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Gilsilene Passon P.

Francischetto
O R G A NIZA D O R A

EDUCAÇÃO
JURÍDICA
DECOLONIAL
Abraham Hand Vargas Mencer
Alessandra Lignani de Miranda Starling e Albuquerque
Cláudia da Silva Thomazine Fraga
Clio Nudel Radomysler
Edna Raquel Hogemann
Elis Pilon do Nascimento
Elisângela Leite Melo
Klinsman de Castro Ribeiro S. dos Santos
Larissa Marchiori Piassi
Lígia Kunzendorff Mafra
Luísa Gasparini e Silva
Marina Feferbaum
Sirval Martins dos Santos Júnior

Florianópolis
2023
Copyright© 2023 by Gilsilene Passon P. Francischetto

Produção Editorial: Habitus Editora


Editor Responsável: Israel Vilela
Capa: Paulo Leite
Imagem de capa: Cris Souza
Diagramação: Conrado Esteves

As ideias e opiniões expressas neste livro são de exclusiva responsabilidade


dos Autores, não refletindo, necessariamente,a opinião desta Editora.

CONSELHO EDITORIAL:

Alceu de Oliveira Pinto Junior Jorge Luis Villada


UNIVALI UCASAL– (Argentina)
Antonio Carlos Brasil Pinto (in memoriam) José Sérgio Cristóvam
UFSC UFSC
Cláudio Macedo de Souza Josiane Rose Petry Veronese
UFSC UFSC
Dirajaia Esse Pruner Juan Carlos Vezzulla
UNIVALI–AMATRA XII IMAP (Portugal)
Edmundo José de Bastos Júnior Juliano Keller do Valle
UFSC– ESMESC UNIVALI–ESA OAB/SC
Eduardo de Carvalho Rêgo Lauro Ballock
UFSC UNISUL
Elias Rocha Gonçalves Marcelo Bauer Pertille
IPEMED–SPCE Portugal–ADMEE Europa–CREFAL Caribe UNIVALI / RICO DOMINGUES/ PUC RS
Flaviano Vetter Tauscheck Marcelo Buzaglo Dantas
CESUSC-ESA-OAB/SC UNIVALI
Francisco Bissoli Filho Marcelo Gomes Silva
UFSC UFSC–ESMPSC
Geyson Gonçalves Nazareno Marcineiro
CESUSC–ESA OAB/SC UFSC–ACADEMIA DA PMSC
Gilsilene Passon P. Francischetto Paulo de Tarso Brandão
UC (Portugal)–FDV/ES UNIVALI
Horácio Wanderlei Rodrigues
UFSC/ FURG

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

F819e FRANCISCHETTO, Gilsilene Passon P., 1974.


Educação Jurídica Decolonial / Gilsilene Passon P. Francischetto...[et al.];
Organizadora Gilsilene Passon P. Francischetto
1ª ed. – Florianópolis: Habitus, 2023.
recurso digital; Formato: e.book
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5035-055-0
1. Educação Jurídica 2. Ensino do Direito 3. Curso de Direito 4. Diretrizes
Curriculares 5. Projeto Pedagógico - Brasil I. Título
CDU 34.37

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ticas gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e seus
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(Lei n°9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Habitus Editora.


www.habituseditora.com.br – habituseditora@gmail.com

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SUMÁRIO

PREFÁCIO...................................................................................................................... 7
Jeciane Golinhaki

PEDAGOGIA DECOLONIAL NA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA


À LUZ DA RESOLUÇÃO Nº 05/2018 DO CNE: O DESENVOLVIMENTO
DA CULTURA DA GESTÃO ADEQUADA DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS................ 11
Luísa Gasparini e Silva
Gilsilene Passon P. Francischetto

POR UMA SUPERAÇÃO DO SENSO COMUM TEÓRICO


E DA COLONIALIDADE DO DIREITO BRASILEIRO: ANÁLISE DAS
TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA............................ 33
Alessandra Lignani de Miranda Starling e Albuquerque
Sirval Martins dos Santos Júnior

A (RE)HUMANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO JURÍDICA


POR MEIO DA AUTONOMIA NO MUNDO DIGITAL. . ................................................ 61
Lígia Kunzendorff Mafra
Gilsilene Passon P. Francischetto

CONTRACULTURA E APRENDIZAGEM POR PROJETOS:


UMA URGENTE MUDANÇA DE PARADIGMA NO ENSINO JURÍDICO.....................89
Marina Feferbaum
Clio Nudel Radomysler

A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL DOS CONTEÚDOS


ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS.................................................. 101
Klinsman de Castro Ribeiro S. dos Santos
Gilsilene Passon P. Francischetto
A UNIDISCIPLINARIDADE COMO HERANÇA
COLONIAL NOS CURSOS DE DIREITO E A TENTATIVA
DE ROMPIMENTO PELA RESOLUÇÃO CNE/CES N. 05/2018. . ................................ 127
Elis Pilon do Nascimento
Gilsilene Passon P. Francischetto

PERSPECTIVAS DECOLONIAIS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS


PARA A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA NA EDUCAÇÃO JURÍDICA. . ......................... 147
Edna Raquel Hogemann

O PROTOCOLO CNJ E A IMPLEMENTAÇÃO DE CULTURA JURÍDICA


EMANCIPATÓRIA COM PERSPECTIVA DE GÊNERO NOS CURSOS DE DIREITO....... 165
Elisângela Leite Melo
Gilsilene Passon Francischetto

A COLABORAÇÃO NO PROCESSO LEGISLATIVO COMO PRÁTICA JURÍDICA


DECOLONIAL: UMA LEITURA A PARTIR DA RESOLUÇÃO CNE 5/2018.. ...............203
Abraham Hand Vargas Mencer
Gilsilene Passon P. Francischetto

UM OLHAR DECOLONIAL SOBRE A PROTEÇÃO


INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A RESOLUÇÃO
05 DE 2018 DO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. . ....................................... 227
Cláudia da Silva Thomazine Fraga
Gilsilene Passon P. Francischetto

AVALIAÇÃO MEDIADORA E DECOLONIALIDADE NA EDUCAÇÃO JURÍDICA.. .....255


Larissa Marchiori Piassi
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO
TRANSVERSAL DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-
RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

Klinsman de Castro Ribeiro S. dos Santos20


Gilsilene Passon P. Francischetto 21

RESUMO: Como reflexo do legado colonial, a educação jurídica brasilei-


ra possui currículos europeizados, o que, historicamente, dificultou a
proposição de reflexões sobre a marginalização social de grupos racial-
mente identificados, dentre os quais destacam-se os afrodescendentes.
Como a desigualdade racial não era uma realidade enfrentada pelo Velho
Continente, estas discussões acabavam por não figurar nos currículos
jurídicos. E o Brasil, como ex-colônia europeia, acabou por alijar as
problematizações e leituras da realidade social brasileira dos cursos de
Direito. O primeiro passo para inserção de um viés humanista e crítico
nos currículos jurídicos foi com a edição da Portaria 1.886/94 do MEC,

Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória


20

(FDV). Especialista em Direito Previdenciário pela Fundação Escola Superior do


Ministério Público (FMP/RS). Graduado pela FDV. Membro do Grupo de Pesquisa
“Acesso à Justiça na Perspectiva dos Direitos Humanos”. Advogado.
E-mail: klinsman.castro@hotmail.com.
Pós-doutora em Ciências Sociais pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de
21

Coimbra. Pós-doutora em Direito do Trabalho pela PUC/MG. Doutora em Direito


pela Universidade Gama Filho. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Pós-graduação em Docência do Ensino Superior pela Universidade Norte do
Paraná UNOPAR. Graduada em Direito e Pedagogia. Professora da graduação e do
Programa de Pós-Graduação em Direito da FDV (Mestrado e Doutorado em Direitos
e Garantias Fundamentais). Líder do Grupo de Pesquisa Invisibilidade social e energias
emancipatórias em Direitos Humanos.
E-mail: gilsilenepasson@uol.com.br

101
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

que fixou as diretrizes curriculares dos cursos jurídicos. Posteriormente,


esta questão foi objeto de debates e aprofundamentos que resultou na
Res. 09/2004, que foi sucedida pela atual norma que rege a educação
jurídica brasileira, a Res. 05/2018. Um dos principais feitos deste ato
normativo foi trazer as questões étnico-raciais como conteúdo transversal
a ser obrigatoriamente observado pelas IES, consoante mandamento de
seu art. 2º, §4º. Ao elencar esta questão como transversal, a resolução
reconhece a importância de levar ao Direito os debates acerca da justiça
e desigualdade racial, não só como uma disciplina isolada, mas sim como
um norteador do curso de Direito. No entanto, malgrado a importante
contribuição da Res. 05/2018 para a educação das relações étnico-raciais,
o ato normativo não especificou de que forma estes conteúdos devem ser
abordados pelas IES. Com isso, este trabalho se propõe a expor as ma-
neiras pelas quais a transversalidade desses conteúdos pode ser abordada.
PALAVRAS-CHAVE: Decolonialidade. Transversalidade. Relações étnico-ra-
ciais. Educação jurídica.

INTRODUÇÃO

Os debates acerca do racismo têm ganhado espaço, ainda que timi-


damente, no cenário público como resultado das lutas dos movimentos
organizados em prol da igualdade racial. Interessante notar que as pautas
de reivindicações trazidas por esses grupos é diversa e passa, desde a efetiva
punição a quem comete atos discriminatórios, até a adequada inclusão
social das pessoas negras no trabalho, na política, na cultura, educação,
dentre outros espaços.
A necessidade de incluir o negro na educação se deve pelo apa-
gamento da ajuda da negritude na construção da identidade nacional
brasileira para além da tríade samba, capoeira e futebol. A ocultação da
contribuição que a população negra deu na construção deste país é reflexo
da estrutura racista arraigada na sociedade que impede o alcance destes
relatos às salas de aula, bem como que sejam tratados com a merecida
importância. Desse modo, essas histórias ficam relegadas à subalternidade,
o que só contribui para a construção de estereótipos raciais que tanto
prejudicam os grupos racialmente identificados

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A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

Atento a esta realidade de ausência da história negra no ensino do


Brasil e atendendo pautas historicamente reivindicadas pelos movimentos
negros organizados, o Ministério da Educação tem empreendido esforços
no sentido de enegrecer a educação brasileira com iniciativas como a in-
clusão da Educação das Relações Étnico-raciais no ensino por intermédio
da Res. 01/2004, que incentiva a difusão dos conhecimentos, valores e
visões de mundo afro-brasileiros ao promover uma descolonização dos
currículos jurídicos por propor uma análise dos conteúdos do ponto de
vista do oprimido.
Outro exemplo dos esforços do MEC pela promoção da cultura
negra na educação, agora tratando especificamente sobre a educação ju-
rídica, foi a elaboração da Resolução 05/2018 que institui as Diretrizes
Nacionais do Curso de Graduação em Direito, e inovou ao trazer a obri-
gatoriedade, em seu art. 2º, §4º, do tratamento transversal de conteúdos
étnico-raciais no Projeto Pedagógico de Curso (PPC).
Vale dizer que essa transversalidade não se limita a criar uma
disciplina sobre o tema, mas sim desenvolver meios de se abordar
em todas as disciplinas da matriz curricular, nas pesquisas e projetos
de extensão da IES conteúdos que versem sobre a história e cultura
afro-brasileira e africana (que será o foco deste trabalho), além de
assuntos de educação ambiental, educação em direitos humanos,
dentre outros.
Em outras palavras, a Res. 05/2018 propõe uma descolonização dos
currículos jurídicos no Brasil ao prezar por um tratamento de conteúdos
que oportunize a apresentação e discussão de pensamentos de diferentes
matrizes epistemológicas (não europeias), sem, no entanto, menosprezar
a importância do pensamento oriundo do Velho Continente. É tratar
sem hierarquia os diferentes saberes para possibilitar um entendimento
mais amplo da realidade social brasileira.
Diante desse novo cenário normativo, surge a questão que é o
cerne deste artigo: de que formas é possível atender à exigência da Re-
solução 05/2018 quanto à transversalidade das questões étnico-raciais
nos currículos jurídicos?
Para trazer resposta à essa indagação, este trabalho, utilizando-se
do método dialético, irá abordar sobre os avanços trazidos pela Res.
05/2018 em comparação à resolução anterior, especialmente no que diz
respeito ao tratamento dos temas transversais.

103
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

Em seguida, será demonstrado que para efetivar a transversa-


lidade dos conteúdos étnico-raciais, a descolonização dos currículos
jurídicos será demanda, pois a epistemologia europeia não fornece
instrumentos suficientes para analisar as estruturas sociais e as relações
de poder vigente em antigos territórios colonizados. Por fim, será
discutido de que forma os temas transversais deverão ser abordados
nos currículos jurídicos.

1 A RESOLUÇÃO 05/2018 E A INOVAÇÃO


SOBRE OS TEMAS TRANSVERSAIS

Antes de adentrar nas nuances e novidades trazidas pela Resolução


05/2018, no que se refere à transversalidade de determinados temas na
matriz curricular dos cursos de Direito, faz-se mister expor um breve
histórico de como este assunto era tratado no âmbito normativo, para
que se possa melhor analisar a importância da inclusão da transversalidade
na educação jurídica.
Os cursos de ciências jurídicas no Brasil foram instituídos nas
cidades de São Paulo e Olinda (posteriormente transferida para Recife)
em 1827, cinco anos após a independência do país, por D. Pedro I. Com
a formação do Estado brasileiro e o início da vigência do império da lei,
surgiu a necessidade de formar burocratas para organizar e viabilizar as
rotinas desta nova entidade. Neste primeiro momento, a criação dos cursos
de Direito se prestou a lançar profissionais com alto domínio técnico para
atender as necessidades do Estado (Papalia e Ferreira, 2021, p. 244).
Por esse motivo, a preocupação inicial destes cursos não era com
a formação crítica dos indivíduos diante a realidade social brasileira, e
nem o comprometimento com o avanço científico do Direito (Fran-
cischetto, 2019, p. 16).
O distanciamento do ambiente acadêmico com os problemas es-
truturantes da sociedade brasileira que marginalizava economicamente
parte significativa da população, foi agravado pela composição aristocrata
do corpo discente, integrado quase que em sua totalidade por filhos da
elite agrária e comercial da época. Com isso, o ambiente acadêmico,
predominantemente liberal, acabava por refletir os interesses destas classes
(Francischetto, 2019, p. 19).

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A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

E outro fator que contribuía à ausência de conscientização das IES


da necessidade de se analisar o arranjo social brasileiro, foi a influência
europeia (em especial de Portugal e França) nos currículos jurídicos da
época. Os problemas enfrentados pelo Brasil, obviamente, não estavam
na ordem do dia das instituições estrangeiras e, com a adoção literal de
seus currículos por aqui, este enfrentamento não foi realizado. E ainda,
a falta de um pensamento criado no Brasil para analisar o país também
pesou nesta questão (Francischetto, 2019, p. 21).
Neste ponto, é interessante notar que essa descrição do profissional
ambicionada na época, remete à teoria da pureza do Direito elaborada
por Hans Kelsen e defendida por diversos autores positivistas tais como
Niklas Luman, Renato Treves e Ramón Soriano, que concebiam o Di-
reito como um ramo autossuficiente do saber (Sabadell, 2017, p. 21).
Ou seja, o que se esperava do docente era tão somente o domínio da
aplicação técnica do direito, sem ter que se preocupar com a repercussão
social deste ato.
Essa realidade de apego à formação técnica dos alunos, e o desprezo
de sua preparação para serem agentes de transformação social pelo Direito,
perdurou até a proclamação da República em 1889. Nesta época, houve
a promulgação do Decreto 10.361 que trouxe alterações na estrutura dos
cursos jurídicos. Entre as principais mudanças, pode-se citar o surgimento
das faculdades livres, que pôs fim ao monopólio das faculdades de São
Paulo e Recife, a possibilidade de matrícula de mulheres, além de uma
maior sintonia entre a teoria e a prática, haja vista que havia

[...] uma insatisfação com a forma com que o ensino do Direito


se desenvolvia e alguns apontamentos de possíveis soluções. As
conclusões do Congresso apontaram no sentido da necessidade
de se adotar um método misto, ou seja, teórico e prático onde o
professor deverá apresentar os casos práticos como meio de con-
cretização dos princípios teóricos (Francischetto, 2019, p. 33).

Posteriormente, em 1971, seguindo a toada da busca de uma maior


sintonia entre teoria e prática, aliado ao desenvolvimento de senso críti-
co dos profissionais de Direito, o Encontro Brasileiro de Faculdades de
Direito concluiu pela necessidade de incluir algumas disciplinas prope-
dêuticas para alcançar este perfil, tais como história do Direito, Filosofia
e Ética Profissional (Francischetto, 2019, p. 37).

105
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

Ainda assim, o perfil acima almejado do discente não era obtido,


muito por conta dos corpos docentes das IES, que em sua maioria, eram
compostos por advogados de renome, juízes e promotores. Acreditava-se
que estas figuras, pelo fato de gozarem de sucesso profissional em seus
respectivos ramos de atividade, estavam aptos ao exercício do trabalho
pedagógico (Papalia e Ferreira, 2021, p. 249), inexistindo preocupação
com a formação continuada destes profissionais para levar à sala de aula
um olhar crítico aos conteúdos ministrados.
A realidade da educação jurídica brasileiro de distanciamento da
prática e da realidade social foi alvo de várias críticas, dentre as quais se
destacou o posicionamento do pensador San Tiago Dantas. Para o autor,

[...] o Direito foi perdendo sua capacidade de responder às de-


mandas sociais e que parte dessa queda de rendimento se deve à
própria forma com que o ensino jurídico tem sido ministrado, a
partir de repetições e sem imprimir um caráter inovador de tal
conhecimento (Francischetto, 2019, p. 41)

Suas observações sobre a falta de inovação no ensino tiveram


grande repercussão no âmbito científico, e foi responsável por suscitar
grandes reflexões sobre o tema. Tanto é verdade que, em 1980, o MEC
nomeou uma comissão de especialistas em ensino jurídico para estabele-
cer alterações no currículo. Estes trabalhos resultaram na elaboração de
uma proposta de alteração dos currículos de ensino jurídico, que nunca
chegou a ser implementada.
Somente em 1993, com a constituição de outra comissão, que
o MEC implementou avanços na educação jurídica. Estas discussões
culminaram na elaboração da Portaria 1.886/94, que trouxe inovações
importantes para a área. Entre estas novidades, salienta-se a necessidade
de interligação das atividades de pesquisa, ensino e extensão para pro-
porcionar uma formação sociopolítica e técnico-jurídica sólida (art. 3º).
Curioso observar que a obrigatoriedade do desempenho em con-
junto destas atividades serviu para

[...] romper com uma prática muito comum nos cursos de Direito
que é o exclusivismo da atividade de ensino. A integração da ati-
vidade de ensino com a pesquisa e extensão constitui, sem dúvida,
uma forma de buscar o entendimento mais amplo do fenômeno

106
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

jurídico e até mesmo a superação da “educação bancária”. Isso


porque o aluno não terá apenas as aulas, mas também irá buscar
sua formação através de um trabalho de investigação científica e
no desenvolvimento de atividades de extensão (Francischetto,
2019, p. 45).

Dessarte, o objetivo de integrar a sociedade com o âmbito aca-


dêmico se tornou mais factível, posto que o conhecimento adquirido
durante o curso não era aquele somente advindo da teoria, mas também
da prática.
Todavia, apesar do louvável avanço que a Portaria 1.886/94 trou-
xe, alguns pontos mereciam reparo, tais como as exigências de minu-
cioso detalhamento nos currículos, excesso de disciplinas obrigatórias
direcionadas ao mercado de trabalho, ausência de estímulo a iniciação
científica e o desenvolvimento de novas formas de aprendizagem para
erradicar a evasão. Mas o principal foco do Conselho Nacional de Edu-
cação – CNE era

[...] incluir no Projeto Pedagógico do curso de Direito dimen-


sões éticas e humanistas, que suscitassem no estudante valores
significativos que o levassem ao encontro com a efetividade do
exercício da cidadania, tornando-se, pois, um profissional dotado
de conteúdos técnicos, mas provido de um referencial humanístico
(Oliveira e Lima, 2018, p. 29).

Assim, imbuídos da necessidade de reestruturar o ensino jurídico


para formar profissionais aptos para atuar na sociedade, surge a Resolução
09/2004, “com o desígnio de reestruturar o ensino jurídico brasileiro a
partir de uma pauta axioprincipiológica apta ao pleno envolvimento dos
atores do sistema educacional no fluxo da formação jurídica” (Oliveira
e Lima, 2018, p. 35). Este ato normativo trouxe contribuições valorosas
nas discussões sobre uma formação de viés humanístico dos profissionais
do direito (Abreu e Francischetto, 2019, p. 125).
Entretanto, no que pese o progresso na questão de formação hu-
manística dos egressos do ensino jurídico trazida pela Res. 09/2004,
ainda havia a necessidade em reestruturar novamente os cursos de Direito
para garantir o “interesse [...] da sociedade na perspectiva de emprego e
de seus significados destinados à competitividade econômica, inclusão,

107
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

acesso à renda, à produção de conhecimento e ao bem-estar da sociedade”


(Papalia e Ferreira, 2018, p. 250).
Por esse motivo que, em 2015, o Conselho Nacional de Educação
instaurou uma comissão com o propósito de alterar essa resolução. Nos
anos seguintes diversas reuniões, audiências públicas e eventos foram
realizados pelo Ministério da Educação com representantes do CONPE-
DI22, OAB23, CAPES24, INEP25 e professores. Destas discussões que se
originou o Parecer 635/2018, que foi publicado em forma de resolução
(Francischetto, 2019, p. 55).
Então, é neste cenário de despertar da necessidade de integração
entre a teoria e a prática social, como também da prevalência da temática
de direitos humanos nos currículos jurídicos, que nasce a Res. 05/2018.
Neste ponto, é importante dizer que, na lição de Marco Tarciso
Masetto (2011, p. 4), por currículo entende-se o

[...] conjunto de conhecimentos, saberes, competências, habi-


lidades, experiências, vivências e valores organizados de forma
integrada visando a formação de profissionais competentes e
cidadãos, para uma sociedade contextualizada num determinado
tempo e espaço histórico, político, econômico e social.

O autor ainda assevera que o currículo do ensino superior deve


propor que os docentes saiam um pouco da sala de aula, para entender
o que está acontecendo na sociedade. Desta maneira, será possível esta-
belecer “um projeto educacional para a formação de profissionais que
estejam voltados para a transformação da ordem social, em benefício de
melhores condições de vida para as populações” (Masetto, 2011, p. 4-5).

22
O Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, é uma associação civil
com propósito de incentivar e promover os estudos jurídicos e o desenvolvimento da
pós-graduação em Direito no Brasil.
23
Ordem do Advogados do Brasil é a entidade máxima da advocacia responsável pela
aplicação do Exame da OAB.
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, fundação ligada ao
24

MEC, tem como função avaliar, divulgar e fomentar a produção científica em nível de
pós-graduação stricto sensu no Brasil.
25
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, autarquia
vinculada ao MEC, realiza avaliações sobre o sistema de educação brasileiro para planejar
políticas públicas para a educação.

108
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

Na Res. 05/2018 podemos perceber claramente a importância


dada a formação de docentes mais conectados com a sociedade, ao nos
depararmos com os elementos obrigatórios no PPC presentes no art. 2º.
Este comando elenca, dentre outras, a necessidade de estabelecer formas
de realização da interdisciplinaridade e mobilidade nacional e interna-
cional, da integração da teoria e prática, do incentivo às atividades de
pesquisa e extensão, além da articulação do ensino com a extensão e a
iniciação cientifica.
Além da previsão desses elementos como componente curricular,
a resolução também trouxe importantes inovações ao dar nova reda-
ção ao art. 4º. Antigamente, este dispositivo se referia a habilidades e
competências a serem desenvolvidas, mas agora a redação faz menção a
competências e as divide em cognitivas, instrumentais e interpessoais.
Dentre essas, destaca-se a última, que diz respeito não somente a ca-
pacidade de se comunicar entre os profissionais da área, “mas também
com a sociedade em geral, de forma a evitar ‘latinismos’ e favorecer a
compreensão daqueles que serão seus interlocutores como futuros pro-
fissionais do direito” (Francischetto, 2019, p. 66).
Outro ponto alterado no art. 4º para atender a finalidade de formar
profissionais engajados socialmente, diz respeito à inclusão do inciso
XIV nesse artigo que trata de conteúdos relacionados à deontologia da
carreira, o que ratifica um compromisso com a ética “não só para a futura
atuação profissional, mas também durante o curso em todas as atividades
desenvolvidas” (Francischetto, 2019, p. 67).
Nesse mesmo inciso ainda há a obrigatoriedade do tratamento
transversal dos direitos humanos. Sobre o tema, válida é a lição de Ra-
fael Yus (1998, p. 4) que define os temas transversais na educação como:

[...] Um conjunto de conteúdos educativos e eixos condutores da


atividade escolar que, não estando ligados a nenhuma matéria
particular, pode se considerar que são comuns a todas, de forma
que, mais do que criar novas disciplinas, acha-se que conveniente
seu tratamento seja transversal num currículo global da escola.

Isto é, esses assuntos transversais, devido à sua relevância, deverão


ser enfrentados ao longo de todo curso de direito e não somente em
um semestre, haja vista que estes temas “expressam conceitos e valores
fundamentais à democracia e à cidadania e correspondem a questões

109
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

importantes e urgentes para a sociedade brasileira de hoje [...]. São amplos


o bastante para traduzir preocupações de todo o país” (Bovo, 2004, p. 5).
E no que diz respeito ao PPC da graduação em direito, vale dizer
que a transversalidade não se esgota só nos direitos humanos, haja vista
que o art. 2º, §4º prevê que

O PPC deve prever ainda as formas de tratamento transversal dos


conteúdos exigidos em diretrizes nacionais específicas, tais como
as políticas de educação ambiental, de educação em direitos huma-
nos, de educação para a terceira idade, de educação em políticas
de gênero, de educação das relações étnico-raciais e histórias e
culturas afro-brasileira, africana e indígena, entre outras.

Assim, percebe-se o comprometimento da Res. 05/2018 em lançar


ao mercado de trabalho profissionais capazes de exercer um senso crítico
das relações sociais, de modo a enxergarem no Direito um instrumento
valoroso para diminuição e/ou erradicação de mazelas sociais das mais
variadas ordens, em especial aquelas oriundas da manifestação estrutural
do racismo, que é o objeto deste estudo.
Impende destacar que os conteúdos transversais devem ser abor-
dados considerando conhecimento de importância regional, nacional e
internacional (art. 5º, §3º), com o fito de promover uma visão intercul-
tural que não faça predominar um posicionamento “europeizado” acerca
destas questões (Francischetto, 2019, p. 70).
Portanto, ao tratar-se das questões étnico-raciais, é importante que
os relatos do ponto de vista do oprimido sejam valorizados, para que a
abordagem ao tema seja devidamente problematizada. Posteriormente,
as IES deverão relacionar estes assuntos a determinados pontos dos con-
teúdos ministrados em sala de aula, conforme passaremos a expor no
próximo capítulo.

2 A DECOLONIALIDADE E A EDUCAÇÃO
PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Como anteriormente abordado, o tratamento transversal dos temas


sobre as relações étnico-raciais na educação jurídica demanda o ques-
tionamento e a revisão da ordem posta do conhecimento transmitido

110
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

em sala de aula. Isto porque, em diversas áreas do saber, incluindo o


Direito, ainda que não seja de uma maneira generalizada, os conteúdos
são abordados numa perspectiva europeizada, que pouco se dedica em
analisar as mazelas deixadas pelo processo colonial que até hoje rever-
beram no Brasil. Nesta concepção, por vezes não há preocupação em
problematizar e tampouco convidar os discentes a refletir os temas na
visão do oprimido, pois a maior preocupação é em trazer os conceitos
do conteúdo do ponto de vista do norte do mundo.
Essa abordagem do ensino é um dos legados do processo de colo-
nização do continente americano pela Europa. A colonização, segundo
Enrique Dussel (1993, p. 15), foi o que determinou a constituição da
Europa como centro do mundo e estabeleceu os outros povos e territórios
como sua periferia. Isto se deveu graças a exploração da força de traba-
lho gratuita de indígenas e africanos na escravidão, que foi empregada
na exploração dos recursos naturais (em especial metais preciosos) do
território recém descoberto. Por conta destas atividades extrativistas, a
Europa conseguiu angariar recursos que viabilizou sua imposição militar,
econômica e política para o restante do planeta.
Desta maneira, ao se estabelecer no centro do globo, a Europa pas-
sou a narrar a história do mundo de acordo com a sua visão, por meio de
um processo de desenvolvimento linear, que se inicia de forma incipiente
e prematura na Ásia e atinge seu ápice de maturidade e desenvolvimento
no Velho Continente. Assim, a Europa se estabelece como o centro do
mundo e da história universal. Este movimento Leste-Oeste de progresso
do planeta acaba por “eliminar da História Mundial a América Latina e
a África (e além disso situará a Ásia num estado de ‘imaturidade’ ou de
‘infância’ essencial)” (Dussel, 1993, p. 18).
Nesta ótica eurocentrada, a África é extirpada da narrativa mun-
dial por ser entendida como uma terra sem pensamento próprio, sem
história e sem espírito, uma vez que seu povo em nada contribuiu para
humanidade, como bem defendeu o filósofo George Wilhelm Friedrich
Hegel. Por seu turno, as contribuições da América Latina são afastadas
da história do mundo pelo fato deste território, aos olhos dos homens
europeus, ser dotado de uma imaturidade tal que até seus vegetais e
animais são tidos como primitivos, fracos e degenerados. Portanto, como
sua formação ainda não está completa, não há importância histórica a
ser acrescentada ao mundo (Dussel, 1993, p. 19-21).

111
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

Vale dizer que esse ocultamento da contribuição de outros povos


para o mundo dos europeus, não é baseada somente pela prevalência po-
lítico-econômica. O ponto crucial desta hierarquização do conhecimento
e da história, passa pela criação do conceito de raça, que foi gestada no
contexto do período colonial. Sobre o tema, Aníbal Quijano (2005, p.
117-118) explica que o colonialismo diz respeito ao processo de domínio
e exploração dos territórios do continente americano iniciado no século
XV pela Europa. Neste período, o desenvolvimento do conceito de raça
foi elaborado para legitimar a exploração dos corpos dos indígenas e
dos africanos, haja vista que estes povos eram tidos como inferiores aos
colonizadores por não comungarem dos mesmos fenótipos e modos de
organização social dos europeus.
Por conta dessas diferenças que são intrínsecas aos seres humanos,
o homem europeu, ignorando por completo as diversidades de costumes
entre grupos étnicos, desenvolveram conceitos universais para aferir o
desenvolvimento econômico e social do homem ao se rotular como ci-
vilizado e superior, enquanto os demais povos foram classificados como
primitivos e inferiores (Scwarcz, 2014, p. 36-37). Desse modo, tudo
que foi originado das populações escravizadas foi recebido com desprezo,
em especial suas descobertas mentais e culturais.
Esta lógica de pensamento de categorização e ranqueamento do ser
humano em raças, que foi o cerne central do colonialismo, não cessou
com o fim da época colonial. O mundo ainda se encontra subjugado às
vontades e padrões impostos pelos antigos colonizadores, o que acaba por
dificultar o aprofundamento de discussões acerca do legado da estrutura
social de opressão das ex-colônias
A continuidade dessa prevalência da visão europeia e da raça branca
nas relações sociais e de poder, mesmo após o colonialismo, foi denomina-
da de colonialidade do poder por Aníbal Quijano (2000). Para o autor, a
independência das antigas colônias e o fim da dominação jurídico-admi-
nistrativa das metrópoles sobre esses territórios, não foram capazes de pôr
a termo ao arranjo social e o imaginário popular que naturaliza as posições
de desigualdade racial no trabalho, no estrato econômico, nas ocupações de
território e na produção de conhecimento. Neste contexto, os representantes
diretos do europeu nas antigas colônias (leia-se o homem branco), exercerão
um papel de destaque em todos os âmbitos sociais, se prevalecendo sobre
os mestiços, indígenas, negros e mulheres (Quijano, 2000, p. 287).

112
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

Acerca da temática, cumpre destacar que a colonialidade não se


manifesta somente no âmbito do poder. Como bem leciona Catherine
Walsh (2012, p. 67), após observar as dinâmicas das relações sociais no
capitalismo, a colonialidade se manifesta em mais três categorias, quais
sejam, a colonialidade do ser, cosmogônica da mãe natureza e do saber.
A colonialidade do ser é marcada pela desumanização dos corpos
colonizados. A subalternização e inferiorização dos sujeitos não-brancos
se prestam a pôr em dúvida o valor humano destas pessoas, que por conta
da cor da sua pele e ancestralidade se tornam marcados como seres não
existentes (Walsh, 2012, p. 68).
Já a colonialidade cosmogônica da mãe natureza, diz respeito ao
binarismo natureza/sociedade, que nega a ideia de harmônica entre estes
dois atores, tão bem empregada pelos povos indígenas milenarmente,
para pregar o total controle e exploração do meio ambiente pelo homem
(Walsh, 2012, p. 69).
Por fim, há ainda a colonialidade do saber, classificação que mais
interessa para o desenvolvimento deste trabalho. Esta categoria diz res-
peito ao

[...] Posicionamento do eurocentrismo como ordem exclusiva da


razão, do conhecimento e do pensamento, que exclui e desqualifi-
ca a existência e a viabilidade de outras racionalidades epistêmicas
e outros saberes que não sejam os dos homens brancos europeus
ou europeizados (Walsh, 2012, p. 67, tradução nossa)26.

Ou seja, a colonialidade do saber desconsidera todo conhecimento


produzido que não seja originado da branquitude. E para filtrar o saber
que deve ser digno de louvor ou desprezo, a colonialidade do saber orga-
niza e estabelece os marcos epistemológicos, academicistas e disciplinares
de modo a privilegiar a sabedoria europeia (Walsh, 2012, p. 67). Como
resultado destes preceitos, os saberes dos indígenas, africanos e asiáticos,
à título de exemplo, são sempre desprezados e tidos como meras especu-
lações sem embasamento científico. Ou ainda, quando o conhecimento

26
Texto original: “[...] Posicionamiento del eurocentrismo como orden exclusivo de razón,
conocimiento y pensamento, la que descarta y descalifica la existencia y viabilidad de
otras racionalidades epistémicas y otros conocimientos que no sean los de los hombres
blancos europeus o europeizados” (WALSH, 2012, p. 67).

113
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

desses grupos é produzido segundo os ritos de padronização ocidental da


ciência, serão recebidos com certo grau de desconfiança pelo Ocidente.
Aqui percebe-se como o racismo, criado no colonialismo e aliado
importante da colonialidade, é relevante para manter o status quo de
hegemonia do pensamento europeu. Isto porque, como define Silvio de
Almeida (2021, p. 32), o racismo

É uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como


fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes
ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios
para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam.

Assim sendo, a discriminação sistemática pautada na raça se presta


não só para alijar determinados sujeitos do acesso à espaços privilegiados,
mas serve, sobretudo, a manter a elite intacta em sua posição.
Logo, dentro desta racionalidade, as produções acadêmicas que
expõem as fraturas sociais causadas pelo racismo (tais como o apaga-
mento da contribuição da população negra na construção da identidade
nacional brasileira, intolerância contra as religiões de matrizes africanas
e o alto índice de homicídio de corpos negros) e propõem soluções para
o problema ao defender a necessidade da criação de ações afirmativas
no ensino superior, no mercado de trabalho e em concursos públicos,
por exemplo, são de pronto ignoradas ou vistas com desdém pelo meio
acadêmico. Não interessa aos privilegiados o questionamento de sua
privilegiada posição socioeconômica. Por conta disto, dificilmente essas
visões e discussões adentravam as salas de aula.
Por esse motivo é que o movimento negro organizado historica-
mente sempre travou lutas para incluir esses conteúdos na educação. E estas
reivindicações de anos foram finalmente atendidas com a edição da Lei
10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade da temática história e cultura
afro-brasileira no currículo oficial da Rede de Ensino. Esta legislação foi
de grande importância para inserir temas étnico-raciais no ensino e dar
um grande passo rumo à decolonização da educação brasileira.
Neste sentido, Sandra Hayée Petit (2016, p. 660) assevera que essa
lei faz parte

[...] das políticas educacionais de integração, atendendo às rei-


vindicações originadas nas lutas dos diversos movimentos sociais

114
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

étnicos. No caso da afrodescendência, são resultados da mobi-


lização dos movimentos negros (desde o período escravagista,
com as diversas insurreições): a luta abolicionista, os movimentos
quilombolas, as múltiplas formas de resistência cultural dos afro-
descendentes, a atuação dos diversos grupos de feministas negras.
Todos esses movimentos ganharam maior notoriedade pública a
partir da década de 1980, com a articulação com outros movi-
mentos sociais que foram levados a transversalizar a questão negra
a partir da insistente luta dos movimentos e de seus mediadores.
Desde então, se constituiu uma área de educação afroreferenciada,
notadamente a partir do final do século XX.

E ao inserir discussões étnico-raciais como diretriz da educação, a


Lei 10.639/03, como afirmado anteriormente, ajuda a mitigar o elevado
grau de europeização de nossos currículos, isto é, decolonizá-lo. Impende
destacar que, por decolonização, entende-se como a

[...] Proposta de pensamento que visa problematizar e descortinar


a colonialidade presente nas estruturas políticas, sociais, ideoló-
gicas, epistemológicas, culturais e econômicas das ex-colônias,
intencionando a sua emancipação das garras opressivas da he-
rança colonizadora. Para isso, é preciso valorizar o pensamento
e epistemes locais e regionais, enfatizando as experiências e so-
ciabilidades próprias destas regiões e de seus habitantes (Souza
et al., 2022, p. 93).

Ao estabelecer como mandatório a abordagem desses temas no


ensino, a supracitada legislação atua como instrumento para “combater o
sistema educacional homogeneizante e promover uma educação de caráter
emancipatório para os grupos subalternos” por valorizar “as diferenças e
diversidades de culturas e pensamentos, colocando a pluralidade como o
centro e o norte das discussões” (Souza et al., 2022, p. 93).
Ressalta-se que a decolonização do ensino não almeja trocar o
currículo eurocêntrico por um afrocêntrico. O objetivo é encerrar com
a hierarquização do saber, para que os conhecimentos sejam tratados de
igual importância, independentemente de sua origem. Assim se possi-
bilitará a problematização da “relação desigual entre negros e brancos
e, ao mesmo tempo, valorizar a cultura, a memória e a história negra”
(Souza et al, 2022, p. 96).

115
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

Outros atos normativos relevantes para a promoção da diversida-


de étnico-racial no ensino, como bem observam Salles e Francischetto
(2019, p. 80) foram o

[...] parecer do CNE/CP no 03/2004 – que aprovou as Diretrizes


Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-ra-
ciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras e
Africanas trazendo em seu art. 7o a vinculação das Instituições
de ensino superior –, da Resolução CNE/CP no 01/2004 – que
detalhou os direitos e as obrigações dos entes federados ante a
implementação da lei, além de endossar no §1o do art. 1o a sua
aplicabilidade ao Ensino Superior – e, finalmente, do Plano Na-
cional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileiras e Africana, aprovado em 2009, que se constitui
como um indutor da ação governamental no que concerne a
Educação da das Relações étnico-raciais [...].

O conjunto de normas acima possibilitou a implementação e o


desenvolvimento da Educação das Relações Étnico-Raciais – ERER
no Brasil em todos nos níveis de ensino.
Não se pode olvidar ainda que o ERER tem grande valia na
decolonização dos currículos, pois seu pressuposto é que, ao longo da
história a sociedade brasileira foi construída “por relações raciais de po-
der [...] desiguais e, por conseguinte, antidemocráticas, sendo o critério
‘raça’ determinante para a identificação do lugar social a ser ocupado
pelo sujeito” (Salles e Francischetto, 2019, p. 81).
Assim sendo, o ERER viabiliza uma formação crítica dos discentes
que serão “capazes de reconhecer e valorizar visões de mundo, experi-
ências históricas, contribuições dos diferentes povos que têm formado a
nação, bem como de negociar prioridades [...], além de propor políticas
que contemplem efetivamente a todos” (Silva, 2007, p. 490).
E, quando analisamos a educação jurídica e a obrigatoriedade do
tratamento transversal dos conteúdos étnico-raciais em seu currículo,
surge a indagação de que forma as IES devem realizar esta abordagem
para garantir a formação de alunos comprometidos com a transformação
social. Como veremos no próximo capítulo, esta abordagem não se limita
a criação de uma disciplina, mas sim demanda uma harmonização entre
pesquisa, extensão e ensino durante todo o curso e todas suas disciplinas.

116
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

3 ABORDAGEM AOS TEMAS


TRANSVERSAIS NOS CURSOS DE DIREITO

A edição da Res. 05/2018 representou um progresso à decoloniza-


ção dos currículos jurídicos no Brasil. Isto se deveu pela obrigatoriedade
da inclusão do tratamento transversal de temas relacionados às mino-
rias e grupos historicamente marginalizados no Brasil, dentre os quais
destacam-se a educação das relações étnico-raciais e histórias e culturas
afro-brasileira e africana (art. 2º, §4º).
Acerca da matéria, vale lembrar que, antes do advento dessa re-
solução,
[...] já era possível aos cursos de Direito introduzir o ensino das
relações étnico raciais e da História e Cultura Afro-brasileiras e
Africanas nos conteúdos de suas disciplinas e atividades curricu-
lares, ainda que de modo esparso, segmentado e restrito a uma
atividade disciplinar individualizada – que não raras vezes consis-
tiria em ações específicas e descontextualizadas na semana alusiva
à “consciência negra” (Salles e Francischetto, 2019, p. 88).

A principal contribuição da Res. 05/2018, portanto, acolhendo


a reivindicação de longa data do Movimento Negro, foi exigir das IES
que a abordagem desses temas não fosse mais realizada de maneira pon-
tual e isolada, como é o caso da criação de uma disciplina na matriz
curricular do curso.
Não se pode descuidar que a Constituição Federal possui um con-
junto de direitos destinados à proteção e inclusão de minorias, cuja efeti-
vidade é limitada em decorrência de “uma cultura jurídica incompatível
com o projeto de transformação social presente no texto constitucional”
(Moreira et al., 2022, p. 30).
Desse modo, ao elencar a questão racial como conteúdo transversal,
o MEC reconhece que esta questão é deveras relevante para ser debatida
numa matéria particular, tendo em vista que este assunto é comum a
toda grade de disciplinas do curso, já que há ali a expressão de valores
cruciais à sociedade brasileira (Yus, 1998, p. 4; Bovo, 2004, p. 5). Por
isso, é mandatório que a questão da justiça racial componha os eixos
centrais que se desdobram por todas as disciplinas do curso de Direito
(Moreira et al., 2022, p. 203).

117
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

Sem embargo, não obstante a elogiável previsão trazida pela re-


solução, o ato normativo não esclareceu de que formas esses conteúdos
transversais devem ser tratados pelas IES.
Antes de adentrar nesse ponto, faz-se mister assentar que a atividade
de ensinar não deve ser compreendida como algo distinto à produção
de conhecimento. O ato pedagógico não deve pressupor que as relações
entre a sociedade, educação e o conhecimento são oriundas de uma
linearidade no tempo, sem conflitos e contradições (Fernandes, 1998,
p. 99). Pelo contrário, é necessário

[...] que se pense a prática pedagógica na perspectiva de uma outra


episteme, que provoque um ensinar e um aprender indissociado
da marca da pesquisa – a dúvida – e da marca da extensão – a
leitura da realidade. Essas marcas configuram compreensões de
conhecimento, ciência e mundo num outro paradigma – para-
digma emergente (Santos, 1995) –, que gesta diferentes formas
de ensinar e aprender, invertendo a lógica de primeiro a teoria,
depois a prática, retirando o conhecimento do seu isolamento
histórico e da sua forma cristalizada de apresentação do pronto,
para recriá-lo na prática da sala de aula e em seu contexto histórico
(Fernandes, 1998, p. 101).

Ou seja, a tarefa do professor não é só transmitir o conhecimento


tido como “pronto e acabado”, mas também construir um pensamento
pautado na associação entre as atividades de extensão, pesquisa e ensino,
que possibilitarão oxigenar e problematizar o conteúdo ministrado em
sala de aula.
Inclusive, para que seja alcançada essa contextualização social dos
conceitos jurídicos, Aloíso Krohling (2007, p. 208) defende a formação
de grupos interdisciplinares composto por professores da graduação e da
pós-graduação, que estão mais próximos da pesquisa científica. Esta troca
de experiência entre os docentes ampliará a visão dos temas abordados
em sala de aula.
Desse modo, ao tratarmos da abordagem de temas transversais
na educação jurídica, é preciso ter em mente que o tratamento destes
assuntos deve considerar o tripé extensão, pesquisa e ensino como in-
dissociáveis. Conceber a tarefa de lecionar como algo que vai além da
transmissão de conhecimento em sala, se coaduna com o propósito

118
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

dos temas transversais no Direito, posto que para tratar de conteúdo ou


propor uma abordagem afrocentrada de certas matérias, é fundamental
deixar de lado “teorias tidas como universais, mas que não tiveram em seu
processo de produção, qualquer tipo de participação de minorias raciais,
tampouco consideraram a situação delas” (Moreira et al, 2022, p. 169).
A respeito desse assunto, Antônio Carlos Wolkmer e Daniela
Lippstein (2017, p. 288) nos trazem uma elucidativa amostra de como
alguns conceitos basilares do Direito são expostos sem a devida problema-
tização. Exemplo disso são as garantias previstas na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, que são tidas como universais no sentido de
serem aplicáveis a todos os seres humanos, independentemente de raça,
credo ou gênero. No entanto, alertam os autores, a própria Declaração
elenca limites ao seu alcance por trazer que a personalidade, capacidade
de trabalhar e a cidadania são características que tornam determinado
indivíduo como sujeito de proteção da norma. Neste aspecto,

[...] os direitos humanos compreendidos na atual conjuntura eu-


rocêntrica não possuem caráter universal e sim relativo, pois não
alcançam todos os seres humanos e sim, aqueles que correspon-
dem a uma das três qualificações expostas anteriormente. Deste
modo, mestiços, escravos, mulheres, imigrantes, dentre outros que
não preenchem tais qualidades, estão condenados à exclusão e as
desigualdades, porque lhes é negado a mesma identidade de uma
pessoa com capacidade de trabalhar e ter cidadania (Wolkmer e
Lippstein, 2017, p. 289).

E sem decolonizar o conceito hegemônico de Direitos Humanos,


incorre-se na perpetuação de “uma cultura patriarcal e machista [...], o
corte de movimentos de luta diários das distintas esferas sociais e frente
as variadas formas de poder que se reduzem a uma única forma de poder
e a uma única instituição, dentre outras coisas” (Wolkmer e Lippstein,
2017, p. 290).
Por esse motivo, concluem os autores, que é necessário fazer uso
da crítica como instrumento para desmontar as visões absolutistas eu-
ropeizadas que excluem grupos sociais da análise econômica, social e
política do Direito (Wolkmer e Lippstein, 2017, p. 294).
Para tanto, observam Adilson Moreira et al. (2022, p. 171), os do-
centes imbuídos na incursão dos temas transversais na educação jurídica

119
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

devem, no primeiro dia de aula, contextualizar sua disciplina no sistema


jurídico e político brasileiro. Esta atitude é importante para superar a ideia
de que Direito e política não se comunicam. É de grande valia lembrar
que ambos estão imbricados, visto que a política regula a operação das
instituições jurídicas, ao passo que as normas jurídicas norteiam a atuação
das instituições políticas para a construção de uma sociedade justa. Por
consequência, os professores precisam evidenciar como que suas disci-
plinas podem ser instrumentos valorosos para concretizar os objetivos
políticos inscritos no art. 3º de nossa Constituição.
Essa demonstração da dependência entre o Direito e política é re-
levante para que se evidencie que o debate sobre o racismo não se resume
à identificação de práticas discriminatórias, dado que esta direção não
culmina na transformação social esperada por levar a crer que a sociedade
não tem implicação em atos dos quais não teve envolvimento direto. A
dimensão política do direito permite perceber que

A discriminação racial sistemática significa uma violação da digni-


dade humana, impede a realização da liberdade e aparece como um
empecilho para a construção de uma sociedade verdadeiramente
igualitária. Estamos, então, diante de um problema de natureza
política porque faz parte da operação de atores sociais na esfera
pública e na esfera privada. Os participantes do debate sobre a
justiça racial precisam perceber que a discriminação sistemática
sofrida por membros de grupos raciais subalternizados cria uma
cultura indiferente aos valores que regulam a democracia enquanto
regime político, o que se mostra como um perigo para toda a
sociedade (Moreira et al, 2022, p. 172).

Em vista disso,

[...] As pessoas precisam, portanto, estar cientes de que o racismo


não é um problema dos negros; ele é um problema de natureza
coletiva, porque implica o funcionamento inadequado das ins-
tituições políticas, motivo pelo qual todos precisam estar na luta
contra ele” (Moreira et al, 2022, p. 172).

Isto é, há necessidade de ter-se em mente a realidade social em


que docentes e discentes estão inseridos. No que pese ter passado mais
de um século da abolição da escravatura, a cor da pele ainda direciona as

120
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

oportunidades de estudo e trabalho, além de ditar o que deve ser exaltado


ou não nas produções culturais. E o Direito, como espelho da sociedade,
acaba por internalizar estes conflitos sociais de modo a privilegiar a classe
racial dominante. Por consequência, os prejudicados quase sempre são
os sujeitos não brancos.
Então, ao docente engajado na pauta antidiscriminatória cabe
conscientizar seus alunos que a pauta da justiça racial não toca somente à
população negra, mas sim a toda sociedade, haja vista que essas discussões
revelam a forma disfuncional que instituições, em tese democráticas,
atuam descumprindo o seu dever constitucional.
E para além da dimensão política do Direito, outra maneira de
tratar transversalmente conteúdos étnico-raciais passa pela base teórica
a ser utilizada nas disciplinas. Como já aludido ao longo deste estudo, as
teorias liberais e individualistas, amplamente adotadas pelas faculdades de
Direito, passam ao largo das discussões a respeito da desigualdade racial.
A adoção destas doutrinas contribui para criação de uma cultura jurídica
que não enxerga a problemática racial como pertencente ao Direito, mas
sim a sociologia ou filosofia.
Por este motivo, a base epistemológica a ser adotada na disciplina
deve privilegiar teorias de justiça que se preocupam com a emancipação
de minorias e que “expressam as experiências dos subordinados, para
que todos possam ter maior compreensão da variedade de interpretações
que partem das experiências socais distintas dos vários grupos sociais”
(Moreira et al, 2022, p. 176-178).
Outro ponto importante para garantir a transversalidade das rela-
ções étnico-raciais nos currículos jurídicos, diz respeito a formação de
comitês pedagógicos compostos por especialistas a temas relacionados ao
direito antidiscriminatório e direito das relações raciais. Estes comitês
serão responsáveis por deliberar como a discussão sobre a justiça racial
pode ser incluída nos programas das disciplinas das IES (Moreira et al,
2022, p. 234).
Ademais, a transversalidade de pautas raciais exige um processo
educacional baseado no realismo social, método pedagógico que discute
teorias e conceitos a partir da realidade concreta do qual as pessoas vivem.
Aqui resta clarividente a importância do desenvolvimento de projetos
de extensão, oportunidade em que as IES poderão estabelecer diálogos
com movimentos sociais e enriquecer o aprendizado sobre causas étnicas,

121
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

dado que estas interlocuções possibilitam a compreensão da realidade e


contextualizar os conceitos assimilados (Souza et al, 2022, p. 93; Mo-
reira et al, 2022, p. 206).
Por fim, não se pode esquecer do fomento à pesquisa sobre direito
antidiscriminatório orientado por afro-brasileiros, uma vez que o ensino,
pesquisa e extensão devem estar articulados, conforme consta no art.
2º, §3º da Res. 05/2018. Assim sendo, além de projetos de extensão, é
fundamental a criação de linhas de pesquisa que revelem a contribuição
da negritude para o estado brasileiro, bem como de que forma o Direito
pode ser utilizado para combater o racismo.
Dessa maneira, uma pedagogia jurídica politicamente engajada e
que atenda a exigência da transversalidade, resumidamente, deve ob-
servar: 1) a adoção de bibliografias com viés crítico que expressam uma
pluralidade de visões sobre os conteúdos a serem trabalhados na disciplina;
2) conscientização dos discente acerca da dimensão política do Direito
e seu potencial de transformador da realidade social; 3) a integração das
atividades de ensino, pesquisa e extensão; 4) a abordagem da justiça racial
de forma integrada a todo o curso de Direito, e não de maneira isolada
e episódica; 5) o estabelecimento de diálogos com movimentos sociais
engajados na causa racial; 6) o desenvolvimento de linhas de pesquisa
que estudem as relações étnico-raciais no Brasil; e 7) a contratação de
docentes negros para garantir representatividade nestes espaços, além de
enriquecer os debates sobre justiça racial (Moreira et al., 2022, p. 235).
Por intermédio da adoção das medidas acima é que será possível
alcançar um ensino jurídico participativo, dinâmico, ou seja, que esteja
em consonância com as pautas de promoção da igualdade racial e de
conscientização dos efeitos deletérios do racismo.
Com a implementação de um ensino jurídico pedagogicamente
engajado, as demandas do Movimento Negro em relação à uma maior
visibilidade desses temas nos currículos jurídicos, finalmente poderão ser
atendidas à contento ao ser observado o tratamento dos assuntos transver-
sais da Res. 05/2018. Por meio desta abordagem é que os cursos de Direito
incorporarão, além da temática racial na formação de professores, a história
da África e a cultura afro-brasileira em seus currículos (Gomes, 2008, p. 51).
É por esse caminho que assuntos caros à população negra final-
mente serão tratados com a devida importância. A demonstração de
que a temática da justiça racial não é assunto afeito somente aos direitos

122
A RESOLUÇÃO 05/2018 E O TRATAMENTO TRANSVERSAL
DOS CONTEÚDOS ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS JURÍDICOS

humanos ou a sociologia (Moreira et al., 2022, p. 204), é fundamental


para viabilizar uma abordagem do Direito que se coadune com os obje-
tivos da República estatuídos no artigo 3º da Constituição Federal, em
especial do que está disposto em seu inciso IV que apregoa a promoção
do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde sua instituição no Brasil em 1827, os cursos de Direito


tinham a preocupação primeira de formar tecnocratas para lidar com a
burocracia do estado nacional recém-formado, e pouco se importavam
em discutir as mazelas sociais do país, dentre as quais destacam-se a
desigualdade social e de gênero e o racismo.
Importante lembrar que as primeiras IES brasileiras adotaram cur-
rículos europeizados, que em nada se preocupavam a debater estes temas.
E a composição elitista do corpo discente era outro fator que impedia o
avanço dessas discussões no meio jurídico.
Um viés humanizado das diretrizes curriculares dos cursos de Direito
só adveio com a Portaria 1.886/94 do MEC, que instituiu a integração
entre pesquisa, ensino e extensão. Ainda assim, apesar do louvável avanço
trazido, este normativo carecia de referenciais humanísticos sólidos.
Por este motivo, a portaria acima foi substituída pela Res. 09/2004,
que foi objeto de sucessivas alterações em busca de uma maior conexão da
academia com a sociedade, resultando na vigente Res. 05/2018.
A principal contribuição desse ato normativo foi trazer, ao centro
do debate jurídico, temas relacionados a minorias raciais ante a previsão
de obrigatoriedade do tratamento transversal dos conteúdos que versem
sobre as relações étnico-raciais.
Com isso, a visão europeia do direito deixa de ser hegemônica ao
ter que ceder espaço a problematização dos conceitos jurídicos hegemô-
nicos propostos pela hermenêutica do oprimido. Assim, os objetivos de
igualdade e promoção de bem a todos poderão ser finalmente atingidos,
como bem previstos na Constituição Federal.
Outro mérito da supracitada resolução é a exigência da abordagem
transversal desses conteúdos, ou seja, os temas devem ser tratados em

123
EDUCAÇÃO JURÍDICA DECOLONIAL

todas as matérias, bem como se irradiar para as atividades de ensino e


pesquisa, não bastando a criação de uma disciplina isolada.
Assim, caberá às IES criatividade pedagógica para atender as exi-
gências da Res. 05/2018 e instituir comitês pedagógicos específicos para
discutir a temática racial, estabelecer projetos de extensão e linhas de
pesquisa voltadas para a área, adotar como base teórica das disciplinas
autores que apresentem visões pautadas no realismo social, conscientizar o
corpo discente da dimensão coletiva dos efeitos deletérios da discrimina-
ção racial e exigir dos docentes engajamento político para concretização
da igualdade racial.

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