 2005 p. 13). O simbólico é aqui
compreendido como oportunidades de criação e libertação. Possíveis de criar uma conexão
do eu com o mundo. Butler (1998) considera que é nas práticas performativas de reiteração
que se dão através da dimensão simbólica da linguagem e da cultura, as relações, a partir
de então os corpos tornam-se passíveis de serem pensados.

Romper com as tradições epistemológicas configura olhar as construções


simbólicas sob uma perspectiva de des(construção) de alternativas não redutoras da
complexidade da realidade social. Desse modo a concepção de imaginário é compreendida
como uma vertente que dialoga com as diversas áreas e campos de estudo. Pois considera a
necessidade de pensar em teorias que subvertam a unidade e a universalização para se
produzir dimensões de diversidade e pluralidade.

Lidar a educação com filosofias redutoras é deixar de lado o diálogo, o debate com
o que é múltiplo, assim, questiona-se a representação, modelos que detêm o poder da
política social. A discussão de gênero compreende que a ausência da representatividade de
mulheres é um gerador de conflitos, pois está nessa prática uma relação de controle, nesse
sentido, é necessário realizar críticas às identidades, que naturalizam e imobilizam os
movimentos, para que o feminismo possa surgir fundado em pilares diferentes e se libertar
da construção de uma única identidade, um modelo de mulher que exclua as demais
(OLIVEIRA, 2016, p. 5)

A considerar que toda realidade é imaginária, pensa-se na imagem enquanto


símbolo que expressa o imaginário. Por essa colocação é construída condições diversas a
representação de gênero. Bachelar vai descobrir que o imaginário, muito longe de ser a
expressão de uma fantasia delirante, desenvolve-se em torno de alguns grandes temas,
algumas grandes imagens que constituem para o homem os núcleos ao redor dos quais as
imagens convergem e se organizam (PITTA, 2005, p. 14).

A poesia que pertence ao domínio do simbólico propicia uma ressignificação às


imagens – inclusive de gênero – que foram tidas como universais. Com essas colocações se
apresenta a obtenção do conhecimento sensível. Segundo Pitta, 2005, o imaginário nessa
perspectiva pode ser considerado como essência do espírito, à medida que o ato de criação,
tanto artístico como o de tornar algo significativo.

Na literatura produzida por Cida Pedrosa é apresenta a mulher/sujeito em suas


peculiaridades, visões femininas que permitem potencializar elementos pedagógicos
geradores de reconhecimento de eu-feminino, tão negligenciado na educação formal.
Entende-se com essa proposição, que a educação não formal junto a teorias não redutoras,
é imprescindível a resistências às imposições epistemológicas que fomos sujeitados.
Perspectiva trazida por Mariano, 2005, p.437 ao dizer que a normatização das identidades e
sua consequente opressão definem padrões de comportamento e conduta rejeitando as
diferenças dos sujeitos sociais.

PENSAMENTO PEDAGÓGICO E QUESTÕES DE GÊNERO: DIÁLOGOS A


PARTIR DA EDUCAÇÃO NÃO FORMAL

A educação no Brasil é bastante debatida quando se trata da promoção da


igualdade, por apresentar um currículo frágil ao tratar das questões voltadas à diversidade.
É possível evidenciar marcas que, ainda, abordam um pensamento elitista na concepção de
educação. Segundo Freire (1994) a prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero
ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Entre diversos
fatores subjugados por um sistema educacional que continua a fragilizar a minoria.
Encontra-se na educação popular, alternativas que driblam os mecanismos impostos
hegemonicamente na chamada educação formal.
Tratar da educação popular, discutir a posição marginal que é dada a esse tema, nos
conjuga a uma reflexão do papel desempenhado por esse sistema educacional, do qual os
seres que o protagonizam são aqueles que a sociedade oprime, que em função de uma
conjuntura se articulam para que o conhecimento construído por eles não seja concebido.
Ao pensar nos processos educativos ocorridos nos aspectos informais, compreende-
se que esse quando trata das questões de gênero, nos tratos feministas são ainda mais
enfraquecidos pelo patriarcado, tão marcante, nas relações culturais e sociais, que disse
durante muito tempo que ―a mulher é educada pela sociedade a aceitar seu papel imposto,
sua condição de classe subalterna, de propriedade de homem, sua condição de inessencial‖
(CHAVES, 2014, p.121). É possível compreender que ―o feminismo por sua vez, é mais
diluído, ainda, a ponto de não caber dentro da educação popular, porque evoca um poder
popular incluindo as mulheres‖ (CONTE, 2009).
Evidenciar o desafio da educação popular frente ao feminismo é uma luta contra o
sistema que sustenta violências socialmente aceitas dentro da falsa aparência de igualdade.
A busca pela igualdade de direitos pressupõe a construção de uma sociedade mais justa,
comprometida com a formação de sujeitos políticos, da qual mulheres e homens são
agentes da história. Nesse contexto Vieira (2012) nos diz que a metodologia de educação
popular feminista tem por base a construção coletiva do conhecimento, levando em conta
aspectos objetivos e subjetivos, pois se considera que a realidade é construída pelas
pessoas tanto pela via da razão como pela via da emoção.
A educação ideológica baseada na realidade dos construtores envolvidos, coletiva
seus contextos, torna-se mais significativa, liberta da lógica opressora. ―Ao defendermos
um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre suas condições concretas, não
estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos
convencidos pelo contrário, de que a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática‖
(FREIRE,1996).
A educação popular é comprometida com o poder popular e o feminismo segundo
Conte (2009) vem para evidenciar, criar e fortalecer o empoderamento das mulheres.
Enfrentar as desigualdades é uma ação autêntica que resulta da reflexão crítica, confirma
Freire (1996) é necessário que esse convencimento seja fruto de sua conscientização.
A arte é utilizada em diversos mecanismos que contribuem para efetivação dessas
teorias. Como produto humano resultado da sensibilização está a sensibilizar, em sua
condição de humanização afeta os sentidos, traduz o que é íntimo. Essa construção se
utiliza de diversas linguagens, assim como, a literatura. Recurso usado como
potencialização de práticas pedagógicas informais.
Na produção literária de Cida Pedrosa o empoderamento feminino é construído
junto às metáforas que a compõem. Tem-se um reflexo de mulheres nas suas condições de
diversidade, que estão a subverter os padrões impostos, socialmente, à condição de ser
mulher. A produção artística estabelecida pela referida escritora contêm uma verdade ética
a emancipação feminista.
A função educativa proposta pela arte se traduz na experiência dialógica, do qual o
artista é filósofo e suas produções tornam-se filosofias a produzir um pensamento crítico-
reflexivo. As condições aqui referidas põem em destaque a necessidade de pensar a arte em
seu potencial de transformação. Assim pensando, a experiência da arte e sua possível
função na educação, não está na compreensão e nem no adestramento artístico, forma,
perceptível, embora possa conter tudo isto (FAVARETTO, 2010, p. 232).

POTENCIALIDADES DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO FEMINISTA PARA AS


QUESTÕES DE GÊNERO À LUZ DA TEORIA DO IMAGINÁRIO, A PARTIR DA
OBRA LITERÁRIA DE CIDA PEDROSA

Literatura e educação caminham juntas na construção de práticas sociais e culturais,


resignificam a presença das mulheres na construção de novas estruturas. Cida Pedrosa
demostra bem isso quando assume seu papel de mulher feminista. Nos seus poemas temos
verdades sobre a liberdade da vida e dos versos. Cida possibilita, através de seus escritos,
um reconhecimento da perca do melindroso, do convencional para tratar do que é vivo, não
por estrutura-se em ideias, discursos ou teorias, mas por literariamente expressar o que é
vivido. No poema Kahndy, tem-se uma demonstração da perspectiva feminina na reflexão
da personagem, que questiona as preocupações movidas em torno do feminino.

desde criança
uma pergunta lhe ronda a língua
por que deus se preocupa tanto
com o que as mulheres carregam entre as pernas

nem bem os pêlos nasceram


levaram-na mata adentro
e dor afora

a morada de vênus
foi cortada para o bem de toda a tribo
e a felicidade da fé

no lugar do amor
um espinho foi cravado
e no sangue de donzela
foram jogadas cinzas

excisão no corpo
de alma já infibulada

a fé de khady é a dor
e o rastro de deus é uma fístula
que de vez em quando parte em transumância
rumo ao ocidente

Kandhy com alma infibula carrega a dor que questiona. É perceptível aí, o que na
teoria do imaginário é tratado como função da imaginação simbólica, a qual tem uma
função transcendental, ou seja, ela permite que se vá além do mundo material objetivo
(PITTA, 2005, p. 38). Essa construção mítica calca-se na consideração que a poesia
é um estruturante da vida social. O trajeto antropológico apresentado por Durand é
compreendido como o percurso que fazemos e que nos constrói, nos mostra o papel que os
símbolos apresentam na construção do imaginário e as estruturas que os mesmos carregam.
Estruturas estas que dão resposta à questão fundamental do homem que é a sua
mortalidade (PITTA, 2005 P.23). Atrela-se a Kendy a estrutura noturna, compreendido
como regime que busca conhecimento, a construção de uma harmonia.

Noutro poema, intitulado Ofélia é nítido o empoderamento, situação que centra


marcas da consciência feminista. Diz que uma mulher que opera, se sobrepõem, existe.

exemplo de mulher resolvida


conseguiu tudo o que quis

montou casa aos 21 anos


e já deitava com o namorado aos 15

hoje ocupa o melhor cargo da empresa sertanense

cargo maior
só o do dono-presidente e seu filho ronaldinho

tem sob o seu comando uma porrada de homens


e trata sobre a compra e venda de gesso
com empresários da argentina

acorda cedo levanta peso lê o jornal


prepara o dia serve ração a fênix
e marca um programa para noite

ofélia recebe a melhor amiga


lê neruda em espanhol
ensaia um tango
liga a TV
e pondera se já é hora de dividir as escovas com flavão
O poema exposto evoca a desconstrução mítica da mulher, que se estrutura em
torno do regime diurno, símbolo de luta que contém a postura heroica de vitória, ao qual
corresponde aos símbolos de ascensão, para Bachelar, ―é a mesma operação do espírito
humano que nos leva para a luz e para o alto‖ (PITTA, 2005 p. 27). A passagem ―tem sob
o seu comando uma porrada de homens‖, percebe-se o elemento do chefe, tido para teoria
do imaginário como significado com culto universal, por representar comando, liderança,
poder, que também é encontrado nos versos ― exemplo de mulher resolvida, conseguiu
tudo que quis‖.
A interiorização da perspectiva feminista contida na poética de Cida Pedrosa é
observada em diversos poemas. A apresentação de mulheres na construção delas mesmas
as tem dado o seu lugar social, traduzindo o que pensam e o que fazem, tornando-as sujeito
de fala. Nessa reorganização de papéis, a construção mítica feminista é pedagógica por
permitir uma re(construção) ao fornecer um modelo de comportamento fora da lógica
dominante. As filhas de Lilith recria a figura mística, fornece modelos de comportamento
trata do potencial feminino e das relações poder. Durand reafirma que o imaginário é assim
esse conector necessário pelo qual se constitui toda representação humana (1994, p. 12).

Usualmente o sujeito de fala é sempre masculino, na literatura, na lei e na tribuna.


A ele são reservados os lugares de destaque, tornando o homem mais visível. (SHOLZE,
p.175). Compreender a importância da desconstrução dos discursos vigente é um potencial
visto nas obras das referidas escritoras. Analisá-los sob a ótica feminista torna-se um
recurso pedagógico a ser discutido com a capacidade de gerar diálogos diversos sobre a
construção de identidades femininas. Ao corroborar com a conceituação tratada por
Foucault (2014), que aborda que o discurso nada mais é do que a reverberação de uma
verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode enfim, tomar forma
do discurso, quando tudo pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as
coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade
silenciosa da consciência de si. Tratamos da oportunidade de concretizar as potencialidades
aqui ressaltadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com a Teoria do Imaginário, compreende-se que o estudo da postura


ideológica contida nas poesias de Cida trata da compreensão do poder de fala de literatura,
esse desafio epistemológico é importante nas propagações feministas, por permitir uma
constante reflexão mediante a construção do conhecimento científico. A educação só se
torna significativa quando considera a pluralidade que permeia a sociedade, contribuindo
para o melhor conhecimento da humanidade, gerando a possibilidade de nos tornarmos
mais humanos, também.

A Teoria do Imaginário privilegia o simbólico, esse que foi tão negligenciado pelo
fazer científico ao longo da história, a possibilitar a elaboração de discursos outros.
Hermenêutica atrelada a diversos campos do saber constitui-se pelo princípio que a relação
entre natureza e cultura são estabelecidas através do imaginário.

Na produção dessa pesquisa averiguou-se a necessidade de reconhecer a


importância da literatura nos processos de formações pedagógicas, compreendendo-a como
fator importante na educação, principalmente, as que se fazem longe dos grandes centros
acadêmicos, pois estão mais dispostos a trabalhar perspectivas outras, além das que já são
usadas como norteadoras de currículos que dispensam a educação pelo sensível, pelo
imaginário. Constata-se que a literatura produzida por Cida Pedrosa enaltece a mulher na
sua diversidade, é comprometida com o discurso da libertação. Uma vez que não segue as
normas de comportamento vigente.

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GT 02 – Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos.

RESUMO
Um dos traços característicos da contemporaneidade é o fato de que as formas como as
manifestações da sexualidade são encaradas possibilitou a alteração sobre a maneira de
experienciar as Performances Sexuais e as Sexualidades como um todo. Em decorrência do
crescente debate acerca da realização de cirurgias de Transgenitalização, bem como a
crescente procura por tratamentos hormonais, que lançaram um olhar diferenciado para o
fenômeno da Transexualidade. Este trabalho tem como proposta central investigar sobre a
realidade da população transexual nos países-membros da CPLP- Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa. Visando a afirmação dos Direitos Humanos, esperamos,
evidentemente, contribuir com a compreensão do fenômeno da transexualidade, bem como
o fortalecimento das relações entre a Comunidade Lusófona. Além de problematizarmos a
necessidade de políticas públicas que possibilitem a diminuição da violência de gênero
dentro da Comunidade, especialmente, diante da problemática da Transexualidade.
Fomentando o diálogo e a pesquisa acerca da Transexualidade e da Lusofonia, ressaltando
o poder da diplomacia no campo dos Direitos Humanos.

Palavras-chave: Transexualidade. Transfobia. Invisibilidade. Lusofonia.

INTRODUÇÃO

Diante do contemporâneo debate sobre transexualidade no âmbito acadêmico e


social no Brasil, nos inquietou investigar sobre a realidade dessa população nos demais
países lusófonos. Mediante esse cenário emergiu a problemática do trabalho: Qual a
realidade jurídica da população transexual nos países lusófonos?
Temos como objetivo geral problematizar as conquistas e desafios dos transexuais
nos nove estados-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP,
respectivamente: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial,
Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. E como objetivos específicos:
contextualizar historicamente as relações entre os países lusófonos, problematizar a
transexualidade na lusofonia, contextualizar a influência da CPLP, analisar a situação
jurídica e social da população trans na Comunidade Lusófona e questionar sobre o papel da
CPLP no combate à transfobia e na defesa dos Direitos Humanos.
O Seguinte trabalho justifica-se diante do emergente debate sobre a transexualidade
no âmbito acadêmico e social no Brasil, mediante dados que indicam o Brasil como o país
que mais mata transexuais no mundo. Pelo Brasil representar uma liderança política,
econômica e cultural no mundo lusófono e mesmo assim a maioria dos brasileiros
desconhece a CPLP. E ainda pela escassez de trabalhos sobre transexualidade nos países
lusófonos, principalmente desenvolvidos no Brasil.
O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa bibliográfica que de acordo
com Fonseca (2002), consiste em um levantamento de dados de trabalhos já publicados,
como artigos científicos, livros e revistas periódicas. O objetivo do trabalho é contribuir
para problematização das conquistas e dos desafios no campo jurídico da população
transexual nos países-membros da CPLP. Além de fomentar o debate sobre a
transexualidade e popularizar a importância da comunidade lusófona em nosso meio.
Nesse intuito, no primeiro capítulo iremos categorizar à transexualidade, através de
um recorte sócio-histórico. Percorremos marcos da transexualidade desde os primórdios da
categorização até a conceituação contemporânea. Utilizaremos Márcia Arán (2005; 2006;
2009) e Berenice Bento (2012) como referenciais nessa construção. No segundo capítulo,
caminharemos pelos vínculos históricos, políticos e sociais que alimentam as relações entre
os países-membros da lusofonia. Debruçando-nos principalmente, sobre a influência
cultural e econômica de Brasil e Portugal sobre as demais nações do Bloco. Utilizaremos
Cassama (2014) e registros jornalísticos para ilustrarmos as relações entre os países-
membros dessa comunidade.
Concluiremos com a problematização da situação jurídica da população trans nos
países lusófonos. Usaremos como aporte teórico nessa elaboração dados catalográficos,
colhidos através da legislação disponibilizada nos veículos oficiais dos países-membros e
nos meios de comunicação dos mesmos.

1. A CATEGORIZAÇÃO DA TRANSEXUALIDADE
A categorização da transexualidade é recente, data do início do século XX e foi
fortemente influenciada pelo discurso médico. O trabalho de três pesquisadores foi
fundamental para que isso ocorresse; Harry Benjamin endocrinologista alemão, radicado
nos Estados Unidos, Robert Stoller psiquiatra e psicanalista americano e John Money
psicólogo e professor do Hospital Universitário John Hopkins em Baltimore, EUA.
(ARÁN, 2005; ARÁN; MURTA, 2009).
Para adentrarmos a problematização da categorização em si, se faz necessário
discorrer um pouco sobre a história da transexualidade. Retomando assim alguns
conceitos, dentre eles a diferenciação entre sexo e gênero e, consequentemente, entre
orientação sexual e identidade de gênero para posteriormente enveredar nas especificidades
da categoria transexual.
A diferenciação entre sexo e gênero também é uma construção recente e apresenta
desdobramentos em vários campos do conhecimento, principalmente nas Ciências
Humanas. As primeiras elaborações sobre o tema datam da primeira metade do século XX
e apresentam gênero como um registro cultural e sexo como uma marca biológica.
(MEAD, 1988; BEAUVOIR; 1980).
O conceito de gênero de acordo com Spizzirrii et al. (2014) sofreu forte influência
do Movimento Feminista, desde sua origem já carrega um forte registro político ao
problematizar toda uma construção social e discursiva sobre as representações de gênero.
Destacam ainda o papel do psiquiatra americano Robert Stoller que popularizou o termo no
campo psiquiátrico ao lançar o livro Sexo e Gênero em 1968.
Outra contribuição significativa nessa diferenciação foi dada pela historiadora
americana Joan Scott, ela definiu gênero como: ―[...] um elemento constitutivo de relações
sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira
de significar as relações de poder.‖ (SCOTT, 1990, p.21). A autora ainda ao analisar o
percurso da conceituação do termo gênero, reafirma a influência do Movimento Feminista
na sua definição contemporânea.
Gradativamente o modelo binário que estabelecia sexo/biológico e gênero/cultural,
proposto ainda na década de 50, passou a ser questionado. A principal expoente da crítica a
essa lógica é Judith Butler (2010). A filósofa pós-estruturalista propõe que não apenas o
gênero sofre influência da cultura, mas que o sexo também é uma construção cultural.
Rompe assim, com uma lógica identitária e estabelece o conceito de performance para
problematizar as possibilidades de experienciar às representações de gênero.
Para finalizarmos essa etapa de conceituação e diferenciação entre sexo e gênero,
tomamos as palavras de Bento (2012, p. 264):
(...) podemos analisar gênero como uma sofisticada tecnologia social
heteronormativa, operacionalizada pelas instituições médicas, linguísticas,
domésticas, escolares e que produzem constantemente corpos-homens e corpos-
mulheres. (...) O sexo é uma das normas pelas quais o ―alguém‖ se torna viável,
que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade. Há
uma amarração, uma costura, ditada pelas normas, no sentido de que o corpo
reflete o sexo, e o gênero só pode ser entendido, só adquire vida, quando referido
a essa relação. As performatividades de gênero que se articulam fora dessa
amarração são postas às margens, pois são analisadas como identidades
―transtornadas‖ pelo saber médico.

Depois de ilustrarmos a diferença entre sexo e gênero, se faz necessária outra


diferenciação entre os conceitos de orientação sexual e identidade de gênero. As práticas
sexuais precederam as respectivas categorizações, aspecto trabalhado por Foucault (1988).
Sendo, portanto, o ato de categorizar os comportamentos que fogem do padrão
heteronormativo uma fato recente na história da humanidade.
Se fizermos uma breve retrospectiva histórica, encontraremos vários personagens
que mantinham relações sexuais e afetivas com pessoas do mesmo sexo, nos mais
diferentes períodos históricos. Práticas que fugissem a norma heterossexual só passaram a
ser condenadas moralmente com a ascensão do poder da Igreja Católica. O marco da
proibição da homossexualidade no mundo Ocidental, segundo Bomfim (2011) foi o
Concílio de Latrão de 1179, que determinou sua criminalização.
A categorização possibilitou à criminalização das práticas sexuais fora da lógica
heteronormativa. Emergindo a categorização das práticas sexuais dando origem à
conceituação de identidade sexual, que gradativamente evoluiu para concepção de
orientação sexual. Dessa forma se originou a categoria homossexual, seguindo a mesma
lógica de classificação surgiram novas nomenclaturas na tentativa de abarcar as várias
possibilidades de viver a sexualidade. Orientação sexual seria o registro do desejo do
sujeito, direcionado para o sexo oposto (heterossexual), para o próprio sexo (homossexual),
para ambos os sexos (bissexual) ou pra nenhum objeto (assexuado).
Por sua vez, a identidade de gênero, segundo Barbosa (2013) como conceito foi
utilizado inicialmente pelo psicólogo John Money. Anteriormente, tinham ocorrido
algumas tentativas de conceituar as experiências que ficavam à margem da orientação
sexual. Nesse sentido, Ferreira (2013) destaca o uso ainda no século XIX do termo
Terceiro Sexo, como uma tentativa de abarcar essas experiências relacionadas ao gênero e
não ao objeto de desejo sexual.
A identidade de gênero nasce como um campo fronteiriço que buscava categorizar
as experiências que não estavam atreladas à sexualidade genitalizada, mas a percepção dos
sujeitos sobre o próprio gênero. Especialmente dos que não se adequavam ao gênero
atribuído no nascimento, os que performavam o gênero em dissonância com os caracteres
sexuais, isso independente da orientação sexual que se identificavam.
Sobre a transexualidade, segundo Arán (2009), Magnus Hirschfeld foi o primeiro a
utilizar o termo transexualismovi, ainda na primeira década do século XX. Também foi o
responsável em 1923, por uma das primeiras cirurgias de transgenitalização que se tem
conhecimento, procedimento realizado no pintor dinamarquês Einar Wegener, que veio a
adotar o nome de Lili Elbe.
Sendo a dinamarquesa a primeira transexual da história a passar por uma
readequação de gênero. Mas o procedimento só viria a ganhar visibilidade nos anos 50,
depois da cirurgia de Christine Jorgensen.
Jorgensen foi militar na Segunda Guerra Mundial e, depois de sua volta para os
Estados Unidos, toma conhecimento da possibilidade de ―mudar de sexo‖ através
do trabalho do endocrinologista dinamarquês Christian Hamburguer sobre
hormônios femininos. Jorgensen realiza, sob a supervisão deste médico, a terapia
hormonal e, no mesmo ano de 1951, passa por um procedimento cirúrgico a fim
de remover seus testículos. (LEITE JR., 2009 apud BARBOSA, 2013, p. 359-
360).

A cirurgia de Christine Jorgensen ganhou muita repercussão na mídia, dando


visibilidade ao procedimento de transgenitalização até então restrito ao caráter
experimental na Europa. Posteriormente ao período de experimentação e aperfeiçoamento
de técnicas cirúrgicas, tem início um período de sistematização e produção de
conhecimento sobre o transexualismo.
Segundo Arán (2006), Harry Benjamin endocrinologista alemão, foi o responsável
pela definição moderna do termo transexualismo, chegando a desenvolver uma escala de
classificação da orientação sexual, utilizada como critério de diagnóstico. Dessa forma
paralelamente a categorização do transexualismo ocorreu sua patologização. Nesse sentido,
Arán et al. (2009) destacam que Harry Benjamin foi o responsável pela nosologia
psiquiátrica que transformaria o transexualismo na categoria psiquiátrica de disforia de
gênero.
O termo disforia de gênero por sua vez foi conceituado pelo psicólogo John Money
como resgatam Bento e Pelúcio (2012). Diante desse discurso científico desenvolvido
sobre o fenômeno da transexualidade, ocorreu o seu ingresso nos manuais de diagnóstico
médico. Arán et al. (2009) destacam que nos anos 80, o DSM-IV catalogou o
transexualismo, como transtorno de identidade de gênero. Por sua vez o CID-10 apresenta
o transexualismo como transtorno da identidade sexual, como destacam Bento e Pelúcio
(2012). A contribuição de Robert Stoller, psiquiatra e psicanalista americano se deu na
descrição da experiência do fenômeno da transexualidade.
Para este autor a definição de transexualismo se baseia principalmente em três
aspectos: 1- um sentimento de identidade permanente, uma crença (no caso do
transexualismo masculino) numa essência feminina sem ambigüidades,
(diferentemente do travestismo por exemplo). 2- uma relação com o pênis vivida
―como horror‖, não existindo nenhuma forma de investimento libidinal. 3- uma
especificidade na relação com a mãe que o autor chama de simbiose. Porém, o
autor ressalta que esta relação não pode ser considerada psicotizante,
principalmente porque a capacidade de integração social destas pessoas
permanece intacta. (ARÁN, 2005, p.3).

O recorte de Stoller de acordo com Arán (2003 apud ARÁN, 2005) é fortemente
influenciado pelo viés da patologização, aspecto herdado da tradição psiquiátrica que
perdurou do século XIX até meados do século XX, mesmo assim sua descrição da
percepção subjetiva do transexual é detalhada e ainda válida.
Contemporaneamente a questão mais urgente no campo da transexualidade é a
despatologização. Nesse sentido Bento e Pelúdio (2012) tecem uma análise pela via do
empoderamento como movimento de mudança da via da patologização. As autoras
defendem o gênero politizado como uma alternativa de saída do paradigma diagnóstico,
nessa defesa elencam aspectos que vão além da despatologização formal.
Atualmente, são mais de 100 organizações e quatro redes internacionais na
África, na Ásia, na Europa e na América do Norte e do Sul que estão engajadas
na campanha pela retirada da transexualidade do DSM e do CID. As
mobilizações se organizam em torno de cinco pontos: 1) retirada do Transtorno
de Identidade de Gênero (TIG) do DSM-V e do CID-11; 2) retirada da menção
de sexo dos documentos oficiais; 3) abolição dos tratamentos de normalização
binária para pessoas intersexo; 4) livre acesso aos tratamentos hormonais e às
cirurgias (sem a tutela psiquiátrica); e 5) luta contra a transfobia, propiciando a
educação e a inserção social e laboral das pessoas transexuais. (BENTO;
PELÚCIO, 2012, p. 573).

Ao defender aspectos como inserção social e laboral, as autoras defendem uma


visão ampla de despatologização. Em consonância com a política internacional de Direitos
Humanos e dialogando com o movimento LGBT. Depois dessa breve reflexão sobre a
categorização da transexualidade, iremos problematizar a Lusofonia e posteriormente a
transexualidade nos países-membros.

2. A LUSOFONIA: OS HERDEIROS DE CAMÕES

Diante das proporções territoriais do antigo Império Colonial Português vi, iremos
nos ater ao processo sócio-histórico de ligação entre as nove nações que compõem a CPLP.
Respectivamente: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial,
Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. A cultura lusófona tem sua
origem no Império Português, Portugal iniciou através das Grandes Navegações um
movimento expansionista e de colonização de povos em vários continentes, destacando sua
presença na América, África e Ásia. Tornando o pequeno reino um expoente econômico
entre os séculos XV e XIX, esse período de apogeu foi graças à dominação dos povos
oriundos dos territórios dominados e exploração dos recursos dessas colônias.
Muitos atribuem o êxito dessa expansão devido ao pioneirismo de Portugal como
Estado Moderno. Diante da expulsão dos mouros da Península Ibérica e a separação do
então Reino da Galícia, Portugal foi o primeiro Estado europeu a se consolidar e assegurar
uma unidade territorial e governamental. Perpetuando essa unidade praticamente de forma
inalterada desde a Idade Média, apesar de rupturas dinásticas e institucionais como o
período da União Ibérica, posteriormente o advento da Repúblicavi e a Ditadura de
Salazarvi. (MARTINS, 2014).
A unidade política e territorial, aliadas a posição geográfica privilegiada propiciou
um cenário fértil ao expansionismo. Não existe consenso sobre o marco inicial desse
período, alguns historiadores creditam a conquistavi das ilhas Canárias em 1336 e outros a
Ceuta em 1415 como o início do expansionismo português. (MARTINS, 2014). Dos países
ex-colônias que agora são membros da CPLP, o primeiro a ser conquistado foi Guiné-
Bissau. O navegador português Álvaro Fernandes chegou à Guiné em 1446.
Cabo Verde por sua vez, foi alcançado por Diogo Gomes em 1456. Diferentemente
da Guiné, Cabo Verde era um arquipélago desabitado. Sua povoação se deu de acordo com
Mourão (2009), devido à miscigenação entre os colonizadores portugueses e os africanos,
em sua maioria de origem guineense, que eram levados ao arquipélago para servir ao
tráfico negreiro. Ainda segundo a autora a povoação de Cabo Verde seria uma
consequência do período colonial.
As ilhas de São Tomé e Príncipe também estiveram desabitadas até 1470, quando
os navegadores portugueses João de Santarém e Pêro Escobar as conquistaram, passaram a
ser chamadas de Província Ultramarina de São Tomé e Príncipe. Também foram os
navegadores portugueses os primeiros europeus que exploraram o golfo da Guiné em 1471.
Fernão do Pó teria sido o responsável pela conquista do atual território da Guiné
Equatorial.
Posteriormente Portugal e Espanha firmaram dois tratados; o de Santo Ildefonso
assinado em 1777 e o de El Pardo assinado em 1778. Ambos tratavam do controle dos
países sobre colônias no Rio da Prata e do Golfo da Guiné. Portugal cedeu o território da
atual Guiné Equatorial e o controle da Colônia de Sacramento, atual Uruguai em troca da
posse de territórios nos pampas gaúcho e catarinense.
A conquista de Angola é atribuída ao explorador português Diogo Cão em 1482.
Mesmo esse território já sendo habitado por vários povos, dentre eles se destacavam os que
formavam o Reino de Ngola e o Reino de Matamba. A exploração portuguesa se deu
principalmente através do tráfico de escravos originários dos povos conquistados do atual
território angolano, na época conhecido como Estado da África Oriental para a exploração
no Brasil. (ANGOLA, 2017).
Ficou a cabo de Vasco da Gama o feito da conquista de Moçambique em 1497.
Resultante da rota de exploração de contorno do Cabo da Boa Esperança, atual território da
África do Sul, para acesso aos mercados orientais. Aos poucos outros exploradores
portugueses se estabeleceram no atual território moçambicano, dando origem à África
Oriental Portuguesa. O Brasil por sua vez, foi conquistado pelos portugueses em 1500 pela
esquadra de Pedro Álvares Cabral. Mesmo já sendo habitado por vários povos de origem
pré-colombiana, calcula-se que eram em torno de cinco milhões de indivíduos vivendo no
território na época da conquista portuguesa. (HAAG, 2010).
O Brasil logo se tornaria a colônia mais próspera do Império Português, as
atividades econômicas desenvolvidas pelos colonizadores passaram a demandar por mão
de obra, os povos indígenas foram inicialmente utilizados. Mas logo foram substituídos
pelos africanos escravizados, principalmente de origem angolana. Estabelecendo uma
relação de dependência do Brasil da mão de obra angolana, mas com o lucro final da
comercialização retido pelo poder central de Lisboa. O Padre Antônio Vieira ainda no
século XVII ilustrou bem essa relação, fazendo uma crítica às elites da colônia; ―Sem
pretos não há Pernambuco e sem Angola não há pretos. (...) O Brasil que vive e se alimenta
de Angola.‖ (VIEIRA, 1648 apud GOUVÊA, 2001, p. 285).
O último dos países-membros da CPLP conquistados por Portugal foi Timor-Leste,
que tem como primeiro registro uma carta de Rui de Brito Patalim ao rei Manuel I de
Portugal, datada de 6 de janeiro de 1514. Posteriormente a conquista documentada pela
carta de Rui de Brito Patalim, passou a ser explorado como colônia, sendo chamado de
Timor Português.
Antes de analisar os reflexos do longo período colonial no qual Portugal exerceu
domínio sobre os demais países da atual CPLP. Temos que refletir sobre o próprio conceito
de Lusofonia, que para muitos se restringe a comunidade de nações que partilham da
Língua Portuguesa. Mas se levarmos em consideração fatores macropolíticos, engloba uma
série de outros aspectos culturais, sociais e econômicos.
A independência das antigas colônias não limitou a expansão da Língua Portuguesa
e a influência da cultura Lusófona. Especialmente a Independência do Brasil que ocorreu
sete de setembro de 1822, sendo o primeiro dos atuais membros da CPLP a se libertar do
domínio português. A Independência do Brasil ocorreu ironicamente pelas mãos de um
português, coube a Dom Pedro I decretar a separação do Brasil de Portugal.
O Brasil devido às suas proporções continentais, atualmente conta com a área de
8.515.759,090 km2, (IBGE, 2017), além do dinamismo econômico, naturalmente exerce
uma liderança continental emergente desde o período do Segundo Império. É membro
fundador do MERCOSULvi, UNASULvi, CPLP e do BRICSvi. Exerce liderança econômica
e cultural sobre parte significativa das nações sul-americanas e lusófonas.
Fora o Brasil a independência dos demais territórios foi relevante para a atual
situação das relações na comunidade lusófona. A Independência de Guiné Equatorial,
território cedido por Portugal à Espanha desde 1778, ocorreu em 12 de outubro de 1968.
Sendo o primeiro país a se tornar independente entre as ex-colônias na África.
As colônias portuguesas na África teriam um caminho sangrento até conseguir a
independência. Em meados da década de 1960 começaram a ocorrer incidentes entre as
forças coloniais e grupos nacionalistas de resistência armada. O clima de revolta nas
colônias emergia como ilustra as palavras do líder revolucionário Amílcar Cabral:
Toda a educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As
línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre
apresentado como um ser superior e o africano como o inferior. As crianças
africanas adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola
primária. Aprendem a temer o homem branco e a terem vergonha de serem
africanos. A geografia, a história e a cultura de África não são mencionadas, ou
são adulteradas, e a criança é obrigada a estudar a geografia e a história
portuguesa. (CABRAL, 1978, p.64 apud CASSAMA, 2014, p. 27).

A situação interna em Portugal também era conflituosa, a Ditadura de Salazar


gerava descontentamento e opressão interna. Na passagem da década de 60 para 70, os
movimentos de independência ganharam força. Em resposta Portugal liderou uma
fracassada Guerra com o intuito de reprimir os movimentos de libertação. A Guerra
Ultramar teve início em Angola em 1961, logo movimentos de independência explodiram
em outras colônias como Guiné-Bissau em 1963 e Moçambique em 1964.
A guerra de independência da Guiné começou em 23 de janeiro de 1963, liderada
pelo Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Guiné-Bissau
proclamou a Independência em 24 de setembro de 1973, mas Portugal só reconheceu em
1974. Ao contrário das outras colônias portuguesas na África, não houve Guerra na
Independência de Cabo Verde, a mesma foi negociada entre o PAIGC e o governo
português, sendo decretada em cinco de julho de 1975. (CASSAMA, 2014).
A Independência de São Tomé e Príncipe ocorreu em 12 de julho de 1975,
liderada pelo Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) e como
consequência política da Revolução dos Cravos em Portugal, ocorrida em 1974. A
Revolução dos Cravos foi um marco na redemocratização de Portugal e na
independência dos territórios ultramarinos. A Lei 7/1974 estabeleceu:
O princípio de que a solução das guerras no ultramar é política e não militar,
consagrado no n.º 8, alínea a), do capítulo B do Programa do Movimento das
Forças Armadas, implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o
reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação.
(PORTUGAL, 1974)

A Revolução dos Cravos e a Lei 7/1974 tornaram viável a independência de todas


as colônias portuguesas até então em conflito. Mesmo assim se faz necessário conhecer
mais detalhadamente os movimentos revolucionários em Moçambique e Angola, além da
independência do Timor-Leste. A Guerra pela Independência de Moçambique teve início
a 25 de Setembro de 1964, liderada pela Frente de Libertação de Moçambique
(FRELIMO). Contou com um cessar-fogo em oito de Setembro de 1974, posteriormente a
Revolução dos Cravos e teve por encerramento a Independência de Moçambique 25 de
junho de 1975. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 2004).
A Luta Armada de Libertação Nacional como ficou conhecida a Guerra pela
Independência de Angola foi liderada pelos grupos; Movimento Popular de Libertação de
Angola (MPLA), Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e União Nacional para
a Independência Total de Angola (UNITA) que guerrearam contra as Forças Armadas de
Portugal. O conflito perdurou de 1961 até 1974, resultando na Independência de Angola
que foi decretada em 11 de novembro de 1975. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 2010).
A Independência do Timor-Leste do domínio português ocorreu, como já foi dito,
devido a Revolução dos Cravos de 1974. Foi proclamada em 28 de novembro de 1975,
mas pouco depois em sete de dezembro de 1975 ocorreu à invasão indonésia. O Timor-
Leste foi submetido a mais um período de dominação só vindo a se libertar do domínio da
Indonésia em 20 de maio de 2002.
Os cinco séculos do Império Português deixaram marcas, não apenas nas nações
dominadas, mas também internamente em Portugal. O declínio econômico já ocorria desde
a Independência do Brasil em 1822. Portugal demorou a se industrializar e permaneceu na
dependência de outros países para acesso a produtos manufaturados. Depois de um período
nebuloso de ditadura correspondente ao Estado Novo (1933-1974), Portugal permanecia
um país agrícola e agora sem os recursos das antigas colônias.
As mudanças nas ex-colônias, também foram profundas, uma das características
interessantes do período pós-independência é que os movimentos de libertação das antigas
colônias se tornaram partidos políticos. Esses partidos sofreram forte influência do então
governo Soviético, desde o período em que eram movimentos armados e lutavam pela
independência das suas nações. Consequentemente o início dos governos nesses países foi
fortemente influenciado pelo socialismo nos padrões soviéticos: partido único, sem
eleições, estatização da economia, militarismo e autoritarismo.
Angola depois da Independência se viu envolvida em uma Guerra Civil (1975-
2002). Mesmo depois da paz ainda tem que lidar com um regime com características
antidemocráticas, tendo o mesmo presidente no cargo desde 1979. Moçambique também
logo após a Independência passou por uma Guerra Civil (1977-1992), em boa parte desse
período era governado por Samora Machel em um Regime unipartidário de inspiração
socialista. Depois da morte de Machel e do fim da Guerra Civil o país tem conseguido
realizar eleições com regularidade. Mesmo que o partido FRELIMO tenha permanecido no
poder desde a Independência. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 2012).
Mesmo antes da Independência Guiné-Bissau e Cabo Verde chegaram a cogitar a
unificação, mas a possibilidade das duas colônias se tornarem um único país logo caiu por
terra. Diferenças culturais e interesses políticos impossibilitaram essa unificação
(CASSAMA, 2014). Separadamente podemos destacar que Cabo Verde dentre as nações
ex-colônias portuguesas na África, foi a que mais prosperou do ponto de vista democrático,
conseguindo se consolidar como uma democracia. Tendo realizado uma série de eleições e
permitido a alternância de poder entre os partidos políticos. Já Guiné-Bissau enfrentou uma
série de conflitos para se consolidar como nação, atualmente sofre com a instabilidade
política e corre risco de sofrer uma ruptura democrática mais drástica. (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 2016; DW, 2017).
São Tomé e Príncipe depois da Independência aderiu a um período de partido
único, exercido pelo Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). Como
as demais Repúblicas Africanas ex-colônias de Portugal o Movimento pela independência
tornou-se o principal partido político do país e passou a seguir o Socialismo de viés
soviético. Em 1990 o país passou a se abrir politicamente e economicamente, em
decorrência do desmoronamento da União Soviética e consequentemente dos subsídios
dados pela antiga potência aos seus aliados da Guerra Fria. Na década de 90, São Tomé e
Príncipe adotou o multipartidarismo e tem desde então realizado eleições sistemáticas de
forma democrática e com alternância de poder entre os partidos.
Dois países-membros da CPLP merecem uma atenção maior ao problematizarmos a
transição do período colonial para o pós-independência. São eles; Timor-Leste e Guiné
Equatorial. O Timor por ter sido invadido logo após a Independência de Portugal pela
vizinha Indonésia, só alcançando a libertação em 2002. Quase trinta anos de dominação
indonésia distanciou o povo do Timor-Leste da língua portuguesa, hoje sendo falado por
pouco mais de 10% da população local, mesmo assim sendo o idioma oficial. Guiné
Equatorial por sua vez, detém duas peculiaridades; fala espanhol, mesmo tendo a língua
portuguesa como oficial e tem um governo ditatorial liderado por Teodoro Obiang, ditador
há mais tempo no poder na África e conhecido pelas violações aos Direitos Humanos.
(DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 2016).
A CPLP tem um longo caminho para se consolidar e desempenhar a tarefa a que se
propõe; aproximar economicamente, socialmente e culturalmente seus países-membros.
Algumas iniciativas já demonstram resultados no campo da cooperação acadêmica e
científica, além do fomento ao esporte. Sobre o campo esportivo vale destacar a criação da
Associação dos Comitês Olímpicos de Língua Oficial Portuguesa - ACOLOP. Entidade
que organiza os Jogos da Lusofonia que se encaminham para sua quinta edição e os Jogos
da CPLP, direcionado para jovens de até 16 anos e se encaminham para sua décima
primeira edição. (ACOLOP, 2017).
Apesar dos avanços há críticas à CPLP e ao ideal de Lusofonia. As críticas são
principalmente direcionadas ao Brasil e Portugal, acusados por alguns de promoverem uma
relação de neocolonialismo com as demais nações do bloco. Outra fonte de críticas é o
Acordo Ortográfico, mal aceito principalmente em Portugal. E por fim, também merece ser
problematizada a relação de alguns dos países-membros com a Língua Portuguesa. Alguns
a têm como oficial, mas sendo pouco utilizada pela população, que majoritariamente utiliza
os idiomas crioulos.
Apesar dessas questões é inegável a importância da CPLP e a liderança exercida
por Portugal e principalmente pelo Brasil no bloco. Depois desse recorte sócio-histórico
das relações entre os países da CPLP, passemos a problematização da situação jurídica da
população transexual nesses países.

3. TRANSEXUALIDADE NOS PAÍSES LUSÓFONOS

Os países lusófonos majoritariamente ainda engatinham em termos de legislação


que assegure os direitos das minorias. Apesar dessa realidade destacamos algumas
conquistas e alguns desafios no campo jurídico para assegurar os direitos dos transexuais
entre os membros da CPLP. Sobre as conquistas, vale destacar que o Código Penal de
Portugal estabelece agravo penal motivado por discriminação em função do sexo ou
orientação sexual da vítima, no caso de homicídio qualificado ou ofensa à integridade
física qualificada, isso é equivalente à tentativa de homicídio ou lesão corporal grave aqui
no Brasil. (LIMA, 2010). Esse avanço apesar de recente data de 2007, nos chama atenção
para o processo de mudança e adequação do Estado Português em relação à proteção dos
direitos da população LGBT.
Mesmo não existindo uma legislação específica para os crimes de homofobia,
outros dispositivos asseguram à proteção dessa população. A Constituição portuguesa
estabelece a não discriminação por orientação sexual, ou identidade de gênero. (LIMA,
2010). O Código Penal, também assegura responsabilização em função da discriminação
racial, religiosa ou sexual.
Outro avanço significativo foi à lei nº 7/2011 de 15 de Março (PORTUGAL, 2011)
que criou o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil em
Portugal. O Brasil também tem legislações sobre o tema, destacamos o Decreto nº
8.727/2016 (BRASIL, 2016) que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da
identidade de gênero no âmbito da administração pública federal. E a Portaria MS nº
2.803/2013 (BRASIL, 2013a) que redefine e amplia o Processo Transexualizador no
Sistema Único de Saúde (SUS).
As iniciativas dos demais países da CPLP na proteção da vida e promoção da
cidadania da população transexual são escassas, mas não inexistentes. Em 2008, Cabo
Verde, Brasil, Guiné-Bissau, Portugal e Timor-Leste apoiaram a proposta de uma
resolução da ONU sobre orientação sexual e identidade de gênero, mas Angola se opôs,
Moçambique se absteve e São Tomé e Princípe só viria a assinar a mesma em 2011. (ONU,
2011). Os desafios habitam em todos os países, o Brasil, por exemplo, não possui uma
legislação específica sobre os crimes associados à homofobia. Nem mesmo leis mais
genéricas que possam servir de respaldo para um agravo na pena, quando o crime for
motivado pela orientação sexual ou identidade de gênero da vítima.
Tramitou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 122/2006 intitulado de lei
anti-homofobia, que propõe a criminalização do preconceito motivado pela orientação
sexual e pela identidade de gênero. O projeto busca equiparar a homofobia e a transfobia
ao crime de Racismo já criminalizado pela Lei 7716/89. O projeto de Lei 122/2006 foi
apresentado pela deputada Iara Bernardi (PT - SP), e foi batizado como Lei Alexandre Ivo.
O projeto tramita atualmente no Senado, depois de várias alterações no seu texto inicial e
enfrenta resistência da bancada conservadora e de segmentos da sociedade. (BOMFIM,
2011).
Outro projeto de lei em tramitação na Câmara dos deputados que significaria um
avanço para população transexual seria o PL 5002/2013 (BRASIL, 2013b), que dispõe sobre
o direito à identidade de gênero. Esse projeto é de autoria dos deputados Jean Wyllys
(PSOL-RJ) e Érika Kokay (PT-DF) e foi batizado como Lei João Nery ou Lei de
Identidade de Gênero.
Portugal também demanda uma legislação específica, que criminalize a homofobia.
E por sua vez, o Brasil ainda precisa aperfeiçoar muito sua legislação sobre o tema, por não
criminalizar a homofobia, e sequer punir como agravo os casos de violência motivados por
homofobia ou transfobia. Além de naturalizar a violência de gênero até no âmbito
representativo. Esses aspectos representam um atraso para os dois países, tendo em vista
que ambos exercem extrema influência sobre as demais nações lusófonas. Como lideranças
no âmbito econômico, político, cultural e social da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa-CPLP, tinham o dever de exercer seu papel na luta e na defesa dos Direitos
Humanos na comunidade.
Principalmente, porque entre as nações-membros da CPLP, muitas ainda
criminalizam a homossexualidade como ocorre em Angola e Guiné Equatorial, dessa
forma podemos imaginar a vulnerabilidade da população transexual nessas nações. Diante
desse cenário, podemos colocar que a situação de todos os países do ponto de vista jurídico
merece aperfeiçoamento, apesar dos avanços que ocorreram desde o início da década de
2000. A CPLP precisa fortalecer o combate à LGBTfobia e assegurar os direitos da
população transexual nos países-membros. Mesmo tendo consciência do desafio de
promover tal tarefa em nove nações com culturas e legislações tão distintas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao trabalharmos com gênero no contexto identitário, tendo em vista o recorte


cultural e linguístico, estamos buscando outras ferramentas jurídicas, institucionais e de
Estado para abordar o tema. Como as pautas das minorias no mundo Lusófono, ainda
majoritariamente, sofrem com a invisibilidade e a intolerância institucionalizada, se faz
necessário problematizar outras vias de torná-las viáveis, a pressão internacional de
dispositivos que têm legitimidade para exercê-la é válida.
A CPLP pode vir a se tornar um instrumento que exerça essa função, por um lado
pedagógica e por outro de deliberação sobre determinações que estejam em consonância
com a luta pelos Direitos Humanos da população transexual. Mesmo tendo consciência do
desafio que essa e outras pautas progressistas têm em se consolidar nos países-membros,
mesmo os mais desenvolvidos economicamente. A instabilidade política é um fator que
dificulta esse processo de cooperação e integração, mas ao mesmo tempo só reafirma a
necessidade de uma atuação mais efetiva da CPLP.
Que já vem desempenhando um papel afirmativo no campo dos Direitos Humanos,
como ocorreu a estabelecer como pré-requisito para adesão da Guiné Equatorial como
membro, o fim da Pena de Morte no país. Porém os desafios são enormes, além do
desconhecimento sobre a transexualidade e sobre a CPLP, até mesmo no Brasil. Nesse
sentido no que tange a sexualidade e consequentemente, as orientações sexuais,
identidades de gênero, representações de sexualidades e performances sexuais, é fato que
há um longo caminho a ser percorrido no âmbito social no que corresponde a
desconstrução de conceitos e estereótipos, ainda existentes na atualidade.
Sobre a questão da comunidade linguística, que na prática se propõe a afirmar
aspectos étnicos, culturais e econômicos, precisamos superar o ranço colonial, as sequelas
dos conflitos armados, o neocolonialismo, o autoritarismo e a xenofobia. Diante da
globalização as relações em bloco são quase impositivas, mas a consolidação de um bloco
periférico pode funcionar como um instrumento de proteção mútua.
A respeito da Transexualidade, conforme vimos através deste trabalho, ainda é
necessário avançar no combate à Transfobia e na promoção de medidas que assegurem o
direito à vida e a dignidade da população transexual. Esperamos, contudo, ter contribuído a
partir deste trabalho com as questões referentes à problemática transexual, bem como com
a necessidade de fortalecer a Comunidade Lusófona como instrumento de afirmação dos
Direitos Humanos.
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ALGUMAS NOTAS.

Jakeline Amorim Silvavi

GT 02 – GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS.

RESUMO

Ao falar de prostituição, surgem diversas problemáticas que poderão ser tratadas acerca de
um tema que é tão comum de se discorrer, buscando-se uma visão diferente daquela
tradicionais, machistas e conservadoras. O presente trabalho tem como foco principal a
discussão sobre a prostituição feminina, dessa forma, propõe-se analisar os caminhos
percorridos na constituição da prostituição até suas nuances mais contemporâneas no
Brasil. Desse modo, busca-se, também, discutir o histórico da prostituição no Brasil bem
como as formas como o legislador tem tratado dessa temática no ordenamento jurídico
brasileiro, mas pontualmente em nosso Código Penal, fazendo um paralelo com os
sistemas políticos e jurídicos adotados por outros países no mundo. Por fim, busca-se
expor a diversas visões sob as quais feminismo aborda e expõe os princípios sobre a
prostituição da mulher.
Palavras-chaves: Mulher. Prostituição. Feminismo. Brasil.

INTRODUÇÃO

Diversas formas de olhares podem ser direcionadas a prostituição, hoje toma várias
subdivisões e setores da sociedade que antes não era explorada ou até mesmo não se tinha
conhecimento dessas pratica.
Inicialmente o presente estudo será direcionado a origem da prostituição, expondo e
analisando cada período marcante na história até o século atual, desse modo que possamos
compreender de uma forma simples.
Em seguida, passaremos a analisar tanto as disposições políticas e jurídicas
pertencentes ao nosso ordenamento, quanto aos modelos que outros grandes países de
primeiro mundo adotam para fazer a sua tratativa acerca da prostituição.
Chegando ao fim, examina os posicionamentos do feminismo a respeito da
prostituição, visto que é um dos movimentos mais marcante quando se fala sobre mulher,
dessa forma expor e refletir sobre os seus posicionamentos.
Diante desses expostos, o presente trabalho busca responder o seguinte problema de
pesquisa: quais as principais origens que constituíram a prostituição e suas reverberações
no direito e no feminismo? Especificamente, nos voltaremos às questões da prostituição da
mulher e do que algumas correntes feministas podem ser, em tese, consideradas
ultrapassadas para um movimento que busca a igualdade e liberdade da mulher perante o
universo masculino.
Objetivando compreender quais as principais origens que constituíram a
prostituição, os referencias teóricos se organização com vista aos subsequentes objetivos
específicos: 1) relatar as principais origens que constituíram a prostituição feminina; 2)
analisar os aspectos e o ordenamento jurídico brasileiro tão como os sistemas adotados por
alguns países do globo ao tratar sobre a prostituição; 3) expor e analisar as correntes
feministas que versa sobre a prostituição.
E essa pesquisa é justificada uma vez que o debate sobre a prostituição,
principalmente a prostituição de mulheres deve ser instigada como uma conscientização de
que o julgamento ou a vitimação posta por uma sociedade nem sempre é correta, ainda que
a sociedade em sua maioria não considere uma profissão como outra qualquer, tão pouco
uma digna, buscar compreender os fatores que levaram a essa escolha, bem como os outros
objetivos pertinentes a essa temática.
Por outro lado, buscar o aprofundamento da temática, em pesquisas acadêmicas por
mais que seja um trema constantemente trabalhado em pesquisas na área do Direito. Ao
fim, e pessoalmente falando, desenvolver uma perspectiva diferente sobre a temática que é
constantemente abordada.
No que tange este estudo foi realizado com o método dialético, a partir de pesquisa
bibliográfica, considerando autores que abordam o tema, sobretudo, acerca da sua origem,
legislação e posicionamentos dos grupos de feministas.
Dessa forma, utilizando artigos, dissertações, teses, selecionada de uma forma
crítica que abordaram sobre a temática de várias perspectivas, para a construção de uma
base teórica.
Enquanto a análise documental nas legislações pertinentes, como a Constituição
Federal de 1988, Código Penal, e outros registros legais sobre o tema.
Após toda analises dos conteúdos bibliográficos e documentais, realizaremos a
produção dos resultados e das discussões acerca do tema em desenvolvimento, bem como a
conclusão.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Aprofundamentos acerca das principais origens da prostituição

Partindo das ideias que podemos ouvir no nosso cotidiano de como à prostituição é
considerada a profissão mais antiga do mundo. Podemos então partir da mitologia, onde se
acredita que surgiu a prostituição, mais especificamente, na época das Deusas, aonde
mulheres eram tratadas como divindades e que tinham poder sobre a sexualidade. Nos
templos onde foram construídos para adoração a essas divindades ocorria o início da
prostituição. E esse status de entregar-se para diversos homens tinha grande valor na
sociedade. (WAGNER, SANTIN. 2014)
Na Grécia Antiga, foi onde se deu início às práticas sexuais com fins lucrativos, o
Estado então começa a criar lugares distintos para a prática da prostituição, pode se dizer
que então surgiu os famosos bordeis, com consequência disto, os homens, em que hoje
poderiam chamá-los de ―cafetões‖, passaram a enriquecer com a ―venda do sexo‖. O
Estado visando tais lucros da ―venda do sexo‖ começa a cobrar impostos, para as casas de
bordeis manterem-se funcionando, assim, a prostituição se torna uma forma de
enriquecimento para ambos os lados. No entanto, nota-se que esse negócio não era um
monopólio comandado apena por homens, mas também por as famosas meretrizes, ou seja,
mulheres que tinha suas próprias casas de prostituição. (WAGNER, SANTIN. 2014)
Já no Império Romano, por volta do século VIII a.C., e por volta dos primeiros cinco
séculos d.C., a prostituição era aceita e comum. Nesse período o Estado também cobrava
impostos sobre o trabalho das profissionais. Os Romanos, no entanto, foram quem se deu
inicio de um sistema de cadastro feito pelo estado para aquelas prostitutas de baixa classe
fosse obrigada a se cadastrar nesse sistema, uma vez que era uma imposição do Estado
autoritarista, mas, como em toda regra sempre as os que militam contra, vislumbrando seus
males que causaria, nem todas as cumpriam uma vez que tinha seus pontos negativos,
como: uma vez cadastrados jamais poderia ser removida deste cadastro. E seu nome posto
como prostituta, ou meretriz como na época era denominado, elas sofreriam várias perdas
de direitos. E por mais que as mulheres romanas tivessem uma liberdade social como: sair
sozinhas, visitar templos, assistir peças teatrais, etc. Com a imposição do Imperador
Augusto, quando incorporou leis que diferenciava as mulheres, entre as de alta sociedade,
onde essa lei designava que o casamento, o lar e a procriação da família, era algo exclusivo
para aquela em que não tinha uma vida desonrosa, fácil, que não era prostituta. Já as de
baixa classe, as cadastradas como prostitutas tinham como consequência a perda de sua
liberdade e seguir um regulamento imposto pelo Estado. (WAGNER, SANTIN, 2014)
Com a queda do Império Romano, houve o período de migração das mulheres de aldeia
a aldeia oferecendo os seus serviços. Contudo, logo após, o cristianismo passar a ser a
religião oficial do império, a prostituição se transformou, antes não importava mais as
tradições daquele estado, apenas a vontade do Imperador, que todos deveriam seguir sua
religião e seus dogmas, assim passou a ver como um mal para a sociedade, e devendo
então ser erradicada. (WAGNER, SANTIN, 2014)
Chegando ao período de colonização do Brasil, Portugal quis fazer uma diferença entre
as prostitutas e as não prostitutas, assim surgiu à expressão ―moça de família‖ para
diferenciar as mulheres que vinha para o Brasil como acompanhantes de diversos homens -
a prostituta- das suas filhas e esposas que no português de Portugal a expressão ―moça‖
também é dita como ―puta‖ e consequentemente ―puta‖ no nosso português é utilizada para
denegrir a imagem de mulheres que não vivem de acordo com os padrões impostos pela
família tradicional brasileira, as prostitutas.
Em pleno século XX, no agir da Primeira Guerra mundial, a autonomia dos militares
proporciona as grandes nações o poder de escolhas para solucionar o ―problema‖ da
prostituição. Contudo, na França e na Alemanha abria bordeis regulamentado a torto e a
direita, para poder satisfazer as necessidades sexuais e fortalecimento do ego das tropas.
No século XXI, a prostituição tomou-se várias formas do que antes era conhecido, hoje
podemos encontrar garotas e garotos de programas, e não se limita ao meio hétero, também
se expande ao cenário LGBT. Ou seja, a prostituição tornou-se algo mais diverso e
complexo do que vimos a séculos passados.
Mesmo com toda essa complexidade, há países em que ainda tem o mesmo
posicionamento ou semelhante ao do Império, quando o Cristianismo se tornou a sua
religião oficial, consideram um mal para a sociedade e devendo ser extinta. Com o advento
das legislações, chega-se a criminalização de tal prática. Um exemplo é legislação dos
Estados Unidos da América.
Atualmente, algumas nações do globo estão vislumbrando algo que já vimos com os
nossos antepassados, só que de uma forma bem mais avançada a regulamentam da
prostituição como qualquer outra profissão. É exemplo delas a Holanda, Alemanha, Nova
Zelândia, Austrália, entre outros.

2.2 “Oh pátria amada, Brasil”: aspectos sobre a prostituição no Brasil e as


abordagens adotadas por países alguns países sobre a prostituição.

O Brasil acerca da prostituição é dividido por um misto de opiniões entre a igreja,


família, sociedade, profissionais, grupo de militantes e o Estado. A prostituição é tida
como um comportamento de afrontamento as crenças e os costumes da tão intocável
família tradicional brasileira. Ao analisar, o ordenamento jurídico brasileiro, podemos
perceber que o país adota uma postura da omissão, que, não há uma legislação que
regulamente tão pouca uma que torne a ilícita. Onde, o papel de criminalização ficou por
conta da sociedade onde em sua grande maioria, podem-se apontar sinais de sexismo e
machismos, que visa como função da mulher apenas o cuidado do lar, reprodução e a
manutenção da harmonia familiar.
O ato de se prostituir no ordenamento jurídico não configura um ato ilícito, tendo
em vista que a Constituição Federal de 1988, traz a ideia de que a pessoa pode dispor do
seu corpo nos limites da lei. Mas, ocorre que no Código Penal brasileiro em seus Art. 228,
229, 230 e 231 dispõe sobre o favorecimento da prostituição, atinente a casa de
prostituição, rufianismo e o tráfico de mulheres. Vejamos:
Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual: Art. 228. Induzir ou
atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou
dificultar que alguém a abandone:
Casas de prostituição: Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento
em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do
proprietário ou gerente:
Rufianismo: Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de
seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça:
Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual: Vide as leis nº 12.015 de
2009 e 13.344 de 2016
Atentando-se aos dispositivos legais citados, nota-se que o código penal não faz
referência à prostituição em si, ou seja, uma pessoa praticar o ato sexual com fins
lucrativos. Daí então se deduz que a pessoa que pratica a prostituição não comete nenhum
crime, uma vez que não há nenhuma tipificação dessa atividade.
Além de ressaltar a Constituição Federal de 1988 em seu Art. 5º, XXXIX, emana:
―não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem previa cominação legal‖.
Como há diversos sistemas políticos-jurídicos no mundo há uma grande variedade
de políticas acerca da prostituição. Pode-se então se dizer que há três sistemas, mas
conforme influencias dos países nórdicos, começa a se falar em um quarto sistema.
O sistema proibicionista considera a prostituição como um crime e deve ser
erradicado, desse modo, considera que todos os envolvidos estão praticando um ilícito
penal, ou seja, desde a prostituta até o cliente consideram que estão sujeitos a uma
responsabilidade penal. Esse sistema pode ser encontrado nos Estados Unidos da América
– EUA, China, Malta, Eslovénia e em outros países do leste Europeu. (TAVARES, 2000)
O sistema abolicionista apoiado por algumas correntes feministas considera a
prostituição como uma forma de violência contra a mulher, e ao se prostituir esta
restringindo a sua liberdade e cidadania. Contudo, considera as mulheres como vítima de
um sistema que explora, e restringe a socialmente e assim, condenando quem vive da
prostituição. Esse sistema é encontrado em grande parte da Europa. (TAVARES, 2000)
O sistema regulador em uma visão mais tradicional considera a prostituição um
fenômeno social incapaz de ser extinto, e como todo fenômeno social deve limitar os danos
à sociedade, ou seja, regulamentando. Não há nenhuma forma de penalidade para a
prostituta que é considerada a trabalhadora, prestadora de serviços, tão pouco para o cliente
que é considerado o consumidor, ou até mesmo para quem faz dessa atividade um negócio.
Esse sistema pode ser encontrado na Grécia, Áustria. Uma visão mais moderna desse
sistema entende que a quem vive da prostituição deve contrair direitos e deveres ligado à
atividade, como um acesso ai sistema público de saúde, segurança social, cobrança de
impostos, entre outros. Já esse modelo é adotado alguns países como Alemanha e Holanda.
Ao século XXI, surge então um novo sistema, o chamado, ―O novo sistema
abolicionismo do século XXI‖. Exposto pela Suécia, traz como princípios centrais: Lutar
contra o sistema que sustenta a prostituição, não contra a prostituta. – aqui busca erradicar
o fenômeno social que leva as mulheres a se prostituir-. Proteção jurídica da pessoa
prostituída. – aqui visa às mulheres que há em uma condição de tráfico ou de mulheres
refugiadas e acaba no mundo da prostituição. Penalização dos famosos ―cafetões‖. - uma
semelhança com a legislação brasileira, que penaliza aqueles que incentivam ou cria meios
(comércios) para a facilitação da prostituição. - Penalização e conscientização do cliente. –
Busca, então, erradicar com a fonte de renda dos profissionais do sexo, e não penalizar os
trabalhadores, uma vez que vai à ideia de que: sem clientes, sem trabalho. - E pode ser
formas de penalidade para o adquirente da prostituição, da aplicação de multas, educação
sexual ou até mesmo sua forma mais grave, a prisão. (TAVARES, 2000)
No antigo sistema abolicionismo, onde deixava os clientes de formas confortáveis e
imperceptíveis, onde dava força para os homens continuar dominando seja, por inúmeras
delas o sexo, no novo sistema abolicionismo busca expô-lo uma vez que se não existisse
clientes, não haveria a prostituição. (TAVARES, 2000)
E como exposto pelo sistema regulador que a prostituição é um fenômeno social e é
erradicável, em uma analises superficial desse novo sistema, nota-se que as mulheres
praticando da prostituição de certa forma são as que mais são atingidas e que mesmo com
essa represália aos clientes, e os homens buscam pela a prostituição, acabam ir buscando
em outros países, de qualquer modo, o sistema é falho.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.1 “O feminismo também é conservador, moralista e, quem sabe até, um pouco


machista”: as diversas correntes do feminismo sobre a prostituição das mulheres.

O feminismo é o movimento tem como causa principal a busca de igualdade entre


homens e mulheres, contudo, ele também se manifesta sobre causas que emana sobre os
aspectos do corpo e da liberdade das mulheres. No entanto, há divergência de
posicionamento, entre os vários ramos de correntes feministas acerca de diversas temáticas
e não seria diferente quando se tratasse de prostituição.
Com o posicionamento de alguns países acerca da criminalização da prostituição e
o forte assedio da força policial em meados das décadas 70 e 80. Identificando-se com a
causa das trabalhadoras do sexo, feministas lutaram para que prostituição fosse legalizada
e fosse reconhecida como qualquer outro trabalho, e não um ilícito penal. (TAVARES,
2000)
Logo após os anos 80, uma grande tensão estratégica e até mesmo ideológica, onde,
reconhecia a prostituição como uma atividade, no entendo, via tão pratica como um ato de
violência contra as mulheres – e o feminismo busca cessar esses atos de violência - e isso
levou a um grande afastamento desse movimento das causas que as prostitutas lutavam.
"Enquanto as primeiras lutavam ao lado das prostitutas contra as condições de exploração e
violência no seio da indústria do sexo, as segundas batiam-se para que o Estado interviesse
de forma mais rigorosa para interditar esta indústria" (TAVARES, 2000). O
posicionamento favorável à abolição da prostituição continuava a crescer juntamente com
os pensamentos moralistas e conservadores, principalmente no meio feminista, aonde tinha
posicionamentos que a prostituição era um meio de dar cobertura à escravidão da mulher.
Contudo isso é importante haver um deferimento entre dois pontos da pratica da
prostituição. Em primeiro plano possamos tratar da prostituição como uma escolha, de
quem deseja se prostituir possa ter sua liberdade de dispor sobre seu corpo e de suas
relações de negócio e possa usá-lo como um meio de trabalho. Mas, podemos vislumbrar a
figura da prostituição forçada, na qual homens e mulheres são forçados a ―vender‖ seu
corpo para que outrem obtenha lucro.
Logo, essa mesmo corrente feminista abolicionista, traz como ideia principal que a
prostituição não pode ser considera um trabalho, pois não nenhuma forma de proteção para
os trabalhadores dessa área, mesmo que haja leis que regulamente. Afirma ainda que: ―se
as mulheres sofrem violências na prostituição, não é porque as leis não as protejam, mas
porque o uso das mulheres por parte dos homens na prostituição é o reflexo de uma cultura
de dominação das mulheres" (TAVARES, 2000). Alguns setores da esquerda tomam como
ideologia esses pensamentos moralistas e conservadores exposto pelas feministas
abolicionistas e vão à luta contra a prostituição.
Outras correntes do feminismo não concordam com a exposta anteriormente, uma
vez que alegam não expor a atual realidade. Portanto, podem-se observar duas correntes
feministas. Na qual não adotam as opiniões das abolicionistas, que não concordam com a
vitimação das mulheres que vivem da prostituição. Logo, ainda ver a prostituição como
uma forma de desigualdade entre os sexos. Mas, aceitam, uma vez que existem mulheres
que optam por a prostituição, e que não devem ser marginalizadas tão pouco
descriminalizadas.
Essa corrente feminista ver como as feministas abolicionistas tapam os olhos para a
situação das prostitutas, a serem contras da criação de direitos que possa criar meio e
condições para reforça a segurança e autoritarismo de clientes. Desse modo, entendesse
que essa corrente feminista é favorável a uma legalização e também da criação de meios
que possa contribuir tanto socialmente quanto econômico para quem sair da prostituição
possa ter um processo de transição de ex-prostituta sem uma condenação da sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bom, diante de todo o exposto, conclui-se que a prostituição é uma forma do homem
poder materializar suas fantasias e desejos ocultos, quando não consegue realizar com suas
companheiras, assim, partindo da ideia de que suas esposas no que tange ao sexo, serve
apenas para a reprodução de sua linhagem, não poderia ter uma relação sexual de prazer ao
mesmo tempo.
Assim, ao longo dos séculos a prostituição foi se adequando as necessidades do Estado,
seja para ter uma vantagem de lucros aos seus cofres ou para a imposição de uma ideologia
religiosa, sem opção de escolha da mulher, tão pouco um planejamento para reinserir essas
mulheres na sociedade de forma digna.
Dessa forma ao passar dos tempos foi surgindo diversos sistemas que legisla sobre a
prostituição, inicialmente o Estado foi adequando a suas necessitas quando se trata de
prostituição, tratando como um mal para a sociedade e criminalizando toda e qualquer
forma. Outros, visando à autonomia da mulher, optam pela legalização, legislando então
por criação de medidas que possam garantir direita tão como uma proteção jurídica para
quem atual nesse setor.
Concluindo essa reflexão, não poderia deixar de citar os grupos de movimentos sociais,
onde feministas traz pontos de vistas totalmente opostos sobre a temática, dessa forma, eu
como feminista, parto da um misto das ideias. A prostituição é um fator social e quem é
incapaz de ser extinto, que o Estado na figura de garantidor de direitos e de manter o bem
estar social deveria criar políticas públicas de conscientização da sociedade, que posso
começar mudar os pensamentos moralistas, sexistas e ultrapassado, que a mulher pode ter
seu direito de dispor da maneira que entender do seu corpo, tanto como a criação de
direitos que possam lhe trazer uma proteção jurídica, dessa forma, garantindo-lhe direitos
humanos, e para aquelas que buscam na prostituição como uma única saída, que o Estado
possa lhe garantir uma segunda opção de escolhas, e dignidade ao deixar a prostituição.

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PRÁTICAS XENOFÓBICAS: DA INTERSECIONALIDADE DAS VIOLAÇÕES
DE DIREITOS HUMANOS ÀS PRÁTICAS DO POVO BRASILEIRO ¹

Lorenna Verally Rodrigues dos Santos 2


Maria Simone Gonzaga de Oliveira 3
Joanne Suzanil de Lima Alves4

RESUMO

A pesquisa realizada buscou fazer uma análise sobre a crise migratória do século XX.
Sabe-se que as pessoas que se encontram em situação migratória são verdadeiras marcas da
falta de respeito do Estado para com a comunidade internacional, violações que se
alternam os motivos. Este trabalho teve como principais autores: Rosas (1995), Santos
(2003), Bailey (1963), Povesan (2001) e Freitas (2016). Utilizamos de método indutivo e
de abordagem qualitativa, usamos os benefícios da pesquisa bibliográfica, descritiva,
exploratória e técnica de análise de dados a partir da análise de conteúdo. O imigrante sofre
com questões de xenofobia pelos nacionais de países de fronteira ou por pessoas de países
acolhedores, onde o refugiado é tido como um risco, um perigo ou problema. Conclui-se o
relatório ao final com a percepção de que as pessoas que se submetem à situação de
refúgio são verdadeiras vítimas marcadoras da falta de respeito humanitária do seu Estado
para com elas, bem como são vítimas de uma sociedade corruptora de direitos individuais e
coletivos que assegura uma qualidade de vida ―digna‖ e por vezes encontram mais
violações depois que conseguem o refúgio e as violações em suas vidas acabam se
tornando ciclos viciosos.
Palavras-chave: Preconceito. Xenofobia. Intolerância. Refugiados.

¹O presente trabalho é parte da pesquisa monográfica realizada aos anos de 2016 intitulada como:
―Percepções e (Des)venturas de aluno de um curso de direito sobre pessoas refugiadas‖.
² Pós-Graduanda no curso Direito Processual Civil pela ESA/ OAB-PE. Graduada em Direito pelo Centro
Universitário do Vale do Ipojuca – DeVry|UNIFAVIP. Pesquisadora Voluntária no GEPIDH Mércia
Albuquerque. E-mail: lorennaverallyrds@gmail.com.
3
Aluna Especial do Mestrado em Direitos Humanos – UFPE. Graduada em Direito pelo Centro Universitário
do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP|DeVry. Pesquisadora e extensionista no GEPIDH Mércia Albuquerque.
Extensionista no DHiálogos: ―Ciclo de Debates Sobre Sociedade e Direitos Humanos‖.E-mail:
Simone.gonzaga@outlook.com.br
4
Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca – DeVry|UNIFAVIP.
E-mail:jsuzanil@gmail.com

INTRODUÇÃO
A universalidade dos direitos humanos nasce com o advento da Declaração
Universal de Direitos Humanos de 1948, baseado na razão de que o indivíduo por ser, ser
humano é dotado de direitos, deveres e garantias fundamentais.
Posteriormente ao processo de universalização dos direitos humanos nasce o
sistema internacional de proteção, tendo o mesmo como cunho principal o resguardo
mínimo de direitos, para esse feito, sempre analisasse o princípio da ponderação e
equivalência.
Por sua vez, em concomitância ao sistema global, surgem os sistemas regionais de
proteção aos direitos humanos, sendo estes, o da Europa, África e da América.
Todos esses sistemas são complementares, os regionais seguem as normativas do
sistema global e ambos unidos ao sistema nacional garantem e proporcionam uma melhor
efetivação dos direitos individuais e coletivos do ser humano, pois assim como a mundo o
ser humano está em constante variação de seu ponto de vista. O autor Allan Rosas (1995,
p. 243) a respeito da síntese de direitos humanos defende que: ―o conceito de direitos
humanos é sempre progressivo. […] O debate a respeito do que são os direitos humanos e
como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de nosso passado e de nosso
presente‖
Para ele os direitos humanos é algo que está em constante modificação, pelo motivo
de que o mundo e por consequência o indivíduo está em constante modificação seja pela
globalização seja pela renovação de conceitos e paradigmas.
O surgimento do sistema global de proteção aos direitos humanos em relação às
pessoas que se encontram em situação de refúgio se deu com o fim da Segunda Guerra
Mundial, onde tomamos conhecimento histórico das inúmeras perseguições, torturas e
violações realizadas pelos Nazistas em face de uma determinada raça.
Pautou-se o problema no seguinte questionamento: De que forma acontecem As
políticas migratórias para a inserção humanitária das pessoas refugiadas?
O objetivo geral que orientou a pesquisa foi analisar o cenário das políticas
migratórias do Brasil e suas ramificações.
Em se tratando dos objetivos específicos foram: Identificar os delineamentos da
política migratória atual no Brasil, bem como outro objetivo foi observar as violações de
direitos humanos nas práticas preconceituosas de xenofobia.
Com o crescente quantitativo de pedidos de refúgio no Brasil, os órgãos
competentes visando realizar de maneira correta o refúgio e os direitos dessas pessoas
enquanto refugiados. O Brasil foi um país pioneiro na promulgação interna de uma lei
específica para tratar do assunto. O Decreto 50.215, de 28 de janeiro de 1961, em
consonância com a Convenção de 1951 foi criado para esta finalidade.
De acordo com o Comitê Nacional para os Refugiados, o número total de pedidos
de refúgio mais que triplicou durante tal período (de 566 em 2010 para 2.008 até dezembro
de 2012). E a maioria dos solicitantes de refúgio vem da África, América do Sul e Ásia.
As pessoas que se encontram em situação de refúgio são vítimas de perseguições
em seus países, que podem ser de diferentes aspectos, à exemplo de perseguições por raça,
religião, nacionalidade, grupo social, opiniões políticas ou até graves violações de direitos
humanos.
A perseguição e a violência são atrocidades que estão longe de deixar a vida dos
refugiados, o deferimento do refúgio que antes era a salvação e única alternativa dessas
pessoas mudarem de vida, hoje é mais um degrau de sofrimento.
O autor Santos (2003) nos acrescenta com a seguinte reflexão: ―[...] temos o direito
a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes
quando a nossa igualdade nos descaracteriza‖. Daí a necessidade de uma igualdade que
reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades.
Por isso a necessidade e a importância de estudos mais aprofundados sobre a
afirmação de direitos e a inserção do imigrante refugiado no nosso país, como também o
direcionamento do olhar da sociedade no que se refere às oportunidades que lhes são dadas
e aos direitos fundamentais que adquirem as pessoas refugiadas a partir do momento do
deferimento do refúgio.
Apresentaremos o percurso metodológico do trabalho, onde este se fez de
fundamental importância para a realização da pesquisa. Abordaremos os métodos e as
técnicas que foram exploradas para a preparação do trabalho em questão. Da mesma
forma, serão evidenciados quais os instrumentos eleitos a coleta de dados.
Para a realização do estudo, foi utilizado o método indutivo, o qual permite que
através da observação de um contexto específico, possa-se chegar a conclusões mais
amplas, quão seja a construção de hipóteses sobre um dado universo (GIL, 2009).
A abordagem qualitativa, nesta pesquisa, articula-se com algumas categorias
analíticas extraídas da investigação a partir da técnica de Análise do Conteúdo. Que
envolve a preparação dos dados para análise e posterior categorização. No pensamento de
Minayo (1995, p. 21-22):

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa,


nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado,
ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à
operacionalização de variáveis.

Em relação aos tipos de pesquisa, foram abordados os procedimentos decorrentes


de pesquisa bibliográfica, somada às pesquisas exploratória e descritiva.
Atenta-se que a pesquisa bibliográfica se fez presente desde as buscas para o
processo de delineamento do estudo. Fonseca (2002, p. 32) conceitua o procedimento de
pesquisa bibliográfico, no qual diz que se trata de um levantamento de publicações
existentes, dessa forma o pesquisador poderá conhecer do assunto.

A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas


já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos
científicos, páginas de web sites. Qualquer trabalho científico inicia-se com uma
pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador conhecer o que já se estudou
sobre o assunto (2002, p. 32).

No tocante ao procedimento de pesquisa descritiva, Vergara (2000) nos diz que esta
é uma pesquisa que proporciona a identificação de um determinado universo, pois esta
expõe as peculiaridades considerando as variáveis pertencentes à definição da natureza do
objeto. Pode-se dizer ainda que esta pesquisa tenha o intuito de esmiuçar as peculiaridades
de uma determinada população.
A pesquisa também é classificada como descritiva, pois se utilizou técnicas
padronizadas para a coleta de dados, como aplicação de questionários, buscando conhecer
as diversas situações e relações que ocorrem no universo pesquisado.
Em se tratando da pesquisa exploratória, o uso desta tem como propósito interpretar
e analisar fatos. Esse tipo de pesquisa requer um maior investimento de teorização e
reflexão sobre o objeto a ser estudado. Para Gil (2009), com a pesquisa exploratória visa-se
identificar os fatores que levam a ocorrência de determinado fenômeno, explicando a razão
Observa-se que a análise de conteúdo é uma técnica de análise de comunicações.
Como retrata Chizzotti (2006, p. 98): ―o objetivo da análise de conteúdo é compreender
criticamente o sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as
significações explícitas ou ocultas‖.
A análise de dados na presente pesquisa deu-se por meio da técnica de análise de
Conteúdo. Como forma de explorar e aprofundar uma melhor compreensão sobre a
percepção de estudantes de direito a respeito de direitos de imigrantes refugiados.
A escolha do tema deu-se pelo interesse em saber de que forma aconteceu a crise
migratória no século XX.
A provável contribuição dessa discussão dá-se por buscar discutir violações dos
direitos das pessoas em situação migratória.
A contribuição acadêmica deste artigo dá-se pela falta de pesquisas e publicações
sobre o tema, o que torna escassa o debate sobre políticas públicas voltadas para a questão
dos migrantes.
Faz-se necessário um debate no meio acadêmico sobre o tema, mostrando a
realidade da sociedade que ―acolhe‖ pessoas migrantes e a visão da sociedade acadêmica,
fazendo com que os pesquisadores voltem seus olhos para essa realidade.
Ainda em análise sobre a justificativa do tema, observa-se que, para a sociedade, é
de fundamental importância o estudo em questão, pois, o tema é bastante atual tendo em
vista que, a questão dos migrantes refugiados a cada dia alarma o mundo, diante da crise
humanitária existente, e o Brasil é um país de muitas leis, porém, muitas delas pendentes
de efetividade, considerando também a participação da sociedade civil, esta, que possui
uma significativa colaboração quanto as políticas de inserção e envolvimento social para
com as pessoas em refúgio.
Nesse diapasão, conclui-se a pertinência do presente trabalho, diante da efetiva
demonstração de cabimento de sua análise, na sociedade atual.

DESENVOLVIMENTO

Das Políticas Migratórias para a Inserção Humanitária das Pessoas Refugiadas:

Delineamentos da Política Migratória Atual no Brasil

A batalha em garantir e assegurar os próprios direitos não cessa com a almejada


concessão do refúgio por um estado país acolhedor. A falta de tolerância para com o
imigrante e a não aceitação do multiculturalismo na sociedade, são assuntos vistos com
frequência em matéria de crise humanitária migratória de refugiados.
Estes, que nas palavras de Milesi e Carlet (2012, p.78) estão ―carregando sonhos e
histórias de vida, os migrantes e os refugiados buscam se afastar da pobreza, fugir das
perseguições, do preconceito e da exclusão‖. Conforme as palavras dita pela autora, a vida
dos migrantes refugiados está um caos de sofrimento seja ele físico ou psicológico, dessa
forma àqueles que buscam pelo refúgio estão esgotados com violações ou catástrofes que
fazem de suas vidas uma verdadeira miséria.
Tem-se ainda, o imigrante que sofre com questões de xenofobia pelos nacionais de
países de fronteira ou por pessoas de países acolhedores, onde o refugiado é tido como um
risco, um perigo ou problema. Principalmente as pessoas que migraram de seus países por
motivos de guerra ou catástrofes naturais, como respectivamente os imigrantes da Síria e
de países da África. Bailey a respeito dos movimentos migratórios anuncia que:

Os movimentos migratórios de pessoas originados pela fome e catástrofes


naturais têm somente aumentado no início deste século, particularmente no
continente africano, onde a guerra civil é um fator a acrescentar aos anteriores,
mesmo que não sejam considerados como tal juridicamente (1963, p. 119).

Ratificando a afirmativa de Bailey (1963), conforme nos apresenta o gráfico abaixo


com os dados oficiais do CONARE do presente ano de 2016, a origem dos países dos
solicitantes de refúgio aqui no Brasil.

GRÁFICO 1: SOLICITAÇÕES DE REFÚGIO: Por país de origem

Fonte: Departamento de Polícia Federal (até 20/03/2016)

Sobre a questão do multiculturalismo social e igualdade de direitos, o autor


Comparato afirma que:

Todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais


que os distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo
capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. É o reconhecimento
universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum
indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-
se superior aos demais (2001, p. 01).

A falta de respeito, sobretudo para com as pessoas imigrantes em situação de


refúgio de forma geral é o principal motivo desta intolerância do diverso. Em muitos países
―acolhedores‖ essas pessoas estão sendo tratadas com repúdio, como se fossem seres de
outro planeta e mais, essas pessoas são destratadas em seus direitos fundamentais, básicos
onde cabe ao Estado lhe garantir, seja por meio de políticas públicas para inserção do
imigrante para que ele tenha uma vida ―normal‖ como os demais, seja por meio de
educação multicultural.
Para o autor Ricœur (1995), o conceito de tolerância contida na evolução social se
concretiza na ―abstenção de interditar ou de exigir‖, ou seja, a intolerância dirigida aos
refugiados se consagra na abstenção de aceitar àquilo que lhe é diverso.
Pois, grande parte das pessoas que destratam os refugiados como cidadãos de
direito, desconhecem outras culturas e pratica o pré-conceito da descriminalização de
rejeição, como pensamento alienado, por exemplo, que todo cidadão da Síria é terrorista e
por isso, pedem aos seus governantes para fecharem as fronteiras.
A partir das palavras de Freitas, pode-se dizer que a hostilidade não acontece
somente pelo motivo de medo, mas sim, pela falta de conhecimento.

A maioria dos países desenvolvidos teme que a chegada maciça de imigrantes


possa provocar o surgimento de problemas sociais (desemprego, criminalidade,
queda na qualidade de vida etc.), em razão disso, já existem até partidos
xenófobos que lutam contra a entrada de imigrantes. Em suma, o xenofobismo
aqui destacado tem como objetivo demonstrar o preconceito de origem, ou seja,
pessoas de países ricos que possuem aversão a pessoas oriundas de países pobres
ou em desenvolvimento (2016, p. 03).

As pessoas integrantes de sociedades civis de países desenvolvidos estão


condensadas por pensamentos ultrapassados e sem conhecimento de que, caso seu país
permita a entrada em massa de refugiados, os mesmos que antes da vinda dos refugiados
eram países desenvolvidos, agora, se tornem subdesenvolvidos pela criminalidade que os
refugiados ―trazem consigo‖ e pelo consequente duelo por emprego entre refugiados e
nacionais.

Violações de Direitos Humanos nas Práticas Preconceituosas de Xenofobia

Os relatos de xenofobia aqui no Brasil são espantosos, o número é grande e as


denúncias são escassas.
Temos como alguns exemplos adiante: certo dia em São Paulo na escadaria da
Igreja Missão da Paz onde cinco refugiados entre eles estava, Hudson Prohete, de 28 anos
refugiado do Haiti e com emprego no Brasil, este que levou um tiro na perna e
traumatismo psicológicos grandes advindos do comportamento xenofobista de um
brasileiro que que lhe proferiu a seguinte frase: "Haitianos, vocês roubam os nossos
empregos". Prohete diz que se sentiu como um pedaço de carne sendo abatido. E diz ainda
que naquele momento entendeu que não valia nada aqui no Brasil (MACIEL, 2016).
Para Gabriela Cunha Ferraz, jurista e especialista em Direitos Humanos ―existe
todo um processo de xenofobia que é silencioso. É o que mais machuca e causa danos no
sentido de interromper o desenvolvimento de uma pessoa", o pensamento da especialista
veem corroborar aquilo que foi dito acima por Prohete no primeiro depoimento da vítima
de um crime de xenofobia (MACIEL, 2016, p. 10).
Outro fato aconteceu com a chegada de médicos cubanos no aeroporto de
Fortaleza- CE, em agosto de 2013, um grupo de médicos brasileiros os aguardavam ao
som de xingamentos de cunho racistas em razão da cor da pele dos cubanos e
preconceituosos devido ao regime de governo da Cuba.
Até dentro do âmbito universitário as práticas racistas e xenofóbicas foram
registradas, como é o caso do estudante de Engenharia química da UFMA o nigeriano
Nuhu Ayuba , que em fevereiro de 2012, da Universidade Federal do Maranhão.
Que ouvia durante a aula frases de seu professor Clóvis Saraiva, como: ―Se você
não sabe, pode voltar para a África de navio negreiro‖. Ou, ―com quantas onças você
lutou lá na sua terra?‖. Pela constante conduta de seu professor e pelo abalo psicológico
que estava o nigeriano chegou até a pensar em abandonar seu curso (INSTITUITO
HUMANAS UNISINOS, 2016).
O discurso de ódio aos refugiados, veio também por parte de um candidato eleito
no México, que se diz ―representante do povo‖, em que Donald Trump, durante sua
campanha, prometeu que iria construir uma barreira na fronteira do México pois segundo
ele todos os imigrante que passavam por aquela fronteira eram ―traficantes, criminosos e
estupradores‖(AZEVEDO, 2016, p. 03).
No ano de 2015, os relatos de denúncia de xenofobia pelo Brasil aumentaram em
633% comparado com o ano de 2014, tendo em vista que nesse ano apenas 45 casos de
xenofobia foram registrados. Só os casos registrados recebidos pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos chegaram a 330 no ano de 2015, através do disque 100. Já nos anos de
2012 e 2013 apenas 1 caso de xenofobismo tinha sido registrado.
O programa Humaniza Redes, que é uma via online de denunciar práticas de
xenofobia, constatou mais 269 registros da pratica criminosa de xenofobia. Os dados não
podem ser analisados de maneira integrada, mas, casos somados, seriam 599 denúncias em
2015 (MACIEL, 2016).
Como podemos observar no gráfico abaixo, que os registros das denúncias que
antes pareciam inertes agora disparam o que significa dizer que os refugiados estão a cada
dia mais encorajados e conhecedores de seus direitos, logo não estão mais silenciando
fronte a praticas preconceituosas, racistas e xenofóbicas.

GRÁFICO 2: DENÚNCIAS DO CRIME DE XENOFIBIA

Fonte: Secretaria Especial de Direitos Humanos/Ministério da Justiça e Cidadania


GRÁFICO 3: ESTADOS COM MAIS DENÚNCIAS EM NO ANO DE 2015

Fonte: Secretaria Especial de Direitos Humanos/Ministério da Justiça e Cidadania

Dentre os 26 Estados mais o distrito Federal, os estados que lideram as denúncias


de xenofobia são em ordem decrescente: Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de
Janeiro e São Paulo, este último lideram os registro das denúncias fato que deve ser levado
em consideração a proporção, pois, São Paulo é o Estado que mais acolhe pessoas
refugiadas, segundo dados oficiais publicados na página da Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo em setembro de 2015.
Segundo o escritor Walzer (1999, p. 125), para se obter uma sociedade
multicultural a igualdade de direitos entre nacionais e refugiados se faz necessário uma
tolerância entre culturas, para ele: ―a tolerância torna a diferença possível, a diferença torna
a tolerância necessária‖. E acrescenta ―sem dúvida um princípio moral importante e
substantivo‖. Em seu ponto de vista, somente a partir da tolerância haverá uma boa
vizinhança entre as nações de direito.
A grande dificuldade encontrada pelo Direito Internacional do Refugiado se faz
presente no cumprimento dos Direitos Internacionais dos Direitos Humanos, pois este
depende basicamente das políticas públicas estatal. A autora Piovesan comunga do mesmo
ideal, e afirma que:
a proteção internacional dos refugiados se opera mediante uma estrutura de
direitos individuais e responsabilidade estatal que deriva da mesma base
filosófica que a proteção internacional dos direitos humanos. O Direito
Internacional dos Direitos Humanos é a fonte dos princípios de proteção dos
refugiados e ao mesmo tempo complementa, tal proteção ( 2001, p. 37)

Essas políticas norteadoras de garantias fundamentais emanam da cautela dos


Estados em pleitear a educação interna de conscientização no acolhimento dos refugiados
com a finalidade de desconceituar paradigmas socais baseados em preconceitos e
xenofobia, que levam cidadãos a não aceitarem refugiados em seu território. Sobre a
questão se do processo de integração do refugiado em meio a sociedade que lhe ―acolhe‖
os autores Carneiro e Collar, reiteram que:

A plena realização dos direitos humanos dos refugiados nas sociedades


receptoras depende principalmente do grau de solidariedade presente nestas
sociedades e de programas da superação da discriminação contra as populações
locais (2016, p. 73)

Na maioria das situações o preconceito acontece porque os cidadãos nacionais


vêem o imigrante refugiado como concorrente em direitos como assistência governamental
e em oportunidades de emprego, esse pensamento não é estranho no meio da sociedade
globalizada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabe-se que as pessoas que se encontram em situação de refúgio são verdadeiras


marcas da falta de respeito do Estado para com a comunidade internacional, violações que
se alternam desde as perseguições por motivos de raça, à graves violações de direitos
humanos.
Essas pessoas se sujeitam a uma perigosa travessia, sejam elas em embarcações no
alto mar do mediterrâneo em condições subumanas e superlotadas, seja em quilômetros de
caminhada por solos de temperaturas extremas para se chegar em um país que possua uma
porta de entrada, muitos ficam à espera por três a quatro dias no frio, sem abrigo ou
comida simplesmente jogados na brisa e/ou no calor sem água e alimento.
As travessias clandestinas geralmente são esquematizadas por traficantes que além
de cobrarem valores absurdos do qual podemos falar em até milhões de dólares por uma
travessia incerta e sem segurança alguma, onde os próprios traficantes agem de forma
opressora e criminosa para com essas pessoas que chegam a trocar todos os seus bens
constituídos ao longo de uma vida inteira por uma passagem.
Todo sacrifício é motivado por só objetivo, quão seja, encontrar um país em que lhe
acolha e lhe promova sadias condições para que possam continuar a vida.
A falta de tolerância para com o imigrante e a não aceitação do multiculturalismo
na sociedade é uma triste realidade encontrada pelos refugiados no bojo de nossa sociedade
brasileira.
O imigrante que sofre com questões de xenofobia pelos nacionais de países de
fronteira ou por pessoas de países acolhedores como Hungria e/ou Brasil, onde o refugiado
é tido como um risco, um perigo ou problema. Principalmente as pessoas que migraram de
seus países por motivos de guerra ou catástrofes naturais, como respectivamente os
imigrantes da Síria e de países da África, esses ainda sofrem com a prática do racismo do
preconceito em razão de sua descendência.
A falta de respeito, sobretudo para com as pessoas imigrantes em situação de
refúgio de forma geral é o principal motivo desta intolerância do diverso. Em muitos países
―acolhedores‖ essas pessoas estão sendo tratadas com repúdio, como se fossem seres de
outro planeta e mais, essas pessoas são destratadas em seus direitos fundamentais, básicos
onde cabe ao Estado lhe garantir, seja por meio de políticas públicas para inserção do
imigrante para que ele tenha uma vida ―normal‖ como os demais, seja por meio de
educação multicultural.
Cabe ao Estado fazer a ponte de ligação entre o imigrante e o nacional, pois, grande
parte das pessoas que destratam os refugiados como cidadãos de direito, desconhecem
outras culturas e pratica o pré-conceito da descriminalização de rejeição, como pensamento
alienado, por exemplo, que todo cidadão da Síria é terrorista e por isso, pedem aos seus
governantes para fecharem as fronteiras.
O discurso de ódio aos refugiados, veio também por parte do candidato eleito
Donald Trump, que se diz ―representante do povo‖, em que, durante sua campanha,
prometeu que iria construir uma barreira na fronteira do México pois segundo ele todos
os imigrante que passavam por aquela fronteira eram ―traficantes, criminosos e
estupradores‖, promessa essa que ele já cumpriu em pouco tempo de seu mandato.
A grande dificuldade encontrada pelo Direito Internacional do Refugiado se faz
presente no cumprimento dos Direitos Internacionais dos Direitos Humanos, pois este
depende basicamente das políticas públicas estatais.
Conclui-se o relatório ao final, com a percepção de que as pessoas que se submetem
à situação de refúgio são verdadeiras vítimas marcadoras da falta de respeito humanitária
do seu Estado para com elas, bem como são vítimas de uma sociedade corruptora de
direitos individuais e coletivos que assegura uma qualidade de vida ―digna‖ e por vezes
encontram mais violações depois que conseguem o refúgio e as violações em suas vidas
acabam se tornando ciclos viciosos.

REFERÊNCIAS

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Ao Estatuto dos Refugiados, Concluída em Genebra, em 28 de Julho de 1951. Brasília,
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______. Decreto nº 98.602, de 19 de dezembro de 1989. Dá Nova Redação Ao Decreto


Nº 50.215, de 28 de Janeiro de 1961 Que Promulgou A Convenção Relativa Ao
Estatuto dos Refugiados, Concluída em Genebra, em 28 de Julho de 1951. Brasília,
DF, 1989.
______. Lei nº 9474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do
Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Estatuto dos
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WALZER, M. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


EQUIDADE DE GÊNERO NA AGENDA 2030 DA ONU: (Há) A inserção dos
homens (?)

Priscilla Viégas Barreto de Oliveiravi

GT: 02 – Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos

RESUMO

A equidade de gênero, como indutora do exercício do Estado Democrático de Direito


no contexto brasileiro, vem sido pautada por Organizações Internacionais como práticas
que caracterizam as relações baseadas em mulheres, para mulheres e por mulheres. Nesse
sentido, a análise feminista do sistema gênero / sexo traz à luz – e faz a crítica - que a
organização social baseada em desigualdade, injustiça e hierarquia política de pessoas
baseadas no gênero produz aspectos nocivos e opressores, refletindo-se como objeto de
disputas de interesses e subterfúgios políticos. Esse artigo questiona qual – e se há – a
inserção dos homens na Agenda 2030 da ONU, principalmente no relacionado ao ODS nº
5, como fomento à equidade de gênero. Para tanto, foi analisado o documento Glossário de
termos do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5: Alcançar a igualdade de gênero e
empoderar todas as mulheres e meninas e utilizados como ferramenta metodológica os
repertórios linguísticos. Evidencia-se no documento que a igualdade e equidade de gênero
perpassa as relações sociais e, portanto, as práticas e representações sociais do ser homem
e ser mulher exigem das políticas o olhar para as desigualdades baseadas no gênero. Sendo
a inserção dos homens, nesse sentido, algo a ser problematizado e buscado.

Palavras-chave: Desenvolvimento. Equidade de gênero. Igualdade de gênero. Movimento


Feminista. ONU.

INTRODUÇÃO
A equidade de gênero, como indutora do exercício do Estado Democrático de
Direito no contexto brasileiro, vem sido pautada por Organizações Internacionais como
práticas que caracterizam as relações baseadas em mulheres, para mulheres e por mulheres.
O que Arilha¹ (apud MEDRADO e LYRA, 2012) problematiza como a instrumentalização
do homem.

Ou seja, a inserção dos homens nas agendas dos direitos sexuais e reprodutivos,
como por exemplo nos documentos das Organizações das Nações Unidas (ONU),
considera a perspectiva quase que exclusivamente da viabilização da saúde e direitos das
mulheres, e não necessariamente como direito ou necessidade masculina.

No entanto, não se pode desconsiderar que a análise de gênero é derivada da visão


feminista de mundo, em contraponto a uma concepção androcêntrica de humanidade, que
considera hegemonicamente o lugar do homem na história (GEBARA, 2010a).

Também não se pode significar a reificação da dicotomia dominante / dominado,


tendo em vista reputar que existam masculinidades e a construção social do poder dos
homens, que envolve homens e mulheres (GEBARA, 2010a; LAGARDE, 1996;
MEDRADO; LYRA, 2012).

Nesse sentido, a análise feminista do sistema gênero / sexo traz à luz – e faz a
crítica - que a organização social baseada em desigualdade, injustiça e hierarquia política
de pessoas baseadas no gênero produz aspectos nocivos e opressores, refletindo-se como
objeto de disputas de interesses e subterfúgios políticos (LAGARDE, 1996; RUBIN,
2012).

Relacionado a essas questões, Conell et al (2013) traz que:

O comportamento dos homens é reificado em um conceito de masculinidade que,


em um argumento circular, se torna a explanação (e a desculpa) para o
comportamento. Isso pode ser visto em várias discussões sobre a saúde dos
homens e os problemas na educação dos meninos – de fato, assim ocorre com
qualquer dos problemas contemporâneos definidos sob a consígnia ―crise da
masculinidade‖ (p.255).
Apesar de poder afirmar que há masculinidades diversas e a hegemonia masculina
não necessariamente represente os homens em sua maioria, certamente esta última se
consolida como normativa que impõe um posicionamento masculino, legitima a
subalternidade imposta globalmente às mulheres com relação aos homens; e pode ser vista
nos mais diversos ambientes e contextos onde

"há uma circulação de modelos de conduta masculina admirável, que são


exaltados pelas igrejas, narrados pela mídia de massa ou celebrados pelo Estado,
(...) e se referem (mas também em vários sentidos as distorcem) às realidades
cotidianas da prática social‖ (CONELL et al, 2013, p.252).

Partindo disso, resgatando o campo das disputas, há de se refletir sobre duas


perspectivas, a partir dos questionamentos de Gebara (2010a, p.134-135):

1. a divisão sexual do trabalho, que mesmo admitida, não pode considerar as relações
humanas como determinadas por papéis-estanque, e que sempre há a interrrelação das
ações e reações entre homens e mulheres;

2. a existências de espaços políticos para além do ―privado‖, não reconhecidos como tal
[políticos], por não atingirem ―as estruturas capitalistas de sustentação da sociedade‖.

Portanto, a equidade de gênero pode ser colocada no patamar de equacionamento


das desigualdades sociais, uma vez que reflete a democratização das relações sociais
(CAMURÇA, 2002).

No entanto, mundialmente a discussão acerca das políticas de igualdade de gênero


vêm sido conduzidas no sentido da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres,
em alusão clara à perspectiva econômica. Nesse sentido, inclui-se a abordagem da ONU e
do Banco Mundial como exemplos (SALLES, 2015).

Em continuidade ao que fora pontuado, a autora traz a seguinte conclusão:

(...) podemos concluir que o Banco Mundial não só conseguiu


delimitar os termos do problema, demarcando as fronteiras do campo, como
também impediu que outro campo emergisse no entorno da
ONU, orientado pela doxa alternativa do subdesenvolvimento (SALLES, 2015,
p. 369).

Em consonância com essa questão, Goldani (2016, p. 3) traz que “assim, se


expandiu, internacionalmente o consenso de que a igualdade entre os sexos é um
pré- requisito da justiça social e do efetivo desenvolvimento econômico e social de
um país”.

Especificamente no tocante à ONU, que fora a princípio criada para preservar a paz
e segurança internacionais, ao se relacionar as ações pela equidade de gênero, estas se
deram desde a criação da Comissão sobre a Condição da Mulher, em 1946, como também
através de Conferências e elaboração de plano de ação de combate a opressão,
marginilização e à discriminação aos quais as mulheres são submetidas cotidianamente
(VIEIRA, 2016).

Na proposta de elaboração de planos multilaterais com vias ao enfrentamento das


desigualdades sociais mundiais através do desenvolvimento, a ONU elabora agendas com
objetivos a serem alcançados pelos seus Estados-membros, sendo a mais recente em 2015:
Objetivos pelos Desenvolvimento Sustentável (ODS), tendo a igualdade de gênero inserida
no Objetivo nº 5 (SALLES, 2015).

Portanto, com base no que foi problematizado até aqui, esse artigo questiona, diante
da ênfase dada à igualdade de gênero nos ODS, qual – e se há – a inserção dos homens na
Agenda 2030 da ONU, principalmente no que se refere ao Objetivo do Desenvolvimento
Sustentável nº 5 (Igualdade de gênero: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas
as mulheres e meninas), como necessária ao fomento à equidade de gênero.

Este estudo se justifica tendo em vista a necessidade de ampliação das discussões


que relacionem paternidade e direitos sociais, com vias à equidade de gênero, uma vez que
autores problematizam a imprescindibilidade de mudança para uma maior participação
masculina no âmbito privado, o que inclui o cuidado com filhas e filhos e afazeres
domésticos, como propulsor de oportunidades e condições para homens e mulheres para
quebra do paradigma mulher-cuidadora, homem-provedor, e consequentemente, combate
às injustiças e desigualdades sociais (BORTOLUZZI et al, 2016; MARQUES, 2015).

Para tanto, foi analisado o documento Glossário de termos do Objetivo de


Desenvolvimento Sustentável 5: Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as
mulheres e meninas. Segundo Cellard (2008), o uso de documentos em pesquisa propicia a
observação do decurso maturacional, múltiplo e polissêmico de pessoas, comunidades,
discursos, comportamentos, conceitos e práticas.

Foi utilizada como ferramenta metodológica, os repertórios linguísticos que


possibilita, entre outras questões:

a) identificar e entender as múltiplas maneiras de falar sobre um tema e as


tradições discursivas que lhes deram origem; b) entender os posicionamentos e
as relações de poder presentes (...) e as controvérsias daí decorrentes (SPINK,
2014, p.230).

Permitindo, nesse sentido, a análise do discurso a partir de seu contexto sócio-


histórico-político-cultural.

DESENVOLVIMENTO
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e a equidade de gênero... E os homens?

Como já colocado, a ONU surge em um contexto de guerras com o intuito de


solucionar de forma pacífica e sem armas os conflitos mundiais e reestabelecer as relações
internacionais. No decorrer do tempo, a Organização se configurou de acordo com as
demandas requeridas em cada situação, constituindo Secretaria, Conselhos e Assembleias
(VIEIRA, 2016).

Com relação aos Direitos das Mulheres, Vieira (2016, p. 18-19) pontua alguns
marcos importantes estabelecidos na Organização:
1) I Conferência Mundial sobre a Mulher, em 1975, ―na qual se
declarou este ano como o Ano Internacional da Mulher e a década de 1975-1985,
como a Década da Mulher”;

2) Criação do “Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres


(...), um ano após a entrada em vigor da Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979”;

3) Conversão do Fundo de Contribuições Voluntárias das Nações Unidas para a


Década da Mulher para o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a
Mulher (UNIFEM), em 1985 (III Conferência Mundial sobre a Mulher);

4) Assinatura do Plano de Ação de combate à opressão, à marginalização e à


discriminação sofridas pelas mulheres por 184 países, na IV Conferência Mundial
das Mulheres (1995);

5) Surgimento da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o


Empoderamento das Mulheres (UN Woman / ONU Mulher) em julho de 2010, na
Assembleia Geral da ONU.

Resgatando historicamente os Objetivos do Milênio (ODM), que vigoraram dos


anos 2000 a 2015, em seu objetivo nº 3 já trazia a perspetiva da igualdade de gênero:
igualdade entre os sexos e valorização da mulher.

No entanto, seus indicadores não consideraram os quesitos que lançam luz às


desigualdades sociais, sendo vistos aqueles relacionados às oportunidades: a) razão
meninas/meninos no ensino básico, médio e superior; b) proporção de mulheres no total de
assalariados em atividades não-agricolas c) proporção de mulheres exercendo mandato no
congresso nacional.

Em 2014, acreditando que o envolvimento de homens e meninos na


elaboração e implementação de uma visão comum de igualdade de gênero se faz
necessária, foi criado o movimento ElesporElas (HeforShe).
Esse movimento, em contraponto às considerações trazidas por Vieira
(2016), considera que a efetividade e o alcance do equilíbrio que resultará na
igualdade entre os gêneros requer o engajamento de mulheres, meninas, homens
e meninos em um esforço global para eliminação das barreiras de acesso às
oportunidades impostas às mulheres cotidianamente, e que também atingem
negativamente alguns homens que não se adequam aos padrões androcêntricos
naturalizados na sociedade.

Na Agenda pós-2015, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)


vêm transversalizar o enfoque para as desigualdades de gênero, o que reflete
lidar com o próprio desenvolvimento internacional, quando coloca as mulheres e
meninas como a metade da população mundial que não têm seus direitos
negados por questões de gênero (BELO, 2012).

Partindo do exposto no Objetivo do Desemvolvimento Sustentável nº 5, que


especifica o olhar para igualdade de gênero, vê-se que a mulher tem sido considerada como
fundamental no fomento ao desenvolvimento, dessa vez sustentável, no mundo.

Ao se fazer o resgate temporal, há uma dívida histórica de expropriação das


mulheres dos meios de produção que utilizavam tecnologias modernas e de maior
rendimento financeiro.

Camurça (2002) abordou essa questão problematizando que, quando as mulheres


são vistas com foco nas relações sociais – incluindo-se a relação com os homens, a
totalidade da vida socieconômica e as relações de poder -, fortalecem-se as iniciativas que
refletem em maior empoderamento e autonomia das mulheres sobre as questões que
envolvem suas vidas, considerando essa perspectiva relacional e comunitária, em
contraponto àquelas que relegam às mulheres à maternidade e reprodução, em uma
perspectiva reducionista e apolítica.

A autora, citando uma pesquisa de Boserup (197?), reforça que


ao contrário do que muitos esperavam, a modernização na esfera
produtiva, se não acompanhada da democratização das relações
sociais, dificilmente promoverá o equacionamento das
desigualdades sociais; entre elas, as de gênero. (BOSERUP, 197? apud
CAMURÇA, 2002, p.169)

Nessa perspectiva, os ODS estabelecidos em 2015 como agenda até 2030 vêm
ampliar o conceito com o olhar para a sustentabilidade quando abordam a igualdade de
gênero e o empoderamento de mulheres e meninas.

Serão vistos os sub-itens desse objetivo para analisar a inserção – ou não – do homem
com vias a sua concretude:

 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas


em toda parte (Sub-item 5.1);

 eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas, nas


esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exloração sexual e de outros tipos
(Sub-item 5.2.);

 Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de


crianças e mutilações genitais femininas (Sub-item 5.3).

No documento se estabelece a relação entre a discriminação e a violência baseada no


gênero, bem como a desigualdade de acesso e controle de recursos e bens entre homens e
mulheres.

Além de destacar as questões relativas às análises socioculturais que, junto à raça e


etnia, refletem os piores indicadores socioeconômicos: classe, nível de pobreza, orientação
sexual, identidade de gênero e idade, o que evidencia mais uma vez que a igualdade de
gênero perpassa as relações sociais.

Tendo em vista as desigualdades sociais em conjunto com o contexto de violência


vivido na realidade brasileira, há um grande desafio em alcançar os índices de igualdade de
gênero, de forma equânime.
Ou seja, abarcando as interseccionalidades que refletem nas piores condições de vida às
pessoas; e, diante da notória desigualdade nas relações sociais baseadas no gênero no
Brasil, com reflexos gritantes principalmente às mulheres negras, pobres e lésbicas.

Nesse sentido, fica visível o quanto as relações de dominação de gênero, em conjunto


com as opressões de gênero, são arraigadas na sociedade e determinam modos de pensar e
agir que excluem as mulheres – e os homens – dos espaços, de acordo com aquilo que é
esperado socioculturalmente do ser homem e ser mulher.

O que coloca o homem no lugar de dominação do corpo feminino de tal forma, que se
naturalizam ações que se apropriam, invadem e mutilam corpos de mulheres e meninas
pelo mundo; e - por que não dizer - de homens e meninos, principalmente àqueles que não
seguem os ditos padrões esperados de ser, estar, no mundo de forma masculina.

 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por


meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção
social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da
família, conforme os contextos nacionais (Sub-item 5.4);

 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades


para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política,
econômica e pública (Sub-item 5.5);

 Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos


reprodutivos, como acordado em conformidade com o Programa de Ação da
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma
de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão
(Sub-item 5.6).

Na abordagem trazida pelo documento, pode-se afirmar que a igualdade de gênero deve
abarcar o conceito de equidade, incluindo, nesse sentido, as pluralidades, especificidades e
contextos nos quais as mulheres estão inseridas.

Nesse sentido, há de se pensar na ―sustentabilidade do cuidado‖, uma vez que o Estado,


ao se eximir de sua responsabilidade na produção do cuidado, sobrecarrega as mulheres,
principalmente negras e pobres – que têm esse lugar consolidado socioculturalmente – uma
vez que são elas que provêm o cuidado das famílias com rendas mais altas, enquanto seu
próprio cuidado e de sua família não é garantido pelo poder público (BELO, 2012).

Os marcos legais brasileiros ainda consideram e enfatizam o lugar naturalizado da


mulher como cuidadora obrigatória, uma vez que garante licença-maternidade entre 120 e
180 dias, enquanto que para o homem, a licença-paternidade se dá entre 5 e 20 dias; como
que, desresponsabilizando o pai do cuidado e criação infantil (BELO, 2012).

Por isso, (há) a necessidade de ampliação das mulheres nos espaços públicos, que
envolvam tomadas de decisão, para que as mulheres possam interferir na elaboração e
implementação de propostas que vejam a igualdade entre homens e mulheres como
condição imprescindível ao desenvolvimento humano e sustentável.

Diante disso, é importante pontuar que a ampliação na participação de mulheres em


espaços de tomada de decisões, além de responderem às questões de justiça e democracia,
trazem a perspectiva da representatividade em termos dos interesses das mulheres serem
considerados.

A promoção da igualdade de gênero deve incluir mulheres e homens, uma vez que não
devem ser reflexo do fato de uma pessoa nascer do sexo feminino ou masculino. Por isso,
pode-se afirmar que implica em desevolvimento sustentável centrado nas pessoas, na ótica
dos direitos humanos.

Há a imprenscindibilidade de inserção dos homens nos espaços reprodutivos para o


efetivo equacionamento das responsabilidades familiares em detrimento das laborais, uma
vez que, mesmo em políticas públicas, a qualidade de vida da família gira em torno da
disponibilidade de tempo das mulheres reforçando a visão dicotômica espaço produtivo x
reprodutivo (GOLDANI, 2016).

Nessa perspectiva não se pretende afirmar que os homens devem isso às mulheres,
incorrendo no equívoco de que os homens precisam acessar esses espaços com objetivo
único de melhorar a vida das mulheres.
A melhoria na qualidade de vida das mulheres deve ser vista como um dos reflexos da
divisão do trabalho, ao nível público ou privado, de forma igualitária e equânime para
homens e mulheres. O que influenciará inclusive positivamente, com vias à eliminação do
preconceito e discriminação sofridos pelas mulheres nos diversos espaços, principalmente
naqueles relacionados à tomada de decisões e poder.

No entanto, assinala-se que as práticas e representações sociais atuais do que é inerente


aos homens e às mulheres, principalmente no contexto brasileiro, exigem das políticas o
olhar para as desigualdades baseadas no gênero.

Sendo a inserção dos homens, nesse sentido, algo a ser problematizado e buscado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As Agendas Internacionais, principalmente as da ONU, podem ser considerados


importantes instrumentos de pactuação entre os seus Estados-membros que visam a
mitigação de graves problemas mundiais.

Apesar da ampla utilização de indicadores baseados nas perspectivas econômicas -


de igualdade de oportunidades -, que não abrangem adequadamente os aspectos
relacionados às desigualdades de condições, a agenda comum cria possibilidades de
introjeção do conceito ―desigualdade de gênero‖ de forma a ser considerado nos processos
de tomada de decisões e fomento, construção e efetivação das políticas públicas.

A Agenda de 2030, mais especificamente em seu Objetivo do Desenvolvimento


Susutentável nº 5, aborda a necessidade de discussão com ações concretas de inserção dos
homens na divisão das responsabilidades familiares (cuidado com filhas e filhos e
atividades domésticas), com vias inclusive de incremento ao desenvolvimento, uma vez
que homens e mulheres que se responsabilizam pela economia familiar, não desperdiçam
os recursos neles investidos.
Ao se focar na realidade brasileira de grave segregação social e altos índices de
violência, investir em políticas, ações e estratégias em uma agenda que considera a
igualdade a partir das diferenças, seja a forma mais efetiva de garantir a equidade de
gênero, tendo em vista que não se pode esperar que modelos democráticos se sustentam em
tratar todas as pessoas da mesma forma.

Essa perspectiva reconhece que a pluralidade de mulheres e homens e a diversidade


de gêneros são necessárias à construção de uma humanidade diversa e democrática, em
contraponto à dominação / opressão de gênero arraigada na sociedade.

Portanto, pode ser considerada como propulsora da democratização das relações


sociais, e consequente equacionamento das desigualdades sociais.

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Desenvolvimento Sustentável para a igualdade de gênero no Brasil. 2012.
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VÍTIMAS DA INVISIBILIDADE: ausência de direitos sociais as pessoas em
situação de rua

Iolanda de Oliveira Silva 3

GT 03: Direito, Movimentos Sociais e Cidadania.

RESUMO

A realidade das pessoas em situação de rua é um debate necessário no meio


acadêmico, tendo em vista as sistemáticas violações de direitos humanos a que estas
pessoas estão expostas, como também ao fato da subjugação social que elas sofrem. Diante
disso o presente trabalho teve como objetivo central: dar visibilidade a dura realidade das
pessoas jovens adultas que vivem em situação de rua, descrevendo as dificuldades que elas
enfrentam para efetivação de seus direitos. Já os objetivos específicos foram: descrever as
características e realidade das pessoas em situação de rua e os direitos sociais; conceituar
invisibilidade social; analisar as histórias de vida de pessoas em situação de rua na cidade
de Santa Cruz do Capibaribe-PE. Para tanto, os principais autores utilizados foram:
Almeida e Nascimento (2011), Costa (2008), Costa (2005), Melo (2011), Silva (2006),
Sales e Pachú (2015). Metodologicamente utilizamos a abordagem qualitativa. Já o método
de pesquisa adotado também foi o fenomenológico e as técnicas de coleta de dados foram:
bibliográfica e história de vida, através de gravação dos relatos de quatro pessoas em
situação de rua. Nossos resultados apontam para um desinteresse social em relação às
pessoas em situação de rua e uma não efetivação de direitos sociais em relação a essas
mesmas pessoas.

Palavras-chave: População em situação de rua. Invisibilidade social. Direitos


sociais. História de vida de pessoas em situação de rua.

INTRODUÇÃO

Não é de hoje que existem pessoas em situação de rua, estas surgiram há


muito tempo, devido principalmente ao sistema de produção e consumo. A condição de rua
não é vista com bons olhos pela sociedade, sendo às vezes hostilizada, culpando-se e
criminalizando quem se encontra nessa situação, como se o cidadão que vive e sobrevive

3
Centro Universitário do Vale do Ipojuca, UNIFAVIP/DEVRY, Graduanda do curso de Direito,
iolandadireito@hotmail.com.
da rua, fosse o culpado por estar nessa condição. São pessoas que além de deveres,
possuem direitos previstos constitucionalmente, como qualquer outro cidadão. Porém, o
fenômeno invisibilidade social mostra que são esquecidas pela sociedade civil e pelo
governo.
Diante disso, estabelecemos o seguinte problema de pesquisa: Até que
ponto os direitos sociais previstos constitucionalmente das pessoas em situação de rua são
(ou não) efetivados e se essas pessoas realmente vivenciam uma situação de invisibilidade
social?
Diante desse problema de pesquisa definimos o seguinte objetivo geral: dar
visibilidade a dura realidade das pessoas jovens adultas que vivem em situação de rua,
descrevendo as dificuldades que elas enfrentam para efetivação de seus direitos. Para
consecução do qual foram definidos os seguintes objetivos específicos: descrever sobre as
características e realidade das pessoas em situação de rua e os direitos sociais; conceituar
invisibilidade social; analisar as histórias de vida de pessoas em situação de rua na cidade
de Santa Cruz do Capibaribe-PE.
Tal pesquisa justifica-se socialmente pelo fato de que o Estado tem o dever
de garantir as pessoas em situação de rua assistência através da efetivação de direitos
sociais necessários para sua integração social.
Já academicamente a relevância da pesquisa consiste em uma mudança de olhar,
saindo do pensamento acadêmico tradicional, sobretudo entre os acadêmicos do curso de
direito os quais na maioria das vezes optam por pesquisas mais jurídicas e menos sociais.
De acordo com o que se pretende discutir no presente artigo acadêmico, a
abordagem qualitativa, pois tal tipo de pesquisa preocupa-se com a qualidade e não com a
quantidade, buscasse significados atribuídos aos fatos que se observa, o pesquisador
procura participar, compreender, interpretar as informações que se seleciona, que se
obtenha a partir da averiguação.
Quanto ao método de pesquisa optamos pelo fenomenológico que, é bastante
adequado para tratar de questões humanas. Quando a pesquisa se trata da experiência de
vida das pessoas, deve-se usar principalmente o método fenomenológico, pois este tem
como ponto central a experiência de vida vivenciada. Silveira et al (2010, p. 03),
esclarecem que: “o fenômeno inclui assim todas as formas de estar conscientes de algo,
aí incluídos os sentimentos, pensamentos, desejos e vontades”. É a experiência do ser
humano de forma realista, deixando de lado o que é estabelecido pelas ciências naturais.
Os pontos de vista ou opiniões são deixados de lado pelo pesquisador, este,
obtém depoimentos sobre aquilo que está diante dos seus olhos, tal como aparece. É a
forma como as pessoas vivenciam a realidade. Em total consonância com Lopes e Souza,
(1997, p. 06), “é um caminho significativo para o pesquisador que, a partir de suas
inquietações, busca o fenômeno através de quem vivencia uma determinada situação”.
Portanto, o método fenomenológico explica acontecimentos vividos no dia a dia.
Já quanto às técnicas de coletas de dados, utilizaremos a pesquisa
bibliográfica e a história de vida.
No que tange à pesquisa bibliográfica, é básica e obrigatória seja qual for à
modalidade de pesquisa, foram escolhidos artigos e livros que a partir de conteúdos que
versassem sobre o assunto em questão, a saber-se, historia, realidade, invisibilidade
pública, direitos sociais, todos relacionados a pessoas em situação de rua.
A história de vida consiste na análise do discurso dos sujeitos, as informações são
obtidas através da própria pessoa de acordo com suas trajetórias pessoais e de informes da
sua vida pessoal de um ou de diversos informantes. Conforme nos diz Closs e Antonello
(2012, p.109), “uma história de vida ou história pessoal é um registro escrito da vida de
uma pessoa baseada em conversas e entrevistas”. O indivíduo pesquisado pode falar de
forma livre sobre sua experiência particular em relação ao assunto pesquisado. De acordo
com Spindola e Santos (2003), na historia de vida não é possível que o pesquisador
confirme a veracidade dos fatos, pois a pessoa que vivenciou tal fato é quem irá contá-lo
de acordo com o seu ponto de vista, isto sendo o mais importante no método historia de
vida, ouvir a pessoa que passou por determinada situação, o pesquisador terá que ouvir o
sujeito participante do estudo para então obter a reflexão deste sobre sua própria vida, pois
os aspectos mais particulares é o que fará a grande diferença nessa metodologia. Optamos
por esse método porque iremos estudar a história de vida das pessoas em situação de rua
para termos uma noção geral da realidade dessas pessoas.
Ao todo foram 04 (quatro) relatos de história de vida analisados, a pesquisa fornece
um indicativo de não efetivação dos direitos sociais previstos no artigo 6° da Constituição
Federal de 1988, em se tratando de pessoas em situação de rua neste município e uma
condição de invisibilidade social, chamando atenção para urgência no planejamento de
formas de efetivação de direitos sociais, quais sejam: educação, saúde, alimentação,
trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância
e assistência aos desamparados. Prioritários para indivíduos que vivem em situação de rua.

2 PANORAMA HISTÓRICO DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NO


MUNDO

Desde tempos remotos que existem pessoas vivendo em situação de rua, nas
mais variadas civilizações.
Na civilização grega e no Império Romano, por exemplo, geravam pessoas vivendo
nas ruas na Idade Média, fenômeno este, sempre relacionado ao sistema de produção e
consumo, porém, houve um crescimento quantitativo de pessoas em situação de rua com a
acumulação primitiva, mudança no modo de produção capitalista que consistiu na
desapropriação de terras rurais, segundo Marx apud Silva (2006, p. 72): “o processo
histórico que dissociou o trabalhador dos meios de produção foi denominado por Marx de
acumulação primitiva exatamente por constituir, em sua visão, a pré-história do capital e
do modo de produção capitalista”.
Encontramos um melhor entendimento a respeito do surgimento das pessoas
em situação de rua nas palavras de (MELO, 2011, p.13), que resume em sua obra um
trecho da Carta Aberta ao Presidente da República Federativa do Brasil escrito no Segundo
Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua, em 20 de maio de 2009, segundo
esse autor “o fenômeno população em situação de rua é antigo. Sua história remonta ao
surgimento das sociedades pré-industriais da Europa, no processo de criação das condições
necessárias à produção capitalista”. É possível notar que a vivência nas ruas tem em suas
principais raízes o trabalho, o sistema de produção e consumo e os que nessa condição
estão ou estiveram, foram ou são excluídos de todo esse processo.
Diante de todo esse contexto histórico, surge o pauperismo, são pessoas que
podem e precisam trabalhar, mas não conseguem se inserir no mercado produtivo,
Também podemos ter uma compreensão clara nas palavras de Silva (2006, p. 75):
“Portanto, o fenômeno população em situação de rua surge no seio do pauperismo
generalizado vivenciado pela Europa ocidental, ao final do século XVIII, compondo as
condições históricas necessárias a produção capitalista”.
As pessoas em idade produtiva perderam suas terras, moradia e sustento,
migraram para a cidade onde acontecia a Revolução Industrial, por volta do final do século
XIX e início do século XX, em busca de melhorias de vida, esses trabalhadores expulsos
de suas terras, como afirma Silva (2006), iniciaram a venda da sua força de trabalho no
mercado, mas não havia oportunidade para todos e nem todos sabiam desenvolver as novas
atividades, logo, o mercado dispensava essa força de trabalho oferecida, na perspectiva de
Silva (2006), as pessoas passaram a ser fonte de reserva de trabalho, e como consequência
da não inserção nesse novo modo de se conseguir o sustento, a rua passou a ser local de
sobrevivência, pessoas que antes podiam prover seu sustento e de sua família passaram a
ser mendigos.
O novo mundo capitalista surgido nesse período caracterizou-se pelo
processo de troca, ou seja, produção e consumo daquilo que é produzido, mas essas
pessoas oriundas do êxodo rural estavam totalmente fora desse processo e não conseguiam,
por mais que se esforçassem se inserir nesse novo mundo, devido às transformações tão
radicais e totalmente fora daquilo que antes era sua realidade na vivência campestre,
deixando-as sem escolha e as obrigando a irem morar na rua.
A impossibilidade de se inserir nessas indústrias, por motivos variados,
obrigou aquelas pessoas que antes eram trabalhadoras, que podiam prover seu sustento e de
sua família com o que produziam no campo, a serem pessoas sem expectativa de melhores
condições de vida e viverem uma vida de mendicância. No saber de SILVA (2006, p. 72):
“eles só começaram a vender a sua força de trabalho no mercado depois que lhes foram
roubados todos os meios de produção e foram privados das garantias e seguranças que as
instituições feudais afiançavam à sua existência”, em consonância com a autora citada,
percebemos que essas pessoas foram para os centros urbanos vender o único bem que lhes
restava, sua força de trabalho.
A respeito deste tema é necessário também realizarmos uma discussão teórica sobre
a forma como essas pessoas são vistas pela sociedade, sendo tal visão contraposta com o
posicionamento deles ante a realidade social.

2.1 Os indesejáveis sociais: como são vistas as pessoas em situação de rua pela
sociedade

A existência das pessoas em situação de rua, para muitos não se trata de


tema relevante, são pessoas que não são bem vindas, o sentimento social em relação a
essas pessoas é de rejeição, afastamento, desvalimento, é algo que está culturalmente
inserido em nossa sociedade, como bem afirma Costa (2005, p. 6): “tem perpetuado na
cultura nacional o sentimento de repressão e segregação, ou mesmo de desvalia, das
pessoas que vivem nas ruas”. Quase não são mencionados nos veículos de comunicação
em geral, mas quando o são, por vez aparecem sob duas circunstâncias: como vítimas da
injustiça social e da violência urbana ou como agentes causadores da violência.
A vida na rua se cria e recria todos os dias, como estratégias de
sobrevivência e como resistência à própria condição. A vivencia deles exige dos mesmos,
muita bravura, pois estão inseridos num cotidiano de violência, a rotina deles é de
hostilidade e para conseguirem resistir estabelecem políticas de coabitação entre si, como
exemplo, dormir em grupos, garantindo de alguma forma uma proteção bilateral,
possibilidades de segurança que só funcionam coletivamente, pois, esses habitantes das
ruas temem não apenas as agressões que podem sofrer dos criminosos, estar nas ruas
significa praticamente conviver com o risco e o medo cotidianamente, pois podem ter seus
poucos bens furtados, podem ser agredidos por alguém do seu próprio grupo de
convivência, por diversos motivos, sofrer abuso sexual ou agressões de pessoas
preconceituosas, e até mesmo daqueles que deveriam lhes proporcionar segurança, visto
que policiais, podem confundi-los com bandidos, o que é algo bastante comum num
ambiente de tantas adversidades como a rua.
O álcool e as drogas tornaram-se mais uma característica das pessoas que
vivem em situação de rua, fazendo parte de suas vidas, para suportar a falta de comida e a
baixa temperatura da noite ou até mesmo durante o dia em algumas cidades do país, ou
para conseguirem se relacionar de forma mais amigável com os demais integrantes de seu
círculo social, de acordo com COSTA (2005, p. 9) “o álcool e as drogas fazem parte da
realidade das ruas, seja como alternativa para minimizar a fome e o frio, seja como
elemento de socialização entre os membros dos grupos de rua.” Diante desse contexto,
podemos observar que o consumo de álcool e de drogas além de levar às pessoas a situação
de rua, tornou-se uma cultura entre os mesmos, uma forma de viver nas ruas, não fazer uso
de bebida alcoólica ou de outros tipos de drogas é muito difícil para eles.
As marcas corporais é outra especificidade que vai denunciando o prolongamento do
contato com o espaço urbano: sujeira, feições inchadas pelo álcool, vestimentas rasgadas,
postura corporal especifica, olhar introspectivo, tudo isso vai diferenciando a pessoa em
situação de rua das demais, o que impossibilita que a mesma consiga um trabalho mesmo
que informal e assim se reinsira socialmente.

2.2 Caracterizando os direitos sociais

Apenas em 1988, os direitos sociais foram listados no artigo 6° da Constituição


Federal, quais sejam: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança,
previdência social, proteção à maternidade e infância e assistência aos desamparados,
passando a ser um compromisso do Estado, proporcionar condições dignas de vida à
sociedade. Sem a efetivação desses direitos o seu reconhecimento é prescindível.
Os artigos 205 e 206 da Carta Magna trazem a educação como sendo um direito de
todos, e um dever do estado e da família, para que a pessoa possa desenvolver-se, exercer
sua cidadania e ter qualificação para o seu trabalho. O texto aborda também a necessidade
da promoção da educação de qualidade de forma gratuita. Podemos entender como sendo
um direito de todos, não deve haver distinção, pois por meio dessa educação se reduziriam
as desigualdades sociais, contudo, os que não conseguem ter acesso a essa educação não
conseguem o desenvolvimento necessário para alcançar a vida digna.
O direito à saúde encontra-se disciplinado nos artigos 196 e 200 da Constituição
Federal de 1988, o estado tem o dever de fornecer possibilidades essenciais ao seu amplo
funcionamento, no entanto, existem grandes problemas na efetivação desse direito social,
sendo que a sua importância é enorme (assim como dos demais direitos sociais), visto que
se o cidadão não consegue acesso à saúde, consequentemente sua produtividade irá
diminuir e o mesmo terá ainda mais dificuldade de conseguir se desenvolver de forma a
conseguir de fato ter dignidade de vida.
A Emenda Constitucional n° 64, de 2010, trouxe para a Constituição Federal de
1988, a alimentação como direito social, devendo está ser assegurada a todos, por se tratar
de direito fundamental. O Estado tem o dever obrigacional de propiciar meios de
efetivação desse direito, quando os indivíduos não conseguirem se desenvolver
socialmente de forma a conseguir recursos para ter alimentação apropriada.
O trabalho dignifica o homem e é por meio dele que os indivíduos podem
sobreviver e se inserir socialmente de forma digna, pois é através deste que o cidadão
participará utilmente na sociedade. Na Constituição Federal, em seus artigos 7° ao 11°,
estão regulados os direitos dos trabalhadores. Acertadamente Sales e Pachú (2015, p. 37)
dizem que: “o trabalho é a forma de participação útil do individuo na sociedade e deve ser
observado e efetivado”, porém é um dos direitos com menos concretude, mas que, poderia
proporcionar a todos subsistência considerável.
Através da Emenda Constitucional n ° 26 de 14 de fevereiro do ano de 2000, a qual
alterou o artigo 6° da Carta Magna, surge o direito social a moradia, essa moradia seria a
casa própria ou abrigo digno, conforme apontam Sales e Pachú (2015, p. 38): “a moradia
digna passa por condições adequadas de instalação, construída em local seguro para
melhor abrigar o individuo, como também possuir saneamento básico, rede elétrica e água.
Deve também ter disponibilidade para transporte público e serviço de coleta de lixo”. É
totalmente adequado, a respeito do que se pode esperar em termos de direito a moradia. O
valor do aluguel da casa deve ser razoável, sem que as demais despesas familiares fiquem
comprometidas, o que nós sabemos que não condiz com a realidade atual, e por falta de
concretude desse direito, pessoas acabam indo residir nas ruas sem a menor condição de
dignidade.
A dignidade do ser humano, não passa apenas pelos direitos sociais acima
abordados, o lazer também se enquadra no rol social de direitos que deveriam ser
garantidos aos cidadãos, proporcionando melhores condições de vida, pois ter um tempo
livre para descansar e socializar tornará a vida mais digna. O lazer será incentivado pelo
poder público, como forma de promoção social, isso é o que está disciplinado no § 3° do
artigo 217 da Constituição Federal.
Sem segurança o desenvolvimento do convívio social e demais atividades que o
cidadão venha a realizar ficam comprometidos. Essa segurança garantida serve para
proteger o cidadão no trabalho, nas ruas, seu direito de ir e vir, sua intimidade, integridade
física e psicológica, dentre outras demais situações que exigiam proteção. O caput do
artigo 144 da Constituição Federal, disciplina: “A segurança pública é dever do estado,
direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem e da
incolumidade”.
Para garantir direitos como aposentadoria por invalidez, tempo de serviço e velhice,
auxílios por doença, maternidade e reclusão, por exemplo, existe a previdência social
prevista na Carta Magna, em seus artigos 201 e 202, há também serviços como prestação
médica, farmacêutica, readaptação social, entre outros.
O direito social de proteção à maternidade e a infância visa à proteção da mãe e
do filho em relação ao pleno desenvolvimento da gravidez e posteriormente ao
desenvolvimento do bebê e da genitora, garantindo tanto à mulher quanto á criança
diversos direitos.

3. A INVISIBILIDADE DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA: UM OLHAR A


PARTIR DA HISTÓRIA DE VIDA

Neste tópico são apresentados os resultados e discussões decorrentes do estudo


realizado com pessoas em situação de rua, o qual objetivou dar voz a tais pessoas, por meio
da utilização da metodologia da história de vida, analisando os efeitos da invisibilidade
social na vida desses indivíduos, bem como foi estudado a efetividade (ou não) dos direitos
sociais na vida deles. Neste sentido, inicialmente será descrita a conceituação de
invisibilidade, e, por fim, são apresentados especificamente os resultados da pesquisa
empírica.

3.1 Conceituando a invisibilidade social associada a pessoas em situação de rua

A invisibilidade social consiste em não ser percebido pelas pessoas. É uma


cegueira psicossocial nas classes sociais privilegiadas que reproduz a invisibilidade
pública, no entender de Costa (2008), a invisibilidade tem haver com a nossa própria
formação cultural, já que nascemos em uma sociedade separada por classes sociais
privilegiadas e desprivilegiadas. As primeiras parecem usar fendas que as impossibilita de
ver a rua por onde andam, não olham ao seu redor, logo as desprivilegiadas não são
notadas, ficando invisíveis, as pessoas de tão acostumadas com esse cenário deixam de
percebê-las.
Como se por estarem em condição de rua fizesse com que eles fossem todos iguais,
porém, cada um deles tem um rosto uma história. Percebemos que a raiz da invisibilidade
pública está ligada diretamente a fatores de natureza psicológica e fatores de natureza
social.
O trabalho de Costa (2008, p. 15), traz uma conceituação a respeito do que
seria a invisibilidade pública, que seria o “desaparecimento de um homem no meio de
outros homens, é expressão pontiaguda de dois fenômenos psicossociais que assumem
caráter crônico nas sociedades capitalistas: humilhação social e reificação”.
A partir de tal conceituação, podemos então notar que os indivíduos não se
reconhecem e rejeitam qualquer reconhecimento ou afinidade uns com os outros, passando
a excluir outros seres humanos, julgando-os como pertencentes a um grupo em separado,
que deve ser segregado e mantido à distância, em virtude de serem considerados como
inimigos, seres ou coisas inferiores aos parâmetros de identificação interna do seu próprio
grupo. Falta humanização do tratamento com essas pessoas, qualquer tipo de valorização
desses sujeitos seria válida, mas, os que passam apressados ao lado dessas pessoas
procuram não vê-los, é mais confortável.
A invisibilidade social é tão abrangente que são invisíveis para a rede de
serviço de saúde, um exemplo é a necessidade de comprovação ou de referência de
residência para aqueles serviços de saúde que trabalham a partir de bases territoriais nas
grandes cidades, são invisíveis também em relação a pesquisas que retratem suas
características com abrangência nacional, como bem constata Costa (2005, p. 05) “trata-se
de uma população sem visibilidade para os órgãos oficiais de contagem populacional, o
próprio censo (ultima versão em 2000), realizado pelo IBGE, bem como as pesquisas por
amostragem domiciliar do mesmo instituto não computam essa população em função da
sua falta de referência de moradia”.

3.2 As histórias de vida de pessoas em situação de rua na cidade de Santa Cruz do


Capibaribe

Neste tópico procederemos à análise do relato das pessoas em situação de rua da


cidade de Santa Cruz do Capibaribe - PE. Os relatos da história de vida foram obtidos
através da participação de quatro pessoas em situação de rua na pesquisa. Ressaltamos que
a vigente pesquisa foi aprovada no comitê de ética do Centro Universitário do Vale do
Ipojuca (UNIFAVIP/DEVRY).
Além disso, é importante relembrar que optamos pelo método história de vida,
tendo em vista que ele baseia-se em entrevistas onde o participante narrará fatos pessoais e
significantes de sua vida de forma livre, com o mínimo de interferência possível por parte
do pesquisador.

3.2.1 Caracterizando os participantes da pesquisa

Participaram da presente pesquisa 04 (quatro) pessoas que vivem em situação de rua


na cidade de Santa Cruz do Capibaribe-PE, ressaltamos que adotaremos nomes fictícios
das pessoas que participaram da pesquisa.
A seguir apresentamos os nomes escolhidos e as principais características de cada
participante, onde será possível observar a heterogeneidade dessa população,
principalmente em relação aos motivos que os fizeram ir morar na rua:
PARTICIP I SE NATURALIDADE:
ANTE: 01 DADE: XO: Santa Cruz do Capibaribe/PE
João 5 Ma
3 anos sculino
TEMPO APROXIMADO EM PARENTES RESIDINDO NA
SITUAÇÃO DE RUA: CIDADE:
Não informado Irmãos
CONTATO COM MOTIVO DE IR FILHOS
FAMILIARES: MORAR NA RUA: :
Tem contatos com os Perda da moradia Tem 01
irmãos filho

PARTICIP I SE NATURALIDADE:
ANTE: 02 DADE: XO: Surubim/PE; há 30 anos reside em
Pedro 3 Ma Santa Cruz do Capibaribe/PE
4 anos sculino
TEMPO APROXIMADO EM PARENTES RESIDINDO NA
SITUAÇÃO DE RUA: CIDADE:
03 anos 05 Irmãos
CONTATO COM MOTIVO DE IR FILHOS
FAMILIARES: MORAR NA RUA: :
Tem contatos com os Após a morte dos pais Tem 01
irmãos filho

PARTICIP I SE NATURALIDADE:
ANTE: 03 DADE: XO: Recife/PE
Miguel 3 Ma
4 anos sculino
TEMPO APROXIMADO EM PARENTES RESIDINDO NA
SITUAÇÃO DE RUA: CIDADE:
Não tem noção do tempo Não tem
aproximado
CONTATO COM MOTIVO DE IR MORAR FILHO
FAMILIARES: NA RUA: S:
Não tem contato Perca de laços familiares e Tem 04
envolvimento com álcool filhos

PARTICIP I SE NATURALIDADE:
ANTE: 04 DADE: XO: Vitoria de Santo Antão/PE
Gabriel 5 Ma
3 anos sculino
TEMPO APROXIMADO EM PARENTES RESIDINDO NA
SITUAÇÃO DE RUA: CIDADE:
01 ano Não tem
CONTATO COM MOTIVO DE IR FILHOS
FAMILIARES: MORAR NA RUA: :
Não tem Perca de laços familiares, Tem 03
morte de familiares. filhos

3.2.2 Análise da fala dos participantes da pesquisa

Nesse subtópico iremos fazer uma analise da história de vida das 04 (quatro) pessoas
em situação de rua participantes da pesquisa. Para tanto organizamos o presente estudo em
três categorias analíticas, a saber: (1) Desinteresse no cumprimento dos valores e regras
sociais e a ida para a rua; (2) a vivência nas ruas e a não efetivação dos direitos sociais; e,
(3) o desprezo e a invisibilidade como sinais de sua percepção frente à sociedade.
Em relação à primeira categoria, desinteresse no cumprimento dos valores e
regras sociais. Conforme o relato dos próprios participantes a ida deles para a rua não foi
por opção, o envolvimento com álcool, desavenças familiares e falta de trabalho, são os
problemas mais citados, ou seja, são coisas das quais não conseguiram ter um controle. “O
vicio do álcool me fez ir morar na rua, geralmente quando a pessoa se separa da mulher
se joga na bebida, mente fraca. Depois arranjei uma dona de casa, comecei trabalhar,
mas depois cai de novo no vício” (Miguel). Outro informante contou que foi parar na rua
após ter sido preso por matar um homem que havia desrespeitado a sua filha que na época
era uma criança, após sair da prisão não tinha para onde ir e estava sem o apoio dos
familiares. “O camarada pegou nas partes intimas da minha filha, eu vi com meus dois
olhos, eu não aguentei, estava com uma faca, dei uma facada na bexiga dele, ele se foi, ele
pegou na minha presença e falou que sabia que eu estava armado, mas que não tinha
medo não e ai fez um pai, eu não me controlei ao ver essa cena4” (Gabriel).

4
Buscando padronizar a exposição das falas dos participantes da pesquisa, utilizamos o texto em
itálico e entre aspas, mantendo a forma de falar deles, sem realizar correções de concordância, nem
gramaticais.
Regras como cumprimentos de horários em trabalhos ficam, completamente
comprometidas devido o forte envolvimento com álcool, que os impedem de trabalhar.
“Eu tenho um trabalho em uma estamparia, quando dá coragem eu vou, depois que
começo a beber está perdido, quando paro de beber eu trabalho, eu começo beber
qualquer hora, a hora que me acordo já estou bebendo, atualmente não estou
trabalhando” (Pedro).
Para Almeida e Nascimento, (2011, p. 2) “o indivíduo que não 'respeita estas regras'
– como se fosse o único responsável – consequentemente pagará um preço. Perderá a sua
condição de cidadão”.
Em outros momentos os valores irrisórios oferecidos pelo trabalho fazem eles se
sentirem desvalorizados e se negarem ao trabalho, “Me sinto desvalorizado, um serviço
que é pra eu ganhar 100 reais, querem me dar 10 reais, prefiro não ir, as pessoas só
querem explorar, pensam: - eu dou um litro de cana a ele” (Miguel).
As regras impostas fazem com que as pessoas em situação de rua, busquem outras
opções para atender suas precisões, mesmo possuindo parentes residindo na cidade e tendo
contato com eles, optam por morarem na rua a ter que se submeterem a humilhações,
regras ou perda da liberdade, pedem alimentos e usam lugares públicos com água para
tomar banho e lavar roupa por exemplo. “Tenho contato com meus irmãos e me dou bem
com eles, mas não da certo pra ir morar com eles, comida eles me dão, mas não vou
comer lá não, eu não gosto não, receber um bocado de comer e depois ficar falando, me
agrado não”. “fica humilhando a pessoa, prefiro morrer de fome no meio da rua”.
“Prefiro dormir na rua do que dormir na casa de alguém e levar sugesta” (João). São
rejeitados por não se encaixarem nas regras sociais, “Se eu parasse de beber meus irmãos
podiam aceitar eu morar com eles, mas eu não vou parar, prefiro continuar na rua, fazer o
que?” (Pedro). As regras para eles implicam uma mudança de comportamento, a qual eles
não estão dispostos a fazer.
Todos os participantes têm filhos, mas passam anos sem vê-los, sem os procurarem e
às vezes sem cumprirem com obrigações civis. “O dinheiro que consigo uso pra beber”.
“Não estou dando nada a minha filha, faz mais de ano que não vejo ela, não estou mais
nem pagando a pensão, ela tem 14 anos” (Pedro). “meus filhos não sabem onde estou,
não sabem nem onde moro, nem eles, nem ninguém da minha família sabe onde eu moro”
(Miguel). Almeida e Nascimento (2011), dizem que esses fatores dificultam a reintegração
desses indivíduos a regras e valores sociais.
A segunda categoria analisada foi à vivência nas ruas e a não efetivação dos
direitos sociais.
Conforme já destacado neste artigo, os direitos sociais básicos de qualquer pessoa,
dizem respeito à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança,
previdência social, proteção à maternidade e infância e assistência aos desamparados, os
quais foram reconhecidos na Carta Magna a partir de 1988, como direitos fundamentais da
pessoa. No caso dos participantes da pesquisa verificamos através da fala deles uma total
ineficácia dos direitos sociais.
Apesar da baixa escolaridade, quase todos sabem ler e escrever; os que não sabem,
conseguem pelo menos assinar o próprio nome. O desejo de estudar foi citado por todos,
assim como a falta de oportunidade de se conseguir acesso à educação. “Nunca estudei, sei
fazer meu nome, mas não sei ler, nem escrever, tenho vontade de estudar.” (João). Bem,
sabemos que para pessoas que não tem nem onde morar, ou o que comer, estudar tornasse
algo praticamente impossível, a falta de estabilidade não permite que as pessoas em
situação de rua alcancem tal direito social. “Já estudei, parei na 8° serie, sei ler e escrever
gostaria de voltar a estudar, mas não tenho nem onde morar, como vou estudar?”
(Pedro).
Apesar de não terem sido relatados problemas relacionados à saúde, bem
sabemos que problemas como alimentação precária, exposição a todas as formas de
vulnerabilidade que a rua oferece, falta de perspectiva e perda de autoestima, podem
acarretar consequências na saúde das pessoas em situação de rua, em especial a saúde
mental, o sofrimento psíquico na fala desse participante reflete essa realidade, “Eu me vejo
como um bicho tem horas de me da vontade de me matar, não tenho vontade de comer,
não tenho vontade de nada” (João). O uso do álcool também causa um processo de
debilitação física e mental, onde a pessoa só consegue se enxergar de forma inferiorizada,
“Me vejo como pinguço, como cachaceiro, eu sou cachaceiro, é só o que sou” (Pedro).
Não é ofertado, por exemplo, tratamento para dependência alcoólica. “Eu bebo, mas quero
me libertar desse álcool, eu bebo porque estou na rua” (Gabriel). É valido salientar que o
acesso à saúde é um direito de toda a população brasileira, este não pode ser impedido por
qualquer barreias econômicas, sociais, culturais, políticas e etc.
A alimentação não é frequente, nem de qualidade, necessitando muitas vezes
de doações de particulares, sendo um dos problemas mais citados, não se tem a menor
segurança quanto à possibilidade de se fazer uma refeição todos os dias. “Nesse momento
difícil que estou passando eu peço, mas eu não quero essa vida, mendigando pão”
(Gabriel). “Não sei nem onde vou dormir hoje, comi agora e só vou comer segunda”. Em
outro momento da fala o mesmo participante diz “Faço apenas uma refeição ao dia, de
manhã” (Pedro). “A maior dificuldade de morar na rua é o frio, a muriçoca e a fome, a
barriga roncando de madrugada e sem ter o que comer da vontade de comer até terra”
(João).
É por meio do trabalho que a pessoa gera recursos para garantir a sua subsistência, é
essencial, a dificuldade de conseguir emprego, representa para eles um dos grandes
motivos pelo qual não conseguem sair da condição de rua, a fala de um dos participantes
representa bem essa situação, “passo de 03 a 04 meses morando na rua porque não tenho
emprego fixo, o principal motivo é esse” (Miguel). Sem emprego não há espaço para
projetos, planejamento a longo ou curto prazo, ou até esperança no futuro.
Ainda sobre emprego, outro participante da pesquisa disse que: “Trabalho um dia e
passo oito sem trabalhar, pago o aluguel de um mês, mas no outro não posso pagar, pagar
energia, não posso pagar, ai prefiro tá na rua mesmo” (João). O trabalho é o único bem
que essas pessoas podem oferecer para terem como sobreviver, se inserir no mercado
produtivo e não se tornarem uma sobra social, mas a dificuldade de conseguir trabalho seja
formal ou informal é evidente, “nunca trabalhei de carteira assinada, toda vida trabalhei
clandestino”. “Eu tenho procurado emprego, tenho dificuldade de conseguir” (Gabriel).
Almeida e Nascimento, (2011, p. 4) observam que “o fator econômico é determinante na
garantia de melhor educação, moradia, saúde, segurança e até entretenimento”.
Como já mencionado anteriormente prover um teto para seus cidadãos é uma
obrigação do estado à moradia é um direito básico previsto constitucionalmente, mas que
não alcança as pessoas em situação de rua. “Só queria um cantinho pra eu morar, pra eu
dormir, nem que eu tivesse que trabalhar de graça” (João). É um dos maiores desejos de
todos os participantes, “tenho vontade de parar de beber, de ter um canto pra morar”
(Pedro). E acreditam que a mudança de vida que tanto esperam venha apenas através da
concretização desse sonho, “quando sai do presídio fiquei na rua, eu não tenho uma
moradia”. “Eu quero verdadeiramente ver se eu consigo um quarto pra mim da uma volta
por cima, sair da rua” (Gabriel). Mas bem sabemos que acesso a moradia é um dos
problemas sociais mais latentes.
Em se tratando de segurança, o medo de que algo de mal lhes aconteça devido à
vulnerabilidade em que vivem é constante. “Sinto medo, medo de me deitar e chegar
alguma pessoa e me fazer o mal, a pessoa dormindo, tem gente que veio ao mundo para
fazer o mal, não é todo mundo, mas tem” (Gabriel). Reportagens noticiando graves
ataques físicos a essas pessoas são bem comuns, um dos participantes relatou ter sofrido
esse tipo de violência. “Já fui agredido fisicamente por um maloqueiro, levei um murro,
quebrou meus dentes” (João). O fato de que são alvo de violência é inegável, furto de
objetos pessoais são bem comuns. “Tinha um restaurante, um dia eu comecei tomar uma,
ai roubaram meu celular com chip e tudo, perdi tudo”. “Não tenho nada na minha vida,
só tenho a roupa que estou vestindo, minhas roupas levaram todas” (João). De acordo
com Costa (2005, p. 11), “a rua é vivida como um espaço de instabilidade, um mundo à
parte da sociedade formal, onde a presença do Estado como garantidor da ordem e da
segurança é relativa”.
A assistência aos desamparados deve servir como ponte para essas pessoas
alcançarem seus demais direitos, mas entre os informantes que participaram da pesquisa,
essa assistência não tem nenhuma efetividade, pois nenhum deles conseguiu se inserir, por
exemplo, em programas governamentais assistenciais, não possuem benéfico algum do
governo, como Bolsa Família, ou qualquer outro programa social. “Eu recebia o Bolsa
Família, mas foi cancelado”. “Fiz o Bolsa Família quando tinha um endereço fixo”. “Não
me sinto amparado pelos direitos sociais” (Miguel). Não há assistência nem para que
realizem as atividades essenciais de higiene pessoais mais básicas. “Já passei até dois, três
dias sem tomar banho, momento de procurar um canto pra tomar banho, chegar num
posto de gasolina às vezes tem até banheiro fechado, tem água pra tomar banho, mas está
fechado, quando encontra um açude, um canto, mas quando não encontra” (Gabriel). “A
maior dificuldade da rua e quando termina o dia e a pessoa não tem onde dormir, sem ter
um lugar pra tomar banho, minhas roupas não tenho onde lavar” (Pedro).
Costa (2005, p. 12) fala da ineficiência desse direito social quando afirma,
“faz parte do histórico da política assistencial no país a disponibilização de “serviços
podres, já que são destinados a pessoas pobres”. Tal tradição tem origem na crença, ainda
presente na cultura nacional, de que se trata de benevolência, de um favor prestado à
população, e não de direitos sociais a serem garantidos”.
Identificamos o direito social à previdência social, apenas na fala de um
participante mesmo assim de forma negativa, onde o mesmo fala: “Não alcanço mais
aposentadoria, alcanço mais nada, quando chegar lá estou morto já” (João).
Quanto ao direito social de proteção à maternidade e infância, não há que se falar
nessa presente categoria analítica, pois participaram da pesquisa apenas pessoas do sexo
masculino e adultas.
A falta de renda não possibilita que pessoas em situação de rua tenham lazer, “se
tivesse uma renda fixa nesses feriados iria visitar minha família” (Miguel). Para ele visitar
a família é um lazer, o qual por falta de recursos também lhes é privado.
Por fim, a última categoria foi o desprezo e a invisibilidade como sinais de sua
percepção frente à sociedade. A invisibilidade social torna as pessoas inexistentes no
meio das outras, são seres que não conseguem enxergar os seus iguais, sabem que eles
estão ali, mas procuram de alguma forma agir como se eles não tivessem. De acordo com
Costa (2008, p. 13) “há percepção, mas percepção, em alguma medida, rebaixada. E que
não fique dúvida: rebaixada a ponto de “chatear”, “reprimir” quem a sofre, necessitando o
sofredor evitá-la”.
Há um desinteresse do Estado e da sociedade pelas pessoas em situação de rua, é a
repressão, preconceito, indiferença e segregação, que essas pessoas vivenciam diariamente.
“Me sinto, desvalorizado por minha família, por as pessoas que não me conhecem, pelo
governo, tanta terra que tem no mundo e a pessoa viver desprezado no meio do mundo,
derrubam a casinha da gente. A minha família não me ver. Se eles conseguissem me
enxergar, o que falariam seria apenas João está desprezado” (João).
A sociedade já naturalizou a situação de rua, a presença dessas pessoas já não é mais
percebida, é bem mais cômodo se conformar, já que alguns consideram injustiça, outros
hostilizam, os consideram apenas bêbados safados e nojentos, mas a contribuição para a
mudança dessa realidade é inexistente. “Muitos conhecidos hoje não falam mais comigo,
me sinto desvalorizado, minha família não procura me ajudar. Eu sou a ovelha negra da
família” (Pedro). “O povo da rua nem pra mim não olha, finge que não me ver, passei por
meu irmão essa semana, ele virou a cabeça, nem pra mim olhou, me sinto invisível, ai é
que me sinto desgostoso da minha vida, as pessoas não procuram me ajudar” (João).
É uma grande desigualdade social que causa uma divisão entre as classes
mais favorecidas e as menos favorecidas. O julgamento pessoal e social torna ainda mais
difícil a possibilidade da pessoa superar a condição em que está. As pessoas os tratam
como se não existisse mais lugar para eles na sociedade. “Umas pessoas passam e viram a
cara para o outro lado, outros quando a pessoa chega se afastam”. “Às vezes a pessoa
bebe não é por que quer não, é porque falta algo na vida da pessoa, é desprezo que a
família dá”. “Me sinto desprezado e invisível diante das pessoas que tem mais condições
que eu” (Miguel). As pessoas que passam o tempo todo por ele andam pelas mesmas ruas,
mas parecem tão distantes e diferentes do que ele é. As palavras de Almeida e Nascimento,
(2011, p. 4) espelham a fala do participante, “tornaram-se invisíveis aos olhos dos
cidadãos, ora provocando estranheza como se não fossem seres humanos ora piedade”.
Sentimento de vergonha por estar em condição de rua e por ter que pedir
alimentos causa angustia nesses seres excluídos. “Eu me sinto angustiado por está na rua,
depois de 34 anos passando por isso, tenho vergonha de esta na rua, nunca pedi nada pra
ninguém, hoje eu peço, eu peço esmola, peço coisas para os outros, nunca tinha feito isso
e hoje estou fazendo, hoje vivo nessa vida” (Pedro).
A volta dos laços familiares e contato com a sociedade ajudaria bastante, pois o
sentimento de desprezo e invisibilidade por parte dos familiares e conhecidos causa grande
sofrimento psicológico nas pessoas em situação de rua. “Tenho vários irmãos morando
aqui, mas eles não ligam pra mim não”. “Eles sabem que estou nessa situação, todos tem
casa, mas não me abrigam” (João).
Diante da fala desses participantes em situação de rua, podemos perceber que são
homens marginalizados pelo sistema e considerados uma das grandes feridas sociais
contemporâneas, por aqueles que não se encontram nessa mesma situação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho procurou discutir a não efetivação dos direitos sociais previstos
constitucionalmente, em relação às pessoas em situação de rua e se essas mesmas pessoas
enfrentam invisibilidade social. Para tanto começamos o estudo fazendo uma análise
histórica de como surgiu à população em situação de rua, e os principais fatores que
levaram pessoas a chegarem nessa triste realidade. Percebemos através dessa análise que
um dos fatores principais foi uma exclusão da sociedade de produção capitalista, uma não
inserção no mercado de trabalho, fator esse que perdura até os dias atuais, podendo ser
percebido claramente na fala dos participantes da pesquisa.
Após esses aspectos históricos, nos ocupamos em fazer uma abordagem
acerca das características e realidade das pessoas em situação de rua, abordando também os
direitos sociais. Em se tratando de características e realidade de vida, a análise se ateve em
mostrar como as pessoas em situação de rua são vistas socialmente, percebemos que estão
inseridas em um contexto de discriminação e marginalização.
Outrossim, realizamos uma abordagem acerca dos direitos sociais previstos
constitucionalmente que deveriam servir como proteção para essa classe social. Ao longo
da pesquisa percebemos que as pessoas em situação de rua sofrem violação em todos os
seus direitos sociais e que os mesmos não trouxeram resultados efetivos na sua condição de
vida.
É fundamental que haja o reconhecimento das pessoas em situação de rua
como sujeitos que possuem direitos, os quais são variados e precisam sair da teoria para a
prática. Educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência
social, proteção à maternidade e a infância, assistência aos desamparados, são direitos
sociais que não tem efetivação quando se trata de moradores de rua, diante tudo quando foi
exposto ao longo do trabalho, não há dúvidas de que essa população carece de proteção
social em vários aspectos e que essa proteção é um direito legítimo deles que lhes é
privado. A pobreza possui um caráter coletivo, ou seja, possui um status de
responsabilidade social, por isso as pessoas em situação de rua têm o direito de serem
assistidas socialmente, como também devesse desenvolver políticas públicas voltadas para
essas minorias em situação de rua. Trata-se do reconhecimento e da legitimidade dos
moradores de rua enquanto sujeitos de direitos.
E por fim a invisibilidade das pessoas em situação de rua: um olhar a partir da
história de vida. A indiferença, o desinteresse, e a invisibilidade social marcam a
existência de quem vive nas ruas, a presença deles depõem contra a imagem da cidade,
portanto, deve ser encoberta.
É necessário mostrar que a exclusão não pode ser o destino dessas pessoas, que
a possibilidade delas saírem dessa condição e serem reinseridas socialmente, com a ajuda
de instituições de auxílio, de atendimento e serviço, de pessoas para trabalharem com esse
segmento social, aumento das formas de auxílio e serviços assistenciais específicos e
destinados á população em situação de rua, ou seja, é possível gerar um apelo para a
contribuição da sociedade em relação a essas pessoas.
Ressaltamos que não pretendemos esgotar as discussões sobre esta temática,
pelo contrário destacamos a necessidade de novos estudos que possam continuar debatendo
sobre as pessoas em situação de rua, em especial a efetivação de seus direitos e
invisibilidade social, para que possam ser propostas que transformem essa realidade, pois,
caso contrário, essas pessoas não terão oportunidade de se reintegrar socialmente
abandonando a situação de rua, mas, pelo contrário, continuarão a viver a margem da
sociedade.

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como Método de Pesquisa: uma Análise a Partir dos Trabalhos Publicados nos Principais
Eventos e Revistas Nacionais em Administração - 1997 a 2008. Rio de Janeiro/RJ – 25 a
29 de setembro de 2010. XXXIV Encontro da ANPAD.
A QUESTÃO DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA NO PROCESSO
JUSTRANSICIONAL BRASILEIRO

Mariane Izabel Silva dos Santos1

GT 03 – Direito, Movimentos Sociais e Cidadania

RESUMO

O presente estudo tem o objetivo de discutir sobre graves violações de direitos


humanos a crianças e adolescentes no período ditatorial brasileiro, e, paralelamente, sobre
como o totalitarismo demarca a construção jurídica deste campo. Trata-se de parte dos
resultados das investigações desenvolvidas no âmbito do Projeto de Iniciação Científica
“Direitos humanos, violência e diversidade humana no período ditatorial, no agreste
pernambucano (1964-1985)”, que tem como intuito apurar a realidade vivenciada durante o
militarismo brasileiro. Os principais autores utilizados foram: Brasil (2014), São Paulo
(2014), Frota (2007) e Leite (2011). Este estudo de cunho documental, metodologicamente
foi instrumentalizado a partir do método dialético, com uma abordagem qualitativa, e
através de uma pesquisa bibliográfico-exploratória. As conclusões alcançadas com essa
pesquisa permitem-nos depreender que a formação jurídica do direito da criança e do
adolescente, no Brasil, guarda relação com a perspectiva repressora e violenta que regeu a
graves violações de direitos humanos a crianças e adolescentes no civil-militarismo
brasileiro. Ainda, que as graves violações de direitos humanos a esse grupo mantinham
relação com a convivência com: a morte e a separação de familiares, o exílio, negação de
suas identidades, além de, em muitos casos, violências diretas (físicas e psicológicas).

Palavras-chave: Direitos Humanos. Infância. Adolescência. Ditadura. Brasil

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho foi desenvolvido a partir de discussões fomentadas no Projeto de


Iniciação Científica: Direitos humanos, violência e diversidade humana no período
ditatorial, no agreste pernambucano (1964-1985).

1
Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Graduada em Direito pelo UNIFAVIP, advogada e
pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre Direitos Humanos (Mércia
Albuquerque/UNIFAVIP). E-mail: mariane.izabel@hotmail.com.
Busca-se, nesta pesquisa, apresentar o cenário de violências sofridas por crianças e
adolescentes durante a ditadura militar do Brasil, com o intuito de dar maior visibilidade
sobre como esse grupo foi tratado nesse período, e, também, acerca das dimensões
jurídicas das normas nessa época. Dessa forma, buscamos catalogar dados bibliográficos
de modo a responder o seguinte problema de pesquisa: Qual o cenário das violências
sofridas pelas crianças na Ditadura Militar brasileira? E, enquanto questão secundária: A
formação jurídica acerca da infância e adolescência no Brasil, guarda relação com o
imaginário jurídico do civil-militarismo?
De forma a responder esse questionamento, a pesquisa direcionou-se a partir de um
objetivo geral, qual seja: apresentar o cenário das violências sofridas pelas crianças na
Ditadura Militar brasileira.
De modo a alcançá-lo, essa pesquisa se propôs, de início, a mapear e analisar as
legislações existentes sobre os direitos das crianças na época do militarismo no Brasil, bem
como identificar quais violências marcam o contexto de crianças e adolescentes nesse
período, e, por fim, apresentar o cenário de violências sofridas na Ditadura Militar
brasileira por crianças e adolescentes, a partir de narrativas de vida.
A metodologia utilizada em nossa pesquisa se fez a partir do método dialético
(LAKATOS, 2003), tendo em vista que esse instrumento possibilita uma melhor
apropriação da realidade. A abordagem desta pesquisa é qualitativa para que se tenha uma
visão do fenômeno estudado (a partir das histórias de crianças e adolescentes que viveram
naquele período) de forma a construir sentidos e significados sobre ele. Além disso, trata-
se de uma pesquisa bibliográfico-exploratória, que fez uso da técnica análise de conteúdo
(BARDIN, 2009), buscando interpretar as histórias de algumas crianças que viveram o
militarismo no Brasil, selecionadas a partir de pesquisa documental.
Assim, esta pesquisa se justifica por ser observada a invisibilidade que esse grupo
tem na formação democrática do país, assim como acerca das lacunas jurídicas presentes
na legislação nacional, as quais remontam o imaginário de repressão e violência vivido
naquele período. Dessa forma, espera-se que esse estudo contribua para que o “nunca
mais” se consolide, e que a verdade sobre a ditadura civil-militar seja conhecida.
2 DESENVOLVIMENTO

2.1 SOBRE A FORMAÇÃO DAS LEGISLAÇÕES SOBRE CRIANÇAS


DURANTE A DITADURA MILITAR BRASILERA

A ditadura militar é lembrada, na maioria das vezes, pelas violações e cassações aos
direitos das pessoas, até mesmo as mais vulneráveis. Dessa forma, é importante fazer uma
análise das normativas vigentes nesse período para que entendamos, de certo modo, qual o
lugar das normas instituídas na complacência a certas violações.
De todo modo, surge nas primeiras décadas do século XX a primeira legislação
internacional a tratar dos direitos da criança e do adolescente. Trata-se da Declaração de
1924, conhecida como Declaração de Genebra, na qual surge a expressão “direitos da
criança”, e que se começa a se referir, mesmo que implicitamente, sobre o tratamento com
absoluta prioridade que temos hoje, também assegurado na legislação brasileira.
Albuquerque (2001, p. 01) cita que:

A primeira referência a “direitos da criança” num instrumento jurídico


internacional data de 1924, quando a Assembleia da Sociedade das Nações
adoptou uma resolução endossando a Declaração dos Direitos da Criança
promulgada no ano anterior pelo Conselho da União Internacional de Protecção à
Infância (Save the Children International Union), organização de carácter não-
governamental.
É a partir desse momento da história que as nações começam a se preocupar com as
condições especiais inerentes às crianças e adolescentes, em decorrência do seu estado e
estágio de desenvolvimento. Outras Declarações internacionais foram promulgadas, bem
como, começaram a surgir legislações internas, como no caso brasileiro, em decorrência do
compromisso em se cumprir o que fora consignado naqueles documentos.
Nesse ínterim, no Brasil, observa-se que o Código Penal atual (BRASIL, 1940) foi
promulgado, em 1940, preocupando-se, naquele momento, com a punição dos agressores
que causassem mal a criança, por exemplo.
Com efeito, em 1959 surge a primeira Declaração Internacional voltada unicamente
para esses sujeitos, entendidos como um grupo em desenvolvimento, a conhecida
Declaração dos Direitos da Criança (ONU, 1959), indicando-se neste importante
documento direitos que devem ser respeitados e assegurados pela família e Estados, sendo,
inclusive, ratificada pelo Brasil com a promulgação da Constituição da República de 1988.
O princípio 9º, consignado na Declaração anteriormente citada, chama a atenção,
pois assim preceitua: “A criança gozará de proteção contra quaisquer formas de
negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer
forma” (ONU, 1959). Vê-se, claramente, a intenção do legislador em abarcar as principais
formas de violência a esse grupo, ao ponto que prenuncia a necessidade de engajamento
estatal em sua superação.
Ainda, ao interpretarmos esse princípio, percebe-se que a Assembleia Geral da
ONU já indicava o cuidado para com a criança (e, futuramente, adolescente) no que tange
a violência em sentido amplo, pois visava protegê-las da crueldade e da exploração que,
por ventura, pudessem ser vítimas.
No Brasil, no ano em que foi instaurada a ditadura civil-militar, foi promulgada a
Lei nº 4.513/64, que tratava sobre a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor –
FUNABEM, que, na verdade, tinha como objetivo “ser a grande instituição de assistência à
infância, cuja linha de ação tinha na internação, tanto dos abandonados e carentes como
dos infratores, seu principal foco” (LORENZI, 2007, p. 2).
Seguindo essa linha histórica é promulgada, em 1969, a Convenção Americana de
Direitos Humanos (OEA, 1969), conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, a qual
trouxe em seu art. 19: “Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição
de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado”. Observa-se que esse
não é um documento voltado unicamente para as crianças, pois trata de liberdades e justiça
social, bem como dos direitos humanos de forma ampla. No entanto, teve a preocupação de
trazer um artigo tratando sobre esses sujeitos, reconhecendo sua vulnerabilidade social.
A Constituição, ou Emenda Constitucional, de 1969 – há controvérsias se o texto de
1969 trata-se de uma nova constituição ou apenas uma Emenda Constitucional da
Constituição de 1967 – nesse mesmo ano, seria considerada por Coelho (1998, p. 107)
como “a mais autoritária da história constitucional brasileira, pois, apesar de conter uma
longa enumeração dos direitos individuais (art. 153), detinha poderes de supressão desses
mesmos direitos”.
Dessa forma, percebe-se que apesar de já existirem normativas que regulassem
direitos da criança, a Ditadura Militar suprimiu muitos deles, como será visto nos próximos
tópicos.
Pode-se afirmar que, durante o civil-militarismo brasileiro, as normativas sobre
infância estiveram praticamente em desuso, sufocadas e inutilizadas pela repressão
instalada. Certamente, essa lacuna foi decisiva nas dificuldades posteriores em se
institucionalizar uma política efetiva para esses sujeitos.

2.2 INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: DO PERCURSSO HISTÓRICO AO


CIVIL-MILITARISMO

Ao observar a estrutura física, psicológica e intelectual de uma criança, poderíamos


afirmar que elas não apresentavam perigo a Segurança Nacional, na época da Ditadura
Militar. No entanto, elas foram vítimas de toda sorte de violências, tendo suas vidas
marcadas pela dor da separação e da morte (BRASIL, 2014).
Antes de se falar sobre as graves violações, é importante fazer um levantamento
histórico da concepção de infância que permeou – e permeava – naquele período, o
imaginário social.
É fato que, na história2, percebe-se que o entendimento sobre o que viria a ser a
infância passou por vários processos e transformações. Por longos anos, a criança foi vista
como um “pequeno adulto”, fora inserida, desde muito cedo, na vida adulta e tinha as
responsabilidades de um sujeito com idade avançada e personalidade formada.
Ariès (1978, p. 3), sobre esse aspecto aduz que:

A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o


filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança então, mal adquiria
algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus
trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em
homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem
praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das
sociedades evoluídas de hoje.

2
A família medieval, na qual as mulheres e crianças eram consideradas propriedades do patriarca,
assim como um imóvel, por exemplo, não era baseada na afetividade, como ocorre atualmente, pelo
contrário, existia para produzir bens e propagar a honra daqueles patriarcas, do sobrenome da família.
Desse modo, percebe-se que a concepção de infância varia de acordo com a época,
bem como a cultura de cada povo, ou melhor, a existência ou não da concepção de infância
varia conforme as estruturas de poder e sociais que mantêm a hierarquização entre
determinados grupos. Do mesmo modo, para uma melhor compreensão do assunto, é
necessário ter em mente que a evolução histórica da criança, enquanto um ser em
desenvolvimento, está intimamente ligada a concepção e mudanças da família. Assim,

[...] a defesa de uma educação iniciada no lar, tendo como objetivo o


preparo para o exercício futuro da cidadania e o acesso ao conhecimento. A
criança, na condição de dependente e subordinada ao adulto não era percebida
como capaz de valorar as situações por si mesmo, mas deveria ser preparada,
educada moralmente pelos adultos (SILVA, 2005, p.16).

Ariès (1978) revela que nesse período (séculos X-XI) não havia noção de infância,
e consequentemente, nenhuma preocupação com o indivíduo enquanto ser em si mesmo.
Após a Revolução Francesa, começaram as maiores conquistas quanto a esses seres
em desenvolvimento, especialmente no que tange aos ideais iluministas e toda visão
pedagógica de Rousseau, que “[...] propôs uma educação infantil sem juízes, sem prisões e
sem exércitos” (NASCIMENTO; BRANCHER; OLIVEIRA, 2008, p. 53). Esse filósofo
vem romper com a ideia de sociedade adultocêntrica que foi construída até então, de forma
a destacar que a infância inicia com o nascimento e que deve ser tratada com afeto.
Já no final do século XIX e início do XX começa a era da Infância de Direitos, que
é a que vigora atualmente, de forma que a família é instrumento decisivo nessa conquista.
Surge um grupo familiar preocupado com a sua prole, que se dedica a construção de afeto
na família e direcionado especificamente à criança. Frota (2007, p.06) assim diz:

A partir de então, o conceito de infância se evidencia pelo valor do amor


familiar: as crianças passam dos cuidados das amas para o controle dos pais e,
posteriormente, da escola, passando pelo acompanhamento dos diversos
especialistas e das diferentes ciências (Psicologia, Antropologia, Sociologia,
Medicina, Fonoaudiologia, Pedagogia, dentre outras tantas).

Entretanto, foi um longo caminho a ser percorrido para que a infância, como se tem
hoje, fosse reconhecida. Socialmente, até se começou a ter um olhar para a criança, mas,
em um primeiro momento, e, por muitas décadas, a criança e o adolescente foram vistos
como os “menores”. Leite (2011, p. 20), assim comenta sobre o surgimento dessa figura de
linguagem:

A infância passa a ser “visível” quando o trabalho deixa de ser


domiciliar e as famílias, ao se deslocarem e dispersarem, não conseguem mais
administrar o desenvolvimento dos filhos pequenos. É então que as crianças
transformam-se em “menores”, e como tal rapidamente congregam as
características de abandonados e delinquentes.

Observa-se que com a necessidade da saída dos pais para o trabalho, inclusive da
mulher, que era a cuidadora oficial das crianças, esses sujeitos em desenvolvimento
começam a ser enquadrados na categoria dos excluídos, os seres marginalizados da
sociedade. “Abandonados, mendigos e infratores frequentemente foram confundidos sob o
nome de „menor‟, que nunca designa filhos de famílias das camadas médias e altas, e tem
conotações negativas desqualificantes” (LEITE, 2011, p.21).
Desse modo, essa estigmatização era designada às crianças que pertenciam as
famílias pobres, até porque eram esses grupos sociais que precisavam sair de suas casas
para trabalhar e garantir o sustento do lar.
Ainda nessa perspectiva, Frota (2007, p. 12) acrescenta:

O “menor” foi entregue à alçada do Estado, que tratou de cuidar dele,


institucionalizando-o, submetendo-o a tratamentos e cuidados massificantes,
cruéis e preconceituosos. Por entender o "menor" como uma situação de perigo
social e individual, o primeiro código de menores, datado de 1927, acabou por
construir uma categoria de crianças menos humanas, menos crianças do que as
outras crianças, quase uma ameaça à sociedade.

Como exemplo dessa estigmatização temos algumas instituições brasileiras que


levaram o nome “menor” em suas próprias denominações, como o Serviço de Assistência a
Menores – SAM, tão difundido na Era Getúlio Vargas, antes da Ditadura, bem como a
FUNABEM que veio em substituição a SAM, na Ditadura Militar (RIZZINI; RIZZINI,
2004). Acerca das características dessas instituições, tem-se que: “Sob o arbítrio
inquestionável da autoridade judicial, os chamados à época „menores‟ eram submetidos a
toda a sorte de violações dos Direitos Humanos” (BRASIL, 2009, p. 18).
Dessa forma, a própria linguística já aponta as violações que as crianças sofreram
antes, e, principalmente, durante a Ditadura Militar.
As vítimas certamente tiveram suas vidas marcadas e até mesmo foi preciso
reiniciá-las após os sofrimentos vividos. A infância é um período de desenvolvimento da
pessoa, de muitas descobertas. Ocorre que muitas vidas foram marcadas por descobertas
nada saudáveis e/ou cidadãs, nem um pouco saudosas.
Muitas pessoas cresceram em meio ao medo e aprenderam a conviver com essa
sombra por toda uma trajetória de existência. As marcas ao presenciar a morte de seus pais
ou de vê-los torturados, e até mesmo a dor da separação em vida, foram a realidade de
muitas crianças, como relata a Comissão Nacional da Verdade (BRASIL, 2014).
O discurso prolatado pelos adultos, que eram crianças naquele momento,
demonstram que o período ditatorial vivido pelo Brasil não deixou um legado positivo.
Como se vê nas palavras de Ernesto Carlos Dias do Nascimento, que tinha apenas um ano
e três meses quando foi exilado para Argélia: “Tinha medo de contato social, com as
pessoas. Quando chegava gente em casa, tinha aquele pavor. Eu não deixava ninguém me
pegar, eu mordia as pessoas.” (BRASIL, 2014, p. 428) .
Uma criança, que pela sua idade, possivelmente, falava poucas palavras, foi
arrancado dos braços da sua mãe, sendo lançado em outro país, com pessoas totalmente
desconhecidas, certamente teve muitas dificuldades de socialização.
Dessa forma, podemos elencar alguns tipos de violações sofridas pelas crianças
daquele período, como por exemplo: aprender a lidar com a morte, separação familiar,
exílio, exclusão social, liberdade de expressão, etc.
A morte foi algo comum a muitas famílias daquele período. Crianças de um, quatro
e seis anos presenciaram a morte da sua mãe ou do seu pai. Tiveram que viver enlutados e
acompanhados pelo medo.
Assim como na fala de Ernesto, trazida acima, muitas crianças foram exiladas,
algumas tiveram oportunidade de estarem com algum de seus pais, porque fugiram, outros
foram expulsos oficialmente e sozinhos. Não só tiveram o vínculo familiar quebrado, como
tiveram que viver em outra cultura e em meio ao um povo desconhecido.
Ademais, tem-se a exclusão social. O relatório realizado pela Comissão Nacional
da Verdade – CNV (BRASIL, 2014) traz as inquietações vividas pelos filhos/crianças da
época, perguntas como: “por que nossa família vive assim, perseguida pelo Departamento
de Ordem Política e Social – DOPS?” ou mesmo “por que os meus pais não tem uma
profissão?” foram muito pensadas naquele período. A vida das famílias perseguidas pelo
governo eram muito diferentes para aquelas “normais” da época. Ou seja, a perturbação
psicológica por comparar a sua vida com a de outras também foi algo marcante.
Assim, não há dúvidas, das violações sofridas pelas crianças nesse período difícil
da história brasileira.
Dessa forma, no próximo tópico, far-se-á a análise de duas narrativas de vida de
duas crianças, que tiveram que conviver com graves violações de direitos e com suas
consequências pós-militarismo.

2.3 INFÂNCIAS ROUBADAS: NOTAS SOBRE GRAVES VIOLAÇÕES DE


DIREITOS HUMANOS

No livro “Infância Negada: crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil”


(SÃO PAULO, 2014) há diversos relatos de pessoas – naquela época, crianças e
adolescentes – que tiveram suas vidas marcadas pelas violências daquele período.
Tendo em vista as análises a serem realizadas, neste estudo, selecionou-se uma
narrativa de vida do livro acima, bem como outra história presente nos documentos
apresentados pela Comissão Estadual de Memória e Verdade de Pernambuco, como forma
de analisarmos os marcadores das políticas de segurança e repressão que perfazem a
infância e a adolescência neste período.
A narrativa de vida de Luis Carlos Max do Nascimento3 é uma, dentre tantas outras
vidas, marcadas pelo militarismo no Brasil. O objetivo traduzido neste estudo não é o de,
simplesmente, relatar a sua história, como feito pela Comissão Estadual de São Paulo, mas
de articular a partir de sua história de vida, elementos para pensar a condição de crianças e
adolescentes naquele período.
A narrativa de Luis Carlos Max do Nascimento é marcada por elementos de
clandestinamente, de uma infância construída “no mato”, desde os 5 anos de idade. Vê-se
3
Um dos quatro netos da Tia Tercina [Dias de Oliveira], que, na época da greve de Osasco, tinha 5
anos. Logo em seguida, sua minha avó teve que entrar na clandestinidade, junto com seu tio, que era
sindicalista e foi cassado. Nessa época, a vó era do Partido Comunista – que também foi cassado.
em sua história a vida de um nômade. A ausência de um lar e de lazer desenham o trajeto
de fala por ele assumido. Percebe-se esses marcadores da clandestinidade no seu próprio
discurso: “Desde criança nós tínhamos noção do perigo, éramos preparados para isso,
vivíamos nessa tensão. Não éramos crianças comuns que podiam brincar na rua” (SÃO
PAULO, 2014).
O fato de viverem em constante perigo – e perseguição – forçava as famílias,
inclusive as crianças, mudarem de nome constantemente. Esse é um dado importante. O
nome, a identidade do sujeito, perfaz a subjetividade humana, é o codinome pela qual nos
reconhecemos. A necessidade de mudá-lo de forma impositiva gera, automaticamente, uma
violação ao quê e a quem se é. A civil-ditadura traduzia a marca permanente de violência
psicológicas a esses sujeitos.
Esse contexto explicita que a ditadura civil-militar trouxe, sobretudo, uma violência
psicológica, identitária a crianças e adolescentes, uma espécie de exclusão pela negação da
subjetividade dessas pessoas. Sobre esse aspecto, a narrativa analisada, de Luis, aponta
que: “Nós tínhamos um problema de identidade muito grande. [...] e estávamos com muita
vontade de voltar para o Brasil e reencontrar as nossas identidades. Até hoje eu não achei
minha identidade” (SÃO PAULO, 2014, p. 137).
Dessa forma, percebe-se que, além de trazer a morte física, o militarismo trouxe e
constituiu um cenário no qual a infância e adolescência foram subalternizadas a partir da
negação social desse grupo. É fato que as pessoas precisaram se reinventar, buscar se
reconhecer e lutar por sua própria identidade, principalmente com a retomada da
democracia. Ciampa apud Silva (2009, p. 188) fala sobre esse instituto:

[...] identidade é identidade de pensar e ser [...]. O conteúdo que surgirá


dessa metamorfose deve subordinar-se ao interesse da razão e decorrer da
interpretação que façamos do que merece ser vivido. Isso é busca de significado,
é invenção de sentido. É autoprodução do homem. É vida.
A partir desse conceito, podemos afirmar que a ditadura buscou retirar a identidade
das pessoas, especialmente daqueles mais vulneráveis, como crianças e adolescentes, pois
não poderiam se fazer ouvir, nem lutar por suas próprias condições sociais. Punia-se, desse
modo, crianças e adolescentes, enquanto sujeitos despersonalizados.
A narrativa de Luis também sofreu com a separação familiar. Foi apartado da avó
ainda no DOPS, depois seguiu para o juizado de menores, até que foi exilado para Argélia,
e posteriormente seguiu para Cuba, onde ficou até a adolescência.
Além de todas essas violações vividas, Luis Carlos Max do Nascimento, assim
como a maioria das vítimas, sofreu com a invisibilidade durante muito tempo. A
inquietação e insatisfação com esse fato ficam nítidas no discurso dele: “Porque nos livros,
nas escolas, as crianças não sabem que isso aconteceu. Eu e minha irmã, assim como
muitas outras crianças, somos a prova viva do que realmente aconteceu” (SÃO PAULO,
2014, p. 137).
Após analisar aspectos-chave que demarcam a condição de crianças e adolescentes,
a partir da narrativa de vida de Luis Carlos Max do Nascimento, tem-se a noção de que a
política de repressão militar a infância e à adolescência atuou a partir, principalmente, da
subalternização desse grupo, de repressão a parentes e na sua despersonalização.
Passaremos a analisar a segunda história de vida eleita, que é trazida no arquivo de
“mídias” da Comissão Estadual de Memória e Verdade de Pernambuco, recentemente
disponibilizado à sociedade.
Carlos Eduardo Azevedo era filho do jornalista Dermi Azevedo e foi preso e
torturado na Ditadura Militar, quando tinha apenas um ano e oito meses. Teve algumas
agressões físicas, que geraram também violência psicológica e o adoeceu por toda sua
vida. Carlos não conseguiu superar, ou “superar”, o momento de violência vivido, o que
culminou no seu suicídio quando tinha apenas 37 anos. Essa morte ocorreu em 2013 e foi
noticiada em diversos jornais nacionais. Representa as marcas do civil militarismo na vida
de crianças e adolescentes.
Através da notícia constante na Comissão Estadual de Memória e Verdade de
Pernambuco nos é explícito que a violência sofrida na infância e/ou adolescência, devido a
condição peculiar desses sujeitos, também demarca a dimensão mais nefasta do civil-
militarismo: a usurpação da condição humana.
Vê-se que a vivência de Carlos compreende as dimensões de saúde mental, tão
latentes na subjetividade daqueles/as que vivenciam períodos de graves violências, como
as que foram vividas por crianças e adolescentes durante a ditadura civil-militar brasileira.
Os documentos analisados demarcam a condição e o tratamento instrumentalizado
militares a crianças e adolescentes, marcado, posteriormente, pela presença de fobias
sociais, tratamentos com medicamentos antidepressivos e antipsicóticos, como no caso de
Carlos (PERNAMBUCO, 2016).
Assim como na vida de Luis Nascimento, não é difícil perceber o legado negativo
que a ditadura militar deixou para Carlos, este, dessa vez, muito mais marcado e sentido. O
legado do militarismo, para crianças e adolescentes, na maioria dos casos, repercute
matando-os pouco a pouco, especialmente em suas subjetividades.
Através de análises como as aqui realizadas constata-se a importância de
Comissões da Verdade, de forma que se exibam seus resultados e consiga-se que outras
pessoas que foram atingidas por esses processos de violência contêm as suas histórias. Luis
e Carlos foram apenas duas crianças, dentre milhares que tiveram a sua existência
extremamente marcada pelo civil-militarismo.
Dessa forma, observa-se através dessas histórias de vida que a violência, em todas
as suas facetas, foi algo muito presente, naquele período, no cotidiano de crianças e
adolescentes. Através desses relatos também pode-se verificar os principais tipos de
violações vividos na época. Crianças e adolescentes simplesmente não tinham uma história
de vida como as outras de sua idade.
Assim se esclarece que:

Nenhum dos que tiveram os pais assassinados, clandestinos ou


encarcerados, teve direito a desfrutar da convivência familiar e escolar ou
mesmo comunitária. Eles não viajavam nas férias, não participavam de jogos
nem de festinhas do colégio, relacionavam-se com restrições e por pouco tempo
com os vizinhos, conviviam permanentemente com o segredo. Incontáveis fins
de semanas eram passados nas cadeias, únicas ocasiões em que podiam ver os
pais (BRASIL, 2014, p. 30).
A separação familiar e o exílio eram muito comuns às crianças e adolescentes filhos
de militantes que resistiram a ditadura civil-militar. Por consequência, as marcas que esses
fatos deixaram a cada vida foi muito devastador, como viu-se nas duas histórias acima.
Ademais, vemos que as crianças tiveram, desde muito cedo, que aprender a lidar
com a morte, principalmente de pessoas próximas. Muitas delas presenciaram a morte de
um dos pais, ou mesmo da família inteira. Viram a morte “olho a olho” muitas vezes, ao
longo da condição de crianças e adolescentes.
Além disso, “a maioria dos filhos dos perseguidos políticos não sabia sequer como
se chamavam os pais, obrigados a usar nomes falsos devido à clandestinidade” (BRASIL,
2014, p. 31). Assim, vemos que outra forma violenta de resguardar esses sujeitos,
perpetrada pelos próprios familiares, como forma de defesa: a mudança de nomes.
Crianças e adolescentes não podiam atender e chamar umas as outras pelo seu nome
verdadeiro. Ao longo do tempo poderiam ter várias denominações. A princípio, parece-nos
algo simples, mas, como demonstrado na história de Luis e Carlos, isso causou sérios
problemas de identidade e de reconciliação com consigo mesmo.
Por fim, pode-se elencar ainda a violência física sofrida por crianças e adolescentes.
Alguns também sofreram na própria pele o legado da ditadura. É importante frisar que a
violência física nunca aparece sozinha, ela sempre traz outras consigo outras formas de
subalternização, especialmente psicológicas.
Enfim, o legado e a atuação do civil-militarismo sempre estiveram extremamente
ligados a questões de subjetividade e identidade, mas também atingiram aspectos
relacionados a violências físicas e psicológicas contra crianças e adolescentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo chega a seu fim na busca por respostas a seguinte problemática:
Qual o cenário das violências sofridas pelas crianças na Ditadura Militar brasileira?
Resolveu-se buscar resultados a partir de duas histórias, a de Luis Carlos Max do
Nascimento e a de Carlos Eduardo Azevedo, de modo que podemos fazer as seguintes
análises e/ou apresentar os achados a seguir.
Crianças e adolescentes foram atingidas principalmente a partir das violências
direcionadas as suas famílias. A condição de nômades, e, por consequência, das crianças e
adolescentes, guardava relação com as práticas de resistência. A infância fora uma forma
de segregar aqueles/as que ousaram enfrentar o civil-militarismo.
Vê-se também que crianças e adolescentes cresceram com problemas de identidade
e ligados ao campo da saúde mental. A negação de suas subjetividades (utilização de
vários nomes ao longo de sua vida, e muitas vezes, nem sabiam os nomes verdadeiros de
seus pais), foram determinantes nas violações a esses sujeitos.
Ademais, a infância de muitos foi marcada pela separação familiar e o exílio, os
quais viveram, por muito tempo, com pessoas desconhecidas e em uma cultura totalmente
diferente, devido à perseguição política.
Por fim, percebe-se que a maioria dessas crianças conviveram com a invisibilidade,
a partir da negação de suas histórias. Vê-se ser preciso continuar a dar visibilidade a todas
essas crianças e adolescentes que foram vítimas de graves violações de direitos humanos,
como forma de se poder contribuir o “nunca mais” e a afirmação da democracia, hoje.

REFERÊNCIAS

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RAPOSO, Hélder Silva et al. Ajustamento da criança à separação ou divórcio dos pais.
Revista de Psiquiatria Clínica, v. 38, n. 1, p. 29-33, 2011.
ANÁLISE SOBRE OS FATORES SOCIAIS QUE CONTRIBUEM PARA O
CRESCIMENTO ANUAL DA VIOLÊNCIA CONTRA JOVENS NO BRASIL.

Paulo Gonçalves de Andrade4


Camylla Galindo Cezar de Oliveira Silva²
Jessyca Iasmim de Souza Farias³

GT03 – Direito, Movimentos Sociais e Cidadania.

RESUMO

Esta pesquisa dedicou-se a estudar o índice de violência brasileira com recorte


sobre juventude, traçando um parâmetro entre o índice de morte anual de negros e brancos
fornecido pelo IPEA em parceria com o FBSP, afim de relacionar os fatores sociais que
foram determinantes para o acontecimento daquele evento criminoso. Inicialmente
pretende-se identificar o contexto de vulnerabilidade social das vítimas de homicídio, com
recorte sobre juventude, buscando destacar agentes de influência que contribuem
ativamente para a ocorrência reiterada deste crime, tais como o ambiente familiar no qual
estão inseridos, a sociedade em que se desenvolvem, ressaltando particularmente à
abstenção do Estado em propiciar políticas públicas que minimizem as disparidades
relacionadas à educação, oportunidades de emprego. Em seguida, busca-se evidenciar
fatores que influenciam na disparidade do índice de morte anual entre jovens negros e
brancos no Brasil, para além do contexto socioeconômico. A pesquisa não detém o escopo
de esgotar estes fatores de influência, mas sim de apontar primordialmente os que se
apresentam com mais frequência na vida dos negros, vítimas desta violência.

4
Paulo Gonçalves de Andrade
Graduando em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Membro do Grupo de Estudo e
Pesquisas Interdisciplinares sobre Direitos Humanos (GEPIDH-UNIFAVIP). E-mail:
mrpaulogoncalves@gmail.com
²Camylla Galindo Cezar de Oliveira Silva
Graduanda em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Membro do Grupo de Estudo e
Pesquisas Interdisciplinares sobre Direitos Humanos (GEPIDH-UNIFAVIP); da Iniciação Científica
intitulada Justiça de Transição e Diversidade Humana em Períodos de Militarismo e do Projeto de Extensão
de Assessoria Jurídica - PROJURIS-UNIFAVIP. E-mail: camyllagc@gmail.com
³ Jessyca Iasmim de Souza Farias
Graduanda em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Membro do Grupo de Estudo e
Pesquisas Interdisciplinares sobre Direitos Humanos (GEPIDH-UNIFAVIP); da Iniciação Científica
intitulada Justiça de Transição e Diversidade Humana em Períodos de Militarismo e do Projeto de Extensão
de Assessoria Jurídica - PROJURIS-UNIFAVIP. E-mail: jessycaiasmim@hotmail.com
Palavras-chave: Violência. Desigualdade racial. Vulnerabilidade social.
Juventude.

1INTRODUÇÃO

A violência no Brasil está integrada aos principais problemas enfrentados


pela nação, pois o índice anual apresentado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada) em parceria com o FBSP (Fundo Brasileiro de Segurança Pública), vem
demonstrando que as políticas públicas de combate ao crime, não estão surtindo o efeito
desejado, seja reduzindo ou pelo menos estabilizando esta estatística.
Em traços iniciais, os índices apresentados pelo IPEA e FBSP revelam que
em apenas três semanas são vítimas de homicídio no Brasil uma quantidade de pessoas que
ultrapassa o total de mortos em todos os ataques terroristas do mundo. Apenas nos cinco
primeiros meses de 2017, 3.314 pessoas foram vítimas da violência, demonstrando o
quadro caótico vivido por esta sociedade (BRASIL, 2017).
Esta pesquisa aponta ainda o avanço no patamar de mortes anuais, com o
avançar das décadas, sendo que entre 2005 a 2007 foram mortos entre 48 a 50 mil pessoas,
enquanto que apenas em 2015 esta taxa foi elevada para 59.080 homicídios, analisado sob
a perspectiva de apenas 12 meses.
Diante deste cenário de crise na segurança pública brasileira, importante
traçar uma visão sobre o cenário de homicídios praticados contra os jovens na faixa etária
de 15 a 29 anos, o qual apresenta um crescimento anual alarmante. Este fenômeno revela
que no mínimo o Estado está deixando invisível em sua pauta a necessidade de intervenção
na segurança pública do País, bem como se abstendo de pensar políticas que afastem os
jovens dos pontos de vulnerabilidade social que apresentam maiores índices de vitimas
fatais.
O índice de crime contra a vida em que figuram como vítimas jovens entre
15 a 29 anos tomando como base o ano de 2005 à 2015, foi de 318 mil mortos, revelando
um número preocupante para a população brasileira que sofre todos os dias com a perda de
seus filhos, vítimas do abandono social (BRASIL, 2017).
O problema não se limita apenas a segurança pública, que cumpre destacar,
necessita de uma reforma de estratégia urgente, mas sim a outros fatores socioeconômicos,
bem como outros elementos incontestes apresentados no desenvolvimento desta pesquisa.
Neste diapasão, o problema de pesquisa que permeia este trabalho é quais os
fatores sociais que contribuem para o crescimento anual de vítimas letais da violência no
Brasil, sobre o viés da Juventude?
Para esta indagação, foi utilizada como base de dados, a estatística apresentada pelo
IPEA em parceria com o FBSP, que utiliza como fonte o SIM (Sistema de Informação
sobre Mortalidade), do Ministério da Saúde.
Outrossim, o objetivo geral desta pesquisa é identificar os fatores sociais
que contribuem para o crescimento anual de vítimas letais da violência no Brasil, sobre o
viés da Juventude. No que tange ao objetivo específico este é subdividido em apontar o
contexto de vulnerabilidade social das vítimas de homicídio, com recorte sobre juventude e
discutir fatores que influenciam na disparidade do índice de morte anual entre negros e
brancos no Brasil, para além do contexto socioeconômico.
O método a ser aplicado nesta pesquisa é o da dialética, pois dado o enfoque do
trabalho ser na perspectiva da análise social dos jovens vítimas de homicídio, este método
oferece uma abordagem mais adequada. A dialética fornece as bases para uma
interpretação dinâmica e totalizante da realidade, já que estabelece que os fatos sociais não
podem ser entendidos quando considerados isoladamente, abstraídos de suas influências
políticas, econômicas, culturais etc (GIL, 2008).
A abordagem selecionada para desenvolvimento deste trabalho será a qualitativa,
em virtude do trabalho permear sobre a análise de um contexto social específico, qual seja,
a vulnerabilidade presente no contexto social dos jovens vítimas de homicídio no Brasil.
“A análise qualitativa apresenta certas características particulares. É valida sobretudo na
elaboração das deduções especificas sobre um acontecimento ou uma variável de
inferência precisa” (BARDIN, 1977).
O tipo de pesquisa escolhido neste projeto é o bibliográfico/descritivo, em virtude
do trabalho exigir a descrição de um fenômeno, que consiste na explanação dos elementos
encontrados que justificam a vulnerabilidade do jovens vítima de homicídio diante do
contexto social em que vive. Desta forma, pode-se dizer que é a descrição de
características de uma específica população ou um fenômeno que está ocorrendo na
sociedade (GIL, 2008). Destacando que este projeto traz exatamente um fenômeno que
vem incidindo na sociedade.
No que tange a escolha do método bibliográfico, este se deu em virtude da
utilização de teses e artigos científicos, dos quais serão a fonte de pesquisa que irão
embasar este projeto. A pesquisa bibliográfica é muito utilizada em projeto de estudo,
podendo haver pesquisas que se utilizem apenas de fontes bibliográficas (GIL,2008),
embora esta não se limitará a apenas fontes bibliográficas.
A presente pesquisa adotou a técnica de análise de conteúdo em virtude do trabalho
ter um enfoque qualitativo de coleta de dados a partir de estatística, conforme Bardin
(1977), a análise de conteúdo pode ser definida como sendo um conjunto de técnicas de
análise de comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de
descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção e recepção destas mensagens.
No que toca a justificativa do trabalho, este foi pensado em razão da
inquietação lançada ao analisar a estatística anual fornecida pelo IPEA em parceria com o
FBSP, que apresenta dados sobre a elevação anual de homicídios praticados nas regiões
brasileiras, pretendendo discutir este índice com enfoque nos jovens vítimas de homicídio
e a relação sobre os fatores que contribuem para a vulnerabilidade dos jovens a este tipo de
violência.
Em síntese, será realizado um traço comparativo de dados estatísticos, para
evidenciar o crescimento elevado da taxa de homicídios praticados no Brasil, com uma
visão voltada para os jovens e o contexto social em que foram surpreendidas por este
delito.

2DESENVOLVIMENTO

2.1 Contexto de vulnerabilidade social das vitimas de homicídio, com recorte


sobre juventude
O processo de construção da identidade do homem tem como fator principal
a estrutura familiar. O primeiro contato que o ser humano tem é com seus parentes, logo o
comportamento dos pais servirão de parâmetro para o indivíduo em seu desenvolvimento
social.
Quando o jovem se desenvolve em um ambiente nocivo, sem estrutura que lhe
permita construir uma identidade sólida, o mesmo acabará absorvendo as práticas que lhe
estão a amostra. É o que afirma Pereira (2009. P. 17):

A adolescência é socialmente construída. Além de “estar” em relação,


ele “é” relação. A sua individualidade é construída no social. A imagem que o
adolescente faz de si mesmo é construída na relação com o outro. Por isso, às
vezes, para fazer parte de um grupo, forja uma identidade.
Assim, o contexto familiar é o alicerce preponderante na formação do indivíduo,
principalmente na fase da adolescência, pois neste momento o mesmo está definindo a sua
personalidade, pensamentos e crenças sendo a família o principal agente de influência
neste encontro de identificação social.
Diante deste raciocínio, a família pode ser agente protetor ou influenciador do
jovem se observada sob estes dois aspectos “pode ser considerada a maior fonte de
proteção contra os efeitos deletérios da exposição, poderia ser ela mesma fonte de
agravamento do problema” (CARDIA, 2003).
A partir do momento em que o jovem se desenvolve no meio de uma família com
uma estrutura deficiente, o mesmo fica vulnerável as tentações sociais como poder, fama,
dinheiro e tende a se integrar no mundo do crime, pois é o meio que se apresenta como
mais rápido para atingir estes objetivos e com isto aumenta a probabilidade de acrescentar
a estatística de jovens vítimas de homicídio.
Neste sentido quando o jovem encontra dificuldade na resolução dos conflitos
familiares entre o pertencer e o separar, o grupo de pares, além de tornar-se espaço
privilegiado de pertencimento e construção identitária, pode encontrar guarida destes
conflitos através do o uso de drogas, a violência e a prática de outros atos infracionais
(PEREIRA, 2009).
Isto posto, na medida em que estes jovens se identificam com o mundo do crime,
tornam-se agentes vulneráveis da violência letal, aumentando este índice seja como autores
ou vítimas. A estatística apresentada pelo IPEA, demonstra que 31.264 jovens entre 15 a
29 anos foram vítimas da violência com óbito no ano de 2015, deste resultado 92% destas
vítimas são homens.
Outro dado importante é de que as causas externas de mortalidade dos jovens em
sua maioria foram resultantes de homicídios e acidente de transporte, atingindo o
percentual de 71,1% segundo dados do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade).
Importante destacar que o gênero masculino lidera no índice de envolvimento no
mundo do crime, conforme os dados apresentados pela INFOPEN (Levantamento Nacional
de Informações Penitenciarias), que acusa 37.380 mulheres encarceradas para uma
proporção de 542.401 homens.
As penitenciarias também contribuem com a violência letal. A estatística
apresentada pela INFOPEN revela que a taxa de mortes intencionais no sistema prisional é
de 8,4 mortes para cada dez mil pessoas presas em um semestre, que corresponde a 167,5
mortes intencionais para cada cem mil pessoas privadas de liberdade em um ano
(BRASIL,2014 p.115).
De outra forma, o senso comum clama pelo aumento da punibilidade e uma polícia
mais agressiva acreditando ser o remédio para combater a criminalidade, sem perceber que
o cenário não vai mudar com esta postura, o único resultado obtido será o aumento da
violência em massa, conforme afirma BRASIL (2017 p. 28)

Enquanto isso, a sociedade, que segue marcada pelo temor e pela ânsia
de vingança, parece clamar cada vez mais pela diminuição da idade de
imputabilidade penal, pela truculência policial e pelo encarceramento em massa,
que apenas dinamizam a criminalidade violenta, a um alto custo orçamentário,
econômico e social.

Contudo, para alcançar um resultado positivo é necessário identificar os


pontos que tornam os jovens mais vulneráveis a violência, para assim o poder público
realiza investimento de maneira correta, reduzindo o índice de mortes anuais.
Outro fator que contribui para a violência é a carência na educação
suportada pelo Brasil, que ainda não consegue oferecer uma escola com padrão mínimo de
qualidade, deixando os jovens sem estimulo para manter uma frequência escolar. A classe
social que acaba suportando essa deficiência é por excelência aquela que não dispõe de
recursos financeiro capaz de financiar uma instituição privada.
Esta situação acaba forçando estas pessoas a procurar soluções alternativas
para seus anseios e acaba por encontrar no mundo do crime a solução ágil para suprir a
dificuldade financeira, conforme assevera BRASIL (2017, p. 28):

O drama da juventude perdida possui duas faces. De um lado a perda de


vidas humanas e do outro lado a falta de oportunidades educacionais e laborais
que condenam os jovens a uma vida de restrição material e de anomia social, que
terminam por impulsionar a criminalidade violenta.

O que confirma está assertiva é a pesquisa realizada pela INFOPEN, demonstrando


que 55% das pessoas encarceradas em virtude do tráfico de drogas são jovens. Estes jovens
segundo a pesquisa em sua maioria cerca de 75,08% não possuem sequer o ensino
fundamental completo (BRASIL, 2014).
A educação tem um vínculo primordial como agente de interseção no
contexto de vulnerabilidade social e envolvimento dos jovens com a criminalidade. Esta
deve atuar em conjunto com a unidade familiar, sendo um complemento na formação
estrutural do jovem, porém não menos importante. “A escola é uma importante unidade da
rede social na adolescência. A mediação entre o indivíduo e a sociedade é a função social
mais importante dessa instituição” (PEREIRA, 2009).
Embora esta educação seja um alicerce fundamental, o Estado não consegue
deixar à disposição de todas as classes sociais de maneira eficaz, pois dada a deficiência de
repasse de recursos financeiros para as instituições pública de ensino, bem como o baixo
salário dos professores que atuam nesta rede, a educação é prejudicada e
consequentemente as pessoas de baixa renda que necessitam deste serviço são afetadas.

Neste sentido explana PEREIRA (2009, p. 144):

Podemos pensar que essa estratégia do adolescente acontece porque as


dificuldades cotidianas que enfrentam no contexto da escola, como a falta de
reconhecimento, a falta de figuras de autoridade, a desqualificação generalizada,
a crise e o conflito de valores, a exclusão, o desemprego; enfim, toda essa
violência moral, simbólica e institucional que os obriga a buscarem em outros
espaços o reconhecimento e o pertencimento que não encontram ali.
Nesta senda, a educação é um propulsor do desenvolvimento que poderia
evitar este sentimento de exclusão social daqueles menos favorecidos em virtude da sua
classe social e por consequência afastar os jovens do envolvimento com o mundo do crime.
Logo, depreende-se que o envolvimento do jovem com o crime é fruto de uma
irracionalidade Estatal, que não investe adequadamente na educação dos jovens e por falta
desta estrutura acabam não conseguindo se inserir no mercado de trabalho cada vez mais
competitivo e seletista.
Outrossim, contribui ainda para a vulnerabilidade ao crime destes jovens, o
desenvolvimento socioeconômico de cada Estado, pois de acordo com os dados
apresentados pelo IPEA, a cada 1% de diminuição na taxa de desemprego de homens faz
com que a taxa de homicídio diminua de 2,1%.
Assim afirma BRASIL (2017, p. 21):

Junto com o emprego e mercados ilícitos, o desempenho econômico


pode levar, indiretamente, a um processo de desorganização social, a partir da
migração de trabalhadores e de pessoas em buscas de oportunidades, junto com
alterações no espaço urbano e áreas residenciais, que fazem com que haja um
esgarçamento do controle social do crime, um aumento de oportunidades para a
perpetração de crimes, junto com o aumento da probabilidade de anonimato e de
fuga do criminoso.

Desta forma, a economia tem uma relação direta com o envolvimento dos jovens à
violência, que tanto o baixo desenvolvimento econômico quanto o desenvolvimento
descontrolado, são agentes que interagem com a criminalidade.
Em síntese, o aumento desenfreado da taxa de mortalidade anual se dá em virtude
de vários fatores sociais, que não se esgota na presente pesquisa, sendo aqui apontado
apenas alguns fatores que corroboram com a perpetuação dos crimes com violência letal.

2.2Fatores que influenciam na disparidade do índice de morte anual entre


negros e brancos no Brasil, para além do contexto socioeconômico

Analisando o índice anual de morte, é notável a desproporcionalidade entre


negros e brancos. Esta diferença se dá não apenas em virtude do nível de exposição a
violência, suportada por cada um. De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71
são negras. Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os
anos como se vivessem em situação de guerra (BRASIL, 2017).
Tem grande influência neste índice os fatores socioeconômicos que
circulam sobre os negros que em sua maioria estão localizados nas favelas e periferias,
com alto índice de exposição a violência, em uma proporção de 73,1% da população mais
pobre é negra, segundo dados do IPEA, mas não se limitam a esta situação.
O índice de homicídio de jovens negros no Brasil ainda é mais alarmante, a
pesquisa de CERQUEIRA E COELHO (2017 p. 9) aponta que:

Aos 21 anos de idade, quando há o pico das chances de uma pessoa


sofrer homicídio no Brasil, pretos e pardos possuem 147% a mais de chances de
serem vitimados por homicídios, em relação ao conjunto dos indivíduos brancos,
amarelos e indígenas.

Embora estes dados tenham sido apresentados sem levar em consideração a


classe social em que os negros estavam no momento em que foi retirada a sua vida, este
fenômeno não pode ser justificado apenas pela sua condição social, conforme será
apontado adiante.
Inicialmente é importante observar que a própria disparidade de classe
social entre negros e brancos se dá em virtude do racismo enfrentado pelos negros seja no
mercado de trabalho, escolas, espaços públicos, entre outros.
Esta problemática vem se disseminando desde a abolição da escravatura,
pois se existia uma política de seletividade, onde as melhores oportunidades eram
asseguradas aos jovens brancos de poder econômico maior, enquanto que aos negros eram
obrigados para se sustentar no capitalismo a trabalhar nas funções menos favorecidas, por
vezes com trabalhos domésticos mal remunerados.
O acesso à educação dos negros somente foi oferecida de forma tardia e
ainda assim com muita deficiência, como até hoje ainda é vivenciada. A divisão entre
escola pública e particular já demonstra que a primeira não é ofertada com excelência e por
consequência já deixa os negros em desvantagem, conforme assevera CERQUEIRA E
COELHO (2017 p. 13) em sua pesquisa:
Um segundo ponto diz respeito à separação dos alunos em escolas
públicas e privadas dentro do sistema educacional brasileiro. Enquanto as
crianças de famílias pobres – e em maior proporção de afrodescendentes – são
matriculadas nas escolas públicas, as crianças de famílias mais abastadas e cujos
pais possuem maior capital humano geralmente vão para as escolas privadas,
cujo ensino é de melhor qualidade. Essa segregação, que tem a ver com o poder
aquisitivo, é um dos elementos que contribuem para a persistência da
desigualdade intergeracional de capital humano francamente desfavorável para a
população negra.

Esta situação, já demonstra que a realidade vivida pelos negros se afasta dos
não negros, em virtude da falta de uma educação de qualidade, para que se possa disputar
no mercado de trabalho em iguais condições com os brancos.
O racismo é enfrentado pelos negros até mesmo dentro da escola pública,
pois os professores não se sentem estimulados a desenvolver aqueles alunos por acreditar
que estão fadados ao fracasso. Este sentimento tem a ver com “a percepção que os
professores têm desse alunado, que são filhos de pais bêbados, pais desempregados, de
famílias incompletas, que os meninos vão sujos para a escola” (HASENBALG, 1987).
Não obstante, o mercado de trabalho por sua vez também é roupado com o
racismo onde prevalece a preferência por brancos em melhores cargos, sendo conferido
apenas as vagas de menor resposta financeira aos negros, o que é denominado por
Cerqueira e Coelho como segregação funcional, “esses setores ou postos de trabalho
podem funcionar como espécies de “clubes fechados”, reservados a pessoas que se
enquadram em certos requisitos sociais, em que a cor da pele é um deles”.
Afora esta seletividade na contratação, tem-se ainda a descriminação dentro
do ambiente de trabalho onde existe uma diferença salarial entre negros e brancos. Em
pesquisa realizada por Soares (2000) sobre divergência salarial, foi encontrada uma
disparidade de 46% e deste valor 17,9% se dá exclusivamente em virtude da descriminação
de raça
Na pesquisa realizada por este autor, o mesmo aponta que “os homens negros
também sofrem alguma discriminação na hora do contracheque – recebem algo em torno
de 5% a 20% menos que os homens brancos, sendo que esse diferencial cresce com a renda
do homem negro” (SOARES, 2000).
O autor SOARES (2000, p. 24) afirma ainda que:

A minha interpretação da discriminação contra negros é que existe uma


visão do que seja o lugar do negro na sociedade, que é o de exercer um trabalho
manual, sem fortes requisitos de qualificação em setores industriais pouco
dinâmicos. Se o negro ficar no lugar a ele alocado, sofrerá pouca discriminação.
Mas se porventura tentar ocupar um lugar ao sol, sentirá todo o peso das três
etapas da discriminação sobre seus ombros.

Segundo este autor a discriminação se dá em virtude de uma crença social


disseminada entre as pessoas, de que o negro está fadado a ocupar esta posição inferior,
mais braçal, deixando as posições que exigem mais do intelectual para os brancos que
sempre assumiram estas funções.
Embora as situações apontadas nesta pesquisa acabem por embarcar na seara
socioeconômica, o que se pretende demonstrar aqui é que esta realidade social vivida pelos
negros se dá em virtude de toda uma construção racista que veio se alargando durante anos
e então apontar que “parcela da diferença de letalidade entre negros e não negros do Brasil
que é atribuída à questão social já é, em si, uma consequência indireta do racismo”
(CERQUEIRA E COELHO, 2017).
Um elemento que não pode ser esquecido é a análise de estereótipo atribuída aos
negros, tendo a sociedade vinculado à raça a criminalidade, atribuindo à estas pessoas a
etiqueta de perigosos e mal vistos. Comumente ao se deparar com um negro e se
porventura mal vestido em uma rua o mesmo já é previamente rotulado pela sociedade
como um potencial assaltante.
Não tão somente os civis encaram os negros desta forma, a própria polícia já possui
uma visão racista, pois tratam em suas abordagens de forma distinta negros e brancos.
“Não é difícil colecionar situações em que as abordagens policiais e o uso excessivo da
força são totalmente diferenciados quando as relações se dão com cidadãos negros”
(CERQUEIRA E COELHO, 2017).
Essa visão racista e estereotipada vivida pelos negros, inclusive os jovens, revela
sua condição de vulnerabilidade social à violência letal diária, em que os mesmos já vão
para sua luta diária pré-condenados ao crime, correndo risco de serem confundidos com
potenciais criminosos, em virtude apenas da sua raça.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O número de mortes no Brasil vem crescendo exorbitantemente a cada ano que se


passa, contudo, o perfil típico das vítimas fatais permanece o mesmo: homens, jovens,
negros e com baixa escolaridade. Na última década o viés de violência contra jovens e
negros tem aumentado ainda mais, o que se encontra em disparidade se comparados com
os homicídios ocorridos com jovens de outras raças.
Os negros carregam, desde os primórdios, estereótipos sociais que os taxam de
criminosos e os segregam da sociedade. Os motivos que fazem com que isso aconteça são
inúmeros, seja pelo passado escravocrata, pela baixa escolaridade que ocasiona a falta de
oportunidades ou pelo menos a escassez delas, e consequentemente o aumento da taxa de
desemprego, ou pela falta de estrutura familiar que o instrua. Todos esses fatores e muitos
outros fazem com que o jovem encontre no crime o caminho mais curto para conseguir o
que deseja.
Nesse sentido, no que tange ao jovem, percebeu-se que este sofre influências
durante seu processo de formação pessoal que podem contribuir ou não para sua interseção
no mundo do crime. Dentre os fatores mais marcantes está o ambiente familiar e escolar,
ao qual o jovem está inserido.
Levando em consideração que a população jovem negra em sua maioria possui
baixa renda, e estudam em escola pública é dever do Estado promover um ambiente
escolar saudável onde o jovem possua educação de qualidade, contudo este não vem
investindo na educação dos jovens e por falta de uma estrutura adequada para prepará-los
para o futuro, acabam não conseguido se inserir no mercado de trabalho cada vez mais
competitivo e seletista.
Assim, sem qualificação que o oportunize melhorar de vida e sem instrução dos
familiares, os jovens procuram um meio rápido e tecnicamente fácil de se sustentar, qual
seja, o crime. Entram num ambiente de violência cada vez mais cedo fazendo com que os
índices de morte de jovens envolvidos no crime aumentem a cada ano, em particular, de
jovens negros envolvidos no crime.
Ao penetrarem no crime, consequentemente, mais cedo ou mais tarde, comporão as
penitenciarias, e lá estarão mais uma vez submetidos à violência letal, vez que, conforme a
estatística do INFOPEN a taxa de mortes intencionadas no sistema prisional é de 8,4
mortes para cada dez mil pessoas.
Sabendo disso, resta evidente que o aumento da punibilidade e a implantação de
uma política mais agressiva não é o meio adequado para se combater a criminalidade como
pensa a maioria da população. Ao ter essa postura, o único resultado que se terá será o
aumento da violência em massa.
Ademais, além dos fatores supramencionados, percebe-se ainda uma variação nos
índices de vulnerabilidade dos jovens no crime de acordo com o desenvolvimento
econômico de cada Estado, vez que, conforme o IPEA quanto menor a taxa de desemprego
de homens no Estado menor a taxa de homicídio.
Cumpre ainda destacar, que a disparidade social entre homens negros e brancos, é
um forte influenciador nesses altos índices de homicídios de homens negros no país, vez
que estes sofrem racismos diariamente, seja no mercado de trabalho, nas escolas, nos
espaços públicos, nos bordões diários, entre outros.
Outro aspecto importante de se mencionar está relacionado à segregação de alunos
de escola pública e privada, vez que a população que possui melhor condição financeira
geralmente vai para as escolas privadas, restando as escolas públicas para os menos
favorecidos, que são, em sua maioria, afrodescendentes.
Ainda, percebe-se que desde os primórdios os brancos possuem oportunidade de
ocuparem melhores cargos que os negros, estando assim o mercado de trabalho marcado
pelo racismo, seja na seleção, nos cargos ocupados ou nas remunerações recebidas. Há
uma sociedade racista ainda que não intencionalmente, mas que cria uma segregação
funcional em razão da classe social a qual os trabalhadores de enquadram.
Percebe-se, portanto, que ainda perpetua na sociedade uma visão retrograda de que
existem lugares específicos para determinadas pessoas em razão da raça a qual fazem
parte. Tal pensamento faz com que práticas racistas e discriminatórias se perpetuem até
que sejam criadas políticas afirmativas para negros que garantam igualdade entre as raças,
vez que é mais que evidente a necessidade de comprometimento das autoridades políticas
para diminuir o racismo e os problemas descendentes dele, qual seja, a falta de
oportunidades, de educação, o alto índice de jovens no crime e de homicídios.
Por todo o exposto, percebe-se que há muito o que progredir no que tange às
práticas do Estado no combate às desigualdades, especialmente quando se está diante de
uma escassez de elementos de proteção, incentivo, educação, oportunidades de emprego,
que possam contrabalançar os efeitos da exposição dos negros a essa histórica disparidade
com os brancos, seja em relação à educação, salários, cargos e funções desempenhadas,
classes sociais desabastadas, seja pelo simples fato da cor de sua pele, que implicam numa
maior segregação e exposição à violência letal.
REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

CARDIA, Nancy Lusotopie. Exposição à violência: seus efeitos sobre valores e


crenças em relação a violência, polícia e direitos humanos.2003. Disponível
em:<http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/cardia2003.pdf>.Acesso em: 5 de ago. de
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CERQUEIRA, D e COELHO, D. (2017). Democracia Racial e Homicídios de


Jovens Negros na Cidade Partida. TD 2267 - ipea, Brasília, agosto de 2017.

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http://www.ipea.gov.br/portal/images/170609_atlas_da_violencia_2017.pdf>Acesso em:5
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GIL, Antonio Carlos. Método e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo:
Atlas, 2008.

HASENBALG, C. A. Desigualdades sociais e o portunidade educacional – a


produção do fracasso. Fundação Carlos Chagas: Cadernos de Pesquisa (63), p. 24-26,
novembro de 1987.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de


metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias


INFOPEN. Brasília, Departamento Penitenciário Nacional.2014. Disponível em:<
http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-
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PEREIRA,Sandra Eni Fernandes Nunes. Redes sociais de adolescentes em
contexto de vulnerabilidade social e sua relação com os riscos de envolvimento com o
tráfico de drogas.2009.Disponível em:<http://abramd.org/wp-
content/uploads/2014/06/2009_Tese_Redes_sociais_de_adolescentes_em_contextos_de_v
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SOARES, S. O perfil da discriminação no mercado de trabalho – homens


negros, mulheres brancas e mulheres negras. Brasília: Ipea,. Disponível em:<
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_0769.pdf>. Acesso em:6 de
ago. de 2017.
UM DEBATE ENTRE RELIGIÃO E DIREITOS HUMANOS: Desafios e
possibilidades.

Autor Alan Marcionilo do Nascimento1


Autor José Wiliam Lopes Torres2

GT 04: Interseções entre sociologia, raça, religião e Direitos Humanos.

RESUMO

No presente artigo buscamos fazer uma análise histórica do fenômeno religioso, pensando
mais especificamente o espaço da religião a partir dos valores da modernidade e da crise
desses valores. Refletiremos sobre o fenômeno religioso em suas diferentes vertentes, desde
uma perspectiva fundamentalista até uma progressista, pensando os possíveis diálogos entre o
fenômeno religioso e os Direitos Humanos. A religião enquanto uma forma de identificação
étnica, pode servir como elemento de luta para diversos povos, bem como transformar-se em
fruto de preconceito, quando se tem um olhar racista sobre determinados grupos, como os
negros brasileiros, onde suas práticas religiosas são adjetivadas negativamente como resultado
do preconceito racial. Assim construímos o diálogo entre racismo, religião e Direitos
Humanos.

Palavras-chave: Religião. Racismo. Direitos Humanos.

INTRODUÇÃO

O fenômeno religioso faz parte de toda a sociedade, não podendo ser negligenciado
pelas ciências humanas, pois suas práticas reverberam em diferentes áreas. Esse fenômeno
religioso não é algo estanque ou homogêneo, mas sim algo que acompanha os movimentos da
sociedade, bem como interfere diretamente nesses. Podemos pensar a religião através de
diversas perspectivas, sejam conservadoras ou progressistas, influindo diretamente nas lutas
políticas de suas épocas.

1
Mestrando em Direitos Humanos(UFPE), Graduação em História e especialização em História do Brasil
(FAFICA) email alanhistoriadh@hotmail.com
2
Graduado em História pela faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA) e mestre em
ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco.
Sendo a religião um fenômeno histórico que relaciona-se com diversas aspectos
sociais, aparecendo muitas vezes como elemento central dos preconceitos raciais, ou da luta
de determinados grupos étnicos, como ocorre o diálogo entre o fenômeno religioso e os
Direitos Humanos?
Pretendemos refletir sobre os possíveis diálogos entre o fenômeno religioso e os
Direitos Humanos, Pensando sobre o papel da religião a partir dos valores da modernidade e
da crise desses valores. Identificando a partir de Boaventura de Souza Santos (2014) as
diferenças entre as teologias fundamentalistas e progressistas, compreendendo como as
diferentes perspectivas religiosas relacionam-se com determinados grupos étnicos.
Realizamos uma análise bibliográfica de textos que versam sobre o fenômeno
religioso, bem como textos que debatem sobre os Direitos Humanos, seguindo no que diz
respeito ao nosso olhar sobre os Direitos Humanos a perspectiva de Boaventura de Souza
Santos.
Acreditamos ser de extrema importância para a academia pensar o fenômeno religioso
e os Direitos humanos em uma perspectiva interdisciplinar, a partir da História, sociologia,
ciência da religião e Direitos Humanos.
Olhar para o fenômeno religioso e os Direitos Humanos, pode nos trazer uma
contribuição na agenda de luta de movimentos sociais que tem como referência o espaço do
sagrado, os Direitos Humanos ou ambos, buscando ver os pontos em que os encontros podem
ser fortalecimento das reivindicações de determinados grupos, ou então quando as práticas
religiosas tornam-se empecilho para uma vivencia pautada pelos direitos Humanos.

Um olhar Histórico: Religião e modernidade.

Pensar a modernidade como um elevado grau de estágio humano seria um passear nos
espaços mais obscuros. Um dilema que as ciências humanas vêm nos revelando. Entretanto,
não se pode ignorar que, a partir do século XIX é possível entender que o conceito científico
de evolução política, social e humanitária vem sendo nos últimos anos questionados, pois se
evoluímos, até onde? A saber, evolução, não passa apenas no campo da técnica, mas na
(re)produção de panoramas sócio igualitários de modo que cada um possa dialogar e conviver
onde as diferenças sociais se tornem algo minimizado.
Entretanto do mesmo modo que a modernidade é questionada enquanto evolução
sociopolítica devemos também buscar entender que o conceito de identidade ou sujeito na
modernidade também está forjado por interesses vetoriais distintos, destarte
Um tipo diferente de panorama estrutural está transformando as sociedades
modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham
fornecidos sólidas localizações como indivíduos sociais. (HALL, 2006, p. 9)
Acreditou-se que com a formulação dos preceitos básicos científicos e, sobretudo no
pós Iluminismo com os lemas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade a humanidade atingiria
o ápice sóciohumanitário, mas o que veio a reboque? Com o século XIX a Era dos Impérios, o
século XX com duas grandes guerras, em suma, políticas imperialistas de nações que, a partir
da era Vitoriana vem se destacando em atacar os países mais pobres com o discurso de paz e
garantia da ordem humanitária e paradoxalmente ignoram completamente o ―outro‖.
Se levarmos a palavra ―hipocrisia‖ como um conceito particular das políticas
imperialistas em relação aos países considerados subdesenvolvidos não seria estranho, a Pax
Romana, Pax Britânica ou mais recentemente a Pax Americana são coirmãs, deste modo, o
que temos senão um discurso hipócrita de igualdade aos modelos evolutivos científicos de
sociedade pós século XIX?
E diante de tais premissas, qual o papel da religião nesse cenário tão caótico? Em
algum instante pode-se identificar a religião como uma baliza de coalizão e forças capaz de
unir os povos como uma constante de igualdade humanitária através de um deus onisciente e
onipresente.
Deste modo seria um tanto importante entender a religião e seus aspectos conceituais
antes mesmo de começarmos um debate histórico sobre.
Em primeiro lugar, segundo Hans – Jüngen Greschat

Cada uma das milhares de religiões que podem ser escolhidas e estudadas é
representada como uma totalidade passível de investigação de acordo com quatro
perspectivas: como comunidade, como sistemas de atos, como conjunto de doutrinas
ou como sedimentação de experiências. (GRESCHAT, 2005, p. 24/25)
Portanto de maneira muito clara percebemos que as religiões por mais primitivas que
sejam elas são dosadas por princípios básicos de regras que tem como meta conduzir um
grupo social a partir de ritos e ritualísticas que podem ou não inclusive repercutir na vida dos
que fazem parte de um grupo religioso. Logo poderíamos deduzir o papel das religiões como
elementos culturais capazes de unificar ou na pior das hipóteses aproximar a humanidade nas
suas diversas especificidades.
Deste modo, sem retirar o elemento do Sagrado,
pois as religiões possuem em seu bojo o campus do Sagrado que na visão de Rudolf
Otto, ―Ela [a esfera do Sagrado] apresenta um elemento ou ―momento‖ bem
específico, que foge ao acesso racional [...], sendo algo árreton [ ―impronunciável‖],
um ineffabile [―indizível‖] na medida em que foge totalmente à apreensão
conceitual.(OTTO, 2014, p. 37)

A religião é o reflexo das práticas humanas em um contexto histórico. Logo, deve-se


pensar as religiões como um contíguo de práticas dotadas de um conjunto de crenças,
princípios éticos e morais, orientadas por membros carismáticos religiosos condutores de
códigos disciplinares a partir de um ethos cultural que podem estar compostas de princípios
norteadores advindos de textos religiosos ou por tradições orais servindo como sentido de
vida religiosa.
Para Lino Rampazzo

A experiência religiosa é tipicamente humana ao ponto que a história da humanidade


se confunde com a história das religiões nas quais o homem primitivo ia buscar
razões para a explicação de sua vida. Não consta, na história da civilização, a
existência de um único povo que não tivesse sua religião. (RAMPAZZO 2014, p.
79)

Em suma, de acordo com Rampazzo, a humanidade vem se desdobrando em meios


norteadores que pairaram em uma ―corda bamba‖, ou seja, a revelação da ciência como algo
que explicaria o mundo e tudo que nele contém e nas questões mais limiares da mente
humana o Miterium Tremedum do Sagrado ao qual tanto Rudolf Otto nos alerta e que se
torna a Magistra de uma parcela significativa dos seres humanos.
Devemos ainda olhar outro plano, os dois grandes paradigmas da humanidade, fé e
razão, ou Fides et Ratio , esses que em seus extremos procuraram ampliar em dadas
condições históricas as suas verdades, mas que desde o século das luzes e, sobretudo, a partir
do século XIX, as duas vertentes que encantam o mundo.
Vertentes essas que deveriam de algum modo promover uma humanidade mais
―humana‖ em sua essência. Uma lutando em pregar a ciência como a porta do elevado grau da
sapiência humana, e a religião com suas práticas carismáticas promovendo a busca da
essência humana. Entretanto esses campos vêem sendo de amostras de radicalismos extremos,
seja na busca por um deus totalitário ou por meio do desenvolvimentismo científico
imperialista.
Sem mais, sobre o que é religião ou modernidade e suas funções sociais, o que temos
então de interesse entre a religião e um dos campos da ciência moderna, ou seja, os direitos
humanos? Papéis simples de serem analisados, se, como dito anteriormente, a religião passa
por um código de regras éticas, morais, ritos e ritualistas, logo temos amostras ou
ensinamentos de práticas igualitárias na sociedade, ou melhor dizendo, a garantia dos direitos
humanos a partir de um viés da humanidade, ou seja, a religião e sua essência na busca de um
deus que por todos padecem e sendo assim seus filhos agindo como tal em meio ao caos da
individualidade da modernidade pelo fim último do bem comum.
A religião desde as suas formas elementares serviram e ainda hoje servem como
códigos de ordem social, entendendo que, as práticas religiosas são ligadas por sacramentos
onde os líderes religiosos são postos como juízes comunitários a dosar as relações de um
cotidiano.
Essas práticas são vistas, segundo Durkheim, em As formas elementares da vida
religiosa, como primeiros princípios que corroboram, depois do descobrimento da agricultura,
como fundamentais na centralização do sistema comunitário. Esse que, de acordo, com a
crença e a liderança de um chefe religioso, garantiria a ordem em comum, mais adiante,
partindo de tais princípios, foram sendo constituídas as organizações de direito por Lei no
Estado de Direito.
Se pegarmos, por exemplo, os mandamentos judaico-cristão o que temos são códigos
éticos em que o não matar, não roubar e tantos outros códigos posteriores a ―amar a deus
sobre todas as coisas‖ se tornam fatores fundamentais na formulação de leis propriamente
ditas.
Apenas com o advento do Iluminismo a lei teológica vai sendo reconfigurada para a
formulação do Estado de Direito Moderno,

O papel da Igreja Medieval seria controle independente de uma sociedade que ela
dominava por meio de uma projeção teológica, entretanto com o advento do
cientificismo o discurso teológico demarca o sujeito para produzir um homem para
os novos princípios culturais de sociedade moderna. A produção do discurso
religioso de verdade vai produzindo entre os pares a significação de uma vivência
teológica educativa para a ―nova‖ sociedade que vai se formando, uma disciplina
que o ―outro‖ vai se adequando, ou pelo menos espera-se que ele se adéqüe, para a
firmação de uma doutrina teológica social. Essa educação religiosa a ser seguida é
do discurso intolerável. É preciso ser um pertencente a ―ordem discursiva‖ para se
encaixar na nova proposta teológica moderna. (TORRES, 2016, p. 43)

Contudo, seria simplória a extinção de uma cultura e uma mentalidade religiosa sob os
modelos civilizatórios e políticos de John Locke, Rousseau e tantos outros.
Pois as culturas levam um tempo em cristalizar os espaços no campo da mentalidade, e
isso ficou tão óbvio que os déspotas esclarecidos, mesmo que convivendo com os
movimentos pós Iluminismo, ainda se utilizaram do medo ao sagrado quando a lei do estado
civil de direito ficou tolhida pela Teoria do Direito Divino de Bousset, como, por exemplo, Os
Reis Taumaturgos, de Marc Bloch.
Portanto, tratando em específico das três maiores religiões ocidentais no século XXI é
possível percebermos que ainda não rompemos totalmente com a ligação do Estado de Direito
e a religião, sobretudo em países considerados subdesenvolvidos.
Assim sendo seria importante entendermos uma série de fatores históricos que
possivelmente levaram a tais condições atuais e que apesar de evoluções sociais estão muito
fortemente enraizada no imaginário social.
Desde a Baixa Idade Média, uma crise que rumou o destino da Europa e quiçar da
América, as religiões ocidentais aparecem em um cenário de horrores e pânico, a começar
com a maior organização religiosa até então, o cristianismo.
Segundo Toby Green,
Foi primeiramente na Espanha que o medo começou a afetar toda a sociedade. Ao
norte de Sevilha, onde a Inquisição tinha se originado, ficavam as planícies
escaldantes da Extremadura. Lá havia povoado de casa e pedras, lugares onde o
isolamento levava à raiva.‖ (GREEN, 2011, p. 135)

O medo ao qual fala Toby Green estaria focado em grupos que não fossem convertidos
ao cristianismo fazendo surgir grupos de neófitos, grupos esses que ou abririam mão de sua
crença, que outrora poderia ser o judaísmo, islamismo, etc., ou até mesmo que poderiam estar
agregados aos rituais de feitiçaria ou possessões do demônio, ou passariam pelo terror da
―Santa Inquisição‖.
A partir do Malleus Maleficarum a Europa já não era mais a mesma, mas o que nos
chama mais atenção é a Cruzada religiosa que seguiria nos anos vindouros, o medo do ―outro
religioso‖, o estranho, a prática religiosa católica já não mais seria a mesma, a Europa estava
então tomada do medo e do pânico, sobretudo em relação aqueles e aquelas declaradamente
considerados como não cristão católico.
Em seguida, desde a Reforma Protestante aos dias atuais percebemos uma onda de
pavor inquisitorial ou apocalíptico, para não distanciarmos, mas focando o debate a uma
História mais atual, se citarmos a Primeira Guerra Mundial e os conflitos que se seguiram
após 1914, grupos de protestantes procuraram elencar uma séria de elementos apocalípticos
que sucumbiram em práticas de violência ao comunismo, ao judaísmo e até mesmo ao
catolicismo. Tais contextos se deram com a Revolução Bolchevique em 1917, em seguida
com a criação da Declaração Balfour (1917) quando o governo britânico apoiou a criação do
Estado Judeu na Palestina e futuramente a criação da Liga das Nações. Todos esses contextos
históricos deram ao protestantismo norte-americano um motivo de acreditar ferrenhamente na
profecia de Apocalipse 16, 14, o anticristo revivido.
Segundo Karen Armstrong esse período foi uma

Era xenofóbica, temia a influência estrangeira que se infiltrava na nação por


intermédio dos católicos, dos comunistas e dos adeptos da crítica superior. Essa fé
fundamentalista repudiava a modernidade. Os protestantes conservadores eram
ambivalentes em relação à democracia: ela conduziria à ―oclocracia‖, a uma
―república vermelha‖, ao ―governo mais diabólico que este mundo já viu‖.
Instituições guardiãs da paz, como a Liga das Nações, estavam imbuídas do mal
absoluto, segundo os Fundamentalistas. A Liga era claramente a morada do
Anticristo, que dissera são Paulo, enganaria a todos com suas mentiras.
(ARMSTRONG, 2009, p. 238)

Quanto ao grupo de judeus, esses grupos lutaram em conseguir um território na


Palestina por meio da formação do Sionismo. Grupo esse que é fruto de lutas políticas
religiosas advindas antes mesmo do holocausto, o Sionismo tem origem quando coligação de
judeus procuram entender melhor uma nova forma de fé judaica e lutam pelo território
judaico que viria definitivamente após o reconhecimento e criação da Declaração de
Independência do Estado de Israel.
Declaração essa que seria a busca de uma nova terra que os daria o retorno em
definitivo à Terra Prometida, promessa contida na sagrada escritura. Contudo tal promessa
não seria tão pacífica, pois os anos vindouros foram altamente complexos quando citados os
casos da Guerra Árabe Israelense, conflito dotado de extremismos de ambas as partes, uma
luta em que deus aparece em prol dos ―verdadeiros herdeiros‖ da Terra Prometida.
Para os muçulmanos não se pode evitar o grupo hoje denominado ―Estado Islâmico‖,
defensores do verdadeiro ―Islã‖, sendo esses, autores de práticas terroristas a partir do que
ficou conhecido como Jihad, ou a ―Guerra Santa‖.
―A lei islâmica definiria a Jihad como um dever coletivo. A decisão de travar uma
guerra santa competia não a um indivíduo, mas à comunidade como um todo.‖
(ARMSTRONG, 2009, p.448).

Sem dúvida a Jihad vai muito mais além do que hoje defende grupos ligados a
formação do Estado Islâmico, porém nos últimos anos, o Islã, vem sendo representado pela
mídia internacional como um novo bode expiatório, ―mal‖ humanitário que deve ser coibido.
Entretanto não sem deixar brechas e questões, grupos que se denominam muçulmanos, mas
que são praticantes de terrorismo vem espalhando pelo planeta o ―medo‖, o medo do
extremismo.
Mas, talvez para alguns, o que pode vir a ser de grande surpresa, é entender que
apenas bombas e estopins não se limitam a atos desumanos religiosos, até porque, os
discursos de líderes religiosos que vem causando uma ―nova cruzada‖ ao infiel vem sendo
destaque em discurso que reverberam no cotidiano religioso contra aqueles e aquelas que não
compactuam com tais atitudes sacralizadas.
Tais características chegam à modernidade como um dado expandido, pois a nova
forma de leitura religiosa vem a cada dia sendo um campo de difusão, sobretudo no Brasil
com a nova onda de grupos neopenteconstais fazendo emergir o discurso da valorização do
―verdadeiro‖ cristão.
Se olharmos de forma mais ampla tal prática não fica apenas no Brasil, estende-se para
a América do Norte e ao Oriente Médio, o século XXI anunciou não o fim das religiões como
apostou Freud e Young, na verdade, juntamente com as novas formas de interpretar a cultura
e projetar a segregação diante do mal do século freudiano grupos apostam nos espaços
sagrados, sobretudo em países onde o grau de escolarização é menor, acabando por serem
levados por líderes carismáticos ou de discursos de uma cruzada do século XXI ao caos
humanitários onde tudo e todos passas no espectro do inimigo.
Para Marty e Appleby in Armstrong, os sistemas fundamentalistas religiosos,
São formas de espiritualidade combativas, que surgiram como reação a alguma
crise. Enfrentam inimigos cujas políticas e crenças secularistas parecem contrárias à
religião. Os fundamentalistas não veem essa luta como uma batalha política
convencional, e sim uma guerra cósmica entre forças do bem e do mal. Temem a
aniquilação e procuram fortificar sua identidade sitiada através do resgate de certas
doutrinas e práticas do passado. Para evitar contaminação, geralmente se afastam da
sociedade e criam uma contracultura; não só, porém, sonhadores utopistas.
Absorvem o racionalismo pragmático da modernidade e, sob a orientação de seus
líderes carismáticos, refinam o ―fundamental‖ a fim de elaborar uma ideologia que
fornece aos fiéis um plano de ação. Acabam lutando e tentando ressacralizar um
mundo cada vez mais céptico. (ARMSTRONG, 2009, p.11)

Essas ondas de fundamentalistas no século XXI se destacam em espaços que vão além
do campo do sagrado, obedecem a uma lógica espiritualista e disso não abrem mão, e também
de território. São campos de atuação, espaços entre a pertença e a não pertença.
Nesse ponto há uma dupla ação social: o ―contrato de verdade instituído‖ e uma
―aceitação decodificada como cultura‖. Nesse ponto opera-se a dinâmica da
institucionalização de um saber ao passo que grupos introjetam ou compactuam e
sentem-se aptos a fazê-lo, isto é, se emolduram no esquadrinhamento de uma
verdade instituída. Nesse ponto temos o momento em que o discurso passa da
oralidade e atinge o escriturístico à materialização nos corpos sociais, o
aparelhamento discursivo chega, portanto, no seu objetivo, isto é, fomentou e
institucionalizou o seu saber como códigos de condutas a serem seguidos.
(TORRES, 2016, p. 38)
É um jogo da sedução entre o sagrado e o profano. Mas um jogo muito perigoso, pois
em épocas distintas das nossas, tais práticas extremistas emergiram numa (re)produção de
exercícios fascistas.
O fascismo não interessa apenas ao campo da política, mas também ao campo da ação
política religiosa, e talvez até mais ao religioso, pois este não se questiona, pois é deus quem
autoriza e uma vez entendendo as ações como atos políticos, aí vemos, nos discursos mais
habituais, uma lógica ―tradicional‖ que busca romper com a cultural dinâmica, e em ação, em
prol da salvação do fiel em meio a um mundo impuro.
Para Michel de Certeau, tais práticas escriturísticas sociais atuam como pontos bem
distintos e articulados sendo de tal modo que
Essa grande paixão mítica e reformadora funciona a partir de três termos que a
caracterizam: de uma parte, um modelo ou ―ficção‖, isto é, um texto; de outra parte,
os instrumentos de sua aplicação ou de sua escritura, isto é. Instrumentos; enfim, o
material que é ao mesmo tempo suporte e encarnação do modelo, isto é, uma
natureza, essencialmente uma carne que a escritura transforma em corpo. Por meio
de instrumentos, conformar um corpo àquilo que lhe define um discurso social, tal é
o movimento. Parte de uma ideia normativa veiculada por um código de
intercâmbios econômicos ou pelas variantes dela, apresentadas nos relatos do
legendário comum nas criações do saber. No começo, há uma ficção determinada
por um sistema ―simbólico‖ que tem a força da lei, portanto uma representação (um
teatro) ou uma fábula (ou um ―dito‖) do corpo. Isto é, um corpo colocado como o
significante (o termo) de um contrato. Essa imagem discursiva deve informar um
―real‖ desconhecido, outrora designado como ―carne‖. Da ficção ao desconhecido
que lhe dará corpo, a passagem se efetua por instrumentos que se multiplicam e
diversificam pelas resistências imprevisíveis do corpo a (con)formar. Torna-se
necessária uma fragmentação indefinida da aparelhagem para ajustar aplicar cada
um desses ditos e/ou saberes do corpo, modelo unificadores, à opaca realidade
carnal cuja complexa organização se revela no decorrer das intervenções resistindo-
lhe. Entre o instrumento e a carne, existe, portanto, um jogo que se traduz de um
lado por uma mudança na ficção (uma correção do saber) e, do outro, pelo grito, dor
inarticulável, impensado da diferença corporal (CERTEAU, 1990, p. 237).

O que Certeau nos apresenta são os meios da naturalização do discurso escriturístico,


em suma, prega-se uma ―verdade‖, um texto que não precisa ser mais escrito, pois assim
―deus o fala hoje‖. E mais adiante surgem os códigos sociais, o modus operandi, a forma de
ser e agir que é instituído no cotidiano, como o próprio Certeau nos fala, é uma Invenção de
Cotidiano, afinal, o que é o cotidiano senão práticas e representações sociais dos pares que o
formam?
Em tudo o que temos? O jogo da força, a ―perfeita‖ religião diante daqueles e daquelas
que são produtos de uma sociedade mal organizada, injusta e desordenada, dotada dos
primórdios dos ―pecados capitais‖.
Realizam críticas ao ―mundo‖, pois o ―o mundo jaz do maligno‖ (JO: 5-19) alcançam
a crítica à modernidade maculada pela ambição do capital, mas pratica a arte da violência
simbólica, a exclusão. Uma prática que é fruto do próprio capitalismo voraz, mas sem fazer
defesa do capitalismo atual, o capital que produziu as injustiças sociais a partir do modelo
neoliberal está apenas realizando o que se propõe, ou seja, a busca pelo acumulo primitivo de
capital por meio da exploração do homem pelo homem.
E grupos que se colocam como defensores da verdadeira palavra salvacionista? O que
temos na maioria dos casos são práticas de líderes religiosos que pregam Deus, Alá, Javé,
Yeshua, etc., mas ao final geram o discurso da violência simbólica e física. Simbólica quando
defendem o ―seu deus‖, produzindo inclusive vários deuses, numa corrida que, segundo suas
idéias, vão além do campo material estendendo-se ao espiritual, onde o ―outro‖ é o pecador o
demônio facínora, e física quando ondas de ataques fundamentalistas atacam prédios,
invadem terreiros, avançam contra grupos de denominações distintas e tudo isso em defesa de
um deus.
E diante de tudo isso, após um breve e bem sucinto passeio pela história das matrizes
religiosas abraâmicas retomemos ao questionamento do começo do texto: E diante de tais
premissas, qual o papel da religião nesse cenário tão caótico?
A reposta que temos seria uma: ainda que não buscando ser generalizante e ao mesmo
tempo sendo, infelizmente em plena modernidade ainda se reproduz uma prática medieval, ou
seja, combate-se o infiel e ganhe a terra no céu, e mesmo para aquelas instituições menos
radicais, o calar é garantir no seu gozo da ―verdade iluminada na escritura sagrada‖ uma
soberba hipócrita aos moldes farisaicos da era do Jesus histórico, mas nada de espantoso, pois
a hipocrisia, um conceito defendido nesse texto em relação as políticas imperialistas do século
XIX ao XXI também pode ser apregoado aos grupos religiosos da era comum, pois os grandes
líderes religiosos não pregaram o conforto e a segregação religiosa, mas sim uma prática e
uma vida religiosa de práxis, ação e prática.
DIÁLOGOS ENTRE DIREITOS HUMANOS E O FENÔMENO RELIGIOSO.

Os Direitos Humanos foram tomando corpo e se constituindo desde o séculos XVII e


XVIII, com o desenvolvimento do pensamento iluminista e posteriormente as revoluções de
independência dos Estados Unidos da América e da revolução francesa. De direito natural, foi
aos poucos se positivando, passando a fazer parte de várias constituições nacionais, bem como
uma referência na agenda de luta de vários movimentos sociais.
Com a crise da modernidade, o fim do otimismo alimentado pela esperança de um
progresso que traria a paz e o desenvolvimento para as nações, principalmente no período pós
segunda guerra mundial, quando foi possível saber os crimes cometidos contra a humanidade,
muitas vezes tendo como referência o próprio pensamento científico, além das políticas
neoliberais que assolaram países subdesenvolvidos aumentando os índices de pobreza, os
Direitos Humanos passaram a consistir quase que em consenso, como de suma importância
para resolução de conflitos, emancipações de grupos sociais e luta por uma dignidade maior.
Apesar de um certo consenso sobre os Direitos Humanos, principalmente se levarmos
em consideração a quantidade de nações que assinaram a declaração universal de 1948, a
maior parte da população mundial é apenas produto do discurso dos Direitos Humanos, não
sendo contemplados com direitos básicos, direitos fundamentais.
Boaventura de Sousa Santos, faz uma crítica ao que ele chama de visão hegemônica dos
direitos Humanos, quando credita-se unicamente a gramática dos Direitos Humanos à
possibilidade de lutar contra a opressão e a desigualdade em todo o mundo, levando em conta
que os Direitos Humanos por serem universais deveriam servir como baliza pra toda
humanidade. O grande problema é que essa prática hegemônica dos Direitos Humanos acaba
por trazer em si uma visão de mundo do norte global, ao passo que a luta em outras regiões
pode se dar de forma distinta, muitas vezes com princípios que ate contrariam os Direitos
Humanos, mas não a dignidade e luta de determinados grupos. (Santos, 2013)
Este ponto nos é importante para pensarmos sobre os contatos que ocorrem entre o
campo das religiões e dos Direitos Humanos. Em uma perspectiva moderna de separação do
espaço público e do privado, a religião se circunscreveria neste último, como um movimento
despolitizado. Ao contrário do campo religioso, os Direitos Humanos ocupam o espaço do
público, seja sob a tutela do estado ou contra este.
O princípio de laicidade talvez nunca tenha sido tão frágil como atualmente, basta olhar para
o congresso nacional brasileiro, com a chamada bancada da bíblia, formada principalmente
por representantes das igrejas protestantes, e em menor número católicos, que fazem do
congresso nacional um espaço para defender o que para esses grupos são os verdadeiros ideais
cristãos que devem ser compartilhados por toda a sociedade.
Portanto essa ―ocupação‖ do espaço público por religiosos e a defesa dos ideias
religiosos enquanto valores praticados por todos, lança desafios e possibilidades aos Direitos
Humanos. No Brasil atual é comum ouvirmos discursos proferidos por representantes das
igrejas, atacando os Direitos Humanos e seus defensores, entretanto em outra ponta temos
importantes atores do campo religioso brasileiro que fizeram das suas vidas uma luta
constante por princípios que fazem parte da gramática dos Direitos Humanos, como foi o caso
do bispo D. Hélder Câmara e do sociólogo Hérbert de Souza, conhecido como Betinho, que
começou sua militância dentro de grupos católicos.
As teologias progressistas na América Latina, como a teologia da libertação,
principalmente entre as décadas de 1970 e 1980, foram uma possibilidade de luta contra
governos autoritários em vários países. No Brasil especificamente, se setores conservadores
da Igreja católica foram apoiadores do golpe de 1964 que resultou numa ditatura militar-
capital, logo surgiu entre membros do clero e católicos leigos, movimentos de resistência
contra o governo e defesa dos Direitos Humanos em nosso país.
Portanto as teologia políticas, Como fala Boaventura, (santos, 2014) colocam-se na
encruzilhada dos Direitos Humanos, seja para o bem ou para o mal, a reivindicação da
religião por uma ação no espaço público, por protagonismo na agenda política nacional, não
pode ser ignorada, mas sim pensada como possibilidade de novas gramáticas de dignidade
humana, como contribuinte para as lutas contra a opressão do capital sobre as massas pobres
do mundo, contra o preconceito perpetrado contra determinados grupos étnicos, ou seja, uma
possibilidade de fortalecer as frentes de luta contra hegemônicas. Entendendo como Direitos
Humanos contra-hegemônicos uma perspectiva de luta que vá além da visão do norte global e
que sirva para contestar o poder até então estabelecido, ao contrário do que ocorre muitas
vezes, quando os Direitos Humanos são invocados para justificar ataques a determinados
povos, como a invasão dos Estados Unidos a nações do oriente médio.
É necessário fazermos uma distinção entre globalização hegemônica e contra-
hegemônica. A globalização hegemônica é aquela que formada por uma rede de esquemas de
explicação à vida social, torna-se a única aceitável, a única possível, mesmo para os que são
atingidos negativamente por ela. A globalização hegemônica é responsável por uma
organização social que reproduz a opressão em diferentes partes do mundo, tendo como base
o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Já uma globalização contra-hegemônica, vem a
ser uma possibilidade de entendimento da vida social que vá além das amarras estabelecidas
pelos critérios de ―verdade‖ da hegemonia, deve ser uma possibilidade de desconstrução dos
três pilares que constituem o espaço de opressão no mundo contemporâneo; capitalismo,
colonialismo e patriarcado. É nessa perspectiva que Boaventura também pensa os Direitos
Humanos como hegemônicos e contra-hefemônicos. (Santos, 2014)
Nessa reivindicação por uma participação da religião no espaço público, podemos
diferir entre uma teologia pluralista e uma teologia fundamentalista, cada uma com suas
peculiaridades, buscando romper com o paradigma moderno ocidental, de que a religião dever
ser exclusiva do espaço privado.
Para Boaventura de Sousa Santos, as teologias fundamentalistas constituem o
seguinte:

Utilizarei, pois, os termos ―fundamentalismos‖ e ―fundamentalista‖ para me referir a


teologias – cristãs e islâmicas – de acordo com as quais a revelação é concebida
como o princípio estruturante de organização da sociedade em todas as suas
dimensões. Em ambos os casos, a revelação está normalmente ligada ao
escrituralismo, o que significa que a organização da vida social e política deve
seguir a interpretação literal dos livros sagrados sempre que estes existam. Segundo
as teologias fundamentalistas, a revelação é o discurso divino eterno, incriado e,
como tal, a interpretação humana não pode ser mais que uma redução sacrílega.
(Santos, 2014, p.42)

No que diz respeito as teologia pluralistas, Boaventura as conceitua dessa maneira:


As teologias pluralistas concebem a revelação como um contributo para a vida
pública e a organização política da sociedade, mas aceitam a autonomia de ambas.
Gerem a tensão entre a razão e a revelação procurando um equilíbrio entre ambas.
Embora divina e incomensurável com a razão humana, a revelação tem como único
propósito ser acessível a razão humana e ser cumprida pela razão humana na
história. Tal seria impossível se os humanos fossem incapazes de pensamento
criativo e ação autônoma. Em suma, as teologias pluralistas apontam para uma
concepção humanística da religião. (Santos, 2014. P.42)

Tanto uma teologia fundamentalista quanto progressista faz uma crítica a separação
entre o espaço público e privado no que diz respeito a religião, assim como uma crítica ao
estado contemporâneo, a forma como o poder é exercido no mundo atual. Porém se ambas
comungam de uma crítica direcionada a valores da modernidade, os fundamentalistas querem
apenas transformar uma estrutura de opressão por outra, idealizada em um estado pré-
moderno. Já os pluralistas querem contribuir na construção de uma sociedade onde essas
estruturas de opressão sejam extintas.
―A bancada da bíblia‖, como dito anteriormente tem em sua base uma teologia política
fundamentalista, conservadora, que em defesa dos valores cristãos tradicionais ver a revelação
divina como algo a ser imposto, sem nenhuma pretensão de libertar os pobres que sofrem
diante das relações econômico-sociais estabelecidas, pelo contrário, a prática desses senadores
e deputados acabam por favorecer o capital e os grupos dominantes.
Já as teologias progressistas como a teologia da libertação, ver no espaço público uma
possibilidade de transformação social através de uma prática religiosa, reivindicando uma
inserção da religião na esfera pública enquanto uma religião dos pobres, uma religião que está
ao lado dos oprimidos, pois enquanto houver essa circunscrição da religião apenas ao espaço
privado, com uma mística que separa o sagrado e os caminhos espirituais das lutas travadas
diariamente, o caráter libertador da religião estaria sendo reprimido em favor de uma sistema
econômico-social que beneficia apenas uma minoria e relega a maior parte da humanidade a
opressão e pobreza.
Se pensarmos os Direitos Humanos em uma perspectiva hegemônica, vemos que eles
podem relacionar-se com as políticas neoliberais sem que façam uma crítica ao modelo desse
sistema. Podem reproduzir uma visão do norteglobal que sirva aos anseios da globalização
neoliberal, bem como uma maior valorização do indivíduo com relação ao grupo social, do
mesmo modo as teologias fundamentalistas podem apresentar inúmeras afinidades com a
política econômica neoliberal.
O neoliberalismo se configura como um encolhimento do espaço público, através da
privatização de serviços fundamentais e de uma globalização hegemônica, já as teologias
fundamentalistas buscam nesse encolhimento do espaço público ocupar algo que foi perdido
com o advento da modernidade, buscam um momento de pós-secularização, onde a religião
volte a ter uma papel predominante na política e na organização social.
Pensar os Direitos Humanos em contato com essa realidade neoliberal e as teologias
políticas fundamentalistas, é pensar em ―novos Direitos Humanos‖, que não seja fruto de uma
visão de mundo fundada no capitalismo, colonialismo e patriarcado. Podemos citar como
exemplo de Direitos Humanos numa perspectiva hegemônica os casos de estupro contra
mulheres serem considerados apenas como crime sexual, quando também são fortemente
marcados por uma perspectiva patriarcal, onde deveriam ser vistos também como crimes
políticos.
As teologias políticas tradicionais colocam limites aos Direitos Humanos, por ver
nesses uma declaração secular, enquanto a única gramática de valores válidas é uma
gramática divina, essencialmente de caráter abraânico, seja do cristianismo, islamismo ou
judaísmo. Portanto outras formas de relacionar-se com o sagrado, são vistas por uma
perspectiva fundamentalista como não verdadeira, e assim tornam-se frutos de ataques.
Aqui nos interessa pensar as relações entre grupos étnicos e suas formas de
religiosidade. A religião é um ponto central de identificação entre determinadas comunidades
étnicas, não sendo possível falar em autonomia desses povos sem liberdade religiosa, mas os
limites impostos por uma teologia fundamentalista, coloca em risco todas as conquistas tidas
até então com relação aos Direitos Humanos e o respeito a liberdade religiosa e autonomia
dos povos.
Os povos indígenas brasileiros, tem nos seus aspectos culturais, incluindo as
manifestações com o sagrado, como um dos elementos de identificação étnica, o que ajuda a
estruturar as suas lutas por demarcação de terras, por acesso a serviços públicos como saúde e
por uma educação diferenciada, onde as suas práticas religiosas tornam-se um eixo central da
vivencia dos membros da comunidade dentro da escola.
Os Direitos Humanos para os povos indígenas não podem estruturar-se numa
perspectiva hegemônica, centrada nos valores da modernidade, pois como vimos, se uma
sociedade laica com espaços específicos para a religião na esfera privada, com uma escola
também laica, correspondem aos anseios de uma sociedade ocidental, a emancipação e agenda
de luta dos povos indígenas, passa necessariamente por uma escola não laica, por uma escola
que seja pública, mas ao mesmo tempo permeada por valores sagrados que fazem parte
daquela comunidade.
Ao contrário das teologias fundamentalistas que podem servir as políticas neoliberais,
bem como colocam desafios aos Direitos Humanos, as teologias progressistas podem servir
como uma possibilidade de diálogos para a construção de Direitos Humanos não
hegemônicos.
As teologias indígenas por exemplo, trazem uma possibilidade de novas formas de
interação entre mulheres e homens com a natureza, contrárias de uma perspectiva neoliberal
que ver a natureza unicamente como algo a ser explorado. As novas agendas dos Direitos
Humanos pautadas em movimentos ambientalistas, podem enriquecer-se a partir desse
diálogo com culturas não ocidentais.
As teologias feministas também trazem novos aspectos de valorização da mulher,
novas formas de lutas contra o patriarcado, que dentro de uma perspectiva não hegemônica
dos Direitos Humanos, contribui para desconstrução dos valores historicamente aceitos que
perpetuam diversas violências de gênero.
A continuação de preconceitos coloniais contra grupos étnicos vem a tona também
com teologias progressistas, como o discriminação contra membros de religiões
afrodescendente, a luta por liberdade religiosa no Brasil, pensada a partir das religiões de
origem africana, deve ser vista como uma luta contra o racismo, contra preconceitos
construídos no período colonial.
São muitos os exemplos de grupos étnicos que tem em teologias progressistas o centro
de suas lutas, podendo ser estabelecido um diálogo frutífero entre essas teologias e os Direitos
Humanos, além dos já citados povos indígenas e negros no Brasil, poderíamos também
destacar a luta do povo palestino contra a opressão que sofrem, a religião nesses casos termina
por ser um elemento de maior impulsão para as lutas do que especificamente os Direitos
Humanos.
O diálogo existente entre as teologias progressistas, que apesar das diferenças
consegue aproximar cristãos, islâmicos, judeus, etc. Também podem servir como modelo para
o diálogo dos Direitos Humanos com diferentes realidade do mundo, sem que haja uma
resposta pronta para todos os problemas, superando uma visão de Direitos Humanos do norte-
global.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao refletirmos sobre os Direitos Humanos no mundo contemporâneo, torna-se necessário


pensarmos nos encontros destes com o pensamento religioso, principalmente quando cada vez
mais fica nítido que a religião não ocupa unicamente o espaço privado, por mais que seja este
um ideal da modernidade.
A própria crise da modernidade, as novas configurações socioeconômicas do pós
guerra, o fim da guerra fria, a derrocada das políticas do estado de bem-estar social, fizeram
emergir uma nova onda religiosa em busca do protagonismo na esfera pública, tornando
impossível fecharmos os olhos para este fato.
Entretanto essa reivindicação por espaço público não se dar de uma forma homogênea,
mas sim por profundas diferenças entre teologias conservadores e progressistas. Se as
teologias conservadoras são empecilhos na construção e prática de uma agenda em Direitos
Humanos, as teologias progressistas podem trazer novas possibilidades para junto com os
Direitos Humanos lutar contra a opressão, pobreza que atingem grandes parcelas da
população mundial.
O racismo por mais das vezes se mostra através de teologias conservadoras,
fundamentalistas, que trazem em si uma ideia de revelação e de verdade única, pregando ódio
contra grupos étnicos que professem um fé diferente da que está nas escrituras sagradas. Mas
também esses grupos étnicos, podem através de suas teologias contruir uma agenda de lutas
que tenham o sagrado como eixo estruturante, e que voltem-se contra o capitalismo,
colonialismo e patriarcado.
É necessário desenvolver uma prática contra-hegemônica dos Direitos Humanos, que
dialogue com as realidade locais, que saiba superar os desafios contemporâneos como o
neoliberalismo e o extremismo religioso, contribuindo para a construção de uma nova
sociedade, que possa beber de diferentes fontes como o marxismo, teologias progressistas,
pensamento ecológico, dentre outros, na construção de relações democráticas e de respeito
aos Direitos Humanos.

REFERÊNCIAS

ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no


cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa – o sistema totêmico na
Austrália. São Paulo: Paulus, 2001.
GREEN, Toby. Inquisição: o reinado do medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
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ii_enc_14091998_fides-et-ratio.html.
LEI Nº 10.639/03: desafios e conquistas no ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
Emanuelle Lacerda Sales3
Claudeni Maria de Lima 4
Débora Cardoso da Silva5

GT 04: Intersecções entre Sociologia, Raça, Religião e Direitos

RESUMO
O presente trabalho problematiza a implantação da Lei nº 10.639/03 que estabelece a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira na educação básica. Além de
trabalhar a invisibilidade étnica no contexto da Educação e do percurso sócio-histórico da
população negra no Brasil. Retrata especialmente, algumas peculiaridades da interface da
história e das leis que influenciaram a vida da população afrodescendente no país. Ao
trabalharmos, inicialmente, os ranços históricos da colonização e da escravidão, realizamos
algumas reflexões acerca do racismo no país e seus reflexos na vida da população negra. Em
seguida nos debruçamos sobre os desafios e avanços representados pela Lei nº 10.639/03,
destacando a necessidade do respeito à diversidade étnica no campo da educação. Por fim,
discorremos sobre a necessidade de mudanças no sistema educacional, no sentido de
promover o debate étnico-racial e o respeito à diversidade religiosa. Esperamos que o nosso
trabalho amplie a discussão e o conhecimento sobre a questão étnico-racial na educação,
fomentando o empoderamento da população negra e a discussão sobre os Direitos Humanos
no viés étnico. Fornecendo assim, subsídios aos profissionais que lidam direta ou
indiretamente com esta temática.

Palavras-chave: História. Racismo. Intolerância religiosa. Invisibilidade.

INTRODUÇÃO

3
Psicóloga pela UNIFAVIP Devry. Emanuellelacerda.psi@hotmail.com
4
Aluna da Especialização em Gestão Pública do Instituto Federal de Pernambuco, Psicóloga Especialista em
Saúde Mental e Coletiva pela UNIFAVIP Devry. Claudenilima@gmail.com.
5
Psicóloga pela UNIFAVIP Devry, pedagoga pela UPE e especialista em Educação e igualdade racial pela
UFRPE. deboracardosopsi@gmail.com
Tendo em vista, o cenário de invisibilidade da cultura negra no currículo, tanto no
oculto quanto no formal na educação brasileira, mesmo o Brasil sendo um dos países com
maior diversidade étnica do Ocidente. Além do racismo estrutural que marca de maneira
transversal, não apenas a educação, mas toda a nossa sociedade. Ainda temos o mito da
democracia racial que ainda é vendido internamente e externamente a respeito das nossas
relações étnico-raciais.
Nesse contexto inquietou-nos pesquisar sobre a problemática: Qual o impacto da
implantação da Lei nº 10.639/03 no combate ao racismo no Brasil? Diante dessa problemática
temos como objetivo geral: Problematizar o impacto do ensino de história e cultura Afro-
brasileira no combate ao racismo no Brasil. Temos como objetivos específicos: descrever a
história da cultura afro-brasileira, identificar o racismo e a intolerância religiosa no contexto
da educação, analisar os desafios e avanços representados pela Lei nº 10.639/03, expor o mito
da democracia racial e seus impactos sociais e promover o debate sobre a importância da
questão étnica na promoção dos direitos humanos.
O trabalho justifica-se diante da situação de opressão a qual a população negra é
submetida e mediante o cenário político de retrocesso nas lutas progressistas de caráter
afirmativo. Diante da crescente onda de manifestações de cunho racista, praticado
principalmente através das redes sociais e muitas vezes por crianças e adolescentes. Além do
emergente crescimento dos casos de intolerância religiosa, praticados contra membros de
religiões afro-brasileiras. E academicamente para reafirmar os direitos humanos e a
importância da pesquisa sobre questões étnicas em um momento político e social de tamanha
intolerância.
A perspectiva metodológica abordada pelo trabalho segue os parâmetros da pesquisa
qualitativa, apresentada por Minayo (1994, p.21), como:
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas
ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja,
ela trabalha com o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e
atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos
e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.

O estudo qualitativo, portanto, mostrou-se mais adequado a essa pesquisa por se tratar
de uma questão de caráter social. O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa
bibliográfica que de acordo com Fonseca (2002), consiste em um levantamento de dados de
trabalhos já publicados, como artigos científicos, livros e revistas periódicas. Coletados
principalmente nos arquivos de instituições públicas, devido o levantamento histórico das
legislações que impactaram na vida da população negra entre os séculos XIX e XXI.
Coletamos essas informações, principalmente nos sites dos arquivos do Palácio do Planalto e
Senado. Caracterizando assim o principal instrumento de coleta de dados da pesquisa como
documental.
Para debater sobre os desafios do ensino de história afro no Brasil, teremos que
remontar a algumas das chagas estruturais do nosso país. A marca do período colonial, o
ranço do racismo e da intolerância religiosa. Nesse sentido subdividimos o trabalho em dois
capítulos, no primeiro iremos fazer um breve recorte histórico da cultura afro-brasileira.
Tomando como referencial os dados documentais coletados através dos sites oficiais de
órgãos da República Federativa do Brasil, especificamente Palácio do Planalto e Senado
Federal. No segundo capítulo problematizaremos os desafios e avanços representados pela Lei
nº 10.639/03, na construção de uma sociedade mais igualitária. Serão utilizados Gomes
(2008), Bairros (2017) e Caputo (2008) nessa construção.

1. Marcas históricas das questões étnicas no Brasil

O Brasil apresenta uma série de conflitos sociais associados especificamente à questão


étnica. Podemos problematizar que conflitos raciais não são exclusivos da sociedade
brasileira, o racismo e outras manifestações de cunho discriminatório são comuns em várias
sociedades. Mas os meandros do nosso processo de colonização, o fato de sermos o último
país do Ocidente a abolir a escravidão e o agravante de vendermos à imagem de uma
―democracia racial‖, só evidencia o racismo como traço estrutural no Brasil e agrava a
situação da população negra do nosso país.
Os dados sobre o início do uso da mão de obra negra como escrava no Brasil, não são
precisos, mas diante da impossibilidade de exploração dos povos pré-colombianos em larga
escala, tendo em vista, as epidemias que dizimavam várias nações indígenas, os portugueses
optaram pela exploração de tribos africanas. Essa saída tornou-se viável devido o Império
colonial português ter conquistado6 territórios na África, antes de conquistar o Brasil. Apesar
da falta de consenso é atribuído o início da exploração africana no Brasil a Jorge Lopes
Bixorda em 1538. (SANTOS, 2013).
O avanço da exploração foi potencializado pelo crescimento econômico desencadeado
pelo ciclo canavieiro7. O Padre Antônio Vieira ainda no século XVII ilustrou bem essa
relação, fazendo uma crítica às elites da colônia; ―Sem pretos não há Pernambuco e sem
Angola não há pretos. (...) O Brasil que vive e se alimenta de Angola.‖ (VIEIRA, 1648 apud
GOUVÊA, 2001, p. 285).
Os negros capturados na África eram enviados ao Brasil em embarcações conhecidas
como navios negreiros. Muitos não sobreviviam às péssimas condições da travessia, os que

6
Utilizamos o verbo conquistar ao invés de descobrir, tendo em vista que os países colonizados em sua maioria
já detinham população originária estabelecida.
7
Período compreendido entre meados do século XVI e início do século XVIII, no qual ocorreu o apogeu
econômico da Capitania de Pernambuco.
aqui chegavam já eram sobreviventes. Posteriormente, o sofrimento dos navios negreiros foi
ilustrado, através dos versos do poeta abolicionista Castro Alves.
(...) Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
(ALVES, 1997, p. 185).

A forma de tratamento dada aos africanos, só reafirmou o padrão exploratório


empregado desde os primórdios da colonização. A elite brasileira, a época ainda elite colonial,
formada majoritariamente por portugueses e descendentes nascidos no Brasil, sempre lidou
com a questão étnica de maneira hierárquica. Se colocando numa posição de privilégio em
relação aos demais povos, inicialmente com os povos de origem pré-colombiana e na
sequência com os africanos.
O Brasil se estruturou através de divisões hierárquicas que concentraram o poder em
velhas estruturas senhoris, ilustradas pelo poder político centralizado em uma elite branca e de
origem rural. Principalmente no Nordeste, região marcadamente ligada à exploração de
latifúndios o que tornava o modelo escravocrata mais lucrativo. Durante o ciclo canavieiro
essas características se moldaram e persistem até a contemporaneidade.

O Nordeste é a região das oligarquias, porque foi aí que elas conseguiram inventar
uma região, um nome da qual falam e reivindicam. Esta região conseguiu funcionar
com eficiência, como uma maquinaria imagético-discursiva destinada a evitar a
marginalização econômica e submissão política total destes grupos rurais e
tradicionais. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.147)

Apesar desse contexto de opressão, foi no Nordeste que surgiu o maior símbolo de
resistência à escravidão no Brasil, o Quilombo dos Palmares. O mesmo se localizava na atual
região da Serra da Barriga, área rural do município de União dos Palmares, atualmente estado
de Alagoas, mas na época território da Capitania de Pernambuco. Acredita-se que sua criação
ocorreu em meados de 1630, Palmares tornou-se o mais importante dos quilombos brasileiros.
(GELEDES, 2012).
O Quilombo dos Palmares teria sido fundado pela princesa do Congo Aqualtune, a
mesma havia sido capturada em conflitos entre o reino do Congo e forças portuguesas na
África. Teria sido vendida para colonos na Capitania de Pernambuco, especificamente para a
região do atual estado de Alagoas. Conseguiu escapar do cativeiro e junto com outros
africanos fundou o Quilombo dos Palmares. Seu filho Ganga Zumba tornou-se líder em
Palmares e posteriormente, seu neto Zumbi, foi o último e principal líder do Quilombo.
(LINS; REZENDE, 2014).
Inicialmente liderado por uma guerreira e posteriormente por seus descendentes,
também guerreiros, não há consenso se a forma de governo interna em Palmares pode ser
chamada de monárquica. Pelo menos, na visão eurocêntrica que alimentamos a respeito dos
regimes monárquicos. Mas o poder centralizado e os laços consanguíneos entre as lideranças
apontam para essa forma de governo.
Palmares representou quase um século de resistência negra à escravidão e ao poder da
Capitania de Pernambuco e do governo de Portugal. Resistindo a várias investidas das forças
militares brancas, porém, mesmo representando um marco de resistência, Palmares sucumbiu
à morte do seu líder Zumbi. Em 20 de novembro de 16958, Zumbi foi capturado,
posteriormente executado e teve sua cabeça exposta na Praça do Carmo em Recife.
(SILVEIRA, 2003).
Apesar do fim trágico, que só ilustra o grau de repressão aos negros no período
colonial, a memória de Zumbi iria atravessar os séculos como símbolo de resistência. Mas a
opressão aos negros ainda teria outros tristes capítulos. Mesmo com a Independência de
Portugal, ocorrida em 1822, o clima de tensão só se acentuou. E a resistência se reorganizou e
em 1835 estourou em Salvador a Revolta dos Malês. Segundo Reis (2008), o movimento
liderado por escravos africanos de origem muçulmana tinha como objetivo libertar outros de
mesma etnia e religião. Porém foi duramente e rapidamente reprimido pelas forças do Estado.
Como o receio de novas revoltas se espalhava pelas províncias, além da emergente
pressão internacional pelo fim da escravidão no Brasil, começaram a surgir leis que buscavam
regular a atividade e acalmar a opinião pública. A primeira delas foi a Lei nº 581/1850
(BRASIL, 1850), conhecida como Lei Eusébio de Queirós que proibiu o tráfico de escravos
no Brasil. Mas o ―avanço‖ foi ofuscado pela Lei complementar à Constituição de 1824,
promulgada em 1854 que decretou a proibição de negros frequentarem a escola.
Seguindo a máxima de pequenos gestos para amenizar o mal-estar social e político
sobre a Escravidão, em 1871 foi assinada pela princesa Isabel a Lei nº 2.040/1871 (BRASIL,
1871), conhecida como Lei do Ventre Livre. A mesma decretava que todos os filhos de
escravos que nascessem a partir daquela data estariam livres. Outra iniciativa com o intuito de
―flexibilizar‖ o sistema escravocrata foi a Lei nº 3.270/1885 (BRASIL, 1885), conhecida

8
Data escolhida para celebração do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.
como Lei do Sexagenário, tornava livres os escravos com mais de sessenta anos. Uma
verdadeira afronta à luta abolicionista, tendo em vista que a expectativa de vida dos escravos
não chegava a quarenta anos.
Por fim, as pressões internas e externas venceram e em 13 de maio de 1888 a princesa
Isabel, exercendo o cargo de regente assinou a Lei nº 3.353/1888 (BRASIL, 1888). Conhecida
como Lei Áurea, extinguiu a Escravidão no país. Mesmo depois da Abolição da Escravidão e
Proclamação da República, as opressões persistiram. Nenhuma iniciativa de afirmação,
indenização, assistência ou proteção da população negra foi tomada no período pós-abolição.
Muito pelo contrário, o governo republicano foi responsável pelo Decreto 528/1890
(BRASIL, 1890), que vedava a imigração de africanos no país. Também foi responsável pela
repressão em 1910 a Revolta da Chibata. Um motim de marinheiros que lutava pelo fim dos
castigos físicos na Marinha e tinha forte componente étnico. Os negros e mestiços, apesar de
maioria populacional no período republicano, não exerciam poder político.
Encontravam-se marginalizados politicamente, economicamente e até territorialmente,
sendo o grupo populacional mais afetado pela segregação urbana desde o século XIX. A
população negra se tornou a principal vítima do modelo urbanização adotado em várias
metrópoles brasileiras na virada do século XIX para o XX. Afinal o Brasil passava por um
processo de saída da população do campo, no período pós-abolição, o que ocasionou um
processo de urbanização desordenado, marcado pela segregação territorial, algo que persiste
até os nossos dias.
Até a literatura brasileira já refletiu o ranço escravocrata, tendo tido um período de
forte influência eugenista, a obsessão pelo branqueamento das personagens na busca de uma
estética europeia tinha sido a marca do século XIX e início do século XX. Monteiro Lobato 9
chegou a ser entusiasta do ideal eugenista, fazendo oposição a essa realidade, um autor negro
que expôs as mazelas sociais e de classe no país no início da República foi Lima Barreto10.
Mas só com o Modernismo é que o cenário de influências físicas eurocêntricas se
alteraria. O Movimento Modernista buscou a afirmação de uma estética nacional desde a
Semana de Arte Moderna de 1922. Na obra de Mário de Andrade, Macunaíma de 1928 a
personagem principal representaria essa síntese de influências étnicas e culturais. A busca por
uma estética nacional persistiria entre os modernistas, essa seria consagrada através das outras
gerações dos modernistas. Como por exemplo, através da obra de Jorge Amado que transita
entre a segunda e terceira geração do ciclo modernista, representa a máxima dessa estética
mestiça.
Contemporaneamente a esse momento passa a ganhar força o mito da democracia
racial. Pereira (2012, p. 112) defende que: ―A democracia racial, muito associada ao clássico
9
José Bento Renato Monteiro Lobato foi um escritor pré-moderno, ainda popular entre os brasileiros.
10
Afonso Henriques de Lima Barreto foi um jornalista e escritor pré-moderno, que infelizmente não goza de
muita popularidade entre os brasileiros.
livro de Gilberto Freyre publicado em 1933, Casa-grande & senzala, tornou-se o centro de
construção da própria identidade nacional na primeira metade do século XX.‖.
A ideia da democracia racial representada pela mestiçagem se apresenta como uma
forma de silenciar conflitos, não necessariamente solucioná-los. Uma saída à brasileira, tendo
em vista que historicamente o Brasil é um país que busca soluções ―menos conflituosas‖,
mais explicitamente que se omite para não lidar com questões relacionadas às desigualdades
estruturais. A romantização da questão étnica no Brasil demonstra uma tentativa superficial de
conciliação do povo brasileiro com a própria negritude e principalmente com séculos de
opressão aos negros.
No plano cultural, Jorge Amado tornou-se indiretamente porta-voz da ideia de
democracia racial, se não no plano político ou acadêmico, mas no plano simbólico. Fez da sua
obra uma bandeira desse caldeirão étnico, apesar de não minimizar as tensões raciais e
religiosas, mas romantizou o conceito de democracia racial no país.

(...) é mensurável dizer que Amado estava submerso nos objetos simbólicos e
ideológicos de seu tempo e respondia por eles: é o caso da democracia racial tão
exaltada em Tenda dos Milagres e que encontrava respaldo nas formulações
ideológicas de uma época, como em Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre:
―assim, se Freyre foi um dos ―pais da ideia‖ — ou ao menos aquele que a batizou —
, Jorge Amado foi seu grande artista e divulgador‖. (CHWARCZ, 2009 apud
ESTEVES, 2015, p. 129 aspas do autor).

A democracia racial romantiza as relações étnicas no Brasil, minimizando os conflitos


e subestimando as estratégias de resistência da população negra no país. Sem viabilizar uma
problematização mais profunda do racismo estrutural no país, além de não dialogar com a
questão no plano internacional. Também permite recortes estereotipados das manifestações
culturais e religiosas da população negra.
A comercialização da imagem do Brasil no exterior, construída sobre o mito da
democracia racial e de arquétipos da população negra como: a passista de escola de samba, o
malandro carioca, o capoeirista, o jogador de futebol ou a baiana do acarajé. Reforçam
estereótipos de malícia, malandragem e erotismo do Brasil, especificamente da população
negra, aspectos que não têm conotação positiva no plano sociopolítico e nem para o
Movimento Negro.
Ao longo dos séculos a população negra criou diversas estratégias de luta e resistência
ao racismo e suas nefastas consequências, desde os quilombos aos movimentos negros
contemporâneos. Uma das primeiras bandeiras do Movimentos Negro nas últimas décadas foi
ressignificar o significado de ―ser negro‖, positivando tal conceito e estimulando que as
pessoas assumam sua raça/cor nos censos e pesquisas. Esse movimento de empoderamento e
afirmação teve início ainda em meados da década de 1940. Tendo como a grande tarefa de
denunciar o racismo e o mito da democracia racial.
Nesse sentido o mito da igualdade se associa ao discurso da meritocracia para explicar
as diferenças sociais entre brancos e negros, relativizando as marcas históricas da opressão
sofrida pela população negra. Mas a resistência do Movimento Negro logrou algumas
importantes conquistas: a posse da terra dos antigos quilombos para os remanescentes dessas
comunidades tradicionais, através do artigo 68 (ADCT) da Constituição (BRASIL, 1988),
posteriormente regulamentado pelo Decreto nº 4.887/03 (BRASIL, 2003); a criminalização do
racismo através da Lei 7.716/89 (BRASIL, 1989); a Lei 9.459/97 (BRASIL, 1997) que
estabelece à criminalização da intolerância religiosa; as cotas raciais nas universidades; a
implantação da secretária nacional de políticas raciais, através da Lei nº 10.678/03 (BRASIL,
2003a);11 a Lei nº 12.519/11 (BRASIL, 2011) que instituiu o Dia da Consciência Negra e a
Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003b) que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e
cultura afro-brasileira nas escolas do país.
Depois desse breve percurso sobre a trajetória histórica e jurídica da população negra
no Brasil, iremos nos debruçar sobre as especificidades da Lei 10.639/03 e sua interface com
o racismo e a intolerância racial à brasileira.

2. Lei nº 10.639/03: possibilidade de ressignificação ou medida paliativa?

Para enveredarmos no âmbito da educação, é necessário levar em conta a própria


crise de identidade pela qual a escola passa. Essa mudança atravessa, principalmente, o
aspecto da autoridade baseado nas relações de hierarquia, nas quais a escola sempre se
sustentou. Modelo que na contemporaneidade já não corresponde à realidade da sociedade, e
reflete uma ruptura maior, que engloba outras instituições sociais como a própria família.
A escola que outrora ostentava um lugar de pilar social compartilhado com outras
instituições como família, igreja e o próprio Estado, agora não tem mais lugar tão

11
Mesmo que essa secretaria tenha sido extinta pelo ―governo‖ Temer, o período que a mesma permaneceu
ativa, desempenhou um importante papel de empoderamento político e institucional da população negra
brasileira.
privilegiado. Principalmente, se olharmos a forma como concebíamos a escola, que sofreu
influência direta da família nuclear burguesa ao privilegiar a infância, a educação dos filhos e,
por sua vez, a reclusão da mulher na esfera privada, como defendido por Ariès (2006), esse
paradigma promoveu a ascensão do modelo escolar.
Nesse cenário, devemos levar em consideração que o racismo não nasce na escola,
mas dentro dela assume configurações próprias. O racismo institucional, a invisibilidade da
cultura afro-brasileira, o preconceito linguístico, o bullying racial e o racismo religioso são
configurações do racismo no contexto escolar. Podendo ocorrer entre pares, ou mediante uma
relação hierarquizada institucionalmente. Mas para além das práticas individuais o racismo
pode ser visto como um sistema ideológico que permeia às relações.

Na base do fenômeno da "diáspora africana" tem se desenvolvido ao longo de


séculos um duplo movimento. Um constitui a nós negros como grupo em que a
dimensão de raça extrapola qualquer outra condição. Ou seja, um negro é antes de
tudo um negro, com todas as conotações de subordinação que isto implica, em
qualquer parte do chamado Novo Mundo, e a despeito do variado vocabulário
utilizado para denominar os descendentes de africanos. O outro tem a ver com o fato
de que o racismo antinegro, estabelecido globalmente, nos permite incorporar
experiências que dizem respeito não apenas a nossa realidade mais imediata, mas
também a de outros negros, mesmo que nunca as tenhamos vivenciado diretamente.
Há elementos na nossa identidade negra que são, por assim dizer, globais. E isto
ocorre mesmo considerando que ela é mediada por diferenças nacionais, de gênero e
de classe social. (BAIRROS, 2017, p. 173)

As consequências da Diáspora12 ainda são sentidas por todos os afrodescendentes do


continente americano. As marcas de aproximadamente 350 anos de escravidão no Brasil,
ainda estão vivas na sociedade brasileira, mesmo 129 anos depois da abolição. A população
afrodescendente no Brasil tem aproximadamente três quartos da sua história marcada pela
chaga da escravidão, além de quase um século exaltando uma pseudo-democracia racial.
As consequências dessas marcas são registradas em várias esferas da nossa sociedade,
a educação não está ilesa desse registro. Da Lei complementar à Constituição de 1824,
promulgada em 1854 que decretou a proibição de negros frequentarem a escola até a
implantação da Lei 10.639/03, temos um intervalo de 149 anos. Mesmo aparentando ser um

12
Deslocamento forçado dos africanos de seus territórios motivado pelo tráfico negreiro, explorado pelas
potências europeias no período colonial.
período longo, mas não foi o suficiente para promover equidade na educação de brancos e
negros.
Sobre as especificidades da Lei 10.639/03, Gomes (2008) destaca que mesmo depois
de anos de criação, a mesma ainda sofre com resistências em várias esferas. A autora atribui
ao mito da democracia racial como um dos fatores dessa resistência.
Muitas vezes, o caráter universal e abstrato do discurso em prol de uma democracia
para todos acaba uniformizando e homogeneizando trajetórias, culturas, valores e
povos. Por isso, os movimentos sociais cada vez mais buscam ampliar a noção de
democracia, a fim de que ela insira a diversidade e apresente alternativas para lidar
com as políticas de identidade. (GOMES, 2008, p.70).

Outro desafio na implantação da Lei nº 10.639/03 é o desconhecimento e a


estigmatização da cultura negra. Um dos campos mais afetados por essa questão são as
religiões de matriz africana. Nesse sentido, Caputo (2008) problematiza a realidade de
crianças e adolescentes adeptos do candomblé na comunidade escolar. A autora envereda pela
intolerância religiosa institucionalizada, agravada através do ensino religioso obrigatório e
confessional.
Crianças e jovens de candomblé estão na escola, mas a grande maioria oculta uma
guia do Òrisà que ama, bem escondida embaixo do uniforme. Sob a manga da
camisa podem estar as marcas da iniciação. Algumas chegam a inventar urna doença
para justificar a cabeça raspada para o santo, ou fazem Primeira Comunhão, para não
serem perseguidas. Isso não é sincretismo, é silenciamento.
(CAPUTO, 2008, p. 178-179).

Esse silenciamento perverso afeta crianças e adolescentes adeptos de religiões de


matriz africana. Muitas vezes distanciando os mesmos de sua religião, ou mantendo a mesma
limitada a esfera privada por temor de sanções sociais. O estudo obrigatório da história e
cultura afro-brasileira nas escolas toca na problemática da intolerância religiosa na educação.
Ainda sobre a relação entre a negros, educação e religião, merece um recorte a fala de uma
das maiores Ialorixás13 do Brasil nas últimas décadas, Mãe Beata de Yemonjá14, que faleceu
recentemente.

13
Mãe de santo, sacerdotisa dentro das religiões de matriz africana.
14
Sacerdotisa, escritora e militante dos Direitos Humanos falecida em 27 de maio de 2017.
Eu só tenho o terceiro ano primário. Sempre quis estudar, mas meu pai achava que
mulher não podia aprender a escrever muito para não escrever cartas de amor. Saí da
escola, que na verdade, não era bem uma escola. Naquela época, no interior da
Bahia, as filhas dos coronéis iam para Salvador, faziam um curso por lá e voltavam
professoras. Elas eram a escola. Não tinha mais essas aulas, mas lia nos almanaques
que vinham no Biotônico Fontoura e lia tudo o que podia. Escrever também
escrevia. Com carvão, com pedra de cal, com varinha na areia. Acho que foi assim
que me tornei escritora. Mas isso eu me tornei. Predestinada mesmo estava era para
ser Ialorixá. Esse era meu Odu.
(CAPUTO; PASSOS, 2007, p. 94)

No sentido de ressignificar as relações através da educação, Gomes (2008) destaca o


impacto na subjetividade de brancos e negros através da implantação da Lei nº 10.639/03.
Problematizando as ressonâncias nas configurações de poder e no simbolismo que as questões
étnico-raciais produzem a curto prazo subjetivamente e em longo socialmente.
Ainda é destacado por Gomes (2008), a necessidade do debate sobre as questões
étnicas no plano escolar, como uma estratégia de combate ao racismo e afirmação de uma
sociedade multicultural. Nesse sentido, a mudança na Lei nº 9.394/96 (BRASIL, 1996),
conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN, através da Lei nº
10.639/03 surgiu como ferramenta afirmativa da população negra. Consequentemente se
propõe a problematizar as relações entre brancos e negros na nossa sociedade, sendo mais do
que uma proposta pedagógica, mas uma ação política.
Se mostrado em consonância com as premissas da Constituição (BRASIL, 1988),
que estabelece promover o bem de todos sem distinção pela questão étnica. E reafirma valores
estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) e pela
Declaração de Durban (ONU, 2001) no combate ao racismo e a discriminação racial.
Apesar da instabilidade no campo político, que gera um clima de insegurança na
continuidade de políticas afirmativas no campo de étnico na educação. Podemos concluir que
a Lei nº 10.639/03 representa um avanço, mas só se a sua implantação for efetiva, do
contrário será apenas mais uma medida paliativa de caráter protocolar. Mas para combater o
racismo institucionalizado na educação, não basta a Lei nº10.639/03 ou qualquer outra
legislação similar, a efetivação de políticas afirmativas e identitárias perpassa desde a
formação dos professores até a institucionalização de políticas públicas que coloquem o viés
étnico como protagonista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A problemática em torno da questão étnica racial nos remete a um longo e vasto


processo que engloba não apenas grandes estigmas estruturais brasileiros, mas envolve
diretamente as subjetividades dos sujeitos implicados nesta causa. A conjuntura educacional
contemporânea, extremamente polarizada entre a ótica da tolerância e o neoconservadorismo,
aponta para a necessidade de se repensar as concepções pedagógicas e modelos
homogeneizadores vigentes. Haja vista a diversidade étnica presente nas instituições de
ensino e as novas demandas afirmativas e identitárias dos alunos que constituem o público-
alvo da Escola.
Mudar a escola para atender com qualidade todos os alunos compreende a efetivação
de uma proposta de trabalho que envolva o compromisso das esferas: federal, nos estados, nos
municípios e das instituições privadas, no sentido de transformar os sistemas educacionais em
sistemas educacionais etnicamente afirmativos. A partir de ações específicas para sensibilizar
e qualificar os profissionais da educação, além de prover recursos pedagógicos e tecnológicos
que auxiliem na tarefa de debater a diversidade étnica racial nas escolas.
A Lei nº 10.639/03 ao inserir no currículo da educação básica o debate sobre o viés
étnico mostra-se uma iniciativa importante, seja pelo aspecto político, social ou pedagógico.
Por fim, ainda é necessário problematizar o papel da Psicologia na educação, ainda limitado e
estereotipado, principalmente no debate sobre as questões étnico-raciais.

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CALUNDUNZES, TERREIROS E A RUA:
da colonização à formação dos terreiros de caruaru

Hugo Weslley Oliveira SILVA15

GT 04 – Interseções entre Sociologia, Raça, Religião e Direitos Humanos

RESUMO
Colonizado por portugueses de religião católico-cristã, o Brasil durante séculos reprimiu e
condenou as práticas de religiões africanas sobre o discurso de serem práticas satanistas e/ou
fetichistas, além de classificarem o homem negro como meras ―peças‖ de mercado cujo
objetivo era o trabalho braçal escravo. Pernambuco não fugiu do ciclo de escravidão nacional,
sendo uma das capitanias hereditárias que mais receberam negros traficados da África, seja
para o extrativismo primitivo, seja para o cultivo da terra. Caruaru, assim como outras tantas
cidades brasileiras possui uma dívida histórica com o povo negro, contudo ela traz em seu
próprio nome a carga simbólica da essência religiosa do povo negro escravizado, o ―caruru‖:
Oferenda feito a partir do kalu‘lu e dedicada aos orixás africanos. O presente artigo tem como
objetivo fazer uma tentativa de resgatar à história do povo negro desde sua chegada ao Brasil,
até a formação dos modernos terreiro, esse artigo é um tributo a historia negra de Caruaru.

Palavras-chave: Caruaru. Religião. História. Nordeste. Candomblé.

Introdução.

O presente artigo buscar fazer um resgate progressivo da história e influência da religião


afro-brasileira e do povo negro no Brasil, desde a criação da colônia portuguesa no país até a
formação da cidade Caruaru. Dos calundunzes aos terreiros de candomblé, do Kalu‘lu à
Caruaru. Buscou-se, neste trabalho, elucidar algumas dúvidas com relação a construção social
brasileira, manifestos sociais populares e a violência social. Buscou-se ainda entender o
surgimento e desenvolvimento de Caruaru, cidade situada no interior do Vale do Ipojuca.

1- Período Colônia.
15
Graduando em Comunicação social e jornalismo, pelo centro universitário vale do Ipojuca; Pesquisador de
Iniciação cientifica no projeto ―Dos calundus aos terreiros de candomblé de Caruaru‖.
Hugo.weslley2@gmail.com
Durante séculos o Brasil proibiu manifestações religiosas e culturais do povo negro,
graças a dogmas e práticas de origem católica-cristã que reprimia com severas penas as
praticas não cristãs em solo brasileiro. Com uma colonização de caráter exploratório-
aventureiro o Brasil em seus primórdios coloniais era visto com uma terra de oportunidades e
de recurso naturais ilimitados, porém, para extrair esses recursos e mesmo para o trato com a
terra, o trabalho braçal tornou-se necessário. Começou-se então o uso de mão de obra escrava
e tráfico humano no Brasil.
Tidos como animais sem alma, de cultura fetichista e demoníaca, os povos negros de
países africanos, como Nigéria, Moçambique e Angola, eram traficados para solo brasileiro a
fim de trabalharem na produção e manufatura de cana de açúcar, algodão e criação de gado,
bem como diversas outras atividades extrativistas em meados do século XVII. Isso posto, em
seu livro ―Candomblé e Umbanda, caminhos de devoção brasileira‖, Vagner Gonçalves da
Silva afirma que o processo de escravidão do povo negro não se dava apenas pelo tráfico
humano e o trabalho escravo, mais também pela transculturação do negro que tinha sua
família e estruturação social desfeita, além de ser obrigado a viver com pessoas de culturas
diferentes da sua, aprender novos hábitos, língua e religiosidade (seja ela branca ou negra):
Pessoas com relações de parentescos próprias, vivendo sob uma determinada
organização social, política e religiosa, fossem retiradas desses contextos para
tornar-se mão-de-obra escrava numa terra distante e numa sociedade diferente da sua
(SILVA, 1994, p. 29).

Um importante aspecto para a manutenção do regime escravocrata da época era a


desumanização do indivíduo negro que era visto meramente como peça mercantil a ser
comprada e revendida aos desejos de seu dono e senhor. Seu dia a dia era marcado por
jornadas de trabalhos que começaram antes do sol nascer e acabavam quando lhes era
ordenado, minando assim suas esperanças, forças e desejos de fuga e protesto contra suas
condições vigentes. Segundo Silva (1994) ―os negros amontoados nas senzalas, barracos de
portas e janelas estreitas, sem ventilação ou higiene, dormindo em esteiras ou no chão e
separados de seus parentes ficavam à margem do convívio social‖ (p.29-30). Para o
antropólogo a condição de escravo ia muito além do modelo imposto aceito hoje, era uma
repressão e violência sofrida pelo povo negro que chegava a muitas vezes desfazer-se de sua
cultura e a quase obliteração de seus desejos e ambições próprias.
Ainda enquanto colônia, Brasil se estruturou com base no trabalho escravo de homens
e mulheres negras. O modelo socioeconômico da época só se tornou possível e se manteve
vivo graças aos abusos e violências por eles sofrida ―dessa forma, até fins do século XIX, o
Brasil alimentou com mão-de-obra escrava vários ciclos econômicos pelos quais passou
desde sua descoberta até sua transformação em república‖ (SILVA, 1994, P.18). Porém, o
homem negro ainda trazia consigo sua cultura e seu habitus16 (manifestação social
inconsciente), logo a estruturação social europeia em solo brasileira viria a sofrer mutações.
Como que em um acordo tacito de conformidade entre brancos e negros para a manutenção da
―paz‖ entre eles, mesmo que em uma estruturação de violência e opressão, códigos e
manifestações socioculturais africanas foram inseridas ao contexto social da época.
Contudo é imprescindível pontuar a massiva opressão da cultura européia, mais
especificamente o culto religioso católico/cristão no país. Ao homem negro não só lhes
era usurpando a liberdade, como também suas manifestações culturais e sincréticas eram
reprimidas e punidas. O período colonial brasileiro corresponde ao período em que a ―Santa
Inquisição‖ estava perdendo seu poder e dominação para os novos adeptos das religiões
protestantes no continente europeu. O Brasil, tornou-se então um novo braço forte para as
ordens punitivas e dogmas católicos. Sobre as medidas punitivas da época Silva (1994)
discorre:
O catolicismo, além de religião oficial, foi uma religião obrigatória [...] Para garantir
a conversão e fiscalizar a vida religiosa dos seus fiéis, a Igreja dispunha de várias
formas de controle e opressão aos desviantes da fé cristã. Uma das mais violentas e
arbitrárias foi o tribunal do santo ofício da inquisição [...]. Assim, atitudes
consideradas ―suspeitas‖, como reuniões festas com dança ou músicas, podem ser
vistas como sabás (reunião de bruxas para evocar o Demônio[...]). Contra os
acusados de tais atos, a Igreja promovia um processo que geralmente acabava com o
réu sendo queimado em plena praça pública (p.19-20).

Vale-se chamar atenção para o fato de que não apenas o culto dos povos africanos
estava presente e sendo reprimido na colônia portuguesa, o culto ameríndio também era
proibido e perseguido. Graças a essas perseguições muito da cultura indígena se perdeu sendo

16
Para o sociólogo Frances, Pierre Bordieu, o Habitus é a manifestação inconsciente de todos os elementos que
compõe o individuo e sua sociedade, desde seus códigos éticos e morais até suas ações inconsciente.
sequer mencionada em relatos históricos. Comparando-as com as atuais práticas sincréticas se
é possível apontar que seu foco era o culto a natureza edificada, onde o pajé tinha acesso ao
mundo dos espíritos das florestas através de uma ritualística que envolve músicas e dança (o
Toré e a Jurema). Mas não é possível precisar o quanto desse ritual foi influenciado pela
cultura africana ou europeia.
A fim de manter a ordem social e tornar os negros escravizados adeptos ao sincretismo
cristão, a Coroa portuguesa e a Igreja católica fecharam um acordo onde o negro traficado ao
chegar em solo brasileiro era catequizado, batizado e tinha seu nome alterado para nomes
cristãos (como Maria, José, Sebastião, Madalena, etc). No entanto esse ato não era garantia de
melhores condições de vida, o negro continuava sendo visto como mão de obra e objeto de
uso, sendo-lhes negada qualquer regalia ou mesmo tratamento com ser humano.
Com tudo, dentro de suas propriedades eram os senhores de engenho quem ditavam as
regras que vigeriam dentro das senzalas. Para manter os ânimos calmos dentro de suas
propriedades os donos de escravos por vezes faziam vistas grossas aos rituais que aconteciam
dentro de suas fazendas. Sob a alegação de razões folclóricas, o culto aos santos católicos se
mesclava com a ritualística litúrgica negra de canto e dança. Portanto se fazia justificável o
uso de ―batuques‖ e cânticos em iorubá/português. Essas práticas eram tidas como formas
inofensivas e primitivas dos negros que cultuavam os santos cristãos a sua maneira. Essa
prática tinha também um cunho aristocrático-governamental, pois acreditava-se que ao
permitir que os negros se manifestassem folcloricamente, sua cultura acalmaria as rivalidades
internas dentro do grupo de escravos, ligaria os negros ao seu senhor (visto então como um
―bom senhor‖) e as rebeliões seriam mais difíceis de acontecer.
Deu-se então a união sincrética dos elementos africanos e lusos. Com os negros agora
catequizados e obrigados a frequentar as abadias e templos cristãos (em seus espaços
reservados, sem o contato com o homem branco). O culto sincrético a santos católicos passou
por uma ressignificação e apropriação de símbolos, códigos e signos. Santos católicos como
São Jorge, Santa Bárbara e São Lázaro tomaram-se então representações para os orixás de
ritualística africana, suas representações imagéticas e atribuições míticas foram atreladas aos
orixás Ogum, Oyá e Omolu, respectivamente; ―O que se verificou no universo religioso do
Brasil colonial é que as religiões que compunham romperam seus limites e se traduziram
mutuamente, dando origem às novas formas, mistas, afro-brasileiras‖ (SILVA, 1994, p. 42).
Só então o livre e o reprimido se uniram em uma dicotomia possível de ser realizada
nas senzalas. Ao se utilizarem dos nomes e imagens de santos católicos os negros podiam
cultuar seus orixás, valendo-se sempre da premissa que a dança e os cânticos eram uma forma
cultural de homenagear os santos católicos dentro da construção da cultura e tradição
africana.
Ao produto deste processo de reinvenção da cultura e religiosidade africana dentro das
senzalas foi atribuída a denominação Calundu (termo de origem Banto que significa batuque
ou batucajé). Em sua publicação ―Revisando o Calundu‖, Laura de Mello Souza, defende que
o Calundu (ou os Calundunzes, no plural), eram todas as práticas mágicas-religiosas que
envolviam o homem negro e o sincretismo afro-luso (por vezes afro-luso-ameríndio)
―frequentemente referidas a danças, batuques, ajuntamentos, mas, às vezes, denominando
hábitos e usos que não pertenciam ter qualquer articulação mais coerente, a ponto de
configurarem um rito‖ (SOUZA, 2001, p. 02).
Contudo, com a modernização da sociedade brasileira o modelo de escravidão foi
tornando-se insustentável, o homem negro uma vez liberto lutaria contra as praticas sociais
vigentes e buscaria melhores condições de vida para os seus.

2-Modernização e Reestruturação da sociedade brasileira.

2.1- Reestruturação social.

Com a abolição da escravidão, em 1888 e a proclamação da república em 1889 viu-se


que o povo negro não tinha mais ―utilidade‖ no modelo socioeconômico vigente no Brasil. O
novo sistema político não trouxera nenhum avanço e seguridade para a população negra, não
houveram ganhos, sejam eles simbólicos, representativos ou mesmo materiais. Para Silva
(1994) a abolição nada mais foi que uma pratica mercadológica que apenas favoreciam aos
brancos de interesse capitalista, ―os patrões, não desejando sustentar os trabalhadores
negros dos seus latifúndios, logo se desfizeram de grande parte de seus contingentes de ex-
escravos, preferindo empregar imigrantes‖ (p. 51).
Dentro desse contexto houve uma divisão da população negra. Uma parte buscou
refugio nos Quilombos formados por escravo e ex-escravos que fugiram e construíram um
sistema social próprio e outra parte que se vendo abandonada provocou um inchamento da
população urbana, que sem condições de viver no campo procurava os centros urbanos a fim
de encontrar melhores condições de vida, ou mesmo um meio para sua subsistência.
Surge então uma reorganização social urbana. Dentro de casarões abandonados,
cortiços e barracões em favelas, a massa de ex-escravos se via a margem da sociedade em
uma nova forma de escrivão de homens livres, que em troca de seu trabalho braçal recebia
uma dada quantidade de alimento para sua subsistência. Em seu artigo ―Movimento Negro
Brasileiro: Alguns apontamentos históricos‖, Petrônio Domingues defende que só a partir da
tomada de sua liberdade e consciência o homem negro pode protestar por seus direitos e
representação, dando inicio assim aos primeiros movimentos socais negros brasileiros: ―para
reverter esse quadro de marginalização no alvorecer da República os libertos, ex-escravos e
seus descentes instituíram os movimentos de mobilização racial negra no
Brasil‖ (DOMINGUES, 2006, P.103). Podemos então interpretar esse momento como o
surgimento da consciência do homem negro de seu poder de representação e a sua tomada de
voz, mesmo que tímida, perante sua cultura e ancestralidade.
Com o êxodo das comunidades rurais os Calundunzes, não mais, foram possíveis de
existir. Começou-se então a estruturação das casas de candomblé, hoje conhecidos como
terreiros de candomblé. As casas surgiram dentro das favelas e cortiços onde os negros foram
obrigados a morar. Essa nova estrutura possibilitou então um feito que até então não era
possível, a criação de laços afetivos e intelectuais com membros de várias localidades e a
propagação de ideias entre as casas de candomblé. Criou-se então uma rede de sujeitos livres
que compartilhavam o desejo por igualdade social, tendo como ponto de encontro às casas de
candomblés.
Neste mesmo período surge os primeiros estudos sobre a população negra
representando ela como submissa e primitiva em relação a cultura branca européia. Em seu
ensaio o médico baiano Raimundo Nina Rodrigues define a religião afro-brasileira como um
―animismo fetichista‖. Ele empenhava-se em provas que a religiosidade negra possuía um
aspecto doentio a animalesco de possessão. Segundo Silva (1994) ―Nina rodrigues concluiu,
então, que o Brasil jamais chegaria a ser um país como os da Europa, onde a raça negra não
exerceu influência‖ (p.56).
Desse duelo entre reconhecimento e opressão surgiram o poder dos barracões, ou
terreiros (como passou a ser chamado os centros ecumênicos de religiões afro-brasileras)
instaurando o modelo da ―Família-de-santo‖ criando então um terreno fértil e próspero para a
propagação das ideias do movimento social negro por igualdade:
(...) todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo [aí
compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefesa física e cultural do negro],
fundadas e promovidas por pretos e negros (...). Entidades religiosas [como terreiros
de candomblé, por exemplo], assistenciais [como as confrarias coloniais],
recreativas [como ―clubes de negros‖], artísticas [como os inúmeros grupos de
dança, capoeira, teatro, poesia], culturais [como os diversos ―centros de pesquisa‖] e
políticas [como o Movimento Negro Unificado]; e ações de mobilização política, de
protesto anti-discriminatório, de aquilombamento, de rebeldia armada, de
movimentos artísticos, literários e ‗folclóricos‘ – toda essa complexa dinâmica,
ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui movimento
negro.(DOMINGUES, Apud. Rufino dos Santos, 2006, p.102)

Outro fator que contribuiu para o crescimento dos movimentos negros e a difusão dos
ideais religiosos afro-brasileiros foram à conquista de voz representativa da mulher negra no
espaço sócio cultural. No Brasil, conhecidas como Mãe-de-santo, ou Iyalorixá, elas são
mulheres que comandam os terreiros e barracões de candomblé, sendo elas as responsáveis
pelos seus filhos de santo, templo e todos os demais encargos à religião atribulada. Essas
mulheres são então líderes não só de sua religião, mas de sua comunidade, sua opinião é
respeitada e vista como a voz de liderança e sabedoria. Pode-se dizer que esse
empoderamento feminino fez parte de um traço cultural da mulher negra na cultura africana, e
por tanto acarretou mudanças sociais no modelo cultural brasileiro de enxergar a mulher
negra. Em seu artigo científico ―O candomblé e o poder feminino‖, Teresinha Bernardo
destaca que na cultura Iorubá cabe à mulher o papel da decisão econômica e estrutural em sua
sociedade: ―É importante sublinhar, a mulher não está trabalhando para o seu cônjuge. Ela
compra a colheita do marido, a revende na feira e fica com o lucro. Nessa perspectiva, pode-
se avaliar a autonomia da mulher iorubá‖ (BERNARDO, 2005, P.02).
Dado a maior participação feminina nas decisões políticas e estruturais, durante esse
período de primórdios para a reestruturação social e origem dos protestos e movimentos
sociais negros, a mulher negra brasileira era tida como uma líder comunitária e por vezes
porta vozes do movimento:
Naquela época, as mulheres negras não tinham apenas importância simbólica no
movimento negro. Segundo depoimento do antigo ativista Francisco Lucrécio, elas
―eram mais assíduas na luta em favor do negro, de forma que na Frente [Negra] a
maior parte eram mulheres. Era um contingente muito grande, eram elas que faziam
todo movimento‖. (DOMINGUES, 2006, p.106)

2.2- Perseguição religiosa no Nordeste.

Toda via continuava-se a reprimir socialmente o homem negro e a religião afro-


brasileira. Em seu artigo ―Perseguição aos cultos de origem africana no Brasil: o direito e o
sistema de justiça como agentes da (in)tolerância‖, Hzver de Matos Oliveira afirma que
devido a violência sofrida pelo povo negro e a desigualdade representativa entre brancos e
negra existente na sociedade até o fim do século XX, poucos registros históricos, seja ele
escrito ou não, dessas práticas abusivas do poder público são conhecidas.
Segundo a autora, durante o período conhecido como Estado novo foram criados
marcos e órgãos regulatórios a fim de catalogar e registrar os terreiros e barracões em todo o
país, essa pratica não só servia para reprimir a religiosidade afro-brasileira, como também
para caçar membros dos terreiros, já que afim de ―protegê-los‖ criava-se um registro civil que
poderia ser usado pela policia militar da época, quando preciso fosse: ―Relatos orais dos mais
antigos e registros históricos destacam que os templos afro-religiosos eram obrigados a ter
registos nas Secretarias de Segurança Pública. Como se criminosos fossem‖ (OLIVEIR, p.
04). Ainda em seu artigo a autora afirma que uma das consequências desses registros eram as
frequentes invasões e batidas polícias nos terreiros, a prisão dos membros da religião,
apreensão de objetos ou mesmo a destruição do espaço sacro dos barracões.
Caruaru, cidade a 135KM da capital pernambucana, não esteve longe de tal realidade.
A partir de relatos levantados em nossas entrevistas com integrantes da comunidade de
terreiro local um dos nossos informantes revela que para se manter-se longe da policia
acordos eram formados em parceria com a prefeitura, órgãos policias e a Federação dos cultos
africanos e terreiros de umbanda de Pernambuco. Então eram cobradas taxas dos adeptos a
religião e dos terreiros que por sua vez eram encarregados de manter um ―decoro‖ social, ou
então teriam seus barracões e templos fechados:
―Todo final de mês eu ia fazer cobrança da sociedade, e nós íamos olhar se tinham
respeitado a Federação, para nós irmos multar os terreiros; para falar para eles não
colocar um de menor [menores de 18 anos], pra não ter a causalidade de prender ou de
fechar o salão, porque na na época se fechava o salão se tivesse gente de menor[...]
Essa preocupação era porque não era religião[aos olhos da sociedade], era casa de
macumbeiro e não podia ter crianças ali dentro‖ (Informante X).

Nota-se então que essas práticas punitivas e discriminatórias partiam de classes sociais
de majoritário poder em uma estrutura espiralada de dominação e tomada de voz
representativa. Isso se dá pela construção social brasileira que por séculos privilegiou o
homem branco e desfavorece o homem negro. Esses levantes sociais representam, portanto,
uma retomada da consciência das classes dominadas, o que desperta nas classes dominantes a
vontade de reagir punitivamente.

3- Caruaru.
3.1- Origens do terreiros de religião de matriz africana e afro-brasileira.

Caruaru, assim como toda região nordeste fez parte do intenso ciclo escravocrata.
Durante o período colonial a cidade de caruaru não passava de um complexo de vales e
brejos, dominada por tribos indígenas. Em seu livro ―Caruaru: Nomes e cognomes‖, Nelson
Barbalho alega que foi seguindo os cursos de rios, dentre eles o rio Ipojuca, que se deu a
chegada dos primeiros habitantes luso-extratores as áreas do vale do Ipojuca, como era
chamada a região cortada pelos rios Capibaribe e Ipojuca, para a extração de recursos
naturais. Através desse avanço nas matas e florestas, capitania hereditária adentro, foram
feitos os primeiros escravos brasileiros: os índios.
Quando Duarte Coelho se apossou de sua capitania hereditária, a grande comitiva
que o acompanhou arregaçou as mangas deu combate feroz aos índios que ofereciam
resistência aos invasores, tratou de explorar as riquezas da terra, começando a fazê-
lo com a extração do pau-brasil e, também, com o plantio de cana-de-açúcar em alta
escala e a implantação de seus primeiros engenhos, para isso necessitando de muitos
braços para a lavoura e para o eito. Tratam de prear índio a torto e a direito, a fim de
escravizá-lo e obrigá-lo a trabalhar nos engenhos implantados. (BARBALHO, 1992,
p 30).

Insubmissos, os índios resistiram à escravidão. Sem o hábito do trabalho braçal e


hábeis conhecedores das terras, eles se tornaram uma dor de cabeça aos senhores abastados,
pois produziam pouco e demandavam muito esforço com suas constantes fugas e
capturas. Necessitou-se então uma nova força de trabalho braçal para o cultivo das terras e
extrativismo. Dessa necessidade começou-se então o tráfico e escravização de negro para as
áreas pernambucanas próximo aos rios e ao cais dos recifes:
Teve início a parte mais triste da história de Pernambuco- aquela relativa ao tráfico
negreiro. Apanhados como feras bravias pelo interior africano, os pobres negros
eram trazidos aos magotes nos tumbeiros, e expostos à venda no mercado de Olinda
como peças de utilidade nos engenhos e nas demais propriedades rurais já em
movimentação nas capitanias duartina. Desde os primeiros instantes, o negro,
embora produzisse muito mais que o índio, trabalhava revoltado, instigado pelo
chicote dos feitores predisposto à fuga na primeira oportunidade (BARBALHO,
1992, p 30)

Sabendo das condições sub-humanas e temendo as baixas durante o percurso entra a


África e o Brasil, muitos senhores e aristocratas permitiam que alguns negros mais ―mansos‖
trouxessem algo da áfrica para o Brasil, dentre esses patuás encontrava-se algumas plantas e
sementes que rapidamente se adaptaram ao clima nacional, como a pimenteira, bananeira e o
Kalu‘lu (ou kalulu - erva comestível da família Amarantáceas, popularmente conhecida em
Caruaru como bredo).
Uma vez em fuga das senzalas e de seus senhores, os negros começaram a criar
quilombos (sendo o mais famoso deles o quilombo dos palmares). Barbalho, em sua teoria
sob a fundação das primeiras cidades pernambucanas no interior do estado, afirma que muitos
desses escravos que fugiam passavam pelo rio Ipojuca e que durante sua fuga eles traziam
consigo pequenos animais (como cachorros e galinhas), sementes e mudas, dentre essas
mudas estava o Kalu‘lu. Logo a erva daninha, alastrou-se por todo o estado, principalmente
onde havia maior disseminação do povo negro.
Um fato curioso se é possível notar com relação ao Kalu‘lu. A partir de seu preparo (o
caruru, forma aportuguesada do termo Kalulu) pode-se então fazer as primeiras oferendas aos
orixás iorubás em solo nacional usando elementos da cultura e culinária africana. Tal fato se é
possível notar em dois pontos, o primeiro deles presente no ―dicionário de cultos afro-
brasileiros‖, da autora Olga Gudolle Cicciatora:
CARURU -1- Comida feita de ervas cozidas e batidas- podem ser usadas várias
espécies de amarantáceas, denominadas caruru (v.2)- quiabos também chamados
caruru, camarão, peixe, etc., azeite de dendê e muita pimenta. É comida votiva de
Ibêji. À base só de quiabos é o amalá, comida votiva de Xangô, Obá, Baiâni e Iansã
(com 14 quiabos, no ossé anual). (BARBALHO, apud, Olga Gudolle Cicciatora,
1992, p 30)

Ao adentrar no quesito formação territorial de Caruaru. Apenas em 1657 foi dado a


primeira menção ao território hoje compreendido por Caruaru, na época denominada
―sesmaria de Antônio Curado Vital‖ (sobrinho de Antônio Curado Vital, dono da capitania
que compreendia o ―vale do Ipojuca‖ o qual caruaru hoje se encontra). Mas foi durante o
século XVIII que os primeiros donatários chegaram a fixar-se no agreste, exatamente em
1738, quando partilhando o conhecimento de rotas que ligavam o sertão a Recife chamaram a
sesmaria de ―lugar do Caruru‖.
Logo ―lugar do Caruru‖ foi mudando de nome a medida que a concentração
demográfica crescia. Nomes como ―Sesmaria Caruru; Lugar do Caruru; Sítio Caruru‖ e por
fim ―fazenda do caruru‖, foram usados para referir-se a extensão territorial de Caruaru. Vale-
relembrar que a denominação ―Fazenda do Caruru‖ foi o nome mais famoso e sob os mandos
do Capitão José rodrigues da Cruz, que mandou construir uma capela dedicada a N. S. da
conceição, deu-se início o que hoje vem a ser o centro e marco zero da cidade.
Emancipada em 1849 Caruru tornou-se um dos maiores polos culturais e
econômicos do Nordeste. Sobre a participação da população negra, Barbalho discorre, ―em
face de tudo quanto aqui foi exposto, documentadamente parece-me não existir a menor
dúvida acerca do primitivo nome de Caruaru: CARURU, tomado por empréstimo ao
vocábulo Africano Kalu’lu‖ (BARBALHO, 1992, p 43).

3.2- Caruaru: Primeiras menções ao culto afro-brasileiro


Em seu livro, ―Caruaru, de vila a cidade‖, Nelson Barbalho narra que em 1853, após
um forte tremor de terra toda a população da ―Vila Caruru‖ entra em pânico, e só então um
ritual religioso afro-brasileiro é narrado em solo caruaruense, por Barbalho é descrito:
Após os estrondos e os abalos, toda a população caruaruense, visivelmente
preocupada, passava a comentar o fenômeno sem jamais chegar a uma conclusão
racional. Os pretos escravos, africanos ou seus descentes direto, supersticiosos mais
do que todos, largavam de mão o trabalho e punham-se a cantar preces
estranhíssimas, a dançar a noite inteira, a tocar furiosamente seu instrumental rude
composto de atabaques quadrados e estrepitosos, de pandeiros e berimbaus, de
pífanos primitivos engendrados em tabocas colhidas nos campos do Caruru, tais
lamentações duravam dias e acabavam impressionando, contagiando, influenciando
a população livre do lugar. (BARBALHO, 1980, p.62)

Somente em 1855 é relatado um novo episódio da participação da população negra em


Caruaru. Após fortes chuvas que prejudicaram a lavoura na cidade, começou-se a alastrar a
Cólera-Morbo (vinda do Norte, a cólera provocava diarreia e até mesmo mortes): ―as rezas
apressadas, as promessas de todo tamanho das senhoras dos brancos poderosos, os baticuns
e melopéias afro-brasileiras, dos negros escravos, as cachaçadas dos incrédulos
sedentos[...]- nada surtia efeito‖. (BARBALHO, 1980, p.98). Alertada sobre o surto de
cólera, a Coroa real convoca o médico francês Jean Barthlemy Pegot, para tratar da doença,
em solo caruaruense o médico contava apenas com uma enfermeira voluntária, surge então a
figura de ―Mãe Quinha‖, ―a eficiente ajuda da sempre bem humorada Maria Francisca de
Albuquerque, a quem os escravos locais chamavam de Mãe Quinha‖(BARBALHO, 1980,
p.117). Não se sabe ao certo se ―Mãe Quinha‖ fazia parte de alguma vertente afro-religiosa,
porém relata-se seu carinho pelos escravos, a quem ela socorria sem pedir nada em troca.

Se a cólera já era difícil de se tratar entre a população branca abastada, entre os negros
era quase impossível precisar o número de mortes. Foi quando em 1856, O jornal ―O Paiz”
divulgou um sistema de cura criado por ―Pai Manuel‖ (não há menções a sua alforria). A
―cura da cólera‖ foi amplamente difundida no agreste pernambucano, ela consistia em um
preparo de ervas, raízes e unções, maceradas. Após sua ―cura‖ ser publicada, houve uma
queda no número de mortes, barbalho discorre afirmando: ―violento ou não, o tratamento
aplicado aos negros salvava muita gente e espalhava-se rapidamente pelas senzalas
agrestino-pernambucana‖ (BARBALHO, 1980, p.156). O surto de cólera chegou ao fim em
meados de agosto de 1856.

3.3- Jurema Sagrada, Candomblé, sociedade e o povo de terreiro

Não se é possível precisar quando os terreiros de candomblé, jurema, catimbó e


umbanda se instalaram em solo caruaruense. No entanto através de relatos dos principais
babalorixás da cidade se é possível fazer uma pequena reconstrução histórica do momento em
que eles se instauraram e do processo de reestruturação que eles vêm sofrendo.
Através dos depoimentos dos informantes X e informante Y para nosso projeto,
percebeu-se que em Caruaru as religiões afro-brasileiras se consolidaram a partir dos anos de
1920 e elas (especialmente candomblé) vem sofrendo grandes mudanças em suas
estruturações e representação social. Tais mudanças se fizeram possíveis a partir da tomada de
poder e consciência da população negra, após os anos 1960.
Tal fato pode ser atribuído a reafricanização dos cultos nos candomblés baianos,
quando percebe-se que em todo país houve uma busca pela reafricanização do culto e a
eliminação das influências católica, ameríndias e kardecistas.
Em caruaru esse processo de reafricanização e reestruturação do sincretismo se deu
através do estímulo e crescimento do culto das ―nações‖. Em seu ensaio ―Língua e Nação de
Candomblé‖, Yada Pessoa de Castro, define ―nação‖ principalmente como a língua usada nos
cantos ritualísticos, bem como a linha filosófica assumida pelo terreiro, a postura e códigos
que ele decide representar socialmente. As nações mais comuns no nordeste são Jeje, Nagô,
Queto, Ijexá e Congo ou Angola.
Segundo o informante X, em Caruaru as práticas de nação só começaram a ser
desenvolvidas a partir dos anos 60. De acordo com o X, Caruaru era conhecida por seus
―babalorixás juremeiros‖, sendo eles os principais representantes da cultura afro-brasileira
fora da capital do estado. Pode-se ser compreendido a partir dessa informação que devido a
sua localização geográfica afastada da capital, Caruaru e as cidades circunvizinhas
mantiveram uma maior relação de proximidade com o pantão afro-luso-amerindio, assim
sendo, a jurema seria o principail representante da religiosidade de raízes africanas fora da
capital pernambucana. Só a partir do fim dos anos 1960 se começa a emergir um traço
característicos das cidades do interior do estado em franco crescimento: A busca pela
celebração de uma religião de pureza (ou a ―purificação‖ da religião afro).
Tida como impura a Jurema, manifestação religiosas afro-luso-ameríndia, é a
comunhão material da natureza deificada com a carne humana. Em seu artigo ―Toré e Jurema:
emblemas Indígenas no nordeste do Brasil‖, Rodrigues de A. Grunewald defende que a
Jurema não se limita apenas a bebida, muito embora ela seja a mais famosa, ela é também o
ritual, a planta e a entidade ―das cascas das raízes dessas plantas[as juremas] são elaboradas
beberagens usadas ritualmente por grandes números de sociedade indígenas no Nordeste”
(Grunewald, 2008, P. 01). Segundo o pesquisador, a ritualística da Jurema foi acrescida ao
repertório sociorreligioso nacional no início do século XVII, unindo-se ao sincretismo luso-
africano.
A jurema por tanto possui sua ritualística própria, com ritmos, cânticos e entidades
(denominadas ―caboclos‖), não devendo ser confundida com umbanda ou candomblé. Em seu
livro Silva (1994) relata que a Jurema, como é prática hoje, sofreu a união do sincretismo
católico, afro e ameríndio:
Parece que o catimbó, a pajelança, a cura e outras crenças similares tiveram aí suas
origens. Ao sincretismo inicial entre as práticas indígenas (o uso do maracá, da
jurema e do juro) e o catolicismo devocional aos santos somou-se a crença dos
africanos que, trazendo seus orixás e voduns, aumentaram o panteão já bastante
vasto dos deuses protetores da floresta. (p.91)

Segundo o informante X, a mais de 90 anos se é possível notar a presença da jurema


em Caruaru, sendo ela a responsável pela inserção e disseminação da cultura afro-brasileira na
cidade e região. Ele afirma ter chegado a Caruaru com apenas 10 anos e no terreiro de Pai
Joaquim ter iniciado-se na Jurema Sagrada. O culto da jurema permanece presente no
contexto religioso dos terreiros até hoje. O Babalorixá afirma ainda que é a Jurema Sagrada
quem mantém os terreiros em funcionamento, é ela quem comunga do sagrado e do profano.
Em seu depoimento o informante Y, afirma que em Caruaru os terreiros, mesmo
estando em bairros periféricos eram reprimidos e que isso gerou, dentro da própria
comunidade, a prática da discriminação sociorreligiosa. Segundo o babalorixá a polícia não o
incomodava pois ele era visto com uma figura autoritária que detinha o poder de mando e
desmando em sua comunidade, mas a repressão policial era uma ameaça constante.
Caruaru não fugiu às práticas sociais das grandes cidades e capitais. Com o seu
crescimento urbano a população marginalizada se viu obrigada a migrar para bairros
periféricos e favelas, muito graças a ―Lei provincial‖, que cobrava dez tostões de cada licença
concedida para a construção de casas na vila Caruru. Assim sítios e fazendas como: Fazenda
Salgado, Fazenda Santa Rosa e o Morro Caruru (hoje Monte Bom Jesus, situado dentro do
bairro Centenário) se tornaram os principais refúgios de negros e pobre da época. Por outro
lado, bairros nobres começaram a crescer próximo ao centro da cidade, mas se viram
obrigados a mudar-se devido ao crescimento do centro comercial, como foi o caso da ―rua da
Frente‖, hoje 15 de novembro.
Dentro desses bairros marginalizados deu-se início os primeiros terreiros de Caruaru,
muitos deles com medo da repressão buscavam espaço em áreas isoladas e de difícil acesso,
Esse processo perdurou até o fim da ditadura do estado novo, como é descrito pelo informante
Y:
Faz uns 50 anos que eu to aqui, né? primeiro aluguei uma casa na rua esfirra aqui em
Caruaru. Aí comprei um terreno e fui fazer o barracão [seu terreiro se situa no bairro
Centenário, próximo ao, hoje, Monte Bom Jesus]. Ainda é lá, desde 49, ou 52, foi
minha média ali. Porque eu fui o fundador da rua, não tinha casa ali, só o convento.
Aí fui no riacho de taipa, que num de tijolo foi, que eu não vou mentir [seu barracão
era feito de taipa]. Aqui tinham uns babalorixás, tinha uns senhores de idade, mas
era uma coisa tão sem graça… Iansã sem capela, oxum… Entende? Eu classificava
ele como Jurema.

Para os babalorixás as suas vidas eram divididas em dois pontos:


1- O primeiro deles era o terreiro onde eles foram desde pequenos acolhidos e bem
vindos.
2- O segundo era a rua, onde eles eram humilhados e mal vistos.
O informante Y conta que iniciou-se aos seis anos, quando sua família o expulsou de
casa ao descobrir sobre sua sexualidade e que a Ialorixá Severina Gueregedê o acolhera e o
criara como sendo seu filho consanguíneo. Ele afirma ainda que era difícil sair nas ruas sendo
homossexual e praticante do candomblé/Jurema. Já X afirma não se importar com as
provocações, ele fora membro da associação de terreiros de Caruaru e segundo ele apesar de
sofrer, ele não deixava sua religião:
Aí que a gente tinha que aguentar, nós éramos o que eles estavam falando, a gente
tinha que aguentar calados. Tem nem pra onde correr, a gente tinha que aguentar:
―Isso é macumbeiro‖; ―Isso é dono de terreiro;‖ ―De Xangô‖; ―Esse cara não vale
nada‖[...] Nós não temos a liberdade de fazer o que a gente quer durante certos
horários, né, porque foi proibido e nós tínhamos que obedecer. tínhamos a igreja [o
terreiro] pra funcionar, as ordens (Informante X).

Dessa Maneira podemos concluir que Caruaru, a Terra do Caruru, se vê tentando


resgatar sua dívida história com o povo negro e a religião afro-brasileira. Hoje, após duras
penas e um longo período de militância e resistência, se nota um maior interesse em se
construir um resgate da história e cultura negra e suas nuances.
Essa conquista de representação social é notada em eventos públicos como ―as águas
de oxalá‖, realizadas em frente a Igreja de Santa Luzia, no cume do monte Bom Jesus; na
―fogueira de xangô‖, realizada em junho no centro da cidade durante a festa de São João e na
―caminhada dos terreiros‖, marcha realizada em novembro e percorre as principais ruas centro
de caruaru.
No entanto ainda há muito a ser feito, o preconceito ainda martela e oprime as
religiões e o povo marginalizados obrigando-os a sobreviverem no subúrbio e estarem sempre
lutando por seu espaço social e voz representativa.

Conclusão.

As lutas por representatividade e igualdade entre brancos e negros, presentes desde a


conquista da liberdade pelo povo negro, até a tomada das ruas e a livre manifestação de sua
religião são ainda pequenas conquistas na busca pela igualdade nas esferas socioeconômicas.
Proibida, silenciada, negada e cassada a religião afro-brasileira é um símbolo da luta e
resistência da força ancestral. O culto aos orixás e a Jurema tornaram-se algo que vai muito
além do sincretismo, tornaram-se uma forma de luta e resistência contra a opressão social e os
seus valores. Dos calundunzes às ruas, do branco ao negro, do índio ao mameluco, do
magnata ao suburbano marginalizado, todos nós carregamos essa carga histórica em nossos
corpos, expressões e maneiras de ver e construir a realidade com a qual nos deparamos
diariamente.

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SILVA, Vagner Gonçalves da. 1994. Candomblé e Umbanda, caminhos da devoção


brasileira. São Paulo. Editora ática. 1994
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA: A importância dos direitos humanos na inclusão das
religiões de origem africana no Brasil

Maria Isabel Queiroz dos Santos17

GT 04: INTERSECÇÕES ENTRE SOCIOLOGIA, RAÇA, RELIGIÃO E DIREITOS


HUMANOS.

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a importância dos Direitos Humanos na inclusão
das religiões afro-brasileiras, considerando o racismo por trás da descriminação religiosa . A
metodologia aqui sustentada parte de uma análise de conteúdo, onde foram buscadas
importantes informações sobre o tema em artigos, livros e pesquisa bibliográfica. O estudo a
respeito desse tema alimenta o conhecimento social e instiga a pesquisa acadêmica com o
objetivo de minimizar os impactos sobre as pessoas que aderem a essa prática religiosa, assim
como, influencia a inclusão religiosa na sociedade brasileira. Esse problema decorre de
práticas racistas oriundas do período da escravidão, onde existe a relação
negro/escravo/África, fazendo com que as religiões de matriz africana sejam consideradas
menos dignas de apreciação, e as pessoas que as proferem sejam tachadas como ―anticristos‖
ou nomes que sugiram que a religião não deve ser apreciada. Por isso, será analisada também
a origem dessa intolerância religiosa relacionada ao racismo.

Palavras-chave: Racismo. Religião. Intolerância. Direitos Humanos.

INTRODUÇÃO

As religiões de matrizes africanas sofrem diariamente com a intolerância religiosa no


Brasil. A relação da escravidão com a pele negra faz com que essa parte da cultura seja
excluída. Não é incomum que as religiões afro-brasileiras sofram discriminação pela
quantidade de crentes negros que proferem essa fé. Isso faz com que além da infeliz
segregação a qual está exposta o negro, este sofra com a incapacidade de proferir sua fé e

17
Graduanda do Curso de Direito da UPE – Campus Arcoverde, integrante do grupo de pesquisa ―Grupo de
Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade‖ E-mail:
mariaiqueirozsantos@gmail.com
praticar seus cultos. Por isso, mostra-se necessário que entidades governamentais e não
governamentais atuem em favor desta minoria.
Foi a partir disso, que se resolveu problematizar a importância dos Direitos Humanos na
inclusão das religiões de matrizes africanas no Brasil, tendo como objetivos específicos
analisar a origem da intolerância exercida contra as religiões afro-brasileiras e explicitar a proteção das
instituições dos Direitos Humanos no combate à intolerância religiosa.
O presente artigo parte de uma pesquisa bibliográfica, envolvendo artigos e livros e adere
a uma metodologia fundada em uma pesquisa qualitativa, que visa analisar o conteúdo
coletado, a fim de influenciar de forma positiva na sociedade. Além disso, a pesquisa é
explicativa, pois se pretende explicitar a origem da intolerância religiosa explicando a relação
da escravidão, do negro e da segregação.
O trabalho possui relevância social, pois é de fato, imprescindível para uma sociedade
harmoniosa que as populações vivam em tempos de paz, sendo reprimida qualquer ideia que
induza a segregação racial e a intolerância religiosa. Do ponto de vista acadêmico, a
relevância do presente trabalho se atem ao fato de que a academia é responsável por formar
profissionais que atuem na área de proteção de diversas minorias, entre elas, os negros. Sendo
assim, é necessário que existam pesquisas que instiguem a inclusão social e religiosa de todas
as populações brasileiras, e que permitam a sociedade familiarizar-se com os temas e com os
acontecimentos que de fato, atingem a sociedade.
Primeiramente, será feita uma introdução à escravidão, de forma a relacionar como a vida
do negro foi diminuída e ligada a sua cultura de forma a serem excluídos em conjunto da
sociedade atual, após essa demonstração, será feito em um breve momento, uma análise sobre
o racismo e a intolerância religiosa, depois será demonstrada a proteção dos Direitos
Humanos a partir das entidades protetivas no combate a segregação religiosa no Brasil, e por
fim, relacionando os dois temas, será explicitado a origem dessa intolerância religiosa e as
descobertas feitas a partir do presente artigo.
1. A ESCRAVIDÃO E O NASCIMENTO DAS RELIGIÕES AFRO-
BRASILEIRAS

Desde a colonização do Brasil, até a abolição legal da escravatura em 188818, a escravidão


tomou conta de muitas terras. Todavia, não é estranho encontrar casos de trabalho escravo na
sociedade atual, como se pode perceber na Fazenda Brasil Verde19, em caso julgado
recentemente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. A ligação da raça com a
escravidão nasceu com a grande negociação de escravos negros, principalmente vindos da
Guiné, do Sudão, Congo, Angola e Moçambique, lugares de predominância negra. Essa
relação fez com que muitas pessoas, inclusive na atualidade, acreditassem erroneamente que o
trabalho escravo estava ligado diretamente à raça da pessoa, desconsiderando todos os outros
aspectos20.
Essa relação de escravidão também implantou na sociedade um sentimento de
―desgosto‖ pelas pessoas negras e sua cultura, como se a cor da pele significasse algo, além
do físico do ser humano. Grande parte da população viveu por muitos anos tratando o negro
como um objeto ou como mercadoria, como uma pessoa que não possuía qualquer direito, e
principalmente por ainda existir escravidão, como alegado na sentença que condenou o Brasil
no caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil21:
O Brasil aboliu legalmente a escravidão em 1888. Apesar disso, a pobreza e a
concentração da propriedade das terras foram causas estruturais que provocaram sua
continuação. Durante as décadas de 1960 e 1970, o trabalho escravo aumentou
devido a técnicas mais modernas de trabalho rural, que requeriam um maior número
de trabalhadores. Em 1995, o Estado reconheceu a existência de escravidão. (CIDH.
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil,
2016)

18
Lei Áurea de 13 de maio de 1888
19
A partir de 1988 foram apresentadas uma série de denúncias perante a Polícia Federal e o Conselho de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), sobre a prática de trabalho escravo e o desaparecimento de dois
jovens nessa fazenda.
20
As pessoas poderiam ser escravizadas por dívidas ou por serem desertores, por exemplo.
21
CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, 2016.
Frente a ideia de escravidão, boa parte da cultura negra sofreu descriminação, como
por exemplo, crenças, objetos, armas, danças e adornos, como se afirma no livro Para uma
história do negro no Brasil (1988)22:

Além de trabalho, obediência e respeito às leis e dispositivos disciplinares, os


senhores exigiam dos escravos fidelidade, humildade e aceitação dos valores
brancos. Os negros deviam aprender a língua portuguesa e a religião católica, único
bem moral que recebiam dos brancos. Logo que chegavam ao Brasil, os africanos
eram batizados e recebiam nomes cristãos, sendo em geral perseguida a prática dos
cultos africanos. (Para uma história do negro no Brasil. 1988. P.11)

Como foi visto a religião africana ou qualquer religião que viesse para o Brasil de
origem negra, era desconsiderada sem o mínimo de atenção. Os negros eram batizados contra
a sua vontade e a religião católica era exclusiva no território brasileiro, sendo perseguido
qualquer um que não a aderisse.
No Brasil, o termo ―religião de matriz africana‖ não diz respeito somente às crenças
oriundas da África e de suas proximidades, mas trata principalmente das crenças religiosas
desenvolvidas por negros, no Brasil. Segundo Geraldo da Rocha (2011)23 ―quando se fala de
religiões de matrizes africanas, não está fazendo distinção entre os pertencimentos vinculados
as tradições sejam elas, ketu, jejê, nagô, nação ou angola‖. Ou seja, o termo ―africano‖ está
intimamente ligado à raça do ser humano, pertencente a qualquer lugar, neste caso, o negro
brasileiro.
Essas religiões tem origem na traumática passagem da escravidão pelo Brasil, abafada
pela forçada absorção do catolicismo, onde de uma forma ou de outra os católicos exerciam
sua ―superioridade‖ sobre os escravos, mesmo quando batizados, como se pode perceber,
segundo Alessandra Soares Nascimento (2010)24:

Aos ditos ―batuques‖ dos negros, os padres por vezes preferiam acreditar serem
homenagens aos santos católicos realizados na língua nativa dos africanos e
conforme as danças de sua terra, e os consideravam um ―folclore‖ inofensivo,

22
Para uma história do negro no Brasil. — Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1988
23
ROCHA, Geraldo. A intolerância religiosa e religiões de matriz africanas no Rio de Janeiro. Revista África e
Africanidades – Ano IV- n. 14/15. 2011.
24
NASCIMENTO, Alessandra Amaral Soares. Candomblé e Umbanda: Práticas religiosas da identidade negra
no Brasil. 2010.
julgando ser uma forma de manterem vivas suas tradições africanas e as rivalidades
entre os grupos de escravos provenientes de nações inimigas na África ao mesmo
tempo em que evitaria a organização de rebeliões ao não criarem, as etnias entre si,
laços de solidariedade contra os escravizadores. (SOARES NASCIMENTO. 2010)

Algumas religiões tornaram-se mais conhecidas que outras, fato esse que as tornou
mais vulneráveis frente às atrocidades cometidas pelas pessoas intolerantes a essas crenças.
Entre elas, devem-se observar duas principais religiões afro-brasileiras, quais sejam:
Candomblé e Umbanda.
O candomblé é uma religião monoteísta – cultua o Deus Olorum-, que possui diversos
nomes, variando de região para região, como por exemplo, Xangô no Recife ou Macumba no
Rio de Janeiro. No entanto, o termo utilizado no Rio de Janeiro pode possuir muitas vezes um
sentido pejorativo, de crítica, e por isso, adeptos dessa religião não se interessam pelo termo
ou procuram não utiliza-lo. Nesta religião, destaca-se o culto dos orixás, que segundo
Alessandra Soares Nascimento ―é qualquer objeto, animal ou planta que seja cultuado como
Deus ou equivalente por uma sociedade organizada em torno de um símbolo ou por uma
religião‖.
A Umbanda nasceu no Rio de Janeiro, e é uma religião que uni o catolicismo, o
espiritismo e as religiosidades africanas, indianas e indígenas. Também é uma religião
monoteísta, e o seu Deus é conhecido como Zambi. Essa religião se estrutura com três
fundamentos básicos, que são: fraternidade, caridade e respeito ao próximo. Como conceitua
Alessandra Soares Nascimento25:
A Umbanda é criada num contexto de valorização do ―ser brasileiro‖, patrocinou a
integração no plano mítico de todas as classes sociais, especialmente as excluídas,
apresentando uma nova visão distinta da prevalência dos valores dominantes da
classe média (catolicismo e posteriormente Kardecismo), com maior abertura as
formas populares afro-brasileiras, depurando-as a favor de uma mediação no plano
religioso, que representou a convivência de três raças brasileiras. (SOARES
NASCIMENTO. 2010)

É comum que as pessoas confundam essas duas religiões, exatamente por não
reconhecerem como dignas de atenção, e relacionam-nas ao simples fato de serem afro-
brasileiras. No entanto, existem diferenças básicas entre elas, como por exemplo, as entidades

25
NASCIMENTO, Alessandra Amaral Soares. Candomblé e Umbanda: Práticas religiosas da identidade negra
no Brasil. 2010
cultuadas, os rituais praticados em cada religião, os elementos culturais e objetos, assim como
as forças metafísicas cultuadas. Segundo Alessandra Soares Nascimento:
Como vimos, ao abordamos a religiosidade no Brasil, como parte fundamental de
sua formação cultural, percebemos que uma série de contextos norteou a presença e
manutenção das religiões de matrizes africanos em nosso cotidiano. No entanto esse
desenvolvimento cultural, de visualização, estudo e inserção do africano como
elemento formador da nação brasileira foi por longo período, minimizada ou até
mesmo inviabilizada por práticas preconceituosas e discriminatórias de uma
sociedade que traz consigo ―ranços‖ de um processo escravista de ―coisificação‖
humana. (SOARES NASCIMENTO, 2010)

Deve-se ter em mente a importância da religião afro-brasileira na identidade nacional.


Essas religiões se destacam por serem originalmente brasileiras, e não trazidas de outros
países, como a maioria. Faz-se importante salientar as consequências da criação dessa religião
no espaço brasileiro e a dificuldade, ainda atual, de proferir a fé e cultuar os Orixás, no
terreiro. Por isso, faz-se importante analisar o racismo por trás dessa intolerância religiosa, e a
própria descriminação em si.

2. O RACISMO E A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA


A intolerância religiosa é a prática da descriminação contra grupos que possuem
crenças e ideologias diferentes do ―intolerante‖. Segundo Geraldo da Rocha (2011) ―o termo
intolerância religiosa refere-se a atitudes, que são expressas por gestos e palavras‖. É comum
que haja este tipo de atitude contra qualquer religião, tendo em vista as diferentes culturas que
convivem no planeta terra. No entanto, deve-se salientar que no presente trabalho, irá se
manter na intolerância religiosa praticada contra crenças de matriz africana, já que por trás da
discriminação cultural, está imersa a descriminação racial.
Como foi visto, a imagem do negro é tida até hoje, como de uma pessoa menos
importante do que qualquer outra, como alguém que não merece respeito. Este errôneo
conceito caminha desde as atitudes do negro, até a sua cultura, seus adereções, sua roupa e sua
ideologia. Não se pode entender, de fato, a diferença que algumas pessoas encontram entre o
negro e o branco, por exemplo, no entanto deve-se tentar entender, a fim de que se minimize
ou acabe com este tipo de preconceito racial. Segundo Geraldo da Rocha (2011):
Desde os tempos da colonização da América Latina, a fé professada a partir dos
elementos da africanizado, tem sido concebida pela cultura dominante como uma
prática primitiva, agressiva após ―bons costumes‖ e não raro, associada a coisas do
demônio. (ROCHA, 2011)

Depois de 1988, com a chegada da nova Constituição Federal 26, aqueles que não
seguiam as religiões cristãs sentiram-se assegurados pelo disposto no art. 5º IV: ―É inviolável
a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias‖. Antes
disso, era mais comuns que os terreiros fossem incendiados ou destruídos das mais diversas
formas, e com alegações de que significavam cultos ao ―demônio‖ ou a espíritos malignos.
O terreiro constitui um espaço importante na realização desses cultos, pois caracteriza
―a casa‖ onde os fiéis sentem-se acolhidos para proferir sua fé. São nos terreiros que os cultos
acontecem, e que as divindades, são cultuadas. Atualmente, muitas pessoas mantém distância
dos terreiros devido ao estigma a que está inserido desde antigamente. Como afirma Geraldo
da Rocha (2011) ―a intolerância é generalizada, estendida a todos que professam a religião
dos Orixás, cujo rótulo ou estigma passou a ser naturalizado nas relações sociais como os
macumbeiros‖.
A intolerância vivida pelos fieis dessas religiões aumentou com a chegada do
neopentecostalismo27, que tenta eliminar a presença do ―demônio‖ no mundo. Em uma
sociedade onde são discriminados deuses como exu e pomba-gira o adepto ao
neopentecostalismo cresceu de forma significativa, unindo preconceitos na intenção de
destruir ou descriminar as religiões afro-brasileiras. Como afirma Vagner Gonçalves da Silva:
O neopentecostalismo, em consequência da crença de que é preciso eliminar a
presença e a ação do demônio no mundo, tem como característica classificar as
outras denominações religiosas como pouco engajadas nessa batalha, ou até mesmo
como espaços privilegiados da ação dos demônios, os quais se "disfarçariam" em
divindades cultuadas nesses sistemas. (SILVA, 2007)

26
BRASIL. Constituição (1988) Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.
27
É uma vertente do evangelicalismo, conglomerando igrejas do movimento de Renovação Cristã. Fora do
Brasil, essas igrejas são chamadas também de carismáticas, aqui esse termo é reservado a um movimento da
Igreja Católica. Essa vertente toma como base ideias do Pentecostalismo e Carismatismo americanos.
Portanto, deve-se salientar que na grande maioria das vezes, a descriminação sofrida
pelo Candomblé e pela Umbanda são vindas de outras religiões ou de pessoas que aderem a
outras religiões, dificilmente sofrem intolerância de ateus ou agnósticos.
A religião como sendo uma parte da cultura quase inseparável do ser humano, nasce
de acordo com a criação e aprendizado das crianças, na maioria das vezes influenciada pelos
pais ou professores. Com base nisso, foi criada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 28,
incluindo o ensino religioso29 na sala de aula das escolas públicas. No entanto, embora o
Brasil seja um estado laico e tenha a muitos anos deixado de lado a ideia de religião oficial, o
que se pode perceber é que há nas escolas um ensino da religião católica.
É incomum que haja nas entidades públicas um ensino religioso voltado para as mais
diversas crenças religiosas. Na sala de aula são ensinadas preces e orações voltadas para o
cristianismo, e mesmo assim, quase nunca é ensinada alguma religião de cunho evangélico.
Esse ensinamento limita-se a religião católica. Segundo Iradj Roberto Eghrari30:

Se o Estado permite que apenas algumas tradições participem dos processos de


educação religiosa nas escolas, está claro que uma relação de, no mínimo, maior
aceitação daquelas em detrimento de outras confissões, foi estabelecida. Qualquer
indivíduo que se identifique com uma religião ou crença que fique suprimida por
práticas como esta poderá alegar, com razão e embasamento legal, tratamento
discriminatório por parte das instituições do Estado. (Eghrari, 2005)

Portanto, o que se pode perceber é que embora o Estado seja laico, algumas religiões
são excluídas do meio social, seja pela população, seja pelas autoridades que não fiscalizam
esses ensinos em sala de aula. A falta de conhecimento das crianças a respeito de crenças
minoritárias faz com que outras crianças que aderem a essas religiões sejam excluídas ou
banalizadas no ambiente escolar, podendo ocorrer ataques ou xingamentos, que muitas vezes
incentivam as crianças descriminadas a não voltarem ao ambiente escolar.

28
Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
29
“O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade
cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.‖ (Art 33. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996.)
30
EGHRARI, Iradj Roberto. Educação, Religião e Direitos Humanos: um espaço de Discussão. IV congresso
nacional de ensino religioso. 2015
2.1 Ataques ao Candomblé e a Umbanda
Como foi visto, a intolerância religiosa atinge os adeptos das religiões de matriz
africana de forma mais agressiva, por afirmarem que seus cultos incluem o demônio e que
suas divindades são espíritos malignos. Neste momento, irá se analisar até que ponto é capaz
de chegar à intolerância religiosa, atingindo fisicamente os fieis e seus locais sagrados, a
partir de casos reais.
A matéria intitulada ―Após sair de culto de Candomblé, menina de 11 anos leva
pedrada no Rio31‖ da Folha de São Paulo, relata a história da intolerância religiosa vivida por
um grupo de amigos que caminhavam para casa após um culto de Candomblé, no bairro de
Irajá, no Rio de Janeiro.
Um dos meninos que fazia parte do grupo, na época com 15 anos, descreveu o fato
como sendo traumatizante, e afirmou que dois homens se aproximaram portando a Bíblia e os
insultaram das mais diversas coisas, entre elas, ―grupo do diabo‖. Os agressores ainda
gritaram ―Jesus está voltando‖ como forma de diminuir a religião do grupo. Após os
xingamentos, um deles lançou uma pedra em direção ao grupo, que ricocheteou e atingiu uma
menina de 11 anos na cabeça, causando ferimentos leves. O caso foi registrado como lesão
corporal e classificado pelo artigo 20 da Lei 7.716 que versa sobre os crimes resultantes de
preconceito de raça ou de cor. Casos como esse, demonstram a real situação, crítica, em que
se encontra a intolerância religiosa no Brasil, chegando a agredir fisicamente os fieis,
inclusive crianças.
Outro caso que ganhou repercussão nacional aconteceu no nordeste, mais
precisamente na cidade de Maceió, em Alagoas. Após o carnaval do ano de 1912 uma noite
ficou conhecida como ―Quebra do Xangô32‖ onde uma massa de populares invadiu, queimou
e depredou os principais terreiros de Xangô na cidade, espancando líderes religiosos e pais de
santo dos cultos afro-brasileiros.

31
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/06/1642819-apos-sair-de-culto-de-
candomble-menina-de-11-anos-leva-pedrada-no-rio.shtml. Acesso em: 28/08/2017
32
https://extra.globo.com/noticias/religiao-e-fe/comissao-de-combate-a-intolerancia-religiosa/quebra-de-
xango-100-anos-de-intolerancia-no-brasil-3807384.html Acesso em: 28/08/2017
A mídia noticiou o fato com palavras de cunho pejorativo, sem de fato, noticiar o real
perigo a que se encontravam os religiosos das mais diversas crenças. Utilizaram termos como
―bruxaria‖ e ―casas de feitiçaria barata‖ para descrever os cultos e os terreiros dessas
religiões.
Portanto, com tudo o que foi visto, desde a escravidão até a atualidade, das religiões
que nasceram no Brasil e se relacionaram involuntariamente com as raças dos fieis, pode-se
perceber que a intolerância está imersa num estágio de perigo, onde esses crentes não estão
protegidos e entidades necessitam de um olhar mais protetor sobre essa causa. Por isso, a
partir deste momento, irá se analisar, no presente trabalho, a participação da Constituição e
dos Direitos Humanos na inclusão das religiões brasileiras na sociedade.

2.2 Garantia Constitucional à liberdade de crença

Durante muitos anos, o império brasileiro limitou a crença religiosa quando entendia
como verdadeira apenas a religião católica. Durante anos perseguiu todos aqueles que não a
seguisse. Até então a Igreja Católica era a única aceita no Estado, e a religião oficial
brasileira. Anos depois, com a proclamação da república, o Estado tornou-se laico, apesar de a
religião oficial ainda ser a católica. Atualmente o povo brasileiro tem liberdade para participar
das reuniões religiosas que preferir, e aderir a qualquer crença, assim como não professar
nenhuma fé. Esse direito está garantido na Constituição Federal de 198833.
A liberdade de crença está relacionada diretamente a dignidade da pessoa humana,
quando aquela religião condiz com a ideologia e a realidade vivida por cada pessoa. Podem-se
perceber como nos casos das transfusões sanguíneas em Testemunhas de Jeová, quando,
baseados na dignidade da pessoa humana, os fieis recusam a transfusão sanguínea, mesmo
com risco de morte, afirmando suas bases religiosas. Em casos como esse percebe-se como é
importante para os fieis que sua religião seja seguida, e que os ensinamentos sejam reais.
Atualmente várias discussões surgem em torno da laicidade do Brasil. Símbolos
religiosos expostos em locais públicos, em fóruns, academias públicas e órgãos
33
“É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias‖ (Art. 5º, IV, CF/88)
governamentais. O que de fato acontece é que a religião católica é privilegiada. Pergunta-se,
por exemplo: Se em lugar de uma cruz (símbolo da igreja católica) fosse colocada em um
fórum uma imagem de Iemanjá, a sociedade manteria a pacificidade? A resposta é não, a
maioria católica do Estado limita o uso de símbolos e crenças de outras religiões.
A intenção com o comentário foi exemplificar o real situação de exclusão a que se
encontram as religiões minoritárias, inclusive as afro-brasileiras. Deve-se observar que com a
Constituição Federal de 1988 houve, de fato, uma melhoria na prática dos cultos, já que o
próprio governo não irá destruir ou proibir a construção de um terreiro, ou a divulgação das
preces e orações de outras religiões.

3. A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A INCLUSÃO DA RELIGIÃO


AFRO-BRASILEIRA
A religião está presente em todo o planeta, de diversas formas, algumas vezes com
pequenas variações de nomes e outras vezes com nenhuma semelhança com as demais. É
imprescindível que as civilizações compreendam a importância da religião para cada povo, de
forma a respeitar e evitar guerras religiosas, para o bom convívio da humanidade. No entanto,
quando não há consenso entre povos de religiões distintas, entidades precisam agir para
solucionar os conflitos e evitar o início de uma guerra.
A respeito disso, tem-se atualmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
que foi o primeiro documento internacional a incluir a liberdade religiosa, como pode-se
perceber, em seu artigo XVII:
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião;
este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a
liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em
público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. (Art. 18.
Declaração Universal dos Direitos Humanos).

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos34 versa em seu art. 12 sobre a


liberdade de consciência e de religião, como se pode observar:

34
Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de
novembro de 1969.
Art. 12
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica
a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de
crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças,
individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.
2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de
conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita
unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a
segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais
pessoas.
4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos
recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.

Pode-se perceber a preocupação em esclarecer a liberdade de crença de forma


internacional, tendo em vista todas as atrocidades já sofridas por diversas pessoas devido a
crenças e a devastação feita em tantos lugares do mundo. Após essa declaração, outros
documentos surgiram no intuito de incluir a liberdade de crença, como parte da dignidade da
pessoa humana.
Com essa preocupação criou-se o ―Disque 100‖, o dique Direitos Humanos. Nessa
plataforma recebem-se denúncias a cerca da descriminação religiosa, desde 2011. As denúncias
podem ser feitas de forma anônima, e após serem processadas pela equipe da secretaria são
encaminhadas aos órgãos de investigação, como a polícia e o Ministério Público. Em 21 de
janeiro de 2016 foram divulgados, em cerimônia na Secretaria de Direitos Humanos, números35
que comprovaram o crescimento exacerbado das denúncias sobre intolerância religiosa no
Brasil.
Em 2011, foram recebidas 15 denúncias, já em 2012 o número cresceu para 109 e em
2013 para 231 casos de denúncia sobre intolerância religiosa. Em 2015 252 casos foram
denunciados, demonstrando um aumento de 69% no percentual colhido no ano de 2014, onde
existiu uma queda em relação a 2013, com o número de denúncias sendo 149.
No Rio de Janeiro, uma plataforma também foi criada para receber denúncias sobre
intolerância religiosa e buscar meios de minimizar esses acontecimentos. No Estado do Rio, o
Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), criado em 2012,
registrou 1.014 casos entre julho de 2012 e agosto de 2015, sendo 71% contra adeptos de

35
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2016/01/21/n-de-denuncias-de-
intolerancia-religiosa-no-disque-100-e-maior-desde-2011.htm Acesso em: 28/08/2017
religiões de matrizes africanas. Ou seja, a grande maioria dos descriminados, são os fieis de
religiões afro-brasileiras.
Portanto, quando os problemas não são solucionados na própria sociedade, faz-se
necessário a participação de entidades governamentais e não governamentais. Os direitos
humanos agem de forma a resolver litígios e demonstrar os direitos das minorias, muitas
vezes escondidos.
Em relação à intolerância religiosa, os Direitos Humanos atuam de forma a minimizar
este tipo de acontecimento, conscientizando as pessoas, e aceitando as denúncias através de
suas plataformas para que as autoridades competentes punam na medida do possível os
culpados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo o que foi visto, pode-se perceber que a intolerância religiosa está diretamente
ligada descriminação racial. As pessoas que excluem esses fieis da sociedade demonstram
mais relação com o passado escravocrata do negro do que com o significado da sua crença
(nota-se que nem todos os que aderem ao Candomblé e a Umbanda são negros).
Pôde-se perceber durante o estudo, a preocupação em unir todas as sociedades a fim
de que vivam em harmonia. A diversidade cultural presente atualmente é incontável, por isso
pode-se imaginar que existam povos e culturas nunca antes vistos. Uma das soluções para a
minimização do problema da intolerância, e a ideal, seria que as pessoas se reconhecessem
como comunidade humana, evoluindo de forma igualitária e dependente uns dos outros,
desconsiderando assim, a ideia de uma só cultura ou uma só religião.
A origem da descriminação religiosa é a escravidão. É preciso um engajamento maior
para que as pessoas entendam o nível de igualdade ao qual se encontram as culturas no
mundo, para que se conscientizem da igualdade do Candomblé, da Umbanda, do Catolicismo,
do Islamismo, etc.
De forma geral, com essa problematização pode-se perceber que o Brasil necessita de
um avanço intelectual no debate sobre a intolerância religiosa e sobre igualdade. É uma
questão preocupante e que deve ser discutida abertamente na sociedade em geral, seja nas
casas, nas escolas, no Congresso ou nos Tribunais.
A proteção dos Direitos Humanos no processo de aceitação cultural é imprescindível.
Essa organização atua de forma internacional unindo comunidades em conflito e afirmando a
igualdade de raça, de gênero, de crença. Portanto, age diretamente no Brasil através de
programas que auxiliam na conscientização da sociedade em relação aos direitos das pessoas
e na aceitação pessoal daqueles que são descriminados.
Este trabalho buscou, de forma concentrada, apresentar o tema da intolerância
religiosa e demonstrar a origem escravocrata dessa descriminação, assim como analisar a
participação dos Direitos Humanos na busca da igualdade, como foi visto. Deve-se salientar
que importante seriam novas pesquisas na área, de forma a incluir o tema como problema no
meio acadêmico, onde são formados profissionais para atuarem nas áreas de minorias,
protegendo os direitos que eles desconhecem e buscando uma sociedade mais justa.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Felipe. Nº de denúncias de intolerância religiosa no Disque 100 é maior desde


2011. Eletrônico. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2016/01/21/n-de-denuncias-de-intolerancia-religiosa-no-disque-100-e-maior-
desde-2011.htm Acesso em: 28/08/2017.
ARAGÃO, Gilbraz. Da intolerância religiosa ao diálogo trans-religioso. Revista do
Programa de Pós Graduação em ciências das religiões da UFPB. V. 12, n. 1 (2015).
BRASIL. Constituição (1988) Constituição Federal da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF, 1988.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da


educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 134, n.
248, 20 dez. 1996. Seção I, p. 27834-27841.
CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil,
2016.

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escolar no Amapá: um diálogo necessário. Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015,
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EGHRARI, Iradj Roberto. Educação, Religião e Direitos Humanos: um espaço de
Discussão. IV congresso nacional de ensino religioso – CONERE. 2015.

MENDES, Claudinei M. A questão da colonização do Brasil: historiografia e


Documentos. Imagens da educação, v. 2, n. 2, p. 1-13, 2012.

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da identidade negra no Brasil. RBSE, 9 (27): 923 a 944. ISSN 1676-8965, dezembro de
2010. Em: http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html Acesso em: 28/07/2017

OLIVEIRA, Felipe. Após sair de culto de candomblé, menina de 11 anos leva pedrada no
Rio. Eletrônico. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/06/1642819-apos-sair-de-culto-de
candomble-menina-de-11-anos-leva-pedrada-no-rio.shtml. Acesso em: 28/08/201.

Para uma história do negro no Brasil. — Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1988. 64 p.;
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ROCHA, Geraldo. A intolerância religiosa e religiões de matriz africanas no Rio de


Janeiro. Revista África e Africanidades – Ano IV- n. 14/15. 2011.

RODRIGUES, Rosiane. Quebra de Xangô: 100 anos de intolerância no Brasil. Eletrônico. 2012.
Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/religiao-e-fe/comissao-de-combate-a-
intolerancia-religiosa/quebra-de-xango-100-anos-de-intolerancia-no-brasil-
3807384.html Acesso em: 28/08/2017.
SEGURANÇA PÚBLICA: o papel dos municípios na prevenção e combate a
violência e a criminalidade

Acácia Severina de Lima Diniz1

GT 05 – Criminalidade, Violência, Estado Penal e Direitos Humanos

RESUMO

O presente artigo trata principalmente sobre como os municípios podem intervir na


seara da segurança pública. Destacando o caso do município de Caruaru-PE, que através
da prefeitura municipal, inaugura em 2017 a Secretaria de Ordem Pública e através
desta secretaria cria instrumentos inovadores que tratam da prevenção à violência na
zona urbana e na zona rural da cidade. À luz de estudos, pesquisas e vivenciando a
prática desta secretaria nas execuções de seus objetivos, vemos que as propostas desta
secretaria podem servir de aporte para os órgãos públicos de segurança competentes
analisarem e compreenderem a dinâmica da violência no município. Além, da
participação coletiva da comunidade poder aproximar as relações entre poder público e
cidadãos, podendo vir a trazer respostas mais céleres às inquietações das comunidades e
resgatar a cidadania e o prestígio social das polícias e do poder público municipal,
resgatando a sensação de segurança e a melhor aplicação dos esforços públicos na
investigação, prevenção e repressão da violência.

Palavras-chave: segurança pública. Prevenção. Poder público municipal. Ordem


pública.

INTRODUÇÃO

Vivemos há tempos no Brasil, vendo alguns interessados sobre o assunto da


segurança pública discutir acerca do crescente número da violência no Estado brasileiro
e o quanto temos fracassado no combate, prevenção e repressão da criminalidade,
conforme pesquisas mais recentes, como o que foi publicado no Atlas da Violência
20172. Neste trabalho, propomos nos debruçar especificamente sobre o papel dos

1
Pós-graduanda em Ciências Criminais pela Faculdade ASCES-UNITA, Advogada e Pedagoga, e-mail:
acaciadinizadv@gmail.com
2
Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017>
municípios na segurança pública, pois é comumente observar desde a Constituição
Federal de 1988, que em seu art. 144, destaca o papel dos estados e da união que,
através de seus órgãos de segurança devem, garantir a segurança de todos os cidadãos.
Logo, lendo o mencionado texto constitucional, temos a impressão de que a segurança
pública é assunto para a polícia, sob o manto dos estados e da união, apenas. Entretanto,
o município possui um importante papel na prevenção da violência. Caso inovador de se
destacar, por exemplo, é o município de Caruaru-PE, que através da prefeitura
municipal, protagoniza em 2017 a Secretaria de Ordem Pública e através desta
secretaria, cria-se o Plano Municipal de Segurança Pública - PMJPS, o Comitê
Permanente Municipal Juntos Pela Segurança - CPMJPS e os Conselhos de Segurança
Cidadã dos bairros e da zona rural – CONSEC, todos estes instrumentos serão
apresentados neste trabalho. Como metodologia de pesquisa, faremos uso da pesquisa
descritiva que: está interessada em descobrir e observar fenômenos, procurando
descrevê-los, classificá-los e interpretá-los.”3

1. SEGURANÇA PÚBLICA

Segurança pública é um assunto no qual, todos parecem conhecer sobre o tema,


embora seja de difícil definição. Pois, conceituá-lo significa ir à busca de várias
correntes e por dificuldades analíticas para a sua compreensão, temos a ideia de que
segurança pública está muito mais relacionado à polícia e à justiça criminal do que ao
seu próprio conjunto organizacional. Há uma carga valorativa e subjetiva sobre a
sensação de segurança pública e sua definição, há sentimentos, ideias e que se
modificam de acordo com o lugar, tempo e ocasião. Portanto, comungamos da ideia de
que segurança pública:
Trata-se menos de um conceito teórico e mais de um campo empírico e
organizacional que estrutura instituições e relações sociais em torno da forma
como o Estado administra ordem e conflitos sociais. Um campo
organizacional corresponde a um grupo de organizações que, no agregado
constituem uma área reconhecida da vida social, política ou econômica. (...)

3
OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. 7 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
A segurança pública constitui, assim, um campo formado por diversas
organizações que atuam direta ou indiretamente na busca de soluções para
problemas relacionados à manutenção da ordem pública, controle da
criminalidade e prevenção de violências. Portanto, não se confunde com o
sistema de justiça criminal e nem se resume às organizações policiais. Por
mais que essas tenham papel central no debate público acerca da área.4

Desta forma, vemos que a segurança pública envolve a atuação de várias


instituições sociais, mas que teoricamente o seu conceito ainda não foi definido no
Brasil, pelas constituições federais que tivemos e tampouco na atual, que se limitou a
definir os papeis de cada instituição pública, sua esfera de atual, conforme reza o art.
144 da Constituição Federal.
Acreditamos ser importante termos uma definição do que significa segurança
pública, como os sistemas organizacionais desta área devem funcionar, ainda que
estejamos com o sistema bipartido (e tão criticado) de funcionamento das polícias, Civil
e Militar. Pois, a nível macro, compreendemos que um dos principais desafios da
segurança pública no país tem sido viabilizar uma mudança em determinadas práticas
policiais, vistas como arbitrárias, violentas e ilegais, melhorar a transparência das
estatísticas sobre a violência, dando um real panorama da evolução e involução dos
crimes, vítimas, local, autores e circunstâncias mais recorrentes, aproximação das
comunidades com os órgãos de segurança, fortalecendo a credibilidade das polícias e
melhoramento do sistema de justiça criminal.
Segundo dados do IPEA5, pelo Altas da violência 2017, nos países
desenvolvidos, o número de morte violenta com causa indeterminada, representa um
resíduo inferior a 1%, o que significa dizer que nestes países se investe na apuração dos
motivos destes óbitos para se buscar reduzir o número de vítimas. Já no Brasil, em
2009, esse indicador alcançou 9,6% de mortes violentas que não foram esclarecidas,
além de alguns estados brasileiros, como Pernambuco, que em 2015 alcançou um
patamar bastante elevado de mortes violentas não esclarecidas, de 10,3%.

4
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; LIMA, Renato Sérgio de; RATTON José Luiz. Crime, polícia e
justiça no Brasil. 1. ed., 1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2014.
5
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
A partir destes dados, concluímos que o Brasil pouco investe ainda no sistema de justiça
criminal, deixando diversos crimes sem a devida investigação para apurar autores e a
motivação dos crimes, com isto, vários criminosos não são investigados, não respondem
a um processo judicial e tampouco cumprem pena pelo crime que cometeram, visto que
devido à ineficiência dos instrumentos de investigação das polícias, bem como o pouco
número de promotores de justiça e de defensores públicos, além do número ínfimo de
juízes para julgar os processos, todo o sistema de justiça criminal se encontra deficiente,
moroso e muito aquém de sua capacidade, fazendo com que a impunidade alcance
índices preocupantes.
Foi a partir de 2000, com a criação do Sistema Nacional de Segurança Pública –
SENASP, que as políticas de segurança pública no Brasil começaram a ganhar espaço,
trazendo para os órgãos públicos, principalmente para os municípios que se inseriram
no cenário nacional também como responsáveis pela segurança. A partir destas
mudanças houve a implantação de políticas preventivas e de combate à criminalidade, a
ressignificação de programas e a criação de outros, além de projetos de cunho
preventivo e de combate, também a nível estadual, como foram o caso do programa
Pacto pela Vida, desenvolvido em Pernambuco a partir de 2007.
O Programa Pacto pela Vida logrou bastante êxito entre os anos de 2007 a 2013,
com uma queda de 36% na taxa de homicídios em Pernambuco. Este programa possui
metas que pretendem trazer benefícios a curto, médio e a longo prazo. Trata-se de
medidas que buscam, através da parceria com a união e os municípios, diminuir o
crescimento da taxa de homicídios, bem como diminuir os índices de demais práticas
delituosas que geram a sensação de insegurança na população. Por ser uma ação
integrada, os municípios devem colaborar, contudo, no limite de sua competência.

1.2 O expansão urbana de forma desordenada: crescimento e caos

Os índices preocupantes do aumento da criminalidade tem sido o foco de


preocupação de vários municípios em Pernambuco, em especial ao município de
Caruaru-PE. Cidade de destaque no interior do Agreste pernambucano, a cidade é um
dos polos de confecção mais rentáveis em Pernambuco, junto com as cidades de Santa
Cruz do Capibaribe e Toritama, as três cidades são famosas pelas feiras semanais que
realizam e atraem um público expressivo que vem à estas cidades fazer as suas compras.
Ademais, no que concerne ao município de Caruaru, além do público flutuante que a
cidade recebe por causa da feira da Sulanca, há o público de estudantes oriundos de
outras cidades do interior que vêm a Caruaru para estudar, pois a cidade também possui,
dentre Faculdades particulares uma rede de ensino pública que desperta o interesse dos
que querem lograr uma carreira através da universidade, ter que vir morar em Caruaru.
A cidade dispõe de um Instituto Federal, uma Universidade Federal e uma Universidade
Estadual. Caruaru fica localizada a 135km da Capital Pernambucana, com
aproximadamente 351.686 habitantes, com uma área de 4.437 km², com 41 (quarenta e
um) bairros e possui duas rodovias federais que perpassam pela cidade, BR -104 e a BR
232.
Nos últimos anos, a cidade de expandiu consideravelmente, a mudança se deu por
diversos fatores, maior empregabilidade, atividade comercial da cidade, expansão do
ensino superior e técnico, além de uma dimensão geográfica que lhe permite avançar
bastante, principalmente na zona rural.
Contudo, é notável que entre o crescimento e o desenvolvimento, ambas não estão
presentes na cidade em todos os espaços. O crescimento se faz de forma mais rápida, já
o desenvolvimento requer políticas públicas, investimento em educação, cumprimento
da legalidade quando ao uso e a exploração do solo e a conscientização dos moradores
de que os espaços públicos e áreas verdes devem ser respeitados e a sua finalidade está
destinada ao interesse e necessidade do coletivo. Cenário comum nas cidades
brasileiras, principalmente onde não se há o controle efetivo das ocupações urbanísticas
o que acaba gerando lugares sem a menor condição de uma moradia decente, com
péssima infraestrutura, o que deixa essas comunidades com o aspecto de abandono,
ficando a mercê de precárias condições de moradia e o que gera o desencadeamento de
atividades criminosas no local. Colaborando o nosso pensamento, leciona o professor
Luiz Eduardo Soares:
Em segurança pública, as consequências tornam-se causas no movimento
subsequente do processo social: determinadas condições favorecem a prática
de crimes; os crimes expulsam empresas, o que aumenta o desemprego,
ampliando as condições para o crescimento de certas formas de criminalidade
etc. E o ciclo dá mais uma volta em torno do mesmo eixo. O contrário também
é verdadeiro: reduzindo-se a criminalidade e a intensidade da violência
aplicada, fixam-se as empresas, outras são atraídas, aumenta a oferta de
emprego, as condições sanitárias e urbanísticas evoluem, e assim
sucessivamente, na direção do estabelecimento de um círculo virtuoso. 6

Nestes termos, se o município não tomar medidas que visam recuperar o


domínio sobre o solo, ou seja, recuperar as áreas tanto verdes quanto as públicas que são
invadidas, não enfrentar que o crescimento urbano de forma desordenada gera
consequências danosas e que com o passar do tempo passam a condições de moradia tão
solidificada que já não cabe mais a retirada dos moradores e sim a revitalização das
áreas invadidas, tendo que o poder público com isso, perder as áreas públicas que
possuía e ainda cuidar de todo um sistema sanitário, drenagem e urbanístico que busque
viabilizar mínimas condições de moradia e com isso conter a criminalidade que nestes
espaços possuem ambiente propício para se proliferarem.
Em Caruaru, há um enfrentamento diário por parte da prefeitura, através da
equipe de fiscalização da Empresa de Urbanização, Planejamento e Meio Ambiente –
URB, mesmo com as suas limitações, enquanto poder público municipal, e também por
parte do Ministério Público em combater os inúmeros loteamentos clandestinos e os
irregulares que insistem em se formar pela cidade, vendendo o sonho da casa própria
para quem mora de aluguel, mas deixando esse comprador lesado, pois é comumente a
área ser invadida quando não o proprietário do loteamento não entrega nenhum dos
lotes com a mínima infraestrutura exigida, isso acaba gerando localidades
estigmatizadas, excluídas e de difícil acesso até para quem depende de transporte
público.
Por isso o poder público precisa agir preventivamente para evitar que essas
invasões aconteçam e que geram todo o desordenamento urbano, a expansão
desordenada traz um descontrole maior para a cidade poder atuar e limitar o

6
SOARES, L. E. Segurança Pública: presente e futuro. São Paulo: Estudos avançados, 2006.
(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142006000100008). Acesso em
16/07/2017.
crescimento para as áreas que estão destinadas a isto, temos uma grande mudança no
que concerne a zona rural do município, área formada por 4 (quatro) distritos e que são
maiores do que a própria urbana da cidade. Porém o cenário da zona rural tem sido
modificado não só pelo êxodo rural e pela seca que desestimula nos moradores o
investimento em produtos agrícolas e acaba gerando uma nova fonte de renda na zona
rural: a confecção de jeans. Como forma de manter o rendimento familiar, as famílias
têm se estruturado nesta fonte de renda, o que tem atraído a construção imobiliária para
essas áreas, investindo fortemente na expansão urbana de encontro com a área rural da
cidade, modificando o cenário e tonando a cidade com maiores problemas, pois o tipo
de solo, a localização e o aspecto urbanístico não estavam preparados para esta
mudança. Toda forma desordenada gera conflitos entre a comunidade e o poder público,
gera exclusão social, aglomeração de moradores sem respeitar áreas de recuo, sem
qualquer pagamento de taxas à prefeitura, sem respeitar o código de obras, espaços
importantes para a boa convivência social e problemas relacionados à saúde, segurança
e educação.

1.3 A segurança pública municipal: medidas preventivas de combate à


criminalidade

Na conjuntura com que as últimas notícias vêm se propagando, além de dados


estatísticos, o aumento da criminalidade, do desemprego e da falta de ressocialização no
sistema prisional, fez com que estados, municípios e união, se fortalecessem no debate
de que segurança pública não é apenas assunto policial ou apenas do código e do
processo penal. Mas, que tratar de segurança pública requer outros arranjos
institucionais, outros instrumentos de combate, controle e prevenção contra a
criminalidade ganhou vez e voz nas últimas discussões. O estado de insegurança retira
da própria população a confiança nas próprias instituições, fomentando um clima
caótico e que não são raras as vezes em que a própria população realiza “justiça com as
próprias mãos”, na ânsia de ver a punição acontecer e também de fazer persuadir nos
outros delinquentes de que a sociedade vitimada e fragilizada, cria situações em que o
flagrante de um delito passa a ser o momento de “empoderamento” social, onde pessoas
se reúnem para realizar atos de violência com o(s) possíveis acusado(s) do delito
demonstrando assim que reiterados casos de impunidade deixam a descrença nas
pessoas de que quem cometer um crime, será realmente punido.
Sobre a segurança pública ter várias raízes e que o problema está não só a nível
municipal mas que também existe de forma macro, não se pode cair no argumento de
que se o país inteiro está passando por esta situação, os municípios não podem fazer
muito. Isso gera imobilismo por parte dos municípios e o enfrentamento à criminalidade
requer envolvimento de várias esferas. Os municípios podem atuar em situações
pontuais, em comunhão com as suas secretarias, as diferentes instituições da justiça e
com a comunidade. Conforme nos leciona Guindani:

Ao analisar o papel dos municípios na execução das políticas de segurança


pública no Brasil, é importante tecer algumas considerações: (a) as
Constituições Federais anteriores à atual, promulgada em 1988, não
explicitavam claramente as competências do município, como integrante da
federação, na execução das políticas sociais, ainda que fosse consensual que as
mesmas também as compreendiam (...) A partir de 1988, contudo, uma nova
concepção de segurança pública como tarefa do Estado passou a ser o norte dos
sistemas de políticas públicas implementados pela União, Estados e
municípios. Portanto, a segurança pública passou a ser reconhecida
politicamente (apenar dos limites legais do artigo 144 da Constituição Federal)
como atribuição das três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e
dos três poderes republicanos - Executivo, Legislativo e Judiciário – em suas
distintas funções.7

Sendo assim, o município de Caruaru-PE avança através do poder público


municipal que em 2009, inaugura a Autarquia Municipal de Defesa Social, Trânsito e
Transportes onde através da Lei 4.762 de 2009 cria-se pela primeira vez no município a
Guarda Municipal, além dos agentes de trânsito e agentes da Defesa Civil. Fomentando
na cidade a municipalização do trânsito e a implantação de uma Guarda Municipal que
visa dar apoio à segurança fornecida pelo estado.
É sabido que ainda nesta época a atividade da Guarda Municipal, ainda no
campo teórico se limitava à vigilância patrimonial. Ocorre que com o advento

7
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; LIMA, Renato Sérgio de; RATTON José Luiz. Crime, polícia e justiça
no Brasil. 1. ed., 1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2014.
13.022/2014, que dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais visualiza-se
que as Guardas Municipais, dentro da perspectiva do seu Estatuto, consolidam-se como
órgão de polícia administrativa stricto sensu, uma vez que a elas incumbe o
patrulhamento preventivo das vias municipais, de modo a impedir a ocorrência de
infrações penais, em especial, aquelas que atentem contra o patrimônio municipal. Na
Constituição da República, a segurança pública é tratada em capítulo exclusivo, que
conta apenas com o artigo 144, o qual traz, em seus incisos, os órgãos que exercem a
segurança pública em nosso país, mas também impondo-a como direito e
responsabilidade de todos, aí se incluindo todos os órgãos estatais, bem como a
sociedade civil. Daí se tratar de um rol não taxativo, quando analisamos os incisos do
art. 144 da CF/88. O Estatuto Geral das Guardas Municipais municia os cidadãos e o
poder público municipal com mais uma força de trabalho que pode atuar em diversos
espaços da cidade, além do que Estatuto reconhece a representatividade das guardas
municipais no Conselho Nacional de Segurança Pública, revelando, mais uma vez,
estarem elas inseridas entre os órgãos de segurança pública previstos na Constituição.
A polêmica sobre a Guarda poder andar armada, após o advento do novo
Estatuto, que no seu art. 16 ainda tem sido atitude pouco adotada pelos municípios no
Brasil, Caruaru, ainda é um dos municípios que não possui uma Guarda armada, e
reconhecemos que a discussão sobre este assunto requer um maior debate com a
população além de se analisar as questões de impacto socioeconômico que isso pode
gerar.
Em 2017, outra novidade, com a mudança de governo, após as eleições
municipais, há a criação de uma nova secretaria, a Secretaria de Ordem Pública, criada
através da atual gestão com o objetivo de implantar na cidade ações de ordem pública
que visem combater à violência e à criminalidade no município. Através desta secretaria
o município atualmente está elaborando o seu Plano Municipal de Segurança, que é um
plano de participação popular que pretende consolidar uma política pública voltada para
a definição do papel do município na contribuição da complexa tarefa da preservação da
ordem pública, além de procurar desenvolver a responsabilidade cidadã da comunidade,
bem como assumir compromissos com o envolvimento das outras instituições voltadas
para a segurança pública.
É a primeira vez que o município contará com a elaboração de um plano
municipal voltado para a sua segurança, além disto, também foi criado através de
Decreto ainda em 2017 o Comitê Permanente Municipal Juntos Pela Segurança -
CPMJPS, e o Conselho de Segurança Cidadã dos bairros e da zona rural - CONSEC.
Com a criação do Comitê os envolvidos na segurança pública terão um espaço
onde o poder público municipal vai receber as demandas da população, através dos
CONSEC‟s e, através disso, poder inter-relacionar com as secretarias e órgãos
competentes.
Então, essas demandas vão partir também dos CONSEC‟s e do Comitê com a
intenção de aprovar, planejar, executar, implementar e monitorar o Plano Municipal de
Segurança Pública, em consonância com as ações e atribuições constitucionais dos
diversos órgãos da esfera do poder público federal e estadual, que atuam na preservação
da ordem pública, trazendo, assim, resultados positivos na prevenção à violência em
Caruaru. É importante frisar que:

As ações preventivas distinguem-se de acordo com o problema focalizado, o


tipo de grupo social definido como alvo, e também, segundo o alcance das
medidas e dos resultados visados, dos recursos empenhados e da metodologia
aplicada (...) pode inferir que, quando os resultados positivos superam qualquer
dúvida, alguns ingredientes elementares estão presentes, entre os quais se
destacam:
a) O envolvimento de diferentes instituições da justiça (como Ministério
Público, Defensoria, Tribunal de Justiça), órgãos do Estado (como
secretarias e departamentos) e entidades da sociedade civil;
b) A participação da comunidade local;
c) A realização de diagnósticos específicos que evitam a dispersão de
recursos e o improviso voluntarista;
d) A natureza combinada e interdisciplinar do diagnóstico, feito a um só
tempo, quantitativo e qualitativo, técnico e interativo;
e) A continuidade e a sustentabilidade das ações ao longo do tempo;
f) A adoção de princípios democráticos e racionais de gestão, o que inclui
planejamento, avaliação e monitoramento (incluindo avaliação externa
independente);
g) A capacidade de liderança (e a autoridade política) dos principais
protagonistas, governamentais e comunitários;
h) A presença e a combinação coordenada dos três tipos de ação preventiva
(primário, secundário e terciário);
i) A valorização do caráter territorialmente delimitado das ações e de suas
conexões locais; não se deve inibir a necessidade de que, para resultados
expressivos, que se potencializem mutuamente, substituindo os ciclos
viciosos, por ciclos virtuosos, é imprescindível um esforço em escala. Isso,
por sua vez, requer por parte dos governos, um tratamento sistemático das
ações tópicas e pontuais, locais e focalizadas. 8

Após estas contribuições, entendemos que o governo municipal desta cidade,


tem buscado através da institucionalização do Plano Juntos pela Segurança, do Comitê
Permanente Municipal Juntos Pela Segurança e com a criação dos Conselhos, Conselho
de Segurança Cidadã dos bairros e da zona rural, que atualmente está sendo criado o
segundo na zona urbana e o segundo conselho também na zona rural, vemos que há um
esforço de conhecer e inicialmente é necessário diagnosticar a dinâmica da violência e
da criminalidade no município. Como critério, por exemplo, para a criação de cada
CONSEC, a secretaria de Ordem Pública tem tido acesso a dados estatísticos sobre os
índices de CVLI (crimes violentos letais intencionais) e CVP (crimes violentos
patrimoniais) que acontecem na cidade e após a análise desses índices é que os
Conselhos estão sendo criados e a comunidade passa a ser ouvida nas reuniões que
acontecem mensalmente, trazendo através dos seus membros, escolhidos pelos próprios
moradores, as demandas daquele bairro e dos locais que julgam precisar de uma
intervenção municipal, seja no que concerne a revitalização de praças, implantação ou
troca de lâmpadas, limpeza urbana e demais temas até questões que envolvam o
trabalho das polícias.
Sendo assim, as políticas sociais implantadas pela administração pública
municipal são fundamentais à prevenção do crime e principalmente quando pautadas
pelo compromisso ético-político de buscar, efetivamente, a proteção social, a segurança
e a defesa dos direitos humanos principalmente quando se requer o resgate à cidadania
ou atenção maior aos grupos de pessoas vulneráveis à situações de risco principalmente
nos bairros mais pobres. Comungamos assim, com a contribuição do professor Luiz
Eduardo Soares que nos ensina que:

8
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; LIMA, Renato Sérgio de; RATTON José Luiz. Crime, polícia e justiça
no Brasil. 1. ed., 1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2014.
Quando a prefeitura, em comum acordo com a comunidade, define uma agenda
local – o que requer focalização política -, mobilizando todos os seus órgãos e
recursos e envolvendo os meios de comunicação de massa no mutirão
organizado, tem chances de: a) infundir responsabilidade pelas iniciativas
conjuntas; difundir esperança no processo do empreendimento; c) valorizar
aquela área urbana e seus moradores; d) redefini-los ante a opinião pública da
cidade como protagonistas da mudança, sujeitos da transformação, construtores
da paz, promotores da ordem urbana cooperativa e solidária, exemplos para a
sociedade. Quando a prefeitura consegue alcançar esses resultados, e) logra
converter o estigma (residentes de área degradada, maculada pela violência)
em índice positivo (habitantes da área que se tornou paradigma da civilidade
urbana), fazendo que as expectativas se invertam, estabilizando-se na direção
positiva (...)9

O trabalho com a comunidade, com os órgãos, entidades, e demais instituições


deve ser feito com a finalidade de promover a paz social. Promover também espaços de
discussão e debate é elevar o protagonismo social dos moradores, que ora estão em
situação de vítimas e por outro lado constituem lideranças na sua comunidade, para a
corresponsabilidade na ordem pública no município. Cada um precisa fazer a sua parte e
a comunidade deve ser ouvida, pois o liame entre a organização e a segregação social
pode ser bastante tênue e pode reproduzir a discriminação social. No que diz respeito a
esta experiência que está sendo vivenciada pelo município de Caruaru, já se observa no
que concerne às expectativas, ou seja, a parte subjetiva da segurança, uma grande
aceitação da população. Vale ressaltar também, que além dos instrumentos citados
acima, criados por esta secretaria, uma das novas ações que serão implantadas diz
respeito a criação de espaços de Mediação de Conflitos que serão criados nos bairros
mais periféricos da cidade e que possuem não raras as vezes, a falta de diálogo e a
discussão como fator também de crimes de proximidade que, geralmente serão
ocasionados por pessoas que convivem próximas umas as outras e que por motivo fútil
ou torpe cometem o assassinato daquele que era o seu amigo ou vizinho. Acredita-se
que espaços de mediação pode evitar também que as partes cheguem até as delegacias
para relatarem fatos que ao invés de ser um caso de polícia são na verdade um
desentendimento entre os envolvidos. Além disto, visando que muitas escolas estão

9
SOARES, L. E. Segurança Pública: presente e futuro. São Paulo: Estudos avançados, 2006.
(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142006000100008). Acesso em
16/07/2017.
sendo alvo dos aliciadores e traficantes, há em pauta, um plano estratégico para ser
realizado a fim de dar cumprimento à Lei estadual de nº 10.454/90 que trata sobre o
perímetro de segurança escolar, e que não vem sendo observado em sua completude, até
o momento. Vemos que através de ações como estas, estamos falando sobre prevenção
primária na sua essência, tão importante e eficaz quando o município se protagoniza a
cuidar e assumir os problemas que pertencem a sua esfera.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou elucidar questões envolvendo a segurança pública no


âmbito municipal, fazendo um recorte sobre o município de Caruaru-PE.
Os assuntos tratados aqui dizem respeito ao clima de insegurança que tem
permeado a sensação dos moradores da cidade, devido ao alto índice no aumento de
crimes patrimoniais e crimes contra a vida. Contudo, sabemos que não só esta cidade,
como outras do estado tem passado por situações semelhantes e a população, sempre
vitimada pela violência clama por policiamento ostensivo como repressão dos atos
delituosos.
Embora seja salutar exigir-se o policiamento ostensivo, sabemos que a causa de
tanta violência e de criminalidade é que deve ser tratada e expurgada da sociedade,
sendo um dos seus maiores causadores o tráfico de drogas e de entorpecentes. É através
da dependência às drogas, da exclusão social e das poucas possibilidades de se inserir
no mercado de trabalho que alguns delituosos começam a agir para ganhar dinheiro de
forma mais rápida, seja para o consumo de droga, seja para a venda como fator de lucro
rápido e de retorno praticamente certeiro.
Os municípios devem e podem atuar contra a violência e a criminalidade, como
ponte de apoio entre as ações ostensivas realizadas pelo estado e pela união. As ações de
curto, médio e de longo prazo, repercutem na cultura social, na emancipação dos
cidadãos, na paz social, na empregabilidade, e na condição de usufruir de espaços de
lazer e cultura ora negados.
Estamos falando acerca das ações de busca pela melhoria da qualidade de vida
dos cidadãos, de expansão urbana de forma ordenada e legalizada, de iluminação
pública de qualidade, de acesso aos meios mais elementares de convivência social e
urbana; estamos falando acerca da prevenção primária. Neste tipo de prevenção, embora
haja um lapso temporal para ela começar a reproduzir os bons resultados, ela é parte
imprescindível de um ciclo de ações preventivas em que o poder público municipal
através do seu executivo e legislativo podem criar condições de desenvolvimento social
respeitando os direitos humanos de cada cidadão. São questões relacionadas como de
ordem pública que tratam das regras de convivência, de moradia, de questões
relacionadas ao esporte e a educação integral, ou seja, são ações que o município pode
realizar em sua cidade com autonomia.
É importante destacar que estas ações devem ser realizadas em conjunto, para
atender as demandas da comunidade, mas que para isto se faz necessário um diagnóstico
situacional de cada bairro do município, visto que cada comunidade se desenvolve de
maneira peculiar, principalmente à depender da existência ou não de equipamentos
públicos, como escolas, praças, creches, unidades de saúde, tudo isso caracteriza o nível
social de cada comunidade.
Sem prejuízo das ações de policiamento ostensivo (âmbito da prevenção policial,
ou secundária), as polícias militares igualmente desenvolvem trabalhos de prevenção
primária com grande êxito, em caráter suplementar às suas atividades próprias e isto
desencadeia uma linha contínua nas ações do município e os tornam interlocutores no
papel social contra a violência e a criminalidade.
Embora os municípios não possuam o aparelhamento que o estado e a união
possuem, mas o seu papel no combate ao aumento da violência e da criminalidade é
imprescindível que exista. Assim, o estado e a união encontram aporte para fortalecer as
suas ações no combate ao crime, à violência e a violação de direitos humanos e
fundamentais, tão mitigados pelos desdobramentos de descaso e de omissão por parte
do poder público.
A receita ideal para se combater a violência não existe, mas sabemos que
políticas públicas, acesso ao ensino e a moradia de qualidade, reduzem a possibilidade
do jovem entrar no crime e de sua reincidência criminal.
REFERÊNCIAS

Atlas da violência 2017. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Brasil). Disponível


em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017. Acesso em 12/07/2017.

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; LIMA, Renato Sérgio de; RATTON José Luiz.
Crime, polícia e justiça no Brasil. 1. ed., 1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2014.

BRASIL. Constituição (1988) Constituição Federal da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF, 1988.

OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. 7 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2016

PERNAMBUCO. Lei n. 10.454, de 06 de julho de 1990. Dispõe sobre o


estabelecimento de perímetro de segurança escolar e dá outras providências. Disponível
em:
http://legis.alepe.pe.gov.br/arquivoTexto.aspx?tiponorma=1&numero=10454&complem
ento=0&ano=1990&tipo= Acesso em 12/07/2017

CARUARU. Lei n. 4.792, de 09 de março de 2009. Dispõe sobre a criação da


autarquia municipal de defesa social, trânsito e transportes - destra e dá outras
providências. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/produto/seguir-
municipio?cidade=2792&origem=7 Acesso em 12/07/2017.

SOARES, L. E. Segurança Pública: presente e futuro. São Paulo: Estudos avançados,


2006.<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142006000100008>. Acesso em 16/07/2017.
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE ANTISSOCIAL: AS DIVERSAS
DEFINIÇÕES DA PSICANÁLISE E SEUS REFLEXOS NO DIREITO PENAL

Alicia Rafaely da Silva Oliveira10


Stella Monteiro do Nascimento11

GT: 05 – CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA, ESTADO PENAL E DIREITOS


HUMANOS

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo geral explanar a qualificação dos diversos
quadros de Transtorno de Personalidade Antissocial (TAP) existentes, bem como
compreender as relações entre as atividades antissociais de caráter criminoso e as
tipificações existentes no Direito Penal. Apresenta-se uma abordagem qualitativa, tendo
o tipo bibliográfico como método de pesquisa. A análise documental deste trabalho
norteou-se pelo estudo de Artigos Científicos e Monografias de base jurídica e
psicanalítica, bem como pela leitura do Manual Estatístico e Diagnóstico dos
Transtornos Mentais (DSM-V). O estudo identificou a fragilidade na identificação dos
quadros existentes e as lacunas legislativas que desamparam o judiciário brasileiro em
suas decisões e impedem a celeridade do devido processo legal, fazendo com que
precedentes fundados em entendimentos não pacificados pela psicanálise fomentem a
insegurança jurídica do Direito Penal em suas determinações, resultando no despreparo
estatal que vai desde o diagnóstico defasado dos sujeitos ao acolhimento precário dos
mesmos pós sentença.

Palavras-chave: Medida de Segurança. Personalidade Antissocial. Imputabilidade.

INTRODUÇÃO

10
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca – DeVry|UNIFAVIP. Membro e
pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Direitos Humanos (GEPIDH –
Mércia Albuquerque). Extensionista no DHiálogos: Ciclo de debates sobre Sociedade e Direitos
Humanos. Pesquisadora na Iniciação Científica “Direitos Humanos, Violência e Diversidade humana no
período ditatorial no agreste pernambucano (1964-1985) ”. Pesquisadora do Grupo de Pesquisas
Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade (UPE/CNPq)
E-mail: alicia471998@gmail.com.
11
Bacharel em Psicologia pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca (2016). Psicóloga do CAEE -
Centro de Atendimento Especializado Especial de Jataúba/PE. Pós-graduanda em Neuropsicologia -
UNIFAVIP. Graduanda no Curso de Formação em Psicologia Avaliativa.
E-mail: stella.nmonteiro@gmail.com.
O transtorno de personalidade antissocial, está em uma posição de
vulnerabilidade jurídico-penal, onde os instrumentos jurídicos existentes mostram-se
insuficientes. A sociedade possui um entendimento deveras superficial quanto as
características e comportamentos dos comumente denominados “psicopatas”, pessoas
com transtorno de personalidade antissocial (TPA), o que deixa a sociedade menos
protegida das ações criminosas dessas pessoas. Por outro lado, a falta de aparato e a
fragilidade em se determinar um quadro de TPA põem em risco a dignidade do próprio
portador do transtorno de personalidade antissocial, que submetido às legislações
vigentes acaba não recebendo o tratamento adequado típico de um sujeito com
transtorno.
Faz-se necessário a prévia observação de que no decorrer do trabalho, devido à
falta de denominação oficial, o termo psicopata não será frequentemente utilizado. É
pacífico entre os doutrinadores e especialistas que o termo psicopatia se encontra
ultrapassado, sendo averiguado como Transtorno de Personalidade Antissocial, no
entanto a própria psicanálise não atribuiu uma denominação específica ao sujeito
portador do transtorno.
A pergunta de pesquisa que orientou o presente trabalho foi: Quais as definições
utilizadas pela psicanálise para designar a efetivação do TPA no sujeito e como o
ordenamento jurídico brasileiro utiliza essas definições para aplicação penal nos casos
existentes? No mesmo raciocínio, o objetivo geral da pesquisa busca compreender as
definições utilizadas pela psicanálise para designar a efetivação do TPA no sujeito e
como o ordenamento jurídico brasileiro utiliza essas definições para aplicação penal nos
casos existentes. A partir do questionamento anterior, os objetivos específicos
fomentados foram: 1 – Explanar a construção da personalidade com base na linha
psicanalítica; 2 – Apresentar uma base teórica que fundamente as definições
encontradas acerca do tema, preenchendo as lacunas do senso comum; 3 – Apontar as
faltas legislativas, os descasos com a efetivação das determinações e a insuficiência do
Estado.
As análises trazidas confirmam a complexidade de se definir uma concepção
estrita de TPA, por mostrar divergências entre as opiniões dos próprios estudiosos da
área. É importantíssimo que ideias defasadas e preconceituosas acerca da caracterização
das ações antissociais sejam esclarecidas, afastando as definições primárias da
psicanálise em que comportamentos minimamente fora dos padrões morais eram tidos
como sinais potenciais de psicopatia. A relevância acadêmica dá-se pelo fato de que a
perspectiva do Direito Penal quanto ao criminoso com transtorno de personalidade
antissocial não resguarda sua condição psicológica como esperado, seu diagnóstico na
maioria dos casos é tardio e apenas reconhecido nos casos de repercussão. Mostrando
assim uma falha na proteção da sociedade e para com o fim proposto pelo próprio
direito penal que seria o de ressocializar o criminoso, fim que desperta mais um
emblema mediante a semi-imputabilidade do sujeito com TPA, não podendo a ele ser
atribuída uma pena comum, tampouco abstê-lo da responsabilidade dos resultados de
suas ações. Para a elucidação das questões levantadas será utilizada uma metodologia
predominantemente dialética com abordagens analíticas dos relatórios utilizados na
pesquisa.

1. CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE NA PERSPECTIVA


PSICANALÍTICA

Para a linha de estudo e atuação psicanalítica, a formação e construção da


personalidade acontece desde os primeiros dias de vida, cuja só será delineada mediante
a passagem de fases psicossexuais do sujeito, sofrendo interferências das mais diversas
variantes, que vão desde seus objetos de desejo, até o investimento que lhe é ofertado de
forma que essas fases determinam pontos importantes do processo psicossexual da
criança. Somado a isto, na teoria psicanalítica designada por Freud, existem alguns
órgãos aos quais são produtores de libido, esses órgãos são denominados de zonas
erógenas, como os lábios, boca, pele, movimento muscular, mucosa anal, pênis e
clitóris, cada órgão predomina de acordo com a idade específica (ZIMERMAN, 2007).
Entre as fases do desenvolvimento psicossexual, a primeira fase a qual o bebê
vivencia é a fase oral, que acontece entre 0 a 2 anos de idade, sendo a boca a zona
erógena, e suas gratificações são a sucção de alimentos, bem como, objetos levados a
boca (FADIMAN, 1986). É importante destacar que essa fase não necessariamente está
relacionada a boca, mas que alude significados próprios da fase, como bem salienta
Zimerman (2007, p. 93) ao afirmar que:

[...] acontecem no curso da fase oral: uma especial valorização do corpo (“o
ego, antes de tudo é corporal”); a identificação primária com a mãe; a
concepção de uma bissexualidade como uma qualidade primordial da herança
biológica; a vigência do princípio do prazer-desprazer, o predomínio do
processo primário do pensamento; a primitiva formação das representações-
coisa; as incipientes formas de linguagem e comunicação; dentre outros
conceitos mais.

A segunda fase do desenvolvimento psicossexual acontece geralmente entre o


segundo e terceiro ano de vida, e denomina-se fase anal. Da mesma forma que a fase
oral não está ligada unicamente a boca, a fase anal também não se relaciona apenas com
a retenção e expulsão das fezes, logo, está ligada à uma forma de desenvolvimento de
sentimentos sádicos e masoquistas, obtém noções de poder, de competição, rivalidade
etc. (ZIMERMAN, 2007). Assim, a fase anal caracteriza na criança noções de controle e
manipulação das pessoas, através principalmente das fezes, bem como outras
características do momento. Segundo Zimerman (2007) levando em consideração a
teoria Freudiana, é na fase anal que o ocorre o complexo de Édipo, ao qual pode
acontecer de duas formas, a maneira positiva é a ocorrência de um desejo sexual pelo
genitor do sexo oposto e desejo de morte contra o genitor do mesmo sexo. A forma
negativa consiste no desejo sexual pelo mesmo sexo e desejo de morte contra o sexo
oposto.
Em meio ao emaranhado de fatores que são próprios a segunda fase e sabendo
do quão determinante tende a ser o Complexo acima descrito, é de extrema importância
a entrada de uma terceira pessoa nessa relação. Essa terceira pessoa tem a função de
provocar a castração dessa criança, o castrador então tem o papel de lei, e mostra a
criança que ela não domina e nem pode tudo, essa castração tanto pode gerar um
sentimento de vingança, ódio e sensação de abandono, como pode gerar medo, culpa
etc. ocorrendo dessa forma a angústia de castração (ZIMERMAN, 2007). Esse processo
de castração é o que leva as pessoas a desenvolverem uma personalidade neurótica,
visto que se deparam com a falta e o corte para com o seu objeto que outrora era
completo e perfeito; ao contrário disso a ausência desta falta de lei gera uma
personalidade perversa, pois o perverso burla essa lei (Ibidem, 2007). A lei que castra,
faz com que o sujeito adquira uma personalidade neurótica, o sujeito neurótico é aquele
que sofre com a frustração, que possui limites e não vive baseado nos seus desejos, mas
que acata a lei e teme a punição, essa personalidade é justamente o contrário da
personalidade perversa, pois o perverso se baseia no princípio do prazer e não teme a
lei, as regras sociais e não sente empatia pelo outro (LAPLANCHE, 2001).
Em seguida, o sujeito passa para o período de latência, esse ocorre a partir dos
seis anos de vida, e apresenta duas características básicas: sendo a primeira, uma
espécie de recalque da sexualidade infantil, com o esquecimento das experiências
anteriores. Já a segunda característica, consiste no fato de que se estrutura um reforço
das aquisições do ego. A soma de ambas características, faz com que haja uma
sublimação das pulsões, em outras atividades, tais como esportivas, escolares etc. De tal
modo que essa fase é considerada como um momento de consolidação da formação do
caráter (MEIRA, 2004).
Mesmo com a passagem das etapas do desenvolvimento psicossexual, é comum
que haja fixações em determinadas fases, dessa forma o sujeito apega-se a uma fase,
satisfazendo-se de forma mais primitiva e infantilizada. Portanto percebe-se que desde o
nascimento, a criança recebe estímulos externos, e lida com fantasias e frustações. Na
psicanálise afirma-se que a personalidade do indivíduo se constitui a partir da forma
com que ele passa por essas fases. Vale salientar que para a psicanálise existem três
tipos de personalidades, sendo eles, neurótico, psicótico e perverso. E cada um deles
contém subtipos de personalidades. Dessa forma, faz-se necessário explorar mais sobre
a personalidade perversa.

1.2 PERSONALIDADE PERVERSA / TRANSTORNO DE PERSONALIDADE


ANTISSOCIAL
Em psicanálise, a perversão designa uma personalidade a qual não tem um
comportamento adequado às normas sociais. Segundo Zimerman (2007, p. 255) para a
psicanálise, o termo perversão deve designar unicamente os desvios ou aberrações das
pulsões sexuais.
Muitos são os termos designados à essa personalidade, entre eles: psicopatia,
transtorno da personalidade antissocial, sociopata, etc., porém, desde o ano de 2015 o
termo correto a ser utilizado, quando se trata de sujeitos que violam as leis sociais, é
transtorno de personalidade antissocial, que está descrito como características
diagnósticas no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM – V)
como:

A. Um padrão difuso de desconsideração e violação dos direitos das outras


pessoas que ocorre desde os 15 anos de idade, conforme indicado por três (ou
mais) dos seguintes:
1. Fracasso em ajustar-se às normas sociais relativas a comportamentos
legais, conforme indicado pela repetição de atos que constituem motivos de
detenção.
2. Tendência à falsidade, conforme indicado por mentiras repetidas, uso de
nomes falsos ou de trapaça para ganho ou prazer pessoal.
3. Impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro.
4. Irritabilidade e agressividade, conforme indicado por repetidas lutas
corporais ou agressões físicas.
5. Descaso pela segurança de si ou de outros.
6. Irresponsabilidade reiterada, conforme indicado por falha repetida em
manter uma conduta consistente no trabalho ou honrar obrigações
financeiras.
7. Ausência de remorso, conforme indicado pela indiferença ou
racionalização em relação a ter ferido, maltratado ou roubado outras pessoas.
B. O indivíduo tem no mínimo 18 anos de idade.
C. Há evidências de transtorno da conduta com surgimento anterior aos 15
anos de idade.
D. A ocorrência de comportamento antissocial não se dá exclusivamente
durante o curso de esquizofrenia ou transtorno bipolar.

O sujeito com transtorno da personalidade antissocial caracteriza sua perversão


de forma contínua e sem remorso, mentem e manipulam as pessoas, são frios,
calculistas, dissimulados e geralmente não aparentam tais características. Zimerman
(2007) destaca três características básicas dessa personalidade, sendo elas:
impulsividade, repetitividade compulsiva e ações de caráter maligno. Afirma ainda que
é comum que todo ser humano possua traços de perversão, mas o que faz um sujeito ter
de fato o transtorno, é justamente as características citadas anteriormente. Porém para
que se tenha um diagnóstico preciso, é necessário espelhar-se no DSM- V. Como citado
a cima, o transtorno de personalidade antissocial só pode ser diagnosticado em um
sujeito, quando este tiver pelo menos 18 anos de idade, isso não significa que anterior a
essa idade o indivíduo fica ileso do diagnóstico, mas que aqueles que possuem uma
idade abaixo de 18 anos, obtém um diagnóstico diferenciado, chamado transtorno de
conduta, que consiste em:

[...] tendência permanente para apresentar comportamentos que incomodam e


perturbam, além do envolvimento em atividades perigosas e até mesmo
ilegais. Esses jovens não aparentam sofrimento psíquico ou constrangimento
com as próprias atitudes e não se importam em ferir os sentimentos das
pessoas ou desrespeitar seus direitos. Portanto, seu comportamento apresenta
maior impacto nos outros do que em si mesmo. Os comportamentos
antissociais tendem a persistir, parecendo faltar a capacidade de aprender
com as consequências negativas dos próprios atos (BORDIN & OFFORD,
2000 p. 12).

É importante destacar que a psicanálise coloca em questão suas ideias quanto a


formação da personalidade de forma que perpasse pelas fases de desenvolvimento
psicossexuais. Disfunções, etapas mal concluídas e fixações em determinadas fases,
formam a personalidade. Porém é necessário saber que existem outras teorias que levam
em conta fatores psicossociais, genéticos e fatores de formação do encéfalo (DEL-BEM,
2005).
Mesmo havendo o diagnóstico ou ainda testes psicológicos para a identificação
desse transtorno, um fato preocupante é que existe grande prevalência de pessoas com
esse transtorno, carência de tratamentos e um sistema prisional com falhas. Para a
compreensão da perspectiva estatal dos quadros de transtorno faz-se necessário adentrar
no conceito de crime, bem como na ótica penal do criminoso quanto ao seu transtorno
de personalidade antissocial.

2. CRIME, CULPABILIDADE E O “PSICOPATA”


Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou
detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou cumulativamente com
a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente,
pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou
cumulativamente. – Lei de Introdução ao Código Penal Brasileiro (Decreto-
lei n. 3.941/41)

Para o Direito Penal, não há o que se falar em conduta criminosa quando não
preenchidos os três requisitos levantados pela teoria tripartida: tipicidade,
antijuridicidade e culpabilidade. Numa breve explanação do que seria cada um dos
requisitos encontramos a tipicidade como sendo o enquadramento (subsunção) da
conduta do agente a norma prevista; a antijuridicidade como um fator consequente da
existência de conduta típica, pois representa a contrariedade da ação ou omissão
mediante a norma imposta; e a culpabilidade, indicador da responsabilidade de
exteriorização de um desejo subjetivo no mundo, figurando o juízo de reprovação da
conduta praticada mediante a sociedade e o ordenamento jurídico. Para um melhor
entendimento da diferenciação do criminoso com transtorno de personalidade social de
um criminoso comum, o último requisito será crucial.
Para que se fomente a concepção de Dolo e de Culpa, provenientes da
Culpabilidade, é necessário que haja a imputação do crime ao agente, ou seja, que sua
conduta possa ser atribuída ao mesmo, de acordo com o discernimento de que suas
ações culminaram no resultado/fato. Nessa situação de dependência entre a vontade
subjetiva e a capacidade mental do agente de discernir conforme a realidade normativa é
que se encontra a grande incógnita entre a psicanálise e o direito penal. O sujeito com
TPA possui o entendimento de que suas ações são ilícitas, tanto que um traço marcante
de sua condição é a facilidade com que mentem ou disfarçam situações, mas então o que
o difere de um criminoso comum?

2.1 – IMPUTABILIDADE

Imputabilidade é a possibilidade de se atribuir a responsabilidade por determinadas


condutas típicas e ilícitas ao agente praticante, mediante o discernimento e a capacidade
mental do mesmo, em detrimento de suas ações. É a capacidade de compreender e
desejar a concretização da conduta, possuindo suficiência mental que o permita
reconhecer a ilicitude dos fatos. Importante grifar que não deve ser confundida com
responsabilidade penal, que seria o dever de arcar com as penalidades jurídicas
destinadas aos agentes imputáveis.
O Código Penal não lista as características dos agentes imputáveis, no entanto delimita
quais são os inimputáveis:

Art. 26. É isento de pena o agente que por doença mental ou


desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou
da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento – Código Penal Brasileiro
(Redação - Lei nº 7.209/84)

O caráter psicológico descrito no Art. 26, CPB (Código Penal Brasileiro),


restringe a descrição dos inimputáveis, ou seja, dos que não respondem penalmente por
suas ações típicas. Logo adiante no Art. 27, CPB, encontra-se o caráter biológico dos
inimputáveis no Art. 27. “Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente
inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”. Fazendo
associação ao que fora discutido anteriormente como Transtorno de Conduta, por não
preencher o requisito da maioridade.
Fica claro, pois, que o agente com TPA não está nos limiares da
inimputabilidade total, por não possuir uma doença mental que o impossibilite discernir
a realidade dos fatos ao seu redor, mas por, segundo a OMS (Organização Mundial da
Saúde), configurar um distúrbio de personalidade sociopático ou associal, marcado pela
ausência de valores comuns em sociedade, pela personalidade forte e egocentrismo,
insensibilidade a culpa e sentimentos alheios, bem como persuasão e facilidade em
mentir. Assim, o sujeito com transtorno de personalidade seria um Semi-imputável:

Art. 26. Parágrafo Único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o
agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento
mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o
caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
De acordo com a determinação judicial no caso concreto, o agente semi-imputável
que fora diagnosticado após laudo pericial com o transtorno de personalidade antissocial
deve ser sujeitado aos termos previstos nos Arts. 96 e 97, ambos do CPB, que trata das
Medidas de segurança adequadas ao grau de reprovação da conduta, bem como ao grau
de periculosidade do agente. Jurisprudências, no entanto, divergem:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.533.802 - TO (2015/0123231-4) RELATORA:


MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (...) RECURSO
ESPECIAL. PENAL. HOMICÍDIO. DOSIMETRIA. VIOLAÇÃO DO ART.
59 DO CP. CONDUTA SOCIAL, PERSONALIDADE,
CIRCUNSTÂNCIAS E CONSEQUÊNCIAS DO DELITO
CONSIDERADAS COMO VETORES NEGATIVOS. (...) Trata-se de
recurso especial interposto por DIEGO MARADONA DOS SANTOS
SILVA, com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição Federal, contra
acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Tocantins, assim ementado (fls.
892/894): APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO
CONSUMADO E HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. ALEGAÇÃO
DE VEREDICTO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIO À PROVA DOS
AUTOS. NÃO RECONHECIMENTO DA SEMI-IMPUTABILIDADE
PELOS JURADOS. RÉU DIAGNOSTICADO COMO PSICOPATA.
IRRELEVÂNCIA. EXISTÊNCIA DE LAUDO PSIQUIÁTRICO
INDICANDO QUE O RÉU TINHA CAPACIDADES COGNITIVA E
VOLITIVA PRESERVADAS. VEREDICTO DOS JURADOS
AMPARADO EM PROVA CONSTANTE DOS AUTOS. VEREDICTO
MANTIDO. 1. A doutrina da psiquiatria forense é uníssona no sentido de
que, a despeito de padecer de um transtorno de personalidade, o psicopata é
inteiramente capas de entender o caráter ilícito de sua conduta (capacidade
cognitiva). 2. Amparados em laudo psiquiátrico atestando que o réu possuía,
ao tempo da infração, a capacidade de entendimento (capacidade cognitiva) e
a capacidade de autodeterminar-se diante da situação (capacidade volitiva)
preservadas, os jurados refutaram a tese de semi-imputabilidade,
reconhecendo que o réu era imputável. 3. Não merece qualquer censura a
sentença proferida pelo presidente do Tribunal do Júri que deixou de reduzir
a reprimenda pela causa prevista no art. 26, parágrafo único, do Código
Penal, se o soberano conselho de sentença não afastou a tese da semi-
inimputabilidade do réu. Precedentes do TJDFT. 4. Existindo duas teses
contrárias e havendo plausibilidade na escolha de uma delas pelo Tribunal do
Júri, não pode a Corte Estadual cassar a decisão do conselho de sentença para
dizer que esta ou aquela é a melhor solução, sob pena de ofensa ao princípio
constitucional da soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, CF). 5. O Júri é
livre para escolher a solução que lhe pareça justa, ainda que não seja melhor
sob a ótica técnico-jurídica, entre as teses agitadas na discussão da causa.
Esse procedimento decorre do princípio da convicção íntima. 6. Pretensão
recursal de cassação do julgamento improvida. [...]
(STJ - REsp: 1533802 TO 2015/0123231-4, Relator: Ministra MARIA
THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Publicação: DJ 28/06/2017)
Nota-se que há instabilidade para que se conclua um entendimento majoritário, visto
que as contradições legislativas oferecem ao judiciário mecanismos que possibilitam o
julgamento conforme as circunstâncias concretos e entendimentos dos envolvidos.

2.2 – MEDIDA DE SEGURANÇA

Caracteriza-se como Medida de Segurança a sanção penal utilizada pelo Estado nos
casos de sentenças contra inimputáveis ou, excepcionalmente, semi-imputáveis.
A Reforma Penal de 1984 trouxe para o sistema penal brasileiro a alteração no sistema
duplo binário que previa a dupla aplicabilidade de penas, ou seja, a aplicação da pena
determinada com a medida de segurança. Situação que feria o princípio ne bis in idem,
por figurar uma dupla aplicação de pena sobre o mesmo fato cometido, ou seja, o
condenado cumpria a pena e posteriormente continuava sob a medida de segurança nas
mesmas condições e local de cumprimento da pena regular. As principais diferenças
entre a pena determinada e a medida de segurança são seu caráter retributivo-preventivo
presente na primeira, mas que na medida de segurança possui apenas uma natureza
preventiva que resulta da situação cognitiva e da necessidade curativa do agente.
A culpabilidade para a pena e a observância de sua periculosidade para a medida,
imprescindível na aplicação pois determinará se após o cumprimento do período inicial
de pena determinada o agente que receber um laudo médico que demonstre uma
evolução positiva do seu quadro, poderá significar o término da pena aplicada pelo juiz
da execução.
A temporalidade determinada da pena em oposição ao tempo indeterminado da medida,
que só findará com a cessação da periculosidade. Como supracitado, um dos
fundamentos da aplicabilidade da medida de segurança é a existência de periculosidade,
que significa a probabilidade estipulada de que o indivíduo virá a reincidir a partir dos
traços anômalos e antissociais que um laudo psíquico vier a diagnosticar. Essa
Periculosidade deve ser vista como um traço temporal do agente e não um quadro
constante e indeterminado, pois a aplicação da medida deve coincidir com um
tratamento adequado que vise a ressocialização do infrator, por isso se deve avaliar
periodicamente a evolução do infrator.
Quanto as circunstâncias pessoais dos infratores semi-imputáveis, a gravidade e
natureza do tipo em concomitância com o quadro psicológico do agente determinará se
haverá a aplicação da medida de segurança ou a diminuição da pena de acordo com o
Art. 26, parágrafo único, CPB. O fator determinante neste caso será a necessidade ou
não de tratamento curativo especial.
A determinação da aplicação das Medidas de Segurança segue as características
específicas de cada espécie de medida:
Medida de Segurança Detentiva – É a internação do infrator em Hospital de custódia e
tratamento, de forma que sua incapacidade cognitiva não lhe permita o cumprimento da
pena determinada restritiva de liberdade, mas que sua permanência na sociedade seja
temporariamente suspensa até que se constate que não há mais periculosidade eminente.
Medida de Segurança Restritiva – Como consta no Caput do Art. 97, CPB, quando o
crime for punível com pena de detenção, o juiz poderá submetê-lo a tratamento
ambulatorial. No entanto, há de se observar uma falha no dispositivo, pois ainda que o
crime não tenha o teor de gravidade similar ao da que se aplicaria a medida de
segurança detentiva, a situação psíquica do infrator não é observada pelo legislador
podendo aquele ter cometido uma infração não tão grave, mas possuir um quadro de
instabilidade cognitiva elevada e consequentemente possuindo um grau maior de
periculosidade.
A importância da colaboração entre juízes e médicos para uma aplicação correta da
medida de segurança é de suma importância para que efetive o ideal do Direito penal, o
sentimento de justiça adquirido pela sociedade, a recuperação do infrator com
problemas mentais e a ressocialização do mesmo num contexto sócio familiar.

2.3 DEFICIÊNCIAS ESTATAIS

Muito se especula acerca dos diagnósticos e características dos sujeitos portadores


de TPA, no entanto o Brasil pouco produz em detrimento do avanço dessas análises. O
estado não investe em aparelhagem especializada, como na compra de máquinas de
ressonância magnética para análises cerebrais mais precisas, tampouco fornece as
condições mínimas esperadas para a permanência dos criminosos em Hospitais de
Custódia, bem como nos casos de tratamento ambulatorial.
A grande quantidade de casos que lotam o judiciário brasileiro, consequentemente
influindo na celeridade da resolução dos casos, é mais um fator a ser considerado
quando do diagnóstico tardio, inconclusivo e irresoluto dos casos de TPA conhecidos.
Não há especialistas suficientes, nem tempo disponível para que os laudos sejam
entregues da forma esperada e os prognósticos acabam por serem insuficientes. Esse
quadro pode refletir na ausência de diagnóstico, quando o quadro psicológico do sujeito
não externou as características comumente associadas aos portadores do transtorno,
fazendo com que diversos criminosos tenham sido enquadrados de acordo com o que
tange a imputabilidade plena, ou seja, criminosos portadores de TPA respondendo
criminalmente como um não portador, sendo julgado e posteriormente preso junto com
criminosos comuns, resultando em risco para sua própria integridade física e a dos
demais presos.

Além disso, não há prisões “especiais” para psicopatas, eles cumprem a pena
em conjunto com outros criminosos, de todas as espécies. Como tem
profunda habilidade em manipulação, irão manipular outros presidiários a
fazer rebeliões, a carcerários para atingir seus objetivos, e serão rapidamente
liberados da cadeia, pois que serão presos exemplares. [...] Aplicar uma
Medida de Segurança em Hospitais de Tratamento e Custódia e tratamento
ambulatorial comum também não parece ser a medida mais efetiva.
Conforme já pudemos perceber, os psicopatas não são doentes mentais e não
padecem de sintomas similares àqueles esquizofrênicos ou dementes. Interná-
los nestes hospitais juntos com outros indivíduos que realmente tem
enfermidade mental não parece, de forma alguma, ser o tratamento efetivo.
Além disso, o simples tratamento ambulatorial também não indica ser o
melhor caminho para reabilitar tais indivíduos na sociedade. – OLIVEIRA,
Alexandra C. L.; Monografia/PUC-Rio (2012)

A falta de formação e conhecimento dos quadros psicológicos dos criminosos por parte
dos juízes também é um agravante na estrutura judiciária, o que impede que o juiz
reconheça a inexistência ou ignorância dos preceitos morais na figura do sujeito
“psicopata”, preceitos esses que norteiam as normas e que são ignorados pelos
portadores do TPA. Dessa forma, os juízes não possuem um entendimento unânime
sobre os quadros de TPA, justificado pelo uso das medidas de segurança pelos que
consideram os sujeitos criminosos semi-imputáveis, ou pelo uso da pena máxima do
tipo pelos que consideram que os sujeitos são plenamente imputáveis, no entanto,
ambos culminando na reclusão do sujeito. No primeiro caso por tempo indeterminado e
no segundo pelo período máximo de pena do tipo. Ainda mais omissa que o judiciário
se encontra a legislação brasileira, que sequer buscou possuir uma legislação específica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entende-se, portanto, que as características e métodos psicológicos e ou penais


são ainda dispersos e vagos quando se trata dos meios a serem realizados com pessoas
cuja personalidade é perversa, levando em consideração a inexistência de tratamento a
esse público, bem como, o grande quantitativo de teorias a respeito das causas
específicas do transtorno de personalidade antissocial. Leva-se em consideração que a
sociedade necessita sim, de testes psicológicos precisos, de diagnósticos certeiros, de
discussões sobre as dificuldades e teorias a respeito dos problemas, mas precisa-se
também e com muita urgência, de tratamentos e intervenções que sanem ou amenizem
tais características, e tais intervenções não é uma solução a ser buscada apenas por uma
área específica, mas algo que compete a vários órgãos.
Na área Penal, ainda há diversas divergências quanto as considerações de
imputabilidade do criminoso portador de TPA, as Jurisprudências não são unânimes e, a
depender do caso concreto, surgem lacunas legislativas e judiciais. As carências estatais
agravam ainda mais o quadro de instabilidade, fazendo com que a realidade presente
permaneça uma incógnita sem prazo para resolução. No Legislativo não há em trâmite
nenhuma proposta que vise adequar a situação dos quadros existentes, tampouco para
prevenir novas situações observando as definições psicanalíticas acerca do TPA.

REFERÊNCIAS

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ampl. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2014
BRASIL. Constituição (1988) Constituição Federal da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF, 1988.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - TO. Recurso Especial nº 1.533.802. Recorrente:


DIEGO MARADONA DOS SANTOS SILVA. Relator: Ministra Maria Thereza de
Assis Moura. Recurso Especial Nº 1.533.802 - To (2015/0123231-4). Brasília: Stj, 28
jun. 2017. Disponível em:
<https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/473179740/recurso-especial-resp-1533802-
to-2015-0123231-4?ref=juris-tabs>. Acesso em: 28 jun. 2017.

BORDINA, I. A.; OFFORDB, D. R. Transtorno da conduta e Transtorno da


conduta e comportamento anti-social. Rev Bras Psiquiatr 2000; 22(Supl II):12-5

DEL-BEM, C. M. Neurobiologia do transtorno de personalidade anti-social. Rev.


Psiq. Clín. 32 (1); 27-36, 2005.

EIZIRIK, C. L.; AGUIAR, R. W.; SCHESTATSKY, S. Psicoterapia de orientação


analítica: fundamentos teóricos e clínicos – 3. Ed. – Porto Alegre: Artmed, 2015.

FADIMAN, J. 1939. Teorias da personalidade – São Paulo HARBRA, 1986.

LAPLANCHE, J. Vocabulário da psicanálise – 4ª ed. – São Paulo: Martins Fontes,


2001.

PRESIDÊNCIA DA REPUBLICA. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940.


Código Penal. Rio de Janeiro, RJ

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto-lei nº 3.941, de 09 de dezembro de 1941.


Decreto-lei Nº 3.914, de 9 de Dezembro de 1941.: Lei de introdução do Código Penal
(decreto-lei n. 2.848, de 7-12-940) e da Lei das Contravenções Penais (decreto-lei n.
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MEIRA, M.Y. As estruturas clínicas e a criança. Ed. Casa do Psicólogo, 2004

NASCIMENTO, M. I. C. et al. Manual diagnóstico e estatístico de Transtornos


Mentais. Ed. 5, p. 1-976. 2013.

OLIVEIRA, Alexandra C. L. A RESPONSABILIDADE PENAL DOS


PSICOPATAS. Rio de Janeiro, PUC-Rio. 2012. Cap. 3. p. 8
LGBTQI CRIMINAL JUSTICE: Um estudo sócio-construtor sobre os elementos
que ensejam a criminalização da LGBTQIfobia

Claudio Matheus da Silva Gomes12


João Antônio Nunes Silva Barbosa Piancó13

GT: 05 CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA, ESTADO PENAL E DIREITOS


HUMANOS

RESUMO

O presente trabalho visa apresentar elementos sociais responsáveis por construir a


homofobia, sugerindo que tal comportamento faz surgir um novo tipo conduta passível
de prevenção e tipificação. Objetiva-se com o mesmo analisar tais elementos de modo
elaborar políticas preventivas a fim de evitar o delito e caso esta falhe no caso concreto,
sugerir uma punição, buscando sua diminuição de forma a não incitar mais violência na
sociedade. Baseado nestas busca-se prever como sua aplicação se desenvolverá na
comunidade, bem como as consequências e a repercussão das mesmas.

Palavras-chave: LGBTQI. Criminalização. Estado. Prevenção. Humanização.

INTRODUÇÃO

Na Antiguidade as relações homossexuais eram tão comuns como as relações


heterossexuais de hoje em dia. Tribos indígenas das ilhas da região do oceano pacífico,
cerca de 10 mil anos atrás já exercitavam algumas formas de homossexualidade ritual.
Na Grécia e na Roma da Antiguidade, era absolutamente comum um homem ter
relações sexuais com outro como forma de troca de conhecimento. Apenas quando o
imperador romano Constantino converteu-se à fé cristã, e o cristianismo tornou-se
obrigatório no maior império do mundo, o sexo passou a ser encarado apenas como

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Graduando em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP | DeVry. Pesquisador
do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Direitos Humanos – Mércia Albuquerque,
Extensionista no DHiálogos - Ciclo de Debate sobre Sociedade e Direitos Humanos e Extensionista e
Pesquisador no grupo de extensão e pesquisa Associa – Existir e Educar. E-mail: cmg824@hotmail.com.
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Graduando em Direito– Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP | DeVry, Pesquisador do
Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Direitos Humanos – Mércia Albuquerque e
Extensionista no DHiálogos - Ciclo de Debate sobre Sociedade e Direitos Humanos.
forma de gerar filhos, conforme a pregação religiosa a homossexualidade virou algo
antinatural, passando-se a coibir qualquer ato considerado homo afetivo, e até mesmo
com o passar dos anos tentando-se associar a tal a problemas genéticos elevando-a ao
patamar de doença psicológica.
Nestes termos a população LGBTQI passou a sofrer represália pela sexualidade
manifestada em si, configurando uma minoria sociocultural que é massacrada por
grupos majoritários donos do controle social e econômico, quando estes estabelecem
padrões usando da influência surgida desse poder, padrões estes atribuídos ainda na
infância, visto o caráter hetero dominante persistente por toda a história, que é imputado
às crianças (ARIÉS apud ULANOWICZ, 2015), assim os homossexuais por sentirem
atração pelo mesmo sexo, os bissexuais por se identificarem sexualmente com ambos os
sexos, sendo muitas vezes considerados promíscuos, bem como ao surgir os transexuais
com a modernidade, os tais sendo consideradas aberrações, por seu sentimento de
incompatibilidade com seu corpo de nascença, vez que buscam alterá-lo, e por fim os
queers, indivíduos que não são heterossexuais ou se identificam com o binarismo dos
sexos, e os intersexuais que configuram pessoas que nascem com uma anatomia sexual
que não se encaixa na definição típica de sexo feminino ou masculino, como, por
exemplo, os hermafroditas, ou seres humanos que possuem genitálias com formação
incomum, como um clitóris avantajado sem abertura vaginal ou um pênis envolto por
lábios vaginais, ou ainda nascerem com anatomias femininas e genitais masculinas e
vice-versa. Todas essas características trazem a quem as possui aversão social, estes
sofrendo agressões, ou a morte por modos majoritariamente cruéis e sádicos, impondo
medo.
No período República explodem os movimentos em prol dos direitos dos
homossexuais, lésbicas e transexuais, abrindo precedentes para a evolução jurídica,
marcada pelo surgimento de novas definições de indivíduos e da forma de auto
reconhecimento, como o estouro das Drag Queens em 1950. Chegando ao período
Contemporâneo, os meios de comunicação avançados, em especial a internet deu um
poder de informação fortificante aos grupos minoritários, havendo um contraste ainda
maior entre a propagação sociocultural dos membros da comunidade LGBTQI e a
violência empregada a estes, nos fazendo olhar para dentro de si mesmo e pensar como
esses indivíduos estão sendo protegidos pelo Estado.
Nesse questionamento viramos nossos olhos para o direito penal, vertente estatal
responsável por manter a ordem na sociedade em face de atos violentos, e entende-se
que não existem dispositivos específicos no ordenamento jurídico que garantam a
proteção de tal grupo, logo questões relativas à como proceder para criação do citado
dispositivo e que elementos sócio construtores fazem deduzir sua necessidade surgem.
Com a finalidade de respondê-los, neste trabalho objetiva-se propor uma punição
específica para aqueles que cometerem atos violentos contra indivíduos membros da
população LGBTQI. Também é objetivo do presente trabalho analisar os elementos
psicológicos e sociais que fazem com que a grande maioria da população heterossexual
tenha aversão ao grupo em questão, analisando suas formações sociológicas. Objetiva-
se aqui propor meios para a prevenção da violência e evolução da sociedade como um
todo quando o assunto é gênero.
Para a consecução deste trabalho no que se trata dos objetivos utilizar-se-á de
pesquisa exploratória e descritiva, com vistas a construir hipóteses, pretendendo
descrever e desvendar os fatos e fenômenos de determinada realidade (SILVEIRA e
GERHARDT, 2009). No que diz respeito aos procedimentos será utilizada a pesquisa
documental, na qual serão usadas pesquisas estatísticas relacionadas a população
LGBTQI, sempre atentando para a validade e a fidedignidade das informações
(LAKATOS, 2003). Outro tipo de pesquisa neste mesmo viés que também será
utilizada é a bibliográfica, na qual, através de doutrinadores específicos, busca-se
mesclar definições e corroborar teorias, de modo a possibilitar produção teórica
multifacetada e progressiva, permitindo o pleno entendimento do que se pretende
defender. (LAKATOS, 2003). As pesquisas discutidas acima serão catalisadas por meio
de uma abordagem qualitativa, que tem como intuito o levantamento de dados sobre as
motivações dos indivíduos agressores e encaixando traços do direito penal na situação a
ser tratada, produzindo informações aprofundadas (SILVEIRA e GERHARDT, 2009).
Verifica-se a necessidade de abordar essa temática no meio acadêmico visto a
pouca atenção dada pelos doutrinadores em discutir um assunto tão importante que vem
acompanhado de uma enxurrada de novos direitos, que certamente merecem mais
atenção, para que haja seu desenvolvimento e disseminação dentro da formação teórica
do próprio direito, ajudando assim a criar juristas com uma visão ampla e
constantemente inovadora. No âmbito social, o desenvolvimento deste assunto se
mostra necessário visto sua importância para a ordem pública e a conscientização da
população sobre “ser humano”, e as punições possíveis quando há crueldade para com
este, já em relação ao poder legislativo é mister cada vez mais a elevação do trazido
tema, para que este posicione-se em relação ao tema, cumprindo seu papel de regular a
sociedade por meio de penas na medida de suas paixões e anseios.

DESENVOLVIMENTO

1. Construção social: Heteronormatividade e Performatividade de gênero

Para entender como, e de onde surge a repugnância pelos indivíduos da


comunidade LGBTQI faz-se necessário se basear em dois conceitos trazidos por Judith
Butler (2010) em sua obra que proporcionam um olhar aberto e inovador sobre gênero.
Primeiramente, aborda-se aqui a característica social que funda o surgimento da
homofobia, chamada de heteronormativade, que em sentido estrito caracteriza-se por ser
a imposição do padrão heterossexual na sociedade não aceitando qualquer desvio da
norma, porém existem determinados aspectos que formam este conceito.
A matriz heterossexual é todas as normas socioculturais que compõem o meio de
manifestação sexual considerado pela comunidade como único, essas normas culturais,
por sua vez, são a identidade lógica corporal que é atribuída a cada pessoa desde seu
nascimento, ou seja, assim que uma nova criança chega ao mundo inteligível, lhe é
imposto em face papéis previamente estabelecido, a qual sexo deve pertencer, nos
levando a questão do complexo de Édipo, tão discutido em embates psicanalista O tal
complexo nos diz que primariamente somos todos bissexuais, e aqueles por quem nos
“apaixonamos” primeiro são nossos pais, e a partir dessa paixão é que nasceria nossa
sexualidade, vez que o filho compete com o pai pelo amor da mãe, e a filha faz o
mesmo pela atenção do pai, sendo muitas vezes reprimidos quanto tentam fazer o
contrário.
A segunda característica da heteronormatividade encontra-se na definição de
sexo e gênero, por motivos expostos na introdução vê-se que o a binariedade sexual
passou a predominar, estabelecendo assim o masculino e o feminino, de forma que pela
persistência destes ensinamentos pelo tempo, instalou-se uma hegemonia masculina, na
qual qualquer outro tipo de gênero ou sexo é abominado e descartado pela sociedade.
No que se trata da performatividade de gênero, Butler aborda um debate
instigante sobre os atos que definem cada gênero, homens devem ter características
fortes, brutas e viris, enquanto mulheres devem demonstrar delicadeza e fragilidade,
assim quando há a feminilização do homem ou a masculinização da mulher, há uma
vinculação dessas pessoas a comunidade LGBTQI, onde na verdade muitas vezes tal
vinculação é mero preconceito. Não significa dizer que, o fato de um homem não
possuir características atribuídas como “próprias dos homens”, que deva ser excluído.
1. 2 LGBTQIfobia: A formação entre espaços
A aversão a pessoas que pertencem a população LGBTQI tem muitas faces e se
propaga em diferentes espaços por diferentes razões, o que nos leva a novamente
abordar a infância, na qual sorrateiramente os primeiros traços de tais atos começam a
se manifestar como, por exemplo, quando um pai repreende um filho por apresentar
características ditas femininas pela sociedade (PRADO e DINIZ apud VENTURI e
BOKANY, 2011), nascendo então um tipo de homofobia familiar, se assim podemos a
chamar, sendo tal repreensão fruto de elementos sócio psíquicos impostos da
comunidade externa para o seio familiar.
No próximo grupo social que é a escola, novos embates socioculturais surgem,
pois as maneiras de se educar em casa formam diferentes indivíduos, que ao conviverem
no meio educacional conflitam-se de tal forma a gerar atos violentos da parte dos
colegas para com o aluno que está a descobrir sua sexualidade, ou negligência dos
docentes e demais funcionários do campo escolar em relação a este, ou os dois
(LOURO, 2003). Migrando para o campo laboral, verifica-se uma resistência enorme na
maioria nos estabelecimentos comerciais em celebrar vínculos de trabalho com
homossexuais, bissexuais, lésbicas e travestis, dificultando assim a integração destes na
sociedade e contribuindo para a marginalização dessas pessoas, fazendo com que a raiva
contra elas cresça (VENTURI e BOKANY, 2011).
De modo geral, os ditames heteronormativos sobre o corpo e o sexo
esparramados entre os indivíduos do mundo atual, resultam num conjunto de pessoas
intolerantes a qualquer desvio destes, intolerância esta manifestada desde os campos
mais básicos da sociedade até os mais complexos atingindo não somente os indivíduos
propriamente ditos (VENTURI e BOKANY, 2011), mas, algumas vezes pessoas
próximas a eles caracterizando assim uma homofobia indireta.
Ainda cabe destacar os pontos de interseção que acontecem quando num mesmo
indivíduo encontram-se vários grupos marginalizados pela comunidade, como, por
exemplo, quando existe um negro, bissexual, e pobre, ou seja, ele recebe desprezo de
alguns por ser negro, de outros por ser bissexual, e de outros por não possuir grande
poder econômico, assim a bissexualidade encontrada se funde com seu campo
dermatológico e patrimonial aos olhos dos mais conservadores, havendo assim o que
poderia se chamar de um contraste marginalizador.
1.3 Tipos de homofobia: Separar para evoluir
Divergindo de uma ideia geral e única como é muitas vezes trazido em debates e
até mesmo alguns periódicos, a homofobia divide-se em algumas subseções que devem
ser explanadas e exploradas para que haja uma melhor construção e entendimento sobre
como ela se forma lato sensu, e de que modo constrói-se tal repugno por tais indivíduos.
Em primeiro lugar fala-se em um repartimento entre homofobia irracional e
homofobia cognitiva (BORILLO, 2010), assim a irracional é marcada por uma
manifestação pautada nas emoções provenientes propriamente de um medo em relação a
indivíduos LGBTQI, revelando violência causada por um pensamento fora da razão
humana, pautada em embates individuais dentro do ser. Já a homofobia cognitiva, é
curiosa, pois não é tão bruta quanto a anterior aqui citada, porém progride da mesma
forma, vez que esta diz respeito a atos que convergem para reafirmar a
heteronormatividade, sem explicitamente rejeitar pessoas que se relacionam com o
mesmo sexo, mas, não se sentir indignado se alguma dessas não é respeitada ou é usada
como instrumento de brincadeiras dissimuladas ou pejorativas.
Seguindo a tipologia aqui apresentada chega-se a mais duas subdivisões, a
primeira chama-se de homofobia geral (BORILLO, 2010), caracterizada pela
abominação de homens que expressem trejeitos femininos e vice-versa, trejeitos estes
que levantem quaisquer suspeitas de atração pelo sexo igual a eles, de maneira que
aqueles que a praticam pouco se importam se o ser ali em questão realmente sente tal
atração ou não.
A homofobia específica por sua vez, diz respeito a atos de aversão direcionados
respectivamente a homossexuais, bissexuais e transexuais que são conhecidos e
afirmados como tais (BORILLO, 2010), até mesmo chegando a serem criados termos
específicos para cada um como gayfobia e lesbofobia, cabendo em relação à última
ressaltar que além de todo enojo expressado nesta em relação as lésbicas, ainda é
atribuído a elas características sexistas por serem mulheres, ou seja, devem ser
submissas ao homens heterossexuais e são inferiores a estes, vez que não são capazes de
evoluir como os mesmos, revelando um misto de machismo, sexismo e homofobia
imputado a estas.
2. Prevenção: Educar e Proteger o ser
Duas consequências advindas do poder socioeconômico burguês previamente
citado ocorrem na sociedade brasileira, (FERNANDES, 2013) a unilateralidade do
interesse social, ou seja, as únicas problemáticas que valem a pena ser discutidas são as
do estrato social dominante e privilegiado pela cultura revelando um total desprezo
pelas questões de cunho coletivo que se encontram implícitas na sociedade, e a segunda
consequência nós denominamos de decantação conveniente, que corresponde a atos do
grupo social dominante para filtrar as decisões que envolvam democracia e direitos
sociais a seu favor, criando assim uma comunidade democrática baseada na imposição
de parâmetros normativos, mostrando um modo coercitivo de mudança social. Também
cabe ressaltar que a grande influência de classe tinha como um forte pilar, a imposição
de costumes aos mais jovens que eram privados de qualquer discussão que envolvesse
sexualidade, e muitas vezes tendo o sexo em si sendo jogado em seu consciente sem a
menor cautela (ARIÉS apud ULANOWICZ, 2014). Porém, a sociedade é dinâmica, e
certas mudanças não podem ser suprimidas mesmo pelos mais poderosos, motivo este
que os assustam, e prova que povos são dotados de fluidez que traz as suas
comunidades internas novos pontos de discussão e ação marcados por uma revolta
contra a ordem pré-estabelecida (FERNANDES,2013), de modo que o único jeito de
sair de tal impasse, é o mais simples e lógico: passando por ele.
Dessa forma, para ultrapassar tal entrave são imprescindíveis medidas que
enfrentem a homofobia mesmo antes que ela se torne um problema, no qual a única
solução seja a punição estatal, porém paralela às mesmas, é necessário a prática de atos
de neutralização do repugno a população LGBTQI em meios comunitários.
Assim, deve-se começar pelo campo pedagógico, no qual deve ser sempre
estimulado o desprendimento do padrão heterosexista por meio de cartilhas e projetos
educacionais que mostrem que outras sexualidades são tão normais quanto à
heterossexualidade, e incentivem os integrantes de tal campo a ter uma visão ampla
sobre as mesmas e seus desdobramentos (BORILLO, 2010), sendo que os docentes
neste âmbito devem ser devidamente capacitados para saber lidar com situações de
contraste entre as sexualidades de seus alunos e serem protagonistas no que diz respeito
ao respeito entre diferentes (LOURO, 2003), reforçando sempre que as diferenças são
sociais, nada os difere como seres humanos tangíveis.
O próximo meio em que se devem tomar medidas preventivas é o familiar, pais
devem ser orientados por meio de palestras, cursos e reuniões a absorver que o fato de
seus filhos serem homossexuais, bissexuais ou transexuais, não interfere na condição
humana deles (BORILLO, 2010), vez que estes continuam a serem seus filhos e a ter
laços fraternais com os mesmos, e não é a sexualidade deles que os fará destroçar toda
uma base familiar já existente. Por fim, as autoridades policiais, civil e militar, bem
como magistrados e governantes devem receber formação especializada com a
finalidade de eliminar qualquer preconceito de corporações responsáveis pela proteção
comunitária, além de ser informados de como proceder em casos de atos violentos
provenientes da homofobia.
2.2 Estatuto das pessoas LGBTQI
Muitos grupos minoritários ao passo que ganham força social conquistam
direitos muito relevantes (IHERING, 2009), e um deles configura-se num estatuto
próprio, no qual é definido que pessoas fazem parte de tal grupo, quais garantias estas
possuem, quais direitos específicos responsáveis por dar um tratamento igualitário a
elas, ressaltando que se fala em igualdade pelos caminhos da equidade, ou seja, nem
acima, nem abaixo, mas lado a lado. Nele ainda é definido as medidas de proteção
passivas que devem ser imputadas em casos de agressões a estes e por fim as entidades
que tem o propósito de suportar tal grupo, além de orientações sobre a participação
deste na sociedade, como, por exemplo, o Estatuto do Idoso e o Estatuto das pessoas
com deficiência. Logo, propõe-se a criação de um Estatuto específico para Gays e
Lésbicas, os Bissexuais, os Transexuais, os Travestis, os Queers e os Intersexuais, enfim
para todos aqueles que se encaixam na comunidade LGBTQI, devendo este trazer a
definição de cada uma destas sexualidades, garantir a tais indivíduos meios de
manifestar sua sexualidade livremente, estabelecer direitos que os ajudem a ascender na
sociedade como qualquer outro de sexualidade heterossexual, além de criar medidas que
protejam esses seres humanos quando sua dignidade ou estabilidade sócia cultural
estiverem sendo abaladas por influência externa e definir o papel igualitário que estes
devem possuir na sociedade através da força da lei (BUTLER, 2010).
Nesse estatuto devem ser observadas especificamente as questões relacionadas
ao trabalho, visto como já foi citado muitas vezes é tolhido dos membros da população
LGBTQI, buscando a priori alertar donos de estabelecimentos que praticarem
segregação baseada na sexualidade. Ainda em tal lei a questão educacional abordada
previamente aqui não pode ser esquecida, pois é por meio desta que se deve aprofundar
a introdução da temática LGBTQI nas escolas de forma pacífica e gradual (LOURO,
2003), além de abordar questões de acolhimento pelo Estado de jovens que sejam
vítimas de abandono ou negligência parental por ser parte deste grupo. Este Estatuto
teria o objetivo de prevenir que condutas homofóbicas venham a acontecer, ou seja,
evitar o ato antes mesmo de que aconteça, para que a punição não seja necessária ou,
seja aplicada em doses minúsculas, ao trazer uma força normativa de recomendação e
cumprimento obrigatório ao mesmo tempo.
3. Criminalização: O ato. A consequência. A punição.
A punição surge como a reação do Estado garantida no contrato social a todos os
atos que venham a causar desordem na comunidade, logo durante os tempos esta
progrediu de um caráter estritamente punitivo e que tinha como alvo o corpo usando de
castigos corporais, torturas e suplícios para o controle dos delitos através de métodos
sádicos e cruéis (FOCAULT, 1987), para uma pena como dois objetivos, punir e educar
representando a teoria mista do direito penal que visa não só retribuir o mal causado,
mas, também evitar que novos delitos venham a acontecer e reformar o criminoso para
que tome ciência do mal que causou de um ponto coletivo e se reinsira na sociedade
com um sentimento de solidariedade e recomeço.
Desta forma a criminalização vem com três finalidades, revidar o cometimento
de um delito vez que surge uma conduta antes não conhecida que está a destoar da paz
social e necessita ser tipificada para ser devidamente punida (ROXIN, 2001), educar
diretamente aquele que comete o determinado ato retribuindo justamente este por meio
do poder estatal e indiretamente aqueles que cogitam praticá-lo vez que impões força
normativa, e proteger certo grupo social de qualquer ataque que vá suprimir seus
direitos fundamentais ou reprimir seu poder de manifestação e militância.
A segurança social que fala Bicudo baseada em Jeremy Bentham deve ser garantida de
forma pacífica e racional, sempre buscando infligir uma consequência a um delito na
mesma proporcionalidade, utilizando o direito penal. É interessante trazer três das seis
normas elencadas por eles para a efetiva aplicação do direito penal, são elas as
seguintes, primeiro a gravidade da punição deve ser suficiente para superar a ofensa do
crime, segundo de acordo com a quantidade de dano proveniente do crime, o caminho
da punição será mais tortuoso, e por último o quantitativo de pena deve ser observado
com base em criminosos semelhantes e a sensibilidade de cada um.
Trazendo tais conceitos para o tema que este trabalho trata, verifica-se que atos
homofóbicos sejam eles psíquicos ou físicos tem se prostrado ante a história, sendo
ignorados pelo direito em si e a população de modo geral, tendo feito um grande
número de vítimas fatais e derrubando a proteção firmada entre o Estado e o povo no
contrato (BICUDO, 2010), vez que este se mostra omisso em tais casos, sendo
necessária lei que trate especificamente de situações que envolvam ações violentas fruto
de LGBTQIfobia.
O grupo Gay da Bahia, uma das associações mais importantes no que se trata
dos direitos LGBTQI no Brasil traz números resultantes das pesquisas conduzidas por
ele que mostram a necessidade da implantação de um dispositivo penal que regule tais
atos no ordenamento jurídico brasileiro, sendo os mais relevantes para o que se discute
nesse trabalho os de morte de pessoas da população LGBTQI como mostra a tabela
abaixo:

Tabela 1 – Perfil das vítimas LGBT's mortas no Brasil em 2016

Porcentagem Perfil

1% Bissexuais

3% Lésbicas

4% T-lovers

42% Transexuais e Travestis

50% Homossexuais

GGB: Dados de homícidios LGBT

Matança da população LGBT foi recorde em 2016, com 343 mortes. O relatório
é feito com base em notícias e informações que chegam ao conhecimento do grupo, e a
população de travestis e transexuais correspondeu a 42% das mortes, num total de 144
vítimas. De acordo com a organização, as pessoas trans são as mais vitimizadas, sendo
que o risco de elas serem assassinadas é 14 vezes maior em relação a gays. Dessas
mortes, 50% foram de gays, correspondendo a 173 pessoas, além disso 4% equivale a
12 pessoas T-lovers (amantes de transexuais), 3% corresponde a 10 lésbicas e 1% a 4
bissexuais.
É mister ressaltar que a criminalização não deve ser encarada como um medida
violenta que busca um resultado sanguinário por meio de ataques a quem pratique as
condutas previstas pelo dispositivo a ser criado, sua função é de ultima ratio, sempre
visando para sua extinção, visto que se busca reprimir tais atos de modo que no futuro
esta repressão não seja mais necessária, logo a seguir explana-se a base princípio- lógica
que faz acreditar na necessidade de se inserir uma punição para a LGBTQIfobia, de que
forma esta será inserida e como será aplicada de acordo com o modelo penal atual.
3.1 Princípios ensejadores
Os princípios surgem para facilitar a interpretação da norma bruta dentro da
seara jurídica, ajudando a regular a sociedade de forma a ter muitas vezes força de
regra, e ser usados para embasar decisões jurídicas, legislativas e executivas, revelando
assim ser de grande importância para a manutenção do direito (ALEXY, 2008). Estes,
porém, não possuem apenas essas funções, pois como adquire força de norma, influem
o suficiente para ensejar a criação de novos dispositivos por que nascem justamente dos
usos do direito, neste caso, o penal, sendo muitos deles provenientes de parâmetros
constitucionais tendo cunho supremo na ordem social, sendo fonte normativa primária.
Desta forma adentrando o meio criminal, percebe-se um apanhado
principiologica que faz entender ser preciso o surgimento de uma pena específica para
os indivíduos que praticam atos homofóbicos que denigra o outro, física ou
psicologicamente, apanhado este que será exposto e coligado nas seguintes linhas.
Começa-se pelo princípio da Legalidade ou da reserva legal que diz que, não há
crime sem lei que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, tendo por base o
artigo 5º da Constituição da República de 1988, XXXIX e Código Penal art. 1º. Tal
princípio deve ser entendido como a vedação da aplicação de penalidade quando esta
não tiver previsão legal (BITTENCOURT, 2011). Com a tipificação dos atos
LGBTQIfóbicos, condutas praticadas contra essa comunidade, terão as suas devidas
penas aplicadas aos infratores.
Após este é relevante o princípio da ofensividade que dispõe que não basta que a
conduta seja imoral ou pecaminosa, ela deve ofender um bem jurídico provocando uma
lesão efetiva ou um perigo concreto ao bem (BITTENCOURT, 2011). Tal princípio é
importante, pois, é fundamental que as condutas ora tipificadas devem ser além de
imorais e pecaminosas, devem ofender um bem jurídico, uma lesão efetiva ou um
perigo concreto, desse modo a criminalização da LBTQIfobia é pertinente pois além de
conduta típica, matar, mata-se por preconceito, ou a conduta típica, agredir, agride-se
por preconceito.
Por fim analisa-se o princípio da fragmentariedade em favor do atingido pelas
ações de cunho LGBTQIfóbico vez que o direito penal não deve englobar todos os bens
jurídicos, mas, apenas os indispensáveis para que haja ordem social (BITTENCOURT,
2011), assim a vida e a integridade de indivíduos LGBTQI configuram tais bens e
devem ser protegidos devidamente e sem excessos, analisando o caso concreto através
de uma visão garantíssima penal.
3.1.1 Internacionalmente: Princípios de Yogiakarta
Os princípios de Yogiakarta configuram uma carta de nível internacional que
traz princípios relacionados à aplicação dos Direitos Humanos e leis globais no que é
concernente a sexualidade e identidade de gênero. Os cinco primeiros princípios
expostos em tal documento dão premissa para a criminalização de que trata este
trabalho nos termos que serão trazidos a seguir.
O Estado tem a obrigação de que todos possam desfrutar dos Direitos Humanos
sem impedimentos não importa a sexualidade destes, caracterizando o princípio do
direito ao gozo universal dos direitos humanos. Em seguida, vem o princípio da
igualdade e não discriminação que nos diz que qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência baseada na sexualidade prejudique a igualdade perante a lei ou o exercício,
de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais igualmente deve ser
regulada pela lei do país de modo não acontecer.
O princípio do reconhecimento perante a lei se mostra muito relevante, pois,
para que a lei penal aqui discutida tenha eficiência, o Estado deve reconhecer os Gays e
Lésbicas, os Bissexuais, os Transexuais, os Travestis, os Queers e os Intersexuais como
indivíduos sujeitos de proteção legislativa na sua forma mais perfeita, que é objetivo de
tal princípio. Para concluir têm-se dois princípios basilares dos Direitos Humanos e
trazidos no documento de Yogikarta com uma visão voltada para a sexualidade, são
eles, o direito à vida e segurança pessoal que, em suma, reforçam que ninguém deverá
ser privado do bem da vida por causa de sua identidade de gênero ou sexualidade e
todos deve receber segurança estatal por igual, não sendo segregados pelos mesmos
motivos.

3.2 Causa de aumento e Aplicabilidade trifásica


Propõe-se aqui a inserção de uma causa de aumento geral nos crimes de
homicídio e lesão corporal praticados com base em ideais LGBTQIfóbicos, não
criminalizando condutas, pois as mesmas já existem vez que matar alguém e ofender a
integridade corporal ou a saúde de alguém já são tipificados no Código Penal vigente, o
que se busca com tal recurso é agravar a pena por estas condutas, quando elas forem
provenientes de aversão a sexualidades diferentes da heterossexualidade, a ponto de que
a mesma cause danos a outrem. Esta causa de aumento pode variar entre 1/3 ou 2/3 em
relação a pena dependendo da gravidade da lesão corporal ou do nível de crueldade
empregada na morte em casos de homicídio quando se verificar que esta guarda relação
com a sexualidade da vítima, não com outras características já tipificadas.
Definida a causa de aumento passa-se para sua aplicação, desta forma nos casos
em que for cabível tal aumento de pena, se seguirá o rito de aplicação de pena
tradicional, composto pelas circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal na 1
fase, pelas agravantes e atenuantes dos 61 e 62 na 2, e por fim na 3 fase a incidência das
causas de aumento e diminuição caracterizando o modelo trifásico básico da execução
penal.
Nos termos acima, o juiz após analisar à culpabilidade, aos antecedentes, à
conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e
consequências do crime, assim como ao comportamento da vítima na primeira fase da
punição em relação ao crime de homicídio ou lesão corporal, estabelecerá a pena base
não podendo sair do mínimo ou máximo legal previstos nos tipos de ambos, após isso
passará para formulação da pena provisória, na qual agravará ou atenuará a pena de
acordo com o disposto nos artigos 61 e 62 do Código Penal, lembrando que a mesma
ainda deve se manter no nível legal previsto em seu bojo, por fim na última fase quando
os crimes em questão forem cometidos por meio de atos LGBTQIfóbicos o juiz deve
aumentar a pena levando em consideração, no caso de lesão corporal, a gravidade desta,
e no caso de homicídio o modus operandi, ou seja, a forma como se consumou o crime
se foi mais cruel ou menos cruel.
3.4 Proteção especializada
Nos termos da majorante proposta, verifica-se que para que haja seu efetivo
reconhecimento e a desmarginalização do grupo que esta visa proteger é necessária a
implantação de delegacias especializadas em casos de atos LGBTQIfóbicos,
compreendendo desde a denúncia, passando pela investigação até a conclusão do
inquérito.
Dúvidas, porém, surgem de como formar tais delegacias, como quais princípios
seguir? Como proceder em relação a ocorrências? De forma os policiais devem ser
orientados? Dentre outros questionamentos que acompanham estes mais relevantes.
Para respondê-los usa-se aqui como base a NORMA TÉCNICA DE PADRONIZAÇÃO
DAS DELEGACIAS ESPECIALIZADAS DE ATENDIMENTO ÀS MULHERES
(NPDEAM), datada de 2010, fazendo uma analogia pontual entre tal norma e a proposta de
criação das delegacias especializadas em casos de violência contra os Gays e Lésbicas, os
Bissexuais, os Transexuais, os Travestis, os Queers e os Intersexuais.
De começo três princípios impulsionadores da NPDEAM guardam forte relação
com as circunstâncias que mostram a necessidade de uma DEPLGBTQI (Delegacia
Especializada em casos de violência direcionada as Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Travestis, Queers e Intersexuais).
O primeiro deles chama-se princípio da primazia dos direitos humanos, que nos
leva a entender que tais atos configuram violação dos direitos humanos dos integrantes
de tal grupo, e até daqueles que não são parte, mas, estão ligados indiretamente como
familiares e amigos. Depois deste fala-se no princípio da igualdade, não discriminação,
e segurança, que claramente não é obedecido quando ocorrem tais ações, visto que o
tratamento igualitário extinguiu-se, baseado em ideologias heteronormativas,
discriminam-se quando para agredir separam-se estes dos outros revelando desprezo e
pormenorização, e negligencia-se a segurança do próximo quando os atos acima citados
são praticados. O terceiro e último é o do atendimento integral, visto que uma vez
estabelecidas as DEPLGBTQIs e a causa de aumento, estas duas devem trabalhar para
dar um acesso integral aos seus alvos de forma a ter um processo célere e coeso.
No que se trata das ocorrências, e tomando por base a NPDEAM, deve ser
criado um sistema próprio para sua computação e desdobramento, garantindo precisão
nas informações ali armazenadas, assim como tal sistema deve estar coligado ao poder
judiciário para que se possa ter um meio de solução mais eficiente. É importante
ressaltar que questões interseccionais nessas ocorrências devem ser levadas em
consideração, como por exemplo, ataques LGBTQIfóbicos e também direcionados a
raça (Lei Afonso Arinos de 3 de Julho de 1951), ou sexo (Lei Maria da Penha de 7 de
Agosto de 2006), cabendo as sanções penais de cada um nos termos de punição
possíveis e sensatos.
No entanto, percebe-se que para que tal sistema funcione, é imprescindível que
os integrantes do corpo policial sejam orientados para tal, de modo a entender não só o
funcionamento deste, mas também os motivos de sua existência. Conduz-se esta
orientação na formação dos mesmos na academia através de cursos complementares que
serão de grande suporte para aqueles que integrassem as DEPLGBTQIs, pois os
sentimentos de solidariedade e proteção devem obrigatoriamente ser passados dos
policiais para a sociedade, estes por sua vez devem ser desconstruídos de preconceitos e
impedimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entende-se com este trabalho que, atos violentos provenientes de ideias


LGBTQIfóbicos são enraizados nos indivíduos a partir de certas características culturais
e sociais que formam a construção comunitária do “ser” humano e todo seu
desenrolamento psicológico frente a seus semelhantes, que surge muitas vezes de
maneira inconsciente nas pessoas, e faz com que matrizes e organizações socioculturais
barrem o entendimento racional.
Tais atos devem ser prevenidos ao máximo e pelos meios mais eficientes
disponíveis, para que haja a ordem social de forma educadora, repensando condutas e
usos. Os fatores que o Estatuto das pessoas LGBTQI pode trazer certamente seriam de
grande ajuda para evitar a punição e a severidade, ensinando antes de penalizar.
Assim quando esta etapa mostrar-se ineficaz deverá se aplicar a punição, esta
com objetivo de devolver um injusto e transformar a alma do ser através da pena
privativa de liberdade, aumentada pela majorante, para que se crie ciência de que se
aumentou, pois um indivíduo ou indivíduos de um grupo social marginalizado foram
atacados.
Deste modo com a referida majorante espera-se que, os crimes de lesão e
homicídio contra a população LGBTQI diminuam a cada ano de vigência do aumento, a
ponto de em algum tempo este não ser mais necessário, ou não precisar ser usado com
uma frequência alta, mas apenas em casos pontuais. Essa visão abolicionista não visa
punir para sempre, mas punir até quando preciso.
Também, são previstas com a vigência da causa de aumento três consequências,
para começar, os crimes citados acima sofrerão um aumento caso esta venha a ser
inserida no Código Penal, pois, quando aumentasse a severidade de uma conduta, a
tendência é seu aumento, porém, a próxima consequência a derruba, vez que à medida
que a penalização por tais delitos seja suavizada analisando caso a caso, a sociedade
tende a perceber que estes vão contra a humanidade presente em cada uma.
Vindo a nascer a última consequência, a repercussão social, ou seja, a partir do
momento que criminalização tornar-se famosa, pessoas irão começar a perceber a
proteção estatal em relação aqueles indivíduos, de forma que os crimes acima citados
diminuirão. Afinal grupos sociais que antes estavam desnivelados, ao nivelar-se tendem
a encontrar a ordem, fator que ao não existir impedia uma convivência igualitária aos
olhos dos mais conservadores.
Em suma, vê-se que criminalizar através de uma causa de aumento de modo
correto pode trazer benefícios tanto para o criminoso, como para a vítima, toda sua
eficácia depende do modo como esta está programada para se desenrolar, e de uma
união entre os poderes legislativo, executivo e judiciário para ao mesmo tempo exercer
a tutela dos bens jurídicos da vida e do corpo no caso da população LGBTQI e
conscientizar acerca destes promovendo a paz social.
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sobre Drogas e Crime. Norma técnica de padronização das delegacias especializadas
de atendimento às mulheres. 2. ed. Brasília, 2010.
DIREITO PENAL E SUAS INTERFACES: UM BREVE ESTUDO SOBRE
CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA E DIREITOS HUMANOS

Edileide da Silva Pereira1


Bruna Emanuelle Nemézio Duarte2
Rivaldo Mendes da Silva3

GT: CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA, ESTADO PENAL E DIREITOS HUMANOS

RESUMO

O presente artigo propõe uma interseção entre Estado Penal, criminologia crítica e
direitos humanos como esses fatores interferem na sociedade e quais a suas
importâncias para a mesma. Portanto o objetivo desse estudo é realizar análises da
intersecção de políticas com a questão social e as políticas sociais reparatórias.
Buscando assim, alternativas ao encarceramento, reflexões sobre direitos humanos. É de
fundamental importância considerar os processos de subjetivação da violência urbana,
suas representações, aspectos sobre socialização, e cultura do medo; conflitos, sociais e
criminalização da pobreza.

Palavras-chave: Criminalidade. Violência. Estado Penal. Direitos Humanos.


Subjetivação da Violência.

INTRODUÇÃO

Segundo Adorno (2002), a população tem levado em sua rotina o sentimento de


medo e insegurança, os mesmo a cada dia aumentam pelas estatísticas da criminalidade,
que exercer o crescimento da violência. Crimes como os homicídios, os roubos, os
sequestros, os estupros são considerados os mais temidos
pela sociedade. A violência tem levado um alvo nas mortes pelo público do gênero
masculino nas fases etárias adolescentes e jovens adultos, principalmente em bairros
que compõem a periferia urbana, pelas condições sociais degradadas.

O Estado Penal pode ser caracterizado pelo aumento da repressão estatal sobre
as camadas excluídas, como uma forma de conter os efeitos da redução das políticas
sociais. Conforme Wacquant (2001, p. 10), o Estado Penal constitui uma resposta “às
desordens pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho
assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do
proletariado urbano, aumentando os meios [...] do aparelho policial [...].”
Baratta (1993), afirma que a teoria do direito penal mínimo representa uma
proposta de política criminal alternativa na perspectiva da criminologia crítica. Trata-se,
sobretudo, de um programa de contenção da violência punitiva através do direito,
baseado na mais rigorosa afirmação das garantias jurídicas próprias do Estado de
Direito e dos direitos humanos de todos os cidadãos, em particular das vítimas,
processadas e condenadas pelo sistema de justiça penal. Seu programa consiste numa
ampla e rigorosa política de descriminalização e, numa perspectiva final, na superação
do atual sistema de justiça penal e sua substituição por formas mais adequadas,
diferenciadas e justas de defesa dos direitos humanos frente à violência.
Segundo afirma Tanques (2006), a violência e a criminalidade correspondem a
aspectos ocasionados pela falta de assistência social, pelo desemprego, pela falta de
oportunidades iguais para todos, pela miséria e desigualdade social. Ou seja, os desvios
de conduta dos sujeitos ocorrem devido ao sofrimento com alguns destes problemas de
ordem não apenas social, mas de caráter econômico, eis que envolve a opressão do
capital, bem como as mudanças ocorridas no mundo do trabalho com a introdução de
novas tecnologias e formas de acumulação de lucro.
As políticas públicas de segurança, justiça e penitenciárias tendem a
desenvolver estratégias mais preventivas, pois é crescente o numero dos crimes,
das violações dos direitos humanos e da violência em geral
(ADORNO, 2002). A despeito das pressões sociais e pelos investimentos
promovidos pelos governos estaduais e federais, é estimulado em
recursos financeiros, materiais e humanos para o controle da ordem pública, no quesito
direito a segurança.
Ainda para Tanques (2006), quando os indivíduos partem para a criminalidade,
apossando-se ou tentando garantir-lhes o que foi negado, o caminho que se visualiza é a
prisão, já que o Estado passou de “Estado de bem-estar social” para Estado Penal, ou
seja, opressor, que pune. Por último, analisa-se o fenômeno da banalização da
sociedade, abordando a maneira pela qual a sociedade comporta-se no que concerne às
expressões da questão social, como é o caso da violência e da criminalidade.
DESENVOLVIMENTO

CRIMINALIDADE: UM BREVE ESTUDO EPISTEMOLÓGICO SOBRE A


VIOLÊNCIA

A violência e a criminalidade são problemas sócias que constam em todas


as cidades, principalmente nas cidades grandes, as experiências da
violência interligam o crime e as práticas adotadas (CALDEIRA,1991).
Nos últimos anos a violência tem, chamado a atenção da ação política para a defesa dos
direitos humanos.
Analisada em seus conteúdos de representação, a violência indica um complexo
problema existencial, pois sentimento de insegurança existencial e da garantia do direito
tem levado a muitos a refletirem sobre a temática em tela (SILVA, 2004). Apontando a
criminalidade como narrativa social que interfere na construção da subjetividade por ser
um fator de ameaça a vitalidade do sujeito.
Como acentua os Schwendinger neste processo de redefinição do crime, os
criminólogos redefinirão a si mesmos, não mais para serem os defensores da ordem,
mas, ao contrário, os guardiões dos direitos humanos. Na reconstrução dos seus
parâmetros, eles devem tornar o homem, e não as instituições, a medida de todas as
cosias.
No discurso jurídico, geralmente, violência é sinônimo de criminalidade,
como ato violento praticado por um indivíduo ou por um grupo. Ressalta-se o
aspecto criminal e a intencionalidade da ação violenta, legitimando
uma relação entre o agressor e a vítima e o papel primordial do direito penal
como mediação universal desse tipo de conflito. Nesse mesmo discurso,
encontramos a aceitação tácita de que um comportamento violento deve ser
controlado mediante o uso de mecanismos ao mesmo tempo repressivos e
punitivos. Para as vítimas, um mínimo de compensação dos danos e do
sofrimento e para os agressores, um máximo de punição e uma vaga
esperança de ressocialização. A punição é um mecanismo de individualização
e propõe uma forma de apaziguamento do sentimento de vingança
direcionado contra o criminoso. No discurso político, o Estado deve deter o
monopólio do uso legítimo da violência e retirar do mundo social a iniciativa
para a recomposição dos conflitos, administrando à pena e controlando a
agressividade dos indivíduos, pacificando as relações interpessoais. O Estado,
dentro desse princípio, deve administrar a punição, minimizar o impacto da
violência e criar oportunidades de reintegração social (ADORNO, 1998).
Castel (2000) vai dizer que a questão social compreende o conjunto de
transformações ocasionadas pelo desenvolvimento capitalista, marcada pela luta entre
classes e destas com o Estado. Segundo Castel (2000), a questão social hoje se
configura pela desestabilização dos trabalhadores que se tornaram inúteis devido à
ordem do mercado capitalista. Quanto ao conceito da questão social é relevante
mencionar que “[...] é uma dificuldade central, a partir da qual uma sociedade se
interroga sobre sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É, em resumo, um
desafio que questiona a capacidade de existir como um todo, como um conjunto ligado
por relações de interdependência.”
Certamente, podemos compreender uma sociedade tanto pelo
sagrado (família, religião, direito) quanto pelo profano (violência, crime,
morte). A violência, nesse sentido, é uma chave compreensiva possível, mas
não pode ser considerada variável explicativa. Ela é uma variável que requer
explicação. Por exemplo, a sociedade brasileira é uma sociedade segmentar e
relacional, na medida em que as oposições sociais não são fixas; elas flutuam
segundo os contextos e as relações; as posições do dominante e do dominado
flutuam segundo a situação concreta. A violência não pode ser compreendida
a partir de quadro fixo de referência, de um quadro jurídico-político, segundo
o modelo das democracias ocidentais consolidadas. A violência pode
significar um mecanismo de recomposição da justiça quando lei e outras
formas de administração não funcionam. A violência é a ordem possível, num
mundo que oscila entre as hierarquias e o sistema de leis universais (VELHO
e ALVITO, 1996).
Nesse sentido, a criminalidade e a violência são relacionadas à temática da
questão social devido a alguns fatores que caracterizam a existência de uma inter-
relação entre estas problemáticas. Exemplo disso, segundo Costa (1997) é o perfil dos
criminosos que, reforçando a associação entre a pobreza e a criminalidade,
denuncia que estes indivíduos geralmente são analfabetos, trabalhadores braçais e em
muitos casos de cor negra. Assim, quanto à questão social o que é pertinente e constitui
um dos alicerces fundamentais para este estudo, sendo, também, expressão da questão
social, encontram-se a violência e a criminalidade.
Nesta esteira, complementa Machado (1999, p. 03): “como toda categoria
arrancada do real, nós não vemos a questão social, vemos suas expressões: o
desemprego, o analfabetismo, a fome, a favela, a falta de leitos em hospitais, a
violência, a inadimplência, etc. Assim é que, a questão social só se nos apresenta nas
suas objetivações, em concretos que sintetizam as determinações prioritárias do capital
sobre o trabalho, onde o objetivo é acumular capital e não garantir condições de vida
para toda a população. Portanto, a questão social é uma categoria que
expressa à contradição fundamental do modo capitalista de produção. Contradição, esta,
fundada na produção e apropriação da riqueza gerada socialmente: os trabalhadores
produzem a riqueza, os capitalistas se apropriam dela. É assim que o trabalhador não
usufrui das riquezas por ele produzidas.”
„‟Desde o início da década passada, parece ter se acentuado o sentimento de
medo e insegurança diante da violência e do crime. Qualquer cidadão,
independentemente de suas origens ou de suas características étnicas, de
gênero, geração, riqueza ou poder sentiu-se ameaçado e inseguro diante do
futuro de seu patrimônio pessoal, em especial quanto à proteção de seu bem
mais precioso – sua vida (ADORNO, 1999, p.132). ‟‟
Para Tanques (2006), a solução para a redução da criminalidade depende da
eliminação da exploração econômica e opressora contra os menos favorecidos, já que a
criminalidade e a violência compreendem expressões da questão social, está última,
decorrente do desenvolvimento capitalista e das políticas excludentes do mercado.
O meso diz ainda que, cabe ressaltar que é perversa a maneira pela qual a sociedade vê
o problema da criminalidade. Ao mesmo tempo em que esta não se questiona ou luta
por melhores condições de vida a todos os sujeitos, esta, também, condena, exigindo
sempre mais segurança e punição aos criminosos. Às vezes, até parece cômico, se não
fosse tão trágico. Não se garantem os meios para assegurar aos cidadãos melhores
condições de vida e, ainda, “se exige” ou “se ordena” que tudo ocorra e funcione na
mais perfeita ordem.
„‟O projeto de construção de uma Conferência Nacional de Segurança
Pública com cidadania (CONSEG), protagonizado pelo Ministério da Justiça
do Governo brasileiro, no período de janeiro de 2008 a agosto de 2009,
partiu do reconhecimento de que a segurança pública no Brasil é uma
problemática de grande envergadura, que necessita ser definitivamente
enfrentada, caminhando-se na direção de um novo paradigma superado do
paradigma punitivo que historicamente a orienta e cujo ponto de partida é a
definição constitucional da segurança como direito humano
(social).(ANDRADE,2013,p.)‟‟
Ainda para Andrade (2013), o diagnóstico proposto é referente a uma
segurança pública, que seja a mais que ação policial, demarcando investimentos nas
polícias na política de segurança pública, pois a violência e na criminalidade expressões
graves da desigualdade para as vitima da sociedade brasileira. A desigualdade, não deve
ser apenas compreendida como resolução de um desenvolvimento comprometido, mas
como um obstáculo para o desenvolvimento. Pode ser apenas compreendida como o
resultado de um desenvolvimento comprometido.
DIREITO PENAL AS INTERFACES DO CRIME E DOS
DIREITOS HUMANOS
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),implica aos Direitos Humanos,
determina que os crimes contra a humanidade cometidos devem ser investigados e
punidos segundo o legislação (JUNIOR,2013).Casos como violações aos direitos
humanos e desrespeito a dignidade humana levam muitas pessoas a temerem
a subjetividade do outro e temem que soluções não sejam realizadas pelas desigualdades
sociais ainda vigentes.
Hudson (2007) argumenta que somente assim o Direito será capaz de reconhecer
e minimizar as desigualdades, atentando para as particularidades de cada grupo social e
realizando a verdadeira Justiça, pois “A igualdade não é auto-evidente, mas algo que
deve ser alcançado por práticas de democracia”. O indivíduo precisa ser educado para a
cidadania49, tornando-se sujeito capaz do seu próprio destino.
Tanques (2006) vão dizer que em face aos problemas do aumento do crime e da
violência, o Estado, em resposta, pune, utiliza o cárcere para aqueles que não sabem
viver e respeitar as regras sociais. É de se questionar sobre o que se entende por regras
sociais, já que os excluídos, embora tenham seus direitos tutelados pelo agente estatal,
estão à margem de seus efeitos, que são mínimos ou nem existem. Assim, após trazer
algumas contribuições sobre o Estado de bem-estar social e sua interligação com a
questão social, passar-se para a análise do Estado Penal, mais especificamente, sobre a
realidade do cárcere e dos presos, fazendo algumas considerações no tocante à
ressocialização na prisão e aos Direitos Humanos.
Conforme ensina Cirino dos Santos (1999):
O Direito Penal é um sistema dinâmico desigual em todos os níveis de suas
funções: a) ao nível da definição de crimes constitui proteção seletiva de bens
jurídicos representativos das necessidades e interesses das classes
hegemônicas nas relações de produção/circulação econômica e de poder
político das sociedades capitalistas; b) ao nível da aplicação de penas
constitui estigmatização seletiva de indivíduos excluídos das relações de
produção e de poder político da formação social; c) ao nível da execução
penal constitui repressão seletiva de marginalizados sociais do mercado de
trabalho e, portanto, de sujeitos sem utilidade real nas relações de
produção/distribuição material, mas com utilidade simbólica no processo de
reprodução das condições sociais desiguais e opressivas do capitalismo.
Para Tanques (2016, p.10), “em uma realidade perversa como esta, cujo perigo
ou o temor vem de lugares vazios, de seres humanos vazios, sem direitos, sem um olhar
digno e humano do “outro”. “Vazio” também pode ser usado não só para caracterizar
esses lugares aonde a “modernidade, a globalização e o capitalismo” ainda
não chegaram, apenas mostraram seus efeitos. “Vazio” é o ser humano,
descompromissado, sem interesse por estes lugares, ou atemorizado por esta situação,
na qual prefere viver bem distante. “Vazios” são todos que se acostumaram a viver
apenas a sua realidade. “Vazio” é todo aquele que não se pergunta por que existe esta
realidade, como mudar esta realidade, ou mais “vazio” é aquele que nem se
importa com esta realidade.”
Neste viés, ainda para Taques (2006) é imperioso que a criminalidade e a
violência sejam condenadas, mas é fundamental que, antes de tudo, se condene a
desigualdade social, a falta de oportunidade para uma vida digna para as pessoas, os
direitos que permanecem no papel, a miséria e a fome das crianças, a falta de emprego
para os trabalhadores. Que se condene a sociedade hipócrita e mesquinha que almeja
sempre mais segurança e punição, ou seja, quer combater as conseqüências da violência
e da criminalidade, e jamais as suas causas. Além disso, é imprescindível que, também,
condene-se o sistema capitalista e neoliberal, incapaz de oferecer respostas positivas
para os problemas sociais, assim como é o grande causador do aumento das mazelas
sociais, da exclusão e do sofrimento humano.
A violência também clama por explicação quando ficamos chocados
com as ações dos criminosos. Os portadores do mal, da tirania, da violência,
das patologias afetam nossa capacidade de compreensão e geralmente
reduzem nosso senso de compaixão. Não é por menos, pois explicamos suas
ações violentas pela violência que é inerente ao seu ser. Homens violentos
agem de forma violenta, tautologia incorrigível. Mas não reconhecemos a
experiência coletiva da violência, consideramos que o saber dos
criminalizáveis é um saber sem legitimidade. (SINHORETO, 2002)
No mesmo sentido, Silva (2007), assevera que os processos de criminalização e
descriminalização devem ser calcados nos “interesses humanos” e que o humanamente
exigível: [...]
Ainda para Sinhoreto (2002), a violência, assim, decorre da ausência
de um espaço civil, de um espaço de reflexão que permita fazer a mediação
entre indivíduo e sociedade, entre público e privado, entre Estado
e sociedade. Sem mediações possíveis, os conflitos, as recusas, as revoltas do
dia-a-dia tornam-se problemas da esfera privada ou sofrem repressão legal
implacável. Os conflitos, tornados violências, instalam-se nas relações
pessoais e nas práticas judiciais. A violência emerge quando uma mediação
deixa de se completar. Em outros termos, a violência surge quando há um
violento choque entre expectativas sociais e as reais condições do indivíduo
de fazer frente a essas expectativas. A violência é fruto da quebra das
reciprocidades socialmente constituídas, num momento em que os
mecanismos compensatórios existentes não são apropriados para lidar com
correntes novas de expectativas. A violência dos linchamentos parece se
conformar perfeitamente a essa explicação (SINHORETO, 2002).
Segundo afirma alguns autores como Soares (2000) e Mesquita Neto (1999), as
agências de segurança, particularmente as polícias, têm primado pelo controle violento
da criminalidade, pela discriminação de determinadas faixas da população e de
determinados grupos sociais e pela virtual ineficácia em controlar os membros de seus
próprios quadros. Ao mesmo tempo, essas agências têm-se mostrado indulgentes com
os crimes e ilegalidades das elites.
O resultado desse cenário encaminha-se na direção de uma
distribuição profundamente desigual da segurança, as comunidades
periféricas tornam-se reféns do medo, do controle territorial promovido pelas
quadrilhas do tráfico de drogas, e as elites são beneficiadas por níveis
intoleráveis de impunidade. O quadro, portanto, torna-se explosivo, pois alia
a violência desnecessária com a impunidade, a pobreza com a disseminação
das drogas, o desemprego estrutural dos jovens e a ostentação dos ricos e
poderosos. A demanda por segurança e justiça semeia, no contexto de
disseminação da violência, o terreno às políticas públicas de endurecimento
penal e de aumento da demanda por segurança privada (ZALUAR, 2004;
PINHEIRO, 2001).
Ramirez (2015), afirma que a política criminal envolve um conjunto de
princípios e recomendações decorrente de processos de mudança social, de propostas do
direito penal, de descobertas empíricas das instituições do sistema penal, das revelações
da criminologia para reforma ou transformação da legislação criminal e dos
órgãos encarregados de sua aplicação. Sustenta que: [...] a política criminal implica a
estratégia adotada dentro do Estado, a respeito da criminalidade e do controle. Nesse
sentido, a criminologia converter-se-ia em face da política criminal, em uma ciência
de referencia, para que esta, com base em seu material, pudesse configurar suas
estratégias de atuação.
O modelo de segurança pública apresenta uma contradição em sua estrutural
entre o processo de construção social da criminalidade demarcando a exclusão e o
processo de construção social da cidadania a inclusão (ANDRADE, 2013). O modelo
supracitado é denotado anticidadania para alguns; pois demarca um papel de
rotular entre a dicotomia bem e mal, em pratica seria o marginal é diferente do cidadão,
onde essa representação de papeis é considerada errada, pois o sujeito que comete um
delito nunca deixara de ser cidadão e deve ter seus direitos preservados.
DIREITOS HUMANOS: UM BREVE ESTUDO SOBRE O DIREITO NA
CRIMINALIDADE.

Para Bobbio (1992 p. 30), os Direitos Humanos são peculiaridades da pessoa


humana, desde a sua origem. "Os direitos humanos nascem como direitos naturais
universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada
Constituição incorpora Declarações de Direitos) para finalmente encontrar a plena
realização como direitos positivos universais.
O cidadão tem garantido por lei, sua cidadania, e
quando esta sendo descumprindo ele tem o dever de luta pelos seus direitos humanos
como cidadão, respaldado pela constituição federal propõe.
Os direitos humanos foram ganhando maior
visibilidade pelas iniciativas governamentais, inclusive internacional, dotados no valor
da mídia e classe política (ADORNO, 1999). Contribuído para diminuir as resistências
tradicionais que vigoravam a acessibilidade do sujeito a buscar seus direitos como
cidadão.
„‟Como sugerido anteriormente, a mobilização da sociedade civil em torno
dos direitos humanos esteve inicialmente atada às graves violações
de direitos cometidas contra dissidentes políticos do regime autoritário. No
curso da transição política e da reconstrução do Estado de direito, na medida
em que retraíam essas modalidades de violações descortinou-se toda uma
prática rotineira, tradicional, de longa data, vigente no cotidiano das
delegacias e agências de controle repressivo dos crimes e da ordem pública
que apelava para a tortura e para maus tratos contra cidadãos suspeitos de
haver cometido infração penal ou mesmo contra indiciados na esfera policial
e/ou réus na esfera penal. (ADORNO, 1999, p.142).‟‟
Adorno (1999), conceber a Justiça como instrumento para a participação pública
nos conflitos que o Estado conceba seu papel e não apenas de controle social das
regras pautadas na justiça requer uma nova normatividade institucional de
ordem racional-legal, burocrático-administrativa, que intercede às relações de poder de
forma que os cidadãos acreditem na Justiça, encontrando os serviço da resolução de
seus conflitos de forma ética e moral.
„‟De reivindicação democrática central no processo da chamada abertura
política, defendida por amplos setores da sociedade, os direitos humanos
foram transformados, no contexto de discussões sobre a criminalidade, em
"privilégios de bandidos" a serem combatidos pelos homens de bem. Ao
mesmo tempo, cresceu consideravelmente na cidade o apoio a formas
violentas e privadas de combate e prevenção do crime. (caldeira,
1991, p.162).‟‟
Nesse sentido, a segurança em sua qualidade de um direito capaz de encerrar a
opressão que a cidadania sofre que é produto da violência e da criminalidade para que o
sujeito possua a liberdade e garantia da vida com segurança.
De acordo com Forrester (1997), compreende-se uma dinâmica diferenciada
entre excluídos e miseráveis que ainda assim estão dentro da perspectiva perversa de
exclusão da sociedade, principalmente as capitalistas, com seu poderio globalizado. O
medo e a inseguridade quanto ao mundo neoliberal tem como consequência o aumento
dos atos violentos, assim como as defasagens na saúde com os descasos quanto à saúde
pública instalam um clima de insatisfação e negligência.
Lorau (1977) valida a presente afirmação quando se obtém em encontrar
maneiras de analisar nossas atuações para que em cada situação vivenciada possamos
nos centralizar nas relações de classe e nas redes de poder descentralizando o
objetivismo e neutralidade científica. Cunhando a forma holística que universaliza as
causas humanas:
O tema da confiança social é amplo e foi tratado por um variado
leque de perspectivas disciplinares. Grosso modo, o tema remete às ideias de
reciprocidade e cooperação social, nos mais diversos campos da vida
associativa: no mercado, nas relações interpessoais e intersubjetivas
(inclusive afetivas e passionais), nas relações entre grupos sociais diversos
(por exemplo, portadores de identidades próprias e singulares), inclusive
entre classes sociais. Confiança remete a uma espécie de “fé entre pessoas”,
ensejando expectativa de previsibilidade nas relações sociais, bem como
estímulos à participação social cooperativa (LEVI, 1998; PUTNAM, 1996;
SZTOMPKA, 1996).
Para compreender mais profundamente tal contextualização Deleuze (1992)
refere-se ao termo “homem endividado” abordando sobre a linguagem do controle como
uma nova forma de construção das subjetividades. Esse endividamento moldura grande
parte dos comportamentos sociais, incluindo também os de liderança governamental.
Evidenciando também as questões em relação ao trabalho e ao capitalismo de controle
generalizado forjando a forma de pensar de seus operários, esse contexto é a base para
instabilidade e insegurança social. Enfatizando a importância das coletividades na luta
pela seguridade social, no empoderamento e no protagonismo perante as realidades
contemporâneas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência, a marginalidade ea criminalidade constituem-se
em expressões relacionadas à questão social, advindas do processo de exclusão e
desigualdade. Vinda de pessoas que buscam melhores condições de
existência, essas expressões da questão social estão principalmente voltadas para a ação
violenta e o crime.
O Estado deve garantir educação, saúde, trabalho, dignidade, ou seja,
deve assegurar aos indivíduos condições para se tornarem membros úteis para
a sociedade, mas ao invés disso, desobrigou-se cada vez mais destas funções e passou a
punir. Por outro lado, a sociedade, torna-se indiferente à questão social, acostumada
com as desigualdades e com a situação perversa em que vive grande parte da
população. Ao invés de buscar combater estes problemas, de ser sujeito ativo na
transformação ou combate desta situação, busca somente ficar fora da violência e
criminalidade.
Na contemporaneidade compreende-se a importância da atuação dos Direitos
humanos em todas as parcelas sociais, em todas as pessoas, embora muitas vezes não
seja aplicado com os processos de preconceito e discriminação e tantos outros que
obtém por consequências a exclusão de uma classe em favor de outra. Cabe-se uma
manifestação generalizada, principalmente quanto ao papel social do estado na garantia
e empoderamento de seus cidadãos, independente de etnia, credo, condição social e
sexualidade.
É considerável avaliar as teorias onde se pautam a reabilitação do indivíduo na
sociedade, após a atividade litigiosa, pois a punição representa aspectos condicionantes
invariáveis na personalidade além de não introduzir em seu repertório de
comportamentos ações e comportamentos saudáveis que promovam empatia e
alteridade. Também trabalhando as questões circunstanciais do agressor e as causas que
o levaram a atuar com violência e promoção do crime.

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EFICIENTISMO PENAL, ENCARCERAMENTO EM MASSA E A
DESPERSONALIZAÇÃO DO SUJEITO ENCARCERAMENTO

Érick Florêncio Lagos14

Grupo de trabalho: Criminalidade, Violência, Estado Penal e Direitos Humanos.

RESUMO

Este artigo aborda como o discurso eficientista do sistema penal tem sido
fundamental para a expansão desse modelo de Estado que vem proporcionando o
fenômeno penal mais alarmante do último século, o “encarceramento em massa”. O
ponto central no debate aqui proposto é a discussão de como o Estado Penal tem se
expandido e de como o cárcere - principal instrumento do sistema penal - atua na
desconstrução identitária dos sujeitos encarcerados, tornando-os estranhos a si próprios.
Busco demonstrar, portanto, como o eficientismo penal colabora para a expansão do
Estado Penal e a relação que há entre o fenômeno do encarceramento em massa e esse
movimento do direito penal, analisando, por último, como o cárcere, figura central nessa
discussão, tem sido um instrumento atuante na despersonalização dos sujeitos
encarcerados. Assim, esse estudo visa promover o princípio da dignidade humana para
os sujeitos encarcerados, pois embora em condição carcerária, esses indivíduos são
portadores de uma dignidade que de maneira alguma pode ser violada.

Palavras-chave: Eficientismo penal. Estado Penal. Encarceramento em massa.


Despersonalização.

INTRODUÇÃO

Na modernidade, Rousseau já afirmava que o “o homem nasce bom e a


sociedade o corrompe”. Séculos depois, Ciampa (1984, p. 61) dirá que somos “autores
e personagens ao mesmo tempo” da nossa história de modo que a construção da
identidade é, portanto, totalmente relativa ao meio em que o indivíduo vive, sendo
possível, portanto, múltiplas variações de identidade, dependendo do corpo social no
qual se esteja inserido.

14
Érick Florêncio Lagos é graduando no curso de bacharelado em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco. Email para contato: erickflorencio7@gmail.com.
É comum a todos que, na atualidade, há um imenso crescimento da população
carcerária em vários países do mundo. Apesar desse crescimento estar fortemente
concentrado em alguns países, o fenômeno do encarceramento em massa não se limita a
um local, mas se alastra por todo mundo, paralelo à construção social de um sentimento
de insegurança social (PAVARINI 2010).
Visto então que se tem expandido tanto o Estado Penal, quanto o número de
pessoas detidas por esse sistema, faz-se mister a discussão de como o cárcere, principal
instrumento punitivo do Estado, tem influenciado na construção de identidade de um
grupo social, que vive em uma realidade de total descaso em meio a uma superlotação
prisional.
Assim, a primeira parte deste artigo, visa analisar como o discurso eficientista
tem contribuído, não para a eficácia do sistema penal, mas para a sua expansão. Esta
visa, portanto, mostrar como esse movimento criminal do Law and Order, tem
contribuído, não para a eficácia das funções declaradas do sistema penal, mas para a
relegitimação desse sistema altamente punitivo e destrutivo.
A segunda parte aspira apresentar como essa expansão do Estado Penal, tem
desembocado em um fenômeno de encarceramento em massa demonstrando o salto que
houve na população prisional nas últimas décadas através do inchaço do sistema penal
que se dá ao redor do mundo devido a um sentimento global de insegurança social.
Por fim, a terceira parte busca analisar as transformações performáticas as
quais os sujeitos encarcerados são submetidos e o estigma que eles passam a portar em
razão da condição de preso. A proposta é discutir como o cárcere serve como
instrumento do Estado para permanecer no controle social, de maneira que possui uma
subjetividade coercitiva, a qual será analisada através dos estudos de Silva (2015).
Acerca dos procedimentos metodológicos utilizados nessa pesquisa, baseamos
esta pesquisa fundamentada nas lições trazidas pelo Método Indutivo onde se partirá da
observação dos fenômenos e das descobertas de relação entre eles, tanto entre o
eficientismo penal e o encarceramento em massa, quanto os marcadores sociais que
possibilitam a performance identitária e a despersonalização dos sujeitos encarcerados.
Sendo utilizada no trajeto da pesquisa a pesquisa bibliográfico-exploratória, uma vez
que se fez necessário uma maior familiaridade com o tema.
O presente artigo utiliza como referencial teórico ideias e conceitos
desenvolvidos por Andrade (2006), Pavarini (2010), Zaffaroni (2015), Silva (2015),
entre outros, que através de suas pesquisas possibilitaram-nos traçar um paralelo de
como o movimento eficientista tem trabalhado na expansão do Estado Penal, que
através da disseminação de um sentimento de insegurança social fez emergir em vários
lugares do mundo o fenômeno denominado encarceramento em massa e como o cárcere
tem atuado de maneira performática nas identidades dos sujeitos encarcerados.

I – O EFICIENTISMO PENAL E A EXPANÇÃO DO ESTADO PENAL

É no coração do homem que se encontram os princípios do ius puniendi. Como


disse outrora Beccaria (1764, p. 25), “Consultemos, pois, o coração humano; acharemos
nele os princípios fundamentais do direito de punir”.
Se as leis surgem para organizar as sociedades, de modo que o homem passe a
ter a possibilidade de conviver em grandes grupos, a função declarada do sistema penal
é, por outro lado, combater a criminalidade, protegendo os bens jurídicos da ação
egoísta do homem, que está sempre em busca do poder.
Tendo como seu instrumento as penas, em especial a pena de prisão, o sistema
penal busca garantir, assim, segurança pública à sociedade e jurídica aos infratores.
Empresto-me aqui da definição de Andrade (2006, p. 169, 170) para elucidar a o que me
refiro quando falo em sistema penal, que diz:

Por sistema penal entende-se, portanto, [...] a totalidade das instituições que
operacionalizam o controle penal (Parlamento, Polícia, Ministério Público,
Justiça, Prisão) a totalidade das Leis, teorias e categorias cognitivas (direitos+
ciências e políticas criminais) que programam e legitimam, ideologicamente,
a sua atuação e seus vínculos com a mecânica de controle social global
(mídia, escola, universidade), na construção e reprodução da cultura e do
senso comum punitivo que se enraíza, muito fortalecidamente, dentro de cada
um de nós, na forma de microssistemas penais.
O que torna o sistema penal legítimo, da forma como está organizado hoje, é o
cumprimento de suas atribuições, ou seja, a realização na prática daquilo que declara ser
a sua função.
Entretanto, com o decorrer dos anos, a experiência histórica tem nos mostrado
que o sistema penal não tem cumprido com aquilo que declara ser a sua função. Isso
implica que na necessidade de se fazer uma distinção, para se demonstrar o que é
declarado difere muito daquilo que é praticado.
Portanto, a função não declarada, é por consequência a real função do sistema
penal. A saber, se espera que o sistema penal deva trabalhar na prevenção e combate à
criminalidade, na proteção bens jurídicos e na garantia de segurança, não somente
pública à sociedade, mas também jurídica aos acusados, entretanto, não é isso que se vê.
O sistema penal tem se mostrado “estruturalmente incapaz de cumprir as
funções que legitimam sua existência” (ANDRADE, 2006 p. 171) e de fato o sistema
penal “não pode porque sua função real é construir seletivamente a criminalidade e a
função real da prisão (violência institucional) é „fabricar os criminosos‟” (ANDRADE,
2006 p. 171).
Em suma, ao observar a realidade, é claramente perceptível que o sistema penal
não consegue cumprir com aquilo que declara ser sua função e se a sua legitimidade
depende desse cumprimento, segue-se por consequência lógica sua ilegitimidade.
Essa reflexão mostra-nos a necessidade que o sistema penal tem de sempre se
reformular para que então possa manter garantida sua legitimidade, mesmo que de
maneira simbólica. E a decorrência dessas práticas de reformulação é que esse mesmo
sistema tem tomado uma proporção gigantesca, no último século, em especial nos
últimos anos, para cumprir alcançar esse objetivo.
O eficientismo penal, mais conhecido como o movimento da “Lei e Ordem”
tem sido o principal fator de expansão do Estado Penal nas últimas décadas.
Tradicionalmente, o direito penal é conhecido pelos operadores do direito e
classificado na cultura jurídica como a ultima ratio, e isso significa que esse ramo
jurídico, deve ser sempre a última alternativa estatal para conter os conflitos que
venham emergir no seio da sociedade, visto que existem outros mecanismos que operam
como ferramentas para conter esses possíveis conflitos sociais.
Todavia, o discurso da “Lei e Ordem”, polariza com essa visão tradicional, ao
afirmar que se o sistema penal não funciona de modo a não obter eficácia nas tentativas
de conter a criminalidade, é pelo fato de não ser repressivo o suficiente, tanto na
prevenção quanto na punição dos crimes, de modo que o seu nível de eficácia está
diretamente ligado ao seu nível de repressão.
Desse modo, o movimento da “Lei e Ordem” defende a necessidade de que
cada vez mais haja a expansão do Estado Penal e a fomentação de uma cultura
punitivista, recrudescendo as leis existentes, criando-se novas leis mais rígidas e
suprimindo cada vez mais as garantias penais, para que então possa haver eficácia no
sistema penal. Andrade (2006 p. 178) nos ensina que:

De fato, o que está em curso na era da globalização neoliberal, não é a


hegemonia de práticas minimalistas e abolicionistas, porém a mais gigantesca
expansão e relegitimação do sistema penal orquestrada pelo eficientismo
penal (ou “Lei e Ordem”), a partir de uma leitura da crise do sistema como
crise conjuntural de eficiência. Como o sistema penal está nu, como a
comprovação de sua “eficácia invertida” opera-se, pela mera observação da
realidade, a defesa oficial do sistema consiste justamente em apresentar a sua
crise como uma crise de eficiência, ou seja, em atribuí-la a distorções
conjunturais e de operacionalização do poder punitivo, negando-se,
solenemente, a sua deslegitimação.
O discurso oficial da “Lei e Ordem” proclama, desta forma, que, se o sistema
não funciona, o que equivale a argumentar, se não combate eficientemente a
criminalidade, é porque não é suficientemente repressivo. É necessário,
portanto, manda a “Lei e a Ordem”, em suas diversas materializações
públicas e legislativas, criminalizar mais, penalizar mais, aumentar os
aparatos policiais, judiciários, e penitenciários. É necessário incrementar
mais e mais a engenharia e a cultura punitiva, fechar cada vez mais a prisão e
suprimir cada vez mais as garantias penais e processuais básicas, rasgando,
cotidianamente, a Constituição e o ideal republicano. De última, a prisão
retorna à prima ratio.

O discurso do eficientismo penal é, portanto, o da aplicação de um direito


penal máximo, que tem por consequência direta a expansão do Estado Penal. Logo, para
essa corrente, o direito penal deixa de ser a ultima ratio, e passa a ser a prima ratio.
Estando a resposta penal como a opção primeira dentro de todo o aparato dos
mecanismos de controle social.
Visto que a pena de prisão é fundamental para o movimento da “Lei e Ordem”,
a tendência é que ao passo que esse discurso se consolide na sociedade, o número de
pessoas encarceradas tenha um salto de modo proporcional.

II – O PROCESSO DE ENCARCERAMENTO EM MASSA NO ESTADO


PENAL

O sistema penal tem tomado uma grande proporção nas últimas décadas, de
modo que a expansão do número de pessoas encarceradas é fruto direto da
contraposição do Estado Penal ao modelo de Estado de Bem-Estar Social; quanto mais
se diminui esse, mais aquele se superdimensiona em todas as suas esferas.
Em vários cantos do globo houve uma elevação do número de pessoas presas e
o termo que se encontrou e se cunhou para se fazer referência direta a esse fenômeno
jurídico-penal foi chamá-lo de encarceramento em massa.
O crescimento da população carcerária não tem outra implicação para os
sujeitos encarcerados que não seja mais indiferença do sistema penal para com eles.
Consequentemente, essa indiferença acarreta diretamente no abandono do ideal de
ressocialização desses sujeitos. Ideal este que tanto declaram em discursos como a
função do sistema penal, a fim de que ele seja reconhecido como legitimo.
O número de pessoas presas tem aumentado e para simplificar a comparação
entre a média de pessoas presas em cada país e a média mundial, utiliza-se o percentual
de detentos para cada 100 mil habitantes.
De acordo com dados do Centro Internacional de Estudos Penitenciários
(ICPS), ligado à Universidade Birkbeck de Londres, a média mundial de pessoas
encarceradas é de 144 presos para cada 100 mil habitantes. Isso significa que cerca de
10,3 milhões de pessoas estão encarceradas em todo o mundo. Só os Estados Unidos,
apresentam um índice de 666 detentos para cada 100 mil pessoas, além de apresentar a
maior população prisional de todo o mundo que equivale a aproximadamente 2 milhões
145 mil presos.
Esses números chocam quando são analisados a partir da alteração que
sofreram, em especial na década de 80, com a implantação da política criminal da Law
and Order nos Estados Unidos no início da década de 70. Wacquant (1999, p. 40) trata
que:

[...] a partir de 1973, a evolução penal americana iria bruscamente se inverter


e a população encarcerada conheceria um crescimento exponencial sem
precedentes na história das sociedades democráticas. Logo depois da revolta
na Attica [...] os Estados Unidos apresentavam uma taxa de encarceramento
inferior a 100 detentos por 100 000 habitantes [...]. Treze anos mais tarde,
esta taxa havia triplicado para atingir 313 [para cada 100 000 habitantes],
antes de dobrar novamente na década seguinte e de atingir os 600 por 100
000 em 1995, ou seja, duas vezes mais que a África do Sul sob o regime do
apartheid e seis a doze vezes mais que os países da União Européia. Durante
a última década, os Estados Unidos reuniram perto de um milhão de detentos,
ao ritmo infernal de 1 618 prisioneiros suplementares por semana [...]. No dia
1° de janeiro de 1997, a população das prisões municipais, estaduais e
federais chegava a 1 731 500 pessoas.

Algumas pessoas se posicionam com o argumento de que o aumento nos


índices de aprisionamento não pode estar ligado a um fator específico, mas sim a uma
pluralidade de fatores que são exclusivos para cada nação, ao passo que qualquer
diferença de uma realidade nacional para outra pode ser determinante na elevação ou
não dos índices de aprisionamento naquele determinado país.
Em parte esse argumento deve ser considerado, pois é claro que em cada
contexto há diversas ordens que influenciam diretamente na quantidade de pessoas que
são condenadas a pena de prisão em um determinado país. Porém, o processo histórico
da segunda metade do século XX, nos mostra um fenômeno que vai de encontro à
incontestabilidade desse argumento, o encarceramento em massa.
Sobre isso, Pavarini (2010, p. 302) nos ensina que se “efetivamente, no mesmo
período, o processo de reencarceramento foi retomado em quase todo o mundo, somos
levados a pensar na presença determinante de causas exógenas nos contextos nacionais
isolados”, ou seja, se em vários lugares do mundo há factualmente o crescimento dos
índices de aprisionamento no mesmo período e momento histórico, há uma grande
probabilidade de haver uma determinada causa externa aos contextos nacionais, que
esteja influenciando a reprodução de um mesmo processo nesses vários lugares.
Dentre as diversas hipóteses que buscam explicar a elevação do número de
sujeitos encarcerados, a difusão de um sentimento de insegurança e impunidade no seio
da sociedade, fomentado em grande parte por uma mídia sensacionalista, em diversos
lugares do mundo tem aflorado nestas a reprodução do discurso de que é imprescindível
um sistema mais repressivo e punitivo, de modo a criar um ambiente perfeito para a
ascensão do movimento eficientista.

III – A DESPERSONALIZAÇÃO DO SUJEITO ENCARCERADO

Antes de tratarmos sobre a ação do cárcere na personalidade e identidade dos


sujeitos encarcerados, faz-se necessário que se fale um pouco sobre alguns conceitos
abordados no estudo de modo mais lúcido, para que então se trate diretamente sobre a
despersonalização do sujeito encarcerado.
Falarei, assim, um pouco sobre identidade e sua mutabilidade, logo a após
falarei da sociedade como meio facilitador da prisionização do sujeito, para por fim
falar sobre a despersonalização dos sujeitos encarcerados.

3.1 A Identidade

Um dos maiores problemas filosóficos é o do descobrimento do eu. A pergunta


que fazemos a nós mesmos “quem sou eu?” talvez nunca obtenha uma resposta que
concreta a qual possamos classifica-la como absoluta.
Silva (2015) trata que o grande problema, ao se falar sobre identidade, é que
seu processo de desenvolvimento não se dá de modo peremptório, estando, portanto,
sempre sujeita a alterações. E uma vez que as problemáticas individuais e os processos
sociais que estão direta ou indiretamente atrelados a esse processo de construção da
identidade, são também passivos de constantes mudanças, logo não poderia ser diferente
com a formação da identidade.
Portanto, a identidade não é de maneira alguma estática, mas sim dinâmica,
estando constantemente sujeita a processos de mutabilidade.
Sobre esse processo, como outrora já citado, Ciampa (1984, p. 60) dirá que
“somos as personagens de uma história que nós mesmos criamos, fazendo-nos autores e
personagens ao mesmo tempo”. Com isso, quer-se dizer que, ao mesmo tempo em que o
homem é agente passivo das transformações do meio, através dos processos de
subjetividade, ele também participa de modo ativo como agente transformador deste.
Sendo assim, podemos dizer que o processo de construção da identidade dos sujeitos
apresenta-se para nós como uma via de mão dupla.
Silva (2015, p. 19) trata que o “desenvolvimento dessas identidades se constitui
em todo um processo cognitivo interior e exterior, de tal modo será possível
desencadear outros dois processos, a individualização e a subjetividade”.
Entretanto é fundamental pontuar que, ainda que um durante sua vida um
indivíduo sofra múltiplas variações em sua identidade, ele jamais passou a ser portador
de duas identidades, ou de modo algum sua identidade veio a se dividir.
Ciampa (1993 apud SILVA, 2015, p. 20) nos mostra que a identidade é “uma
totalidade contraditória múltipla e mutável, mas uma”. De modo que, ainda que a
identidade possa possuir várias facetas em um mesmo eu, ela jamais perde sua
unicidade.

3.2 A sociedade como meio facilitador da prisionização do sujeito

As lições mais básicas sobre filosofia nos ensinam quer certa vez Rousseau
veio a afirma em uma célebre frase que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe.
O processo de formação da identidade do homem é, assim como enxergava Rousseau,
um processo não só individual, mas também social, e precisamos estar atentos para
como a sociedade participa nesse processo de constituição das identidades. Sobre isso,
Silva (2015, p. 21) nos ensina muito bem que:

Ao tratarmos da identidade social é importante atentarmos para análise de


objetos arraigados da projeção, que implica em esclarecer que ao analisar
determinada coisa, no caso objeto, pessoa, essa análise previamente
formulada, uma vez que já se tem ciência do que será tratado, diz menos do
objeto pesquisado e mais do próprio pesquisador. Podemos então concluir
que toda ação social voltada para a construção de um indivíduo, servirá de
base a dizer mais da própria sociedade do que do indivíduo estigmatizado.

Vimos que o sistema penal é, antes de tudo, fruto de um discurso e de anseio


que emerge no seio da sociedade. Assim, fica lúcido que o programa do direito penal
visa sempre conservar os pilares básicos de sua estrutura de pensamento (ZAFFARONI
2014) e é desse modo que esse sistema punitivo tem contribuído ao longo do tempo para
que o corpo social continue sempre a classificar os sujeitos que se encontram em
situações que se diferenciam da maioria – como é o estado daqueles que estão
encarcerados - como estranhos. Zaffaroni (2015, p. 27) trata que:

Esse programa classifica os humanos entre próprios e estranhos. De forma


que os próprios estão organizados de maneira orgânica e sistêmica (tendentes
a ser imaginados como uma colmeia de abelhas ou como um formigueiro), os
estranhos são seres humanos inferiores (não pessoas) e em proporção
crescente passam a diretamente inimigos (naturais).

Esse processo estigmatizador, produz nesses indivíduos a sensação de que são


estranhos ao corpo social, reproduzindo na sociedade o sentimento de que todo aquele
que é estranho ao corpo social deve ser classificado como não humano, passando a ser
simplesmente algo que deve ser eliminado.
Essa construção social, portanto sociológica, sobre determinados indivíduos é
explorada por Gaudêncio (2004, p. 27) ao falar sobre a sociologia da maldade que diz
“o que chamo de maldade da sociologia nada mais é que o uso estratégico da sociologia
na racionalização da opressão, da exclusão, do extermínio”.
Silva (2015) nos mostra que esse discurso se faz sobre o outro e se baseia na
denegação do medo e a partir do momento em que o medo é negado, ele transforma-se
em raiva, ira, ódio e termina por se projetar como violência sobre aquele que antes se
tinha medo. Dessa forma ele nos alerta para o risco de algo que já havíamos discutido
no segundo ponto, que é o perigo que há na reprodução de um sentimento de
insegurança no corpo social.
3.3 A despersonalização do sujeito encarcerado

Entretanto, essa identificação de estranho, não se limita à relação do corpo


social para com os sujeitos encarcerados. Na realidade, a condição de cárcere, faz com
que o sujeito passe também a considerar-se estranho, sendo esse fenômeno denominado
como um processo de despersonalização. A respeito disso, Silva (2015, p. 23) pontua:

O processo de despersonalização no âmbito da psiquiatria forense é um termo


utilizado para definir uma alteração na percepção do eu, do self. Quando
ocorre esse fenômeno o indivíduo passa a se estranhar, acontecendo assim
um distanciamento do que é real, sendo frequentemente acompanhado por
uma alteração semelhante na percepção do mundo exterior. As experiências
de despersonalização, são comuns em sujeitos que estejam sob privação
sensorial, ou seja, são comuns em sujeitos que estejam em isolamento,
acontecendo assim a redução deliberada de estímulos.

Diferente das relações externas, o indivíduo no processo de relacionamento


dentro do cárcere tem a sua sociabilidade extremamente minorada, passando a não
possuir a liberdade de escolher com quem irá se relacionar, limitando a quantidade de
pessoas com as quais pode se relacionar e também o sexo destas (SILVA 2015). De
modo que as exigências impostas pelo cárcere comprometem a sociabilidade do sujeito
encarcerado, alterando tanto a percepção que ele tem de si, quanto do próximo. Quanto
a isso, Goffman (2005, p. 24) trata que:

O novato chega ao estabelecimento com urna concepção de si mesmo que se


tornou possível por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo
doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais
disposições. [...] Começa a passar por algumas mudanças radicais em sua
carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que
ocorrem nas crenças que têm a seu respeito e a respeito dos outros que são
significativos para ele.

A condição carcerária proporciona, portanto, o surgimento nos indivíduos de


um sentimento de inferioridade e a limitação de suas potencialidades, dando-lhes uma
sensação de impotência. Goffman (2005, p. 24) deixa claro que na “linguagem exata de
algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamentos,
degradações, humilhações e profanações do eu” e chama esse processo de “uma
sistemática mortificação do eu”.
O estranhamento causado nos indivíduos no processo inicial de socialização é
muito bem definido por Moraes (2005 apud SILVA, 2015, p. 25) quando diz que há um
choque social, visto que os sujeitos que são presos são retirados de uma maneira brusca
da sociedade que até então eram parte integrante. Silva (2015, p. 25) é claro quando diz
que:

[...] o sujeito delituoso que até então andava livre pelas ruas, passa a ser
enclausurado em uma penitenciária, onde será regulado dia após dia,
provocando assim um choque de realidade que produz no indivíduo a perda
de sua liberdade física e psíquica. O sujeito encarcerado perde sua
autonomia, criando uma tensão entre o mundo exterior e interior.

É assim que, pouco a pouco, os sujeitos, quando expostos a todos esses


processos de subjetivação, passam a ter sua personalidade alterada, tanto pelos
processos de socialização que o cárcere proporciona, quanto pela falta de uma
sociabilidade externa, que dificulta assim a sua reintegração com o corpo social,
levando-os a não mais se reconhecerem, mas a estranharem tanto a si quanto aos outros.
Os processos de construção e desconstrução da identidade desses indivíduos
são denominados de performances identitárias. Estas são como um mecanismo de
adaptação dos indivíduos ao cárcere, fazendo com que estes venham a se adequar aos
comportamentos que são comuns a esse “microcorpo social”, moldando-os ás
necessidades que o sistema apresenta. Silva (2015, p. 26) trata que “a performance
identitária é necessária quanto à adequação deste em sua nova sociedade”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Visando corroborar para que haja um crescimento na discussão a respeito da


legitimidade ou ilegitimidade do sistema penal, como se apresenta no atual modelo de
Estado Penal, o presente artigo chega ao seu término
Como já discutido, é notório que vários lugares do mundo o sistema penal não
tem cumprido com aquilo a que se propõe, sendo na prática um instrumento que vai
muito além daquilo que declara ser sua função.
Junto à discussão acerca do atual modelo de sistema penal, a crítica ao
movimento de “Lei e Ordem” também vem a se fazer de extrema importância, visto que
esse discurso tem cada vez mais se difundido, tanto nos palanques políticos, quanto n no
seio da sociedade, funcionando como instrumento de relegitimação do atual modelo de
Estado Penal.
É preciso, portanto, que esse movimento seja combatido, visto que de maneira
alguma o sistema penal pode vir a existir a como instrumento de vingança, somente pela
punição, haja vista o estrago que isso causa a todo o corpo social.
Como bem lembra Silva (2015), desde a Constituição Imperial do Brasil de
1824 as penas de caráter cruel foram abolidas do ordenamento jurídico, visando garantir
que assim, seres humanos possam ser tratos de maneira humanizada. A realidade de
nossos presídios, contudo, tem indo totalmente de encontro a esse princípio, podendo se
observar na nossa atual conjuntura que o que chamamos de cárcere são, na realidade,
verdadeiras masmorras.
A sociedade não pode ficar inerte em face á normalização dessa violência
estrutural que tem se personalizado fortemente na figura do cárcere.
Sendo assim, fomentar essa a análise crítica do atual modelo penal do Estado e
seus efeitos é fundamental para que essa grande parcela da população, os sujeitos
encarcerados, que sofrem violações de seus direitos fundamentais todos os dias tenham
a sua dignidade reconhecida.
Entender que os indivíduos que são condenados a qualquer pena,
principalmente a de prisão, têm atrelados à sua subjetividade um conjunto de direitos
fundamentais que de maneira alguma podem ser violados é o primeiro passo para que o
Estado passe realizar a reinserção desses sujeitos à esfera social.
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A IMAGEM DO LINCHADO: Análise semiótica de imagens midiáticas de
linchamentos

Hannah Damaris Torres de Lima Silva15

GT5: CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA, ESTADO PENAL E DIREITOS HUMANOS

RESUMO

Neste trabalho são destacadas as formas de violência coletivas conhecidas como


„linchamento‟, em virtude de sua amplitude social e em decorrência de sua repercussão
nos últimos anos. O objetivo desta pesquisa é apontar possíveis aspectos representativos
de como as imagens de linchados que chegam à mídia podem ser interpretadas ao ser
consumidas estabelecendo implicações nos comportamentos agressivos. Entendendo a
violência coletiva como um fenômeno social e sígnico, isto é, um sistema de
significações, é possível trazê-la para o campo da semiótica através do fotojornalismo
social. Foram selecionadas quatro imagens fotográficas de linchamentos ocorridos no
Brasil e que tiveram visibilidade nacional marcando o triênio 2014, 2015, 2016. Os
dados coletados foram tratados por meio da análise semiótica. Neste trabalho entende-se
a imagem como objeto simbólico, isto é, capaz de representar um algo que não si
mesmo. Através da análise semiótica das imagens coletadas foi possível identificar
repetições de padrões de comportamento e perfil, bem como encontrar relações entre a
imagem midiática e a expressão da natureza agressiva.

Palavras-chave: Linchamento. Violência. Semiótica. Mídia.

INTRODUÇÃO

Atualmente é possível encontrar dentro dos ramos da ciência vertentes que


defendem a existência de uma sociabilidade violenta intrínseca à natureza humana
(OLIVEIRA, 2011). Outras vertentes ainda, tendo em vista a evolução filogenética
como componente da estruturação social, também convergem para tal ao afirmar que
evolutivamente a agressividade na espécie humana teria causas e funções de
sobrevivência e manutenção da espécie (PINKER, 2004). A partir disto observa-se o
caminhar paralelo da natureza filogenética e das conjunturas sociais na manutenção e

15
UNIFAVIP- DeVry, graduanda em Psicologia, hannah.damaris@gmail.com
elaboração dos fenômenos de violência (WIERVIORKA, 1997). Neste trabalho são
destacadas as formas de violência coletivas conhecidas como „linchamento‟, em virtude
de sua amplitude social e em decorrência de sua repercussão nos últimos anos.

O objetivo deste trabalho é apontar possíveis aspectos representativos de como


as imagens de linchados que chegam à mídia podem ser interpretadas ao ser
consumidas. Estabelecendo possíveis relações de reconhecimento „amigo ou inimigo‟ e
interagindo com a natureza violenta mesmo estando em uma sociedade civilizada que
dispõe de polícia e justiça como poderes estatais. Para tal, torna-se pertinente
compreender aquilo que é transmitido através das fotos de linchados, e o que se sente
em relação ao linchamento ao ver as imagens divulgadas.

Este trabalho foi motivado pela participação no grupo de Pesquisa em Psicologia


do UNIFAVIP-DeVry (GPSI), que trata da temática da legitimação da violência
coletiva e dos linchamentos. Tal material mostra-se relevante como produção de
conhecimento, e como instrumento para compreensão e possíveis intervenções nos
processos de configuração da violência, a partir de representações e significações.
Entendendo a violência coletiva como um fenômeno social e sígnico, isto é um sistema
de significações, podemos então trazê-la para o campo da semiótica através do
fotojornalismo social.

O gênero de imagem escolhido, o fotojornalismo, parece ser o mais fiel à


realidade dos tipos de imagem. Ainda assim pode trazer elementos e representações
capazes de revelar ou velar realidades e ideologias presentes ou ausentes.

O presente trabalho se constitui a partir de uma pesquisa de caráter qualitativo,


trata-se de uma pesquisa de natureza básica que pode ser configurada quanto a sua
tipologia como pesquisa de análise documental. Foram selecionadas imagens
fotográficas de linchamentos e o processamento de dados se deu a partir da técnica de
análise semiótica. As imagens selecionadas são de linchamentos ocorridos no Brasil nos
últimos anos e que tiveram visibilidade nacional. Tais imagens foram divulgadas por
jornais e demais meios midiáticos tomando grande repercussão. Ao todo foram
selecionadas quatro imagens fotográficas de linchamentos que marcam o triênio 2014,
2015, 2016.

As fotografias são dos seguintes casos noticiados: A primeira imagem é do caso


noticiado como linchamento, onde um jovem menor de idade, não identificado, foi
agredido e preso nu a um poste no dia 31 de Janeiro de 2014 no Flamengo, Rio de
Janeiro; sendo acusado de furtos e roubos. A fotografia utilizada neste trabalho foi feita
por Yvonne Bezerra de Mello, e divulgada pelo G1.globo.com em 03 de Fevereiro de
2014 (Figura 2).

A segunda imagem é do linchamento de Fabiane Maria de Jesus; linchada no dia


03 de Maio de 2014 no Guarujá em São Paulo; acusada de bruxaria. As acusações
mostraram-se inverídicas e seu linchamento culminou em morte. A imagem selecionada
para análise foi divulgada pela Veja.com em 09 de Maio de 2014 (Figura 3).

Sendo a terceira imagem fotográfica do linchamento de Alaiton Ferreira, menor


de idade, linchado no dia 06 de Abril de 2014 em Vista da Serra, Espírito Santo; sob
suspeita de estupro não confirmado, cujo linchamento também resultou em morte. A
imagem para análise foi coletada do Gazetaonline.com, tendo sido divulgada em 09 de
Abril de 2014 (Figura 4).

A última imagem selecionada foi divulgada pelo Cartacapital.com em 09 de


Julho de 2015 e é referente ao linchamento de Cleidenilson Pereira da Silva, linchado
no dia 06 de Julho de 2015, em São Luís, Maranhão. Acusado de tentativa de assalto,
cujo linchamento também terminou em assassinato (Figura 5).

Tais imagens foram descritas, e analisadas de acordo com a técnica de análise


semiótica, a partir da teoria de Pierce (1996). Entendendo-se a imagem como signo e o
fotojornalismo como meio de propagação de representações e significações. Neste
trabalho entende-se a imagem como objeto simbólico, isto é, capaz de representar um
algo que não si mesmo.
DESENVOLVIMENTO

Linchamento e violências coletivas


Acredita-se que o termo Linchamento teria surgido nos Estados Unidos, em
resultado da atuação do Capitão Lynch, que teria se tornado conhecido por seu
tratamento desumano e métodos horrendos de impor a morte àqueles a quem desejava
punir (NATAL, 2012). Segundo a literatura quando alguém pretendia punir alguém e
acreditava que as leis eram incapazes de oferecer uma punição que se equiparasse ao
crime, chamava-se o Capitão Lynch e ele sempre tinha a punição ideal, mais terrível que
o próprio crime. Os métodos de Lynch tinham por finalidade impor respeito por meios
violentos e educar a maneira submissa de viver em relação à lei (OLIVEIRA, 2011),
essa postura ficou conhecida nos Estados Unidos como „a Lei de Lynch‟ e
posteriormente Linchamento (MARTINS, 1995).
De fato quando paramos para observar a existência de “linchamentos”, ainda que
nomeados por outros termos; esteve presente em todo o tempo em que houve cultura,
leis e regimentos sociais, assim como as situações de violência pública de um grupo
maior para com poucos. Desde tempos remotos existiu a agressão contra o corpo e a
punição, desde que existem homens (FOUCAULT, 2014). Através de um olhar
etológico (LORENZ, 1966) podemos observar que diversas espécies animais exibem o
comportamento descrito, isto é, quando um de seus membros tende a um padrão que
não corresponde ao da espécie algumas espécies abandonam o indivíduo e outras o
destroem em conjunto. Sendo assim a origem deste tipo de violência, sem tomar em
relevância seus motivos, sempre existiu nas comunidades, no sentido biológico de
comunidade (DARWIN, 2000).
Entende-se o linchamento enquanto mecanismo de tentativa de “manutenção da
ordem” ou eliminação daquilo que ameaça esta ordem (MARTINS, 1995). A partir
disso tal fenômeno é compreendido como pertinente à esfera das implicações grupais,
afetações e senso de pertença. Ao passo que a infração cometida fere em alguma medida
todos aqueles que partilham da afetação, a ação de punição é afirmadora dos „ideais‟
„valores‟ e/ou „contratos sociais‟ que uma sociedade propõe (FOUCAULT, 2014).
No entanto é interessante observar a estrutura social presente na espécie humana,
a qual é marcada pelo processo de civilização e permeada pela cultura. Desta forma o
comportamento de punição física e destrutiva do indivíduo “desviante”, na espécie
humana perpassa por um conjunto de regimes de verdade (FOUCAULT, 2014) que
constituem o que a sociedade considera aceitável ou não, bem como é conduzido pelo
processo civilizatório e um sistema judicial. Diante disto verifica-se a influência
exercida por aqueles meios construtores/reforçadores dos regimes de verdade, segundo
Foucault (1996). Dentre esses meios destacamos a mídia como elemento de grande
relevância no acompanhamento/produção das variações nos padrões de comportamento
social (MORIGI, 2004).
A mudança nos padrões de criminalidade e do reconhecimento imediato de
„amigo ou inimigo‟ em relação às pessoas, também sofreu grande influência da mídia
(NATAL, 2012). As notícias sensacionalistas terminam por suscitar emoções fortes,
agitar as cogitações do telespectador e imprimir-lhe a imagem do que se deve ser
temido, bem como cria a caricatura de uma „cara de culpado‟ (NATAL, 2012). Surge
assim ideia de uma falsa segurança baseada na ideia de sociedade comparável a um
organismo complexo e imune a delinquência tornando-a um corpo estranho que por
reflexo natural merece ser destruído, pois atenta contra o todo e diretamente contra cada
um (MARTINS, 1995).
Nesse momento podemos ver a diferenciação das motivações da violência, estas
também correspondem ao local onde se encontram e as vítimas passam a ter um perfil,
em outras palavras surge a „cara de culpado, de suspeito, de bandido, cara de gente
ruim‟. Nesse contexto observa-se o papel da imagem midiática na estruturação de
conceitos, bem como de credibilidades e significações (NATAL, 2012).

Natureza agressiva e violência

De acordo com teóricos naturalistas como Darwin (2000) e Lorenz (1995) todas
as espécies animais possuem em seu código genético informações que compelem à
agressividade, sendo esta considera como intrínseca à natureza humana. No entanto,
cabe aqui diferenciar a agressividade de violência, estando a primeira ligada à „potência
para‟ e a segunda à ação impulsiva. Conceitua-se agressividade segundo Cegalla (2008)
como “Disposição para agredir; dinamismo; energia” ao passo que a violência é
entendida como “Ímpeto; Arrebamento [...] Ataque” (CEGALLA, 2008).

Nas espécies de animais em sua quase totalidade, incluindo o homem, observa-


se um conjunto de comportamentos direcionados à sobrevivência ontogênica e
filogênica que manifestam conteúdo agressivo. Esses comportamentos, no entanto
podem ou não culminar em atos violentos de acordo com o arranjo social da espécie
e/ou ambiente de inserção (LENT, 2010). Verifica-se ainda em termos neurofisiológicos
a presença de estruturas cerebrais reguladoras dos comportamentos agressivos nas
espécies. “As evidências de um controle neural da agressão no homem são ainda
esparsas. Alguns neurocirurgiões relatam que a estimulação da amígdala e do córtex
temporal induz violento comportamento agressivo” (BRANDÃO, 2004, p. 140).

No entanto, estruturas sociais que permeiam a expressão de comportamento


agressivo podem ser observadas nas palavras de Marcus Brandão (2004) quando
descreve o comportamento de ratos que teriam sido lesionados em uma destas estruturas
supracitadas (estruturas reguladoras de comportamento agressivo). O rato passa a
manifestar agressão para com ratos e camundongos, vale ressaltar que segundo Brandão
(2004) a lesão não seria originadora de agressividade para com os demais roedores,
apenas facilitadora. Não sendo, portanto „criadora‟ de agressividade para ratos
previamente familiarizados com camundongos. Ao tangenciar o aspecto da
familiaridade do elemento alvo, ou não, da agressão, nos deparamos com contextos de
ordem social, verificamos o ambiente como um possível modulador do comportamento
expresso.

O ambiente da civilização humana é entendido como propiciando a


sobrevivência dos membros da espécie para além da seleção natural ou predação,
contando também com córtex cerebral desenvolvido e cognição ampla ao julgamento
moral, senso de justiça e controle de agressividade (CARLSON, 2002). Apesar disso
observa-se ainda um longo e sinuoso caminho até o entendimento de tais
comportamentos em nossa cultura. Compreende-se como elemento subjetivo inerente ao
comportamento agressivo emoções como raiva e em segunda instância medo; podendo
o comportamento agressivo ser enquadrado como ofensivo ou defensivo, conforme sua
manifestação em gestos e expressões comportamentais (CARLSON, 2002). As bases
neurais de tal comportamento, não podem, no entanto, ser tomadas como determinantes,
nem variáveis isoladas.

Pesquisas realizadas por Avshalom Caspi, em 2002, revelaram a diminuição de


liberação de enzimas neurais reguladoras da agressividade; por parte de pessoas
oriundas de ambientes violentos ou com histórico de vítima de violência.
Posteriormente um grupo de pesquisadores identificou que a “a exposição a filmes
violentos na TV influi negativamente sobre a ativação do lobo frontal A, região cerebral
que atua no controle de comportamentos agressivos” (CARLSON, 2002). Observa-se,
por tanto, que o meio, incluindo a mídia, tem papel relevante na expressão e
manifestação de aspectos „naturoculturais‟, isto é, aqueles que embora intrínsecos à
natureza da espécie estabeleçam relação intima com a cultura e o meio social.

A imagem midiática

Diante da pluralidade teórica, social e cultural a busca pelo consenso torna-se,


portanto, um desafio. Neste cenário os meios de comunicação transcendem o papel de
veicular informação somente, e podem ser observados como produtores e
retroalimentadores dos sentidos, representações e imaginários (MORIGI, 2004). De
acordo com Moscovici:

Os meios de comunicação de massa aceleram essa tendência, multiplicam


tais mudanças e aumentam a necessidade de elo entre, de uma parte, nossas
ciências e crenças gerais puramente abstratas e, de outra parte, nossas
atividades concretas como indivíduos sociais. Em outras palavras, existe uma
necessidade contínua de reconstituir o „senso comum‟ ou a forma de
compreensão que cria o substrato das imagens e sentidos, sem a qual
nenhuma sociedade pode operar (MOSCOVICI, p.48, 2003).

Assim, as representações coletivas podem ser compreendidas como ideias


presentes no imaginário social às quais não pode ser atribuída origem ontológica,
filogênica ou a partir de fenômenos psicológicos. São, portanto, criadas e mantidas por
meio de mecanismos sociais, a exemplo a mídia, sendo internalizadas pelos indivíduos.
Moscovici afirma que a as representações sociais criadas pelos meios de
comunicação são capazes não apenas de criar imagens sociais como também a realidade
sobre as mesmas, sendo, portanto, “um modo particular de compreender e de se
comunicar – um modo que cria tanto realidade quanto senso comum” (2003).

Do mesmo modo, as coletividades hoje não poderiam funcionar se não


criassem representações sociais baseadas no tronco das teorias e ideologias
que elas transformam em realidades compartilhadas, relacionadas com as
interações entre pessoas que, então, passam a constituir uma categoria de
fenômenos à parte (MOSCOVICI, p.48, 2003).

A produção de imagens de linchamento por um lado tende a espetacularização e


por outro à banalização; em ambos os pólos a realidade é envolta, recriada, e substituída
pela produção de sentidos. Segundo Morigi “o fato social não existe como dado, mas
como construção midiática” (2004).

Assim as representações sociais expressas midiaticamente são internalizadas


pelos sujeitos e passam a constituir perfis, opiniões, discurso. Não obstante as mesmas
são constituídas a partir da sociedade, culminando em ciclos de imaginário social
(KRESS; LEITE-GARCÍA; VAN LEEUWEN, 2000). Assim a imagem midiática cria
uma realidade a partir do conteúdo advindo da sociedade. No entanto, a realidade criada
midiaticamente sobre os linchamentos tende ao espetáculo ou banalização dos
fenômenos sociais, e por sua vez constrói não simplesmente fatos, ou dados, mas perfis,
padrões, conceitos.

Para Hallidary e Hassan (1989) a cultura é um conjunto de sistemas semióticos e


sistemas de significações, dessa forma os fenômenos de violência coletiva como
linchamentos podem ser compreendidos como sígnicos, e pertinentes à cultura que os
produz a partir dos substratos sociais. Isto pode ainda ser observado ao constatar a carga
simbólica presente nas imagens analisadas. Deste modo pode-se investigar relações
entre as imagens, sua interpretação semiótica e suas implicações.

Semiótica

De acordo com Chandler o estudo e uso da semiótica permite que “nos tornemos
mais atentos ao papel mediador dos signos, e dos papéis que todos exercemos para a
construção da realidade social” (2002). A semiótica é, segundo Peirce, o estudo dos
signos, e “um signo é (...) algo que representa algo para alguém, sob algum prisma”
(PIERCE, 1974). Falando das bases da ciência semiótica Peirce traz a consideração de
que “os símbolos são o fio e a trama de toda investigação e de todo pensamento”
(1974). A semiótica é, portanto uma ciência capaz de estudar as outras ciências
entendendo todas as coisas como signos perceptivos e, portanto, objetos.

A semiótica teve suas bases através dos trabalhos de Saussure e Peirce na década
de 1900. Mais tarde as ideias de Saussure, que denominava a ciência em questão como
semiologia, serviram de base para pensadores como Levi Strauss, Lacan e Foucault. A
ciência da semiótica no início estava a serviço do reconhecimento de informações
escondidas „dentro da informação‟. O grande objetivo inicial de Peirce e Saussure era
compreender o que está por trás do que é mostrado e o quê mais tal pode significar
(1974).
A teoria semiótica de Pierce contribuiu grandemente para o estudo da
informação, dos símbolos, signos e significações. Posteriormente a teoria foi
incorporada por Santella (1983) que agregou métodos de análise semiótica, aplicando-a
ao design e à publicidade. Este trabalho, agrega ainda a semiótica social de Kress e Van
Leeuwen (2000); os quais utilizam a técnica para análise de imagens incluindo
fotografias, como é o caso deste trabalho.
Pierce propõe relações triádicas ou tricotomias, compreende o signo como sendo
composto a partir de uma tríade (JOLY, 1996), contendo pelo menos um Significante,
um Significado e um Referente (Representamen, Interpretante e Objeto). Sendo estes
três respectivamente: A forma que o signo apresenta, ou seja, o que é perceptível; o
sentido que ele tem, o significado que é criado na mente de quem observa o signo;
aquilo a que se refere, a coisa propriamente dita. De acordo com as tricotomias
propostas por Pierce (Signo-Objeto; Signo-Signo; Signo-Interpretante) o signo pode ser
em relação ao seu objeto: Ícone, Índice, ou Símbolo (nesta pesquisa foi analisada a
relação tricotômica Signo-Objeto).
No caso da fotografia, a imagem apresenta seu significante preso a seu objeto,
isto é, trata-se de uma captura exata de um momento específico. O signo fotográfico é
ao obrigatoriamente ícone da realidade que ele representa e índice da mesma. Para
Kress os meios produzem sentidos e estes por sua vez interferem no meio; este autor
salienta ainda os signos não linguísticos incluindo gestos, ações e imagens visuais; a
partir disso propõe os sistemas de significações como sendo fluídos e dinâmicos no
meio social (KRESS; LEITE-GARCÍA; VAN LEEUWEN, 2000). Neste trabalho
entende-se a fotografia como Representamen do Linchamento ocorrido, assim temos:

Figura 1.

Nesta pesquisa os dados coletados (fotografias) foram inicialmente descritos


enquanto ícone, isto é: um signo que lembra ou faz referência ao seu objeto, no caso da
fotografia trata-se de uma captura exata e, portanto, ícone do momento flagrado. Num
segundo momento as imagens foram analisadas enquanto índice, isto é, um signo que
indicia, indica o acontecimento, neste caso, as fotografias podem trazer indícios sobre o
linchamento ocorrido. E também enquanto símbolo, algo que representa algo além de si
mesmo e geralmente por via de convenção social.

Descrição e Análise das imagens

Imagem 1

A primeira imagem (Figura 2) se ambienta em um cenário urbano, apresentando


iluminação artificial o que sugere o fim do período diurno. O contexto da imagem
apresenta uma calçada e algumas folhas secas aos pés da figura central da imagem. Ao
centro encontra-se um jovem do sexo masculino, negro, preso ao que se assemelha a um
poste de iluminação pública através de uma trava de bicicleta em seu pescoço. Em
virtude do Estatuto da Criança de do Adolescente (ECA) a imagem do menor teve seu
rosto censurado. O indivíduo está nu e tem entre suas pernas uma folha de jornal
cobrindo seus genitais, estando sentado no chão. O jovem apresenta os joelhos
aproximados, os pés também se voltam um para o outro e o corpo levemente recolhido,
enquanto ergue a mão direita segurando a trava que lhe prende o pescoço. A mão
esquerda afasta-se do corpo e estende-se à frente.

Figura 2. Foto: Yvonne Bezerra de Mello.

A partir do aspecto da calçada, do tipo de lixo (folhas secas e jornal limpo) pode
ser interpretado que a cena se passa em um bairro de classe média, o ambiente
iluminado por luz artificial transmite a ideia de horário noturno e deixa impreciso
quanto tempo teria decorrido desde o incidente até o momento da foto. O Jovem negro
ao centro, parece consciente das violações cometidas contra ele, ele segura a trava de
bicicleta que tem no pescoço mostrando-a. O ângulo defronte da vítima no qual a foto
foi tirada parece intencionalmente revelar a violação de direitos cometida. A posição do
corpo do jovem: pernas retraídas e com joelhos juntos, parece não só demonstrar
vergonha da nudez e exposição, como também posição de autodefesa. Os braços
afastados mostrando seu estado transmite a ideia de consciência do lugar de vítima. O
ato de despir a vítima manifesta intencional propósito de humilhar, tornar vulnerável. O
acorrentamento do jovem pelo pescoço pode sinalizar intenções de rebaixar a
humanidade do sujeito, impondo-lhe tratamento que remete ao distanciamento da figura
do agressor e da pessoa linchada destituindo sua humanidade em paralelo a afirmação
de „bom humano‟ do agressor „mantenedor da ordem‟.

Imagem 2

A segunda imagem (Figura 3) apresenta ao centro na porção mais à direita da


imagem uma pessoa branca do sexo feminino, visível da cintura pra cima, corpo
curvado em direção a si mesmo como se contraísse. O rosto da vítima voltado para o
lado esquerdo tem os olhos inchados e um olhar vago. O rosto apresenta-se inchado e
ferido tendo sangue em sua maioria, bem como pó do chão, o rosto da vítima aparenta
alterações morfológicas oriundas de pancadas e impactos, tendo a boca e o nariz
cobertos de sangue. O cabelo da vítima apresenta pó do chão, bem como sangue. O
corpo da pessoa mostra-se com os ombros caídos para frente e a postura vergada, tendo
várias escoriações, hematomas e sangramentos. Estando também sujo de terra e sangue,
bem como marcas de pisaduras. A roupa da vítima apresenta-se caindo e expondo a
parte superior de seu busto. A vítima que veste uma blusa presta estampada e um short
jeans com cinto; está sentada no chão com o corpo levemente pendendo para a direita. A
imagem se ambienta num cenário de chão de terra, atrás da vítima podem ser
observados três indivíduos trajando bermudas e estando dois deles de costas para a
vítima, que se encontra ao chão entre as demais pessoas, estando estas de pé. As pessoas
ao redor podem ser percebidas como pardas e/ou brancas, duas delas calçam chinelos e
uma terceira calça tênis. Os braços da pessoa ao centro encontram-se abaixados.
Figura 3. Foto: Veja, maio 2014.

A expressão do rosto da mulher ao centro parece desorientada, como se ela não


entendesse o ocorrido, já a expressão do corpo mostra-se desfalecido, e rendido à
exaustão. O chão de terra e a ambientação do espaço, assim como a indumentária das
pessoas presentes na cena podem configurar o local do ocorrido como bairro de
periferia. As pessoas ao redor da mulher ao centro estão dispostas cercando-a e em sua
maioria dando as costas, como se houvessem concluído sua ação. Trajando bermudas,
chinelos e tênis as pessoas mais próximas à vítima são em sua quase totalidade homens.
A imagem parece ter sido fotografada como flagrante de um instante apenas. O ângulo
de onde foi tirada a fotografia e o foco no rosto da vítima parecem intencionais e
sensacionalistas. O flagrante denota o caráter de „espetáculo‟ que pode ser verificando
na quase totalidade dos linchamentos. O cerco em volta da vítima parece não ter a
intenção de contê-la estando os possíveis agressores de costas numa breve avaliação da
incapacidade de fuga da vítima devido a seu estado debilitado. No entanto, o cerco
permanece estruturando gerando um aspecto de superioridade dos agressores sobre a
vítima que se encontra exposta, ao chão e ao centro.

Imagem 3

A terceira imagem (Figura 3) está também ambientada em cenário urbano. Ao


centro e voltado para a direita há um jovem negro do sexo masculino visto lateralmente.
Ele encontra-se sentado no chão, usando um short preto e sem camisa. Tendo a postura
curvada para frente e retraída, e os braços erguidos para cima, cobrindo a cabeça com a
mão direita, tendo a esquerda pendendo para baixo. O jovem apresenta hematomas,
cortes, e sangramentos; nas costas, cabeça, pernas, braços. Juntamente com sangue
também há terra no corpo do jovem. Observa-se que o chão próximo à vítima aparenta
estar molhado ou úmido. Podem ser notadas pessoas ao redor aparecendo destas apenas
as pernas uma vez que estejam de pé e as mãos, das quais uma mão direciona-se para o
jovem ao centro.
Figura 4. Foto: Gazetaonline, abril 2014.

O jovem ao centro transmite a sensação de sofrimento e a postura é de não


compreensão do ocorrido. As pessoas presentes na cena parecem contemplá-lo, não é
possível identificar o gênero das pessoas, mas estão dispostas voltadas para a vítima. A
configuração do ambiente (chão de terra, vestuário das pessoas) assemelha-se a um
bairro periférico. A maior parte das pessoas incluindo a vítima são negras. O aspecto de
cerco das pessoas em redor e voltadas para a vítima com algum grau de afastamento
transmite a ideia de periculosidade a respeito do linchado. O posicionamento das
pessoas em relação ao linchado parece expressar medo deste, ou de uma possível
reação, pode ser sugerido que exista um caráter de „disciplina‟ que se fundamenta na
força da coesão grupal. Uma vez que cada pessoa individualmente parece estabelecer
certa distância, incluindo o ângulo em que a foto foi tirada, mas juntos manifestam a
violência coletiva. Sendo esta última uma ação maior que a soma das forças individuais
e propulsora de orgulho social, isto é, capaz de efetuar a manutenção de status social e
afirmação de dignidade por meio da ignomía imposta a outrem.

Imagem 4

A quarta imagem (Figura 5) tem seu cenário constituído a partir de uma calçada,
ao fundo pode-se ver um portão que aparenta ser de metal e uma parede de cerâmica,
manchados e respingados de sangue. Na calçada um poste de energia elétrica com
sangue em sua extensão. O chão da calçada também contém sangue e pedaços de roupas
ensanguentados. Na porção direita da foto onde se localiza o poste pode-se ver um
indivíduo do sexo masculino, negro, nu, coberto de sangue e amarrado com uma corda
ao poste. Observa-se que a corda o prende pelo pescoço e tórax. Aparenta haver um
pedaço de tecido ensanguentado cobrindo os genitais da vítima. O corpo está sentado no
chão, e pende para frente, sendo sustentado pela corda presa ao poste, as pernas estão
dobradas e voltadas ambas para a mesma direção (lado esquerdo do corpo). Os braços
estendidos para baixo, e a cabeça pendente para baixo com o rosto voltado para o lado
direito do corpo. O corpo apresenta cortes, escoriações, hematomas, lacerações e está
coberto de sangue.

Figura 5. Foto: Cartacapital, julho 2015.

O ângulo e o distanciamento no momento da fotografia, bem como a ausência de


pessoas próximas ao corpo podem denotar isolamento do local; pode-se concluir que a
vítima já estaria morta no momento em que a imagem foi fotografada. O ambiente ao
redor (paredes, chão, poste) apresenta manchas e marcas de sangue transmitindo a ideia
ações brutais e movimentos violentos. A disposição do corpo amarrado denota descuido
ao prendê-lo; de maneira que o que se apresenta é a intenção de mantê-lo ereto e não
necessariamente imobilizá-lo, uma vez que as cordas sustentam áreas como pescoço ao
passo que seus braços encontram-se livres. Os panos ensanguentados que cobrem seus
genitais parecem ter sido colocados intencionalmente com caráter de pudor. A
iluminação do ambiente indica período diurno, mas deixa impreciso o horário que o
crime teria acontecido, em virtude de ser um fotografia não do momento do
linchamento, mas posterior a este acontecimento. A distância que a foto foi tirada pode
denota isolamento do local ou por preservação do local do crime ou por repulsa da
população, uma vez que não há pessoas próximo a vítima. O caráter de repulsa pode ser
observado como uma expurgação do mal representado pelo linchado por violar os
contratos sociais de manutenção de ordem. A nudez apresentada configura ainda a
denigração da imagem humana no sujeito. A forma como o corpo foi disposto e atado
parece evidenciar a ciência dos agressores sobre o estado da vítima ao término da
execução de sua ação punidora e expurgatória.

Resultados

Durante a pesquisa foi observado que ao passo que a imagem da vítima traduz o
distanciamento da figura humana confortável e propõe certo grau de desconforto, a
mesma também pontua e assinalada características que podem ser reencontradas em
padrões de identificação de possíveis „suspeitos‟ ou „culpados‟. Assim a imagem dos
linchados expressa pontos extremos da natureza humana permeando desde o
desconforto, estranhamento e afastamento da figura humana; e traça um perfil/esboço
do sujeito passível de linchamento.

É interessante observar que nas imagens analisadas acontece a repetição do


perfil de vítima descrito por Ariadne Natal (2012), a vítima é em sua maioria: homem,
negro, e periférico. A partir das análises pode-se perceber também que os linchamentos
ocorrem em sua maioria em zonas periféricas da cidade, e motivados em sua maioria
por suspeitas de crime. Nos casos observados nas imagens os crimes atribuídos às
vítimas foram: furto, bruxaria, estupro, e assalto (sendo este último não uma suspeita,
mas uma ação real desencadeadora da violência coletiva ocorrida posteriormente).
Destes, dois mostraram-se inverídicos, ou seja, a vítima era inocente.

Percebeu-se também que em três dos casos o linchamento levou a óbito a vítima.
O que confere um caráter de intencional eliminação do mal representado pelo
transgressor dos contratos sociais. O caso que não levou à morte a vítima pode-se
configurado como tendo caráter „pedagógico‟, isto é, a punição tem a função não de
eliminar o sujeito, mas de reprovar o comportamento de modo a evitar sua repetição.

Durante o processo de análise foi observado que duas das fotografias analisadas
são capturas da vítima no momento da ação do linchamento e duas são da vítima pós-
linchamento. Nestas últimas a vítima aparece presa a um poste, e em todas a vítima está
ao chão, sendo que nas imagens em que o linchamento está acontecendo a vítima
também se localiza ao centro do grupo agressor, o que pode trazer a ideia de conotação
à inferioridade em relação às pessoas ao redor e simbolicamente às pessoas que
consomem a imagem. Bem como denota o caráter de espetacularização pela localização
ao centro.

Pode-se verificar por meio das imagens que os atos de violência coletiva
ocorrem com maior frequência em período diurno. E a composição dos grupos
agressores é em sua maioria composta de homens. Estes dados também foram
observados por José de Souza Martins (1995). A composição do grupo agressor além do
supracitado é ainda formada de modo espontâneo e impulsivo, diante da afetação pode-
se entender nuances do instintivo senso de pertença por identificação, onde entende-se
que o crime que se quer punir atenta contra o todo social e assim contra cada um.

Como descrito por Marcus Brandão (2004) a potência para a agressão embora
inerente ao humano, não determina a violência. O alvo da violência é aprendido por
meio de familiarização, assim, a produção de significações a cerca desta temática por
meio da mídia cria/reforça perfis no imaginário social, o que dialoga com os
pressupostos de Kress (2001) acerca do dinamismo dos sistemas de significações.

O significado das imagens é adquirido, criado ou construído, conforme elas são


visualizadas sendo, portanto, reconfigurado/recriado conforme as imagens são revistas
em contextos sócio históricos diferentes. Assim os significados não são dados, são
confeccionados a partir dos diálogos entre as convenções, códigos e representações
presentes nos contextos sociais produtores e consumidores da imagem/fotografia.
Ainda diante das análises pode-se perceber com clareza o caráter de
espetacularização presente em quase totalidade das imagens, através da produção de
componentes visuais e ângulos não meramente representativos e icônicos, mas também
sensacionalistas e simbólicos. Por outro lado a banalização da violência como
ocorrência também pode ser verificada por meio da análise onde são percebidos
elementos que tendem a destituir a vítima do patamar humano, numa tentativa de afastá-
la deste conjunto social ao qual se pretende defender e para isso tornando-a banal. Desta
forma ao consumir a imagem os sujeitos passam a significá-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A imagem de um linchamento ou de sua vítima, causa em primeira instância


desconforto e estranhamento. Concomitantemente às reações de estranhamento à
imagem da violência, a espécie humana, assim como as demais espécies, possui a
agressividade como traço filogenético inerente. A agressividade entendida como
elemento „naturocultural‟, existe enquanto potência, porém tem sua manifestação
atrelada ao meio cultural de inserção dos sujeitos.

Nesta pesquisa não foi possível determinar o caráter da motivação do grupo


agressor como Ofensivo ou Defensivo, podendo o mesmo ser constituído de ambos,
uma vez que o linchamento parte da premissa de manutenção da ordem social e chega à
desumanização da vítima. Nas imagens analisadas pode-se constatar a intenção de
degradar a figura humana nas vítimas, bem como rebaixar à humilhação por meio da
nudez e da exposição, elementos presentes na maioria das imagens.

Neste sentido a análise das imagens corrobora com os estudos acerca da


agressão, podendo-se perceber que o elemento disparador do agrupamento e, por
conseguinte, da violência, não é criador desta última. Estudos posteriores poderão
contribuir e levantar possíveis reflexões acerca das motivações intrínsecas aos
linchamentos.
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A DESMISTIFICAÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO
Uma abordagem crítica acerca da utopia do discurso ressocializador

Rodrigo Mariz16
Benick Santana17

GT 05 – CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA, ESTADO PENAL E DIREITOS


HUMANOS

RESUMO
O estudo pretende demonstrar a contradição do discurso acerca do caráter
ressocializador, amplamente divulgado que, em tese, teria a pena. Busca-se evidenciar,
através da discussão acerca da Criminologia Crítica, estudado por Alessandro Baratta e
Lourival Trindade, a qual traz à tona a questão econômica para o âmbito penal
revolucionando os conceitos existentes, visto que os autores da Criminologia
Positivista, como Césare Lombroso, aduziam ser a criminalidade transmitida de maneira
atávica; e o processo de Prisionização que, em verdade, o sistema prisional não
consegue ressocializar o indivíduo, mas o contrário, cria e reproduz criminalidade de
maneira cíclica, selecionando condutas, indivíduos e fomentando indiretamente a
perpetuação do processo criminológico. A pesquisa é fundamentada, ainda, nas ideias
críticas de Eugenio Zaffaroni, Paulo Busato e Lourival Trindade. A abordagem utilizada
foi a qualitativa, pois realizou-se uma pesquisa bibliográfica com análise de conteúdo,
baseada na leitura de artigos, livros e revistas acerca do tema. Além disso, a
metodologia usada foi a dialética, tendo em vista que analisamos os fatos e os contextos
sociais em que estão inseridos. Não conseguimos esgotar o assunto, e muito menos
achar uma solução para a reintegração dos apenados, mas sim aspectos que minimizam
os efeitos degradantes inerentes à pena.
Palavras chave: Criminologia Crítica. Ressocialização. Prisionização.

INTRODUÇÃO

A função ressocializadora da pena de prisão é algo difundido de forma ampla no


meio social. Através de uma perspectiva que trata o sujeito preso como um ser
patológico, doente e desajustado socialmente, acredita-se na ideia de que, ao ser

16
Graduando em Direito pela Universidade de Pernambuco. Email: rodrigolfm98@gmail.com
17
Graduando em Direito pela Universidade de Pernambuco. Email: benickts97@gmail.com
encarcerado, o indivíduo irá ser reeducado e voltará ao harmônico convívio em
sociedade. É bem verdade que tal discurso tem perdido força ultimamente devido a
constatações empíricas que nos evidenciam que a prisão não reeduca o apenado.

Frente a essa questão, é natural perguntar-se o porquê da falha da prisão em


ressocializar o indivíduo. É nesse sentido que surgem debates grandiosos acerca do
tema, que apontam para as mais variadas direções a fim de explicar tal fenômeno.
Procura-se, na presente pesquisa, analisar tal problemática, com base na Criminologia
Crítica, a partir da análise do fenômeno do crime sob o prisma da Seletividade Penal,
além do processo de Prisionização como óbices à efetiva reintegração social do agente
criminalizado.

Nessa esteira, a investigação acerca dos pontos supracitados pretende


proporcionar a desmistificação do sistema punitivo, além de demonstrar uma suposta
contradição do discurso ressocializador que envolve o sistema punitivo, de modo a
analisar sua falha, especificamente nesses aspectos, como se dá e o porquê.

É sabido que o Direito Penal se apresenta como a ultima ratio para resolução
dos problemas sociais. A privação de liberdade constitui a pena mais grave e mais
degradante em nosso ordenamento jurídico e, por sê-lo, é necessário que a mesma
proporcione uma resposta social satisfatória, que justifique a sua aplicação. Entretanto,
no Brasil os índices de reincidência são incertos (porém considerados altos) devido aos
inúmeros métodos com que a reincidência é aplicada nas pesquisas, vezes considerando
reincidência a prisão definitiva e vezes considerando também a prisão provisória (IPEA,
2015), fazendo com que a tese acerca da eficácia do isolamento de indivíduos
“desviantes” na prisão como forma de solução de conflitos não fique incólume. Nesse
cenário, buscou-se reunir dados/informações com o propósito de responder o seguinte
problema de pesquisa: Quais os pontos que evidenciam a falha da função
ressocializadora da pena?

Perceber os pontos que comprovam a falha do sistema prisional constitui o


objetivo geral, pretendendo abranger a discussão acerca de tais pontos. Nossa pesquisa
tem como primeiro objetivo específico discutir o Direito Penal como instrumento de
perpetuação das desigualdades sociais, com o intuito de elucidar como a Seletividade
Penal age dentro o processo de reintegração social. Por fim, o segundo objetivo
específico almeja desenvolver a ideia de prisionização e apontar elementos para a
minimização da situação degradante do cárcere, ponto crucial ao entendimento do
caráter cíclico de produção de criminalização.

A abordagem utilizada foi a qualitativa, pois realizou-se uma pesquisa


bibliográfica com análise de conteúdo, baseada na leitura de artigos, livros e revistas
acerca do tema. Além disso, a metodologia usada foi a dialética, tendo em vista que
analisamos os fatos e os contextos sociais em que estão inseridos. O artigo é estruturado
em 2 tópicos, sendo fundamentado nas ideias críticas de Alessandro Baratta, Lourival
Trindade, Paulo Busato, Eugenio Zaffaroni e Luiz Régis Prado. No primeiro capítulo
procura-se discutir a Criminologia Crítica e denunciar a chamada “real” função da pena
sob um viés que aborda a seletividade penal. Já no segundo tópico o foco é direcionado
a esmiuçar a ideia de prisionização e como esse processo age no apenado de modo a
condená-lo a um eterno ciclo de criminalização, explanando o caráter degradante do
abalo psicológico que sofre o apenado através do isolamento e perda da sua
individualidade, além das ofensas em torno de sua dignidade humana. Ainda no tópico
2, busca-se apontar possíveis meios para atenuação desse processo.

1 O DIREITO PENAL COMO ELEMENTO REPRODUTOR DA DISTINÇÃO


DE CLASSES SOCIAIS

Tradicionalmente, define-se Direito Penal como sendo um conjunto de normas


postas na lei, as quais tipificam certos comportamentos considerados graves e ameaçam
os indivíduos sob sua tutela com uma pena ou medida de segurança. Entretanto, essa
definição refere-se somente ao aspecto formal, havendo uma série de problemas por trás
deste, como o de decidir quais são as boas ou más condutas, a forma como se deve punir
etc. Paulo Busato (2015) não só nos oferece um conceito tradicional da matéria, o autor
aponta o Direito Penal como sendo um mecanismo de preservação da ordem social,
tendo o castigo como pressuposto para a manutenção do sistema e a não instauração de
um caos na sociedade. Essa definição é tida como uma espécie de “conceito ideal”,
lapidado e manipulado para que possa estar presente nos discursos dos detentores do
poder punitivo para sua legitimação. A Criminologia crítica traz para o estudo
criminológico os fatores sociais e evidencia um contraste entre os conceitos amplamente
sedimentados e a real eficácia do sistema penal na nossa sociedade.

A criminologia crítica pode ser julgada revolucionária se comparada aos


modelos anteriores, pois defende a tese da reprodução do modelo discriminatório
capitalista dentro do próprio sistema penal. Essa reprodução capitalista acarreta uma
distinção de duas classes: os que possuem o poder econômico e por isso os que
determinam as regras de incriminação, e aqueles que não possuem o poder econômico e
por isso serão submetidos às regras provenientes da outra classe. Assim, não se pode
falar em ressocialização quando se tem um sistema de reprodução cíclica de
criminalidade, que incrimina agentes por sua posição social, como será abordado a
seguir.

1.1 O discurso declarado da pena frente ao discurso real

Existe uma diferença entre a função declarada da pena, a qual seria o ideal de
como a pena deveria incidir no comportamento do apenado, promovendo a função
educativa e o combate à criminalidade; e a função real da pena, que é como esta se
comporta na prática. Tem-se a ideia de que a prisão como um método de controle social
e execução de seus diversos objetivos é um “fracasso”, entretanto, analisando de forma
mais profunda, é possível perceber que a função real da prisão está sendo cumprida,
qual seja a de proporcionar uma reiteração criminal (ANDRADE, 1997, p. 291 apud
TRINDADE, 2002, p. 18).

Diz-se, então, que o “fracasso” tido pela pena privativa de liberdade, é, em um


viés mais crítico, seu sucesso. Em realidade, o objetivo da prisão é oculto, tendo como
finalidade uma reiteração criminal e a reprodução das relações sociais, de modo que as
classes mais poderosas das sociedades consigam exercer o domínio sobre as mais
frágeis economicamente (TRINDADE, 2002). Aplicamos a Criminologia crítica aqui
como uma forma de desconstrução da falácia discursiva do cárcere. A necessidade que
se tem de reprodução do discurso declarado por meio das diversas finalidades da pena, é
que estas conseguem camuflar as reais intenções dos controladores do sistema, de modo
que precisamos encontrar em cada finalidade (nos ateremos às finalidades geral e
especial positiva) a sua intenção oculta.

Destarte, trazemos à tona a finalidade preventiva geral, a qual possui um escopo


intimidatório, destinando-se a totalidade dos indivíduos que fazem parte de determinada
sociedade, orientando-se para o futuro e tendo como escopo evitar a prática de novos
delitos (PRADO, 2004). A crítica criminológica incide justamente no reforço dos
valores gerais, “esquecendo” dos valores individuais de quem delinquiu, que, por sinal,
é provável que sejam diferentes dos valores da classe hegemônica. Assim, apesar de
grande parte das pessoas acreditarem no discurso oficial, ele não é o verdadeiro, “[...]
não porque fortaleça os valores daqueles que continuam cometendo ilícitos, mas sim
porque lhes garante a possibilidade de prosseguir nisso, de vez que o poder punitivo
continuará recaindo sobre os menos dotados” (ZAFFARONI et al., 2011, p.123).

Sendo o elemento principal dessa pesquisa, não se pode olvidar da função


ressocializadora que guia a prevenção especial positiva “a partir de técnicas corretivas
intraprisionais de „melhoramento‟ empiricamente indemonstráveis” (SILVA, 2014,
p.15). Constatam os estudos da criminologia crítica a baixa capacidade das instituições
punitivas de respeito ao princípio da dignidade humana. Outra crítica que se pode fazer
é sobre a vagueza e a dificuldade de quantificar o grau de periculosidade do indivíduo,
já que “a prevenção especial se apoia basicamente na periculosidade individual,
buscando sua eliminação ou diminuição” (PRADO, p.5, 2004). Por último, faz-se
necessário atentar para as expressões “re”, encontrando-se bastante deslegitimadas, de
maneira que “[...] utilizam como argumento em seu favor a necessidade de serem
sustentadas apenas para que não se caia num retribucionismo irracional, que legitime a
conversão dos cárceres em campos de concentração” (ZAFFARONI et al., 2011, p.126).

1.2 A gênese e manutenção da seletividade penal: postulados criminológicos


críticos aplicados ao sistema penal

Para que o assunto possa ser entendido de maneira satisfatória, é salutar uma
digressão histórica ao período em que surgiram as discussões sobre a figura do Estado,
no século XVI. Os homens transferiram parte de sua liberdade ao poder estatal como
forma de defesa dos seus bens jurídicos dos ataques de outros homens, e é na questão do
contrato social que foi incorporada a ideia de justificação do direito de punir, ou seja, o
poder estatal como elemento de coação mediante a aplicação e execução das penas.
Configura-se elemento indispensável para a compreensão do assunto a ressalva feita por
Beccaria: “o conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do
direito de punir. Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça;
é um poder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um poder legítimo”
(BECCARIA, 2015, p.24).

Sabendo que o direito de punir surge com base na necessidade de o homem viver
em conjunto com certa segurança proporcionada pelo Estado, dentro das ciências
criminais Franz Von Liszt percebe o discurso jurídico-penal atuando como forma de
defesa dos interesses individuais (bem jurídicos) dos cidadãos, de modo que a pena se
revela o meio precípuo de instrumentalização destes. Esta ideia foi apresentada no
Programa de Marburgo, em 1882, surgindo, dessa forma, o caráter finalista da pena.

Quando ocorreu a legitimação do poder punitivo, tendo como principal objetivo


a defesa dos interesses sociais a partir da coação do criminoso, não se atentou para a
possibilidade de uma produção de uma violência institucional, o que se torna
perceptível quando inserimos os dados das ciências sociais no âmbito jurídico-penal.

A criminologia crítica surge nos anos 70, começando a questionar o controle


exercido, por meio do poder punitivo estatal, das classes dominantes, identificando o
sistema penal como elemento de manutenção das desigualdades sociais, gerando uma
escolha maliciosa dos bens jurídicos que devem ser tutelados pela legislação penal
(criminalização primária), e um exercício discriminatório dos mecanismos e instituições
que são responsáveis pela lei penal, como a polícia (criminalização secundária)
(SILVA, 2014, p.14).

Nessa esteira, de acordo com Nilo Batista (2001) a seletividade, repressividade e


estigmatização são algumas características centrais de sistemas penais como o
brasileiro. Tal crítica refere-se ao fato de que, inevitavelmente, poderá sempre se
observar as características supracitadas em sistemas que se encerram em analisar o
Direito Penal apenas em seu caráter deontológico, de normas e regramentos, sem se
preocupar com o contexto social ou com as linhas institucionais que os executam.
Notadamente, o fenômeno criminológico é muito mais algo social do que normativo.
Em outras palavras, o que se tem é que o crime constitui uma criação da sociedade, que
perpassa pela seleção de condutas e de indivíduos a serem criminalizados e penalizados.

A produção do crime passa pela ideia marxista de Superestrutura, que perpetua,


não só as relações econômicas, mas também os ideais de dominação, que atingem,
inevitavelmente, a constituição da figura do crime. Para Marx, a sociedade capitalista se
divide em dois grandes grupos: a Infraestrutura e a Superestrutura. Assim, na
Infraestrutura concentram-se as relações econômicas e luta de classes, onde é possível
perceber a eterna exploração do proletariado em prol do capital; ao passo que, na
Superestrutura, situada acima, como a própria terminologia sugere – mas diretamente
relacionada e condicionada pela existência da infraestrutura – estaria todo o aparato
responsável por perpetuar tais relações, dividindo-se novamente, com duas instâncias
principais, a jurídico-política e a ideológica. É aqui que a ideia de seletividade penal se
materializaria. Na seção ideológica, teríamos toda a produção de valores, ideais e
cultura, próprias e adequadas ao capitalismo, agindo como verdadeiros eufemismos à
dominação e segregação de classes (LOPES, 2008). Tal produção impactaria
diretamente na esfera jurídico-política, na qual teríamos predominantemente a figura do
Estado e do Direito, responsáveis por regulamentar e perpetuar as relações de poder
presentes na infraestrutura através, no Direito Penal, da seleção e separação dos
indivíduos ditos “indesejáveis” à manutenção do sistema. Assim, é considerado como
“desviante” aquilo convencionado por componentes em situação superior.

Dentro da Criminologia crítica é quase unânime a opinião de que a estruturação


do sistema punitivo é feita para não funcionar da maneira prometida (igualitária), e sim
de forma seletiva (TRINDADE, 2002, p. 26). Tal assertiva pode ser baseada nos estudos
dos criminólogos, em razão destes demonstrarem ser evidente que a causa do delito é a
reprodução do modelo discriminatório capitalista dentro do próprio sistema penal.
Trazendo a teoria marxista para um contexto concreto, essa reprodução capitalista
acarreta uma distinção de duas classes: os que possuem o poder econômico e por isso os
que determinam as regras de incriminação, e aqueles que não possuem tal poder e assim
serão submetidos às regras provenientes da outra classe. Dessa forma, quando os
indivíduos ofendem os bens essenciais à ordem jurídica estabelecida, a punição não se
dá de modo uniforme. Isto é, o status de criminoso é designado de maneira desigual
entre os indivíduos, não se verificando uma real relação com a danosidade social. Em
outras palavras, tem-se que, primeiro, os bens jurídicos tutelados são postos de acordo
com os interesses das elites, em detrimento das classes socioeconomicamente mais
frágeis e, segundo, quem ofende os bens jurídicos mais graves deveria ter uma sanção
penal mais severa, mas na verdade, o grau de punição se dá, também, observando-se o
estrato social ao qual o agente pertence.

Quem nos explica isso bem é Baratta (1999, p.25). Segundo o autor, o processo
de seletividade penal perpassa por duas fases essenciais. A primeira, relacionada com o
direito material, diz respeito ao processo de eleição dos bens jurídicos a serem tutelados,
bem como a previsão das condutas penalmente reprováveis. Essa eleição leva em
consideração os interesses das elites, num processo denominado como hierarquia de
interesses (TRINDADE, 2002). Assim, quando se tem condutas relacionadas às ações
típicas das classes marginalizadas e economicamente inferiores, o grau de intensidade
da ação penal se eleva; ao passo que, quando falamos em condutas típicas das elites,
como crimes econômicos ou ambientais, essa intensidade é exponencialmente menor,
sendo, no mais das vezes, subestimadas ou ignoradas pelo sistema, independentemente
do grau de ofensividade da conduta.

A segunda, agora inserida dentro do contexto do direito processual, seleciona os


indivíduos “desviantes” dentre a gama de infratores das normas postas. As maiores
chances de ser selecionado, para fazer parte da "população criminosa", aparecem, de
fato, concentradas, nos níveis mais baixos da escala social (TRINDADE, 2002), de
modo que o estigma de criminoso recai sobre aqueles com problemas no mercado de
trabalho, como desempregados, e os que têm uma relação familiar e escolar
problemática, além daqueles que, historicamente, são marginalizados, como os negros.
É nesse sentido que o estigma surge, como uma das principais consequências de um
Sistema seletivo.

Por esse evidente caráter seletivo da pena, na visão crítica da criminologia, a


criminalidade deixa de ser uma qualidade ontológica de alguns indivíduos e
comportamentos, e passa a ser um status, o qual é designado para certas pessoas
(BARATTA, 1999, p. 161). Os pobres não têm uma maior tendência para cometer
delitos, mas sim para serem criminalizados. Sendo assim, o Direito penal pode ser
considerado como o direito dos pobres, mas não pelo motivo de protegê-los, e sim por
fazer recair suas forças exclusivamente sobre eles, sendo impossível vislumbrar um
caráter ressocializador em um sistema que irá, repetidas vezes, criminalizar indivíduos
apenas pelo estrato social a que pertencem. (MONREAL, 1975 apud FRAGOSO,
1987). Pode-se afirmar, então, que, caso essa situação socioeconômica desfavorável não
mude, essa criminalização será reafirmada amiúde.

2 A PRISIONIZAÇÃO E APONTAMENTOS PARA A MINIMIZAÇÃO DA


SITUAÇÃO DEGRADANTE DO CÁRCERE

Em coadunação com a tese de criminalização cíclica do sistema que não reeduca


nem reintegra, temos os efeitos da prisionização. Tal processo é evidenciado nos
detentos de modo geral, em maior ou menor grau, mas inerente a todos. A prisionização
proporciona um processo de deterioração individual do agente, através da submissão aos
efeitos altamente reguladores da prisão, além da assimilação da cultura e valores
vigentes na comunidade prisional, entre os apenados e, por fim, degradação da
dignidade humana do agente, através dos diversos cenários injuriosos a que são
submetidos os agentes criminalizados.

Importante ressaltar que não só os apenados sofrem esse processo de abalo


psicológico, mas também todos aqueles em contato direto com a rotina da instituição
total que representa a prisão, notadamente, os agentes carcerários. Entretanto, em que
pese sua fundamental importância para o bom funcionamento do sistema, nessa
pesquisa procurou-se enfatizar o estudo do tema apenas no que se refere aos apenados,
uma vez que, investiga-se aqui a ideia de total incompatibilidade e incoerência do
discurso ressocializador e a estruturação do sistema, bem como dos seus efeitos
colaterais.

2.1 Prisionização: aspectos gerais

A prisionização é, talvez, o mais nefasto efeito da prisão. O termo, de alcunha do


autor norte-americano Donald Clemmer, guarda relação com a ideia aculturação, porém,
relacionada ao processo de assimilação da cultura prisional. Assim, pode-se definir
prisionização como sendo o processo pelo qual o indivíduo se adapta ao cárcere através
da aquisição dos valores e regras próprias daquele ambiente. Isso acontece tanto em
sentido formal, referindo-se à total submissão às regras e normas administrativas que
regem o ambiente carcerário, como em sentido informal, quando falamos na efetiva
integração do indivíduo à comunidade prisional, assimilando valores e participando das
relações sociais que se dão no ambiente interno entre os apenados. Consiste, na verdade,
em um processo natural, e que por sê-lo, é inerente a qualquer indivíduo que seja
submetido à prisão, diferenciando-se apenas, quanto ao maior ou menor grau de
absorção de indivíduo para indivíduo. Esse grau de prisionização”, segundo Lobosco
(2009), depende diretamente do lapso temporal em que o agente é submetido ao
ambiente prisional e da sua estrutura psíquica, que determinará o quão suscetível ele
será à absorção dos valores do cárcere.

Tal processo se divide em duas etapas, de acordo com Baratta (1999, p.184-
185), sejam elas a “desaculturação” e a “aculturação”. Na primeira, tem-se que o total
isolamento do cárcere à sociedade faz com que o indivíduo se desadapte as condições
básicas de vida em liberdade, gerando a perda de autodeterminação social e econômica,
além da paulatina criação de uma ilusão sobre o ambiente externo, diminuindo,
sobremaneira, seu senso de realidade. Em outras palavras, quando o agente
criminalizado é separado abruptamente do convívio social, além de perder totalmente a
função que exercia na comunidade, ele se afasta, também, dos modelos de
comportamento vigentes externamente. Além disso, passa a ser classificado, sob um
prisma maniqueísta, como um indivíduo patológico, incompatível com os outros ditos
como “cidadãos de bem”, o afastando ainda mais da relação com o meio social e
fomentando a ideia de ruptura com a vida extramuros. Cite-se ainda a propensão a
situações demasiadamente degradantes, ferindo a estima do apenado de diversas formas,
que destoam totalmente com parâmetros de conduta que o agente tinha em sua vida fora
à prisão, forçando essa quebra com as nuances da vida em liberdade.

Já na aculturação, há a absorção de valores e de comportamentos típicos do


cárcere além da real adaptação ao sistema inserido. Aqui ocorre o um fenômeno, o qual
pode-se chamar de fragmentarização da individualidade do agente. O indivíduo não
tem mais um nome. Ele não é mais Fulano Sicrano da Silva e sim, “mais um”. Mais um
entre os detentos da cela X, mais um entre os que almoçam no refeitório, etc., tornando-
se sujeito passivo da ação prisão em caráter de verdadeira instituição total. Segundo
Foucault (2009 apud STÖHLICK, 2013) a ação que a pena exerce é ininterrupta,
impondo ao agente uma nova forma de agir, de se comportar, novos hábitos alimentares
são impostos, novos horários para dormir, acordar e, inclusive, levar a cabo
necessidades fisiológicas, etc. Nesse contexto, resta ao apenado apenas assimilar o
funcionamento da instituição carcerária, suas regras e costumes, “aculturando-se”,
portanto. Além disso, a posterior divisão que há quanto aos “grupos de socialização”,
como grupos daqueles que trabalham, ou o grupo dos mais velhos, por exemplo,
aproximam em demasia determinados detentos a grupos pré-definidos e constituídos por
presos que compartilham entre si valores próprios, adquiridos, em geral, no cárcere, o
que acarreta na assimilação também das normas e condutas sociais internas, próprias
dos apenados na comunidade carcerária.

Ademais, em que pese os efeitos da desaculturação e aculturação supracitados,


há de se falar ainda do processo de total perda da dignidade humana do agente.
Situações degradantes como dividir cela com um número altíssimo de presos, carência
de privacidade, péssima alimentação e violências sofridas dentro do cárcere, aumentam
exponencialmente o abalo psicológico que sofre o agente criminalizado que vê não só
sua individualidade e personalidade vaporizarem diante dos seus olhos, mas também a
noção de ser humano que tinha sobre si mesmo. Tal situação fomenta a violência e
desenvolve no interno um potencial delitivo, uma vez que a revolta o faz produzir e
reproduzir mais violência do que antes de seu contato com o cárcere.

A análise do processo de prisionização vem a corroborar com a tese de


criminalização cíclica e utopia da ressocialização ao nos evidenciar que não é possível
sair da prisão reeducado ou melhor do que entrara, como aponta o discurso amplamente
difundido da ressocialização. Em verdade, caminha a pena em sentido diametralmente
oposto, visto o abalo psicossocial que sofre o interno com a deterioração de sua
individualidade e desrespeito à sua dignidade, criando um sentimento de revolta e de
total desamparo no agente. Além disso, a desadaptação total ao convívio em sociedade
extramuros impossibilita o ideal reintegrador da pena. É paradoxal, como aponta Baratta
(s/d) querer reintegrar socialmente o agente criminalizado, o afastando completamente
do meio social, “a prisionização termina promovendo, às avessas, a educação para ser
criminoso e a educação para ser bom preso.” (TRINDADE, 2002, p.45).

2.2 A busca por uma minimização dos fatores negativos através Intervenção
mínima

A limitação da liberdade por parte do Estado é considerada, em nosso


ordenamento jurídico, a mais grave das sanções, e por isso reputa-se importante um
controle, o qual faz o Direito penal ser a última ferramenta, não de solução de conflitos,
mas de suspensão, pois como aponta Zaffaroni, o modelo punitivo não é de solução de
conflitos, mas de decisão vertical de poder (ZAFFARONI, 2013, p. 20). A ideia de
intervenção mínima surge nos postulados iluministas, não da maneira principiológica e
complexa que hodiernamente possuímos, mas as ideias de Beccaria sobre uma efetiva
punição produzir melhores resultados do que a sua gravidade, demonstram uma
contribuição do Século das Luzes.

Assim, precisamos extinguir a noção de que é necessário um Direito penal muito


agressivo, como forma de minimização do poder punitivo por parte das elites
econômicas, e adotar a concepção de que o Direito penal deve intervir apenas na última
fase do controle social, não podendo, sua intervenção, ser muito ampla e grave. Tal
limite é coerente com a lógica do Estado social, pois o objetivo é alcançar o maior bem-
estar possível com o menor custo social (MOLINA, 1996, p. 250; apud BUSATO,
2015, p. 168).

O Direito penal deve se preocupar apenas com a proteção de bens jurídicos,


reduzindo o seu alcance aos casos em que há dano ou risco de dano concreto, assim,
“somente os ataques mais insuportáveis (mais graves), os que podem gerar repercussões
visíveis (palpáveis) e muito preocupantes para terceiros (para a convivência social), é
que devem ser castigados penalmente” (GOMES, 2011, p. 25-26). É valido salientar,
ainda, a subsidiariedade que deve se apoiar o ramo do direito que tratamos, ou seja,
apenas deve intervir quando estiver comprovada a incapacidade de resolver o conflito
dos outros mecanismos de controle social.

O princípio da dignidade humana irradia alguns efeitos dentro do nosso sistema


penal, o primeiro que podemos explanar é sobre o respeito ao ser humano, não sendo
salutar o tratamento indigno dos apenados, pois além de não conseguir minimizar os
efeitos que o sistema foi feito para produzir (desigualdade social), resulta uma
contradição com a ideia de contrato social, pois o Estado reúne apenas uma pequena
parcela de direitos de toda a população e protege o direito à integridade corporal (por
meio do crime de lesão corporal, por exemplo), dessa forma, os cidadãos, embora
possuam a maior parte de seus direitos, não têm a liberdade de lesionar outrem. Assim,
o Estado como detentor apenas de uma parcela ínfima dos direitos do cidadão possui
menos ainda o direito de tratar algum apenado de maneira degradante (BUSATO, 2015,
p. 181). Fica evidente, aqui, uma clara distorção das teorias estatais em detrimento do
poder sobre os mais vulneráveis da sociedade, marginalizando-os e estigmatizando-os.

É a partir dos estudos sobre a Intervenção mínima, presente nas doutrinas mais
influentes do Ocidente, que conseguiremos reduzir a quantidade de apenados nos
presídios, “recuperar” os que lá estão e evitar que novas pessoas entrem,
consequentemente reduzindo a intensidade do fenômeno da prisionização e
estigmatização.
Adotar o Direito penal mínimo é, portanto, “o primeiro passo a ser dado dentro
da busca por soluções menos estigmatizantes” (RIBEIRO, 2016, p. 470). Outro aspecto
que nos parece relevante é o estudo por métodos alternativos de resolução de conflitos,
como é a mediação comunitária e a justiça restaurativa. Esta vem angariando muitos
adeptos na América Latina e “se trata de uma fórmula alternativa ao Direito Penal para
resolver conflitos com o empoderamento da própria comunidade que vivenciou o
conflito, como também a vítima” (RIBEIRO, 2016, P. 471).

2.3 A terminologia dos termos ressocialização e reintegração

É quase unânime que não se pode conseguir que o apenado se reintegre a


sociedade por meio do cumprimento da pena. Sabemos que, apesar de nenhuma prisão
conseguir cumprir essa finalidade, existem umas piores que outras, e por isso faz-se
necessário que tornem as condições de vida no cárcere menos precárias, como forma de
minimizar os incidentes efeitos negativos sobre o sentenciado. “Sob o prisma da
integração social e ponto de vista do criminoso, a melhor prisão é, sem dúvida, a que
não existe” (BARATTA, s/d, p. 2).

Podemos apontar como um dos elementos mais negativos do sistema carcerário


a separação existente do “microcosmo prisional” do “macrocosmo social”, ocasionando
o processo de prisionização, como fora explicado (BARATTA, s/d, p. 3).

Para o processo de volta do apenado à sociedade, normalmente é usado o termo


“ressocialização”, não obstante esse termo pressupõe uma postura passiva do detento e
ativa das instituições, originada na criminologia positivista, a qual percebia o condenado
como inferior a sociedade, considerando aqueles como “maus” e esta como “boa”. Por
outro lado, o termo “reintegração social” adota a comunicação entre a prisão e a
sociedade, gerando uma interação entre ambos e fazendo com que tanto os apenados se
reconheçam na sociedade como a sociedade se reconheça na prisão. Assim, a
Reintegração social planeja uma modificação da sociedade de maneira a assumir as
responsabilidades dos problemas carcerários de maneira geral, antes mesmo de resolver
os problemas internos do cárcere.

Percebe-se o alto grau de pobreza dos apenados, de maneira que se pode


designar a marginalização do cárcere como sendo secundária, pois, no mais das vezes,
os presos já pertenciam a grupos sociais marginalizados. Então:

“a reintegração na sociedade do sentenciado significa, portanto, antes de


tudo, corrigir as condições de exclusão social, desses setores, para que
conduzi-los a uma vida pós-penitenciária não signifique, simplesmente, como
quase sempre acontece, o regresso à reincidência criminal, ou o à
marginalização secundária e, a partir daí, uma vez mais, volta à prisão”
(BARATTA, s/d, p. 3).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se concluir que os pontos que evidenciam a falha no sistema


ressocializador são, notadamente, a seletividade penal e a prisionização. Ambos os
fatores citados contribuem para um processo de criminalização cíclica dos indivíduos na
sociedade. Dessa forma, afirmar que a pena ressocializa em um contexto social de
seleção de condutas e indivíduos e de uma pena que fomenta o caráter “criminalizante”
dos agentes é paradoxal.

É, assim, verdade a afirmação de que a pena não reeduca nem reintegra o


indivíduo à sociedade livre, mas ao contrário, os efeitos, tanto da seletividade penal
como da prisionização, fomentam um processo cíclico de criminalização. Tal processo
consiste em, primeiro, eleger condutas penalmente reprováveis, bem como na selecionar
indivíduos que sofrerão a ira do Direito Penal, com base em uma hierarquia de
interesses, privilegiando-se interesses das elites e, o segundo passo para o fechamento
do ciclo, é a passagem do indivíduo pela prisão, proporcionando aquisição dos valores
próprios do cárcere e total desadaptação ao convívio externo, fazendo com que, no
momento de sua volta à sociedade, ele se veja descolado, desumanizado e
estigmatizado, sendo quase que inevitável à reincidência do mesmo.
Ainda sobre a questão da reintegração da pena, concluímos que uma das formas
de minimização desse caráter cíclico de criminalização é a abrangência de um Direito
Penal mínimo, que puna apenas nos casos extremamente necessários à manutenção da
vida em sociedade e que diminua os efeitos da prisionização.

Em que pese os apontamentos feitos no intuito de atenuar tais processos, é


evidente que a pena privativa de liberdade se traduz como plenamente ineficiente no
que tange a sua função de ressocializar devido às contradições e conflitos inerentes ao
próprio sistema como um todo, não se conseguindo vislumbrar nessa pesquisa,
infelizmente, uma solução definitiva para tal fenômeno, mas apenas elementos que
podem minimizadores.

REFERÊNCIAS

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______. Manual de direito penal brasileiro: volume 1: parte geral. 9. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011.
A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO É A CARNE NEGRA: O racismo
como fator determinante para o aumento da taxa de homicídios por arma de fogo
no Brasil
Sílvio César de Oliveira Ramos Filho18
Rita de Cássia Tabosa Souza Freitas19

GT 05 – Criminalidade, Violência, Estado Penal e Direitos Humanos

RESUMO

O racismo é um grave problema que afeta a sociedade brasileira. Verdadeira violação


aos direitos humanos que é, acaba por fazer com que seja fator determinante para o
aumento das taxas de homicídio no Brasil, segundo o Mapa da Violência, sendo a
população negra a maior parte das vítimas. Logo, o presente artigo científico tem como
problemática: quais as razões para a maior parte das vítimas de homicídios, segundo o
Mapa da Violência, serem negras. O objetivo geral desta pesquisa consiste em entender
quais as razões para a maior parte das vítimas de homicídios serem negras. O presente
trabalho utiliza o método dialético como parâmetro de pesquisa. O presente trabalho
utiliza, principalmente, três tipos de pesquisa, quais sejam a pesquisa bibliográfica,
descritiva e exploratória. Pode-se concluir que os jovens, sobretudo, negros, são os mais
assassinados por arma de fogo no país, o que constitui um fato alarmante. O racismo
enraizado na população brasileira acaba sendo um fator que leva ao aumento desses
crimes, principalmente o racismo institucionalizado. Precisa-se existir uma proteção
mais efetiva aos direitos humanos, de forma que a dignidade da pessoa humana seja
respeitada.
Palavras-chave: Racismo. Direitos Humanos. Homicídios. Mapa da Violência.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 dispõe que todos devem ser tratados igualmente
sem distinção de qualquer natureza, inclusive, de cor e raça. Todavia, desde o
descobrimento do Brasil, vivemos por processos racistas onde certos grupos são
discriminados, sobretudo, os negros.

18
Universidade de Pernambuco, Graduando em Bacharelado em Direito,
silvioramosfilho1@hotmail.com.
19
Doutora e Mestra em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba. Coordenadora do Grupo
Observatório de Cidadania na Universidade de Pernambuco – Campus Arcoverde. Professora Adjunta da
Universidade de Pernambuco. E-mail: rita.tabosa@bol.com.br
Infelizmente, o racismo acaba sendo tão danoso para a vida das pessoas que
chega a ser fator determinante para o crescimento de números que dizem respeito à
violência. O Mapa da Violência, especialmente o de 2014 e o de 2016, evidenciam ser
os negros as maiores vítimas de homicídios no país. Para tanto, o presente artigo
científico tem como problemática: quais as razões para a maior parte das vítimas de
homicídios, segundo o Mapa da Violência, serem negras?
Logo, o objetivo geral desta pesquisa consiste em entender quais as razões para a
maior parte das vítimas de homicídios serem negras.
O método constitui uma das partes importantes de um trabalho científico.
Lakatos e Marconi (2010) destacam que o método é o conjunto das atividades
sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia, permite alcançar o
objetivo, traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do
cientista.
Assim, pode-se concluir, que a escolha correta e consciente do procedimento a
ser utilizado em um trabalho científico, além de ser essencial para o andamento da
pesquisa, pode ser fator determinante para o sucesso nos futuros resultados a serem
encontrados.
O presente trabalho utiliza o método dialético como parâmetro de pesquisa. A
utilização do referido se dá pelo fato de existir uma necessidade na apuração de dados
vertentes existentes de um fenômeno, nesta pesquisa, qual seja, os dados do Mapa da
Violência que apontam os negros como maior parte das vítimas de homicídios no
Brasil.
O presente trabalho utiliza, principalmente, três tipos de pesquisa, quais sejam a
pesquisa bibliográfica, descritiva e exploratória. Vale ressaltar que a bibliográfica
constitui técnica de pesquisa de documentação indireta. Lakatos e Marconi (2010)
definem a documentação indireta como a fase da pesquisa realizada com intuito de
recolher informações prévias sobre o campo de interesse. Além disso, o presente artigo
também vai utilizar-se da pesquisa descritiva, que, nas palavras de Prodanov e Freitas
(2013) é aquela que visa a descrever as características de determinada população ou
fenômeno ou o estabelecimento de relações entre variáveis.
De forma a entender e encontrar uma solução para a problemática aqui proposta
passa-se a analisar sobre o racismo no Brasil, como ele está enraizado na população e
como se dá a intersecção dele com os dados do Mapa da Violência referentes aos
homicídios por arma de fogo.

1 O RACISMO ENRAIZADO NA POPULAÇÃO E A TAXA DE HOMICÍDIOS


POR ARMA DE FOGO NO BRASIL

Com mais de 200 milhões de habitantes, o Brasil é um dos países do mundo


mais ricos culturalmente. Fruto da sua miscigenação, que começou a eclodir com a
descoberta das terras de Vera Cruz a cerca de 520 anos atrás, o país recebe o título de
um dos povos mais pacíficos do mundo, de uma população extremamente civilizada,
todavia, o que vemos na prática é um pouco diferente.
O Brasil apresenta altos índices de violência, como pode-se inferir de uma série
de documentos de órgãos de segurança pública ou de organização especializadas no
tema, que produzem, anualmente, como é o caso do Mapa da Violência, estudos acerca
do assunto.
Conforme nos lembra Adorno (2017), a violência no Brasil não pode ser
considerada um fenômeno estranho. Muito pelo contrário, conforme dados policiais e de
entidades de enfrentamento contra os problemas de segurança pública, nós temos uma
das maiores taxas de homicídios de todo mundo e ainda números consideráveis de
outros delitos violentos.
A segurança pública é uma das esferas da ação estatal em que a seletividade
racial se torna mais patente. A desigualdade na distribuição da segurança entre brancos
e negros é expressiva (JÚNIOR; LIMA, 2013). Tais desigualdades acabam refletindo
nos números das taxas de violência, tais como, de homicídios. Segundo Mapa da
Violência 2016, que trata dos homicídios por arma de fogo no Brasil, a vitimização
negra no país que, em 2003, era de 71,7% (morrem, proporcionalmente, 71,7% mais
negros que brancos), pula para 158,9%, em 2014 (WAISELFISZ, 2016).
Vale ressaltar, que em relação as pessoas de cor branca, o número de homicídios
no mesmo período teve um decréscimo, o que embora constitua uma excelente notícia,
por outro lado, nos mostra ainda mais forte a faceta do racismo no Brasil.
Diante de dados tão assustadores, fica clara que há algo de muito errado
envolvendo a discriminação às pessoas de cor negra no Brasil. Para tanto, esse
desenvolvimento busca entender o racismo no Brasil e como ele acaba afetando e
influenciando o aumento das taxas de homicídios por arma de fogo.

1.1 Um breve história do Racismo no Brasil

A história do racismo no Brasil está diretamente ligada ao seu descobrimento


por volta do ano de 1500.
Os europeus chegaram ao Brasil e deram de cara com os índios, os quais tinham
enormes diferenças para com os invasores. Inicialmente os índios acabaram servindo
como mão-de-obra escrava para os portugueses, todavia, com o passar do tempo, os
indígenas passam a sofrer de doenças e até mesmo a se opor a escravidão. Dessa forma,
como lembra Botosso
A solução encontrada pelos portugueses para continuarem a explorar o Brasil
com mão-de-obra escrava foi o tráfico e a escravização de africanos, que
eram seres livres em suas terras de origem e que foram trazidos à força,
destituídos de sua humanidade por um estatuto que os transformaram em
coisas, mercadorias ou objetos comercializáveis pelos traficantes e
“máquinas animais” de trabalho necessária ao desenvolvimento da colônia
(2012, p. 3).

Os africanos, que são, em sua extrema maioria, negros, acabaram por serem
explorados por séculos. Apenas no segundo império, algumas legislações abolicionistas
surgem, tais como a Lei dos Sexagenários, a qual garantia liberdade aos escravos com
60 anos de idade ou mais, cabendo aos proprietários de escravos indenização, e a Lei do
Ventre Livre, que considerava livre todos os filhos de mulher escravas nascidos a partir
da data da lei.
Como bem lembra Reis
Este processo de abolição foi influenciado por processos externos. Havia uma
forte pressão britânica pelo fim da escravidão. Essas pressões não eram
motivadas somente por razões humanitárias, mas também econômicas, uma
vez que os escravos não recebiam salários e por isso não consumiam. O
sistema capitalista internacional, em expansão após a revolução industrial,
precisava encontrar mais mercados e mais consumidores (2012, p 19).

Em 1888, a escravidão é abolida totalmente, todavia isso não constituiu uma


mudança qualitativa na estrutura social do Brasil (BOTOSSO, 2012).
Embora estejam livres, em tese, os ex-escravos acabam enfrentando uma série de
desigualdades, muitas que se perpetuam até hoje. Nessa época, acabam por surgir às
primeiras favelas. Além disso, os negros, os que não acabaram ficando reféns dos seus
senhores por uma necessidade de emprego, acabam virando mendigos ou morrendo na
miséria.
O próprio Direito acabou por ser um forte perpetuador da discriminação racial,
como por exemplo, na promulgação da Constituição da República de 1891, quando
estabelece os mendigos como inelegíveis. Como lembra Bertulio (2001), é de se inferir
que a maioria da população ex-escrava encontrava-se na situação de mendicância de que
a Constituição fala, e proibidos, os negros, de participação na vida política,
constitucionalmente.
A ausência de indicadores de desigualdades socioeconômicas em um país que
por 388 anos manteve um sistema escravocrata serviu para escamotear as
mazelas sociais e encobrir dados flagrantes de exclusão do grupo social não
branco. Neste período o movimento negro encontrou dificuldade em entender
o racismo como estruturador das desigualdades sociais (MEDEIROS, 2014,
p. 13).

Durante todo o século XX, os negros, no Brasil, ainda enfrentaram muitas


dificuldades para superarem as discriminações, as quais eram submetidas. Essas
ficavam mais claro, sobretudo, no que diz respeito a entrada dessas pessoas no mercado
de trabalho. Embora, em tese, não existisse mais desigualdade entre negros e brancos,
na prática isso não era o que de fato ocorria.

Tais marcas racistas persistem até hoje na sociedade brasileira, de forma que
podemos encontrar uma espécie de racismo que está enraizado na nossa população,
como veremos a seguir.

1.2 O Racismo nos dias atuais e o Racismo institucionalizado


Desde a chegada dos portugueses ao Brasil, as partes mais vulneráveis da
população sofre algum tipo de dominação. Entretanto, a dominação por meio
econômico e racial acabam, infelizmente, se destacando. Ponto essencial para a causa
do aumento da violência brasileira, a desigualdade social é um grave problema que nos
acompanha por séculos.
Nos dias de hoje, embora a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 traga em seu corpo que o racismo é um crime inafiançável e imprescritível, ou
seja, que não pode ser aplicada fiança e que não se perca o direito, com o decurso do
tempo, de a vítima poder ajuizar ação para penalizar a sua prática, o racismo ainda
persiste.
De fato, o racismo não tem mais a roupagem de antigamente, onde era mais
explícito. O racismo atual acaba por tomar outra roupagem. As discriminações acabam
por se dar de forma mais velada. As causas do racismo são camufladas, não detectáveis
aparentemente, enquanto seus efeitos são tangíveis (SANTOS, 2013). O racismo acaba
se dando, muitas vezes, por atitudes no cotidiano, como, se de certa forma, este
estivesse no inconsciente de cada um.
Muitas vezes, por exemplo, ao ver um homem de pele mais clara andando numa
rua escura não desperta tanto receio, no entanto, quando esse mesmo homem possui a
pele escura, a situação é diferente. Atitudes como essa acabam por afastar e excluir
muitas pessoas da sociedade em geral.
A exclusão social promovida pela rejeição racial determina o lugar social da
população negra, fatores que a torna vulnerável à violência (SILVA; CARNEIRO,
2009). Geralmente, locais mais pobres e com menos presença do Estado são onde os
números de delitos contra a pessoa são maiores.
Embora a pobreza não seja em si um elemento gerador de violência, não há
como negar as relações entre a “persistência da concentração da riqueza, da
concentração de precária qualidade de vida coletiva nos chamados bairros periféricos
das grandes cidades e a explosão da violência fatal” (LIMA apud ADORNO, 2011).
Não é de difícil constatação que grande parcela dos crimes violentos ocorridos no Brasil
se dão em áreas mais pobres das cidades, sobretudo, nas grandes metrópoles como São
Paulo, Rio de Janeiro e Recife.
Tais áreas abrigam, constantemente, grandes traficantes de drogas, outro grave
problema brasileiro. Reféns dos bandidos, desprezados pela sociedade em geral, com
um tratamento desumano por uma parte considerável de agentes de segurança pública,
muitos jovens de tais áreas acabam por optar por uma vida do crime, visto que as
oportunidades de uma vida boa e digna muitas vezes sequer nem existem.
O garoto pobre da favela não necessariamente vai ser um bandido, mas muitos
deles acabam sendo vítimas da sociedade totalmente preconceituosa, que lhes nega
oportunidades, que o discrimina por sua classe social e muitos, pela cor da sua pele.
Não acaba sendo estranho e incompressível que vá nascer um sentimento de revolta em
jovens como esses, que, infelizmente, boa parte das vezes, se utiliza dessa revolta para
fazer o pior.
Dois aspectos considerados agravantes para piorar este quadro são o modelo de
ação das polícias e o desenvolvimento das novas formas de criminalidade,
especialmente o tráfico de drogas (LIMA, 2011). A ação das policias nas favelas e
periferias das cidades acabam sendo muitas vezes mais violentas que os próprios atos de
violência ocorridos em tais lugares. Embora o papel da polícia seja essencial para toda a
sociedade, papel este assegurado, disciplinado e garantido na nossa Constituição
Federal, nem sempre é efetuado como deveria. Muitas vezes, a própria polícia engrossa
o discurso discriminatório, estereotipando as pessoas e tratando-as como um lixo.
Como nos lembra Medeiros
A discriminação racial no Brasil se faz presente em todos os âmbitos e
esferas sociais. Essa presença de tão constante, em muitos momentos, passa
despercebida, incorpora-se ao imaginário coletivo nacional, diluída pelos
ideais hegemônicos da democracia racial, que colocam negros e brancos em
posição de igualdade, flui livremente, transformando-se em pensamento
social vigente (2014, p. 15).

Vale lembrar, também, uma espécie de racismo muito comum atualmente: o


institucionalizado. O racismo institucional manifesta-se por meio de normas, práticas e
comportamentos discriminatórios atuantes no cotidiano de trabalho das organizações,
resultantes do preconceito ou estereótipos racistas (CERQUEIRA apud IPEA, 2007).
Tal espécie racista é perceptível, por exemplo, no tratamento dado a pessoas negras, em
boa parte dos casos, pela polícia, especialmente a militar, e por órgãos responsáveis pela
proteção e efetivação de direitos.
Na prática, os sinais identificados para abordar um suspeito são, de forma geral,
apesar de não exclusiva, fortemente associados à classe social e à raça dos cidadãos
(OLIVEIRA JUNIOR, 2017). Isso constitui uma grave violação de direitos, sobretudo,
de direitos humanos. Muitas vezes, o próprio princípio de presunção de inocência acaba
sendo violado.

Nas palavras de Júnior e Lima (2013)


A sedimentação do mito que associa juventude negra e criminalidade
multiplica consequências desastrosas no cotidiano das práticas policiais. Um
dos componentes mais claros do racismo institucional das polícias é
naturalizar a relação entre pobreza e criminalidade, tomando incoerentemente
a cor da pele como seu indicador visível (p. 24).

A taxa de homicídios de pessoas negras é muito alta, conforme já vimos, e o fato


mais preocupante é que a maior parte das vítimas são os jovens, como veremos a seguir.

1.3 A exterminação da população jovem negra no Brasil

Conforme o Mapa da Violência 2014 – Jovens do Brasil, a maior parte das


vítimas de homicídio no Brasil são os jovens de 15 a 29 anos de idade, o que mostra um
fato preocupante.
Os números de homicídios no Brasil por si só já são assustadores. Segundo
dados divulgados pelo IPEA recentemente, no ano de 2015 foram mais de 59 mil
homicídios. Aliado a esse dado, a informação que os jovens são as maiores vítimas
desse tipo de violência é alarmante por uma série de motivos, tais como o fato de termos
uma população cada vez mais velha e uma população jovem que morre mais cedo, o que
além de constituir um problema grave de segurança pública, acaba se tornando um
problema para diversas áreas, como a área econômica, trabalhista e previdência, por
exemplo.
Mais preocupante ainda é que possivelmente o racismo acaba sendo um fator
determinante para o extermínio da população de cor negra no Brasil. Conforme o Mapa
da Violência de 2014,
Entre os jovens a situação é mais preocupante: o número de vítimas brancas
cai 32,3%. O número de vítimas jovens negras aumenta 32,4%: o
diametralmente oposto. As taxas brancas caem 28,6% enquanto as negras
aumentam 6,5%. Com isso, o índice de vitimização negra total passa de
79,9% em 2002 (morrem proporcionalmente 79,9% mais jovens negros que
brancos) para 168,6% em 2012, o que representa um aumento de 111% na
vitimização de jovens negros (p. 180).

Muitas vezes, como já mencionado aqui, essa população encontra-se em locais,


onde a presença do Estado é praticamente nula, o que acaba dando margem ao aumento
da criminalidade com o consequente aumento de tais taxas.
Infelizmente, os jovens negros não tem as mesmas oportunidades que jovens
brancos. Embora os últimos anos tenham sido marcados por uma série de avanços, tais
como a política de cotas que busca incluir cada vez os negros no Ensino Superior, essa
população ainda carece de mais políticas públicas que busquem diminuir as
desigualdades perante a sociedade.
Ainda, o discurso da população de quem o racismo não existe ou ainda que o
discurso que pretende acabar contra a discriminação contra negros é uma forma de
racismo acabam por alimentar as desigualdades. Muitas vezes os argumentos
apresentados, como o fato de os brancos possivelmente serem também alvo de
discriminação racial, são totalmente infundados, ao passo que não condiz qual a
realidade atual do Brasil.
O que acontece, de verdade, é a uma verdadeira discriminação racial para com as
pessoas negras, que, muitas vezes, é fatal. Essa discriminação constitui uma verdadeira
violação de direitos humanos, como veremos a seguir.

1.4 O Racismo e os Direitos Humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) estabelece em seu


artigo 2º que toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidas por ela sem distinção de qualquer espécie, inclusive pela cor. Tal artigo
serve como base para o artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, também chamada de Constituição Cidadã, justamente por priorizar fundamentos e
princípios que buscam respeitar a isonomia e diminuir as desigualdades, sejam elas por
gênero, sexo, cor ou raça.
Nas palavras de Medeiros
Todo ser humano é detentor de direitos, alguns inerentes a simples condição
de ser humano. Por isso os direitos humanos não podem ser violados por puro
preconceito, cabendo à lei regular atitudes discriminatórias, garantido às
pessoas a preservação de seus direitos fundamentais, em especial, a dignidade
da pessoa humana (2014, p. 30-31).

Os negros, assim como qualquer outra pessoa de qualquer raça que seja,
precisam ter sua dignidade humana preservada. Tal dignidade é inerente a qualquer ser
humano. O ser humano é digno justamente pelo simples fato de existir.
Aliada à falta de dignidade e do direito à vida, temos ainda a desvalorização das
vidas perdidas, que pode ser percebida na falta de investigação, solução e punição dos
casos de violência.
Com o reforço do discurso discriminatório, parte da população, inclusive,
pessoas mais esclarecidas, acabam por apoiar certos desrespeitos a dignidade da pessoa
humana, aos direitos humanos e ao próprio Estado.
A sensação de impotência e a indignação marcam a vida de famílias (SILVA, et.
al., 2009). Não é incomum que a vida perdida de uma pessoa negra não seja tão
valorizada quanto a de uma não negra, o que configura, também, uma grave violação
aos direitos humanos.
O Brasil é signatário de todas as Convenções, Acordos e Tratados internacionais
que objetivam erradicar o racismo e a discriminação à mulher, bem como qualquer tipo
de discriminação (BERTULIO, 2001). Isso é um fato positivo no que se refere ao nosso
Estado, todavia, o Brasil ainda carece de maior efetividade nas políticas de forma a
erradicar o racismo ou quaisquer outras formas de discriminação.

1.5 O negro do outro lado do cano da arma

Embora não existam dados confiáveis e/ou corretos sobre a quantidade de armas
de fogos no Brasil, sabe-se que esse número é muito alto.
De acordo com o Mapa da Violência 2016 – Mortes por armas de fogo no Brasil,
de 1980 até 2014 morreram no Brasil 967.851 vítimas de disparo de arma de fogo,
sendo 830.420 dessas mortes, isto é, 85,8% do total, foram resultantes de agressão com
intenção de matar: foram homicídios (WAISELFISZ, 2016).
Dessa forma, por dia, no Brasil, morrem mais pessoas que em atentados
terroristas ou conflitos armados em países em estado de Guerra Civil (declarada).
Ainda como lembra o Mapa da Violência 2016
Característica marcante dos HAF é a elevada masculinidade de suas vítimas:
94,4% das vítimas, em 2014, foram homens; além de ceifar a vida, de forma
preferencial, da juventude: em 2014, os jovens de 15 a 29 anos
representavam, aproximadamente, 26% da população do país, mas essa faixa
é responsável por 60% das vítimas dos HAF acontecidos nesse ano
(WAISELFISZ, 2016, p. 71).

Os homens são os que mais morrem em virtude de homicídio por arma de fogo e
os jovens são a grande maioria, como já visto aqui.
Mas o dado mais alarmante é a seletividade racial dos homicídios por arma de
fogo tendo os negros estado do outro lado do cano da arma bem mais vezes que pessoas
não negras.
Entre 2003 e 2014, as taxas de HAF de brancos caem 27,1%, de 14,5, em 2003,
para 10,6, em 2014; enquanto a taxa de homicídios de negros aumenta 9,9%: de 24,9
para 27,4 (WAISELFISZ, 2016). Infelizmente, possivelmente a tendência é que nos
futuros levantamentos esse número venha a aumentar.
Como bem lembra Waiselfisz (2016), além da herança do passado colonial e
escravocrata, outros fatores podem ser mencionados na tentativa de explicar essa
crescente seletividade racial da violência homicida. A segurança pública não chega a
todos os locais da mesma forma e o aparelhamento de segurança também tem passado
por um processo de privatização, onde as populações menos favorecidas não têm
condições de utilizar desse serviço estando, dessa forma, mais vulneráveis.
Vale ressaltar que as famílias negras possuem uma renda fixa mensal menor que
as famílias brancas, o que demonstra mais uma vertente do racismo no Brasil.
Ainda, vale lembrar que geralmente as populações negras vivem em regiões com
menos alcance do Estado seja no que diz respeito à saúde, à Educação, ao Esporte e etc.,
o que acaba por impulsionar o aumento das desigualdades, que é outro fator
determinante para seletividade racial da violência homicida.
Vale lembrar que ambientes como a escola precisam ser utilizados para o
combate a discriminação, sobretudo, racial. Como lembra Reis
A Escola tem um papel fundamental a cumprir para combater preconceitos e
superar as desigualdades. O Brasil é um país conhecido por ser católico e
conservador especialmente no campo sexual, ao mesmo tempo em que se diz
“acolhedor” e “liberal”. Há um grande contraste desse lado “liberal” e os
ataques contra homossexuais e a discriminação contra as mulheres e aos
negros (2012, p. 24).

Dessa forma, a vitimização da população negra, sobretudo, da população negra


jovem precisa ter uma diminuição significativa, de forma que seja evitado um
verdadeiro extermínio dos negros do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como observado, o racismo é uma grave violação aos direitos humanos ainda
presente de forma latente e viva na nossa sociedade. Embora muitas vezes esse racismo
se dê de forma velada e/ou por meio de atitudes aparentemente normais, como se dá no
institucional, ele acaba por ser um fator determinante no aumento das taxas de
segurança pública.
O Brasil é um dos países do mundo onde mais se cometem homicídios
diariamente, semanalmente, mensalmente e anualmente. Os números chegam a ser
assustadores por mostrar como a vida humana acaba por ter nenhum valor. Sendo as
maiores vítimas as pessoas negras e pobres, esse valor acaba sendo mínimo, visto que a
discriminação e a desigualdade perante estas são enormes.
Fato ainda mais preocupante é que a população jovem do país é a maior vítima
dos homicídios, sendo sua grande maioria, de negros. Embora o investimento em
políticas para inclusão da população menos favorecida e/ou discriminada seja maior que
nas décadas passadas, precisamos ter uma maior atenção para isso, visto que, a
educação é a porta e a possível solução para diminuição de taxas, que não são ruins
apenas para o Estado, bem como são verdadeiras violações a dignidade da pessoa
humana e, consequentemente, os direitos humanos.
A mudança na sociedade como um todo, partindo do indivíduo em si, até as mais
altas instâncias de órgãos públicos, deve ser imediata, pois enquanto isso, a carne mais
barata do mercado continua sendo a carne negra.
REFERÊNCIAS

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2017. 33 min. Disponível em: “<https://www.youtube.com/watch?v=Gj2odAHhPA4>”.
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BERTULIO, Dora Lucia de Lima. Considerações sobre a Discriminação de Raça e


Gênero na sociedade Brasileira. Disponível em: <
http://sites.multiweb.ufsm.br/afirme/docs/Artigos/dora02.pdf> Acesso em: 02 de Julho
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BOTOSSO, Tatiane Cavalcante de Oliveira. Racismo no Brasil. Disponível em:


<http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2013/03/Tatiana-
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CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro. et. al. Violência, segurança pública e


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Acesso em: 02 de Julho de 2017.

JÚNIOR, Almir de Oliveira. et. al. Segurança Pública e Racismo Institucional.


Boletim de Análise Político-Institucional. Disponível em:
<http://ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/boletim_analise_politico/1301017_bol
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LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de


Metodologia Científica. 7ª ed., São Paulo: Atlas, 2010.

LIMA, Antônio José Tavares. Violência e cultura brasileira. Disponível em:


<http://www.fat.edu.br/saberjuridico/publicacoes/edicao09/docentes/violencia-e-
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MEDEIROS, Sônia Tavares. Contribuição do Disque Racismo para o combate da


desigualdade de raça no Distrito Federal. Universidade de Brasilia – Curso de
Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça. Trabalho de
Conclusão de Curso. Brasília, 2014.

PRODANOV, Cleber Cristiano. Metodologia do trabalho científico [recurso


eletrônico]: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico – 2. ed. – Novo
Hamburgo: Feevale, 2013.
OLIVEIRA JUNIOR, Almir de. Segurança Pública e Racismo Institucional.
Disponível em: <https://www.geledes.org.br/seguranca-publica-e-racismo-
institucional/> Acesso em: agosto de 2017.

REIS, Deyse Almeida dos. Uma reflexão sobre o racismo no âmbito escolar.
Universidade Federal de Ouro Preto. Especialização em Gestão de Políticas Públicas em
Gênero e Raça. Trabalho de Conclusão de Curso. Ouro Preto, 2012.

SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. Direitos humanos e as práticas de racismo / Ivair
Augusto Alves dos Santos [recurso eletrônico]. – Brasília: Câmara dos Deputados,
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SILVA, Rodnei J. da, CARNEIRO, Suelaine. Violência racial: uma leitura sobre os
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TREVIZAN, Karina. Taxa de homicídios no Brasil aumenta mais de 10% de 2005 a


2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/taxa-de-homicidios-no-
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WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2014: Os Jovens do Brasil.


Secretaria Geral da Presidência da República. Brasília, 2014.

____________. Mapa da Violência 2016: Homicídios por arma de fogo no Brasil.


Flacso Brasil. Brasília, 2016.
O PERFIL DO CRIMINOSO: UM ESTUDO COMPARATIVO DOS
MARCADORES SOCIAIS DO PRESO DA CIDADE DE CARUARU-PE

Weslayny Alana Silva do Nascimento20


Déborah Ellen Araújo de Lima21

GT 05: CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA, ESTADO PENAL E DIREITOS


HUMANOS.

RESUMO

Este estudo apresenta uma pesquisa com o seguinte tema: O perfil do criminoso: Um
estudo comparativo dos marcadores sociais do preso da cidade de Caruaru-PE. Discutir-
se-á acerca do estudo realizado no ano de 2015 analisando os marcadores sociais do
criminoso traçando assim um perfil do agente encarcerado, desta feita será comparado
com uma pesquisa realizada no ano de 2017.1). Desta feita o objetivo assumido foi o de
analisar qual o perfil do criminoso que se encontra em situação de cárcere na cidade de
Caruaru-PE. Ademais será tratado de forma específica: Verificar se os marcadores
sociais do agente delituoso do ano de 2015 são os mesmo do ano de 2017.1 bem como,
compreender a relação dos crimes praticados com os marcadores sociais de pessoas em
situação de cárcere. As conclusões alcançadas com a pesquisa realizada, nos permitem
esclarecer que o perfil do criminoso não mudou muito comparando as pesquisas de
2015 e 2017.1, podendo-se concluir que o perfil é de jovens masculinos, de cor
predominantemente parda, com escolaridade de ensino fundamental e fundamental
incompleto, com profissão variadas e com renda até um salário e com crime cometidos
em sua maioria contra o patrimônio.

Palavras- chave: Perfil. Criminoso. Marcadores Social. Cárcere.

1 INTRODUÇÃO

20
Universidade Federal de Pernambuco, aluna especial no P.P.G.D.H (Programa de pós-graduação em
Direitos Humanos). Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Advogada. E-
mail: w.alana@live.com,

² Escola Superior de Advocacia, pós-graduanda em Direito Processual Civil. Graduada em Direito pelo
Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Advogada. deborahellenlima@hotmail.com.
O presente trabalho aborda sobre o seguinte tema: “O perfil do criminoso: Um
estudo comparativo dos marcadores sociais do preso da cidade de Caruaru-PE”.
Visa-se destacar aspectos críticos sobre o tema apresentado, com intenções de
discutir sobre o perfil do criminoso que se encontra em situação de cárcere na cidade de
Caruaru-Pe.
Tal pesquisa teve o auxílio o Núcleo de Prática Jurídica (NPJ) do
UNIFAVIP/DeVry que é a garantidora do acesso à justiça de 99% dos processos
analisados, nos quais não tem dinheiro para pagar um advogado particular nem
conseguem vagas com a defensoria pública. O NPJ presta assistência jurídica gratuita
garantindo-lhes o que a Constituição prevê.
Será realizado um estudo comparativo de duas pesquisas, uma referente ao ano
de 2015 e outra referente ao ano de 2017.1 (pesquisa realizada até o primeiro semestre
do corrente ano). Tal pesquisa se da de cunho comparativo com o intuito de verificar se
o perfil do agente delituoso continua o mesmo, levando em consideração os marcadores
sociais do criminoso, isto é sexo, cor, escolaridade, profissão e renda, bem como se
analisará o crime cometido.
No tocante a justificativa, pode-se concluir que o presente trabalho tem grande
relevância social no que diz repeito ao conhecimento da sociedade, conhecimento este
acerca do perfil da pessoa que está em situação de cárcere, saber quais seus marcadores
sociais e os estigmas que esteS carregam.
Haja vista a justificativa acadêmica preza-se também pelo incentivo a novos
artigos e pesquisa na área, fomentando assim a curiosidade e possível solução para o
cenário atual.
O problema estabelecido na pesquisa foi o seguinte: Qual o perfil do criminoso
que se encontra em situação de cárcere na cidade de Caruaru-PE?
Por sua vez, o objetivo geral do estudo foi instituído como: analisar qual o perfil
do criminoso que se encontra em situação de cárcere na cidade de Caruaru-PE.
Outrossim, será tratado de forma específica: Verificar se os marcadores sociais
do agente delituoso do ano de 2015 são os mesmos do ano de 2017.1, bem como:
Compreender a relação dos crimes praticados com os marcadores sociais de pessoas em
situação de cárcere.

2 TRAJETOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA


No tocante ao método de pesquisa, foi utilizado neste trabalho, o método
dialético. Segundo Lakatos e Marconi (2003, p. 103) apresentam que “para a dialética
não há nada de definitivo e de absoluto”.
Em relação ao tipo de pesquisa, este será realizado por meio do estudo
explicativo segundo Gil (1999), a pesquisa explicativa tem como objetivo básico a
identificação dos fatores que determinam ou que contribuem para a ocorrência de um
fenômeno. É o tipo de pesquisa que mais aprofunda o conhecimento da realidade, pois
tenta explicar a razão e as relações de causa e efeito dos fenômenos.
Usaremos também o método descritivo, Gil (1999), enriquece o presente
trabalho fazendo as seguintes considerações, as pesquisas descritivas têm como
finalidade principal a descrição das características de determinado fenômeno, ou o
estabelecimento de relações entre variáveis. São inúmeros os estudos que podem ser
classificados sob este título e uma de suas características mais significativas aparece na
utilização de técnicas padronizadas de coleta de dados.
E por fim usaremos o estudo exploratório retrata que este „método‟ de pesquisa
tem como objetivo principal desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e idéias,
tendo em vista a formulação de problemas mais precisos, Gil (1999).
Este tipo de pesquisa apresenta menos rigidez, pois são planejadas com o
objetivo de proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato.
Vem este, todavia discutir o que não é sabido a respeito do instituto em questão. A
pesquisa realiza tem cunho de abordagem quantitativa, que consiste no contanto direto
do pesquisador com o ambiente e a situação estudada. A referida abordagem torna a
pesquisa algo bem objetivo, e será usado neste trabalho por ser prático, e tornar a
pesquisa exata por não haver subjetividade. Malhotra (2001, p.155), já dizia que “a
pesquisa quantitativa procura quantificar os dados e aplica alguma forma da análise
estatística”.
Na pesquisa quantitativa, as respostas de alguns problemas podem ser usadas
para o todo, então, tem que haver uma amostra muito bem definida, caso contrário,
podem surgir problemas ao se utilizar a solução para o todo.
Usaremos também a técnica de coleta de dado com o auxílio de documentos
como dados, reza Lakatos e Marconi (2003), a pesquisa documental é a coleta de dados
em fontes primárias, como documentos escritos ou não, pertencentes a arquivos
públicos; arquivos particulares de instituições e domicílios, e fontes estatísticas.
Este presente trabalho utilizará documentos para colheita de dados, fazendo
assim, uso de processos judiciais que tramitam na 1ª e 3ª Vara Criminal da cidade de
Caruaru.
Através de estudo documental, será ressaltada o perfil do criminoso, levando em
consideração duas pesquisas realizadas, no ano de 2015 e 2017.1. Realizando assim um
estudo comparativo das citadas pesquisas a fim de se saber como é o perfil do criminoso
que está em situação de cárcere na cidade de Caruaru-PE. Será feita todas as
considerações a partir de análise realizada em processos judiciais que tramitam na
comarca de Caruaru e que tem apoio do Núcleo de Prática Jurídica do Unifavip-Devry.
No que se refere às técnicas de análise de dados, usaremos a análise de
conteúdo. Preceitua Bardin (1977, p. 42) conceitua análise de conteúdo como:

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando a obter,


por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
de mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a
inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens.

A análise de conteúdo viabiliza, no entanto uma melhor contribuição para uma


leitura mais rica e esclarecedora no que diz respeito a possíveis incertezas, vindo esta a
analisar as comunicações, extraindo mais conteúdos por trás de algo que já foi
analisado.

3 DESENVOLVIMENTO
3.1 Marcadores sociais do criminoso

A presente pesquisa foi realizada nos moldes comparativo, isto é, em 2015 foi
realiza uma pesquisa que tinha com base processos dos anos 2011/2013/2014 e 2015,
que tramitam no Fórum da cidade de Caruaru, especificadamente na 1º Vara Criminal,
foi traçado um perfil do criminoso bem como analisado questões processuais inerentes a
prisão provisória. Em 2017 (primeiro semestre), foi realizada outra pesquisa, pesquisa
essa que se analisaram os mesmos requisitos da pesquisa anterior, tomando como base
os anos de 2016 e 2017 de processos que tramitam no Fórum da cidade de Caruaru,
especificadamente na 1ª e 3ª Vara Criminal, contando nas duas pesquisas com o auxílio
ímpar do Núcleo de Práticas Jurídicas (NPJ) do Unifavip-Devry sendo assegurado ao
criminoso o acesso a justiça, como bem estabelece a Constituição Federal.
Na pesquisa realizada em 2015 foram analisados processos referentes aos anos
de 2011, 2013, 2014 e 2015, constitui-se análise de 30 (trinta) processos com 37 (trinta
e sete) envolvidos. Far-se-á a discussão baseada nos anos dos processos analisados, são
estes.
Os marcadores sociais do criminoso, serão observados e levados em
consideração o sexo, a idade, escolaridade, profissão, cor e renda do agente delituoso,
traçando assim o seu perfil.
Desta feita, dos processos referentes à pesquisa de 2015 analisou-se 30
processos, obtendo uma média do sexo do criminoso.
Dos 37 envolvidos nos processos, (pesquisa de 2015) apenas 05 são mulheres e
32 homens.
Ao analisar os dados coletados constatou-se que só 01 é referente ao ano de
2011. Diante disso, relata-se que dos processos analisados o que faz menção ao ano de
2011 é:

Tabela 01 - Casos analisados em 2011


Ano/2011 Sexo Idade Escolaridade Profissão Cor Renda

1 caso Masculino 24 anos Ensino Pintor Parda Até 1


Fundamental salário
incompleto mínimo

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa no ano de 2015.

Diante dessa análise referente ao ano de 2011, tem-se o seguinte perfil: jovem,
com ensino fundamental incompleto, com profissão, com renda não superior a um
salário mínimo e de cor parda.
No tocante o ano de 2013, contatou-se que dos 30 processos analisados que dizem
respeito a 37 criminosos, apenas 02 representam o ano de 2013.
Tabela 02- Casos analisados em 2013

Ano/2013 Sexo Idade Escolaridade Profissão Cor Renda

01 caso Masculino 23 anos Ensino Servente Parda Até 1


Fundamental de pedreiro salário
mínimo

02 caso Masculino 22 anos Ensino Carpinteiro Parda Até 1


fundamental salário
incompleto mínimo

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa no ano de 2015.

Percebe-se que no que se refere ao ano de 2013 o perfil do criminoso só caminha


no mesmo raciocínio dos dados analisados no ano de 2011, apesar de ter sido analisado
somente um processo no referido ano de 2011, dá para ter uma noção do perfil do
criminoso no geral.
Constatou-se mais uma vez que a classe que predomina na prática de crimes, é a
classe jovem, ou seja, estão entre os 18 à 25 anos, com renda não superior a 01 salário
mínimo, sem a escolaridade adequada estando esses crimes ligados aos fatores sociais.
Referente ao ano de 2014, foram analisados 05 processos. Houve pequenas
diferenças no que se referem ao perfil do criminoso, mas, nada muito diferente dos anos
anteriormente analisados.

Tabela 03- Casos analisados em 2014

Ano/2014 Sexo Idade Escolaridade Profissão Cor Renda

01 caso Masculino 18 anos Ensino Costureiro Parda Até 02


fundamental salários
incompleto mínimos

02 caso Masculino 21 anos Ensino Agricultor Branca Até 01


fundamental salário
incompleto mínimo

03 caso Masculino 23 anos Analfabeto Agricultor Branca Até 01


salário
mínimo

04 caso Masculino 32 anos Ensino Auxiliar Parda Até 01


fundamental de salário
incompleto serviços mínimo
gerais

05 caso Masculino 38 anos Ensino Agricultor Parda Até 03


fundamental salários
mínimos

Fonte:Dados resultantes da própria pesquisa.

Conclui-se, no entanto, que o perfil do criminoso em 2014, mudou um pouco


quando o assunto é idade, escolaridade, cor e renda.
Pois bem, nos anos anteriormente analisados viu-se que a predominância era dos
jovens, com idade entre 18 a 25 anos, no ano de 2014, ao analisar a idade dos agentes
delituosos, observou-se que 02 entre os 05 processos analisados tem idade superior a 30
anos, isto é o perfil do criminoso começa a mudar um pouco, mas, não deixa de existir a
predominância da classe mais jovem. No que se refere à escolaridade ainda há a
prevalência de criminosos com o ensino fundamental incompleto, mas também existem
criminosos analfabetos e como o ensino fundamental.
Ora, esse cenário repercute cada vez mais na situação em que o país se encontra.
Pessoas que cometem crime não têm, ou não tiveram uma educação de base, e preferem
abandonar os estudos por ter que trabalhar, e muitas vezes a renda que lhes pertencem
não dá pra sobreviver. O „encantamento‟ por dinheiro fácil e rápido atrai muita gente.
No tocante a renda dos criminosos, dos 05, 03 possui renda de até 01 salário, 01
possui renda até 02 salários e 01 possui renda até 03 salários. Observa a predominância
de renda baixa para o sustento de uma pessoa.
Nos anos de 2011 e 2013, anteriormente analisados, só havia criminoso
pardo, em 2014 o quadro alterou um pouco, dos 05 casos analisados, 02 deles são
brancos.
Desta feita, conclui-se que em comparação aos anos anteriores (2011 e 2013), no
ano de 2014 não houve muitas mudanças no que se refere ao perfil do criminoso.
Analisar-se-á o perfil dos criminosos no ano de 2015, ano este que houve a
maior concentração de dados da pesquisa realizada. Dos 30 processos analisados com
37 envolvidos, 29 diz respeito a crimes cometidos no ano de 2015.
Ao descrever o sexo dos envolvidos observa que o sexo que se sobressai é o
masculino, entretanto, há participação das mulheres em determinados crimes.
Salienta-se que dos 29 processos referente ao ano de 2015, apenas 05 faz
menção a crime praticado por mulher e os outros 24 processos são referentes à prática
de crime cometido por homens.
Quando o assunto é a idade dos criminosos, tem-se mais uma vez, como nos
outros anos analisados, 2011, 2013 e 2014 a prevalência da categoria jovem.
A predominância da juventude na prática de crimes só aumenta cada vez mais.
Dados muito alarmantes, visto que, nossa sociedade é formada por uma grande massa
de pessoas jovens e a cada dia a tendência é que esses números só aumentem.
Na presente pesquisa observou-se que jovens entre 18 e 25 anos estão no topo do
ranque. Dos 26 processos analisados no ano de 2015, 16 destes foram praticados por
jovens com a faixa etária acima referida. Nove crimes foram cometidos por pessoas com
a idade entre 36 a 49 anos e, apenas 01 crime foi praticado por uma pessoa com idade
superior a 50 anos.
Quando o assunto é a escolaridade dos criminosos, este, por sua vez, vem
acompanhando o caminho dos outros anos já analisados no presente trabalho.
O ensino fundamental incompleto está no topo, com 17 indivíduos, seguido do
ensino fundamental, com 7 indivíduos, analfabetos, com 4 indivíduos e por fim apenas
um indivíduo tem o ensino médio incompleto.
Sabe-se que a educação é à base de uma sociedade e que esta tem que ser
prestada pelo Estado, para que assim formem pessoas aptas para entrar no mercado de
trabalho, bem como a diminuição do índice de analfabetismo no país.
É inaceitável que em pleno século XXI exista um índice tão elevado de pessoas
que não tem se quer o ensino fundamental completo, ou seja, o mínimo necessário,
como saber ler e escrever a língua portuguesa fluentemente.
Ainda sobre as análises dos marcadores sociais do criminoso, partir-se para uma
discussão acerca da profissão dos criminosos.
Ao analisar os 37 envolvidos da presente pesquisa, constatou-se que as
profissões em comum, são: Pedreiros/ ajudantes de pedreiro/ servente de pedreiro com
06 envolvidos, em sequência está os autônomos com 05 envolvidos, tem também
mecânicos de automóveis/ ajudante de mecânico de automóveis com 03 indivíduos,
vendedor com 02 envolvidos, auxiliar de serviços gerais com 2 envolvidos, estudantes
com 02 envolvidos. Existem também aquelas profissões que não são em comum como,
sinaleiro 01 indivíduo, pasteleiro 01 envolvido, marceneiro 01 indivíduo, forneiro 01
envolvido e moto-táxi 01 indivíduo. Nesta pesquisa 04 indivíduos não informaram a
profissão. Sabe-se o quão é importante a profissão para uma pessoa, mas em
contrapartida é sabido que existem inúmeras pessoas que não a tem.
A ocupação do indivíduo pela prática do trabalho/ profissão, contribui para o não
cometimento de crimes, pois, mantém o sujeito ocupado durante boa parte do dia ou
noite.
Far-se-á uma análise no que tange a cor dos envolvidos na pesquisa realizada.
Dos 29 envolvidos do ano de 2015, temos o seguinte resultado: 16 indivíduos
são pardos, 4 são brancos, 3 parda escura, e 6 não informaram a sua cor.
Por fim, observar-se-á o requisito que diz respeito a renda dos criminosos
envolvidos na presente pesquisa. A renda do brasileiro tem aumentado, visto que dos 29
envolvidos nos processos do ano de 2015, 09 desde relataram que recebem até dois
salários mínimos com a prática de sua profissão. Dez deles relataram que recebem até
um salário mínimo trabalhando de forma lícita. E os 10 restantes não informaram a sua
renda.
Um dos dados alarmante desta pesquisa é prática de crimes cometidos por
jovens homens, de cor predominantemente parda, sem escolaridade necessária para
conseguir um emprego e aprender uma profissão que lhe proporcione mais pecúnia e
desta forma não venha a cometer crimes em busca deste. Cabe também ao Estado a
prática de políticas públicas para possível diminuição destes marcadores sociais.

3.2 Crime praticado

Não tem como não falar na tipificação penal sem fazer menção aos marcadores
sociais do indivíduo delituoso. Quando tratamos deste tema no tópico anterior, falou-se
muito que o perfil do crimino consiste basicamente em homens jovens com um grau de
escolaridade baixo, pardos e com renda não superior a um salário mínimo, no entanto
não se fez menção qual o crime mais praticado entre os 37 envolvidos.

Tabela 04 - Crimes praticados nos anos de 2011, 2013 e 2014

Ano de 2011 Crime

Caso 01 Latrocínio

Ano de 2013 Crime

Caso 01 Roubo

Caso 02 Roubo

Ano de 2014 Crime

Caso 01 Roubo

Caso 02 Roubo

Caso 03 Roubo

Caso 04 Tráfico
Caso 05 Porte ilegal de arma

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa no ano de 2015

Pode-se concluir que, dos processos analisados nos anos acima referidos o crime
que predomina é o roubo, isto é crime contra o patrimônio com 05 envolvidos. Tráfico
com apenas 01 envolvido, seguido de porte ilegal de arma, com a mesma quantidade.
Latrocínio com apenas 01 envolvido também.
Pode-se então falar que o perfil do criminoso está ligado a práticas de crime
contra o patrimônio.
Analisar-se-á agora os crimes cometidos no ano de 2015. No ano de 2015 a
tipificação penal que está no topo é o tráfico de drogas, visto que dos 10 processos
referente a tráfico de drogas, 04 diz respeito à prática desse crime cometido por
mulheres as quais foram presas dentro da unidade prisional, quando levavam drogas
para alguém já se encontrava custodiado. A última mulher que está na lista dos 37
processos analisados, praticou crime de furto. Totalizando assim 05 mulheres
criminosas dentre os 37 processos estudados.
Na sequência de crime mais praticado, vem o roubo com 06 indivíduos
envolvidos, seguido de furto com 04 indivíduos. Latrocínio e crime contra a mulher
seguem com 03 envolvidos cada, finalizando vem o porte ilegal de arma com 02
envolvidos e violação aos direitos autorais 01 envolvido.
É chegado o momento em que será ponderado o perfil do criminoso da pesquisa
realizada com processos dos anos 2016 e 2017.1 (primeiro semestre). Ao final será feito
um comparativo para ver se o perfil do criminoso mudou ou permanece o mesmo.
Na pesquisa realizada em 2017.1, isto é o presente trabalho abarcou somente
processos de 2016 até o primeiro semestre de 2017. Constitui-se análise de 25 (vinte e
cinco) processos com 30 (trinta) envolvidos. Far-se-á a discussão baseada nos anos dos
processos supracitados.
Os marcadores sociais do criminoso, serão observados e levados em
consideração o sexo, a idade, escolaridade, profissão, cor e renda do agente delituoso,
traçando assim o seu perfil.
Com base nos dados da pesquisa realizada em 2017.1, onde analisou-se 25
processos com 30 envolvidos, chegou-se ao quantitativo referente ao sexo dos
criminosos. 26 (Vinte e seis) são homens e apenas 04 mulheres.
Do referido quantitativo acima, obteve-se do ano de 2016, a prática criminosa de
17 indivíduos, 14 homens e 03 mulheres.
Veja-se o perfil do criminoso do ano 2016, senão, veja-se:
Tabela 05- Casos analisados em 2016

Ano/2016 Sexo Idade Escolaridade Profissão Cor Renda

01 caso Masculino 20 anos Ensino médio Autônomo Branca Até 02


salários

02 caso Masculino 30 anos Ensino médio Estudante Parda Não


informou

03 caso Feminino 21 anos Ensino Estudante Parda Até 01


fundamental salário

04 caso Masculino 21 anos Analfabeto Servente Parda Até 01


de pedreiro salário

05 caso Masculino 18 anos Ensino Estudante Parda Até 01


fundamental salários
incompleto

06 caso Masculino 44 anos Ensino Moto-táxi Branca Até 01


fundamental salários
incompleto

07 caso Masculino 20 anos Ensino Padeiro Branca Até 02


fundamental salário

08 caso Masculino 38 anos Ensino Agricultor Parda Até 02


fundamental salário
incompleto

09 caso Masculino 18 anos Ensino Servente Amarela Até 01


fundamental de pedreiro salário

10 caso Feminino 49 anos Ensino Não


fundamental Agricultora Parda informado

11 caso Feminino 22 anos Ensino Vendedora Parda Não


fundamental informado

12 caso Masculino 24 anos Ensino Agricultor Parda Não


fundamental informado
incompleto

13 caso Masculino Não


33 anos Analfabeto Costureiro Não informado
informado

14 caso Masculino 20 anos Ensino Servente Não Não


fundamental de pedreiro informado informado

15 caso Masculino 26 anos Ensino Servente Parda Até 02


fundamental de pedreiro salário

16 caso Masculino Não Não Não Não Não


informado informado informado informado informado

17 caso Masculino 23 anos Ensino Servente Parda Até 01


fundamental de pedreiro salário
incompleto

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa no ano de 2017.1

Com base no quadro acima, pode-se relatar que no que concerne a idade do
agente delituoso tem-se 10 indivíduos entre a faixa etária de 18 à 25 anos, 03 indivíduos
estão na faixa etária entre 26 à 35 anos e 03 pessoas entre 36 à 49 anos. Apenas 01
pessoa não informou a idade.
No que se refere a escolaridade dos indivíduos envolvidos na pesquisa, tem-se
02 pessoas com ensino médio, 04 com o ensino fundamental, 09 indivíduos com o
ensino fundamental incompleto, apenas 01 analfabeto e 01 pessoa não informal seu
nível de escolaridade.
A respeito da profissão dos envolvidos da pesquisa, obteve-se os seguintes
resultados: 06 serventes de pedreiro, 03 agricultores, 03 estudantes, seguido de
autônomo, vendedora, moto-táxi, costureiro todos com apenas 01 indivíduo cada e por
fim apenas 01 indivíduo não informou a profissão.
No tocante a cor dos analisados computou-se: 08 indivíduos se declaram pardos,
03 brancos, 02 parda escura, 01 amarela e 03 não informaram a sua cor.
Por fim, compreende-se os dados referentes a renda dos criminosos, obteve-se:
06 diz ter até 01 salário, 04 indivíduo diz ter até 02 salários e 07 não informaram a
renda que recebem.
Diante da análise supracitada tem-se o perfil do criminoso referente ao ano de
2016. A predominância de jovens está no topo, com a idade na faixa etária entre 18 à
25 anos Jovens em sua grande maioria do sexo masculino, com a escolaridade de ensino
fundamental não havendo registro de graduação, com cor predominantemente parda,
servente de pedreiro é a profissão que prevalece tendo assim uma renda que prepondera
de até 01 salário.
No tocante ao ano de 2017.1, tem-se o seguinte perfil

Tabela 06- Casos analisados em 2017.1

Ano/2016 Sexo Idade Escolaridade Profissão Cor Renda

01 caso Masculino 34 anos Ensino Comerciante Não Não


fundamental informou informou

02 caso Masculino 31 anos Ensino Marceneiro Parda Não


fundamental informou
incompleto
03 caso Masculino 18 anos Ensino Lavador de Amarela Até 01
Médio automóvel salário

04 caso Masculino 29 anos Ensino Estudante Parda Não


Fundamental informou

05 caso Masculino 20 anos Ensino Instalador Branca Até 01


fundamental salários

06 caso Masculino 21 anos Não Não Não Não


informou informou informou informou

07 caso Masculino 27 anos Ensino Servente de Parda Até 02


fundamental pedreiro escura salário

08 caso Masculino 19 anos Ensino Estudante Parda Não


fundamental informou

09 caso Masculino 28 anos Ensino Costureiro Branca Até 02


fundamental salário

10 caso Masculino 27 anos Ensino Até 02


fundamental Costureiro Branca salários

11 caso Masculino 19 anos Ensino Autônomo Parda Até 01


fundamental salário

12 caso Feminino 20 anos Analfabeta Do lar Não Não


informou informado

13 caso Masculino 18 anos Ensino Mecânico Parda Até 01


fundamental salário

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa no ano de 2017.1

Com base no quadro supracitado, relata-se que no que concerne a idade do


agente delituoso tem-se 07 indivíduos entre a faixa etária de 18 à 25 anos e 06
indivíduos estão na faixa etária entre 26 à 35 anos.
No que se refere a escolaridade dos indivíduos envolvidos na pesquisa, tem-se
01 pessoas com ensino médio, 09 com o ensino fundamental, 01 indivíduos com o
ensino fundamental incompleto, apenas 01 analfabeto e 01 pessoa não informal seu
nível de escolaridade.
A respeito da profissão dos envolvidos da pesquisa, obteve-se os seguintes
resultados: 03 estudantes, 03 costureiros, seguido de autônomo, marceneiro, lavador de
automóvel, do lar, mecânico, instalador, comerciante, servente de pedreiro todos com
apenas 01 indivíduo cada e por fim apenas 01 indivíduo não informou a profissão.
No tocante a cor dos analisados computou-se: 05 indivíduos se declaram pardos,
03 brancos, 01 parda escura, 01 amarela e 03 não informaram a sua cor.
Por fim, compreende-se os dados referentes a renda dos criminosos, obteve-se:
04 diz ter até 01 salário, 03 indivíduo diz ter até 02 salários e 06 não informaram a
renda que recebem.
Diante da análise realizada acima tem-se o perfil do criminoso referente ao ano
de 2017, não há muitas mudanças comparado ao ano de 2016. Há a predominância de
jovens com a idade na faixa etária entre 18 à 25 anos. No ano de 2017.1 não houve a
prática de crimes de pessoas com a faixa etária entre 36 à 49 ano, como é um dado que
houve no ano de 2016. Jovens em sua grande maioria do sexo masculino, com a
escolaridade de ensino fundamental incompleto, contrário do ano de 2016 em que a
predominância era do ensino fundamental. Com cor predominantemente parda, tendo
uma variação muito grande de profissão, contrário do ano 2016 que a maior
concentração foi da profissão de servente de pedreiro, tendo assim uma renda que
prepondera de até 01 salário.
Ao fazer um comparativo da pesquisa do ano de 2015 e da pesquisa do ano 2017
observou-se uma pequena mudança no perfil do agente criminoso. Veja-se:

 Ano de 2011, tem-se o seguinte perfil: jovem, com ensino fundamental


incompleto, com profissão, com renda não superior a um salário mínimo e de
cor parda;
 Ano de 2013, a classe que predomina na prática de crimes, é a classe jovem, ou
seja, estão entre os 18 e 25 anos, exercendo profissão na qual a renda não
ultrapassa 01 salário, com a escolaridade que gira em torno do ensino
fundamental e ensino fundamental incompleto, de cor predominantemente
parda, e com profissão de servente de pedreiro;
 Ano de 2014, ao analisar a idade dos agentes delituosos, 02 agentes delituosos
têm idade superior a 30 anos, isto é o perfil do criminoso começa a mudar um
pouco, mas não deixa de existir a predominância da classe mais jovem. No que
se refere à escolaridade ainda há a prevalência de criminosos com o ensino
fundamental incompleto, mas também existem criminosos analfabetos e como o
ensino fundamental, com cor predominante parda, mas existe registro de
brancos, com profissão dominante a agricultura, com renda até 01 salário, mas
existindo registro de até 02 e 03 salários;
 Ano de 2015 , a grande concentração de mulheres praticando crimes está nesse
ano, porém a prática de crimes cometidos por homens é ainda maior, a idade
predominante ainda são os jovens entre 18 e 25 anos, porém há dados
significantes no tocante a crimes cometidos por pessoas com a idade entre 36 a
49 anos e, ainda houve registro de crime praticado por pessoa com idade
superior a 50 anos, (este último dado não registrado anteriormente). Referente a
escolaridade o ensino fundamental incompleto está no topo, seguido do ensino
fundamental, analfabetos, e por fim apenas um indivíduo tem o ensino médio
incompleto. No tocante a profissão a que aparece no ranking é o servente de
pedreiro, seguido dos autônomos e mecânicos dentre outro elencados. A cor que
predomina é a parda, seguida da branca e parda escura. A renda percebida pelos
agentes é dominante até 01 salário seguido de até 02 salários.
 Ano de 2016, jovens entre 18 e 25 anos são predominantes, seguidos da idade
de 26 à 35 anos e 36 à 49 anos não havendo registro de pessoas que cometeram
crimes com a faixa etária acima dessa informada. O sexo que prevalece é o
masculino, mas há registro de 2 crimes cometidos por mulheres. A escolaridade
que predomina é o ensino fundamental incompleto. A profissão que predomina é
o servente de pedreiro (semelhante ao ano de 2013), seguido de agricultor e
estudante, havendo registro de uma vasta lista de profissões. A cor que é
marcante neste referido ano foi a parda, seguida da branca. A renda dos
criminosos analisados do ano 2016 teve a predominância de até 01 salário não
havendo registro de até 03 salários como foi visto no ano de 2014.
 Ano de 2017.1, O sexo que predomina é o masculino, mas, existe registro de 1
crime cometido por mulher, os jovens prevalece, 18 à 25 anos, seguidos de 26 à
35 anos, dados esse que predomina em toda a pesquisa, seja ela referente ao ano
de 2015 ou 2017. Porém na pesquisa do ano de 2017 não há registro de crimes
praticados por maiores de 35 anos diferente dos anos supracitados, onde há este
registro. No tocante a escolaridade a que predomina é o ensino fundamental,
seguido do ensino fundamental incompleto (dado que já muda comparado ao
ano de 2016). A profissão que está no topo é o costureiro, seguido de estudante (
dados que são totalmente diferentes dos anos anteriores). A cor que é líder do
ranking é a parda (nada diferente dos outros anos), seguida da cor banca. Por
fim tem-se a renda dos analisados é até 1 salário seguido de até 02 salários não
havendo registro de pessoas que recebem até 03 salários.
Ademais, vale salientar que a quantidade de processos analisados na pesquisa
referente ao ano 2017.1 foi menor que a quantidade de processos da pesquisa do ano
2015. Isto é em 2015 foram analisados 30 processos com 37 envolvidos e na pesquisa
do ano 2017.1 analisou-se 25 processos com 30 envolvidos. A quantidade de mulheres
envolvidas em crimes também diminuiu de 05 para 04.

3.2 Crime praticado

Quando no tópico anterior, falou-se no perfil do criminoso que consiste


basicamente em homens jovens com um grau de escolaridade baixo, pardos e com renda
não superior a um salário mínimo, não se fez menção qual o crime mais praticado entre
os 30 envolvidos, então veja-se:

Tabela 047- Crimes praticados nos anos de 2016 e 2017.1


ANO DE 2016 CRIME

Caso 01 Roubo

Caso 02 Roubo

Caso 03 Roubo

Caso 04 Roubo + estupro tentado

Caso 05 Furto

Caso 06 Furto

Caso 07 Furto

Caso 08 Furto

Caso 09 Roubo

Caso 10 Roubo

Caso 11 Roubo

Caso 12 Tráfico de drogas + Porte ilegal de arma

Caso 13 Roubo + Porte ilegal de arma

Caso 14 Furto

Caso 15 Furto

Caso 16 Porte ilegal de arma

Caso 17 Receptação

ANO DE 2017 CRIME

Caso 01 Furto

Caso 02 Roubo
Caso 03 Roubo

Caso 04 Tráfico de drogas +Porte ilegal de arma

Caso 05 Porte ilegal de arma

Caso 06 Roubo

Caso 07 Crime de trânsito

Caso 08 Violação de direitos autorais

Caso 09 Tráfico de drogas

Caso 10 Tráfico de drogas

Caso 11 Porte ilegal de arma

Caso 12 Roubo

Caso 13 Roubo

Fonte: Dados resultantes da própria pesquisa no ano de 2017.1

Pode-se concluir que, dos processos analisados nos anos acima referidos o crime
que predomina é o roubo, com 13 envolvidos na prática desse crime que é contra o
patrimônio, seguido de 06 crimes de furto, 06 portes ilegais de armas, 04 tráficos de
droga (crime contra a sociedade), houve ainda 01 registro de crime de violação de
direitos autorais. Uma „novidade‟ nessa pesquisa foi o crime de receptação que não
havia nenhum registro, crime de trânsito e estupro tentado. Não havendo registro de
latrocínio como foi elencado no ano de 2015.
Pode-se então falar que o perfil do criminoso está ligado a práticas de crime
contra o patrimônio, perfil que não alterou em comparação aos anos de 2014, mas,
diferente do ano de 2015, pois neste ano a tipificação penal que está no topo é o tráfico
de drogas, visto que dos 10 processos referente a tráfico de drogas, 04 diz respeito à
prática desse crime cometido por mulheres as quais foram presas dentro da unidade
prisional, quando levavam drogas para alguém já se encontrava custodiado. No ano de
2016 e 2017 a predominância dos crimes cometidos por mulheres foi o furto (03) e 01
mulher cometeu crime de porte ilegal de arma.
Na sequência de crime mais praticado no ano de 2015 vem o roubo com 06
indivíduos envolvidos, seguido de furto com 04 indivíduos. Latrocínio e crime contra a
mulher seguem com 03 envolvidos cada, finalizando vem o porte ilegal de arma com 02
envolvidos e violação aos direitos autorais 01 envolvido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho de pesquisa chega ao fim na busca por repostas ao seguinte
problema de pesquisa: Qual o perfil do criminoso que se encontra em situação de crime
na cidade de Caruaru-PE?
Os resultados para que sejam reveladas as respostas do presente trabalho foram
alcançados por meio da análise a processos que tramitam na 1ª e 3ª Vara Criminal da
comarca de Caruaru. Como já relatado ao longo do trabalho em questão, este se deu
com base em pesquisas realizadas no ano de 2015 e 2017. Fazendo assim uma
comparação para analisar se o perfil do criminoso de 2015 é o mesmo perfil do
criminoso do ano 2017.
De acordo com os dados coletados da pesquisa, os marcadores sociais dos
criminosos são: jovens entre 18 e 25 anos, homens, de cor predominantemente parda,
com renda entre 01 (um) até 02(dois) salários mínimos, sem escolaridade necessária
para conseguir um emprego, pois a maioria só possuem o ensino fundamental
incompleto, mostrando dessa forma que, a falta de conhecimento reforça assim a
conduta criminosa, em relação a profissão a grande maioria diz ter.
Outrossim, pode-se concluir que o perfil do criminoso não mudou.
Com relação os crimes praticados, constatou-se que a grande maioria trata-se de crimes
contra a o patrimônio e contra a sociedade, ou seja, roubo , furto e tráfico.
REFERÊNCIAS
BARDIN, L. Análise de conteúdo . Lisboa: Edições 70, 1977
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos metodologia científica. 4.ed. São
Paulo: Atlas, 2003.
MALHOTRA, N. Pesquisa de marketing . 3.ed. Porto Alegre: Bookman, 2001
ATUAÇÃO DE EQUIPE TÉCNICA DE CREAS MEDIADA PELA JUSTIÇA
RESTAURATIVA: um relato de experiência

Márcio Rubens de Oliveira22

GT: CRIMINALIDADE, VIOLÊNCIA, ESTADO PENAL E DIREITOS HUMANOS

Resumo

Este trabalho apresenta relato de experiência sobre o acompanhamento realizado pela


equipe técnica do Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS,
a um adolescente em conflito com a lei, do interior do Estado de Pernambuco. A
finalidade desse trabalho é analisar os processos relacionais estabelecidos entre o
adolescente, a sua família, a comunidade, a escola e a lei, através da ótica da Justiça
Restaurativa. Para fins de análise serão consideradas as visitas realizadas à residência do
adolescente e à escola em que estava matriculado, no período de 24 de agosto a 31 de
outubro de 2016. Com base nas visitas e atendimentos realizados, foi observado que o
adolescente reconhece sua responsabilidade quanto ao dano social causado pela sua
conduta infracional, mas a escola, pelo que pôde ser percebido, na tentativa de ter um
alto controle da situação não o observa através de lentes restaurativas, demonstrando
pouco interesse ao diálogo e a alteridade, apontando para uma mentalidade de exclusão,
com baixo ou nenhum apoio ao adolescente e com uma alta disciplina punitiva.

Palavras-chave: Adolescência. Justiça Restaurativa. Estudo de situação.

INTRODUÇÃO

A adolescência é um período do desenvolvimento humano marcado por uma


série de transformações biológicas, sociais, afetivas, identitárias, etc. Ela representa a
fase de transição que vai da infância para a vida adulta. Uma espécie de rito de
passagem marcado por perdas e ganhos. Perdas, pois as transformações próprias desse
período produzem um deslocamento da identidade infantil e das suas representações,

22
Graduação em Psicologia pela Faculdade do Vale do Ipojuca – FAVIP; Discente do Programa de Pós-
Graduação em Educação Contemporânea – PPGEduC, do Centro Acadêmico do Agreste – CAA, da
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE; Trabalhador do Sistema Único de Assistência Social –
SUAS.
como o corpo, as relações com os pais e com os pares, as exigências sociais, entre
outras coisas. Ganhos, pois as novas experiências oferecem um conhecimento bem mais
aprofundado e elaborado das relações sociais e pessoais. Todo esse universo de
experiências pode ser gerador de questionamentos sobre si e sobre o mundo, bem como
a vivência de uma série de conflitos que podem percorrer, desde o descobrimento de um
novo corpo, até às reações oriundas de sentimentos e relações, antes nunca vivenciados.
As representações e papéis sociais, além das exigências endereçadas as/aos
adolescentes, neste período de suas vidas, expõe a adolescência a uma miríade de
possibilidades de ser no mundo, geralmente influenciadas pela cultura de consumo e
pela mídia. Ao mesmo tempo em que a/o adolescente é bombardeada/o pela mídia e
pela cultura do consumo, que defendem que ser é sinônimo de ter, e que o status social
vale mais que a pessoa, emerge a necessidade da reflexão sobre uma sociedade que
exclui e impõe o valor do indivíduo como se ele fosse uma mercadoria que vale mais ou
que vale menos. Esta relação de maior ou menor valia, não obstante, pode gerar
conflitos tão perturbadores que levem adolescentes a cometerem atos infracionais em
razão das exigências de um pertencimento social baseado naquilo que se tem e não,
naquilo que se é.
O que se propõe aprofundar justifica-se, pois é reconhecível em diversos espaços
a (inter)relação entre ser e ter. O cotidiano social, as relações, os espaços de
pertencimento e tantas outras coisas que poderíamos destacar confirmam a valorização
do ter em relação ao ser na adolescência, principalmente, porque esta condição
representa poder.
O poder é algo extremamente representativo na adolescência, as transformações
que dela são originadas interpelam as/os adolescentes, de modo a gerar resistências à
ordem e a disciplina estabelecidas. Estas situações, não raro, são percebidas pela quebra
do decoro infantil, e pelo enfrentamento às instâncias disciplinares, como a família, a
sociedade, a escola, entre outras.
Quando falamos na escola, por exemplo, é fácil perceber a necessidade do
enfrentamento, da autonomia e da singularidade exigida pelas/os adolescentes, pois na
prática diária parece existir um enfraquecimento do papel escolar, tanto desgastado por
exigências que não são suas, como pelas condições desfavoráveis que possuem.
Na medida em que na escola, além da tentativa de exercer a sua autonomia e a
sua singularidade, a/o adolescente se vê no impasse causado por essa
possibilidade/impossibilidade, e, onde é crescente a presença de temas como
“indisciplina, descrédito na escola, enfraquecimento da autoridade dos professores,
violência” (COUTINHO, 2011, p.3), etc., o que perpassa a questão dos conteúdos
escolares e sua significação é a subjetividade da/o aluna/o e seu processo de
ressignificação.
A inclusão e a permanência da/o adolescente nesse contexto, geralmente
denotam recorrentes embates, e, o estabelecimento de relações saudáveis entre escola e
aluna/o é algo que gera resistências e desconhecimento de práticas efetivas que
garantam que os processos de conflito sejam tratados de forma positiva.
Para proporcionar um ambiente escolar e comunitário acolhedor e encorajador é
necessário compreender que a cultura de paz deve ser um elo que faz o conceito de
justiça ser um valor social alcançável em todos os âmbitos da sociedade como prática
restaurativa e cooperativa, que responsabiliza e dá suporte para que todas/os as/os
envolvidas/os na tessitura social sejam reconhecidas/os como pessoas.
Compreendemos que a “constituição da subjetividade é mediada por
experiências propiciadas pela cultura. [...] a linguagem e os conceitos que através dela
internalizamos da cultura tornam-se instrumentos fundamentais para a humanização”
(COUTINHO, 2011, p. 4). Por isso, a necessidade de trabalhar no ambiente escolar com
a construção de uma cultura de paz, que embasada no diálogo e na alteridade, promova
uma mudança intencional resgatando o reequilíbrio entre os sujeitos como indivíduos
reconhecidos e coletivos organizados.
Diante do exposto e, considerando a importância de aprofundar as questões que
podem levar adolescentes a cometerem atos infracionais, nossa questão principal é se há
a possibilidade de a sociedade, a família e, principalmente, a escola, ser capaz de atuar
de maneira restaurativa?
O objetivo deste trabalho é analisar os processos de relações estabelecidos entre
um adolescente que cometeu ato infracional, a sua família, a comunidade e a escola,
pelo viés da justiça restaurativa.
As atividades que foram desenvolvidas pela equipe técnica do Centro da
Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, de um município do interior
de Pernambuco, que contava, à época, com equipe formada por profissionais de
Psicologia, de Serviço Social e de Direito, consubstanciaram o presente trabalho, na
tentativa de maior aproximação entre o arcabouço teórico da Justiça Restaurativa e as
possibilidade de utilização de práticas restaurativas, no contexto da atuação de equipe
técnica de serviço da área de Assistência Social.
Para que possamos aprofundar a temática utilizaremos a metodologia de Estudo
de Caso e Relato de Experiência, tendo como aporte a situação de um adolescente, do
interior de Pernambuco, encaminhado pelo Poder Judiciário, para ser acompanhado pela
equipe técnica do CREAS, de modo a subsidiar sentença de Medida Socioeducativa –
MSE.

DESENVOLVIMENTO

Antes de iniciar as descrições e análises provenientes desta situação, cabe


oportuno esclarecer que o autor desse artigo fez parte do acompanhamento que a equipe
técnica do CREAS realizou em razão do adolescente em questão. Na tentativa de
possibilitar a ressignificação do ato infracional, e, consequentemente, dos danos
causados por tal ato, o Poder Judiciário julgou conveniente que o adolescente pudesse
ser acompanhado em meio aberto, antes de uma sentença definitiva, levando em
consideração que o acompanhamento com equipe multiprofissional poderia oferecer a
possibilidade de o adolescente ressignificar o ato cometido, sem que para isso fosse
necessário o seu afastamento do convívio familiar e social.
Por considerarmos relevante a discussão e análise desta situação, principalmente,
pela relação que buscamos fazer em função da Justiça e Restaurativa e suas
contribuições para o reconhecimento das corresponsabilidades, tentaremos descrever da
maneira mais clara possível, as experiências que vivemos, não apenas como profissional
da área de garantia de direitos, mas também pelo interesse em aprofundar o estudo e as
possibilidades estratégicas de intervenção em casos nos quais a Justiça Restaurativa
pode oferecer suporte.
É importante destacar que não temos a menor intenção em expor as pessoas que
estiveram envolvidas nesta situação, a não ser o autor, visto que é ele quem relata esta
experiência. Também levamos em consideração, além de todos os princípios éticos que
regem as produções acadêmicas e o Código de Ética profissional, a Lei 8.069/90
(BRASIL, 1990), que determina o absoluto sigilo em relação à identificação de crianças
e/ou adolescentes que sofreram algum tipo de violência, ou que tenha cometido algum
ato infracional, de modo a preservar que venham a sofrer algum dado à sua integridade,
física e/ou psíquica.

O local e o adolescente participante

O Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS é uma


estratégia de oferta de serviço prevista na Tipificação dos Serviços Socioassistênciais
(BRASIL, 2009), da Política Nacional de Assistência Social – PNAS (BRASIL, 2005),
pertencente aos serviços de Proteção Social Especial, na esfera de Média
Complexidade. Atua na perspectiva de proteger, prevenir e acompanhar casos
relacionados a situações de violações de direitos, vínculos familiares e/ou sociais
fragilizados ou rompidos, riscos e vulnerabilidade social instalada, além de oferecer o
Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa
de Liberdade Assistida – LA e de Prestação de Serviços à Comunidade – PSC.
Nesse sentido, oferece serviços que objetivam à garantia dos direitos
socioassistenciais23 e a realização de acompanhamento familiar e/ou individual, além de
visitas familiares, estudos de situações, grupos operativos relacionados a demandas de

23
Direitos deliberados pela V Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em Brasíla – DF, no
ano de 2005, criados de modo a fortalecer às metas para a implementação da Política Nacional de
Assistência Social no Brasil.
violação de direito, encaminhamentos para a rede, entre outras estratégias,
possibilitando o restabelecimento de vínculos familiares e/ou sociais, articulação com a
rede de serviços socioassistenciais e setoriais, etc.
No que se refere ao adolescente, tratava-se de pessoa com dezesseis anos de
idade, estudante, filho de pais separados, e que residia na área rural de município
pernambucano, junto com a sua genitora, seu irmão, sua cunhada e seu sobrinho.
Segundo a mãe do adolescente, o pai dele é alcoólatra, reside na área urbana do
município e já faziam alguns anos que estava separada dele.
O acompanhamento e as estratégias de intervenção solicitadas à equipe técnica
do CREAS, pelo judiciário, objetivavam oferecer maiores subsídios para a decisão,
quanto a Medida Socioeducativa – MSE que seria mais adequado ao adolescente, tendo
em vista que o mesmo havia cometido ato infracional. Desse modo, o CREAS atuou
nesta situação, em parceria com o judiciário, na tentativa de encontrar possibilidades
para o cumprimento da medida, sem que a liberdade do adolescente fosse privada.
Para fins didáticos e de esclarecimentos a divisão legal entre infância e
adolescência, conforme estabelecida pelo Estatuto da Criança e adolescente – ECA (Lei
8.069/90), é descrita considerando crianças: as pessoas com idade até doze anos
incompletos, enquanto que a adolescência: é atribuída a pessoas entre doze e dezoito
anos de idade.

As etapas desenvolvidas

O processo que a equipe técnica realizou no que se refere ao acompanhamento


ao adolescente e à sua família, se deu através de estratégias que foram desde visitas
domiciliares até estudos da situação junto a profissionais de outras áreas, como
Educação e Garantia de Direitos (Conselho Tutelar e Justiça). O objetivo era o de
aprofundamento e possíveis análises sobre as observações que a equipe do CREAS
estava realizando, bem como pelas experiências e observações realizadas pelos outros
setores. A perspectiva que tínhamos era a de que sob a ótica da Justiça Restaurativa,
poderíamos mobilizar a rede a pensar de maneira mais cooperativa e menos excludente
em relação ao adolescente.
A partir de agora passamos a relatar quais foram às etapas que a equipe técnica
do CREAS realizou, seguida das deliberações que foram assumidas em função das
estratégias adotadas. Segue:
No dia 24 de agosto de 2016 foi realizada visita domiciliar ao adolescente e à
sua família, na oportunidade pôde-se observar um pouco da rotina familiar e refletir
sobre as relações sociais estabelecidas naquele núcleo familiar, os vínculos com a
família e com a comunidade, a questão escolar e, finalmente, sobre a demanda que
originou o acompanhamento solicitado pelo judiciário, a saber: tentativa de assalto de
um celular, com arma de fogo (sem munição), cometido pelo adolescente.
Durante o atendimento familiar realizado foram obtidas informações que davam
conta de que o adolescente era uma pessoa tranquila, que sempre ajudou a genitora nas
atividades de agricultura, e mantinha bom relacionamento com os familiares. A palavra
que a genitora utilizou para representar a relação familiar foi “união”.
Em relação ao contato com o pai, o adolescente afirmou que encontrava com ele
semanalmente, quando ocorre a feira livre do município, que o genitor era alcoólatra e
que a relação que mantinha com ele era tranquila.
Questionado sobre como estava sendo o desempenho e relações na escola, o
adolescente informou que estudava em escola municipal, em uma turma multisseriada.
Entretanto, havia deixado de frequentar as aulas, desde o início do mês de agosto.
Alegou que a, então diretora, “iria dar a sua transferência”, para que ele fosse estudar no
anexo dessa mesma escola, no período noturno. Inquirido para que pudesse esclarecer
essa situação, ele informou que por ocasião de algumas brincadeiras ele havia sido
“transferido” da escola. Porém, por ser à noite, a sua genitora alegou que teria medo que
o filho estudasse neste horário. Justificou que a localidade onde moravam era distante e
o transporte não chegava até lá, desse modo ele teria que caminhar grande trajeto até
chegar em casa, e, sendo à noite este traslado seria perigoso.
O adolescente disse ainda, que encontrava algumas dificuldades na escola, pois
não se sentia escutado, justificando que em algumas situações, nas quais outros
estudantes fizeram brincadeiras que ele não gostou, procurou professores e coordenação
e “eles não fizeram nada”. Perguntado sobre quais seriam estas brincadeiras, ele afirmou
se tratar de “brincadeiras agressivas”, de uns baterem nos outros. Então, justificando
não ter sido escutado agrediu outros alunos por ter sido agredido “primeiro”.
Diante desse relato, a equipe orientou à família no sentido de procurar a escola
para tentar resolver a situação, considerando que o adolescente precisa estudar,
inclusive para que a sua manutenção na escola pudesse ser vista como positiva na
avaliação da sentença judicial, porém a genitora alegou que havia procurado a escola,
mas não encontrou a diretora, na ocasião da sua ida, e que a orientação recebida foi a de
procurar a outra escola para providenciar a transferência do filho, mas ela não procurou,
pois como mencionado acima, temia que o filho estudasse à noite.
Sobre a situação que motivou a intervenção judicial o adolescente falou pouco,
disse ter se arrependido do que fez, inclusive pediu desculpas à vítima, informação que
consta em seu processo, conforme pôde constatar o advogado da equipe, e que sentia
muita vergonha do ocorrido. A equipe realizou um momento importante de reflexão
sobre o ato infracional e as consequências decorrentes dele. O adolescente e a sua
genitora mostraram-se preocupados com o que poderia ocorrer, enquanto resultado do
processo judicial, reconhecendo que o ato cometido pelo adolescente foi grave, mas
esperavam que tudo transcorresse da melhor maneira possível.
Considerando os estudos desenvolvidos pelas teorias das práticas restaurativas, o
reconhecimento do ato violento e do dano causado a outrem e/ou à coletividade é um
passo importante para a ressignificação dos valores individuais e sociais. Não queremos
dizer que o reconhecimento do dano justifique ou exclua algum tipo de medida penal,
pela violência ou dano causado, mas, que ele (o reconhecimento do dano) possibilita um
olhar mais ampliado sobre as situações de existência e sociais envolvidas, sem que isso
comprometa o papel e a compreensão da justiça, enquanto prática institucional, ampla,
normatizável e filosófica (PELIZZOLI, 2008).
Desse modo, a partir das observações realizadas pela equipe, parece que o
adolescente demonstrou compreensão dos danos causados e da sua conduta violenta,
assumida quando do ato infracional cometido. Fazendo-nos compreender que, no
julgamento por seu comportamento danoso, possa ser levada em consideração a
aparente tomada de consciência do mal praticado.
No dia 29 de agosto de 2016, para melhor apreciação sobre a perspectiva escolar
do adolescente, tanto no que se refere à matrícula como ao aproveitamento escolar, a
escola foi procurada pela equipe do CREAS, na tentativa de obtenção de informações
sobre o aluno. Na ocasião a informação dada aos profissionais foi a de que até o início
do mês de agosto o adolescente mantinha uma regularidade de 78% de frequência
escolar e que seu desempenho era mediano. Entretanto, segundo informado pela diretora
da escola, o comportamento do adolescente não era o esperado. Ela afirmou que o aluno
era agressivo, que fazia algumas “brincadeiras” com os outros alunos, mas não gostava
que brincassem com ele, geralmente brincadeiras que envolviam insultos ou agressões
físicas, que também agia com agressividade e rebeldia com as professoras e professores
da escola. Cabe destacar que não foi apresentado à equipe nenhum registro escrito,
anteriormente à visita da equipe técnica do CREAS, sobre ocorrências do
comportamento agressivo do aluno.
A fala da diretora, durante a visita, foi sempre acusatória e depreciativa,
inclusive dizendo que fez o remanejamento do aluno (aquilo que ele denominou como
transferência) compulsoriamente, pois ele é extremamente violento, ao ponto de causar
temor em alunos e profissionais.
Diante disso, consideramos oportuno citar, para melhor apreciação da demanda
posta, a existência de Lei nº 12.280, de 11 de novembro de 2002 (PERNAMBUCO,
2002), do Estado de Pernambuco, que dispõe sobre a proteção integral aos direitos do
aluno. Nela consta, em seu Art. 6º, alguns direitos que devem ser assegurados aos
alunos, conforme apresentamos a seguir:

Art. 6º Ao aluno é assegurado o direito de ser respeitado por seus educadores,


sendo proibida qualquer situação tendente a permitir:

I – A sonegação do direito de defesa dos alunos, em situação de conflito;


II – a exposição do aluno a perigo ou à omissão de socorro;
III – a exposição do aluno a situações de exploração do trabalho;
IV – a utilização de métodos de ensino ou processos disciplinares que
ponham em risco a integridade física ou moral do aluno;
V – a rotulação depreciativa do aluno;
VI – a discriminação do aluno por motivo de raça, classe, credo, gênero e
outros;
VII – tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor;
VIII – a violência física e simbólica.

Parágrafo único. Nenhum aluno será objeto de qualquer forma de


negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais.

Considerando as situações de violência e indisciplina apontadas pela diretora,


em relação ao adolescente, foi questionado se ela havia acionado o conselho escolar,
algum órgão de proteção ao direito da criança ou adolescente, ou mesmo a alguma
autoridade policial, considerando a “periculosidade” do aluno, ao que foi respondido em
termos.
Primeiro, que o Conselho Tutelar já havia sido acionado, tanto para esta como
para outras demandas, mas nunca compareceu. Cabe registrar que foi solicitado, pela
equipe do CREAS, ao Conselho Tutelar, algum ofício ou mesmo notificação recebida
para intervenções no caso em questão, que pudesse corroborar com as queixas
apresentadas pela diretora da escola, porém o Conselho Tutelar informou que nunca
recebeu nenhuma informação sobre esta demanda, advinda da escola municipal em
questão, ou de qualquer outra escola do município.
Segundo, sobre os riscos que a diretora disse que a escola corria, permanecendo
com o adolescente matriculado e frequentando àquela escola, questionamos sobre
alguma ação repressiva por parte de algum órgão, já que se tratava, segundo alegou, de
grande ameaça. Ela informou que não denunciou, pois não queria que o adolescente se
comprometesse ainda mais com a justiça, pois sabia o que ele havia feito (referindo-se
ao processo referente ao ato infracional cometido por ele). Alegou que o encontrou, em
uma ocasião, no Fórum da cidade, e por ele ser aluno da escola, buscou informação
sobre o motivo da presença dele ali. Desta feita, teve acesso ao processo, onde
constavam as informações do ato infracional do adolescente. Cabe pontuar que, quando
das visitas institucionais realizadas pela equipe técnica do CREAS, não eram divulgadas
informações quanto ao o conteúdo dos processos, quando estes eram enviados pelo
judiciário, com vistas a preservar a/o adolescente de qualquer situação que a/o exponha,
e, portanto, possa ser causa de algum tipo de risco pessoal e/ou social, considerando,
ainda, que segundo a Lei 8.069/90, em seu Art. 143: “É vedada a divulgação de atos
judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que
se atribua autoria de ato infracional”. Deste modo, a equipe não compreendeu como a
diretora pôde ter acesso ao conteúdo do processo do adolescente, visto seu caráter
sigiloso.
No que se refere ao remanejamento compulsório do adolescente para a outra
unidade escolar, a diretora expressou que a conduta de remanejamento é comum, desde
que a escola considere oportuna, ou como no caso em questão, o aluno estava em uma
sala onde os demais eram menores, e, sobretudo pelo comportamento violento que ele
apresentava, gerando “grande ameaça”, situação que já havia acontecido antes com
outras/os alunas/os, motivo que, segundo ela, fazia solidarizar-se com a outra escola, a
qual recebia estas/es alunas/os remanejadas/os e com “tantos problemas”.
Nesse sentido cabe, também, pontuar que a Lei 12.911, de 31 de outubro de
2005 (PERNAMBUCO, 2005), que altera partes da Lei 12.280/2002, do Estado de
Pernambuco, prevê no Art. 13, que as medidas sóciodisciplinares adotadas pelas escolas
sejam tomadas observando algumas especificidades, conforme apresentado abaixo:

Art. 13. As medidas sócios disciplinares que por ventura sejam tomadas pela
escola ou pelos professores, devem observar o que segue:

I – ter caráter eminentemente educativo, contribuindo para a formação do


estudante;
II – considerar o direito coletivo a uma convivência social saudável e
respeitosa;
III – assegurar ao estudante ou grupo de estudantes serem ouvidos pelos
setores competentes da escola;
IV – convidar a família para tomar conhecimento e participar da discussão
dos melhores procedimentos a serem adotados;
V – convocar o Conselho Escolar nos casos que a Direção da Escola achar
necessário e nos demais termos de sua regulamentação.
............................................................................................................................
......
A análise que realizamos dessa situação, apesar do curto espaço de tempo, foi a
de que pareceu desproporcional o relato que obtivemos da escola com as observações e
dados que foram colhidos pela equipe técnica do CREAS. Em nenhum momento a
direção da escola mencionou a participação do Conselho Educacional ou Conselho
Disciplinar, colegiado essencial dentro do Projeto Político Pedagógico de uma escola,
para a avaliação sobre as medidas disciplinares adotadas em relação ao aluno, o que nos
chamou à atenção, considerando a gravidade colocada pela diretora, no que se refere à
conduta do adolescente. Parece que a decisão pelo remanejamento do aluno foi
arbitrária, desconsiderando o parecer da família e do Conselho, se é que ele foi
acionado, ou se de fato existia.
Ainda trazendo algumas contribuições das práticas restaurativas, o que se
percebe é que, com grande recorrência, nossa sociedade não consegue enxergar a
humanidade naquelas pessoas que de algum modo praticam algum tipo de crime, delito,
ato infracional, atribuindo a elas a identidade fixa de violentas e não-humanas. Desse
modo, o julgamento comum, parece estabelecer o lugar da exclusão, do não
pertencimento do outro à sociedade, do não acesso a propostas e práticas restaurativas,
como sendo possível ao indivíduo praticante de algum ato violento (PELIZZOLI, 2014).
Ademais, a vivência da adolescência em nossas condições atuais, onde
percebemos que relações mediadas pelo poder, como sendo ele (o poder), aquele que
garante status social de mais ou menos valia, consideradas as condições de
sobrevivência, econômicas, sociais, culturais, geográficas, entre outras coisas, pode ser
bastante perturbadora para uma pessoa em desenvolvimento.
A hostilidade que muitas vezes observamos nos adolescentes, diante do mundo
ou mesmo diante dos seus pais, advém em geral de uma possível desconfiança em si, ou
mesmo na conjectura de talvez não estarem sendo compreendidos, ou estarem sendo
rejeitados pela realidade que vivem, situações que podem ou não serem ratificadas pelas
relações reais (ABERASTURY; KNOBEL, 1981).
Desse modo, um adolescente que, sentindo-se “violentado” socialmente,
vivencia situações de exclusão, rejeição, incompreensão, entre outras situações, pode
apresentar comportamentos agressivos que, além de serem potencialmente danosos para
outrem, pode ser substancialmente danoso e violento para si.

Resultados

Enquanto resultado das contribuições que foram realizadas nesta situação, sob a
ótica da Justiça Restaurativa, destacamos a confecção de relatório produzido pela equipe
técnica do CREAS, com a finalidade de poder subsidiar à sentença judicial a ser
tomada, objetivando que a MSE adotada, levasse em consideração as potencialidades do
adolescente e o suporte que o mesmo e a sua família deveria receber da rede
socioassistencial e setorial. De modo que o adolescente não tivesse à sua liberdade
privada, pois o ato infracional cometido poderia ter estreita relação com a falta e/ou
precariedade de oportunidades e de acesso aos serviços públicos, e, que esta situação,
aliada a exigências sociais higienizadoras, bem como a invisibilidade sofrida pelas
condições de vida, econômicas, sociais, geográficas, etc., poderiam ter contribuído para
o comportamento infracional do adolescente.
Cabe destacar que a conduta do adolescente foi grave e danosa para a ordem
social estabelecida, e, para as relações entre as pessoas. Mas, das avaliações e análises
que realizamos, consideramos que medidas que reforçassem as restrições que este
adolescente já vivenciava, poderiam desencadear o desenvolvimento de um self
(conceito de si) fragilizado, o que poderia possibilitar que, dependendo do
acompanhamento que ele viesse a receber, ou deixasse de acessar, se tornasse uma
pessoa com poucas expectativas e os propósitos de vida se fragilizem mais e mais.
Infelizmente, a então, equipe técnica do CREAS não obteve mais informações
sobre o caso do adolescente, mesmo após o envio do relatório pela equipe, em 31 de
outubro de 2016. Pois, por ocasião das eleições municipais ocorridas naquele ano,
alguns profissionais que compunham aquela equipe, deixaram de trabalhar no serviço,
impossibilitando o conhecimento, quanto à sentença que tenha sido adotada em relação
ao processo do adolescente.
Entretanto, consideramos satisfatória a nossa participação no estudo deste caso,
pois acreditamos que as nossas observações e intervenções possibilitaram uma reflexão
mais ampliada sobre as possibilidades que as práticas restaurativas podem oferecer para
o atendimento de adolescentes em conflito com a lei.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta experiência possibilitou não apenas a aproximação das discussões sobre a


Justiça Restaurativa e a possibilidade de suas contribuições nas intervenções de equipe
técnica de um serviço da Assistência Social, mas ampliou o alcance de práticas
restaurativas a áreas mais diversificadas. Não se trata, tão somente do absolutismo do
cumprimento da lei, em razão de um ato criminoso cometido por uma pessoa, mas das
possíveis corresponsabilidades e ressignificações que podem ser originadas, quando
visualizadas as potencialidades das pessoas e a sensibilização quanto ao
aprofundamento do caso, antes de tomadas decisões que possam comprometer o
presente e o futuro dessas pessoas.
É importante destacar, ainda que nas nossas conclusões, que o apresentado neste
relato de experiência não é representativo de todas as situações envolvendo a escola e
as/os alunas/os em situação de conflito com a lei. Certamente, temos experiências bem
sucedidas de práticas restaurativas que foram desenvolvidas por escolas, por serviços da
área de Assistência Social e de tantas outras possíveis experiências baseadas na Justiça
Restaurativa. O que quisemos provocar com estas discussões, leva em consideração que
ainda existe muita invisibilidade, preconceito e exclusão contra adolescentes em
conflito com a lei. E, por isso, precisamos, não só falar sobre o tema, mas desenvolver
estratégias que diminuam práticas, meramente punitivas, mas que possibilitem a sua
ressignificação.
Mesmo que o desejo seja sempre o de conduzir nossas expectativas para um
desfecho, nossas conclusões precisam considerar o dinamismo das estruturas, das
instituições, das organizações e das (im)possibilidades políticas, analíticas, etc.
Sendo assim, concluímos este estudo acreditando que a experiência que tivemos
com a situação descrita, serviu tanto para o fortalecimento de nossas estratégias junto ao
adolescente, à sua família e a rede socioassistencial e intersetorial, como para o
aprofundamento formativo e acadêmico sobre a Justiça Restaurativa.
A semente foi lançada...

REFERÊNCIAS

ABERASTURY, A. & KNOBEL, M. Adolescência Normal. Porto Alegre: Artes


Médicas, 1981.

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Brasília, 1990.

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Desenvolvimento Social e Combate à Fome: Brasília, 2005.

BRASIL. Tipificação nacional de serviços socioassistenciais. Ministério do


Desenvolvimento Social e Combate à Fome: Brasília, 2009.

COUTINHO, Luciana Gageiro. Intervenção na escola: adolescência, educação e


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PELIZZOLI, Marcelo L. Fundamentos para a Restauração da Justiça. In: Cultura de


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A REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO FEMININO NO BRASIL COMO
MECANISMO DE MINIMIZAÇÃO DA DESIGUALDADE ENTRE GÊNEROS:
Vedação da gestante e da lactante exercer atividade insalubre à luz da recente
reforma trabalhista

Jullia Fernanda Sousa Calado1


Lucas Evangelista Costa2
Bruna Maria Jacques Freire de Albuquerque 3

GT 06:Teoria Feminista e os Direitos das Mulheres na América Latina

RESUMO

Sancionada a Reforma Trabalhista, que traz importantes modificações na legislação,


inclusive no capítulo de proteção ao trabalho da mulher, surge a seguinte problemática:
como o art. 394-A da Reforma Trabalhista atinge o sistema de proteção à maternidade?
Assim, o artigo tem como objetivo geral analisar a evolução histórica do trabalho da
mulher e o impacto que tal dispositivo exerce sobre a proteção à maternidade, no que se
refere ao exercício de atividade insalubre. Quanto aos objetivos específicos, foram eles:
registrar a inserção da mulher no mercado de trabalho; reunir as primeiras normas que
regulamentaram o trabalho da mulher no Brasil; explicar a proteção à maternidade
conferida pela CLT em cotejo com a insalubridade; e descrever a nova disciplina conferida
à insalubridade durante o período de gestação ou lactação pelo art. 394-A da Reforma
Trabalhista. Para a elaboração do deste estudo, utilizou-se a pesquisa exploratória e
também foi feito o uso da pesquisa bibliográfica, por meio de diversas fontes. Assim,
apesar de não comprometer todo o sistema de proteção à maternidade, tal modificação
restringe desnecessariamente o direito ao afastamento imediato da gestante/lactante a
exposição à agentes insalubres, comprometendo o pleno exercício do garantia à vida, a
saúde e a dignidade humana.
Palavras-chave: Reforma Trabalhista. Proteção. Gestação. Lactação. Insalubridade.

1
Bacharela em Direito. Graduada pela Faculdade de Direito de Garanhuns (AESGA/FDG). E-mail:
julliacalado@hotmail.com.
2
Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito de Garanhuns (AESGA/FDG). E-mail:
lucasaa@bol.com.br.
3
Bacharela em Direito, Especialista em Direito Processual Civil, Direito do Trabalho, Direito Ambiental e
Ciências Políticas, Mestre em Direitos Humanos e Doutora em Direito do Trabalho. Conselheira da OAB,
subseção de Garanhuns – PE. Profa. Dra. da Faculdade de Direito de Garanhuns (AESGA/FDG) e da
UNIFAVIP- DeVry. E-mail: brunamariaj@gmail.com.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Durante muitos séculos, em virtude do patriarcalismo e com o apoio da Igreja


Católica, a mulher viveu à margem da sociedade, sem voz ativa, dependendo da figura
paterna para lhe prover o sustento e, posteriormente, arranjar-lhe um bom casamento.
Assim sendo, ocorria apenas a substituição de uma figura paterna provedora e,
consequentemente, autoritária, por outra: o marido.
Os homens, por sua vez, encontravam no casamento um meio de se sobrepor aos
demais como exemplo de moralidade e honradez. Considerados como “chefes de família”,
possuíam variadas prerrogativas e poderes, os quais somente o provedor do lar poderia
usufruir.
Os movimentos feministas foram de grande importância para a conquista de
direitos das mulheres não só no Brasil mas no mundo. Grandes lutas e conquistas foram
pautadas no século passado, desde o sufrágio universal até aos direitos trabalhistas, objeto
principal do estudo deste artigo. No que se discerne à temática central, percebe-se que aos
poucos a mulher foi se inserindo no mercado de trabalho brasileiro. Divididas por classes
sociais, apenas as mulheres de origem mais humilde saíam de suas casas em busca de
emprego, enquanto as mais abastadas continuavam a tomar conta do lar, dos filhos e, vez
ou outra, realizavam trabalhos voluntários.
As mulheres que buscavam emprego para auxiliar o sustento do lar encontraram
diversos desafios. Jornadas de trabalho exaustivas, baixa remuneração, assédio sexual,
assédio moral, condições precárias de trabalho são apenas algumas a serem citadas.
O empregador, interessado em obter lucro, não se importava com a saúde das
empregadas, não oferecendo nenhum tipo de tratamento especial às gestantes e lactantes,
sem se importar com as consequências que o excesso de labor e a exposição a condições
precárias poderiam provocar à mãe e filho.
Sem contar que era uma obra de mão, juntamente com os menores de idade, mais
barata e, portanto, muitas vezes utilizavam de horas extras para igualar ao recebido
diariamente por um trabalhador do mesmo ramo, que fazia o mesmo labor que ela.
Inclusive, antigamente, era comum tipificar trabalhos como femininos ou masculinos.
Normalmente as mulheres poderiam escolher, dentre deste rol de trabalhos femininos,
serem: professoras, enfermeiras, cozinheiras, empregadas domésticas, diaristas, faxineiras,
cuidadoras de crianças ou idosos, entre outros empregos relacionados aos cuidados de um
lar ou de pessoas.
Diante de tal cenário, iniciaram-se as primeiras manifestações em busca de uma
legislação que regulamentasse o trabalho e o Estado, que antes permanecia inerte diante
dos abusos praticados na relação empregador-empregado, começou a elaborar as primeiras
normas.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) trouxe um capítulo destinado à
proteção da mulher, incluindo disposições acerca das condições, da duração, da
discriminação ao trabalho da mulher, e, principalmente, da proteção à maternidade.
No que se refere a esta última, alteração realizada em 2016 inseriu dispositivo que
veda o exercício de atividades, operações e permanência em locais insalubres por gestantes
e lactantes. Tal norma visa proteger, além da saúde da mãe, a do filho, encontrando seu
maior sustentáculo no direito à vida e na dignidade da pessoa humana.
Todavia, o texto final da Reforma Trabalhista propõe alteração significativa em tal
regra. De acordo com a proposta, o afastamento da gestante/lactante da atividade insalubre
só será automático nos casos de exposição em grau máximo. Nos demais graus, será
necessária a apresentação de laudo médico que ateste a necessidade do afastamento.
Com a sanção da Reforma Trabalhista, que representa a maior demonstração de
força do atual governo, surge a seguinte problemática: como o art. 394-A do Projeto de Lei
nº 6.787-B de 2016 atinge o sistema de proteção à maternidade?
Nesse sentido, o presente artigo encontra sua justificativa na necessidade de trazer
maiores esclarecimentos acerca do tema proposto, beneficiando, sobretudo, as mulheres
que se submetem a legislação celetista – que são diretamente atingidas pela alteração –
bem como contribuir com os operadores do direito em sua busca pelo conhecimento
jurídico.
Assim, teve como objetivo geral analisar a evolução histórica da proteção ao
trabalho da mulher e o impacto que o art. 394-A da Reforma Trabalhista causa à proteção à
maternidade, no que se refere ao exercício de atividade insalubre. Quanto aos objetivos
específicos, foram eles: registrar a inserção da mulher no mercado de trabalho; reunir as
primeiras normas de proteção ao trabalho da mulher no Brasil; explicar a proteção à
maternidade conferida pela CLT em cotejo com a insalubridade; e descrever a nova
disciplina conferida à insalubridade durante o período de gestação/lactação pelo art. 394-A
da Reforma Trabalhista.
Para tal feito, utilizou-se da pesquisa bibliográfica, baseando-se na utilização de
material já existente, principalmente composto por livros, artigos científicos, publicações
periódicas e afins. Adotou-se, ainda, como método de pesquisa, o exploratório, tornando o
problema mais explícito e construindo hipóteses.

1 DA CONQUISTA DA MULHER AO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO

Desde a colonização do Brasil o patriarcalismo foi o modo de organização social


adotado. Com o apoio da Igreja Católica, tal sistema foi responsável por conferir ao
homem uma posição de superioridade em relação à mulher.
Entretanto, considerando que a maioria dos colonos possuíam poucos recursos,
sendo poucos aqueles que dispunham de escravos, a mão de obra feminina era essencial
para a expansão das pequenas propriedades rurais e comércios que se instalavam no Brasil.
Todavia, após a Proclamação da República, sob a influência do positivismo de
Conte, a mulher foi conduzida de volta pra casa, para exercer aquilo que foi denominado
de “sagrada missão”, qual seja os cuidados domésticos e familiares (SERPA, 2010).
Verifica-se, portanto, que o fator biológico tornou-se o determinante para a
organização da sociedade, definindo o papel social a ser exercido por cada indivíduo. Às
mulheres, as atribuições domésticas. Aos homens, o mundo.
Avançando historicamente, durante a Revolução Francesa, as mulheres ocuparam
as linhas de frente no combate em busca da liberdade, igualdade e fraternidade. A francesa
Olympe de Gouges desenvolveu papel importante na defesa dos direitos da mulher,
redigindo, inclusive, o texto da Declaração dos Direitos da Mulher. O texto não foi
aprovado, de Gouges foi condenada à pena de morte e as mulheres foram proibidas de
manter quaisquer tipos de organização (BARROS, 2008).
O texto é marcado de passagens progressistas, cujo objetivo é trazer a equidade
entre homem e mulher, como seres humanos, abordando diferentes temas como a
igualdade na distribuição de cargos e funções, na liberdade de expressar suas opiniões sem
condenações e o direito à propriedade. Valendo-se ressaltar a seguinte passagem de
Gouges (1791, p.1):

Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o Universo.


Reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza não está mais envolto
de preconceitos, de fanatismos, de superstições e de mentira. A bandeira da
verdade dissipou todas as nuvens da ignorância e da usurpação. O homem
escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de recorrer às tuas, para
romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-se injusto em relação à sua
companheira.

Assim, pode-se dizer que o lema da Revolução Francesa, qual seja “Igualdade,
Liberdade e Fraternidade”, só se aplicou aos homens, reforçando a ideologia de hierarquia
entre os gêneros e o papel doméstico da mulher, deixando-as, mais uma vez, afastadas do
ideal de cidadania.
Já a Revolução Industrial representou um marco para a inserção definitiva da
mulher no mercado de trabalho formal, pois modificou o setor produtivo – substituindo a
mão de obra física pelo maquinário – e originou a classe operária, sendo o capitalismo e a
produção as principais preocupações dos empregadores.
Dessa forma, qualquer um que pudesse operar uma máquina estaria em condições
de ser contratado. Nas palavras de Barros (2016, p. 51):

O emprego generalizado de mulheres e menores suplantou o trabalho dos


homens, pois a máquina reduziu o esforço físico e tornou possível a utilização
das “meias-forças dóceis”, não preparadas para reivindicar. Suportavam salários
ínfimos, jornadas desumanas e condições de higiene degradantes, com graves
riscos de acidentes

As mulheres se submetiam a condições de trabalho desumanas, enfrentando


jornadas de dezesseis horas, sem intervalo próprio para as refeições ou para o descanso,
desenvolvendo as mesmas funções que os homens e recebendo menos para tal.
Por outro lado, já ingressa no mercado de trabalho formal, coube a mulher romper
as barreiras impostas a sua aceitação e permanência nele. A divisão sexual do trabalho, que
sempre esteve presente, é algo que merece destaque, segundo a qual os homens ainda
detinham os cargos de mando, como diretorias e presidências, enquanto as mulheres
ocupavam os de menos destaque, com ênfase na produção, principalmente na costura,
secretarias, tesourarias e afins.
Nesse sentido, essa divisão do trabalho é resultado na construção histórica dos
padrões ideais do que caracteriza “o feminino”. Nesse sentido, Nogueira (2010, p. 59) aduz
que:
Pensando nos anos 70, por exemplo, a mulher trabalhadora ampliava a sua
participação nas lutas de classe e na organização política e sindical. Mantinha-se
o enfrentamento em relação ao discurso conservador que preconizava um destino
natural para a mulher: ser mãe e esposa, mantendo o conceito de família como
instituição básica e universal. É nessa década que o combate à opressão contra a
mulher se torna mais acentuado, onde era preciso mais do que nunca lutar pela
emancipação econômica e social, pelo seu direito ao trabalho, com todas as
especificidades que isso implica, como por exemplo, salários iguais para
trabalhos iguais, além de reivindicações de uma divisão mais justa no trabalho
doméstico, na esfera reprodutiva, libertando, ao menos parcialmente, a mulher da
dupla jornada.

Pés fincados no mercado de trabalho, no final do Século XX a preocupação da


mulher passa a ser outra: a representatividade.
A ausência de figuras femininas em locais de representação, como sindicatos e
casas legislativas, reafirma a exclusão da mulher enquanto cidadã, colocando-a novamente
à margem da sociedade. Isso ocorre, principalmente, porque são tomadas decisões que lhe
afetam sem que estas sejam consultadas. Ou seja, o padrão de hierarquização de gênero é
seguido, ficando o homem a cargo de determinar aquilo que cabe ou não à mulher.
Na década de 90 foi realizado um estudo pela Comissão Nacional, Departamento Nacional
e Secretaria Nacional da Mulher Trabalhadora da CUT, CGT e Força Sindical,
constatando-se que, conforme Barros (2008, p.72):

[...] a ausência das mulheres nas organizações de trabalhadores nos locais de


trabalho, pequena participação nas atividades sindicais e, consequentemente, na
direção dessas entidades. Foram apontadas, nesse estudo, como causas
específicas desse fato as seguintes: o desproporcional lastro de responsabilidades
familiares e encargos domésticos que recaem sobre os ombros da mulher, aliás
em todas as sociedades, privando-a de tempo para se prepararem para se
dedicarem às atividades sindicais; disputa por espaços políticos nos sindicatos;
inibição de sua participação pela família, principalmente maridos e
companheiros; cultura machista nas organizações de trabalhadores, nos locais de
trabalho, em setores onde a presença de mulheres é escassa.
Percebe-se, assim, que, ainda que modificado pela evolução da sociedade através
do tempo, ainda predomina um padrão calcado na divisão sexual do trabalho, o que é visto
em cada um dos momentos históricos supracitados.
No ano de 2012, o SOS Corpo e o Instituto Datapopular realizaram uma pesquisa
sobre as tensões enfrentadas pelas trabalhadoras no que se refere à essa divisão desigual do
trabalho. Nessa toada, afirmam Ávila e Ferreira (2014, p. 24):

As mulheres entrevistadas pela pesquisa realizavam, todas, algum trabalho


remunerado. A grande maioria, 98%, além de trabalhar remuneradamente,
afirmavam também cuidar da casa e dos afazeres domésticos. A experiência das
mulheres trabalhadoras segue, portanto, marcada pelo que historicamente se
consagrou denominar “dupla jornada”, remunerada e não remunerada. Dentre
estas, 74% afirmam contar com algum tipo de ajuda para cuidar da casa. Destas,
63% contam com ajuda gratuita, 10% com ajuda paga e 27% não contam com
nenhum tipo de ajuda. A grande maioria das mulheres casadas, 71%, afirmam
não contar com nenhuma ajuda dos homens para realizar os afazeres domésticos.
Entre as mulheres solteiras e viúvas ou separadas, a principal ajuda na realização
do trabalho doméstico é das mães (60% entre as solteiras e viúvas e 70% entre as
separadas).

À vista disso, nota-se que a questão da divisão sexual do trabalho é vista não só no
que se refere à distribuição de cargos e funções no exercício de atividade remunerada,
como também nas atividades domésticas, resultado do patriarcalismo e da atribuição do
tripé “mãe/esposa/dona-de-casa” como exemplo de mulher ideal.
Registrada a inserção da mulher no mercado de trabalho, abordando diferentes
contextos históricos e culturais, cumpre reunir as primeiras normas de proteção ao trabalho
da mulher no Brasil, tema a ser abordado no próximo tópico.

2 AS DIRETRIZES PRELIMINARES NO AMPARO AO LABOR FEMININO NO


BRASIL

O Código Civil de 1916 buscou unificar a legislação civilista no Brasil, utilizando


como alicerce os valores da família e do casamento, instituindo a figura masculina como
“chefe de família”. Outrossim, asseveram Marques e Melo (2008, p. 468) que:

Em troca da proteção do casamento, os elaboradores do Código estabeleceram o


homem como chefe da família. Cabia a ele determinar o lugar da residência da
esposa e dos filhos, administrar o patrimônio do casal e, acima de tudo, autorizar,
sua mulher a exercer uma atividade profissional fora do lar. Por conta disso, a
legislação concedeu ao homem amplos poderes para limitar as oportunidades
abertas à mulher para alcançar a sua autonomia pessoal [...]

Nota-se, assim, que a sociedade familiar era liderada por uma figura que detinha,
sozinha, o poder de decidir o destino dos demais, inclusive, o da esposa, caracterizada
como relativamente incapaz, que dependia da autorização do cônjuge para exercer
atividade laboral.
As primeiras regulamentações acerca do trabalho da mulher ocorreram por
intermédio do Decreto 21.417-A, de 1932, intitulado “Trabalho da mulher: na indústria e
no comércio”. O decreto em questão inovou em vários aspectos.
Tal decreto regulamentou as condições do trabalho da mulher, conferindo igualdade
salarial, proibiu o trabalho à gestante quatro semanas antes do parto e depois do parto;
determinou que os estabelecimentos com pelo menos 30 (trinta) empregadas com mais de
dezesseis anos deveriam ter local apropriado para guarda e vigilância dos filhos em
período de amamentação; e proibiu a dispensa das gestantes única e exclusivamente pela
gravidez (LUZ; FUCHINA, 2009).
Verificou-se uma evolução na legislação brasileira que, por sua vez, passou a
legitimar efetivamente o trabalho da mulher, garantindo as condições mínimas para o seu
exercício justo e digno, estabelecendo a igualdade salarial e a viabilização de condições
específicas para a empregada gestante e lactante.
Entretanto, tal decreto não foi suficiente, pois, ainda que reconhecesse a mulher
como trabalhadora, conforme o seu próprio título aponta, trata-se de um diploma
separatista, que reconhece o lugar da mulher na indústria e no comércio, mas a exclui dos
demais setores, reforçando o conceito histórico de divisão sexual do trabalho.
Apresentadas considerações acerca das primeiras normas de proteção ao trabalho da
mulher no Brasil, cumpre trazer maiores esclarecimentos acerca da proteção à maternidade
conferida pela CLT, principalmente no que tange ao exercício de atividades insalubres.

3 A VEDAÇÃO AO EXERCICIO DE ATIVIDADES INSALUBRES POR PARTE


DAS GESTANTES E LACTANTES PREVISTO NA CLT
A CLT incorporou algumas disposições do Decreto 21.417-A/32, inclusive no que
se refere a proteção à maternidade, com algumas modificações.
Em 2016, a Lei nº 13.287 inseriu o artigo 394-A na CLT, que veda o exercício de
atividades, operações e a permanência da gestante e da lactante em locais insalubres. Nos
termos do texto legal da CLT (1943, p.1) “a empregada gestante ou lactante será afastada,
enquanto durar a gestação e a lactação, de quaisquer atividades, operações ou locais
insalubres, devendo exercer suas atividades em local salubre”.
As atividades insalubres são aquelas que expõem os empregados, a níveis acima do
normal, a agentes biológicos, físicos ou químicos nocivos à saúde que, por sua vez, são
definidos por quadro aprovado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Assim, para a classificação do trabalho como insalubre não basta a mera perícia,
mas é necessário que tal atividade esteja arrolada em lista expedida pelo MTE.
Atualmente, a Norma Regulamentadora nº 15 da Portaria do MTE nº 3.214/78 é o texto
que aborda o tema.
A insalubridade ainda pode ser distribuída em graus, de acordo com a gravidade da
exposição, devendo o empregado receber um adicional de 10%, 20% ou 40%, calculado
sobre o salário mínimo ou mínimo profissional, conforme seja classificada em grau
mínimo, médio ou máximo, a ser apurado por perito, engenheiro ou médico do trabalho
(BARROS, 2016).
A alteração feita em 2016 assegura que as empregadas gestantes e lactantes
exerçam suas atividades em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa
humana, que foi elevado a fundamento da República Federativa do Brasil com a
promulgação da Constituição Federal de 1988, bem como com a garantia à vida, também
tutelada pelo referido texto legal.
Mais do que isso, as normas que protegem a empregada enquanto mãe se tratam de
normas de saúde pública, principalmente no que tange à insalubridade. Nesse sentido,
segundo Delgado (2016, p. 892)” [...] qualquer situação que envolva efetivas considerações
e medidas de saúde pública (e o período de gestação e recente parto assim se caracterizam)
permite tratamento normativo diferenciado, à luz de critério jurídico valorizado pela
própria Constituição da República”.
Verifica-se, deste modo, que há uma extensão do alcance da dignidade da pessoa e
da garantia à vida e o direito à saúde que, além de alcançar a empregada gestante e
lactante, é estendida ao nascituro e à criança que ainda se alimenta do leite materno.
Diante do exposto, explicada atual disciplina conferida pela CLT no que diz
respeito a proteção à maternidade em cotejo com o exercício de atividades insalubres, é o
momento de tecer considerações acerca da nova disciplina que a Reforma Trabalhista
pretende conferir ao tema.

4 ART. 394-A: A NOVA DISCIPLINA CONFERIDA PELA REFORMA


TRABALHISTA AO EXERCÍCIO DE ATIVIDADES INSALUBRES DURANTE A
GESTAÇÃO E A LACTAÇÃO NO BRASIL

O Projeto de Lei nº 6.787-B de 2016, também conhecido como o texto que institui a
Reforma Trabalhista, traz mais de 100 alterações à atual disciplina da CLT.
Dentre tais modificações, merece destaque a nova redação do art. 394-A, in verbis
(2016, p. 1):

Art. 394-A. Sem prejuízo de sua remuneração, nesta incluído o valor do


adicional de insalubridade, a empregada deverá ser afastada de:
I – atividades consideradas insalubres em grau máximo, enquanto durar a
gestação; II - atividades consideradas insalubres em grau médio ou mínimo,
quando apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da
mulher, que recomende o afastamento durante a gestação;
III – atividades consideradas insalubres em qualquer grau, quando apresentar
atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o
afastamento durante a lactação.
§ 1º .....................................
§ 2º Cabe à empresa pagar o adicional de insalubridade à gestante ou à lactante,
efetivando-se a compensação, observado o disposto no art. 248 da Constituição
Federal, por ocasião do recolhimento das contribuições incidentes sobre a folha
de salários e demais rendimentos pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa
física que lhe preste serviço.
§ 3º Quando não for possível que a gestante ou a lactante afastada nos termos do
caput deste artigo exerça suas atividades em local salubre na empresa, a hipótese
será considerada como gravidez de risco e ensejará a percepção de salário
maternidade, nos termos da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, durante todo o
período de afastamento.

Na forma atual do art. 394-A, o afastamento da gestante e da lactante ao trabalho


insalubre é automático, independentemente do grau de insalubridade ao qual a empregada
estiver submetida. Já nos termos da Reforma, é conferido tratamento distinto para gestantes
e lactantes. Para as gestantes expostas à insalubridade em grau máximo, o afastamento
permanece imediato. Quando se tratar de insalubridade em grau mínimo e médio,
dependerá da apresentação de laudo emitido por médico de confiança da mulher,
recomendando tal medida. Por outro lado, no que se refere às lactantes, o afastamento
dependerá da apresentação de laudo médico, independentemente do grau de insalubridade.
Não se trata de uma norma que compromete todo o sistema de garantia à
maternidade da mulher empregada, mas que insere um requisito desnecessário para o
afastamento da gestante e da lactante à exposição de agente insalubre. Dessa forma, o
direito subjetivo da gestante e da lactante ao afastamento de atividades e ambientes
insalubres é restringido, passando a ser um direito pendente de validação por atestado
médico, expondo-as a risco desnecessário.
Noutro aspecto, o seu §3º prevê expressamente que quando não for possível que a
gestante ou a lactante afastada exerça suas atividades em local salubre, tal fato será
equiparado à gravidez de risco, ensejando a percepção de salário maternidade, a ser pago
pela Previdência Social.
Portanto, percebe-se que o texto da Reforma Trabalhista, nesse aspecto, traz pontos
positivos, como é o casos do §3º, e pontos negativos, como é o caso dos incisos II e III,
tratando-se de uma faca de dois gumes. Tirar. Como se dava a concessão de salario
maternidade?
Se por um lado inova de modo positivo, dispondo expressamente sobre a percepção
do salário maternidade quando a gestante ou a lactante não puder ser remanejada para área
salubre; por outro, compromete o pleno exercício da igualdade material, da dignidade da
pessoa humana, da garantia à vida e do direito à saúde, que ultrapassa a pessoa da mãe e se
estende à criança, a partir do momento que permite que gestantes e lactantes se submetam
à insalubridade.
Mais especificamente, no que tange à dignidade da pessoa humana, Agra (2012, p.
124), aduz que:

Ela é a base do ordenamento jurídico, seu elemento central [...]. Dessa


centralidade advém que nenhuma norma jurídica pode denegrir seu conteúdo
essencial [...]. A dignidade da pessoa humana representa um complexo de
direitos que são inerentes à espécie humana, sem eles o homem se transformaria
em coisa, res. São direitos como a vida, lazer, saúde, educação, trabalho e cultura
que devem ser propiciados pelos estado e, para isso, pagamos tamanha carga
tributária. Esses direitos servem para densificar e fortalecer os direitos da pessoa
humana, configurando-se como centro fundante da ordem jurídica.

Diante disto, constata-se que a dignidade da pessoa humana, fundamento da


República Federativa do Brasil, encabeça um núcleo de direitos que não podem ser
restringidos sem que haja prejuízo à pessoa enquanto ser humano. Trazendo tal assertiva
para o ramo do Direito Laboral, possibilitar que a gestante e a lactante sejam expostas à
insalubridade, durante período da gestação e da lactação, retira-lhes um direito assegurado
pela legislação anterior – qual seja o direito ter uma gestação saudável e de prover o leite
materno sem que haja interferência de agentes insalubres em nenhuma hipótese –,
justamente alicerçado na dignidade da pessoa humana
No que se refere às consequências fáticas que tal modificação provocará, só
poderão ser aferidas após o efetivo ingresso do projeto de lei no ordenamento jurídico
pátrio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da sanção da Reforma Trabalhista ocorrida, o presente artigo teve como


propósito analisar a evolução histórica do trabalho da mulher e o impacto que o novo texto
do art. 394-A provoca à proteção à maternidade, no que se refere ao exercício de atividade
insalubre.
Ao se esmiuçar sobre o arcabouço histórico do trabalho da mulher no Brasil,
percebeu-se que a entrada da mulher no mercado de trabalho foi desafiador e repleto de
discriminação. Em cada momento histórico foi possível verificar a existência de uma
particularidade, sendo comum a todos, entretanto, a presença do conceito histórico de
“divisão sexual do trabalho”.
Posteriormente, ao reunir as primeiras normas que regulamentaram o trabalho da
mulher no Brasil, verificou-se tais normas, apesar de reconhecerem à mulher o direito de
exercer atividade remunerada, reforçaram esse conceito de divisão sexual do trabalho.
Exemplo disso é o do Decreto 21.417-A, de 1932, intitulado “Trabalho da mulher: na
indústria e no comércio”, que tacitamente exclui a mulher dos demais setores.
Por sua vez, ao explicar a proteção à maternidade conferida pela CLT em cotejo
com a insalubridade, observou-se que o atual art. 394-A veda o exercício de atividade
insalubre pela gestante e a lactante, independentemente do grau de insalubridade a qual
esteja exposta. Tal regra busca efetivar a igualdade material, a dignidade da pessoa
humana, a proteção à vida, sendo considerada matéria de saúde pública.
Por fim, ao descrever a nova disciplina conferida à insalubridade durante o período
de gestação e lactação pelo art. 394-A da Reforma Trabalhista, percebeu-se que será
conferido tratamento distinto para gestantes e lactantes. O afastamento imediato permanece
apenas para a gestante exposta à insalubridade em grau máximo. Nos casos de grau
mínimo e médio, a gestante somente será afastada quando apresentar atestado médico,
expedido por médico de sua confiança, que recomende tal medida. No que se refere à
lactante, esta só será afastada quando apresentar laudo médico, independentemente do grau
de insalubridade.
Analisando a problemática inicialmente exposta neste artigo, verifica-se que a
mudança restringe desnecessariamente o direito ao afastamento que a gestante e a lactante
possuem. Tal restrição compromete o pleno exercício da igualdade material, da dignidade
da pessoa humana, da garantia à vida e do direito à saúde que ultrapassa a pessoa da mãe,
estendendo-se à criança.
Quanto à dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do
Brasil, esta encabeça um núcleo de direitos, os quais não podem ser restringidos sem que
haja prejuízo ao ser humano. Trazendo tal assertiva ao Direito Laboral, possibilitar que a
gestante e a lactante sejam expostas à insalubridade durante o período de gestação e da
lactação, vai diretamente de encontro à dignidade da pessoa humana, uma vez que é
restringido o direito a uma gestação saudável e de prover o leite materno sem que haja
interferência de agentes insalubres.
No que se refere às consequências fáticas que tal modificação provocará, só
poderão ser aferidas após o efetivo ingresso do projeto de lei no ordenamento jurídico
pátrio.
REFERÊNCIAS
AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2012.

ÁVILA, Maria Betânia; FERREIRA, Verônica. Trabalho remunerado e trabalho


doméstico no cotidiano das mulheres. Recife: SOS Corpo, 2014.

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 10. ed. atual. São Paulo:
LTr, 2016.

BARROS, Alice Monteiro de. Cidadania, relações de gênero e relações de trabalho. In:
Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, 2008. Disponível em:
<https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/1939/72686/2008_rev_trt03_v47_n077.pdf?s
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AS RELAÇÕES DE GÊNERO NAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E A
COEDUCAÇÃO COMO PRÁTICA FEMINISTA POSSÍVEL AO
ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO

Rubem Viana de Carvalho4

GT: – TEORIA FEMINISTA E OS DIREITOS DAS MULHERES NA AMÉRICA


LATINA

RESUMO

O presente artigo lança-se na discussão das relações de gênero, analisadas a partir das
práticas pedagógicas do/a professor/a em sala de aula, apontando a coeducação, como
prática de emancipação dos sujeitos e de horizontalização do poder. Fazemos uma
intersecção entre as teorias feministas e educação, apontando a educação como dispositivo
importante no enfrentamento as desigualdades de gênero. Para darmos conta dessa
discussão temos como objetivo geral: Analisar o uso é feito das relações de gênero nas
práticas docentes dos/as professores/as, se e quando se aproximam da coeducação. Quanto
ao método epistemológico, optamos pela pesquisa qualitativa do tipo etnográfico na
perspectiva de André (2011) e para análise dos dados, utilizamos a Análise de Conteúdo na
proposta de Bardin (1977). Nos resultados retomaremos os objetivos específicos ao
realizarmos esclarecimentos acerca de cada um deles, aproximando teoria e campo. Por
fim, os resultados apontam para a existência na escola de práticas educativas ainda
excludentes. No entanto, foi verificada a existência de práticas coeducativas isoladas ou de
momentos coeducativos.

Palavras-Chave: Educação. Coeducação. Práticas Pedagógicas. Feminismo. Gênero.

INTRODUÇÃO

Desde o surgimento das primeiras experiências escolares na antiguidade, a escola


enquanto instituição social que se prepõe a formação dos sujeitos foi historicamente
marcada pelas desigualdades entre meninos e meninas, desigualdades essas, muitas vezes
justificadas pela diferença dos sexos, discurso que ganhou ainda mais força na idade média
com o monopólio educacional da igreja católica. Assim, por muito tempo, meninas não

4
Graduando em Pedagogia pela UFPE – CAA. E-mail: psirubemviana@gmail.com
puderam frequentar o espaço escolar, ou tiveram uma educação diferente da destinada aos
meninos, pensada para a esfera privada da vida social, por serem consideradas o “segundo
sexo”, o sexo que devia ser educado para a família, que deveria assegurar através do
casamento filhos a sociedade. O exercício do pensamento crítico e o ensino para a
profissionalização era destinada aos meninos (ALMEIDA, 2007a, 2007b, 2015).
Desta forma, a escola é historicamente marcada pelas desigualdades de gênero, que
ainda estão presentes em muitas práticas pedagógicas dos espaços escolares
contemporâneos como nos traz Louro (1997). Desigualdades que segregam e excluem
sujeitos, considerados diferentes ou desviantes da norma padrão, a mulher, o negro, o
homossexual, o transexual entre outros. No entanto, alguns esforços têm sido tomados para
diminuir as desigualdades de gênero na escola, a partir de olhares que vêm
problematizando as práticas pedagógicas, como é o caso da coeducação defendida por
Daniela Auad (2006). Esses novos olhares para as políticas escolares e para as práticas
pedagógicas voltados para as relações de gênero surgiram com o movimento feminista do
final século XIX, através de reivindicações das mulheres ao sufrágio e por igualdade
educacional para meninos e meninas por meio de uma educação indiferenciada para ambos
os sexos, dando surgimento as escolas mistas.
No entanto, a escola mista que hoje temos no Brasil, se revela falha, no que se refere
à educação para a igualdade de gênero, pois a simples mistura entre meninos e meninas
não é suficiente para diminuir as desigualdades de gênero, pois essas, são fruto de uma
estrutura social complexa e histórica, que influenciam as relações e práticas pedagógicas,
como nos mostra Auad (2006). Assim, a escola ainda hoje “fabrica” corpos desiguais como
afirma Louro (1997), essa autora, contribui a essa discussão ao afirmar e problematizar que
os espaços escolares são marcados pelas relações de gênero, relações essas que são
desiguais, e que implicam em relações históricas de poder, desta forma, a partir dessa
assertiva é possível apontarmos que a escola contemporânea ainda é sexista e excludente.
Não obstante, ainda com todas essas dificuldades, a escola é um espaço no interior
do qual podem ser construídos novos padrões de aprendizado, convivência, produção e
transmissão de conhecimento, sobretudo se ali valores, crenças, representações e práticas
associadas a preconceitos discriminações e violências de ordem racista, sexista, misógina e
homofóbica forem levados à discussão crítica e política conforme a realidade de cada
espaço escolar.
É diante deste contexto escolar, que aponta para a necessidade de novas práticas
emancipadoras e democráticas que lançamos a seguinte questão provocadora: Qual uso é
feito das relações de gênero nas práticas pedagógicas dos/as docentes, se e quando se
aproximam da coeducação? Para podermos refletir sobre como é tratada as relações de
gênero na educação básica a partir das práticas pedagógicas, por acreditarmos que a
educação é um dispositivo importante no enfrentamento as desigualdades de gênero,
mesmo sabendo que o caminho de melhoramento das desigualdades que existem na escola
é um processo que deve envolver leis e medidas que articulem todas as esferas da
sociedade, da administração pública aos docentes em sala de aula. Assim, lançamos aqui
mais um olhar sobre as relações de gênero que se estabelecem nas práticas pedagógicas
escolares, apontando a coeducação como possibilidade de prática pedagógica
emancipadora, com o intuito de levantar reflexões e propor alternativas as práticas
pedagógicas tradicionais vigentes.
Utilizamos como objetivo geral: Analisar o uso feito das relações de gênero nas
práticas pedagógicas dos/as docentes, se e quando se aproximam da coeducação. E como
objetivos específicos: 1) Identificar e analisar a existência da coeducação nas práticas
pedagógicas mediada pelo/a professor/a em sala de aula; e 2) Conhecer e caracterizar as
principais questões referentes às relações de gênero que perpassam as práticas
pedagógicas.
Nossa pesquisa foi construída numa perspectiva qualitativa, por acreditarmos que,
desta forma, a riqueza sociológica e pedagógica dos fenômenos teria seu conteúdo
preservado. Nosso campo/tema é a coeducação enquanto prática pedagógica, desta forma,
nosso estudo está delimitado enquanto campo a uma escola pública municipal da cidade de
Caruaru no Agreste Pernambucano. Os sujeitos da pesquisa foram dois professores que
dividiam as disciplinas do quinto ano do ensino fundamental, na escola escolhida, um
professor que daremos o nome de P1, e uma professora, que daremos o nome de P2, por
motivos éticos a fim de preservar suas identidades na discussão dos dados, a turma de
quinto ano escolhida para pesquisa possuía 40 alunos, sendo 17 meninas e 23 meninos, a
pesquisa foi realizado no segundo semestre do ano de 2016.
No que tange ao método epistemológico, nossa pesquisa é do tipo etnográfico na
perspectiva de André (2011). Acreditamos que a partir desse método é possível levantar e
categorizar os fenômenos que perpassam o dia a dia da realidade escolar com
fidedignidade e isso atende a nosso objetivos. Na fase de tratamento dos dados
utilizaremos a Análise de Conteúdo na perspectiva de Bardin (1977), por acreditar que essa
técnica metodológica, traduz melhor os significados dos fenômenos obtidos na pesquisa do
tipo etnográfico.

RECORTE TEÓRICO
Gênero: categoria útil para análise das desigualdades entre meninos e meninas na
escola
A partir da “segunda onda” do movimento feminista em meados de 1960 surge a
teorização da problemática do conceito gênero no movimento, que agora se volta para o
campo acadêmico, propondo a discussão das questões relativas ao sujeito mulher na
sociedade, levando para o campo da academia a militância política e social, que surgiu no
século XIX com o sufragismo, movimento que propunha a legalidade do direito da mulher
ao voto. As estudiosas feministas passam a denunciar o ocultamento da mulher na esfera
pública e acadêmica, com estudos que tinha por objetivo tornar visível o sujeito mulher
que historicamente esteve restrito à esfera privada, estes estudos, então, dão voz aquelas
que eram sumariamente silenciadas pela norma masculina (LOURO, 1997).
Estes estudos questionavam principalmente o determinismo biológico que sustentava
a tese de que por serem sexualmente diferentes homens e mulheres teriam posições sociais
diferentes, utilizada por séculos para justificar a desigualdade social entre homens e
mulheres. No entanto, os estudos vêm demostrar que não são as características sexuais,
mas o que se fala ou se pensa sobre elas, que vai construir o que é masculino ou feminino
em uma sociedade em um tempo histórico. O debate vai se construir sobre uma nova
análise onde gênero passa a ser o conceito central da discussão, conceito esse que passa a
incluir também as questões do homem, e das masculinidades (LOURO, 1997).
Gênero passa a ser diferenciado de sexo, se afastando do determinismo biológico que
tem o termo sexo, no entanto, como afirma Louro (1997, p.22): “não é negada a biologia,
mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as
características biológicas”. Scott (1995) contribui a essa discussão ao problematizar que,
enquanto saberes constituídos, a distinção entre gênero e sexo é complexa, o que significa
dizer que, embora o pênis e a vagina possuam existência material eles só ganham sentido, a
partir de um olhar que é cultural, por meio de um discurso que é construído. Assim,
concepções políticas sobre masculino e feminino marcam e orientam a constituição desses
saberes.
Para Louro (2001), a inscrição do gênero se dá sempre no contexto de uma
determinada cultura, nesse sentido, os corpos ganham sentido socialmente. Assim as
diversas formas de expressar e viver os desejos e prazeres, também trazem uma
codificação estabelecida socialmente. As identidades de gênero e sexuais são, portanto,
definidas a partir das relações sociais, moldadas pelas redes de poder de uma sociedade. É
no âmbito da cultura e da história que se definem as identidades sociais.
Dentre as múltiplas marcas que a cultura impõe sobre os corpos, Butler (1990, p.
197), destaca o gênero como a inscrição primeira, inauguradora do processo de
subjetivação.

No lugar de uma identificação original a servir como causa determinante, a


identidade de gênero pode ser preconcebida como uma história pessoal/cultural
de significados recebidos, sujeitos a um conjunto de práticas imitativas que se
referem lateralmente a outras imitações e que, em conjunto, constroem a ilusão
de um eu de gênero primário e interno marcado pelo gênero, ou parodiam o
mecanismo dessa construção.

Nesse sentido a identidade de gênero se forma pelo aprendizado cultural de


significados performativos de modelos fornecidos pela cultura. Sendo assim a biologia não
define o humano, pois este se mostra necessariamente plástico e consequentemente
múltiplo (BUTLER, 1990).
Autoras como Scott (1995), consideram ser importante descontruir o binarismo ainda
existente entre gênero masculino/feminino que advém da naturalização do sexo e se fixa no
corpo a partir dos discursos. Usualmente se concebe masculino e feminino dentro de uma
lógica invariável de dominação-submissão, no entanto, para a autora é necessário
desconstruir essa lógica, Louro (1997, p. 31-32) afirma a partir disso que:

Desconstruir a polaridade rígida dos gêneros, então, significaria problematizar


tanto a oposição entre eles quanto a unidade interna de cada um. Implicaria
observar que o polo masculino contém o feminino (de modo desviado,
postergado, reprimido) e vice-versa; implicaria também perceber que cada um
desses polos é internamente fragmentado e dividido (afinal não existe a mulher,
mas várias e diferentes mulheres que não são idênticas entre si, que podem ou
não ser solidárias, cúmplices ou opositoras).

As relações dicotômicas não são suficientes para compreender as relações de gênero,


é preciso observar também que estas relações, que são sociais e históricas, constituem e são
constitutivas dos gêneros e implicam em relações de poder. Assim, Louro (1997, p.41)
afirma que: “os gêneros se produzem, portanto, nas e pelas relações de poder” É no interior
das redes de poder que são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades.
Segundo Louro (1997) o conceito de “biopoder” de Foucault que pode ser
compreendido como o poder de controlar as multidões e de controlar os corpos é útil, nessa
discussão, para que possamos compreender esse poder que, para além de disciplinador é
formativo, quando exerce controle sobre os corpos de homens e de mulheres a partir das
instituições sociais, onde uma das primeiras é a escola.
Foucout (1987, p.29) contribui a essa discussão colocando que:

O corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações


de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o
supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem--lhe sinais.
Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e
recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de
produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação[...]

Nessa perspectiva o autor contribui para compreendermos as relações de poder entre


gêneros, onde, a escola em suas práticas pedagógicas pode criar mecanismos de
normatização e controle para disciplinar o corpo dos sujeitos, ou pode problematizar as
relações de poder existentes.
O desafio da coeducação como prática pedagógica de enfrentamento as desigualdades
de gênero na escola
O movimento feminista Americano e o Europeu e posteriormente o Latino
Americano trouxeram inúmeras contribuições a nossa sociedade quando reivindicaram e
subverteram o lugar da mulher na sociedade patriarcal. No âmbito da educação não foi
diferente, excluídas por séculos da escolaridade, por serem impedidas de frequentar a
escola, que era destinada aos homens, as mulheres desse movimento, engajaram-se na luta
por direitos educacionais de igualdade de gênero. As feministas, desse momento histórico,
consideravam que a melhor forma de se obter igualdade entre os sexos era através da
educação indiferenciada para ambos os sexos, que seria concretizada na escola mista
através da coeducação das relações de gênero (ALMEIDA, 2007a, 2007b, 2015).
No Brasil, por muito tempo a coeducação foi repudiada pela igreja católica que
possuía motivos de ordem cultural/moral e principalmente religiosa, motivos esses, que
sempre recaiam em forma de restrições sobre a mulher, que devia ser educada para a esfera
privada, para ser uma boa esposa, uma boa mãe e boa dona de casa. A educação igual para
ambos os sexos significaria para a igreja católica, uma ameaça para as famílias, assim a
profissionalização feminina, a concessão de direitos civis como o voto e a inserção na
política eram combatidos por serem considerados fatores de desestabilização social, pois
de acordo com Almeida (2007a, p.71) para a igreja:

[...] as leis naturais tinham estabelecido o lugar da mulher no lar e o dos homens
na vida pública. Juntar dois seres tão diversos e com destinação tão diferente se
constituía uma inobservância das leis divinas e da natureza. Subverter essa
ordem seria desobedecer a Deus. [...]

Desta forma para a igreja católica brasileira do final do século XIX o ensino na
coeducação significaria uma ameaça à sociedade, a moral e aos bons costumes e poderia
desvirtuar as mulheres de sua função social preestabelecida pela igreja, calcada sob
princípios biológicos e fundamentalmente religiosos.
Segundo Almeida (2007a, 2007b, 2015), as ideias de escolas coeducativas entram no
Brasil através dos missionários protestantes Norte Americanos por volta de 1870, que
possuíam ideias democráticas de liberdade, que movidos por interesses econômicos
compactuavam com as ideias feministas de igualdade educacionais sem distinção de
gênero. No entanto, as escolas mistas se proliferaram no Brasil, muito mais pelas
condições socioeconômicas em que o país se encontrava, já que custavam menos aos
cofres públicos, do que, por uma ideologia de igualdade. Auad (2006) destaca sobre essa
discussão que o projeto inicial de coeducação no Brasil falhou, pois o que de fato foi
implantado no país, foi um modelo de escolas mistas, o projeto de coeducação feminista de
equidade de gênero foi suprimido pelo sistema.
É a partir da intersecção entre a luta feminista acadêmica e política das relações de
gênero que surgem os conceitos contemporâneos de coeducação. Almeida (2007a)
conceitua pedagogicamente coeducação como sendo:

Na terminologia pedagógica, coeducar se refere ao ato educativo no qual ambos


os sexos aprendem na mesma escola, na mesma classe, nas mesmas horas e
utilizando-se os mesmos métodos, as mesmas disciplinas e com os mesmos
professores, todos sob uma direção comum [...] (p. 64).

Nessa visão, se estabelece o princípio de igualdade na diferença, não havendo


diferenciação de qualquer natureza entre meninos e meninas. Nessa perspectiva, para Joan
Scott (1990) a igualdade, enquanto conceito político, pressupõe a diferença, pois não há
sentido em reivindicar igualdade para sujeitos que são idênticos.
Já para Daniela Auad (2006), a coeducação ganha um aspecto mais amplo se
configurando como política educacional democrática, que prevê medidas de inter-relações
entre gênero em diversos espaços educativos incluindo a escola:

A um modo de gerenciar as relações de gênero na escola, de maneira a


questionar e reconstruir as ideias sobre o feminino e sobre o masculino. Trata-se
de uma política educacional, que prevê um conjunto de medidas e ações a serem
implementadas nos sistemas de ensino, nas unidades escolares, nos afazeres das
salas de aulas e nos jogos e nas brincadeiras dos pátios (AUAD, 2006, p. 79).

Auad (2006), faz uma diferenciação entre escolas mistas e coeducação, pois, para a
autora, além dos meninos e meninas, estarem “misturados” realizando as mesmas
atividades de forma que as diferenças sejam respeitadas, é necessário que as oposições
históricas sobre o lugar da mulher e do feminino e do homem e do masculino na sociedade,
e as relações de gênero que também compreendem, relações de poder, sejam questionados
na escola e que as práticas pedagógicas tenham um sentido definido.
Louro (1997), entre outros autores, afirmam que a escola por ser um espaço de
reprodução da sociedade que a constitui, é um espaço marcado pelas relações de gênero
que implicam em relações de poder por serem relações hierarquizadas criando e
reproduzindo diferenças e desigualdades. Assim, para a autora, tanto os dispositivos
curriculares que pressupõem normas e procedimentos de educação, quanto os sentidos
subjetivos do que é ensinado, e como é ensinado, devem ser questionados quando se
pretende diminuir as desigualdades de gênero na escola.
De acordo com Auad (2006), na escola contemporânea os próprios alunos\as
questionam o lugar que é dado às feminilidades e masculinidades nas práticas educativas
tradicionais, assim, por estarem inseridos em uma sociedade que vem sofrendo grandes
transformações do pensamento, e que constantemente questiona os lugares sociais e
subjetivos dos sujeitos, seria de grande estranhamento se esses questionamentos não
surgissem em sala de aula por parte dos próprios alunos\as. Por conta disso, o professor
deve estar atento aos sentidos e significados que são construídos na sala de aula, a esse
respeito.
Desta forma, para Louro (1997), se admitirmos que a escola não só transmite
conhecimentos como também “fabrica” sujeitos, produzindo identidades sociais, temos que
reconhecer que essas identidades são formadas a partir de relações de desigualdade. Assim,
ao perceber esse contexto social e histórico o qual a escola está inserida, encontramos
justificativas para poder intervir na descontinuidade dessas desigualdades.
A pedagogia feminista, que é uma das pedagogias que vem a influenciar a
coeducação, pode ser pensada como um novo modelo que possa vir a contribuir com o
enfrentamento as desigualdades de gênero na escola, nas palavras de Louro (1997, p 113),
a pedagogia feminista:

vai propor um conjunto de estratégias, procedimentos e disposições que devem


romper com as relações hierárquicas presentes nas salas de aula tradicionais. A
voz do/a professor/a, fonte da autoridade e transmissora única do conhecimento
legítimo, é substituída por múltiplas vozes, ou melhor, é substituída pelo diálogo,
no qual todos/as são igualmente falantes e ouvintes, todos/as são capazes de
expressar (distintos) saberes.

Desta forma, a pedagogia feminista coloca no plano de igualdade o saber acadêmico


que é passado pelo professor e o saber pessoal do aluno, estimulando a fala de sujeitos que
foram historicamente calados pela cultura hegemônica, transformando a competição em
cooperação, assim as hierarquias e as classificações são questionadas, subvertendo o
modelo tradicional do processo de ensino/aprendizagem, no qual, apenas um sujeito é
detentor de conhecimento (LOURO, 1997).
No entanto, é preciso ter clareza que as práticas pedagógicas coeducativas não dão
conta do encerramento das desigualdades existentes, segundo Auad (2006), para que a
escola possa mudar a forma como trata das questões de gênero é preciso que algumas
transformações aconteçam, tais como: mudanças na legislação, nos currículos escolares,
nos sistemas educacionais, na relação professor/a aluno/a, nas relações dos agentes da
escola, nos livros didáticos para que não reproduzam desigualdades. Não obstante, mesmo
se essas ações não se desenvolvam, pois levam tempo e dependem em sua grande maioria
de ações políticas e legislativas, os professores e professoras podem e devem assumir
práticas coeducativas, no dia a dia, da sala de aula.

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS


Com a finalidade de discutir e apresentar os dados a fim de responder à questão
central que norteia nossa pesquisa que é compreender: Qual uso é feito das relações de
gênero nas práticas pedagógicas dos/as docentes, se e quando se aproximam da
coeducação? Elegemos duas categorias a partir dos dados obtidos em campo são elas: O
lugar da coeducação nas práticas pedagógicas e as práticas de mistura; e Quando as práticas
pedagógicas dos/as docentes reproduzem e quando enfrentam as desigualdades de gênero na
sala de aula. Desta forma, nos propomos aqui a levantar uma discussão entre as categorias
que surgiram dos dados obtidos em campo com o aporte teórico, aproximando teoria e
prática.

5.1. O lugar da coeducação nas práticas pedagógicas e as práticas de mistura


A fim de responder nosso primeiro objetivo específico que consiste em: Identificar e
analisar a existência da coeducação nas práticas pedagógicas mediada pelo/a professor/a
em sala de aula, faz-se necessário compreendermos as características comportamentais e
relacionais da turma do quinto ano, na qual realizamos a pesquisa, e as práticas realizadas
pelos professores em relação aos/a alunos/as. O quadro a baixo, nos dá a possibilidade de
visualizar como os alunos se distribuem na sala de aula:

Quadro 1 –
Disposição dos alunos/as na sala

Fonte: Produzido pelo autor

E claramente visível a partir da disposição dos/as alunos/as no quadro 1 a divisão que


existe na turma, entre meninos e meninas, a turma possui 40 alunos onde 16 são meninas e
24 meninos, nesse dia haviam 37 presentes, onde as meninas são minoria e se sentam
sempre do lado esquerdo, já os meninos, sempre estão em maioria e sentam nas carteiras
da frente, e no canto direito, a partir do extrato do diário de campo a seguir é possível
compreendermos melhor como funciona a turma no que se refere as relações estabelecidas
em sala.

Pôde ser observado também que durante atividades em que é solicitada a


interação dos alunos há pouca ou nenhuma interação entre meninos e meninas, as
interações se dão quase sempre por afinidade menino/menino, menina/menina,
assim como em momentos de distração, ou em momentos em que o professor sai
de sala, Foi observado que os meninos solicitam mais a atenção do professor os
meninos da frente ao questionar atividades, solicitar correção de atividades e ao
participarem das aulas, e os do fundão através da indisciplina (DIARIO DE
CAMPO 2, 26 de outubro de 2016).

A esse respeito Louro (1997), nos alerta para os processos de naturalização em que
as relações que são constituídas no espaço escolar, assim como, a forma como esse espaço
é utilizado de maneira diferenciada por meninas e meninos, não só o espaço físico, mas
também o espaço sonoro. Pois, “por um aprendizado eficaz, continuado e sutil, um ritmo,
uma cadência, uma disposição física, uma postura parece penetrar nos sujeitos” (p. 61) e
produzir, o que a autora chama de corpo escolarizado.
Na nossa observação verificamos que o uso dos gêneros nas práticas de mistura e
separação é feito tanto pelo professor P1, quanto pela professora P2 no entanto, essas
práticas são feitas na maioria das vezes com a intenção de conter a indisciplina e não como
uma prática coeducativa de respeito as diferenças, são práticas que ao contrário reforçam
as divisões e desigualdades de forma normalmente imposta, não obstante, nas entrevistas
tanto o professor P1, quando a professora P2, afirmam que as misturas feitas são por
motivos de integração e que as separações feitas por eles são por motivos de indisciplina.
Entretanto, as observações das aulas nos revelaram que tanto as práticas de misturas,
quanto as de separação, ocorrem na maioria das vezes em momentos de indisciplina e não
há uma problematização do motivo da troca ou mistura dos alunos e quando são feitos
solicitações de grupos ou de duplas, estas, são feitas, quase sempre, com o intuito de
diminuir a indisciplina e assim facilitar o andamento da aula, seja grupos ou duplas, de
separação ou de mistura, vejamos as falas do professor P1 a respeito dessa questão:

[...] não sei se vocês já observaram, mais geralmente menino, menina, menino,
menina, menino, menino, é uma das formas que eu utilizo para separar os
alunos nas bancas, não só para evitar conversas uns com os outros, mas para
possibilitar também e quebrar um pouco o gelo, a ideia que eles têm de que
meninas só fica do lado de meninas e meninos do lado de meninos, e que não
pode se misturar. Então, as vezes meio que forçadamente eu proponho a mistura,
para que eles interajam, dialoguem entre eles, mas também proponho grupos e
atividades de modo que haja separação, no caso, não mistura entre eles, mas
uma separação, às vezes quando formo um grupo, às vezes em hora da saída,
mando as meninas na frente, depois os meninos, ou meninos e meninas.
Propositalmente também, às vezes eu separo, ou formo grupos, só grupos de
meninos ou só grupos de meninas também para diferenciá-los. (Entrevista
com P1, 7 de novembro de 2016).

Na fala de P1, fica um pouco confuso e contraditório o motivo da separação e da


diferenciação que ele faz entre meninos e meninas, na nossa observação, ficou evidente
que isso é feito em situações de indisciplina, tanto na situação que ele sugere separação
quanto na situação de mistura, a mistura que ele trata é feita de forma forçada porque os
alunos de gêneros diferentes normalmente não interagem entre si, pois se relacionam quase
sempre com sujeitos do mesmo gênero e não querem sair do grupo que estão.
Desta forma, na nossa observação em campo ocorreram várias situações onde os/as
professores solicitam que os alunos/as formem duplas ou grupos, não obstante, por motivos
de diminuir a indisciplina e facilitar a atividade proposta e como esses grupos são
formados para facilitar a aula, ou as duplas e grupos são formados por proximidade, ou os
próprios alunos formam suas duplas ou grupos se juntando a colegas que têm mais
afinidade, geralmente do mesmo sexo, como pode ser visto no quadro 2 onde P1 solicita
que os/as aluno/as formem duplas afim de viabilizar a atividade proposta:

Quadro 2-
Disposição dos alunos na sala

Fonte: Produzido pelo autor


As duplas formadas nessa atividade como mostra o quadro 2 não viabiliza a mistura
de gênero, tendo em vista que, são feitas pelo critério afinidade ou proximidade, por isso,
há apenas 3 duplas mistas, num total de 15 duplas, essa atividade foi feita na aula do
professor P1, mas também aconteceu isso algumas vezes na aula da professora P2. Na
entrevista de P2 sobre essa questão podemos perceber que ela deixa os alunos fazerem suas
duplas por afinidade ou proximidade e que ela não escolhe os gêneros na formação das
duplas ou grupos, o que seria positivo se a turma não fosse tão dividida:

[...] não acho que tem que ter isso de menino com menino e menina com menina
não. Até porque, assim, quando eu faço duplas na sala eu nem olho quem tá
do lado do outro, eu vou juntando quem está próximo, se for menino vai
com menino ou menina. Eu deixo eles ficarem juntos, portanto que eles façam o
trabalho (Entrevista com P2, 7 de novembro de 2016).

Na fala dela, assim como nas falas de P1 é possível perceber que eles de alguma
forma compreendem que as separações de gênero podem corresponder a concepções
arcaicas de sujeitos, no entanto, na prática, isso não se personifica enquanto atividade de
mistura coeducativa, fica apenas no campo teórico, na fala.
Com relação às práticas de mistura que é condição indispensável para que exista a
coeducação Auad (2006) vem nos alertar para o fato de que se essas práticas não tiverem
uma função pedagógica pensada para integração e respeito às diferenças, essas, não
corresponderão a práticas coeducativas completas, pois a mistura entre meninos e meninas
sem uma reflexão que vise uma igual valorização de gênero pode cristalizar o aprendizado
da separação reproduzindo hierarquias.

5.2. Quando as práticas pedagógicas dos/as docentes reproduzem e quando enfrentam


as desigualdades de gênero na sala de aula
Segundo Louro (1997, 2001), a escola sempre foi, e ainda é, agente de segregação
social, visto que a partir de seus elementos pedagógicos como: currículos, normas,
procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação,
produz e reproduz diferenças de gênero, sexualidade etnia e classe fomentando
desigualdades. Desta forma, estes elementos constituintes da escola são usados nas
relações de poder para instituir diferenças e desigualdades. Tendo em vista este contexto de
desigualdade o qual a escola faz parte enquanto agente social, temos como segundo
objetivo específico: Conhecer e caracterizar as principais questões referentes as relações de
gênero que perpassam as práticas docentes, para que possamos compreender quando as
práticas pedagógicas dos docentes reproduzem desigualdades e quando as enfrentam em
direção a uma prática coeducativa. Assim, abordaremos aqui duas características das
práticas docentes, em meio a tantas observadas, que na nossa compreensão, fomentam e
enfrentam as desigualdades de gênero.
A primeira prática que acreditamos que pode produzir e reproduzir desigualdades é o
constante enfileiramento dos/as alunos/as presente em praticamente todas as atividades
como pode ser visto no quadro 1 e 2 a esse respeito P1 e P2 nos relataram que eles
tentaram mudar essa realidade dentro da sala de aula e fazer círculos ou outras disposições,
mas a direção/coordenação da escola inviabilizam isso, como podemos ver na fala de P1:

Eu trabalho nesta escola há cinco anos, no primeiro e no segundo ano eu tinha a


dinâmica de sempre e trocando as disposições das bancas, eu fazia círculo, fazia
semicírculo, eu fazia uns quadrados, um grupo para um lado e grupo para o
outro, mas eu sempre encontrei resistência e bronca por parte do pessoal da
escola [...], e eu confesso, que eu foi ficando chateado e irritado, e me faltou
paciência, eu disse, eu vou deixar como está. Raramente hoje, vez ou outra, eu
faço uma atividade para mudar as bancas do lugar (Entrevista com P1, 7 de
novembro de 2016).

Não obstante, foram observados enfileiramentos em outros momentos dentro e fora


das salas de aula, também realizados pelos professores, possivelmente em consenso com a
direção/coordenação da escola, pois assim como observado, todas às outras turmas
repetiam o mesmo. Essas filas eram feitas antes dos alunos entrarem na sala, antes e depois
deles e delas irem ao intervalo, no meio da aula, e no final da aula, antes da saída dos
alunos e alunas.
Deste modo essa realidade confirma o pensamento de Louro (1997), pois a forma
com que a escola está organizada continua a fomentar as desigualdades de gênero entre
meninos e meninas na escola, a simples possibilidade de mudar a disposição das cadeiras
na sala de aula poderia mudar toda uma estrutura verticalizada que separa meninos de
meninas, mas isso não acontece para não mudar a ordem vigente.
A outra prática que compreendemos como possível fomentadora de desigualdades
ancorados em Louro (1997) e na análise histórica sobre coeducação no Brasil de Almeida
(2007a, 2007b, 2015), encontrasse na linguagem, pois segundo Louro é seguramente na
linguagem o campo onde as distinções e desigualdades se fazem mais presentes, tanto pelo
fato dela parecer quase sempre como “natural” quanto pelo fato de estar atravessada pelas
práticas que correspondem a repetições historicamente utilizadas para dar aos sujeitos
masculinos e femininos lugares sociais e papais diferentes colocando a mulher sempre na
condição de “sexo frágil” dando ao homem o lugar de poder, como pode ser visto na
seguinte situação:
A situação que escolhemos para ilustrar, essa questão, acontece em um momento em
que o professor P1 está ministrando a aula e tenta intercalar a participação de meninas e
meninos:

P1 pede: “Os meninos, homens, bonitos da sala leiam”. Depois: “agora as


meninas bonitas de laço de fita, leiam”; “só as meninas, leiam que eu não sou
menina”. (DIARIO DE CAMPO 1, 27 de outubro de 2016).

A esse respeito Louro (1997), coloca que sobre formas reeditadas e utilizando novas
formas e regras a escola continua imprimindo nos sujeitos sua marca distintiva,
fomentando desigualdade através de múltiplos e diversos mecanismos escolariza-se os
corpos e mentes. Ainda sobre a linguagem no processo de diferenciação e desigualdade a
autora nos alerta para o fato de a linguagem não apenas expressa relações de poder, como
também ela produz e se propõe a fixar desigualdades e diferenças nos sujeitos, no entanto,
a autora ressalta que isso não e recebido de forma totalmente passiva por parte dos alunos e
alunas, pois eles se envolvem nesse processo de aprendizagem, reagindo respondendo,
recusando ou assumindo integralmente.
Não obstante, foram verificadas características ou práticas dos docentes que se forem
aperfeiçoadas e feitas de forma consciente, enquanto seus objetivos e finalidades, podem
ser utilizadas a fim de enfrentar as desigualdades de gênero na escola, ancoramos essas
observações e pontuações na compreensão de Auad (2004, 2006) e Almeida (2007a,
2007b, 2015), sobre coeducação, ressaltando que não são práticas completas de
coeducação, são práticas que na nossa compreensão, tem em alguns momentos
características coeducativas isoladas, ou características importantes para a implantação da
coeducação, para além das misturas.
A primeira característica observada é a de que, os professores tiveram algum
contanto com as teorias de gênero, essa assertiva foi apontada por eles, e aparece nas falas
durante as entrevistas, mesmo sendo de forma não aprofundada, e por vezes confusa, e não
aparecendo da forma que é colocado nas entrevistas nas práticas, ficando no campo
teórico, no entanto, o que queremos destacar, é o fato de que, tanto o professor P1, quanto
a professora P2 tiveram de alguma forma nas suas formações contato com a problemática
de gênero. Desta forma, P1 e P2 parecem compreender mesmo de forma limitada, já que
eles têm uma compreensão confusa sobre a diferença entre gênero e sexualidade, que, o
uso das relações de gênero na escola precisa mudar e não ser tão engessadas com são,
como podemos perceber na seguinte fala:

Não tem esse negócio não, só porque antigamente a gente via muito isso né? E
até tem pais que são assim: “ah! Não quero que minha menina faça né, se
junte com um menino”. Mas não pode ser assim, a vida não é assim. Desde
cedo, na escola a gente tem que trabalhar isso com eles. (Entrevista com P2, 7
de novembro de 2016).

A fala da professora P2 é importante, pois se aproxima de forma parcial, as


concepções das pedagogias da emancipação e feministas como coloca Louro (1997), no
entanto, para que sejam efetivas precisariam estar presentes em toda prática docente,
aliadas a práticas e atitudes problematizadoras de escuta e de consideração dos alunos
enquanto sujeitos de opinião e de fala, para possibilitar o combate às desigualdades de
gênero no espaço escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As práticas dos professores/as relativas às questões de gênero e sexualidade
analisados neste artigo, apontam de um modo geral para um reprodução de práticas
tradicionais, revestidas por vezes de estereótipos e de posicionamentos próprios do senso
comum, pensamos que isso pode dificultar a possibilidade da existência de práticas que de
fato tenham um compromisso coeducativo, assim como também, agravar ainda mais as
desigualdades de gênero existentes na escola. No entanto, a partir dos dados obtidos
pensamos que as temáticas críticas feministas das relações de gênero começam a entrar no
espaço escolar.
Ao tentar responder nosso primeiro objetivo específico encontramos a partir das
práticas pedagógicas analisadas, práticas de separação e de mistura de meninos e meninas,
ou seja, foi verificado o uso das relações de gênero nas práticas pedagógicas, no entanto, o
uso das relações de gênero era feito, na maioria das vezes para conter a indisciplina dos
alunos/as e assim facilitar a aula. Desta forma não verificamos práticas completas de
coeducação, apenas momento coeducativos em atividades isoladas.
Nas análises referentes ao segundo objetivo específico os dados obtidos revelaram
práticas na relação professor/a-aluno/a que podem fomentar desigualdades, são práticas
que remontam papéis de gênero bastante delimitados, cristalizados e patriarcais, não
obstante, foi verificado também, práticas na relação professor/a-aluno/a que podem
contribuir para o enfrentamento das desigualdades de gênero na escola, são práticas não
totalmente politizadas e não totalmente conscientes em relação a suas finalidades, no
enteando, podem ser favoráveis se aperfeiçoadas e articuladas a outras práticas
emancipadoras e a políticas públicas, podendo vir a ser coeducativas, na perspectiva
proposta pelas autoras feministas discutidas aqui.
Não obstante, de um modo geral, mesmo em meio a práticas já obsoletas em relação
ao uso dos gêneros em sala de aula, verificamos algumas contribuições significativas rumo
ao enfrentamento das desigualdades de gênero, isso no nosso entendimento tem acontecido
pelo aumento da problematização da temática de gênero que pesquisadores/as e
professores/as ousados/as têm levantado nos cursos de formação de professores, assim
como os dados obtidos apontam, no entanto, sabemos a partir da realidade de desigualdade
na qual a escola ainda está emersa, que o que tem sido feito precisa ser ampliado, precisa
estar nos currículos de formação docente, e nos currículos escolares, assim como também
precisam se tornar políticas públicas. Por fim, conforme analisado e discutido aqui
acreditamos que a coeducação enquanto prática pedagógica parece ser uma alternativa
viável se aliada a uma rede democrática de enfrentamento as desigualdades e promoção de
cidadania.
REFERÊCIAS
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A MULHER E SEUS DIREITOS: Encontros e desencontros em documentos oficiais
de Direitos Humanos

Natália de Oliveira Melo5

GT: GT 06 – Teoria Feminista e os Direitos das Mulheres na América


RESUMO

O presente artigo se propõe a estudar a mulher e seus direitos em alguns documentos


oficiais de Direitos Humanos, tendo em vista o atual contexto social, político e econômico
que ainda marginaliza a mulher, muitas vezes negando seus direitos. A concretização dos
direitos se inicia pela inserção dos mesmos em documentos oficiais. Tem como objetivo
geral: Compreender como os direitos das mulheres se relacionam em documentos oficiais.
E como objetivos específicos: apontar a ausência ou presença das mulheres e seus direitos
em documentos oficiais e relatar a importância da inclusão dos direitos das mulheres em
documentos oficiais. Como caminho metodológico, trata-se de uma abordagem qualitativa,
do tipo bibliográfica, sendo um estudo eploratório e se utilizando da documentação como
instrumento de coleta de dados. Mediante as análises é possível perceber que há a presença
da mulher e seus direitos em alguns documentos oficiais de Direitos Humanos, mas que o
caminho da luta pela proteção e promoção dos direitos das mulheres ainda é urgente e
necessário.

Palavras-chave: Mulher. Direitos. Documentos.

1. INTRODUÇÃO

Atualmente, existe um contexto social político e econômico que ainda marginaliza


a mulher, que muitas ainda são discriminadas e violentadas (das mais diversas formas
violências) por serem simplesmente mulheres. Desta feita, a sociedade precisa guiar as
mais diversas ações no enfrentamento do machismo. A pesquisa em gênero é um caminho
a ser trilhado para que de fato as mulheres usufruam da vida sem esses constrangimentos e
com respeito à sua dignidade, se desenvolvendo como um dos mais diversos instrumentos
possíveis de luta feminista de combate a toda e qualquer marginalização feminina e a toda
e qualquer violência contra as mulheres.

5
Mestranda em Direitos Humanos pelo PPGDH da UFPB. Email: oliveiramelonatalia@hotmail.com
Sejam em ambientes escolares, em empresas, em sindicatos, em movimentos
sociais ou em tantos outros muitos espaços, a pesquisa em gênero carrega significados. A
pesquisa nessa área não acaba em si mesma, pelo contrário, tem se tornado a ponte para
outras novas pesquisas, outros novos estudos e mais ainda, outras novas ações
emancipatórias feministas, propagando assim a luta. Não há sentido, pois, em uma
pesquisa em gênero que não almeje lutar contra essa marginalização e violência contra as
mulheres, pois pesquisar em gênero é antes de mais nada, um ato político, ultrapassando as
fronteiras dos livros e dos marcos teóricos e alcançando os mais diversos espaços sociais
nessa busca contínua de emancipação da mulher.
Nesse sentido, um primeiro caminho cabível para a luta feminista se dá pela luta
dos direitos. A busca pelos direitos, a luta pela sua conquista é um elemento norteador para
a mulher. Perceber e estudar como os direitos das mulheres estão presentes em alguns
textos oficiais relevantes, é uma inquietação atual que vem emergindo.
Sendo assim estabeleceu-se como problema de pesquisa: Como os direitos das
mulheres se relacionam em documentos oficiais? E então como objetivo geral:
Compreender como os direitos das mulheres se relacionam em documentos oficiais. E
como objetivos específicos: apontar a ausência ou presença das mulheres e seus direitos em
documentos oficiais e relatar a importância da inclusão dos direitos das mulheres em
documentos oficiais.
O caminho para a igualdade de gênero é longo e árduo, a luta é constante. É preciso
buscar, das mais diversas formas por uma sociedade mais igualitária, mais justa, que
assegure todo e qualquer direito do ser humano, protegendo assim sua dignidade. E é nesse
sentido que o presente estudo se encaminha, uma busca por essa sociedade que viva os
Direitos Humanos, no que diz respeito a mulher e seus direitos frente a uma sociedade que
marginaliza a mulher em vários aspectos.
A presente pesquisa, visando o seu melhor desenvolvimento, acredita e se insere
nos estudos desenvolvidos pelas Ciências Sociais, pois esses estudos vêm contribuindo
para a melhor compreensão dos fatos sociais, que são dotados de provisoriedade,
dinamismo e especificidade, como nos diz Minayo (2009). Os fatos sociais, e seus
fenômenos tem como essencialidade a subjetividade, esse fator que vai aquém de números,
expectativas ou estatísticas, pois a subjetividade é que faz do ser humano ser único.
Buscando uma metodologia que melhor se inserisse nessa pesquisa a fim de
alcançar nossa inquietação, a mesma se fundamenta numa pesquisa de abordagem
qualitativa, partido da concepção de pesquisa qualitativa segundo Chizzotti (2006) quando
este nos diz que na pesquisa qualitativa têm-se o princípio que o mundo real e o sujeito
estão numa relação dinâmica, que há uma relação de mutualidade entre sujeito e objeto,
um “vínculo indissociável” entre o mundo do objeto e a subjetividade do sujeito.
Se configura como uma pesquisa também bibliográfica (GIL, 2008) a partir do
momento em que basearemo-nos em materiais já elaborados, em documentos, fundando
nossos estudos também a partir de fontes documentais. É ainda um estudo exploratório
(GIL, 2008), pois tem a finalidade inicial de levantar um conjunto de informações sobre a
mulher e os seus direitos em documentos oficiais de grande importância.
Como instrumento, se faz necessário utilizar aquele que Severino (2007) nomeia de
documentação, percebendo a importância desse material em forma de documento, na
medida que nos mostrará como os direitos das mulheres aparece nos documentos oficiais
selecionados, que são: a DUDH, o PNDH-3 e um documento oficial da Organização
Internacional do Trabalho intitulado: “Mulheres no Trabalho - Tendências 2016
[Sumário].
A análise das informações coletadas dar-se-á a partir da técnica de análise de
conteúdo (BARDIN, 1977), nas dimensões da codificação e categorização, buscando
entender se os direitos das mulheres têm aparecido nos documentos oficiais mencionados,
e se aparecem, como aparecem.

2. DESENVOLVIMENTO

No encaminhamento do presente texto em busca de melhor desenvolvê-lo, nesse


momento se faz importante a discussão acerca dos principais textos de Direitos Humanos,
os analisando na seguinte perspectiva: nesses documentos oficiais, onde está a mulher?
Qual a relevância de se encontrar nesses documentos períodos dedicados à situação da
mulher? E como tais documentos contribuem para a afirmação dos direitos das mulheres?
Assim, os estudos trilham-se nos textos oficiais de Direitos Humanos que são importantes
para essa discussão.
Inicialmente, há a necessidade de colocar que toda e qualquer referência feita à
mulher nos textos oficiais dos Direitos Humanos, é fruto das lutas das mulheres. O
movimento feminista tem grandes histórias de lutas, logo, cabe refletir que as conquistas
também nesses textos são resultado dessas lutas, são o resultado de muita reivindicação
por parte das mulheres. Como Silva (2016) coloca, esses documentos que:

servem como base para a garantia de direitos é resultado de um longo


processo de reivindicação, seja em prol da vida, da expressão de valores,
da liberdade, estejam ou não ligados a natureza do ser humano, aos
direitos naturais ou fundamentais (SILVA, 2016, p. 67).

Para que os direitos das mulheres sejam atendidos pelos documentos que discutem
os Direitos Humanos é preciso compreender a situação a qual a mulher se encontra,
situação muitas vezes de marginalização, de vulnerabilidade, e também de violência.
Dessa forma, esses documentos vêm como instrumento para proporcionar uma vida mais
digna às mulheres, como Silva (2016) nos apresenta em seu texto. Por isso destaca-se a
importância desses textos elegeram as questões dos direitos das mulheres em suas
redações, se tornando mais um aliado na luta pela dignidade do universo feminino.

2.1 A MULHER NA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS


O primeiro texto a se analisar é a Declaração Universal dos Direitos Humanos que
foi adotado pela Organização das Nações Unidas em 1948. Em um contexto pós-guerra,
com grandes sequelas negativas decorrentes às tragédias, toda a humanidade se encontrava
abalada devido aos acontecimentos. Nesse contexto surge a DUDH, uma forma que os
dirigentes encontraram de assegurar todos os direitos universais básicos ao homem, à sua
dignidade humana, sendo oficializados neste documento. O texto em sua redação é
dividido em 30 artigos. Nesses artigos se faz necessário destacar que esse documento
procurava assegurar o direito básico à uma vida digna a todo e qualquer ser humano.
No que diz respeito à mulher, aos direitos das mulheres é possível encontrar na
redação da DUDH três menções à figura feminina, todas diferentes umas das outras e
igualmente diferentes em seus significados. A primeira se encontra no segundo artigo,
segundo a ONU (1948):

todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades


proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma,
nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião
política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento
ou de qualquer outra situação (ONU, 1948, p. 2) (grifo nosso).

Como é possível perceber não há menção direta no que diz respeito ao uso da
palavra mulher, e sim a questão do gênero. Nesse texto há a intenção de igualdade de
gênero, que se constitui sim como uma conquista para as mulheres, porém ainda não se
configura como uma afirmação dos direitos das mulheres. Aqui é assegurado que homens e
mulheres têm o direito de invocar suas liberdades. No entanto, não é possível compreender
que nesse artigo há uma afirmação dos direitos das mulheres porque não há uma atenção e
um direcionamento do artigo para a situação da mulher especificamente.
Há sim um elemento de grande importância, a igualdade de gênero, que agrega e
muito à luta do movimento feminista na medida em que, como Prá e Epping (2012) dizem,
evidencia o olhar dos dirigentes em busca de políticas públicas de igualdade de gênero, e
“[…] isso permite dimensionar a capacidade de mobilização de grupos e organizações de
mulheres (capital social) e o seu potencial de inserção política” (PRÁ; EPPING, 2012,
p.47). Aqui, o espaço da mulher sendo conquistado na medida em que a questão dos
direitos iguais a ambos os sexos são assegurados. O caminho para a garantia dos direitos
das mulheres começa a ser trilhado, e é nessa direção que a análise a segunda menção à
figura feminina feita na DUDH.
Encontra-se a segunda referência à figura feminina no 16º artigo, no inciso 1 do
referido documento, onde há uma menção direta à mulher, com o uso da própria palavra
mulher, segundo a ONU:

1.A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de


constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou
religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm
direitos iguais (ONU, 1948, p.4) (grifo nosso).

Como já anteriormente no artigo 2º que a igualdade de gênero existe no texto que


está sendo estudado. O que queremos destacar neste momento no artigo 16° é o “olhar de
gênero” que emerge nessa redação, como Scavone (2008) nos traz, dando visibilidade de
fato à mulher. No momento em que o corpo do texto, para se referir à figura feminina,
evolui do uso da palavra “sexo” para o uso propriamente dito da palavra “mulher”,
identifica-se que há uma preocupação em se afirmar, e assim garantir, os direitos das
mulheres. Assim, fica claro, legível, que a mulher tem direitos, nesse caso, referindo-se aos
direitos da mulher ligados à família.
O olhar sensível que levanta-se nesse momento é o uso da palavra mulher que nos
mostra uma evolução e assim um início à questão dos direitos das mulheres. Sabe-se que
nesse caso os direitos estão relacionados ao âmbito familiar, porém, como Scavone (2008)
nos diz, os primórdios dos avanços das questões das mulheres se iniciaram com
preocupações voltadas para o espaço da família, com questões de gêneros sendo levantas e
expostas em espaços importantes. Logo, perceber o espaço da mulher na escrita de um
documento oficial que é a DUDH, nos mostra que os direitos das mulheres têm espaço e
visibilidade, mesmo existindo um longo caminho a ser trilhado.
A terceira referência à figura feminina que no texto em questão se encontra no 25°
artigo, no inciso 2. Segundo o texto original da ONU: “[…] 2.A maternidade e a infância
têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do
matrimônio, gozam da mesma proteção social” (1948, p.6)
Nesse momento do texto não se trata mais de igualdade de gênero, de direitos
iguais entre mulheres e homens. Trata-se da mulher. De questões que envolve
necessariamente só o universo feminino. Atenção para a situação analisada: um texto de
ordem oficial e importantíssimo para a história da humanidade tem a sensibilidade de
redigir e oficializar que a mulher no que diz respeito à maternidade, tem direito à “ajuda e
assistência especiais”. É uma afirmação dos direitos das mulheres, é uma visibilidade à
uma situação do universo feminino que é marginalizado, e assim um instrumento de
combate à essa marginalização. Caminha-se segundo o pensamento de Silva quando esta
coloca que: “ […] as discussões sobre os Direitos das Mulheres abrangem muitas questões,
essas giram em torno dos direitos reprodutivos a igualdade social, material, politica, […] ”
(2016, p.73). É importante sim pensar sobre a maternidade, e assim o fazendo em seu texto,
a DUDH assegura e afirma os direitos das mulheres, contribuindo para uma humanidade
que assegure uma vida digna à toda e qualquer mulher.
É importante perceber a importância da mulher no texto oficial tal como a DUDH,
mas há que se atentar para alguns elementos contextuais e pontuais. A ideia de mulher que
permeia o citado texto em questão é a mulher em contextos exclusivos relacionados à
família e a maternidade. Há que se considerar que as demais mulheres que não se
encontram nesses contextos continuam à margem da sociedade. É um elemento que precisa
de atenção, pois Dornelles (2006) “[…] antes de qualquer definição o conteúdo que
perpassa os Direitos Humanos é político” (apud SILVA, 2016, p.67), dessa forma a
mulher, naquela época, naquele contexto político-social, ainda tinha seus direitos apenas
relacionados à família e a maternidade.
Considerando o contexto no qual tal texto foi produzido, houve avanços, mesmo
que limitado, para a mulher. Pois a mesma adentra um documento que aborda os Direitos
Humanos, ou seja, a mulher passa a ser percebida como ser que precisa ter seus direitos
assegurados. E assim, a busca por afirmação dos direitos das mulheres continua para
alcançar “[…]a expansão da cidadania feminina e a equidade de gênero (PRÁ; EPPING,
2012. p.42). A DUDH, nessa perspectiva, vem a torna-se incentivadora à continuidade da
luta por expandir os espaços de afirmação dos direitos das mulheres.
2.2 A MULHER NO PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS
O segundo documento cabível para o estudo do presente texto: o PnDH-3 que foi
lançado no ano de 2010 tem dois documentos antecessores à ele, o PnDH 1 e 2 que são dos
anos 1996 e 2002 respectivamente. A terceira versão do documento da continuidade ao
engajamento da Promoção e defesa dos Direitos Humanos no Brasil. Este documento está
organizado em 6 Eixos Orientadores, subdivididos em 25 Diretrizes através de 82
Objetivos Estratégicos.
No Eixo Orientador III: Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdade, é
possível perceber o sentindo universal da promoção dos Direitos Humanos, buscando a
promoção de igualdade de direitos aos grupos que historicamente vem sendo
marginalizados,e nesse contexto há uma referência à mulher. Como é importante observar
no texto original (BRASIL, 2010):

[…] além disso, as ações afirmativas constituem medidas especiais e


temporárias que buscam remediar um passado discriminatório. No rol de
movimentos e grupos sociais que demandam políticas de inclusão social
encontram-se crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, lésbicas,
gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas com deficiência, povos
indígenas, populações negras e quilombolas, ciganos, ribeirinhos,
varzanteiros, pescadores, entre outros. (BRASIL, 2010, p. 53) (grifo
nosso).

Contemplar as mulheres como parte dos grupos que foram historicamente


marginalizados sinaliza que o texto em destaque está se propondo a combater essa
marginalização. E assim buscando a afirmação dos direitos desse grupo, logo também a
afirmação dos direitos das mulheres. Segundo Candau e Sacavino (2010), quando estes
colocam que essa visibilização aos grupos marginalizados “potencializam” esses sujeitos
os encaminhando ao empoderamento na vida cotidiana, “nos processos sociais, políticos,
econômicos e culturais” (CANDAU; SACAVINO, 2010, p.122). Um primeiro movimento
para garantir os direitos de pessoas que historicamente tiveram seus direitos negados é a
visibilidade. É por isso que no momento em que o PnDh-3 destaca a mulher no texto, há
um caminho para a afirmação dos direitos dessas, e assim uma forma de empoderá-las
tanto na dimensão individual enquanto sujeitas de direito, como na dimensão de grupo
social, valorizando e afirmando os direitos das mulheres.
O Objetivo Estratégico VI do mesmo Eixo Orientador que discorre sobre: Garantia
do trabalho decente, adequadamente remunerado, exercido em condições de equidade e
segurança. E como uma forma de ação programática, o PnDh-3 em seu texto elege, como é
possível perceber em Brasil: “[…] g) Combater as desigualdades salariais baseadas em
diferenças de gênero, raça, etnia e das pessoas com deficiência (2010, p.68) (grifo nosso).
O trabalho é mais um espaço de convivência e interação humana, logo se faz de
extrema importância discuti-lo em um texto oficial. E colocar a questão do trabalho
feminino mostra que o PnDH-3 esta se propondo, de fato, combater com as diversas
formas de desigualdades, pois como Silva (2016) nos diz o trabalho feminino é um dos
mais importante instrumento de luta das mulheres, de busca por afirmações dos direitos,
pois se configura como uma “saída do domínio patriarcal”. Destacar que homens e
mulheres devem ter igualdade de salário é uma forma de afirmação dos direitos das
mulheres, é buscar a ruptura, através desse texto formal, das desigualdades que envolvem
homens e mulheres e assim propiciar “mudanças nessa construção social” (SILVA, 2016,
p.51).
Assim, essa problematização acerca do trabalho feminino agrega ao conjunto de
referências feitas às mulheres no texto formal estudado, contribuindo para a afirmação dos
direitos dessas, na medida em que propõe novas formas de conviver em sociedade em
busca de uma humanidade mais igualitária.
No Eixo Orientador IV do PnDh-3 que está intitulado como: Segurança Pública,
Acesso à Justiça e Combate à Violência, o estudo presente se guiará no que diz respeito à
afirmação dos direitos das mulheres, na Diretriz 13: Prevenção da violência e da
criminalidade e profissionalização da investigação de atos criminosos, mais
especificamente no Objetivo estratégico V: Redução da violência motivada por diferenças
de gênero, raça ou etnia, idade, orientação sexual e situação de vulnerabilidade, que nos diz
(BRASIL, 2010):
d) Promover campanhas educativas e pesquisas voltadas à prevenção da
violência contra pessoas com deficiência, idosos, mulheres, indígenas,
negros, crianças, adolescentes, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
travestis e pessoas em situação de rua. (p.117, grifo nosso)
h) Apoiar a implementação do Pacto Nacional de Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres de forma articulada com os planos
estaduais de segurança pública e em conformidade com a Lei Maria da
Penha (Lei nº 11.340/2006) (BRASIL, 2010, p.118) (grifo nosso).

A violência contra a mulher existe, é real e tem matado muitas de nós. É


imprescindível que um documento de tamanha importância como o PnDh-3 aborde de
maneira direta este tema, pois diz respeito à um direito fundamental da mulher: a vida.
Logo é necessário que a redação do texto em questão se utilize de forma coerente, como é
o caso, de palavras de ordem (promover, apoiar) para combater essa situação de
marginalização na qual muitas mulheres se encontram. Como Candau nos diz é preciso
buscar “[…] caminhos de afirmação de uma cultura dos Direitos Humanos que penetre
todas as práticas sociais e seja capaz de favorecer processos de democratização” (2007,
p.399). Empregar essas palavras que denotam ações de combate à violência contra a
mulher se configura então como uma prática de afirmação dos direitos das mulheres,
favorecendo assim o processo de democratização da sociedade.
Esse Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres juntamente
com a Lei Maria da Penha se configura também como uma afirmação dos Direitos das
Mulheres. A partir do momento em que há políticas públicas de combate à essa violência,
há a consciência da existência acerca dessa “ordem patriarcal de gênero” que propaga uma
cultura que da lugar a violência, como Safiotti (2001) bem coloca. Então, é na perspectiva
de combate à essa ordem que estabelece desigualdades que o texto em questão vem
emergir como instrumento de enfrentamento à situação de marginalização da mulher, e
assim contribuir para afirmar os direitos das mulheres enquanto ser humano que têm
direito à uma vida digna. Proporcionar uma vida que assegure a não-violência é afirmar os
direitos das mulheres.
A inserção da mulher em textos oficiais de Direitos Humanos não se configura
como a garantia da concretização dos direitos das mulheres, porém trata-se de um início
básico para a efetivação desses direitos. Como poderia haver a luta pela efetivação de
direitos que não são descritos em textos? Logo para a afirmação dos direitos das mulheres,
um passo importante é a inserção desses em textos oficiais como os apresentados no
presente texto. Como Prá e Epping (2012) nos dizem, tratam-se de “instrumentos para a
proteção e a expansão” dos direitos das mulheres.

2.3 A MULHER NO DOCUMENTO DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL


DO TRABALHO
Continuando nessa perspectiva de observar a presença da mulher bem como dos
seus direitos em documentos oficiais, o presente estudo traz no momento um documento
oficial produzido pela OIT (Organização Internacional do Trabalho)6. A OIT é a agência
das Nações Unidas que desenvolve suas ações em busca da promoção do trabalho descente
e oportunidades iguais para homens e mulheres no que diz respeito ao trabalho, ou seja,
trata-se de um órgão oficial do trabalho7. É então pertinente para o presente texto abordar a
questão do trabalho feminino, tendo em vista que, como já foi dito anteriormente, o
trabalho se configura como o motor da luta feminista. Logo, nada mais cabível do que
buscar na OIT como a mulher e seus direitos, no que diz respeito ao trabalho, tem
emergido em documentos oficiais.
Dentre as variadas publicações da OIT, emerge a publicação: “Mulheres no
Trabalho - Tendências 2016 [Sumário]” 8. Inicialmente destacamos que trata-se de uma
publicação recente (lançado em 8 de março de 2016), única e exclusivamente relacionada
ao trabalho feminino, logo, caracteriza-se como uma conquista e uma afirmação ao direito
da mulher no trabalho. Como Candau diz que “[…] são imprescindíveis ações e processos

6
A partir deste momento usa-se a sigla OIT para se referir à Organização Internacional do Trabalho.
7
Brasil. OIT. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/content/apresenta%C3%A7%C3%A3o>. Acesso
em: 2 abr. 2016.
8
Ver em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/
wcms_457096.pdf>. Acesso em: 17 de jun. de 2016.
orientados à prevenção, à afirmação dos direitos humanos” (2009, p.67). Tal publicação
por parte da OIT se configura como processo fundamental na luta pela afirmação do direito
da mulher, pois tal documento norteia-se pela prevenção e afirmação dos direitos humanos,
na medida que percebe a marginalização da mulher em relação ao trabalho, e através desta
referida publicação busca meio de combater essa situação e assim garantir os direitos das
mulheres no trabalho.
O texto esquematiza-se da seguinte maneira: são abordados alguns temas de
conflitos da mulher em relação ao trabalho e são apresentadas estatísticas através de dados
que solidificam o texto. Por se tratar de um documento oficial e atual, alguns elementos
mostram o quanto ainda temos que avançar enquanto sociedade para se afirmar os direitos
das mulheres e assim vivenciar de fato uma sociedade democrática. Segundo o próprio
texto OIT: “[…] as disparidades de gênero na população ativa e nas taxas de emprego
diminuíram apenas marginalmente (2016, p.3).
Mesmo no século XXI nos deparamos com dados de documentos oficiais que
relevam a marginalização da mulher em relação ao espaço do trabalho. Por isso se faz
importante debater sobre o trabalho feminino, e tais discussões devem-se guiar por formas
de combater “[…] a conduta desigual nas relações de gênero e as mudanças nessa
construção social. (SILVA, 2016. p.51). Tal documento emerge como instrumento de
combate à essas estruturas sociais que ainda colocam a mulher em situação desfavorável
em relação ao homem, pois como é possível perceber no próprio texto da OIT, as
diferenças de gênero diminuíram pouco.
Situar essa diferença de gênero no trabalho faz do documento oficial em questão
um instrumento político. Trata-se não só de um texto no qual se discute a mulher e o
trabalho, mas sim uma ferramenta de luta feminista que emerge na perspectiva de: “[…]
uma transformação social, econômica, política e ideológica da sociedade” (TELES, 1999.
p.10). Tal documento vem como fortalecedor da luta pela afirmação dos direitos das
mulheres no âmbito do trabalho.
Em sua continuidade o texto aborda a questão da situação do trabalho feminino
atual, direcionando pra um elemento importante do século XXI: a informalidade no
trabalho. Tal informalidade neoliberal no trabalho que atinge o século presente respinga na
mulher de forma mais forte, e o documento nos mostra esse fator no momento em que
aborda tal temática, como observa-se no texto da OIT: “[…] a qualidade do emprego das
mulheres continua a ser um desafio: A situação no emprego e o emprego informal” (2016,
p.4).
Discutir a questão do trabalho informal feminino no século XXI mostra que a OIT
está atenta as condições que vulnerabilidade que a mulher, no que diz respeito ao trabalho,
se encontra. Como Benevides bem coloca, qualquer situação que vá de encontro ao direito
fundamental que a mulher tem no trabalho, atinge para além de sua integridade física,
“[…]atinge a sua dignidade enquanto pessoa humana” (1997, p.8). É então, na perspectiva
de promoção e igualdade dos direitos humanos no trabalho que o documento se guia,
norteando-se na busca pela defesa dos direitos da mulher no trabalho.
Buscar por afirmação dos direitos no espaço do trabalho é parte integrante da luta
feminista. Pois tal movimento se configura, como nos diz Teles, na direção de “[…] buscar
a libertação das mulheres” (1999, p.11). Libertar a mulher do trabalho informal e assim
garantir uma qualidade de emprego feminino equiparado ao trabalho masculino é
importante no processo de luta feminista, e mais uma vez tal documento é importante
nesse processo.
O documento se encaminha também na perspectiva de soluções cabíveis e possíveis
para as situações de vulnerabilidade do trabalho na qual a mulher se encontra. Como trata-
se de um documento oficial da OIT a mesma se direciona na perspectiva de fomentar ações
que combatam as situação de desigualdades sofridas pelas mulheres no espaço do trabalho.
Como é possível perceber, o próprio texto, mediante os dados recolhidos percebe que: “[…]
com as tendências atuais, serão necessários 70 anos para eliminar as disparidades salariais
de gênero” (OIT, 2016, p.9).
Diante de tais dados apresentados pela OIT se faz necessário ações que deem conta
de eliminar as diferenças entre homens e mulheres no espaço do trabalho, diferenças dentre
as quais o texto elenca a questão salarial. É preciso reconstruir os significados e as relações
no espaço do trabalho, de tal modo que após esses 70 anos previstos pela OIT as mulheres
tenham seus direitos afirmados também no trabalho. Assim, segundo Barros e Duarte
quando as mesmas trazem que: “[…] Assim, da mesma forma que a cultura nos diferenciou
em todas as partes do mundo, a mesma cultura pode nos conduzir na construção de
relações sociais horizontalizadas de gênero” (2014, p.57). O texto nos traz essa noção de
possibilidade, essa ideia de que a igualdade entre homens e mulheres pode e deve-se fazer
real, logo é necessário se direcionar por culturas, perspectivas, ações que corroborem com
esse processo.
Tais construções devem ser desenvolvidas por toda a sociedade democrática. O
texto em questão discorre sobre a situação da mulher no trabalho, porém, não o direciona
apenas às mulheres. Seu público alvo é a sociedade em geral. Desta feita, a luta pela
afirmação dos direitos das mulheres é uma luta que toda a sociedade deve estar engajada,
pois, “[…]a luta pela libertação da mulher não deveria em nenhum momento ser
desvinculada da busca de soluções dos problemas mais gerais da sociedade” (TELES,
1999. p.63). Lutar pela afirmação dos direitos das mulheres é luta por a humanidade, logo,
todos que a compõe são parte integrante e importantes desse processo.
O documento em questão também se direciona por promulgar ações de combate à
situação de marginalização da mulher no trabalho. Se encaminhando para o seu término o
texto elabora algumas medidas a serem tomadas para que a situação da mulher no trabalho
seja reconfigurada. O documento da OIT traz: “[…] O diferencial salarial entre homens e
mulheres deve ser eliminado” (2016, p.11).
A questão salarial é um elemento vigente no texto em questão. O texto transcende a
questão de descrever a situação de desigualdade e apontar os dados, e emerge para ações
imprescindíveis para erradicar tais disparidades, como a questão salarial. No espaço do
trabalho feminino a questão salarial é importante, pois é uma luta real pela qual as
mulheres passam, e seguindo na perspectiva de Silva (2016) que fala que o trabalho
feminino é um caminho para a autonomia da mulher, abordar a questão da desigualdade
salarial se faz necessário.
Na medida em que o documento em questão afirma que é preciso eliminar a
diferença salarial entre homens e mulheres, este se encaminha no processo de
desconstrução das relações que marginalizam a mulher. O texto mostra a importância de se
combater tais desigualdades no espaço do trabalho, nos mostrando que é preciso trilhar:

Caminhos de afirmação de uma cultura dos Direitos Humanos, que


penetre todas as práticas sociais e seja capaz de favorecer processos de
democratização, de articular a afirmação dos direitos fundamentais de
cada pessoa e grupo sócio-cultual, de modo especial os direitos sociais e
econômicos, com o reconhecimento dos direitos (CANDAU, 2007. p.
399).

Tal documento da OIT perpassa o caminho da cultura dos Direitos Humanos.


Contribui para a construção de uma sociedade democrática e igualitária, onde os direitos
das mulheres, em todos os espaços que a mesma pertencer, sejam assegurados, afirmados e
garantidos.
No caminho de afirmação dos direitos das mulheres, também se faz necessário uma
expansão de documentos que reconheçam a mulher e seus direitos, tais como o que
observou-se. A luta feminista é atual, é cotidiana e requer atualização também no que diz
respeito aos documentos. Pois atualmente falando os Direitos Humanos, como nos diz
Silva (2016), se apresenta de forma universal, em busca de uma vida digna a todos os seres
da comunidade humana, reconhecendo assim a humanidade como um “bem”, e infringir
esse bem viola toda e qualquer dignidade humana. Por conseguinte, cabe aos documentos
oficial futuros garantir em suas redações a preservação da nossa humanidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudou desde seus primórdios se colocou como ajudadador nas


pesquisas referente a mulher, a pesquisa de gênero. Aa luta da mulher é uma questão atual
emergente e que precisa ser sempre colocada para que se continue no caminho de
igualdade de gênero. Então, direcionar a atenção ao que diz respeito aos direitos das
mulheres se fez importante na medida em que são esses direitos presentes nos documentos
oficiais que darão condições legais para que a mulher usufrua da vida e de seus direitos. É
um primeiro passo. Que diariamente precisa ser conquistado. É uma luta constante.
Trilhou-se esse caminho através de textos oficiais dos Direitos Humanos e
percebeu-se que há textos que as mulheres são citadas e tem seus direitos preservados, tais
como a DUDH, o PNDH e a publicação da OIT referente ao trabalho feminino. Cada texto
em seu referido contexto nos mostra que a luta pela afirmação dos direitos das mulheres
não foi findada, que há muito o que se caminhar. Através de muitas lutas foi possível
inserir a mulher em textos de tamanha magnitude, porém, a luta continua, a busca por
erradicar as situações de marginalização as quais as mulheres se encontram, nos diversos
espaços, é uma tarefa atual.
Os estudos não se findam, pelo contrário, a partir desse caminho trilhado é possível
perceber que o caminho a percorrer é longo. Novas inquietaçõs, novos questionamentos,
novas lutas emergem para nós a partir desse estudo. Pois a questão da mulher se faz
cotidianamente, tanto em pesquisas científicas, como em nosso dia-a-dia.

REFERÊNCIAS

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O EMPODERAMENTO COMO PROCESSO DENTRO DAS PROPOSTAS DE
ASSISTÊNCIA AO USUÁRIO DE SAÚDE MENTAL NA REDE DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL
Sílvio A. Damasceno de Oliveira

GT: 07 – DIREITOS HUMANOS E PESSOA COM DEFICIÊNCIA

RESUMO

O presente artigo faz um levantamento de estudos sobre o empoderamento na prática dos


serviços de saúde mental no Brasil com o objetivo de refletir acerca do tema na bibliografia
nacional. Para tanto nos utilizamos de pesquisa bibliográfica com o foco na questão da atenção
psicossocial da realidade brasileira. Através de avaliação bibliográfica foi possível perceber
estas questões em revisão analítica do tema proposto. Pesquisamos artigos em base de dados e
nas referências bibliográficas da literatura estudada. Experiências de outras áreas diversas da
saúde mental, na qual o empoderamento é norte para atuação ou, de certa forma, está presente
em dispositivos associativos, foram necessários para dar relevância ao diferencial do conceito
na atenção psicossocial. Neste enfoque, percebemos um movimento de “institucionalização”
presente atualmente nos Caps. Destoando da proposta reformista inicial pela qual este serviço se
orientou para implementação: configurações de tutela, hierarquia e prevalência do modelo
biomédico no serviço de saúde mental brasileira. Ações de empoderamento ainda são escassas
no Brasil, porém o pequeno número de estudos e atuações de pesquisadores no país trazem
reflexões expressivas. Assim como pesquisas dentro dos Caps tendo o empoderamento como
norte dos estudos. Tais conhecimentos favorecem o questionamento acerca da prática diária nos
serviços de saúde mental e na revisão dos conceitos que orientam esta atuação.

Palavras-chave: Empoderamento, Reforma Psiquiátrica, Caps, Psicossocial.

INTRODUÇÃO

O ingresso da pessoa em acompanhamento psiquiátrico traz consigo todo um


estigma e uma abordagem pré-concebida do adoecer no âmbito psicológico. O
“conceito” do enlouquecer é uma construção social do sentido de loucura ocorrida no
decorrer de um processo histórico (Foucault, 1975). Tal conceito perpassa no processo
de ser de um indivíduo assim como na atuação dos profissionais de saúde envolvidos
neste processo. A reforma psiquiátrica trouxe ações e medidas para incorporar esse
olhar histórico ao atendimento na rede de assistência ao paciente de saúde mental, para
assim, possibilitar o exercício da cidadania e da autonomia por parte do paciente
psiquiátrico (Barroso, 2011). Dentre essas ações, o aspecto de empoderamento do
usuário tem se apresentado como uma possível forma do próprio serviço de se regular,
como também gerar uma maior autonomia e participação do sujeito em sofrimento
psíquico em seu processo de ingresso na rede de apoio psicossocial e nas suas decisões
do dia a dia.
No entanto o reconhecimento da participação do usuário em seu processo de
assistência ainda se encontra um tanto fragilizada no Brasil. Aspectos do
empoderamento, tais como: dispositivos de cuidado de si, ajuda mútua, defesa de
direitos, dentre outros; apresentam-se modestamente em ambientes associativos de
usuários (Vasconcelos, 2007). O tema possui escassa publicação no universo nacional.
Percebemos, também, apenas ações pontuais no que se refere a implementação do
empodaremento nos serviços de saúde mental. E, de alguma forma, parecem
negligenciados na rede de assistência psicossocial. Torna-se importante, assim, fazer um
levantamento da realidade das ações de empowerment nos locais onde o usuário
encontra o seu serviço de apoio. Para, assim, termos um recorte da realidade e para se
levantar como encontra-se este processo dentro da ação de saúde na comunidade
brasileira. No intuito de expor as problemáticas apresentadas nas pesquisas relativas a
este campo de estudo referente a atuação dos profissionais brasileiros e a contribuição
dos usuários na prática de saúde mental do país. Deste modo, para o entendimento da
noção de empowerment se fez necessário trazer o panorama da reforma psiquiátrica e
sua importância na construção deste conceito.
O presente trabalho tem como objetivo realizar uma pesquisa bibliográfica
sobre a implementação do conceito de empoderamento no cuidado aos usuários na rede
de atenção psicossocial brasileira. Para tanto analisaremos a ideia de empowerment e
sues desdobramento dentro dos CAPS a partir das publicações de referência sobre este
tema. Traçaremos um panorama do cuidado ao paciente em sofrimento psíquico nos
caps e se há implementação de aspectos do empoderamento no âmbito deste cuidado.

MÉTODO

Com base nos critérios de Noronha e Pires (2000, p. 193-195), nos propomos a
realizar uma revisão analítica do tema abordado. E para tanto realizamos uma pesquisa
na base de dados Scielo e Scholar Google sobre o objeto de estudo. Os artigos
consultados compreendiam o período de 1996 a 2015 e foram utilizados os seguintes
descritores: empoderamento, empoderamento no Brasil, psicossocial.

Em posterior leitura destes artigos, foi utilizado as referências bibliográficas


neles citadas para desenvolver uma leitura paralela ao tema para embasar a evolução das
ideias da reforma psiquiátrica e o paralelo com o conceito de empowerment. Devido
escassez de estudos sobre o tema da pesquisa bibliográfica, tendo como foco a região
brasileira e o impacto no atendimento psicossocial, esta pesquisa manual posterior foi
de fundamental importância pois abriu o leque do conhecimento sobre empoderamento
em outras áreas de estudo, consolidando, assim, o desenvolvimento do conceito no
presente trabalho.

RESULTADOS

O empoderamento no serviço de assistência psicossocial

Ideais presentes no movimento de reforma psiquiátrica estão relacionadas com


o que hoje em dia comumente se pensa no que venha as ser o empoderamento. Quando
falamos a respeito da individualidade e do compromisso do sujeito em tratamento
psiquiátrico com o seu próprio cuidado, estamos tocando tanto no assunto da reforma
como em empoderar o indivíduo.

Se pensarmos no modelo psiquiátrico como hospitalocêntrico, no qual o


tratamento do paciente se baseia em um modelo biomédico, temos um panorama onde a
subjetividade do sujeito é submetida a um saber pré-concebido sobre sua condição.
Como diz Amarente e Torre, “para ser livre, entender-se, é necessário fazer escolhas,
desejar e decidir, atributos impossíveis para um alienado” (Torre & Amarante, 2001).
Essa condição alienante do modelo asilar impedia a tomada de decisão e os processos de
individuação da pessoa em sofrimento psíquico.

A noção de empoderamento passa pela ideia de proporcionar ao usuário


condições para que o mesmo desenvolva instrumentos de autogestão e auto regulação
dentro de instituição na qual esteja se relacionando ou, ainda, consigo mesmo em seu
meio relacional. Como afirma Vasconcelos, o empoderamento “na literatura
internacional, a perspectiva é corrente em todo o campo social, da saúde e da saúde
mental, como um conjunto de estratégias de fortalecimento do poder, da autonomia e da
auto-organização dos usuários e familiares de serviços públicos nos planos pessoal,
interpessoal, grupal, institucional, e na sociedade em geral” (Vasconcelos, 2007).

Quando tomamos elementos como o modelo comunitário de tratamento


assumido como forma de cuidado adotado na reforma psiquiátrica, assim como a ideia
de que o adoecimento mental não incapacita o paciente a poder administrar seu dia a
dia, entendendo suas limitações, vislumbramos, de certa forma, os princípios que
norteia o conceito de empoderamento (Barroso, 2011).

No entanto, ente conceito também está presente em dispositivos associativos


que não necessariamente fazem parte da rede de saúde mental. A capacidade de
autorregular-se e de se autogerir já estava presente em associações de usuários tais
como os Alcóolicos Anônimos (AA) e os Centros de Valorização da Vida (CVV). No
campo mais específico da saúde mental o empoderamento possui uma implementação
distinta de outros serviços do âmbito social ou de cuidado. Surge com uma presença
mais ativa, onde possuem “abordagens e estratégias diretamente voltadas para o
trabalho profissional”, e ainda, “um conjunto de estratégias de fortalecimento do poder,
da autonomia e da auto-organização dos usuários e familiares de serviços públicos nos
planos pessoal, interpessoal, grupal, institucional, e na sociedade em geral”
(Vasconcelos, 2007). Deste modo podemos entender o papel ativo do serviço em saúde
mental no sentido de promover instrumentos nos quais o usuário do serviço possa
desenvolver sua autonomia.
Instrumentos esses voltados para a não tutela do sujeito em sofrimento
psíquico. Onde este possa ser ator social de seu cuidado e não mero agente passivo de
um saber. A relação tem de ser paltada pela quebra de hierarquia e o conhecimento,
“possibilidade de criação de subjetividade” (Torre & Amarante, 2001) empoderando,
assim, a pessoa de sua subjetividade e ação.

Panorama do cuidado ao paciente

No Brasil a implementação de planos de ação pensados para a atuação do


cuidado em saúde mental aconteceu tardiamente e é, de certa forma, uma conquista
recente das políticas públicas brasileiras para o cuidado no sofrimento psíquico. “A
implementação dos princípios do SUS – como a descentralização da gestão, a atenção
integral e a participação da comunidade – desencadeia tensos processos político-
administrativos, gerando conflitos entre recursos e responsabilidades”. (Sílva, 2005).
Uma tímida experiência de Caps em 1987.

Apesar da construção reformista das ideias antimanicomiais datarem já de mais


de 50 anos, esses conceitos só alcançaram de forma mais significativa a população com
a promulgação da lei 10.216/2001 e da Lei 10.708/2003. Trazendo normas para a
extinção dos manicômios e o auxílio a pacientes institucionalizados ao retorno do
convívio em sociedade. Portanto, a atuação que se baseia em um respeito ao sujeito em
transtorno psíquico e na capacidade de autonomia do sujeito, teve sua implementação
bastante recente, com menos de vinte anos de ações efetivas com impacto nacional.
Deste modo, a incorporação dos conceitos de autonomia e não tutela da reforma
psiquiátrica ainda se encontra em curso perante os profissionais de saúde mental.

Tal processo é bem exposto por Martinho Batista e Silva:

“Essa dicotomia se desdobra em outra: entre aqueles que


“atendem” e aqueles que “fazem reunião”. Tendo em vista a
“enxurrada” de encaminhamentos ao serviço e a “tomada de
responsabilidade pelo território” como diretriz assumida pelos CAPS,
o serviço optou por tomar esse encargo em conjunto com os demais
serviços da rede de saúde, procurando engajá-los nos atendimentos
aos pacientes menos graves por meio de reuniões (IFB, 2003)”.
(Silva, 2005).

Vemos então, tanto a dificuldade dos profissionais em implementar as ideias


como práticas efetivas para atender à demanda, assim como a dissonância das políticas
de rede de assistência em saúde com relação ao modelo de serviço ofertado nos CAPS.
A falta de capacitação dos profissionais deste serviço dificulta a disseminação de ações
de desinstitucionalização. Apesar de se ter instrumentos de trabalho tais como o Plano
Individual de Atendimento (PIA) e os Técnicos de Referência (TR) que favorecem o
trabalho da autonomia do usuário, as divergências entre o entendimento teórico e as
dificuldades de implantar uma política pública acabam, por vezes, com ações de
desinstitucionlização de CAPS (Martinhago & Oliveira, 2015). E tais instrumentes,
voltados para um projeto articulado pelo usuário junto com a equipe, passa, muitas
vezes, como uma ferramenta de criação de uma “plano” para a pessoa em sofrimento
psíquico no qual ela faz parte, mas não atua. Passa a pactuar ou a reproduzir o estigma
de adoecido. Em uma maneira onde seu sofrimento é de ordem simplesmente particular
e não integrante de um ambiente coletivo com expressão subjetiva também no território.

Antes reproduzido em confinamento nos manicômios, a tutela atual presente


em boa parte dos Caps se reproduz em ações de poder sobre os usuários. Tanto em
forma de organização do serviço a partir da perspectiva dos técnicos, como no foco do
tratamento medicamentoso em detrimento de ações terapêuticas, ou na tomada de
decisões coletivas dependendo do aval da equipe profissional da instituição.

Com tudo isso e com as ações políticas brasileiras muito frágeis a consolidação
de uma atuação coerente dentro desta prática com este cenário se torna alvo fácil de
conduções equivocadas do ambiente de cuidado. Abrindo margem para novas
configurações de tutela do usuário e confinamento da pessoa em sofrimento psíquico.
As ações “técnicas” dentro das instituições de saúde mental passam a ter um caráter de
poder, limitando ou cessando as atitudes autônomas ou espontâneas dos indivíduos que
acessam o serviço de saúde. O lugar de parceiro do cuidado e mediador de conflitos,
características do profissional desta área de conhecimento, passa a se apresentar como
um “gestor de vidas” que atua “na direção da desarticulação e do enfraquecimento desse
coletivo”(Figueiró & Dimenstein, 2010).

DISCUSSÃO

Implementação de aspectos do empoderamento no âmbito do cuidado

Dentro deste cenário podemos vislumbrar que a expressão do empoderamento


é escassa. A atual situação de institucionalização reforçada aos usuários pelos Caps,
como apresenta Martinhago e Oliveira (2015) e Figueiró e Dimenstein (2010), sofre
uma necessidade de revisionismo acerca dos princípios da reforma psiquiátrica.

Se faz importante analisar como a tutela sobre a vida do usuário ainda opera
nos serviços de saúde mental. Compreender como essa construção de subjetividade
opressora é retroalimentada em uma cadeia de significados criados e refeitos dentro da
sociedade e do território. Tendo dentro do Caps como mais um reprodutor dos ideais de
instituições e do capitalismo em si. Para então pensarmos em elementos de
empoderamento junto as práticas de cuidado as pessoas em sofrimento psíquico. Tais
elementos necessitam deste olhar aberto e receptivo do sujeito que não se evidencia em
relações de poder estabelecidas. Pois como questiona Dimenstein e Alverga (2006) “(...)
a ideia de reabilitação traz em si concepções ligadas à institucionalização da loucura, à
norma, à razão, ao sujeito autônomo, à identidade e cidadania, enfim, promessas
lançadas na constituição das sociedades modernas que destoam do
desinstitucionalizar?”, deste modo, ao ingressar no serviço de saúde, as práticas lá
estabelecidas já estariam estigmatizando o sujeito a uma prática de poder, limitando-o a
uma aceitação e corroboração dos supostos cuidados.
Ainda segundo Dimenstein e Alverga (2006) deve-se ter uma postura que
possibilite o encontro, aspecto antagônicos da tutela:

“Portanto, é um processo de desinstitucionalização do


social, do nosso apego às formas de vida institucionalizadas,
onde é preciso produzir um olhar que abandona o modo de ver
próprio da razão, abrir uma via de acesso à escuta qualificada
da desrazão, e considerar outras rotas possíveis que possam
não apenas lutar contra a sujeição fundante da sociabilidade
capitalista, mas também instigar a desconstrução cotidiana e
interminável das relações de dominação”.

Partindo desta proposta de atuação expressa por Dimenstein e Alverga (2006)


frente à problemática do cuidado junto ao usuário em saúde mental, podemos pensar em
estratégias de empoderamento dentro destes serviços, tais como: o cuidado de si, ajuda
mútua, advocacy e recovery (Vasconcelos, 2007). Tais elementos se referem a
dispositivos associativos de usuários e familiares, assim como grupos de ajuda onde se
possibilite a troca de experiências. Também estão ligados a busca por direitos e pela
“recuperação” – uma expressão, no sentido expresso pelos usuários na pesquisa
realizada por Vasconcelos (2007), como “um processo pessoal e coletivo de mudanças
que pode levar a uma vida com satisfação, desejo e participação social, mesmo com as
limitações associadas ao transtorno”. Numa clínica pensada para o acolhimento, onde se
pode expressar o desejo do sujeito e ter uma relação de reflexão sobre seu tratamento
(Figueiró & Dimenstein, 2010) se empoderando do espaço no qual possa criar
possibilidades de vivências e experiências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo como base os artigos aqui apresentados podemos perceber na atuação do


Caps um distanciamento dos princípios de não tutela e do respeito a autonomia do
usuário proposto pelo movimento da reforma psiquiátrica. Foi possível evidenciar que
este distanciamento também não é uma norma. A falta de capacitação profissional, as
políticas públicas desconectas e a busca massificada pelo serviço favorecem este
cenário. Incrementada pela desconexão das ações e da própria insuficiência da rede do
sistema de saúde. Atividades técnicas que possibilitem o empoderamento do usuário são
implantadas em Centros de Atenção Psicossocial, como demonstrado por Martinhago e
Oliveira (2015), e, mutias vezes, tomam uma forma de manutenção do status quo da
equipe técnica, dificultando a expressão da individualidade da pessoa em cuidado e se
deslocando do conceito de autonomia.

Nos trabalhos apresentados por Presotto, Delgado e Vasconcelos (Presotto,


Delgado & Vasconcelos, 2013; Vasconcelos, 2007) vimos aspectos pouco definidos de
práticas de empoderamento em processos associativos e mais delineados em instituições
de saúde mental e serviço social. Nestes últimos, temos a ideia de empoderar como
proposta definida de trabalho dentro do serviço, portanto com características mais
nítidas. Porém, são práticas esparsas. Inclusive ligadas a projetos em desenvolvimento,
tais como piloto ou de pesquisa.

A implementação de uma prática voltada para empoderar o usuário dentro do


serviço de saúde mental perpassa por uma avalição dos processos descritos por
Vasconcelos (2007). Criando um tecido de ideias posicionados para o encontro e a
autonomia. Seguido por reconsiderações do papel do profissional neste espaço. Atento
para o que Alverga e Dimenstein (2006) relatam como “desejo de manicômio”, para que
a ação de empoderaramento seja uma construção do encontro na coletividade e não
mera reprodução de um saber pré-estabelecido numa escala de poder e opressão.

REFERÊNCIAS

Alverga, A. R. & Dimenstein, M. (2006). A reforma psiquiátrica e os desafios


na desinstitucionalização da loucura. Interface – Comunic, Saúde, Educ., v.10, n.20,
p.299-316.
Barroso, S. M. (2011). Caminhada histórica pela saúde mental. In Barroso, S.
M. (Org.) Vivências em saúde mental: Teoria, Práticas e Relatos (pp. 19-29). Curitiba:
Juruá.

Figueiró, R. de A., Dimenstein, M. (2010). O cotidiano de usuários de CAPS:


empoderamento ou captura? Fractal: Revista de Psicologia, v. 22 – n.2, p. 431-446,
Maio/Ago.

Foucault, M. (1975). Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Zahar.

Martinhago, F. & Oliveira, W. F. (2015). (De)institucionalização: a percepção


dos profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial de Santa Catarina, Brasil. Saúde
Soc. São Paulo, v.24, n.4, p.1273-1284.

Noronha, D.P.; Ferreira, S. M. S. P. Revisões de literatura. In: Campello, B.


S.; Condón, B. V.; Kremer, J. M. (orgs.) Fontes de informação para pesquisadores e
profissionais. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

Presotto, R. F., Silveira, M., Delgado, P. G. G., Vasconcelos, E. M. (2013).


Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em
saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 18(10): 2837-2845.

Silva, M. B. B. (2005). Atenção Psicossocial e Gestão de População: sobre os


discursos e as práticas em torno da responsabilidade no campo da Saúde Mental.
PHYSIS: Ver. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(1):127-150.

Torre E. H. G., & Amarante P. (2001). Protagonismo e subjetividade: a


construção coletiva no campo da saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 6 (1):73-85

Vasconcelos, E. M. (2007). Dispositivos associativos de luta e empoderamento


de usuários, familiares e trabalhadores em saúde mental no brasil. Vivência, n.32,
p.173-206.
O DIREITO DO DISCENTE SURDO: reflexões acerca da influência do intérprete
de Libras na sua aprendizagem

Rayssa Feitoza Felix dos Santos 1

GT: 07 - Direitos Humanos e Pessoa com Deficiência

RESUMO
Este trabalho tem como finalidade promover uma reflexão sobre a aprendizagem do
estudante surdo e a influência que o profissional tradutor e intérprete de língua de sinais
exerce sobre esse processo de aprendizagem, tendo em vista os direitos que foram
conquistados pela pessoa surda. Abordamos sobre osdireitos inerentes a todos os seres
humanos, e também sobre os direitos específicos da pessoa surda que proporcionam um
melhor acesso à educação, considerações acerca da aprendizagem e do profissional
tradutor e intérprete de Libras. A metodologia escolhida pode ser classificada
comoqualitativa,e os procedimentos metodológicos utilizadosfoi análise documental e a
coleta de dados foi feita através de questionários aplicados aos sujeitos envolvidos no
processo que a se refere o presente trabalho. Concluímos através da pesquisa realizada,
que o tradutor e intérprete da língua brasileira de sinais, no contexto educacional, pode
influenciar positiva ou negativamente na aprendizagem do discente surdo por diversos
motivos.
Palavras-chave: Direitos humanos.Aprendizagem. Surdo. Intérprete.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe uma reflexão sobre necessidades e direitos da pessoa


surda relacionados à sua aprendizagem, além deinvestigar a influênciaque o intérprete
de Libras exerce nesse processo.

O tema da pesquisa “O direito do discente surdo: reflexões acerca da influência


do intérprete de Libras na sua aprendizagem”, foi escolhido a partir da percepção de
dificuldades na aprendizagem de discentes surdos devido à falha do intérprete de Libras
que os acompanhava.

1
Tradutora e Intérprete de Libras da Universidade Federal de Pernambuco – Centro Acadêmico
do Agreste – UFPE/CAA, Pedagoga pela FUNESO, Integrante do Núcleo Setorial de Acessibilidade –
NACE – UFPE/CAA, rayyssa.felix@gmail.com
A pesquisa sobre os intérpretes da língua brasileira de sinais é recente, este
profissional teve sua profissão regulamentada ao ser sancionada a Lei nº
12.319/10.Constâncio e Dias (2012, p. 2), afirma que “apesar do atual reconhecimento
do intérprete de Libras, são poucas as pesquisas sobre esse novoagente social, condição
que define a importância de se investigar como está ocorrendo a atuação desse
profissional”. Portanto, esta pesquisa poderá contribuir com informações relevantes para
auxiliar instituições de ensino que necessitem do trabalho do tradutor e intérprete de
Libras, pois aprofunda os conhecimentos sobre este tema, ainda pouco pesquisado, e
que se encontra num campo que está em constante crescimento. Sendo assim, as escolas
poderão ter conhecimento do que avaliar num intérprete, como acompanhá-lo, e o
estudante surdo terá seu direito garantido, por meio da atuação de um profissional bem
qualificado.
Diante dessas considerações, nossa investigação tem como objetivo geral
discutir como ocorre a influência que o profissional tradutor e intérprete de Libras
exerce sobre a aprendizagem do estudante surdo, tendo em vista os direitos
conquistados pela pessoa surda. Assim, traz como objetivos específicos identificar a
conquista de direitos das pessoas surdas, que as auxiliam na participação ativa em seu
processo de aprendizagem; identificar as características e habilidades necessárias a um
intérprete, bem como suas limitações,e investigar o papel deste profissional no ambiente
educacional.

Com a finalidade de contemplar os objetivos deste trabalho, a pesquisa realizada


pode ser classificada como qualitativa; e os procedimentos metodológicos utilizados
para o presente trabalho, foram análise documental e questionários.

DIREITOS HUMANOS– direitos de todos

Fazemos parte de uma sociedade democrática que defende a igualdade de


direitos para todos os indivíduos. Em seu Artigo I, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, promulgada na Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de
1948,afirma que“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos
[...]”.E a educação é apresentada na Declaração, como um meio para que os objetivos
do documento sejam alcançados.

A Constituição Federal, de 1988, determina no artigo 6º, que a educação é um


direito social. E em seu artigo 205 afirma que “a educação é um direito de todos [...]”.
Portanto, independente de possuírem ou não limitações, o direito à educação deve ser
efetivado plenamente para todos. Segundo a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, artigo II:

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades


estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra
condição.(Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo II, grifo nosso)

O termo “todo ser humano” inclui também pessoas que apresentam necessidades
específicas para realizarem algo. Há pessoas que apresentam dificuldades em enxergar
objetos ou seres que estejam a certa distância, e precisam de óculos ou lentes que o
ajude a superar esta limitação. Outras limitações ocorrem por um período determinado
de tempo, como é o caso de gestantes, idosos, ou um indivíduo qualquer que tenha se
acidentado e que apresente dificuldades de locomoção ou para subir escadas.Ou seja,
todos nós estamos sujeitos a, em algum momento, apresentar uma necessidade
específica, seja de locomoção, visão, audição, ou qualquer outra.
No caso do educando com deficiência, este tem direito de acesso às mesmas
oportunidades de aprendizagem que os demais estudantes. Porém, nesse processo de
ensino e aprendizagem, o discente com deficiência possui suas
especificidades.Deixando de lado as necessidades relacionadas à acessibilidade física,
que diz respeito à estrutura dos prédios e ambientes da escola, discutiremos
exclusivamente sobre as necessidades que o discente surdo apresenta para incluir-se, de
fato, no processo de ensino e aprendizagem.

APRENDIZAGEM

Para que a aprendizagem seja uma realidade nas salas de aulas, e sobretudo na
vida dos estudantes, é necessário cuidado para que o objeto de conhecimento não seja
armazenado à estrutura cognitiva do educando de forma literal, arbitrária e sem
significado, o que segundo Ausubel (2003), configura uma aprendizagem mecânica.
Em contrapartida, ao tratar da aprendizagem significativa, Rogers (1988), a
entende como uma aprendizagem que é mais do que um ajuntamento de fatos e que
deve provocar uma modificação, seja no comportamento, nas atitudes, na personalidade
do sujeito, ou na orientação futura que este escolherá. Uma aprendizagem penetrante,
que não se limita ao acúmulo de conhecimentos, mas que penetra profundamente em
todas as partes da sua existência.
Assim, faz-se necessário promover um ensino que leve os educandos a participar
ativamente de seu processo de aprendizagem, refletindo e designando um sentido
pessoal ao novo conhecimento. De acordo com Santos (2008), aprendizagem
significativa é aquela que ocorre ao surgir um sentido pessoal por parte de quem
aprende, o que desencadeia uma atitude pró-ativa que tenta desvendar o novo e
(re)construir conceitos que ampliam cada vez mais a habilidade de aprender.

Para o conteúdo estudado conferir sentido ou significado, é importante


relacioná-lo ao conhecimento prévio do estudante. Segundo Ausubel (2003), a
aprendizagem é muito mais significativa à medida que o novo conteúdo é incorporado
às estruturas de conhecimento de um aluno e adquire significado para ele a partir da
relação com seu conhecimento prévio.

Portanto, docentes devem se preocupar em fazer com que a aprendizagem de


seus alunos sejaa mais significativa possível, levando-os à reflexão e açãodiante do
conhecimento adquirido, fazendo-os “aprender a aprender”, expressão explorada por
Novak (2000); o professor precisa, então, facilitar à quebra das barreiras encontradas
para que essa aprendizagem ocorra.

INTÉRPRETE DE LIBRAS: Necessidade do discente surdo torna-se direito

A maior barreira encontrada pelas indivíduos surdos é a comunicacional. Eles


possuem e utilizam uma língua que a maioria das pessoas que os cercam, não conhece.
Sendo, então, necessária a presença e atuação de um tradutor e intérprete de
Libras/língua portuguesa. Duas ações favorecem a visibilidade do intérprete como um
profissional: a participação do surdo na sociedade e o reconhecimento da língua de
sinais como meio oficial e legal de comunicação.Segundo Quadros (2004 p. 12):
A participação de surdos nas discussões sociais representou e representa a
chave para a profissionalização dos tradutores e intérpretes de língua de
sinais. Outro elemento fundamental neste processo é o reconhecimento da
língua de sinais em cada país. À medida em que a língua de sinais do país
passou a ser reconhecida enquanto língua de fato, os surdos passaram a ter
garantias de acesso a ela enquanto direito linguístico. (QUADROS, 2004 p.
12)

O reconhecimento da língua de sinais no Brasil ocorreu a partir da Lei nº 10.436,


de 24 de abril de 2002, que determina em seu artigo 1º, que a Libras é reconhecida
como meio legal de comunicação e expressão; e foi uma conquista da comunidade
surda, tornando-se um marco para o processo educacional, assim como a oficialização
profissional do tradutor intérprete de Libras.
No ambiente escolar,esse profissional faz a intermediação na comunicação entre
o discente surdo e os demais integrantes da escola. Segundo Quadros (2004, p. 60),“o
intérprete especialista para atuar na área da educação deverá terum perfil para
intermediar as relações entre os professores e os alunos,bem como, entre os colegas
surdos e os colegas ouvintes”.Assim, podemos afirmar que otradutor e intérprete de
língua de sinais participa diretamente no processo de ensino aprendizagem que envolve
estudantes surdos.
Outro dispositivo legal criado para assegurar direitos à pessoa surda, foi o
decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que trata, entre outras ações, sobre a
inclusão da Libras como disciplina curricular, o uso e da difusão da Libras e da língua
portuguesa para oacesso das pessoas surdas à educação, a formação do tradutor e
intérprete de Libras - língua portuguesa e a garantia do direito à educação das pessoas
surdas oucom deficiência auditiva.
Além disso, em 2010 foi aprovada a Lei nº 12.319 que regulamentou a profissão
de tradutor e intérprete da Libras, estabeleceu suas obrigações e atribuições, além de sua
formação mínima em nível médio.Com uma legislação específica para o tradutor e
intérprete de Libras, mais um passo foi dado para a consolidação desse profissional,
além de torná-lo reconhecido, não apenas como colaborador na comunidade surda, mas
como verdadeiro profissional, que deve buscar aperfeiçoamento, técnica, estudo e
conhecimento.
A elaboração e aprovação de leis que determinação a execução de ações que
visam efetivação da inclusão é um passo muito importante e significativo, porém, não é
tudo. Sabe-se que existem dificuldades na prática que contribuem para o atraso desta
concretização. Sobre esta realidade, na área educacional, Glat (2011, p. 1 apud
ALMEIDA, 2012, p. 39), confirma que:
[...] não basta que uma proposta se torne lei para que a mesma seja
imediatamente aplicada. Inúmeras são as barreiras que impedem que a
política de inclusão se torne realidade na prática cotidiana de nossas escolas.
Entre estas, a principal, sem dúvida, é o despreparo dos professores do ensino
regular para receber em suas salas de aula, geralmente repletas de alunos com
problemas de disciplina e aprendizagem, essa clientela. (GLAT 2011, p. 1
apud ALMEIDA, 2012, p. 39)

Em suma, o tradutor e intérprete de Librasé um profissional de extrema


relevânciano processo de ensino e aprendizagem de estudantes surdos, pois promove a
comunicação entre pessoas, que sem este suporte teriam enorme dificuldade em
relacionar-se e torna possível para o discente surdo o acesso aos conteúdos em sua
língua. Todavia, apenas ter um intérprete de Libras na sala de aula, garante que o
estudante surdo está de fato incluído? Será que, de alguma forma, a atuação deste
profissional pode influenciar na aprendizagem do discente surdo? Analisaremos isso
através das respostas obtidas nos questionários aplicados.

METODOLOGIA

Para contemplar nosso objetivo geral que é discutir como ocorre a influência que
o profissional tradutor e intérprete de Libras exerce sobre a aprendizagem do estudante
surdo, tendo em vista os direitos conquistados pela pessoa surda, utilizamos a pesquisa
qualitativa.Segundo Minayo (1995, p. 21-22):
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se
preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser
quantificado, ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças, valores e atitudes. O que corresponde a um espaço mais
profundo das relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 1995, p. 21-22)
Quanto aos procedimentos metodológicos,foram utilizados para o presente
trabalho, análise documental, e questionáriosaplicados a estudantes surdos, intérpretes
de Libras e professores de discente surdoe professor surdo.
Na pesquisa qualitativa, a análise documental constitui uma técnica importante,
seja complementando informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos
novos de um tema ou problema (LUDKE; ANDRÉ, 1986).
O questionário pode ser definido, segundo Gil (2008, p. 121), como:
(...) a técnica de investigação composta por um conjunto de questões que são
submetidas a pessoas com o propósito de obter informações sobre
conhecimentos, crenças, sentimentos, valores, interesses, expectativas,
aspirações, temores, comportamento presente ou passado etc.

Os questionários aplicados, visam encontrar informações vindas de pessoas que


participam do processo relacionado ao tema. Posteriormente as respostas encontradas
são confrontadas com o que afirmam os teóricos.
De acordo com Ludke e André (1986), para realizar uma pesquisa é necessário
um intenso e profundotrabalho, é preciso que aja um confronto entre os dados, as
evidências, as informações, coletas sobre o assunto e o conhecimento teórico sólido
adquirido durante a investigação. Isso geralmente acontece a partir do estudo de um
problema que surgiu da curiosidade e necessidade do pesquisador em busca de
respostas.

Nossos questionários foram realizados com os seguintes sujeitos, 1 (um)


discente surdo, 3 (três) de seus professores e 3 (três) intérpretes que já atuaram/atuam na
turma deste e 1(um) professor surdo. A partir dos dados coletados, elaboramos tabelas
para análise das respostas dos sujeitos. A pesquisa foi realizada em duas instituições
federais de ensino, sendo uma na cidade de Belo Jardim e a outra em Caruaru – PE.
Por questões éticas os participantes da pesquisa não serão nomeados, mas,
citados de acordo com o grupo no qual fazem parte, de forma sequencial. Exemplo:
intérprete 1, intérprete 2 e professor 1, professor 2.

RESULTADOS E ANÁLISES
Para compreender a influência do TILS (tradutor e intérprete de língua de
sinais)na aprendizagem do discente surdo é preciso avaliar como ele é visto pelos
professores que atuam juntamente com ele, bem como pelos discentes surdos e extrair
algumas informações dos próprios intérpretes.

Tabela 1 – Quando questionados sobre a importância do intérprete.


PROFESSORES RESPOSTAS
Professor 1 Este profissional é importantíssimo para o contexto de inclusão.
Professor 2 Facilita o diálogo entre o docente e o discente.
Professor 3 Fundamental no contexto de inclusão do aluno com deficiência.
Fonte: o autor, 2014. (Grifo nosso)

No presente questionário fica evidente que as respostas dos professores


apresentam semelhança. Dois dos professores afirmam que o intérprete é importante,
enquanto o outro concorda, enfatizando em qual aspecto encontra-se essa
importância.Sob o olhar do discente surdo, o intérprete é um profissional necessário
para que a escola seja considerada inclusiva, e ele “é de grande importância, pois só
com a presença do intérprete de LIBRAS, o aluno surdo poderá acompanhar as aulas”.
Verifica-se então que não há dúvidas sobre a necessidade e importância deste
profissional no processo de ensino e aprendizagem. Tanto docentes como discentes
percebem que este profissional é peça fundamental para que o conhecimento chegue ao
aluno surdo.Porém, será que apenas ter um intérprete de Libras em sala é suficiente para
garantir que o estudante surdo terá acesso aos conteúdos de forma eficiente? SÁ (2011,
p. 4) afirma que “a inclusão escolar no Brasil parece ser compreendida como a aceitação
da criança surda e seu intérprete em sala de aula, como se mais nenhum outro cuidado
ou reflexão se fazem necessários.”
A pesquisa mostra que alguns problemas podem surgir na interpretação
educacional. Será que estes problemas afetam a aprendizagem dos estudantes
surdos?No contexto de ensino e aprendizagem no ambiente escolar, são encontradas
inúmeras dificuldades. E quando há a presença de discentes surdos essa realidade não é
diferente. Porém, essas dificuldades geralmente ficam à margem das reflexões e
avaliações feitas acerca da educação.SÁ (2011, p.4) afirma que “há uma falsa aparência
de que a inserção da criança surda ocorre sem problemas, mas, dando voz aos
intérpretes e aos surdos, é possível identificar dificuldades e insatisfações que parecem
passar despercebidas ou serem negadas.”
Em concordância com essa afirmação, várias foram as dificuldades relatadas
pelos intérpretes nas pesquisas. Inclusive, alguns desses problemas foram encontrados
nos discursos de todos os intérpretes entrevistados, percebendo-se que as dificuldades
aqui relatadas são dificuldades não de um intérprete isoladamente, mas dificuldades em
comum. E essas serão aqui pontuadas.

 Falta de aceitação de mais um profissional, o TILS.


No campo comportamental, algo que precisa de mudança na concepção dos
intérpretes é a “aceitação” da equipe em ter um novo profissional trabalhando em
conjunto.

Tabela 2 – Quando questionados sobre as dificuldades encontradas na interpretação educacional.


INTÉRPRETES RESPOSTAS

Intérprete 1 Os professores se sentiam incomodados com a minha presença, pois


achavam que eu estaria ali para analisar sua metodologia de ensino.
Intérprete 2 Os professores estranham mais um profissional com eles em sala de
aula.
Fonte: o autor, 2014.

Em consonância com as afirmações dos intérpretes, SÁ (2011, p. 3)


acrescenta:“Geralmente professores sentem como se seu espaço profissional tivesse
sido invadido, sentem-se incomodados com a relação mais intensa do estudante com o
intérprete que com ele próprio.” (Grifo nosso)

 Definição do papel do intérprete


Este problema revela que o papel dos intérpretes ainda não está bem definido
pelas pessoas envolvidas no processo de ensino e aprendizagem.
Tabela 3 – Quando questionados se o papel do TILS está bem definido e compreendido pelos professores.
INTÉRPRETES RESPOSTAS

Intérprete 1 Muitos professores jogam para o intérprete a responsabilidade de ser


professor de surdo.
Intérprete 2 Na verdade, (muitas vezes) o papel do TILS não está definido
claramente nem para ele próprio.
Intérprete 3 Professores, coordenadores, gestão escolar, todos devem compreender
a função do intérprete para que este possa realizar seu trabalho de
forma plena.
Fonte: o autor, 2014.

É unânime a percepção de que embora haja a Lei nº 12.319, anteriormente


citada, que trata exclusivamente da profissão do TILS, na prática o papel do intérprete
ainda está em processo de consolidação. Não é uma profissão ainda bem compreendida
pelas instituições que dela necessita.
Concordando que ocorre uma falta de definição sobre o desempenho do
intérprete, BELÉM (2010, p.19) explana:
O intérprete educacional quando chega à sala de aula para trabalhar, depara-
se com essa problemática advinda do senso comum, a respeito de como deve
ser seu desempenho e, geralmente fica dividido em atender ao aluno, ou em
acompanhar o ritmo imposto pelo professor ou pela escola. (BELÉM, 2010,
p.19)
Em confronto com o comportamento do intérprete apresentado pela autora,
temos a resposta de intérpretes entrevistados, que afirmam que o próprio intérprete deve
posicionar-se e esclarecer seu real papel no ambiente escolar.

Tabela 4 – Ainda quando questionados se o papel do TILS está bem definido e compreendido pelos
professores.
INTÉRPRETES RESPOSTAS

Intérprete 1 Quando o profissional TILS chega em uma escola ou qualquer


instituição de ensino, independente do nível de escolaridade cabe a
ele se posicionar e esclarecer o papel de sua função. Não aceitando
atividades de atribuições pedagógicas e didáticas coerentes aos
docentes, nem exercendo funções e ações cabíveis ao discente surdo.
Intérprete 2 Mas sobre essa (in)definição do papel do intérprete, cabe a ele próprio
– já que é conhecedor de suas atribuições – expor aos professores sua
função. Até porque essa é uma realidade nova para os docentes.
Fonte: o autor, 2014.

Entretanto, o fato é que o papel deste profissional precisa ser claramente


compreendido por todos que o cerca e para isso é preciso estudo e reflexão. Partilhando
deste pensamento Lacerda (2006, apud BELÉM, 2010, p.19) contribui:
As questões acerca do papel do intérprete educacional, do seu agir, indicam
que é preciso intensificar os estudos nesse sentido, na reflexão de um melhor
aproveitamento desse profissional no espaço escolar junto ao alunado surdo.
(LACERDA, 2006, apud BELÉM, 2010, p.19)

No entanto, a pesquisa detectou que essa falta de compreensão sobre o papel do


intérprete na área educacional não é simples, pois gera outro problema. Este será
apresentado a seguir.

 Acúmulo de funções
Na pesquisa realizada, intérpretes ressaltaram que outras atribuições lhes são
propostas a serem executadas e um intérprete destacou 11 (onze) dessas atribuições
conferidas ao intérprete que está inserido neste contexto confuso.
Tabela 5 – Quando solicitados a comentar se o papel do TILS está bem definido e compreendido pelos
professores.
INTÉRPRETES RESPOSTAS

Intérprete 1 (...) Muitas atribuições são dadas a este profissional, como por
exemplo: Primeiro deles é o de ensinar ao surdo a língua portuguesa
como segunda língua. Em segundo, o ensino da própria língua de
sinais (...). E em terceiro, ensinar a língua de sinais aos ouvintes (...).
Em quarto, constatou que o intérprete também é responsável pela
adequação curricular (...). Em quinto, participar do planejamento das
aulas e como sexto papel, procurar a integração junto com o professor
regente (...). Em sétimo lugar o intérprete deve orientar habilidades de
estudo dos alunos surdos (...). Oitavo papel o de estimular a
autonomia deste aluno. Em nono, (...) estimular e interpretar a
comunicação entre colegas surdos e ouvintes. Em décimo, o intérprete
deve utilizar a comunicação multimodal, ou seja, usar diversos canais
de comunicação para garantir a compreensão de significados. Por
último, em décimo primeiro, o intérprete deve promover a tutoria,
orientando o surdo na organização de suas atividades.
Intérprete 2 Quase sempre as pessoas que coordenam, e educadores por não
entender o papel dele (do intérprete) acabam querendo atribuir outras
atividades a este profissional.
Fonte: o autor, 2014.

Percebe-se nestes relatos a urgência em definir-se e compreender-se a função do


intérprete de Libras para que este profissional possa realizar seu trabalho de maneira
completa e sem acréscimo indevidos de atribuições. A respeito do que explanaram os
intérpretes, concorda SÁ (2011, p.3):
Dificultando ainda mais, o papel do intérprete educacional está pouco
delineado. Verifica-se que o intérprete em sala de aula assume uma série de
funções que o aproximam muito de um educador: isso o distância do papel
costumeiro de tradutor/intérprete e gera polêmicas e incômodos. (...) Os
intérpretes sentem-se cobrados para além de sua função de intérprete... Ora,
cabe ao professor corrigir, elogiar, conferir as produções, questionar, todavia
geralmente o professor parece delegar ao intérprete a responsabilidade pela
aprendizagem do aluno surdo.

 O (des)conhecimento da Libras pela equipe escolar


Não há melhor pessoa a ser questionada sobre isso, que o próprio discente surdo.
Tabela 6 – Quando questionado sobre como é sua interação com os colegas e professores.
DISCENTE RESPOSTA
Discente 1 Boa, mas acho que todas as escolas deveriam oferecer o curso de
LIBRAS para todos alunos e professores.
Fonte: o autor, 2014.
Pode-se extrair das entrelinhas da resposta do discente surdo entrevistado o
sentimento de necessidade de comunicar-se diretamente com outros sujeitos, sendo
essencial para isso, que professores e estudantes ouvintes saibam se comunicar por meio
da Libras. Em consonância, afirma Reily (2008, p.125,apud ALMEIDA E VITALINO,
2012, p. 4):
[...] mesmo na escola que conta com um intérprete, com uma sala de
recursos, com serviço e apoio de professor de educação especial ou professor
itinerante, é de fundamental importância que o aluno sinta que seu
professor está se esforçando para se aproximar dele, tentando encontrar
maneiras de interagir com ele. O professor também pode intermediar a
aceitação do aluno pelos outros alunos, para que ele se sinta parte da classe.
Na nossa sociedade, a interação se dá mediada pela linguagem. Não
basta uma aproximação física. (REILY, 2008, p.125 apud ALMEIDA E
VITALINO, 2012, p. 4, grifo nosso)

Porém, diferente da necessidade expressada pelo discente e explicada por Reily,


a pesquisa revela que todos os professores que participaram não têm conhecimento
sobre Libras.Em meio a este cenário conclui-se que falta conhecimento da Libras na
formação inicial e continuada dos professores, e que deveria haver na equipe
pedagógica um profissional preparado para dar as orientações necessárias, capacitar
professores, gestores, coordenadores, e demais constituintes da esfera escolar, para que
saibam como agir diante das especificidades apresentadas pelos discentes surdos e,
sobretudo, para viabilizar a aquisição desta língua pelos integrantes (funcionários e
estudantes) da escola.

 Falta de informação prévia sobre os conteúdos a serem interpretados

Intérpretes relataram que outro fator que dificulta a interpretação educacional


está na falta de interação entre docentes e intérpretes.

Tabela 7 – Ainda quando questionados sobre as dificuldades encontradas na interpretação educacional.


INTÉRPRETES RESPOSTAS

Intérprete 1 Falta de comunicação entre o professor e o intérprete. O intérprete


não tem acesso aos materiais antes das aulas então as vezes fica
complicado interpretar o assunto abordado em sala, principalmente
por algumas disciplinas como: biologia, química, física, não tem
sinais específicos comprometendo a interpretação.
Intérprete 2 A dificuldade se encontra, principalmente, na interpretação de
disciplinas que não há um conhecimento básico por parte do
profissional (TILS) o que denominamos de competência referencial.
Fonte: o autor, 2014.

Esta última dificuldade evidencia uma falta de interação entre os dois


profissionais que trabalham simultaneamente em sala de aula. Será esta interação
realmente necessária? Como vê-se, os intérpretes alegaram que melhor seria, se
professores e intérpretes interagissem previamente às aulas, “para que o TILS não seja
surpreendido a cada encontro sem a noção do que vai acontecer” (intérprete
entrevistado).
Perguntas específicas sobre a relação entre professor e intérprete foram feitas aos
dois grupos de profissionais.

Tabela 8 –Quando questionados sobre como deve ser a relação entre professores e intérpretes e se essa
relação ideal está de acordo com o que realmente acontece.
INTÉRPRETES RESPOSTAS

Intérprete 1 A relação entre professor e intérprete deve ser constante em relação


ao repasse do plano de aula e metodologias a serem aplicadas pelo
professor (na sala) para que o TILS não seja surpreendido a cada
encontro sem a noção do que vai acontecer. Infelizmente na prática a
relação descrita aqui não acontece, nem mesmo na teoria os
profissionais são orientados a tal prática. Dentro da sala de aula cada
um em seu espaço fazendo a sua parte de forma desarmoniosa.
Intérprete 2 Não. O professor deveria oportunizar que o intérprete participe do
planejamento das aulas e desta forma a atuação do intérprete será
facilitada, uma vez que ele terá a oportunidade de se preparar para a
explicação do professor e também poderá interagir e até mesmo
sugerir se as atividades são adequadas ou não para os surdos e
juntos encontrarem uma solução para que os surdos sejam
contemplados com o conteúdo.
Fonte: o autor, 2014. (Grifo nosso)

Os intérpretes relataram que a relação entre os profissionais envolvidos não


acontece como deveria. E acrescentaram que nesse contato prévio com o professor, o
intérprete poderia inclusive orientá-lo sobre questões concernentes às necessidades do
discente surdo.

Tabela 9 –Quando questionados se consideram relevante a interação entre docentes e intérpretes para
discutirem sobre conteúdos e métodos.
PROFESSORES RESPOSTAS

Professor 1 Sim. Pois as dificuldades dos surdos devem ser levados em conta na
preparação das aulas como por exemplo, colocar legendas nos vídeos.
Professor 2 Sim.
Professor 3 Ainda não fizemos isso. Acho que seria relevante ter essa conversa,
uma vez que ficaria mais claro para nós, ouvintes, com trabalhar
melhor com esses alunos.
Fonte: o autor, 2014. (Grifo nosso)
Referente à essa interação para discutir atividades e métodos, de acordo com os
professores e intérpretes entrevistados, Dias, Silva e Braun (2007, p. 107apud
ALMEIDA, 2012, p. 41) afirma:
Também é apontada a necessidade de maior colaboração entre professores e
especialistas (quando houver) que participam do cotidiano escolar, para a
organização de atividades que apresentem ações e propostas eficazes às
necessidades de todos os alunos. (DIAS, SILVA e BRAUN 2007, p. 107
apud ALMEIDA, 2012, p. 41)

Tendo em vista a consonância entre a opinião dos profissionais e teórico, fica


claro que faz-se necessário haver um momento em que professores e intérpretes se
encontrem para discutir métodos, atividades e para o intérprete se inteirar e tirar
possíveis dúvidas referentes aos conteúdo.Desta forma, com certeza o aluno surdo será
beneficiado com uma melhor interpretação e consequentemente terá acesso ao
conteúdo, de forma eficaz.
Ainda sobre os métodos, professores citaram algumas mudanças que precisaram
fazer ao começar a trabalhar com discentes surdos.
Tabela 10 –Quando questionados se adaptações foram necessárias em sua metodologia, no início de sua
atuação como professor de discentes surdos.
PROFESSORES RESPOSTAS

Professor 1 Sim. Tive que falar mais devagar, para a aluna ler meus lábios e ficar
mais atento a seus questionamentos através do intérprete.
Professor 2 Não.
Professor 3 Sim. Precisei me preocupar em colocar legendas nos filmes. Preciso
garantir que ela esteja atenta e procuro minuciar a intérprete de todas
as informações necessárias, num contexto de prova, para que a
intérprete possa ajudar a minha aluna surda.
Fonte: o autor, 2014.

Vale salientar que o professor 2 citado nesta tabela é o que a menos (e pouco)
tempo trabalha com discente surdo. Os demais professores citaram pequenas, mas
significativas mudanças em sua metodologia e forma de agir em sala, que se fizeram
necessárias devido à presença do discente surdo.
Observa-se que há inúmeras dificuldades na interpretação como a falta de
referencial do intérprete no tocante a conhecer ou não significados ou mesmo sinais dos
conteúdos, em não está compreendido seu papel e assim ele ter que assumir outras
atribuições. E que tudo isso resulta em uma interpretação com alteração ou percas.
Desta forma, o aluno não recebe exatamente a mensagem transmitida pelo professor.
Ficando assim, lacunas na interpretação.

Tabela 11 – Quando questionados se o intérprete influencia na aprendizagem do estudante surdo.


INTÉRPRETES RESPOSTAS

Intérprete 1 Sim. O estudante somente poderá ter uma real aprendizagem se o


TILS estiver plenamente capacitado para transmitir fielmente o
conteúdo oferecido pelo professor. Caso não esteja, e a mensagem
seja distorcida ou transmitida de forma incompleta, a aprendizagem
do aluno certamente estará comprometida.
Intérprete 2 Sim. Pois muitas vezes percebemos a dificuldade do aluno surdo e ao
invés de procurarmos o professor para que possa esclarecer as
dúvidas, o próprio intérprete, por conhecer o assunto, se prontifica a
explicar para o aluno.
Intérprete 3 Com certeza! O intérprete exerce influência direta na aprendizagem
do discente. A competência linguística do par linguístico utilizado em
sua atuação e as competências referenciais e conceituais irão
contribuir de forma extremamente significativa na maneira que o
TILS transmitirá as explicações do professor, bem como nas escolhas
lexicais no momento da interpretação. Desta forma é possível o
estudante surdo ter uma melhor aprendizagem ou não
dependendo do nível de habilidade das competências citadas e
outras.
Fonte: o autor, 2014. (Grifo nosso)

Nota-se que, de acordo com os próprios intérprete, dependendo do grau de


conhecimento do TILS naquele determinado conteúdo, o discente poderá ou não
compreender de forma correta.
Os docentes entrevistados concordam que os intérpretes influenciam na
aprendizagem do surdo, inclusive pelos mesmos motivos.

Tabela 12 –Quando questionados se o intérprete influencia no desempenho educacional do discente


surdo, os docentes responderam:
PROFESSORES RESPOSTAS

Professor 1 Sim. O intérprete deve motivar o aluno, além de compreender os


assuntos para traduzir da melhor forma para o aluno surdo.
Professor 2 De certa forma, sim.
Professor 3 É preciso que ele compreenda bem o que o professor está
explicando para repassar ao aluno. Ele (TILS) é a ponte entre o
professor, o aluno e a aprendizagem.
Fonte: o autor, 2014. (Grifo nosso)

É valido ressaltar o relato de um intérprete, descrito no questionário, sobre um


caso em que visivelmente os discentes sofreram influência (negativa) de um intérprete,
por motivos como os citados anteriormente:
Já trabalhei com alunos surdos do ensino médio que me relataram que o
intérprete que os acompanhava e sala não conhecia muitos sinais, não
compreendia alguns assuntos que o professor explicava e interpretava muito
devagar, sem acompanhar o professor e por isso eles não compreendiam
nada. As frases ficavam incompletas, ela falava que não conhecia o sinal mas
também não explicava o que significava, apenas continuava a interpretação
deixando lacunas. Por isso eu falo que o intérprete influencia!

Vê-se neste relato que além da falta de conhecimento sobre os conteúdos, as


vezes as pessoas que estão trabalhando como intérpretes não possuem fluência nem em
Libras e o intérprete entrevistado explica um possível fator para pessoas assim estarem
trabalhando como intérpretes. Ele continua:
Principalmente no âmbito municipal e estadual a seleção de intérpretes hoje é
feita de uma maneira muito aleatória. Basta ter um certificado de Libras e
você já pode ser contratado. E assim muita gente sem preparo, sem
conhecimento gramatical da língua e sem contato com os surdos entram em
sala e acabam atrapalhando a aprendizagem dos alunos surdos. (Grifo nosso)

Neste trecho, o intérprete cita um novo motivo para essa falta de propriedade da
Libras por parte do TILS: Não ter contato com surdos antes de se tornar intérprete. Este
mesmo motivo encontra-se em respostas de outro profissional que participou desta
pesquisa: o professor surdo – um surdo, que já passou pela experiência de estudante e
atualmente é professor.

Tabela 13 –Quando questionado sobre qual a maneira de resolver o problema da (má) influência.
PROFESSOR RESPOSTA
Professor surdo Aprofundar mais o conhecimento e a prática de intérprete, formar
vários cursos, o meu opinião que o melhor para aprender é a
convivência de comunidade surda durante anos.
Fonte: o autor, 2014. (Grifo nosso)

Tabela 14 –Quando questionado se acredita que o intérprete pode influenciar na aprendizagem do


discente surdo.

PROFESSOR RESPOSTA
Professor surdo A maioria de interprete estão a procura de emprego pelo salário e não a
vontade de influência (positivamente) ao surdo.
Fonte: o autor, 2014. (Grifo nosso)

Tabela 15 – Quando questionado se sua aprendizagem já foi influenciada de forma positiva por um
intérprete, ou se já teve dificuldade em aprender por causa de um intérprete.
PROFESSOR RESPOSTA
Professor surdo Tive 4 interpretes diferentes devido o salário durante 2 anos, que a
maioria de interprete aprendeu o Libras na igreja, não me influenciou
(de forma positiva) devido falta de fluência e adaptação.
Fonte: o autor, 2014. (Grifo nosso)

Nas respostas deste profissional é reafirmada a falta de fluência do intérprete


como uma causa da má influência que o intérprete exerce sobre o surdo. Mas outra
possível causa é citada por ele: o salário e adaptação do intérprete.
Tabela 16 – Quando questionado sobre qual a maior razão para o intérprete prejudicar a aprendizagem do
estudante surdo.
PROFESSOR RESPOSTA

Professor surdo A maioria de interprete pensa que já é suficiente para interpretar após
aprender os sinais de algum tempo, está enganado, precisa aprender
durante muito tempo, também convivência de comunidade surda,
aprender com 5 parâmetros, o principalmente expressão facial.
Fonte: o autor, 2014. (Grifo nosso)

Nesta resposta comprova-se novamente a importância de ter contato, conviver


com os surdos para se apropriar da língua deles, além de ressaltar outros aspectos
também de fundamental importância, como o conhecimento dos parâmetros da Libras
em especial a expressão facial, que faz enorme diferença para o entendimento do surdo
e o aprender contínuo, não se pode parar de aprender. Como afirma ABREU (2009): “A
língua é viva, dinâmica e está em constante transformação. Tudo muda, a língua
também.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificamos que a escola deve oferecer um ambiente acolhedor, que propicie


adequadas condições de aprendizagem, respeitando os direitos que ao longo do tempo
foram conquistados pela comunidade surda.
Todos da comunidade escolar têm sua contribuição a dar e cada um participa
desse processo de diferentes maneiras, mas, somente quando todos que compõem a
escola estiverem totalmente engajados com este propósito, a inclusão acontecerá de
forma plena.
Neste contexto, a atuação do intérprete faz-se necessário para intermediar a
comunicação entre os indivíduos surdos e ouvintes, estabelecendo uma ponte entre duas
línguas e duas culturas distintas.
Diante de todo conteúdo aqui apresentado, podemos concluir que o intérprete, no
contexto educacional, pode influenciar positiva ou negativamente na aprendizagem do
discente surdo, por diversos motivos. E para que esta influência seja de forma a
contribuir para o aprendizado do discente surdo, algumas ações são necessárias, como a
boa e contínua formação do intérprete, sua inserção na comunidade surda, fluência na
língua portuguesa bem como na língua de sinais, interação constante com o docente
para a interpretação estar em harmonia com o conteúdo ministrado. Ou seja, cabe ao
intérprete, preparar-se para realizar seu trabalho da melhor maneira possível e buscar
apoio quando necessário, além de orientar os demais profissionais, pois quase sempre,
na equipe pedagógica, é somente ele quem possui conhecimento na área.
É verdade que temos um longo caminho até chegarmos à verdadeira inclusão.
Mas, as pessoas com deficiência através de suas lutas, vêm nos mostrando que é
possível trilharmos este caminho da busca pela escola inclusiva para daqui a algum
tempo podermos ter sim, uma escola! Escola essa que não precisará mais ser chamada
de escola inclusiva, porque a palavra inclusiva remete a uma exclusão que acontecia
anteriormente. Então, chamaremos apenas de escola. E será uma escola para todos.

REFERÊNCIAS

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Unidas. 10 dez. 1948. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf
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ABREU, M. M. T. O professor PDE e os desafios da escola pública paranaense. v.2,


2009

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SANTOS, J. C. F. Aprendizagem Significativa: modalidades de aprendizagem e o


papel do professor. Porto Alegre: Mediação, 2008.
POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA ARTICULADA
NUMA INSTITUIÇÃO MUNICIPAL DE BELO JARDIM/PE

Cinthia Genelice dos Santos2


Ingrid Albuquerque Araújo3
Thayline Soares Ferreira 034

GT: GT 07 – Direitos Humanos e Pessoa com Deficiência

RESUMO

Esta pesquisa parte dos princípios de um estudo feito sobre a política nacional de
educação inclusiva em uma escola municipal de rede regular de ensino, e procura
conhecer a partir do objetivo como se dar a articulação da Política Nacional de
Educação Inclusiva numa Instituição Municipal de Belo Jardim/PE. O percurso
compreensivo assume como ponto de partida os conceitos das políticas públicas e
políticas educacionais direcionadas à Politica Nacional de Educação Inclusiva. Tal
perspectiva sugeriu uma forma de pesquisa do tipo qualitativa, na qual destaques foram
dados à análise questionários e entrevistas, para obter os resultados relevantes à análise.
A análise tem permitido inferir na articulação e na implantação de itens referente a
Política Nacional de Educação Inclusiva no âmbito educacional público que inscreve-se
o dever de assegurar o direito à educação regular às pessoas com deficiência.
Palavras-chave: Política Nacional de Educação Inclusiva, Inclusão, Gestão, Política
pública, Estado.

INTRODUÇÃO

As políticas públicas no âmbito educacional podem ser entendidas a partir de


HOFLING, (2001) como:

Políticas públicas são aqui entendidas como o Estado em ação. É o estado


implantando um projeto de governo, através de programas, de ações voltadas
para setores específicos da sociedade. Nestes termos, entendo educação como

2
UFPE/CAA, Estudante de Pegagogia, genelice.c@gmail.com
3
UFPE/CAA, Estudante de Pegagogia, ingrid.cabj5c@hotmail.com
4
UFPE/CAA, Estudante de Pegagogia thaylinne.f@gmail.com
uma política pública social, uma política pública de corte social, de
responsabilidade do Estado – mas não pensada somente por seus organismos.

Dessa forma a educação articulada as politicas sociais atuando como


interferência de manutenção nas relações sociais. Assim pôde ser criado o Plano
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva o qual foi
construído pelo Ministério da Educação:

O Ministério da Educação/Secretaria de Educação Especial apresenta a


Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva, que acompanha os avanços do conhecimento e das lutas sociais,
visando constituir políticas públicas promotoras de uma educação de
qualidade para todos os alunos. (Brasil. Ministério da Educação 2010)

Uma vez que o mesmo tem por objetivo e concepção:

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação


Inclusiva tem como objetivo o acesso, a participação e a aprendizagem dos
alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação nas escolas regulares, orientando os sistemas de
ensino para promover respostas às necessidades educacionais especiais. A
concepção de educação inclusiva que orienta as políticas educacionais e os
atuais marcos normativos e legais rompe com uma trajetória de exclusão e
segregação das pessoas com deficiência, alterando as práticas educacionais
para garantir a igualdade de acesso e permanência na escola, por meio da
matrícula dos alunos público alvo da educação especial nas classes comuns
de ensino regular e da disponibilização do atendimento educacional
especializado. (Brasil. Ministério da Educação 2010) .

O tema abordado foi escolhido pela relevância das questões que envolvem as
politicas públicas educacionais na perspectiva inclusiva como fator importante que
contribui de forma efetiva no processo de desenvolvimento e aprendizagem do principal
sujeito da esfera educacional, ou seja, o aluno. A educação inclusiva possui caráter
político, cultural, social e pedagógico ambos em defesa de todos os alunos estarem
juntos, sem nenhum tipo de segregação, tendo em vista que existe uma alta demanda de
educandos portadores de necessidades especiais a serem inclusos na rede regular de
ensino.
Visto que o Art. 1º da União prestará apoio técnico e financeiro aos sistemas
públicos de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na forma deste
Decreto, com a finalidade de ampliar a oferta do atendimento educacional especializado
aos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades
ou superdotação, matriculados na rede pública de ensino regular, é considerável se
questionar: Como se dá a articulação da Politica Nacional de Educação Inclusiva numa
Instituição Municipal de Belo Jardim?
Temos a compreensão que há uma indispensabilidade da aplicação do Plano
Político Nacional de educação, para que haja acompanhamento especifico aos alunos
portadores de necessidades especiais, visto que não é apenas o aspecto físico da escola
que contribui para o melhor desenvolvimento cognitivo destes alunos, mas também um
profissional adequado, com formação em Educação Especial para fornecer atendimento
típico à especialidade da deficiência do educando.

Tendo em vista que a preocupação com a educação inclusiva está cada vez mais
presente nas realidades das escolas, nos desperta o interesse em conhecer uma
instituição publica de Belo Jardim e questionar: Como se dar a articulação da Política
Nacional de Educação Inclusiva numa Instituição Municipal de Belo Jardim, como
também, analisar se a escola conhece a politica nacional da inclusão e levantar quais os
itens da politica nacional da inclusão que a escola consegue contemplar.

DESENVOLVIMENTO
Metodologia

A pesquisa foi realizada do seguinte modo: inicialmente visitou-se a escola


campo de pesquisa, onde foi realizada uma conversa informal com a coordenação e a
direção pedagógica da instituição; posteriormente procuramos nos informar sobre o
nível de ensino, estrutura, física número de professores e alunos e dados da
comunidade.
A instituição tem uma educação de nível fundamental I e II e EJA, O estudo será
desenvolvido na Escola Municipal de ensino regular, que possui 21 salas e 80
funcionários, abrange uma comunidade de nível sócio econômico baixo-médio,
localizada na Zona Urbana da Cidade de Belo Jardim.
A pesquisa é de cunho qualitativo. Teixeira (2005, p.137), onde fala:
Na pesquisa qualitativa o pesquisador procura reduzir a
distância
entre a teoria e os dados, entre o contexto e a ação, usando a lógica
da análise fenomenológica, isto é, da compreensão dos fenômenos
pela sua descrição e interpretação. As experiências pessoas do
pesquisador são elementos importantes na análise e compreensão
dos fenômenos estudados.
Como instrumento de coleta de dados será usado o questionário para obter
informações a respeito da articulação do Plano Político Nacional de Inclusão.
O questionário, segundo Gil (1999, p.128), pode ser definido:

como a técnica de investigação composta por um número mais ou menos


elevado de questões apresentadas por escrito às pessoas, tendo por objetivo o
conhecimento de opiniões, crenças, sentimentos, interesses, expectativas,
situações vivenciadas etc.

Contemplando nossos objetivos a ser analisados em campo com a finalidade de


responder a temática do nosso trabalho, POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO
INCLUSIVA ARTICULADA NUMA INSTITUIÇÃO MUNICIPAL DE BELO
JARDIM, procuramos conhecer como se dar a articulação desta política.
Através dos questionários aplicados durante o período em campo, podemos
verificar que a Escola conhece a Política Nacional, tendo em vista que a Constituição
Federal salienta artigos que dá direito aos cidadãos de serem incluídos na escola regular
de ensino, portanto será função do Estado – “É possível considerar o Estado como: Um
conjunto de instituições permanentes – como órgãos legislativos, tribunais, exército e
outras que não formam um bloco monolítico necessariamente – que possibilitam a ação
do governo” (HOFLING, 2001, p.31) - proporcionar uma educação com caráter
gratuito, de boa qualidade, e igualitário.

Analise de dados

Com base nos itens expostos presente na Política Nacional de Educação


inclusiva podemos verificar a existência de tais itens na escola campo de pesquisa,
correspondente ao atendimento educacional especializado; formação de professores para
o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a
inclusão escolar; participação da família e da comunidade; acessibilidade urbanística,
arquitetônica, nos mobiliários e equipamentos, nos transportes, na comunicação e
informação; sala de recursos; dentre eles e podemos destacar através de nossas
observações e confirmados pela gestão da instituição de ensino, que a mesma não
dispõe da sala de recursos e formação especializado para melhor atender aos educandus,
vale destacar que no Brasil, desde a Constituição de 1988, os documentos oficiais legais
e complementares de orientação à política educacional já eram previstos aos alunos com
necessidades especiais que fossem garantidos de uma educação de qualidade e
atendimento especializado preferencialmente na rede regular de ensino.

Em entrevistas orais (informais) foi nos dito por uma professora da Instituição
que “falta material específico para ajudar no desenvolvimento dos alunos”,
lamentavelmente sem a sala de recursos os professores sentem-se inseguros quanto a
metodologia que pode ser desenvolvida com os alunos especiais. Ressaltamos que, no
Art. 3 §1 “º As salas de recursos multifuncionais são ambientes dotados de
equipamentos, mobiliários e materiais didáticos e pedagógicos para a oferta do
atendimento educacional especializado.”, o mesmo deveria ser oferecido e implantado
pela União.

Outro ponto que podemos destacar é que a escola abre portas para alunos com
deficiência e transtornos de desenvolvimento, caracterizando uma gestão democrática –
“[...]tem na busca de uma educação de qualidade, ao mesmo tempo, a principal razão de
ser o principal alvo.” (AZEVEDO, 2013, p. 48) - promovendo uma educação para
todos. E a gestão da escola campo de pesquisa evidencia isto em sua fala:

A educação possui o papel fundamental de direcionar ao lado ético e a gestão


é parte dessa engrenagem possibilitando evoluções, e inovações de forma
imparcial e unificada... (...) a educação e a gestão são ferramentas que
permitem num trabalho conjunto à edificação, e ao aprendizado. Fonte: diário
de campo 1 (2016.1)

A escola atende oito alunos portadores de deficiências segundo informações da


gestão, no qual os mesmos recebem tratamentos específicos com didáticas
diferenciadas, acompanhamento específico e direcionado focando nos anseios e na
constante elaboração para melhoria e avanço dos mesmos. Faz-se necessário
compreender o sentido do termo “diferente” usado pela gestão para não confundir com
algo de caráter exclusivo. Segundo Gentili (2016, p.1062-1063):

A inclusão é um processo democrático integral, que envolve a superação


efetiva das condições políticas, econômicas, sociais e culturais que
historicamente produzem a exclusão. Por esse motivo, indicadores de
melhorias nas condições de acesso a um direito, assim como todo avanço na
luta contra a alienação, segregação ou negação de oportunidades, embora
sempre suponham grandes conquistas populares, podem não ser suficientes
para consagrar o fim dos processos de exclusão historicamente produzidos e
que condicionam ou negam esse direito.

A Escola investigada conhece e contempla alguns itens da Política Nacional de


Educação Inclusiva, e ressalta que há desafios para contemplar os tais itens desta
política, em uma de suas falas a gestão complemente: “Se faz necessário um olhar mais
atento na questão de incluir o aluno especial no meio escolar sem que o mesmo sinta-se
„diferente‟. É preciso mais atenção direcionada e novas formas de aprendizagem, e
inclusão.” Fonte: diário de campo 1 (2016.1)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscando responder aos objetivos da pesquisa tendo como objetivo geral


conhecer como se dar a articulação da política nacional de educação inclusiva numa
instituição municipal de belo jardim, pode-se perceber como procede esta articulação
mediante os questionamentos formais e as observações.
Através dos dados obtidos e analisados, verifica-se que a Política Nacional de
Educação Inclusiva chega até a gestão institucional como conhecimento, e uma das
tarefas das unidades escolares é a criação de espaços para participação de sujeitos em
atividades que envolvem o ensino-aprendizagem, essa tarefa deve garantir também a
elaboração, participação, execução e avaliação de projetos pedagógicos com o objetivo
de educar. Dessa forma, a instituição deve articular com a Política Nacional de
Educação Inclusiva para garantir uma inclusão, educação de qualidade e a permanência
de todo e qualquer aluno na escolar regular de ensino.
Vale ressaltar que os itens que a escola articula com a Politica Nacional de
Inclusão, demonstram avanços, ao que se propõe ser uma gestão democrática, onde
acolhe e promove a participação da comunidade, seria necessário que a instituição
buscasse meios para poder abranger e articular os outros itens entre eles, atendimento
educacional especializado, sala de recurso, que são de importância significativa, já que a
União presta apoio técnico e financeiro para o atendimento educacional.
Assim, no contexto dos efeitos dessa política – Politica nacional de Educação
Inclusiva – registra-se o de assegurar o direito à educação regular às pessoas com
qualquer deficiência ou transtornos globais do desenvolvimento. Esse movimento
também marca a escola publica de ensino regular como lugar para todos, sem qualquer
restrição.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Janete M. Lins de. A educação como Política Pública. São Paulo: Xamã
Campinas, SP: Autores Associados, 1997.

Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Marcos Político-


Legais da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva/Secretaria de
Educação Especial. Brasília : Secretaria de Educação Especial, - 2010. 73 p

GIL, A, C. Métodos e técnicas em pesquisa social. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1999.

GENTILI, Pablo. O direito à Educação e as Dinâmicas de exclusão na América Latina.


Pablo Gentili. disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v30n109/v30n109a07.pdf>.
Acesso em: 5 de junho de 2016.

HOFLING, Eloisa de Mattos. Estado e Políticas (Públicas) sociais. Vol.2. Cad. CEDES,
2001.

Política e gestão educacional em redes públicas/ organizadora: Alice Happ Botler. –


Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013. AZEVEDO, Janete Maria Lins. O ESTADO,
A POLÍTICA EDUCACIONAL E A GESTÃO DA EDUCAÇÃO.
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E UM DESAFIO INTERDISCIPLINAR: A
ANÁLISE DA EXCLUSÃO SOCIAL NAS CIDADES

Dirceu Lemos Silva5


Clarissa Marques6

GT 07 - P

RESUMO

O presente artigo aponta como, ao longo da história, a deficiência foi percebida como
coisa sobrenatural e tratada como ameaça social, tendo as pessoas deficientes sido
excluídas da sociedade, a exemplo do que ocorria com os loucos, leprosos ou aqueles
considerados delinquentes. A pessoa com deficiência fora segregada da sociedade
capitalista por não fazer parte de um modelo de produção, estando, portanto, na mira de
uma sociedade disciplinar. Para Foucault as sociedades disciplinares, seriam um
desdobramento de uma necessidade do modelo capitalista de produção; o pensador
francês desvela um sistema de segregação dos ditos incorrigíveis em nome e pela defesa
da sociedade. O trabalho analisa a mudança de paradigma na atenção e respeito à pessoa
com deficiência, que passou de objeto de estudo num modelo médico para ser
compreendida enquanto protagonista de um contexto social de exclusão. A experiência
da deficiência não é resultado de uma lesão, dado isento de valor, e sim, de um
ambiente hostil à diversidade, sendo, portanto, o resultado da interação de corpo em
uma sociedade planejada para segregar os desvios da norma. Eis a necessidade de
analisar a exclusão social das pessoas com deficiência nas Cidades a partir de uma
investigação interdisciplinar.

Palavras-chave: Interdisciplinariedade. Deficiência. Cidades. Exclusão social.


Diversidade.

INTRO UÇÃO: E “ANORMAIS” À PLENAMENTE CAPAZES

5
Mestre em Historicidade dos Direitos Fundamentais pela Faculdade Damas da Instrução Cristã –
FADIC, Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP,
Advogado, contato: dirceulemos.adv@gmail.com
6
Pós-Doutorado realizado na The New School of Social Research-NY (Bolsista CAPES), Doutora em
Direito pela UFPE (Estágio de Doutorado realizado na Universidade de Paris - Bolsista CAPES),
Professora do PPGD da Faculdade Damas ARIC/PE, da Universidade de Pernambuco-UPE e da
FACIPE/NUFA, Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Transdicisplinares sobre Meio
Ambiente, Diversidade e Sociedade - GEPT/UPE, Advogada ambiental, contato:
marquesc@newschool.edu
Necessário se faz um novo marco metodológico para a História, em especial,
para História do Direito, disciplina que caiu no descrédito, na medida em que a
historiografia de matriz liberal-burguesa passou a ser mera disciplina de justificação da
ordem legal vigente e da acumulação de conhecimentos para a chamada “cultura
superior”, restando assim, sem fins úteis para com a realidade (WOLKMER, 2004, p.
17). Submersa numa crise de eficácia, marcos teórico-metodológicos devem ser
redefinidos no intuito de alcançar novo paradigma para pesquisa e investigação
histórica, como lembra Wolkmer (2004, p. 17), “não mais uma historicidade linear,
elitista e acumulativa, mas problematizante, desmistificadora e transformadora”. Assim,
acreditar e fazer com que a História não sirva apenas para formulação de uma
historicidade oficial e homogeneizadora, mas, como expressão da sociedade, ou seja, da
experiência humana, deve se prestar a uma historiografia crítica, de muitos e para
muitos sujeitos.
Nesse sentido, convém destacar que o processo de urbanização experimentado
na maioria das cidades deu-se de forma abrupta, negando a natureza e construindo
cidades que representam verdadeiros templos de desigualdade e exclusão; um espaço
fragmentado e propenso a conflitos que segrega aquele que não tem como pagar pela
porção de cidade que almeja viver e, então, é condicionado, conduzido ou melhor,
disciplinado a aceitar o que lhe é imposto como normal.
É nos aglomerados urbanos que as barreiras físicas, atitudinais e sociais
apresentam-se como uma forma contundente de desrespeito ao direito fundamental à
cidade acessível. Nesse sentido, questiona-se: a não efetivação do direito fundamental à
cidade acessível representaria óbice a uma vida plena, digna e autônoma por parte das
pessoas com deficiência, dificultando, assim, o exercício da cidadania?
Ao longo da história, a deficiência foi percebida como coisa sobrenatural e
tratada como ameaça social e as pessoas deficientes foram excluídas da sociedade, a
exemplo do que ocorria com os loucos, leprosos ou aqueles considerados delinquentes.
Observa-se que a pessoa com deficiência fora segregada de uma sociedade capitalista
por não fazer parte de um modelo de produção, estando, portanto, na mira de uma
sociedade disciplinar. Nesse sentido, a experiência da deficiência não é resultado
unicamente de uma lesão, mas do ambiente social hostil à diversidade física. A lesão é
um dado isento de valor, ao passo que a deficiência é o resultado da interação de um
corpo com lesão em uma sociedade discriminatória, planejada para segregar os
“desvios” da norma. O presente trabalho objetiva analisar a mudança de paradigma na
atenção e respeito à pessoa com deficiência, que passou de objeto de estudo num
modelo médico para ser compreendida enquanto protagonista de um contexto social de
verdadeira exclusão, em especial no ambiente das cidades. Nesse sentido, o advento da
Estatuto da Pessoa com Deficiência é marco na legislação pátria de uma mudança
juspositiva no respeito à dignidade da pessoa deficiente, alterando o Código Civil de
2002 e descontruindo a teoria das (in)capacidades. Desta forma, foi utilizada uma
metodologia majoritariamente analítica, aliada a uma abordagem exploratória que
resgatou a perspectiva histórica da deficiência, sem contudo esquecer a crítica em nome
de uma história não-linear, como base explicativa para o cenário identificado no texto
como um desafio interdisciplinar.

SEGREGAÇÃO CONSCIENTE (POR QUE NÃO INCONSCIENTE?)

Para Foucault, as sociedades disciplinares seriam um desdobramento de uma


necessidade do modelo capitalista de produção. O pensador francês desvela um sistema
de segregação dos ditos incorrigíveis em nome e pela defesa da sociedade; elenca em Os
anormais, os elementos constitutivos desse grupo, tal como, “o monstro humano”, “o
indivíduo a corrigir” e “o onanista”. “O indivíduo anormal”, que, desde o fim do século
XIX, tantas instituições, discursos e saberes levam em conta, deriva, ao mesmo tempo,
da exceção jurídico-natural do monstro, da multidão de incorrigíveis presos nos
aparelhos de recuperação e do universal segredo das sexualidades infantis”
(FOUCAULT, 2014, p. 270).
O autor ainda destaca a teoria da degenerescência, como justificação social e
moral, a todas as técnicas de identificação, de classificação e de intervenção sobre os
anormais: a organização de uma rede institucional complexa que, nos confins da
medicina e da justiça, serve, ao mesmo tempo, como estrutura de “acolhimento” para os
anormais e como instrumento para a “defesa” da sociedade [...] (FOUCAULT, 2014, p.
270). Em A loucura e a sociedade, Foucault descreve uma historiografia da loucura
onde aponta o século XVII como marco do confinamento do louco. Todavia, ressalva o
autor: "é interessante observar que não é o louco, como louco, que foi excluído: o que
foi excluído é toda uma massa de indivíduos irredutíveis à norma do trabalho (2014, p.
331/332). A segregação, exclusão, confinamento e internamento dessa massa, não diz
respeito ao confinamento como doentes e sim, como incapazes de integrar-se à
sociedade” (FOUCAULT, 2014, p. 332). Daí porque as instituições hospitalares antes
do século XVIII eram, essencialmente, instituições assistenciais, ou mesmo asilares, de
assistência aos pobres, como também de separação e exclusão. Ou seja, o objetivo não
era a “cura” de doentes e sim mantê-los longe do convívio social.
O modelo médico considera a deficiência como um problema a ser resolvido
através de tratamento individual prestado por profissionais com vistas a obter a cura ou
a adaptação da pessoa ao ambiente. Em outras palavras, cabe à pessoa, e somente a ela,
a tarefa de tornar-se apta a participar da sociedade. Para tanto, seu corpo precisa ser
“consertado”, “adaptado” ou pior, “normalizado” para poder funcionar adequadamente
em um ambiente social tal qual existe. Por outro lado, o modelo social da deficiência
começou na década de 1960, no Reino Unido, em contraponto às abordagens
biomédicas. Sustenta que a deficiência não deve ser entendida como um problema
individual, mas como uma questão eminentemente social e transfere para a sociedade a
responsabilidade pelas desvantagens enfrentadas pelos indivíduos deficientes (DINIZ,
2007, p. 15). O modelo social da deficiência atribui novos significados às palavras
como lesão e deficiência, entendendo-se lesão como a ausência parcial ou total de um
membro, de um órgão ou a existência de um defeito num mecanismo corporal, já
deficiência, seria a desvantagem ou restrição para exercer uma atividade causada pelo
meio ambiente social hostil a todos os que têm lesões e os exclui da sociedade. De
acordo com esse conceito, uma pessoa pode ter lesões e não experimentar a deficiência,
se a sociedade estiver ajustada para incorporar a diversidade. Para o modelo médico a
lesão levava à deficiência, para o modelo social, são os sistemas sociais excludentes que
levam as pessoas com lesões à experiência da deficiência (DINIZ, 2007, p. 17).
Conforme afirma Romeu Sassaki (1997, p. 28), o modelo médico recebia
atenção até mesmo daqueles que pretendiam defender os direitos das pessoas com
deficiência, para tanto aponta o artigo 7º da Declaração dos Direitos das Pessoas
Deficientes, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1975:

As pessoas deficientes têm direito a tratamentos médico, psicológico e


funcional, inclusive aparelhos protéticos e ortóticos, à reabilitação física, à
reabilitação social, à educação, ao treinamento e reabilitação profissionais, à
assistência ao aconselhamento, ao serviço de colocação e a outros serviços
que lhes possibilitarão desenvolver suas capacidades e habilidades ao
máximo e acelerarão o processo de sua integração ou reintegração social.

Para o autor, o modelo médico da deficiência corroborou na relutância da


sociedade em reconhecer que é necessário “mudar suas estruturas e atitudes para incluir
em seu seio as pessoas portadoras de deficiência” porque esse modelo defende que
“bastaria prover-lhe [à pessoa com deficiência] algum tipo de serviço” para solucionar
seu “problema” (SASSAKI, 1997, p. 29). O modelo social, por outro lado, esclarece que
a sociedade também tem responsabilidades na eliminação das barreiras que impedem a
participação da pessoa com deficiência, sendo, portanto, a deficiência não um atributo
do indivíduo, mas um complexo de condições que constituem um ambiente social
segregador. Pelo modelo social, não é a deficiência que determina o grau de
participação de uma pessoa na sociedade. O grau de participação vai, isto sim, depender
da capacidade (habilidade de acordo com o ambiente) e do desempenho possível da
pessoa, num determinado contexto social. De tal modo, a deficiência sempre teve
significados construídos histórica, ideológica e simbolicamente. Como resultado desses
significados sempre carregados de preconceitos, às pessoas com deficiência sempre foi
atribuído um baixo valor social, acarretando sua marginalização e exclusão social
(CRESPO, 2011, p. 17). O desafio de enfrentar a segregação exige um arcabouço
normativo capaz de auxiliar a garantia da autonomia das pessoas com deficiência e a
consequente inclusão social.
Nesse sentido, homologada pela Organizações das Nações Unidas em 2006, a
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência representa uma
conquista em prol da concretização de direitos e garantias relativos às pessoas com
deficiência. A Convenção consolida o dever da sociedade de eliminar as barreias que
dificultam, ou mesmo que impeçam, a participação social da pessoa com deficiência. O
vetor da referida Convenção é a vida digna. Dessa forma, são colocadas regras para
promoção da autonomia e independência individual do cidadão, comprometendo os
Estado a implementar medidas necessárias a integração das pessoas com deficiência à
comunidade.
O Brasil tornou-se signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo em março de 2007. A
promulgação dos termos da Convenção e do referido Protocolo ocorreu por meio do
Decreto nº 6.949/2009, conforme rito qualificado, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de
2004)

Por consequência, alcançou assim, status de norma constitucional. Desde então,


diversos projetos de lei foram objeto de discussão no âmbito das casas legislativas,
culminando, na esfera federal, na elaboração da Lei nº 13.146/2015, conhecida como
Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa com
Deficiência. A entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência traz avanços na
proteção da dignidade da pessoa com deficiência, tendo essa nova legislação alterado,
principalmente, o Direito Civil quando trata da Teoria das incapacidades, o que também
repercute em outros institutos, a exemplo do casamento, a interdição e a curatela. Já a
personalidade tem sua medida na capacidade, que é reconhecida através do art. 1º do
Código Civil de forma universal, “toda pessoa é capaz de direitos e deveres”, não se
fazendo qualquer distinção, em consonância com os postulados constitucionais.
Todo ser humano, desde o seu nascimento até a sua morte, tem capacidade para
ser titular de direitos e obrigações na ordem civil, não significando, todavia, que todos
possam exercer pessoalmente tais direitos. Para aqueles considerados incapazes, embora
a lei confira a prerrogativa de serem titulares de direitos, nega a possibilidade de
pessoalmente exercê-los. Para Silvio Rodrigues (2003, p. 39), “incapacidade é o
reconhecimento da inexistência, numa pessoa, daqueles requisitos que a lei acha
indispensáveis para que ela exerça seus direitos”. Importante notar que a doutrina, a
exemplo do civilista citado, asseverava um sentido protetivo na teoria das incapacidades
a ponto de destacar: “O legislador, ao arrolar entre os incapazes referidas pessoas,
procura protegê-las” (RODRIGUES, 2003, p. 39). Sem nenhum demérito ao
doutrinador, sua postura não mais pode ser tolerada, não se busca proteger a pessoa dita
vulnerável e sim tutelar seus direitos.
Na explicação de Menezes (2014, p. 68):
Toda restrição à capacidade de agir pode trazer prejuízos graves aos direitos
de personalidade e à dignidade da pessoa, na medida que afeta a liberdade
para a condução da vida e as escolhas de cunho existencial.

Sendo assim, o Estatuto da Pessoa com deficiência consagrou o giro conceitual


relativo à deficiência, que se dissocia da noção de incapacidade e, em uma perspectiva
constitucional isonômica, compreende a pessoa com deficiência como sujeito com plena
capacidade legal. Nesse sentido, “A pessoa e não mais aquele sujeito de direito neutro,
anônimo e titular de patrimônio, constitui o valor central do ordenamento jurídico”
(MENEZES, 2014, p. 58).
O artigo 3º do Código Civil Brasileiro, que anteriormente instituía que a
incapacidade absoluta era atribuída aos menores de dezesseis anos de idade, aos que
careciam de discernimento para a prática de atos da vida civil, em razão de enfermidade
ou deficiência mental, e aos que não pudessem exprimir sua vontade, mesmo que por
causa transitória, hoje apenas conta com a primeira dessas hipóteses. Em outras
palavras, o texto atual do art. 3° do Código Civil com redação dada pelo Estatuto,
considera absolutamente incapazes apenas os menores de dezesseis anos7.

7
Redação anterior do artigo do CC: Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos
da vida civil:
I - os menores de dezesseis anos;
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática
desses atos;
III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
Redação atual: São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de
16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
I - (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
II - (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
III - (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
Redação anterior do artigo no CC: Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os
exercer:
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento
reduzido;
Assim, no Direito Brasileiro, com a entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015 –
Estatuto da Pessoa com Deficiência, o único critério para incapacidade absoluta passa a
ser o etário (menores de 16 anos), não havendo mais qualquer fundamento legal que
autorize o reconhecimento da incapacidade absoluta por qualquer deficiência. Todas as
pessoas com deficiência, das quais tratava o comando anterior, passam a ser, em regra,
plenamente capazes para o Direito Civil, o que visa a sua plena inclusão social, em prol
de sua dignidade. Já o artigo 4º do Código Civil, ao fixar as hipóteses de incapacidade
relativa, retira a previsão de incapacidade pelo discernimento reduzido, proveniente de
deficiência mental ou desenvolvimento mental incompleto. Por outro lado, a hipótese de
impossibilidade de exprimir a vontade, por causa transitória ou não, é incluída no rol de
incapacidades relativas8.
O inciso II do supracitado dispositivo foi modificado de forma considerável não
fazendo mais referência às pessoas com discernimento reduzido, que não são mais
consideradas relativamente incapazes, como antes estava disposto. Estando mantidas no
diploma as menções aos ébrios habituais (entendidos como os alcoólatras) e aos
viciados em tóxicos, que continuam dependendo de um processo de interdição relativa,
com sentença judicial, para que sua incapacidade seja reconhecida.
Também foi alterado o inciso III do art. 4º do Código Civil, sem mencionar mais
os excepcionais sem desenvolvimento completo. A nova redação dessa norma passa a
enunciar as pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir
vontade, o que antes estava previsto no inciso III do art. 3º como situação típica de
incapacidade absoluta. Agora a hipótese é de incapacidade relativa. Isto posto, com a

III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;


IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.
Redação atual: Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação
dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada
pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação dada pela
Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
readequação do sistema de incapacidades, o Estatuto assegura à pessoa com deficiência
o exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
Por fim, através da análise do Código Civil de 2002 com as alterações sofridas a partir
da edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, observa-se que a o sistema de
incapacidades engessado em um modelo rígido de enquadramento da pessoa como
capaz, relativamente incapaz e absolutamente incapaz, passa a ser mais humano,
refletindo a partir das circunstâncias do caso concreto e no propósito maior, qual seja, a
inclusão social da pessoa com deficiência.

HISTORICIDADE, CIDADE E EXCLUSÃO: UM DESAFIO


INTERDISCIPLINAR, DEFICIÊNCIA E VIDA DIGNA

O historicismo tradicional nega o problema crítico do conhecimento histórico


como fruto da sociedade, “ocultando-se no suposto mito da neutralidade do saber e da
universalidade dos princípios da ciência positivista” (WOLKMER, 2004, p. 16);
marcado, portanto, por uma tradição metodológica que baseia-se em “proposições
revestidas pela força da continuidade, da previsibilidade, do formalismo e da
linearidade” (WOLKMER, 2004, p. 11). A “história tradicional” ou “história
positivista”, que teve seu ápice no século XIX, pretende-se “objetiva” e “neutra”, “por
acreditar que os fatos podem ser isolados do sujeito que os confronta (o historiador) e
podem ser percebidos em seus contornos precisos”, assim, teria “a capacidade de
descrever a verdade sobre os fatos históricos”, já que para tal corrente, a análise do
objeto pode ser assimilada pela ciência positivista sem que haja qualquer prejuízo, de tal
modo, “o saber histórico tem a capacidade de reproduzir fielmente os fatos históricos”
(FONSECA, 2012, p. 57).
A falácia da neutralidade cai por terra quando observa-se que essa historiografia
fundada na neutralidade axiológica assumiu o contorno de “história universal”, ou,
“história geral”, portanto, uma historicidade excludente. É o historiador, subjetivamente,
que pinça quais fatos históricos são relevantes e quais são preteridos, de modo que, a
história positivista “tende a distanciar-se da dinâmica histórica efetiva, procedendo a um
conhecimento presentista ou retrospectivo” (FONSECA, 2012, p. 60).
A história progressista9 promove a sacralização do presente, que passa a ser
glorificado como meta e proposta universal, por considerar-se que o modelo atual, leia-
se, o modelo ocidental contemporâneo, representa o apogeu histórico de um modelo de
organização política e jurídica para as sociedades (HESPANHA, 2012, p. 20). A
linearidade construída pelo historiador torna-se grave distorção do passado, pois é
definida a partir do presente, ou seja, pertence à época do historiador e não à época
estudada (FONSECA, 2012, p. 61). Essa visão anacrônica, ao reduzir a história a um
encadeamento de fatos, identifica outra consequência do “historicismo”, que é a
exclusão. No dizer de Ricardo Marcelo Fonseca (2012, p. 60),
(...) na medida em que a história é vista como uma sequência linear e
harmônica de fatos, que se encadeiam de modo lógico no tempo, está-se
elaborando, na verdade, uma lógica da exclusão de todas as perspectivas e
possibilidades históricas, ocorridas ou frustradas, mas que acabaram ficando
ao largo do projeto que regeu o encadeamento dos fatos eleitos.

O modo de encarar a temporalidade de forma aparentemente lógica, coerente,


linear10 e harmônica tem por consequência natural ser excludente. Verifica-se, desta
feita, que a exclusão no discurso da historiografia tradicional é reflexo da exclusão que
existiu/existe na realidade histórica, “que é feita de um processo contínuo de conflitos,
de lutas e de exclusões” (FONSECA, 2012, p. 155/156). Na busca por uma “nova
História” mister estabelecer qual perspectiva histórica rejeita-se, bem como, qual
historicidade pretende-se alcançar, em outras palavras, necessário se faz romper com o
modelo tradicional de historicidade que serviu para justificar e consubstanciar a atuação
estatal e buscar uma historicidade que se preste a refletir, modificar e recriar a
cotidianidade.
A nova História é plural, não privilegia o discurso vencedor, mas sim as diversas
vozes que compõem o fato histórico, dá notoriedade ao cotidiano, ou seja, a atividade

9
António Manuel Hespanha esclarece a ideia que a história pode servir para provar a linearidade do
progresso, como querem alguns. Para tanto, o autor destaca que, partindo-se de um modelo histórico
evolucionista, ou seja, um modelo que conceba a história como acumulação progressiva de conhecimento,
o direito também poderia ser visto como algo em evolução, passando de uma fase juvenil, rude, para a
fase atual, de “apogeu”, o que se daria através do progresso da sabedoria humana e das descobertas de
eméritos juristas (HESPANHA, 2012, p. 19).
10
A temporalidade linear representa um tempo vazio e homogêneo, onde só existe lugar para a soma
(encadeada) de fatos como se o tempo fosse um receptáculo com forma e tamanho bem definidos. Há
uma exclusão de todas as virtualidades históricas e todas as experiências passadas que não foram
registradas ou que foram frustradas, e somente há espaço, em tal historiografia, para os sucessos
históricos (FONSECA, 2012, p. 155).
humana. Nesse sentido, passa-se a repensar a historicidade sob nova ótica: quais
acontecimentos foram narrados e quais foram esquecidos, quais vozes foram ouvidas e
quais foram silenciadas, quais fontes históricas foram aclamadas e quais foram
renegadas.
Daí acreditar-se que a cidade, enquanto objeto da “ciência da cidade”, não pode
ser a cidade histórica, pelo menos não nessa pesquisa. Em que pese a representatividade
e influência dos clássicos, esses textos afastam a cidade enquanto objeto da ciência, por
perfazerem uma cidade histórica remontada a partir de fragmentos, ganhando ares de
documento, de exposição ou peça de museu (LEFEBVRE, 2001, p. 106). “A cidade
historicamente formada não vive mais”, isso é o que se observa da obra de Lefebvre. O
autor esclarece que a cidade histórica não passa de um objeto de consumo cultural para
os turistas e para o “estetismo”. No entanto, destaca que “o urbano” persiste
(LEFEBVRE, 2001, p. 106).
Em mais um salto histórico, convém destacar que as crises de superacumulação
voltam a assolar o capitalismo, aqui nos referimos aos anos 90 do século XX e início
desse século. A urbanização mais uma vez apresenta-se como saída e causa da crise, em
especial quando recordamos o boom do mercado imobiliário e suas consequências para
urbanização e o modo de vida urbano. A explosão imobiliária fora testemunhada por
quase todas as cidades, essa globalização se deu de forma parecida, sendo os ricos
favorecidos em detrimento de milhares de miseráveis, que se viam obrigados a migrar,
“a medida que o campesinato rural era desapropriado pela industrialização e
comercialização da agricultura” (HARVEY, 2014, p. 42/43).
O processo atual de urbanização, como nas fases já mencionadas, mas agora em
caráter global11, trouxe consigo inúmeras transformações no estilo e qualidade de vida
da urbanidade. O acesso ao espaço é de quem por ele possa pagar12, essa é a premissa
do espaço moderno, configurado por elites econômicas que escolheram o isolamento e

11
A respeito da globalização, com lucidez, nos fala Zygmunt Bauman: “O significado mais profundo
transmitido pela idéia da globalização é o do caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos
assuntos mundiais; a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um
gabinete administrativo. A globalização é a “nova desordem mundial” de Jowitt com um outro nome”
(BAUMAN, 1999, p. 58).
12
Para Ermínia Maricato (2013, p. 33): “A cidade constitui um grande patrimônio construído histórico e
socialmente, mas sua apropriação é desigual e o nome do negócio é renda imobiliária ou localização, pois
ela tem um preço devido aos seus atributos”.
assim pagam por ele de bom grado (BAUMAN, 1999, p. 24). O resultado dessa
crescente polarização na distribuição de renda e de poder é evidenciado nas formas
espaciais de nossas cidades; esse desenvolvimento incoerente só evidencia e enfatiza
que cada vez mais vivemos em cidades divididas, fragmentadas e propensas a conflitos
(HARVEY, 2014, p.47/48).
É sobre esse espaço conflitual que alerta Lefebvre:
Através de um imenso processo, o capitalismo apoderou-se da cidade
histórica, fê-la explodir, gerou um espaço social que ocupou, continuando a
sua base material a ser a fábrica e a divisão técnica do trabalho no seio da
empresa (1973, p. 19/20).

O conhecimento desse espaço, do que nele se faz, do que nele se passa e do que
dele se serve, retoma a dialética, que detecta e revela as contradições e a relação
conflituosa de um espaço fragmentado, ou seja, o centro e a periferia (LEFEBVRE,
1973, p. 17/18). Se todos possuem direito à cidade, mas a segregação no espaço urbano
destitui a população de direitos, então essa mesma cidade representa a negação de
direitos no plano factual. Pensando o direito à cidade como corolário da cidadania, a
negação desse direito implica a negação de todos os demais, situação agravada quando
em análise a promoção da autonomia das pessoas com deficiência.
Esse contraponto metodológico, aponta as variáveis nuances do direito à cidade
enquanto ciência. Lefebvre (2001, p. 106) assinalava que, mesmo ainda em esboço, uma
ciência analítica da cidade era necessária, e que conceitos e teorias só podem avançar
com a realidade urbana em formação, “com a práxis (prática social) da sociedade
urbana. Portanto, na busca por uma nova história valendo-se de uma historiografia não-
linear, apresenta-se a cidade a partir do urbano e não remontando-se a cidade antiga.
Isto é, na direção de uma prática social, do homem da sociedade urbana, dos conflitos e
conquistas que serviram de lastro para reivindicação por um direito à cidade.
As cidades como objeto de estudo possuem relevância, posto ser nos
aglomerados urbanos que as barreiras físicas, atitudinais e sociais apresentam-se como
forma mais contundente de desrespeito ao direito fundamental à cidade acessível. Daí, o
problema apresentado na Introdução do presente trabalho: a não efetivação do direito
fundamental à cidade acessível representaria óbice a uma vida plena, digna e autônoma
por parte das pessoas com deficiência, dificultando o exercício da cidadania? A análise
do tema exige uma pesquisa interdisciplinar, apoiada para além do Direito, na Filosofia,
na Sociologia, na História, bem como, na Geografia, disciplinas que discutem e
fundamentam o Direito à Cidade. Todavia, ressalta-se que o presente trabalho propõe-se
a apresentar um problema, não havendo espaço para o enfrentamento do desafio
interdisciplinar apontado.
É necessário delinear sobre qual ideia de cidade a pesquisa recairia. Para tanto,
as ponderações historiográficas são de grande importância, por, metodologicamente,
definirem dentro de uma nova perspectiva histórica, sobre qual cidade a pesquisa iria se
debruçar. Eis a razão pela qual, a partir de uma historiografia não-linear (aquela que
rompe com a temporalidade linear da história tradicional), a reflexão voltar-se-ia para a
cidade a partir do “urbano” e não remontando à “cidade histórica”. É nessa segunda
natureza, ou seja, no ambiente artificialmente construído sobre a natureza, que de forma
abrupta fora apropriada, que o desafio é iniciado. Para a trajetória por um direito à
cidade, é necessário rememorar, mesmo que por vezes de forma descritiva, as lutas
proletárias que reivindicaram o direito à cidade. Para tanto, Henri Lefebvre (1973;
2001) é uma fonte fundamental; a visão neomarxista do autor, desvela as implicações do
modelo capitalista de urbanização, a leitura do tema é, ao mesmo tempo, oxigenado pela
visão atual de David Harvey e sua filosofia das cidades (2014).
Do ajuntamento de tais marcos teóricos, cristalina se fez a compreensão de que
as cidades surgiram da concentração geográfica e social de um excedente de produção.
O processo de urbanização experimentado pela maioria das cidades serviu ao
capitalismo como saída para crises cíclicas de superacumulação inerentes a esse modelo
econômico. A produção capitalista do espaço trouxe consigo o surgimento de um
espaço fragmentado e propenso a conflitos. Nesse ambiente fragmentado, produzido
pelo modelo de urbanização capitalista, surgem as primeiras insurreições por “O Direito
à Cidade”. Desejar uma cidade melhor, e melhor para todos emerge das lutas
proletárias, sejam elas fabris ou urbanas, mas que buscam uma alternativa ao modelo
cotidiano de urbanidade, o qual, impossibilita que todos possam usufruir em igualdade
de condições do espaço urbano.
Com Michel Foucault e sua genealogia das instituições (2014), enquanto redes
de poder, é possível investigar a construção do espaço, aquele urbanizado por e para as
elites capitalistas, planejado para excluir os desvios da “norma”. Percebe-se, que a
pessoa com deficiência fora segregada do ambiente urbano, como ocorrido com os
loucos, leprosos, delinquentes por não ser de interesse do modo de produção capitalista,
estando na mira de sociedades disciplinares. Importante notar, que o confinamento do
louco em instituições asilares como observado por Foucault, não diz respeito ao
confinamento como doentes e sim, como incapazes de integrar à sociedade, por isso
mesmo não foi apenas o “louco” como “doente mental” que fora excluído, e sim todos
aqueles que apresentavam sinais de desregramento. O objetivo não era a cura dos
doentes e sim, ao mantê-los longe do convívio social, restaurar a ordem moral através
do adestramento acarretado pelas disciplinas, e assim, defender a sociedade da
“anormalidade”.
O outro, o diferente, os ditos “anormais” que tiveram seus corpos disciplinados,
bem como, toda a população, que, enquanto objeto da biopolítica passou a ser regulada,
ou seja, uma massa dos irredutíveis à norma foi então enquadrada num modelo de
cidade perfeita, que segrega e exclui a diversidade. Compreende-se, assim, que da
disciplina do anormal à regulação da população, os mecanismos do poder disciplinar,
bem como, os mecanismos do biopoder, definiram através da compartimentação o lugar
cabível a cada indivíduo no espaço urbano.
Ora encarcerados nas instituições disciplinares, sofrendo com os mecanismos
disciplinares na busca por um “corpo” mais eficaz ao trabalho, ora nas periferias das
cidades, depostas de qualquer urbanização que vise eliminar as barreiras que impedem a
vivência da cidade, o “anormal” em Foucault, ainda é o outro, o diferente na atualidade;
e a ele foi dado o não-lugar nesse ideal de cidade perfeita que privilegia o consumismo,
a competitividade, idolatra a segurança e impõe, para fora dos seus muros, uma massa
de indesejáveis.
Poderíamos pensar que as cidades não foram pensadas levando em conta o outro
(a pessoa com deficiência), mas, observa-se, na verdade, que a urbanização considerou a
diferença, a parcela da população que não se amolda à norma, contudo, para excluí-la,
para segregar “o outro” através da imobilidade no ambiente urbano. Ocorre que, esse
outro, exemplaridade da diversidade que compõe o urbano, é a voz ativa da história, foi
quem não se conformou com a disciplinação do corpo, foi quem não se tornou dócil e,
assim, mais eficaz. Essa massa reivindica seu direito à cidade, o direito não só de acesso
ou retorno às cidades tradicionais como nos alertou Lefebvre (2011, p. 117/118), mas de
mudar e reivindicar a cidade a partir dos nossos mais profundos desejos, como assinala
Harvey (2014, p. 63).
Ao reconhecer as diferenças, deseja-se o respeito à diversidade, para além da
tolerância, do respeito ao outro, ao meu semelhante, a minha coletividade, imperativo
pensar, idealizar e efetuar um modelo de urbanização prospectivo, que enfrente a
realidade presente através de medidas de requalificação do ambiente urbano, mas que
também apresente um projeto de cidade mais humano para as futuras gerações. Pensar a
cidade para todos é pensar além do outro, é articular políticas públicas que respeitem a
diversidade e ultrapassem a “retórica da tolerância”, com o desejo de reivindicar a
cidade para si, para o outro e para aqueles que ainda não existem, o que só possível
através da solidariedade para a autonomia.
Acredita-se, portanto, que a efetivação da acessibilidade enquanto direito
fundamental à condição humana é condição de possibilidade para o exercício da cidade
por parte da pessoa com deficiência, que poderá, a partir da eliminação das barreiras,
sejam elas, arquitetônicas, sociais ou mesmo, atitudinais, participar de forma autônoma,
independente e digna dos espaços comuns do ambiente das cidades. Espaços estes,
concebidos como espaços de participação social, necessários a construção e ao exercício
da cidadania. Propõe-se como estratégia para cidades acessíveis, uma gestão mais
democrática das cidades. Isto torna-se viável a partir dos instrumentos legais de
participação social, na medida em que a participação efetiva de diferentes parcelas que
compõe a diversidade das cidades na elaboração de políticas públicas para o
planejamento urbano, reflete uma maior representatividade e exercício da cidadania por
aqueles que estão reivindicando seu “direito à cidade”.

CONCLUSÃO

A pessoa com deficiência, que ao longo da história fora vista como algo
“anormal”, passa a ser vista sobre nova ótica. O corpo que fora através das disciplinas,
docilizado, adestrado, passa então de uma perspectiva médica para um modelo social de
deficiência, através de tal mudança paradigmática atesta-se que a experiência da
deficiência é uma consequência de um ambiente pensando, ou melhor, urbanizado para
excluir, e não fruto de uma lesão, que é um dado isento de valor. Essa perspectiva
humanitária ganha destaque com a Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e no nosso ordenamento com a Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), o que corrobora com a fundamentalidade
dos direitos que tutelam a pessoa com deficiência.
A dissociação entre capacidade e deficiência já aponta como o reconhecimento
dos direitos de personalidade devidos a todas as pessoas. Observa-se que a tutela de
direitos voltada para a pessoa com deficiência no ordenamento pátrio é exemplo do
fenômeno da jusfundamentalidade, ou seja, atrair a uma situação jurídica existencial o
caráter de fundamentalidade. A pessoa com deficiência passa a ter atenção especial do
Estado e seus direitos situam-se como posições jurídicas jusfundamentais.
A noção de fundamentalidade constitui uma categoria ligada à atribuição de uma
especial dignidade na proteção de um direito, o objeto de estudo do presente trabalho é
exemplo desse fenômeno. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, ao integrar o ordenamento com status de norma constitucional, passa a
ser indiscutivelmente direito fundamental mesmo estando fora do catálogo, como dispõe
do art. 5º, § 2º da Constituição Federal. A fundamentalidade desse direito resta
configurada para além do âmbito formal, sendo materialmente fundamental, pelo escopo
de proteção a dignidade e autonomia da pessoa com deficiência. No entanto, a mudança
de paradigma não pode ser apenas legal, mas sim, deve ser moral, sendo necessário um
giro na organização social e ambiental que prime pelo respeito às diferenças e promoção
do exercício da cidadania.
Percebe-se assim, que o modelo capitalista de urbanização desenvolvido ao
longo dos séculos foi excludente, produziu cidades caracterizadas pela fragmentação do
espaço e pela exclusão social e territorial. O desordenamento do crescimento periférico
associado à profunda desigualdade entre áreas pobres, desprovidas de toda a
urbanidade, e áreas ricas, nas quais os equipamentos urbanos e infraestruturas se
concentram, reflete a realidade de conflitos sociais no interior da cidade, o que reforça a
injustiça social e inviabiliza uma cidade para todos.
REFERÊNCIAS

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SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de
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WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense,
DIREITOS E CONQUISTAS NA INCLUSÃO DE PESSOAS DEFICIÊNTES
NAS ESCOLAS DE ENSINO REGULAR: REFLEXÃO ACERCA DO
ESTATUDO DA PESSOA COM EFICIÊNCIA.

Risonete Rodrigues da Silva13


Samuel Pereira da Silva Júnior14
Ana Maria Tavares Duarte15

GT: 07 Direitos Humanos e a deficiência

Resumo
A temática inclusão social e escolar de pessoas deficientes está presentes nos
congressos, seminários, colóquios e debatida, principalmente entre o meio acadêmico.
Diante de tal realidade surgiu a seguinte inquietação: as instituições escolares estão
preparadas para receber as pessoas deficientes ou as adaptações necessárias serão
realizadas após a presença dos mesmos nas escolas? Com o intuito de responder nossa
inquietação, elencamos como objetivo geral: Compreender como se efetiva as
conquistas que o estatuto da pessoa com deficiência concede as pessoas deficientes em
relação a inclusão escolar. Como objetivos específicos: Conhecer as principais barreiras
que contribui para que ocorra a exclusão ou segregação das pessoas deficientes nas
instituições de ensino; Identificar as necessidades fundamentais para que seja efetivada
a inclusão escolar de deficientes nas Instituições de ensino regular. Com o intuito de
contemplar nossos objetivos esta pesquisa é qualitativa e para coleta de dados
utilizamos a entrevista semiestruturada, na qual utilizamos análise de conteúdo segundo.
Assim, concluiu-se que mesmo com muitas conquistas e avanços a inclusão escolar para
pessoas com deficiências ainda não está efetivado como o estatuto da pessoa com
deficiência assegura.
Palavras-chave: Direito Humanos. Inclusão escolar. Deficiência. Barreiras.

Introdução

13
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGECM), Universidade
Federal de Pernambuco - Centro Acadêmico do Agreste – UFPE/CAA. Integrante do Grupo de Pesquisa – CNPq
– UFPE – Educação, Inclusão Social e Direitos Humanos. Pedagoga pela UFPE/CAA. Caruaru/PE.
risoneteprof@gmail.com
14
Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela ESA-PE. Bacharel em Direito – FAVIP - E-MAIL:
samuel.junior89@outlook.com.
15
Professora Adjunta, Universidade Federal de Pernambuco- Centro Acadêmico do Agreste-UFPE/CAA.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa – CNPq – UFPE – Educação, Inclusão Social e Direitos Humanos.
Pedagoga pela UFPE/CAA
A questão da pessoa com deficiência é um tema que está sendo abordado
constantemente, através de congressos, simpósios, palestras entre outros. A ênfase no
tema começou após a declaração de Salamanca em 1994, na Espanha. O evento reuniu
94 representantes de governos e organizações não governamentais (Ongs). Assim, a
educação inclusiva é cada vez mais debatida e torna-se objeto de estudo e pesquisa nos
meios acadêmicos.
Porém, desde 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos já trazia
princípios de igualdade, liberdade de locomoção, segurança, integridade física e à
segurança pessoal e o direito a instrução independente da pessoa ser deficiente ou não.
Pois, de acordo com o art. 1 da Declaração dos Direitos Humanos “todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Ainda, no Artigo 7, diz que:

Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual
proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento
a tal discriminação. (UNIC / Rio / 005 - Agosto 2009).

Essa preocupação com a pessoa com deficiência foi resultado das duas grandes
guerras que assolaram o mundo no Século XX. Como resultado dos conflitos houveram
muitos soldados, e mesmo civis, que perderam membros do corpo, além de terem
desenvolvido problemas na audição, psicológicos, entre outros. Por outro lado, essas
vítimas da guerra eram “heróis de guerra”, e como tal não poderiam ser, simplesmente
desprezados pela sociedade, visto que a tradição bélica dos governos era o
reconhecimento público pelos serviços prestados pelos ex-combatentes.
A partir disso, mudou a visão da sociedade e dos governos com relação a
pessoa com deficiência. Vale destacar a criação dos jogos paraolímpicos, buscando dar
alguma “utilidade” aos deficientes. Com o passar do tempo, passou-se a olhar também
para os outros deficientes.
Nesta mesma direção, o Estatuto da Pessoa com Deficiência é destinado a
assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das
liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e
cidadania. Rege o art. 3o que, para fins de aplicação da Lei, devem ser considerados
acessibilidade, tecnologia assistiva, barreiras entre outras.
Diante dos direitos conquistados pelas pessoas deficientes surge a seguinte
inquietação: as instituições escolares estão preparadas para receber as pessoas
deficientes ou as adaptações necessárias serão realizadas após a presença dos mesmos
nas escolas? Visto que, no Brasil, não é raro presenciar o desrespeito e a vulnerabilidade
em que vive grande parte das pessoas deficientes.
Observando esta inquietação, elencamos como objetivo geral compreender
como se efetiva as conquistas que o estatuto da pessoa com deficiência concede às
pessoas deficientes em relação à inclusão escolar. E como objetivos específicos
conhecer as principais barreiras que contribuem para a exclusão ou segregação das
pessoas deficientes nas instituições de ensino; identificar as necessidades fundamentais
para que seja efetivada a inclusão escolar de deficientes nas Instituições de ensino
regular.
De acordo com a declaração dos Direitos Humanos em seu artigo 26 “todo ser
humano tem direito à instrução, que será gratuita e obrigatória, pelo menos nos graus
elementares e fundamentais.” Diante deste artigo e das leis e decretos, que respaldam a
inclusão de pessoas deficientes no ensino regular, nos debruçaremos com o intuito de
contemplar nossos objetivos.
Com a finalidade de compreender como se efetivam as conquistas que o estatuto
da pessoa com deficiência concede às pessoas deficientes em relação à inclusão escolar,
utilizamos a pesquisa qualitativa. Que segundo Minayo (2013.p. 63) “a interação entre o
pesquisador e os sujeitos pesquisados é essencial”. Tal interação contribuiu para a coleta
de dados que iniciou com uma conversar entre os interlocutores, realizada por iniciativa
do pesquisador. Desta forma, realizamos uma entrevista semiestruturada que segundo
Minayo (2013, p. 64) “combina perguntas fechadas e abertas, em que o entrevistado tem
a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se perder à indagação
formulada”.

A entrevista como fonte de informação pode nos fornecer dados secundários


e primários de duas naturezas: (a) os primeiros dizem respeito a fatos que o
pesquisador poderia conseguir por meio de outras fontes como censos,
estatísticas, registros civis, documentos, atestados de óbitos e outros; (b) os
segundos - que são objetos principais da investigação qualitativa – refere-se
a informações diretamente construídas no diálogo com o indivíduo
entrevistado e tratam da reflexão do próprio sujeito sobre a realidade que
vivencia. (MINAYO, 2013.p. 65).

Outros procedimentos metodológicos foram adotados como: a análise


documental, no qual foram utilizadas o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a
Declaração de Salamanca e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Também
utilizamos análise de conteúdos dos dados colhidos através da entrevista.

Conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por


procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das
mensagens, indicadoras (quantitativa ou não) que permitem a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis
inferidas) destas mensagens. (BARDIN, 1979, p.42).

Com a finalidade de contemplar os objetivos geral e os específicos, citados


anteriormente, optamos por 05 (cinco) campos de pesquisa distintos. Estes campos
foram: uma Organização não Governamental (ONG), que atende pessoas deficientes,
uma escola de ensino regular nos anos iniciais da rede municipal, uma da Rede Estadual
de ensino médio e uma Universidade Pública Federal e um Instituto Federal, todos esses
campos de pesquisa estão localizados na cidade de Caruaru–PE. De cada campo
escolhemos 01 (um) entrevistado, devido o número de pessoas deficientes nessas
instituições serem uma ou duas pessoas. Com exceção da Ong que atende
exclusivamente pessoas deficientes.
Antes de mostrarmos os resultados da análise de dados, sentimos a
necessidade de discorrer sobre alguns tópicos que são de suma importância para
compreensão das respostas e conclusões obtidas através desta pesquisa.

Breve percurso histórico da pessoa deficiente.

Segundo Santos; Aureliano (2012, p. 297) “A diversidade humana é o primeiro


passo positivo ao entendimento da inclusão, uma vez que esse é um processo social,
humano e singular de cada indivíduo”. Embora hoje tenhamos uma visão crítica sobre o
respeito à diferença, ainda há barreiras no processo de inclusão social de pessoas
deficientes, pois não se trata apenas de inserir, mas é uma questão de respeito à
diversidade.
Atualmente, a pessoa deficiente tem direitos garantidos por leis, mas nem
sempre foi assim. No passado, as pessoas que apresentavam deficiências eram
“extintas” da sociedade de maneira agressiva e perversa. Holanda (2009, apud Santos e
Aureliano, 2012. p. 297) “os portadores de deficiências tiveram suas vidas ameaçadas,
tratados como se fossem a própria materialização do mal e para combatê‐los era preciso
castigar, torturar e matar.” Estes atos de barbárie passaram, ao longo do tempo, a ter
uma nova roupagem.
A partir do século XX, começa a haver pequenos debates sobre as pessoas
deficientes. Ao invés de serem maltratadas e mortas, as famílias começaram a
abandonar suas crianças deficientes em igrejas, instituições residenciais ou
abandonando-as em seus próprios leitos trancadas em seus quartos. Longe da sociedade
e até mesmo da família, pois era vergonhoso ter na família alguém deficiente. Muda o
cenário de vida, porém ainda é cruel e desumano o modo como era tratada a pessoa
deficiente. O Governo tampouco assumia responsabilidade sobre elas.
Em meados do século XX, esse cenário começava a ter novos significados. Nos
anos 1960, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN, Lei nº
4.024/61, apontava os direitos, atendimento e serviço especializado ao ensino regular.
Assim, começou a luta pela inserção das pessoas deficientes em instituições escolares,
que não era mais interesse apenas do deficiente, mas de todos. Nos anos 1970, a
Educação Especial passou a ser foco, procurando estabelecer orientações/conselhos de
lutas que garantissem os direitos da pessoa deficiente. Assim, deu‐se início ao conceito
de educação especial e aos estudos sobre deficiências e suas peculiaridades.
Porém, o conceito de educação inclusiva passa a ganhar visibilidade quando
algumas escolas passam a aceitar alunos especiais, desde que os mesmos conseguissem
se adequar ao plano de ensino da instituição. Entretanto, o grande marco da educação
inclusiva aconteceu na Conferência de Salamanca no ano de 1994, na Espanha com a
ajuda da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO). O evento reunia 94 representantes de governo e ONG‟s.
[...] as escolas se devem ajustar a todas as crianças, independentemente das
suas condições físicas, sociais, linguísticas ou outras. Neste conceito, terão de
incluir-se crianças com deficiência ou sobredotados, crianças da rua ou
crianças que trabalham, crianças de populações remotas ou nómadas,
crianças de minorias linguísticas, étnicas ou culturais e crianças de áreas ou
grupos desfavorecidos ou marginais. (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA,
1994, p. 6).

Assim, com a Declaração de Salamanca se consolida o conceito de Educação


Inclusiva e para todos. Independente das diferenças quer seja, física, cognitiva,
intelectual, étnica, religião ou diferença de gênero.

O desenvolvimento das escolas inclusivas, enquanto meio mais eficaz de


atingir a educação para todos, deve ser reconhecido como uma política -
chave dos governos e ocupar um lugar de destaque na agenda do
desenvolvimento das nações. É unicamente desta forma que se poderão obter
os recursos necessários, pois as mudanças de política e as prioridades não
podem ser efetivas a não ser que se disponibilizem esses mesmos recursos. É
preciso um compromisso político, tanto a nível nacional como comunitário,
para obter os recursos adicionais e para reorientar os já existentes. Embora as
comunidades tenham de representar um papel - chave no desenvolvimento
das escolas inclusivas é igualmente essencial o suporte e encorajamento dos
governos para se conseguirem soluções eficazes e realistas. (DECLARAÇÃO
DE SALAMANCA, 1994, p. 41).

Portanto, a Declaração de Salamanca veio interferir de forma significativa para


que o direito das pessoas deficientes seja, de fato, efetivado não só nas instituições
escolares, mas em toda sociedade.

O direito à inclusão escolar: do real ao ideal

Os Direitos Humanos e a Declaração de Salamanca são conquistas da


humanidade. Porém, para que essas normas sejam efetivadas ainda há algumas
barreiras a serem enfrentadas como preconceito, discriminação, humilhação e até
mesmo violência. Por isso, todos os cidadãos devem ter compromisso com os princípios
que sustentam os Direitos Humanos para que as pessoas deficientes sejam vistas como
sujeitos de direitos.
Lei no 13.146/2015 - Art. 1º É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a
assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e
das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua
inclusão social e cidadania. (ESTATUTO DA PESSOA COM
DEFICIENCIA, 2015, p.8).
A lei acima citada assegura a inclusão social e de cidadania. A instituição
escolar é um lugar onde a criança desenvolve desde cedo sua cidadania. O capítulo IV
do Estatuto da pessoa com Deficiência, nos artigos 27 a 30, vem tratar do
exclusivamente do direito à educação escolar. O artigo 28 inciso I, afirma que “sistema
educacional inclusivo em todos os níveis e modalidade”. Portanto, é dever das
instituições de ensino estar adaptadas de forma que a pessoa deficiente tenha a
possibilidade de ingressar e permanecer na escola concluindo assim seus estudos.
De acordo com as leis e artigos, as instituições escolares devem ser adaptadas
para receber esse novo público, não apenas com adaptações na estrutura física do
prédio. Segundo Omote (2004, p.1) destaca que: “inclusão escolar vai muito além do
que modificações arquitetônicas”.

As inclusões escolares não se limitam a aspectos físicos como o ambiente


arquitetônico, os recursos didático-pedagógicos, o mobiliário e o acervo de
laboratórios e bibliotecas nem aos aspectos educacionais – como o currículo,
os objetivos instrucionais e a avaliação. (OMOTE, 2004, p. 1).

A inclusão escolar vai além de leis e regras e normas, mesmo sabendo que elas
são fundamentais e que a partir das mesmas é que nossos direitos e deveres são
garantidos. Para que de fato a inclusão escolar seja efetivada, a comunidade escolar
deve estar preparada para transformações pedagógicas e pessoais. Segundo Raiça,
Prioste e Machado (2006, p.51-52) quando se propõe uma educação inclusiva se faz
necessária uma mudança na concepção e na prática pedagógica do sistema educacional
como um todo. Pois, a prática inclusiva entra na aprendizagem e não no ensino, buscando
uma prática que atenda o desenvolvimento da pessoa.

É importante lembrar que o simples acesso das crianças com deficiência


mental às classes regulares não significa inclusão. Muitas vezes, ainda que
frequentem classes de crianças “normais”, podem se sentir excluídas do
investimento pedagógico e até mesmo das trocas sociais realizadas entre os
membros do grupo no qual estão inseridas. (RAIÇA, PRIOSTE,
MACHADO, 2006, p. 18)

As autoras acima citadas se referem a crianças com deficiência mental, porém


crianças com qualquer deficiência podem estar nesta mesma situação. Como exemplo,
tem-se a situação de alunos surdos em salas de crianças “normais” em que a professora
não sabe a língua brasileira de sinais e que muitas vezes a escola não tem em sua grade
de funcionários o intérprete de Libras. Portanto, é evidente que ainda há barreiras a
serem conquistadas, para que os direitos garantidos sejam efetivados.

Barreiras diárias enfrentadas pela pessoa com deficiência.

Todos os dias, as pessoas deficientes têm que superar obstáculos para realizar
suas atividades diárias, muitas dessas barreiras interferem diretamente na sua
locomoção, mesmo que a Constituição Brasileira assegure o direito de todo cidadão de
“ir e vir” livremente.
Diante da diversidade de obstáculos existente, o Estatuto da Pessoa com
Deficiência no Art. 3º, paragrafo IV – denomina como Barreiras:

Qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça


a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de
seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à
comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com
segurança, entre outros. (Art.3 IV- ESTATUTO DA PESSOA COM
DEFICIENCIA).

Essas barreiras são classificadas em: urbanistas, arquitetônicas, barreira nos


transportes, barreiras nas comunicações e na informação, barreiras atitudinais e
tecnológicas. Esses são os principais entraves que impede a efetivação dos direitos
conquistada pelas pessoas deficientes como também, interfere de forma significativa
quando a inclusão escolar.
Diante das diversidades de barreiras existentes, as pessoas deficientes estão
sendo discriminadas nas comunidades em que vivem, sendo excluídas do mercado de
trabalho, das escolas e da vida social. Com o intuito de minimizar tais problemas, a
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), em parceria com o Comitê
Brasileiro de Acessibilidade, estabeleceu a resolução NBR 9050, com parâmetros
técnicos a serem respeitados na construção, instalação e adaptação de edificações,
mobiliário, espaços e equipamentos urbanos.
Mesmo com todos esses parâmetros não é raro presenciarmos a falta de
acessibilidade nas ruas, praças, parques e edifícios públicos e privados. Algumas
barreiras são mais praticadas contra os alunos deficientes na escola. Tais barreiras
interferem, e mesmo impossibilitam a educação desses alunos. Pois, são posturas de
discriminação e preconceito.

Realização de atividades de sensibilização e conscientização, promovidas


dentro e fora da escola a fim de eliminar preconceitos, estigmas e
estereótipos, e estimular a convivência com alunos que tenham as mais
diversas características atípicas (deficiência, síndrome, etnia, condição social
etc.) para que todos aprendam a evitar comportamentos discriminatórios. Um
ambiente escolar (e também familiar, comunitário etc.) que não seja
preconceituoso melhora a autoestima dos alunos e isto contribui para que eles
realmente aprendam em menos tempo e com mais alegria, mais motivação,
mais cooperação, mais amizade e mais felicidade. Pessoal capacitado em
atitudes inclusivas para dar atendimento aos usuários com deficiência de
qualquer tipo. “Provendo as escolas dos recursos humanos [acessibilidade
atitudinal] (Resolução CNE/CEB nº 2, de 11/9/01, art. 12).

As barreiras atitudinais são perpetuadas na escola e fora dela. Entretanto,


acreditamos que é por meio da educação que tais atitudes poderão ser minimizadas,
consequentemente seus efeitos danosos, quer sejam afetivas e ou sociais.
Diante dos tópicos acima citados, tivemos um breve resumo da trajetória dessas
pessoas que foram mortas, maltratadas, abandonadas, excluídas da sociedade. Assim,
podemos perceber o quão importante é a Declaração Universal dos Direitos Humanos
que veio reparar uma história de descaso e de marginalização, não só com relação à
pessoa deficiente, mas à diversidade humana.

Resultado e discussão dos dados coletados

Dentre os dados coletados através da entrevista, elencamos 03 (três) perguntas


com as quais obtivemos respostas relevantes, que contemplam nossos objetivos. Nossos
entrevistados serão chamados de cidadão, caruaruense, pernambucano, nordestino e
brasileiro. Optamos por não os nomear por suas “diferenças”, mas como sujeitos de
direitos, pois todos entrevistados são cidadãos brasileiros.
A partir dos dados coletados e tratados referenciando-se na análise de conteúdo,
foi iniciado o diálogo entre eles e o aporte teórico de forma a responder à questão
central e aos objetivos da pesquisa.
Pesquisadora Pergunta: No cotidiano escolar você ver as conquistas da pessoa deficientes
sendo realizadas?
Entrevistados Respostas

Cidadão Vejo muitas, mas não com ele a professora tem medo do meu filho e não
sabe como agir. Ela não passa nenhuma atividade escolar para ele.

Caruaruense Não, aqui não tem intérprete de Libras e não tem outros deficientes.

Pernambucano Aqui na escola muitas coisas foram cumpridas por que eu falei. Como
colocar porta e tranca nos banheiros e retirar uma caquera 16 que estava na
frente da rampa de acesso as salas de aula.

Nordestino Sim, mas com muita peleja, dificuldades.

Brasileiro Se eu vejo? (risos) há muitas conquistas sendo efetivadas sim, mas ainda não
chegaram aqui. A burocracia atrapalha bastante, aqui não há material em
braile.

Diante da pergunta realizada: No cotidiano escolar você ver as conquistas da


pessoa deficientes sendo realizadas? Podemos perceber nas falas dos entrevistados que
os avanços e conquistas estabelecidos por leis ainda estão longe de serem efetivados em
sua totalidade. Identificamos na fala de cidadão e de caruaruense a falta de profissionais
da educação com formação adequada.
Desta forma, podemos destacar a importância que uma formação continuada
para efetivação do direito a educação para todos. Segundo Wengzynski e Tozetto, (2012,
p.3)

A formação continuada contribui de forma significativa para o desenvolvimento


do conhecimento profissional do professor, cujo objetivo entre outros, é facilitar as
capacidades reflexivas sobre a própria prática docente elevando-a a uma
consciência coletiva. (WENGZYNSKI E TOZETTO, 2012, p.3).

A inclusão escolar não é apenas incluir pessoas deficientes, mas, também,


atender ao alunado em sua diversidade quer seja, cultural, étnica, social entre outras. E a
formação continuada é de suma importância para que os professores possam adquirir
uma posição critica e reflexiva diante das barreiras existentes no sistema educacional.
Nesta mesma direção Carvalho (2006) destaca que

16
Vaso grande com planta.
Os professores alegam (com toda razão) que em seus cursos de formação não
tiveram a oportunidade de estudar a respeito, nem de estagiar com alunos da
educação especial. Muitos resistem, negando-se a trabalhar com esse alunado
enquanto outros os aceitam, para não criarem áreas de atrito com a direção
das escolas. (CARVALHO, 2006, p. 27).

Portanto, a formação continuada possibilitará meios para que os professores


possam minimizar esses entraves que interfere na inclusão escolar.
Ainda, nas falas de Pernambucano e Brasileiro podemos observar a falta de
interesse por parte da gestão e da comunidade escolar. Porém, é pertinente situar, que a
responsabilidade para que aconteça a inclusão escolar não é exclusiva do professor e da
gestão, é do sistema educacional, da família, enfim, de toda sociedade.

Pesquisadora Pergunta: Você se sinta realmente incluído nesta escola ou precisa ter algo
mais para que ocorra a inclusão?

Entrevistados Respostas

Cidadão Claro que não me sinto, aqui ainda precisa de muitas coisas principalmente
que fosse um espaço maior.

Caruaruense Não, o que eu queria mesmo era sair daqui e ir para uma escola onde só
tenha surdos.

Pernambucano Na questão da estrutura não falta nada, a escola é totalmente acessível. Na


questão educacional, falta formação para os professores que não conhece
nossos direitos. Não adianta o governo cobrar do professor se não dá
formação. Também não adianta a escola ter uma estrutura física toda
acessível e não ter profissionais qualificados e nem consciente a nossos
direitos.

Nordestino Não me sinto totalmente incluindo. Falta Banheiros, esta faltando


equipamentos adaptados e a falta de respeito das pessoas que ainda continua
utilizando nosso banheiro.

Brasileiro Não me sinto totalmente incluído. Se a instituição não oferece materiais


adaptados a minha necessidade, isso prova que não estou sendo respeitado.

Quando perguntamos: Você se sinta realmente incluído nesta escola ou precisa


ter algo mais para que ocorra a inclusão? A resposta foi unanime, não. E novamente
podemos perceber o descaso em relação à falta de profissionais com formação adequada
e a falta material didático e pedagógico que venha suprir a necessidade desses alunos.
Nesta mesma pergunta, a resposta de Pernambucano traz uma questão que é
comum que é a estrutura física do prédio. Muitas escolas são chamadas inclusivas por
possuírem rampas e banheiros adaptados. Mas, de acordo com Omote (2004, p.1) “As
inclusões escolares não se limitam a aspectos físicos como o ambiente arquitetônico”.
Como já foi discutido ao tratarmos da escola real que esta aquém da escola ideal.

Pesquisadora Pergunta: O Estatuto da Pessoa com Deficiência cita algumas barreiras,


qual delas você acha mais difícil de ser
superada?
Entrevistados Respostas

Cidadão O preconceito e a indiferença que os profissionais muitas vezes tratam a


gente.

Caruaruense A falta de comunicação. Preciso esta fazendo gestos e mimicas para ser
entendido pelos meus colegas como pelos professores e as outras pessoas das
escolas.

Pernambucano A barreira urbana, a cidade não esta preparada para o cadeirante, as paradas
de ônibus não têm rampas as rampas dos ônibus em cada 4 ônibus 3 estar
com a rampa quebrada.

Nordestino A pior barreira para mim que sou cadeirante é a falta de transporte, calçadas
e rampas.

Brasileiro A barreira atitudinal sem dúvida é a pior. Através desta barreira surgem as
demais que oprime, ignora e desrespeita todos os nossos direitos já
adquiridos.

A terceira pergunta que elencamos para essa análise foi: O Estatuto da Pessoa
com Deficiência cita algumas barreiras, qual delas você acha mais difícil de ser
superada? Dentre os entrevistados a resposta de Brasileira, resume todas as outras falas
quando ele diz: “A barreira atitudinal sem dúvida é a pior. Através desta barreira
surgem as demais que oprime, ignora e desrespeita todos os nossos direitos já
adquiridos”.
Uma barreira atitudinal, infelizmente muito comum, na cidade onde serviu de
campo para esta pesquisa, são os carros estacionados em cima da calçada ou
estacionados nas vagas reservadas para pessoas com deficiência ou mobilidade
reduzida. Para muitas pessoas ditas “normais” essa atitude é comum, não causa
problema algum. Porém, para um cadeirante, por exemplo, esta atitude está impedindo
o acesso a algum local, quer isso aconteça de modo intencional ou não.
As barreiras atitudinais, porém, nem sempre são intencionais ou percebidas. O
problema das barreiras atitudinais é que quando são percebidas muitas vezes nos
omitimos e não as removermos.

Considerações finais

O estudo desenvolvido contemplou nossa inquietação que era saber se as


instituições escolares estão preparadas para receber as pessoas deficientes, ou se as
adaptações necessárias seriam realizadas após a presença dos mesmos nas escolas?
Como respostas a nossa inquietação, concluímos que quanto à estrutura física do prédio
as instituições pesquisadas estão adaptadas, apenas 02 (duas) necessitam de piso tátil.
Também, nossos objetivos foram contemplados. Assim, concluímos que a
efetivação das conquistas que o estatuto da pessoa com deficiência concede as pessoas
deficientes em relação à inclusão escolar é sendo colocada em prática de acordo com o
contexto escolar e a necessidade do(a) aluno(a). Porém, falta mais alteridade por parte
da comunidade escolar. O(A) professor(a) sozinho ou a gestão isolada, não pode
materializar a inclusão escolar. Mas, com o trabalho coletivo, onde todos tenham o
mesmo objetivo, qual seja, garantir a esses discentes um ensino e aprendizagem além do
desenvolvimento pleno de cidadania.
Quantos aos objetivos específicos podemos conhecer as principais barreiras
que contribui para que ocorra a exclusão ou segregação das pessoas deficientes nas
instituições de ensino, que são as barreiras urbana e atitudinal. Muitos alunos não têm
condições de pegar um transporte para se deslocar até a escola devido a falta de
estrutura arquitetônica da cidade, além do mal funcionamento das rampas nos
transportes públicos e dos obstáculos encontrados nas calçadas como: buracos, motos e
carros estacionados em cima das calçadas, entre outros.
Desta forma, identificamos as necessidades fundamentais para que seja
efetivada a inclusão escolar de deficientes nas instituições de ensino regular. Primeiro
que as pessoas deficientes não precisam de esmolas ou de caridade da instituição
escolar. Elas estão neste ambiente para adquirir conhecimento e aprendizagem como
qualquer cidadão. A Constituição Federal Brasileira garante educação a todos, e mais do
que rampas e banheiros adaptados esse publico quer ser respeitado em suas diferenças e
como sujeito de direito.
É certo que para a inclusão tornar-se uma realidade em nossas instituições
escolares, se faz necessário currículo e avaliações adaptadas, estrutura física do prédio
acessível a qualquer pessoa independente de sua diferença funcional, profissionais com
formação adequada como intérprete /tradutor de Libras, em braile, psicopedagogos entre
outros.
Através desse estudo, pretendemos despertar uma reflexão nas comunidades
escolares e a todos interessados no tema. Pois, criticar os governantes e reclamar do
sistema educacional não irá resolver o problema da falta de efetivação dos direitos da
pessoa deficiente no ambiente escolar, mas todos unidos e com proposito de reparar um
déficit histórico, de abandono e desrespeito a esses seres humanos. Assim, alteridade e
respeito é o ingrediente principal para se iniciar um ambiente inclusivo que seja escolar
ou não.

Referências

ABNT -Associação Brasileira de Normas Técnicas. Acessibilidade de pessoas


portadoras de deficiências a edificações, espaço, mobiliário e equipamentos 8
urbanos (NBR 9050:2004, válida a partir de 30/6/04). Rio de Janeiro: ABNT, 2004.

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Ed. 70, 1979.

BRASIL. Constituição (1988) Constituição Federal da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF, 1988.

______ Resolução CNE/CEB nº 2, de 11/9/01.

______ Estatuto da pessoa com deficiência – Brasília: Senado Federal, Coordenação de


Edições Técnicas, 2015. 65 p. Conteúdo: Lei nº 13.146/2015.

CARVALHO, Rosita Edler. Educação Inclusiva: os pingos nos “is”. – Porto Alegre:
Mediação, 2006.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS - Adotada e proclamada
pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro
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FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
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HOLANDA, T. Uma questão de inclusão: diálogos sobre educação inclusiva travados


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1579 http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/rec In. SANTOS, Maria do Socorro dos;
AURELIANO, Francisca Edilma Braga Soares. Aspectos históricos e conceituais da
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Espaço do Currículo, v.4, n.2, pp.295-309, Setembro de 2011 a Março de 2012.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade /


Suely Ferreira Deslande; Romeu Gomes; Maria Cecília de Souza Minayo
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OMOTE, S. Medida de atitudes sociais em relação à inclusão. 2004. Disponível em:


<http://www.sbpcnet.org.br/livro/57ra/programas/CONF_SIMP/textos/sadaoomote.htm
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SANTOS, Maria do Socorro dos; AURELIANO, Francisca Edilma Braga Soares.


Aspectos históricos e conceituais da educação inclusiva: uma análise da perspectiva
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WENGZYNSKI, Danielle Cristiane; TOZETTO, Soares Suzana. A Formação


Continuada face as suas Contribuições para a Docência. IX Anped Sul, 2012.
GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CONSOLIDAÇÃO DO
ACESSO À EDUCAÇÃO PARA CRIANÇAS AUTISTAS NO CONTEXTO DA
ESCOLA PÚBLICA REGULAR: Um estudo de caso em Caruaru-PE

Vanda Maria da Silva17


Cicera Mirelle Florêncio da Silva18

GT 07 – DIREITOS HUMANOS E PESSOA COM DEFICIÊNCIA

RESUMO

O presente artigo emerge das experiências vivenciadas através da observação do


trabalho de inclusão que uma professora realiza com dois alunos autistas em uma escola
pública regular da cidade de Caruaru-PE. Ao analisarmos as observações abordamos e
dialogamos acerca das concepções referentes à consolidação da Educação Especial e a
inclusão de alunos autistas em escolas públicas regulares. Compreendemos a Inclusão
de crianças autistas na rede regular de ensino como sendo uma conquista significativa já
que configura-se como um direito fundamental conquistado após a realização de
diversos debates, reinvindicações e lutas de movimentos sociais em prol da inclusão
escolar e da concepção explícita na Constituição Federal Brasileira de que a “Educação
é direito de todos” portanto devendo oferecer um ensino de qualidade e um atendimento
interdisciplinar especializado para alunos com o transtorno do espectro autista.
Utilizamos como procedimentos teórico-metodológicos entrevistas semiestruturadas,
observação e conversas informais o que possibilitou a construção de uma visão
detalhada referente ao desafio que a professora enfrentava cotidianamente para acolher,
incluir e atender da melhor forma os dois alunos autistas, bem como os avanços que
estes alunos apresentaram no quesito ensino-aprendizagem.

Palavras Chave: Educação Especial. Direito à Educação. Autismo. Escola Regular.

1. INTRODUÇÃO

Essa pesquisa é fruto das vivências, diálogos e observações construídas no


espaço de uma escola regular na cidade de Caruaru-PE, especificamente numa turma de
Educação Infantil (Pré- II). Escolhemos esta turma por compreendemos que seria a mais
indicada para nossa investigação já que a classe possuía crianças (duas) com espectro

17
Graduanda do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE-CAA,
vandasilva.a@outlook.com
18
Graduanda do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE-CAA,
ciceramirelle@bol.com.br
autista. Esta turma possui atendimento interdisciplinar e conta com a participação da
família dos alunos, um psicólogo da escola, a professora e a professora auxiliar e a
equipe de apoio de educação inclusiva da Secretaria de Educação de Caruaru.
Inicialmente apresentamos uma perspectiva histórica do autismo para então
dialogarmos acerca da Inclusão escolar de crianças autistas. O termo autismo foi
utilizado pela primeira vez no ano de 1943 pelo médico Austríaco Dr. Leo Kanner, este
por sua vez escreveu um artigo intitulado “Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo”,
escrito em inglês, nesta produção acadêmica o médico relata e descreve 11 casos de
autismo que chegaram até ele para tratamento relatando ainda que o primeiro de
Autismo que este atendeu, foi o caso de Donald T., que data do ano de 1938.
No ano de 1944, outro importante médico, Hans Asperger , também austríaco,
formou-se na mesma universidade onde estudou Leo Kanner, Universidade de Viena.
Hans Asperger escreveu em alemão o artigo intitulado “Psicopatologia Autística da
Infância”, neste artigo o médico descreveu as condições do autismo de diversas crianças
que se assemelhavam as descrições que foram feitas por Kanner.
Esses dois médicos foram os percursores em elaborar e escrever as primeiras
produções acadêmicas que tratam sobre o autismo embora tenham utilizado linguagens
e modos diferentes de caracterizar este distúrbio.
O Autismo apesar de estar sendo estudado por cientistas acerca de sete décadas,
ainda pairam sobre este distúrbio do desenvolvimento humano, várias dúvidas e
questionamentos. A aparência física das crianças com autismo não possui nenhuma
diferença em relação a aparência das demais crianças, porém as características que as
diferenciam é o atraso da fala, isolamento , dificuldade de aprendizagem, dificuldade de
socialização, dificuldade de comunicação, movimentos repetitivos, ecolalia tardia,
dificuldade em se utilizar da imaginação, hiperatividade e em alguns raros casos uma
agressividade desmedida e sem causa .
Ressaltamos que apesar de terem sido realizadas e divulgadas diversas pesquisas
sobre as possíveis causas do autismo, nunca se chegou a uma real conclusão sobre a sua
real causa. Destacamos que não se pode considerar o autismo como um retardo mental,
pois no retardo mental a criança demonstra um desenvolvimento totalmente defasado,
enquanto que a criança que tem autismo o desenvolvimento é absolutamente irregular,
ou seja, em alguns casos a criança pode ter um atraso na fala, mas ter o
desenvolvimento motor normal ou acelerado, não existe uma previsão correta de como a
criança autista irá se desenvolver durante sua infância, pois este desenvolvimento irá
depender do grau de autismo que esta possui, por conseguinte é deveras de muita
importância o apoio de uma equipe multidisciplinar de saúde para orientar a família
neste processo.
Atualmente compreendemos que a efetivação da educação inclusiva é
desafiadora para o professor, visto que este profissional deve além de refletir sobre suas
práticas cotidianas estabelecer parcerias e um diálogo aberto com a família do aluno,
para que haja uma parceria que contribua para o desenvolvimento do ensino-
aprendizagem das crianças autistas.
Nesse viés delimitamos nosso problema de pesquisa: Como ocorre a
consolidação, o atendimento multidisciplinar e a concretização da educação inclusiva de
alunos autistas em uma classe regular? Para adentrarmos nessa investigação, elencamos
como objetivo geral: Compreender a consolidação, o atendimento multidisciplinar e a
concretização da educação inclusiva de alunos autistas em uma classe regular, e como
objetivos específicos são: Identificar quais são as leis que garantem o direito à
escolarização de crianças autistas,
Analisar se as leis de amparo são efetivadas no contexto da escola pública regular e
Levantar dados e informações acerca do atendimento multidisciplinar de apoio que a
escola analisada fornece para os dois alunos que tem autismo.

2. HISTÓRICO DO AUTISMO

Desde os tempos mais remotos de nossa sociedade era observado que os


deficientes não eram bem vistos, ao passo que quando uma família constatava que seu
filho possuía algum distúrbio ou deficiência , era muito comum e até recomendado por
alguns médicos da época que esta criança deveria ser imediatamente internada em
manicômios, orfanatos, entre outras instituições que tinham o objetivo de tratar e cuidar
destas, estas instituições possuíam um cunho meramente assistencialista, desta forma
não havia nenhuma preocupação referente a escolarização destas crianças, ou seja antes
do século XV , as crianças deficientes mentais e deficientes físicas eram totalmente
excluídas do convívio com a família e com a sociedade, nesta perspectiva o acesso a
escola também era negado para estes.
No século XV acreditava-se que deficiência era algo que estava atrelado aos contextos
de marginalidade e pobreza , pois esta era a realidade da maior parte da população ,
sendo apenas no período do Renascimento quando surgiu a ciência, que se começou a
promover estudos e buscar razões para as deficiências, de início estas doenças foram
consideradas hereditárias e mentais.
Observa-se que no decorrer dos séculos XVII e XVIII , a deficiência era mau
vista pela sociedade, portanto a família, a escola e a sociedade em geral excluíam
totalmente estes indivíduos, o preconceito era tão extremo , que as crianças deficientes
mentais e deficientes físicos eram considerados uma aberração, malditos e até mesmo
possuídos pelo demônio, nesta perspectiva a igreja ao passo que acreditava que estas
crianças eram possuídas pelo demônio, excluía estas dos momentos religiosos e não
promovia e nem se responsabilizava pelo cuidado destas, e incentivava que os pais que
tivessem filhos doentes deveriam abandoná-los ou mesmo internar estes em
manicômios que eram mantidos pelo governo, ou seja a responsabilidade de cuidar dos
deficientes era totalmente do governo.
Porém foi com o passar dos anos que a sociedade passou a ser tornar mais humana
e a dispensar uma maior atenção a questão da deficiência, prova disto é que em 1854 foi
registrado o surgimento da primeira escola especial , esta tinha total influência europeia,
o Imperial Instituto de Meninos Cegos, no Rio de Janeiro , em 1857 também surgiu o
Instituto Imperial de Surdos, esta instituição também se localizava no Rio de Janeiro, e
eram dirigidas por um francês, estas instituições foram criadas por Dom Pedro II, com
forte cunho pedagógico, o objetivo principal destes dois institutos era promover um
cuidado clínico especializado e inserir estes alunos na sociedade ao passo, que estes
tinham acesso ao ensino das ciências, letras e religião.
Como conseguinte, na primeira metade do século XX, no Brasil ocorreu de forma
gradativamente lenta, a expansão destes institutos de educação especial, inclusive para
outras cidades fora do estado do Rio de Janeiro.
Os primeiros estudos sobre autismo ocorreram em 1911, o termo autismo
inicialmente foi utilizado para dar destaque ao distúrbio caracterizado como dificuldade
de comunicação existente , e também com a impossibilidade de contato com a realidade.
Em 1943 o médico austríaco Leo Kanner classificou o autismo como sendo um
distúrbio do desenvolvimento humano, e em 1944 o médico Hans Asperger, identificou
e caracterizou o autismo de forma detalhada em um importante trabalho de pesquisa.
Nos dias atuais o autismo é muito conhecido e caracterizado como sendo um
conjunto total de transtornos qualitativos das funções e do desenvolvimento humano.
O diagnóstico do autismo é complicado e necessita de um profissional de saúde
especialista, este por sua vez deve orientar a família sobre os procedimentos e atitudes
que estes deverão ter em relação ao diagnóstico de seu filho, este diagnóstico precoce
costuma surtir muitos efeitos satisfatórios, pois ao passo que a família começar a
realizar o tratamento adequado , a criança têm a possibilidade de vivenciar mais plena a
sua infância.

3. PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Essa investigação foi realizada a partir do requisito avaliativo do componente
curricular Estágio Supervisionado I cursado na graduação de Pedagogia da
Universidade Federal de Pernambuco/ UFPE-CAA.
Como já dito anteriormente, nosso campo empírico refere-se à uma escola
municipal da rede regular de ensino localizada na cidade de Caruaru-PE e nossos
sujeitos de pesquisa serão duas crianças autistas e as práticas da professora frente à
esses alunos.
Para analisar os dados coletados optamos pela perspectiva de análise de
conteúdo que de acordo com Bardin (2010) refere-se à:
Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter,
por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do
conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que
permitam a inferência de conhecimentos relativos ás condições de
produção\recepção (variáveis inferidas) destas mensagens” (BARDIN,
2010, P. 42.)
Seguimos essa proposta de construção de pesquisa apontada por Bardin (2010)
pois nos indica a possibilidade de analisar, descrever e realizar interferências
necessárias aos pontos relevantes da investigação.
Para compreender a consolidação, o atendimento multidisciplinar e a
concretização da educação inclusiva de alunos autistas em uma classe regular, optou-se
pela realização de entrevistas semiestruturadas.
Entendemos que na realização da entrevista semiestruturada o entrevistador tem
total liberdade para desenvolver diversas situações, direcionando cada situação para
qualquer direção que este considere como sendo deveras a mais adequada. Segundo
Marcani e Lakatos (2006) “Geralmente as perguntas deste tipo de entrevista são abertas,
e desta forma estas podem ser de fato respondidas dentro de uma conversação
totalmente informal”.
Para realizar o Levantamento de dados e informações acerca do atendimento
multidisciplinar de apoio que a escola analisada fornece para os dois alunos que tem
autismo utilizamos a observação e o registro no diário de campo.
Esclarecemos que nossas observações ocorreram no período matutino, pois é
neste horário que aconteciam as aulas para a turma de educação infantil II, a observação
participante ocorria de forma espontânea no decorrer da aula, e as entrevistas
aconteciam sempre no horário do intervalo, pois neste momento a professora da turma
juntamente com a professora auxiliar sempre estava disponível para nos atender de
forma mais atenciosa.
Para identificar quais são as leis que garantem o direito à escolarização de
crianças autistas e analisar se as leis de amparo são efetivadas no contexto da escola
pública regular realizamos diversos estudos e consultas bibliográficas e documentais em
livros, artigos e aparato legal que tratam sobre Inclusão escolar e autismo.
4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Atualmente entendemos que a efetivação da inclusão na escola regular é um
desafio para o professor já que este além de refletir sobre suas práticas cotidianas deve
desenvolver ações em prol da Educação inclusiva.
São várias as leis que garantem o acesso de crianças com autismo na escola
regular, entre elas podemos destacar: A Lei Federal nº 12.764\2012 Berenice Piana que
se enquadra no quadro de leis educacionais e além de garantir o acesso a rede regular de
ensino público destaca que a unidade escolar também deve fornecer um apoio
psicopedagógico especializado e o atendimento de uma equipe multidisciplinar para
estes alunos.
Ressaltamos ainda, que a aprovação da lei federal nº 12.764\2012 Berenice
Piana só foi possível graças ao empenho e lutas de pais de autistas e movimentos sociais
, que em conjunto, uniram forças para ir em busca do direito à educação de seus filhos.
Destacamos que esta lei federal também garante outros direitos para as crianças
que possuem o espectro autista, como por exemplo direito a ter acesso a medicamentos
gratuitos que devem ser fornecidos pela rede pública de saúde bem como a terem o
diagnóstico precoce , e a obter um tratamento especializado e multiprofissional que
garanta para estes uma melhor qualidade de vida.
As crianças autistas também devem ter acesso garantido à educação básica e
profissionalizante, oportunidade de ingressar no mercado de trabalho, bem como ter
acesso à previdência social e também à assistência social.
O autor Costa (2013) destaca que a lei federal Berenice Piana foi promulgada e
aprovada após muita luta que contabilizaram exatos treze anos. Salientamos que Costa
possui um filho que tem autismo, e lutou muito durante treze anos juntamente com a
senhora Berenice Piana ( mais tarde o nome desta senhora foi escolhido para intitular a
lei federal que garantiria todos os direitos fundamentais dos autistas) , para que as
famílias mais humildes tivessem total amparo por parte dos governos.
Costa ( 2013) relata que foi em parceria com a senhora Berenice Piana que este
organizou a Audiência na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, e que foi
graças a esta que se originou o Projeto de Lei 168\11 que foi o pontapé inicial do que
mais tarde iria originar a Lei Federal 12.764\2012 Berenice Piana, pois somente desta
forma as crianças autistas iriam ter seus direitos fundamentais a cidadania devidamente
garantidos por lei.
Portanto segundo Costa (2013, P.130) ficou definido nesta Lei Federal, no que
tange ao direito a educação o seguinte: “Parágrafo único. Em casos de comprovada
necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de
ensino regular, nos termos do inciso IV do art. 2 , terá direito a acompanhante
especializado”.
Ainda segundo Costa ( 2013) o gestor escolar jamais poderá recusar a matrícula
de um aluno autista, pois esta recusa poderá acarretar punições para este , como também
a família deste aluno pode abrir processo contra este seguindo os preceitos desta lei,
sobre isto Costa ( 2013, P.131) nos traz um trecho deste artigo da Lei Federal
12.764\2012: “Art. 7 O Gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a
matrícula de um aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de
deficiência, será punido com multa de 3 (três) a 20 ( vinte) salários mínimos.” E ainda
havendo caso de reincidência, poderá ser aberto um processo administrativo, neste
ficará assegurado para o gestor escolar, o direito a demonstrar contraditório e a ampla
defesa, como consequência e ficando realmente provado o descumprimento desta Lei
Federal haverá perda do cargo.
Portanto podemos considerar que a esta Lei Federal trouxe importantes
benefícios para as crianças autistas oriundas de famílias pobres que precisam ter o seu
direito de acesso a escola garantidos, para que desta forma estas possam avançar e
desenvolver-se também nas instituições escolares.
Destacamos também a importância do professor que possui em sua turma regular
alunos que possuem o espectro autista ter uma formação específica que auxilie na
superação dos desafios provenientes do cotidiano da sala de aula.
Salientamos que é exigido por lei que haja um professor de apoio para auxiliar e
dar um apoio pedagógico diferenciado para o aluno com autismo de forma que
possibilite uma educação inclusiva e transformadora.
Sobre este desafio Silveira (2015) nos diz que:
“É preciso uma mudança de postura do professor em relação ás
crianças que estão sendo incluídas, trabalhar de uma maneira
diferenciada com elas, mas não tratando-as como “diferentes” ,
estigmatizando-as ou rotulando-as, tratando com indulgência e
subestimando-as. E também é preciso buscar uma interação constante
com os pais e responsáveis pelo aluno”. (SILVEIRA, 2015, P.55)

Desta forma o professor precisa refletir e avaliar a sua própria prática educativa
a fim de utilizar em seu planejamento atividades e momentos lúdicos ao mesmo tempo
que deve propiciar significativos momentos de aprendizagem.
A autora ainda afirma a relevância e a importante contribuição que a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional- LDB (Lei 9394\96, cap. V) ao destacar que o
Estado também possui o dever fundamental de garantir o acesso, permanência e prover
e fornecer apoio pedagógico, e outros suportes para que estes alunos especiais possam
ter uma educação inclusiva e de qualidade, desde a educação infantil.

5. DISCUSSÕES E ANÁLISES DOS DADOS


Analisando nossas observações no campo empírico identificamos que o
relacionamento interpessoal no espaço educativo ocorre de forma bem produtiva. Na
sala de aula onde ocorreram as principais observações, a professora conta com o apoio
de uma professora auxiliar, que a ajuda com a questão da indisciplina dos alunos, e
também com a educação inclusiva, pois na turma existem dois alunos que tem Autismo.
Falando do caso específico da instituição escolar que foi observada, esta tem o
intuito de atender aquelas crianças a partir dos 5 (cinco) anos de idade que já
frequentaram, ou nunca tenham frequentado creches e pré-escolas.
A professora não realiza provas, e nem avaliação escrita, as crianças aprendem
de forma espontânea, lúdica e sem pressão. Compreendemos que a Educação Infantil é
muito complexa, pois é preciso ensinar e educar sem rigidez respeitando o tempo de
aprendizagem e desenvolvimento das crianças, no entanto sabe-se que o cuidar se faz
muito presente na educação infantil, ao passo que está se configura como sendo um
direito e também como um meio de assistência social que o governo disponibiliza para
auxiliar as mães que trabalham e não têm com quem deixar seus filhos.
Segundo pesquisas, a educação infantil é um direito social adquirido, ou seja, é
obrigação do governo oferecer esta modalidade de ensino para as famílias carentes.
Sobre este assunto, Silva (2008) aponta que:
A complexidade do campo da educação da criança pequena em nosso
país caracteriza-se pelas disputas entre orientações (culturais)
filantrópicas e assistencialistas e aquelas mais recentemente
construídas, baseadas no direito universal. Estes não são, no entanto,
dois polos estanques . Ao contrário, entre um e outro (que não
necessariamente existem de forma pura na realidade social) existe uma
diversidade de orientações que oscilam entre uma visão da educação
infantil, especialmente da creche, como assistência social e outra, que
a trata como direito” (SILVA, 2008, P.35-36).
A educação infantil é caracterizada como sendo um direito social, e para que
este direito seja concretizado é preciso que o governo, dê prioridade a educação, de
forma que a creche e a pré-escola tenham dois objetivos principais os de: educar e
cuidar.
O primeiro contato que tivemos com a escola, nos permitiu conhecer os alunos e
o ambiente escolar que estes estão inseridos, com nossa observação foi possível
perceber qual era a sua rotina escolar e qual era a cultura que permeava esse espaço.
Destacamos que a equipe escolar sempre foi muito solícita.
Observando a cultura de pares e relações interpessoais que as crianças mantêm
entre si foi possível observar quais eram as práticas educativas que a professora
utilizava para ensinar e educar os alunos. Nossa relação com as crianças que
inicialmente era meio distante aos poucos se tornou, uma relação de cumplicidade, e
isto nos permitiu estabelecer uma maior proximidade com seus contextos.
Após esta aproximação buscamos analisar cada criança, observando suas
potencialidades e suas dificuldades no que tange a prática educativa que era utilizada
pela professora.
Diante da proximidade com a turma desenvolvemos um projeto de intervenção
para ter um contato direto com as crianças. Nosso projeto de intervenção pedagógico
buscou trabalhar a conscientização ambiental, de modo a mostrar para os alunos como o
desperdício de água pode afetar suas rotinas, e outrora a vida no planeta.
Em seguida decidimos trabalhar gêneros textuais e atividades que abordam a
compreensão do sistema de escrita alfabética, pois de fato nossa observação nos
mostrou que os alunos tinham muita habilidade com estes tipos de atividades, com a
ajuda da professora e da professora auxiliar trabalhamos com o gênero textual história
em quadrinhos, atividades de compreensão do sistema de escrita alfabética, e
conscientização ambiental.
A educação ambiental é de suma importância para as crianças, pois é
recomendado que desde a educação infantil este importante tema deve ser trabalhado.
Em relação à essa temática Libâneo e Alves ( 2012) diz que:
A educação ambiental ocupa-se de processos intencionais de
comunicação e interiozação de saberes, conhecimentos, experiências,
habilidades, valores, modos de agir, cabendo ao ensino organizar os
conteúdos, prever objetivos na forma de ações mentais e desenvolver
formas metodológicas e organizativas do ensino. O resultado esperado
desse ensino é o desenvolvimento de capacidades de pensar e agir
ambientalmente, para o que se vai em busca da origem e
desenvolvimento histórico dos conteúdos, processos de investigação e
modos de agir da educação ambiental. (LIBÂNEO e ALVES, 2012,
P.49).

Ao formular nosso projeto procuramos estabelecer objetivos específicos que


estivessem de acordo com a realidade escolar que era vivida por cada aluno, inclusive a
professora nos aconselhou que na escolha das atividades que iríamos trabalhar, estas
atividades tivessem momentos de arte com pintura, desenhos e construção de
brinquedos , pois os dois alunos autistas tinham mais facilidade e prazer com estes tipos
de atividades, decidimos então acatar a recomendação da professora visto que esta é
formada em pedagogia e tem vasta experiência com educação infantil e educação
inclusiva.
De início nosso projeto procurou trabalhar a conscientização ambiental de forma
lúdica, com a contação de história infantil que tinha como personagem principal uma
gotinha de água. Em seguida aplicamos outra atividade com gênero textual, onde as
crianças iriam construir com a nossa ajuda uma história em quadrinhos.
Compreendemos que é necessário trabalhar variados gêneros textuais na
educação infantil, porque desta forma o trabalho de alfabetização das crianças autistas e
as demais se torna mais simples, e os alunos uma vez já estando familiarizados com
gêneros textuais, conseguem se apropriarem mais facilmente do Sistema de Escrita
Alfabética, e sobre este tema Mendonça (2005) nos diz:
[ ...] Por isso, não é preciso esperar que a criança esteja alfabetizada
para deixá-la entrar em contato com textos dos mais diversos gêneros.
Este é o propósito, o princípio básico da proposta de alfabetizar
letrando: a apropriação do sistema de escrita e a inserção nas práticas
de leitura e escrita se dariam de forma simultânea e complementar
(MENDONÇA, 2005, P.48).

Acreditando na eficácia que se encontra primordialmente contida na educação


reflexiva, é que construímos nosso projeto de intervenção pedagógica, por acreditar que
quando o professor baseia suas práticas educativas em vista de promover uma educação
que seja de fato reflexiva e de qualidade, este tem por obrigação que avaliar a sua
própria prática e direcioná-la para que o seu projeto de intervenção seja um projeto
qualitativo, e sobre a prática, Zabala (1998) nos diz:
Nós, os professores, podemos desenvolver a atividade profissional
sem nos colocar o sentido profundo das experiências que propomos e
podemos nos deixar levar pela inércia ou pela tradição. Ou podemos
tentar compreender a influência que estas experiências têm e intervir
para que sejam o mais benéficos possível para o desenvolvimento e o
amadurecimento dos meninos e meninas. Mas, de qualquer forma, ter
um conhecimento rigoroso de nossa tarefa implica saber identificar os
fatores que incidem no crescimento dos alunos. O segundo passo
consistirá em aceitar ou não o papel que podemos ter neste
crescimento e avaliar se nossa intervenção é coerente com a ideia que
temos da função da escola e, portanto, de nossa função social como
educadores. (ZABALA, 1998, P.28-29)

Então a partir do momento que o professor assume o compromisso de inovar a


sua prática, este tem que ter em mente que terá de deixar para trás o comodismo e a
inércia, importantes elementos que precisam ser superados para incluir crianças na
escola regular.
Durante a efetivação do projeto, observamos que os dois alunos autistas
realizaram com muito sucesso todas as atividades que propomos para a turma.
E ainda foi possível observar, que as tarefas em que estes alunos autistas sentiam
maiores dificuldades , estes pediam o apoio da professora e da professora auxiliar, pois
estes com todas as suas limitações tinham o apreço e a força de vontade de realizar
todas as tarefas educativas que foram propostas, enquanto que outros alunos que não
tinham aquelas limitações simplesmente não se interessavam em resolver as atividades.
De fato a educação inclusiva é desafiante. Constatamos isso ao passo que
observamos o quão é difícil para a professora escolher atividades que incluam todas as
crianças e que crie possibilidades para que todas se desenvolvam.
Analisamos que para a escolha das atividades a professora realiza um trabalho
interessante e inspirador, de repensar sua prática e frequentemente auto avaliar-se para
incluir todos os alunos.
Ademais foi realizada uma entrevista semiestruturada com a professora desta
turma de educação infantil, nesta entrevista se buscou compreender e analisar qual era o
real desafio que a educação de alunos autistas colocava diante do profissional pedagogo.
As respostas da professora foram transcritas de forma completa , e esta
professora será identificada como Professora Titular.

Na sua opinião o suporte pedagógico que a escola fornece para apoiar a sua prática
educativa ,é suficiente para a demanda da educação especial ?
Não totalmente, a professora auxiliar me ajuda bastante com os dois alunos
autistas dentro da sala de aula, porém a equipe da escola nas formações continuadas e
nas reuniões não me orientam e não me fornecem material pedagógico específico , para
lidar com estas crianças especiais, sempre tenho que fazer pesquisas por conta própria. (
Professora titular)

Você considera que o apoio da Secretaria de Educação de Caruaru, para a educação


especial ,é suficiente para promover a inclusão adequada destes alunos na escola ?
Creio que o atendimento e as visitas da equipe de educação especial, da
secretaria de educação de Caruaru, deveria ser mais assídua nas escolas, pois eles
somente vêm até aqui de quinze em quinze dias, é muito tempo, e eles vêm e ficam
pouco tempo conversando comigo, me sinto desprestigiada . ( Professora Regular)
Com base nas respostas da professora da turma de educação infantil, percebemos
facilmente que está nutre um sentimento de descontentamento em relação ao apoio que
recebe, por parte daqueles que deveriam lhe fornecer o apoio necessário para que está
conseguisse desenvolver o seu trabalho e prática educativa inclusiva com os alunos
autistas.

Em contrapartida, percebemos que a escola possui uma concepção de criança em


que a considera como sendo um ser social, e que por isto possui direitos, e dessa forma
oferece e apresenta um espaço e atendimento especial para elas onde relação existente
entre aluno e professor ocorre de forma harmoniosa e próxima e que se realiza por meio
de situações em que apresentam um elevado nível de confiança e bem-estar dos alunos.
Compreendemos que tratar o aluno da pré-escola como um ser social é
adequado, pois desta forma a criança passa a ter uma maior confiança e autonomia
sobre si e em consequência disto esta passa a ter uma maior facilidade em relação a
aprendizagem.

Adentrando acerca da concepção de criança que a pré-escola deve ter Oliveira


(2002) nos diz que:
[...] A atual etapa reconhece o direito de toda criança a infância.
“Trata-a como sujeito social” ou “ator pedagógico” desde cedo, agente
construtor de conhecimento e sujeito de autodeterminação, ser ativo
na busca do conhecimento, da fantasia e da criatividade, que possui
grande capacidade cognitiva e de sociabilidade e escolhe com
independência seus itinerários de desenvolvimento. (OLIVEIRA,
2002, P. 81)

Portanto, a criança não deve ser tratada com indiferença ou como sendo um ser
vulnerável, esta deve ser tratada como um ser social portadora de direito, desta forma é
que a relação entre ensino e aprendizagem poderá ser uma relação qualitativa, e como
consequência disto a pré-escola e seus processos de ensino terá muito mais significado
para a criança.
Ademais a pré-escola tem como missão fundamental oferecer um ensino de
qualidade, pois somente desta forma a criança irá desenvolver-se de forma satisfatória, e
sobre o desenvolvimento escolar e a educação infantil de qualidade Oliveira (2002) nos
diz:
As crianças pequenas que se beneficiam de um serviço de qualidade
tendem a desenvolver mais o raciocínio e a capacidade de solução de
problemas, a ser mais cooperativas e atentas aos outros e a adquirir
maior confiança em si. Grande parte desses efeitos positivos persistem
e contribuem para suscitar-lhes uma atitude positiva com relação á
aprendizagem escolar e favorecê-las com o sucesso em seus estudos
posteriores. (OLIVEIRA, 2002, P.85)

Realmente notamos que a escola oferece sim uma educação de qualidade para os
alunos, ao passo que foi possível notar que várias crianças da turma do pré - II já sabem
ler e escrever. Constatamos também, que a relação que as crianças mantêm com a
professora e com a professora auxiliar é uma relação harmoniosa e respeitosa, ao passo
que não notamos indisciplina por parte dos alunos.
Com relação à educação inclusiva notamos que os dois alunos que têm Autismo
mantêm uma relação de ternura e respeito com a professora e com a professora auxiliar,
e estes têm feito muitos avanços no que tange ao aprendizado, notamos que este sucesso
se deve a boa relação e comunicação direta que a professora mantém com as famílias
dos alunos, este é um ponto positivo e muito apropriado de acontecer, pois a educação
inclusiva exige que a família mantenha comunicação direta com o professor, e sobre
esta comunicação direta Belisário e Cunha (2010) nos diz:
Para que haja sucesso na interlocução e parceria entre a escola e a
família, os profissionais da escola devem sistematicamente dar retorno
á família sobre todo e qualquer progresso apresentado pela criança no
ambiente escolar, evitando-se relatarem apenas as dificuldades vividas
com a criança. Os professores devem ter em mente que a família
encontra-se muitas vezes fragilizada por toda a vivência desde a
descoberta do transtorno e que será parceira quanto mais conseguir
entender o processo pedagógico do filho e perceber os pequenos
avanços. O que chamamos de pequenos avanços. O que chamamos de
pequenos avanços são extremamente significativos para a família. (
BELISÁRIO e CUNHA, 2010, P. 25)

Nesse sentido, a escola deve oferecer uma educação inclusiva para as crianças
para que estas consigam ter um desenvolvimento cognitivo, afetivos e pessoais
satisfatórios. O contato com cada aluno é muito gratificante, poder ver de perto os
alunos se desenvolvendo, conhecer um pouco mais de todas as crianças que faziam
parte daquela turma de Educação Infantil observando o desenvolvimento dos dois
alunos que tinham autismo é de suma importância para o nosso processo de formação
como pedagogas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ingresso de uma criança autista em escola regular é um direito garantido por
lei, como aponta o capítulo V da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), que trata sobre a Educação Especial. A redação diz que ela deve visar a efetiva
integração do estudante à vida em sociedade. Além da LDB, a Constituição Federal, a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Estatuto da Criança e do
Adolescente e o Plano Viver sem Limites (Decreto 7.612/11) também asseguram o
acesso à escola regular.
A professora do nosso campo empírico nos mostra o quanto é necessário um
plano de ensino que respeite a capacidade de cada aluno e que proponha atividades
diversificadas para todos e considere o conhecimento que cada aluno traz para a escola.
No caso do autista, o que está em jogo são as habilidades. “É nelas que se deve investir”
para, assim, desenvolver as inabilidades.
Percebemos que as crianças autistas apresentam hiperatividade, dentro do
distúrbio autista, Em outras palavras, a característica principal é a falta de concentração.
A memória deles costuma ser muito boa, o que de fato os prejudica é a hiperatividade e
a falta de concentração, porque enquanto eles estão fazendo um movimento repetitivo,
não focam no que está sendo ensinado ao seu redor, portanto, não conseguem captar o
aprendizado, justamente por conta da falta de concentração.
Quando atraídos, eles conseguem prestar mais atenção e realmente aprender.
Nosso primeiro passo foi criar um vínculo, como fazemos com qualquer criança.
Quando eles começam a confiar no professor, a relação de ensino-aprendizado funciona
melhor.
O autismo é considerado como um transtorno em detrimento ao mesmo englobar
a síndrome de Asperger e abarcar diversas dificuldades do desenvolvimento humano,
recebendo assim o termo TEA – Transtorno do Espectro Autista.
Nos dias atuais, vive-se uma época em que todos os ambientes devem trabalhar
com a inclusão, principalmente no ambiente escolar, pois é neste ambiente, que o
indivíduo é preparado para viver em sociedade. A inclusão é muito mais que o inserir, é
mais do que o simples fato de matricular na escola. A inclusão para realmente fazer jus
à palavra dita, precisa acompanhar uma preparação tanto do próprio professor quanto da
escola, que é de grande importância para o desenvolvimento da criança, pois não é o
indivíduo autista que deve adaptar-se ao ambiente, mas sim o ambiente que deve ser
adaptado e receber a educação inclusiva, pois já há leis que determinam esta afirmação.
A importância do tema abordado deu-se por razão do entendimento do processo
da inclusão do aluno autista na escola regular da rede pública e suas contribuições, pois,
o ensino inclusivo é um direito conquistado e é dever de toda sociedade aceitar e
respeitar as diferenças.
A inclusão dos autistas nas escolas públicas é necessária, pois deste modo é
despertado nos educandos atitudes de solidariedade e respeito às diferenças, concepções
essas fundamentais para a inclusão e a valorização da diversidade no âmbito educativo.
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DESAFIOS PARA ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE MENTAL: uma reflexão
sob a ótica da saúde da população negra e sua religiosidade.

Pedro Henrique Melo Alves19


Valquíria Farias Bezerra Barbosa20

GT: DIREITOS HUMANOS E PESSOA COM DEFICIÊNCIA

RESUMO
O presente artigo objetiva realizar uma análise teórico-reflexiva acerca do cuidado
integral em saúde mental, contemplando a população negra e suas religiosidades no
Brasil. No âmbito nacional o processo de desinstitucioanlização tem sido de grande
relevância na construção de políticas públicas inclusivas em saúde mental, porém nos
artigos publicados a nível nacional e internacional percebe-se ainda uma incipiência do
reconhecimento das múltiplas facetas do racismo enquanto evento estressor no processo
de adoecimento mental e a negligência no âmbito assistencial frente às crenças
espirituais desta minoria social. Estes múltiplos fatores de vulnerabilidade exercem uma
grande influência na garantia da atenção integral à saúde, devido ao racismo
institucional. Como processo de enfrentamento dessa problemática no âmbito da saúde,
tem ações afirmativas de saúde para população negra, com o objetivo de tanto combater
das iniquidades sócias existentes no contexto do Sistema Único de Saúde oriundas do
racismo, como de fortalecer o processo de promoção à saúde mental da população
negra.

Palavras-chave: Saúde Mental. Integralidade à Saúde. População Negra. Religiosidade.

19
Instituto Federal de Pernambuco, discente do curso Bacharelado em Enfermagem,
alvespedro113@gmail.com.
2
Instituto Federal de Pernambuco, Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa
Catarina, valquiria@pesqueira.ifpe.edu.br
INTRODUÇÃO

Os antecedentes relacionados ao direito à saúde sempre foram voltados paras as


pessoas burguesas, ou seja, para as pessoas que pudessem pagar por tal direito, seja no
período colonial/imperial onde os médicos realizavam suas consultas privadas através
das visitas domiciliares, ou seja, no período da industrialização no Brasil, onde através
dos programas institucionais, pactuados entre as empresas e a União, atendiam as
demandas de saúde dos trabalhadores e seus familiares, vale salientar que a assistência à
saúde neste período era pautada numa visão medicocentrada, biologisista e curativista.
Neste período a classe trabalhadora era majoritariamente branca, ou seja, a grande parte
a população negra não tinha acesso à saúde, consequentemente, liderava o raking de
óbitos no Brasil, por doenças que atualmente são consideradas evitáveis
(AGUIAR,2011).

No período da redemocratização, na década de 70, iniciaram-se as mobilizações


populares na construção de um projeto de saúde popular que foi defendido na 8°
Conferência Nacional de Saúde (CNS), ampliando o conceito de saúde, garantido na
Constituição de 88 como um direito de todos e dever do estado. Consolidando-se
através do Sistema Único de Saúde (SUS), por sua vez regulamentado pelas leis
orgânicas: portaria 8.080/90 e 8.142/90 tendo sua operacionalização norteada pelos
princípios da universalidade, integralidade e equidade, com serviços descentralizados
pautada na promoção, prevenção, reabilitação e manutenção da saúde de todo cidadão
brasileiro (TRIMER,2014).

Concomitante ao movimento da reforma sanitária surge o movimento da


reforma psiquiátrica, formado inicialmente por profissionais da área da saúde,
principalmente profissionais que trabalhavam nas instituições psiquiátricas que teve por
objetivo denunciar não só a superlotação dos manicômios e o isolamento social, mas as
formas de tratamento pautados nos maus tratos e descuidados em saúde mental,
submetendo os usuários destas instituições a condições sub-humanas, sendo fortemente
denunciado na I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), ocorrida no ano de
1987. (AMARANTE, 2009)
Com o passar dos anos o movimento foi ganhando mais visibilidade,
principalmente com a participação dos familiares e usuários, proporcionando a defesa
do modelo psicossocial, na II° CNSM ocorrida no ano de 1992. (ARANTES, 2008).
Esse modelo teve como principal objetivo manter a pessoas portadoras de transtorno
mental no território sendo assistida por uma equipe multiprofissional, segundo Arantes
(2008), as primeiras CNSM proporcionaram a criação da lei 10.216/01, que dispõe
sobre os direitos humanos para as pessoas com transtorno mental.

Ocorrida no ano de 2001, a III CNSM teve como título, “Cuidar sim, excluir
não” nesse contexto é implementado as problematizações a cerca do termo “cuidar”,
onde o usuário deve ser visto além de sua doença mental, pois a cultura medicocentrada
existente no contexto da saúde, faz com que o profissional negligencie o contexto que o
mesmo está inserido na sociedade, nessa perspectiva não há um cumprimento integral
da atenção à saúde (BRASIL, 2001 apud, BARBOSA, 2014). Na defesa do projeto de
desistitucionlização proposta pelo movimento da reforma psiquiátrica, na III CNSM, foi
problematizado também o processo de territorizalização, levando a reflexão sobre o
território que o usuário está inserido, nesta perspectiva da territorialidade, no ano de
2002 tem-se a implementação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
regulamentada pela portaria 336/02, constituindo-se de um serviço diário de atenção
ambulatorial, com o objetivo de atuar no processo não só de acompanhamento e
manutenção da saúde no território, mas do processo de reinserção social e resgate dos
direitos humanos dos usuários (BRASIL, 2002).

A IV CNSM ocorreu no ano de 2010, teve com o tema: “Saúde Mental, direito
e compromisso de todos: consolidar avanços e enfrentar desafios” onde o debate girou
em torno tanto do processo de práticas inovadoras como a intersetorialidade do cuidado,
fortalecendo o processo de descentralização defendido pela reforma sanitária,
corroborando também ao processo de ressocialização do usuário no seu território
(BRASIL, 2010 apud BARBOSA, 2014), nesta perspectiva, no ano de 2011 é
implementada a portaria 3.088/11, que regulamenta a Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS), com o objetivo de promover e fortalecer o princípio da integralidade do
cuidado, numa perspectiva interdisciplinar em rede, ou seja, um cuidado descentralizado
(BRASIL, 2011).

Para o fortalecimento desse processo, é necessário problematizar questões


condicionantes a cerca da integralidade da atenção à saúde, principalmente frente ao
discurso de ódio e práticas profissionais incoerentes, realizadas de forma involuntária
por não ter conhecimento frente ao contexto em que as minorias sociais estão inseridas
(GIDDENS, 2012). Nesse contexto encontra-se enquanto minoria social, a população
negra que por está exposta a múltiplas vulnerabilidades, dentre eles pode-se destacar as
múltiplas facetas do racismo, tem, portanto maiores chances para o desenvolvimento do
adoecimento, mental (HOLDEN, 2014).

Diante do exposto o presente artigo propõe-se em realizar uma análise teórico-


reflexiva a cerca do não cumprimento pleno da integralidade da atenção à saúde dos
usuários que tem transtorno mental envolvido na díade, negritude e religiosidade,
especificamente religião de Matriz-Africana. No primeiro momento faremos uma
análise reflexiva sobre o contexto da população negra e sua luta na consolidação de seus
direitos humanos, dentre eles o direito a saúde, bem como a influência do racismo
enquanto evento estressor no processo de adoecimento mental. Na sequência
problematiza-se sobre a religiosidade, principalmente as religiões que tem suas origens
influenciadas pelas raízes do continente Africano e suas inter-relações no contexto da
saúde mental.

A NEGRITUDE SOB A ÓTICA DO DIREITO À SAÚDE

O discurso e as práticas racistas presentes em nossa sociedade contemporânea


tiveram fortes influências do período da colonização das Américas. No século XVI,
criaram-se as condições para uma nova utopia global, sustentada pela ideologia de que
as novas terras “descobertas” (denominadas “Novo Mundo”) eram consideradas uma
extensão europeia. Esse período de “descobrimento” possibilitou a expansão tanto do
capital com também a colonização intelectual euro centrada, tonando-se possível com a
colonialidade do poder, uma nova configuração geopolítica frente ao conhecimento, na
qual teorizar, pensar, era privilégio de poucos indivíduos, localizados em determinados
lugares geohistóricos do globo, ou seja, os brancos europeus (LEGES, 2012).

A partir da expansão do poder capital eurocêntrico, foram criadas estratégias de


dominação no continente africano, tendo o tráfico da população negra, como uma das
atividades de lucro rápido, gerado através de atos violentos que foram considerados um
verdadeiro sequestro, retirando da população africana sua identidade, suas terras, suas
famílias, suas crenças e tradições, seu verdadeiro lar, até mesmo o poder pelo seu
próprio corpo (BATISTA, 2013; LEGES, 2012).

Em meio à organização institucionalizada do processo escravista, tanto a


população negra como a população indígena, conseguiram se organizar de diferentes
formas de resistência ao sistema colonial branco, através dos quilombos, defendendo a
liberdade frente a sua identidade, crenças e valores culturais, surgindo assim às
primeiras manifestações do movimento negro no Brasil. Vale ressaltar que a abolição
não foi um presente da princesa Isabel, pois a luta do povo negro bem como sua
resistência tornou grande parte do povo africano livre das amarras da escravidão através
das fugas e dos desgastes do sistema escravocrata (BATISTA, 2013).

A abolição dos escravos não acabou verdadeiramente com as violências oriundas


do racismo, pois o fato de estarem livres não garantiu para a população negra a
reconquista da dignidade, pois um aglomerado de pessoas ficou vagando em busca da
verdadeira liberdade, neste contexto ocorre o fortalecimento do movimento negro,
participando de várias revoluções no período pós-abolicionista, sendo a Revolta da
Chibata (1910), movimento liderado por João Cândido Felisberto, marinheiro negro, no
Rio de Janeiro, denunciando o modo de como eram tratados os marujos da marinha
brasileira; A Frente Negra Brasileira (1931-1937) associação de caráter político,
recreativo e beneficente surgindo, em São Paulo, com intenções de se tornar uma
articulação nacional (GOMES,2011)

As lutas do movimento negro foram pressionadas durante o golpe de 64,


reativando na década de 70 com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU) onde
foi fortalecida a luta não por uma democracia abstrata, uma cidadania para poucos, e
sim, por uma igualdade e uma cidadania universal, rompendo com a cultura racista que
reverbera até os dias de hoje em todos os âmbitos institucionais. E na década de 80
surge o Movimento de Mulheres Negras atuando no espaço da militância, pelo
empoderamento feminino, na luta dos terreiros, vale salientar que a pauta de gênero no
movimento negro ocorreu devido à resistência e pressão por parte das mulheres negras
(GOMES, 2011). Atualmente o movimento negro vem tomando uma nova roupagem
uma vez que nele encontram-se, as mulheres, Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais
(LGBT), povo de terreiro e demais representatividades.

O racismo institucional, bem como o processo discriminatório sofrido pela


população negra, influencia nos indicadores de educação e saúde, de acordo com
Werneck (2016), o racismo é um fenômeno ideológico, caracterizado como um fator de
violação de direitos, onde contribui para iniquidades sociais, especialmente no campo
da saúde. O racismo tem relação com todo ciclo de vida da pessoa negra, desde seu
nascimento, bem como sua trajetória familiar e individual, até as condições
psicossociais, econômicas e espirituais. O racismo torna-se visível na qualidade do
cuidado e assistência prestada pelo serviço, nos perfis e estimativa de mortalidade
adulta e infantil, nos sofrimentos evitáveis ou mortes precoces.

No Brasil o risco de uma criança preta ou parda morrer antes dos cincos anos
por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior em relação a uma criança branca.
Também o risco de morte por desnutrição apresenta cerca de 90% maior entre crianças
pretas e pardas que entre brancas. O risco de uma pessoa negra morrer por causa
externa é 56% maior que o de uma pessoa branca, levando em consideração um homem
negro, o risco é 70% maior que o de um homem branco. No geral, o risco de morte por
homicídios foi maior nas populações preta e parda, independentemente do gênero. Já as
mulheres negras grávidas morrem mais de causas evitáveis, a exemplo das síndromes
hipertensivas da gestação (BRASIL, 2007).

Uma das formas de superação deste perfil no âmbito da saúde é a efetivação de


políticas de correção das desigualdades raciais, ou seja, de ações afirmativas, como
estratégia de superação do racismo e de construção de uma democracia real (GOMES,
2011). Nesta perspectiva, é publicada no dia 20 de novembro de 2007 a Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) tendo como principal marca
o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo
institucional como determinantes sociais, com o objetivo de promover a equidade em
saúde, bem como melhorar os indicadores de saúde da população negra no Brasil
(BRASIL, 2007)

No contexto da saúde mental, em meados de 1830, a comissão da Sociedade de


Medicina do Rio de Janeiro realizou um diagnóstico dos “loucos” na cidade, sendo
necessário ter um espaço apenas para estas pessoas como medidas de higienismo social.
Nesse período eram considerados “loucos”, os marginais, pobres, trabalhadores,
camponeses, negros, índios, degenerados, retirantes, subsidiando as primeiras
construções das instituições psiquiátricas que funcionaram como um verdadeiro
“depósito humano” devido às condições sub-humanas a que as pessoas eram
submetidas. Fortalecendo essa ideologia, no período pós-abolicionista, especificamente
na década de 20, Gustavo Riedel, funda a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM)
pautadas em ideologias eugenistas, xenofobia, antiliberais e racistas (COSTA, 2006).

A LBHM era uma entidade civil, composta por renomados psiquiatras


brasileiros, sendo dirigida entre os anos de 1923 a 1925, por Riedel. A partir de 1926,
por influências políticas e alemãs, os diretores da LBHM mudaram sua orientação,
tendo como principal objetivo “normalizar a sociedade” pautando-se dos princípios da
eugenia e da higiene mental, contribuindo para construção de uma sociedade “próspera
e mais saudável”, tendo como principais vítimas nesse processo a população negra. Em
1930 a liga se desfaz e as demandas de saúde mental, centralizadas no modelo
hospitalocêntrico, ficam a cargo do Estado, submetendo os desviantes a situações
desumanas (SEIXAS, 2009).
Nas instituições psiquiátricas no século XIX tinha-se o processo de
discriminação social, pois as pessoas eram diferenciadas não apenas pela sua posição
social e comportamento clínico, mas também pela cor. Frente a este contexto
segregacionista, os indivíduos internos eram desprovidos de seus diretos humanos,
perdendo até o direito frente aos seus corpos, devido à hegemonia médica, pois as
práticas assistenciais reduziam os desviantes à condição de objetos da ciência, que por
estarem doentes, o melhor era submeter-se a „constatação científica‟(ARANTES, 2008)
O projeto defendido pelo movimento da reforma psiquiátrica bem como
processo de desinstitucionalização, vem sendo de grande relevância tanto na garantia,
como na efetivação dos diretos humanos dos indivíduos com transtorno mental, porém
nesse contexto torna-se por vezes implícito o debate sobre as questões raciais e sua
influência no processo de adoecimento metal do indivíduo. Holden (2014) define que
não há homogeneidade na população das minorias étnicas, ou seja, é uma população
como uma diversidade de identidades, culturas e costumes que precisam ser respeitados
em sua singularidade, porém em alguns espaços da sociedade esse contexto é
negligenciado, expondo esta parcela da sociedade a eventos estressores, dentre eles o
racismo. O processo de adoecimento mental está intimamente associado a múltiplas
vulnerabilidades tais como a grande carga física, emocional, funcional, espiritual e
social que o indivíduo está submetido.

Rodriguez-Seijas, Stohl e Eaton (2011) afirmam em seu estudo que a


discriminação racial seja ela de forma individual ou de forma institucionalizada e
sistêmica, causam fortes influências na saúde mental da população negra, no estudo de
Hoden (2013), por exemplo, a vivência das mulheres negras quando comparadas as
mulheres brancas, percebe-se a baixa posição socioeconômica e estrutural que as
mulheres negras estão submetidas na sociedade dos Estados Unidos, e suas experiências
de racismo institucional, junto ao machismo, deixam-na vulnerável a angústias mentais
e emocionais que podem aumentar o risco ao desenvolvimento de um quadro
depressivo. No Brasil, no início do século XXI, os óbitos na cidade de São Paulo, os
transtornos mentais estavam como causas características entre a população negra
enquanto que na população branca não foi listada as causas de óbito por esta ordem
(SILVA, 2017)

População negra e Saúde mental: Religiosidade sob o prisma da


integralidade do cuidado
Os costumes e crenças relacionados à cultura, quando interligado com a saúde,
são necessários levar em consideração a existência de valores, crenças, normas,
comportamentos, ligados a um padrão cultural, que por sua vez são compartilhados e
transmitidos por um grupo específico de pessoas. Dentre essas manifestações culturais,
encontra-se o fenômeno religioso(HOLDEN, 2014)
Na visão sociológica, a religião proporciona um senso de significados e
propósitos que são criados através de uma visão frente “o sagrado”, “o sobrenatural”,
sendo constituída de uma visão cultural, com práticas ritualísticas, levando a um senso
de propósito aos seus seguidores, oferecendo um suporte a suas demandas espirituais
que não é ofertado nas demais estruturas da sociedade (GIDDENS, 2012). Em cada
crença, segundo Rezende (2012) tem como principal alicerce a espiritualidade,
diferenciando-se da religião, é considerado um encontro, consigo mesmo frente as suas
vivências cotidianas, relacionadas ao sagrado/transcendental, sendo entendida nesse
contexto como uma dimensão do ser humano (REZENDE, 2012)
A espiritualidade é caracterizada por ser umas das principais fontes para a
autotranscedência, resiliência, apoio, acolhimento, onde o indivíduo sustenta-se e busca
esperanças para o início de uma vida nova. Proporcionando o momento de auto-
reflexão, um encontro de soluções dos conflitos sociais e existenciais (REZENDE,
2012).
Murakami e Campos (2012) definem que fenômeno religioso é subdividido em
dois tipos, sendo elas: a intrínseca e a extrínseca. Onde na intrínseca o indivíduo
realmente acredita e procura viver sua fé, utiliza sua religiosidade de forma coerente e
saudável. Por sua vez a extrínseca, é um meio utilizado para atingir outros objetivos,
como um status, ou até mesmo por se considerada um meio bom para os negócios, além
de está intimamente relacionada ao processo de intolerância religiosa e o preconceito.
No período da colonização brasileira, iniciaram-se as manifestações religiosas
no Brasil, influenciadas pela soberania portuguesa, vale salientar que no “Novo Mundo”
já tinha seus verdadeiros donos, os povos indígenas, onde cada povo realizavam os
rituais de acordo com suas etnias. Com a chegada do clero português, iniciaram o
processo de catequização indígena obrigatória, marginalizando suas práticas ritualísticas
(SILVA, 2009)
Antes do “descobrimento” do Brasil, o Papa Nicolau V, publica em 1452 a bula
Dum Diversos, oferecendo um apoio à supremacia portuguesa para invasão do
continente africano, capturar a população negra e submeter à mesma a escravidão
perpetua, por considerar o povo negro “condenado por Deus a serem escravos dos
brancos”. Por muito tempo o catolicismo foi visto como um não lugar para a população
negra, pois por se “diferente”, seria possuidor de sangue infecto, desprovido de
condição humana, até mesmo seres sem alma (SILVA, 2009).
Mas com o passar do tempo, o clero português passou a acreditar que nas esferas
do mercado Atlântico, “a mão invisível de Deus conduzia o povo africano para o resgate
(espiritual) eterno no Brasil, pois pela escravidão, tiveram a liberdade do pecado, ou
seja, do seu paganismo, para exercitar a obediência ao Deus Supremo” servindo ao
sistema colonial e através da falácia, onde “verdadeira liberdade vem através da
obediência” os jesuítas persuadiram e tornou os negros cristãos, atendendo a soberania
branca (SANTANA, 2007)
Depois de catequizados, os escravos que não respeitassem os dogmas da igreja
católica, eram cruelmente castigados, porém como uma forma de resistência e
resiliência ao sistema posto, a população negra, com suas crenças trazidas do continente
africano, nas personificações do catolicismo (os santos católicos), colocavam as suas
representações religiosas (os deuses e deusas africanos) e realizavam seus cultos,
caracterizando o processo de sincretismo religioso no Brasil Colônia (MACÊDO, 2008)
Nesse processo, além do culto aos deuses e deusas africanas, no processo de
adoecimento, frente às condições que os mesmos viviam nas senzalas, tinham-se os
rituais de cura, pois o acesso à saúde no período colonial era privilegiado as famílias
dos senhores de engenho com atendimento privado e domiciliar (REZENDE E
CONCONE, 2012)
No período pós-abolicionista as manifestações culturais e religiosas se
intensificaram e o governo vigente, decretou a criminalização, das culturas africanas,
como a capoeira no código penal de 1890, onde foi revogada no governo de Getúlio
Vargas e no ano de 2000 as escolas puderam adotar a capoeira como uma prática
esportiva (SERAFIM, AZEREDO, 2011). Porém nos caso das religiões de matriz-
africana (Candomblé e Umbanda) há muitas perseguições e discurso de ódio.
No século XXI, religiões de matrizes africanas são expressas tanto pela umbanda
(397.431 seguidores/as) como pelo candomblé (127.582 seguidores/as), onde suas
manifestações são realizadas em um espaço denominado terreiros (REZENDE E
CONCONE, 2011). Porém, com a construção social e política do Brasil, teve como um
dos principais subsídios para construção das leis, as religiões cristãs, dentre elas o
catolicismo e o protestantismo, embora seja um país declaradamente laico, o discurso de
ódio frente à umbanda e ao candomblé é muito forte, intolerante e violento.
Por ser um discurso histórico, quando não se problematiza o processo de
desconstrução do posicionamento pré-concebido, em alguns espaços acaba por
fortalecer o estigma e com o passar do tempo se reverbera em todos os âmbitos
institucionais, dentre eles o âmbito da saúde, nestes espaços os fatores psicoespirituais,
são levados em consideração quando convém com o posicionamento de quem presta à
assistência a saúde, sendo considerado desta forma um ato estigmatizante,
desumanizado e violento. Pois quando se fala no processo de adoecimento, é necessário
esgotar todas as estratégias de cuidado na rede com o usuário que procura o serviço, ou
seja, ir além das práticas medicalizantes (MURAKAME, CAMPOS; 2012)
Para superação desta problemática nos aparelhos ideológicos da sociedade,
principalmente no âmbito da saúde, é o planejamento e operacionalização de políticas
de correção das desigualdades raciais, ou seja, de ações afirmativas, como estratégia de
superação do racismo e de construção de uma democracia real, rompendo com o mito
ideológico frente ao mito da democracia racial (caracterizada pela relação harmônica
entre os grupos étnico-racial) (GOMES, 2011). Através das reinvindicações do
movimento negro, é publicada no dia 20 de novembro de 2007 a Política Nacional de
Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) tendo como principal marca o
reconhecimento do racismo, como determinantes sociais que influenciam no processo
saúde-doença da população negra, que poder ser operacionalizada através das ações
afirmativas (BRASIL, 2007).
As ações afirmativas tem como essência, uma inovação pedagógica
diversificada, tendo por objetivo, produzir saberes a fim de proporcionar uma reflexão
teórica, de modo a construir um diálogo epistemológico, utilizando saberes produzido
não só pelo movimento negro, mas pela comunidade negra no geral principalmente a
juventude negra (GOMES, 2011). Funcionando em tese como um processo de
emancipação do povo negro, rompendo com o racismo institucional, construindo uma
assistência holística e humanizada para a população negra.
Uma das ações afirmativas que podem ser trabalhadas, segundo Silva et. al
(2017) é a problematização frente o quesito raça/cor nos CAPS considerando que a
pessoa negra está exposta a múltiplas vulnerabilidades advindas do racismo
institucional, ou até mesmo o racismo individual sofrido em vários âmbitos sociais,
além de ser estigmatizada por ter uma doença mental. Afirma ainda, que as discussões
voltadas para a saúde mental precisam transcender os debates que são deliberados nas
conferências, principalmente nas universidades.
No estudo de Holden et. al. (2013), percebe-se o quanto a mulher negra está
vulnerável ao desenvolvimento de algum sofrimento/transtorno mental, por está exposta
tanto as diversas modalidades do racismo como o machismo, em seu estudo identificou
que as mulheres negras de sua amostra, apresentaram uma baixa resiliência e quadros
depressivos, onde foram associados a eventos como: o desemprego, déficit na educação,
diagnóstico prévio de transtorno mental, diagnóstico de pelo menos uma doença
crônica, portanto umas das ações afirmativas propostas por Prestes e Paiva (2016) é
garantir a participação popular das mulheres nestes espaços, trabalhar com as mesmas
assuntos relacionados ao empoderamento e emancipação feminina, promover debates
realistas que proporcionem a estas mulheres o desenvolvimento da resiliência,
resgatando nas mesmas o planejamento da sua vida futura.
Nesta perspectiva, considerando o princípio da integralidade na atenção à saúde,
respeitando todas as nuances que complementam o usuário, dentre elas a visão
psicoespiritual, faz-se necessário considerar todos espaços religiosos como
equipamentos comunitários de saúde, na rede de atenção. Nesse processo, cabe ao
profissional ou gestor realizar um mapeamentos dos espaços religiosos, dentre eles os
terreiros e utiliza-los no processo terapêutico com o usuário de acordo com suas
vontades e suas crenças (BRASIL,2007)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os avanços frente às políticas institucionais de saúde mental, através do
movimento da reforma psiquiátrica, estão em constantes transformações, pois a reforma
psiquiátrica vem acontecendo como o passar dos tempos, apresentando seus avanços e
retrocessos como toda política pública. Dentre os avanços encontra-se a efetivação da
RAPS e seus benefícios para os usuários que passaram muito tempo internos nas
unidades psiquiátricas e através de uma política de ressocialização, viabilizam um
processo emancipatório frente a suas escolhas e sua vida, e como essa estruturação da
rede tem contribuído para o processo de fechamento de algumas instituições
psiquiátricas, tendo um cumprimento da proposta de desinstitucionalização em saúde
mental.
Porém uma das problematizações que ainda está incipiente no processo de
construção da proposta da reforma psiquiátrica é o debate frente às questões raciais,
uma vez que no ano de 2009, no mês de novembro, foi publicada a PNSIPN e
reconhecendo principalmente o racismo como um determinante de saúde, nesta
perspectiva torna-se de grande relevância a transversalização das políticas de saúde
mental e de saúde da população negra, correspondendo desta forma ao princípio da
integralidade do SUS.
Para esse processo de transversalização das políticas, faz-se necessário construir
em todos os níveis de atenção, propostas de ações afirmativas é trabalhar, tanto no
âmbito assistencialista: com profissionais (rompendo o racismo institucional,
proporcionado uma visão crítica e reflexiva) e usuários (trabalho em grupos sobre
empoderamento, autoestima, auto percepção, resiliência e dentre outros assuntos que
promova a saúde mental da população negra, principalmente os indivíduos com
transtorno mental) como também a gestão, implementando políticas de educação
permanente com os profissionais atuantes em todos os serviços da rede sobre a
importância de levar em consideração o racismo institucional como determinante de
saúde.
É necessário verificar quais os dispositivos alternativos, para além dos ambientes
institucionais de saúde que podem ser utilizados frente ao processo de promoção a
saúde, dentre os dispositivos alternativos presente na Rede de Atenção á Saúde,(RAS)
tem-se os espaços religiosos que podem ser utilizados, conforme a vontade do usuário,
em sua linha de cuidado, com o intuito de atender as suas demandas psicoespirituais.
Nesta perspectiva a gestão pode promover debates sobre religiosidade e saúde com
ênfase na intolerância religiosa frente ao povo de terreiro que cultuam a umbanda e o
candomblé, com o intuito de romper os pré-conceitos existentes a cerca destas
manifestações religiosas.
Ocupar os espaços de formação de todos os profissionais que trabalham de foma
direta no processo de promoção à saúde, é de grande relevância, pois rompendo os
estigmas sociais envolvendo as pessoas negras, com transtorno mental que cultuam as
religiões de matriz-africana, proporciona o fortalecimento do SUS, garantindo de forma
plena, uma atenção integral a saúde.

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2014.
AS PÉTALAS QUE ELA CONTINHA

Mateus Alves de Melo1

GT: MT 01 – Contos e Crônicas

Era tarde de quinta-feira e Elena corria com seus cadernos e suas muitas pastas em
seus braços, destas últimas, algumas folhas ameaçavam se desprender devido à forte
ventania que também bagunçava seus cabelos. Acreditava que se atrasaria para a sua
primeira aula àquele dia, porém alcançou a parada de ônibus segundos antes de tomar o
transporte.

Alguns rostos familiares a encararam, como de costume; e não eram agradáveis.


Diante daquilo, a menina baixou seus olhos e os manteve baixos até que chegasse ao fundo
do ônibus, onde poderia ergue-los novamente sem que se sentisse intimidada pela presença
de qualquer pessoa que fosse. Era um comportamento rotineiro que já não lhe causava
estranhamento.

Antes de descer do ônibus, esperou que todos descessem. Em ocasiões anteriores,


enquanto caminhava em frente a um grupo de garotos, teve seus cabelos bagunçados ou foi
gratuitamente xingada. Esse tipo de perseguição a deixou amedrontada e ela decidiu não
vivenciar aquilo outra vez. O motorista daquela linha de ônibus, no entanto, fora sempre
gentil com a garota.

— Até mais, senhor Adolfo.

— Até mais. — Respondeu sorridente. — Boa aula.

A segunda aula daquele dia era também a que Elena mais temia: a aula de educação
física. Ela se sentia envergonhada por ser a mais alta dentre todas, algo que fazia com que
se curvasse; por conta dos pelos em suas pernas, responsáveis por fazer com que preferisse

1
Graduando em Psicologia pela DeVry | UNIFAVIP, E-mail: mateus.103962@homail.com
usar calças em vez de shorts; e pela sua desenvoltura, que imprimia nela a sensação de não
pertencimento àquelas atividades.

Para não participar dessas atividades em aulas passadas, havia simulado situações
inusitadas. Em uma delas, fingiu estar enjoada. Em outro momento, fingiu ter torcido o
tornozelo; enquanto que em um terceiro, fingiu ter torcicolo. A grande maioria das vezes
em que se utilizou de atuação com esse propósito, teve êxito, mesmo que os olhos de sua
professora indicassem que conhecia a verdade.

Era pouco possível, porém, que simulasse um problema diferente a cada nova
quinta-feira e fosse sempre convincente. — Eu posso fingir ter torcido o pé novamente. —
Pensou, entretanto desistiu logo em seguida. Naquele dia ela se submeteria aos mais longos
cinquenta minutos de aula da semana. Ao primeiro momento, teve que correr em torno da
quadra junto aos demais. O comando a fez sentir calafrios, mas logo iniciou o trajeto.

Sentiu que todos os olhares estavam sob ela enquanto o fazia; que estavam à espera
de um tropeço ou qualquer movimento brusco que pudesse ser usado para que a
perseguissem outra vez. Para seu alívio, nada daquilo chegou a acontecer, mas o alívio não
durou muito, pois foram organizados pela professora em times de futebol de salão. Aquilo
a desconcertou.

Elena era conhecida pela pouca habilidade com esportes, então, apesar de ter sido
escalada para um time, fora escalada na posição de reserva. Ela permaneceu no banco à
espera do fim da partida, ininterruptamente constrangida e imaginando todo tipo de
julgamento que se passava na mente de seus colegas. Era uma cena verdadeiramente triste.

No momento em que finalmente foi escalada, entretanto, sentiu náusea e forte


tontura. Talvez tais sensações tenham se dado devido ao nervosismo e a ansiedade em que
se encontrava. No fim das contas ela não teve que fingir estar mal para não participar do
jogo, pois, de fato, estava. Então o vestiário se tornou seu destino, mesmo que a enfermaria
fosse mais óbvia.

Ao fim da aula, preferiu se trocar longe dos demais olhares, pois não queria ser
vista por ninguém. Sentia-se exposta. Elena se sentia daquela forma mesmo trajando peças
de frio, o que era comum, apesar de serem quase sempre inapropriadas. Nem mesmo as
altas temperaturas a faziam abrir mãos das mangas compridas e calças largas. Além disso,
ao menor sinal de neblina, a menina incluía um capuz à sua vestimenta.

Ela não tinha irmãs ou irmãos, vivia com seus pais em uma casa simples à zona sul
de sua cidade e não tinha animais de estimação, apesar de desejá-los. Seus hobbies eram o
desenho e a pintura, entretanto poucas pessoas além dela própria tinham conhecimento
daquilo. Sua mãe era uma dessas pessoas e a doutora Aline, sua psicóloga, era a outra.

Sua mãe os havia encontrado alguns meses antes. — Que traços lindos! — Pensou
e, de início, acreditou pertencerem à outra pessoa, alguém que os tivesse esquecido ali sob
sua cômoda. Porém se deteve ao fato de que sua filha não tinha muitos amigos; nenhum, na
verdade, então considerou que tivessem sido produzidos por ela própria.

Seus desenhos retratavam rosas com poucas pétalas e muitos espinhos. Brotos de
rosa aprisionados em carvão ou tinta, sem que pudessem jamais exibir as pétalas que
continham. Alguns desenhos traziam ainda solos secos, aparentemente inférteis,
novamente com brotos de rosas presentes.

Apesar de surpresa pelo talento da filha e admirada com a beleza das imagens, sua
mãe se viu preocupada com o significado por trás deles, então buscou a filha para que
conversassem sobre aquilo. Àquela noite Elena a contou que desenhava sua própria
percepção diante do mundo, algo que não ficou claro para ela.

Foi aí que decidiu encaminha-la para uma profissional. Não a psicóloga de sua
escola, devido às possíveis perseguições que viria a sofrer caso fosse percebida visitando-a
com frequência, mas outra que pudesse acolher suas dores. O passar das sessões não trouxe
mudanças perceptíveis em seu comportamento, mas a menina comunicou o avanço por
meio dos traços.

Manteve a essência de suas pinturas, que àquela altura estavam cada vez mais
elaboradas, mas adicionou cores. Em pinturas de campo, por exemplo, passou a ser
possível que se enxergassem flores vermelhas e azuis ao fundo, enquanto que antes não
havia nada. Essas pareciam expressar esperança. Era um desabrocho de angústias
acumuladas com o tempo.

À noite daquela mesma quinta-feira, Elena se viu só. Não apenas pelo fato de que
seus pais não estavam em casa, mas por se sentir sozinha no universo. Sentiu que era tão
única que era incapaz de ser admirada ou compreendida em sua vastidão. Ela esperava
encontrar a si própria para que pudesse lhe fazer companhia.

Em sua casa, espelhos estavam por todos os lados, exceto em seu quarto. Neste,
apenas um pequeno espelho ocupava discretamente um local ao lado de seu guarda-roupa.
Nele ela se limitava a pentear seus cabelos, mas não se demorava. Elena os evitava por não
se sentir feliz com a imagem que encontrava diante de si sempre que, por acidente, era
capturada por seu próprio reflexo.

Seu guarda-roupa não continha as peças que desejava vestir, tampouco os


acessórios cobiçados. Era um grande amontoado de preto e cinza, e nada que a fizesse
sentir realmente animada para usar. Nada que estava ali a faria sentir quem ela era. Nada
representava seu íntimo e tudo trazia sofrimento, de modo que ela o fechava desejando não
voltar a abri-lo.

Foi em busca de algo no guarda-roupa de sua mãe que a coubesse. Olhou algumas
blusas, sentiu seus tecidos e as pôs contra o próprio corpo diante do espelho. Era a primeira
vez em muito tempo que olhava para si própria sentindo interesse e até mesmo fascínio.
Encontrou sapatos que achou serem lindos e que desejava calçá-los, mas eram muito
pequenos, então se deteve a avaliar as maquiagens.

E foi buscando elas que se deparou com algumas lâminas de barbear, instrumentos
comumente presentes em seu próprio guarda-roupa, mas que cercados por objetos como
aqueles, ganhava um significado diferente. Ela as tomou em suas mãos e foi em direção ao
banheiro, onde pela primeira vez raspou os pelos que tanto a incomodavam.

A satisfação com o resultado desenhou um sorriso em seu rosto e os espelhos da


casa, tantas vezes abominados, foram como braços abertos à espera de um abraço por tanto
tempo recusado. Ela trouxe um deles, o mais largo que conseguiu carregar, para seu quarto,
inclusive. E se admirou diante dele por tanto tempo que acabou por adormecer no chão.

Os dias que se seguiram não foram muito diferentes do que costumavam ser, exceto
pelo fato de que Elena se sentia mais encorajada. Na segunda-feira ela não baixou os olhos
ao entrar no ônibus. Na terça-feira ela se sentou em uma cadeira ao meio dele e não foi a
última a descer. Na quarta-feira, se permitiu sair de casa sem o moletom.

Mas foi na quinta-feira, novamente durante a aula de educação física, que sua
coragem seria posta à mostra. No vestiário, local em que usualmente ela trocaria seus jeans
por calças de tecido, Elena vestiu um short. A vergonha a abateu assim que o vestiu e o
sentimento a fez hesitar quanto a sair do box vestindo aquela peça, porém respirou fundo e
foi à quadra.

O olhar no horizonte logo foi substituído por um que insistia em buscar refúgio no
piso polido abaixo da garota novamente amedrontada. Ouviu piadas, assovios e risos. — A
menina raspou as perninhas. — Diziam. — Olha o shortinho dela. Que curtinho. —
Continuavam. Foi quando as lágrimas tomaram conta de seu rosto e ela tentou voltar para o
vestiário.

O caminho pareceu distante, porém. Principalmente porque alguns garotos


ocupavam a porta de entrada. Ela sentiu sua visão se tornar turva e seus pensamentos se
tornarem desorganizados. Não enxergava um lugar para onde ir, tampouco alguém que a
pudesse tirar dali. Desnorteada e devastada, cambaleou e caiu de joelhos.

— De joelhos, mocinha? Vai querer agora mesmo? — Perguntou Marcos, seu


principal agressor, sendo obsceno em gestos.

— Marcos. Deixe-o em paz! — Interviu sua professora. — Eric você está bem?

— Estou. — Respondeu Elena, de modo automático. — Eu só machuquei meu


tornozelo novamente. — Continuou a falar, apesar de ter suas palavras engasgadas pelo
choro contido em sua garganta. — Posso ir à enfermaria?
— Claro. Vá. — Disse em tom de piedade. — Justificarei sua ausência. E vocês
outros... — Apitou. — Correndo! Já!

Mas Elena não foi à enfermaria, caminhou pelo pátio de sua escola e encontrou
aconchego sob a grama que ali se encontrava. Observou as flores de pétalas escuras e
ressecadas, se perguntando quanto tempo leva para que percam suas pétalas após chegarem
ao fim da vida. — Talvez eu mesma já tenha perdido as minhas. — Pensou, pois se sentiu
tão sem vida quanto à morte ao seu redor.

Elena não podia ser Elena e ela não conseguia elencar uma razão específica pela
qual, tampouco alguém, pois algo maior violava sua existência. Algo a ameaçava de tomar
as oportunidades que para ela surgiriam caso exercesse sua identidade. Delimitava que era
absolutamente mais importante ser alguém ao mesmo tempo em que determinava que ela
não era; e com isso a tornava indigna.

E se a garota não tinha forças para ser ela mesma, conteria seu desabrocho. Seria
Eric enquanto fosse preciso ser, mas não Eric, o esquisito, apenas Eric. Assumiria a
identidade masculina a qual fora designada e, de modo geral, sua puberdade. Assumiria ser
o garoto que seus genitais diziam que ela era e que seus documentos atestavam, e teria
êxito daquela forma.

Mesmo que não completamente, seria aceita. Cursaria o ensino superior alguns
anos depois e se formaria, trabalhando como produtora de moda. Sonhava em cursar
pedagogia, era verdade, porém entendia que caso desse adeus a Eric em algum momento
de sua vida, deveria ocupar um espaço que a coubesse e esse não seria o educacional, onde
sua presença seria temida.

Pais e mães não confiariam suas crianças a uma figura tão perversa quanto à dela.
Gestores tomariam sua natureza como perigosa. Ela mesma não tinha certeza se seria
adequado que estivesse em uma sala de aula caso chegasse lá algum dia. Seria mais seguro,
então, que não seguisse por aquele caminho. Que acolhesse as limitações a ela impostas e
que as percebesse enquanto privilégios.
Elena daria adeus a ela própria por conta da insegurança que seu eu mais profundo
exprimia sob seu futuro. O medo da rejeição, do desemprego, do desafeto, do homem. E
cada passo contido seria um instante a mais em uma posição que não era a sua. Se Elena
seria para sempre uma rosa, Eric seria por muito tempo o broto que a conteria.
MÃOZINHAS NA AREIA, PERIGO À VISTA.
Maria da Conceição Carneiro de Barros1
MT 01: Contos e Crônicas

Com as mãozinhas brincando na areia, sua inocência exilava a satisfação de estar


ali, fazendo o que toda criança gostaria de fazer. Brincar! Brincar das mais diferentes
brincadeiras. Brincar de tudo tal qual sua imaginação mandasse. Ser feliz naquele mundo
era tudo. Mundo esse que só a criança entende e percebe que faz parte dele, da realidade
que ele proporciona de forma colorida e fictícia, sem perceber que em sua singela
inocência, o perigo por ali passava. Perigo esse que não vinha de longe, nem do
desconhecido, ao contrário do que se podia imaginar, nunca acreditaria que a brincadeira
sadia e inocente poderia vir a ter uma triste lembrança em sua vida, lembrança eterna,
ferida que não cicatriza, marca que parece tatuada em seus pensamentos até o resto de sua
vida.

Permanece de forma viva, em sua mente, os bons momentos, mas ao mesmo


tempo vem a lembrança das suas mãozinhas, ainda sujas de areia, pois fazia bolinho de
areia para cozinhar, afinal de contas, a “cozinha foi o que restou como lugar”, segundo a
sociedade. Logicamente que seus pais, uma vez criados por um viés conservador, machista
e patriarcal, tinham esse mesmo pensamento. Apesar do conservadorismo, os conselhos
voltados para os estudos não faltavam, pois sabiam que os estudos a proporcionariam
muitas realizações. Mas deixando claro que, a mulher é a ‘peça’ principal da casa, parceira
das construções, mas dona das desconstruções da vida familiar. Por isso a importância da
submissão ao homem, uma vez que deveria zelar pela família acima de tudo, até mesmo de
sua felicidade, pois a família estando bem, logo, ela estaria também, o “resto faz parte da
vida de casado”. Essa era a lógica que envolvia o mundinho infantil e feminino daquela

1
Graduada em Serviço Social. Formada pela UNINASSAU. E-mail: caletito@hotmail.com
criança e provavelmente ainda continua sendo de outras crianças. A casa imaginária, mas
precisamente a cozinha, era o reduto. Meu Deus, quanta inocência!

Mas, quantas vezes terá sido? Não sabe-se ao certo, em sua infância talvez duas ou
três vezes, na sua adolescência, uma vez, com toda certeza . Dói! Dói a lembrança que
ainda é bastante forte, apesar dos tempos terem passado, mas a lembrança é bastante viva
em sua mente. Gostava tanto dele, o tinha como um segundo pai. Incrível como nunca
imaginou que algo dessa natureza existiria e que pudesse acontecer com crianças, pois
seria de uma monstruosidade indescritível. Se era manhã, tarde, não se sabe, é como que o
que aconteceu viesse a apagar algumas coisas de sua memória. Mas a lembrança de ser
subtraída da brincadeira, para sentar no colo e ser abusada, é inesquecível. Em vez do
afago, que era para vir em forma de um toque em sua face, de um cheiro em sua cabeça,
ou um beijo em sua testa, vinha o tocar do pênis em seu corpo enquanto sentada em seu
colo, para talvez conseguir uma penetração, ou algo próximo mesmo. Plantava assim em
sua cabecinha, o sentimento de dúvida, de vergonha, de medo e ao mesmo tempo de culpa.
Respostas queria, mas não tinha. Ninguém sabia, e assim o seu mundinho, já não estava
mais tão colorido, algo tinha acontecido e fez com que ele perdesse um pouco do seu
brilho. Pois agora, estava no ar, o porquê dele ter feito isso.

Mas o tempo passou e tudo permanecia do mesmo jeito, afinal de contas foram
umas duas ou três vezes. Os pais não sabiam, a família não sabia, ninguém sabia, e o
encanto da essência infantil ajudou a ir esquecendo aos poucos esse trauma em sua vida.
Pelo menos era o que ela acreditava.

Adolescência, bela adolescência! São tantas mudanças, tantas transformações, o


estranhamento entra em cena trazendo novidades, a busca pelas descobertas é incessante.
Corpinho bonito, tudo no lugar, tudo novinho, os hormônios só faltavam falar. Essa é uma
das fazes da vida em que você quer viver intensamente. É um perigo! Mas quem não quer
passar por ela? Mas, para o desprazer, o mundo que estava colorido, também em sua
adolescência, sofreu a mesma perda de cor, que tinha acontecido em sua infância,
tornando-se um pouco mais opaco. Mas agora, não mais criança, o sentimento veio em
forma de nojo, de raiva, de desprezo e de desilusão. De fato, agora tinha certeza que
aquela pessoa em que depositava um sentimento de amor paternal, não era a pessoa que
correspondia a esse sentimento.

---Menina, não vai não! Falava a mãe.

---Meu coração tá pedindo para você não ir. Coração de mãe não se engana!
Assim dizia a mãe, ao clamar à filha para não ir à casa da tia.

Era uma linda tarde e não tinha aula, poderia ter ficado em casa com sua mãe,
estudando ou fazendo alguma outra coisa, mas ninguém vai saber o que lhe espera mais na
frente. Seus pais não toleravam faltas na escola e sempre lhe falavam da importância dos
estudos, apesar de não terem tido o privilégio de os completarem, chegando apenas até
segunda ou terceira série do primário, tendo que trabalhar logo cedo para se sustentar.
Tinha a mãe como uma guerreira e um exemplo de mulher a ser seguido, por sua
determinação e persistência nas barreiras impostas pela vida. Seu pai trazia para ela a
segurança, pois sabia que ao lado dele estaria segura em qualquer lugar. Sem contar com o
amor e carinho, que sempre passava para ela. Ou seja, amor nunca faltou em sua vida.

Mas a casa da tia a esperava. Se ela soubesse o que iria acontecer com certeza não
iria. A tarde estava ótima, calma e tranquila. Como um raio, bêbado, surge ele,
cambaleando, querendo algo para comer, para servir de acompanhamento à cachaça.
Mocinha, bem prendada, já ia ao fogão. Foi o “fim da picada!”. Mais uma vez vinha a
acontecer tudo o que aconteceu enquanto sua fase de criança. Enquanto tirava algo para
ele comer, a mando da tia, ele mexia no corpo dela como uma propriedade sua,
percorrendo suas mãos por todo ele, pressionando-a contra o fogão e depois contra a
parede, tentando explorar dele o máximo possível. Sua tia nem imaginava o que estava
acontecendo. A força e a voz pareciam ter sumido da sua natureza. Algo inexplicável! Mas
de repente, já não se encontrava ali uma criança, e sim uma quase mulher, que em seu eu,
ainda que transtornado e tomado pelas dúvidas da adolescência, criou força para gritar,
afastar e chorar de forma descompensada, clamando por uma grito de socorro. A tia chega
e o coloca para fora aos gritos, logo, quase todos ficam sabendo, mas o silêncio pairou no
ar, definitivamente, a história passou a não existir. Penetração? Não, não existiu, não deu
tempo, na verdade. Se chegaria a esse estágio, não se sabe. Mas a marca ficou em seu eu,
para sempre. Casos assim em família, não se fala, se cala, para sempre. Você de imediato
começa a pensar que as pessoas naturalizam esses tipos de acontecimentos.

Para a mãe foi o maior desgosto, pois não contou para o pai, que provavelmente
poderia matá-lo, ou morrer, de tanta raiva que iria sentir. Em sua persistência, em sua
forma de ver a vida, procurando viver ao máximo os momentos ofertados por ela, a
menina, hoje, mulher, busca forças sabe-se lá como, para dar continuidade a sua vida
fazendo o possível, pelo menos por alguns instantes para não lembrar das cenas que sua
mente lhe faz questão de recordar, ao escutar ou saber de noticias desse tipo. Sua pessoa
foi fragilizada, sua personalidade também, mas nunca entregou-se definitivamente às
tristes lembranças, sempre se reergueu. Uma luta constante com seu eu, com sua
consciência. Mas enxergou, que por ser mulher, sofre por inúmeras atitudes machistas e
preconceituosas, simplesmente pelo fato de ser mulher. Mas que tal situação precisa mudar
é importante a desconstrução dessa forma de pensar e agir relacionada ao gênero feminino.
Optou por ser mais uma do time daquelas que podem fazer a diferença na vida de muitas
outras mulheres, levando consigo a ferramenta do empoderamento feminino, através do
fortalecimento da luta pelos seus direitos, buscando sempre por um lugar de direito e de
respeito na sociedade.

A luta é contínua e constante, porque não árdua também. Mas a cada conquista,
seja ela individual ou coletiva, é necessário uma comemoração. É essencial que
proliferem-se as buscas por novas retomadas, pelos seus objetivos, pelo seu espaço, seja
em qualquer esfera, pela emancipação feminina, pelo não à violência, pelo
reconhecimento do verdadeiro lugar da mulher, que é onde ela quiser.
O LOBO EM PELE DE CORDEIRO

Maria da Conceição Carneiro de Barros1


MT 01: Contos e Crônicas

Essas foram frases vindas de uma conversa eventual, que fez por trazer a necessidade de
escrever, ou melhor, de compartilhar e ao mesmo tempo de chamar a atenção para a
importância da luta pela busca de um lugar na sociedade, independente da “bandeira” a
qual defende. Sendo extremamente de suma importância que as políticas publicas sociais
referidas aos diversos grupos sejam consolidadas, que a construção social referente a
determinados posicionamentos, de forma falaciosa e preconceituosa, seja desconstruída,
para que assim possa-se coviver minimamente em uma esfera social, igualitária e
pacífica.

Designa-se o homem como o lobo, por ter em meio a conversa, se apresentado de forma
sutil e atenciosa, porém, até então, com sua pele de cordeiro, fazendo apresentar-se no
fluir da conversa, sua inflexibilidade, referente ao assunto mulher e homossexualidade,
enfatizando assim toda sua intolerância.

Frases citadas durante o diálogo:

---- Você não sabe o quanto o pai dele está decepcionado! Exclamou o lobo.

---- Deu para o que não presta! É “veado”! Exclamou o lobo.

---- Deus que me livre desse mal!(homossexualidade) Preferiria ter um filho estuprador ou
ladrão! Exclamou o lobo.

---- Queria eu chegar em casa e ter minha mulher com mais duas na cama esperando por
mim!

---- Mas se fosse o contrário ela iria apanhar!

1
Graduada em Serviço Social. Formada pela UNINASSAU. E-mail: caletito@hotmail.com
---- Mas na verdade sabe de quem é a culpa? Da mãe!

---- Sabe por que eles ficam assim (homossexual)? Porque coloca desde cedo para lavar
prato, varrer casa, varrer banheiro, quando cresce vira isso!

Dói em escutar essas barbaridades, não tem como não constranger-se diante de tanta frieza
e naturalidade. Então você para pra observar e chega à conclusão de que o caminho é
longo, a luta é intensa, cheia de contradições e decepções, mas que a palavra desistir deve
ser excluída da sua vida, porque não vai ser fácil não.

O lobo em pele de cordeiro, é atencioso, educado, sorridente, que nem parece que em sua
essência existe tanto preconceito. Difícil demais aceitar esse posicionamento, onde
reproduz as atitudes machistas e intolerantes, que de forma desrespeitosa vem a coisificar
as pessoas, minimizando-as e subjugando-as. Tais comentários, só nos faz ter a certeza do
quanto incitasse a cultura do estupro, junto à cultura homofóbica, ambas ainda tão presente
em nossos dias, sendo esses dois grupos, vítimas, constantemente de um sistema patriarcal,
machista e estigmatizante, que vem a ditar normas conforme seus interesses.

Ao observarmos o quanto foi e o quanto é importante o papel da mulher na história da


sociedade, as mais diversas contribuições que já fizeram e fazem, observaremos que de
forma injusta e covarde, a mulher teve seus direitos subtraídos, ao mesmo tempo em que a
negação e a ocultação do seu ser, na construção social, contribuiu para uma realidade
obscura, ofuscando suas conquistas. Praticamente repassa-se de maneira falaciosa que a
história foi socialmente construída, pelos homens, ignorando e desclassificando a mulher
de seu real lugar. Limitando-a apenas a esfera privada, restando-lhe à vida familiar,
composta pelos filhos e companheiro, direcionada aos afazeres domésticos e o cuidar da
família, logo, perdendo na esfera pública, o direito de se expressar, de se posicionar,
devido as limitações impostas pela classe dominante (o homem). Tempos sombrios, mas
que aos poucos, a mulher vai conquistando seu espaço em todas as esferas.

Quantas Marias e Severinas que fazem e refazem suas lutas diariamente, quantas Dandaras
e Fridas tiveram e têm um posicionamento guerreiro e desafiador, quantas morreram e
foram abusadas, violentadas, vítimas de um capricho ou de um sentimento misógino.
Conforme seu posicionamento, percebe-se, como já foi dito, que não apenas a mulher
serviu de referência para o desrespeito, inserindo-se nesse quadro, também, a
homossexualidade. Em meio a esse dilema direcionado por um viés avassalador, sabe-se o
quanto é custoso para a vítima ter que conviver com as mais diferentes formas de
tratamento, forma essas embasadas pela intolerância. Imagina-se o quanto incomoda a
orientação sexual de uma pessoa, para alguns, quando se foge do “padrão estabelecido
socialmente”. Negando e repudiando a existência de pessoas que optam por se relacionar
com pessoas do mesmo sexo. Imagina-se o quanto está arraigado na sociedade a rejeição,
chegando por muitas vezes a um estado de ódio, expressando através da violência, a sua
raiva, o seu medo e seu desprezo, contribuindo para a materialização de práticas
homofóbicas e perpetuando dessa forma a violência de gênero.

Mas a história é socialmente construída de forma dialética, onde as controvérsias, as lutas,


as perdas e as conquistas, espinhosamente resultam em direitos e deveres, logo, ganhasse
espaço na sociedade conservadora, capitalista e patriarcal.

Lembrando que, ninguém é preciso aceitar, só apenas, respeitar. Com isso, é bom passar a
refletir para se desconstruir essa forma de enxergar e tratar a pessoa, como que fosse um
ser de outro mundo. Vale ressaltar que a batalha da homossexualidade começa em casa,
com sua própria família, e logo após os muros que a cercam, por isso é bastante árdua.

Ninguém pode dizer que é digno de respeito quando se repudia uma classe e violenta,
ainda que seja verbalmente outra classe, mas, infelizmente, é frequente esse tipo de
transição de pensamento pelas pessoas que acham que o que é certo, é apenas o que lhe
convém dentro de seu padrão referencial, da sua ordem estabelecida, do seu “modinho” de
ver e viver a vida, mostrando-se resistente e intolerável ao que ele acha que vem a “servir
de ameaça” ao seu mundinho.

Fazendo mais um recorte relacionado à mulher, são pequenas atitudes machistas que
acabam fortalecendo a cultura do estupro, fazendo-se presente e bastante viva em nossas
vidas, enfatizando o desejo de posse, de propriedade de um ser (homem) sobre o outro
(mulher), ao mesmo tempo em que objetifica a mulher violentamente, descartando-a
conforme suas necessidades e desejos.
Diante disso, o bom senso, o amor ao próximo, o respeito pela pessoa, é fundamental. A
liberdade à orientação sexual se faz necessária e essencial, para uma convivência pacífica e
humana. Com isso o empoderamento passa a ser uma ferramenta de extrema importância,
para os mais diferentes grupos. Grupos esses oprimidos por um sistema construído
exclusivamente para o domínio masculino. Sistema esse, excludente e cruel, que faz criar
diante das mais sujas realidades, a luta contra um paradigma estabelecido, de maneira
errônea. De forma gritante, é perceptível a necessidade de uma luta direcionada, mais de
que nunca, pela igualdade e pelo repeito, seguindo em direção, sempre à emancipação
humana.
DE SANGUE, SUOR E LÁGRIMAS

Victor José Guedes Vital1


MT-02

Soa boca sua


Que assua e caçoa
Da feiura da feição
Que embora na perfeitura imperfeição
Em feitura de pouca refeição
É resiliente
Pois atura aquela gente
De muito expediente
E pouca afeição

Revolução se apresenta polidamente


Como única solução
Aos soluços desse povo
Que se vê sem “posso”
Que se vê ao poço
Pobre moço
“O que, hoje, almoço?”

Frase que ecoa


No vazio do peito
Que não sei se de fome soa
Ou se pede leito
1
Universidade de Pernambuco, graduando em Direito, victor2347@gmail.com
Nem que de morte, ainda que doa
E até aí vai sem jeito
Posto que sem lugar que lhe abrace
Sem rumo, pobre sujeito
“Pois que o tapuru trace!”
Brada essa cidade
Aos ouvidos
De um homem movido
Pela necessidade

Pedem, pedem, pedem!


Despem, despedem, desperdiçam e despedaçam
Nos anos que se passam,
Essa forte raça,
Que relegam às traças
E que passa desapercebida

Calejada, ainda que destemida


“Cale já!” – Provêm destes Midas
Gordos de ganância
Cujo engodo não engana a ânsia
Anciã pelo amor universalizado
ENSAIO DA ESSÊNCIA

Rachel de Melo Farias1

MT 01: CONTOS E CRÔNICAS


“A luxúria começa pelo contato consigo mesmo”
Michel Foucault

“Cabeça erguida, concentração, foco, sorria. ” As palavras ecoavam em sua mente


repetindo-se continuadamente, como um mantra infalível, cuja melodia era capaz de
absorver as dores e cansaços. O orgulho bailava em suas veias, desabrochando-se em
movimentos cada vez mais leves, onde a alegria encontrava-se tão evidente que
despertava sorrisos em todos os presentes.
Seu coração palpitava no ritmo da melodia que agora acompanhava as palavras
sacramentais em sua mente. O corpo esguio refletido nos espelhos dispostos no ambiente
rodopiava graciosamente, domando suas próprias limitações, transformando-as em
inclinações tão perfeitas quanto desejadas, sendo isto o bastante para alimentar o sorriso
leve que adornava seus lábios róseos.
A última nota ecoou pela sala, fazendo com que sua respiração fosse detida
enquanto coordenava o corpo em um último salto perfeito, encerrado com uma leve
reverencia, fazendo com que se arrepiasse ao ouvir as palmas ecoarem pelo local. Orgulho
era a única palavra que poderia exprimir o que sentia naquele momento. Lutar e
conquistar era a melhor sensação que já havia experimentado em toda sua vida,
compensando, inclusive, todas as dores e horas de treinamentos árduos.
Aos poucos, as pessoas foram deixando o local, deixando-lhe com suas memórias
difusas. Naquele momento, em especial, recordava-se do minuto no qual decidira dedicar
sua vida a dança: O teatro minúsculo e pouco confortável encontrava-se completamente
lotado, abafado e barulhento, então, a prima bailarina rodopiou, várias e várias vezes,
terminando nos braços de um rapaz forte e juntos eles se movimentaram como um.
Então, percebeu que o paraíso se encontrava em sua frente: Não existia mais
barulho, ou calor, apenas magia! E foi nesse exato momento que a decisão foi tomada!

1
E-mail: rachfarias@gmail.com, Centro Universitário do Vale do Ipojuca - UNIFAVIP,
Graduanda em Direito. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre
Direitos Humanos e aluna pesquisadora da Iniciação científica “Direitos humanos, violência e
diversidade humana no período ditatorial, no Agreste de Pernambuco (1964-1985) ”, ambos
realizados no UNIFAVIP.
Não existia nada que desejasse mais do que replicar aqueles movimentos e calar multidões
com a beleza exalada pelos movimentos de seu corpo.
Os espelhos em torno de si refletiam seu olhar perdido em devaneio, revelando a
simplicidade presente no desejo cru que corroía seus pensamentos. Dançar não era apenas
algo transitório, ou capricho... Era seu eu cruelmente revelado através da delicadeza dos
movimentos arduamente ensaiados.
O 'click' do apagar das luzes fez com que o menino finalmente levantasse a cabeça,
revelando seu rosto perfeitamente angulado e seus olhos esverdeados, repletos de
esperança e sonhos, componentes conflitantes de um ser repleto de sonhos, cuja realidade
os corroía tão sutilmente que não eram percebidos.
- Parabéns – Proferiu diante do espelho sentindo um sorriso se espalhar pelas
feições sérias e concentradas. Infelizmente não existia ninguém ali para torcer por ele, no
fundo, isso já não importava, havia aprendido a se auto preencher tão completamente que
sua palavra era a única capaz de lhe atingir, tanto positivamente, quanto negativamente.
- Belo trabalho, continue se esforçando e talvez um dia consiga sair daqui –
Continuou o diálogo jogando a bolsa em suas costas, dando uma última olhada no próprio
rosto: Infantil e repleto de sonhos, exatamente como deveria ser.
[...]
Seus passos ecoavam pelos becos vazios, fazendo-o sapatear com delicadeza,
transformando a solidão em uma música tão suave quanto o seu ser. A bolsa começava a
pesar em suas costas e o suor escorrer pelo canto de sua testa, sua casa ainda se encontrava
alguns quilômetros de distância e o collant começava a aderir sua pele ao nível de
transformar-se em uma segunda pele.
- Halley - O chamado distante, mas bastante conhecido, fez com que o menino
acelerasse os passos, substituindo a leveza e paixão por pressa e confusão. - Tá fugindo,
gatinha? - Mais uma vez seus passos foram apressados, tornando-se tão urgentes quanto
um samba bem entoado.
-E essa roupinha - A voz dessa vez foi acompanhada por um empurrão que fez
com que o pequeno fosse parar alguns centímetros a frente, virando-se na direção de seu
agressor. - Se chama collant, vende em qualquer loja de ballet, caso esteja interessado -
Respondeu arrumando a bolsa em suas costas, preparando-se para mais comentários
idiotas. Eles não vieram. Mas um soco atingiu a face bem delineada antes mesmo que
Liam tivesse a chance de desviar.
-Acha que sou como você? - A voz voltou a atingi-lo, assim como um novo soco,
seguido de outro e mais outro e outro... A dor agora não atingia apenas seu rosto, fazendo-
o cair de joelhos sob o asfalto áspero, ornamentado com o sangue brilhante que escorria
de seu nariz.
-Esquisito, bicha - As palavras fizeram com que o pequeno olhasse para cima
tentando entender o que se passava, embora já tivesse sido chamado daquela palavra
anteriormente, não fazia ideia de seu significado. Forçou o pé contra o asfalto tentando
voltar a se levantar, sendo impedido por um chute que fez com que todo o seu corpo fosse
ao chão, inclusive a face já machucada.
Xingamentos e palavras desconexas continuavam a ser pronunciadas, mas Liam
já não conseguia entendê-las. A dor agora tomava conta de todo o seu corpo, fazendo-o
se encolher em posição de defesa. Chutes e socos continuaram a atingi-lo, fazendo-o
deslocar a mente daquele momento, prendendo-o em memórias cada vez mais dolorosas.
-Para - Pediu sentindo a voz falhar enquanto tentava engatinhar para longe do
rapaz, cujo tamanho e violência sempre acabavam por impedi-lo de dar qualquer passo. -
Por favor - Tentou implorar, mas foi calado por um soco que fez com que seu nariz fosse
deslocado, assim como suas costelas e todas as partes de seu corpo, ou pelo menos assim
lhe parecia.
Dor e escuridão eram as únicas coisas que o pequeno conseguia perceber. Já não
sabia quem lhe batia, o motivo, ou a quanto tempo se encontrava imerso naqueles
sentimentos, apenas se deixava ir; conduzindo seus pensamentos para momentos de
esperança, onde seu irmão apareceria e lhe abraçaria fazendo a dor parar.
No fim, até mesmo a esperança lhe havia sido tirada, até mesmo a dor parecia ter
sumido, apenas a escuridão lhe restava. Não resistia mais, nem era tão ruim, se ele fosse
ser sincero, era apenas uma presença contínua e irresistível.
II

Notas de amor e dedicação preenchiam os ouvidos atentos, inundando-os com a


complexa perfeição exalada pela melodia apresentada. Seus olhos lacrimejavam ao
acompanhar os movimentos precisos e afiados dos dedos finos e hábeis sob o instrumento
angelical.
A multidão aplaudia, de pé, completamente extasiada pela plenitude performática
apresentada. Ele, entretanto, não conseguia mover um único dedo, encontrava-se
completamente imerso no universo musical que lhe havia sido apresentado.
A única coisa que perpassava sua percepção eram as feições delicadas, quase
angelicais, da menina que se encontrava por trás do instrumento. Postura impecável,
vestido longo e sorriso sincero.... Ainda que tudo o que ele conseguisse perceber fosse a
forma como sua bochecha se contraía levemente sempre que atingia uma nota
particularmente complexa, ou ainda como jogava os fios loiros para trás da orelha entre
uma canção e outra.
Detalhes tão delicados e intrínsecos que apenas um olhar apaixonado conseguiria
captar... E era exatamente assim que se considerava: Completamente apaixonado! E não
era de hoje, ou de ontem, em verdade, conseguia recordar-se com perfeição a primeira
vez que seus olhos se cruzaram, fazendo seu coração palpitar com a certeza de que seria
dela para sempre.

***

- Okay... Já pode sair – Implorou fingindo uma irritação autoritária que ambos, ele
e o seu interlocutor, sabiam não existir, acabando por despertar risadas histéricas que
acabaram por inundar o pequeno quarto da felicidade latente que os envolvia.
- Maddie – Voltou a chamar assim que as risadas foram abafadas, sendo
substituídas pelo silêncio curioso que vinha preenchendo o local desde que o outro havia
se trancado no banheiro, duas horas atrás, sob o argumento de precisar lhe mostrar algo
importante.
A curiosidade não era a forma mais eficaz de ganhar sua atenção, contudo, até
mesmo ele já se encontrava impaciente com a demora, afinal duas horas era um tempo
um pouco longo demais e sua mente já havia formulado todos os tipos de explicações
loucas possíveis.
Sua mente encontrava-se pronta para emergir em mais uma teoria infundada
quando a porta finalmente se abriu...
A imagem lhe atingiu antes mesmo que seu cérebro encontrasse palavras para
definir algo. O seu queixo, ele tinha certeza, encontrava-se literalmente no chão. Em sua
frente, onde supostamente deveria estar seu namorado, encontrava-se uma mulher loira
de traços angelicais e beleza singular.
- O que achou? – A voz soou trêmula, carregada por uma insegurança tão palpável
quanto a tristeza que as acompanhava. O rapaz voltou a encarar – a agora namorada –
deixando que seus olhos percorressem cada pequeno pedaço de seu visual, absorvendo
cada detalhe como se encontrasse-se diante da Monalisa.
- You look sexy as hell – Foi a única coisa que conseguiu pronunciar antes de
puxar Maddie para si, evolvendo-lhe a cintura delicadamente. – Eu te amo – Sussurrou
deslizando os lábios de uma bochecha para outra. – Eu sempre vou amar – Reafirmou
finalmente capturando seus lábios.

***

A lembrança fez com que o rapaz sorrisse ao finalmente se levantar, juntando-se


aos demais na onda de aplausos entusiasmados. Três anos haviam se passado desde que
Maddie havia se apresentado como uma pessoa de gênero fluído, ou seja, alguém que
transitava entre os gêneros feminino e masculino, mas ele ainda sentia seu coração
palpitar sempre que o via, fosse como menino, ou menina.
- PERFEITO – Gritou deixando que a emoção o dominasse enquanto caminhava
na direção da loira absolutamente perfeita que havia acabado de deixar o palco. Um
sorriso bobo e apaixonado tomou conta de suas feições quando o mel de seus olhos
finalmente encontrou com o azul intenso dos da menina.
A conexão vibrante do casal transbordava através dos sorrisos igualmente
encantados e olhares apaixonados. Palavras se fizeram completamente desnecessárias. O
amor se encontrava exposto em sua plenitude poética e incompreensível.
- O que a melhor cantora desse mundo deseja fazer agora? – Brincou finalmente
recebendo-a em seus braços, onde a apertou sentindo o coração acelerar ainda mais, até
finalmente ser acalentado pelo calor conhecidos dos corpos. – Vamos? – Convidou
envolvendo-a ainda mais forte enquanto recolhia as mochilas e cases de violão que se
encontravam por ali.
[...]

- Olha só é o menino menina – O comentário, ainda que distante, fez com que o
rapaz se virasse de uma única vez sentindo uma veia pulsar em seu pescoço tamanha a
raiva que passou a lhe dominar. Não era fácil entender todas as situações que envolviam
gênero e sexualidade, ele mesmo havia sentido alguma dificuldade em compreender
Maddie, mas se havia algo que simplesmente não admitia era desrespeito.
O sorriso leve que antes adornava seus lábios sumiu rapidamente. A mão que antes
envolvia a cintura da menina, agora vagava ao seu lado enquanto seus passos ecoavam
pela rua, aproximando-o do comentarista ousado ao mesmo tempo que impunha a
distância entre ele e a loira.
- Liam, não – A voz suave e hipnotizante fez com que parasse exatamente no meio,
entre o ‘agressor’ e sua namorada. – Existe alguma dúvida que precise ser esclarecida? –
Inquiriu esvaziando o pulmão, deixando que parte de sua raiva fosse eliminada no
processo.
Em geral, ele não era violento, mas sabia muito bem onde comentários como
aquele poderiam levar. As cicatrizes em seu corpo e, principalmente, em sua alma, o
impediam de não sentir seu corpo estremecer ao menor sinal de violência, ainda que
simbólica. Acima de tudo, comentários direcionados a si, ele era capaz de aguentar, mas
jamais permitiria que nada acontecesse com Maddie.
- Olha só ela é nervosinha – O novo comentário fez com que Liam fechasse os
punhos como força, fechando os olhos por um milésimo de segundo, apenas o suficiente
para lembrar-se de que o ataque nunca era uma boa abordagem, ainda que quisesse muito.
- Nervoso – Corrigiu o outro, dando mais um passo em sua direção. – Caso não
tenha percebido, não me identifico como mulher. – Explicou voltando a liberar uma boa
carga de ar de seus pulmões.
- Então é bicha – O novo comentário atingiu-o tão profundamente que o cegou
por alguns segundos. Uma nova respiração profunda. Fechou e abriu os punhos algumas
vezes. – Na verdade, eu sou bissexual, como pode perceber, estou acompanhado de uma
mulher, isso não é motivo de vergonha, ou rebaixamento, ao contrário de seu
comportamento. O que lhe incomoda mais: o fato de eu estar acompanhado de uma
mulher linda, talentosa e bem-sucedida, ou o fato de você estar sozinho? – As palavras
voaram de seus lábios ao mesmo tempo que suas mãos finalmente voltavam a ser
espalmadas, revelando a ausência de tensão e raiva que antes o dominava.
- Ambos, eu diria. Então, vou te dar uma dica – Continuou sentindo o sorriso voltar
a alegrar suas feições bem desenhadas, afinal, aquele ser desprezível poderia até passar a
noite lhe xingando, mas isso não o impediria de voltar para casa e beijar o seu amor até
que estivessem tão cansados que adormecessem. – Pessoas gostam de ser respeitadas e
bem tratadas, não importa se são homens ou mulheres, todos precisam de amor.
- LIAM – O grito desesperado de Maddie atingiu seu tímpano no momento em
que seus olhos captaram o movimento conhecido do pulso do ‘agressor’. Lembranças
obscuras brincaram em sua mente ao mesmo tempo em que movimentava seu corpo,
desviando-se do murro certeiro que deveria atingir sua face.
- Sério? É assim que você quer resolver isso? – Inquiriu, liberando, agora, toda a
frustração que antes o dominava. – Eu vou te dar uma nova dica – As palavras foram
cuspidas de forma quase animalesca, exatamente como ele se sentia naquele momento.
Detestava qualquer tipo de violência, ainda mais as físicas, mas, depois de tudo o que lhe
aconteceu, isso não significava que não conseguisse se defender.
- Destreza e precisão não servem apenas para passos de dança e se você não quer
ver para o que mais elas servem, acho melhor aceitar minhas palavras e seguir seu
caminho. – Completou, agora, sentindo a mão de Maddie entrelaçar-se a sua, deixando
claro, ainda que sem palavras, que se encontrava ali e isso era mais do que poderia pedir.
Observou, um pouco incrédulo, quando o ‘agressor’ deu as costas. – Ele foi
mesmo? – Perguntou, ainda completamente céptico, recebendo os lábios da loira como
resposta para sua pergunta.
O mundo girou com intensidade, seu coração acelerou, tudo se tornou líquido e
dispensável, tornando aquele momento o melhor de sua vida. Liam voltou a apertar a
menina contra o seu peito, deixando que seus batimentos cardíacos se confundissem,
trambaleando no mesmo ritmo indecifrável e apaixonado de sempre.

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