Você está na página 1de 238

Copyright© 2020 by José Sérgio da Silva Cristóvam & Pedro de Menezes Niebuhr

Produção Editorial: Habitus Editora


Editor Responsável: Israel Vilela
Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

As ideias e opiniões expressas neste livro são de exclusiva responsabilidade dos Autores, não refletindo, necessaria-
mente, a opinião desta Editora.

CONSELHO EDITORIAL:
Alceu de Oliveira Pinto Junior Gilsilene Passon P. Francischetto
UNIVALI UC (Portugal) – FDV/ES
Antonio Carlos Brasil Pinto Jorge Luis Villada
UFSC UCASAL - (ARGENTINA)
Cláudio Macedo de Souza Juan Carlos Vezzulla
UFSC IMAP (Portugal)

Dirajaia Esse Pruner Juliano Keller do Valle


UNIVALI – AMATRA XII UNIVALI - ESA OAB/SC
Lauro Ballock
Edmundo José de Bastos Júnior UNISUL
UFSC- ESMESC
Marcelo Bauer Pertille
Elias Rocha Gonçalves UNIVALI
IPEMED – SPCE Portugal – ADMEE Europa – CREFAL Caribe
Marcelo Gomes Silva
Fernando Luz da Gama Lobo D'Eça UFSC - ESMPSC
IES – FASC
Marcelo Buzaglo Dantas
Flaviano Vetter Tauscheck UNIVALI
CESUSC-ESA-OAB/SC Nazareno Marcineiro
Francisco Bissoli Filho UFSC – ACADEMIA DA PMSC
UFSC Paulo de Tarso Brandão
Geyson Gonçalves UNIVALI
CESUSC - ESA OAB/SC

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

C933c
Cristóvam, José Sérgio da Silva
Combate preventivo à corrupção no Brasil: para além do modelo repressivo-
punitivista / Amanda Pauli De Rolt...[et al.]; Organizadores: José Sérgio da
Silva Cristóvam e Pedro de Menezes Niebuhr
1ª ed. – Florianópolis: Habitus, 2020.
recurso digital
Formato: e.book
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-86381-97-9
1. Direito Administrativo 2. Administração Pública 3. Combate à
corrupção 4. Prevenção à corrupção - Brasil I. Título
CDU 341.3

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características
gráficas e/ou editoriais.
A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e seus §§ 1º, 2º e 3º, Lei n° 10.695, de
01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n° 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Habitus Editora


www.habituseditora.com.br – habituseditora@gmail.com

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
José Sérgio da Silva Cristóvam
Pedro de Menezes Niebuhr
(Organizadores)

COMBATE PREVENTIVO À
CORRUPÇÃO NO BRASIL
PARA ALÉM DO MODELO
REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Florianópolis
2020
AUTORES

Amanda Pauli De Rolt


Ana Luísa Sevegnani
Arthur Rodrigues Dalmarco
Bernardo Wildi Lins
Carlos Araújo Leonetti
Denise Pinheiro
Eduardo André Carvalho Schiefler
Felipe Cesar Lapa Boselli
Giancarlo Bernardi Possamai
Giovanna Maisa Gamba
Gustavo Ramos da Silva Quint
Gustavo Stollmeier Matiola
Joacir Sevegnani
João Filgueiras Gomes Ramirez
José Sérgio da Silva Cristóvam
Júlia Bordin Mandelli Correa
Juliana de Alano Scheffer
Leonardo Moraes
Luiz Eduardo Altenburg de Assis
Luana Renostro Heinen
Luciana Cardoso de Aguiar
Manoella Peixer Cipriani
Michelle de Souza Gomes Hugill
Patrícia Vendramini
Pedro de Menezes Niebuhr
Rafael Barreto da Silva
Talyz William Rech
Vinicius Garcia
Aos nossos amados filhos!
José Augusto,
e Bento.
APRESENTAÇÃO

Este livro contém um conjunto de artigos sobre o fenômeno da corrup-


ção. Eles foram escritos com rigor acadêmico e buscam analisar vários as-
pectos ou nuances desse curioso fenômeno. Ele ocorre em vários setores da
atividade e é visto, no geral, como uma forma nociva de comportamento.
A nossa visão coletiva é de que se trata de causa de prejuízos imensos e de-
terioração do tecido social, politico e econômico. Assim, a corrupção deve
ser combatida. Há tempos, os povos buscam combatê-la escolhendo várias
possibilidades de sua eliminação ou, ao menos, de sua mitigação. Entre nós
brasileiros, não tem sido diferente.
A construção dos artigos busca meios mais eficientes para enfrentar
a corrupção na atualidade. Pessoalmente, comecei a estudá-la quando li um
exemplar da edição em português do livro “Esta Nação Corrompida” do nor-
te-americano Fred Cook. Faz meio século. Aprendi que as condutas corruptas
são complexas e variadas. Deve-se começar buscando compreensão da con-
duta das pessoas diante da cobiça, da busca de renda e até das necessidades
humanas. Assim, os sociólogos surgem com explicações e até justificativas para
a existência do fenômeno nas sociedades humanas desde tempos remotos.
No plano da moralidade, a corrupção é condenada como veemência por
todos. Não há perdão para os que se beneficiam de práticas corruptas para
conquistar fortuna ou poder.
Olhando sob o aspecto econômico, a corrupção é ruim quando impede
a livre concorrência ou encarece os custos empresariais. De outro lado, pode
ser aceita quando se paga uma prática ilegal que possa facilitar o funcio-
namento da burocracia estatal. Os estudos iniciais com vistas à cooperação
internacional para a prevenção e o combate à corrupção não foram motivados
pela defesa do patrimônio público. As maiores preocupações eram em rela-
ção à concorrência desleal, corrupção de funcionários estrangeiros pratican-
do ilícitos em favor de certas empresas multinacionais. Só na década de 1990
a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, basean-
do-se no Foreign Corrupt Practices Act (1977) dos EUA, tomou uma posição
mais firme em relação ao assunto. Mais tarde, em 2003, é que a ONU revelava
que os “Estados-Parte (..), preocupados com a gravidade dos problemas e
com as ameaças decorrentes da corrupção, para a estabilidade e a segurança
das sociedades, ao enfraquecer as instituições e os valores da democracia da
ética e da justiça e ao comprometer o desenvolvimento sustentável e o Estado
APRESENTAÇÃO – SALOMÃO RIBAS JUNIOR

de Direito; preocupados, também, pelos vínculos entre a corrupção e outras


formas de delinquência, em particular o crime organizado e a corrupção eco-
nômica, incluindo a lavagem de dinheiro” resolvem aprovar a Convenção
das Nações Unidas contra a Corrupção.
É interessante relembrar que durante um bom tempo a legislação brasi-
leira que tratava objetivamente do assunto era a penal. Corrupção era apenas
o que o Código Penal definia como tal. Mais tarde, passamos a tentar contê-la
por regras próprias do Direito Eleitoral.
O meio acadêmico custou um pouco a despertar para enfrentar a comple-
xidade do fenômeno. A visão punitiva parecia suficiente. Não é difícil concluir,
após muitos anos, que ela não resolveu a questão. As penas aumentadas não
serviram de intimidação ou desestímulo às práticas que pretendiam impedir.
Mais ainda, não resultaram efetivas na prevenção da corrupção.
Atuavam os pensadores do Direito, como ciência e técnica, propondo
normas jurídicas para tipificar como crime a prática e impondo sanções ao
particular e ao servidor público. O primeiro como corruptor ativo e o outro
como corrupto passivo. Como razão de ser da norma as consequências eco-
nômicas, politicas, financeiras e sociais das práticas corruptas no manuseio
dos recursos públicos. No caso da definição penal, uma das partes deve ser
necessariamente um servidor público. O que fica claro nos estudos acadêmi-
cos a que nos referimos.
Até aí estamos diante do modelo clássico punitivo. Imaginou-se durante
muito tempo que seria possível combater a corrupção sancionando os seus res-
ponsáveis, quando flagrados. E até fomos aumentando o peso dessas sanções
sobre o individuo e mais tarde sobre empresas.
Tudo indica que a solução sancionatória não funcionou. E nesse pon-
to é que os artigos que lerão são importantes. Eles procuram, em cada um
dos aspectos abordados, esquecer a ideia de combater a corrupção pela san-
ção. A palavra-chave é como evitar a corrupção. Daí o título geral “Combate
Preventivo à Corrupção no Brasil”. De fato, precisamos menos do rigor da
legislação penal e mais de uma cultura de respeito à ética, respeito às leis, e
honestidade de conduta.
Desde a introdução dos professores Pedro de Menezes Niebuhr e José
Sérgio da Silva Cristóvam, começamos a mergulhar em um exame diferen-
ciado da corrupção. Depois de listar cada uma das contribuições acadêmicas,
tratam de evidenciar que “Inequivocamente, esta obra já se destaca pela pro-
posta de abordagem, no sentido de debater o fenômeno da corrupção para
além do modelo repressivo punitivista, preocupando-se muito mais em de-
bater e apontar caminhos eficazes à prevenção da corrupção no Brasil”. É o

7
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

que percebi e já ressaltei. O grande mérito desses estudos é a busca de cami-


nhos para a prevenção avaliando os meios técnicos já normatizados e outros
que ainda podem ser criados. Alguns no plano normativo, outros no campo
da criação de uma cultura organizacional. A transparência, à qual todos atri-
buem importância, deve ser mais uma prática habitual do que a obediência
formal à legislação. Ela deve impregnar toda a organização e os processos
destinados a atingir os fins que pretende.
O primeiro dos artigos que trata das raízes da corrupção no Brasil (José
Sérgio da Silva Cristóvam, João Figueiras Gomes Ramirez, Juliana de Alano
Scheffer) é precioso. Começa por indicar como somos vistos pelos outros. Essa
visão pode não ser precisa, pois a metodologia das pesquisas em que se apoia
é discutível. São, contudo, as mais eficientes formas para medir a percepção
da corrupção atualmente em uso. E a percepção revelada por essas pesquisas
coincide com a da opinião pública. Os brasileiros medianamente informados
estão absolutamente convencidos de que vivemos em um país de muita cor-
rupção. Pior do que isso, não percebem uma saída a curto prazo para essa
indesejada situação.
De outro lado, o texto mostra como tratamos as condutas no passado e
como esse comportamento nos afeta até hoje. Ou melhor, como trataram esses
aspectos de nossa formação historiadores clássicos. E os coloca em confronto
com autores mais modernos com uma visão diferente. Essa visão crítica do que
pensávamos, influenciados pela visão dos clássicos, é outra contribuição para
um debate atualizado do tema.
Creio que a escolha da transparência como instrumento de prevenção é
muito feliz. A ideia de que as coisas devem ser feitas à luz do dia, às claras, à
vista do cidadão é a melhor forma de prevenir a ocorrência de equívocos inten-
cionais ou não. É verdade sabida que a corrupção ocorre com maior facilidade
em meios obscuros, com legislação confusa, a portas fechadas. O princípio da
publicidade constitucionalizado entre outras regras do direito administrativo
em 1988 bastou-nos durante um certo tempo. Depois fomos reduzindo a sua
prática à publicação dos atos no diário oficial. O que não é seguramente uma
forma capaz de garantir sua efetividade.
Em seguida, surgiu a ideia da transparência como uma espécie de passo
maior, além da publicidade formal. O problema ainda não se resolveu intei-
ramente porque custamos a definir o conteúdo jurídico do termo. Só a Lei de
Responsabilidade Fiscal (2000) trouxe alguma luz definindo práticas concretas
de transparência. A Lei de Acesso à Informação viria muito depois. Agora esta-
mos diante de outras regras – que abrangem os setores público e privado – com
a Lei Anticorrupção e a Lei das Estatais.

8
APRESENTAÇÃO – SALOMÃO RIBAS JUNIOR

Os estudos que nos são agora apresentados pela UFSC abordam com
propriedade a discussão de alguns equívocos que cometemos. Um exemplo
é o tratamento dando excelência ao mercado e fracasso ao poder público. A
questão não é simples assim como demonstram recentes casos da chamada
grande corrupção. Empresários, políticos e servidores estão no mesmo nível
de responsabilidade. A sensação é de que há um clima geral de desrespeito à
lei e à ética nos negócios em geral. O poder público surge mais intensamente
pelo enorme volume de recursos que manipula. A rigor é o maior comprador
de bens e serviços do país. O mercado sabe disso.
Outros aspectos da prevenção estão ligados à atividade regulatória do
poder público e ao excesso de burocracia para a tramitação administrativa.
No primeiro caso, é flagrante a necessidade de uma visão mais eficiente da-
quilo que é essencial para a regulação e do que é apenas excesso. Regulamen-
to em excesso é tão nefasto quanto a ausência absoluta de qualquer regra.
Outro aspecto importante diz respeito à sempre anunciada e nunca realizada
efetivamente desburocratização do serviço público. A simplificação dos pro-
cedimentos impede que sejam criadas dificuldades para vender facilidades,
velha e conhecida prática de alguns setores burocráticos públicos. É o caso
tratado sob o título “Regulação e Corrupção: O Efeito Dissuasor de Arquite-
turas Regulatórias Eficientes (Pedro de Menezes Niebuhr, Arthur Rodrigues
Dalmarco, Luiz Eduardo Altemburg Assis).
No campo tributário, dois artigos cuidam de aspectos importantes que
causam ou permitem a corrupção. Tratam da evasão fiscal e das práticas de
desoneração tributária. Ambas as situações são um verdadeiro campo mi-
nado. O que se sabe concretamente, ou se percebe, é que o volume de recur-
sos que se evadem ou que deixam de entrar nos cofres públicos é grande.
A academia começa a cuidar desse assunto. Afinal, não se sabe exatamente
como e porque ocorreram uma e outra prática. A afirmação geral de que
a iniciativa privada faz melhor do que o poder público precisa ser melhor
avaliada. Faz melhor a que custo?
Curiosamente, a justificativa dos paraísos fiscais para esconder dinheiro
oriundo de práticas ilícitas separa a sonegação da corrupção. Isto é, a sone-
gação fiscal é um meio de que dispõe o mercado para se defender da sanha
tributária dos Estados.
Cada um dos artigos acadêmicos cuida de aspectos importantes destes
e de outros pontos do fenômeno. Com o rigor acadêmico a que me referi
sustentam suas certezas e suas dúvidas em doutrinadores nacionais e estran-
geiros. A maioria deles de reconhecida autoridade no tema central.
Alguns pontos chamam mais atenção pela sua originalidade e, sobretu-

9
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

do, pela sua atualidade. É o caso do exame do sistema nacional de concessões


de rádio e TV e suas implicações na liberdade de informação e isenção do
jornalismo. A liberdade de imprensa é um dos pilares da democracia. Ela
deve ser absoluta. A propriedade de veículos de comunicação por políticos,
empresários de outros setores, dirigentes de partidos políticos compromete
sobremaneira aquela liberdade. O estudo provoca uma importante reflexão
sobre o assunto e suas implicações sob a ótica do combate à corrupção.
Atual é o exame do compliance como ferramenta de combate à corrup-
ção. As regras que o regem não se destinam exclusivamente a essa finalida-
de. Ela é a consequência de uma gestão baseada na ética e no cumprimento
da lei. A criação de um ambiente de compromisso com a eficiência e os
resultados das estatais deve construir uma relação ética e republicana com
o setor privado. Espera-se que os códigos de ética não sejam apenas um
manual feito para cumprir o comando legal. Deve ser algo vivo, construído
com participação e compromisso de todos e presente no dia-a-dia dos negó-
cios públicos e privados. Cada conselheiro, diretor, gerente ou empregado
de qualquer nível é um agente de compliance, defensor da conformidade
com as normas legais e de conduta.
Por fim, uma abordagem da importância da profissionalização e gover-
nança na Administração Pública como estratégia é básica para a construção
de novo modelo de operação e controle. O artigo pavimenta a estrada para a
construirmos outro modelo de ação e controle da burocracia estatal.
Tenho certeza de que este conjunto de artigos é da maior importância
para a prevenção da corrupção sob uma nova perspectiva. Merecem cumpri-
mentos os seus autores, os membros do grupo de estudos de direito público
(GEDIP/CCJ/UFSC) e em especial os Professores Doutores José Sérgio da Sil-
va Cristóvam e Pedro de Menezes Niebuhr.

Salomão Ribas Junior


Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca

10
PREFÁCIO

O combate à corrupção tem sido considerado como a grande meta do


Estado brasileiro. O país voltou-se para isso como se pudesse ter um pro-
grama monotemático. Tudo “passou a ser lícito” em nome da repressão à
corrupção. Qualquer crítica ao punitivismo é logo rebatida com o mantra
“querem acabar com a lava jato”.
É como se a percepção da sociedade acerca dos valores norteadores de
nosso Estado Democrático de Direito estivesse embotada. A sociedade per-
deu o senso que permite distinguir a virtude do vício. O discurso da defesa
da moralidade, por sua vez, acaba por servir à deturpação dos princípios fun-
damentais de nosso ordenamento jurídico. A pretexto de se punir corruptos,
destrói-se as bases do sistema.
É por isso que vem em boa ora a obra organizada pelos professores José
Sérgio da Silva Cristóvam e Pedro Menezes Niebuhr. Por intermédio dela
pretende-se superar o modelo repressivo-punitivista reinante por intermédio
do combate preventivo à corrupção. Esse é o primeiro dos muitos méritos
da obra. “Vira o eixo” do tema, pois trata o combate a corrupção a partir do
velho dito popular de que é “melhor prevenir do que remediar”, que anda
tão esquecido nessa matéria.
Faz-se uma análise histórica, ética e deontológica do assunto. Temas
como transparência do agir administrativo e desburocratização são tratados
sob o viés do combate à corrupção. De fato, uma administração pública deve
ser feita em público e quanto mais publicidade se tem, maior a possibilidade
de controle institucionalizado e social. A burocracia, por sua vez, com suas
disfunções, é criticada. Mais uma vez, acertam os autores ao perceber que
quanto maior a burocracia, maior o espaço para a corrupção, pois o formalis-
mo excessivo abre a porta para aqueles que desejam vender facilidades.
Temas específicos como a corrupção nas licitações, e o aspecto prejudicial
da proximidade entre os proprietários dos meios de comunicação e os detento-
res do poder são também tratados. Até mesmo aspectos tributários da corrup-
ção são analisados, o que demonstra a amplitude com que o tema foi tratado.
As propostas de combate ao problema são também lançadas ao se tratar
de temas como compliance, regulação eficiente e profissionalização da admi-
nistração pública.
Trata-se, portanto, de obra completa e abrangente que sintetiza o tra-
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

balho realizado pelo Grupo de Estudos em Direito Público da Universidade


Federal de Santa Catarina nos anos de 2017 e 2018. Mostra a seriedade do
trabalho realizado por esse grupo por intermédio de 11 artigos que abrangem
os temas mais variados. Esse grupo é capitaneado pelos organizadores da
obra, José Sérgio da Silva Cristóvam e Pedro de Menezes Niebuhr que são
responsáveis pela reunião de uma coletânea de trabalhos sérios e profundos.
Diga-se de passagem, a obra reflete a excelência que norteia a produção aca-
dêmica desses professores.
Embora seja fruto do trabalho coletivo de mais de uma dezena de autores,
possui um “fio lógico” que a entrelaça e reflete uma única corrente de pensa-
mento, qual seja a defesa do Estado Democrático de Direito por intermédio do
Direito Público. Demonstra, com isso, a existência de uma escola de Direito
Administrativo coerente e própria do estado de Santa Catarina, que rivaliza
com as melhores escolas de direito público do país.
É obra profunda que vai além do mero ferramental jurídico. Busca na
análise do tema elementos históricos, sociológicos, filosóficos, antropológicos
e políticos, sem esquecer de noções modernas como o “compliance” e “accoun-
tability”. Merece, portanto, não apenas ser lida, mas sim “degustada”.

Joinville, 26 de setembro de 2019

Marcelo Harger
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP
Advogado e membro da Comissão Especial de Direito Administrativo do CFOAB

12
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Prof. Dr. José Sérgio da Silva Cristóvam
Prof. Dr. Pedro de Menezes Niebuhr

BREVE INVENTÁRIO SOBRE AS RAÍZES DA CORRUPÇÃO NO BRASIL . . . . . 17


José Sérgio da Silva Cristóvam
João Filgueiras Gomes Ramirez
Juliana de Alano Scheffer

A MORAL DO AGENTE PÚBLICO NO BRASIL E AS PRÁTICAS DE CORRUPÇÃO . . 37


Luana Renostro Heinen
Júlia Bordin Mandelli Correa
Manoella Peixer Cipriani

A TRANSPARÊNCIA COMO INSTRUMENTO DE PREVENÇÃO À CORRUPÇÃO . 65


Gustavo Stollmeier Matiola
Ana Luísa Sevegnani
Eduardo André Carvalho Schiefler

DESBUROCRATIZAÇÃO DA ATIVIDADE ESTATAL COMO MEIO DE


COMBATE À CORRUPÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
Bernardo Wildi Lins
Amanda Pauli De Rolt

A CORRUPÇÃO NAS LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS – A


LEI Nº 8.666/93
EM SEUS 25 ANOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Felipe Cesar Lapa Boselli
Giovanna Maisa Gamba
Leonardo Moraes

OUTORGAS DE RADIODIFUSÃO, LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E


VÍNCULOS ENTRE A ESFERA POLÍTICA E MÍDIA . . . . . . . . . . . . . . . . 115
Giancarlo Bernardi Possamai
Gustavo Ramos da Silva Quint
Rafael Barreto da Silva

A CORRUPÇÃO ATRAVÉS DA EVASÃO FISCAL NO BRASIL: EM BUSCA DE


UM NOVO PARADIGMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
Joacir Sevegnani

AS PRÁTICAS DE DESONERAÇÃO TRIBUTÁRIA E O COMBATE À


CORRUPÇÃO: AMPLIAÇÃO DO CONTEÚDO DA CIDADANIA PELO
INCREMENTO DE INSTRUMENTOS DE ACCOUNTABILITY DEMOCRÁTICA
OU RESPONSABILIZAÇÃO POLÍTICA ININTERRUPTA . . . . . . . . . . . . . 148
Carlos Araujo Leonetti
Luciana Cardoso de Aguiar
Vinicius Garcia

13
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

O COMPLIANCE COMO FERRAMENTA DE COMBATE À CORRUPÇÃO:


UMA VISÃO A PARTIR DA LEI Nº 12.846/13 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170
Talyz William Rech

REGULAÇÃO E CORRUPÇÃO: O EFEITO DISSUASOR DE ARQUITETURAS


REGULATÓRIAS EFICIENTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190
Pedro de Menezes Niebuhr
Arthur Rodrigues Dalmarco
Luiz Eduardo Altenburg de Assis

A PROFISSIONALIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A


GOVERNANÇA COMO ESTRATÉGIA DE PREVENÇÃO À CORRUPÇÃO . . . . 212
Denise Pinheiro
Michelle de Souza Gomes Hugill
Patrícia Vendramini

14
INTRODUÇÃO

A presente coletânea de textos reúne estudos e pesquisas desenvolvidos


pelo Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/CCJ/UFSC), em torno do
debate relacionado ao combate preventivo à corrupção no Brasil, temática so-
bre a qual o GEDIP ocupou a maior parte dos seus estudos, eventos e pesquisas
nos anos de 2017 e 2018. Trata-se de uma coletânea de onze capítulos, especial-
mente preparados para a presente obra coletiva, de forma a enfrentar as mais
variadas e candentes questões, bem como oferecer caminhos para um modelo
de combate preventivo à corrupção no Brasil, de forma a avançar para além do
modelo repressivo-punitivista atualmente predominante.
O primeiro capítulo, que traz um breve inventário sobre as raízes da cor-
rupção no Brasil, é desenvolvido pelo professor José Sérgio da Silva Cristóvam,
juntamente com João Filgueiras Gomes Ramirez e Juliana de Alano Scheffer.
O segundo capítulo, ainda na trilha introdutória, debate sobre o tema da
moral do agente público no Brasil e as práticas de currupção, em texto da pro-
fessora Luana Renostro Heinen, acompanahda de Júlia Bordin Mandelli Cor-
rea e Manoella Peixer Cipriani.
O terceiro capítulo é escrito por Gustavo Stollmeier Matiola, Ana Luísa
Sevegnani e Eduardo André Carvalho Schiefler, que enfrentam a temática da
transparência como instrumento de prevenção à corrupção.
O quarto capítulo, que discute o fenômeno da desburocratização da ativi-
dade estatal como meio de combate à corrupação, é apresentado por Bernardo
Wildi Lins e Amanda Pauli De Rolt.
No quinto capítulo, Felipe Cesar Lapa Boselli, Giovanna Maisa Gamba
e Leonardo Moraes enfrentam o tema da corrupção nas licitações e contratos
administrativos, a partir da análise da Lei nº 8.666/93 em seus 25 anos.
O sexto capítulo traz o debate sobre as outorgas de radiodifusão, liberdade
de informação e vínculos entre a esfera política e mídia, em texto de Giancarlo
Bernardi Possamai, Gustavo Ramos da Silva Quint e Rafael Barreto da Silva.
No sétimo capítulo, o professor Joacir Sevegnani apresenta o debate da
corrupção atrávez da evasão fiscal no Brasil, com vistas à construção de um
novo paradigma.
O oitavo capítulo debate sobre as práticas de desoneração tributária e o
conbate à corrupção, a partir da ampliação do conteúdo da cidadania pelo in-

15
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

cremento de instrumentos de accountability democrática ou responsabilização


política ininterrupta, em texto escrito pelo professor Carlos Araujo Leonetti,
em conjunto com a professora Luciana Cardoso de Aguiar e Vinicius Garcia.
No nono capítulo, Talyz William Rech discute o compliance como ferra-
menta de combate à corrupção, a partir da Lei nº 12.846/13.
O décimo capítulo discute as temáticas da regulação e da corrupção, a
partir da análise do efeito dissuasor de arquiteturas regulatórias eficientes, em
texto do professor Pedro de Menezes Niebuhr, em conjunto com Arthur Rodri-
gues Dalmarco e Luiz Eduardo Altenburg de Assis.
Por fim, no seu décimo primeiro capítulo, o livro encerra com a temática da
profissionalização da Administração Pública e a governança como estratégia de
prevenção à corrupção, em texto apresentado pela professora Denise Pinheiro,
em conjunto com Michelle de Souza Gomes Hugill e Patrícia Vendramini.
Inequivocamente, esta obra já se destaca pela proposta de abordagem,
no sentido de debater o fenômeno da corrupção para além do modelo repres-
sivo-punitivista, preocupando-se muito mais em debater e apontar caminhos
eficázes à prevenção da corrupção no Brasil; da mesma forma, a lista de temas
é ampla e abrangente, trazendo desde debates mais introdutórios sobre o fe-
nômeno da corrupção no Brasil, passando por instrumentos e ferramentas afe-
tas à Administração Pública, questões tributárias, regulação, compliance etc.;
e a partir da ótica de um jovem e qualificado grupo de pesquisadores, na sua
grande maioria vinculados ao PPGD/UFSC, mais especificamente ao Grupo de
Estudos em Direito Público (GEDIP/CCJ/UFSC).
Não podemos deixar de registrar nossos sinceros agradecimentos a to-
dos os colegas do GEDIP que ajudaram nas revisões e padronizações dos
textos, em especial a colega Ana Luísa Sevegnani, responsável pela sistemati-
zação geral final. E também a nossa profunda alegria e satisfação em vermos
que, em tão pouco tempo, o GEDIP (fundado em 2016) já se consolida como
espaço qualificado de debates, estudos e pesquisas na seara do Direito Públi-
co junto ao PPGD/UFSC. Que essa represente uma primeira obra coletiva de
muitas outras que virão!
Fraternal abraço e muito obrigado,

Ilha de Santa Catarina (Desterro), inverno de 2019.

Prof. Dr. José Sérgio da Silva Cristóvam


Prof. Dr. Pedro de Menezes Niebuhr

16
BREVE INVENTÁRIO SOBRE AS RAÍZES DA
CORRUPÇÃO NO BRASIL

José Sérgio da Silva Cristóvam1


João Filgueiras Gomes Ramirez2
Juliana de Alano Scheffer3

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O relatório divulgado pelo Fórum Econômico Mundial destaca o Brasil
na impressionante 4º colocação como país mais corrupto e menos ético, dentre
os 138 Estados nacionais analisados. Na categoria falta de ética e corrupção,
nosso país perde apenas para Venezuela, Bolívia e Chade.4 No mesmo sentido,
a partir de análise realizada pela Transparência Internacional no ano de 2016,
relacionada à percepção sobre a corrupção, é possível localizar o Brasil na 79ª
posição, dentre 176 Estados nacionais pesquisados.5
Infelizmente, esse quadro preocupante e de acentuada percepção de um
aparente Estado de corrupção (Cleptocracia) acaba, em larga medida, reforçado
pelos recentes e recorrentes escândalos de corrupção, em especial nesse início
de século XXI, amplamente noticiados e que colocam a temática da corrupção
no centro do debate nacional. Pauta cotidiana de uma mídia monotemática que
alimenta vorazmente essa pauta monocular e monopolizadora das conversas
nas residências, nas mesas de bar, nos sistemas de justiça (Poder Judiciário,
Ministério Público, Polícia Federal) e nas Universidades.
Isso, de per si, já justificaria um estudo crítico e aprofundado sobre o fenô-
meno da corrupção, para além do senso comum. Há uma série de questões que

1 Professor de Direito Administrativo na Graduação, Mestrado e Doutorado – CCJ/PPGD/UFSC. Mestre


em Direito Constitucional (2005) e Doutor em Direito Administrativo (20014) pelo PPGD/UFSC, com
estágio de doutoramento na Universidade de Lisboa (Portugal). Coordenador do Grupo de Estudos
em Direito Público – GEDIP/CCJ/UFSC. Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão
Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Advogado publicista em Santa Catarina.
2 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Integrante do Grupo de Estudos
em Direito Público (CCJ/UFSC).
3 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Servidora Pública na UFSC.
Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (CCJ/UFSC) e do Grupo de Pesquisa e Extensão
Lilith: Direito e Interseccionalidades (CCJ/UFSC).
4 Sobre o tema, ver: WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Competitiveness Report 2016-
2017. Disponível em: http://reports.weforum.org/global-competitiveness-index/competitivenes-
s-rankings/#series=GCI.A.01.01.02. Acesso em: 9 mar. 2019.
5 Sobre o tema, ver: TRANSPARENCY INTERNATIONAL. CorruptionPerceptions Index 2016. 25
jan. 2017. Disponível em: https://www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_in-
dex_2016. Acesso em: 9 mar. 2019.

17
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

gravitam em torno do fenômeno da corrupção e reclamam uma análise mais


concertada e abrangente. Quais seriam as possíveis origens para este fenômeno
no Brasil? Pode-se questionar sua centralidade como problema nacional?
Nesse sentido, o estudo tem por objetivo trazer um breve inventário de
elementos para a definição e o debate acerca do fenômeno da corrupção sob as
lentes jurídico-normativa e sócio-política, inclusive com especial atenção para
a discussão das suas possíveis origens no Brasil, a partir de uma visão socio-
lógica tradicional (Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro) e de um
contemporâneo olhar crítico (Jessé Souza).

2. CONCEITOS DE CORRUPÇÃO
Cumpre iniciar o debate a partir de uma breve recuperação da ideia de
corrupção, um termo bastante elástico, como outros que lhes são correlatos
(suborno, integridade, improbidade), em larga medida submetido a comple-
xas e instáveis construções sociais6. De fato, não se pode olvidar que a noção
de corrupção é variável no tempo e no espaço, de acordo com as regras de
conduta no plano jurídico, moral e ético7. Conforme aponta Richard White, a
semântica é importante para promover uma avaliação sobre a corrupção – o
que inclui o estudo sobre suas raízes8.
Do ponto de vista etimológico, a formação da palavra corrupção advém
de rumpere – ruptura – , aliada ao prefixo con, que introduz a ideia de parti-
cipação, soma, colaboração para determinado fim. Portanto, desde a origem a
palavra corrupção estaria associada à noção de conluio para uma ruptura, para
a destruição ou ruptura de algo. Uma indicação inicial no domínio jurídico leva
a interpretar o termo como o rompimento com o ordenamento jurídico, com as
bases da dimensão estabelecida pelo conjunto jurídico-normativo9.
Por seu turno, o Dicionário Michaelis define corrupção (do latim corruptiô-
ne/corruptîo) como: “(1) ação ou efeito de corromper; decomposição, putrefa-
ção; (2) Depravação, desmoralização, devassidão; (3) suborno”10.
Com efeito, afora a dimensão semântico-etimológica, uma perspectiva
sociológica e jurídica sobre o fenômeno da corrupção também ostenta invul-
gar relevo. No que tange às ciências sociais, a corrupção é em geral entendida
como comportamento em determinado ambiente, que se condiciona conforme
6 GRANOVETTER, Mark. A construção social da corrupção. Revista Política e Sociedade, Florianó-
polis, v. 5, n. 9, p. 11-37, 2006. p. 12.
7 RIBAS JUNIOR, Salomão. Corrupção pública e privada: quatro aspectos. Belo Horizonte: Fórum,
2014. p. 46.
8 WHITE, Richard. What counts as corruption? Research: an international quarterly, Baltimore, v. 80,
n. 4, p. 1033-1056, Winter, 2013. p. 1037.
9 ABAD, Raphael Madeira. As diversas espécies de corrupção. In: BARBUGIANI, Luiz Henrique
Sormani (Coord.). Corrupção como fenômeno supralegal. Curitiba: Juruá, 2017. p. 119-120.
10 MICHAELIS: Dicionário prático da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2008. p. 233.

18
JOSÉ SÉRGIO DA SILVA CRISTÓVAM – JOÃO FILGUEIRAS GOMES RAMIREZ – JULIANA DE ALANO SCHEFFER

os usos, costumes e cultura dominantes – portanto, um conceito variável.


A partir da sociologia – aproximando-se da criminologia crítica – , pode-se
entender que a prática da corrupção povoa todos os momentos da vida em so-
ciedade, as quais podem, inclusive, não ser consideradas como ilegais, a partir
de um entendimento social11.
Portanto, poder-se-ia trabalhar com diferentes dimensões e categorias so-
ciológicas de corrupção. Uma dimensão de corrupção mais drasticamente consi-
derada seria aquela que se funda em uma reação social negativa diante da con-
duta, apoiada em sanção prevista em lei, como, v.g., o desvio de verbas destina-
das à merenda escolar. No outro extremo da reação social estaria uma dimensão
completamente branda de corrupção, composta por condutas até criminalizadas
por lei, mas que a Sociedade não considera a sanção necessária ou irremedia-
velmente devida. Por fim, haveria uma zona cinzenta da corrupção em que a
Sociedade se encontra dividida sobre o caráter desviante da conduta do agente12.
No já clássico Dicionário de Política, Norberto Bobbio, Nicola Matteucci
e Gianfranco Pasquino classificam corrupção como “fenômeno pelo qual um
funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos
do sistema, favorecendo interesses particulares em troca de recompensa”, uma
definição que fatalmente vincula tal questão à estrutura estatal. A partir des-
sa dimensão conceitual, os jusfilósofos distinguem três tipos de corrupção: (1)
uso da recompensa para mudar decisão pública; (2) o nepotismo (concessão de
empregos baseados nas relações de parentela); e (3) o peculato, por desvio de
fundos públicos para uso privado13. Na mesma esteira, o Banco Mundial adota
o entendimento de que corrupção é o abuso do poder público para benefícios
privados. Mas parece oportuno ressaltar que tal posição não significa que se
possa retirar a dimensão do fenômeno da corrupção da esfera das empresas
privadas, como corretamente adverte Vito Tanzi14.
De fato, não se pode olvidar que a corrupção também é forma particular
de exercer influência ilícita, ilegal e ilegítima no modo como a Administração
Pública toma decisões. Sobre o tema, ao olhar para a estrutura dos Estados Uni-
dos da América, White entende que o conceito de corrupção, quando ultrapas-
sa o simples suborno (bribery) e abarca a influência indevida, traz resultados
diferenciados e mais realistas sobre a incidência de corrupção, especialmente

11 RIBAS JUNIOR, Salomão. Corrupção pública e privada: quatro aspectos. Belo Horizonte: Fórum,
2014. p. 69-70.
12 RIBAS JUNIOR, Salomão. Corrupção pública e privada: quatro aspectos. Belo Horizonte: Fórum,
2014. p. 71.
13 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasí-
lia: Editora UnB, v. 1, 11 ed. 1998. p. 291-292.
14 TANZI, Vito. Corruption around the world: causes, consequences, scope, and cures. International
Monetary Fund. 1998. Disponível em: https://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/wp9863.pdf. Acesso
em: 9 mar. 2019. p. 8.

19
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

ao se olhar para os países desenvolvidos15.


Na mesma linha, Salomão Ribas Júnior separa a corrupção em pública e
privada. Como fenômeno privado, manifesta-se pela via do que chama de “ética
dos negócios”, do lobby e governança corporativa. No âmbito público, por meio
do que designa por “ética dos servidores públicos”, nas contratações públicas, no
financiamento dos partidos políticos e no controle da Administração Pública16.
Ainda que o olhar jurídico sobre o fenômeno da corrupção possa render
diversas abordagens,17 cumpre ressaltar que a diferenciação entre as modali-
dades de corrupção pública não é tão clara, seja na lei, seja na doutrina.18 Por
isso, para os estreitos limites da análise aqui empreendida, exploraremos o
debate em torno do âmbito normativo da corrupção pública, nas suas esferas
penal e administrativa.
Uma definição legal restritiva de corrupção pública pode ser encontrada
nos artigos 317 e 333 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Có-
digo Penal Brasileiro (corrupção passiva e corrupção ativa).Tratam-se de atos
lesivos ao patrimônio público, com a presença de ao menos um agente público,
e que configuram crimes contra a Administração Pública.
Para ilustrar, convém ressaltar que os crimes de corrupção ativa e passi-
va enquadram-se no conceito de bribery constante no artigo 15 da Convenção
das Nações Unidas contra a Corrupção.19 Todavia, a ideia de corrupção é mais
abrangente do que a mencionada por esses tipos penais, vez que outros crimes
também podem ser tratados como corrupção.20
Raphael Madeira Abad indica que dentro do conceito de bribery adotado
pela Convenção da ONU cabe ainda o crime de concussão,21 previsto no arti-

15 WHITE, Richard. What counts as corruption? Research: an international quarterly, Baltimore, v. 80,
n. 4, p. 1033-1056, Winter, 2013.
16 RIBAS JUNIOR, Salomão. Corrupção pública e privada: quatro aspectos. Belo Horizonte: Fórum,
2014. p. 36.
17 ABAD, Raphael Madeira. As diversas espécies de corrupção. In: BARBUGIANI, Luiz Henrique
Sormani (Coord.). Corrupção como fenômeno supralegal. Curitiba: Juruá, 2017. p. 137.
18 RIBAS JUNIOR, Salomão. Corrupção pública e privada: quatro aspectos. Belo Horizonte: Fórum,
2014. p. 98.
19 Nesse sentido: “Art. 15. Cada Estado Parte adotará as medidas legislativas e de outras índoles que
sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometidos intencionalmente: a) A promessa, o
oferecimento ou a concessão a um funcionário público, de forma direta ou indireta, de um benefício
indevido que redunde em seu próprio proveito ou no de outra pessoa ou entidade com o fim de que
tal funcionário atue ou se abstenha de atuar no cumprimento de suas funções oficiais; b) A solicitação
ou aceitação por um funcionário público, de forma direta ou indireta, de um benefício indevido que
redunde em seu próprio proveito ou no de outra pessoa ou entidade com o fim de que tal funcionário
atue ou se abstenha de atuar no cumprimento de suas funções oficiais.” ORGANIZAÇÃO DAS NA-
ÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. 2003. Disponível em: http://
www.cgu.gov.br/assuntos/articulacao-internacional/convencao-da-onu/arquivos/2007_uncac_port.
pdf. Acesso em: 9 mar. 2019.
20 ABAD, Raphael Madeira. As diversas espécies de corrupção. In: BARBUGIANI, Luiz Henrique
Sormani (Coord.). Corrupção como fenômeno supralegal. Curitiba: Juruá, 2017. p. 137.
21 ABAD, Raphael Madeira. As diversas espécies de corrupção. In: BARBUGIANI, Luiz Henrique
Sormani (Coord.). Corrupção como fenômeno supralegal. Curitiba: Juruá, 2017. p. 127.

20
JOSÉ SÉRGIO DA SILVA CRISTÓVAM – JOÃO FILGUEIRAS GOMES RAMIREZ – JULIANA DE ALANO SCHEFFER

go 316 do Código Penal Brasileiro,22 relacionado à exigência, para o servidor


ou para outrem, quer direta quer indiretamente, de vantagens indevidas em
razão do cargo.
Outro figurino normativo característico da corrupção é o peculato – que
se enquadra como embezzlment – , descrito no artigo 17 da já citada Convenção
da ONU, constante nosartigos312 e 313 do Código Penal Brasileiro (peculato,
peculato culposo e peculato mediante erro de outrem).23 Esses tipos são formas
de desvio de bens públicos para benefício individual, demonstrando malver-
sação da coisa pública.
No espectro penal da corrupção inclui-se o tráfico de influência (previsto
no artigo 332 do Código Penal Brasileiro24 e no artigo 18 da Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção).25 É um delito cometido pelo particular
contra a Administração Pública, ao oferecer vantagens a agentes públicos, com
a finalidade de influenciá-los a tomar decisões favoráveis ao particular ou a
terceiros. Ainda, tal tipo assemelha-se ao da exploração de prestígio,26 presente
no artigo 357 do Código Penal Brasileiro.27

22 Nesse sentido: “Concussão. Art. 316 – Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda
que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida: [...]”. BRASIL. De-
creto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 9 mar. 2019.
23 Nesse sentido: “Peculato. Art. 312 – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qual-
quer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo,
em proveito próprio ou alheio: […] § 1º – Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora
não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em pro-
veito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário”.
Peculato culposo. § 2º – Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem: […] §
3º – No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue
a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta. […] Peculato mediante erro de
outrem. Art. 313 – Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo, recebeu
por erro de outrem: […]”. BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 9 mar. 2019.
24 Nesse sentido: “Tráfico de influência. Art. 332 – Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para ou-
trem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário públi-
co no exercício da função: […]”. BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 9 mar. 2019.
25 Nesse sentido: “Artigo 18. Tráfico de Influências. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de
adotar as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito,
quando cometido intencionalmente: a) A promessa, o oferecimento ou a concessão a um funcionário
público ou a qualquer outra pessoa, de forma direta ou indireta, de um benefício indevido com o fim
de que o funcionário público ou a pessoa abuse de sua influência real ou suposta para obter de uma
administração ou autoridade do Estado Parte um benefício indevido que redunde em proveito do ins-
tigador original do ato ou de qualquer outra pessoa; b) A solicitação ou aceitação por um funcionário
público ou qualquer outra pessoa, de forma direta ou indireta, de um benefício indevido que redunde
em seu proveito próprio ou no de outra pessoa com o fim de que o funcionário público ou a pessoa
abuse de sua influência real ou suposta para obter de uma administração ou autoridade do Estado
Parte um benefício indevido”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações
Unidas contra a Corrupção. 2003. Disponível em: http://www.cgu.gov.br/assuntos/articulacao-inter-
nacional/convencao-da-onu/arquivos/2007_uncac_port.pdf. Acesso em: 9 mar. 2019.
26 ABAD, Raphael Madeira. As diversas espécies de corrupção. In: BARBUGIANI, Luiz Henrique
Sormani (Coord.). Corrupção como fenômeno supralegal. Curitiba: Juruá, 2017. p. 130.
27 Nesse sentido: “Exploração de prestígio. Art. 357 – Solicitar ou receber dinheiro ou qualquer outra
utilidade, a pretexto de influir em juiz, jurado, órgão do Ministério Público, funcionário de justiça,
perito, tradutor, intérprete ou testemunha: […]”. BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro
de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm.

21
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Podemos ainda ligar à noção de corrupção o abuso de poder, o desvio de


finalidade e o abuso de autoridade,28 relacionados aos vícios dos atos adminis-
trativos. O artigo 19 da já citada Convenção das Nações Unidas contra a Cor-
rupção,29 assim como a Lei de Abuso de Autoridade servem de amparo legal
contra essas manifestações que podem ser associadas à corrupção.
Ainda sobre o tema, Abad pontua que o nepotismo (contratação de paren-
tes e amigos para cargos públicos, em detrimento da qualificação técnica)30 e o
clientelismo – troca de favores em nome da lealdade política de indivíduos, de
famílias ou grupos – , também são marcas da corrupção. O clientelismo iden-
tifica-se com a corrupção eleitoral (conforme previsão constante no artigo 299
do Código Eleitoral),31 prática largamente nociva para o sistema democrático, a
sustentar a reprodução de privilégios e o acesso a decisões políticas a partir de
bases pessoalistas e por laços familiares.32
Para o debate sobre a dimensão normativa da noção de corrupção pública
mostra-se central o princípio constitucional33 da moralidade administrativa34
(art. 37, caput da Constituição de 1988)35 e a conhecida Lei de Improbidade Ad-
ministrativa, que em seus artigos 9º, 10 e 11, descreve os casos característicos

Acesso em: 9 mar. 2019.


28 ABAD, Raphael Madeira. As diversas espécies de corrupção. In: BARBUGIANI, Luiz Henrique
Sormani (Coord.). Corrupção como fenômeno supralegal. Curitiba: Juruá, 2017. p. 132.
29 Nesse sentido: “Artigo 19. Abuso de Funções. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de
adotar as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como de-
lito, quando cometido intencionalmente, o abuso de funções ou do cargo, ou seja, a realização ou
omissão de um ato, em violação à lei, por parte de um funcionário público no exercício de suas
funções, com o fim de obter um benefício indevido para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade”.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.
2003. Disponível em: http://www.cgu.gov.br/assuntos/articulacao-internacional/convencao-da-onu/
arquivos/2007_uncac_port.pdf. Acesso em: 9 mar. 2019.
30 Sobre o tema, cabe ressaltar a controversa Súmula nº 13 do Supremo Tribunal Federal, que trata da
vedação à prática de nepotismo: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta,
colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da
mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de
cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta
e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios,
compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”. BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 13. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/juris-
prudencia/menuSumario.asp?sumula=1227&termo=CIVIL. Acesso em: 9 mar. 2019.
31 Nesse sentido: “Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, di-
nheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer
abstenção, ainda que a oferta não seja aceita: [...]”. BRASIL. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4737.htm. Acesso em: 9 mar. 2019.
32 ABAD, Raphael Madeira. As diversas espécies de corrupção. In: BARBUGIANI, Luiz Henrique
Sormani (Coord.). Corrupção como fenômeno supralegal. Curitiba: Juruá, 2017. p. 132-137.
33 Para uma análise crítica sobre a teoria dos princípios, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Prin-
cípios constitucionais: razoabilidade, proporcionalidade e argumentação jurídica. 2. ed. Curitiba:
Juruá, 2016. p. 258-271; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. A teoria da ponderação de princípios
na encruzilhada do decisionismo judicial: limita-me ou te devoro! Revista Sequência, Florianópolis,
n. 75, p. 219-245, abr. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/
view/2177-7055.2017v38n75p219/34028. Acesso em: 9 mar. 2019.
34 Sobre o tema, ver: CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exer-
cício da função pública. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
35 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

22
JOSÉ SÉRGIO DA SILVA CRISTÓVAM – JOÃO FILGUEIRAS GOMES RAMIREZ – JULIANA DE ALANO SCHEFFER

da improbidade administrativa. O artigo 9º traz o rol de atos de improbidade


administrativa que constituem enriquecimento ilícito (vantagem patrimonial
indevida). Já o artigo 10 trata de atos que atentam contra o patrimônio público
(não sendo necessário que o agente tenha obtido a vantagem patrimonial). Por
sua vez, o artigo 11 especifica atos de improbidade por conta da violação aos
deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade.36
Ainda que não se possa olvidar uma série de impropriedades decorrentes
da elasticidade e amplitude de determinados tipos legais estabelecidos pela
Lei de Improbidade Administrativa,37 debate que ultrapassa os limites dessa
análise, não se pode negar que a Lei de Improbidade Administrativa avança
no sentido de oferecer instrumental normativo para o combate da corrupção,
de forma a indicar que o agente público exerça a função pública com base nos
ditames da imparcialidade, da honestidade e da probidade – “abstendo-se
de utilizar a Administração Pública para auferir vantagens indevidas ou até
mesmo para facilitar interesses familiares, pessoais ou de estranhos, atingindo
finalidades não queridas pela lei”.38
Como visto, mostra-se inegavelmente extenso o arcabouço normativo
que procura tratar do fenômeno da corrupção no Brasil. A pergunta que parece
persistir é se há uma adequada identificação das raízes desse fenômeno e, em
especial, se estão sendo apropriadamente combatidas.

3. A VISÃO CLÁSSICA SOBRE AS RAÍZES DA CORRUPÇÃO NO


BRASIL
Em seu clássico Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda apresenta uma
das mais influentes perspectivas sociológicas sobre a formação do país, que serve
de base para diversos outros pensadores e estudiosos. Sua obra, assim, é funda-
mental para auxiliar nos estudos relacionados às origens da corrupção no Brasil.
A obra foi lançada originalmente em 1936, mas a edição definitiva so-
mente foi lançada pelo autor na versão de 1969.39 O surgimento da primeira
versão ocorreu três anos após outro grande clássico: Casa Grande e Senzala, do
sociólogo e historiador Gilberto Freyre, datado de 1933.40

36 BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


leis/L8429.htm. Acesso em: 9 mar. 2019.
37 Para uma abalizada análise crítica sobre a Lei de Improbidade Administrativa, ver: HARGER, Mar-
celo. Improbidade administrativa: comentários à Lei nº 8.429/92. São Paulo: Atlas, 2015.
38 ALVIM, Eduardo Arruda. Breves considerações sobre as sanções da Lei de Improbidade Administra-
tiva (Lei nº 8.429/92). In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; COSTA, Eduardo José da Fonseca;
RECENA COSTA, Guilherme (Coord.). Improbidade administrativa: aspectos processuais da Lei nº
8.429/92. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 148.
39 BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Relendo raízes do Brasil. Bresser-Pereira Website. São Paulo, jan.
2000. Disponível em: http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=549. Acesso em: 9 mar. 2019.
40 A interessante observação histórica é de Jessé SOUZA. Nesse sentido, ver: SOUZA, Jessé. A tolice
da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya, 2015. p. 20.

23
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Em Raízes do Brasil, Holanda constrói um imaginário sobre o perfil brasi-


leiro. A organização da Sociedade brasileira e suas vicissitudes estariam direta-
mente conectadas à colonização portuguesa – haveria, assim, uma alma comum
com Portugal,41 considerado como Estado à parte da Europa.
Conforme o referido clássico, a Sociedade colonial brasileira (1500-1815)
estruturava-se no meio rural – característica que ainda estaria a influenciar o
Brasil. O Engenho exercia papel centralizador: tinha a produção (fortemente
dependente do trabalho escravo), a igreja, fornecia alimentação aos moradores,
possuía as serrarias de onde saiam o mobiliário. Desse modo, a família colonial
funcionava como unidade autônoma de poder.
Essa centralização no Engenho resultava que, em toda a vida social, pre-
dominavam sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente
particularista e antipolítica, representando assim uma invasão do público pelo
privado, do Estado pela família.
Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil (1808) e o declínio da
velha lavoura, outras ocupações mais citadinas ganharam poder: atividade po-
lítica, burocracia, profissões liberais. Os primeiros a ocupar estes cargos foram
os mais abastados, logo, os lavradores e donos de engenhos. Inclusive, ao se
transportarem subitamente para as cidades, os donos de engenho levaram con-
sigo seus valores e preconceitos (a inversão do público e do privado), quando
as oligarquias rurais passam a exercer suas atividades a partir do ambiente
político e urbano.42
No Brasil, Holanda considerava que a ideia de família permeia os partidos
políticos – as pessoas não estão ligadas por ideias, mas por sentimentos e valo-
res. Nesse contexto, trocar de partido seria algo desonroso.43 Por certo, atualmen-
te pode-se entender que a troca de partidos não possui a mesma pecha negativa
de outrora, sendo que a Emenda Constitucional nº 91, de 18 de fevereiro de 2016
é exemplo da larga relativização daquela “desonra”, na medida em que os parla-
mentares se autoinstituíram uma “janela permissiva”, por certo período de dias,
para a troca de partido sem punição por infidelidade partidária.44
Nessa esteira, a sobreposição dos interesses particulares sobre os públicos
e a aproximação física dos indivíduos seriam traços dos brasileiros a partir
da herança rural, e culminariam naquela difundida figura do homem cordial,
descrita por Holanda. Este seria o indivíduo brasileiro – dominado pela afeti-
vidade e pelo impulso, com horror às distâncias. Não se trata de civilidade, vez

41 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 40.
42 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 82.
43 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.
79-80.
44 BRASIL. Emenda Constitucional nº 91, de 18 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc91.htm. Acesso em: 9 mar. 2019.

24
JOSÉ SÉRGIO DA SILVA CRISTÓVAM – JOÃO FILGUEIRAS GOMES RAMIREZ – JULIANA DE ALANO SCHEFFER

que o homem cordial é amável, todavia também é muito violento, em razão de


sua impulsividade.45
Em terrae brasilis, os detentores de posições públicas também eram forma-
dos em um ambiente patriarcal e familiar, em que filhos deveriam obedecer in-
questionavelmente ao pai e à coerência da família. Essa característica contribuiu
para a pouca diferenciação dos gestores entre o ambiente público e o privado.
Nesse cenário, as relações que se firmam na vida doméstica servem de
base para as relações públicas particularistas – mesmo que formalmente pos-
sam ser descritas como atividades públicas neutras e abstratas. O Estado pa-
trimonial sobrepõe-se ao Estado burocrático descrito por Max Weber46 – as
funções públicas são distribuídas conforme a confiança pessoal que merecem
às pessoas candidatas, pouco se relacionando com suas habilidades e capacida-
des próprias.47 O sistema administrativo brasileiro se elabora na pessoalidade,
e não na construção de objetivos comuns ou uma ideia de interesse público.48
A inegável atualidade da obra Raízes do Brasil demonstra que as proble-
máticas por ela trazidas – oligarquias rurais, confusão entre o público e o
privado, pessoalidade da Administração Pública – , ainda são relevantes para
a compreensão e crítica do cenário público brasileiro. Por outro lado, há uma
leitura crítica da obra de Holanda, presente na obra de Jessé Souza, que anali-
saremos adiante, e permite avançarmos na análise dessa temática que é central
ao debate em torno das raízes da corrupção no Brasil.
Outro clássico do século XX é a obra do historiador, jurista e cientista polí-
tico Raymundo Faoro, intitulada “Os donos do poder: formação do patronato político
brasileiro”, lançada originalmente em 1958 e editada pela terceira e última vez em
2001, pouco antes do seu falecimento.49 Uma obra eminentemente histórica, in-
dispensável ao conhecimento do Brasil, ainda que dotada de fortes contribuições
jurídicas e econômicas, por conta da formação acadêmica de Faoro.50
Na trilha de Holanda, que aborda a conexão entre Brasil e Portugal para
a organização da Sociedade brasileira, logo no início de sua obra, Faoro dis-
corre sobre a origem do Estado português, principalmente no que se refere à

45 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.
147-149.
46 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis
Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora da UnB, 1999.
47 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146.
48 Para uma análise sobre a noção do interesse público e sua centralidade para o regime jurídico-ad-
ministrativo, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Administração Pública democrática e supre-
macia do interesse público: novo regime jurídico-administrativo e seus princípios constitucionais
estruturantes. Curitiba: Juruá, 2015.
49 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001.
50 IGLESIAS, Francisco. Revisão de Raymundo Faoro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo
Faoro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 37-40.

25
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

dualidade entre Estado feudal e Estado patrimonial – sustentada numa velha


lição de Maquiavel – , que reconhecia dois tipos de principado: o feudal e o pa-
trimonial.51 Para tanto, citando Alexandre Herculano, o autor recupera aquela
consagrada tese de que Portugal não conheceu o feudalismo, consolidando-se,
portanto, como Estado patrimonial – situação consequentemente identificada
também no Estado brasileiro. Aliás, essa tese percorre toda a referida obra,
sendo que “a existência histórica brasileira é marcada de forma indelével pelo
selo da dominação patrimonial, transposta de Portugal para essas plagas ultra-
marinas durante o processo de colonização”.52
A partir da ideia de que o Reino português esteve voltado, desde sua
origem, para um destino patrimonial, de preponderância comercial, Faoro
observa que o advento da economia monetária e a ascendência do mercado
nas relações de troca foram essenciais para a consolidação desse modelo de
Estado, no qual “a moeda – padrão de todas as coisas, medida de todos os
valores, poder sobre os poderes – torna este mundo novo aberto ao pro-
gresso do comércio, com a renovação das bases de estrutura social, política e
econômica”. Assim, assegura o autor que a estrutura patrimonial do Estado
português – refletida na realidade brasileira – , ao permitir a expansão do
capitalismo comercial, impediu, todavia, a consolidação de um capitalismo
industrial, perceptível apenas nos países de raízes feudais, tais como Ingla-
terra, França e Alemanha.53
Isso leva o autor a concluir que na realidade histórica brasileira persistiu
a estrutura patrimonial, adotando-se do capitalismo “a técnica, as máquinas,
as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar”,54 desviando-se
do capitalismo industrial – capitalismo pleno, no qual estariam integrados a
Sociedade e o Estado – , para atingir o capitalismo comercial.55
Com efeito, outro ponto central à reflexão de Faoro refere-se ao surgimen-
to do que considera um dos grandes percussores das vicissitudes de nosso Es-
tado, qual seja, o aparecimento de um órgão centralizador que dirige, comanda
e conduz as operações comerciais como se empresa sua fosse: o Príncipe. Com
isso, toda a exploração industrial e comercial seria por ele controlada, inclu-
sive fazendo-o de forma imediata em relação aos setores mais lucrativos da
Sociedade. Em síntese, o Estado apresenta-se como uma empresa do príncipe,

51 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 38.
52 LESSA, Renato. O longínquo pesadelo brasileiro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo Fao-
ro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 67.
53 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 32-41.
54 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 822.
55 LESSA, Renato. O longínquo pesadelo brasileiro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo Fao-
ro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 65.

26
JOSÉ SÉRGIO DA SILVA CRISTÓVAM – JOÃO FILGUEIRAS GOMES RAMIREZ – JULIANA DE ALANO SCHEFFER

empresário audacioso que em tudo intervém.56


Estabelecidas essas bases, indicados os traços gerais da organização ad-
ministrativa, social, econômica e financeira da época ainda colonial, Faoro foca
sua narrativa no cargo e no agente público. Nesse sentido, o funcionário (agen-
te) público seria o outro eu, uma extensão do Príncipe ou do Rei. Nele pulsaria
a centralização, unicamente capaz de mobilizar recursos e executar a política
comercial indispensável para a organização do Estado. Assim, ao passo que
o Rei apresenta-se como o senhor de tudo, das atribuições e incumbências, o
agente público aparece como sua sombra real.57 Mas vale a advertência – prin-
cipalmente ante a grande extensão do território brasileiro, fator que dificulta
o pleno exercício da autoridade superior – , para que essa sombra não por se
tornar maior que sua própria figura.58
Com base na doutrina do Padre Antônio Vieira, Faoro apresenta a seguin-
te comparação:59
A sombra, quando o sol está no zênite, é muito pequenina, e toda se vos
mete debaixo dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no ocaso, essa
mesma sombra se estende tão imensamente, que mal cabe dentro dos ho-
rizontes. Assim nem mais nem menos os que pretendem e alcançam os
governos ultramarinos. Lá onde o sol está no zênite, não só se metem estas
sombras debaixo dos pés do príncipe, senão também dos de seus minis-
tros. Mas quando chegam àquelas Índias, onde nasce o sol, ou a estas,
onde se põe, crescem tanto as mesmas sombras, que excedem muito a me-
dida dos mesmos reis de que são imagens.
Em síntese, a comparação busca indicar que, no Brasil, ante a instalação de
uma máquina administrativa sob governo centralizador, as grandes e dilatadas
distâncias das terras brasileiras acabam por dificultar a unidade do exercício do
Poder Público, acarretando na possibilidade de funcionários públicos e inclusive
chefes locais, longe do centro de governo, acabarem entregando-se à busca de
satisfações individuais e violando normas que deveriam respeitar e propagar,
naquele conhecido adágio do “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.60
Se de início, ainda no século XVI, o cargo público era atributo nobre de
sangue, com o passar do tempo a função pública passou a ser objeto de venda,
capaz de elevar a burguesia enriquecida à categoria elevada da nobreza. E não

56 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 39-40.
57 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 197-198.
58 IGLESIAS, Francisco. Revisão de Raymundo Faoro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo
Faoro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 47.
59 VIEIRA, Padre Antônio. Sermões pregados no Brasil. v. 2, Lisboa: Agência Geral das Colônias,
1940. p. 275, apud FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasilei-
ro. 3 ed. São Paulo: Globo, 2001. p. 198.
60 IGLESIAS, Francisco. Revisão de Raymundo Faoro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo
Faoro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 52.

27
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

poderia ser diferente, vez que o emprego público apresentava-se – e ainda se


apresenta em larga medida – como “instrumento regalista da classe dominan-
te”, congregando, reunindo e dominando a economia. É status, é poder.61
Outro traço interessante das reflexões de Faoro refere-se à indicação de
que a “acanhada” retribuição monetária do agente público, ante o reduzido au-
mento ao longo dos anos de exercício da função, poderia, porventura, ser causa
de diversos casos de corrupção e violência à ordem jurídico-administrativa –
ainda mais quando as distâncias e o tempo impeçam uma maior efetividade na
vigilância superior.62
Essas considerações permitem tratarmos de um dos pontos nevrálgicos da
obra Os donos do poder, o estamento burocrático. Trata-se de conceito bastante
fluido, de difícil apreensão, abordado por Faoro a partir de uma concepção we-
beriana, conjugada com percepções de outros intérpretes da realidade social,63
para quem a ordem estamental e burocrática brota do patrimonialismo estatal.64
Nesse sentido, a Sociedade pode ser vista como uma pirâmide. Da sua
base até uma determinada altura, é a condição monetária (o ter ou não ter)
que situa o indivíduo em determinada classe, positiva ou negativamente qua-
lificada. A classe é, portanto, um fenômeno da economia e do mercado. Por
outro lado, no topo da pirâmide, a ascensão social se desvia em um processo
desorientador, onde a ambição do indivíduo não é mais a riqueza em termos
monetários, mas o domínio político, o poder, o afidalgamento. Isso redunda
na existência de duas vias de categorização social: a ascensão na classe, pela
riqueza, e a ascensão no estamento, pelo prestígio.65
Portanto, o caminho para o estamento burocrático estaria fundado num
processo de valorização social decorrente do prestígio do mando político. Ao
final do caminho, no ápice do poder, são emanadas todas as fontes abundantes
de riquezas improvisadas – sejam elas empresas industriais, bancos, obras
públicas etc. – , despejadas em abundância aos prediletos e estancadas para
os demais.66 Aliás, isso justificaria o fato de no Brasil atual – como também no
passado – tudo ser feito por e para uma minoria, que se encontra beneficiada
pelo esforço geral e que, no entanto, sacrifica os demais grupos.67

61 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 201-202.
62 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 199.
63 IGLESIAS, Francisco. Revisão de Raymundo Faoro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo
Faoro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 41.
64 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 236.
65 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 236-253.
66 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo:
Globo, 2001. p. 446-449.
67 IGLESIAS, Francisco. Revisão de Raymundo Faoro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo

28
JOSÉ SÉRGIO DA SILVA CRISTÓVAM – JOÃO FILGUEIRAS GOMES RAMIREZ – JULIANA DE ALANO SCHEFFER

Vê-se, pois, que na Sociedade brasileira, quando o Estado se apresenta


como o todo poderoso, há um grupo por trás dessa estrutura que detém todo
aquele poder – e que o faz com tanta coerência e sagacidade que é difícil iden-
tificá-lo. Uma espécie de poder simbólico, naquele sentido descrito por Pierre
Bourdieu, um poder invisível, quase mágico, que somente pode ser exercício
com uma forte dose de cumplicidade e ignorância tanto daqueles que a ele es-
tão sujeitos como daqueles que o exercem.68 Isso justifica, inclusive, o fato de a
obra Os donos do poder, ao analisar a formação do patronato político brasileiro,
afirmar que o poder é conduzido pelo estamento burocrático, mas sem dizer
exatamente quem é ele ou quem o constitui.69

4. PARA UMA CRÍTICA À VISÃO CLÁSSICA DA FORMAÇÃO


BRASILEIRA
A visão clássica sobre a formação da Sociedade brasileira e as raízes da cor-
rupção no Brasil não está imune a uma sólida releitura crítica. O jurista e socioló-
gico Jessé Souza considera que a teorização crítica tradicional sobre as raízes da
corrupção no Brasil – a qual destaca a ideia de patrimonialismo e personalismo
como condições hereditárias e intrínsecas às relações sociais brasileiras – é con-
servadora e apresenta fragilidades teóricas. Nas suas próprias palavras:70
A principal consequência da centralidade do conceito de patrimonialismo
entre nós e, portanto, também do tema da corrupção como característica
atávica da sociedade brasileira, é, certamente, o extraordinário empobre-
cimento do debate acadêmico e político brasileiro atual.
O autor critica a concepção da Sociedade brasileira que está implícita nas
obras de Freyre, Holanda, Faoro e Roberto DaMatta, autores que formaram,
no século XX e no atual, o mito nacional de que a população brasileira estaria
predisposta a encontros culturais, e que possui uma “cultura particularista, do
privilégio e da troca de favores”.71
Pessoas de destaque entre os intelectuais brasileiros, como os historiado-
res, sociólogos e juristas mencionados, foram fundamentais para a construção
e popularização de uma ideia animalesca e inferior do povo brasileiro – a qual
ainda circula tanto no meio acadêmico quanto no senso comum, tanto com
aqueles que se alinham mais à esquerda quanto à direita, o que contribui para a

Faoro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 51-52.


68 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 7. ed. Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 2004.
69 IGLESIAS, Francisco. Revisão de Raymundo Faoro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo
Faoro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 55-56.
70 SOUZA, Jessé. Weber. In: AVRITZER, Leonardo et. al (Org.). Corrupção: ensaios e críticas. 2 ed.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 68-69.
71 SOUZA, Jessé. Para além de Raymundo Faoro? In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo Faoro
e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 153.

29
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

construção de um paradigma culturalista, útil à justificação da preponderância


dos países dominantes.72
Souza atribui a Holanda a união dos conceitos de personalismo e patrimo-
nialismo, bem como pela concepção do Brasil como pré-moderno.73 Ademais, o
ensinamento de suas obras em escolas e na academia permitiu a difusão sobre
uma cultura da corrupção intrínseca, com origem nas tradições ibéricas, e de
caráter persistente.74
A partir da ideia de Freyre do Brasil como civilização singular como caracte-
rística positiva, Holanda considera o tipo humano brasileiro como um legado nega-
tivo.75 Essa perspectiva o levaria a elaborar a figura do homem cordial, o brasileiro
vira-lata e seu conjunto de negatividades. Segundo Souza, a figura do homem cor-
dial seria moldada pela emotividade, primitividade, personalismo e, consequen-
temente, desonestidade e corrupção. Para a evolução brasileira, o homem cordial
deveria ser transformado pela industrialização e pelo mercado em um ser huma-
no democrático, produtivo e honesto, a semelhança do povo norte-americano.76
Em sua análise crítica, Souza é enfático ao defender que esse personagem
seria uma ficção que não corresponde ao perfil dos brasileiros – isto porque
a homogeneidade pretendida por Holanda simplesmente não existe e nunca
existiu. Há uma ideologia que apaga as diferenças entre a população brasileira
(econômicas, sócias, culturais, de gênero, de raça etc.).77
Ocupando-se da obra de Faoro, Souza considera que aquele passou ao
largo da importância da escravidão no Brasil colonial, dando mais destaque a
uma alegada continuidade dos vícios sociais da metrópole portuguesa.
Isso permite questionar a força do alegado vínculo com a tradição por-
tuguesa no Brasil, presente tanto na obra de Faoro como no pensamento de
Holanda. Para Souza, a escravidão é a instituição mais importante do Brasil
Colônia – elemento que faltaria a Portugal. Haveria considerável insubsistên-
cia em comparar uma Sociedade escravocrata com uma não escravocrata sem
dar o devido destaque a esta característica.78
Outra crítica à obra de Faoro residiria na referida carência de precisão
histórica e conceitual sobre a noção de patrimonialismo, vez que o autor tra-

72 SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. p. 23.
73 SOUZA, Jessé. Weber. In: AVRITZER, Leonardo et. al (Org.). Corrupção: ensaios e críticas. 2 ed.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 69.
74 SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. p. 33.
75 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo: Leya, 2015. p. 21.
76 SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. p. 191.
77 SOUZA, Jessé. Para além de Raymundo Faoro? In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo Faoro
e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 157.
78 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo: Leya, 2015. p. 28.

30
JOSÉ SÉRGIO DA SILVA CRISTÓVAM – JOÃO FILGUEIRAS GOMES RAMIREZ – JULIANA DE ALANO SCHEFFER

balha com a ideia de patrimonialismo desde o Portugal medieval – contudo,


em tal período não havia concepção de soberania popular e de separação entre
público e privado.79
Na visão de Souza, a perpetuação desse paradigma personalista e patri-
monialista como interpretação hegemônica sobre o país colabora para a ocul-
tação dos verdadeiros desafios no Brasil, tanto na prática acadêmica como na
prática política. Em verdade, o maior problema nacional residiria na sua desi-
gualdade abissal e na consequente marginalização.80
O patrimonialismo seria a ideia-força que se coloca como obstáculo para
qualquer percepção efetivamente inovadora e crítica da Sociedade brasileira.
Para corroborar essa afirmação, Souza destaca trechos escritos por Deltan Dal-
lagnol (procurador chefe da Operação Lava Jato), Luis Roberto Barroso (minis-
tro do Supremo Tribunal Federal) e Fernando Haddad (ex-prefeito de São Pau-
lo pelo Partido dos Trabalhadores – PT).81 Tais brasileiros contemporâneos,
considerados com matrizes ideológicas diferentes, utilizam o mesmo conceito
de patrimonialismo como elemento fundante da Sociedade brasileira – o que
demonstraria a uniformidade desta ideia de Brasil moderno.
O autor considera problemático o discurso que coloca o patrimonialis-
mo e a corrupção como problemas do Estado, ao passo que o mercado e as
ideias liberais seriam a única solução. Se os brasileiros são cordiais (conforme
Holanda), por que o patrimonialismo só se exibiria por meio do Estado? A lei-
tura de Freyre, Holanda, Faoro e DaMatta contribuiria para a difundida noção
de centralidade do problema da corrupção apenas vinculada ao Estado, como
concepção essencial de mundo a favor de certas elites.
Assim, com invulgar acerto e perspicácia no juízo crítico, Souza com-
preende que:82
O que está em jogo, no entanto, não é a melhoria do combate à corrupção
por meio do melhor aparelhamento dos órgãos de controle. O que existe
é uma dramatização da oposição mercado (virtuoso) e Estado (corrupto)
construída como uma suposta evidência da singularidade histórica e cul-
tural brasileira.
Em síntese, mercado e Estado precisam ser vistos como “instituições
ambivalentes, cujo raio de ação será definido por lutas sociais concretas”.83

79 SOUZA, Jessé. Weber. In: AVRITZER, Leonardo et. al (Org.). Corrupção: ensaios e críticas. 2 ed.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 171.
80 SOUZA, Jessé. Para além de Raymundo Faoro? In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo Faoro
e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 154-155.
81 SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. p. 184-190.
82 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo: Leya, 2015. p. 21.
83 SOUZA, Jessé. Weber. In: AVRITZER, Leonardo et. al (Org.). Corrupção: ensaios e críticas. 2 ed.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 73.

31
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Erroneamente, a abordagem para o combate ao subdesenvolvimento, à po-


breza e ao atraso do Brasil foram encaradas a partir do combate ao patrimo-
nialismo e à corrupção na gestão pública, ou como meio de industrialização
para competitividade no mercado.84
O enfoque no Estado corrupto, que seria uma característica brasileira,
permitiria (em uma espécie de cortinha de fumaça) deixar as contradições
sociais brasileiras em um segundo plano.85 Mas há um cotidiano de desigual-
dades sociais e de exclusão, que não são resolvidas apenas com a expansão
do mercado.
Para Souza, a eficácia das instituições modernas permite a naturalização
das desigualdades e da permanência da existência da subcidadania. Mas a
construção de uma igualdade política e jurídica material somente aconteceria
por meio da expansão da cidadania, com políticas públicas voltadas à inclu-
são – a economia por si só não tem o condão de resolver os problemas da
marginalização.86
O implemento de condições para o exercício da cidadania corresponde-
ria, assim, a uma expansão democrática. Afastada (ou reduzida) a subcida-
dania, abre-se espaço para que as pessoas tenham melhores condições de se
articular e controlar as atividades da Administração Pública, inclusive sobre
sua relação com o mercado.
A percepção vira-lata do povo brasileiro sobre si próprio, como corrup-
tos por concepção (a partir de raízes ibéricas e rurais, da cordialidade, do patri-
monialismo – conforme ideia tecida por intelectuais e confirmada pelas aca-
demias e pela mídia), perpetuaria uma perspectiva colonial e inferiorizada,
limitadora das próprias potencialidades do país.
Com efeito, há um inegável deficit da dimensão democrática e da ci-
dadania ativa a partir da incorporação desse discurso culturalista e racista
pela própria população (tanto na elite intelectual, quanto pela mídia e pela
população em geral). O entendimento do próprio Brasil como permanente-
mente pré-moderno, tradicional, particularista, afetivo e com tendência para
a desonestidade, permite que se enxergue como de qualidade superior tudo
o que vem de fora – sejam empresas, teorias e soluções para dificuldades em
todos os campos.87
Esse contexto distorcido da visão do povo brasileiro sobre si próprio per-

84 SOUZA, Jessé. Para além de Raymundo Faoro? In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo Faoro
e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 159.
85 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo: Leya, 2015. p. 22.
86 SOUZA, Jessé. Para além de Raymundo Faoro? In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo Faoro
e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 165.
87 SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. p. 27.

32
JOSÉ SÉRGIO DA SILVA CRISTÓVAM – JOÃO FILGUEIRAS GOMES RAMIREZ – JULIANA DE ALANO SCHEFFER

mite encarar com certa naturalidade a destruição de grandes empresas nacio-


nais em nome do combate à corrupção, ou ainda a venda de empresas estatais
como a Petrobrás para o capital estrangeiro – já que a cordialidade e o jeitinho
brasileiro seriam qualidades intrínsecas do Brasil – , e empresas transnacionais
estariam mais aptas para atuar localmente. Condenada a um viés patrimonia-
lista, cordial e pré-moderno, a economia brasileira deveria continuar a ocupar-
se da produção de bens primários.
O discurso patrimonialista e a consideração das raízes da corrupção como
inerentes ao povo brasileiro servem de base para um modelo predatório de
combate à corrupção ao estilo da Operação Lava Jato, uma espécie de cruzada
santa que já conseguiu ferir grandes empresas nacionais. Para lembrarmos o
paralelo comparativo dos Estados Unidos da América, naquele regime jurí-
dico-político e socioeconômico as pessoas naturais são responsabilizadas por
atos de corrupção, mas nunca as empresas como um todo, prática alardeada-
mente difundida pela Operação Lava Jato.
Em síntese, Souza sustenta que essa percepção do brasileiro como um
povo inferior, fundada no patrimonialismo, integra um pacto elitista e anti-
popular, traçado/inflacionado a partir da Operação Lava Jato, que destroçou
o caminho do Brasil em direção a uma inserção econômica internacional mais
autônoma e menos dependente.88 Resta questionarmos a serviço de que ou de
quem esse desmonte generalizado sobre vários setores da economia nacional
foi e vem sendo levado a cabo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se pode pretender uma conceituação fechada e com disposições de
universalização acerca da noção de corrupção, que é variável no tempo, no es-
paço e, inclusive, no âmbito jurídico-normativo. Em sentido amplo, a ideia de
corrupção remete àquela situação de desvio que prejudica o espaço público, em
benefício privado, embora possa ostentar origem tanto pública como privada.
Nesse estudo, mais do que a pretensão em se estabelecer um conceito de
corrupção, nossa preocupação centrou-se em averiguar se é possível estabele-
cer um denominador comum, de base preponderantemente sociológica, capaz
de explicar/justificar o fenômeno da corrupção no Brasil – em especial a partir
do debate sobre os contributos de Holanda, Faoro e Souza.
Holanda e Faoro são considerados autores clássicos, e que auxiliaram na
concepção das raízes sociológicas do Brasil, inclusive sobre o fenômeno da cor-
rupção. Ambos destacam o patrimonialismo como uma característica intrinse-
camente brasileira, que marcaria de forma indelével a relação entre as pessoas

88 SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. p. 225-227.

33
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

(povo) e o Estado. Na síntese largamente difundida e até impregnada no ima-


ginário popular, “todos querem um pedaço de Estado para chamar de seu”.
Essa doutrina largamente difundida recebe uma abalizada releitura
crítica por Souza, que se ocupa de analisar as obras clássicas que (con)for-
maram o ideário de povo brasileiro – caracterizado como patrimonialista,
personalista, voltado a confundir o público com o privado e que tem suas
ações negativas justificadas como uma herança ibérica. Souza critica o pensa-
mento de Holanda e Faoro por não atentarem devidamente ao fenômeno da
escravidão, que marca a história brasileira de modo bem distinto da história
portuguesa. Nesse sentido, a escravidão e a desigualdade dela decorrente –
e não o patrimonialismo – deveriam ser consideradas as chaves históricas e
sócio-políticas para os problemas nacionais.
Souza pontua que o discurso de povo vira-lata, com características morais
consideradas mais baixas, facilita a exploração do país pelo capital estrangei-
ro, a partir de um apoio irrefletido de diversos setores da intelectualidade e da
mídia nacional, que favorecem apenas uma elite muito pequena. Esse discurso
culturalista atuaria de modo contraproducente ao próprio país, como é um dos
exemplos mais acabados a larga desestruturação de seguimentos empresariais e
industriais brasileiros de projeção supranacional, em prol de uma espécie de cru-
zada santa de combate à corrupção (Operação Lava Jato e seus desdobramentos).
Em síntese, o discurso sociológico clássico amplamente amparado na
doutrina de Holanda e Faoro acaba por respaldar e até retroalimentar uma
visão negativa sobre as potencialidades da população brasileira. Embora não
se possa oferecer uma resposta conclusiva e com pretensões de definitividade
sobre as origens da corrupção no Brasil; entretanto, justificá-la a partir da natu-
ralização e homogeneização de comportamentos negativos intrínsecos ao povo
brasileiro não parece um caminho adequado e até sustentável.
Não se trata aqui de questionar somente o fenômeno da corrupção no
Brasil e suas origens, mas parece profundamente acertada a proposta revisio-
nista de Souza, e a partir dela refletir sobre a centralidade que a temática da
corrupção vem recebendo e os acertos/desacertos na condução do seu combate.
E sobre esses inquietantes problemas, a academia tem papel fundamental na
pretensão de estabelecer um olhar além do paradigma estabelecido.
Em arremate, entendemos que a produção de uma cultura emancipatória
e efetivamente cidadã – que se coadune com um projeto de diminuição de de-
sigualdades e fomento de iniciativas econômicas comprometidas com a nação
– poderia oferecer um caminho genuíno e qualificado para o país, inclusive
para o debate em torno das raízes da corrupção no Brasil e a formação de uma
adequada política de amplo e racional combate preventivo à corrupção, preo-
cupação e objeto do debate que permeia esse estudo.

34
JOSÉ SÉRGIO DA SILVA CRISTÓVAM – JOÃO FILGUEIRAS GOMES RAMIREZ – JULIANA DE ALANO SCHEFFER

6. REFERÊNCIAS
ABAD, Raphael Madeira. As diversas espécies de corrupção. In: BARBUGIANI, Luiz Henrique
Sormani (coord). Corrupção como fenômeno supralegal. Curitiba: Juruá, 2017.
ALVIM, Eduardo Arruda. Breves Considerações Sobre as Sanções da Lei de Improbidade Admi-
nistrativa (Lei no 8.429/92). In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos; COSTA, Eduardo José da
Fonseca; RECENA COSTA, Guilherme (Coord). Improbidade Administrativa: aspectos processuais
da Lei nº 8.429/92. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015, p. 148.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Brasília: Dicionário de Política.
11. ed. Brasília: Editora UnB, v. 1, 1998.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 7. ed. Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 2004.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 13. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/
portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1227&termo=CIVIL>. Acesso em: 9 mar. 2019.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 9 mar. 2019.
BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 9 mar. 2019.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 91, de 18 de fevereiro de 2016. Disponível em: <http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc91.htm>. Acesso em: 9 mar. 2019.
BRASIL. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L4737.htm>. Acesso em: 9 mar. 2019.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L8429.htm>. Acesso em: 9 mar. 2019.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Relendo Raízes do Brasil. Bresser-Pereira Website. São Paulo, jan. 2000.
Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=549>. Acesso em: 9 mar. 2019.
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Administração Pública democrática e supremacia do interesse públi-
co: novo regime jurídico-administrativo e seus princípios constitucionais estruturantes. Curitiba:
Juruá, 2015.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo:
Globo, 2001.
GRANOVETTER, Mark. A Construção Social da Corrupção. Revista Política e Sociedade, Florianó-
polis, v. 5, n. 9, 2006, p. 11-37.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
IGLESIAS, Francisco. Revisão de Raymundo Faoro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo
Faoro e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 37-61.
LESSA, Renato. O longínquo pesadelo brasileiro. In: GUIMARÃES, Juarez (Org.). Raymundo Faoro
e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 63-76.
MICHAELIS: Dicionário prático da língua portuguesa. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2008.
MORENO, Pedro Tomás Nevado-Batalla. In: JUNIOR RIBAS, Salomão. Corrupção Pública e Priva-
da: quatro aspectos: ética no serviço público, contratos, financiamento eleitoral e controle. Belo Horizonte,
Fórum, 2014.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. 2003.
Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/assuntos/articulacao-internacional/convencao-da-onu/
arquivos/2007_uncac_port.pdf>. Acesso em: 9 mar. 2019.
RIBAS JUNIOR, Salomão. Corrupção pública e privada: quatro aspectos. Belo Horizonte: Fórum,
2014.

35
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo:
Leya, 2015.
SOUZA, Jessé. Para além de Raymundo Faoro? In: GUIMARÃES, Juarez (org). Raymndo Faoro e o
Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.
SOUZA, Jessé. Weber. In: AVRITZER, Leonardo et. al (org). Corrupção: ensaios e críticas. 2. ed. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2012.
TANZI, Vito. Corruption Around the World: causes, consequences, scope, and cures. Internatio-
nal Monetary Fund. Mai. 1998. Disponível em: <https://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/wp9863.
pdf>. Acesso em: 9 mar. 2019.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Corruption Perceptions Index 2016. 25 jan. 2017. Disponível
em: <https://www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016>. Acesso
em: 9 mar. 2019.
VIEIRA, Padre Antônio. Sermões pregados no Brasil. v. 2, Lisboa: Agência Geral das Colônias,
1940. p. 275, apud FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasilei-
ro. 3 ed. São Paulo: Globo, 2001. p. 198.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis
Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora da UnB, 1999.
WHITE, Richard. What counts as corruption? Revista Social Research: an international quarterly, Bal-
timore, v. 80, n. 4, p. 1033-1056, Winter, 2013.
WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Competitiveness Report 2016-2017. Disponível em:
<http://reports.weforum.org/global-competitiveness-index/competitiveness-rankings/#series=G-
CI.A.01.01.02>. Acesso em: 9 mar. 2019.

36
A MORAL DO AGENTE PÚBLICO NO BRASIL E AS
PRÁTICAS DE CORRUPÇÃO

Luana Renostro Heinen1


Júlia Bordin Mandelli Correa2
Manoella Peixer Cipriani3

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Nesse capítulo propomos refletir sobre a moral do agente público4 no Brasil
e as práticas de corrupção. Iniciamos com uma discussão sobre o caracteriza a
corrupção a partir de diferentes pontos de vista: do direito, do interesse públi-
co, da opinião pública e do cargo público. Somente a ação caracterizada como
corrupta pela norma jurídica é que levará a uma punição também jurídica, no
entanto, as práticas consideradas corruptas a partir dos demais pontos de vista
também podem produzir efeitos danosos para a Administração Pública brasilei-
ra, por isso a necessidade de refletir sobre elas. Caracterizada a corrupção, pro-
curamos compreender de que maneira a ética enquanto campo de conhecimento
que reflete sobre a moral, ou seja, sobre a distinção entre o certo e o errado, per-
mite dizer qual é a forma correta de agir. Apresentamos, em termos gerais, as três
principais correntes éticas – deontológica, teleológica e da virtude – para, em
seguida, compreender qual seria a atuação moral do agente público no Brasil.
Esclarecemos que não se pode falar, nas sociedades hodiernas, de uma única
moral. Nossas sociedades caracterizam-se pelo pluralismo, mas também pelo
egoísmo, que representam dois grandes dilemas para se pensar qual é a forma
correta de agir. Tendo em vista que vivemos em sociedades plurais, marcadas

1 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC), com período san-
duíche na Université Paris-Ouest Nanterre la Défense. Mestre em Direito, na linha Filosofia e Teoria
do Direito, pelo PPGD/UFSC. Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7671057803491130
2 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É editora-chefe da Re-
vista Acadêmica da Graduação em Direito – Revista Avant. É membro dos grupos Núcleo de Estudos
em Filosofia e Teoria do Direito – NEFTD e Grupo de Estudos em Direito Público – GEDIP da Uni-
versidade Federal de Santa Catarina. Realizou intercâmbio acadêmico na Universidad de Granada
em 2016 e na University of Bristol em 2015. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7270245386190426
3 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Corpo
Editorial da Revista AVANT (Revista de Direito para os acadêmicos da graduação da UFSC), par-
ticipante do Grupo de Estudos em Filosofia do Direito (GEFID) e do Grupo de Estudos em Direito
Público da UFSC (GEDIP). Estudante da Escola da Magistratura de Santa Catarina – ESMESC.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2175448985389999
4 Sempre que nos referirmos ao agente público estaremos tratando de qualquer pessoa física que exer-
ça, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação
ou qualquer forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função pública.

37
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

pelo desacordo moral e pelo egoísmo, em que, os demais sistemas de controle


social perderam efetividade (religião, moral e a tradição) propomos buscar no
sistema jurídico um ponto de referência comum e, portanto, as indicações de
quais são as ações moralmente corretas. Apresentamos essa como uma propos-
ta interessante para fundamentar a ação moral em um sistema de regras com
validade obrigatória para todos. Sugerimos, assim, encontrar nos princípios da
Administração Pública estabelecidos na Constituição Federal de 1988 e no prin-
cípio da supremacia do interesse público o norte de atuação do agente público.
Analisamos a partir das diferentes correntes da ética cada um dos princípios,
para esclarecer como fundamentam a moralidade da ação.
Ao final, verificamos que entre os princípios da Administração encon-
tram-se as três correntes éticas – deontológica, teleológica e das virtudes – e
que, na atuação prática do agente público, nem sempre é simples optar por
uma ação conforme um ou outro princípio. No entanto, a corrupção não se
dá pela necessidade de se escolher entre respeitar a legalidade, impessoali-
dade, moralidade, publicidade ou eficiência quando estejam em conflito, mas
quando o agente permite que o interesse privado prevaleça face ao interes-
se público. Analisamos os fatores que contribuem para que a corrupção se
perpetue e que o direito não seja a referência de atuação dos agentes públi-
cos, entre eles, o jeitinho brasileiro e a banalização da corrupção, seguido da
ausência de valorização da coisa pública. Verificamos, assim, que a atuação
moral do agente público, de modo a evitar as práticas de corrupção, deve ser
sempre a busca de priorizar o interesse público face aos interesses privados,
interesse público entendido não no sentido liberal de soma dos interesses
particulares, mas no sentido republicanista de bem comum.

2. CORRUPÇÃO: O QUE É?
Corrupção é um fenômeno complexo que pode ser estudado a partir de
diversas abordagens: jurídica, sociológica, econômica, política, histórica, entre
outras. É vasta a literatura que trata de possíveis causas e consequências advin-
das dessa prática, assim como de possíveis soluções. Em comparação, nem tan-
tos trabalhos se debruçaram a escrever uma definição do termo “corrupção”.
Mesmo assim, as possibilidades de conceitos são diversas. Esse capítulo não
tem a pretensão de esgotar as possíveis definições do termo, também não pre-
tende formular um conceito próprio, mas espera que a discussão sobre os con-
ceitos sirva como orientação para o debate sobre uma ética do agente público.
James C. Scott define corrupção como um comportamento desviante
do padrão5. Essa definição é complementada pelo seguinte questionamento:

5 SCOTT apud GARDINER, John A. Defining Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNS-
TON, Michael (Org.). Political corruption: Concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasac-

38
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

qual o critério a ser utilizado para estabelecer um comportamento padrão? A


resposta oferecida por Scott inclui três possíveis alternativas: legal, interesse
público e opinião pública. John Gardiner sistematiza essas alternativas, abor-
dando os méritos e limitações de cada uma6.
Utilizando-se o critério legal, corrupção é o comportamento que se des-
via daquele estabelecido pela lei. No caso brasileiro, o ordenamento trata da
corrupção estabelecendo condutas que ensejam responsabilização penal, civil
e administrativa. No campo penal, corrupção está tipificada nos artigos 3177
e 3338 do Código Penal, no título “Crimes contra a Administração Pública” e
se divide em corrupção passiva e ativa, respectivamente. Fora da esfera penal,
a responsabilização é disciplinada pela Lei de Improbidade Administrativa,
Lei nº 8.429 de 19929. A referida lei estabelece diversas condutas como atos
de improbidade e as divide em quatro categorias, quais sejam: Atos de Impro-
bidade Administrativa que Importam Enriquecimento Ilícito; Atos de Impro-
bidade Administrativa que Causam Prejuízo ao Erário; Atos de Improbidade
Administrativa Decorrentes de Concessão ou Aplicação Indevida de Benefício
Financeiro ou Tributário; e Atos de Improbidade Administrativa que Atentam
Contra os Princípios da Administração Pública. Quanto às sanções, a lei esta-
belece consequências cíveis, administrativas e políticas, como pagamento de
indenizações, perda de função pública e perda dos direitos políticos por um
período de tempo, e responsabiliza tanto os agentes públicos quanto particula-
res que induzam ou concorram para a prática do ato de improbidade ou dele
se beneficiem sob qualquer forma direta ou indireta.
O problema da adoção de um critério legalista para a definição da corrup-
ção é a desconsideração das possíveis práticas de corrupção que ocorrem no
processo de formação da lei. Segundo Scott, os sistemas políticos que sistema-
ticamente servem aos interesses de um determinado grupo e reprimem outras
demandas não poderiam, segundo esse critério, ser considerados corruptos, a
não ser que o fizessem descumprindo leis. Ainda, alerta para o alto risco em
presumir que todo dispositivo legal é, também, ético10.

tion Publishers, 2002.


6 GARDINER, John A. Defining Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON, Mi-
chael (Org.). Political corruption: Concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction Pu-
blishers, 2002.
7 “Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da
função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal
vantagem” (BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal).
8 “Art. 333 – Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a pra-
ticar, omitir ou retardar ato de ofício” (BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
Código Penal).
9 BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes pú-
blicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na
administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências.
10 SCOTT apud GARDINER, John A. Defining Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNS-
TON, Michael (Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction

39
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Para ilustrar tal questão, Gardiner11 traz o exemplo de um oficial nazista


que, descumprindo as leis da época, aceita uma quantia monetária para permi-
tir que uma família de judeus saia da Alemanha. Esse poderia ser considerado
um comportamento corrupto? Ou a imoralidade da lei tornaria o comporta-
mento do oficial escusável? De modo inverso, pergunta-se se o simples atendi-
mento aos requisitos legais bastaria para a ação não ser considerada corrupta.
Essas questões ensejaram o desenvolvimento de um segundo critério
para responder à pergunta de Scott, o critério do interesse público. Um exem-
plo de definição que segue esse critério é aquela dada por Friedrich, na qual
corrupção não é apenas um tipo de comportamento que desvia da norma
prevalecente ou da norma que se acredita prevalecer em um dado contexto,
como o político12. Mas é um comportamento desviante associado a motiva-
ções que colocam o ganho privado acima do custo público. Ainda, esclarece
que o relevante é menos a motivação subjetiva e mais o fato objetivo de o
ganho privado ter sido assegurado através de um custo público. Ou seja, a
dinâmica da corrupção acontece quando um detentor de poder é induzido,
por recompensas financeiras ou de outra espécie, a tomar decisões e executar
ações que beneficiam aquele que lhe recompensa e consequentemente preju-
dicam o público e seus interesses.
Gardiner afirma que, para os acadêmicos que se filiam a esse critério,
os resultados de determinada ação importam mais do que seu status legal.
Em outras palavras, se o resultado da ação é benéfico ao interesse público,
a ação não será corrupta, mesmo que seja ilegal13. Assim como o contrá-
rio também é verdadeiro. O grande problema desse tipo de abordagem é
a amplitude do conceito “interesse público” e as diferentes visões que os
indivíduos têm sobre a função pública, o que traz um significativo grau de
relatividade para o conceito. Gardiner também alerta para a impossibilida-
de de transferir a definição de interesse público para o legislativo, já que
em sistemas corruptos a visão de certos grupos, que também são parte do
público, não seria levada em consideração14.
A terceira alternativa é o critério da opinião pública. O argumento apre-
sentado por Gardiner para a adoção da opinião pública como definidora do
que se considera comportamento padrão é a existência de uma probabilidade

Publishers, 2002.
11 GARDINER, John A. Defining Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON, Michael
(Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction Publishers, 2002.
12 FRIEDRICH, Carl J. Corruption Concepts in Historical Perspective. In: HEIDENHEIMER, Arnold
J; JOHNSTON, Michael (Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick:
Trasaction Publishers, 2002.
13 GARDINER, John A. Defining Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON, Michael
(Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction Publishers, 2002.
14 GARDINER, John A. Defining Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON, Michael
(Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction Publishers, 2002.

40
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

maior de os agentes públicos orientarem suas ações com base na cultura local
do que com base em legislações15. Ademais, a opinião pública promove uma
base para a execução das leis, já que a opinião dos cidadãos molda a forma
com que se comportam. O problema, por outro lado, está na definição de
qual o público a ser consultado e como medir suas opiniões, principalmente
no caso de divergências. Philp acrescenta que a opinião pública não pode ser
analisada como uma variável independente, já que em certos casos a falha da
opinião pública em se comprometer na busca do bem comum é um sintoma
do alto grau de corrupção de determinada sociedade16.
Além dos três critérios apresentados por Scott para a definição do
comportamento padrão do qual os atos de corrupção se desviam, há uma
forma de definir corrupção baseada no elemento cargo público. Nye define
corrupção como:
[...] um comportamento desviante dos deveres formais de uma função pú-
blica por conta de ganhos pecuniários ou de status voltados a interesses
privados (pessoais, familiares, grupo), ou que viola regras contra o uso
de certos tipos de influência pessoal. Esses comportamentos incluem su-
borno [...], nepotismo [...] e apropriação indevida de recursos públicos17.
Essa definição é reconhecida por estar centralizada no elemento cargo
público, diferentemente da proposta por Friedrich – que enfoca o interesse pú-
blico. No entanto, como observa Philp, é uma definição que implicitamente
reconhece o prejuízo ao interesse público quando coloca que o comportamento
desviante deve visar um ganho particular18.
Segundo Philp, tanto conceitos que tem como base o interesse público
quanto os que utilizam o cargo público enfrentam o mesmo tipo de proble-
ma: qual visão acerca da função pública ou interesse público será aceita?19 O
que é tido por normalidade da função pública? Se pressupormos que a fun-

15 GARDINER, John A. Defining Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON, Michael


(Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction Publishers, 2002.
16 PHILP, Mark. Conceptualizing Political Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON,
Michael (Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction Pu-
blishers, 2002, p. 46.
17 No original: “Corruption is behavior which deviates from the formal duties of a public role because
of private-regarding (personal, close family, private clique) pecuniary or status gains; or violates
rules against the exercise of certain types of private-regarding influence. This includes such behavior
as bribery (use of a reward to pervert the judgement of a person in a position of trust); nepotism
(bestowal of patronage by reason of ascriptive relationship rather than merit); and misappropriation
(illegal appropriation of public reources for private-regarding uses)” (NYE, Joseph S. Corruption
and Political Development: a cost-bennefit analysis. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON,
Michael (Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction Pu-
blishers, 2002, p. 284, tradução livre).
18 PHILP, Mark. Conceptualizing Political Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON,
Michael (Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction Pu-
blishers, 2002, p. 45.
19 PHILP, Mark. Conceptualizing Political Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON,
Michael (Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction Pu-
blishers, 2002, p. 45.

41
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

ção pública é regida por normas que buscam o alcance do interesse público,
falta, ainda, defini-lo.
Aumentando o debate, Mark Warren20, teórico da democracia, traz a
perspectiva de que as definições que tem como raiz o abuso da função pública
para benefícios privados são insuficientes para identificar e esclarecer quais
são as práticas de corrupção em instituições democráticas. Acrescenta que essa
concepção não se desenvolveu por meio de normas democráticas, mas sim em
respostas aos anseios liberais clássicos de garantir a separação entre a esfera
pública e privada. Warren reconhece a importância dessa definição, mas in-
dica que seus elementos devem ser lidos conjuntamente com os pressupostos
de uma democracia. Em uma construção democrática, corrupção passa a ser
entendida como “uma danosa forma de exclusão daqueles que têm o direito
de estar incluídos em decisões e ações coletivas. Corrupção envolve um tipo
específico de desempoderamento injustificável”21.
Apresentar as diferentes concepções do que pode caracterizar a corrupção
nos possibilita identificar, no debate público, as acepções que o conceito adquire
e os critérios para a definição de um padrão de comportamento, buscando susci-
tar a discussão sobre como um agente público deve orientar suas ações.
Há que se reconhecer, no entanto, que a responsabilização jurídica (seja
criminal, cível ou administrativa) depende da legislação estipular de forma es-
trita que a conduta do agente caracteriza-se como ato ilegal. A legislação em si
poderá ser questionada, pois ela pode ser resultado de um parlamento corrup-
to ou de uma ideologia nefasta, como no caso de regimes autoritários como o
regime nazista. Porém, quando não há a tipificação legal da conduta, o debate
fica em aberto para caracterizar a conduta como corrupta a partir de conside-
rações sobre desrespeito ao cargo público ou desvio do interesse público, ainda
que sem possibilidade de punição jurídica.
Com a apresentação da caracterização da corrupção, a seguir discutire-
mos os padrões de comportamento que devem pautar a conduta do agente
público de modo a agir de modo moralmente correto.

3. ÉTICA: QUAL É A FORMA CORRETA DE AGIR?


Quando se trata de discutir a corrupção, a questão da ética também é
frequentemente associada. Uma visão fatalista sobre o jeito brasileiro de lidar
com a coisa pública faz pressupor que é esse o código ético nacional. Assim,
20 WARREN, Mark E. What Does Corruption Mean in a Democracy? American Journal of Political
Science, v. 48, n. 2, abr. 2004.
21 No original: “Corruption is always a form of duplicitous and harmful exclusion of those who have
a claim to inclusion in collective decisions and actions. Corruption involves a specific kind of un-
justifiable disempowerment” (WARREN, Mark E. What Does Corruption Mean in a Democracy?
American Journal of Political Science, v. 48, n. 2, abr. 2004, p. 329, tradução livre).

42
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

predomina a noção de que o brasileiro é mesmo corrupto ou que suas ações


são, no mínimo, moralmente questionáveis.
Esse é o debate em torno do “jeitinho brasileiro”, uma forma especial
pela qual o brasileiro conseguiria resolver algum problema ou contornar uma
proibição. O jeitinho foi discutido, em especial, por Roberto da Matta, para
quem o jeitinho é uma característica própria do brasileiro, segundo o antro-
pólogo, sei que sou brasileiro “porque sei que não existe jamais um ‘não’
diante de situações formais e que todas admitem um ‘jeitinho’ pela relação
pessoal e pela amizade”22.
Para DaMatta, o jeitinho é a maneira utilizada pelo brasileiro para lidar
com um sistema social que se equilibra entre o indivíduo, enquanto sujeito uni-
versal submetido às leis que se aplicam a todos, e a pessoa, sujeito das relações
pessoais23. Assim, entre o “pode” e o “não pode” há gradações que se resol-
vem pelo jeitinho – essa solução não significa, necessariamente, uma ilegali-
dade, mas uma forma amigável de se encontrar uma resposta satisfatória ou
menos injusta para a situação em que se conciliam as necessidades da pessoa
(por exemplo um solicitante diante de um servidor público) e a lei universal.
Para DaMatta, essa forma de resolver os problemas é tipicamente brasileira,
pois, em países como França, Inglaterra ou Estados Unidos aplicar-se-ia a lei
universal24. DaMatta atribui essa aplicabilidade da lei nesses países não so-
mente a disciplina de seus cidadãos, mas também a confiança que eles têm nas
instituições. Essa confiança deriva do conteúdo das leis que são adequadas ao
bom senso e as regras sociais: “nessas sociedades, a lei não é feita para explo-
rar ou submeter o cidadão, ou como instrumento para corrigir e reinventar a
sociedade. Lá, a lei é um instrumento que faz a sociedade funcionar bem e isso
– começamos a enxergar – já é um bocado!”25. Ou seja, para DaMatta, o pró-
prio sistema jurídico brasileiro tem sua parcela de culpa por sua ineficácia ou
pelas práticas que fazem com que ele não seja observado em sua literalidade26.
A ética do jeitinho que, poderia, segundo DaMatta, caracterizar o modo
de agir do brasileiro não responde, no entanto, qual é a forma correta de
agir27. Como antropólogo, DaMatta está fazendo uma descrição de como o
brasileiro seria, descrição consideravelmente crítica, na medida em que ele
compara os cidadãos brasileiros com cidadãos de outros países, sugerindo
que a aplicação universal da lei verificada no estrangeiro é mais positiva ou
admirável do que o nosso jeitinho.

22 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 12.
23 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
24 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
25 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 65.
26 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
27 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

43
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

A pergunta sobre qual é a forma correta de agir é formulada pelo campo


do conhecimento que se dedica à reflexão sobre as normas morais que regem
a vida em sociedade, a filosofia, mais especificamente a própria ética, enten-
dida como subcampo da filosofia que reflete sobre as normas morais que
regem os comportamentos dos indivíduos.
Assim, dentro da ética, tem-se a ética normativa que procura justamente
responder a pergunta sobre qual é a forma correta de agir, enquanto a metaé-
tica busca compreender a natureza dos princípios morais e a ética aplicada
trata de resolver conflitos práticos com o uso dos princípios formulados pela
ética normativa28.
No campo da ética normativa, as principais correntes contemporâneas
que buscam fundamentar a reflexão ética são a teleológica, a deontológica e
a das virtudes. A ética teleológica determina o que é correto conforme sua fi-
nalidade, nela inclui-se o consequencialismo que se baseia nas consequências
da ação para apontar o que é correto. A ética deontológica apoia-se no dever,
ou seja, segundo as regras em que se fundamenta a ação. Por fim, a ética das
virtudes considera que uma ação moralmente correta depende do caráter vir-
tuoso do indivíduo29.
O principal representante da ética deontológica é o filósofo alemão
Immanuel Kant, que desenvolve uma ética do dever. Kant busca fundamen-
tar a ação moral por meio da razão, independentemente de suas consequên-
cias. Para Kant os preceitos da moralidade extraem-se da razão e não da ex-
periência (não da “observação de si mesmo e da própria animalidade”): “a
razão ordena como se deve agir, ainda que de tal se não encontrasse exemplo
algum”30. Uma ação moral, para Kant, é aquela praticada por dever, em con-
formidade com o imperativo categórico que prescreve uma ação boa em si e
não se refere a nenhuma outra determinação do arbítrio que não unicamente
à sua liberdade31. A principal formulação do imperativo categórico é “devo
proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxi-
ma se torne uma lei universal”32.

28 Cf. BORGES, Maria de Lourdes; DALL’AGNOL, Darlei; DUTRA, Delamar Volpato. Ética. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002.
29 Borges, Dall’agnol e Dutra (2002) dividem a ética normativa em teleológica (subdividida em con-
sequencialista e da virtude) e deontológica (BORGES, Maria de Lourdes; DALL’AGNOL, Darlei;
DUTRA, Delamar Volpato. Ética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002).
30 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes, Parte I – Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito.
Lisboa, Portugal: Edições 70, 2004, p. 20.
31 Nos dizeres de Kant: “O imperativo categórico (incondicionado) é o que pensa uma acção como objectiva-
mente necessária e a torna necessária, não de um modo mediato, graças à representação de um fim que se
possa alcançar com a acção, mas através da simples representação dessa própria acção (da sua forma), isto
é, imediatamente; nenhuma outra doutrina prática, excepto a que prescreve obrigação (a dos costumes),
pode apresentar como exemplo tais imperativos” (KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes, Parte I
– Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2004, p. 27).
32 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos costumes. Lisboa, Portugal: Edições 70,
2007, p. 33.

44
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

Como representante da ética teleológica podemos citar o utilitarismo, de-


senvolvido inicialmente por Jeremy Bentham e reformulado por John Stuart
Mill. Em termos gerais, para o utilitarismo dos autores apontados, uma ação
será moralmente correta quando ela produzir mais satisfação ou bem-estar
para o maior número de pessoas. Trata-se, assim, de uma análise das conse-
quências da ação para identificar sua correção moral.
Por fim, a ética das virtudes foi desenvolvida inicialmente por Aristóte-
les e retomada por autores como Alasdair McIntyre; para essa perspectiva o
que importa na qualificação moral de uma ação é o caráter virtuoso do agente
não propriamente a sua ação, mas se ele é um agente virtuoso que busca o
melhor para a vida em comunidade. São virtudes morais: “a bondade, o sen-
so de justiça, a sinceridade, a honestidade, a fidelidade, a lealdade”33. Para
Aristóteles, essas virtudes podem ser apreendidas pela prática e tornarem-se
um hábito do agente virtuoso.
Diante das diferentes correntes no campo da ética nem sempre é fácil
identificar qual é a ação moralmente correta. Além disso, nas sociedades con-
temporâneas estamos diante de um fenômeno identificado como uma crise de
referências morais que se dá quando a fundamentação religiosa do mundo dei-
xa de existir34 – trata-se de um fenômeno identificado por vários autores que
tentaram compreender a sociedade moderna, em especial, encontramos essa
análise, a partir de diferentes abordagens, em Emile Durkheim e Max Weber.
Para o sociólogo francês Émile Durkheim, por exemplo, com a divisão
social do trabalho forjada nas sociedades industriais, o padrão de referência
das regras morais que nas sociedades tradicionais era homogêneo deixa de
existir35. Preocupado em compreender a coesão social, Durkheim aponta que
nas sociedades marcadas pela solidariedade mecânica há uma coesão que re-
sulta de uma ligação direta do indivíduo à sociedade, por meio de um conjunto
de crenças e sentimentos comuns a todo o grupo36. Pode-se observar algo se-
melhante à solidariedade mecânica nos grupos religiosos. Com a diferenciação
social e cada vez maior divisão social do trabalho, no entanto, as sociedades
passam a se pautar em uma solidariedade orgânica que deriva da reciprocida-
de, da necessidade recíproca que cada indivíduo tem do trabalho alheio, não
mais de um conjunto de crenças compartilhado.
Já Max Weber aponta como o desenvolvimento do capitalismo conduz a
perda de referências por um processo de desencantamento do mundo em que

33 COSTA, Cláudio F. Razões para o utilitarismo: uma avaliação comparativa de pontos de vista éticos,
2002, p. 156.
34 Cf. TUGENDHAT, Emst. Lições sobre ética. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
35 DURKHEIM, Émile. Da divisão social do trabalho. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
36 DURKHEIM, Émile. Da divisão social do trabalho. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

45
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

a religião perde cada vez mais espaço37. Nesse contexto, a ciência ganha im-
portância, mas a ciência não pode responder aos indivíduos qual é o sentido da
vida, questão que era facilmente respondida pela religião. Assim, para Weber,
os indivíduos da sociedade moderna precisam se confrontar com essa perda de
sentido e, ao lidar com ela, podem optar de um lado pelo retorno a religião e,
de outro, contentar-se com a falta de sentido e buscar atuar de forma coerente
com o sistema de valores escolhido pelo indivíduo38.
Com o fim de uma fundamentação religiosa unificadora do mundo, vi-
sualiza-se a existência de uma significativa pluralidade de referências a va-
lores presentes nos distintos grupos sociais, alguns religiosos, outros não,
cada grupo adota diferentes perspectivas sobre a moralidade. Essa situação
é identificada pelo filósofo político John Rawls como o “fato do pluralismo”
que é o fato de existir uma radical diversidade de convicções morais com as
quais se identificam os integrantes das sociedades democráticas contemporâ-
neas39, nas palavras de Rawls:
[...] a diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes
e razoáveis não é uma simples condição histórica que pode desaparecer
logo; é um traço permanente da cultura pública da democracia. Sob as
condições políticas e sociais asseguradas pelos direitos e liberdades bási-
cos de instituições livres, a diversidade de doutrinas abrangentes confli-
tantes e irreconciliáveis – e, mais ainda, razoáveis – surgirá e persistirá,
se é que essa diversidade já não se verifica40.
O filósofo escocês Alasdair MacIntyre, por sua vez, explica o desacordo
moral que prevalece nas sociedades modernas como incomensurável, na me-
dida em que partimos de conceitos morais diferentes que são inconciliáveis,
como a contraposição entre equidade e liberdade no debate sobre acesso
aos bens sociais41.
Um outro aspecto fundamental dessa crise de valores é a prevalência
do individualismo. O individualismo é a característica central do iluminis-
mo e da defesa dos direitos individuais, trata-se de um passo fundamental
na filosofia política para valorizar o ser humano como ser dotado de valor
intrínseco e, assim, levantar uma barreira a possíveis arbitrariedades do Es-
tado face ao indivíduo. O outro lado do individualismo é o desenvolvimen-
to do egoísmo que faz com que cada indivíduo atue pensando unicamente
nos seus interesses próprios, sem qualquer preocupação com a coletividade
ou com os demais indivíduos.
37 SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Durkheim, Weber e Marx. 2. ed. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2010.
38 Cf. SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Durkheim, Weber e Marx. 2. ed. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2010.
39 SILVEIRA, Pablo da. John Rawls y la justicia distributiva. Madri: Campo de ideas, 2003, p. 19-20.
40 RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000, p. 80.
41 MACINTYRE, Alasdair. Tras las virtud. Barcelona: A & M Gràfic, 2004, p.18.

46
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

Segundo David Trubek, pode-se compreender a partir de Max Weber


que o egoísmo é a característica crucial das sociedades capitalistas em que
todas as demais formas de controle social (religião, moral e tradição) ruí-
ram dando lugar ao egoísmo irrestrito, por isso, o direito é a única forma
capaz de lidar com os conflitos egoístas42:
Tradições não podem ser responsáveis por restringir comportamentos
egoístas porque o mercado destrói as bases culturais e sociais das tradi-
ções. Similarmente, o surgimento da economia de mercado arruína gru-
pamentos sociais que poderiam servir de foco para a aplicação de padrões
convencionais. De fato, a mera existência do tipo de conflito que descrevi
é evidência do declínio das tradições e dos hábitos. Sobra apenas o direito
para preencher este vácuo normativo; a coação jurídica é essencial porque
não há outra forma disponível de controle43.
Nesse contexto, marcado pelo pluralismo, pelo desacordo moral, mas
principalmente pelo egoísmo, precisamos encontrar, como meio de se assegu-
rar a estabilidade da vida política nas sociedades democráticas, um ponto de
referência comum para a atuação dos agentes públicos. Esse ponto de referên-
cia é, como aponta Trubek, o direito44.
Na busca desse ponto de referência, encontramos no sistema jurídico bra-
sileiro a positivação dos princípios que devem pautar a atuação dos agentes
públicos. A busca na legislação para a referência de atuação moral dos indi-
víduos pauta-se, estritamente, no reconhecimento do fato do pluralismo, no
entanto, não se trata de uma adesão irrestrita à lei como se ela devesse ser
obedecida porque é moralmente correta. Rejeitamos integralmente aquilo que
Norberto Bobbio nomeou de positivismo como ideologia45. Não reconhecemos no
direito a emanação da moral simplesmente porque é direito, mas buscaremos avaliar a
partir dos estudos da Ética os padrões de comportamento do agente público estipulados
na nossa legislação atual, em especial na Constituição Federal de 1988.
Também como explica Gustav Zagrebelsky, o pluralismo político e o relativismo46
caracterizam as sociedades modernas ocidentais, por isso, não cabe à Constituição ser

42 TRUBEK, David. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo (1972). In: RODRIGUEZ,
José Rodrigo (Org.). O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro – textos selecio-
nados de David Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009.
43 TRUBEK, David. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo (1972). In: RODRIGUEZ,
José Rodrigo (Org.). O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro – textos selecio-
nados de David Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 34.
44 TRUBEK, David. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo (1972). In: RODRIGUEZ,
José Rodrigo (Org.). O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro – textos selecio-
nados de David Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009.
45 Cf. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
1995, p. 223 et seq.
46 Zagrebelsky assim caracteriza nossas sociedades plurais: “marcadas por la presencia de una diversi-
dade de grupos sociales con interesses, ideologias y proyectos diferentes, pero sin que ninguno tenga
fuerza suficiente para hacerse exclusivo o dominante y, por tanto, estabelecer la base material de la
soberania estatal en el sentido del passado” (ZAGREBELSKY, G. El derecho ductil. Ley, derechos y
justicia. 10. ed. Trad. Marina Gascón. Madrid: Trotta, 2011, p. 13).

47
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

um projeto de vida comum pré-determinado, mas um documento que visa estabelecer


as condições de possibilidade para a realização da vida plural nas sociedades modernas.
A Constituição é uma plataforma de partida a partir da qual se inicia a competição para
imprimir ao Estado uma orientação em um ou outro sentido, no âmbito das possibilida-
des oferecidas pelo compromisso constitucional47.
A seguir, vamos apresentar esses princípios e analisá-los sob o ponto de vista da
ética. Trata-se, como veremos, de uma mescla de diferentes correntes éticas: ética deon-
tológica, como teleológica e das virtudes.
4 EXISTE UMA MORAL DO AGENTE PÚBLICO NO BRASIL?
Diante do desacordo moral que é a marca das sociedades contemporâ-
neas e do generalizado egoísmo que caracteriza a atuação dos indivíduos,
procuraremos apontar de que maneira o próprio direito apresenta-se como
um padrão de comportamento que pode servir como referência de comporta-
mento e, assim, contribuir para barrar os atos de corrupção da Administração
Pública brasileira. Essa análise será feita a partir dos princípios do Direito
Administrativo.
A busca da referência nos princípios se explica pois eles caracterizam a
grande mudança sofrida pela Teoria do Direito, na passagem do Estado de
Direito para o Estado Constitucional, segundo Zagrebelsky48.
Para Carla Faralli, a distinção entre regras e princípios que é adotada pelo
constitucionalismo, foi precedida pelo Direito como integridade de Dworkin,
segundo o qual o direito é uma “complexa atividade de interpretação que
não é deixada à discricionariedade dos juízes, mas firmemente ancorada nos
princípios, fruto de um preciso desenvolvimento histórico”49. Ela explica que
Dworkin questiona a separação positivista entre direito e moral e afirma que
Não é possível reduzir os ordenamentos jurídicos a meras estruturas nor-
mativas e que, ao lado das regras (rules), existem os princípios (princi-
ples), que vão além do direito estatuído, na medida em que se referem
a fins (como o bem-estar da comunidade) ou a valores (entre os quais os
direitos individuais).50
Segundo Dworkin), os princípios são padrões que devem ser observados
por serem uma exigência de justiça ou de retidão (moral)51.

47 Cf. ZAGREBELSKY, G. El derecho ductil. Ley, derechos y justicia. 10. ed. Trad. Marina Gascón.
Madrid: Trotta, 2011, p. 13.
48 ZAGREBELSKY, G. El derecho ductil. Ley, derechos y justicia. 10. ed. Trad. Marina Gascón. Ma-
drid: Trotta, 2011.
49 FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2006, p. 5.
50 FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2006, p. 4.
51 Dworkin distingue os princípios de políticas: “Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que esta-
belece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político
ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que

48
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

Os princípios são realidades heterogêneas em relação às [regras], mas


são complementares a elas no ordenamento jurídico: as regras são váli-
das enquanto normas estabelecidas, e podem ser mudadas somente por
força de uma deliberação, enquanto os princípios são válidos enquanto
correspondem a exigências morais sentidas num período específico, e
seu peso relativo pode mudar no decorrer do tempo. Os tribunais devem
recorrer a estes últimos para resolver os casos difíceis (hard cases), aos
quais não seria possível aplicar uma regra sem cometer uma injustiça52.
A seguir, analisamos os princípios do Direito Administrativo, de modo
a compreender como podem ser o ponto de referência do comportamento dos
agentes públicos.

4.1. A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO


A supremacia do interesse público configura-se como um princípio es-
truturante do Direito Administrativo53. Entretanto, não são poucas as críticas
feitas à utilização desse princípio como orientador da atividade administrativa
devido à indeterminação de sentido que ele carrega54. Em um breve estudo
sobre o desenvolvimento do conceito “interesse público” é possível verificar
não apenas a inexistência de consenso sobre seu significado, como a extensão e
importância dessa discussão no campo da filosofia política.
A noção de interesse em um sentido político surge com a modernida-
de, principalmente a partir da desvinculação da política aos valores religio-
sos. Segundo Elisabeth Zoller, atualmente, a “coisa pública” é equacionada ao
“interesse público”, portanto, apesar de essa discussão não ser propriamente
jurídica, para o estudo do direito público é necessário que se estabeleça um
critério para a distinção de interesse público e privado55. Ao tratar do assunto,
Zoller expõe duas principais tendências da filosofia política que versam sobre
o conceito de interesse público: o liberalismo e o republicanismo.
Na teoria do liberalismo, interesse público nada mais é do que a agrega-

algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Denomino ‘princípio’ um padrão
que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou
social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra
dimensão da moralidade. Assim, o padrão que estabelece que os acidentes automobilísticos devem
ser reduzidos é uma política e o padrão segundo o qual nenhum homem deve beneficiar-se de seus
próprios delitos é um princípio.” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2002, p. 36).
52 FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2006, p. 5.
53 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros,
2011.
54 Nesse sentido, ver: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O conceito de Interesse Público no Estado
Constitucional de Direito: o novo regime jurídico administrativo e seus princípios constitucionais
estruturantes. 379 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciên-
cias Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2014; STRECK, Lenio Luiz.
Ministros do STJ não devem se aborrecer com a lei. Consultor Jurídico, 7 de jun. de 2012.
55 ZOLLER, Elisabeth. Introduction to Public Law: A Comparative Study. Leiden: Martinus Nijhoff,
2008, p. 12.

49
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

ção de interesses privados. É um conceito associado à visão de Jeremy Bentham


de que “a comunidade constitui um corpo fictício, composto de pessoas indi-
viduais que se consideram como constituindo os seus membros. Qual é, neste
caso, o interesse da comunidade? A soma dos interesses dos diversos membros
que integram a referida comunidade”56. O interesse individual, na concepção
de Bentham, é o que tende a aumentar a soma total dos prazeres do indivíduo
ou o que tende a diminuir a soma total de seu sofrimento57. Deriva disso a con-
clusão expressa por Bentham de que algo se configura como interesse público
quando possui uma maior tendência de aumentar a felicidade da comunidade
que de diminuí-la, e, que a identificação da felicidade da comunidade depende
da identificação do interesse de cada um de seus membros58. A teoria liberal
do interesse público, portanto, é uma teoria voltada à garantia da proteção dos
interesses de cada indivíduo e prioriza a liberdade59.
Em uma concepção do republicanismo, por sua vez, considera-se que o
interesse público não é redutível a uma soma de interesses privados, mas se
configura como os interesses que os membros de uma sociedade compartilham
ou que decidem considerar como “comuns” em um contrato social que forma a
república60. É uma ideia baseada na teoria do Contrato Social escrita por Rou-
sseau de que a vontade geral consiste naquela que tende ao interesse comum,
ou seja, a um interesse universalmente compartilhado. Vontade geral é incon-
fundível com uma soma de vontades particulares, porquanto estas tendem a
interesses particulares. Para Rousseau a identificação da vontade geral não é
baseada em números, mas sim em um elemento comum que une os interesses
particulares, qual seja: a comum conservação e o bem-estar geral61. Elisabeth
Zoller indica que a noção de interesse público, em um sentido republicano,
está no centro do modelo republicano Francês, o qual tem seu fundamento no
seguinte enunciado “Qualquer conjunto de pessoas que forma uma nação ne-
cessariamente forma uma associação a qual tem como objeto a ‘coisa pública’.
Existe, portanto, um interesse público separado de interesses privados e que
forma uma realidade sui generis”62. Ao contrário da teoria do liberalismo, a

56 BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. Tradução: Luiz João
Baraúna. In: Os Pensadores, v. 34. São Paulo: Abril S. A. Cultural e Industrial, 1974, p. 10.
57 BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. Tradução: Luiz João
Baraúna. In: Os Pensadores, v. 34. São Paulo: Abril S. A. Cultural e Industrial, 1974, p. 10.
58 BENDITT, Theodore M. The Public Interest. Philosophy & Public Affairs, v. 2, n. 3, p. 291-311,
spring, 1973.
59 ZOLLER, Elisabeth. Introduction to Public Law: A Comparative Study. Leiden: Martinus Nijhoff,
2008.
60 ZOLLER, Elisabeth. Introduction to Public Law: A Comparative Study. Leiden: Martinus Nijhoff,
2008.
61 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social: Princípios de Direito Político. Tradução de Antônio
P. Machado. Estudo crítico de Afonso Bertagnoli. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
62 No original: Any gathering of people that forms a nation necessarily forms an association whose
object is a “public thing”. There exists therefore a public interest, separate from private interest and
forming a reality sui generis (ZOLLER, Elisabeth. Introduction to Public Law: A Comparative Stu-
dy. Leiden: Martinus Nijhoff, 2008, p. 14, tradução livre).

50
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

teoria republicana do interesse público é voltada à garantia de proteção dos


interesses comuns, mesmo que contrarie interesses privados.
Saber de qual interesse público se fala, se de algum desses, é um pon-
to crucial para a justificação desse princípio como orientador de condutas do
agente público, já que concepções diferentes podem levar a respostas distintas
quando a pergunta é “qual a forma correta de agir?”. A promoção do indivi-
dualismo, um dos pontos centrais da teoria liberal, traz o risco da formação
de uma sociedade marcada pelo egoísmo, conforme já foi abordado, em que a
defesa de direitos e interesses coletivos parece apenas se justificar na medida
em que promove interesses individuais dos membros da comunidade.
A Constituição Federal de 1988 não nos parece ser pautada em uma con-
cepção liberal do interesse público, mas sim numa republicanista, visto que
em diversos pontos de seu texto normativo prevê direitos que ultrapassam as
questões individuais, como, por exemplo, a função social da propriedade, a
redução de desigualdades sociais e regionais, a defesa do meio ambiente e a
defesa do consumidor. Portanto, parece mais adequado considerar que o con-
ceito de interesse público que serve de orientação para a atividade do servidor
público seja entendido como um conceito de ultrapassa a visão de um simples
agregado de interesses individuais e com eles não se confunde.

4.2.OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO


COMO NORTEADORES DA ATUAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS PARA
CONCRETIZAR O INTERESSE PÚBLICO
A Constituição Federal de 1988 dedicou um capítulo à Administração Pú-
blica (Capítulo VII do Título III) e, no art. 3763, deixou expressos os princípios
que devem observados por todos os agentes públicos responsáveis por qual-
quer atividade da Administração Pública no Brasil – Legalidade, Impessoali-
dade, Moralidade, Publicidade e Eficiência.
Nesse sentido, teóricos do Direito Administrativo como José dos Santos
Carvalho Filho afirmam que só se poderá considerar válida a conduta adminis-
trativa se estiver compatível com os princípios constitucionais64.
A partir da análise desses princípios podemos enunciar quais são as re-
gras que os agentes públicos precisam observar em sua atuação prática para
que ajam de forma moralmente correta.
O primeiro desses princípios, a legalidade, é considerado a diretriz básica

63 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, mora-
lidade, publicidade e eficiência [...].” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
64 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2014.

51
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

da Administração: toda e qualquer atividade administrativa deve ser autoriza-


da por lei. Esse princípio se origina com o próprio Estado de Direito, que exige
a submissão do Estado às próprias leis que edita e implica em restrição do
arbítrio dos agentes públicos, na medida em que devem sempre cumprir a lei.
Na comparação de Hely Lopes Meirelles, diz-se que enquanto os indi-
víduos no campo privado podem fazer tudo o que a lei não veda, o adminis-
trador público só pode atuar onde a lei autoriza: “particular é lícito fazer tudo
que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei
autoriza. A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’; para o administra-
dor público significa ‘deve fazer assim’.”65
Pode-se afirmar que a exigência de legalidade corresponde a ética do de-
ver, os agentes públicos têm como dever respeitar a lei e devem agir conforme
esse dever em toda e qualquer situação em que representam o Estado.
Já o princípio da impessoalidade impõe o tratamento igualitário às pes-
soas que se encontrem em idêntica situação jurídica. Trata-se de uma vedação
expressa da prática descrita por Roberto DaMatta como “jeitinho brasileiro”
– o agente público não pode resolver mais rapidamente, dar maior atenção
ou facilitar qualquer coisa para algum indivíduo em decorrência das relações
pessoais que ele possui66.
Na concretização desse dever, o agente público deve observar que nin-
guém pode ser favorecido em detrimento de outrem devido às suas relações
pessoais ou sua posição na hierarquia social, da mesma maneira, ninguém
pode ser prejudicado devido a essas mesmas características.
O fundamento da impessoalidade coaduna-se, novamente, com a ética
deontológica: o agente público tem o dever de impessoalidade e deve agir em
conformidade com esse dever.
O terceiro princípio consagrado na Constituição Federal é a moralidade. A
dificuldade em conceituar esse princípio relaciona-se com as características da
sociedade moderna, o fato do pluralismo e o desacordo moral em que vivemos.
Enquanto para os indivíduos adeptos de uma ética liberal uma ação moral é
aquela que respeite sempre a liberdade de escolha individual, para outros uma
ação moral precisa considerar também a igualdade, não somente a liberdade.
Na tentativa de conceituar esse princípio, buscamos as referências nas
obras de Direito Administrativo.
José dos Santos Carvalho Filho se aproxima da ética das virtudes ao
afirmar que a moralidade é um princípio indissociável da figura do bom ad-

65 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23. ed. São Paulo: Editora RT, 1997,
p. 85.
66 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

52
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

ministrador67. Bom administrador seria o agente público virtuoso que é ho-


nesto e busca o interesse público, não seu próprio interesse privado ou servir
a interesses escusos.
A administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que a discus-
são sobre a imoralidade administrativa se desenvolveu ligada ao debate sobre
desvio de poder, quando os agentes se utilizariam de meios lícitos para obter
fins irregulares, afirma, assim, que a moralidade estaria na intenção do agen-
te68. No entanto, o problema não está na intenção do agente, mas no fim da
ação que seria moralmente correta se objetivasse realizar o que a lei previa ou
o interesse público. A imoralidade, assim, ocorreu porque a ação objetivava
atingir um objetivo vedado pela lei ou um objetivo que não se coaduna com
o interesse público, por isso, pode-se afirmar que esse conceito de moralidade
corresponde à ética teleológica, correspondente aos fins.
Por fim, Di Pietro conclui que moralidade diz respeito: “a moral, os bons
costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equi-
dade, a ideia comum de honestidade”69. Com relação à “moral”, “bons costu-
mes” e “justiça” prevalece o desacordo moral, não há uma conceituação unívo-
ca. Já quando a autora se refere às “regras da boa administração” quer apontar
certas práticas, sem detalhar exatamente o que elas caracterizam. Ademais, ao
tratar da “honestidade”, a autora adota uma perspectiva da ética de virtudes,
uma atuação moral será do agente público que seja honesto70.
Ainda, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que moralidade corres-
ponde a lealdade e boa-fé:
Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de
proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sen-
do-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia,
produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de
direitos por parte dos cidadãos71.
A partir dessa citação, pode-se afirmar que, para Mello, uma atuação mo-
ral do agente público exige fundamentalmente o caráter virtuoso do agente
que tenha a virtude da lealdade, boa-fé, sinceridade e lhaneza. Trata-se, assim,
uma característica de caráter a se exigir desses agentes públicos.
O próximo princípio implica em um dever: a publicidade. Cabe aos agen-
tes públicos conferirem a mais ampla divulgação possível dos atos pratica-

67 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2014.
68 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
69 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 79.
70 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
71 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros,
2003, p. 109.

53
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

dos72. Dar publicidade aos atos, no entanto, não se justifica como um dever
por si só, mas por suas consequências, pois é a publicidade que possibilita
que sejam feitos os controles de legitimidade e legalidade dos atos por parte
dos administrados.
Assim, pode-se afirmar que a exigência de publicidade se fundamenta
tanto na ética do dever (publicidade como dever de transparência), como na
ética dos fins, na medida em que tornar públicos os atos da Administração é
um meio de possibilitar seu controle.
Dessa exigência decorrem o direito de petição aos órgãos públicos e o di-
reito de acesso a informação73, regulamentado pela Lei nº 12.527, de 18.11.2011
(Lei de Acesso à Informação)74.
A existência de exceções à regra da publicidade reforça ainda mais o seu
caráter teleológico, caso se tratasse de um dever, dificilmente comportaria ex-
ceções. No entanto, como tem em vista a realização de um fim – o controle dos
atos administrativos, comporta as exceções que são previstas na Constituição
Federal que resguarda o sigilo de informações quando se revela indispensável
à segurança da sociedade e do Estado (art. 5º, XXXIII, da CF) e permite que a
lei limite a publicidade dos julgamentos para que, em certos atos, só estejam
presentes as partes e seus advogados ou apenas estes (art. 93, IX, da CF)75.
Por fim, o último princípio previsto na Constituição é o da eficiência, que
foi acrescentado pela Emenda Constitucional nº 19 de 199876, que realizou o
que ficou conhecido como Reforma Administrativa. Com essa Emenda, o Bra-
sil passou de um modelo de Administração Burocrática – implantada no Bra-

72 Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2014.
73 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasilei-
ros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos
públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão presta-
das no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível
à segurança da sociedade e do Estado; (...) XXXIV – são a todos assegurados, independentemente
do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra
ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de
direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal” (BRASIL. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
74 BRASIL. Lei n.º 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no
inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal;
altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e
dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.
75 “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da
Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei
limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes,
em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o
interesse público à informação” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
76 BRASIL. Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998. Modifica o regime e dispõe sobre
princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e
finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências.

54
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

sil em 1937, com Getúlio Vargas – para a Administração Gerencial.


A eficiência é um conceito que surgiu na economia e foi sendo incorpora-
da a outros campos, como o Direito. Na economia, a eficiência possui distintos
significados, desde a eficiência alocativa, adotada pela Análise Econômica do
Direito, que diz respeito à alocação de recursos para produzir maximização
de riquezas. A eficiência ou ótimo de Pareto diz que uma situação é eficiente
quando não se pode melhorar a condição de alguém sem piorar a de outrem.
O problema do conceito de eficiência alocativa é que não questiona a dis-
tribuição inicial de recursos e pode, ainda, favorecer o aumento da desigualda-
de na sociedade, na medida em que se preocupa somente com a maximização
total da riqueza na sociedade, mas não com sua distribuição.
Quando se confronta esse conceito de eficiência com a Constituição de
1988 é difícil encontrar compatibilidade, pois a constituição consagra a justiça
distributiva e os direitos fundamentais como seus fundamentos e objetivos.
O conceito de eficiência adotado pelos teóricos do Direito Administrativo
é mais próximo da eficiência produtiva, um conceito também encontrado na
economia, mas que se refere ao uso dos recursos do modo menos dispendioso
possível, por meio de uma combinação ótima dos recursos já existentes, assim
como do uso da melhor tecnologia disponível.
Os teóricos do Direito Administrativo conceituam eficiência no sentido
de eficiência produtiva, como podemos ver a seguir. Para Carvalho Filho: “O
núcleo do princípio é a procura de produtividade e economicidade e, o que é
mais importante, a exigência de reduzir os desperdícios de dinheiro público,
o que impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e ren-
dimento funcional.”77.
Quando se busca pensar a eficiência em termos de ética normativa, é pos-
sível aproximá-la da ética teleológica, pois agir de forma eficiente é assegurar
que a prestação de serviços públicos se dará de modo econômico, com menos
dispêndio e melhor aplicação dos recursos públicos. Por isso, trata-se de anali-
sar as consequências de cada atuação do agente público por meio de conside-
rações quanto aos custos e benefícios dessa atuação.
Após a análise de cada um dos princípios nos quais deve se pautar o
agente público para uma atuação ética, concluímos que se trata de uma éti-
ca que congrega diferentes correntes da ética normativa, tanto deontológica,
como teleológica e das virtudes. O desafio do agente público é conciliar, na
realidade empírica, cada um desses mandamentos constitucionais.

77 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2014, p. 31.

55
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

4.3. O DESRESPEITO À ÉTICA DO AGENTE PÚBLICO COMO FORMA DE


CORRUPÇÃO: QUANDO PREVALECE O INTERESSE PRIVADO
Dito isso, pode-se resumir que apesar de na sociedade atual não existir
mais uma moral compartilhada que direcione as ações de todos, o agente pú-
blico pauta (ou ao menos deveria) suas práticas de acordo com os princípios
constitucionais da Administração, de forma que o objetivo da administração
pública deve visar sempre à realização de interesses públicos, não privados78.
Não obstante as diferentes éticas encontradas mediante a análise dos prin-
cípios, conforme demonstrado, observa-se não ser desse impasse que se abre
uma janela para a prática de um ato corrupto. Os dilemas que o agente público
enfrenta ao ter que escolher primar por este ou aquele princípio, ou quando
decide atuar conforme a ética deontológica, consequencialista ou teleológica,
tratam-se de opções que refletem estratégias. Aliás, essa discricionariedade do
agente público é característica essencial e inclusive necessária na gestão da ad-
ministração pública, servindo para o administrador eleger, “segundo critérios
consistentes de razoabilidade, um, dentro pelo menos dois comportamentos
cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a so-
lução mais adequada a satisfação da finalidade legal”79.
Portanto, o problema não reside tanto na falta de uma moral comparti-
lhada, ou mesmo, na possibilidade de se escolher essa ou aquela ética; não há
dúvidas sobre qual é a forma correta de agir: respeitar a supremacia do interes-
se público face ao privado. Inclusive, destaca-se o poder que o agente público
possui fundamenta-se por conta de sua função representativa, e seu uso deve
se dar unicamente para atender o interesse da coletividade80. Dessa forma, ao
permitir que o interesse privado prevaleça face ao interesse, o agente público
pratica um ato corrupto que desrespeita os princípios basilares da Administra-
ção Pública. A partir disso, cabe retomar alguns conceitos que foram tratados
no início desse texto e também buscar identificar elementos que podem influir
nos atos do agente público e favorecer que este pratique um ato corrupto.
Se a corrupção pode ser definida como um comportamento desviante do
padrão81, infere-se, portanto, que o meio em que o comportamento se insere
interfere na forma em que dado meio apreciará aquele agir. Assim, um ato cor-
rupto pode causar maior aversão em uma sociedade que não está familiarizada

78 ASSMANN, José Selvino. Filosofia e ética. Florianópolis: Departamento de Ciências da Adminis-


tração/UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009.
79 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle judicial. 2. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2012, p. 54.
80 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle judicial. 2. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2012.
81 SCOTT apud GARDINER, John A. Defining Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNS-
TON, Michael (Org.). Political corruption: Concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasac-
tion Publishers, 2002.

56
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

com tal comportamento do que em uma comunidade onde frequentemente são


descobertos esquemas de corrupção.
A identificação do Brasil com esta última exemplificação permite perce-
ber que pequenos atos corruptos já não causam tanto impacto ou na socieda-
de brasileira. É importante diferenciarmos que com pequenos atos corruptos
estamos nos referindo às trocas de favores entre cidadãos e agentes públi-
cos decorrentes de relações pessoais, como, por exemplo, agendamento de
consultas médicas em postos de saúde, alocação de cargos comissionados,
disponibilização de leitos em hospitais, etc. De outro modo, por grandes atos
corruptos queremos aludir aos esquemas de corrupção milionários e bilio-
nários. Quanto a esses grandes atos corruptos, observa-se que da sua des-
coberta decorre uma reação social que clama pela punição dos seus autores;
todavia, tal desejo não vem acompanhado de um sentimento de surpresa ou
estranheza frente a tais acontecimentos.
A frequência com que os atos corruptos afloram no Brasil torna-se um dos
principais motivos para o desinteresse dos cidadãos na política. Nesse ponto é
difícil apontar se a apatia da sociedade com os assuntos políticos é produto ou
causa para o crescimento de um comportamento corrupto do agente público
– talvez os dois. Todavia, é certo que essa apatia pode favorecer (ou agravar)
a criação (ou a expansão) de um ambiente público propício para que o agente
coloque o interesse particular sobre o público sem muitos constrangimentos,
haja vista que a baixa participação da sociedade na esfera pública resulta numa
sociedade que não tem por hábito fiscalizar gastos públicos, acompanhar vota-
ções, atividades dos representantes eleitos e afins. No entanto, a apatia política
da sociedade brasileira aparece como um dentre vários fatores que contribuem
para a perpetuação de práticas corruptas, de forma que é preciso identificar
outras condições que, a nosso ver, também contribuem para esse quadro.
De início, cabe citar novamente o crescimento do egoísmo e do indivi-
dualismo nas sociedades capitalistas em detrimento do sentimento de coletivi-
dade; coletividade essa que cada vez mais é esquecida, como se não fossemos
cidadãos com deveres e direitos perante a sociedade à qual pertencemos. Esse
descolamento entre a figura do sujeito e do cidadão resulta num conjunto de
indivíduos que não se enxerga mais como coletivo, como sociedade e, a partir
disso, a falta de interesse e o descaso com a coisa pública abre espaço para que
interesses próprios e individuais prevaleçam. Nesse sentido,
Em tempos nos quais a política foi transformada em simples meio para
o bom funcionamento da economia, em tempos nos quais os interesses
individuais se sobrepõem de forma evidente a todo e qualquer interesse
coletivo, também a administração pública tem dificuldades enormes para
manter os interesses públicos acima dos interesses privados hegemônicos
na sociedade. Quando as relações humanas, na sua generalidade, são mar-

57
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

cadas pelo individualismo, seguramente também os administradores pú-


blicos e a administração pública como tal sofrem as mesmas tendências82.
Observa-se, então, a desvalorização do princípio da supremacia do in-
teresse público, pilar essencial não só do Direito Administrativo, mas antes,
na própria forma republicana de governo. Esse é um dos fatores que, a nosso
ver, facilita ao agente público privilegiar interesses próprios do que resguar-
dar a coisa pública; por isso, a necessidade de retorno do republicanismo e a
ascensão do neorrepublicanismo, tendo em conta a “necessidade de fortalecer
o senso da res pública, da coisa pública, entre os cidadãos”83.
Outrossim, a perda do padrão de referência de critérios morais84 impos-
sibilita que haja uma distinção padrão entre o que é correto ou errado; o que é
aceitável ou inaceitável. Isso reflete-se na conduta pessoal e também profissio-
nal do sujeito, inclusive aquele que é um agente público – até porque não há
como separar as duas coisas85. Todavia, tendo em conta que não há mais um
padrão de atuação, isso oportuniza que os comportamentos corruptos não se-
jam mais vistos como tão gravosos, do ponto de vista moral e da rejeição social.
Também, a própria concepção que o povo brasileiro tem de si mesmo co-
labora para a “proliferação” dessas práticas corruptas. O “jeitinho brasileiro”
de burlar regras e conseguir benefícios por meio de seus laços afetivos ou de
poder caracteriza nossa sociedade e não pode ser ignorado quando se realiza
uma análise sobre corrupção. Todavia, é necessário ressaltar que não se des-
consideram os estudos que questionam essa percepção86. Adiante, as relações
pessoais adentram a esfera política de forma que
[...] recorrer aos parentes, conhecidos, amigos e aliados políticos, entre ou-
tros, a fim de que sejam obtidos certos benefícios é algo que faz parte da
série de trocas que ocorre entre as pessoas assim vinculadas. Por se viver
como que imerso neste modo de agir, concebe-se como algo natural e le-
gítimo acionar as relações pessoais quando está em causa a busca de um
tratamento particularístico87.
Essa naturalização resulta numa tolerância na prática de pequenos atos
corruptos, como aqueles mencionados anteriormente, de forma que difi-

82 ASSMANN, José Selvino. Filosofia e ética. Florianópolis: Departamento de Ciências da Adminis-


tração/UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009, p. 144.
83 PINZANI, Alessandro. Republicanismo(s), democracia, poder. Veritas: Revista da Filosofia da PU-
C-RS, Porto Alegre, v. 52, n. 1, p.5-14, mar. 2007, p. 5.
84 MARQUES, Ramiro. A ética de Alasdair Macintyre, sem data <http://www.eses.pt/usr/ramiro/docs/
etica_pedagogia/A%20%C3%89TICA%20DEALASDAIR%20MACINTYRE%5B1%5D.pdf>.
Acesso em: 25 set. 2017..
85 ASSMANN, José Selvino. Filosofia e ética. Florianópolis: Departamento de Ciências da Adminis-
tração/UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009.
86 Nesse sentido: SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular
pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.
87 BEZERRA, Marcos Otávio. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Relume-dumará, 1995, p. 179.

58
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

cilmente se enxerga na realização destes uma conduta grave ou reprovável.


Contudo, ao se deparar com grandes esquemas de corrupção, esses mesmos
que se aproveitaram de suas relações pessoais para obter vantagens na esfera
da administração pública não demoram em fomentar um discurso hipócrita
e punitivista88; se satisfazem assistindo o outro ser investigado e processado,
muitas vezes sequer sem observância das garantias legais que possui direito.
A reflexão sobre a gravidade da suspensão de garantias constitucionais e pro-
cessuais fica em segundo plano; não se considera que isso irá me afetar, pois
o outro que é corrupto, nunca eu; é o outro que merece ser punido, não eu; a
conduta do outro é que é grave, não a minha. Assim,
Queremos uma polícia impecável, correta, justa, mas não queremos que
nossos amigos ou correligionários sejam presos; louvamos a maior rigidez
das leis contra a impunidade, mas fazemos de tudo para lutar pela própria
impunidade e pela impunidade de minha corporação89.
Observa-se ainda que quando o particular ocupa um cargo de agente
público, é uma prática comum que o mesmo enxergue a si como proprietá-
rio da coisa pública, avocando-se com o poder de conceder serviços, dispor
sobre bens públicos e conceder favores a seus pares90, de forma que “tomar
posse” num cargo público muitas vezes corresponde ao significado literal
da expressão91. Isso permite que as relações da vida pessoal do agente in-
terfiram nas suas escolhas profissionais, espaço em que deveria imperar a
objetividade e a legalidade.
Além das relações pessoais ganharem espaço na esfera pública, denun-
ciar uma prática corrupta pode gerar retaliações para quem realiza a denún-
cia, principalmente quando se trata de uma relação hierarquizada92. Assim, o
servidor sabe que deveria denunciar, mas provavelmente sofrerá represálias;
do mesmo modo, o superior hierárquico sabe que pode ser denunciado, mas
possivelmente seus subordinados não o farão porque temem as consequências.
O uso do poder como forma de ameaça caso algum subordinado denuncie as
88 Importante ressaltar que esse discurso punitivista vem inclusive respaldado por iniciativas de órgãos
jurídicos federais, como por exemplo, o projeto de lei pensado pelo MPF visando combater à corrup-
ção através de um pacote nomeado de “10 Medidas Contra a Corrupção” que teve ampla aceitação
popular mas que, do ponto de vista jurídico, representa um retrocesso jurídico e desrespeita diversos
dispositivos constitucionais (BRASIL. Congresso. Senado. Projeto de Lei nº 4850, de 29 de março de
2016. Estabelece medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate
o enriquecimento ilícito de agentes públicos. Brasília). Nesse sentido, ver: BOLETIM: Publicação do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM. São Paulo, v. 299, n. 277, dez. 2015. Disponível
em: <http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/pdfs/Boletim277.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.
89 ASSMANN, José Selvino. Filosofia e ética. Florianópolis: Departamento de Ciências da Adminis-
tração/UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009, p. 149.
90 BEZERRA, Marcos Otávio. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Relume-dumará, 1995.
91 ASSMANN, José Selvino. Filosofia e ética. Florianópolis: Departamento de Ciências da Adminis-
tração/UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009.
92 MENDES, Annita Valleria Calmon; ANDRADE JÚNIOR, Hermes de. Administração pública fe-
deral: a percepção dos servidores sobre a ética. Acta Scientiarum. Human And Social Sciences,
Maringá, v. 32, n. 2, p.115-125, 2010.

59
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

práticas irregulares do chefe aparece então como mais uma forma de perpetuar
e facilitar as condutas corruptas.
Ademais, isso explicita o caráter institucionalizado da corrupção no Bra-
sil de forma que a corrupção, ao invés de representar uma desorganização, na
verdade apresenta-se como uma forma de organização93. Assim, “mais do que
as práticas e transações classificadas como ‘criminosas’, as práticas de corrup-
ção expressam mundos morais”94 em determinado tempo e espaço. Dessa for-
ma, podemos observar que no Brasil “as práticas designadas como corruptas e
corruptoras estão fundadas em princípios de ação associados à lógica pessoal
que [...] orientam e regulam [...] as ações daqueles que são responsáveis pelo
seu funcionamento e das pessoas que com ele interagem”95.
Portanto, por mais que se possa encontrar no direito administrativo uma
referência moral que deve nortear as ações dos agentes públicos, percebe-se
que o uso da coisa pública para favorecimento de interesses pessoais ainda é
uma escolha plausível para o agente público, em grande parte por conta dos
itens apontados anteriormente.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluímos o trajeto desse artigo debruçadas sobre a complexidade do
tema com que nos engajamos. Longe de querer idealizar a iniciativa privada e
demonizar o Estado96, buscamos compreender os fatores que levam a inegável
presença da corrupção na Administração Pública brasileira, lançando um olhar
a partir da ética e da atuação do agente público. Nosso foco de análise não foi,

93 A institucionalização da corrupção pode ser vislumbrada no caso de corrupção envolvendo a empresa


Odebrecht. No começo do envolvimento da empresa com pagamento de propinas aos políticos e
fiscais, os pagamentos eram feitos sem contabilização, de forma que, ao longo do tempo, isso foi
causando um descontrole sobre o dinheiro que era destinado as propinas. Por volta de 2007, criou-se
um departamento próprio para lidar com o controle de saída das propinas, de forma a trazer mais
segurança para a empresa. Foi feito um sistema de gestão de finanças e de tesouraria, setor no qual
os pedidos de propinas eram registrados no programa como “contas a pagar”. Observa-se que a or-
ganização se demonstrou necessária haja vista que o esquema de pagamento de propinas tornou-se
indispensável para o funcionamento da empresa, bem como, passou a tornar-se algo comum dentro
desse contexto (BEDINELLI, Talita. Da escolha de apelidos à entrega do dinheiro: a engenharia da
corrupção da Odebrecht em detalhes: Delatores explicam como o departamento de propina foi criado
e como o esquema era operacionalizado. El País Brasil. São Paulo. 15 abr. 2017). Cumpre indagar se
as pessoas envolvidas no esquema, se os funcionários da tesouraria, ou os próprios executivos conti-
nuavam a enxergar o pagamento de propinas como algo proibido, tendo em conta a naturalização que
a institucionalização das operações de pagamento de propina criava. A nomeação dos pagamentos
como “contas a pagar” bem como a nomeação daqueles que recebiam a propina como “fornecedores”
indicam uma preocupação em neutralizar a carga moral desses comportamentos corruptos (LOPES
JÚNIOR, Edimilson. As gramáticas morais da corrupção: aportes para uma sociologia do escândalo.
Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 15, n. 2, p.126-147, jul./dez. 2010).
94 LOPES JÚNIOR, Edimilson. As gramáticas morais da corrupção: aportes para uma sociologia
do escândalo. Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 15, n. 2, p.126-147, jul./dez.
2010, p. 127.
95 BEZERRA, Marcos Otávio. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Relume-dumará, 1995, p. 186.
96 Cientes, portanto, da importante crítica feita por Jessé Souza (SOUZA, 2015).

60
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

portanto, a relação dos particulares com o Estado, mas as ações dos próprios
agentes públicos. Mais do que defender, no entanto, um padrão moral de atua-
ção para todos os agentes públicos, preocupamo-nos em partir da ética para
analisar qual seria o ponto de referência comum possível na nossa sociedade
fortemente marcada pelo pluralismo e pelo egoísmo.
Podemos encontrar no direito, em sua configuração atual, a referên-
cia comum de atuação para os agentes públicos, mais especificamente nos
princípios do Direito Administrativo, na supremacia do interesse público, na
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Esses prin-
cípios consagram diferentes perspectivas éticas – deontológica, teleológica
e das virtudes. A aplicação deles na vida prática do agente público pode en-
sejar dúvidas quanto a prevalência de um ou outro, no entanto, diante dessa
dúvida, ao agente cabe a liberdade de atuação, em conformidade com sua
discricionariedade. Não se trata da discricionariedade em si um problema,
mas muito mais da falta de uma cultura de respeito pela coisa pública.
Percebemos que o egoísmo prevalecente na sociedade cria uma cisão
entre o sujeito e o cidadão que não se vê comprometido com a coisa públi-
ca, no entanto, ao mesmo tempo em que se beneficia de pequenas práticas
corruptas, brada contra os grandes esquemas de corrupção em nome de um
punitivismo a todo custo.
Por mais que o conceito de interesse público seja criticado por sua in-
determinação de sentido, consideramos possível entende-lo em uma pers-
pectiva do republicanismo, que o distingue de um agregado de interesses
particulares. A defesa da coisa pública entendida como bem comum nos pa-
rece, dentro do contexto e parâmetros legais atualmente em vigor no país, o
melhor caminho para afirmar que a atuação do agente público deve se pautar
sempre no interesse público.

6. REFÊRENCIAS
ASSMANN, José Selvino. Filosofia e ética. Florianópolis: Departamento de Ciências da Administra-
ção/UFSC; [Brasília]: CAPES: UAB, 2009.
BEDINELLI, Talita. Da escolha de apelidos à entrega do dinheiro: a engenharia da corrupção da
Odebrecht em detalhes: Delatores explicam como o departamento de propina foi criado e como
o esquema era operacionalizado. El País Brasil. São Paulo. 15 abr. 2017. Disponível em: <https://
brasil.elpais.com/brasil/2017/04/13/politica/1492117321_685877.html>. Acesso em: 20 set. 2017.
BENDITT, Theodore M. The Public Interest. Philosophy & Public Affairs. v. 2, n. 3, p. 291-311,
Spring, 1973. Disponível em:< http://www-jstor-org.ez46.periodicos.capes.gov.br/stable/2264914
> Acesso em: 20 de set. 2017.
BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. Tradução: Luiz João
Baraúna. In: Os Pensadores v. 34. São Paulo: Abril S. A. Cultural e Industrial, 1974.
BEZERRA, Marcos Otávio. Corrupção: Um estudo sobre poder público e relações pessoais no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Relume-dumará, 1995.

61
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995.
BOLETIM: Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM. São Paulo, v. 299,
n. 277, dez. 2015. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/pdfs/Boletim277.pdf>.
Acesso em: 10 out. 2017.
BORGES, Maria de Lourdes; DALL’AGNOL, Darlei; DUTRA, Delamar Volpato. Ética. Rio de Ja-
neiro: DP&A, 2002.
BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 07 set. 2017.
BRASIL. Congresso. Senado. Projeto de Lei nº 4850, de 29 de março de 2016. Estabelece medidas
contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento
ilícito de agentes públicos. Brasília, Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra;jsessionid=D12CB5B81ED46FFC399F9264457374E6.proposicoesWebExter-
no2?codteor=1448689&filename=PL+4850/2016>. Acesso em: 10 out. 2017.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em 14 jun. 2017.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998. Modifica o regime e dispõe sobre prin-
cípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas
e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc19.htm>.
Acesso em 07 de set. 2017.
BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso
XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera
a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispo-
sitivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>. Acesso em: 12 out. 2017.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos
nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na admi-
nistração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: < http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8429.htm>. Acesso em 14 jun. 2017.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2014.
COSTA, Cláudio F. Razões para o utilitarismo: uma avaliação comparativa de pontos de vista éti-
cos. Ethic@: Revista Internacional de Filosofia da Moral. Florianópolis, v. 1, n. 2, 2002. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/view/14591>. Acesso em: 10 de jun. de 2017.
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O conceito de Interesse Público no Estado Constitucional de Direito:
o novo regime jurídico administrativo e seus princípios constitucionais estruturantes. 379 f. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências Jurídicas. Programa
de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2014.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
DURKHEIM, Émile. Da divisão social do trabalho. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2006.
FERES JÚNIOR, João. Interesse público. In: Leonardo Avritzer, Newton Bignotto, Juarez Gui-
marães e Heloisa Murgel Starling. (Org.). Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora
UFMG, p. 163-172, 2008.
FRIEDRICH, Carl J. Corruption Concepts in Historical Perspective. In: HEIDENHEIMER, Arnold

62
LUANA RENOSTRO HEINEN – JÚLIA BORDIN MANDELLI CORREA – MANOELLA PEIXER CIPRIANI

J; JOHNSTON, Michael (Org.). Political corruption: Concepts and contexts. 3 ed. New Brunswick:
Trasaction Publishers, p. 15-23, 2002.
GARDINER, John A. Defining Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNSTON, Michael
(Org.). Political corruption: Concepts and contexts. 3 ed. New Brunswick: Trasaction Publishers, p.
25-40, 2002.
JOHNSTON, Michael (Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick:
Trasaction Publishers, p. 25-40, 2002.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos costumes. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2007.
______. Metafísica dos costumes, Parte I – Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Lisboa, Por-
tugal: Edições 70, 2004.
LOPES JÚNIOR, Edimilson. As gramáticas morais da corrupção: aportes para uma sociologia
do escândalo. Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 15, n. 2, p.126-147, jul./dez. 2010.
Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/8209/7159>.
Acesso em: 10 jul. 2017.
MACINTYRE, Alasdair. Tras las virtud. Barcelona: A & M Gràfic, 2004.
MARQUES, Ramiro. A ética de Alasdair Macintyre, sem data. Disponível em: <http://www.eses.
pt/usr/ramiro/docs/etica_pedagogia/A%20%C3%89TICA%20DEALASDAIR%20MACIN-
TYRE%5B1%5D.pdf>. Acesso em: 25 set. 2017.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23 ed. São Paulo: Editora RT, 1997.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros,
2011.
______. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.
______. Discricionariedade e controle judicial. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.
MENDES, Annita Valleria Calmon; ANDRADE JÚNIOR, Hermes de. Administração pública fe-
deral: a percepção dos servidores sobre a ética. Acta Scientiarum. Human And Social Sciences, Ma-
ringá, v. 32, n. 2, p.115-125, 2010.
NYE, Joseph S. Corruption and Political Development: A Cost-Bennefit Analysis. In: HEIDE-
NHEIMER, Arnold J; JOHNSTON, Michael (Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3.
ed. New Brunswick: Trasaction Publishers, p. 281-300, 2002.
PHILP, Mark. Conceptualizing Political Corruption. In: HEIDENHEIMER, Arnold J; JOHNS-
TON, Michael (Org.). Political corruption: concepts and contexts. 3. ed. New Brunswick: Trasaction
Publishers, p. 41-58, 2002.
PINZANI, Alessandro. Republicanismo(s), democracia, poder. Veritas: Revista da Filosofia da PU-
C-RS, Porto Alegre, v. 52, n. 1, p.5-14, mar. 2007. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.
br/ojs/index.php/veritas/article/view/1856/1386>. Acesso em: 3 set. 2017.
RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social: Princípios de Direito Político. Tradução de Antônio
P. Machado. Estudo crítico de Afonso Bertagnoli. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011.
SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Durkheim, Weber e Marx. 2. ed. Petrópolis, Rio de Ja-
neiro: Vozes, 2010.
SILVEIRA, Pablo da. John Rawls y la justicia distributiva. Madri: Campo de ideas, 2003.
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo: LeYa, 2015.
STRECK, Lenio Luiz. Ministros do STJ não devem se aborrecer com a lei. Consultor Jurídico. 7 jun.
2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jun-07/senso-incomum-nao-aborreca-lei-
-ministra-nancy-andrighi>. Acesso em: 19 set. 2017.

63
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

TRUBEK, David. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo (1972). In: RODRIGUEZ,
José Rodrigo (Org.). O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro – textos selecio-
nados de David Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009.
TUGENDHAT, Emst. Lições sobre ética. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
WARREN, Mark E. What Does Corruption Mean in a Democracy? American Journal of Political
Science, v. 48, n. 2, pp. 328-343, abr. 2004. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/1519886>.
Acesso em: 17 set. 2017.
ZAGREBELSKY, G. El derecho ductil. Ley, derechos y justicia. 10. ed. Trad. Marina Gascón. Ma-
drid: Trotta, 2011.
ZOLLER, Elisabeth. Introduction to Public Law: A Comparative Study. Leiden: Martinus Nijhoff,
2008.

64
A TRANSPARÊNCIA COMO INSTRUMENTO DE
PREVENÇÃO À CORRUPÇÃO

Gustavo Stollmeier Matiola1


Ana Luísa Sevegnani2
Eduardo André Carvalho Schiefler3

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O combate à corrupção na Administração Pública brasileira, fenômeno
atinente a todas as classes econômicas, políticas e sociais, é um tema que gera
inúmeras discussões, tendo em vista a ausência de consenso sobre a forma
mais efetiva de seu enfrentamento.
Principalmente na segunda década do século XXI, período em que houve
a eclosão das maiores investigações e operações policiais que visam ao comba-
te da corrupção no Brasil, esse tema ganhou bastante destaque nas mídias e se
tornou assunto oficial das principais discussões acadêmicas e políticas.
Com essa série de megaoperações, encabeçadas pela Polícia Federal e
pelo Ministério Público Federal, verificou-se a existência de corrupção sistêmi-
ca dentro da administração pública brasileira, em especial no tocante às contra-
tações públicas realizadas pelos seus órgãos. A percepção desses atos ilícitos,
por parte da sociedade, fortaleceu o surgimento de uma sensação generalizada
de desconfiança na atuação dos agentes públicos e dos seus atos praticados.
Seja por aqueles que defendem uma punição mais incisiva dos agentes
envolvidos em práticas corruptas ou por aqueles que defendem o desenvolvi-
mento de técnicas de prevenção, fato é que toda ferramenta que visa ao com-
bate efetivo à corrupção passa invariavelmente pelo aperfeiçoamento das fer-
ramentas de controle da administração pública.
Adiante-se que não se está a falar necessariamente sobre a criação de

1 Pós-graduando em Direito Processual Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina
(CESUSC). Bacharel em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-graduanda em Di-
reito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST) e em Direito
Público pela Escola Superior da Magistratura Federal no Rio Grande do Sul (ESMAFE-RS). Inte-
grante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/UFSC).
3 Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Estudos em Direito Público (GEDIP/
UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA.
UnB). Colaborador do Portal Jurídico Investidura (PJI). Colaborador da Loja.Legal. Autor de artigos
acadêmicos, especialmente na área de Direito Administrativo e Tecnologia. Advogado.

65
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

novas formas de controle, embora exista grande discussão sobre o assunto,


mas, principalmente, sobre a evolução e melhoria das ferramentas de contro-
le já existentes, notadamente o controle exercido por intermédio da partici-
pação social, que depende da efetiva transparência dos atos administrativos
e do desenvolvimento de uma cultura sólida de fiscalização por parte da so-
ciedade e seus indivíduos.
Sendo assim, a compreensão do assunto a ser tratado inicia-se pela aná-
lise do conceito e surgimento do princípio da transparência na administração
pública, a fim de aprofundar posteriormente os mecanismos de transparência
nas contratações públicas brasileiras para, finalmente, destacar a aplicação e im-
portância de mecanismos capazes de promover a transparência administrativa.
Além disso, é preciso conhecer os mecanismos legais já existentes que
aliam a transparência e controle social, e, após, reconhecer o seu âmbito de atua-
ção com o apontamento de suas falhas e possíveis aprimoramentos, a fim de
transformá-los em efetivas ferramentas de controle, e não de mera publicidade.
Pretende-se, sobretudo, caracterizar a utilização de instrumentos aptos a
tornar efetivamente pública e transparente a atuação do Poder Público, ressal-
tando a aplicação do princípio da transparência como forma eficaz de promo-
ver a prevenção e o combate à corrupção na administração pública brasileira.
Diante desse quadro, o objetivo deste ensaio é compreender os mecanis-
mos de transparência e publicidade já existentes na Administração Pública,
especialmente no âmbito das contratações públicas, que auxiliam a participa-
ção popular, e ressaltar o seu aprimoramento como pressuposto essencial para
combater e prevenir a corrupção.

2. PUBLICIDADE E TRANSPARÊNCIA NA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA
Os princípios constituem normas que objetivam concretizar um valor
na maior medida possível, sendo considerados mandados de otimização, de
modo que a violação a um princípio constitui uma ofensa jurídica grave, que
atenta contra todo o ordenamento jurídico.4 Nesse contexto, é possível conside-
rar os princípios como fundamentos das próprias regras, isto é, como normas
responsáveis por delimitar seu campo de aplicação.5
Como premissas basilares para a formação do ordenamento jurídico e
interpretação das normas positivadas, os princípios manifestam especial rele-
vância no direito público, visto que influenciam a forma de atuação e norteiam

4 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 85-86.
5 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2011, p. 565-569.

66
GUSTAVO STOLLMEIER MATIOLA – ANA LUÍSA SEVEGNANI – EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER

as condutas a serem adotadas pelo Poder Público. Diante dessa análise, impe-
rioso ressaltar que, na atual conjuntura do ordenamento jurídico brasileiro, os
princípios administrativos adquirem a função de conferir eficácia plena ao sis-
tema de gestão administrativa, a fim de concretizar os valores e pressupostos
de um Estado Democrático de Direito.6
A partir da Constituição Federal de 1988, a administração pública brasi-
leira passou a ser o principal agente fomentador e concretizador dos direitos
fundamentais do cidadão, função executada em sua maior parte por intermé-
dio de processos administrativos das mais variadas espécies. Conforme as
lições de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, o processo administrativo,
atualmente, “muito mais que um iter para a produção dos atos administrati-
vos, [...] é um instrumento de garantia dos administrados em face de outros
administrados e, sobretudo, da própria Administração”, de modo que “nada
do que nele se passa é alheio aos interesses dos administrados, por mais re-
motamente que seja”.7
Nesse contexto, o princípio da publicidade e da transparência administra-
tiva encontram-se elencados dentre os pressupostos fundamentais do ordena-
mento jurídico, objetivando conferir maior clareza e divulgação possíveis entre
os indivíduos da sociedade. O caráter público do poder, para Norberto Bobbio,
consiste em uma característica essencial da democracia, a qual não pode se
manifestar mediante um regime sigiloso.8 Do mesmo modo, a publicidade e
a transparência foram características determinantes para a transformação do
Estado Absoluto, marcado pelo extremo sigilo e ausência de participação social
nas decisões tomadas pelo soberano, ao Estado Constitucional atual, que con-
solidou a regra da ampla publicidade dos atos do Poder Público.9
Essa transformação permitiu o controle sobre a legitimidade, legalidade e
eficácia dos atos administrativos editados, bem como sobre a conduta adotada
pelos agentes públicos. O controle pode se concretizar por meio de alguns ins-
trumentos jurídicos, tais como: a) as certidões emitidas por órgãos para atestar
determinados fatos e para conferir publicidade aos direitos dos cidadãos, pre-
visto na alínea “b” do inciso XXXIV do artigo 5º da Constituição Federal; b) o
direito de petição, no qual os cidadãos podem formular pedidos às instituições

6 FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais. 2. ed. São
Paulo: Malheiro Editores, 1999, p. 47-49.
7 FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 26-31.
8 Com efeito, Bobbio transcreve trecho fundamental do Catecismo Republicano, do bispo de Viço Mi-
chele Natale, para a compreensão da importância da publicidade na formação das democracias mo-
dernas: “Não existe nada de secreto no Governo Democrático? Todas as operações dos governantes
devem ser conhecidas pelo Povo Soberano, exceto algumas medidas de segurança pública, que ele
deve conhecer apenas quando cessar o perigo”. BOBBIO, Norberto. O governo do poder público em
público. In: ______. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1984, p. 86.
9 BOBBIO, Norberto. Ibid, p. 83-92.

67
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

públicas, nos termos da alínea “a” do dispositivo constitucional supracitado;


e c) as ações de divulgação de informações de relevância para a coletividade,
explicitadas pela Lei Federal nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação).10
Desse modo, na definição de Juarez Freitas, o princípio da publicidade
significa que “a Administração há de agir de sorte a nada ocultar e, para além
disso, suscitando a participação fiscalizatória da cidadania, na certeza de que
nada há, com raras exceções constitucionais, que não deva vir a público”.11
Consiste, ainda, em uma forma de legitimar e justificar as ações do Poder Pú-
blico em face de seus legítimos detentores, destacando-se como um requisito
para conferir eficácia jurídica aos procedimentos e atos adotados pela adminis-
tração pública em face da coletividade.
Este princípio encontra previsão expressa na seara constitucional, na me-
dida em que todos os indivíduos possuem o direito à informação, sendo in-
cumbência dos órgãos públicos promover a divulgação de dados de interesse
da coletividade, resguardando-se, por óbvio, as informações consideradas sigi-
losas. A leitura conjunta do inciso XXXIII do artigo 5º e do caput e § 3º do artigo
37, ambos da Constituição Federal, demonstra que todos os indivíduos devem
ter amplo acesso às informações e registros referentes aos atos administrativos
em geral, excetuando-se as situações de sigilo (que, vale lembrar, devem ser
a exceção), conferindo ampla participação pública da sociedade no controle e
fiscalização das ações do governo.
Ressalta-se aqui a posição de Wallace Paiva Martins Júnior no que se refe-
re à abrangência da publicidade e da transparência na seara administrativa. Se-
gundo este autor, a publicidade, motivação e participação popular constituem
subprincípios da transparência administrativa, esta considerada como um dos
principais objetivos do ordenamento jurídico brasileiro. Nesse contexto, “a pu-
blicidade é o primeiro estágio da transparência administrativa, ao permitir o
conhecimento e o acesso; porém, avança sobre tributos dados por aquela, via-
bilizando outras funções mais complexas e, igualmente, derivadas desta”.12
Há ainda o entendimento de que, enquanto a publicidade refere-se às
discussões políticas e à tomada de decisões em público, a transparência abran-
ge uma administração pública aberta, promovendo o acesso da população à
informação e favorecendo a participação ativa da sociedade na formulação e
no controle dos atos administrativos.13

10 FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo: Editora
Atlas, 2017, p. 26-27.
11 FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais. 2. ed. São
Paulo: Malheiro Editores, 1999, p. 70.
12 JÚNIOR, Wallace Paiva Martins. Transparência Administrativa: publicidade e participação popular.
São Paulo: Saraiva, 2004, p. 19-20.
13 RODRIGUES, João Gaspar. Publicidade, Transparência e Abertura na Administração Pública. Revis-
ta de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 266, maio/ago. 2014, p. 93-94.

68
GUSTAVO STOLLMEIER MATIOLA – ANA LUÍSA SEVEGNANI – EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER

É possível, do mesmo modo, classificar as diferentes formas de manifes-


tação da publicidade, conforme suas características e, sobretudo, os efeitos jurí-
dicos decorrentes de sua aplicação. Pode-se visualizar, para tanto, a existência
de três grandes divisões: a publicidade oficial, que busca apenas promover a
publicação dos atos administrativos em órgãos oficiais a fim de tornar as suas
regras públicas; a publicidade estrita, consubstanciando-se no direito de obter
certidões em repartições públicas, nos termos da alínea “b” do inciso XXXIV
do artigo 5º da Constituição Federal; e a publicidade ampla, que busca conferir
efetividade ao direito de informação em todas as suas formas, abrangendo o
caráter informativo, o conteúdo plural e a participação da população.
Esta última, por sua vez, divide-se em publicidade proativa, também de-
signada de transparência ativa pelo Decreto nº 7.724/2012,14 e reativa (ou passi-
va). Conforme a definição de João Gaspar Rodrigues acerca das diferenciações
entre ambas, cabe destacar que:
A primeira consiste na obrigação dos órgãos públicos, por iniciativa pró-
pria, publicar e tornar acessível a todos as informações sobre suas ativi-
dades, medidas e políticas. Já a publicidade ampla reativa ou passiva é
o direito dos cidadãos de solicitar aos órgãos públicos qualquer tipo de
informação (independente da existência de qualquer motivo a ser de-
monstrado) e, em consequência, receber uma resposta, imediatamente ou
dentro de prazo fixado em lei.15
Cabe ressaltar, nesse ponto, a importância da transparência ativa para a
concretização de medidas eficazes para o combate à corrupção. Isso se justi-
fica pelo fato de ser a transparência uma condição para a materialização da
democracia participativa, em que há a efetiva participação da sociedade no
controle e fiscalização dos atos adotados pelo Poder Público. O que se defende,
portanto, não é a existência de uma mera publicidade restrita, visto que uma
informação publicada em locais públicos não será necessariamente acessível
e compreendida pela população em geral. Propõe-se, sobretudo, um conceito
amplo de transparência, englobando a participação material da sociedade nos
processos que envolvem tomada de decisões.16

14 A previsão do direito à informação em sentido amplo é tratado no capítulo II do referido Decreto,


denominado “Da Transparência Ativa” (artigos 7º e 8º). O artigo 7º, em especial, prevê que: “é dever
dos órgãos e entidades promover, independente de requerimento, a divulgação em seus sítios na
Internet de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas, observado
o disposto nos arts. 7º e 8º da Lei no 12.527, de 2011.” No mesmo sentido, cabe ressaltar o artigo 8º
da Lei Federal nº 12.527/2011, segundo a qual “é dever dos órgãos e entidades públicas promover,
independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas com-
petências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas”.
15 RODRIGUES, João Gaspar. Publicidade, Transparência e Abertura na Administração Pública. Revis-
ta de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 266, maio/ago. 2014, p. 107-109.
16 SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI): so-
licitação e apresentação de estudos e projetos para a estruturação de concessões comuns e parcerias
público-privadas. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciên-
cias Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2013, p. 247-259.

69
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

O aperfeiçoamento da transparência administrativa ocorre, portanto,


mediante a existência da publicidade, motivação e participação popular, as
quais, em conjunto, promovem a efetivação das garantias fundamentais dos
cidadãos e o funcionamento adequado da democracia. Mediante a evolução
desse princípio, o indivíduo terá atuação direta na gestão pública, ressaltan-
do a sua participação efetiva na tomada de decisões e nos atos emitidos pelo
Poder Público. Tanto é que a transparência apenas se concretiza por meio da
participação efetiva do povo, a qual é prevista especialmente pelos incisos I,
II e III do § 3º do artigo 37 da Constituição Federal e pelas demais legislações
infraconstitucionais.
Ademais, os princípios da publicidade e da transparência têm respaldo
nos fundamentos da República Federativa do Brasil, previstos no § 1º do arti-
go 1º da Constituição Federal. Conforme esse pressuposto, “todo poder ema-
na do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição”. Sendo o povo o próprio titular do poder,
exercido por meio do Poder Público, os cidadãos possuem o direito de amplo
acesso às decisões e aos atos administrativos emitidos por seus governantes,
para que possam fiscalizar, exercer o controle social e, inclusive, defender-se
de decisões prejudiciais à coletividade.
Do mesmo modo, o artigo 5º da Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à In-
formação) consagra, adequadamente, a transparência administrativa e os
subprincípios dela decorrentes, segundo o qual “é dever do Estado garantir o
direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos
objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreen-
são”. Visualiza-se, a partir da redação transcrita, que a legislação prevê de
forma expressa a necessidade de que a administração pública se baseie na
transparência, publicidade, direito de informação e participação da popula-
ção na gestão da coisa pública.
Entretanto, conforme a definição de Carlos Ari Sundfeld, a publicidade
e a transparência abordadas no âmbito do direito público não se restringem
meramente ao dever da administração em conferir acesso às certidões emi-
tidas e à notificação dos atos aos cidadãos. Em sentido amplo, cabe ressaltar
que a divulgação dos atos administrativos constitui requisito de existência
e validade destes, sendo aplicado a todos os atos, despachos, prestações de
contas, procedimentos licitatórios, contratos administrativos e pareceres de
órgãos técnicos ou jurídicos.17
Em síntese, a transparência se constitui como um requisito fundamen-
tal do Estado Democrático de Direito, a fim de garantir a tutela, promover o

17 SUNDFELD, Carlos Ari. Princípio da Publicidade Administrativa (Direito de Certidão, visita e inti-
mação). Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 199, p. 97-110, jan./mar. 1995.

70
GUSTAVO STOLLMEIER MATIOLA – ANA LUÍSA SEVEGNANI – EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER

controle social e favorecer a participação pública dos cidadãos com a gestão


governamental. Conforme será demonstrado adiante, esse princípio contribui
para que os direitos e garantias fundamentais sejam mais que meros escritos
em normas jurídicas, mas que seja conferida a sua efetividade jurídica, espe-
cialmente como forma de prevenção à corrupção no Brasil.

3. MECANISMOS LEGAIS DETRANSPARÊNCIA NAS CONTRATAÇÕES


PÚBLICAS BRASILEIRAS
A legislação brasileira contém diversos mecanismos que tentam garantir
a transparência dos atos da administração pública, alguns marcados pela pos-
sibilidade de o cidadão peticionar requerendo determinado dado ou informa-
ção, como é o caso do direito de petição constante da Constituição e também
da Lei de Acesso à Informação, que consagra a atuação do particular como
interessado nas atividades do estado.
De outro lado, há outros mecanismos de publicidade que obrigam o Po-
der Público a disponibilizar dados e informações independentemente da soli-
citação do interessado. Nesse sentido, o acompanhamento tende a ser contem-
porâneo e mais eficaz.
No universo das atividades administrativas executadas pela administra-
ção, destaca-se a publicidade em relação às contratações públicas, tratadas aqui
em seu sentido amplo,18 como “o acordo de vontades destinado a criar, modifi-
car ou extinguir direitos e obrigações, tal como facultado legislativamente e em
que pelo menos uma das partes atua no exercício da função administrativa”.19
A principal referência específica quanto ao dever de ampla publicida-
de dos atos da administração é a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Com-
plementar nº 101/2000), que tratou da necessidade de ampla divulgação em
tempo real nos “sítios eletrônicos” de acesso ao público em geral dos atos
de gestão e execução orçamentária.20 Percebe-se que se criou um dever legal

18 A Lei de Licitações, nº 8.666/93, define o contrato administrativo de forma ampla, estabelecendo em


seu artigo 2º, §2º que “[...] considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da
Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo
e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.”
19 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014, p. 46.
20 Há uma série de dados e atos orçamentários que devem ter ampla divulgação, inclusive em tempo
real da sua execução, como se vê no artigo 48 da citada lei: “Art. 48. São instrumentos de transparên-
cia da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso
público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respecti-
vo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e
as versões simplificadas desses documentos. § 1o A transparência será assegurada também mediante:
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de
elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; II – liberação ao ple-
no conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas
sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público; III – adoção de
sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade

71
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

de publicidade proativa, nos termos colocados por João Gaspar Rodrigues,21


para todos os entes federados (conforme os §§ 2º e 3º do artigo 48 da Lei Com-
plementar nº 101/2000,22 ultrapassando a marca principiológica do artigo 37
da Constituição Federal.
Ponto que merece destaque é a modificação trazida pela Lei Comple-
mentar nº 131/2009, que esmiuçou e ampliou a forma de disponibilização
dos dados e atos de execução orçamentária, obrigando também, conforme
já exposto, os Estados e Municípios na divulgação ativa e pormenorizada
de seus dados. A legislação citada fixou prazos para que os entes federa-
dos disponibilizassem as informações e que os mecanismos fossem de fácil
acesso ao público, além de prescrever punições em caso de descumprimen-
to do comando. Transcreve-se aqui parte do artigo 2º da Lei Complementar
nº 131/2009:
Art. 2o A Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, passa a vigorar
acrescida dos seguintes arts. 48-A, 73-A, 73-B e 73-C:
“Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo único do
art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquer pessoa física ou
jurídica o acesso a informações referentes a:
I – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidades gestoras
no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com
a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspon-
dente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física
ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedi-
mento licitatório realizado;
[...]
“Art. 73-B. Ficam estabelecidos os seguintes prazos para o cumprimento
das determinações dispostas nos incisos II e III do parágrafo único do art.
48 e do art. 48-A:
I – 1 (um) ano para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
com mais de 100.000 (cem mil) habitantes;
II – 2 (dois) anos para os Municípios que tenham entre 50.000 (cinquenta
mil) e 100.000 (cem mil) habitantes;
III – 4 (quatro) anos para os Municípios que tenham até 50.000 (cinquenta
mil) habitantes.
Parágrafo único. Os prazos estabelecidos neste artigo serão contados a

estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A.”


21 RODRIGUES, João Gaspar. Op. cit
22 §2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disponibilizarão suas informações e
dados contábeis, orçamentários e fiscais conforme periodicidade, formato e sistema estabelecidos
pelo órgão central de contabilidade da União, os quais deverão ser divulgados em meio eletrônico de
amplo acesso público. § 3º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios encaminharão ao Ministé-
rio da Fazenda, nos termos e na periodicidade a serem definidos em instrução específica deste órgão,
as informações necessárias para a constituição do registro eletrônico centralizado e atualizado das
dívidas públicas interna e externa, de que trata o § 4º do art. 32.

72
GUSTAVO STOLLMEIER MATIOLA – ANA LUÍSA SEVEGNANI – EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER

partir da data de publicação da lei complementar que introduziu os dis-


positivos referidos no caput deste artigo.”
“Art. 73-C. O não atendimento, até o encerramento dos prazos previstos
no art. 73-B, das determinações contidas nos incisos II e III do parágrafo
único do art. 48 e no art. 48-A sujeita o ente à sanção prevista no inciso I
do § 3o do art. 23.”
O principal regulamento que efetivou os deveres da Lei Complementar
nº 101/2000 é o Decreto Federal nº 5.482/2005, que criou o chamado “Portal da
Transparência” (que será melhor abordado no item a seguir), sítio eletrônico
aberto ao público em geral que deve concentrar todos os gastos efetuados por
órgãos e entidades da administração direta federal, bem como os atos de exe-
cução e descentralização orçamentária.
A Portaria Interministerial Federal nº 140/2006, que pormenoriza ainda
mais o decreto citado, anota expressamente que os contratos administrativos
devem ter ampla publicidade nos sítios eletrônicos de transparência, estabe-
lecendo que os números do contrato, fonte orçamentária, empresa contrata-
da, objeto e valor contratado devem constar na página da web sobre o tema.
Destrincham-se, inclusive, as informações a serem disponibilizadas e a forma
que devem ser divulgadas. Esta portaria também obriga o ente público a dis-
ponibilizar as informações sobre as contratações e licitações de forma clara e
acessível, sem qualquer embaraço ou senha para a visualização do cidadão.23
Ampliando os deveres de transparência para a administração indireta,
a Lei nº 13.303/2016, que estabelece uma série de regras para a governança e
controle das sociedades de economia mista e empresas públicas, criou uma
série de deveres de publicidade, com divulgação de balancetes, contratos e
atos de gestão, da carta de governança e até mesmo dos fatores de risco no
ambiente dos negócios.
Todas estas inovações são mecanismos de transparência ativa, distinção
anotada pelos artigos 7º e 8º do Decreto nº 7.724/2012, regulamentador da Lei
de Acesso à Informação.
Nesse sentido, lembra-se que a Lei de Acesso à Informação instituiu uma
sistemática em que o sigilo dos dados da administração pública é a exceção, que
deve ser pormenorizada e justificada. Portanto, como regra, todo cidadão tem
direito a solicitar aos órgãos públicos federais toda a sorte de informações,24 ca-

23 Art. 16. As informações serão apresentadas de forma simples, com a utilização de recursos de nave-
gação intuitiva a qualquer cidadão, independentemente de senhas ou conhecimentos específicos de
informática.
Art. 17. Todo o conteúdo técnico deverá ser precedido de texto introdutório e, sempre que possível,
acompanhado por notas explicativas, na forma de dicas de tela.
24 Art. 7o O acesso à informação de que trata esta Lei compreende, entre outros, os direitos de obter:
I – orientação sobre os procedimentos para a consecução de acesso, bem como sobre o local onde
poderá ser encontrada ou obtida a informação almejada; II – informação contida em registros ou

73
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

minhos para acesso, contratos e atos administrativos.25


Veja-se que até mesmo instâncias recursais administrativas dentro da an-
tiga Controladoria-Geral da União, que passou a integrar o Ministério da Fis-
calização, Transparência e Controle, foram criadas para que o cidadão pudesse
recorrer das decisões dos órgãos públicos que negam a solicitação de dados.26

4. A CONCRETIZAÇÃO DOS COMANDOS LEGAIS E A


DISPONIBILIZAÇÃO DAS INFORMAÇÕES E CONTRATAÇÕES NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Dando cumprimento a todas estas obrigações legais de publicidade e
transparência, o governo federal instituiu uma base eletrônica de dados cha-
mada “Portal da Transparência”, que apresenta informações atualizadas, em
sites próprios, sobre todas as formas de execução orçamentária do governo
federal, seja em contratos, custeio com pessoal, indenizações, repasses e convê-
nios com outras entidades.
Indo mais adiante, há uma plataforma que, em tese, concentra e organiza
todas as compras efetuadas por órgãos do governo federal, denominada “Pai-
nel de Compras”, que reúne todos os contratos firmados nos últimos 5 (cinco)
anos pelos órgãos da administração direta federal, com o valor final inicial e
final contratado, a situação do contrato e o seu objeto.27 As informações apre-
sentadas são detalhadas e permitem uma série de pesquisas diferentes, como
possibilidade de visualização das contratações por ano, Ministério ou Unidade
Orçamentária, ou por empresa contratada. Permite-se até mesmo acessar o va-
lor de eventuais termos aditivos na contratação.
É fato que o portal cria um mecanismo de acompanhamento quase si-
multâneo e completo das contratações realizadas pelo Poder Público, possibi-
litando a percepção de discrepâncias entre valores inicialmente contratados e
que depois foram ajustados por termos aditivos, ou mesmo comparar preços

documentos, produzidos ou acumulados por seus órgãos ou entidades, recolhidos ou não a arquivos
públicos; III – informação produzida ou custodiada por pessoa física ou entidade privada decorrente
de qualquer vínculo com seus órgãos ou entidades, mesmo que esse vínculo já tenha cessado; IV –
informação primária, íntegra, autêntica e atualizada; V – informação sobre atividades exercidas pelos
órgãos e entidades, inclusive as relativas à sua política, organização e serviços; VI – informação
pertinente à administração do patrimônio público, utilização de recursos públicos, licitação, contra-
tos administrativos; e VII – informação relativa: a) à implementação, acompanhamento e resultados
dos programas, projetos e ações dos órgãos e entidades públicas, bem como metas e indicadores
propostos; b) ao resultado de inspeções, auditorias, prestações e tomadas de contas realizadas pelos
órgãos de controle interno e externo, incluindo prestações de contas relativas a exercícios anteriores.
25 Art. 10. Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a informações aos órgãos e entida-
des referidos no art. 1º desta Lei, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação
do requerente e a especificação da informação requerida.
26 Art. 16. Negado o acesso a informação pelos órgãos ou entidades do Poder Executivo Federal, o reque-
rente poderá recorrer à Controladoria-Geral da União, que deliberará no prazo de 5 (cinco) dias [...].
27 Disponível em: <https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/painel-de-compras-de-go-
verno> Acesso em 3 out. 2017.

74
GUSTAVO STOLLMEIER MATIOLA – ANA LUÍSA SEVEGNANI – EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER

praticados pelas empresas nas relações com a administração.


Quando das licitações na modalidade pregão, o §3º do artigo 32 da lei
que regulamenta a gestão das empresas estatais estabelece que o certame deve
ocorrer obrigatoriamente nestes portais eletrônicos de compras, facilitando o
controle das contratações e também a concorrência.
Merece destaque que, em nível regional, o Estado de Santa Catarina tam-
bém editou normatização própria e disponibilização dos seus contratos em sí-
tios eletrônicos de fácil acesso,28 possuindo portal semelhante ao desenvolvido
pelo governo federal, podendo-se ter acesso aos contratos atualmente vigentes,
com o objeto da contratação e valor.
A difusão deste tipo de informação permitiu um acompanhamento inédi-
to dos órgãos de controle, como a antiga Controladoria Geral da União (CGU)
e os Tribunais de Contas, mas também de vários organismos da sociedade
civil. Como exemplo de organização social, a “Associação Contas Abertas”29
desenvolveu entre 2010 e 2014 um acompanhamento bianual e comparativo
entre todos os estados federados brasileiros e municípios com mais de 50.000
(cinquenta mil) habitantes, instituindo o “Índice de Transparência” do Brasil.
Contudo, a efetivação mais notável da transparência pode ser vista com
a publicação dos relatórios do “Ranking Nacional da Transparência” do Mi-
nistério Público Federal (MPF), que em parceria com a CGU auditou todos os
municípios e estados brasileiros. Entre o ano de 2015 e 2016, o índice geral da
transparência no Brasil – que compreende a média das notas de todos os mu-
nicípios brasileiros em quesitos como bases de dados na internet, facilidade de
acesso e direito de peticionamento30 – subiu, numa escala de 1 a 10, de 3,92,
em 2015, para 5,21, em 2016.31
Portanto, é inegável que as mudanças sufragadas pelas modificações e
obrigações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal e o reforço dos deve-
res de transparência aos demais entes federados criados pela Lei Complemen-
tar nº 131/2009 aceleraram o processo de melhoria na transparência dos entes
públicos, principalmente em nível municipal.
Em igual sentido, a Lei de Acesso à Informação, que instituiu a possibi-

28 Disponível em: <http://www.transparencia.sc.gov.br/contratos> Acesso em 3 out. 2017.


29 Disponível em: <https://www.indicedetransparencia.com/historico> Acesso em 3 out. 2017.
30 Disponível em: <http://combateacorrupcao.mpf.mp.br/ranking/mapa-da-transparencia/ranking/
itens-avaliados> Acesso em 3 out. 2017.
31 Acompanha-se a nota divulgada pelo Ministério Público Federal: “O nível de transparência de esta-
dos e municípios brasileiros aumentou cerca de 33% em seis meses, a partir da atuação coordenada
do Ministério Público Federal em todo o país. Esse é um dos resultados verificados pelo Ranking
Nacional da Transparência. Foram avaliados portais de 5.567 municípios, 26 estados e o Distrito
Federal. O Índice Nacional de Transparência subiu de 3,92, em 2015, para 5,21, em 2016. Estados e
municípios que ainda descumprem as leis de transparência serão acionados judicialmente.” Disponí-
vel em <http://www.rankingdatransparencia.mpf.mp.br> Acesso em 3 out. 2017.

75
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

lidade da participação ativa do cidadão em solicitar todo e qualquer tipo de


dado e informação, com amparo de órgãos como a CGU, ajudou nesse cenário
de concretização de todas as normas constitucionais e infralegais de publicida-
de e transparência. A manifestação do Ministério Público Federal na divulga-
ção dos dados do “Ranking Nacional da Transparência” deixa tal fato evidente:
A Lei Complementar nº 131 de 2009, alterando a Lei de Responsabilida-
de Fiscal, esmiuçou ainda mais esse dever, prevendo a obrigação de que
todos os municípios brasileiros disponibilizassem suas informações finan-
ceiras em tempo real, contendo, por exemplo, “disponibilização mínima
dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem for-
necido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do
pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado.
O conjunto normativo de Leis referentes à transparência no Brasil foi com-
pletado com a edição da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11) que
disciplinou o pedido de informações tanto no seu aspecto ativo quanto
passivo.32
Contudo, ainda que seja evidente o avanço nos mecanismos de trans-
parência disponibilizados à sociedade e aos órgãos de controle, o país ainda
enfrenta sérias mazelas relacionados ao vilipêndio dos recursos públicos e à
prática reiterada de atos de corrupção endêmicos.
Mais do que a existência de normas legais e programas que disponibili-
zem, avaliem e exijam a tão almejada transparência, é preciso transformá-la, com
apoio do controle social, num instrumento efetivo de combate à corrupção.

5. TRANSPARÊNCIA COMO INSTRUMENTO EFETIVO DE


PREVENÇÃO À CORRUPÇÃO

5.1. A CORRUPÇÃO É UM FENÔMENO MUNDIAL


A corrupção não é um fenômeno exclusivamente tupiniquim. Embora
muitos brasileiros tenham a sensação de que o Brasil é o país mais corrupto
do planeta e de que em qualquer outro país os agentes públicos possuem um
maior respeito e zelo pelos interesses dos cidadãos, pode-se afirmar que a cor-
rupção é um fenômeno mundial, presente na maioria, para não dizer todas, as
estruturas de governo.
A existência de índices de transparência, responsáveis por medir o nível
de transparência dos atos estatais e sua relação com a corrupção nos países
mundo afora, elaboradas em sua maioria por organizações não governamen-
tais independentes, corrobora com esse entendimento.

32 Disponível em: <http://combateacorrupcao.mpf.mp.br/ranking/mapa-da-transparencia/ranking/o-


-projeto-new> Acesso em 3 out. 2017.

76
GUSTAVO STOLLMEIER MATIOLA – ANA LUÍSA SEVEGNANI – EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER

Um desses estudos mais conhecidos e respeitados é o Índice de Percep-


ção de Corrupção (IPC), elaborado anualmente pela Transparency International,
organização não governamental e apartidária, que mede o grau de corrupção
de um país de acordo com a percepção que a própria população possui da
existência de práticas ilícitas no interior do Poder Público, numa escala de 0
(totalmente corrupto) a 100 (livre de corrupção).
Para se ter uma ideia, no último relatório publicado (2016),33 concluiu-
-se que “nenhum país chegou perto de alcançar uma pontuação perfeita”,
que mais países pioraram os seus índices de percepção da corrupção do que
melhoraram e que mais de dois terços dos 176 países e territórios analisados
ficaram abaixo da pontuação 50, o que foi motivo determinante para que a
média global ficasse em 43 pontos. Essas constatações permitem afirmar que
existe uma corrupção endêmica no setor público de pelo menos dois terços
dos países analisados pelo estudo.
A título de curiosidade, o Brasil obteve 40 pontos na escala de 0 a 100, fi-
gurando em 79° lugar na pesquisa, juntamente com China e Índia, enquanto a
Dinamarca e a Nova Zelândia empataram em primeiro lugar, com 90 pontos,
logo acima dos demais países nórdicos. Por sua vez, a Somália, o Sudão do
Sul e a Coréia do Norte foram os países que receberam a menor pontuação.
Verifica-se que a cultura de transparência administrativa é muito mais antiga
e desenvolvida nos países onde a percepção da sociedade sobre os atos de
corrupção é maior.
A relevância desse estudo, portanto, é evidente para o presente trabalho,
tendo em vista que a prática de atos de corrupção dentro do setor público de
determinado país é, na maioria das vezes, inversamente proporcional à cultura
existente de transparência dos atos praticados pelo Poder Público.

5.2. CORRUPÇÃO E DESCONFIANÇA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


BRASILEIRA
É inegável afirmar que o controle social sobre os atos administrativos é
fundamento do princípio republicano que rege a sociedade brasileira, uma vez
que é alicerce de qualquer democracia que se digne participativa. Defender o
aperfeiçoamento dos mecanismos de controle social, portanto, é abraçar o espí-
rito republicano e democrático que guia a sociedade brasileira.
Partindo-se da ideia de que a função precípua da administração pública é
garantir os direitos fundamentais dos indivíduos que formam uma sociedade,
tem-se que a transparência, mais do que um instrumento de combate à cor-

33 TRANSPARENCY INTERNATIONAL, Corruption Perceptions Index 2016. Disponível em:


<https://www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016>. Acesso em 30
set. 2017.

77
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

rupção, é eminentemente uma ferramenta de legitimação do próprio Estado


perante a população, tendo em vista que os cidadãos dependem da disponi-
bilização efetiva de informações para exercer, na sua plenitude, o poder de
fiscalização que lhe é inerente.
Nesse sentido, mais uma vez caem como luva os comentários de Sérgio
Ferraz e Adilson Abreu Dallari, pois “como todo agir administrativo tem seu
veículo excelso no processo administrativo, a publicidade deste propicia a
transparência da Administração, preenchendo, destarte, a finalidade de legiti-
mação [...], que é um dos mais excelsos objetivos da própria existência científica
e normativa do processo administrativo”.34
A transparência dos atos administrativos, nos ensinamentos de João Gas-
par Rodrigues, “pode proporcionar um controle difuso ou generalizado por
parte dos cidadãos sobre a legalidade, eficiência e moralidade da ação admi-
nistrativa, reforçando a democracia participativa”. Além disso, auxilia na eli-
minação de “crenças inveteradas no cidadão sobre o comportamento indevido
da administração pública, estabelecendo uma relação de confiança”.35
Essa relação de desconfiança na administração pública, especialmente no
contexto de instabilidade política e econômica que atravessa o país, é um fator
que merece sérios questionamentos, tendo em vista as consequências desas-
trosas que esse sentimento de descrença pode gerar, como, por exemplo, uma
atuação excessiva dos órgãos de controle, que muitas vezes paralisa atividades
administrativas essenciais para a sociedade, em razão do “império do medo”
que recai sobre os agentes públicos.
Por sua vez, o combate a essa desconfiança para com o Poder Público se
realiza por meio da transparência efetiva dos atos e processos administrativos,
tendo em vista que, conforme bem ilustrado por Gustavo Schiefler:
A transparência confere legitimidade material aos atos administrativos
decisórios porque expõe à sociedade os detalhes da tomada de decisão.
O particular não se sujeita ao mero dispositivo da decisão, mas conhece
as suas razões. A transparência e a motivação são princípios interligados
cuja efetivação se coaduna com os propósitos de um Estado Democrático
de Direito.36
Nesse contexto, não se ignora a possibilidade de que essa relação de
desconfiança na administração pública seja um dos fatores que torna acei-

34 FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Ibid, p. 131.


35 RODRIGUES, João Gaspar. Publicidade, transparência e abertura na administração pública. Revista
de Direito Administrativo, Belo Horizonte, n. 266, maio/ago. 2014. p. 121. Disponível em <http://
bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/32142/30937>. Acesso em 22 set. 2017.
36 SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI): so-
licitação e apresentação de estudos e projetos para a estruturação de concessões comuns e parcerias
público-privadas. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciên-
cias Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2013, p. 252.

78
GUSTAVO STOLLMEIER MATIOLA – ANA LUÍSA SEVEGNANI – EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER

tável, do ponto de vista psicológico de um agente público corruptível, o co-


metimento de atos de corrupção, dado o distanciamento dos interesses da
sociedade com a administração. Paradoxalmente, defende-se que o enfrenta-
mento dessa relação de desconfiança está diretamente relacionado ao comba-
te efetivo da corrupção pela própria sociedade – e não mais como um dever
exclusivo dos órgãos de controle.
O controle social, portanto, é uma ferramenta de prevenção à prática
de atos de corrupção, que se concretiza por meio do aprimoramento do
dever de transparência dos atos administrativos e, para o que interessa ao
estudo do presente trabalho, por meio da disponibilização concreta, per-
manente e organizada de todas as informações constantes dos processos de
contratações públicas.

5.3. TRANSPARÊNCIA E CONTROLE SOCIAL


Conforme mencionado, a eficiência do combate à corrupção, especial-
mente quando superada a ideia de punição e acolhida a prevenção como for-
ma de enfrentamento, está intimamente relacionada à efetiva participação da
sociedade, “a qual, ao se reapropriar da esfera pública, é capaz de reconstruir
as normas que permitam identificar os atos de corrupção e diminuir o distan-
ciamento entre si e seus representantes”.37
A ideia de que a administração pública serve aos interesses dos cidadãos
e de que os agentes públicos devem prestar contas não é de hoje. A Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão,38 formulada em 1789 pelos revolucio-
nários franceses, já previa em seu artigo 15 que “a sociedade tem o direito de
pedir contas a todo o agente público pela sua administração”. Observa-se que
esse dever de transparência e publicidade dos atos praticados pelo Poder Pú-
blico se relaciona intensamente com a própria razão de ser do Estado Liberal
que conhecemos hoje, a fim de garantir que a sua função não seja desvirtuada
e os interesses da sociedade colocados em segundo plano.
Em que pese o ordenamento jurídico brasileiro já ter previsto diversos
dispositivos legais que visavam a garantir a transparência e publicidade dos
atos administrativos, passou-se a conferir uma maior importância a esse tema
somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Com a conso-
lidação do espírito democrático e participativo que deve vigorar na adminis-
tração pública, criou-se uma série de mecanismos que permitem a participação

37 ARAÚJO, Alexandra Fuchs; FILOGONIO, Henrique Magalhães. O combate à corrupção por meio
do controle social participativo: limitações e perspectivas. In: Alexandre J Carneiro da Cunha Filho;
Glaucio Roberto Brittes de Araújo; Roberto Livianu; Ulisses Augusto Pascolati Júnior. (Org.). 48
visões sobre a corrupção. São Paulo: Quartier Latin, 2016, v. 1, p. 168.
38 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Disponível em <http://pfdc.pgr.mpf.
mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.
pdf>. Acesso em 01 out. 2017.

79
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

popular na tomada de decisões do Poder Público, em especial nas mais varia-


das espécies de processos administrativos.
Por exemplo, o artigo 31 da Lei Federal n° 9.784/1999, que regula o pro-
cesso administrativo no âmbito da administração pública federal, recomen-
da, para os casos em que a matéria do processo envolver assunto de interesse
geral, que o órgão competente propicie “consulta pública para manifestação
de terceiros, antes da decisão do pedido”, de modo que “o comparecimento
à consulta pública [...] confere o direito de obter da Administração resposta
fundamentada”. Por sua vez, o artigo 32 do mesmo diploma legal recomenda à
autoridade administrativa que, em casos de questões relevantes, seja “realiza-
da audiência pública para debates sobre a matéria do processo”.
Menciona-se o § 1° do artigo 41 da Lei Federal n° 8.666/93,39 que tor-
na qualquer cidadão parte legítima para “impugnar edital de licitação por ir-
regularidade”. Também, cita-se a condição, exigida pelo Decreto Federal n°
8.428/2015,40 de que o edital de chamamento público para abertura de proce-
dimento de manifestação de interesse (PMI) seja objeto de ampla publicidade,
por meio de publicação inclusive “no sítio na internet dos órgãos e entidades”
competentes para proceder à licitação do empreendimento ou para a elabora-
ção dos projetos, levantamentos, investigações ou estudos, que comportará as
informações necessárias para que o particular dialogue com a administração.
Esses mecanismos de controle e participação social impedem o agrava-
mento de outra consequência relevante causada pela falta de transparência na
administração pública, que é o descuido com que são praticados os atos admi-
nistrativos por agentes públicos que não sentem o peso do controle social em
sua atuação pública. Nesse sentido, a transparência administrativa representa
uma “assunção de riscos que resta ausente no tradicional exercício das funções
pelos agentes públicos”.41
A razão para que isso ocorra é simples, tendo em vista que a transparên-
cia também possui uma finalidade política, que é a de exaltar e expor, respecti-
vamente, aos olhos da sociedade, os bons e os maus administradores, para que
possam ser avaliados por seus atos.
Portanto, todas essas ferramentas jurídicas, previstas na própria legisla-
ção, são de grande utilidade para a fiscalização e controle dos processos ad-

39 Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha
estritamente vinculada. §1o Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar edital de licitação por
irregularidade na aplicação desta Lei, devendo protocolar o pedido até 5 (cinco) dias úteis antes da
data fixada para a abertura dos envelopes de habilitação, devendo a Administração julgar e responder
à impugnação em até 3 (três) dias úteis, sem prejuízo da faculdade prevista no § 1o do art. 113.
40 Art. 4º O edital de chamamento público deverá, no mínimo: [...] IV – ser objeto de ampla publicidade,
por meio de publicação no Diário Oficial da União e de divulgação no sítio na internet dos órgãos e
entidades a que se refere o art. 2º.
41 SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Op. cit. p. 253.

80
GUSTAVO STOLLMEIER MATIOLA – ANA LUÍSA SEVEGNANI – EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER

ministrativos de contratações públicas, uma vez que possibilita à sociedade


uma participação nas tomadas de decisões, evitando-se, assim, o desalinho
entre os interesses coletivos e os atos praticados pela administração pública,
como a corrupção.
Ressalta-se, contudo, que não basta que todas as informações dos pro-
cessos administrativos estejam disponibilizadas – ainda que de forma orga-
nizada – para que a população execute um controle efetivo sobre os atos le-
sivos ao bem público. O desenvolvimento de uma cultura sólida de controle
da administração pública é fator sine qua non para que o índice de corrupção
no país diminua.

5.4. O DESENVOLVIMENTO DE UMA CULTURA DE CONTROLE PARA


EFETIVAMENTE COMBATER A CORRUPÇÃO
Acontece que, conforme mencionado, a simples disponibilização de fer-
ramentas jurídicas e de dados e informações não é o suficiente para impulsio-
nar um controle social efetivo sobre a administração pública, com força para
diminuir o índice de corrupção.
O combate à corrupção não se restringe tão somente à ciência do direito
aplicado, trata-se de uma questão cultural de fiscalização e controle, por parte
da sociedade e seus indivíduos, sobre os atos administrativos praticados pelo
Poder Público. Repita-se: o desenvolvimento de uma cultura sólida de controle
da administração pública é condição fundamental para que o índice de corrup-
ção no país diminua.
Considerando o alto grau de desenvolvimento da ciência informacional e
da comunicação, é seguro afirmar que já existem tecnologias capazes de arma-
zenar o imenso número de informações e, inclusive, disponibilizá-las ao acesso
integral por quem quer que seja. A tecnologia existe e a sua implementação é
o primeiro passo para influenciar positivamente na criação de uma cultura de
fiscalização e controle social.
Em algumas searas do Poder Público brasileiro essas ferramentas tecno-
lógicas já estão sendo implementadas, tendo em vista que, conforme o que já
foi exposto, o ordenamento jurídico brasileiro criou, após a Constituição Fede-
ral de 1988, um dever legal de publicidade proativa para todos os entes federa-
dos, que ultrapassa a marca principiológica do artigo 37.
Apenas a título de ilustração, menciona-se o portal e-Democracia,42 plata-
forma disponibilizada pelo Poder Legislativo Federal, ainda em fase de testes,
que visa a “ampliar a participação social no processo legislativo e aproximar
cidadãos e seus representantes por meio da interação digital”. Nela, o cidadão

42 Disponível em <https://edemocracia.camara.leg.br/home>. Acesso em 2 out. 2017.

81
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

pode acompanhar ao vivo audiências interativas e enviar perguntas aos depu-


tados federais, editar e aprimorar projetos de lei, opinar e auxiliar na escolha
da pauta dos assuntos que serão abordados em plenário, entre outras funções.
No âmbito do Poder Executivo, como já apresentado no decorrer do tex-
to, também existem diversas plataformas eletrônicas onde dados e informações
referentes a gastos e contratações públicas são disponibilizadas à população,
que é livre para fiscalizar e realizar um controle prévio, incidental e posterior,
como é o caso do “Portal da Transparência” e da Lei de Acesso à Informação.
Veja-se, portanto, que não se trata exclusivamente da disponibilização
concreta, ininterrupta e organizada de informações públicas. Muitas vezes es-
sas informações já estão acessíveis aos particulares de forma a possibilitar que
o controle social se realize sem maiores dificuldades.
A grande barreira a ser vencida no processo de combate à corrupção é a
inexistência de uma cultura sólida de fiscalização e controle por parte da so-
ciedade, que, arrisca-se dizer, já está em processo de desenvolvimento, tendo
em vista o aumento da percepção da sociedade sobre os atos de corrupção na
administração pública brasileira, decorrente das megaoperações que eclodi-
ram no país.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A publicidade e a transparência são princípios basilares de uma república
democrática participativa, insculpidos expressa e implicitamente pela Cons-
tituição Federal de 1988. Os deveres impostos por esses princípios também
foram normatizados por legislação federal, em especial a Lei de Responsabi-
lidade Fiscal e a Lei de Acesso à Informação. Após a edição da Lei Comple-
mentar n° 131/2009, estas obrigações foram ampliadas para níveis municipal e
estadual, determinando que a administração pública adquirisse uma postura
ativa na disponibilização de dados, a fim de facilitar o acesso às informações
pelos particulares e órgãos de controle.
A transparência, portanto, revela-se como uma forma de publicidade
mais abrangente, que determina uma postura ativa da administração pública
em disponibilizar toda uma série de dados e informações sobre atos e contra-
tos administrativos celebrados pelo Poder Público de forma acessível, sim-
ples e organizada.
Ocorre que não é difícil verificar, em que pese todas as mudanças citadas,
a presença de uma corrupção sistêmica no interior da administração pública
brasileira, especialmente nos órgãos responsáveis pelas contratações e com-
pras públicas, o que faz com que aflore uma sensação generalizada de descon-
fiança, por parte da sociedade, perante o Poder Público.

82
GUSTAVO STOLLMEIER MATIOLA – ANA LUÍSA SEVEGNANI – EDUARDO ANDRÉ CARVALHO SCHIEFLER

Essa sensação de desconfiança, por sua vez, é responsável pelo distancia-


mento dos interesses coletivos e a administração pública, de modo que os atos
praticados pelo Poder Público dificilmente atenderão às expectativas da so-
ciedade, podendo inclusive acarretar dano à coletividade por meio da prática
de atos de corrupção, bem como uma paralisação generalizada de atividades
administrativas essenciais, em razão do aumento excessivo da atuação dos ór-
gãos de controle. Por sua vez, defende-se que o enfrentamento desse distan-
ciamento de interesses passa invariavelmente pelo aumento da transparência
administrativa, que é responsável por exaltar e expor, respectivamente, os bons
e maus administradores, e por promover um ambiente favorável ao controle
social e fiscalização dos atos administrativos.
No entanto, ainda que atualmente exista um alto grau de desenvolvi-
mento das tecnologias da informação e comunicação, que permitiu a criação
de ferramentas tecnológicas capazes de disponibilizar informações ao públi-
co em geral – inclusive já implementadas por algumas áreas do Poder Públi-
co brasileiro – , percebe-se que a simples disponibilização efetiva de dados
não é suficiente para que a sociedade e seus indivíduos procedam ao controle
da administração.
Nesse contexto, verifica-se que o controle social somente será capaz de
diminuir os índices de corrupção no Brasil quando houver uma aliança entre
transparência ativa, por parte da administração, e uma cultura concreta e de-
senvolvida de fiscalização e controle, por parte dos cidadãos.

7. REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
ARAÚJO, A. F. O combate à corrupção por meio do controle social participativo: limitações e
perspectivas. In: Alexandre J Carneiro da Cunha Filho; Glaucio Roberto Brittes de Araújo; Ro-
berto Livianu; Ulisses Augusto Pascolati Júnior. (Org.). 48 visões sobre a corrupção. 1ed. São Paulo:
Quartier Latin, 2016, v. 1.
ASSOCIAÇÃO CONTAS ABERTAS. Índice de Transparência. Disponível em: <https://indicede-
transparencia.com/historico/> Acesso em 3 out. 2017.
BRASIL. Decreto nº 7.724, de 16 de maio de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7724.htm> Acesso em 2 out. 2017.
______. Decreto nº 8.428, de 2 de abril de 2015. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2015-2018/2015/decreto/d8428.htm> Acesso em 1 out. 2017.
______. Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/LCP/Lcp101.htm> Acesso em 28 set. 2017.
______. Lei Complementar nº 131, de 27 de maio de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/lcp/lcp131.htm> Acesso em 28 set. 2017.
______. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L8666cons.htm> Acesso em 28 set. 2017.
______. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/

83
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

leis/L9784.htm> Acesso em 3 out. 2017.


______. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm> Acesso em 26 set. 2017.
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1984.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Portal e-Democracia. Disponível em: <https://edemocracia.camara.
leg.br/home> Acesso em 2 out. 2017.
CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO – CGU. Portaria Interministerial nº 140, de 16 de março de
2006. Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/sobre/legislacao/arquivos/portarias/portaria_cgu-
-mpog_140_2006.pdf> Acesso em 2 out. 2017.
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO DE 1789. Disponível em <http://
pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_ho-
mem_cidadao.pdf>. Acesso em 1 out. 2017.
ESTADO DE SANTA CATARINA. Portal da Transparência. Disponível em: <http://www.transpa-
rencia.sc.gov.br/contratos> Acesso em 3 out. 2017.
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2012.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 31. ed. São Paulo: Editora
Atlas, 2017.
FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais. 2. ed. São Paulo:
Malheiro Editores, 1999.
GOVERNO FEDERAL. Painel de Compras de Governo. Disponível em: <https://www.comprasgo-
vernamentais.gov.br/index.php/painel-de-compras-de-governo> Acesso em 3 out. 2017.
JÚNIOR, Wallace Paiva Martins. Transparência Administrativa: publicidade e participação popular.
São Paulo: Saraiva, 2004.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Ranking Nacional da Transparência. Disponível em: <http://
combateacorrupcao.mpf.mp.br/ranking/mapa-da-transparencia/ranking/itens-avaliados> Acesso
em 3 out. 2017.
RODRIGUES, João Gaspar. Publicidade, transparência e abertura na administração pública. Revista
de Direito Administrativo, Belo Horizonte, n. 266, p. 89-123, maio/ago. 2014. Disponível em <http://
bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/32142/30937>. Acesso em 22 set. 2017.
SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI): solici-
tação e apresentação de estudos e projetos para a estruturação de concessões comuns e parcerias
público-privadas. 2013. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro
de Ciências Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2013.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2011.
SUNDFELD, Carlos Ari. Princípio da Publicidade Administrativa (Direito de Certidão, visita e
intimação). Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 199, p. 97-110, jan./mar. 1995.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL, Corruption Perceptions Index 2016. Disponível em: <https://
www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016>. Acesso em 30 set. 2017.

84
DESBUROCRATIZAÇÃO DA ATIVIDADE ESTATAL
COMO MEIO DE COMBATE À CORRUPÇÃO

Bernardo Wildi Lins1


Amanda Pauli De Rolt2

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Administração Pública, neste trabalho, é entendida como o aparelhamen-
to a serviço do Estado para o exercício da função administrativa, meio pelo
qual se promovem políticas públicas. Essa estrutura, como não poderia deixar
de ser, não funciona por conta própria, depende de recursos humanos para
organizá-la e movimentá-la, os chamados agentes públicos. Para movimentar
a máquina administrativa e executar a função administrativa, os agentes públi-
cos utilizam técnicas de gestão pública. Por conta disso, o sucesso do Estado no
exercício da função administrativa depende, em grande medida, da adoção de
técnicas de gestão pública eficientes por parte dos agentes públicos.
O Estado brasileiro passa por uma intensa crise de legitimidade. Essa crise
decorre, por um lado, da total incapacidade da Administração Pública de exe-
cutar as tais políticas públicas de forma satisfatória. Umas das explicações para
esse fenômeno é que o método de gestão pública burocrático, majoritariamente
utilizado pela Administração Pública nacional, dificulta que a atividade admi-
nistrativa se dê de forma eficiente. Para além disso, a estrutura que o uso do mé-
todo deficiente demanda é extremamente dispendiosa, sendo constantemente
necessário que se busquem formas de racionalizar esses custos. Em defesa do
método burocrático está o fato de que ele supostamente é baseado em premissas

1 Advogado. Sócio fundador da Leduc Lins Advogados. Mestre em Direito pela Universidade Federal
de Santa Catarina – UFSC, onde desenvolveu pesquisa na área de Direito Administrativo. Bacharel
em Direito pela UFSC. Presidente da Alumni ‘32 – Associação dos Egressos da Faculdade de Direito
de Santa Catarina. Vice-Presidente da Comissão de Licitações e Contratos da OAB/SC. Membro da
Comissão de Direito Urbanístico da OAB/SC. Representante titular da OAB/SC no Núcleo Gestor
do Plano Diretor de Florianópolis. Professor do curso de Direito da Faculdade Cesusc, onde leciona
a disciplina de Direito Civil III – Direito das Obrigações. Professor substituto do curso de Direito da
UFSC, onde lecionou as disciplinas de Prática Jurídica II, III e IV (2016-2017). Professor da Fun-
dação Escola de Governo – ENA (2017). Membro do Grupo de Estudos de Direito Administrativo
Constitucionalista – GEDAC e do Grupo de Estudos em Direito Público – GEDIP, ambos vinculados
ao curso de Direito da UFSC. Autor do livro “Organizações Sociais e Contratos de Gestão” (2ª edição
no prelo), além de capítulos de livros e de artigos publicados em periódicos especializados.
2 Advogada. Mestranda em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
lo – PUC/SP. Graduada em Administração Pública pela Universidade Estadual de Santa Catarina
(2013). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2016). Membro do Gru-
po de Estudos de Direito Administrativo Constitucionalista – GEDAC e do Grupo de Estudos em
Direito Público – GEDIP, ambos vinculados ao curso de Direito da UFSC. Membro da Comissão de
Desenvolvimento e Infraestrutura da OAB/SC.

85
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

objetivas e racionais, contando com um rígido controle dos procedimentos, o


que dificultaria o desvio, ou captura, da função pública por interesses privados.
Por outro lado, a crise do Estado brasileiro também tem uma faceta política,
a qual decorre em grande medida dos escândalos de corrupção que diuturna-
mente estouram no noticiário. Se por um lado se sabe que a corrupção no Brasil
não é um fenômeno novo, possui raízes históricas e é, ao mesmo tempo, causa
e consequência de muitos dos nossos problemas recentes, por outro, nunca se
teve tanto a sensação de que a Administração Pública nacional está impregnada
de corrupção. A falta de confiança do cidadão brasileiro no Estado é patente e o
anseio geral pela eliminação da corrupção vem, inclusive, abrindo portas para a
ofensa a direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal.
Parece possível, portanto, afirmar que dois dos grandes problemas da
Administração Pública brasileira que geram a incapacidade de exercer ade-
quadamente a função administrativa são a burocracia e a corrupção. Em um
exame desatento, parecem ser dois problemas completamente distintos, que
não estão diretamente conectados. Inclusive, talvez a principal razão que jus-
tifica a adoção do método de gestão pública burocrático na Administração
Pública brasileira é evitar a corrupção. A vista disso, como problemas di-
ferentes geralmente demandam soluções também distintas, comumente são
enfrentados em frontes separados.
Esse artigo parte de uma premissa diferente. A de que a burocracia, além
de contribuir para a manutenção da ineficiência da Administração Pública no
cumprimento dos seus desígnios, é um fenômeno catalisador, em vez de ini-
bidor, da corrupção. Assim, a hipótese é a de que ambos os fenômenos – ine-
ficiência e corrupção – estão relacionados, sendo o excesso de burocracia uma
das causas de ambos, e que a desburocratização da atividade estatal poderia
contribuir para combatê-los.
Com esse objetivo, focalizando a questão da corrupção, esse artigo, pri-
meiro, vai apresentar considerações acerca do método de gestão pública buro-
crático e o fenômeno da burocracia. Em um segundo momento, serão apresen-
tadas iniciativas para a desburocratização da atividade administrativa estatal,
que representam uma alternativa ao uso do método de gestão burocrático,
envolvendo a reforma administrativa e a apresentação do método de gestão
gerencial. Por último, identificar-se-ão as relações entre a burocracia e a cor-
rupção, explicando-se como a desburocratização da atividade administrativa
pode servir para mitigar práticas corruptas.

2. GESTÃO PÚBLICA BUROCRÁTICA E BUROCRACIA


Entende-se gestão pública como o conjunto de técnicas utilizadas pelo
agente público para colocar em prática a função administrativa e organizar a

86
BERNARDO WILDI LINS – AMANDA PAULI DE ROLT

Administração Pública para melhor atender às demandas da sociedade. Em


última análise, as estratégias de gestão pública correspondem aos meios pe-
los quais a Administração Pública busca atingir os seus objetivos e satisfazer
o interesse público. Assim, é um instituto interdisciplinar que possui caráter
instrumental ao desafio do exercício da função administrativa e de bem exe-
cutar políticas públicas.
O assunto é desafiador principalmente porque os aspectos e valores en-
volvidos na decisão de como gerir estruturas e recursos públicos são mais com-
plexos do que na seara privada. Afinal, por mais que seja impossível planejar a
ação estatal sem perder de vista que os recursos públicos são finitos – deven-
do, portanto, serem aplicados racionalmente – a atuação estatal necessaria-
mente deverá mirar a garantia do atendimento às demandas da população de
forma eficiente, satisfazendo o interesse público. Assim, há certas obrigações
constitucionais a serem seguidas, notadamente a necessária participação do
Estado em campos sensíveis à população, tais como a saúde e a educação, e a
observância do regime jurídico administrativo.
Por conta disso, a adoção de técnicas de gestão pública está intimamente
ligada com a busca por uma maior eficiência do Estado na execução de suas
atividades, observando-se o regime jurídico administrativo, entendendo-se o
vocábulo eficiência em seu sentido jurídico amplo, englobando, além do pró-
prio sentido científico da palavra, relacionado a realizar mais e melhor com
menos tempo e recursos, “vários outros afins, tais como a eficácia, a efetivida-
de, a racionalização, a produtividade e a celeridade”3.
Pois bem. A Administração Pública brasileira encontra-se majoritaria-
mente organizada sob o método burocrático de gestão pública, cujas principais
características serão abordadas no tópico seguinte. A adoção do método de
gestão pública burocrático é a causa do fenômeno da burocracia, que vai ser
abordado logo em sequência.

2.1. MODELO BUROCRÁTICO DE GESTÃO PÚBLICA


O modelo burocrático de gestão pública foi descrito pelo filósofo alemão
Max Weber, em uma época em que o mundo passava por profundas transfor-
mações econômicas, políticas e sociais, que foram sendo consolidadas no de-
correr do século XX. O sistema visava principalmente ao afastamento de prá-
ticas patrimonialistas na Administração Pública4, o que era extremamente co-

3 GABARDO, Emerson. A Eficiência no Desenvolvimento do Estado Brasileiro: uma questão política


e administrativa. In: MARRARA, Thiago (Org.). Princípios de Direito Administrativo. São Paulo:
Atlas, 2012, p. 342.
4 A Administração Pública patrimonialista é aquela em que há a apropriação do aparato público pelos
agentes públicos, sendo que as atividades e a estrutura administrativas são majoritariamente utili-
zadas em benefício próprio dos mandatários, e não em prol do interesse público. O assunto é de-
talhadamente exposto em obra que já se tornou clássica, qual seja “Os Donos do Poder: formação

87
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

mum em vários países do mundo, notadamente nos que enfrentavam regimes


autoritários. Não é nenhuma surpresa, portanto, que o modelo burocrático seja
pautado por um intenso controle procedimental da atividade administrativa.
O modelo burocrático de gestão pública parte da premissa de que as
estruturas burocráticas sejam organizadas de forma eminentemente racional,
procedimentalizada, sem que se deixem espaços para desvios decorrentes da
ação humana. Nesse sentido, Irene Nohara identificou as principais caracte-
rísticas do modelo:
(a) caráter legal das normas e regulamentos; (b) caráter formal das co-
municações, baseadas em documentos ou atas, cujo original ou rascunho
é guardado por um quadro de funcionários subalternos ou escrivães de
todas as espécies; (c) racionalidade e divisão do trabalho; (d) impessoali-
dade das relações; (e) hierarquia entre as autoridades; (f) rotinas e proce-
dimentos padronizados; (g) competência técnica e meritocrática; (h) espe-
cialização e profissionalização; e, (i) previsibilidade do funcionamento5.
Inclusive, Nohara aponta, ainda, que foi o fato de o modelo racional-legal
ou burocrático de gestão pública ter como mote o afastamento, das práticas or-
ganizacionais, das relações pessoais, pautadas pelo subjetivismo, e da ausência
de procedimentos e controles, permitiu o florescimento do Direito Administra-
tivo, que, em sua vertente originária, foi influenciada por tais noções6.
É natural que fosse assim, já que a adoção do método de gestão burocrá-
tico buscava afastar da Administração Pública as chamadas práticas patrimo-
nialistas, que pautavam a sua gestão até então.
Como visto, são características centrais das organizações burocráticas a
profissionalização e a especialização dos seus integrantes e o rígido controle
dos procedimentos realizados pelos burocratas que ocupam posições hierar-
quicamente inferiores por aqueles que ocupam as posições superiores. Ou
seja, o sistema burocrático é organizado verticalmente, de modo que os posi-
cionados nas camadas inferiores da organização burocrática são controlados
por aqueles nas camadas superiores.
Paradoxalmente, o modelo foi assim imaginado justamente para a confe-
rência de maior eficiência à atividade administrativa. Segundo o próprio Weber,
[a] administração puramente burocrática, portanto, a administração
burocrático-monocrática mediante documentação, considerada do pon-
to de vista formal, é, segundo toda a experiência, a forma mais radical
de dominação, porque nela se alcança tecnicamente o máximo de ren-
dimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e con-
fiabilidade – isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para os

do patronato político brasileiro”, de Raymundo Faoro (FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder:


formação do patronato político brasileiro. 3. ed. Porto Alegre: Globo, 2001).
5 NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia. São Paulo: Atlas, 2012, p. 28-29.
6 NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia. São Paulo: Atlas, 2012.

88
BERNARDO WILDI LINS – AMANDA PAULI DE ROLT

demais interessados –, intensidade e extensibilidade dos serviços, e apli-


cabilidade formalmente universal a todas as espécies de tarefas7.
O resultado que se apresentou na prática, todavia, foi bem ao contrário.
A utilização do método burocrático é apontada como uma das razões centrais
da ineficiência da atividade administrativa. A explicação para isso é que Weber
estudou a burocracia em sua forma pura, essencialmente teórica, que acabou
sendo por ele denominada como o “tipo ideal”. O “tipo ideal” da burocracia
não considera os problemas decorrentes da sua aplicação prática, as denomi-
nadas “disfunções” do modelo burocrático8.
Na prática, “nenhuma organização corresponde exatamente ao modelo
puro de burocracia”9, sendo que, na grande maioria delas, verificou-se que as
disfunções acabam por sobrepor-se aos benefícios do modelo. É daí que vem o
uso do termo “burocracia” pejorativamente, de modo a denominar algum pro-
cedimento moroso, sem sentido, ineficiente. Na verdade, sãos as disfunções do
modelo burocrático, ou o burocratismo, que acabaram ficando popularmente
conhecidas como burocracia, como se verá no tópico a seguir.

2.2. BUROCRACIA
Como se viu, o tipo puro do modelo de gestão burocrático não é possível
de ser aplicado na prática porque não leva em conta as suas disfunções, que
sempre acabam sendo identificadas com o seu uso. O burocratismo, segundo
Bencini, é caracterizado pela:
Proliferação de organismos sem conexão com as exigências gerais de
funcionalidade, acentuação de aspectos formais e processuais sobre os
aspectos substanciais com a consequente morosidade das atividades e
redução das tarefas desempenhadas [...], e, finalmente, triunfo da orga-
nização – a burocracia – sobre suas finalidades10.
Uma das principais disfunções do modelo burocrático e que levam a
chamada burocracia é a presença de uma organização informal no seio da
organização formal, que adota práticas não previstas nos regulamentos bu-
rocráticos. “A presença dessa organização informal decorre da impossibili-
dade de perfeitamente aplicarem-se na prática todos os rigorismos formais
previstos nos regulamentos burocráticos, sem que haja qualquer tentativa de
fuga por parte dos seus membros”11. A completa maquinação da atividade
administrativa realizada por seres humanos é irreal.

7 WEBER, Max. Economia e Sociedade. V.1. 4. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
2012, p. 145.
8 CROZIER, Michel. O Fenômeno Burocrático. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 281.
9 MOTTA, Fernando C. Prestes; BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Introdução à Organização Buro-
crática. São Paulo: Brasiliense,1980, p. 23.
10 BENCINI apud NOHARA, 2011, p. 57
11 LINS, Bernardo Wildi. Organizações Sociais e Contratos de Gestão. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2015, p. 49.

89
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

A implementação do método de gestão burocrático demanda ampla es-


truturação da Administração Pública, já que tem como pressuposto uma estru-
tura verticalizada, segmentada, e com competências estritamente delimitadas.
A necessidade de controle formal dos procedimentos dos burocratas posicio-
nados em cargos inferiores por aqueles que estão nos superiores também é
causa disso. A suposta solução para a ineficiência da atividade administrativa
muitas vezes é ampliação da malha burocrática, com a criação de mais cargos,
o que aumenta os custos e faz com que a divisão do trabalho, que era para ser
racional, acabe ficando irracional.
Assim, na prática, a eficiência na atividade administrativa que decorre-
ria da aplicação correta dos regulamentos burocráticos não acontece, muito
por conta da fuga do sistema realizado pelas pessoas que compõem a or-
ganização. O excesso de burocratização, portanto, acabou virando um mal
da Administração Pública, já que acabou ocasionando o surgimento de um
verdadeiro “Estado administrativo, [...] formado por uma complexa rede de
organizações administrativas e uma crescente burocracia de funcionários”12.
O resultado disso é ineficiência e alto custo, o que levou a necessidade de se
engendrarem reformas no aparato estatal.
Para além disso, o sistema de rígido controle de procedimentos, que ser-
viria para, além de garantir a eficiência, coibir a corrupção, não acabou cum-
prindo com esse desiderato, já que, focalizando especificamente no Brasil, ele
se encontra na 96ª posição do estudo da Transparência Internacional de 2017,
sendo que, quanto melhor colocado no ranking, menos corrupção é percebida
no setor público do país13.
Assim, considerando-se todos esses aspectos, em vários países do mundo
– incluindo o Brasil, ainda que tardiamente – começaram a eclodir movimen-
tos de reformas administrativas, visando alcançar uma alternativa ao modelo
de gestão burocrático e a superação das suas disfunções. Aborda-se o assunto
no capítulo seguinte.

3. REFORMA ADMINISTRATIVA E DESBUROCRATIZAÇÃO


As referidas deficiências decorrentes da aplicação prática do modelo de
gestão burocrático justificou que o Estado tivesse que engendrar alternativas
para a forma de organização administrativa. Trata-se, em certa medida, de um
processo natural de modernização da Administração Pública, visando adaptá-
la às necessidades dos novos tempos. A esse processo de alteração da estrutura
e da forma de gestão pública denomina-se reforma administrativa.

12 PESSOA, Robertônio Santos. Constitucionalismo, Estado e Direito Administrativo no Brasil. Revista


Brasileira de Direito Público – RBDP. Belo Horizonte, ano 7, n. 24, jan./mar. 2009, p. 22.
13 Transparência Internacional. Corruption Perceptions Index 2017. 2017. Disponível em: <https://
www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2017>. Acesso em: 25 fev. 2018.

90
BERNARDO WILDI LINS – AMANDA PAULI DE ROLT

A Reforma Administrativa não consiste numa operação instantânea de re-


modelação de estruturas e procedimentos, e sim num processo de contínuo ajus-
tamento da organização e dos métodos da Administração Pública às condições
sociais e às necessidades coletivas de comunidades em constante transformação.
Por outras palavras, e usando da terminologia posta em moda por Toynbee, em
colocar a Administração Pública em termos de dar uma resposta pronta, adequa-
da e eficiente a cada novo desafio da sociedade em desenvolvimento14.
No Brasil, o movimento mais recente e destacado de reforma administra-
tiva deu-se na segunda metade da década de 1990, no governo do então Presi-
dente Fernando Henrique Cardoso, e teve como objetivos principais raciona-
lizar custos e incrementar a eficiência da atividade administrativa. O mote da
reforma era desburocratizar a atividade administrativa, por meio da aplicação
da técnica de gestão pública gerencial.
A inspiração do gerencialismo brasileiro foram os movimentos de refor-
ma administrativa aplicados no Reino Unido e em outros países da Common-
wealth, principalmente a partir da década de 1980, que se deram em observân-
cia da doutrina da chamada New Public Management15.
O modelo pauta-se essencialmente pela fixação de metas de desempenho
ao administrador público e pelo rígido controle dos resultados com foco. As-
sim, diferentemente do que acontece na organização burocrática, o foco princi-
pal das organizações deixa de ser a observância dos regulamentos burocráticos
e a sua atividade passar a ser orientada por missões e o controle do seu atingi-
mento. É o que explica Figueiredo:
Dentre os principais pontos diferenciais da administração gerencial apre-
sentados pelos escritores como avanço em relação à burocrática, estão a
confiança limitada que é depositada no gestor público, gozando de relati-
va autônoma para alcançar as metas, pré-fixadas e controladas a posterio-
ri através dos resultados, em oposição à administração burocrática, que
controla todos os procedimentos de compras e contratações, como conse-
quência da confiança absoluta no administrador; e a orientação centrada
no atendimento ao cidadão, que passa a ser visto como cliente, numa no-
ção nitidamente mercadológica, em oposição à administração burocrática,
que, como se viu, frequentemente é acusada de ser autorreferente16.

14 CAETANO, Marcello. A Reforma Administrativa. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; SUND-
FELD, Carlos Ari (Orgs.). Fundamentos e Princípios do Direito Administrativo: coleção doutrinas
essenciais: Direito Administrativo. V. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 117.
15 Maria das Graças Rua informa os fundamentos da New Public Management: “a) O foco é o cidadão,
e as atividades se orientam para a busca de resultados. b) O princípio da eficiência econômica cede
espaço ao princípio da flexibilidade. c) Ênfase na criatividade e busca da qualidade. d) Descentrali-
zação, horizontalização das estruturas e organização em redes. e) Valorização do servidor, multies-
pecialidade e competição administrada. f) Participação dos agentes sociais e controle dos resultados”
(RUA, Maria das Graças. Desafios da Administração Pública Brasileira: governança, autonomia,
neutralidade. Revista do Serviço Público. Brasília, ano 48, n. 3, set./dez. 1997, p. 143).
16 FIGUEIREDO, Cláudio Eduardo Regis. Administração Gerencial & a Reforma Administrativa no
Brasil. Curitiba: Juruá, 2002, p. 68.

91
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Assim, a gestão pública gerencial é inspirada por ideais de consensuali-


dade da Administração Pública, que pautam o chamado Direito Administra-
tivo moderno, tendo como pressuposto a participação da sociedade na gestão
da coisa pública. Afinal, como bem aponta Aragão, por mais que a burocracia
estatal não possa estar pautada por interesses privados, também não pode es-
tar surda aos interesses coletivos17. Além disso, o modelo valoriza a celebra-
ção de parcerias com particulares membros da sociedade civil, diminuindo a
atuação direta do Estado – e, portanto, reduzindo custos – e aproveitando
as potencialidades dos particulares.
É importante esclarecer que o modelo gerencial não significa a completa
superação da burocracia weberiana. Bem ao contrário, não se propõe a negação
do modelo burocrático. Inclusive, há o reconhecimento de que existem setores
da Administração Pública que a manutenção do modelo burocrático é a melhor
opção. Ademais, o modelo gerencial utiliza muitos elementos do modelo buro-
crático. Ambos possuem a mesma base conceitual, pautada por uma metodo-
logia de organização racional-legal. A diferença é a abordagem do emprego do
meio racional-legal. Assim, a ideia é que haja a convivência harmoniosa entre
os modelos, de modo que o modelo de gestão público burocrática continue
a ser aplicado com êxito onde for o caso, e, onde não for – o que ocasiona o
fenômeno da burocracia – , seja substituído pelo gerencial18.

4. CONCEITO DE CORRUPÇÃO
Como é bastante comum nesse segmento do Direito, não existe um con-
senso na doutrina quanto ao conceito de corrupção. Todavia, é possível obter
diversas noções que se aproximam, das quais é possível extraírem-se elemen-
tos para a construção de um conceito útil ao estudo. Por exemplo, para Emer-
son Garcia e Rogério:
Especificamente em relação à esfera estatal, a corrupção indica o uso ou a
omissão, pelo agente público, do poder que a lei lhe outorgou em busca da
obtenção de uma vantagem indevida para si ou para terceiros, relegando a
plano secundário os legítimos fins contemplados na norma. Desvio de po-
der e enriquecimento ilícito são elementos característicos da corrupção19.
Fernando Filgueira e Ana Luiza Melo Aranha comentam o fenômeno na

17 ARAGÃO, Cecília Vescovi de. Burocracia, Eficiência e Modelos de Gestão Pública: um ensaio.
Revista do Serviço Público. Brasília, ano 48, n. 3, set./dez. 1997.
18 Osborne e Gaebler trazem em sua obra analogia que ajuda a esclarecer o ponto: “O governo precisa
de algumas regras, obviamente. O navio do governo precisa de uma ou duas demãos de tinta; se a re-
movermos completamente, deixando o metal à mostra, irá enferrujar. O problema é que os governos
vieram acumulando uma dúzia de demãos de tinta, e mais camadas e camadas de tralha sem utilidade.
A meta da desburocratização é voltar ao ponto de apenas duas demãos de tinta. Essa é a proteção de
que precisamos, para que o navio possa mover-se novamente” (OSBORNE, David; GAEBLER, Ted.
Reinventando o Governo. Brasília: MH Comunicação, 1994, p. 123).
19 GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011. p. 7.

92
BERNARDO WILDI LINS – AMANDA PAULI DE ROLT

organização burocrática estatal:


A corrupção é a elevação de interesses privados sobre o interesse públi-
co, tendo em vista o recorte do fenômeno na dimensão da organização
burocrática do Estado. No caso da corrupção na dimensão da burocracia,
tomamos como pressuposto que ela ocorre quando um burocrata usa in-
devidamente sua margem de discricionariedade para favorecer seus inte-
resses privados em detrimento do interesse público20.
Por sua vez, Manoel Ferreira Filho afirma que “o termo se refere à con-
duta de autoridade que exerce o poder de modo indevido, em benefício de
interesse privado, em troca de uma retribuição de ordem material.”21. Ainda,
Flávia Piovesan e Victoriana Gonzaga, entendem que “corrupção é o desvir-
tuamento da relação do administrador com a Administração Pública, na qual
seu interesse privado se torna primordial em relação ao interesse público, em
flagrante ofensa ao espírito republicano.”22.
Já, Manoel Ferreira Filho entende que corrupção política ocorre quando
o uso do poder é desviado do interesse geral e atende interesses de grupos ou
interesses particulares23. Assim, para os fins deste artigo, entendemos corrup-
ção como o uso ou omissão, pelo agente público, do seu poder ou função para
obtenção de facilidades indevidas para si ou terceiro.
Ademais, existem na literatura especializada vertentes analíticas do con-
ceito de corrupção. Uma das principais abordagens é a perspectiva dos custos
e benefícios da corrupção, ou seja, um viés econômico. Por meio desta pers-
pectiva, o problema da corrupção é explicado por um conjunto de práticas de-
nominado no estrangeiro de rent-seeking, que configuram “novas formas de
apropriação da res publica praticadas por particulares em proveito próprio”24.
A utilização de práticas rent-seeking é favorecida pelo monopólio de po-
der e de recursos. O rent-seeking é praticado por burocratas e atores políti-
cos que não têm incentivos para seguir as regras institucionais e criam, por
exemplo, um sistema de cobrança de propinas mascarado pela burocracia da
organização pública – uma verdadeira caça à renda. Estas práticas aumen-
tam o custo da Administração pública e prejudicam diretamente o desenvol-
vimento econômico do país25.

20 FILGUEIRA, Fernando. ARANHA, Ana Luiza Melo. Controle da Corrupção e Burocracia da Linha
de Frente: Regras, Discricionariedade e Reformas no Brasil. Revista Dados. Rio de Janeiro, v. 54, n.
2, 2011, p. 354.
21 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A corrupção como fenômeno social e político. Revista de
Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 185, jul./set. 1991, p. 3.
22 PIOVESAN, Flávia. GONZAGA, Victoriana. Combate à corrupção e ordem constitucional: desafios
e perspectivas para o fortalecimento do estado democrático de direito. Revista dos Tribunais, v. 967,
maio 2016, p. 23.
23 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Corrupção e Democracia. Revista de Direito Administrati-
vo. Rio de Janeiro, n. 226, out./dez. 2001, p. 215.
24 FIGUEIREDO, Cláudio Eduardo Regis. Administração Gerencial & a Reforma Administrativa no
Brasil. Curitiba: Juruá, 2002, p. 59
25 Estado, instituições e democracia: república / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília:

93
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Além da abordagem econômica, existe a abordagem política do conceito


de corrupção, que envolve a deturpação da legitimidade política, da cultura po-
lítica, valores e moralidade. Assim, a ação do agente público é corrupta quando
ilegítima frente aos valores e normas da respectiva sociedade26. As principais
práticas de corrupção política são o nepotismo, clientelismo e a patronagem.
Nessa toada, as práticas de corrupção e os problemas delas provenientes
demandam reformas no aparato estatal, com a redução do tamanho das bu-
rocracias públicas e dos monopólios estatais27. Nesse contexto, o foco deste
estudo é a desburocratização, que será abordada a seguir.

5. DESBUROCRATIZAÇÃO E COMBATE À CORRUPÇÃO


Até agora, foram abordadas as principais características do método bu-
rocrático de gestão pública e, ainda, constatado que a consequência prática do
mesmo foi ocasionar o fenômeno da burocracia, afetando a eficiência e gerando
alto custo da atividade administrativa. Além disso, o rígido controle de pro-
cedimentos não serviu para cumprir com o seu desiderato, de afastar práticas
patrimonialistas da gestão pública e evitar a corrupção.
Muito pelo contrário, “a forte burocracia também reflete no aumento da
corrupção. A inércia do poder público acaba criando brechas para que pessoas
mal-intencionadas aproveitem da fragilidade institucional. Quanto maior a di-
ficuldade, maior é o espaço para a corrupção.”28.
A partir dessa constatação, houve iniciativas no sentido de superar os
problemas, que decorreriam da burocracia, com a realização de reforma ad-
ministrativa cujo mote era a desburocratização da Administração Pública e a
aplicação do método gerencial.
Conforme já ressaltado, talvez a grande preocupação relacionada à re-
lativização do modelo burocrático era a de que isso poderia significar em
um aumento da corrupção. É que como um dos pressupostos do modelo é
o rígido controle dos procedimentos, imaginava-se que o deslocamento do
principal foco de controle para o alcance dos resultados provocaria desvios
na atividade administrativa.
À primeira vista, poder-se-ia mesmo imaginar que a modificação do foco
do controle realizado pela Administração Pública sobre os gestores públicos,
deixando de estar direcionado aos procedimentos de execução das atividades,
Ipea, 2010. v. 1, p. 476-477.
26 Estado, instituições e democracia: república / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília:
Ipea, 2010. v. 1, p. 477-478.
27 Estado, instituições e democracia: república / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília. p. 477.
28 ALVARENGA, Alixandre Abel. Impactos da burocracia no desenvolvimento econômico do país.
Disponível em: <https://unieducar.org.br/artigos/Impactos%20da%20burocracia%20no%20desen-
volvimento%20economico%20do%20pais.pdf>. Acesso em: fev. 2018, p. 10.

94
BERNARDO WILDI LINS – AMANDA PAULI DE ROLT

passando a mirar o alcance dos resultados, fragilizaria o poderio fiscalizador


do Estado. Todavia, na visão dos defensores do modelo gerencial, que imagi-
naram a reforma administrativa, o resultado da aplicação do gerencialismo é
justamente o inverso , já que, “[p]ara o ‘paradigma gerencialista’, a administra-
ção pública burocrática é falha porque permite grandes desvios e capturas do
aparelhos estatal pelos interesses privados e corporativos”29.
Considera-se o raciocínio dos autores gerencialistas acertado. A desburo-
cratização é, também, uma ferramenta de combate à corrupção, já que as dis-
funções do modelo de gestão burocrático são uma de suas principais causas.
Entende-se assim, porque: (i) o modelo burocrático de gestão pública concentra
as competência e responsabilidades (o “poder”, para clarificar a questão) na mão
dos burocratas, enquanto o modelo gerencial dilui o mesmo para a sociedade.
Isso tem como consequência a diminuição do número de pessoas a serem cor-
rompidas e um maior controle da sociedade sobre a atividade administrativa;
e (ii) relevante parcela dos atos de corrupção envolvem a tentativa, por parte
do particular de, ainda que irregularmente, superar e/ou afastar algum entra-
ve e/ou dificuldade que a burocracia provoca sobre os seus interesses. Assim, o
incremento da eficiência trazido pela aplicação do modelo gerencial contribui,
também, para a diminuição da corrupção, uma vez que, com a simplificação dos
procedimentos administrativos, a prática passará a ser desnecessária.
Ora, a corrupção nada mais é do que a venda, por parte do agente pú-
blico, de facilidades indevidas ao agente privado, o corruptor. Nas palavras
de Alixandre Alvarenga, “as dificuldades para se resolver problemas junto a
administração pública, fazem com que as pessoas recorram a uma “indústria
de facilidades”, responsável pelo surgimento de um grave fenômeno: a corrup-
ção.”30. O raciocínio proposto, portanto, é que diminuir o aspecto do que pode
ser vendido é a melhor forma de provocar a diminuição da corrupção.
Parece que as soluções gerenciais para a desburocratização contribuem
para o alcance dos fins ora propostos. Por um lado, o gerencialismo propõe a
diminuição da atuação direta do Estado (e, como consequência, o tamanho da
sua estrutura), dando importância ao consensualismo com a sociedade civil e
elevando o particular a condição de protagonista no processo de efetivação de
políticas públicas. Isso tem o potencial de gerar a diminuição do espectro de
agentes corrompíveis, diminuindo, assim, a corrupção. Por outro lado, objeti-
va a simplificação das atividades administrativas e a diminuição dos entraves
burocráticos impostos pelo Estado, o que tem o potencial de evitar a “compra”

29 VERONESE, Alexandre. Reforma do Estado e Organizações Sociais: experiência de sua implanta-


ção no Ministério da Ciência e Tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 34.
30 ALVARENGA, Alixandre Abel. Impactos da burocracia no desenvolvimento econômico do país.
Disponível em: <https://unieducar.org.br/artigos/Impactos%20da%20burocracia%20no%20desen-
volvimento%20economico%20do%20pais.pdf>. Acesso em: fev. 2018, p. 9.

95
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

de facilidades ilegais, que passarão a ser desnecessárias.


Essa ideia encontra eco na opinião dos autores gerencialistas que defen-
dem a desburocratização, para quem o tamanho do aparato necessário para
a realização das atividades de sua competência é proporcional à da seara de
atuação do Estado. Conforme aponta Lins, “o aumento do tamanho da estrutu-
ra do Estado, além de ampliar custos, incrementa a sujeição da Administração
às nefastas práticas de apropriação privada do interesse público, a chamada
“captura” do interesse público pelo interesse privado”31.
Bresser-Pereira, um dos idealizadores do gerencialismo brasileiro, defen-
dia que a adoção do modelo de gestão pública, além de incrementar a eficiên-
cia do Estado, representa “um instrumento de proteção do patrimônio público
contra os interesses do rent-seeking ou da corrupção aberta”32. É isso que justi-
fica a afirmação de que a superação do burocratismo busca combater
a atuação auto-referida da burocracia impedindo a apropriação privada dos
recursos públicos, seja pela ineficiência, mau uso, corrupção ou por grupos
de interesses. Uma atuação voltada para os clientes-cidadãos aumentará
sensivelmente a responsabilidade pública (accountability) dos funcionários
do Estado, essencial para uma maior publicização do Estado33.
Assim, conforme aponta Abrucio, a aplicação de políticas de desburo-
cratização e de democratização da máquina pública proporciona combate à
corrupção também porque a colocação dos cidadãos em uma situação menos
desigual com a Administração Pública, em um país em que a desigualdade co-
meça pelo acesso ao Estado, incrementa o controle social, reduzindo o campo
de práticas corruptas34.
Nesse sentido, segundo Bresser-Pereira e Pacheco,
a melhor forma de lutar contra o clientelismo e outras formas de captura
do Estado é dar um passo adiante e tornar o Estado mais eficiente e mais
moderno. É preciso lutar contra a corrupção e o desperdício, mas essa luta
não alcança êxito se nos limitamos a enrijecer a administração pública com
controles e mais controles. Em vez disso, é preciso combinar confiança com
controle, dando mais autonomia ao gestor público, e fazê-lo mais respon-
sabilizado pelos seus atos35 (BRESSER-PEREIRA, PACHECO, 2005, p. 10).

31 LINS, Bernardo Wildi. Organizações Sociais e Contratos de Gestão. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2015, p. 57.
32 BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Gestão do Serviço Público: estratégia e estrutura para um novo
Estado. In: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; SPINK, Peter (Orgs.). Reforma do Estado e Admi-
nistração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
33 KEINERT, Tania Margarete Mezzomo. Administração Pública no Brasil: crise e mudanças de para-
digmas. 2. ed. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008, p. 93.
34 ABRUCIO, Fernando Luiz. Trajetória Recente da Gestão Pública Brasileira: um balanço crítico e a
renovação da agenda de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, Edição Espe-
cial Comemorativa, 2007.
35 BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; PACHECO, Regina Silvia. Instituições, Bom Estado e Reforma
da Gestão Pública. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Salvador, nº 3, set./out./nov. 2005.

96
BERNARDO WILDI LINS – AMANDA PAULI DE ROLT

Tornar a Administração pública mais eficiente, com procedimento me-


nos complexos e transparentes, é uma das medidas de combate às práticas de
corrupção. Além de reduzir a quantidade de facilidades vendidas pelo agente
corrupto, propicia um controle social da atividade administrativa.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Persiste na Administração Pública brasileira o método de gestão pública
burocrático, que objetivava, entre outros, afastar condutas patrimonialistas. Na
prática, apesar de ser importante para a organização da máquina pública, em
muitos casos o modelo burocrático apresentou uma série de disfunções, que
contribuem, até hoje, para a ineficiência do aparato administrativo e para a
promoção de práticas de corrupção.
O método burocrático não afastou as práticas patrimonialistas, quanto
maior a complexidade dos procedimentos mais desvios e corrupção são come-
tidos pelos agentes públicos. Parece, portanto, evidente que a burocracia é um
catalisador da corrupção, na medida em que procedimentos mais complexos
ocasionam fugas do sistema pelos agentes públicos e vendas de facilidades aos
particulares. A burocracia em excesso é um dos fatores que contribui para os
desvios e a captura do aparelho estatal por interesses particulares.
O modelo de gestão pública gerencial, imaginado em 1995 por Bresser
Pereira, pode ser um importante instrumento para mitigar as práticas de cor-
rupção por meio da desburocratização. A desburocratização seria, portanto,
política que contribui para a redução da corrupção, pois (i) elimina a venda de
facilidades ao particular frente aos entraves da burocracia e (ii) reduz a atuação
direta do Estado, elevando o particular à protagonista da gestão pública, res-
tringindo a quantidade de agentes corrompíveis.
Desse modo, a reforma gerencial e outras iniciativas visando a desburo-
cratizar a atividade administrativa ser para mitigar as disfunções da burocracia
e combater a corrupção. Entretanto, muitos órgãos da Administração Pública
ainda são diagnosticados com distorções provocadas pelo excesso de burocra-
cia, contribuindo diretamente com os altos níveis de corrupção no país.

7. REFERÊNCIAS
ABRUCIO, Fernando Luiz. Trajetória Recente da Gestão Pública Brasileira: um balanço crítico e a
renovação da agenda de reformas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, Edição Especial
Comemorativa, 2007.
ARAGÃO, Cecília Vescovi de. Burocracia, Eficiência e Modelos de Gestão Pública: um ensaio.
Revista do Serviço Público. Brasília, ano 48, número 3, set-dez 1997.
ALVARENGA, Alixandre Abel. Impactos da burocracia no desenvolvimento econômico do país. Dispo-
nível em: <https://unieducar.org.br/artigos/Impactos%20da%20burocracia%20no%20desenvolvi-

97
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

mento%20economico%20do%20pais.pdf >. Acesso em: fev. 2018.


BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Gestão do Serviço Público: estratégia e estrutura para um novo
Estado. In: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; SPINK, Peter (Orgs.). Reforma do Estado e Administra-
ção Pública Gerencial. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; PACHECO, Regina Silvia. Instituições, Bom Estado e Reforma
da Gestão Pública. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Salvador, nº 3, set./out./nov. 2005.
CAETANO, Marcello. A Reforma Administrativa. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; SUN-
DFELD, Carlos Ari (Orgs.). Fundamentos e Princípios do Direito Administrativo: coleção doutrinas
essenciais: Direito Administrativo. V. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
CROZIER, Michel. O Fenômeno Burocrático. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.
Estado, instituições e democracia: república / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília:
Ipea, 2010. v. 1.
GABARDO, Emerson. A Eficiência no Desenvolvimento do Estado Brasileiro: uma questão polí-
tica e administrativa. In: MARRARA, Thiago (Org.). Princípios de Direito Administrativo. São Paulo:
Atlas, 2012.
GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 3. Ed. Porto
Alegre: Globo, 2001.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Corrupção e Democracia. Revista de Direito Administrativo.
Rio de Janeiro, n. 226, out./dez. 2001, p. 213-218.
______. A corrupção como fenômeno social e político. Revista de Direito Administrativo. Rio de
Janeiro, n. 185, jul./set. 1991, p. 1-18.
FIGUEIREDO, Cláudio Eduardo Regis. Administração Gerencial & a Reforma Administrativa no Bra-
sil. Curitiba: Juruá, 2002.
FILGUEIRA, Fernando. ARANHA, Ana Luiza Melo. Controle da Corrupção e Burocracia da Li-
nha de Frente: Regras, Discricionariedade e Reformas no Brasil. Revista Dados. Rio de Janeiro, vol.
54, n. 2, 2011, p. 349-387.
KEINERT, Tania Margarete Mezzomo. Administração Pública no Brasil: crise e mudanças de para-
digmas. 2. ed. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.
LINS, Bernardo Wildi. Organizações Sociais e Contratos de Gestão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
MOTTA, Fernando C. Prestes; BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Introdução à Organização Burocrá-
tica. São Paulo: Brasiliense,1980.
NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia. São Paulo: Atlas, 2012.
OSBORNE, David; GAEBLER, Ted. Reinventando o Governo. Brasília: MH Comunicação, 1994.
PESSOA, Robertônio Santos. Constitucionalismo, Estado e Direito Administrativo no Brasil. Re-
vista Brasileira de Direito Público – RBDP. Belo Horizonte, ano 7, n. 24, jan./mar. 2009.
PIOVESAN, Flávia. GONZAGA, Victoriana. Combate à corrupção e ordem constitucional: desa-
fios e perspectivas para o fortalecimento do estado democrático de direito. Revista dos Tribunais,
v. 967, maio 2016, p. 21-38.
RUA, Maria das Graças. Desafios da Administração Pública Brasileira: governança, autonomia,
neutralidade. Revista do Serviço Público. Brasília, ano 48, número 3, set./dez. 1997.
Transparência Internacional. Corruption Perceptions Index 2017. 2017. Disponível em: <https://www.
transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2017>. Acesso em: 25 fev. 2018.
VERONESE, Alexandre. Reforma do Estado e Organizações Sociais: experiência de sua implantação
no Ministério da Ciência e Tecnologia. Belo Horizonte: Fórum.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. V.1. 4. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2012.

98
A CORRUPÇÃO NAS LICITAÇÕES E CONTRATOS
ADMINISTRATIVOS – A LEI Nº 8.666/93
EM SEUS 25 ANOS

Felipe Cesar Lapa Boselli1


Giovanna Maisa Gamba2
Leonardo Moraes3

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A corrupção dentro da Administração Pública no Brasil é tema de vasta
discussão, sendo objeto de diversos estudos que vão da área jurídica à psicolo-
gia, passando pela sociologia, economia, administração, contabilidade, dentre
outras áreas do conhecimento.
Não há dúvida, portanto, da complexidade do tema, da dificuldade de se
apresentar soluções simples e unitárias que sejam capazes, em uma espécie de
emplasto milagroso, de resolver esta mazela brasileira que possui raízes histó-
ricas profundas em nossa nação.
Neste contexto seria impossível, sobretudo em um singelo artigo, ter a
pretensão de enfrentar um problema de tamanha magnitude. Logo, o recorte
metodológico do caso torna-se imperativo.
No presente estudo foram aplicados três recortes importantes: o primeiro
divide a corrupção na esfera pública e privada, sendo tratada aqui a corrupção
no âmbito da Administração Pública.
O segundo recorte fundamental é sobre qual área da Administração Pú-
blica será direcionado o estudo, para a qual foi feita a opção de analisar as
contratações públicas, desde a sua fase interna do processo licitatório, até as
etapas de pagamento e encerramento do contrato.
No terceiro recorte metodológico, dividiu-se os atos administrativos pas-

1 Advogado. Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/
UFSC).
2 Mestranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Graduada em Direito pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo sido contemplada com o Prêmio Alumni ‘32 por
Envolvimento com a Universidade Federal de Santa Catarina. Monitora do curso de Pós-Graduação
em Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas (SP) – FGVLaw. Presidente do Centro Aca-
dêmico XI de Fevereiro (Gestão 2015/2016). Bolsista da University Studies Abroad Consortium –
USAC para intercâmbio na University of Nevada – Reno (2016). Membro do Grupo de Estudos em
Direito Público – GEDIP/UFSC, vinculado ao PPGD/UFSC.
3 Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de
Estudos em Direito Público – GEDIP/UFSC, vinculado ao PPGD/UFSC.

99
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

síveis de corrupção, pela teoria dos atos administrativos, entre atos discricio-
nários e os atos vinculados.
Esta última divisão é a essência do presente artigo, os atos administra-
tivos passíveis de corrupção podem acontecer em duas esferas. De um lado,
gestores mal-intencionados podem praticar atos administrativos ímprobos no
campo de seus atos discricionários ou de menor vinculação legal, de outro se-
riam a corrupção praticada na simples omissão ou descumprimento de um ato
administrativo vinculado.
Assim o gestor agiria em um terreno pantanoso, de difícil controle e ad-
ministração. São exemplos destes atos nos contratos administrativos as espe-
cificações técnicas dos editais, a opção entre a compra ou locação de um deter-
minado bem, a escolha de determinada tecnologia nos sistemas da Adminis-
tração, dentre outros.
Esta espécie de atos corruptivos possui uma complexidade extremamente
alta. São diversos os aspectos a ela relacionados que vão da cultura do jeiti-
nho brasileiro à ingerência política em decisões administrativas, passando pela
falta de capacitação e valorização de servidores públicos, ausência de meca-
nismos lícitos para que a empresa privada apresente novas soluções ao Poder
Público, volume de operações contratuais contrastado com a insuficiência da
estrutura dos órgãos de controle para fazer frente a todos os processos, além
de diversas outras causas.
Por outro lado, no que tange ao controle de atos vinculados, naqueles em
que a legislação prevê, claramente, os critérios e prazos para realização do ato,
a omissão do gestor público ou a prática de atos corruptivos seria, ao menos
em tese, mais facilmente controlável.
Isto porque, diferentemente dos atos discricionários, nos quais sempre
haverá uma discussão teórica acerca da viabilidade do judiciário se imiscuir
nas atividades administrativas, ou da própria atividade de controle tendo in-
gerência sobre atos de gestão, nos atos de natureza vinculada, a ação do gestor
segue parâmetros objetivados por lei, o que deveria representar uma possibili-
dade de controle mais rápido e efetivo.
Tome-se, como exemplo, o pagamento de um contrato administrativo. O
prazo de pagamento máximo estabelecido por lei é de 30 (trinta) dias contados
da data do adimplemento da obrigação pelo particular (alínea “a” do inciso
XIV do art. 40 da Lei 8.666/1993). Trata-se de ato estritamente vinculado, no
qual o gestor público tem o dever de pagar até o limite do prazo legal.
Mesmo nos atos vinculados, em que o gestor público teria a obrigação
legal de agir, por vezes até mesmo com prazo estabelecido em lei, é cediço que
muitos casos não ocorre o cumprimento da obrigação legal.

100
FELIPE CESAR LAPA BOSELLI – GIOVANNA MAISA GAMBA – LEONARDO MORAES

O não cumprimento do dever da Administração, por vezes, é utilizado


como mecanismo de corrupção, no qual o gestor público vincula a prática de
um ato administrativo ao recebimento de vantagem indevida.
Ocorre que, nestes casos, o legislador previu condições e prazo para a
realização do ato administrativo, sendo inconcebível que se conceda ao ges-
tor inescrupuloso a possibilidade de cobrar uma vantagem para praticar um
dever funcional seu.
Tem-se assim, momentos no processo licitatório-contratual em que o le-
gislador pôde antever encruzilhadas que, caso concedida discricionariedade
ao gestor, poderiam ser utilizadas como mecanismos de corrupção.
A estes mecanismos será dada a denominação de “gatilhos de corrupção”.

2. OS GATILHOS DE CORRUPÇÃO
O processo licitatório contratual tornou-se, nos últimos anos, a menina
dos olhos da corrupção no cenário nacional. Passados os grandes escândalos de
funcionários fantasmas, ainda presentes, mas em menor quantidade, a grande
caixa-preta nacional no que tange à corrupção, são os contratos administrativos.
O histórico da Lei nº 8.666/1993 apresenta este indicativo, uma norma
redigida e aprovada na onda do processo de impeachment do ex-presidente
Fernando Collor, sob a acusação de inúmeros casos de corrupção, dentre eles
diversos ligados à contratação pública.
Neste cenário, a Lei nº 8.666/1993 veio como um claro instrumento de
combate à corrupção, na qual pretendia-se estancar os pontos nodais do pro-
cesso licitatório, nos quais existiriam a possibilidade de prática a atos lesivos
ao patrimônio público.
A Lei nº 8.666/1993 possui, espalhada entre seus 126 artigos, diversos
elementos que permitem identificar esses gatilhos de corrupção, nos quais foi
restringida a liberdade de agir do gestor público, de forma a limitar a possibi-
lidade de praticar atos lesivos ao erário.
Dentre estes diversos gatilhos de corrupção limitados pelo legislador, po-
dem ser destacados:
a) a combinação entre vinculação ao instrumento convocatório e julgamento
objetivo (arts. 3º e 41), que limitam o poder decisório do gestor na análise
das propostas;
b) a cronologiciedade dos pagamentos (art. 5º) que estabelece a ordem de pa-
gamento de acordo com as suas exigibilidades, impedindo que o gestor
público ordene o pagamento de acordo com sua preferência ou vantagens
recebidas;
c) a vedação, como regra geral, à limitação de marca no processo licitatório

101
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

(art. 15, § 7º), como forma de impedir que o gestor direcione o instrumento
convocatório a um fornecedor específico;
d) a interpretação restritiva aplicada às dispensas de licitação (art. 24), limi-
tando os processos em que o gestor pode contratar de forma direta, sem a
realização de licitação;
e) os critérios máximos estabelecidos para a habilitação das empresas (arts.
27 a 33), evitando que o gestor público exigisse documentos que pudessem
direcionar, indevidamente, a escolha da empresa a ser contratada;
f) as condições mínimas estabelecidas para o edital (art. 40), em especial:
i) prazo para assinatura (inciso II), evitando que o gestor deixe de
firmar contrato com o licitante vencedor;
ii) os critérios de julgamento claramente expostos (inciso VII), restrin-
gindo a possibilidade de subjetivismos no certame; e
iii) as condições de pagamento e o prazo (inciso XIV), afastando a pos-
sibilidade da exigência de vantagens indevidas para liberação do
pagamento devido ao contratado.
a) a definição dos prazos de execução e possibilidades de prorrogação (art.
57, § 1º), garantindo isonomia na execução contratual entre os licitantes e
evitando que vantagens escusas pudessem garantir à empresa o direito a
atrasar a execução contratual desmotivadamente;
b) os critérios para alterações contratuais, sobretudo quanto ao seu valor (art.
65), garantindo isonomia e que a vantajosidade aferida no processo licita-
tório seja mantida durante a execução do contrato;
c) os prazos para recebimento do objeto (art. 73), inclusive com a regra de re-
cebimento tácito (art. 73, §4º), criando a obrigação legal de o fiscal da obra
dar o atesto da entrega que libera o particular de suas obrigações; e
d) os casos em que é possível a rescisão contratual (art. 78) evitando a pos-
sibilidade de rescindir contrato com o particular que se negue a oferecer
vantagens a determinado gestor.
Nota-se que, além de outros casos, evidentemente, o legislador, em di-
versas oportunidades, buscou limitar a possibilidade de coação da empresa
licitante ou contratada a determinado pagamento ou vantagem.
Reitere-se aqui, de forma contundente, não se está a afirmar que a corrup-
ção ocorre apenas nestes casos, nem mesmo que esta é a maior parte das suas
possibilidades. O que se está a desenvolver no presente artigo é, tão somente,
um recorte metodológico, para que se possa buscar uma solução, ainda que
parcial, para um problema complexo que, certamente, jamais poderia ser en-
frentado com uma ou poucas intervenções isoladas.

3. A CORRUPÇÃO NAS LICITAÇÕES EM ATOS DISCRICIONÁRIOS


OU DE ATUAÇÃO ISOLADA DOS LICITANTES
É fato que diversos problemas relacionados à corrupção ocorrem em

102
FELIPE CESAR LAPA BOSELLI – GIOVANNA MAISA GAMBA – LEONARDO MORAES

atos de natureza discricionária, ou seja, de maior liberdade ao gestor, e tam-


bém com a participação isolada dos licitantes, sem a necessidade de envolvi-
mento de gestores públicos.
Essas práticas delituosas possuem características que dificultam o contro-
le da corrupção, justamente pela ausência de um trâmite único definido por lei
para regulamentar determinada atividade.
Como exemplo dessas fraudes de natureza discricionária, tem-se os casos
de corrupção relacionados à redação do instrumento convocatório, sobretudo
das especificações técnicas e, pelo lado dos licitantes sem a participação dos
gestores públicos, a prática do crime de conluio em licitações.

3.1. A DEFINIÇÃO DO OBJETO A SER CONTRATADO


É na chamada fase interna do processo licitatório que a Administração
manifesta o seu desejo em contratar determinado bem ou serviço, nesse mo-
mento o objeto deverá ser definido, conforme ensina Marçal Justen Filho:
Em um momento inicial, a Administração verificará a existência de uma
necessidade a ser atendida. Deverá diagnosticar o meio mais adequado
para atender ao reclamo. Definirá um objeto a ser contratado, inclusive
adotando providências acerca da elaboração de projetos, apuração da
compatibilidade entre a contratação e as previsões orçamentárias. Tudo
isso estará documentado em procedimento administrativo, externando-se
em documentação constante dos respectivos autos.4
É também nessa etapa em que é possível a Administração criar exigências
irrelevantes e desnecessárias buscando direcionar o futuro contrato a determi-
nado particular. Ao especificar um produto ou serviço de forma tendenciosa a
Administração, propositadamente, diminui o leque de empresas em condições
de disputar o processo licitatório, o que muitas vezes pode ocasionar em ape-
nas uma ou duas empresas apresentando propostas.
Independente da nomenclatura do documento responsável pela defini-
ção do objeto a ser contratado – seja o projeto básico ou termo de referência – é
necessário que esse seja suficiente para que a licitação cumpra seu propósito e
ao mesmo tempo não contenha exigências que afastem potenciais contratados.
Nestes casos fica evidente a afronta ao princípio da impessoalidade e o
dano ao interesse público. Ao restringir o número de empresas participantes
do certame a Administração acaba por frustrar o caráter competitivo e conse-
quentemente contratar por um preço mais elevado.
É neste “fio da navalha” que a Administração está: de um lado, deve for-
mular as exigências indispensáveis à boa seleção do contratado e ao cumpri-

4 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014, p. 391.

103
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

mento do contrato; de outro lado, não pode ir além deste estritamente necessá-
rio, que, na realidade, na maioria das vezes, é verificado caso a caso.

3.2. CONLUIO ENTRE LICITANTES


Um expediente muito utilizado por licitantes objetivando fraudar os cer-
tames licitatórios se dá na fase externa do processo licitatório, ou seja, após a
publicação do aviso de licitação. Neste momento, os particulares têm acesso
ao edital e seus anexos, teoricamente dar-se-ia a elaboração independente das
propostas, buscando o preço mais competitivo possível.
A apresentação de propostas em conluio (ou a concertação de propostas)
ocorre quando os proponentes, em vez de competirem e buscarem o direito a
contratação, como seria de se esperar, conspiram secretamente para burlar a
concorrência do certame, tendo por consequência o aumento dos preços ou a
baixa da qualidade dos bens e serviços.
O conluio entre interessados na licitação pode ser praticado de diversas for-
mas, as mais comuns contam com esquemas de partilha e distribuição dos lucros
adicionais obtidos através da contratação por preço superfaturado. Por exem-
plo, duas empresas chegam ao acordo de uma delas não apresentar proposta ou
apresentar propostas de valor muito elevado, assim poderá ser subcontratada
pela empresa vencedora ou simplesmente receber uma parte do lucro adicional.
Outra forma bastante comum de conluio entre licitantes é o chamado ro-
dízio de propostas, isso ocorre, por exemplo, quando um órgão público decide
contratar determinado bem ou serviço em lotes.
Toma-se como exemplo uma Administração realizando um processo licita-
tório cujo objeto é a construção de várias obras que seriam contratadas isolada-
mente. Neste caso, algumas empresas poderiam formar um cartel, por intermé-
dio de um acordo para que cada empresa do cartel oferecesse a proposta mais
baixa para uma das obras e apresentasse proposta mais altas para as demais, evi-
tando a efetiva disputa ente elas. Um “acordo de cavalheiros” com o objetivo fi-
nal de diminuir a competição e conseguir o contrato com o maior preço possível.
É oportuno ressaltar que o conluio entre empresas licitantes e o concha-
vo entre agentes públicos e particulares é tipo penal previsto no Art. 90 da
Lei 8.666/93:
Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer ou-
tro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o
intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudi-
cação do objeto da licitação:
Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
No mesmo sentido, o Art. 4º da Lei nº 8.137/90 (Lei de Crimes contra a
Ordem Econômica) prevê:

104
FELIPE CESAR LAPA BOSELLI – GIOVANNA MAISA GAMBA – LEONARDO MORAES

Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica:


I – abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando,
total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste
ou acordo de empresas; (…)
II – formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando:
a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas;
b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de em-
presas;
c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou
de fornecedores.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa”.
Há a complementaridade entre a legislação de licitações e a concorren-
cial: enquanto a pena cominada pelo art. 90 da Lei de Licitações e art. 4º da
Lei n° 8.137/1990 só pode ser aplicada a pessoas físicas (mesmo porque não
há reclusão ou detenção de pessoa jurídica), as penalidades previstas pela Lei
de Defesa da Concorrência podem ser impostas tanto a pessoas físicas quanto
jurídicas. Contudo, as condutas tipificadas no art. 90 da Lei 8.666/1993 e 4º da
Lei 8.137/1990 poderão ser também transmitidas à pessoa jurídica, em face do
disposto no artigo 88 da Lei 8.666/1993:
Art. 88. As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão
também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos
contratos regidos por esta Lei:
I – tenham sofrido condenação definitiva por praticarem, por meios dolo-
sos, fraude fiscal no recolhimento de quaisquer tributos;
II – tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da lici-
tação;
III – demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Adminis-
tração em virtude de atos ilícitos praticados”.
Insere-se nesse rol de instrumentos normativos, a Lei 12.846/13 (Lei Anti-
corrupção) também descreve as condutas ilícitas:
Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou es-
trangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas
jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1o, que atentem contra o
patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da adminis-
tração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo
Brasil, assim definidos:
[...]
IV – no tocante a licitações e contratos:
a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro ex-
pediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

105
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Por fim, desnecessário capitular, mas imprescindível ressaltar, que o acor-


do, informações privilegiadas, favorecimento, tratamento desigual, praticadas
pelo julgador em favor de determinada(s) licitante(s), também é considerada
fraude, além da caracterização da improbidade administrativa.

4. A CORRUPÇÃO NAS LICITAÇÕES EM ATOS ADMINISTRATIVOS


VINCULADOS
Apresentadas as hipóteses de corrupção em atos administrativos discri-
cionários ou de atuação dos licitantes, passa-se às hipóteses em atos adminis-
trativos vinculados.
Como visto, os atos administrativos discricionários acabam por possibili-
tar a corrupção em esferas de mais difícil controle. Na ausência de normas que
regulamentem o tema de forma taxativa, o gestor tem maior liberdade de agir
e, consequentemente, maior possibilidade de influenciar a decisão final, ou seja,
maior capacidade de atrelar sua ação à percepção de uma vantagem ilícita.
Nos atos administrativos vinculados, de outro lado, isto não deveria ocorrer.

4.1. A ORDEM CRONOLÓGICA DOS PAGAMENTOS ADMINISTRATIVOS


Tome-se, como exemplo, a cronologiciedade dos pagamentos dentro da
Administração Pública. Se o gestor tem a obrigação legal de pagar os compro-
missos daquele órgão na estrita ordem de suas exigibilidades, acaba-se, teori-
camente, a possibilidade de corrupção neste ponto do contrato.
Esta regra está insculpida no artigo 5º da Lei nº 8.666/1993:
Art. 5° Todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como
expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no
art. 42 desta Lei, devendo cada unidade da Administração, no pagamento
das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de
obras e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de re-
cursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo
quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia
justificativa da autoridade competente, devidamente publicada.
Também está disposto na mesma Lei nº 8.666/1993 a tipificação do crime
cometido pelo gestor que não segue a ordem cronológica, no artigo 92:
Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vanta-
gem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante
a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização
em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos
contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica
de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei:
Pena - detenção, de dois a quatro anos, e multa. (grifou-se)
Contudo, este cenário não é assim tão simples. Em que pese o dispositivo

106
FELIPE CESAR LAPA BOSELLI – GIOVANNA MAISA GAMBA – LEONARDO MORAES

legal determinar a simples ordem de pagamento cronológica dos compromis-


sos da Administração, o tema continua sendo objeto de atos corruptivos e basta
abrir o portal da transparência de um órgão público para perceber que a ordem
cronológica não é respeitada inúmeras vezes5.
Dentre todos os gatilhos de corrupção possíveis, não há dúvidas que o
momento do pagamento é o ponto mais sensível do processo. É neste momen-
to que o dinheiro está mais próximo do particular, que já estarão eliminados
todas as burocracias do processo e, consequentemente, é neste momento que a
empresa estará mais suscetível à corrupção.
A oferta de vantagem indevida ao gestor público fará com que a empresa
receba o seu pagamento de forma imediata, enquanto outras formas de cobran-
ça são ineficazes e lentas.

4.2. A EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO NOS CONTRATOS


ADMINISTRATIVOS
Os contratos administrativos são regidos por certas particularidades que
os diferem dos contratos civis, já que o Estado tem relativa posição de supe-
rioridade em relação aos particulares. Por consequência dessa superioridade,
justificada na satisfação do interesse público, a Administração Pública adota
em seus contratos certas cláusulas que refletem essa supremacia.
A mitigação da exceção do contrato não cumprido é uma dessas cláusulas e
decorre expressamente de lei. Veja, no âmbito civil, o inadimplemento parcial pelo
contratante resulta no imediato direito da contratada em suspender a execução do
contrato. Ora, se a parte contratante descumpriu com suas obrigações contratuais,
isso implica na exclusão do dever da parte contratada na execução do contrato,
ainda que parcial. É como explica o civilista Haroldo Malheiros Verçosa:
Quando se fala da correspectividade das prestações se está a dizer que a
prestação de uma das partes encontra remuneração na prestação da outra.
Isto se dá em função da existência de um sinalagma, como seja, uma liga-
ção entre os elementos específicos dos contratos de escambo, nos quais
as partes são credoras e devedoras recíprocas de prestações designadas
como sinalagmáticas ou interdependentes.
O sinalagma é classificado como genético ou funcional. O primeiro caso
diz respeito à interdependência inicial das prestações, no sentido de que
caso a prestação inicial venha a se tornar impossível, rompe-se o sinalag-
ma e, portanto, deixa de ser devida a contraprestação.
No caso do sinalagma funcional está presente a interdependência das

5 Considerando que o pagamento fora da ordem cronológica é crime tipificado no artigo 92 da Lei nº
8.666/1993 e que os portais de transparência infelizmente ainda padecem de problemas relacionados
à falta de atualização ou mesmo à ausência de informações relevantes, os autores optaram por não
citar nenhum caso específico. Não obstante, basta o leitor acessar alguns portais de transparência, na
aba de pagamentos a fornecedores, que conseguirá constatar, por si, o quão contumaz é esta prática.

107
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

prestações na fase de execução do contrato. Neste sentido, uma parte pode


recusar-se a cumprir sua prestação se a outra não também não o faz, recor-
rendo à exceção do contrato não cumprido, conforme já assinalado acima
(CC/2002, art. 476).6
A aplicação deste instituto na seara estatal, conforme exposto anteriormen-
te, não é idêntica a realizada no âmbito civil. Por gozar de relativa superioridade
em face dos particulares, a Administração Pública possui certa margem de auto-
rização de inadimplemento antes que haja a efetiva permissão legal de ser contra
ela oposta a exceção do contrato não cumprido. Esse período autorizativo é de 90
dias, conforme disposto no inciso XV do artigo 78 da Lei Federal nº 8.666/1993.
Isso significa que o particular contratado pela Administração Pública tem
o dever de continuar o cumprimento de suas obrigações contratuais ainda que
a contrapartida devida não esteja sendo paga, num período de 90 dias, confor-
me explica Joel de Menezes Niebuhr:
Agregue-se que, se a Administração desrespeitar o direito do contratado ao
adimplemento das respectivas parcelas por mais de 90 (noventa) dias, ou
seja, se o pagamento não for efetuado em tal período, assiste ao contratado o
direito de alegar a exceção do contrato não cumprido, reclamando judicial-
mente a rescisão dele, desde que o inadimplemento não tenha sido causado
por situação de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna
ou guerra. Se o pagamento não for realizado em tal período, faculta-se ao
contratado, em vez de buscar a rescisão, suspender o cumprimento de suas
obrigações, até que seja normalizada a situação (inciso XV do artigo 78). 7
Isso gera ao particular um ônus bastante alto, pois o permissivo legal só
autoriza a oposição da exceção do contrato não cumprido após a decorrência
do referido prazo. Obriga-se o particular que pretende contratar com a Ad-
ministração Pública a ter uma reserva de capital suficiente para ser capaz de
continuar adimplindo o contrato ainda que sem a respectiva contrapartida.
Decorrido o prazo de 90 dias, permite-se que o particular suspenda a execução
daquele contrato ou peça a sua rescisão.
Isso, por lógica, contribui para afastar das licitações os particulares que
não têm condição de se onerar excessivamente ao longo da execução de deter-
minado contrato, diminuindo consideravelmente a competitividade das licita-
ções públicas.
Ainda: por mais que o particular tenha capital suficiente para arcar com
a continuidade da execução daquele determinado contrato mesmo que sem a
contrapartida estatal, o risco é elevado em razão de que deverá arcar, ao menos
temporariamente, com o ônus do inadimplemento, sem que isso afete a pres-

6 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Direito Comercial: Teoria Geral do Contrato. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014, p. 127.
7 NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública. Belo Horizonte: Fó-
rum, 2015, p. 74.

108
FELIPE CESAR LAPA BOSELLI – GIOVANNA MAISA GAMBA – LEONARDO MORAES

tação obrigacional.
O aumento do risco, por lógica, implica no aumento do valor dos contra-
tos. Ora, no momento de realização da proposta, o particular precisa conside-
rar no seu custo todos os riscos envolvidos no pacto que está aderindo. Veja-se,
isso não se refere apenas aos contratos firmados entre a Administração Pública
e particulares, mas a todos os negócios jurídicos firmados entre dois sujeitos
dotados de capacidade.
Além dessa necessária implicação no aumento do risco gerado pelo pró-
prio dispositivo legal, ele ainda é agravado pela interpretação equivocada exa-
rada em precedentes judiciais que decidem com base em princípios normati-
vos e afastam regras legais.
Por vezes, com base no princípio da continuidade do serviço público, sus-
tentado na tese da supremacia do interesse público, olvida-se a regra prevista
na Lei de Licitações e se impede o particular de rescindir o contrato por conta
do inadimplemento do ente público, o que é incompatível com o ordenamento
vigente, conforme cita Justen Filho:
Quando a CF/1988 assegura a propriedade privada, reprime a expropriação
de bens particulares sem previa indenização, impõe a moralidade e obriga
à distribuição equitativa das cargas públicas, produz um conjunto insupe-
rável de limites à atuação estatal. Esse plexo de garantias não pode ser frus-
trado por via direta nem indireta. Logo, não se admite que a Administração
obtenha, através do expediente de cessar os pagamentos devidos ao contra-
tado, o efeito de apropriar-se do patrimônio privado. A hipótese caracteriza
espécie de confisco, incompatível com a ordem jurídica vigente.8
Deste modo, a interpretação do dispositivo deve ser no sentido de asse-
gurar o interesse público e, ao mesmo tempo, respeitar a propriedade privada,
não configurando situação de onerosidade excessiva ao particular. Quando
ocorrem situações que resultem num prejuízo extremo, a única alternativa que
resta ao contratado é negociar diretamente com o ente público para que seja
efetuado o pagamento, sob pena de falência. É então que se abre espaço para
tratativas escusas e ilegais.
Para garantir que sua contraprestação seja sempre adimplida e, preferen-
cialmente, no prazo pactuado, o particular pode se ver obrigado a negociar
com a Administração Pública e, eventualmente, ao pagamento de propina para
os agentes públicos envolvidos.
Isso gera um duplo efeito: particulares que não estejam interessados em
arcar com custos tão altos e, conhecedores da realidade que circunda o Po-
der Público, tendem a não participar de licitações, deixando o caminho aberto

8 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014, p. 1178.

109
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

àqueles que já negociaram previamente com a Administração e têm segurança


de que seus contratos serão devidamente ressarcidos.
O terreno fértil à corrupção é devastador, praticamente um convite à prá-
tica de atos nada republicanos.
Neste cenário é economicamente vantajoso o pagamento de propina a
agentes públicos para que não haja atrasos no pagamento. Ora, numa obra
que custa milhões de reais, pagos em parcelas mensais, o pagamento de pro-
pina a agente públicos em milhares pode resultar em verdadeiro ganho fren-
te ao custo financeiro causado pelo inadimplemento. Além disso, o custo de
propina será amortizado ao longo dos demais contratos firmados com aquele
determinado ente público.
No longo prazo, o afastamento de potenciais licitantes que se pretendem
honestos, somado à manutenção de particulares desonestos que já mantêm re-
lações com aquele determinado ente, resulta na possibilidade de a proposta do
licitante corrupto ser mais alta que o valor de mercado e, ainda assim, vencedo-
ra, englobando os custos que terá para ter seu pagamento adimplido no prazo.
É possível, também, que a proposta continue no mesmo valor, tendo em vista
os custos que o proponente teria que considerar apenas pelo risco de ver seu
contrato com parcelas inadimplidos ou adimplidas fora do prazo, são agora
inexistentes por consequência da pactuação escusa.

4.3. OS JUROS E A ATUALIZAÇÃO FINANCEIRA


Outro importante ato administrativo vinculado também muitas vezes
desrespeitado é a aplicação de juros e atualização financeira nas parcelas ina-
dimplidas.
As alíneas “c” e “d” do inciso XIV do artigo 40 da Lei nº 8.666/1993
estabelecem a obrigatoriedade de previsão de atualização financeira e multa
(penalizações) nos contratos administrativos, nos casos de inadimplência da
Administração.
Como exemplo, a Constituição de Santa Catarina chega a estabelecer os
valores dessas multas e juros, ao definir que os débitos do Estado devem ser
corrigidos da mesma forma que seus créditos, nos termos do seu artigo 117:
Art. 117 — As dívidas dos órgãos e entidades da administração pública
serão, independentemente de sua natureza, quando inadimplidas, mone-
tariamente atualizadas, a partir do dia de seu vencimento e até o de sua
liquidação, segundo os mesmos critérios adotados para a atualização de
obrigações tributárias.
Não obstante tais previsões, são contumazes os atrasos da Administração
Pública, como denuncia, por exemplo, Niebuhr:
Administração não costuma honrar pontualmente seus compromissos

110
FELIPE CESAR LAPA BOSELLI – GIOVANNA MAISA GAMBA – LEONARDO MORAES

contratuais mesmo em tempos de abonança. É bastante frequente a Admi-


nistração Pública não pagar ou pagar com atraso. A situação é agravada,
sobremaneira, com a crise econômica e a consequente frustração de receitas.
De alguma forma, esse comportamento é incentivado pelos órgãos de con-
trole, que são omissos, não costumam sequer acompanhar os programas de
pagamentos da Administração e, muito menos, responsabilizar os gestores.
O problema é frequente e as discussões são necessárias para que se encon-
tre uma solução. Sobre o tema, afirma Márcio Cammarosano:
Quem firma contratos, obrigando-se a efetuar pagamentos nos prazos fi-
xados, deve cuidar para que disponha, nas datas aprazadas, das importân-
cias necessárias ao cumprimento do que assumiu. Destarte, não basta que
a Administração Contratante alegue insuficiência de recursos para que se
possa eximir de responsabilidade pelo atraso de pagamentos. Cumpre-lhe
ser previdente, planejar adequadamente suas ações. Não é por outra razão
que a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4.5.2000)
é draconiana a ponto de estabelecer que constituem condições previa para
licitação de serviços, fornecimento de bens e execução de obras, a estimativa
do impacto orçamentário-financeiro e a declaração do ordenador da despe-
sa de que o aumento da despesa tem adequação orçamentária e financeira
com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e
com a lei de diretrizes orçamentárias (art. 16 e seu §4º, I).9
É dever da Administração Pública providenciar os recursos necessários ao
escorreito cumprimento das obrigações que assume. Se não o faz, a título
de dolo ou culpa — como no caso de negligência —, há de responder pe-
rante terceiros prejudicados.
Ocorre que, esse dever de responder que a Administração possui não é
capaz, muitas vezes, de reparar o real problema. O que se tem é uma empresa
que executou o contrato e não recebeu, mas precisa honrar com seus compro-
missos privados (fornecedores, funcionários, tributação etc.).
A costumeira solução, de encaminhar o caso ao Poder Judiciário não re-
solve o problema. Os processos são lentos, custam caro e carregam uma inse-
gurança jurídica imensa que não pode ser suportada pela empresa que aplicou
o preço justo aos seus produtos ou serviços.
O cenário é um convite à corrupção.

4.4. O SISTEMA DE MEDIAÇÃO CONTRATUAL VIGENTE


Outro problema a ser urgentemente enfrentado na prática, no que toca à
corrupção em atos administrativos vinculados, é o atual sistema de medição
utilizado nos contratos administrativos.

9 CAMMAROSANO, Márcio. Contratos administrativos: atrasos de pagamentos e direitos dos contrata-


dos. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 14, n. 167, nov. 2015. Dis-
ponível em: <http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=238969>. Acesso em: 1 mar. 2018.

111
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

O recebimento provisório do objeto, usualmente chamada de medição,


atesto ou aceite da nota fiscal, deve estar regulamentada no edital, por força
do artigo 40, XVI, e com seus prazos previamente estipulados no contrato, nos
termos do artigo 55, IV, ambos da Lei nº 8.666/1993.
Ao mesmo passo, o prazo máximo para recebimento do objeto foi defini-
do pelo legislador no artigo 73 da Lei nº 8.666/1993, tendo como 15 dias o prazo
para recebimento provisório.
Buscando limitar um possível gatilho de corrupção, o legislador trouxe,
ainda, o § 4º do referido artigo 73, que impõe o conceito de recebimento tácito,
caso o gestor não cumpra com sua responsabilidade legal:
§ 4º Na hipótese de o termo circunstanciado ou a verificação a que se refere
este artigo não serem, respectivamente, lavrado ou procedida dentro dos
prazos fixados, reputar-se-ão como realizados, desde que comunicados
à Administração nos 15 (quinze) dias anteriores à exaustão dos mesmos.
Ocorre que, na prática, o reconhecimento deste recebimento tácito pela
Administração é praticamente impossível. Os gestores desconhecem o dispo-
sitivo legal e, quando toma conhecimento simplesmente não o aplicam, impe-
dindo que o particular dê por encerrada aquela responsabilidade contratual.
Novamente, ao contratado resta, tão somente, a possibilidade de acessar
o Poder Judiciário, com os mesmos problemas já levantados: a) custos de um
processo judicial; b) lentidão da justiça brasileira; e c) neste caso, uma insegu-
rança jurídica ainda maior.
Tem-se, de novo, um convite à corrupção. Um convite para que, eventual-
mente, o particular faça uso de meios escusos para poder obter o que lhe é de
direito, mas que o atual modelo jurídico não lhe confere acesso.

5. À GUISA DE CONCLUSÃO: UMA PROPOSTA DE SOLUÇÃO


No capítulo anterior foram apresentadas situações nas quais o particular
teria o direito ao atendimento de determinada obrigação, como o pagamento
na data aprazada, mas que nem sempre ocorre.
Essas situações geram um aumento de risco e, por consequência, dos cus-
tos para a efetivação daquele negócio, o que acaba tornando o contrato admi-
nistrativo mais oneroso do que um instrumento firmado na esfera privada.
O âmago do problema reside justamente no fato de que o particular aceita
determinadas condições previstas no contrato, mas que estão sujeitas a alte-
rações significativas. Ele precisa suportar o risco de alteração substancial no
contrato, desrespeito à ordem de pagamento, atrasos no adimplemento, não
aplicação de juros de mora e, ainda, o não reconhecimento de que realizou
parcela do contrato, o que ocorre por meio da medição.

112
FELIPE CESAR LAPA BOSELLI – GIOVANNA MAISA GAMBA – LEONARDO MORAES

Com isso tudo se quer dizer que a interpretação ora atribuída à suprema-
cia do interesse público, princípio que grande parte da doutrina administrativa
ainda considera como o fundamento do próprio direito administrativo, contri-
bui para a bancarrota do Estado. Ora, a salvaguarda do interesse público não
significa, de forma alguma, o desrespeito ao direito de particulares de boa-fé,
como vem sendo aplicado em diversas decisões de tribunais.
Em importante lição sobre o tema, assim escreveu Justen Filho:
[...] o ordenamento jurídico é composto por uma pluralidade de princí-
pios, que refletem a multiplicidade dos valores consagrados constitucio-
nalmente. Pela própria natureza dos princípios, é usual a colidência na sua
aplicação. Isso não significa que se configure contradição no ordenamento
jurídico, nem se impõe a eliminação de um dos princípios colidentes. Por-
tanto, a supremacia e indisponibilidade do interesse público não afasta a
existência de outros princípios, destinados inclusive a assegurar a proprie-
dade e a liberdade privadas.10
É preciso que haja significativa mudança de mentalidade por parte de
agentes públicos e, principalmente, do Poder Judiciário, no sentido de reco-
nhecer a importância de se garantir a mínima segurança dos particulares que
decidem contratar com o Poder Público, sob pena de afastar os empresários
idôneos e probos, criando-se verdadeiro favorecimento àqueles que sucum-
bem às barganhas ofertadas pelos detentores do poder.
Ora, é imprescindível que, no caso concreto, sejam aplicadas as previ-
sões legais que estabelecem um mínimo de garantia de que a contraprestação
contratual por parte da Administração vai ser efetivada. E mais: é preciso que,
frente a uma ilegalidade, o Poder Judiciário seja eficiente e célere no reconheci-
mento do direito do particular, quando provocado.
Veja que aqui não se trata de um “caça às bruxas” de agentes públicos
ímprobos. Na verdade, o objetivo é somente proteger o direito obrigacional de
quem contrata com o Poder Público.
Ora, se o particular sofreu determinada ameaça ou lesão, é preciso que
essa situação seja revertida com o máximo de brevidade. Para uma empresa,
pouco importa se o agente público foi processado em Ação Civil Pública,
destituído do cargo e sofrido todas as sanções previstas na Lei de Improbi-
dade. O que de fato importa é que a empresa tenha seu crédito devidamente
adimplido e de forma célere.
Na medida em que se institucionalizar um ambiente de segurança para
os entes envolvidos, as relações negociais serão azeitadas e tenderão a render
melhores frutos para a própria Administração Pública. Com mais particulares

10 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014,
p. 151.

113
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

participando, amplia-se a competitividade, o que tende a gerar maiores eco-


nomias. Com mais segurança, mais empresários sérios tendem a se aproximar
do Poder Público a fim de contratar. Afastam-se os desonestos por opção e se
acaba com a fraude por necessidade.
Frente a uma ilegalidade cometida pelo Poder Público, caso haja um am-
biente criado nos termos aqui propostos, o particular deve poder requerer o
reconhecimento desta ilegalidade e de seu direito perante o Judiciário, que
precisa julgar com base nas regras dispostas e na busca da preservação dos
direitos dos envolvidos.
Caso um particular esteja sendo constrangido por ausência de medição
adequada em determinada obra, que se reconheça a medição tácita estabele-
cida pela Lei nº 8.666/1993, em seu artigo 73, § 4º. Se há desrespeito a ordem
cronológica dos pagamentos, que o Poder Judiciário obrigue a Administração a
segui-la. Caso a Administração não cumpra sua obrigação contratual de pagar,
em prazo superior a 90 dias, que seja reconhecido o direito de rescisão do par-
ticular. Se a Administração atrasar o adimplemento, que pague juros e multa!
Somente num ambiente em que o particular sinta segurança para con-
tratar é que irá se estimular competitividade e completa hostilidade à cor-
rupção. Hoje, impera o poder estatal em ditar e desmandar autoritariamente
as regras contratuais. Cabe ao Poder Judiciário, então, fazer cumprir a lei
quando provocado, e garantir aos particulares a segurança jurídica necessá-
ria para uma boa e equânime relação contratual, com a celeridade necessária
à sobrevivência das relações comerciais.

6. REFERÊNCIAS
CAMMAROSANO, Márcio. Contratos administrativos: atrasos de pagamentos e direitos dos
contratados. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 14, n. 167, nov.
2015. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=238969>. Acesso em:
1 mar. 2018.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
______. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2014.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública. Belo Horizonte: Fórum,
2015.
______. O que fazer diante do inadimplemento da administração pública. Direito do Estado, ano
2016, n. 95. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/joel-de-menezes-nie-
buhr/o-que-fazer-diante-do-inadimplemento-da-administracao-publica. Acesso em: 01 mar. 2018.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2014.
VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Direito Comercial: Teoria Geral do Contrato. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014.

114
OUTORGAS DE RADIODIFUSÃO, LIBERDADE DE
INFORMAÇÃO E VÍNCULOS ENTRE A ESFERA POLÍTICA
E MÍDIA

Giancarlo Bernardi Possamai1


Gustavo Ramos da Silva Quint2
Rafael Barreto da Silva3

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Não há como negar a essencialidade do papel da imprensa na garantia
dos ideais democráticos, pois é quem fiscaliza os poderes, informa, investiga
e denuncia, sendo uma peça chave no combate à corrupção e na construção
de instituições sólidas. Coincidência ou não, um levantamento recente feito
pelo Repórteres sem Fronteiras4 revela que as primeiras posições no ranking
mundial da liberdade de imprensa são ocupadas por países reconhecidos
pela integridade de seu governo e população, enquanto nos últimos lugares
estão países que enfrentam problemas crônicos de corrupção, guerras ou re-
gimes ditatoriais.
Além de noticiar os acontecimentos e dar transparência aos atos e deci-
sões governamentais que serão considerados pela população para firmar suas
convicções, a mídia transmite ao governo os anseios e insatisfações sociais,
sendo uma razão à orientação de políticas públicas num sentido ou em outro.
Por este motivo, o artigo 220 da Constituição Federal assegura a manifestação
do pensamento, a liberdade de criação, expressão e informação, e igualmente
proíbe a oposição de entraves à plena liberdade de imprensa em qualquer veí-
culo de comunicação social.
Unindo as peças deste mosaico, chega-se a uma primeira conclusão: a
proximidade entre os meios de comunicação e os detentores do poder é pre-
judicial ao jogo democrático, pois retira da mídia seu papel contramajoritá-
rio, tornando-a porta-voz do governo em exercício. Como consequência, a

1 Pós-graduado em Direito Administrativo pela FGV Direito SP e mestre em Direito do Estado pela
PUC/SP. Advogado e membro do Grupo de Estudos em Direito Público – GEDIP.
2 Mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharel em Direito
pela UFSC. Advogado e membro do Grupo de Estudos em Direito Público – GEDIP.
3 Pós-graduado em Direito Administrativo pela Unisul. Procurador Federal da AGU e membro do
Grupo de Estudos em Direito Público – GEDIP.
4 REPORTERES SEM FRONTEIRAS. Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa 2017. Dis-
ponível em: < https://rsf.org/pt/classificacao_dados>. Acesso em: 05 ago. 2017.

115
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

população passa conhecer os fatos segundo o discurso oficial, de modo que


“não é difícil a um governo totalitário tornar-se aos olhos do povo o mais
democrático dos regimes, por fazer aquilo e só aquilo que o povo ‘quer’, isto
é, aquilo que foi instilado nesse mesmo povo pela sua propaganda”5.
No Brasil, a proximidade entre a esfera política e a mídia, que permite
aos governantes influenciarem a construção da sua imagem pública, não é
propriamente uma novidade. Sua raiz está no período colonial, mas foi nos
anos 1960 que se intensificou, já que o projeto desenvolvimentista dos mili-
tares tinha na melhoria da infraestrutura das telecomunicações uma de suas
principais bandeiras, tendo entregue diversas outorgas a grupos próximos ao
regime – que, em contrapartida, restringiam informações e moldavam suas
linhas editoriais para legitimar o governo militar. De fato, esta oportuna rela-
ção de interdependência foi decisiva no surgimento dos principais conglome-
rados de comunicação de massa que ainda hoje estão em atividade no país6.
Só que mesmo após a redemocratização do país, a relação de promiscui-
dade entre a mídia e as instituições políticas continua sendo uma realidade.
É que embora a Constituição de 1988 proíba detentores de cargos eletivos
de terem ligação com concessionárias de radiodifusão (serviços de televisão
aberta e de rádio), considerando que o artigo 54, I impede deputados e sena-
dores de celebrar ou manter contratos com concessionárias de serviços públi-
cos (o que inclui rádio e TV), na prática é comum a concessão de licenças de
radiodifusão a emissoras ligadas a parlamentares – não raro servindo como
moeda de troca em negociatas políticas.
Aliás, o controle de emissoras por velhos caciques políticos e seus apa-
drinhados é tão comum que deu origem ao verbete “coronelismo eletrôni-
co”7, o que se deve ao poder político que as concessões lhes garantem. É que
apesar das inovações e possibilidades da internet, o acesso a estas novas pla-
taformas ainda é limitado a cerca de 40% da população8, e se concentra prin-
cipalmente dos grandes centros, o que mantém a rádio e a televisão como
meios de comunicação com maior penetração social.
Nesse contexto, partindo da premissa de que uma imprensa livre é es-
sencial para a estabilidade institucional e o combate à corrupção a longo pra-

5 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 37. ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 116.
6 SANTOS, Suzy; CAPPARELLI, Sérgio. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um velho
conceito. In: BRITTOS, Valério Cruz; BOLANO, Cesar Ricardo Siqueira (org.). Rede Globo: 40
anos de poder e hegemonia. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2005.
7 SANTOS, Suzy; CAPPARELLI, Sérgio. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um velho
conceito. In: BRITTOS, Valério Cruz; BOLANO, Cesar Ricardo Siqueira (org.). Rede Globo: 40
anos de poder e hegemonia. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2005.
8 BRASIL. Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal: 2015
/ IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. – Rio de Janeiro: IBGE, 2016. Disponível em
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv99054.pdf>. Acesso em 15 jul. 2017

116
GIANCARLO BERNARDI POSSAMAI – GUSTAVO RAMOS DA SILVA QUINT – RAFAEL BARRETO DA SILVA

zo, este texto apresenta um diagnóstico do uso político das outorgas de rádio
e TV no Brasil, e tenta traçar algumas linhas de reflexão sobre o tema.

2. PANORAMA CONSTITUCIONAL DOS SERVIÇOS DE


RADIOFUSÃO
A Constituição de 1988 é detalhista ao disciplinar os serviços de radiodi-
fusão, fato que se justifica pelo seu alcance e poder de influenciar a formação
da opinião pública e as agendas legislativas, e pelo risco em potencial que
representam a valores constitucionais, como cidadania, dignidade humana
e pluralismo político, visto que a “comunicação social viabilizada pelas em-
presas de radiodifusão sonora e de sons e imagens é, em última instância,
instrumental da concreção da soberania nacional”9.
Assim como as Constituições de 1967 e 1969, o texto vigente enquadra
a radiodifusão como serviço público de competência da União, a quem cabe
explorá-lo (direta ou indiretamente), e legislar a respeito. O constituinte
de 1988, entretanto, dedicou um capítulo específico da ordem social ao as-
sunto (Capítulo V, do Título VIII), em que fixa princípios de regência (art.
221); estabelece uma sistemática diferenciada de delegação e renovação das
outorgas, que pressupõe a chancela prévia do Congresso Nacional, dife-
rentemente do que se dá nos demais serviços públicos, cuja delegação é
centralizada no Poder Executivo10; restringe a participação estrangeira nas
empresas de radiodifusão; e até mesmo impõe a veiculação de um mínimo
de conteúdo nacional.
Para Luís Roberto Barroso, estas condicionantes se explicam pela ne-
cessidade de “preservação da soberania e identidade nacionais, manutenção
de espaço para o desenvolvimento da cultura nacional, e possibilidade de
responsabilização, no Brasil, por infrações cometidas através dos meios de
comunicação”11, não obstante esta leitura não seja uníssona pois há quem
enxergue aí uma forma de assegurar a posição daqueles que já controlam a
grande mídia: “argumentos retóricos em torno do ‘interesse nacional’ podem
simplesmente estar preservando interesses bastante específicos”12.

9 GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 14. ed. São
Paulo: Malheiros, 2010. p. 138.
10 Há quem chame atenção para as distorções que esta sistemática parece causar, já que a necessidade
de atos do Executivo e do Congresso Nacional na concessão e renovação de outorgas resulta num
conflito de interesses que compromete a imparcialidade decisória dos parlamentares: “é razoável
supor que os deputados e senadores radiodifusores estarão propensos a votar pela aprovação para
não prejudicar futuras análises de seus próprios processos” (ARAÚJO, Bráulio Santos Rabelo de.
A inconstitucionalidade da participação de políticos como sócios ou associados de pessoas jurídicas
prestadoras de radiodifusão. Revista Trimestral de Direito Público, n. 59, Malheiros, 2013. p. 175).
11 BARROSO, Luís Roberto. Constituição, comunicação social e as novas plataformas tecnológicas. Re-
vista Brasileira de Direito Público – RDBP, ano 1, n. 3, out/dez 2003. Belo Horizonte: Fórum. 2003.
12 FARACO, Alexandre Ditzel. Democracia e regulação das redes eletrônicas de comunicação: rádio, televi-
são, Internet – Novos cenários. Revista de Direito de Informática e Telecomunicações, v. 10, p. 61, 2011.

117
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Em relação ao seu regime de prestação, o serviço de radiodifusão é


provido a partir de um arranjo tripartite, distinto e complementar, formado
pelos sistemas privado, público e estatal (art. 223 da Constituição), que tem
como premissa a liberdade de comunicação. Esta divisão espelha o “relevo
do pluralismo na esfera constitucional e visa, sobretudo, a criar dentro da
mídia um sistema de freios e contrapesos próprio, que a impeça de se tornar
um polo social de poder descontrolado”13.
O “sistema privado” é formado pelos canais comerciais, em que atuam
empresas concessionárias e permissionárias controladas pela iniciativa pri-
vada, que prestam suas atividades com propósitos comerciais. Essas emisso-
ras são detentoras de outorgas que lhes permitem utilizar parte do espectro
eletromagnético por onde transitam as ondas que transmitem sons, imagens
e dados para veicular sua programação. Embora no sistema privado a livre
iniciativa não seja plena, já que a titularidade do serviço constitucionalmente
atribuída à União permite intervenções estatais pontuais, é assegurado às
emissoras maior liberdade de programação. A abertura do setor ao capital
privado também buscou favorecer o desenvolvimento tecnológico, o surgi-
mento de novos canais e conteúdos, e a ampliação da programação.
De outro lado, no sistema público estão as emissoras organizadas e
dirigidas por organizações da sociedade civil, como as televisões e rádios
educativas e comunitárias, que não estão subordinadas ao governo, nem se
prestam a divulgar ações oficiais. O objetivo do sistema público seria esti-
mular a difusão cultural e a formação crítica da população, e por isso Gil-
berto Bercovici enfatiza que “a TV e o rádio do sistema público deveriam,
inclusive, fragmentar sua programação, permitindo a produção descentra-
lizada da mesma, de forma a assegurar um ‘direito de antena’ a distintos
setores da sociedade”14.
Já o sistema estatal é gerido pelo Estado com o objetivo de divulgar
ações e iniciativas dos poderes constituídos – por exemplo, TV Justiça, TV
Câmara e TV Senado. Isso não significa, porém, que a finalidade seja benefi-
ciar o governo ou mesmo calar a oposição, mas sim realizar a comunicação
oficial e divulgar informações institucionais.
Na realidade, o sistema estatal deve prestigiar o pluralismo e preservar
a informação contra eventuais tentativas de captura da mídia pela situação,
constituindo, também, uma barreira contra investidas do poder privado so-

13 BERCOVICI. Gilberto. Concessões, permissões e autorizações de radiodifusão por pessoas jurídicas


que possuem políticos titulares de mandato eletivo como sócios ou associados – inconstitucionalida-
de. Revista Trimestral de Direito Público, n. 58, Malheiros, p. 120, 2013.
14 BERCOVICI. Gilberto. Concessões, permissões e autorizações de radiodifusão por pessoas jurídicas
que possuem políticos titulares de mandato eletivo como sócios ou associados – inconstitucionali-
dade. Revista Trimestral de Direito Público, n. 58, Malheiros, p. 119. 2013.

118
GIANCARLO BERNARDI POSSAMAI – GUSTAVO RAMOS DA SILVA QUINT – RAFAEL BARRETO DA SILVA

bre o sistema político:


A exigência constitucional de que também exista um sistema de TVs
e rádios sem nenhuma participação do capital privado pode ser vista,
em suma, como uma garantia da própria liberdade e pluralidade da co-
municação social. O “sistema estatal” não se justifica, pois, só para ga-
rantir o exercício da atividade informativa onde exista desinteresse da
iniciativa privada em assumi-la, através de concessões. O princípio da
complementaridade dos “sistemas privado, público e estatal” (art. 223,
caput) reflete, sim, o relevo do pluralismo na esfera constitucional e visa,
sobretudo, a criar dentro da mídia um sistema de freios e contrapesos pró-
prio, que a impeça de se tornar um polo social de poder descontrolado.15
Portanto, o arranjo constitucional do setor de radiodifusão tem na com-
plementariedade o seu vetor, de modo a dar voz a setores da sociedade com
visões diferentes, de modo a reduzir a probabilidade de ocorrerem distorções
na comunicação social. Isso pressupõe não só “a negação de uma relação de
hierarquia entre os sistemas”16, mas também o compartilhamento do serviço
entre Estado, sociedade e iniciativa privada, cada qual com uma função pró-
pria e ocupando espaços distintos no sistema, mas que devem prestar suas
atividades harmonicamente e prestigiando a pluralidade de opiniões.
Está lógica está por trás do art. 54 da Constituição, incisos I, “a” e II, “a”,
que proíbe parlamentares de contratar com ente público, seja diretamente ou
por empresas de que sejam sócios ou associados. O intuito desta regra é pre-
servar a imparcialidade do Legislativo, blindar a mídia da ingerência política,
e impedir favorecimentos e conflitos de interesses no processo de outorga –
considerando que cabe ao Congresso Nacional apreciar os atos de concessão
e renovação das licenças, e fiscalizar a prestação do serviço.
Só que apesar destas restrições, o que se vê na prática são artimanhas
com o claro intuito de contornar estas vedações, sobretudo quando a fisca-
lização deste tipo de situação se intensificou. E por incrível que pareça, um
expediente bastante utilizado pelos parlamentares é a simples transferência
de cotas e participações em emissoras de televisão e rádio a parentes e “laran-
jas”17, o que não impede, na prática, o cometimento de excessos e a utilização
destes veículos com fins claramente políticos.
Esta situação tem gerado impasses e pedidos de cassação das outorgas

15 BERCOVICI. Gilberto. Parecer Rádio Arco-Íris. Disponível em: <http://midia.pgr.mpf.mp.br/pfdc/


hotsites/mpdcom/docs/concessao/atuacao%20judicial/Parecer-Radio-Arco-Iris-final.pdf >. Acesso
em: 05 nov. 2017.
16 SCORMI, Ericson Meister. A noção de serviço público e os sistemas de radiodifusão. Revista de Direito
da Informática e de Telecomunicações – RDIT, Belo Horizonte, v. 6, n. 10, p. 83, jan./jun. 2011.
17 PESSOA, Gabriela; PITOMBO, João Paulo. Políticos repassam concessões de rádio e TV para pa-
rentes. Folha de São Paulo, 27 de julho de 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
poder/2017/07/1904653-politicos-repassam-concessoes-de-radio-e-tv-para-parentes.shtml>. Acesso
em 9 dez. 2017.

119
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

de redes de rádio e televisão controladas por familiares e pessoas próximas a


políticos com base no art. 54 da Constituição. Embora o texto constitucional
não proíba expressamente familiares e pessoas próximas a parlamentares de
serem titulares de outorgas, a inserção da proibição pelo constituinte teve
o propósito de evitar a utilização da mídia com fins políticos, a justificar a
extensão da restrição também a este grupo de pessoas. A explicação para esta
leitura extensiva do dispositivo decorre de uma interpretação sistemática,
a partir dos fins a que tal norma se destina, e que confere efetividade aos
comandos estampados na Constituição, tendo em vista que, nas palavras de
Eros Grau, “não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços”18.
A Lei Federal nº 13.424/2017, que instituiu um novo marco regulatório
das telecomunicações, manteve a vedação de políticos na direção ou gerência
de emissoras, mas não foi além disso, tendo concentrado seus principais pon-
tos nos processos de concessão e renovação.
O ponto é que os processos judiciais envolvendo este tipo de situação
se multiplicaram nos últimos anos, e no Supremo Tribunal Federal há ações
em que esta discussão está sendo travada – muito embora a Corte ainda
não tenha se pronunciado definitivamente a respeito. De qualquer modo, é
importante analisar com mais minúcia o que está em jogo, e quais são os
argumentos levantados pelas partes para tentar convencer os Ministros num
sentido e em outro, tendo em vista que o STF, enquanto pivô de decisões
sobre temas larga repercussão na sociedade brasileira, tem um papel funda-
mental na estabilização desse impasse.

3. O QUE ESTÁ EM DEBATE NO STF?


Nos tribunais brasileiros, abundam ações questionando a outorga de
concessões de serviços de radiodifusão a empresas cujos sócios sejam titu-
lares de cargos eletivos. Em sua grande maioria, os pontos controvertidos
são os seguintes: (i) extinção ou não renovação da outorga de empresas que
contenham parlamentares em seu quadro de sócios ou ostentem a condição
de diretor/controlador; (ii) interrupção dos serviços de radiodifusão de em-
presas que tenham parlamentares no quadro societário; (iii) impedimento de
empresas na mesma condição do item anterior de participarem de licitações
para outorga de concessões de serviços de radiodifusão; e (iv) inelegibili-
dade, em eleições para cargos do legislativo e executivo, de candidatos que
sejam sócios de empresas de rádio e TV.
Diante da necessidade de uniformização do entendimento, o Parti-
do Socialismo e Liberdade – PSOL foi pioneiro em levar a discussão ao
18 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Ma-
lheiros, 2009, p. 132.

120
GIANCARLO BERNARDI POSSAMAI – GUSTAVO RAMOS DA SILVA QUINT – RAFAEL BARRETO DA SILVA

STF, propondo as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental


(ADPF) 246 e 379. Nestas ações, o PSOL relata que a concessão de outorgas
a parlamentares ou a empresas de que sejam sócios é algo recorrente, e le-
vantamentos oficiais indicam que cerca de 6% dos deputados federais e 10%
dos senadores são sócios de transmissoras da rádio e TV. Isso violaria uma
série de preceitos fundamentais: liberdade de expressão; direito à informa-
ção; tripartição dos sistemas estatal, público e privado de radiodifusão; so-
berania popular; pluralismo político; isonomia; direito à cidadania; direito
de fiscalizar e controlar o exercício do poder estatal, e a própria democracia.
Além disso, o PSOL aduz que a inobservância dos impedimentos e in-
compatibilidades inerentes ao exercício do mandato do parlamentar afronta
a isenção e a independência dos congressistas, e a probidade administrativa.
Portanto, o PSOL sugere que a influência parlamentar sobre os meios
de radiodifusão, através da participação no capital social ou exercendo car-
gos de diretoria e gerência em emissoras, macula a autonomia da imprensa,
criando um verdadeiro mecanismo de manipulação. É que além de violar o
direito à informação, o controle de transmissoras por políticos lhes assegura
um alto poder de fogo contra seus opositores, que desequilibra o processo
democrático, e facilita o direcionamento da programação e a omissão de irre-
gularidades e desmandos praticados no exercício do cargo.
O PSOL argumenta ainda que a condição de sócio de empresas con-
cessionárias de rádio e TV não tem amparo em nenhuma das exceções do
artigo 54 da Constituição, pois o vínculo entre a empresa e seus sócios seria
contratual, o que esbarra na vedação da alínea “a”19 do inciso I deste disposi-
tivo. Afora isso, os contratos de concessão de outorgas, embora precedidos de
licitação, não obedeceriam a cláusulas uniformes porque há certa margem de
liberdade para negociar as condições de execução contratual, o que afastaria
a ressalva da parte final do art. 54, I, “a”.
Nessa perspectiva, o partido pretende que (i) o STF declare inconstitu-
cional a outorga de concessões, permissões e autorizações tanto a pessoas
jurídicas cujos sócios ou associados sejam congressistas, bem como a outras
empresas por eles controladas – caso, por exemplo, de uma empresa com
participação acionária em concessionária de radiodifusão; (ii) a União seja
impedida de outorgar e renovar as respectivas concessões, permissões e auto-
rizações; e (iii) o Congresso Nacional seja compelido a rejeitar tais outorgas;
e (iv) por fim, que os parlamentares enquadrados na proibição constitucional

19 “Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão: I – desde a expedição do diploma: a) firmar ou manter
contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia
mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uni-
formes.” (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 14 out. 2017).

121
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

não sejam diplomados e tampouco empossados.


A Presidência da República, através da Consultoria-Geral da União,
manifestou-se no sentido de que as normas constitucionais tidas como trans-
gredidas não refletem preceitos fundamentais, o que inviabilizaria a propo-
situra da ADPF. No mérito, aduziu que o ordenamento já contempla meca-
nismos de controle para impedir a manipulação de informações e regular a
propaganda eleitoral – quais sejam, os previstos na Lei nº 4.737/65 (Código
Eleitoral) e na Lei nº 9.504/1997.
Já a Advocacia-Geral da União sustentou que a mera participação de
parlamentares como sócios de concessionárias de serviços de radiodifusão
não representa, por si só, o controle e manipulação da opinião pública, e que
a vedação constitucional vale somente para as pessoas físicas dos parlamen-
tares, não alcançando as empresas concessionárias de que sejam sócios.
O Senado Federal, por sua vez, se manifestou apenas nos autos da ADPF
nº 379, onde alegou que o pedido do PSOL subverte uma série de garantias
constitucionais, em especial o direito de propriedade, a legalidade e a liber-
dade de expressão. Em adendo, informa que a vedação prevista no artigo 3820
da Lei nº 4.117/1962 (Código Brasileiro de Telecomunicações) apenas alcan-
çou os parlamentares para os cargos de gerência ou direção das concessioná-
rias dos serviços de radiodifusão, não abrangendo os sócios ou associados.
A Procuradoria-Geral da República foi ouvida nos dois processos. Na
ADPF 246, opinou pela rejeição da ação pela não indicação de atos específi-
cos que supostamente feririam preceitos fundamentais. No mérito, sustentou
que a existência de congressistas, direta ou indiretamente, como sócios ou
associados de empresas delegatárias de radiodifusão esbarra no art. 54 da
Constituição, considerando que a participação societária configura proprie-
dade sobre as empresas – o que é vedado.
Na ADPF 379, de objeto mais amplo, a PGR recomendou o conheci-
mento da ação por haver nexo causal entre os atos apontados e a alegada
transgressão a preceitos fundamentais. Nesse quadro, a outorga de con-
cessões a empresas com parlamentares em seu quadro societário violaria a
liberdade de expressão e o direito à informação, e representaria um risco de
censura, na medida em podem interferir na divulgação dos fatos e fiscali-
zação do Poder Público. Ainda, resultaria em abuso de poder no processo
eleitoral, já que mídia tem um papel central no resultado das urnas e na
avaliação de candidatos e governos.

20 “Art. 38. [...] § 1º Não poderá exercer a função de diretor ou gerente de concessionária, permissio-
nária ou autorizada de serviço de radiodifusão quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de
foro especial. [...]” (BRASIL. Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4117.htm>. Acesso em: 14 out. 2017).

122
GIANCARLO BERNARDI POSSAMAI – GUSTAVO RAMOS DA SILVA QUINT – RAFAEL BARRETO DA SILVA

Quanto à restrição da parte final do art. 54, I, “a” do texto constitucio-


nal, a PGR sustentou nesta segunda ADPF que são resguardados somente os
contratos de consumo e de adesão, e que as cláusulas dos contratos adminis-
trativos, mesmo se antecedidos por licitação, não são uniformes porque há
diálogo negocial entre as partes. Ainda neste ponto, sustentou que a vedação
em questão engloba a atuação de parlamentares tanto na condição de pessoa
física, quanto por empresas das quais sejam sócios, de modo a impedir que
burlem a regra mediante o uso de pessoas jurídicas intermediárias.
Em relação ao art. 54, II, “a”21 da Constituição, a PGR defendeu que a
definição de “favor decorrente de contrato” diz respeito a qualquer vínculo
contratual com o Estado, inclusive eventuais benefícios fiscais. Em ambas as
hipóteses, enquadrar-se-iam os serviços de radiodifusão, não só por resul-
tarem de contrato, como por se aproveitarem ocasionalmente de benefícios
tributários.
Por último, haveria ainda, na ótica da PGR, um aparente conflito de in-
teresses: cabendo ao próprio Congresso Nacional a aprovação das outorgas, é
evidente que os parlamentares estarão propensos a votarem favoravelmente,
seja para si ou para seus sócios ou aliados.
Diversos organismos da sociedade civil ingressaram no feito na condi-
ção de amici curiae, e o Ministro Gilmar Mendes, relator dos dois casos por
prevenção, só analisará as liminares requeridas nas ações após a oitiva de
todos os interessados – até porque a suspensão das outorgas, como pretende
o PSOL, impacta significativamente a prestação do serviço no país.
No STF há também a ADPF 429, proposta pelo Presidente da Repúbli-
ca em novembro de 2016, que busca uma uniformização decisória diante de
um alegado quadro de insegurança jurídica existente no país. Nela, os atos
violadores de preceitos fundamentais seriam as decisões judiciais barrando
a concessão e renovação de outorgas de emissoras que tenham titulares de
mandato eletivo como sócios ou associados, e também as que proíbem a
participação de parlamentares em empresas concessionárias de prestação
de serviço de radiodifusão. O argumento da Presidência é que estas de-
cisões judiciais estariam violando as liberdades de iniciativa, expressão e
associação, e de que fazem uma leitura equivocada das incompatibilidades
do artigo 54 da Constituição. Além disso, o artigo 222, ao trazer limitações
à propriedade e à composição do quadro societário de empresas prestado-
ras de serviço de radiodifusão, não teria feito nenhuma restrição ao sócio

21 “Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão: II – desde a posse: a) ser proprietários, controla-
dores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito
público, ou nela exercer função remunerada;” (BRASIL. Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.
htm>. Acesso em: 14 out. 2017).

123
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

detentor de mandato eletivo.


O PSOL requereu ingresso na condição de amicus curiae, reafirmando a
tese defendida nas outras duas ADPF propostas pelo partido.
Distribuída à Ministra Rosa Weber – muito embora se tenha pedido
na inicial a distribuição por prevenção ao Ministro Gilmar Mendes, fato que
pode denotar um possível interesse político pela relatoria do caso apesar da
suposta prevenção – , houve a imediata negativa da liminar. Na decisão, a
relatora justificou que não há evidência, na inicial, que demande a imediata
suspensão de todas as ações judiciais que discutem a participação de parla-
mentares no quadro societário de emissoras de rádio e TV. Ainda, adiantando
um provável posicionamento em relação ao mérito, a relatora pontuou que
a 1ª Turma do STF já reconheceu a necessidade de garantir a independência
entre o Legislativo e Executivo, no que toca ao controle de outorgas de servi-
ços de radiodifusão. Há, aqui, talvez, uma pequena pista de como poderia ser
eventual voto da relatora se a questão for a plenário.

4. PERSPECTIVAS E POSSIBILIDADES: O QUE ESPERAR DO STF?


O tema é espinhoso e de alto custo político por alcançar parlamentares
e bancadas com grande poder de articulação. Eventuais iniciativas legisla-
tivas para enrijecer os controles também seriam contrárias aos anseios dos
próprios congressistas, que são os grandes beneficiados pela manutenção do
status quo. Por fim, estão em jogo interesses de grandes grupos de comunica-
ção, que pela sua capacidade de impactar a opinião pública são vistos como
uma espécie de “quarto poder”, fazendo frente ao Legislativo, Executivo e
Judiciário em termos de influência política.
Na realidade, o que tem ocorrido diante de assuntos sensíveis do ponto
de vista político e social como o que ora se coloca, é a inércia das instâncias
majoritárias na tomada de decisões e adoção de soluções efetivas. O resulta-
do disso foi o ganho de protagonismo do Judiciário – e em especial do STF
– , que com frequência cada vez maior passou a preencher as lacunas que,
propositalmente ou não, são deixadas pelo governo.
É justamente isso o que deve ocorrer aqui, de maneira que o veredicto
do STF passa a ter uma importância ainda maior, até porque não há como
entender o que está na Constituição sem conhecer a jurisprudência da Corte.
Contudo, enquanto se aguarda pela palavra final do STF, fica o questio-
namento: na atual conjuntura há como antever a futura deliberação dos Minis-
tros sobre o tema, considerando que a posição do órgão de cúpula do Judiciário
deverá dar o tom do debate dali em diante, podendo alterar sensivelmente a
prestação dos serviços de comunicação atualmente existente no país?

124
GIANCARLO BERNARDI POSSAMAI – GUSTAVO RAMOS DA SILVA QUINT – RAFAEL BARRETO DA SILVA

A incompatibilidade negocial do artigo 54 da Constituição foi julgada


pela 1ª Turma em 2014, na Ação Penal 530/MS, em sessão que contou com
a participação dos Ministros Luís Fux, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber,
Dias Toffoli e Marco Aurélio – todos eles, diga-se de passagem, atualmente
exercendo a judicatura, e que possivelmente participarão do julgamento das
ADPF. Ainda que o centro da discussão não tenha sido precisamente a consti-
tucionalidade da outorga, há elementos que indicam qual seria uma eventual
orientação dos juízes quando as ADPF estiverem pautadas.
Em suma, nesta ação penal se apurava o cometimento de crime de falsi-
dade por deputado federal que forjou o contrato social de uma concessioná-
ria de serviço de radiodifusão para omitir sua real condição de sócio, buscan-
do, com isso, contornar a vedação constitucional do art. 54.
Segundo o voto condutor da relatora Rosa Weber, as proibições do art.
54 teriam dois fins: garantir a independência do mandato, dificultando a
cooptação de deputados e senadores pelo Executivo, e impedir que o par-
lamentar se aproveite de sua posição para obter benefício pessoal. No caso
específico da radiodifusão, a vedação também assegura a livre formação da
opinião pública, que é essencial numa sociedade democrática. Isto porque,
para que tais condições existam, é necessário o controle estatal para intervir
nos casos de “indevido uso do poder econômico ou político”. Daí a lógica
deste impedimento constitucional.
Em seu voto, a Ministra reforçou seu argumento ao lembrar que o pró-
prio deputado acusado reconheceu que resolveu controlar a emissora por
somente interesses políticos, e que após o fim do mandato não haveria mais
porquê continuar à frente da empresa.
O entendimento de Rosa Weber foi seguido pela maioria, senão por
Marco Aurélio, que ficou vencido em relação à competência do STF para jul-
gar o caso. O voto do Ministro Barroso, referendando a posição vencedora da
relatora, trouxe em seu corpo os seguintes apontamentos:
Quanto ao mérito, nos termos das normas proibitivas invocadas, previstas
nos arts. 54 da Constituição e art. 38, § 1o, da Lei no 4.117/62, é vedado ao
parlamentar ou empresa por este controlada receber do Governo Federal
a outorga de serviço de radiodifusão sonora. O que se pretendeu prevenir
foi a reunião de poder político e controle sobre veículos de comunicação
de massa, com os riscos decorrentes do abuso.22
Nessa conjuntura, conforme o entendimento abraçado pela maioria
na Ação Penal 530/MS, percebe-se que o STF tende a ser hostil ao uso ina-

22 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 530, Mato Grosso do Sul. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7516225>. Acesso em: 20
out. 2017.

125
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

dequado do poder político, especialmente através de veículos de comuni-


cação. A prevalecer esta linha decisória, é plausível dizer que um futuro
julgamento das ADPF seja pelo alargamento do sentido do art. 54, reco-
nhecendo a inconstitucionalidade da concessão de outorgas a veículos de
comunicação cujos parlamentares façam parte, independentemente da sua
condição na empresa.
Contudo, se em contrapartida os Ministros aceitarem o raciocínio tra-
zido pela Presidência na ADPF 429, de que há diferença entre a mera condi-
ção de sócio cotista e a de gerente ou diretor das empresas de radiodifusão,
conclusão que decorre de uma leitura literal e objetiva do texto constitu-
cional, a perspectiva é que se tenha uma vitória do governo e dos diversos
parlamentares que hoje se valem de uma arma eficiente para manipular a
opinião pública.

5. CONSIEDERAÇÕES FINAIS
Para o fortalecimento do processo democrático, é possível dizer que
a melhor solução pressupõe justamente de uma interpretação sistêmica da
Constituição, que refute a argumentação da Presidência na ADPF 429, para
estender a proibição também aos cotistas, na medida em que participam da
empresa e sobre ela têm influência.
Embora uma decisão do STF não seja capaz, por si só, de resolver em
definitivo os problemas que decorrem dos vínculos de conexão entre a esfera
política e o interesse privado formados através da distribuição de outorgas
de radiodifusão a parlamentares, visto que muitos deles continuarão adotan-
do estratégias para burlar controles e contornar vedações legais, será um pas-
so importante para garantir o exercício do mandato sem influências externas,
e para evitar que detentores de cargo eletivo continuem se valendo de sua
força política para contratar com o Poder Público.
Além disso, contribuirá para uma imprensa efetivamente livre de des-
mandos políticos, e, em última análise, para o combate à corrupção vem mi-
nando o tecido político, econômico e social do país.

6. REFERÊNCIAS
BARROSO, Luis Roberto. Constituição, comunicação social e as novas plataformas tecnológicas.
Revista Brasileira de Direito Público – RDBP, Ano 1, n. 3, out/dez 2003. Belo Horizonte: Forum.
2003.
BERCOVICI. Gilberto. Concessões, permissões e autorizações de radiodifusão por pessoas
jurídicas que possuem políticos titulares de mandato eletivo como sócios ou associados – in-
constitucionalidade. Revista Trimestral de Direito Público, n. 58, Malheiros, p. 119-120. 2013.
______. Parecer Rádio Arco-Íris. Disponível em: <http://midia.pgr.mpf.mp.br/pfdc/hotsites/mp-
dcom/docs/concessao/atuacao%20judicial/Parecer-Radio-Arco-Iris-final.pdf >. Acesso em: 05

126
GIANCARLO BERNARDI POSSAMAI – GUSTAVO RAMOS DA SILVA QUINT – RAFAEL BARRETO DA SILVA

nov. 2017.
BRASIL. IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Acesso à internet e à televisão e posse de
telefone móvel celular para uso pessoal: 2015. Rio de Janeiro: IBGE, 2016. Disponível em <http://
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv99054.pdf>. Acesso em 15 jul. de 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AÇÃO PENAL 530 MATO GROSSO DO SUL. Disponível
em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7516225>. Acesso
em: 20 out. 2017.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 14 out. 2017.
BRASIL. Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l4117.htm>. Acesso em: 14 out. 2017.
FARACO, Alexandre Ditzel. Democracia e arthurdas redes eletrônicas de comunicação: rádio,
televisão, Internet – Novos cenários. Revista de Direito de Informática e Telecomunicações, v. 10,
p. 61, 2011.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 37 ed. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 116.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 14. ed.
São Paulo: Malheiros, 2010. p. 138.
______. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
132.
PESSOA, Gabriela; PITOMBO, João Paulo. Políticos repassam concessões de rádio e TV para
parentes. Folha de São Paulo, 27 de julho de 2017. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.
br/poder/2017/07/1904653-politicos-repassam-concessoes-de-radio-e-tv-para-parentes.sht-
ml>. Acesso em 09 dez. 2017.
REPORTERES SEM FRONTEIRAS. Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa 2017. Dispo-
nível em: <https://rsf.org/pt/classificacao_dados>. Acesso em: 5 ago. 2017.
SANTOS, Suzy; CAPPARELLI, Sérgio. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um
velho conceito. In. BRITTOS, Valério Cruz; BOLANO, Cesar Ricardo Siqueira (org.). Rede Glo-
bo: 40 anos de poder e hegemonia. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2005.
SCORMI, Ericson Meister. A noção de serviço público e os sistemas de radiodifusão. Revista de
Direito da Informática e de Telecomunicações – RDIT, Belo Horizonte, v. 6, n. 10, p. 83, jan./
jun. 2011.

127
A CORRUPÇÃO ATRAVÉS DA EVASÃO FISCAL NO
BRASIL: EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA

Joacir Sevegnani1

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este estudo propõe-se a avaliar o fenômeno da evasão fiscal como uma es-
pécie do gênero corrupção, haja vista que, do ponto de vista financeiro, ambas
produzem desvios de recursos públicos, distinguindo-se apenas das demais
formas sob o aspecto temporal. Enquanto a evasão fiscal operacionaliza-se por
meio de ações ou omissões tendentes a reduzir total ou parcialmente o reco-
lhimento dos tributos, evitando assim que ingressem nos cofres públicos, as
demais formas de corrupção apenas se diferenciam pelo desvio de montantes
que já pertenciam ao Estado.
Embora não seja possível quantificar exatamente os valores resultantes da
evasão fiscal no Brasil, em comparação com as demais espécies de corrupção,
pesquisas demonstram claramente que a ocultação e não recolhimento de tri-
butos excede em muito os desvios perpetrados por meio da retirada posterior
de dinheiro público em favor próprio.
O mecanismo há muito defendido pelas administrações tributárias para
reduzir o problema da evasão fiscal resume-se à criação de instrumentos de
maior controle e, especialmente, à instituição de penalidades rigorosas aos in-
fratores, com base na premissa de que é o temor da sanção que permite deses-
timular o descumprimento das obrigações tributárias. Esta análise não des-
considera a importância das sanções, mas segue noutra direção, procurando
conferir uma maior ênfase às relações que precedem a constituição do crédito
tributário de ofício, mediante a aplicação de multa punitiva, com ênfase na
transparência e na atuação fiscal preventiva.
Neste contexto, apresentam-se, preliminarmente, algumas impressões
a respeito da correlação existente entre a corrupção e a evasão fiscal, para
após indicar instrumentos e políticas que podem contribuir não apenas para
a redução da evasão fiscal, mas, sobretudo, para a criação de um ambiente
de mútuo respeito e colaboração entre os contribuintes e o Estado. Para esse

1 Auditor Fiscal da Receita Estadual do Estado de Santa Catarina; Professor de Direito Tributário e Direi-
to Constitucional no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI;
Mestre e Doutor em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Doutor sob a
modalidade de cotutela e dupla titulação pela Universidade de Perugia – UNIPG (Itália).

128
Joacir Sevegnani

desiderato, pretende-se avaliar os efeitos que podem produzir no âmbito da


tributação, a adoção de instrumentos de fortalecimento da transparência ad-
ministrativa, em particular, por meio da criação de mecanismos que propi-
ciem uma maior participação dos contribuintes na elaboração e execução das
normas tributárias, e da adoção de um modelo de controle das obrigações
tributárias preferencialmente preventivo.

2. CORRUPÇÃO E EVASÃO FISCAL: DUAS FACES DA MESMA


MOEDA
Na acepção etimológica, o termo corrupção deriva do latim rumpere, equi-
valente a romper, dividir, gerando o vocábulo corrumpere, que por sua vez,
significa deterioração, depravação ou alteração2.
O fenômeno remonta à Antiguidade e não passou despercebido à própria
Bíblia3. Pode-se afirmar com segurança que, em maior ou menor grau, sempre
fez parte da história da humanidade. Na Grécia, a preocupação maior com a
corrupção estava relacionada à degradação das virtudes que deviam ser culti-
vadas pelos cidadãos. Agia como agente corruptor aquele que proclamava con-
dutas contrárias aos ideais de justiça e bem-estar dos membros da cidade-esta-
do. Como apregoava Sócrates4 aos seus discípulos, o homem devia guiar-se
pela constante busca do verdadeiro bem, agindo em conformidade com a sua
consciência, visando a excelência humana. A corrupção tinha então o significa-
do de mal causado a outros homens, não apenas por meio de práticas ilícitas,
com vista à obtenção de vantagem particular, mas, sobretudo, por ações e opi-
niões que contribuíssem para o desvirtuamento dos comportamentos sociais.
Na linguagem moderna, caracteriza-se principalmente como um desvio
de conduta praticado por uma ou mais pessoas, visando o interesse particular,
em detrimento do bem comum, envolvendo, em geral, membros da Adminis-
tração Pública. Por isso, aos olhos do leigo, a corrupção é vista como a vanta-
gem indevida que o agente público obtém para si ou para terceiros, relegando

2 GARCIA, Emerson. A corrupção: uma visão jurídico-sociológica. Revista dos Tribunais, São Paulo,
v. 820, fev. 2004, p. 440.
3 A Bíblia Sagrada faz inúmeras referências à corrupção, a exemplo da passagem em Isaías, capítulo
1, versículos 21 a 23: “Como se transformou em prostituta a cidade fiel! Antes era cheia de direito, e
nela morava a justiça; agora, está cheia de criminosos! A sua prata se tornou lixo, o seu vinho ficou
aguado. Os seus chefes são bandidos, cúmplices de ladrões: todos eles gostam de suborno, correm
atrás de presentes; não fazem justiça ao órfão, e a causa da viúva nem chega até eles.”
4 Sócrates defendeu em vida a necessidade dos homens agirem para o bem, sem corromperem a pró-
pria consciência. A sua obra maior eternizou-se pelas suas ações sempre coerentes com os valores
éticos que ensinara. Mesmo no seu julgamento e nos dias que antecederam sua execução, manteve-se
fiel aos seus princípios. Percebendo que poderia ser condenado injustamente, não ousou implorar a
benevolência dos seus julgadores ou fazer concessões. Quando amigos suplicaram-lhe que aceitasse
a fuga que haviam preparado, Sócrates nega-se e explica com serenidade: “a única coisa que importa
é viver honestamente, sem cometer injustiças, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida”
(PLATÃO. Apologia de Sócrates; Xenofonte; Ditos e feitos memoráveis de Sócrates; Apologia de
Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 8-12)

129
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

a um plano secundário os legítimos fins contemplados nas normas.


Se é nos governos ditatoriais que a corrupção encontra o ambiente mais
adequado para proliferar-se, pois não existem ou são poucos os mecanismos de
controle da atuação estatal, nas democracias, com a ascensão do povo ao poder
e a constante alternância dos dirigentes das organizações públicas, ela tende a
ser menor. Entretanto, mesmo em países democráticos a sua propagação tam-
bém pode ocorrer quando são reduzidos ou pouco eficazes os instrumentos
de controle dos atos praticados pelos agentes públicos e há pouca participação
popular nas discussões dos assuntos relativos ao Estado.5
É que, como anteviu Montesquieu, para que um Estado democrático pos-
sa consolidar os princípios que o sustentam, é preciso, sobretudo, que os seus
cidadãos possuam um forte sentimento de patriotismo, no sentido de amor às
leis e à Pátria. Esse amor conduz à excelência dos costumes, fortalece a soli-
dariedade e, por consequência, afasta a ambição descomedida dos interesses
particulares, causa primeira da corrupção6.
No Brasil, um país com uma democracia ainda frágil, vez que se trata
de uma conquista recente, a corrupção é entendida por diversos historiadores
como desdobramento ou reflexo de fatos que remontam ao período colonial.
Na opinião de Holanda, a gente brasileira herdou dos portugueses seus cos-
tumes e valores, influenciando por longa data o seu caráter e forjando como
características marcantes a frouxidão da estrutura social, uma certa tolerância
e displicência com as normas que impunham deveres e uma forte indolência
com as instituições públicas.7
Seguindo essa linha, Barbosa acrescenta que essas características, em par-
te arraigadas na sociedade brasileira, ainda podem ser percebidas em peque-
nas ações de burla da lei, com o propósito de privilegiar o interesse particular.
É facilmente constatável que, para muitos indivíduos, as normas legais proi-
bitivas não significam propriamente uma negação ou uma barreira definitiva
que não possa ser transposta. Assim, por exemplo, enquanto o “não” de um
guarda inglês é considerado pelo agente receptor da ordem como definitivo,
categórico e irrecorrível, o não do guarda brasileiro é interpretado, muitas ve-
zes, como um “talvez” que, dependendo da situação, ou mesmo da conversa,
pode transmudar-se para um “sim” 8.
Esse jeitinho brasileiro, que em seu lado mais perverso pode exemplifi-
5 GARCIA, Emerson. A corrupção: uma visão jurídico-sociológica. Revista dos Tribunais, São Paulo,
v. 820, fev. 2004, p. 442.
6 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a
divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. 2. ed. aum. São Paulo: Saraiva, 1992,
p. 96, 111, 114-115, 146-147.
7 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995,
p. 33, 38-39.
8 BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 2.

130
Joacir Sevegnani

car-se na lei de Gerson9, decorre ainda, na avaliação da autora, da sistemática


de funcionamento da administração portuguesa, que era autoritária, paterna-
lista, particularista e ad hoc. A legislação era confusa, detalhista e numerosa,
e mesmo o Código Filipino editado em 1603 mantinha idênticas peculiarida-
des. Como decorrência, o caráter português da época tinha como caracterís-
ticas o desrespeito às leis, diante da complexidade jurídica; a tolerância com
a corrupção, resultado da baixa expectativa de serviço público honesto; e a
falta de responsabilidade civil, que se resumia na ênfase acentuada nas rela-
ções pessoais de amizade e de família, importando uma valoração maior da
pessoa e menos da norma10.
Independente das origens que deram causa a esses comportamentos so-
ciais, Oliveira vê a sociedade brasileira carente de princípios éticos, o que se
traduz em corrupção generalizada, clientelismo, autoritarismo, demagogia de
diferentes níveis, oportunismo, irresponsabilidade e prepotência como norma
no exercício da Administração Pública. Com isso, instalou-se uma crise nos
valores básicos da vida política, produzindo, por consequência, uma crise de
legitimação das instituições e dos costumes vigentes. Apesar desse quadro, o
autor revela-se otimista ao constatar que, sob outro prisma, vive-se um mo-
mento de choque de ideias, entre o antigo e o novo, que vem provocando,
gradativamente, um senso novo de justiça, consciência maior dos direitos e da
importância da união no processo de transformação da vida em comunidade. 11
No que diz respeito às questões tributárias, a corrupção possui íntima
relação com a evasão fiscal12 e já caminham juntas há muito tempo. Como
inferiu Omegna, em sua incursão pela história da economia colonial do Bra-
sil, o sistema tributário e o aparato fiscal da época eram tão perversos que
a fraude e a corrupção impregnaram-se na cultura popular como práticas
comuns e aceitáveis. A sociedade era educada no desrespeito à lei, e essa
atitude aprofunda-se tanto naquele período que chega a transformar-se num
atributo do povo, a ponto de preferir o domínio dos homens ao das leis, o
chefe às ideias, o caudilho aos códigos, o carismático ao homem comum. A lei
extorsiva, aplicada por funcionários públicos sensíveis ao suborno, perdera a
sua respeitabilidade. Desse modo, a sociedade colonial considerava a fraude,

9 Lei de Gérson é uma alusão a uma propaganda de cigarros da década de 70, na qual o jogador Gerson,
da Seleção Brasileira de futebol, afirmava que o importante na vida era levar vantagem em tudo.
10 BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 22.
11 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e racionalidade moderna. São Paulo: Loyola, 1993, p. 43-46.
12 “A evasão caracteriza o procedimento contrário à lei, revestido de artifícios e manipulações de fatos,
procurando ocultar o verdadeiro ato ou negócio querido e realizado, penetrando, assim, no campo do
ilícito. A evasão abrange o gênero do qual são espécies tanto a sonegação e a fraude, como a simula-
ção, a dissimulação, o abuso de forma etc., que implicam na obtenção de vantagem fiscal, por meio
de utilização de procedimentos ou caminhos diferentes daqueles abrigados ou permitidos pela lei que
resultam em violação (condutas proibidas ou vedadas) ou na prática de manobras e fraudes.” (TÔR-
RES, Heleno Taveira; Queiroz, Mary Elbe (Coord.). Desconsideração da personalidade jurídica em
matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 85-86).

131
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

o contrabando e as denegações dos tributos como atos lícitos e até mesmo


dignos das simpatias gerais.13
A despeito de diversos autores apontarem para uma generalização da
corrupção, com raízes históricas, como herança de desterrados portugueses,
não há uma fundamentação plausível que demonstre a veracidade desta as-
sertiva. A aceitação dessa premissa legaria ao povo brasileiro um destino
trágico e inalterável e uma justificação social para os desvios de conduta na
gestão pública. A corrupção não pode ser tratada como uma fatalidade histó-
rica que está impregnada nos valores de toda a sociedade. Essa ideia reforça
uma postura de condescendência com a ilicitude, diante da falsa percepção
de que se trata de um mal crônico que a todos pode acometer. Aparenta que
a corrupção esteja restrita a minorias que, via de regra, está relacionada a
grupos detentores de poder político ou financeiro.
Todavia, é visível no cotidiano do brasileiro, como traço social comum,
uma exagerada tendência à tolerância com as normas estabelecidas e de deslei-
xo com os bens públicos. Do ponto de vista dos tributos, esse comportamento
produz resultados graves, porque dificulta a tomada de consciência do cida-
dão sobre a relevância do seu papel como agente participativo e colaborador
no combate à evasão fiscal e ao desvio de dinheiro público.
Ao se tratar das práticas de corrupção é plausível inferir que o dinheiro
público pode ser desviado antes do seu ingresso nos cofres estatais, por meio
da evasão fiscal, ou após a sua entrada, através da apropriação ilícita. Desta
maneira, os valores devidos ao Estado, a título de tributos não declarados ou
não pagos, não perdem a sua natureza pública. Sob esta ótica, a evasão fiscal
deve ser entendida como uma espécie grave de corrupção, e aqueles que cola-
boram ou facilitam a sua realização, não exercitando, por exemplo, o direito de
exigir documentos fiscais, na condição de consumidores, são em certo sentido
corresponsáveis pelos resultados. Essa lógica aparenta ser equivocada devido
à forma complacente com que a evasão fiscal é apresentada à opinião pública.
É preciso destacar que os montantes que envolvem a evasão de tributos14 são,
seguramente, muito superiores aos desvios realizados através de outras formas
de corrupção15, frequentemente divulgados pela mídia com grande destaque.

13 OMEGNA, Nelson. A cidade colonial. 2. ed. Brasília: EBRASA, 1971, p. 296-297.


14 Se adotados os parâmetros do site “Quanto custa o Brasil”, utilizados pelo “Sonegômetro” para quan-
tificar o montante de tributos não recolhidos aos cofres públicos pela União, Estados, Distrito Federal
e Municípios, a evasão fiscal representou no ano de 2016, aproximadamente, 27,6% do que foi arre-
cadado o que equivale a uma estimativa de 9,1% do Produto Interno Bruto – PIB. Em valores isso
representaria R$ 571,5 bilhões. (Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação
do Exercício de 2016. Quanto custa o Brasil. Disponível em: <http://www.quantocustaobrasil.com.
br>. Acesso em: 13 out. 2017).
15 Embora as demais práticas de corrupção devam representar valores inferiores àqueles desviados por
meio da evasão de tributos, os prejuízos à população também são enormes. De acordo com um estudo
realizado no ano de 2016 pelo Departamento de Competitividade e Tecnologia – Decomtec, órgão
da Federação das Indústrias de São Paulo – Fiesp, os prejuízos econômicos e sociais que a corrupção

132
Joacir Sevegnani

Apesar dos vultosos valores envolvidos nas práticas tributárias lesivas ao


patrimônio público, é flagrante a falta de mecanismos legais eficazes para a sua
cobrança nos executivos fiscais. As alternativas adotadas com frequência pelos
governos restringem-se à concessão de anistias aos devedores, premiando os
maus contribuintes e desestimulando o cumprimento das leis tributárias. A
despeito da utilidade que estes benefícios possam propiciar em determinadas
circunstâncias especiais, em geral, acabam por institucionalizar uma concor-
rência predatória entre os contribuintes cumpridores das obrigações tributá-
rias e aqueles que, após descumpri-las, recebem ainda os favores do Estado.
É preciso também avaliar as consequências no cumprimento das normas
pelo cidadão, quando os poderes públicos não estão plenamente ordenados e
estruturados em bases sólidas, de forma a promover a justiça social. A questão
é saber se o Estado, por meio de sua organização e dos seus administradores,
pode influenciar no aumento da corrupção e na crise de valores que permeia as
relações sociais, quando não está inteiramente a seu serviço. Montesquieu, ao
analisar as diversas formas de governo, constata que quando os princípios que
as fundamentam estão corrompidos, as melhores leis tornam-se más e pouco
respeitadas pelo povo; do contrário, quando os princípios estão preservados,
mesmo leis ruins ou de pouca efetividade produzem bons efeitos, graças à con-
fiança popular na atuação estatal16.
Para Rawls, não há dúvida de que uma sociedade política bem orde-
nada e regulada por uma concepção pública de justiça implica que os seus
membros também tenham um desejo forte, e normalmente efetivo, de agirem
em conformidade com estes mesmos princípios. Em resumo, assevera que
“quando as instituições são justas, os indivíduos que participam dessas or-
ganizações adquirem o senso correspondente de justiça, e o desejo de fazer a
sua parte para mantê-las”17.
Embora a sociedade seja considerada a criadora do Estado, não é inco-
mum que uma minoria o utilize para fins ilícitos. Quando a corrupção ins-
tala-se no governo, o Estado não cumpre integralmente a sua função, o que
faz com que, em parte, reproduza-se na sociedade a fragilidade dos valores
de justiça. No Brasil, aparenta que os elevados níveis de corrupção são causa-
dos por um modelo de Estado mal estruturado, excessivamente burocrático,
clientelista, permeado de falhas de gestão e brechas legais que favorecem a
prática de “favores” e “jeitinhos”18.

causa ao País são de aproximadamente 69 bilhões de reais por ano. (Custo da corrupção no Brasil
chega a R$ 69 bi por ano. FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Disponível
em: <http://www.fiesp.com.br/noticias>. Acesso em: 13 out. 2017)
16 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a
divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. p. 146-147.
17 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 504.
18 “A reiteração das práticas corruptas e a inevitável sedimentação da concepção de que, além de inevi-

133
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Por isso, em certo sentido, a evasão fiscal e o desleixo dos cidadãos consu-
midores em participar ativamente, mediante a prática de ações que contribuam
para o recolhimento dos tributos, está relacionada à forma como é gerida a
coisa pública. Como exclamava Sáinz de Bujanda, quantas vezes “a fraude não
é senão uma torpe e amarga reação frente a um Estado em que se perdeu a
fé”19. Deste modo, o desrespeito às leis tributárias pode ser reduzido a níveis
mais aceitáveis, quando os gestores públicos conduzem a administração com
respeito às normas e aos valores éticos inerentes ao bem público.
Com aporte nestas considerações, infere-se que a corrupção, incluída a
evasão fiscal, possui direta relação com a estruturação do Estado e a forma
com que seus dirigentes o administram. Um Estado que não se concretiza em
bases justas e voltado ao bem comum, governado muitas vezes para o interes-
se de poucos, cria um distanciamento da comunidade que, não se perceben-
do a ele integrada, apresenta um comportamento apático em relação à coisa
pública. Porém, quando a sociedade brasileira estabelece uma resistência aos
tributos, seja na condição de contribuinte de direito20 ou como contribuinte
de fato21, em vista da corrupção e malversação do dinheiro público, combate
um mal com outro mal, do que resulta um círculo vicioso que degenera ainda
mais os valores que a sustentam.
Por outro lado, a corrupção não se limita apenas aos espaços em que atua
o poder público, ainda que nele se torne mais evidente, como também não é
plausível imaginar-se que no Estado esteja toda a origem deste vício. O Estado
é gerido por representantes escolhidos, direta ou indiretamente, entre os seus
membros, o que faz presumir que cidadãos justos tornam-se administradores
justos, assim como o seu oposto22. Ademais, comumente a corrupção concreti-
za-se por meio de uma relação bipolar, entre corruptor e corrompido, em que
num dos lados atuam agentes dos poderes públicos e, noutro, da coletividade.
Destarte, a corrupção na Administração Pública e a corrupção na sociedade ci-

táveis, são toleráveis, possibilita a ‒institucionalização da corrupção‒, o que tende a atenuar a cons-
ciência coletiva e associar a corrupção às instituições, implementando uma simbiose que dificilmente
será revertida” (GARCIA, Emerson. Repressão à corrupção no Brasil: entre realidade e utopia. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 04).
19 BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda y derecho: Introducción al Derecho Financeiro de nuestro
tiempo. Madri: Instituto de Estúdios Políticos, 1962, v. I, p. XIX.
20 Contribuinte de direito ou sujeito passivo da obrigação tributária é aquele que tem o dever legal de
recolher o tributo.
21 Contribuinte de fato é a pessoa que suporta o ônus econômico do tributo, total ou parcialmente, por
não poder repassar o seu custo a outra pessoa. Em resumo, é o consumidor final.
22 “A corrupção está associada à fragilidade dos padrões éticos de determinada sociedade, os quais se
refletem sobre a ética do agente público. Sendo este, normalmente, um mero ‘exemplar’ do meio
em que vive e se desenvolve, um contexto social em que a obtenção de vantagens indevidas é vista
como prática comum dentre os cidadãos, em geral, certamente fará com que idêntica concepção seja
mantida pelo agente nas relações que venha a estabelecer com o Poder Público. Um povo que preza
a honestidade provavelmente terá governantes honestos. Um povo que, em seu cotidiano, tolera a
desonestidade e, não raras vezes a enaltece, por certo terá governantes com pensamento similar”
(GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011, p. 9).

134
Joacir Sevegnani

vil estão intimamente ligadas e funcionam como um sistema de realimentação


de dupla via: do Estado para a sociedade e vice-versa.
Um fato incontroverso que se extrai desta análise é que, na prática, as
classes mais atingidas pelas práticas lesivas aos cofres públicos são as que
dependem mais intensamente das políticas públicas, especialmente em áreas
como a da saúde, saneamento básico e assistência social23. Nestes casos, apesar
de imperceptível ao cidadão comum, a falta de recursos causada por desvios
pode significar a diferença entre viver ou morrer para muitas pessoas. Esta
constatação demonstra que a corrupção e a evasão fiscal produzem efeitos tão
deletérios que afrontam a dignidade da pessoa humana.

3. A TRANSPARÊNCIA COMO INSTRUMENTO PARA A REDUÇÃO


DA EVASÃO FISCAL
Apesar dos instrumentos rígidos de controle e fiscalização dos tributos,
a evasão fiscal no Brasil ainda se apresenta em níveis extremamente elevados,
reflexo de um conjunto de fatores e medidas que não proporcionam os efeitos
desejados para o cumprimento espontâneo do dever fundamental de pagar
tributos24. Para esse quadro de aparente estado de anomia, participam alguns
atores que podem assim ser distribuídos: o Estado, que estrutura um sistema
tributário obscuro, complexo e essencialmente punitivo; os contribuintes, ao
adotarem práticas e subterfúgios para reduzirem ou evitarem o recolhimento
dos tributos; a sociedade, que tende a aceitar e até contribui, muitas vezes,
para que esse ilícito se materialize.
Embora se reconheça que existem outros fatores que contribuem para de-
sestimular os contribuintes a recolherem os tributos devidos, e a sociedade a ter
uma atitude colaborativa e participativa para o cumprimento das obrigações tri-
butárias, a exemplo da má gestão e dos desvios de recursos dos cofres públicos,
entende-se que estes não são as causas centrais do problema. Como se asseverou,
a adoção do argumento de que a evasão fiscal é mera consequência de como os
tributos arrecadados são tratados pelo poder público é falho, pois busca justiçar
a prática de um ilícito com base em outro. Em síntese, os desvios e a má gestão
pública não podem ser considerados como fundamentos para os contribuintes
deixarem de cumprir com o dever fundamental de pagar tributos.

23 “As políticas públicas, ademais, são sensivelmente atingidas pela evasão fiscal, que consubstancia
uma das facetas dos atos de corrupção. Com a diminuição da receita tributária, em especial daquela
originária das classes mais abastadas da população, diminui a redistribuição de renda às classes me-
nos favorecidas e aumenta a injustiça social. Esse quadro ainda servirá de elemento limitador à ajuda
internacional, pois é um claro indicador de que os fundos públicos não chegam a beneficiar aqueles
aos quais se destinam” (GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa.
6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 25).
24 Expressão adotada por José Casalta Nabais, na obra “O dever fundamental de pagar impostos: contribu-
to para a compreensão do estado fiscal contemporâneo”, publicado pela Editora Coimbra de Portugal.

135
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Nessa linha, as proposições que se apresentam visam enfrentar as causas


primeiras da evasão fiscal, mediante a análise dos resultados que podem advir
da criação de instrumentos que permitam uma maior transparência na admi-
nistração tributária.

3.1. A PARTICIPAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE TRANSPARÊNCIA NAS


ADMINISTRAÇÕES TRIBUTÁRIAS
A transparência é decorrência do Estado Democrático de Direito, obje-
tivando a legitimação das ações praticadas pela Administração Pública, por
meio da redução do distanciamento que a separa dos administrados. Caracte-
riza-se como princípio fundante da ideia de democracia, mesmo nos moldes
que se a conhecia na Grécia clássica. Hodiernamente, ainda ecoa o exemplo
da Atenas de Péricles, onde os cidadãos se reuniam num lugar público, a
“Ágora”, com o objetivo de apresentar e ouvir propostas, denunciar abusos
ou fazer acusações e de decidir erguendo as mãos, após terem apreciado os
argumentos apresentados pelos oradores.25
Se a evolução do Estado e a complexidade das relações sociais já não
permitem uma democracia direta como a grega, mais importante ainda é o
conhecimento do povo acerca dos atos praticados pelos representantes públi-
cos. Afinal, apenas agem pela outorga de poderes que lhes foram concedidos,
devendo observar com rigor os princípios da legalidade, da moralidade, da
impessoalidade, da eficiência e da publicidade.
Disto dimana que o Estado deve guiar-se pelo caráter público, sendo o
segredo a exceção e, mesmo assim, é uma exceção que não deve fazer a regra
valer menos. Significa que todas as decisões e mais em geral os atos dos go-
vernantes devem ser conhecidos pelo povo soberano, porque este é um dos
eixos centrais do regime democrático, seja um governo direto ou controlado
pelo povo. Nessa perspectiva, dar transparência aos atos são premissas ine-
rentes à atuação do Estado, porque não dizem respeito a negócios pessoais,
mas a coisa alheia que a todos pertence.
Adotando-se o pensamento de Martins Junior, vê-se que a transparência
não deve ser entendida apenas como a ação de informar a população acerca da
atuação estatal. A mera publicação de boletins, relatórios, demonstrativos de
contas ou pareceres relativos à situação da gestão fiscal são insuficientes para
alcançar esse propósito, especialmente quando redigidos em linguagem técnica
e inacessível ao cidadão comum. A transparência contempla a publicidade inteli-
gível das informações, a motivação dos atos em sintonia com o interesse público
e a participação popular nas decisões políticas. A conjugação destes três instru-

25 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 10. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 98.

136
Joacir Sevegnani

mentos possibilita a concretização da ideia da mais ampla visibilidade dos atos,


rompendo com o paradigma tradicional, secreto e hermético de administração e
contribuindo para a consolidação do Estado Democrático de Direito.26
A publicidade caracteriza-se como o primeiro estágio da transparência
administrativa, ao permitir acesso ao conhecimento. Tornar público é a mais
elementar regra da Administração Pública, significando ato de comunicação,
veiculação de algo que, por exigência jurídica, não pode ficar na esfera da
intimidade ou da reserva, para satisfação da pluralidade de fins. Como ensi-
na Kant, “todas as ações relativas ao direito de outros homens, cuja máxima
não é suscetível de se tornar pública, são injustas”27. Excetuadas as situações
de sigilo, em decorrência de prescrição legal, a publicidade é fator condicio-
nante e indispensável à eficácia do ato. A ausência acarreta a sua invalidade,
tornando-o desprovido de efeitos sobre os destinatários. Do contrário, a ex-
posição de todo e qualquer comportamento administrativo confere certeza à
conduta estatal e segurança aos administrados.28
A motivação é decorrência do princípio da legalidade e está ligada ao
dever jurídico da boa gestão administrativa. Como os agentes públicos não
são “donos” dos bens públicos, mas simples gestores de interesses de toda a
coletividade, devem explicar as razões que motivam suas decisões. Na afir-
mação de Mello, a administração deve indicar os fundamentos de direito e de
fato, a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a
providência tomada, nos casos em que esta última seja necessária para aferir-
-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe deu suporte.29
Trata-se assim de uma justificação que tem por pressuposto maior a garantia e
a proclamação do interesse público, de forma que são inválidos os atos em que
a motivação não esteja a ele vinculado.
Por sua vez, a participação popular representa um dos alicerces básicos
do modelo de democracia participativa, com o objetivo de trazer as decisões
para o âmbito dos interessados. Para isso, exige-se a implementação de me-
canismos que variam desde referendos e plebiscitos, até reuniões colegiadas,
cooperação, concerto, audiências e consultas públicas, onde o cidadão partici-
pa apresentando sugestões ou diretamente no processo de decisão. A atuação
popular nas deliberações públicas reduz o espaço de influências ocultas, da
falta de planejamento, do clientelismo e outros vícios, aumentando o grau de

26 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Transparência administrativa: publicidade, motivação e parti-


cipação popular. São Paulo: Saraiva, 2004, p. XIII.
27 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 10. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 104.
28 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Transparência administrativa: publicidade, motivação e parti-
cipação popular. p. 19, 37-38.
29 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2006, p. 100.

137
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

eficiência e efetividade dos atos na partilha do poder com a população.30


Evidencia-se que a participação popular não deve ser compreendida na
sua concepção reduzida, em que o envolvimento social se resume aos clás-
sicos orçamentos participativos, mas contemplar, sobretudo, o acompanha-
mento da execução orçamentária e o controle propriamente das obras e servi-
ços públicos realizados. Ademais, é fundamental que as normas que regulam
as relações entre os cidadãos e destes para com o Estado sejam elaboradas
mediante procedimentos democráticos que espelhem a realidade social, sob
pena de serem portadoras de baixa efetividade e, por consequência, maior
índice de descumprimento ou inobservância.
Em matéria de tributação, no que diz respeito aos contribuintes, a partici-
pação pode ser concretizada especialmente na fase de elaboração das normas
tributárias. A participação possibilita a obtenção de consenso com a exigência
tributária, fortalecendo a democracia e reduzindo o desejo de burlá-la. Logo,
é possível asseverar que há uma relação inversa no nível de aceitação das nor-
mas tributárias impositivas, quando comparadas aquelas estabelecidas autori-
tariamente pelo Estado, com as instituídas mediante consensos, de forma que
o grau de conflituosidade será tanto menor, quanto maior a participação dos
seus destinatários: os contribuintes.
O fortalecimento de um paradigma em que os contribuintes deixam de ser
apenas meros espectadores passivos ou destinatários de normas impositivas,
para figurarem como agentes colaboradores das decisões envolvendo questões
tributárias, pode ser efetivado através de câmaras de discussão em que partici-
pam representantes do governo e dos contribuintes. Nessa perspectiva, denota-
-se que as normas tributárias não devem apenas atender as premissas de legali-
dade e os demais princípios que as norteiam, mas estarem também revestidas de
legitimidade, ou seja, serem portadoras do necessário consenso social.
É de se destacar ainda que a reduzida participação com que comumente
são tratadas e decididas as questões tributárias faz aumentar o risco de favo-
recimento de particulares em detrimento do interesse público. Neste caso, não
é incomum a implementação de benefícios fiscais, regimes ou tratamentos es-
peciais de tributação a determinados segmentos da atividade econômica, sem
a observância dos princípios constitucionais que devem norteá-los. Basta con-
templar as constantes alterações procedidas nas leis fiscais, para em diversas
situações pôr-se em dúvida qualquer sentido de ordem, que não a força de
múltiplos interesses e pressões.
Por outro lado, denota-se que os quadros funcionais das administrações
tributárias ainda não estão plenamente preparados para uma mudança de pa-

30 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Transparência administrativa: publicidade, motivação e parti-


cipação popular. p. XVII e 294.

138
Joacir Sevegnani

radigma, que permita uma participação ativa das entidades representativas


dos contribuintes nas discussões das normas tributárias. Na opinião de Sainz
de Bujanda, a explicação para esse fenômeno é que os órgãos estatais possuem
arraigada a cultura fundada na presunção do “contribuinte fraudador”, o que
causa uma incredulidade sistemática das administrações tributárias na hones-
tidade dos contribuintes. Em razão disso, ao editarem normas, geralmente o
fazem mediante uma generalização da fraude, como se tratasse de uma prática
a que todos os contribuintes estão potencialmente propensos a fazer uso.
Essa generalização faz com que a atuação de controle das obrigações
tributárias resulte em fórmulas legislativas e de gestão complexas, minucio-
sas, confusas e essencialmente punitivas. Do ponto de vista educativo, as
consequências são nefastas, porque traduzem uma descrença na probida-
de de todos os contribuintes, independente das suas condutas. A despeito
da aparente necessidade de um maior regramento das normas tributárias,
quando a fraude fiscal é mais intensa, na visão do autor, é necessário que o
sistema tributário seja compatibilizado a um modelo simplificado e eficiente,
edificado com base numa maior consideração e credibilidade nos contribuin-
tes. Destaca, entretanto, que essa mudança de paradigma exige que sejam
proporcionadas ao fisco e aos demais órgãos de cobrança dos créditos tri-
butários, mecanismos de coação extremamente eficientes contra aqueles que
defraudam o erário público.31
Por isso, é preciso sensibilizar os agentes dos poderes estatais para que es-
truturem um sistema que, de um lado, respeite a personalidade moral dos con-
tribuintes idôneos e, de outro, desestimule a propensão a práticas tributárias
fraudatórias. Quando aqueles que obedecem as leis tributárias são regrados
por legislações apropriadas e que contribuíram na sua elaboração, sentem-se
motivados a serem também agentes partícipes no processo de construção de
uma sociedade política mais justa e condenam a evasão fiscal.
Ademais, é inegável que a participação na elaboração das normas tribu-
tárias, em especial pelos seus destinatários, pode proporcionar, não apenas a
elevação do seu nível de aceitação, mas, sobretudo, a redução da complexidade
do sistema tributário.
A complexidade do sistema tributário é uma característica historica-
mente arraigada no Brasil, que remonta ao período colonial. Desde aquela
época, como adverte Faoro, eram muitos tributos e a captação de rendas ti-
nha por incidência fatos os mais variados e curiosos. Havia por exemplo,
uma tributação destinada à reparação dos danos causados pelo terremoto de
Lisboa de 1755 que ainda era exigida dos brasileiros, mesmo após ter sido

31 BUJANDA, Fernando Sainz de. Teoria de la educación tributaria. Madrid: Leal, 1967, p. 49-51,
101, 119.

139
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

proclamada a Independência e no curso do Primeiro Reinado.32 Na atualida-


de, não ocorreram mudanças acentuadas. A população ainda não tem uma
percepção clara dos tributos que paga, as razões pelas quais paga, o quanto
lhe é cobrado e como funciona o sistema tributário.
A complexidade não decorre propriamente da quantidade de tributos,
mas principalmente das extensas e confusas legislações que disciplinam cada
um em particular, produzindo um excesso de formalidades e burocracia des-
proporcionais. É que o sistema fiscal não é dotado de uma coerência e racio-
nalização que o torne simplificado e compreensível, tanto do ponto de vista
da estruturação jurídica, como dos procedimentos de controle da arrecadação.
Com isso, há uma elevação nos custos de administração e de cumprimento
das obrigações tributárias, principalmente para as empresas, o que reduz a
competitividade e intensifica a resistência ao seu cumprimento. Para os órgãos
estatais, como resultado desta anomalia, há também um dispêndio maior para
a obtenção das receitas tributárias. Diante deste quadro, apesar da evidente ne-
cessidade de simplificação das legislações e dos procedimentos exigidos pelos
órgãos governamentais, são poucas as medidas adotadas neste sentido. Como
um aparente paradoxo, em regra, as administrações públicas seguem em di-
reção oposta, produzindo uma contínua ampliação do regramento tributário,
que o torna cada vez mais complexo.
Portanto, a simplificação do sistema tributário, conferindo-lhe uma or-
dem lógica compreensível, é fundamental para o aumento da transparência
pública. Se o cidadão e os contribuintes não possuem uma compreensão míni-
ma dos temas tributários, a falta de conhecimento é um obstáculo à ativa par-
ticipação nesse processo. Neste caso, o desconhecimento é causa, não apenas
de indiferença à coisa pública, mas principalmente de resistência às exigências
fiscais. A simplificação das leis tributárias pode então ser um caminho para a
democratização dos tributos, de forma a torná-los transparentes à população.
Outro aspecto que se tratará a seguir, e que está diretamente relacionado
à transparência, diz respeito à forma de atuação dos fiscos. Algumas experiên-
cias vêm demonstrando que quando as administrações tributárias optam por
uma atuação fiscal essencialmente preventiva, alcançam resultados promisso-
res, não apenas no aumento do cumprimento das obrigações tributárias, mas
também na compreensão e aceitação dos tributos como necessários à manuten-
ção do Estado e, por consequência, no financiamento das demandas públicas.

3.2. A TRANSPARÊNCIA POR MEIO DA ATUAÇÃO FISCAL PREVENTIVA


O modelo de atuação do fisco no Brasil ainda é essencialmente puniti-

32 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. rev. São
Paulo: Globo, 2001, p. 233.

140
Joacir Sevegnani

vo, reflexo da concepção enraizada de que as normas tributárias somente são


cumpridas em razão do temor das sanções a que os contribuintes podem ser
submetidos. Assim, a regra é a constituição do crédito tributário pela autorida-
de fiscal, quando identificadas irregularidades de natureza tributária, com fun-
damento no artigo 142 do Código Tributário Nacional33. Não há possibilidade
de o contribuinte ser instado a sanear irregularidades, com multa reduzida,
após o início de uma medida de fiscalização. Por consequência, a regra é que
ao Fisco compete agir nos estritos limites da norma legal, não lhe sendo per-
mitido autorizar o cumprimento da obrigação tributária depois de constatada
formalmente infração à legislação tributária.
Inegavelmente, as sanções desenvolvem um papel fundamental na ma-
nutenção do equilíbrio e harmonia das relações sociais. A sanção é ínsita à
natureza do próprio Direito. Para que as normas sejam cumpridas pela socie-
dade, em muitas situações, a lei prescreve sanções que visam estimular a obser-
vância das normas de conduta. A sanção é a consequência jurídica do não cum-
primento da ordem emanada da lei. Sob esta ótica, como explica Montoro, a
norma que estabelece a sanção é norma secundária, enquanto a que estabelece
o dever é norma primária. A sanção não se confunde com a coação. Enquanto
aquela é decorrência da não prestação estabelecida pela ordem jurídica, esta é
a coerção para a execução forçada do dever.34 Todavia, não se trata de estabe-
lecer uma relação de completa subordinação entre as normas sancionadoras e
as normas de conduta, pois nem todas as normas jurídicas são cumpridas em
razão do temor da sanção.
No âmbito do Direito Tributário, as sanções tributárias têm grande im-
portância para garantir a observância das normas que impõem o dever fun-
damental de pagar tributos. Para alguns doutrinadores, e principalmente para
as administrações tributárias, o cumprimento do dever fundamental de pagar
tributos está diretamente relacionado à efetividade e gravidade das sanções
que podem ser aplicadas aos infratores.
Esta é a opinião de Martins35, ao considerar que o tributo caracteriza-se
como norma de rejeição social, exigindo necessariamente a estipulação de uma
regra sancionatória para ser cumprida. Acolhendo-se a proposição do ilustre
doutrinador, equivaleria dizer-se que os contribuintes somente aceitam arcar
com tributos para o financiamento das políticas públicas, pelo temor das medi-
das coercitivas que o Estado pode lhes impor. A pesquisa que se realiza segue

33 “Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo
lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato
gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo
devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.”
34 MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 25. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 468.
35 MARTINS, Ives Gandra da Silva et al. O princípio da moralidade no direito tributário. 2. ed. atual.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, (Pesquisas tributárias. Nova série; n. 2), p. 35-36.

141
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

noutra linha, procurando demonstrar que, em grande parte, a rejeição não é


propriamente à obrigação de pagá-los, mas a forma como o Estado os institui e
posteriormente os administra.
As normas tributárias sofrem uma resistência, principalmente quando não
portadoras de um conteúdo ético-social, o que significa que os tributos devem
ser justos, tanto na instituição como na aplicação dos seus recursos. O que o au-
tor denomina rejeição, aparenta ser um mecanismo social de contestação, porque
a norma não foi legitimada pelos seus destinatários, causando, por consequên-
cia, uma percepção de que o seu fim não é propriamente o interesse público.
Por evidente, embora haja uma tendência comportamental coletiva ao
cumprimento das normas, muitos indivíduos são naturalmente propensos a
práticas lesivas à coisa pública, independente de como se desenvolve a atuação
estatal. Quando os agentes públicos se deparam com transgressores dessa na-
tureza, precisam estar amparados com mecanismos sancionatórios eficientes
que façam restaurar, em curto espaço de tempo, a ordem vigente, o que por si
só, incentiva os demais a continuarem zelando pelo seu cumprimento.
Como explica Giannetti, adotando o pensamento de Aronson36, a moti-
vação para o cumprimento das normas estabelecidas pelo Estado, a exemplo
das tributárias, não está adstrita apenas ao temor da sanção ou ao rigor da sua
imposição. Este é apenas um dos fatores de indução, denominado pelo autor
de “submissão”, em que o receio de ser submetido ao rigor da pena afasta a
pretensa vontade de descumpri-la.
Num nível distinto, há uma parcela significativa das pessoas que observa
as normas legais motivados por uma espécie de “identificação social”. Neste
caso, não praticam determinadas ações consideradas indevidas pela sociedade,
para não receberem uma reprovação social. Enquanto os atos de desrespeito
ao meio ambiente atingiram, em grande parte, esse nível de reprovação, as
práticas explícitas de evasão fiscal, como não entregar documento fiscal aos
consumidores, ainda são relativamente toleráveis e aceitas.
Por fim, tem-se um último nível em que a razão para cumprir as normas
decorre de uma “internalização de valores”. O ser humano que atingiu esse
grau de introjeção dos deveres não respeita as normas legais pelo temor da pu-
nição ou da reprovação social a que pode ser submetido, mas com base numa
reflexão ética interior.37
No campo da tributação, evidencia-se que as sanções atuam de forma

36 Para aprofundamento do tema, vide a obra: ARONSON, Elliot. O animal Social: introdução ao Estu-
do do Comportamento Humano. Tradução de Noé Gertel. São Paulo: IBRASA, 1979. Título original:
The Social Animal.
37 GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos?: A ética na riqueza das nações. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 94-96.

142
Joacir Sevegnani

semelhante, ou seja, não são a única motivação para o pagamento de tributos,


funcionando como medidas necessárias, quando o desejo de burla da norma
tributária funda-se meramente em interesses particulares, em detrimento do
interesse público.
Com base nessas considerações, vislumbra-se que é possível e oportuno
que os atuais modelos de controle das condutas dos contribuintes adotados
pelas administrações tributárias sejam repensados. Mas, para que ocorra a des-
construção de antigas certezas sedimentadas pelos fiscos, especialmente de que
é somente em razão do temor da sanção que o contribuinte cumpre suas obri-
gações tributárias, faz-se necessário avançar em dois aspectos que se considera
fundamentais. O primeiro, por meio da elaboração de um conjunto de normas
legais que autorizem os agentes fiscais a adotarem procedimentos fiscais pre-
ventivos, permitindo ao contribuinte sanar irregularidades, sem a aplicação da
multa punitiva. O segundo, mediante a conscientização dos agentes das admi-
nistrações tributárias para que internalizem uma cultura fundada num modelo
de atuação fiscal preventiva. Destaca-se este aspecto porque não basta apenas
a edição de lei para alterar a realidade vigente, mas principalmente a introjeção
pelos agentes do fisco do novo arquétipo estabelecido legalmente.
Entretanto, a edição de legislações voltadas à construção e criação de uma
cultura fiscal direcionada à prevenção enfrenta problemas de natureza jurídi-
ca. É que em matéria tributária, no Brasil, as normas legais devem estar em
conformidade não apenas com os ditames constitucionais, mas também com
as disposições gerais do Código Tributário Nacional.
Neste contexto, a discussão cinge-se à possibilidade de ser oportunizado,
por lei, o direito de o contribuinte regularizar infrações eventualmente pratica-
das, com aplicação de penalidades menos gravosas ou de caráter meramente
moratório, após o início da medida de fiscalização.
Já é conhecida a clássica delimitação estabelecida pelo artigo 138 do Có-
digo Tributário Nacional38, de que após o início de medida de fiscalização,
encerra-se a fase da denúncia espontânea. Noutras palavras, o entendimento
é no sentido de que o marco temporal que divide o prazo para o contribuin-
te regularizar espontaneamente as obrigações tributárias descumpridas, dá-se
com a ciência do termo de início de ação de fiscalização de ofício. Após essa
data, não haveria como ser oportunizado ao contribuinte a regularização de
fatos constatados pelo fisco sem a emissão de auto de infração e aplicação de
multa punitiva, sob pena de responsabilização pessoal do agente fiscal que não

38 “Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for
o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada
pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração. Parágrafo único.
Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento admi-
nistrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.”

143
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

adotou as providências cabíveis.


Compreensível a preocupação, haja vista que o parágrafo único do artigo
142 do mesmo diploma legal, prevê que “a atividade administrativa de lança-
mento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”. É
que o divisor temporal entre a espontaneidade e a punibilidade dá-se com a
ciência do termo de início de fiscalização. Nesse contexto, o entendimento que
ainda vigora nos quadros funcionais das administrações tributárias é que após
iniciado um procedimento de fiscalização do contribuinte, não há que se cogi-
tar a possibilidade de ser dispensada a exigência de multa punitiva, sob pena
de responsabilização pessoal do agente que praticou o ato.
Respeitadas as opiniões divergentes, entende-se que o limite temporal
fixado no artigo 138 do diploma legal citado é norma voltada ao contribuinte,
visando impedi-lo de, após iniciada medida de fiscalização, corrigir pendên-
cias e irregularidades a seu livre arbítrio. Todavia, não há óbice que impeça
o legislador ordinário de criar mecanismos diferenciados, mediante lei, fa-
cultando ao contribuinte, mesmo que durante uma medida de fiscalização,
regularizar inconsistências ou recolher os tributos devidos, com a aplicação
de multa moratória e reduzida.
A vinculação e obrigação expressas no artigo 138 referem-se à lei, de modo
que não pode o agente fiscal agir discricionariamente para dispensar tributo ou
multa sem amparo legal. Desse modo, os entes estatais podem editar leis que
direcionem a atividade fiscal para uma atuação preferencialmente preventiva.
Neste sentido, são oportunas as lições de Aronson e Giannetti que se expôs,
tratando das motivações para o cumprimento das normas estabelecidas pelo Es-
tado: o temor da sanção, a identificação social e a internalização de valores.
Acolhendo a divisão proposta pelos autores, percebe-se que o estabele-
cimento de multas progressivas para o contribuinte permite que, apesar do
descumprimento de obrigação tributária, possa arrepender-se mesmo após ini-
ciada a fiscalização, optando pela regularização com base em multa moratória
ou menos gravosa.
Assim, o modelo poderia ser estruturado de modo que, num primeiro
momento, o fisco atuaria por meio de monitoramento e constatada a existên-
cia de indícios de evasão fiscal, antes do início de medida de fiscalização, o
contribuinte seria comunicado das inconsistências identificadas e da possi-
bilidade de corrigi-las e pagar o tributo devido, se assim o desejasse. Neste
caso, ficaria sujeito apenas à multa de caráter moratório a que se refere o
artigo 138. Cabe observar ainda que, neste momento, como em geral o fisco
ainda não possui elementos materiais consistentes para comprovar a prática
de infração, é o contribuinte que procede ao levantamento e definição dos

144
Joacir Sevegnani

valores devidos. Trata-se, portanto, de uma liberalidade sua acatar ou des-


considerar a orientação do fisco.
Num segundo momento, iniciado o procedimento de fiscalização, a lei fa-
cultaria ao fisco a prerrogativa de apresentar ao contribuinte os levantamentos
e fundamentos comprobatórios da prática de infração à legislação tributária,
para que possa exercitar o direito de pagar o débito com base em multa redu-
zida, mas superior àquela de caráter moratório.
Por fim, num terceiro momento, se o contribuinte não concordasse em
regularizar as inconsistências identificadas nos levantamentos fiscais, o fisco
constituiria o crédito tributário, lançando multa punitiva superior à anterior
Em síntese, estabelecendo uma ordem lógica, no monitoramento o
agente fiscal procederia à análise preliminar de informações, com o propó-
sito de certificar a regularidade das obrigações tributárias. Se encontrados
indícios de descumprimento da legislação tributária, o fato seria comunicado
ao contribuinte para que, por liberalidade sua, pudesse sanear as eventuais
inconsistências e recolher o tributo devido, com multa moratória, como se es-
pontaneamente fosse. Não sendo procedida a regularização, a ação de moni-
toramento seria convertida em início de fiscalização, com a devida ciência ao
sujeito passivo. Nesta fase, ocorrendo a comprovação da prática de infração,
seria facultado o cumprimento da obrigação tributária e pagamento de multa
de valor intermediário. Por fim, em caso de não cumprimento da obrigação
tributária naquelas fases, o fisco daria prosseguimento à constituição do cré-
dito tributário, com aplicação de multa punitiva mais gravosa.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As proposições apresentadas procuraram demonstrar que é possível re-
duzir o nível de evasão fiscal se, por um lado, forem instituídos mecanismos
que proporcionem uma ampliação efetiva da transparência nas administrações
tributárias, especialmente por meio da participação nas discussões envolvendo
a elaboração e aplicação das normas tributárias e, por outro, se ocorrer a imple-
mentação de um modelo de atuação fiscal essencialmente preventiva.
A participação pode ocorrer, por exemplo, através da criação de câmaras
de discussões, em que podem participar representantes dos governos e dos
contribuintes, o que favoreceria não apenas o nível de consentimento das nor-
mas tributárias editadas, mas também oportunizaria uma melhor compreen-
são do conteúdo que delas emanam. Ademais, a participação atuaria como um
importante instrumento para promover uma simplificação das legislações tri-
butárias. Quando as normas legais são consentidas e compreendidas, opera-se
naturalmente uma redução no desejo de descumpri-las.

145
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Se, por um lado, a participação contribui para um maior consentimento


com as exigências tributárias, por outro, a construção de um paradigma de
atuação do fisco preponderantemente preventivo reduz a tendência de con-
flitos com os contribuintes. Contrariamente ao que pode aparentar, a criação
de mecanismos que oportunizem a regularização de fatos tipificados como
infração à legislação tributária, com penalidades meramente moratórias ou
em percentual reduzido, não produz um decréscimo no cumprimento espon-
tâneo das obrigações tributárias.
Entretanto, para que estes mecanismos possam funcionar como uma
força construtiva, é necessário que as relações estejam pautadas por condutas
éticas e transparentes, tanto dos agentes públicos, como dos contribuintes.
Destaca-se este aspecto para reafirmar que as matérias relativas à tributação
afetam diretamente os cidadãos, especialmente no que se refere à efetividade
dos seus direitos fundamentais. Assim, a ideia de relações participativas e de
uma atuação preventiva do fisco exige que tenham como fim último a pro-
moção do bem comum.
Em síntese, quando o Estado atua com respeito ao princípio da transpa-
rência e os tributos são regidos por um sistema compreensível, o contribuinte
sente-se motivado a colaborar na elaboração das leis tributárias e a condenar
a prática da evasão fiscal. A ação de entregar parte da renda particular a um
ente público deixa então de ser apenas uma obrigação imposta pela lei, para
caracterizar-se, principalmente, como um dever moral de contribuir para
com a coletividade em que vive.
Encerra-se com a percepção de que as mudanças propostas não depen-
dem apenas da criação de mecanismos instrumentais e reestruturação do mo-
delo jurídico vigente. É fundamental para transformar as antigas estruturas
que seja repensada, inicialmente, a cultura do próprio fisco, deixando de consi-
derar-se como um órgão cuja missão é fundamentalmente aplicar sanções aos
infratores, para transformar-se, sobretudo, no agente que atua na salvaguarda
dos recursos públicos, essenciais para que o Estado possa cumprir com sua
missão constitucional de garantir uma vida com dignidade aos cidadãos.

5. REFERÊNCIAS
BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de Ivo Storniolo et al. São Paulo: Paulus, 1990.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 10. ed. São Pau-
lo: Paz e Terra, 2006.
BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 14 out. 2017.
BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda y Derecho: Introducción al Derecho Financeiro de nuestro

146
Joacir Sevegnani

tiempo. Madri: Instituto de Estúdios Políticos, 1962, v. I.


BUJANDA, Fernando Sainz de. Teoria de la educacion tributaria. Madrid: Leal, 1967.
Custo da corrupção no Brasil chega a R$ 69 bi por ano. FIESP – Federação das Indústrias do Estado de
São Paulo. Disponível em: <http://www.fiesp.com.br>. Acesso em: 13 out. 2017.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. rev. São
Paulo: Globo, 2001, p. 233.
GARCIA, Emerson. A corrupção: uma visão jurídico-sociológica. Revista dos Tribunais, São Paulo,
v. 820, fev. 2004.
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lu-
men Juris, 2011.
GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos?: A ética na riqueza das nações. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2007.
______. Repressão à corrupção no Brasil: entre realidade e utopia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MARTINS, Ives Gandra da Silva et al. O princípio da moralidade no direito tributário. 2. ed. atual. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, (Pesquisas tributárias. Nova série; n. 2).
MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Transparência administrativa: publicidade, motivação e partici-
pação popular. São Paulo: Saraiva, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2006.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a
divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. 2. ed. aum. São Paulo: Saraiva,
1992.
MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 25. ed. São Paulo: RT, 2000.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e racionalidade moderna. São Paulo: Loyola, 1993.
OMEGNA, Nelson. A cidade colonial. 2. ed. Brasília: EBRASA, 1971.
PLATÃO. Apologia de Sócrates; Xenofonte; Ditos e feitos memoráveis de Sócrates; Apologia de Sócrates.
São Paulo: Nova Cultural, 1999.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação do Exercício de 2016. Quanto
custa o Brasil. Disponível em: <http://www.quantocustaobrasil.com.br>. Acesso em: 13 out. 2017.
TÔRRES, Heleno Taveira; Queiroz, Mary Elbe (Coord.). Desconsideração da personalidade jurídica em
matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

147
AS PRÁTICAS DE DESONERAÇÃO TRIBUTÁRIA E
O COMBATE À CORRUPÇÃO: AMPLIAÇÃO DO
CONTEÚDO DA CIDADANIA PELO INCREMENTO DE
INSTRUMENTOS DE ACCOUNTABILITY DEMOCRÁTICA
OU RESPONSABILIZAÇÃO POLÍTICA ININTERRUPTA

Carlos Araujo Leonetti1


Luciana Cardoso de Aguiar2
Vinicius Garcia3

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No Brasil, vive-se um descortinamento do jogo político que permite que
sejam vislumbradas com mais clareza as dinâmicas de poder e a manipulação
da vontade popular por meio de propagandas partidárias e do financiamento
de campanhas políticas por empresas que buscam vantagens pessoais e ilícitas
às custas do erário. Isso não é novidade, pois onde há financiamento de cam-
panha eleitoral existe, na mesma medida, a expectativa de retribuição por parte
do governo eleito. Manin, Przeworski e Stokes4 salientam que, caso assim não
fosse, os diretores das empresas financiadoras poderiam ser chamados à res-
ponsabilidade por seus próprios acionistas.
A realidade brasileira mostra que a situação é cada vez mais grave, re-
velando-se ainda mais corrompida do que se poderia imaginar, no bojo em
que normas legais são produzidas por encomenda de setores da sociedade,
em claro descompromisso com o conceito de República. Em que pese à diver-
sidade de análises possíveis, este estudo se limitará às questões sobre as quais
dificilmente será possível levantar alguma dúvida acerca de sua incompati-

1 Mestre e Doutor em Direito pela UFSC com estágio de doutoramento na Harvard University. Procu-
rador da Fazenda Nacional aposentado. Professor de Direito Tributário nos cursos de graduação e de
pós-graduação em Direito na UFSC.
2 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela
UFSC. Participante do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos da Tributação do Centro de Ciên-
cias Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina. Servidora Pública Federal e Professora de
Cursos de Pós-Graduação e de Graduação em Direito nas disciplinas de Direito Tributário e Ciência
Política e Teoria Geral do Estado da Escola Superior de Criciúma – Faculdades ESUCRI
3 Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Participante do Núcleo
de Pesquisa em Direitos Humanos da Tributação do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal de Santa Catarina. Procurador da Fazenda Nacional e Professor de Direito Tributário da
Universidade do Extremo Sul Catarinense.
4 MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C.. Eleições e representação. Lua Nova,
São Paulo, n. 67, p. 105-138, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
text&pid =S0102-64452006000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.

148
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

bilidade com o interesse público e com sua congruência para com interesses
privados alçados à agenda dos partidos políticos que compõem o Governo
brasileiro, como um todo, e o Congresso Nacional, em particular.
Trata-se das políticas de desoneração tributária implementadas pelo Go-
verno Federal brasileiro nas últimas duas décadas que estabelecem anistias
e remissões tributárias em patamares bilionários em favor de contribuintes
inadimplentes contumazes. Dentre eles, não só os responsáveis pelo finan-
ciamento das campanhas políticas do corpo legislativo, mas também eles, os
próprios deputados e senadores, que aprovam, em benefício próprio, perdão
de dívida em prejuízo do erário.
No decorrer deste estudo, buscar-se-á demonstrar a falta de legitimi-
dade desse tipo de política pública, independentemente da maneira como
se observa a democracia e o conteúdo da representação política, assunto que
já foi bastante discutido por cientistas políticos, mas que nas críticas de Carl
Schmitt encontra ares de atualidade, de forma a demonstrar que a atual re-
presentatividade da classe política brasileira ainda padece dos mesmos pro-
blemas que já eram diagnosticados na Alemanha do início do século.
A seguir, faz-se uma descrição da situação política brasileira, com foco
nas políticas fiscais desoneratórias aprovadas nas últimas duas décadas, par-
tindo-se para a descrição do conceito de representação política no intento
de discutir o paradoxo da representação em um contexto democrático, bem
como apresenta-se os argumentos de Carl Schmitt para demonstrar a crise
de representação do parlamento alemão do começo do século e traçar um
paralelo com a situação política brasileira, diagnosticando-se a contempora-
neidade do problema e evidenciando a necessidade de repensar as formas de
representação política moderna.
A par da atuação limitada do Poder Judiciário na matéria, especial-
mente no que se refere às escolhas políticas do demais poderes, indica-se
que as soluções para enfrentamento da questão ligada à ilegitimidade das
políticas de desoneração tributária deverá passar pelo incremento da cida-
dania e da efetiva participação popular na política, com controle cidadão
sobre os Poderes Executivo e Legislativo com vistas ao combate à corrup-
ção, a partir dos instrumentos da accountability democrática ou responsabi-
lização política ininterrupta.

2. A LEGITIMIDADE DAS POLÍTICAS FISCAIS DESONERATÓRIAS


A decisão sobre a utilização de incentivos fiscais não é simples, pois a
análise dos benefícios ou malefícios desses instrumentos envolve duas ques-
tões ainda maiores: saber qual o tamanho que o Estado deve assumir na so-

149
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

ciedade e se ele é capaz de fazer uma gestão do dinheiro público com a mes-
ma eficiência que a iniciativa privada.
Financeiramente, um gasto público direto ou uma renúncia de receita
operada por meio de uma desoneração tributária são muito semelhantes, es-
tando a diferença na fé de que um dos dois agentes (Estado ou iniciativa pri-
vada) fará melhor uso daqueles recursos para suprir as necessidades públicas.
As desonerações tributárias, que podem se dar na forma de isenção
tributária (quando prévia à gênese do fato gerador) ou perdão de tributos
(quando posterior), não levam à saída de recursos dos cofres públicos de for-
ma direta, mas acarretam despesas indiretas já que “o Estado deixa de arre-
cadar expressivos valores em virtude dessa espécie de renúncia de receita”5,
razão pela qual torna imperioso o controle do uso desse instrumento.
Tem-se que a utilização dos incentivos fiscais se insere em um contexto
de reposicionamento do Estado perante a ordem econômica, em um processo
de mudança do foco da atividade estatal, tornando-se menos executor das
políticas públicas e mais regulador, incentivador e fiscalizador das ativida-
des privadas. A julgar pelo crescimento das desonerações tributárias criadas
pelo governo brasileiro6,7,8e9, parece ter sido esse o caminho traçado pelo País
nas últimas duas décadas, e a questão que ora se propõe discutir é saber
quem está guiando esta rota.
Com uma compreensão mais apurada das dinâmicas reais do poder
talvez seja possível chegar à percepção de que, não obstante o que está es-
crito no art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB,
talvez não seja a sociedade a verdadeira detentora da soberania política,
mas sim os partidos políticos e os seus financiadores de campanha. A cor-
rupção sempre esteve em pauta no país, tendo havido inclusive quem jus-
tificasse a aptidão cultural brasileira para a apropriação do espaço público
por interesses particulares.10 Não se trata, portanto, de um fenômeno novo
5 BOMFIM, Gilson Pacheco. Da possibilidade de controle dos incentivos tributários pelo poder judi-
ciário. Revista Direito Tributário Atual, n. 37, 2017, p. 226-242. Disponível em: <http://ibdt.org.br/
RDTA/37/da-possibilidade-de-controle-dos-incentivos-tributarios-pelo-poder-judiciario/>. Acesso
em: 02 out. 2017.
6 ORAIR, Rodrigo Octávio. Desonerações em alta e elevação da carga tributária: o que explica
este paradoxo? 2014. Disponível em: <http://brasildebate.com.br/wpcontent/uploads/2014/08/
CTB_2014.pdf>. Acesso em: 28 de fev. 2016.
7 MACIEL, Marcelo Sobreiro. Dependência de trajetória nos incentivos fiscais: fragmentação do em-
presariado na reforma tributária. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ. Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câ-
mara de Deputados – CEFOR. Brasília, 2009. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/
handle/bdcamara /3642/dependencia_trajetoria_sobreiro.pdf?sequence=2>. Acesso em: 22 mar. 2018.
8 SANTOS, Raissa Ferreira dos. Evolução da carga tributária e dos benefícios tributários federais
de 2000-2012. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Economia). Instituto de Economia
– UFRJ, Rio de Janeiro, 2014.
9 SALVADOR, Evilasio. Os Impactos das Renúncias Tributárias no Financiamento das Políticas So-
ciais no Brasil. Brasília: INESC, 2015.
10 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. rev. São

150
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

mas que, como assinala Norberto Bobbio11, ganha dimensões de escândalo


quando vem a público.
Em estudo sobre o Jeito na Cultura Jurídica brasileira, Keith S. Rosenn12
afirma que “o jeito está altamente entrelaçado com problemas de corrupção”.
Na busca pelas raízes dessa por ele chamada “instituição paralegal” brasilei-
ra, o autor se encontra com o peculiar caráter da regra colonial portuguesa,
ligada ao pluralismo legal, influência do catolicismo e administração colo-
nial, por sua vez, imbricada pelo legado do patronato, corrupção, burocracia
e confusão legislativa.
Rosenn trabalha com os diversos problemas criados pela corrupção, es-
pecialmente no que se refere à influência sobre a atuação do Estado perante a
ordem econômica já que “o poder do governo para redistribuir rendas, estimu-
lar condutas desejáveis, ou desincentivar condutas indesejáveis, por intermé-
dio de impostos ou intervenção regulamentar, é profundamente limitado pelas
válvulas de escape provenientes da corrupção”.13
Neste sentido, para além das questões criminais envolvendo a classe
política brasileira, pode-se perceber uma tendência de apropriação do espa-
ço público por interesses privados que permeia o sistema político de ma-
neira consolidada e institucionalizada, sem que seja constatada a subsunção
de qualquer tipo penal. Normas legais são produzidas por encomenda de
setores particulares da sociedade, ou em benefício exclusivo dos próprios
legisladores, em claro descompromisso com o interesse público, o que confi-
gura um estado de corrupção plena. Nesse ponto, poderiam ser objeto desse
estudo as reformas da previdência ou trabalhista capitaneadas pelo Governo
Federal no ano de 2017, mas neste ponto não se teria a clareza necessária para
se traçar o diagnóstico de ilegitimidade aqui pretendido, eis que se focaria
o debate na importância da independência da vontade do representante, ou
mesmo na sua capacidade de antever problemas e identificar saídas políticas
que podem, à primeira vista, contrastar com o interesse da sociedade. É pre-
ciso identificar questões mais latentes e para isso exemplos não faltam.
Para começar, tem-se a discussão acerca do Projeto de Lei nº 4.850/201614,
de iniciativa popular e capitaneado pelo Ministério Público Federal por
meio da campanha denominada “10 medidas contra a corrupção”, que em

Paulo: Globo, 2001.


11 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
12 ROSENN, Keith S.. Jeito na Cultura Jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 16.
13 ROSENN, Keith S.. Jeito na Cultura Jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 97.
14 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de lei 4.850/2016, de 29 de março de 2016. Estabelece
medidas contra a corrupção e demais crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento
ilícito de agentes públicos. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetra-
mitacao ?idProposicao=2080604>. Acesso em: 21 jun. 2017.

151
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

30/11/2016 recebeu emenda parlamentar na Câmara dos Deputados para in-


cluir a instituição do crime de caixa dois eleitoral. O crime cuja tipificação se
pretende por meio deste projeto de lei é a prática eleitoral correspondente
ao uso de recursos não contabilizados em campanhas eleitorais, que até o
momento são punidas pelo Poder Judiciário pelo enquadramento em tipos
penais abertos (como falsidade ideológica, sonegação fiscal, lavagem de di-
nheiro e crime contra o sistema financeiro). Com a tipificação da conduta de
caixa dois, tais tipos penais abertos antes utilizados não mais estariam aptos
a servir de enquadramento a essas condutas específicas, o que acarretaria
na anistia dos atos ocorridos antes da publicação da lei, em observância ao
princípio constitucional da irretroatividade da lei penal. Em outras palavras,
a aprovação do tipo penal de caixa dois serve àqueles que até o momento se
utilizaram de recursos não contabilizados em suas campanhas eleitorais, o
que beneficia diretamente aqueles parlamentares acusados de tal conduta e
que estão decidindo sobre o assunto.
Na área tributária, as tentativas de reforma tributária brasileira – en-
tendida como a pretensão de se implementar um paradigma tributário des-
centralizado em favor da autonomia dos Estados e dos Municípios – nos
anos seguintes à Assembleia Nacional Constituinte15. Ao fim da pesquisa, a
autora confirmou sua hipótese inicial de que nem mesmo as modificações
no âmbito político, decorrentes das trocas de Presidentes da República, pu-
deram influenciar na aprovação da reforma tributária, a despeito das ideo-
logias propagandeadas pelos diversos partidos políticos que compuseram
as bases governamentais em momentos distintos, vinculados que estavam
aos interesses dos atores econômicos responsáveis pelos financiamentos
das campanhas eleitorais.
Na área fiscal, da mesma forma, podem ser vistas diversas manobras le-
gislativas por parte do Governo Federal no intento de propor uma política de-
soneratória descompromissada com a necessidade de financiamento dos gas-
tos públicos que desde a CRFB aumentam de exponencialmente. Em 2008, por
exemplo, houve um aprofundamento desse tipo de política fiscal para setores
específicos de construção, indústrias, infraestrutura pesada e alta tecnologia,
que custaram 18 bilhões ao Governo Federal.16 Trata-se, no entanto, de políti-
cas anticíclicas para contenção da crise que, por mais que beneficiem setores
específicos da economia que tradicionalmente financiam campanhas eleitorais,
podem ser justificadas por teorias e ideologias econômicas, razão pela qual não
se mostram como os temas mais adequados ao presente debate.

15 LUKIC, Melina Rocha. Reforma Tributária no Brasil: ideias, interesses e instituições. Curitiba:
Juruá, 2014.
16 LUKIC, Melina Rocha. Reforma Tributária no Brasil: ideias, interesses e instituições. Curitiba:
Juruá, 2014.

152
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

Nesta mesma área fiscal, contudo, tem-se exemplos mais concretos acer-
ca do descompromisso legislativo com o erário, no sentido de políticas fiscais
desoneratórias que passam longe de qualquer justificativa econômica. Trata-
-se dos benefícios fiscais concedidos a cada três anos pelo Governo Federal
nas últimas duas décadas, promovendo descontos de juros e multas dos con-
tribuintes inadimplentes sem qualquer contrapartida além do pagamento da
obrigação tributária principal. Por óbvio, uma política desoneratória como
esta, reiterada sistematicamente a cada três anos, por mais disfarçadas que
sejam os discursos econômicos de estímulo à economia, apenas tem o condão
de estimular a inadimplência tributária e beneficiar contribuintes que se uti-
lizam da sonegação fiscal de maneira contumaz.
No ano 2000 foi promulgada a Lei nº 9.964/00, por meio da qual foi
instituído o Programa de Recuperação Fiscal (REFIS), permitindo ao contri-
buinte inadimplente liquidar os valores correspondentes à multa (de mora
ou de ofício) e aos juros moratórios por meio da utilização de prejuízo fiscal
e de base de cálculo negativa da contribuição social sobre o lucro líquido,
próprios ou de terceiros (art. 2º, §3º, da Lei nº 9.964/00). E mais, todos os
débitos de cada contribuinte seriam consolidados em uma única conta, a ser
quitada em prestações cujo valor seria determinado por um percentual so-
bre a receita bruta da empresa, sem limite de prestações. Frisa-se: não havia
limite mínimo nominal do valor das prestações, sequer em relação ao valor
consolidado da dívida, o que tornou o benefício um parcelamento infinito,
notadamente por não exigir do contribuinte uma perspectiva temporal de
pagamento da dívida.
No ano de 2003 foi promulgada a Lei nº 10.684/03, instituindo-se o pro-
grama denominado Parcelamento Especial (PAES), que concedia anistia total
às multas do contribuinte inadimplente e o permitia rolar a dívida que já
havia sido parcelada na sistemática decorrente do benefício anterior.
No ano de 2006 foi publicada a MP 303/06, por meio da qual foi insti-
tuído o Parcelamento Excepcional (PAEX), que concedia ao contribuinte ina-
dimplente redução de até 80% das multas e 30% dos juros caso efetuasse o
pagamento da obrigação tributária principal.
No ano de 2009 foi publicada a Lei nº 11.941/09, instituindo-se novo
programa de regularização tributária para contribuintes inadimplentes, nes-
te caso em função da crise econômica de 2008, com a concessão de anistia da
integralidade das multas e de até 45% dos juros de mora. Este parcelamento
foi reinstituído em três outras oportunidades nos anos de 2013 e 2014, por
meio das leis nº 12.865/13, 12.996/14 e 13.043/14.
Note-se a regularidade dos benefícios fiscais oferecidos pelo Governo

153
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Federal nos anos de 2000, 2003, 2006, 2009, 2013 e 2014, pelos quais se con-
cedia parcelamentos extraordinários por prazos alongados – de até quinze
anos, enquanto o parcelamento ordinário concedido pelo Governo Federal
por meio da Lei nº 10.522/02 é de cinco anos – com anistia dos juros e das
multas. E isso sem preocupação alguma de se demonstrar estudos ou jus-
tificativas técnicas que pudessem amparar o argumento de que tais benefí-
cios serviriam a um estímulo da economia. Por certo, tais medidas apenas
contribuíram para minar ainda mais a aceitação social do tributo e, assim,
reduzir o recolhimento voluntário por parte dos contribuintes que ainda
recolhiam regularmente suas dívidas fiscais.
Se não fosse isso, tem-se ainda que em 2017 houve tentativa de lança-
mento de outro benefício fiscal da mesma ordem dos anteriores. Trata-se da
Medida Provisória nº 766/2017, por meio da qual se instituiu o Programa de
Regularização Tributária do Governo Federal, em que se concedia prazo de
cento e vinte meses para regularização do tributo de maneira parcelada. A
medida, inicialmente prevista pelo Poder Executivo sem nenhum desconto
ao contribuinte, havia sido emendada pela Câmara dos Deputados para in-
cluir anistia da integralidade dos juros e das multas tributárias, entretanto,
não foi analisada dentro do prazo constitucional de cento e vinte dias.17
Interessante destacar que assim como nos outros parcelamentos ins-
tituídos, o Programa de Regularização Tributária, com a emenda inserida
pela Câmara dos Deputados, beneficiaria não só os setores da economia res-
ponsáveis por grande parte dos financiamentos eleitorais, mas os próprios
parlamentares, os quais, juntos, possuem dívida com o Governo Federal no
patamar de três bilhões de reais. O deputado relator da medida provisória,
responsável pela emenda relativa à anistia dos juros e das multas, deve, so-
zinho, a quantia de sessenta e sete milhões de reais, de acordo com dados da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.18
Tais políticas fiscais pensadas pelo Governo Federal e pelo Congresso
Nacional, mostram-se, então, inegavelmente ilegítimas, a uma porque não
são justificadas do ponto de vista teórico ou técnico, e a duas porque bene-
ficiam diretamente os parlamentares e os setores da economia responsáveis
pelo financiamento das campanhas destes.

17 Para implementar efetivamente o programa, o Governo editou em seguida a MP nº 783/2017, ins-


tituindo o Programa Especial de Regularização Tributária, conferindo poucos descontos aos contri-
buintes que aderissem ao parcelamento. A MP, no entanto, foi emendada pelo Congresso Nacional
para elevar os descontos a noventa e nove por cento dos juros de mora e das multas de mora, de ofício
ou isoladas e dos encargos legais, inclusive honorários advocatícios. O prazo para sanção ou veto
presidencial ao Projeto de Lei de Conversão 23/2017 vence em 30/10/2017.
18 WIZIAKI, Júlio. Deputados devedores propõem perdão de débitos em novo Refis. Folha de São
Paulo, São Paulo, 24 abr. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/04/
1877939-deputados-devedores-propoem-perdao-de-debitos-em-novo-refis.shtml>. Acesso em: 22
jun. 2017.

154
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

Sempre será possível discutir a função de uma política pública, e uma polí-
tica pública de baixa qualidade (ou mesmo descompromissada) não precisa ser
necessariamente tachada de ilegítima. Nos casos acima citados, todavia, tem-se
exemplos claros de que não se tratam de políticas públicas mal pensadas, mas
do mau uso da máquina pública de maneira deliberada para alcançar interesses
patrimoniais particulares daqueles responsáveis pela condução do governo.
Essa cooptação dos espaços públicos de decisão por interesses privados
não pode ser vista como mero efeito colateral da forma liberal de democracia
que se vive no mundo ocidental, mas como ruína das bases democráticas em
que se estabeleceu o Estado moderno. Pensar em um modelo de represen-
tação política que minimize ou elimine a crise de representatividade viven-
ciada é medida urgentemente que se impõe, sob pena de vivermos em uma
ditadura em que o ditador sequer se encontra institucionalizado.
Sobre esse tema, tratando porém de ditadura em escala global exercida por
um ditador não institucionalizado, mostra-se pertinente a denúncia feita por Ne-
gri e Hardt, na medida em que demonstram que, na passagem para o mundo
pós-moderno, do imperialismo para o “império”, a noção de limites territoriais
torna-se tênue e permite que os interesses privados, ou o mercado global pro-
priamente dito (nas palavras dos autores), sobreponham-se aos espaços públicos
de discussão e, no geral, sobre a totalidade da política mundial.19
Chomsky, neste ponto salienta a necessidade da luta em favor da demo-
cracia efetiva, mesmo que em desigualdade de forças, contra a transferência
de poder para as mãos do que chama de “tirania privada”, entidade que tem
a função de administrar os mercados por meio do emprego de ameaças (de
fuga de capitais, de transferência de unidades de produção) a fim de frustrar
o desejo popular de usar as formas democráticas em benefício do interesse
público.20 Essa luta por meio das “hordas vigilantes”, segundo o autor, seria
a arma definitiva em favor da cidadania.
Dito isso, na seção seguinte, passa-se a dispor sobre o conceito de re-
presentação política, com foco no paradoxo da representação e na questão da
independência da vontade do representante.

3. O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO (PARADOXO E


INDEPENDÊNCIA)
Com a passagem da multiplicidade anárquica para a ordem, surge o
problema da representação, persistindo a dificuldade de representar a dinâ-

19 NEGRI, Toni; HARDT, Michael. O império. Rio de Janeiro: Record, 2005.


20 CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? O Neoliberalismo e a ordem mundial. Tradução Pedro
Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

155
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

mica de poderes em uma ordem hierarquizada e de identificar os símbolos


em torno dos quais o agrupamento de pessoas passa a existir e os indivíduos
passam a se sentir representados.21 Essa representação pode ou não ser legí-
tima, já que existem discursos ou estratégias discursivas que permitem aos
indivíduos se reconhecerem como grupo.22
Esse problema não existia na idade média, eis que a ideia de represen-
tação pelo discurso vigente à época não significava uma pessoa agindo em
nome de outrem, mas alguém agindo em nome do todo, sendo a estrutura
social vista como um corpo único, em que determinada parte tinha a função
natural (ou divina) de exprimir a vontade do todo.23 Trata-se do corpo como
uma encarnação mística, muito ligada à cultura da igreja católica, cujos líde-
res eram a corporificação da entidade sobrenatural.24
Na idade moderna, os contratualistas começaram a tratar a represen-
tação de maneira intrínseca à formação do Estado, deixando de pressupô-
-la como a personificação de uma ordem social naturalmente dada para
a compreender como a personificação de uma ordem deliberadamente
construída pelo homem e exercida por meio da representação.25 Em Hob-
bes, o povo é uma pessoa artificial, constituída pelo próprio ato da repre-
sentação, momento em que assume a soberania (o Estado e não o povo).26
Inexistindo previamente o povo, não há que se falar, então, em vinculação
do Estado a sua vontade. Rousseau constrói seu raciocínio contratualista
tendo como ponto de partida a noção de que qualquer forma de represen-
tação política é inválida, eis que o povo apenas é e se constitui como tal
em sua completude e unidade.27
Não obstante os argumentos acima, por meio dos quais se denuncia
a impossibilidade de congruência entre a vontade dos representantes e a
dos representados, tem-se que a democracia direta se mostra inviável no
contexto contemporâneo, sendo a representação política o instrumento que
atualmente dá efetividade à democracia, embora de maneira indireta, me-

21 COSTA, Pietro. Soberania, Representação e Democracia: ensaios de história do pensamento jurídi-


co. Curitiba: Juruá, 2010.
22 COSTA, Pietro. Soberania, Representação e Democracia: ensaios de história do pensamento jurídi-
co. Curitiba: Juruá, 2010.
23 COSTA, Pietro. Soberania, Representação e Democracia: ensaios de história do pensamento jurídi-
co. Curitiba: Juruá, 2010.
24 PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, São Paulo,
n. 67, p. 15-47, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-64452006 000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
25 COSTA, Pietro. Soberania, Representação e Democracia: ensaios de história do pensamento jurídi-
co. Curitiba: Juruá, 2010.
26 HOBBES, Thomas; TUCK, Richard. Leviatã: ou matéria, forma e poder de uma república eclesiás-
tica e civil. São Paulo: Martin Claret, 2003.
27 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político. 4. ed. São Paulo: M.
Fontes, 2006.

156
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

diante interposta pessoa.28 Mesmo aqueles que questionam a democracia


representativa, assim o fazem não para propor sua substituição por uma
forma direta, mas para apontar erros e vicissitudes de determinado sistema
eleitoral, do sistema partidário ou da legitimidade do sistema guiado por
uma ideologia neoliberal.29
A democracia exercida por meio de representação, todavia, dá cor a
um paradoxo: sendo a democracia o exercício da vontade do povo, como
se pode efetivá-la por meio da representação? Como tornar presente de al-
guma forma aquilo que não está literalmente presente?30 A resolução deste
paradoxo passa por saber se e como seria possível controlar a vontade dos
representantes, para garantir sua congruência em relação à vontade dos
representados.
Burke, em discurso proferido em 1774, teve como pressuposto da repre-
sentação política a independência da vontade do representante em relação à
vontade particular dos representados, de forma que aquele deve falar não em
nome destes, mas em nome da nação.31 Segundo o autor, os representantes
não são embaixadores de interesses particulares (econômico, mercantil, pro-
fissional ou religioso) e o parlamento deve se guiar pelo bem comum resul-
tante da razão geral da totalidade.
Pitkin lembra que na mesma época do discurso proferido por Burke,
mas do outro lado do Atlântico, pensadores americanos formavam o gru-
po denominado “Os Federalistas”, os quais tinham como objetivo defender
a formação de um grande Estado americano a partir das colônias tornadas
independentes e que para isso faziam propaganda dos benefícios da repre-
sentação política, inclusive como uma forma democrática mais efetiva do
que a democracia direta.32 Hamilton, Jay e Madison prometiam por meio do
governo representativo a cura para os males decorrentes daquilo que cha-
mavam de facção – que correspondia a um conjunto de interesses privados
representados por um grupo de indivíduos – mediante a representação por
indivíduos distantes dos conflitos individuais e dotados de um sentimento
de patriotismo e de senso de justiça que os fariam impedir a condução do Es-

28 MACPHERSON, C. Brough. A democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.


29 PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, São Paulo,
n. 67, p. 15-47, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-64452006000 200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
30 PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, São Paulo,
n. 67, p. 15-47, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-64452006 000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
31 BURKE, Edmund. Discurso aos eleitores de Bristol. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 20,
n. 44, p. 97-101, nov. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-447820120004 00008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
32 PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, São Paulo,
n. 67, p. 15-47, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-64452006000 200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.

157
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

tado por interesses privados.33 Na verdade, a ideia era criar um Estado gran-
de, em que os interesses individuais perdessem representatividade e fossem
mutuamente neutralizados.34
Manin, Przeworski e Stokes ajudaram a desmistificar o paradoxo entre
democracia e representação a partir da ideia de que os representantes farão
o que os representados esperam que façam simplesmente porque querem ser
reeleitos, desde que se trate de um sistema democrático, com liberdade polí-
tica, imprensa livre e participação popular.35 Trata-se da lógica utilitarista de
Bentham e Mill, que identifica um interesse egoísta na vontade dos represen-
tantes, fazendo-os agir em conformidade com a vontade os representados.36
Entretanto, a questão não é simples, pois envolve, além de saber se os
representantes farão o que os representados gostariam que fosse feito, saber
se seguir a plataforma eleitoral é efetivamente melhor para os eleitores. Em
resumo, Manin, Przeworski e Stokes37 concluem que a democracia exercida
apenas por meio do voto não é suficiente para garantir a efetivação dos inte-
resses dos representados, eis que se trata de instrumento ineficaz no controle
das muitas decisões tomadas pelos governos, sendo necessário, então, pensar
em instrumentos de controle, exercitando-se a transparência governamental
e a participação política da sociedade.
É preciso, ademais, dar atenção às novas interfaces da representação, di-
versificadas e pulverizadas, sem que isso signifique abolição dos mecanismos
de representação tradicionais, mas sim o aprimoramento da sua qualidade
por meio da participação efetiva da sociedade.38 Além da mídia, novas ins-
tâncias de intermediação surgem a cada momento – desvinculadas dos atores
comumente atuantes na política, como partidos políticos e sindicatos -, bem
como novos espaços de participação popular que ganham relevo no contexto
da fiscalização das políticas públicas.39
33 HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas, 1787-1788. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
34 PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, São Paulo,
n. 67, p. 15-47, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-64452006000200 003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
35 MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C.. Eleições e representação. Lua Nova,
São Paulo, n. 67, p. 105-138, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
text& pid=S0102-64452006000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
36 PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, São Paulo,
n. 67, p. 15-47, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-64452006000 200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
37 MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C.. Eleições e representação. Lua Nova,
São Paulo, n. 67, p. 105-138, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
text&pid= S0102-64452006000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
38 MIGUEL, Luis Felipe. Resgatar a participação: democracia participativa e representação política no
debate contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, n. 100, p. 83-118, Jan. 2017. Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452017000100083&lng=en&nrm=i-
so>. Acesso em 20 jun. 2017.
39 LAVALLE, Adrián Gurza; HOUTZAGER, Peter P.; CASTELLO, Graziela. Democracia, pluralização
da representação e sociedade civil. Lua Nova, São Paulo, n. 67, p. 49-103, 2006. Disponível em: <http://

158
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

Por mais que se possa questionar a importância da independência da


vontade do representante em relação à vontade dos representados, seja por-
que os representados podem não possuir condições de decidir, seja porque
é possível ser útil que a sociedade se liberte dos interesses particulares dos
representados, fato é que a congruência total entre a vontade dos envolvidos
no processo de representação é faticamente impossível. Essa impossibilida-
de, todavia, é contornada pelo raciocínio utilitarista antes exposto, no senti-
do de que a vontade de se manter no poder faz com que os representantes
obedeçam a vontade de quem os elegeu (o que pode significar um problema
ainda maior, já que nem sempre é o povo o responsável pela eleição do repre-
sentante, mas sim quem financia a campanha eleitoral).
Pitkin trata de representação acomodando as duas ideias: concebendo
o representante como uma pessoa autorizada a defender o interesse dos elei-
tores e como uma pessoa apta a efetuar avaliações independentes a fim de
optar pela política que, do seu ponto de vista, melhor possa refletir o interes-
se da sociedade.40 Cada uma das faces da representação não existiria sem a
outra, sob pena de deixar de tratar de representação com total independência
do representante, deixando o representado de ser representado ou sem ne-
nhuma independência, quando o representante deixa de ser representante e
passa a ser o próprio representado.
Esse poder de avaliação independente, por parte do representante, po-
deria gerar uma aptidão ao conflito, mas Pitkin observa que isso normal-
mente não ocorre porque dentre as funções do representante encontra-se a
prestação de contas, por meio da qual precisa convencer, quando age em
desacordo com a vontade dos representados, que tal ação foi a melhor dentre
as opções possíveis.41
Dahl adverte sobre a fragilidade do sistema de participação popular
nas democracias, o qual estaria em eterna construção, razão pela qual torna-
-se necessário desenvolver a institucionalização dos seus procedimentos em
conjunto com a sua ampliação e efetivação.42 Nesse sentido, ganha espaço a
participação popular na esfera do debate público, reforçando-se o conteúdo
de cidadania, com ampliação da temática envolvendo a accountability demo-
crática ou responsabilização política, assunto que será melhor abordado na
parte final deste artigo.
Estabelecidas, ainda que resumidamente, as bases da questão da repre-
sentação política, passa-se, na seção seguinte, à constatação fática feita por

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452006000200004&lng=en&nrm=i-
so>. Acesso em: 19 jun. 2017.
40 PITKIN, Hanna. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1971.
41 PITKIN, Hanna. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1971.
42 DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: UNB, 2001.

159
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Schmitt no começo do século passado acerca da crise de representatividade


do parlamento alemão da época, tratando-se, ao final, um paralelo com a
situação política brasileira.

4. A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE PARLAMENTAR E A SITUAÇÃO


POLÍTICO-PARTIDÁRIA BRASILEIRA
Schmitt nunca escondeu sua crítica ao liberalismo e, por extensão, seu
desprezo pelo sistema democrático-burguês, eminentemente parlamentaris-
ta, focado que é na forma sobre o conteúdo.43 O posicionamento de Schmitt
é costumeiramente visto como um preparo para a constituição de um Estado
totalitário, que veio então a ser instituído na Alemanha na década de 1930.
Apesar disso, tem-se que os argumentos do autor se revestem de logicidade
adequada para o enfrentamento dos problemas da ciência política atual, des-
de que sejam utilizados sem vinculação com a conclusão fática desencadeada.
Para Schmitt o processo democrático liberal falha na medida em que
comporta e acomoda interesses particulares de diversos grupos, em uma luta
fratricida alheia aos interesses da nação.44 Para o autor, o debate democrático
no parlamento seria então mera ficção ou distração, enquanto a verdadeira
decisão política era tomada em outra esfera de poder.45
Com efeito, nesse entendimento, o poder político deveria ser exercido
pelo soberano em decorrência de uma aliança formada junto ao povo (coisa
que o parlamento alemão da época certamente não era). Esse soberano teria
ainda a vantagem da capacidade de decidir, pois não sofreria dos mesmos
males do parlamento liberal vinculado a debates infindáveis na busca pelo
consenso e sem compromisso com a tomada de decisão.46
A partir daí, tem-se a crítica específica de Schmitt ao sistema parti-
dário que ganha relevância na segunda metade do século XIX. Como sa-
lientado por Urbinati, os partidos políticos, veículos que são de ideologias,
serviriam de fiadores dos candidatos por eles indicados, na garantia de que
a atuação destes, quando eleitos, seria condizente com a vontade dos elei-
tores.47 Schmitt, todavia, vê a questão dos partidos de maneira exatamente
oposta, afirmando que os partidos políticos são mais um instrumento de
alienação da vontade popular, eis que minariam a independência dos re-
presentantes na medida em que estes devem prestar contas de sua atuação

43 SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996.


44 SCHMITT, Carl. Teoria de La Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 2006.
45 SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996.
46 SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
47 URBINATI, Nadia. Representative democracy: principles & genealogy. Chicago: The University of
Chicago Press. 2006.

160
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

apenas à legenda a que se encontram vinculados.48 São duas formas de ver


o mesmo fenômeno, a depender do papel exercido pelos partidos políticos
em determinada sociedade.
No caso brasileiro, tem-se a mesma situação de crise denunciada por
Schmitt, por meio de decisões pretensamente democráticas tomadas por re-
presentantes da sociedade sem o devido debate, mediante alianças decorren-
tes de um governo de coalizão. No sistema político brasileiro, o Presidente
da República possui lugar de destaque, sendo detentor do poder de agenda
sobre temas relevantes da política, mas sem ter condições de decidir à reve-
lia do Congresso Nacional. É possível afirmar tratar-se de uma característica
positiva, pois impede a concentração de poder e dá contornos de democracia
ao debate político. Neste sentido, a implementação de políticas integrantes
do programa do governo pode, por essa mesma razão, ser obstada pelo par-
lamento por conta de incongruências com relação ao programa de governo
dos próprios parlamentares.
O problema surge quando a obstrução imposta pelo parlamento se dá
por razões outras, como interesses particulares dos representantes, interesses
de seus financiadores de campanha ou interesses partidários no sentido ins-
titucional, ou seja, quando partidos adotam a estratégia direta de atrapalhar
a atividade dos partidos de situação para que percam o apoio da sociedade.
Essa possibilidade, por si só, não se mostra republicana ou legitimamente de-
mocrática, mas sempre leva o Poder Executivo a implementar um governo de
coalização, que envolve concessões muitas vezes pessoais em troca de apoio
político para determinados programas.
Neste sentido, tem-se que o apoio às reformas da previdência e traba-
lhista seria retribuído pelo Poder Executivo por meio da publicação da Me-
dida Provisória nº 766/2017 antes tratada, instrumento pelo qual se conce-
deria anistia tributária a diversos setores da sociedade49e50, notadamente os
próprios parlamentares e seus financiadores de campanha. Isso, a custo de
uma política fiscal prejudicial à sociedade, por estimular a sonegação fiscal e
a inadimplência contumaz.
Trata-se, então, dos mesmos problemas que, nas denúncias de Schmitt,
engessavam o Congresso alemão e permitiam a cooptação do Estado por in-
teresses particulares, razão pela qual se torna válida a comparação proposta

48 SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996.


49 WIZIAKI, Júlio; BOGHOSSIAN, Bruno; CARVALHO, Daniel. Para aprovar reforma, governo cede
em novo programa para devedores. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 mai. 2017. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1884348-para-aprovar-reforma-governo-cede-
-em-novo-programa-para-devedores.shtml>. Acesso em: 22 jun. de 2017.
50 CUNTO, Raphael di. Governo cede no Regis por apoio para continuar. Valor Econômico, Brasília,
23 mai. 2017. Disponível em http://www.valor.com.br/politica/4977450/governo-cede-no-refis-por-
-apoio-para-continuar. Acesso em: 22 de jun. de 2017.

161
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

neste estudo.
Importante destacar para o avanço do debate que muito mais do que
apenas tecer críticas aos partidos políticos, é preciso perquirir por alterna-
tivas e soluções que imponham ao parlamento a responsabilidade de agir
conforme a vontade da sociedade (ou em favor dela), prevendo-se formas de
controle e de estímulo à participação popular.

5. CONTROLE DAS PRÁTICAS DE DESONERAÇÃO TRIBUTÁRIA:


AMPLIAÇÃO DO CONTEÚDO DA CIDADANIA PELO INCREMENTO
DE INSTRUMENTOS DE ACCOUNTABILITY DEMOCRÁTICA OU
RESPONSABILIZAÇÃO POLÍTICA ININTERRUPTA
Verificada a ilegitimidade das políticas de desoneração tributária, erigi-
das a despeito de interesses relacionados aos interesses dos cidadãos – no-
tadamente porque não justificadas teórica ou tecnicamente ou porque benefi-
ciadoras de interesses pessoais/financeiros dos parlamentares e/ou setores da
economia responsáveis pelo financiamento de suas campanhas eleitorais –
tem-se como direção usualmente perseguida a busca pela tutela jurisdicional
como forma de controle, ao menos a posteriori, dos atos dos governantes em
relação aos programas de governo, à corrupção ou à preservação de direitos
fundamentais dos cidadãos.
Cabe então cotejar qual o papel desempenhado ou possível de ser de-
sempenhado pelo Judiciário nessa seara, sabendo-se, de antemão, que a tota-
lidade dos atos ou motivos não é passível de controle judicial especialmente
no que se refere ao mérito das decisões por conta, além de outros limites, do
princípio da separação de poderes, tal como a utilização das desonerações
como “vetor de políticas públicas”.51
Com efeito, reduz-se a atuação do Judiciário especificamente no que se
refere às escolhas efetuadas pelo Executivo e Legislativo, por exemplo quan-
to às atividades a serem beneficiadas. Entretanto, em que pese as restrições
quanto à análise do mérito, ao Poder Judiciário também cabe o controle das
despesas públicas, mormente no que se refere às “medidas evidentemente
inadequadas, excessivas ou flagrantemente desproporcionais (stricto sensu),
bem como à retirada do mundo jurídico de medidas comprovadamente ine-
ficientes ou ineficazes”.52

51 BOMFIM, Gilson Pacheco. Da possibilidade de controle dos incentivos tributários pelo poder judi-
ciário. Revista Direito Tributário Atual, n. 37, p. 226-242, 2017. Disponível em: <http://ibdt.org.br/
RDTA/37/da-possibilidade-de-controle-dos-incentivos-tributarios-pelo-poder-judiciario/>. Acesso
em: 02 out. 2017. p. 232.
52 BOMFIM, Gilson Pacheco. Da possibilidade de controle dos incentivos tributários pelo poder judi-
ciário. Revista Direito Tributário Atual, n. 37, p. 226-242, 2017. Disponível em: <http://ibdt.org.br/
RDTA/37/da-possibilidade-de-controle-dos-incentivos-tributarios-pelo-poder-judiciario/>. Acesso
em: 02 out. 2017. p. 240.

162
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

Salutar mencionar que a questão dos limites e possibilidades de atuação


do Poder Judiciário no que se tange à concessão ou manutenção de incentivos
tributários é tortuosa e pouco explorada na doutrina.
Ao tratar dos incentivos tributários (de forma geral, entre eles as desone-
rações tributárias) contraponto as “escolhas” do Poder Legislativo e Executivo
ao controle pelo Judiciário, Bomfim53 diferencia situações que justificam ou
impõem um maior controle e outras em que o controle deve ser menor e, para
isso, elege como critérios a tecnicidade da questão e a dúvida (maior ou menor)
sobre os efeitos da medida:
Isso porque se presume que o Executivo e o Legislativo, dentro de um
regime democrático, tenham baseado suas escolhas em estudos técnicos
ou científicos, amplamente debatidos entre os atores sociais que, dentro
de um debate alicerçado em argumentações racionais, tenham optado por
determinada medida.54
E aqui se abre o ponto em que o controle das políticas públicas, no caso
das desonerações tributárias, terão um reforço ou serão demasiado enfra-
quecidas pela ocorrência ou não de um debate entre os atores envolvidos. A
apropriação do espaço público ganha um novo e importante contorno já que
não ocorre para proteção de interesses meramente econômicos de determina-
das categorias empresariais, ao revés, justamente para realizar ou instrumen-
talizar um controle efetivo no viés da cidadania.
Bonavides55 salienta que no Brasil a democracia representativa é forjada
para o Estado Liberal e que o por ele chamado de Estado Neo-Social reclama
uma democracia participativa, de maneira a consolidar a própria democracia
como um direito fundamental de quarta geração, de dimensão universali-
zadora e cuja titularidade seja atribuída ao gênero humano. Neste sentido,
Pilati ensina que participar não é apenas ouvir os interessados, mas é reunir
o técnico, o político, o econômico, os profissionais e os consumidores para
emitir opinião no processo decisório que tenha como base o consenso.56 E
a inserção do indivíduo nesse espaço público participativo, na intenção de
colocá-lo em contato direto com o poder político, não significa excluir intei-
ramente a democracia representativa, mas acrescentar instrumentos políticos

53 BOMFIM, Gilson Pacheco. Da possibilidade de controle dos incentivos tributários pelo poder judi-
ciário. Revista Direito Tributário Atual, n. 37, p. 226-242, 2017. Disponível em: <http://ibdt.org.br/
RDTA/37/da-possibilidade-de-controle-dos-incentivos-tributarios-pelo-poder-judiciario/>. Acesso
em: 02 out. 2017.
54 BOMFIM, Gilson Pacheco. Da possibilidade de controle dos incentivos tributários pelo poder judi-
ciário. Revista Direito Tributário Atual, n. 37, p. 226-242, 2017. Disponível em <http://ibdt.org.br/
RDTA/37/da-possibilidade-de-controle-dos-incentivos-tributarios-pelo-poder-judiciario/>. Acesso
em: 02 out. 2017. p. 237.
55 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros,
2008.
56 PILATI, José Isaac. Propriedade e função social na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2013.

163
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

alternativos, possibilitando-se o pleno exercício da cidadania.57


Como destacam Abrucio e Loureiro, as soluções dos problemas da socie-
dade atual estão cada vez mais ligadas à qualidade das instituições democráti-
cas, ganhando espaço então o estudo da accountability democrática ou respon-
sabilização política ininterrupta, definida como “a construção de mecanismos
institucionais pelos quais os governantes são constrangidos a responder, inin-
terruptamente, por seus atos e omissões perante os governados”.58
No modelo proposto, a accountability democrática pode ser classificada
de três formas: processo eleitoral, controle institucional durante o mandato e
regras estatais intertemporais, sendo que, dentre os instrumentos da segunda
forma inserem-se a fiscalização orçamentária e o controle de desempenho
dos programas governamentais e, na terceira forma, as limitações legais aos
poderes dos administradores públicos.59
Por meio da accountability democrática ou responsabilização política
ininterrupta, o controle de desempenho dos programas governamentais é
assim realizado mediante “instrumentos de fiscalização e participação dos
cidadãos nas decisões da coletividade durante o mandato dos eleitos”.60 Tra-
ta-se de um controle inovador, que visa auferir resultados, e que depende de
“informação e debate entre os cidadãos, instituições que viabilizem a fisca-
lização, regras que incentivem o pluralismo e coíbam o privilégio de alguns
grupos frente à maioria desorganizada”.61
Logo, para além das críticas aos partidos políticos, é preciso buscar al-
ternativas que imponham ao parlamento a responsabilidade de agir de acor-
do com a vontade da sociedade, instituindo-se formas de controle e de estí-
mulo à participação popular nesta fiscalização.
Nesse sentido, a accountability democrática ou responsabilização políti-

57 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 4.
ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 300.
58 ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accountability.
In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro:
Elsevier/Campus, 2004. Disponível em: <https://admsp20061.wikispaces.com/file/view/Financas+Pu-
blicas+democracia+e+accountability+-+Abrucio+e+Loureiro.pdf>. Acesso em: 01 out. 2017.
59 ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accountability.
In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro:
Elsevier/Campus, 2004. Disponível em: <https://admsp20061.wikispaces.com/file/view/Financas+Pu-
blicas +democracia+e+accountability+-+Abrucio+e+Loureiro.pdf>. Acesso em: 01 out. 2017.
60 ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accounta-
bility. In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio
de Janeiro: Elsevier/Campus, 2004, p. 9. Disponível em <https://admsp20061.wikispaces.com/
file/view/Financas+ Publicas+democracia+e+accountability+-+Abrucio+e+Loureiro.pdf>. Aces-
so em: 01 out. 2017.
61 ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accounta-
bility. In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio
de Janeiro: Elsevier/Campus, 2004, p. 10. Disponível em <https://admsp20061.wikispaces.com/file/
view/Financas +Publicas+democracia+e+accountability+-+Abrucio+e+Loureiro.pdf>. Acesso em:
01 out. 2017.

164
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

ca ininterrupta pode oferecer importantes mecanismos no sentido de promo-


ver a representação efetiva da vontade da sociedade ou promover a ação dos
representantes com responsabilidade para com o interesse público (interesse
este que, a depender da concepção que se adote, pode ou não ser idêntico à
vontade expressa pelo povo). Por certo, abrir mão da representação não se
mostra viável em um contexto moderno, mas envolver a sociedade na discus-
são política pode servir ao intento de controlar a vontade dos representantes
e evitar a cooptação do erário por interesses particulares.
Desse modo, o estímulo a cidadania e à participação da sociedade nas
arenas de discussão política podem servir como alternativa eficiente, por mais
que os meios de participação hoje existentes sejam poucos e não se mostrem
verdadeiramente eficazes. Tem-se o voto, a iniciativa popular de lei, o orça-
mento participativo, o plebiscito e o referendo como instrumentos básicos de
exercício da política. No mesmo sentido, organizações governamentais, mo-
vimentos populares, associações de moradores mostram-se como importan-
tes terrenos de debate político, muito embora até mesmo nestes campos haja
o problema da cooptação. Em que pese ainda carentes de efetividade, tais
instrumentos e arenas de debate aos poucos ganham poder de influência, de
agenda e de, assim, mudar a realidade. Além disso, a par da sua efetividade,
tem-se que a tão-só participação já pode se mostrar apta à mudança, eis que o
engajamento tem o condão de renovar a cultura política e pode gerar reflexo
no próprio campo eleitoral.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio das desonerações tributárias o Estado deixa de arrecadar ex-
pressivos recursos, razão pela qual torna imperioso o controle do uso desses
instrumentos. Conforme demonstrado, as políticas fiscais executadas pelo Go-
verno Federal e pelo Congresso Nacional mostraram-se inegavelmente ilegíti-
mas, a uma porque não são justificadas do ponto de vista teórico ou técnico, e
a duas porque beneficiam diretamente os parlamentares e os setores da econo-
mia responsáveis pelo financiamento das campanhas destes.
É possível perceber uma tendência de apropriação do espaço público por
interesses privados irradiando sobre o sistema político brasileiro de maneira
consolidada e institucionalizada. Assim sendo, normas legais são produzidas
por encomenda de setores particulares da sociedade, ou em benefício exclusivo
dos próprios legisladores, em claro descompromisso com o interesse público, o
que configura um estado de corrupção plena.
Os casos mencionados, veiculados mediante a edição de leis, retratam
exemplos claros de que não se trata de políticas públicas mal pensadas, mas do

165
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

mau uso da máquina pública de maneira deliberada a fim de alcançar interesses


patrimoniais particulares daqueles responsáveis pela condução do governo.
A cooptação dos espaços públicos de decisão por interesses privados
não pode ser considerada mero efeito colateral da forma liberal de democra-
cia, mas sim ruína das bases democráticas em que se estabeleceu o Estado
moderno. Pensar em um modelo de representação política que minimize ou
elimine a crise de representatividade vivenciada é medida urgentemente que
se impõe, sob pena de vivermos em uma ditadura em que o ditador sequer se
encontra institucionalizado.
Contudo, a democracia exercida por meio de representação reflete o pa-
radoxo: sendo a democracia o exercício da vontade do povo, como se pode
efetivá-la por meio da representação? E a solução passa por saber se e como
seria possível controlar a vontade dos representantes, de modo a garantir sua
congruência em relação à vontade dos representados.
O desafio não é simples, especialmente porque se constata que a demo-
cracia exercida apenas pelo voto não é suficiente para garantir a efetivação
dos interesses dos representados, sendo necessário refletir acerca de instru-
mentos de controle, exercitando-se a transparência governamental e a parti-
cipação política da sociedade.
Além da mídia, novas instâncias de intermediação surgem, desvincula-
das dos atores comumente atuantes na política, tais como partidos políticos
e sindicatos, bem como novos espaços de participação popular que ganham
relevo no contexto da fiscalização das políticas públicas.
No caso das desonerações tributárias, serão reforçadas ou enfraque-
cidas a depender da ocorrência ou não de um debate entre entre os atores
envolvidos. A apropriação do espaço público por interesses privados ganha
um novo e importante contorno já que não ocorre para proteção de inte-
resses meramente econômicos de determinadas categorias empresariais, ao
revés, justamente para realizar ou instrumentalizar um controle efetivo no
viés da cidadania.
Considerando os limites da atuação do Poder Judiciário, especialmente
no que se refere às escolhas políticas dos demais Poderes, indica-se que as
soluções para enfrentamento da questão ligada à ilegitimidade das políti-
cas de desoneração tributária deverá passar pelo incremento da cidadania
e da efetiva participação popular na política, inaugurando-se um momento
de efetividade do controle popular sobre os Poderes Executivo e Legislativo,
em combate constante à corrupção, com foco no incremento accountability de-
mocrática ou responsabilização política ininterrupta, pela qual o controle de
desempenho dos programas governamentais é realizado mediante controle

166
CARLOS ARAUJO LEONETTI – LUCIANA CARDOSO DE AGUIAR – VINICIUS GARCIA

administrativo-financeiro das ações estatais com instrumentos de fiscaliza-


ção e participação dos cidadãos durante o mandato dos eleitos.

7. REFERÊNCIAS
ABRUCIO, Fernando Luiz; LOUREIRO, Maria Rita. Finanças públicas, democracia e accountability.
In: ARVATE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Ja-
neiro: Elsevier/Campus, 2004. Disponível em: <https://admsp 20061.wikispaces.com/file/view/
Financas+Publicas+democracia+e+accountability+-+Abrucio+e+Loureiro.pdf>. Acesso em: 01
out. 2017.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1986.
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2008.
BOMFIM, Gilson Pacheco. Da possibilidade de controle dos incentivos tributários pelo poder
judiciário. Revista Direito Tributário Atual, n. 37, p. 226-242, 2017. Disponível em: <http://ibdt.org.
br/RDTA/37/da-possibilidade-de-controle-dos-incentivos-tributarios-pelo-poder-judiciario/>.
Acesso em: 02 out. 2017.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de lei 4.850/2016, de 29 de março de 2016. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=208060. Acesso
em: 21 jun. 2017.
______. Lei 9.964 de 10 de abril de 2000. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L9964 .htm>. Acesso em 21 de junho de 2017.
______. Lei 10.522, de 19 de julho de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/L10522compilado.htm>. Acesso em 21 jun. 2017.
______. Lei 10.684/03, de 30 de maio de 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/leis/2003/L10.684.htm>. Acesso em: 21 jun. 2017.
______. Lei 11.941, de 27 de maio de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2009/lei/l11941.htm>. Acesso em: 21 jun. 2017.
______. Medida Provisória 303, de 29 de junho de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/Mpv/303.htm>. Acesso em: 21 jun. 2017.
______. Medida Provisória 766, de 04 de janeiro de 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03 /_ato2015-2018/2017/Mpv/mpv766.htm>. Acesso em: 21 jun. 2017.
BURKE, Edmund. Discurso aos eleitores de Bristol. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 20, n. 44, p.
97-101, nov. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-44782012000400008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? O Neoliberalismo e a ordem mundial. Tradução Pedro
Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
COSTA, Pietro. Soberania, Representação e Democracia: ensaios de história do pensamento jurídi-
co. Curitiba: Juruá, 2010.
CUNTO, Raphael di. Governo cede no Regis por apoio para continuar. Valor Econômico, Brasília,
23 mai. 2017. Disponível em http://www.valor.com.br/politica/4977450/governo-cede-no-refis-
-por-apoio-para-continuar. Acesso em: 22 jun. 2017.
DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: UNB, 2001.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. rev. São
Paulo: Globo, 2001.
HOBBES, Thomas; TUCK, Richard. Leviatã: ou matéria, forma e poder de uma república eclesi-
ástica e civil. São Paulo: Martin Claret, 2003.

167
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

LAVALLE, Adrián Gurza; HOUTZAGER, Peter P.; CASTELLO, Graziela. Democracia,


pluralização da representação e sociedade civil. Lua Nova, São Paulo, n. 67, p. 49-103,
2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
64452006000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
LUKIC, Melina Rocha. Reforma Tributária no Brasil: ideias, interesses e instituições. Curitiba:
Juruá, 2014.
MACIEL, Marcelo Sobreiro. Dependência de trajetória nos incentivos fiscais: fragmentação do em-
presariado na reforma tributária. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IU-
PERJ. Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara de Deputados – CE-
FOR. Brasília. Jun/2009. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcama-
ra/3642/dependencia_trajetoria_sobreiro.pdf?sequence=2>. Acesso em: 22 mar. 2018.
MACPHERSON, C. Brough. A democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
MADISON, James; HAMILTON, Alexander. JAY, John. Os artigos federalistas, 1787-1788. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C.. Eleições e representação. Lua
Nova, São Paulo, n. 67, p. 105-138, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo .php?scrip-
t=sci_arttext&pid=S0102-64452006000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
MIGUEL, Luis Felipe. Resgatar a participação: democracia participativa e representação política
no debate contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, n. 100, p. 83-118, jan. 2017. Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452017000100083&lng=en&nrm=i-
so>. Acesso em 20 jun. 2017.
NEGRI, Toni; HARDT, Michael. O império. Rio de Janeiro. Record, 2005.
ORAIR, Rodrigo Octávio. Desonerações em alta e elevação da carga tributária: o que explica este
paradoxo? 2014. Disponível em: <http://brasildebate.com.br/wpcontent/ uploads/2014/08/
CTB_2014.pdf>. Acesso em: 28 de fev. 2016.
PILATI, José Isaac. Propriedade e função social na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2013.
PITKIN, Hanna. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1971.
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, São Paulo,
n. 67, p. 15-47, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script =sci_arttext&pi-
d=S0102-64452006000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 jun. 2017.
ROSENN, Keith S.. Jeito na Cultura Jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político. 4. ed. São Paulo: M.
Fontes, 2006.
SANTOS, Raissa Ferreira dos. Evolução da carga tributária e dos benefícios tributários federais de
2000-2012. Trabalho de conclusão de curso. Instituto de Economia – UFRJ. 2014.
SALVADOR, Evilasio. Os Impactos das Renúncias Tributárias no Financiamento das Políticas Sociais
no Brasil. Brasília: INESC, 2015.
SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996.
______. Teoria de La Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 2006.
______. O Guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
URBINATI, Nadia. Representative democracy: principles & genealogy. Chicago: The University of
Chicago Press. 2006.
WIZIAKI, Júlio. Deputados devedores propõem perdão de débitos em novo Refis. Folha de São
Paulo, São Paulo, 24 abr. 2017. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/04/
1877939-deputados-devedores-propoem-perdao-de-debitos-em-novo-refis.shtml>. Acesso em:
22 jun. 2017.

168
Vinicius Garcia

WIZIAKI, Júlio; BOGHOSSIAN, Bruno; CARVALHO, Daniel. Para aprovar reforma, governo
cede em novo programa para devedores. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 mai. 2017. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1884348-para-aprovar-reforma-governo-
cede-em-novo-programa-para-devedores.shtml>. Acesso em: 22 jun. 2017.
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 4.
ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.

169
O COMPLIANCE COMO FERRAMENTA DE COMBATE
À CORRUPÇÃO: UMA VISÃO A PARTIR DA LEI Nº
12.846/13

Talyz William Rech1

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo tem por objetivo colocar em contexto o fenômeno da
corrupção, com o mecanismo do Programa de Integridade, espécie de com-
pliance empresarial, trazido pela Lei 12.846/13, a Lei Anticorrupção.
A Lei Anticorrupção descreve as condutas que representam infrações
administrativas ao patrimônio público, prevendo a responsabilização objetiva
das empresas envolvidas na prática de atos contra a administração pública e
fornecendo mecanismos preventivos e repressivos a tais condutas.
Um desses mecanismos é o compliance empresarial, que possui como um
de seus pilares o fenômeno do whistleblowing, tratado pela lei em diversos mo-
mentos, inclusive quando se refere ao Programa de Integridade.
O compliance, que possui natureza preventiva e acautelatória, ao transferir
para a empresa a responsabilidade pela fiscalização das condutas dos colabo-
radores e a adequação dos seus atos às normas legais, é importante mecanismo
estatal de prevenção à corrupção.
Sua importância, como será visto, também reside na possibilidade da mi-
tigação da culpabilidade da empresa, no caso do eventual envolvimento de
algum de seus prepostos em atividades ilícitas.
O método adotado no presente trabalho foi o dedutivo. A técnica utiliza-
da foi a de pesquisa bibliográfica, em fontes primárias, secundárias e terciárias.

2. O CONTEXTO DO COMBATE À CORRUPÇÃO NO BRASIL


Conceituar a corrupção é um ato, por si só, complexo. Além dos crimes
previstos no Código Penal, nos artigos 317 (corrupção passiva2) e artigo 333

1 Aluno de Pós-graduação lato sensu em “Prevenção e Repressão à Corrupção – Aspectos Teóricos e


Práticos” pela Faculdade Estácio / CERS. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (CCJ/UFSC), Servidor do Ministério Público de Santa Catarina. E-mail: twrech@gmail.com.
2 “Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da
função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal
vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.”

170
Talyz William Rech

(corrupção ativa3), que denotam uma situação de desmoralização da Adminis-


tração Pública, os sentidos que a palavra recebe no âmbito privado estão sem-
pre ligados à depravação e à destruição de princípios e virtudes, em favor de
um ganho material ilegítimo. Essa diversidade de concepções denota os tipos
de corrupção existentes na sociedade, seja ela corrupção política, burocrática,
sistêmica, individual, legal, moral, etc.
Melilo Dinis do Nascimento traz a conceituação da corrupção que interes-
sa ao Direito combater:
A corrupção é a interação voluntária de agentes racionais, com base em
ordenamento de preferências e restrições, na tentativa de capturar, ile-
galmente, recursos de organizações públicas, das quais pelo menos um
deles faça parte, sendo as ações propiciadas por ambiente de baixa ac-
countability.4
Aparentemente, o conceito mais simples e claro de corrupção, capaz de
se amoldar a qualquer situação possível, é o apresentado pela Transparên-
cia Internacional, uma organização não-governamental com sede em Berlim,
fundada em 1993, cujo objetivo primordial é a luta contra a corrupção. Para
a referida ONG, corrupção é o abuso do poder confiado por outrem para o
ganho particular.5
A Transparência Internacional traz três tipos de corrução que se desen-
volvem na sociedade quais sejam: pequena, grande e a política. Essa classifi-
cação dependerá da quantidade de dinheiro perdido ou desviado no proces-
so, e do setor social no qual ela ocorre.
A pequena corrupção se refere ao abuso de poder perpetrado por re-
presentantes estatais de nível pequeno ou médio, nas suas interações com
cidadãos comuns durante suas atividades de ofício. Geralmente ela ocorre
enquanto os cidadãos estão tentando acessar bens ou serviços básicos, como
hospitais, escolas, departamentos de polícia, ou outras agências estatais.
A grande corrupção consiste em atos praticados nos altos escalões go-
vernamentais, capazes de distorcer políticas sociais ou o próprio funciona-
mento central do aparato estatal, permitindo que os líderes se beneficiem,
direta ou indiretamente, de bens e serviços públicos, em detrimento do bem-
-estar geral da população.
Por fim, a corrupção política é a manipulação de políticas, instituições e

3 “Art. 333 – Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a
praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.”
4 NASCIMENTO, Melilo Dinis do. O Controle da Corrupção no Brasil e a Lei n. 12.846/2013 – Lei
Anticorrupção. In: NASCIMENTO, Melilo Dinis do (Org.). Lei Anticorrupção empresarial: aspec-
tos críticos à Lei n. 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 65.
5 No original: “the abuse of entrusted power for private gain”. Disponível em: <https://www.transpa-
rency.org/what-is-corruption/#define>. Acesso em: 10 jun. 2017.

171
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

normas legais de procedimento, aplicados na alocação de recursos públicos


e concessões de financiamentos e outras vantagens pecuniárias, perpetrada
por autoridades públicas com poder decisório, que abusam de sua posição
para manter seu próprio poder, status e riqueza.6
O combate da dimensão política e burocrática da corrupção institucio-
nalizada no Estado é de grande interesse para a sociedade, pois é na mão
dos detentores de cargos públicos, das autoridades políticas e dos gestores
públicos, que se encontra concentrada a competência decisória voltada a dar
destinação à coisa pública.
Os recentes escândalos de corrupção pelos quais a sociedade brasi-
leira tem passado nos últimos anos reforçam o foco do cidadão para as
facetas políticas e burocráticas das condutas corruptas. Nas palavras de
Roberto Livianu:
O aspecto político da corrupção está no fato de serem crimes praticados
no exercício das funções políticas, quando surgem as maiores oportuni-
dades que essas pessoas têm em razão de seus poderes e das faculdades
públicas. São crimes que se caracterizam pelo abuso do poder político.
O que também caracteriza o aspecto político do crime de corrupção é a
violação e abuso de poder, uma vez que a retórica é a pauta de qualquer
eleição. Os políticos e a política corrupta são manifestações da distância
entre o mito e a realidade da vida pública. O que verificamos, em ge-
ral, no processo político é que o abuso de confiança e intrínseco a esta
característica de crime. Os crimes praticados pelos políticos também se
caracterizam por ofenderem graves interesses da comunidade ou que in-
teressam à comunidade são cometidos com a ajuda de funcionários que
se convertem cm cúmplices do político, ou em autores principais. Estes
funcionários, em geral, estão acobertados pelas dificuldades para a des-
coberta das provas, pois os verdadeiros responsáveis permanecem ocul-
tos, podendo mesmo declarar que não sabiam o que estava ocorrendo.7
Mensurar o nível de corrupção do nosso país é uma tarefa árdua em
virtude do aspecto político da corrupção, e da natureza dos próprios atos
de abuso de poder. Os atos corruptos, por exemplo, são deliberadamente
escondidos do público, tornando-se conhecidos apenas por meio de inves-
tigações e divulgação de escândalos. Por outro lado, o número de denún-

6 No original: “Corruption can be classified as grand, petty and political, depending on the amounts
of money lost and the sector where it occurs. Grand corruption consists of acts committed at a high
level of government that distort policies or the central functioning of the state, enabling leaders to
benefit at the expense of the public good. Petty corruption refers to everyday abuse of entrusted
power by low- and mid-level public officials in their interactions with ordinary citizens, who often
are trying to access basic goods or services in places like hospitals, schools, police departments and
other agencies. Political corruption is a manipulation of policies, institutions and rules of procedure
in the allocation of resources and financing by political decision makers, who abuse their position to
sustain their power, status and wealth.” Disponível em: <https://www.transparency.org/what-is-cor-
ruption/#define>. Acesso em 10 jun. 2017.
7 LIVIANU, Roberto. Corrupção e Direito Penal: um diagnóstico da corrupção no Brasil. São Paulo:
Quartier Latin, 2006, p. 167.

172
Talyz William Rech

cias de suborno, ou o número de casos de corrupção levados à justiça, não


refletem necessariamente o nível de corrupção de um país, pois são dados
que estão mais diretamente ligados à eficiência dos órgãos de investigação
nacionais.8
Apesar disso, não há dúvidas que a maior parte da população percebe o
Brasil como um país altamente corrupto. Inclusive, é justamente a percepção
subjetiva o critério de escolha da Transparência Internacional para a medida
da corrupção de um país.
A Transparência Internacional, com o intuito de medir a percepção da
corrupção do setor público, coleta dados qualitativos através de diversas fon-
tes como empresários nacionais, estudiosos do sistema político de cada país e
a população em geral. Esses dados são transformados em um score quantitati-
vo, conhecido como Índice de Percepção da Corrupção (Corruption Perception
Index – CPI), que varia de 0 (significando um país altamente corrupto) a 100
(significando um baixíssimo nível de corrupção percebida).9
A utilização desses índices permite a comparação com outros indicado-
res de modo a produzir informações relevantes. Como exemplo, elenca-se a
comparação dos índices de corrupção dos países, coletados pelo ranking da
CPI em 2016, com o seu grau de exclusão social10, estimados através dos da-
dos da OECD11 (Organisation for Economic Cooperation and Development) e dos
estudos da Fundação Bertelsmann12. Com essa análise, a Transparência In-
ternacional foi capaz de concluir que existe uma correlação muito forte entre
inclusão social, desigualdade social, democracia social e corrupção13.
Lamentavelmente, o Brasil figura em uma posição muito ruim14 no Índi-
ce de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional. Ele alcançou
apenas 40 pontos e, em virtude disso, ocupou, em 2016, a 79ª colocação den-

8 Disponível em: <http://www.politize.com.br/medindo-a-corrupcao/>. Acesso em 10 de jun. de 2017.


9 A metodologia utilizada pode ser facilmente entendida por meio do documento disponibilizado pela
ONG no link: <http://files.transparency.org/content/download/2054/13228/file/CPI_2016_ShortMe-
thodologyNote_EN.pdf>. Acesso em: 10 de jun. de 2017.
10 O grau de exclusão social foi medido, para os países que fazem parte da OECD, através do Índice
de Inclusão Social (Social Inclusion Index for OECD countries), disponível no estudo “Indicado-
res para Governança Sustentável” (Sustainable Governance Indicators), publicado pela Fundação
Bertelsmann e disponível no link: <http://www.sgi-network.org/docs/2016/thematic/SGI2016_So-
cial_Inclusion.pdf.>. Acesso em: 10 de jun. de 2017. Já para os países que não fazem parte da OECD,
o indicador utilizado para representar o grau de exclusão social foi o Indicador de Bem-Estar Social
(Welfare Regime Indicator), presente no estudo “Bertelsmann Transformation Index”. Disponível
em: <https://www.bti-project.org/en/reports>. Acesso em 10 de jun. de 2017.
11 Organização Econômica para Cooperação e Desenvolvimento (Organisation for Economic Co-
-operation and Development) – OECD, mais informações disponíveis em: <http://www.oecd.org/
about/>. Acesso em 10 de jun. de 2017.
12 Mais informações em: <https://www.bertelsmann-stiftung.de/en/home/>. Acesso em 10 de jun. de 2017.
13 Mais informações disponíveis em: <https://www.transparency.org/news/feature/corruption_and_ine-
quality_how_populists_mislead_people>. Acesso em: 10 jun. de 2017.
14 Mais informações disponíveis em: <https://www.transparency.org/news/feature/corruption_percep-
tions_index_2016#resources>. Acesso em: 10 jun. de 2017.

173
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

tro 176 países avaliados.15


Em seus relatórios, a Transparência Internacional aponta quais são
os desafios existentes no Brasil no combate à corrupção: i) a corrupção no
governo e nos partidos; ii) o financiamento de campanhas políticas; iii) a
corrupção em nível estadual e municipal e iv) as contratações para grandes
obras públicas.
Os relatórios da ONG também destacam alguns pontos positivos do ce-
nário brasileiro com grande potencial para tornarem-se evoluções significati-
vas no que se refere ao combate à corrupção institucionalizada.16
O primeiro ponto positivo está relacionado à maior vigilância da políti-
ca nacional pela opinião pública, a exemplo do julgamento do Mensalão e as
investigações relativas à Operação Lava Jato, altamente retratadas pela mídia
e acompanhada de perto pela população.
O segundo ponto reside no o aumento da participação da sociedade
civil na vida política do país, a exemplo da promulgação da Lei Complemen-
tar nº 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, que foi resultado de
iniciativa popular.
O terceiro ponto está relacionado ao maior acesso à informação e a trans-
parência institucional, fomentadas pela Estado através da Lei nº 12.527/2011,
a Lei de Acesso à Informação, foi destaque ao fornecer mecanismos facilita-
dores e ferramentas, como o Portal Transparência, para que o cidadão co-
mum possa fiscalizar o uso do dinheiro público.
Por fim, a Transparência Internacional também elogiou a Lei Anticorrup-
ção, especialmente no que tange à responsabilização administrativa das em-
presas que participam de esquemas de corrupção, sancionando-as com pesa-
das multas que pode variar de 0,1% até 20% do faturamento da empresa.17

3. O COMPLIANCE COMO MECANISMO DE COMBATE À


CORRUPÇÃO
O Estado não é capaz de fiscalizar de modo onipresente a atividade eco-
nômica no país. Também não há maneira de eliminar completamente o risco

15 Mais informações disponíveis em: <https://www.transparency.org/country/BRA>. Acesso em 10 de


jun. 2017.
16 Mais informações: <https://www.transparency.org/news/feature/americas_sometimes_bad_news_
is_good_news>. Acesso em 10 jun. 2017.
17 “Art. 6º Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos
atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções: I – multa, no valor de 0,1% (um décimo por
cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do
processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando
for possível sua estimação”. (BRASIL. Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 8 abr. 2017).

174
Talyz William Rech

que a atividade empresarial cria à livre iniciativa e à livre concorrência. O patri-


mônio público também está vulnerável ao risco dessa atividade, pois agentes
públicos, corrompidos pelo poder econômico, podem envolver-se em ativida-
des ilícitas, manipulando normas e políticas públicas para aumentar os lucros
de agentes privados.
João Francisco da Mota Júnior ensina que:
Com efeito, a experiência empírica da expansão do direito penal, lar-
gueando suas fronteiras para criminalizar condutas no seio empresarial,
demonstrou que o cidadão comum, que passa quarenta horas por semana
dentro da empresa consegue identificar mais facilmente eventuais desvios
do que os Órgãos incumbidos de investigar condutas ilícitas, ou potencial-
mente ilícitas.18
Por esse motivo, o Estado procura fugir da lógica fiscalizatória e puniti-
vista, instaurando mecanismos preventivos e acautelatórios para a consecu-
ção efetiva do objetivo constitucional. A quebra de paradigma que permitiu a
instalação dos mecanismos de Direito Premial no nosso ordenamento jurídi-
co é parte do mesmo movimento que fez penetrar em nosso país a consciência
da importância do compliance como mecanismo de combate à corrupção.
Em relação ao conceito do compliance, Alexandre Morais da Rosa ex-
plica que:
O compliance, entendido como o dever de operar em conformidade com le-
gislação, regramentos internos e externos, não necessariamente públicos,
surge como discurso totalizador de redução de riscos, capaz de mitigar
os efeitos de ações capazes de gerar implicações legais e prejuízos à repu-
tação (da instituição ou dos administradores/empregados). A lógica do
compliance é a de promover atividade preventiva e/ou repressiva no tocan-
te à prática interna (legal, regulamentar, ética, etc.), tanto dos atos da pes-
soa jurídica, como dos agentes a ela vinculados, monitorando as práticas
internas, controlando os desvios e abusos, bem assim responsabilizando
intimamente os desvios e com isso, evitando possíveis responsabilizações
externas (penal, cível e administrativo).”19
No mesmo sentido, Eduardo Luiz Santos Cabette e Marcius Tadeu Maciel
Nahur definem compliance como a
formulação de procedimentos voltados para a implantação de práticas
preventivas por intermédio da adoção de procedimentos de controle in-
ternos, treinamento de pessoal e monitoramento sobre o real cumprimen-
to desses procedimentos previamente estabelecidos. Tudo isso visando
diminuir riscos de infrações, mediante a estrita obediência aos padrões
legais e regulamentares aplicáveis a cada atividade desenvolvida no âmbi-

18 MOTA JÚNIOR, João Francisco da. Whistleblowing: proteção legal ao servidor denunciante. Revis-
ta Jurídica Consulex. Ano XVI, n. 367, maio 2012, p. 54.
19 ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4. ed. rev. atual,
e ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 568.

175
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

to empresarial. O objetivo é adequar as práticas empresariais individuais e


institucionais às leis e regulamentos que regem a atividade desenvolvida,
bem como fiscalizar continuamente a regularidade desses procedimentos
a fim de evitar infrações e eventuais danos.20
O compliance empresarial é, portanto, poderosa ferramenta que possui im-
portância na preservação da ordem econômica e do patrimônio público, bem
como, de maneira reflexa, para a própria proteção da empresa contra possíveis
procedimentos de responsabilização.
O próprio artigo 7º, inciso VIII da Lei Anticorrupção prevê que:
Art. 7 º serão levados em consideração na aplicação das sanções:
(...)
VIII – a existência de mecanismos e procedimentos internos de integri-
dade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação
efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica.
Conforme explica André Ricardo Godoy, a ideia de que
“... a atenuação das sanções aplicáveis a empresas que possuam progra-
mas de compliance efetivo, o que parece simbolizar uma recomendação
para as empresas situadas no âmbito da aplicação da norma, para que
criem e deem vida a códigos de ética e canais de comunicação de condutas
ilícitas, no seio das respectivas companhias.” 21
Flaviane Morais lembra, ainda, que a anistia concedida pelo Programa de
Leniência americano foi difundida como uma poderosa ferramenta no com-
bate à corrupção, seguindo a lógica do compliance corporativo e do instituto
conhecido como whistleblowing.22
Já o criminal compliance dirige seus esforços para evitar que a atividade da
empresa culmine com a imputação penal dos administradores, e, nos casos em
que se aceita a responsabilidade penal de pessoa jurídica, à própria empresa.
O criminal compliance pode, ainda, ser entendido como a
forma de se criar meios para detectar condutas delitivas, de se desenvol-
ver uma cultura para incentivo de condutas éticas tendentes a cumprir
compromissos com o direito, adotando procedimentos padronizados
propagados aos funcionários da empresa e formas de prevenção à lava-
gem de dinheiro.23

20 CABETTE, Eduardo Luiz Santos; NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminal Compliance e Ética
Empresarial: Novos desafios do Direito Penal Econômico. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2013,
p. 15-17.
21 GODOY, Andre Ricardo. Whistleblowing no Direito Penal Brasileiro: análise dos projetos de lei em
tramitação no Congresso Nacional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 134, ano 25, p. 263-
289. São Paulo: Editora RT, ago. 2017, p. 270.
22 MORAIS, Flaviane de Magalhães Barros de. A colaboração por meio do acordo de leniência e seus
impactos junto ao Processo Penal brasileiro: um estudo a partir da ‘Operação Lava Jato’. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 24, n. 122, ago. 2016, p. 95.
23 MORAIS, Flaviane de Magalhães Barros de. A colaboração por meio do acordo de leniência e seus

176
Talyz William Rech

Segundo Cabette e Nahur o grande fator motivador que tem levado em-
presas e empresários a adotar os sistemas do criminal compliance tem sido o
“temor à responsabilização criminal, muitas vezes operada de forma pra-
ticamente objetiva, sem que haja uma efetiva indicação específica do agir
criminoso atribuível a determinado ator do cenário empresarial”.24
Para explicar porque o compliance compreende um sistema que pro-
voca uma situação de ganha-ganha para a Administração Pública e para
as empresas que adotam esse programa, precisamos analisar o contexto no
qual ele se desenvolve, e as premissas lógicas que levam à sua adoção.
Inicialmente, é necessário entender que a preocupação estatal com o
fomento aos mecanismos de compliance, nasce de um contexto de sociedade
de risco, em que a atividade empresarial no mercado assume riscos, ine-
rentes à sua própria natureza, de provocar prejuízos à ordem econômica.25
A compreensão da chamada sociedade de risco exige uma nova abor-
dagem das políticas públicas responsáveis por estruturar o sistema econô-
mico nacional.
No marco desta sociedade de riscos de BECK, os perigos trazidos, pela
manipulação de tecnologias que apresentam riscos de contaminação em esca-
la global, as tragédias ambientais, os riscos de manipulação de energia nuclear
trazem perigos que não podem mais ser confinados geograficamente. Será neste
contexto social, caracterizado por uma crescente comunidade global unida pela
tecnologia e assombrada por seus riscos, que os Estados Democráticos deverão
fazer florescer seus sistemas econômicos e regular, através de seus ordenamen-
tos jurídicos nacionais e supranacionais, seu funcionamento e proteção.26
Os avanços da tecnologia e do modo de produção capitalistas expõem,
sem dúvida, a sociedade aos riscos de sua atividade, e cabe ao Estado reali-
zar a proteção e a regulamentação do seu funcionamento.
Nada obstante, cumpre salientar que a fiscalização e a punição das em-
presas infratoras já não são mais suficientes para preservar os bens jurídicos
eleitos pelo ordenamento como dignos de proteção; o Estado não é capaz
de atingir esse objetivo inflando desmesuradamente os poderes de polícia
dos órgãos repressores.

impactos junto ao Processo Penal brasileiro: um estudo a partir da ‘Operação Lava Jato’. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v.24, n.122, ago. 2016, p. 95-96.
24 CABETTE, Eduardo Luiz Santos; NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminal Compliance e Ética
Empresarial: Novos desafios do Direito Penal Econômico. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2013,
p. 15-17.
25 BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo. Barcelona, Espanha: Ediciones Paidós Ibérica, 1998.
26 BUSATO, Paulo César; RAINALDET, Tracy Joseph. Crítica ao Uso Dogmático do Compliance
como Eixo de Discussão de uma Culpabilidade de Pessoas Jurídicas. In: DAVID, Décio Franco.
(Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Compliance e Direito Penal.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 237.

177
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

4. O WHISTLEBLOWING COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO


DOS PROGRAMAS DE COMPLIANCE
O Whistleblowing, um dos pilares do compliance empresarial, é uma prá-
tica que consiste na denunciação, realizada por um colaborador, ou ex-cola-
borador da empresa infratora, de condutas consideradas suspeitas, indícios
ou provas de práticas de ilícitos, por parte de superiores hierárquicos, colegas
de trabalho ou empregadores, no âmbito das atividades da própria empresa.
O whistleblower27 (“soprador de apito”, em tradução livre do inglês)
pode apresentar sua denúncia a algum canal interno da própria organização,
para que as condutas sejam analisadas pelos altos escalões da companhia,
que, então, decidirão qual a melhor decisão a ser tomada, ou, na falta de
canais de comunicação internos, fazê-lo para a mídia ou para as autoridades
investigadoras.
A importância do whistleblower para que um programa de compliance
empresarial seja efetivo é tão grande que a própria Lei Anticorrupção demar-
ca a existência de canais internos de comunicação, aptos a incentivar que os
colaboradores tragam as eventuais práticas ilícitas que presenciem ao conhe-
cimento das autoridades competentes, como um dos fatores redutores das
penalidades nela previstas.
Assim, o legislador demonstra sua preocupação com a participação
ativa dos atores envolvidos diretamente na atividade empresarial cotidiana.
Para Godoy,
Nesse ponto, fica evidente a importância dos programas de Compliance
no cenário empresarial, uma vez que os funcionários podem comunicar
situações suspeitas, e submetê-las à análise da área responsável. Não se
perca de vista, ademais, que o fato da pessoa jurídica sobre a qual recai a
suspeita possuir um programa verdadeiramente comprometido na desco-
berta e repressão das condutas criminosas é fator mitigante de eventual
penalidade, expressamente previsto nos ordenamentos jurídicos estran-
geiros, assim como na Lei n. 12.846/2013.28
Para que a denunciação seja efetiva, é evidente a necessidade de, num
primeiro momento, assegurar proteção ao reportante das condutas suspeitas.
Essa questão é tão sensível, que a OECD, organização internacional cujo
objetivo é promover políticas de melhoria do bem-estar social e econômico

27 O termo whistleblowers teria surgido do whistleblowing, prática utilizada no âmbito privado, muito
comum em grandes empresas, sobretudo nos Estados Unidos, para detecção de irregularidades e
desvios de conduta, inclusive corrupção, propiciando seu efetivo combate. (MOTA JÚNIOR, João
Francisco da. Whistleblowing: proteção legal ao servidor denunciante. Revista Jurídica Consulex,
ano XVI, n. 367, maio 2012, p. 54)
28 GODOY, Andre Ricardo. Whistleblowing no Direito Penal Brasileiro: análise dos projetos de lei em
tramitação no Congresso Nacional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 134, ano 25. São
Paulo: Editora RT, ago. 2017, p. 280.

178
Talyz William Rech

das nações, recomenda que mecanismos de proteção aos whistleblowers sejam


implementados pela legislação dos países.29
Da mesma forma, o incentivo à implementação de leis que promo-
vam a proteção efetiva aos whistleblowers representa um dos tópicos de
maior importância no plano de ação do Grupo de Trabalho Anticorrupção
do G20, conforme relatório resultante da reunião realizado em 2010, na
Coréia do Sul.30
O Brasil vem realizando esforços para trazer nas legislações pertinentes
ao combate de crimes econômicos e infrações contra o patrimônio da Ad-
ministração Pública, dispositivos que visem proteger o delator de eventuais
represálias.
No âmbito do direito público, a Lei nº 12.527/2011, conhecida como Lei
de Acesso à Informação, em seu artigo 44, buscou modificar o Estatuto do
Servidor Público Federal, alterando o artigo 126-A da Lei 8.112/1990.31
A intenção era a de garantir que o servidor não seja perseguido por re-
latar à Autoridade Superior competente, ou aos Órgãos investigativos, fatos
que possam implicar em condutas típicas, dos quais tenha ciência em razão
de seu cargo.32
A alteração foi aplaudida pela doutrina, que a considerou instrumento
de exercício da democracia, protegendo o servidor engajado em defender o
interesse público de represálias. Conforme João Francisco da Mota Júnior,
O denunciante, geralmente, não é afetado diretamente pelo perigo ou pela
ilegalidade, embora possa ser. Ao fazer uma “revelação” de boa-fé, nor-
malmente não o faz por questões pessoais, mas sim visando o interesse
público. Assim, proteger o denunciante e desenvolver mecanismos para
essa tutela nada mais é do que fomentar a participação democrática e a
efetividade do direito à informação.33
Já em relação aos whistleblowers internos, provenientes do sistema de com-
pliance empresarial do setor privado, o legislador brasileiro vem estudando a
possibilidade de promover incentivos pecuniários à denunciação que resulte

29 Disponível em: <https://www.oecd.org/daf/anti-bribery/Committing-to-Effective-Whistleblower-


-Protection-Highlights.pdf>. Acesso em: 12 out. 2017.
30 Disponível em: <https://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/G20_Anti-Corruption_Action_
Plan.pdf>. Acesso em: 12 out. 2017.
31 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8112cons.htm>. Acesso em: 12 out. 2017.
32 “Art. 44. O Capítulo IV do Título IV da Lei no 8.112, de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte
art. 126-A: (...) Art. 126-A. Nenhum servidor poderá ser responsabilizado civil, penal ou adminis-
trativamente por dar ciência à autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento des-
ta, a outra autoridade competente para apuração de informação concernente à prática de crimes ou
improbidade de que tenha conhecimento, ainda que em decorrência do exercício de cargo, emprego
ou função pública.” Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/
l12527.htm>. Acesso em: 12 out; 2017.
33 MOTA JÚNIOR, João Francisco da. Whistleblowing: proteção legal ao servidor denunciante. Revis-
ta Jurídica Consulex, ano XVI, n. 367, maio 2012, p. 57.

179
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

em efetiva recuperação de dinheiro aos cofres públicos.34


Essas alternativas já estão presentes nos ordenamentos de outros paí-
ses , e enfrentam menor rejeição moral do que outros institutos do Direito
35

Premial, como a delação premiada e o acordo de leniência, pois nesse caso


o delator não está envolvido diretamente na prática dos ilícitos; apenas tem
conhecimento deles em virtude de sua posição privilegiada no interior da
organização.
Por fim, uma legislação completa que se prese a fornecer arcabouço le-
gal firme para incentivar que a prática do whistleblowing torne-se prevalente
no Brasil, não pode olvidar de tratar de maneira clara a responsabilização
civil do falso delator.
Só assim, poder-se-ia evitar a criação de um mercado lucrativo de de-
nunciações estratégicas, fadadas a trazer danos a reputação de empresas
concorrentes, com prejuízo geral para à livre concorrência e para a ativida-
de econômica nacional.36

5. COMPLIANCE E A MITIGAÇÃO DA RESPONSABILIZAÇÃO


ADMINISTRATIVA NA LEI ANTICORRUPÇÃO
As origens culturais e históricas do patrimonialismo no Brasil – utiliza-
ção dos bens públicos em prol do particular – é um tema bastante discutido.
Atualmente, a legislação brasileira combate a corrupção com responsabilização
dos agentes nas três esferas – penal, civil e administrativa.
Na esfera penal, o Código Penal traz no seu Título XI da Parte Especial
– Dos Crimes contra a Administração Pública – a tipificação de crimes encar-
regados dessa tarefa.
Na esfera civil, destaca-se a Lei de Improbidade Administrativa, Lei nº
8.429/92; assim como a Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei nº

34 Ver Projetos de Lei da Câmara dos Deputados nº 1.701/2011 e 3.506/2012 disponíveis, respectiva-
mente em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=510440>
e <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=538356>. Ver tam-
bém o Projeto de Lei do Senado nº 664/2011 disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/
atividade/materias/-/materia/103062>. Acessos em: 12 out. 2017.
35 Na legislação americana: Section 23, “b” do Dodd-Frank Act. Disponível em: <https://www.sec.gov/
about/laws/wallstreetreform-cpa.pdf>. Na legislação canadense, disponível em: <http://www.osc.
gov.on.ca/en/whistleblower.htm>. Na legislação sul-africana: <https://www.whistleblowing.co.za/
legal/the-protected-disclosures-act/>. Acessos em: 12 out. 2017.
36 A esse respeito, pertinente o extrato do trabalho de André Ricardo Godoy, que analisou com pro-
fundidade os projetos de lei tramitando no Congresso Nacional: “Ainda que louvável o objetivo de
fundo, a matéria precisa ser debatida não só nas casas legislativas, mas também no seio social, sob
pena de, a pretexto de combater a criminalidade, importar-se um instrumento que pode gerar efeitos
danosos à sociedade, com a proliferação de uma cultura de denunciação por motivos não tão nobres,
tais como afetar negativamente um concorrente, mediante a divulgação de uma informação que ain-
da não foi minimamente comprovada” (GODOY, André Ricardo. Whistleblowing no Direito Penal
Brasileiro: análise dos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, v. 134, ano 25. São Paulo: Editora RT, ago. 2017, p. 287).

180
Talyz William Rech

8.666/93, e a Lei da Ação Civil Pública, Lei nº 7.347/85.


Por fim, na esfera administrativa, além de algumas disposições na já
mencionada Lei de Licitações, e na própria Lei Antitruste, o protagonismo é
da Lei nº 12.846/13.
A responsabilização administrativa das infrações cometidas contra o
patrimônio da Administração Pública, desta forma, é regulada pela Lei An-
ticorrupção. A referida lei nasce como resposta do legislador brasileiro aos
anseios sociais relativos, conforme Jorge Ulisses Jacoby Fernandes e Karina
Amorim Sampaio Costa:
É necessário também compreender o contexto histórico para a remessa
aprovação do Projeto de Lei – PLC n° 39/2013 que resultou na Lei em co-
mento. Além de ansiosos por dar resposta à seara internacional e, talvez
também à voz população manifestada nas ruas no mês de junho de 2013,
os dirigentes e parlamentares brasileiros decidiram pôr fim a alguns pro-
jetos escolhidos a dedo, que pelo título, poderia produzir um conjunto
de normas que marcassem uma mudança de paradigma. A norma que
tramitou por mais de quatro anos foi terminada às pressas e sancionada
logo após fervor das manifestações vistas país afora.37
A Lei Anticorrupção traz uma série de condutas passíveis de punição
no âmbito administrativo, bem como algumas ferramentas noveis voltadas
ao desvelo e à prevenção do seu acontecimento, como o Acordo de Leniência
e o Compliance.
Percebe-se que estas condutas já estão previstas no Código Penal e na
Lei de Licitações. Para os defensores da aplicação da responsabilização ob-
jetiva, a explicação pode ser encontrada na mudança do foco do combate à
corrupção, buscando uma atuação preventiva através do estímulo à adoção
de políticas de compliance, interno às próprias empresas.
A mudança de paradigma trazida pela lei é melhor explicada por Egon
Bockmann Moreira e Andreia Cristina Bagatin, quando defendem que:
a Lei n. 12.846/2013 inverte a lógica tradicional do combate à corrupção,
que antes pretendia basicamente imputar consequências gravosas, a pos-
teriori, aos agentes corruptos pessoas físicas — deixando-se de lado as
pessoas jurídicas que serviam como instrumento de geração e distribui-
ção dos benefícios indevidos (salvo raras exceções, muitas deles depen-
dentes da prova da culpa grave ou dolo). Ao contrário dessa concepção
tradicional, que correlaciona atos ilícitos a castigos contra pessoas físi-
cas, a Lei Anticorrupção instalou um sistema de incentivos econômicos
para que as pessoas jurídicas efetivamente incorporem mecanismos de

37 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby; COSTA, Karina Amorim Sampaio. Breves Comentários à Lei de
Responsabilização Administrativa e Civil de Pessoas Jurídicas pela Prática de Atos contra a Administra-
ção Pública, Nacional ou Estrangeira. In: NASCIMENTO, Melilo Dinis do (Org.). Lei Anticorrupção
empresarial: aspectos críticos à Lei n. 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 31.

181
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

compliance. A lógica é preventiva/acautelatória, uma vez que é de todo


viável a adoção de boas práticas, as quais, senão impeçam, ao menos ate-
nuem os atos de corrupção. Caso tais boas práticas sejam efetivamente
implementadas — dentre elas, o acordo de leniência (ou ao menos a cer-
teza da alta probabilidade de que ele seja celebrado) — e controladas por
meio de protocolos-padrão, estará criado o ambiente proativo de real
combate à corrupção do lado de dentro das sociedades empresariais.38
Diante desse contexto, é factível concluir pela impossibilidade de o Poder
Público realizar a fiscalização de cada ato de comércio quanto à regularidade
em relação às normas construídas para proteger a Ordem Econômica. Também
parece claro que o risco é inerente à atividade empresarial, não sendo possível
a sua aniquilação completa. Por esses motivos, o Estado passou a delegar ao
ente privado a responsabilidade de observar a regularidade de sua atividade,
bem como a correta atuação de seus prepostos:
Desta forma, a preocupação com a governança empresarial, compreen-
dida como a fiscalização e manutenção dos corretos procedimentos – de
um determinado ordenamento jurídico – nas empresas, começou a tomar
maiores proporções na agenda de preocupações estatal.39
Articulando, então, o papel preventivo do compliance com a responsabi-
lidade normativa do Estado, Paulo César Busato e Tracy Joseph Rainaldet, ex-
plicam que:
O compliance não é senão uma determinação estatal de atuação preven-
tiva na criminalidade econômica. As transações internacionais, marca-
das por empresas transnacionais, exigem um padrão de confiança que
o compliance pretende garantir. Desta feita, o Estado possui três formas
de atuar na proteção desses bens jurídicos: editando leis de conduta in-
terna nas empresas, obrigando a cooperar com os órgãos de persecução
criminal, ou tornando vinculantes os códigos de conduta internos das
empresas. Neste contexto, entra em cena o denominado criminal com-
pliance, que se caracteriza como diretrizes de cumprimento das normas
vigentes, a fim de evitar o cometimento de delitos. Trata-se de uma au-
torregulação regulada, em que a empresa se responsabiliza pela criação
de diretrizes de governança corporativa e de gestão de riscos que aten-
dam às normas vigentes.40
Nesse contexto, o compliance é importante ferramenta à disposição do Es-

38 MOREIRA, Egon Bockmann; BAGATIN, Andreia Cristina. Lei Anticorrupção e quatro de seus
principais temas: responsabilidade objetiva, desconsideração societária, acordos de leniência e regu-
lamentos administrativos. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, v.12,
n.47, jul./set. 2014, p. 55-56.
39 BUSATO, Paulo César; RAINALDET, Tracy Joseph. Crítica ao Uso Dogmático do Compliance
como Eixo de Discussão de uma Culpabilidade de Pessoas Jurídicas. In: DAVID, Décio Franco.
(Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Compliance e Direito Penal.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 237.
40 BUSATO, Paulo César; RAINALDET, Tracy Joseph. Crítica ao Uso Dogmático do Compliance
como Eixo de Discussão de uma Culpabilidade de Pessoas Jurídicas. In: DAVID, Décio Franco.
(Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Compliance e Direito Penal.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 259.

182
Talyz William Rech

tado, pois permite que ele privatize sua responsabilidade de prevenção da ati-
vidade ilícita, compartilhando-a com o particular através da obrigatoriedade
da autorregulação no âmbito interno das empresas.
Utilizando, por exemplo, a Lei de Lavagem de Capitais, Lei nº 9.613/98,
percebe-se nos artigos 10 e 11 a criação de mecanismos de compliance referidos
anteriormente. Neles, ocorre essa transferência de responsabilidade, ao imple-
mentar regras de conduta que possuem como objetivo a prevenção dos delitos
previstos naquela Lei dentro e fora da empresa.41
Em relação à referida lei, comentam Natália Dib e Sérgio Lima que:
No âmbito subjetivo, há uma imposição ético-legal implícita, podendo
optar a empresa em aplicar, ou não, o instituto do compliance. Assim,
cada empresa que tenha por objetivo a evitação de responsabilização
penal e a diminuição de riscos, buscando preservar sua imagem, repu-
tação e credibilidade, definirá uma série de regras de comportamentos,
a serem exigidos dos colaboradores, inclusive gerentes e diretores da
empresa. Serão os compliance officers os profissionais responsáveis pelo
controle interno da empresa, e eles atuarão em departamento específico
ou através de terceirização, assumindo o dever de vigilância do cumpri-
mento de tais regras.42

41 “Art. 10. As pessoas referidas no art. 9º: I – identificarão seus clientes e manterão cadastro atu-
alizado, nos termos de instruções emanadas das autoridades competentes; II – manterão registro
de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de
crédito, metais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite
fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas; III – deverão
atender, no prazo fixado pelo órgão judicial competente, as requisições formuladas pelo Conse-
lho criado pelo art. 14, que se processarão em segredo de justiça. III – deverão adotar políticas,
procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações, que
lhes permitam atender ao disposto neste artigo e no art. 11, na forma disciplinada pelos órgãos
competentes; IV – deverão cadastrar-se e manter seu cadastro atualizado no órgão regulador ou
fiscalizador e, na falta deste, no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), na for-
ma e condições por eles estabelecidas; V – deverão atender às requisições formuladas pelo Coaf
na periodicidade, forma e condições por ele estabelecidas, cabendo-lhe preservar, nos termos
da lei, o sigilo das informações prestadas. [...] Art. 11. As pessoas referidas no art. 9º: I – dis-
pensarão especial atenção às operações que, nos termos de instruções emanadas das autoridades
competentes, possam constituir-se em sérios indícios dos crimes previstos nesta Lei, ou com eles
relacionar-se; II – deverão comunicar, abstendo-se de dar aos clientes ciência de tal ato, no prazo
de vinte e quatro horas, às autoridades competentes: II – deverão comunicar ao Coaf, abstendo-
-se de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, inclusive àquela à qual se refira a informação, no
prazo de 24 (vinte e quatro) horas, a proposta ou realização: a) todas as transações constantes do
inciso II do art. 10 que ultrapassarem limite fixado, para esse fim, pela mesma autoridade e na
forma e condições por ela estabelecidas; a) todas as transações constantes do inciso II do art. 10
que ultrapassarem limite fixado, para esse fim, pela mesma autoridade e na forma e condições
por ela estabelecidas, devendo ser juntada a identificação a que se refere o inciso I do mesmo
artigo; a) de todas as transações referidas no inciso II do art. 10, acompanhadas da identificação
de que trata o inciso I do mencionado artigo; e b) a proposta ou a realização de transação prevista
no inciso I deste artigo. III – deverão comunicar ao órgão regulador ou fiscalizador da sua ativi-
dade ou, na sua falta, ao Coaf, na periodicidade, forma e condições por eles estabelecidas, a não
ocorrência de propostas, transações ou operações passíveis de serem comunicadas nos termos do
inciso II.” (BRASIL. Lei n. 9.613, de 3 de março de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/L9613.htm>. Acesso em: 8 abr. 2017).
42 DIB, Natália Brasil; LIMA, Sérgio Fernando Ferreira de. Compliance e Sistema Preventivo de Con-
trole sob a Perspectiva dos Crimes contra o Sistema Financeiro. In: DAVID, Décio Franco. (Org.);
GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Compliance e Direito Penal. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 129.

183
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Por mais que, ao contrário da Lei de Lavagem de Dinheiro, não haja trata-
mento tão detalhado quanto às responsabilidades dos agentes econômicos vin-
culadas às suas condutas, pode-se dizer que as Leis Antitruste e Anticorrupção
também incentivam o compliance ao estipular a responsabilização objetiva da
pessoa jurídica. Nesse sentido,
nota-se que os deveres impostos àquelas pessoas para o cumprimento de
exigências que, nitidamente, objetivam a prevenção de crimes no interior
das corporações, constituem verdadeiro compliance, ainda que a Lei não te-
nha utilizado o termo, preferindo enquadrar conceituai mente tais deveres
com o mandamentos normativo-legais objetivos.43
O risco da atividade empresarial autoriza o Estado, não só a transferir
à pessoa jurídica a responsabilidade de monitorar a adequação dos seus pro-
cedimentos administrativos aos parâmetros normativos e a conduta dos seus
funcionários, como também viabiliza a realização da imputação objetiva das
infrações administrativas previstas na Lei Antitruste e Anticoncorrencial.
Explica Paulo Busato que:
Por conta disso é que se diz, hoje, que o critério do risco é algo que deve
ser inserido na teoria do delito, pois está presente no cotidiano das pes-
soas. Como diferentes são os níveis de risco, também a tolerância em re-
lação a cada um deles não é igual. Assim, por conta da fragmentariedade
do Direito Penal, eleitos os interesses mais fundamentais ao convívio
social, estabelecer-se-ão, conforme as modernas teorias funcionalistas,
os parâmetros de riscos tolerados pela sociedade. Aqueles riscos que ela
estiver disposta a admitir serão limitados, ou mesmo proibidos – proi-
bição que, mormente o caráter coletivo dos interesses atinentes à ordem
econômica, tem sido realizada, crescentemente, na forma dos delitos cul-
posos, de mera atividade e de perigo. Assim é que se tem, na esteira da
moderna teoria da imputação objetiva, a avaliação se determinada con-
duta criou ou incrementou risco proibido, devendo-se avaliar, em suma,
(i) se o resultado danoso decorreu do exercício do risco; (ii) se a ação do
agente não tenha visado diminuir o risco; (iii) se o risco realizou-se no
resultado concreto; e (iv) se o resultado não se encontra fora do alcance
do tipo ou da esfera de proteção da norma.44
Se, por um lado, o Estado percebe um benefício claro decorrente da
transferência às empresas dos custos de manutenção da regularidade às nor-
mativas legais, por outro a empresa também se beneficia da adoção dos pro-
gramas de compliance.

43 BUSATO, Paulo César; RAINALDET, Tracy Joseph. Crítica ao Uso Dogmático do Compliance
como Eixo de Discussão de uma Culpabilidade de Pessoas Jurídicas. In: DAVID, Décio Franco.
(Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Compliance e Direito Penal. São
Paulo: Atlas, 2015, p. 244.
44 BUSATO, Paulo César; RAINALDET, Tracy Joseph. Crítica ao Uso Dogmático do Compliance
como Eixo de Discussão de uma Culpabilidade de Pessoas Jurídicas. In: DAVID, Décio Franco.
(Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Compliance e Direito Penal.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 137.

184
Talyz William Rech

Ora, se toda a atividade empresarial organizada está sujeita a defeitos


advindos da imperfeita estruturação dos seus setores internos, em relação à
observância do estrito cumprimento dos deveres legais, abrem-se possibilida-
des para que colaboradores mal-intencionados possam se aproveitar do ente
empresarial para o cometimento de ilícitos.
Por esse motivo, aderir de forma voluntária a um programa de complian-
ce, mostra a preocupação dos administradores com a mitigação dos riscos cria-
dos pelas imperfeições organizacionais da empresa.
Ainda em relação a essa questão, Michele Cabrera pontua que:
A empresa seria, antes de mais nada, uma estrutura social complexa,
voltada para a produção ou para a circulação de bens ou serviços. Para
alcançar o fim ao qual se propõe, tal entidade deve organizar-se e possui
plena liberdade para tanto. Não obstante, tal processo de organização
pode ser imperfeito, de modo a ocasionar falhas estruturais na corpo-
ração, as quais, por sua vez, podem fomentar a prática delitiva no seio
do ente coletivo. Essa estrutura defeituosa, por conseguinte, colocaria a
empresa fora da zona de risco permitida pelo Direito Penal e, por tal mo-
tivo, o ente coletivo deveria ser sancionado. A presença de um sistema
de compliance serviria para identificar e prevenir a ocorrência de tais des-
vios estruturais e, portanto, em contrapartida, sua ausência conduziria
fatalmente ao reconhecimento de culpabilidade.45
A ausência do compliance no âmbito empresarial pode elevar a culpa-
bilidade da empresa, no que diz respeito a culpa in vigilando, da mesma
forma que imputação objetiva da responsabilidade da pessoa jurídica no
que tange à responsabilização administrativa por atos corruptos de seus
prepostos, ou de atos que lesem a concorrência. A respeito disso, Michelle
Cabrera lembra que
Anne Ehrhardt, por exemplo, entende que a realização do crime pela
pessoa física pode ser atribuída à pessoa jurídica, em face de esta não ter
realizado um adequado controle interno da produção destes resultados.
Ou seja, defende o reconhecimento da culpabilidade da pessoa jurídica
pelo simples fato de que a empresa pode fazer algo em relação ao fato de
seu representante.46
A contrario sensu, então, pode-se concluir que a empresa que demonstrar
a adoção de todas as medidas que estavam ao seu alcance para instaurar pro-
grama de compliance empresarial, deve ser beneficiada com a mitigação da sua
culpabilidade frente à autoridade fiscalizadora.

45 CABRERA, Michelle Gironda. Compliance e Imputação Objetiva: Criação de Risco Proibido. In:
DAVID, Décio Franco. (Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Com-
pliance e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2015, p. 40.
46 CABRERA, Michelle Gironda. Compliance e Imputação Objetiva: Criação de Risco Proibido. In:
DAVID, Décio Franco. (Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Com-
pliance e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2015, p. 43.

185
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Para a teoria construtivista47, o compliance empresarial advém da obri-


gação que a empresa possui em mitigar o risco criado por ela mesma através
da adoção de boas práticas procedimentais e de organização interna capaz de
garantir o adequado cumprimento da legislação.48
A não observância da obrigatoriedade ética de seguir um programa de
compliance justifica a imputação objetiva da pessoa jurídica por infração rea-
lizada por pessoa física que pertença a seu quadro funcional, ou, pelo menos
autoriza o reconhecimento de culpa in vigilando.
Conclui-se, então, que “o atendimento à exigência da realização de um
programa de compliance seria uma atitude empresarial de fidelidade ao Di-
reito Penal, ou seja, seria a demonstração de obediência à norma”49, digna de
ensejar a mitigação da culpabilidade da empresa. Não fosse assim, estaria
neutralizado qualquer objetivo incentivador que o legislador pudesse querer
dar com a criação da lei.
Cabe, por fim, deixar registrado que o Decreto n. 8.420/2015, regulamen-
tador da responsabilidade administrativa da Lei Anticorrupção, determinou
que, no âmbito do Processo Administrativo de Responsabilização – PAR,
caso a empresa possua em funcionamento Programa de Integridade, esse fato
deve ser levado em consideração para fins da dosimetria das sanções aplica-
das. Assim, diz o parágrafo §4º do artigo 5º do Decreto n. 8.420/2015:
Art. 5º No ato de instauração do PAR, a autoridade designará comissão,
composta por dois ou mais servidores estáveis, que avaliará fatos e cir-
cunstâncias conhecidos e intimará a pessoa jurídica para, no prazo de
trinta dias, apresentar defesa escrita e especificar eventuais provas que
pretende produzir.
[...] § 4º Caso a pessoa jurídica apresente em sua defesa informações e
documentos referentes à existência e ao funcionamento de programa de
integridade, a comissão processante deverá examiná-lo segundo os parâ-
metros indicados no Capítulo IV, para a dosimetria das sanções a serem
aplicadas.

47 “Este tipo de modelo se caracteriza, como ya han puesto de relieve algunos autores, por la esti-
mulación de la autorresponsabilidad empresarial. Dicha estimulación se torna fundamental en el
seno de una sociedad de riesgo en la que gran parte de sus riesgos característicos están someti-
dos al control quasi exclusivo de las organizaciones empresariales. En este sentido, el modelo de
autorresponsabilidad penal empresarial facilita el control (descentralizado) del riesgo y la guía
económica, dando respuesta a las necesidades sociales al mismo tiempo que respetanado la autono-
mía empresarial” (GÓMEZ-JARA, Carlos. Responsabilidad penal de todas las personas jurídicas?
Una antecrítica al símil de la ameba acuñado por Alex van Weeze. Política criminal, v. 5, n. 10,
dez. 2010, doc. 1. Disponível em: <http://www.politicacriminal.cl/Vol_05/n_10/Vol5N10D1.pdf>.
Acesso em: 10 jun. 2017, p. 474).
48 TIEDEMANN, Klaus. Corporate Criminal Liability as a Third Track. Brodowski, Dominik; DE LA
PARRA, Manuel Espinoza de los Monteros; TIEDEMANN, Klaus; VOGEL, Vogel. (Org.). Regula-
ting Corporate Criminal Liability. London: Springer, 2014, p. 14.
49 CABRERA, Michelle Gironda. Compliance e Imputação Objetiva: Criação de Risco Proibido. In:
DAVID, Décio Franco. (Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Com-
pliance e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2015, p. 49.

186
Talyz William Rech

Por sua vez, o Programa de Integridade é tratado no Capítulo IV do De-


creto em questão, e o artigo 41 o conceitua como sendo:
Art. 41. Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade
consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos
e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denún-
cia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de
conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios,
fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração
pública, nacional ou estrangeira.
Parágrafo Único. O programa de integridade deve ser estruturado, apli-
cado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das
atividades de cada pessoa jurídica, a qual por sua vez deve garantir o
constante aprimoramento e adaptação do referido programa, visando
garantir sua efetividade.
O artigo 42 do Decreto 8.420/2015 elenca os critérios objetivos que a co-
missão do PAR deverá observar na análise do Programa de Integridade para
fins de diminuição da multa aplicada ao administrado, fornecendo base para
que a empresa organize seu programa de compliance de acordo com os ditames
da norma legal.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A corrupção consiste em uma série de práticas ilícitas que são de difícil in-
vestigação, uma vez que se revestem de aparência de legalidade. Ela promove,
todos os anos, graves danos ao patrimônio público, refletindo negativamente
no bem-estar da população, ao afetar o montante disponível para investimen-
tos em bens de capital necessários para a infraestrutura do país, e ao reduzir a
qualidade dos serviços públicos prestados.
A Lei Anticorrupção, lei n. 12.846/13, é um dos dispositivos legais mais
importantes à disposição das Autoridades Públicas para promover o efetivo
combate às práticas corruptivas.
Nela, estão previstas condutas que correspondem a infrações administra-
tivas que lesam o patrimônio da Administração Pública, suas sanções e instru-
mentos probatórios úteis voltados a deslindar a existência e a coibir a gênese
dessas práticas.
Dentre os instrumentos trazidos pela lei, estão o Acordo de Leniência, já
utilizado para o combate das infrações contra a ordem econômica, na Lei n.
12.529/11, a Lei Antitruste, bem como o Programa de Integridade, espécie de
compliance empresarial.
O compliance é ferramenta importantíssima para o combate à corrupção,
na medida em que desloca a responsabilidade pela fiscalização das possíveis

187
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

práticas ilícitas para o âmbito interno da empresa.


Um programa de compliance efetivo está ancorado na existência de canais
de comunicação internos aptos a facilitar o acesso dos colaboradores detento-
res de informações privilegiadas ao sistema de fiscalização da companhia e às
autoridades investigativas.
Torna-se necessário, ainda, uma vigorosa legislação voltada a assegu-
rar a proteção ao whistleblower, resguardando-o contra represálias pessoais e
profissionais capazes de dissuadi-lo de trazer a público evidências de ilícitos
econômicos.
Não obstante as deficiências legislativas e a ainda infante experiência bra-
sileira no campo do compliance empresarial, vê-se que há vantagens mútuas
para a Administração Pública e para a empresa envolvida, ao passo que um
Programa de Integridade adequadamente implementado configura-se em ins-
trumento de mitigação da culpabilidade da empresa nele engajada.

7. REFERÊNCIAS
BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo. Barcelona, Espanha: Ediciones Paidós Ibérica, 1998.
BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 10 out. 2017.
BUSATO, Paulo César; RAINALDET, Tracy Joseph. Crítica ao Uso Dogmático do Compliance
como Eixo de Discussão de uma Culpabilidade de Pessoas Jurídicas. In: DAVID, Décio Franco.
(Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Compliance e Direito Penal. São
Paulo: Atlas, 2015.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos; NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminal Compliance e Ética
Empresarial: Novos desafios do Direito Penal Econômico. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2013.
CABRERA, Michelle Gironda. Compliance e Imputação Objetiva: Criação de Risco Proibido. In:
DAVID, Décio Franco. (Org.); GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Com-
pliance e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2015.
DIB, Natália Brasil; LIMA, Sérgio Fernando Ferreira de. Compliance e Sistema Preventivo de Con-
trole sob a Perspectiva dos Crimes contra o Sistema Financeiro. In: DAVID, Décio Franco. (Org.);
GUARAGNI, Fábio André; BUSATO, Paulo César (Coord). Compliance e Direito Penal. São Paulo:
Atlas, 2015.
MOREIRA, Egon Bockmann; BAGATIN, Andreia Cristina. Lei Anticorrupção e quatro de seus
principais temas: responsabilidade objetiva, desconsideração societária, acordos de leniência e
regulamentos administrativos. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, v.12,
n.47, p. 55-84, jul.-set. 2014.
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby; COSTA, Karina Amorim Sampaio. Breves Comentários à Lei
de Responsabilização Administrativa e Civil de Pessoas Jurídicas pela Prática de Atos contra a
Administração Pública, Nacional ou Estrangeira. In: NASCIMENTO, Melilo Dinis do (Org.). Lei
Anticorrupção empresarial: aspectos críticos à Lei n. 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
MORAIS, Flaviane de Magalhães Barros de. A colaboração por meio do acordo de leniência e seus
impactos junto ao Processo Penal brasileiro: um estudo a partir da ‘Operação Lava Jato’. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.24, n.122, p. 93-113, ago. 2016.
MOTA JÚNIOR, João Francisco da. Whistleblowing: proteção legal ao servidor denunciante. Re-

188
Talyz William Rech

vista Jurídica Consulex, ano XVI, n. 367, maio 2012.


GODOY, André Ricardo. Whistleblowing no Direito Penal Brasileiro: análise dos projetos de lei
em tramitação no Congresso Nacional. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 134, ano 25. p.
263-289. São Paulo: Editora RT, ago. 2017.
LIVIANU, Roberto. Corrupção e Direito Penal: Um diagnóstico da corrupção no Brasil. São Paulo:
Quartier Latin, 2006.
TIEDEMANN, Klaus. Corporate Criminal Liability as a Third Track. Brodowski, Dominik; DE LA
PARRA, Manuel Espinoza de los Monteros; TIEDEMANN, Klaus; VOGEL, Vogel. (Org.) Regula-
ting Corporate Criminal Liability. London: Springer, 2014.
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4. ed. rev. atual, e
ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

189
REGULAÇÃO E CORRUPÇÃO: O EFEITO DISSUASOR
DE ARQUITETURAS REGULATÓRIAS EFICIENTES1

Pedro de Menezes Niebuhr2


Arthur Rodrigues Dalmarco3
Luiz Eduardo Altenburg de Assis4

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo pretende investigar a relação entre a regulação e a cor-
rupção. Pode soar intuitivo, para alguns, que a regulação – justamente por pre-
tender conformar comportamentos e, do ponto de vista do Estado, por reduzir
a margem de liberdade dos agentes administrativos – inibe a prática de atos
de corrupção (aqui entendidos de forma ampla, como comportamentos causa-
dores de prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito).
O problema abordado no artigo coloca em perspectiva essa premissa, in-
dagando se ela é, de fato, uma relação verdadeira. A hipótese trabalhada na
presente investigação nega a validade apriorística da associação “mais regula-
ção, menos corrupção”. Para tanto, parte-se de estudos conduzidos no âmbito
das Ciências Econômicas, que admitem a possibilidade de que o aumento da
atividade regulatória pode provocar o incremento das condições necessárias à
prática de atos de corrupção.
Em vista desse cenário, intenta-se apontar qual seria a abordagem mais
eficiente para reduzir a prática de atos de corrupção no âmbito da atividade
regulatória: o desenho de um framework regulatório eficiente, inteligente. Um

1 O presente artigo foi publicado no v. 15 da Revista Direito Público, em 2019.


2 Professor de Direito Administrativo nos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, com estágio de doutoramento (CAPES) na Universidade de Lisboa. Mestre e
graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Instituto de Direito
Administrativo de Santa Catarina (IDASC). Advogado.
3 Doutorando, Mestre (summa cum laude) e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). LL.M. Candidate na Harvard Law School (Class of 2020). Bacharel em Adminis-
tração Empresarial pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/ESAG). Realizou seu
período de doutorado sanduíche (2017/2018), na condição de Visiting Researcher do Department of
Land Economy, na Universidade de Cambridge (UK). É membro-colaborador do EMAE – Grupo de
Estudos Avançados em Meio Ambiente e Economia UFSC/CNPq e do Grupo de Pesquisa em Direito
Público UFSC/CNPq. Advogado Associado de Carvalho, Machado e Timm Advogados e Procurador
da Câmara de Vereadores de Joinville.
4 Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2019). Gradu-
ado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2014). Advogado e sócio do Núcleo de
Direito Administrativo do Menezes Niebuhr Advogados Associados, com ênfase na área de licitações
e contratos administrativos.

190
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

framework regulatório eficiente cria estímulos a comportamentos desejáveis e


desestímulos a práticas indesejáveis, estas sim medidas aptas a reduzir a mar-
gem de custo/benefício de ações corruptas. Isso envolve a simplificação, racio-
nalização, procedimentalização e transparência da regulação.
A pesquisa é desenvolvida em três seções. Inicia-se estabelecendo um
acordo semântico em torno da expressão “regulação” no ordenamento bra-
sileiro, bem como indicando algumas vantagens e problemas atinentes à ati-
vidade regulatória, que justificam a importância do estudo do assunto. Na
seção seguinte, estuda-se as contribuições oferecidas por estudos oriundos
das Ciências Econômicas sobre a relação entre a ampliação do framework re-
gulatório e o incremento na ocorrência de atos de corrupção. A seção final
parte da premissa de que um excessivo quadro regulatório pode induzir ou
propiciar o aumento dos casos de corrupção para estabelecer quais devem ser
os requisitos de um desenho regulatório eficiente, inibidor da ocorrência de
casos de corrupção.
O método de pesquisa utilizado é o dedutivo e a pesquisa bibliográfica.

2. CONCEITO DE REGULAÇÃO NO ORDENAMENTO BRASILEIRO:


VANTAGENS E PROBLEMAS
O substantivo “regulação” é polissêmico. Numa de suas comuns acep-
ções, a regulação é associada a um modelo específico de organização do aparato
administrativo estatal, o modelo regulatório ou de Estado regulador. O modelo
regulatório de Estado pode ser entendido como aquele que, orientado pela
ideia de subsidiariedade, prefere a satisfação de interesses ou finalidades pú-
blicas de forma indireta pelo Estado. Em contraposição ao perfil de atividade
administrativa típica do modelo de Estado prestacional, no modelo regulató-
rio o Estado desincumbe-se da prestação direta daquelas mesmas atividades
para se concentrar na tarefa de regular, fiscalizar e sancionar os agentes priva-
dos, sem praticar a gestão propriamente dita5.
O modelo regulatório se estriba, em grande medida, na importância da
tarefa de normatização, isto é, do estabelecimento de regras ou regulamen-
tos que balizam o exercício da atividade econômica pelos agentes privados
como forma de orientar a consecução de interesses ou finalidades públicas.
Trata-se, essa tarefa, de uma segunda acepção corrente do termo regulação,
que define o objeto da atividade estatal desempenhada. Regulação envolve a

5 No modelo desenvolvido ao longo dos últimos trinta anos, a atuação e a intervenção estatal diretas
foram reduzidas sensivelmente. A contrapartida da redução da intervenção estatal consiste no predo-
mínio de funções regulatórias. Postula-se que o Estado deveria não mais atuar como agente econômi-
co, mas sim como árbitro das atividades privadas. Não significa negar a responsabilidade estatal pela
promoção do bem-estar, mas alterar os instrumentos para realização dessas tarefas. JUSTEN FILHO,
Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 21.

191
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

criação ou desenvolvimento de regras (jurídicas ou técnicas) que condicio-


nam a licitude do desenvolvimento de atividades econômicas pelos agentes
privados. Na acepção de André Saddy, a regulação é uma “espécie de inter-
ferência pública intencional que limita as escolhas dos privados e, até mesmo,
do próprio Poder Público”6.
Nesse ponto, a regulação – isto é, a criação ou desenvolvimento de re-
gramento relacionado ao exercício de atividades privadas – dá-se, precipua-
mente, por dois meios7. O ato emanado do Poder Legislativo, que cria ou
extingue obrigações e direitos, é a forma tradicional.
É fato, contudo, que a atividade normativa tradicional, desempenhada
por representantes eleitos nos parlamentos, não necessariamente possui a ap-
tidão técnica e a responsividade necessária para fornecer soluções apropria-
das a problemas cada vez mais complexos.
É característica própria do parlamento a pluralidade de interesses an-
tagônicos ou discrepantes, inerentes ao jogo político. O debate que culmina
com a edição de determinado diploma normativo é permeado por interesses
divergentes, de grupos de pressão distintos que se fazem ouvir no parlamen-
to. É por isso que, muitas vezes, determinado regramento que a priori haveria
de ser preponderantemente técnico, acaba sofrendo intervenções ideológicas
inconvenientes à tarefa regulatória do Estado.8
Noutro plano há, como aponta Marçal Justen Filho, o risco de que a
matéria regulada, por remeter essencialmente a aspectos eminentemente
técnicos de decisões, não receba aceitação popular. Como as decisões políti-
cas nem sempre são norteadas pela realização do bem comum, mas também
pela intenção de perpetuação no poder, soluções de cunho regulatório menos
adequadas correm o risco de serem tomadas por pretenderem muitas vezes
captar a simpatia do eleitor.9
Diante desse quadro, surge como alternativa a transferência, do Legis-
lativo para o Executivo, da prerrogativa da criação ou do detalhamento de

6 O conceito de regulação estatal, em Saddy, é o seguinte: “(I) Trata-se de uma interferência pública
intencional; (II) por meio de normas jurídicas, decisões políticas, judiciais e administrativas; (III) que
indique, induza ou imponha, proíba ou permita as escolhas para quem a norma é dirigida; e (IV) que
vise atingir e respeitar os mais diversos interesses públicos relacionados à interferência”. (SADDY,
André. Regulação Estatal, Autorregulação Privada e Códigos de Conduta e Boas Práticas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 33).
7 Defendendo uma noção mais ampla dos meios de regulação, Saddy destaca a ocorrência de decisões
regulatórias anteriores às normas jurídicas (decisões políticas, que definem a orientação governativa
em debates parlamentares) e a função jurisdicional reguladora (exercida pelos Tribunais) (SADDY,
André. Elementos e características essenciais da concepção de regulação estatal. Revista de la escue-
la jacobea de posgrado, n. 11, p. 1-33, 2016).
8 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética,
2002, p. 42.
9 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética,
2002, p. 42.

192
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

normas técnicas e jurídicas a partir de uma permissão, genérica, concedida


pelo primeiro ao segundo para aquele fim.
No Estado regulador ganha destaque, assim, a atividade regulatória de-
senvolvida, com permissão genérica na lei, pela Administração Pública. A
Administração Pública, antes prestadora direta de atividades vocacionadas
à satisfação de interesses públicos, passa a ser dotada da prerrogativa, legal-
mente autorizada por lei, de intervir no âmbito privado para definir o modo
pela qual a atividade econômica deve ser exercida pelos agentes particulares.
Essa intervenção, como aponta Odete Medauar, envolve a edição de normas,
a fiscalização do seu cumprimento, a atribuição de habilitações, a aplicação
de sanções e a medição de conflitos.10
O ápice desse modelo é traduzido pelas agências reguladoras indepen-
dentes. Tratam-se, como aponta Luis Roberto Barroso, de “autarquias espe-
ciais, que desempenham funções executivo-administrativas, normativas e
decisórias, dentro de um espaço de competências deferido por lei”.11
Na percepção de Justen Filho, o advento das agências reguladoras in-
dependentes se estriba na tentativa de superar o rompimento da linha ló-
gica na produção normativa, causada pela temporariedade dos mandatos
dos representantes políticos. Com as agências busca-se: a) a dinamização
da produção normativa, tornando, em primeiro lugar, célere o processo de-
cisório pela redução do interregno necessário ao debate e à edição de nor-
mas legislativas, assim como conferindo à decisão comprometimento com
critérios técnicos, por congregar, em seu corpo, pessoal especializado nos
conhecimentos relacionados aos temas de sua competência; b) a concentra-
ção de competências regulatórias, uma vez as agências estruturarem-se em
órgãos permanentes e estáveis, o que significa uma linha de continuidade
na produção regulatória; c) a ampliação do controle social sobre a atividade
regulatória do Estado, através de imposição de deveres de transparência
e publicidade de suas iniciativas, antes ofuscadas quando empreendidas
pelo Legislativo e Executivo em face da vasta quantidade de providências
tomadas por aquelas esferas; d) a possibilidade de controle jurisdicional so-
bre o mérito da decisão regulatória, que, antes restrita ao controle de cons-
titucionalidade do ato legislativo, passa a incidir sobre a congruência de
fundamentos tecnológicos ou científicos à decisão propriamente dita; e) a
produção de credibilidade política, consubstanciada na expectativa positi-
va sobre a sociedade decorrentes do desempenho satisfatório, equilibrado,
imparcial e eficiente de determinada agência; f) produção de cooperação

10 MEDAUAR, Odete. Regulação e auto regulação. Revista de direito administrativo, v. 228, 2002, p.
127.
11 BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição e transformações do Estado e legiti-
midade democrática. Revista de direito administrativo, v. 229, 2002, p. 310.

193
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

entre o Estado e a comunidade, fomentada pela continuidade de políticas e


pela previsibilidade da forma de atuação do Estado, o que induz à adoção
de condutas equivalentes pelos particulares; g) o fracionamento de poder e
ampliação de controles, já que são as agências núcleos de poder, reduzin-
do o poder centralizado e ampliando instrumentos de acompanhamento e
fiscalização de atividades estatais, através, inclusive, da participação e do
acesso dos interessados no processo decisório.12
Para Floriano Azevedo Marques Neto, uma das vantagens da atividade
desenvolvida pelas agências repousa no controle. Segundo o autor, ao exercer
as competências que lhes são próprias, as agências introduzem mecanismos
que tendem a reduzir a atuação discricionária do Estado, na medida em que
são veiculadas, na edição de regulamentos, “condições, critérios, conceitos e
parâmetros que o regulador adotará ao editar atos concretos no exercício de
suas competências”, que “antes de afrontar o princípio da legalidade, confere
uma maior estabilidade à regulação na medida em que a edição destas nor-
mas serve para autolimitar a discricionariedade do regulador”.13
Ocorre que também no âmbito da Administração Pública há descone-
xão regulatória. Neste aspecto, sublinha-se o problema da composição e do
preenchimento dos cargos de órgãos, de onde emanam decisões adminis-
trativas de cunho regulatório. Para atender a pressupostos de governabili-
dade, costuram-se, rotineiramente, arranjos políticos em cuja contrapartida
ao apoio ao interesse do governo está a ocupação de postos estratégicos de
órgãos governamentais. Consequentemente, o preenchimento de cargos a
partir de critérios variáveis e o despreparo técnico dos agentes responsáveis
pela regulação reflete nas decisões de natureza regulatória, haja vista que
a composição dos postos de comando torna-se resultado de processo de
barganha política, adequado, muitas vezes a interesses privados e não da
coletividade.14
Toda esta sorte de fatores – de expansão da seara regulatória estatal e
da edição de normas orientadas segundo critérios estranhos ao verdadeiro
interesse público – acabou por conduzir a uma situação de normatização ex-
cessiva, desconexa, que impede a obtenção de melhores resultados. Ademais,
a multiplicação de agências e comissões tornou a disciplina contraditória, a
ponto de existirem centenas de regras sobre um mesmo assunto, muitas inú-

12 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética,
2002, p. 360-369.
13 MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Discricionariedade e Regulação Setorial – O Controle dos
Atos de Concentração por Regulador Setorial. In ARAGÃO, Alexandre Santos (Coord.). O poder
normativo das agências reguladoras. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011p. 542-453).
14 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética,
2002, p. 42.

194
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

teis e outras incompatíveis entre si.15 É de se suspeitar, diante desse quadro,


que haja uma conexão direta entre regulação e corrupção.

3. A RELAÇÃO ENTRE REGULAÇÃO E CORRUPÇÃO. AS


CONTRIBUIÇÕES DAS CIÊNCIAS ECONÔMICAS PARA O
ENFRENTAMENTO DO PROBLEMA
O debate sobre o tema regulação, no Brasil, muitas vezes debruça-se
sobre falsas dicotomias16. Via de regra, tais dicotomias são ilustradas por
discussões que visavam responder a perguntas como “se é necessário apro-
fundar a regulação, ou desregular completamente?”, ou, “desregular parcial-
mente, ou aprimorar a regulação existente?”, entre outras.
Não obstante, a questão de fundo que deveria fundamentar o debate
sobre o papel do Direito em face do fenômeno da corrupção deveria ser a
seguinte: um framework regulatório mais abrangente (horizontal e vertical-
mente17) implica aumento na frequência de atos de corrupção?
Ao se colocar a questão dessa forma, é possível evitar riscos inerentes
a perspectivas abstratas, trazendo o foco do estudo de volta aos agentes que,
de fato, praticam atos de corrupção. Compreender, ponderar e mensurar os
incentivos a que pessoas reais estão submetidas ao adotarem condutas ilícitas
é, sobremaneira, mais relevante do que debater idealmente quais os melho-
res comportamentos possíveis em situações concretas. Sustentamos aqui que
identificar e eliminar tais incentivos, criando-se ambientes regulatórios de-
sestimuladores dessas condutas pode gerar, com maior grau de sofisticação,
resultados positivos.
Tais premissas, como sabido, tem origem na teoria econômica, cujo pa-
radigma dominante é a chamada Teoria da Escolha Racional18, que pressupõe
que agentes econômicos buscam maximizar sua utilidade marginal em oca-
siões onde uma tomada de decisão se impõe. Dito de outro modo, a teoria

15 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética,
2002, p. 43.
16 Referimo-nos aqui a “falsas dicotomias” na medida em que a imposição de um debate superficial-
mente ideológico, comumente estereotipado, foi e continua sendo nocivo para a produção acadêmica
a respeito do tema. Entendemos que o aprofundamento do tópico deve passar necessariamente por
um processo de sofisticação do debate, que não gire exclusivamente em torno do binômio “liberda-
des individuais” x “interesse público”, ou “regulação” x “desregulação” – até porque, em não raras
oportunidades, conceitos como o de “interesse público” são de tal modo polissêmicos, que se acaba
por perder de vista o problema concreto que ensejou o debate em si.
17 Utilizam-se os termos “horizontal” e “vertical” para designar, respectivamente, as manifestações do
poder estatal que condicionam de modo imperativo (i) larga quantidade de searas de interação social
(como marcos regulatórios de setores econômicos, e (ii) segmentos específicos, em nível micro, à
exaustão (como o setor bancário, subconjunto do sistema financeiro).
18 A Teoria da Escolha Racional é diretamente derivada do conceito de razão instrumental, estando ali-
cerçada sobre o pressuposto de que toda ação humana é uma expressão da racionalidade dos agentes,
em um processo consciente de compatibilização entre fins objetivados e meios escassos para atingir
tais fins.

195
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

pressupõe que todo agente busca maximizar os resultados de suas escolhas,


após ponderar os possíveis resultados das alternativas disponíveis, com as
informações a que tem acesso.
A Teoria da Escolha Racional é, como se observa, extremamente útil
como ferramenta complementar a análises jurídicas. Diferentemente de abor-
dagens normativas, ela permite avaliar com boa condição de clareza as pre-
ferências reveladas dos agentes. Desse modo, para sua utilização, não é neces-
sário indagar quais os motivos subjetivos que levam algum indivíduo a agir
de determinada forma – antes, a teoria nos fornece uma perspectiva interes-
sante para que possamos compreender os motivos que levam um indivíduo a
optar racionalmente por adotar um comportamento “corrupto”, sejam quais
forem suas motivações ocultas.
Não por acaso, Susan Rose-Ackerman19, uma das referências mundiais
no tema, faz uso reiterado de tal premissa em suas análises. Como o objetivo
da presente abordagem não é desenvolver argumentos em favor de méto-
dos específicos, importa apenas pontuar que tal premissa de racionalidade,
nos termos expostos, é essencial para uma análise razoavelmente realista do
comportamento esperado de agentes, ao serem submetidos a determinados
incentivos jurídico-regulatórios.
Estabelecidas tais premissas, toma-se o que Rose-Ackerman afirma ao
analisar um tipo específico de corrupção (pagamentos de propinas) envol-
vendo agentes privados (firmas ou indivíduos) e agentes estatais:
Uma vez que tempo é dinheiro, firmas e indivíduos pagarão para evitar
atrasos. Em muitos países um telefone, um passaporte, ou uma carteira
de motorista não podem ser obtidos rapidamente sem o pagamento de
propinas. Há vezes em que o serviço está disponível apenas para o cida-
dão corrupto, mas não para o paciente e honesto. [...] Um estudo sobre
a economia informal na Ucrânia listou os níveis de propinas para uma
variedade de serviços necessários ao setor privado. A maior parte das
firmas informaram o pagamento de “taxas” para importação e expor-
tação. Linhas telefônicas invariavelmente envolviam um “pagamento
informal”. [...] O custo de lidar com agentes de Estado por meio de pro-
pinas induz muitas firmas a operar no setor informal, e muitas outras a
subfaturar vendas, custos e ou o pagamento de propinas. As perdas para
o Estado são grandes e, adicionalmente, o nível dos pagamentos desen-
coraja investimentos e a entrada de novas firmas.20
Os exemplos são inúmeros e, embora fossem necessários estudos

19 Susan Rose-Ackerman é a Henry R. Luce Professor de Direito e Ciência Política da Universidade de


Yale. Sua maior obra no campo, até o momento, é a festejada “Corruption and Government: Causes,
Consequences and Reform”, a qual recorreremos para demonstrar a aplicabilidade de certos elemen-
tos da teoria econômica na análise dos fenômenos da regulação e da corrupção.
20 ROSE-ACKERMAN, Susan; PALIFKA, Bonnie J. Corruption and Government: Causes, Conse-
quences and Reform. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p. 53-54, tradução própria.

196
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

empíricos específicos para cada tipo de comportamento legalmente consi-


derado como corrupção, caso se opte pela análise dentro do instrumental
econômico proposto, é possível concluir que a tomada de decisão, também
nesses casos, transita por um simples cálculo de custo-benefício por parte
dos agentes envolvidos.
Ao se dissecar os interesses a serem maximizados em um cenário simu-
lado, tem-se: (i) um agente privado disposto a auferir um benefício imediato
(i.e. pagamento de propina para obtenção de uma licença ambiental) ou me-
diato (favorecimento em futuros contratos administrativos com o Estado, por
exemplo); (ii) agentes estatais que estejam igualmente dispostos a auferir um
benefício imediato (como receber contraprestação pecuniária pelo comporta-
mento ilegal) ou mediato (a exemplo de favorecimentos em futuras indica-
ções para cargos superiores ou promoções); (iii) um framework regulatório21
falho, que crie obstáculos aos mecanismos de punição22, gerando baixos cus-
tos e elevados benefícios para quem pratica atos de corrupção.
Embora o item (iii) aparente ilustrar o óbvio, larga parcela de juristas,
excessivamente dogmáticos, perdem referidas assertivas de vista ao analisa-
rem problemas de natureza complexa exclusivamente sob lentes jurídicas.
Ora, havendo (a) uma arquitetura regulatória que declara que determina-
dos comportamentos são juridicamente inaceitáveis e, portanto, ilícitos; (b)
juristas excessivamente preocupados com abordagens normativas (como os
agentes deveriam ser e agir, em contraposição a como de fato são e agem); e
(c) um resultado sistêmico que contradiz a declaração em (a) e indica sérios
problemas na abordagem utilizada em (b), resta retornar às afirmações mais
evidentes e dela partir para novas direções.
Nesse sentido, importantes pesquisas oriundas do campo da Ciência
Econômica procuram investigar se existe uma relação de implicação causal entre
“mais” regulação e atos de corrupção.
Com objetivo semelhante em vista, George R. G. Clarke23 desenvolveu
estudo empírico em que indagou se “regulação excessiva gera corrupção”,
analisando dados de mais de 30 mil empresas, em 100 países com renda
considerada como média ou baixa pelos padrões do Banco Mundial. O obje-
tivo de sua pesquisa, diga-se, é esclarecer a potencial relação de causalidade
entre regulação e corrupção, questão que via de regra orbita o campo da

21 Aqui nos referimos a framework regulatório como o conjunto de estruturas jurídico-administrativas


legais e infralegais que estruturam o ambiente jurídico de tomada de decisão de agentes, sejam estes
públicos ou privados.
22 Mecanismos de punição devem ser compreendidos como o aparato de instituições e conjunto de
institutos jurídicos que permitem a apuração e responsabilização por atos considerados ilícitos – no
presente caso, atos de corrupção.
23 Professor Associado de Economia na Universidade do Texas A&M e ex-pesquisador sênior do Banco
Mundial.

197
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

retórica em estudos puramente jurídicos. Afinal, seria a corrupção gerada


pelo excesso de regulação, ou a própria corrupção produziria incentivos
para mais regulação?
Entre os resultados encontrados pelo economista, um é particularmente
interessante: o aumento no tempo que empresários gastam lidando com exi-
gências regulatórias, considerando-se os percentis 25 e 75 da série de dados
como parâmetro, importam aumento na probabilidade média em favor do
pagamento de propinas da ordem de 42%.
Embora seja intuitivo supor que uma maior extensão da atividade
regulatória possua uma correlação forte com atos de corrupção, testes es-
tatísticos de causalidade são muito mais criteriosos que aqueles de mera
correlação. Assim, apenas um estudo robusto poderia avaliar se a criação
de novos espaços de interação entre reguladores e regulados favorece, ou
não, atos de corrupção.
A temática sob a presente perspectiva, no entanto, não é nova. Desde
Knack e Keefer (1995) é sabido que a atividade regulatória é mais onerosa em
países corruptos do que em outros, menos corruptos. Nesse sentido e a título
de exemplo, mais recentemente Langbein e Knack (2010) demonstraram com
base em relatórios de experts que os níveis de corrupção envolvendo ativida-
des estatais é mais elevado em países que possuem arquiteturas regulatórias
mais “onerosas” – seja por sua complexidade, burocracia ou demora em
concluir procedimentos administrativos. Não por acaso, níveis elevados de
corrupção também são fortemente correlacionados com outras variáveis rele-
vantes: em países onde o tempo para operacionalização de novos negócios e
empresas é elevado, tem-se o mesmo cenário.24
Embora essas sejam afirmações gerais embasadas em estudos empíri-
cos, convém ater-se aos detalhes que ensejaram a conclusão do autor acerca
do assunto. Tais detalhes são importantes em razão do dilema anteriormente
exposto: se regulação pode provocar corrupção, o contrário é também uma
possibilidade. Casos mencionados por Clarke descrevem agentes estatais
que criam novas regulações a esmo com o objetivo exclusivo de extraírem, a
posteriori, propinas dos agentes privados; ou, ainda, meramente atrasarem o
desenvolvimento regular de trâmites administrativos com o mesmo objetivo,
entre outros. Nesse cenário, como isolar a causalidade em um sentido (regu-
lação > corrupção) ou em outro (corrupção > regulação)?
Primeiro, importa estabelecer que o conceito de corrupção empregado
por Clarke é definido com base na preocupação quantitativa de estimar, mo-

24 SVENSSON, Jakob. Eight questions about corruption, Journal of Economic Perspectives, v. 19,
2005, p. 19-42.

198
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

netariamente, quanto é gasto pelas firmas para atender pedidos de propinas


por parte de agentes públicos. Em função de seu histórico de pesquisas para
o Banco Mundial, o autor é assertivo ao dissecar a estrutura do questioná-
rio empregado para levantar informações relevantes para sua modelagem. A
questão chave, envolvendo os aspectos regulatórios, foi formulada da seguin-
te maneira: “em uma típica semana dos últimos 12 meses, qual percentual de
tempo de diretores sêniores foi gasto lidando com requerimentos impostos
por regulações governamentais?”.
Descartando a possível endogeneidade estatística do estudo ao refinar
as respostas dos diretores de empresas25, Clarke elaborou duas regressões es-
tatísticas separadas, com a finalidade de definir (i) em que ponto as empresas
estarão inclinadas a pagar propinas e (ii) quanto estarão dispostas a pagar de
propina, uma vez que se atinja o nível de (i).
Sem adentrar nos detalhes matemáticos do estudo, importa dizer que
entre as variáveis dependentes utilizadas pela regressão, consideradas pelo
autor, tem-se características como o tamanho das empresas, número de só-
cios, idade e performance (contábil-financeira).
Quanto aos resultados obtidos por Clarke26, pode-se destacar entre os
mais relevantes: (a) diretores que gastam mais tempo lidando com o cum-
primento de exigências regulatórias são mais propensos ao pagamento de
propinas; (b) ademais, esses mesmos diretores tem a propensão de pagar
quantias maiores do que aqueles que passam menos tempo cumprindo as
mesmas exigências; (c) na média, diretores tem uma chance de 13% de paga-
rem propinas a agentes públicos, quando se encontram no 25º percentil em
termos de tempo gasto com cumprimento de exigências regulatórias; (d) de
forma contrastante, diretores possuem uma probabilidade de 23% de paga-
rem propinas quando se encontram no 75º percentil da amostra estudada; (e)
segundo o estudo, para cada 1% de aumento no tempo gasto com o cumpri-
mento de exigências regulatórias, tem-se o aumento de 0,1% na quantia paga
em propinas por diretores.
Os resultados encontrados são consistentes com estudos anteriores,
como o de Goel. Neste, o autor identificou que o número total de regulações,
bem como o número de procedimentos e tempo médio envolvido no cumpri-
mento de exigências em quatro categorias (abrir uma nova empresa, licencia-

25 Clarke, basicamente, fez uso de dois instrumentos distintos para refinar as respostas obtidas. A pri-
meira, foi o número de vezes que autoridades inspecionaram as firmas como um indicador do fardo
regulatório – firmas que se recusam a pagar propinas podem adotar a postura de evitar, sempre que
possível, contato com setores públicos que as exigem. O segundo instrumento, utilizado como indi-
cador de robustez do estudo, é a média obtida a partida das respostas de diretores de outras firmas, na
mesma cidade, setor e tamanho do grupo econômico.
26 CLARKE, George R.G. Does Over-Regulation Lead to Corruption? College Station: Texas A&M
International University, 2014, p. 7.

199
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

mentos, registro de propriedade e tributação) produzem cenários de maior


corrupção. Dado relevante, incrementos na regulação das áreas “abertura de
novas empresas” e “registro de propriedade” são os que produzem o maior
aumento na frequência de atos de corrupção.
Dos relevantes estudos expostos, o que se pode extrair com algum grau
certeza é que não apenas há uma forte correlação entre o tamanho e a quali-
dade do fardo regulatório e a ocorrência de atos de corrupção, como há uma
comprovada relação de causalidade entre a ampliação do framework regulatório e um
aumento na frequência de tais atos – podendo ser potencializada, a depender
do setor regulado.
Considerando-se todos os níveis em que a arquitetura regulatória se
estabelece (seja legal ou infralegal), impondo novos fardos sobre firmas e in-
divíduos de setores variados, pode-se vislumbrar, ainda que de forma turva,
a dimensão real do problema. Parece, portanto, que um debate sobre maior
eficiência regulatória, enquanto caminho para contornar o problema da cor-
rupção sistêmica, necessariamente pressupõe a disposição em se debater: (i)
a simplificação, e por consequência redução, da amplitude do framework re-
gulatório; e (ii) mecanismos que incorporem melhores práticas internacionais
quanto à criação de novos desenhos regulatórios, independentemente dos
setores envolvidos.
Não se defende, contudo, uma panaceia. A adoção de melhores práti-
cas, como se sabe, raramente está adstrita ao mero exercício de revogação
e criação de regras tipicamente administrativas (infralegais) – antes, pode
envolver a alteração de marcos regulatórios inteiros, em nível legal, para que
se viabilize um posterior ajuste em nível operacional por agentes públicos e
as instituições a que pertencem.

4. RUMO A UMA REGULAÇÃO INTELIGENTE


No tópico anterior, foram apresentados estudos empíricos embasados
em métodos estatísticos, que identificaram uma forte correlação entre a prá-
tica de atos de corrupção em setores regulados e o tamanho/qualidade do
framework regulatório. A partir dessa constatação, é possível afirmar que a
complexidade da regulação, a burocracia e a demora na conclusão de pro-
cedimentos são fatores que incentivam agentes econômicos a praticarem
corrupção como subterfúgio às deficiências sistêmicas, ao passo que um
framework regulatório melhor estruturado é também mais eficiente no com-
bate à corrupção27.

27 Diferentemente de parcela preponderante da doutrina nacional, o presente estudo não tem a pretensão
de identificar no ordenamento jurídico limitações legais e/ou constitucionais ao exercício da com-
petência regulatória (legalidade, proporcionalidade, subsidiariedade, etc). Tomando-se como pressu-

200
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

Sob esse enfoque, surge a necessidade de identificar parâmetros objeti-


vos que possam nortear a elaboração de um framework regulatório eficiente,
que desestimule o recurso a “atalhos” por parte dos agentes econômicos para
contornar “dificuldades” regulatórias e/ou institucionais, ao passo que tam-
bém impeça que os agentes estatais imponham essas mesmas “dificuldades”
para oferecer “facilidades”.
Pelo que já foi exposto, seria intuitivo, quase auto evidente, concluir que
esses parâmetros perpassam pela simplificação do framework regulatório e
pela redução da burocracia e da máquina estatal. É que, com a simplificação
do framework regulatório, à luz dos estudos trazidos no tópico anterior, os
agentes econômicos gastariam menos recursos com regulação e burocracia,
tornando-se menos propensos à prática de corrupção.
O problema é que essa constatação, tomada isoladamente, desconsi-
dera que a corrupção, segunda a conhecida fórmula de Robert Klitgaard28,
resulta da soma de monopólio do poder e da discricionariedade dos agen-
tes estatais, menos transparência e responsabilidade29 (C = M + D – A). Disso
resulta que toda estratégia de combate à corrupção deve necessariamente
reduzir o monopólio do poder, limitar a discricionariedade e aumentar a
transparência, sem perder de vista os custos diretos e indiretos da adoção
de cada alternativa.
Sob tal perspectiva, logo se vê que a simplificação do framework regu-
latório não é tarefa fácil, já que o excesso de regulação nada mais é do que
uma tentativa de limitar a discricionariedade dos agentes estatais, da mesma
forma como a burocracia não tem outra finalidade senão o controlar o mer-
cado regulado, inclusive no que diz respeito a práticas de corrupção. Ou seja,
regulação e burocracia foram instituídos para aumentar a segurança jurídica
e o controle nos setores regulados e não para reduzi-los, muito embora, aca-
bem por favorecer a corrupção quando implementados em demasia, como
constatado no tópico anterior.
Essas aparentes tensões entre excesso de regulação e discricionarieda-
de e entre burocracia e falta de controle/transparência demonstram que uma

posto as limitações constitucionais à atividade regulatória, busca-se a definição de parâmetros gerais


para concepção de sistemas regulatórios eficientes no combate à corrupção. Esses parâmetros, por
certo, haverão de ser conciliados com outros parâmetros voltados à realização de objetivos setoriais
igualmente legítimos e que, logicamente, influenciarão diretamente no desenho regulatório de cada
setor. O combate à corrupção não é um fim em si mesmo, mas um meio para a realização do interesse
público que justifica a intervenção estatal através da atividade regulatória, daí porque jamais será o
único objetivo a nortear a edição de normas de conduta.
28 KLITGAARD, Robert. Corrupt cities: a practical guide to cure and prevention. Washington: World
Bank, 2000, p. 27.
29 Em verdade, a expressão accountability, contemplada na formulação de Klitgaard, possui um signi-
ficado muito mais amplo, que remete à obrigação de prestar contas sobre determinada atividade com
regularidade, transparência e responsabilidade, à sociedade civil e/ou aos órgãos de controle.

201
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

solução que simplesmente remeta o regulador a uma redução irracional do


tamanho do framework regulatório pode produzir resultado oposto ao preten-
dido, vale dizer: incentivar a corrupção a partir da concentração do poder nas
mãos de uns poucos (aumento do monopólio do poder), cuja competência
decisória já não estaria limitada e nem fiscalizada na mesma medida (au-
mento da discricionariedade e diminuição da transparência e do controle).
Noutros termos, a supressão indiscriminada de regulamentos pode ser tão
nociva quanto a multiplicação de regras para suprir deficiências conjunturais
que contribui na complexidade do framework regulatório.
O grande desafio, portanto, consiste em identificar parâmetros de re-
gulação que simplifiquem o framework regulatório sem aumentar substan-
cialmente a competência discricionária dos agentes estatais, nem reduzir
substancialmente o controle e a transparência das atividades reguladas. Esse
processo de simplificação racional do framework regulatório exige uma maior
preocupação com a qualidade da regulação, objetivamente aferida, em detri-
mento da complexidade do framework regulatório, principalmente quando se
considera que são as regulações eficientes que previnem o desenvolvimento
de um ambiente propício à corrupção. Em termos objetivos: o incremento
da eficiência da regulação pode servir, em tese, como forte desestímulo aos
agentes públicos e privados praticarem atos de corrupção.
Entretanto, antes de se falar em regulação de qualidade, é preciso ter
em mente que uma regulação pode ser considerada boa ou má sob diversos
aspectos. É a advertência de Robert Baldwin, que elenca cinco critérios pelos
quais um sistema regulatório pode ser avaliado: a) adequação à lei (legalida-
de); b) mecanismos de controle, fiscalização, responsabilização (accountabi-
lity); c) procedimentos justos, acessíveis e abertos (devido processo legal); d)
expertise dos agentes reguladores; e) eficiência (atingimento dos resultados
fixados pelo legislador e/ou atingimento de resultados eficientes indepen-
dentemente do critério estabelecido pelo legislador).
Em que pese a pluralidade de critérios, estudos empíricos e méto-
dos comparativos têm identificado determinadas características comuns
às regulações eficientes, tal como o fez a Organização para a Coopera-
ção e Desenvolvimento Econômico – OCDE, ao recomendar a adoção de
doze princípios que devem nortear a boa regulação, nomeadamente: (i)
assunção do compromisso no mais alto nível político com uma política
explícita de qualidade regulatória para o governo como um todo; (ii) res-
peito aos princípios de um governo aberto (transparente e participativo);
(iii) estabelecimento de mecanismos e instituições para supervisão dos
procedimentos regulatórios; (iv) integração da Avaliação do Impacto Re-
gulatório (AIR) a todas etapas de novas propostas de regulação; (v) cons-

202
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

tante revisão do estoque regulatório em relação aos objetivos definidos


pela política; (vi) publicação de relatórios de desempenho da atividade
regulatória; (vii) desenvolvimento de políticas que fortaleçam as funções
e a confiança nas agências reguladoras; (viii) asseguração da efetividade
dos sistemas de revisão da legalidade e imparcialidade processual das re-
gulações, além da aplicação de sanções; (ix) aplicação de instrumentos de
avaliação, gestão e estratégias de comunicação dos riscos para a concep-
ção e implementação das regulações; (x) coordenação de diferentes níveis
de governo para promover coerência regulatória; (xi) desenvolvimento da
capacidade de gestão e desempenho regulatório nos níveis subnacionais;
(xii) consideração de todos os padrões internacionais relevantes e as estru-
turas de cooperação na mesma área. 30 31
Naturalmente, nenhum desses princípios deve ser considerado isolada-
mente. A boa regulação deve reunir a todas essas características, em maior ou
menor grau, a partir de uma análise de custo-benefício que deve ser efetivada
a partir de um processo racional de simplificação do framework regulatório que
não descuide da qualidade da regulação. De maneira geral, com base nesses
princípios, pode-se dizer que a atividade regulatória deve ser simplificada, ra-
cional, procedimentalizada e transparente.

4.1. SIMPLIFICAÇÃO
Para que esse processo racional de simplificação seja efetivado em uma
regulação já existente, antes de tudo, é imprescindível que se realize uma
avaliação criteriosa de todo o conjunto de normas, a fim de identificar quais
regulamentos podem ser eliminados, quais podem ser simplificados e quais
exigem maior efetividade.32
Não se descura que qualquer avaliação mais ampla do framework regu-
latório encontrará dificuldades para lidar com a quantidade infindável de
atos normativos, que não raro fazem remissão a outros atos normativos já
revogados ou que se encontram materialmente ultrapassados. Para mitigar
esse problema, pode-se recorrer a um processo de compilação e, a depender
de condições políticas, de consolidação33 dos diversos atos normativos vi-

30 OCDE. Recomendação do Conselho sobre Política Regulatória e Governança. Paris, 2012, p. 4.


31 De modo semelhante, após implementar importantes estudos sobre o tema, também o Banco
Mundial sugere seus próprios princípios da boa regulação (2004, p. 92): (i) simplificar e des-
regular mercados competitivos; (ii) assegurar direitos de propriedade; (iii) expandir o uso da
tecnologia; (iv) reduzir a interferência dos tribunais em matéria de negócios; (iv) implementar
um processo de reforma continuada. Ainda, vale destacar os princípios adotados pela Better Re-
gulation Task Force – órgão pioneiro criado pelo Governo Britânico para melhorar a atividade
regulatória: (i) proporcionalidade; (ii) accountability; (iii) consistência; (iv) transparência; (v)
adequação (BRTF, 1997, p. 1).
32 ROSE-ACKERMAN, Susan; PALIFKA, Bonnie J. Corruption and Government: Causes, Conse-
quences and Reform. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p. 584.
33 Nos termos do § 1º do artigo 13 da Lei Complementar nº 95/1998, “A consolidação consistirá na

203
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

gentes em um mesmo diploma normativo, o que possibilita visão global que


também auxilia na simplificação do framework regulatório.
No Brasil, o processo de compilação e consolidação regulatória é pre-
visto no artigo 13 da Lei Complementar nº 95/1998, cujo § 1º estabelece
que “A consolidação consistirá na integração de todas as leis pertinentes
a determinada matéria num único diploma legal, revogando-se formal-
mente as leis incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance
nem interrupção da força normativa dos dispositivos consolidados”. O
dispositivo também se aplica aos órgãos e entidades da Administração
direta e indireta, no que se refere à consolidação de seus respectivos atos
normativos em nível infralegal34.
No âmbito da consolidação normativa, o § 2º do artigo 13 da Lei Com-
plementar nº 95/1998 admite a implementação de alterações para simplificar
a legislação consolidada, como a fusão de disposições repetitivas ou de valor
normativo idêntico; atualização da denominação de órgãos e entidades da
Administração Pública; atualização de termos antiquados e modos de escri-
ta ultrapassados; atualização do valor de penas pecuniárias, com base em
indexação padrão; eliminação de ambiguidades decorrentes do mau uso do
vernáculo; homogeneização terminológica do texto; supressão de dispositi-
vos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (observado
o artigo 52, X, da Constituição Federal); indicação de dispositivos não recep-
cionados pela Constituição Federal e declaração expressa de revogação de
dispositivos implicitamente revogados por leis posteriores.
Com efeito, muito embora a compilação e consolidação dos atos nor-
mativos, por si só, não reduza materialmente o tamanho do framework re-
gulatório, é fora de dúvida que simplifica a sua complexidade35 e viabiliza
o exame proposto por Rose-Ackerman sobre quais regulamentos devem ser
eliminados, simplificados e melhorados a partir de uma análise sistêmica do
arcabouço regulatório. Trata-se de estratégia que produz resultados de curto
prazo e encontra menos obstáculos de ordem política, já que não produz mo-
dificações reais no conteúdo normativo do framework regulatório.

integração de todas as leis pertinentes a determinada matéria num único diploma legal, revogando-se
formalmente as leis incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance nem interrupção da
força normativa dos dispositivos consolidados”.
34 Dispõe o artigo 16 da Lei Complementar nº 95/1998 que “Os órgãos diretamente subordinados à Pre-
sidência da República e os Ministérios, assim como as entidades da administração indireta, adotarão,
em prazo estabelecido em decreto, as providências necessárias para, observado, no que couber, o
procedimento a que se refere o art. 14, ser efetuada a triagem, o exame e a consolidação dos decretos
de conteúdo normativo e geral e demais atos normativos inferiores em vigor, vinculados às respec-
tivas áreas de competência, remetendo os textos consolidados à Presidência da República, que os
examinará e reunirá em coletâneas, para posterior publicação”.
35 De acordo com o relatório do Banco Mundial, “Consolidações servem ao interesse dos cidadãos,
das autoridades administrativas e dos agentes econômicos, ao prover um arcabouço regulatório mais
acessível e tem a vantagem de fazer com que a lei seja mais compreensível” (2010.p. 28)

204
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

4.2. RACIONALIZAÇÃO
O resultado esperando com a racionalização é impedir a intervenção
ilógica, abusiva e arbitrária do ente regulador. Para tanto, uma visão prag-
mática sobre a funcionalidade da estrutura regulatória é imprescindível,
de modo que qualquer projeto de reforma (abrangente ou setorial) não
poderia ser sustentado meramente por “palpites” ou impressões pessoais
– por maior que seja a autoridade de seus interlocutores. Na esteira dos
argumentos de Cass Sunstein36, tarda a hora em que reguladores terão que
incorporar decisivamente fundamentos empíricos no processo de avaliação
e mudanças regulatórias.
Não por outra razão, Sunstein utiliza o exemplo anedótico do aclama-
do Moneyball37 para sugerir que a atividade regulatória é semelhante à re-
volução esportiva narrada pelo best-seller: tornou-se imprescindível realizar
uma avaliação rigorosa sobre custos e benefícios, frequentemente baseada
na ciência estatística, ou mesmo na economia comportamental, para produ-
zir boa regulação. Nas palavras do autor:
[...] sem uma análise conclusiva das consequências (da criação de no-
vas regulações) – seus custos e benefícios – nós estaremos em uma
péssima posição para obtermos conhecimento novo [...] Nós precisamos
de um Moneyball Regulatório, não porque ele resolverá todos os nossos
problemas, mas porque ele resolve muitos deles, ao passo em que ajuda
a esclarecer porque as respostas a algumas questões (regulatórias) são
mais difíceis.38
Também, para que seja eficiente, a simplificação normativa deve ser inte-
grada em um processo mais amplo de avaliação e revisão contínua do frame-
work regulatório. Observa-se, nesse sentido, as recomendações da Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico:
Revisões devem estar preferencialmente programadas para avaliar sis-
tematicamente toda a regulação ao longo do tempo, melhorar a con-
sistência e coerência do estoque regulatório, reduzir encargos regula-
tórios desnecessários e garantir que potenciais consequências não in-
tencionais da regulação sejam identificadas. Deve ser dada prioridade
à identificação de regulações ineficazes e com significativos impactos
econômicos sobre os usuários e/ou na gestão de riscos. Deve ser consi-

36 Cass R. Sunstein é o Robert Walmsley University Professor na Universidade de Harvard. De 2009 a


2012, serviu a gestão Obama como Administrador do Office of Information and Regulatory Affairs,
órgão executivo do governo estadunidense que supervisiona a redação (estruturas legais e infralegais)
e implementação de regulações (como veículos de políticas públicas) em nível federal, nos Estados
Unidos. É também fundador e diretor do Programa em Economia Comportamental e Políticas Públi-
cas na Harvard Law School.
37 O referido livro, de Michael Lewis, relata a história de Billy Beane e Paul DePodesta, pioneiros na
utilização de ferramentas estatísticas no baseball, substituindo uma tradição de dogmas e intuições
por uma abordagem estritamente empírica.
38 SUNSTEIN, Cass. Simpler: the Future of Government. New York: Simon and Schuster, 2013, p. 150.

205
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

derada a adoção de algum mecanismo de revisão permanente dentro


das normas, como cláusulas de revisão nas leis primárias e de expira-
ção na legislação secundária.39
Seguindo-se a isso, talvez o instrumento melhor difundido na busca
por uma simplificação racional do framework regulatório seja a Análise de
Impacto Regulatório (AIR), enquanto “ferramenta regulatória que examina
e avalia os prováveis benefícios, custos e efeitos das regulações novas ou
alteradas. Ela oferece aos tomadores de decisão dados empíricos valiosos
e uma estrutura abrangente na qual eles podem avaliar suas opções e as
consequências que suas decisões podem ter”. Apenas mais recentemente a
Análise de Impacto Regulatório tem merecido a devida atenção no Brasil,
com especial destaque à sua implementação na Agencia Nacional de Ener-
gia Elétrica – ANEEL.40
Sem adentrar em especificidades, é possível identificar os principais ele-
mentos desse procedimento na Resolução nº 540/2013 da ANEEL41, que prevê
que a Análise de Impacto Regulatório deve conter, no mínimo, as seguintes
informações: (i) identificação do problema que se quer solucionar; (ii) justifi-
cativas para a possível necessidade de intervenção da Agência; (iii) objetivos
desejados com a intervenção regulatória; (iv) prazo para início da vigência
das alterações propostas; (v) análise dos impactos das opções consideradas
e da opção eleita; (vi) identificação de eventuais alterações ou revogações de
regulamentos em vigor em função do novo regulamento pretendido; e (vii)
identificação de formas de acompanhamento dos resultados.
A racionalização também envolve a adoção de outras medidas que difi-
cultem o acesso a vias escusas, incrementem os riscos decorrentes da prática
de atos de corrupção e instituam mecanismos para que os agentes privados
possam resistir legitimamente a eventuais achaques de agentes estatais.
Sob esse prisma, Susan Rose-Ackerman sugere a adoção de estraté-
gias regulatórias que aumentem os riscos e custos da corrupção e os ga-
nhos marginais da honestidade (ex.: benefícios aos agentes de reputação
ilibada, recompensas e proteção contra represálias para os delatores) e
reduzam os ganhos marginais da corrupção (ex.: multas atreladas aos ga-
nhos obtidos com a prática de corrupção e não somente a os prejuízos so-
fridos pelo Estado). A criação de órgãos independentes de fiscalização e a

39 OCDE. Recomendação do Conselho sobre Política Regulatória e Governança. Paris, 2012, p. 14.
40 Existe um processo de consulta pública perante a da Subchefia de Análise e Acompanhamento de Po-
líticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República (SAG), relativo a duas propostas
para a criação de Diretrizes Gerais e de um Guia Orientativo de Elaboração de Análise de Impacto
Regulatório – AIR (Consulta Pública nº 01/2017).
41 À míngua de previsão normativa, nada impede que o AIR seja adotado pelos órgãos e entidades da
Administração Pública com fundamento direto na Lei Federal nº 9.784/1999 e no princípio da efici-
ência, previsto no caput do artigo 37 da Constituição Federal.

206
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

implementação de mecanismos que facilitem a transparência e o acesso à


informação, são igualmente fundamentais para desestimular a corrupção.
A discricionariedade, ao seu turno, pode ser limitada pela introdução de
regras objetivas e previsíveis, insuscetíveis, portanto, de interpretações dú-
bias em desfavor do particular que sirvam de subterfúgio para a exigência
de vantagens indevidas.42
Em essência, para ROSE-ACKERMAN, “esquemas de incentivos, desde
que propriamente concebidos, representam não uma desregulação, mas um
redesenho regulatório que permite uma maior efetividade na consecução dos
objetivos estatutários”.43 Esses incentivos podem ser estendidos, inclusive, aos
agentes que eventualmente participaram da prática de atos de corrupção, des-
de a colaboração viabilize a constatação, apuração e desmantelamento de es-
quemas de desvio. No Brasil, esses mecanismos foram institucionalizados por
meio das delações premiadas44 e dos acordos de leniência45.
O importante é que todas essas reformas sejam efetivadas em face de uma
visão sistemática do framework regulatório e sempre através de um procedi-
mento racional que avalie criteriosamente os custos e benefícios na adoção de
cada alternativa à luz dos princípios característicos da boa regulação.

4.3. PROCEDIMENTALIZAÇÃO
A racionalização – que exige do regulador a exposição motivada e justi-
ficada das variáveis consideradas no ato de regulação, a explicação da neces-
sidade da criação da regra, a avaliação dos cenários, a concepção de medidas
de orientação de condutas, o acompanhamento dos resultados e a abertura

42 ROSE-ACKERMAN, Susan. The Political Economy of Corruption. In: Kimberly Ann Elliott, ed.,
Corruption and the Global Economy, Washington: DC: Institute for International Economics, 1997.
43 ROSE-ACKERMAN, Susan; PALIFKA, Bonnie J. Corruption and Government: Causes, Conse-
quences and Reform. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, p. 132.
44 A possibilidade de redução da sanção penal para o partícipe que denuncia o esquema criminoso
consta no parágrafo único do artigo 8º da Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990); no §2º do
artigo 25 da Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/86); no parágrafo
único do artigo 16 da Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária (Lei nº 8.137/1990) e no §5º do
artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei º 9.613/1998), entre outras disposições correlatas. A
colaboração premiada, enquanto instituto assim designado, foi positivada nos artigos 3º e seguintes
da Lei nº 12.850/13. Em comentários ao dispositivo, Alexandre Moraes da Rosa anota:
“Ao final, é possível perceber que a ideia de delação, o seu fundamento, é encontrada na dinâmica
de incentivos e ganhos. A delação é dispositivo que oferece um incentivo para sua aplicação, me-
diante concessão de vantagens. É mecanismo baseado na ideia do sujeito racional maximizados
de suas recompensas, ou seja, por si só contém características que fomentam um comportamento
traidor, inescrupuloso, tolerável pelo Estado porque se está falando de trair criminosos e de ser
inescrupuloso com comparsas de relações ilícitas. É um preço que o Estado decide pagar para am-
pliar controle social. A partir do momento em que se autorizou a negociar na seara penal, o Estado
também assume riscos, dentre os quais o de conceder benefícios a partir de informações cuja prova
não será possível. Este parece ser o ponto fulcral, afinal, numa negociação, não se pode ganhar
sempre; há perdas decorrentes.” (2018, p. 337).
45 Previsto inicialmente no artigo 86 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº12.529/11), foi re-
centemente estendido para toda infração relacionada à corrupção pela Lei Anticorrupção (Lei nº
12.846/13).

207
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

à transparência – impõe uma apropriada procedimentalização do ato de pro-


dução normativa regulatória, especialmente na esfera administrativa. Vale
recordar que a regulação, que cujo produto, nessa esfera (administrativa), é
um ato administrativo, não surge de um passe de mágica46, ou é fruto de uma
descoberta iluminada da melhor solução possível por parte da autoridade
reguladora. Antes disso, regulação deve ser técnica, desenvolvida em etapas
logicamente articuladas entre si, voltadas à maior aquisição, possível, de ele-
mentos de informação, com objetivo de compor de modo adequado todos os
interesses em jogo47 e viabilizar a tomada de decisões melhores informadas.
Não se defende, com isso, a edição de normas rígidas de procedimentos
em matéria de produção regulatória, mas a necessidade da prévia definição
das etapas necessárias para assegurar a objetividade, a participação, a ade-
quada motivação e o controle nesse âmbito. A definição do procedimento
regulatório pode, inclusive, ser casuística, variar de acordo com a natureza
da atividade regulada, mas deve sempre ser orientada pela necessária trans-
parência e assegurar a participação dos stakeholders como forma, inclusive, de
legitimação do produto ou da solução final. A procedimentalização, em certa
medida, ressalta a importância para o modo como a solução é construída.

4.4. TRANSPARÊNCIA
O iter da atividade regulatória deve ser fortemente orientado pela máxima
transparência possível, inclusive como forma de reduzir espaços para a prática
de atos de corrupção. Espera-se que todos procedimentos regulatórios, por en-
volver informações sempre de interesse coletivo ou geral, estejam ininterrupta-
mente disponíveis ao público48, inclusive na rede mundial de computadores49.
Isso envolve a ampla e irrestrita disponibilização de todos atos praticados na
atividade regulatória, como regra, não só nas atividades de normatização, mas
inclusive na fiscalização do setor regulado.
Convém também que a transparência alcance os espaços e momentos
no qual ocorrem os diálogos público-privados, notadamente entre o agente
regulador e o setor regulado. Essa circunstância reforça a importância da re-

46 Na feliz acepção de Celso Antônio Bandeira de Mello (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.
Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 497).
47 Em matéria de processos administrativos, Massimo Severo Giannini trata das ideias de livre introdução
de interesses e da máxima apreensão de fatos, para concluir que “[…] il procedimento amministrativo,
sotto l’aspecto funzionale, è uno strumento per disciplinare la «compresenza degli interessi»” (GIAN-
NINI, Massimo Severo. Diritto Amministrativo. Vol 2. 3. ed. Milão: Giuffrè Editore, 1993, p. 160).
48 O acesso de qualquer cidadão a informações de interesse coletivo ou geral é direito fundamental, de
acordo com o inciso XXXIII do artigo 5º da Constituição da República. Referido direito é assegura-
do, no plano infraconstitucional, pelos procedimentos estatuídos na Lei de Acesso à Informação (Lei
nº 12.527/11).
49 No âmbito federal, o Decreto nº 8.539/15 institui a obrigatoriedade dos processos administrativos
(no que se inserem os processos administrativos normativos e fiscalizatórios) tramitarem em meio
eletrônico até outubro de 2017.

208
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

gulamentação de grupos de pressão em sede de relações governamentais, vul-


garmente reconhecidas como lobby. O projeto de lei atualmente em trâmite
no Congresso Nacional (Projeto de Lei nº 1202, de 2007, do Deputado Carlos
Zarattini) (i) impõe a necessidade de prévio cadastramento de pessoas físicas
e jurídicas que intentem influenciar a tomada de decisão administrativa ou
legislativa, vedado o cadastramento de representantes que tenham, nos doze
meses anteriores ao requerimento, exercido cargo público ou participado de
produção legislativa objeto de sua intervenção profissional; (ii) veda que os
lobistas influenciem a apresentação de proposta com propósito de virem a
ser contratados para influenciar a aprovação ou rejeição da mesma no poder
Legislativo; (iii) admite a possibilidade dos lobistas participarem de audiên-
cias públicas; (iv) veda a apresentação de proposição por parte de agentes
públicos que tenham consultado lobistas sem propiciar igual oportunidade à
parte contrária ao interesse atendido ou prejudicado pela matéria; (v) exige
apresentação de relatório anual de atividades dos lobistas; (vi) exige arquivo
da documentação das atividades de lobby pelo prazo de cinco anos, para pres-
tação de contas, entre outras medidas.
Esses são, resumidamente, alguns pressupostos que, quando atendidos,
podem desestimular a prática de atos de corrupção no âmbito da atividade
de regulação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Demonstrou-se, neste artigo, que a quantidade de regulação não age,
necessariamente, como fator de inibição à adoção de atos de corrupção; pelo
contrário, foram apontados estudos que demonstram haver incremento nas
práticas de corrupção diante de setores excessivamente regulados. Melhor,
portanto, que ampliar de modo excessivo ou desconexo a regulação, seria
criar/consolidar ambientes regulatórios desestimuladores da prática de atos
de corrupção. Isso deve, por pressuposto, levar em conta as circunstâncias
que levam os agentes a se corromperem.
A criação/consolidação de ambientes regulatórios desestimuladores da
prática de atos de corrupção depende, entre outros fatores, da criação de um
framework regulatório eficiente e inteligente, consistente, entre outras variá-
veis, em um ambiente de regulação simplificado, racional, procedimentaliza-
do e transparente.
A simplificação permite a exata compreensão das regras vigentes, além
de reduzir espaços de interpretação da normatização que podem ser mani-
pulados como “dificuldades” pelo agente corrupto para venda de “facilida-
des”. A racionalização impede intervenção ilógica, abusiva e arbitrária do

209
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

ente regulador; impõe técnica, exige motivação, estabelece mecanismos de


acompanhamento de resultados. A procedimentalização esclarece as regras
do jogo, confere previsibilidade, permite maior abertura, garante a pondera-
ção motivada dos interesses em jogo, viabiliza adoção de soluções melhor in-
formadas. A transparência elimina a obscuridade na relação público-privado,
antecipa conflitos, viabiliza o controle e a repressão a desvios.

6. REFERÊNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2012.
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição e transformações do Estado e legi-
timidade democrática. Revista de direito administrativo, v. 229, p. 285-312, 2002.
BETTER REGULARION TASK FORCE. Principles of Good Regulation. London, 1997.
CARVALHO, Cristiano Rosa. Teoria da Decisão Tributária. São Paulo: Saraiva, 2013.
CLARKE, George R.G. Does Over-Regulation Lead to Corruption? College Station: Texas A&M In-
ternational University, 2014.
CLARKE, George R.G. Firm characteristics, bribes, and the burden of regulation in developing
countries. Journal of Academy of Business and Economics, v. 14, 2014, p. 21-26.
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and Economics. 6. ed. San Francisco: Addison-Wesley, 2016.
GIANNINI, Massimo Severo. Diritto Amministrativo. Vol 2. 3. ed. Milão: Giuffrè Editore, 1993.
GRÜNE-YANOFF, Till. Paradoxes of the Rational Choice Theory. In: ROEASER, Sabine; HIL-
LERBRAND, Rafaela; SANDIN, Per; PETERSON, Martin. Handbook of Risk Theory: Epistemology,
Decision Theory, Ethics, and Social Implications of Risk. New York: Springer, 2011.
JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002.
KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Prospect Theory: an Analysis of Decision Under Risk.
Econometrica, 1979.
KLITGAARD, Robert. Corrupt cities: a practical guide to cure and prevention. Washington: World
Bank, 2000.
KNACK, Stephen; KEEFER, Philip. Institutions and economic performance: Cross-country tests
using alternative institutional measures. Economics and Politics, v. 7, 1995, p. 207-227.
LANGBEIN, Laura; KNACK, Stephen. The Worldwide Governance Indicators: Six, one, or none?
Journal of Development Studies, v. 46, 2010, 350-370.
MANKIW, Gregory. Principles of Economics. Boston: Cengage Learning, 2014.
MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Discricionariedade e Regulação Setorial – O Controle dos
Atos de Concentração por Regulador Setorial. In ARAGÃO, Alexandre Santos (Coord.). O poder
normativo das agências reguladoras. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
MEDAUAR, Odete. Regulação e auto regulação. Revista de direito administrativo, v. 228, p. 123-128,
2002.
OCDE. Guiding principles for regulatory quality and performance. Paris, 2005.
______. Recomendação do Conselho sobre Política Regulatória e Governança. Paris, 2012.
______. Principles for the Governance of Regulators. Paris, 2013.
ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação premiada pela teoria dos jogos: táticas e estratégias
do negócio jurídico. Florianópolis: EModara, 2018.

210
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR – ARTHUR RODRIGUES DALMARCO – LUIZ EDUARDO ALTENBURG DE ASSIS

ROSE-ACKERMAN, Susan; PALIFKA, Bonnie J. Corruption and Government: Causes, Consequen-


ces and Reform. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
______. The Political Economy of Corruption. In: Kimberly Ann Elliott, ed., Corruption and the
Global Economy, Washington: DC: Institute for International Economics, 1997.
SADDY, André. Elementos e características essenciais da concepção de regulação estatal. Revista
de la escuela jacobea de posgrado, n. 11, p. 1-33, 2016.
SADDY, André. Regulação Estatal, Autorregulação Privada e Códigos de Conduta e Boas Práticas. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
SUNSTEIN, Cass. Simpler: the Future of Government. New York: Simon and Schuster, 2013.
SVENSSON, Jakob. Eight questions about corruption. Journal of Economic Perspectives, v. 19, 2005,
p. 19-42.
WORLD BANK. Better regulation for growth: governance frameworks and tools for effective regu-
latory reform. Washington: World Bank, 2010.

211
A PROFISSIONALIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA E A GOVERNANÇA COMO ESTRATÉGIA DE
PREVENÇÃO À CORRUPÇÃO

Denise Pinheiro1
Michelle de Souza Gomes Hugill2
Patrícia Vendramini3

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A corrupção é um fenômeno complexo, transnacional, que envolve con-
dutas ilícitas e clandestinas praticadas nos setores público e privado. Conforme
reconhece a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção4, ela gera gra-
ves problemas e ameaça a estabilidade social e democrática, demandando uma
abordagem ampla e multidisciplinar.5
Os efeitos da corrupção são um empecilho para o desenvolvimento pleno
de uma nação. Não só distorcem a economia, causando forte impacto no siste-
ma econômico, como também afetam negativamente a sociedade, desfalcando
recursos de políticas públicas, tornando as empresas menos competitivas, o
que estimula uma cultura de passividade e conivência com tais atos ilícitos.
Ademais, há o favorecimento de atitudes fatalistas, utilizadas para desvios de
conduta, tais como sonegação de impostos e informalidade nos negócios, sob

1 Professora da UDESC. Graduada, Mestre e Doutora em Direito pela UFSC. Doutorado sanduíche pela
Université de Strasbourg. Membro do Grupo de Estudos em Direito Público (GRDIP/CCJ/UFSC).
2 Mestranda em Direito (UFSC). Especialista em Gestão Pública (UFSC) e em Direito Público
(FURB). Bacharel em Administração Pública (UFSC) em Direito (UNISUL). Membro do Grupo de
Estudos em Direito Público (GRDIP/CCJ/UFSC). Servidora Pública (TJSC).
3 Possui graduação em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (1996), mestrado
em Engenharia da Produção (2000) pela mesma instituição e doutorado em Administração pela Uni-
versidade Federal da Bahia (2013). Desde 2005, é Professora Efetiva de Administração Pública na
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC – ESAG), tendo sido Chefe deste Departamento
no período de 2009 a 2011. É membro do grupo de pesquisa Callipolis e professora convidada da
Fundação Escola de Governo ENA – Santa Catarina, sendo membro do Núcleo Docente Estruturan-
te desta instituição.
4 Adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003, cuja vigência inter-
nacional se deu em 14 de dezembro de 2005 e internalizada ao sistema jurídico brasileiro mediante o
Decreto n. 5.687, de 31 de janeiro de 2006.
5 A citada convenção internacional, já em seus considerandos, detalha: “Preocupados com a gravi-
dade dos problemas e com as ameaças decorrentes da corrupção, para a estabilidade e a segurança
das sociedades, ao enfraquecer as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça e
ao comprometer o desenvolvimento sustentável e o Estado de Direito; (…) Convencidos de que a
corrupção deixou de ser um problema local para converter-se em um fenômeno transnacional que
afeta todas as sociedades e economias, faz-se necessária a cooperação internacional para preveni-la
e lutar contra ela; Convencidos, também, de que se requer um enfoque amplo e multidisciplinar
para prevenir e combater eficazmente a corrupção.” (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5687.htm>)

212
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

a justificativa de que os tributos devidos seriam, de qualquer forma, desviados


dos cofres públicos.6 7
Incontestes são os danos econômicos e sociais causados pela corrupção, a
qual vitima gravemente a população de países relativamente pobres por meio
do desvio de vultuosas quantias de recursos públicos e de usurpação da má-
quina pública. Nesse sentido, Pierre Landell-Mills coloca a corrupção no centro
de um mau governo e o maior obstáculo a ser superado por países em desen-
volvimento, ressaltando que, entre os anos de 2001 e 2010 cerca de seis trilhões
de dólares foram desviados indevidamente de países pobres, com um impacto
destruidor sobre os meios de subsistência da população.8
É inquestionável a dificuldade de se prevenir, mensurar e combater a
corrupção, o que leva, inclusive, à conclusão que apenas é possível presumir
o número de atos corruptos, devendo-se, consequentemente, distinguir a cor-
rupção da percepção que se tem sobre ela, bem como examinar criticamente as
inferências decorrentes deste processo.
Cristiano Noronha atribui o crescimento da percepção da corrupção à desa-
tenção dos indivíduos quanto aos avanços ocorridos no Brasil e à espetaculariza-
ção de notícias9, que resultam no aviltamento das instituições e repúdio à classe
política, que nunca esteve tão exposta em nosso país. De outro norte, a sensação
de aumento de corrupção estaria diretamente relacionada com a transparência
obtida pelos instrumentos de gestão, mecanismos de controle e de comunicação,
o que não permite concluir se, de fato, houve ou não um crescimento da corrup-
ção. Nesse sentido, cita-se como exemplo a possibilidade de acompanhamento
das sessões das Casas Legislativas tanto pela televisão quanto pela internet 10.
Desse modo, como salientamos acima, é preciso estar ciente da dificul-
dade de traduzir a corrupção em dados objetivos, ainda quando se busquem
números com o propósito de a representar.
Cláudio Weber Abramo11 destaca a importância de se mensurar a corrup-

6 PILAGALLO, O. Corrupção: Entrave ao desenvolvimento do Brasil. 1. ed. ed. Rio de Janeiro: Else-
vier/ETCO, 2013, p. 19.
7 Consoante também alerta Luiz Flavio Gomes (2017), a problemática da corrupção afeta negativa-
mente todos os setores da sociedade: “A corrupção e a cleptoplutocracia constituem um binômio que
incentiva o capitalismo de compadres, dos laços, das amizades, desestimula a concorrência e a ino-
vação, altera os mecanismos do funcionamento do mercado, destrói a competitividade do país, não
cria mão de obra qualificada e dissemina a ignorância por ausência de educação. Afeta igualmente
o nível industrial e produtivo da nação, afasta o investimento quando é combatida, torna o ambiente
econômico instável e inseguro, gera incerteza nos rendimentos esperados, incrementa a lucratividade
rentista, penaliza os mais fracos e impede o crescimento econômico, o que significa um obstáculo
mortífero para o desenvolvimento do país.”
8 PIERRE LANDELL-MILLS, 2013, p. 13-15.
9 Porém, é evidente que o controle da corrupção não deve envolver restrições ao efetivo e legítimo
exercício da liberdade de expressão e de acesso às informações.
10 PILAGALLO, O. Corrupção: Entrave ao desenvolvimento do Brasil. 1. ed. ed. Rio de Janeiro: Else-
vier/ETCO, 2013, p. 34.
11 Claudio Weber Abramo, atualmente, é vice-presidente da Organização da Sociedade Civil Transpa-

213
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

ção, todavia, considerando que os atos são secretos, a alternativa são as medi-
das indiretas, que se valem de índices formulados por institutos de pesquisa e
empresas que avaliam risco de investimentos.12
No Índice de Competividade Global 2017-2018 do Fórum Econômico Mun-
dial – envolvendo 137 países —, o Brasil aparece classificado na 5.ª (quinta)
posição entre os mais corruptos do mundo, ficando atrás apenas da Venezuela,
Paraguai, República Dominicana e Chade. O país recebeu nota 2,1 – em uma es-
cala de 0 a 7, em que esta equivale à maior transparência. A pontuação foi obtida
mediante resposta a questões sobre a prática de desvios de fundos públicos para
empresas ou grupos e de subornos por estas, bem como sobre ética dos políticos13.
Consoante pesquisa feita pela Transparency International, no índice de per-
cepção de corrupção de 2016, o Brasil ocupa a posição 79a de um total de 178 paí-
ses pesquisados, nos quais Dinamarca obteve a melhor posição e Somália a pior.14
Abramo afirma que esse índice da Transparency International é o mais co-
nhecido e explica tratar-se de um indicador que reúne dados de outros indica-
dores, que são obtidos a partir de opiniões de sujeitos atrelados a corporações
transnacionais, conforme o que entendem como nível de corrupção do país.15
Não obstante a importância de tais indicadores, Abramo, que reconhece
que a maior proximidade na aferição da corrupção está nos levantamentos da
sua percepção, alerta para a limitação provocada por um subjetivismo inevitá-
vel do IPCorr (Índice de Percepções de Corrupção da Transparency Internatio-
nal), diferentemente do que ocorre, por exemplo, quando se apura o analfabe-
tismo ou produto interno bruto de um país.16
Ainda, sem deixar de reconhecer e enaltecer os esforços de se “medir” a
corrupção e buscar relações com os demais índices de um país, como saúde,
educação, eficácia das leis, é necessário examiná-los criticamente. Abramo ex-
rência Brasil, após 15 anos como diretor-executivo. Importante destacar que a Transparência Brasil
é associada a Transparency International. Disponível em: <https://www.transparencia.org.br/quem-
somos>. Acesso em: 01 nov. 2017.
12 ABRAMO, Claúdio Weber. Relações entre índices de percepção de corrupção e outros indicadores
em onze países da América Latina. Transparência Brasil. Cadernos Adenauer, v. 10, 2000. Disponí-
vel em: <https://www.transparencia.org.br/docs/onze.pdf>. Acesso em: 6 nov. 2017.
13 Disponível em: <http://reports.weforum.org/global-competitiveness-index-2017-2018/competitive-
ness-rankings/#series=GCI.A.01.01.02>. Acesso em: 6 nov .2017.
14 Disponível em https://www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016
15 ABRAMO, Claúdio Weber. Percepções pantanosas – a dificuldade de medir a corrupção. Novos
Estudos, n. 73, nov. 2005, p. 34. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S0101-33002005000300003>. Acesso em: 4 nov. 2017.
16 O autor explica: “O IPCorr (como outros números comentados aqui) não corresponde a uma grande-
za objetivamente mensurável, como o índice de analfabetismo adulto ou o produto interno bruto de
um país. Quando se pede a uma pessoa para atribuir uma gradação de 0 a 10 para o nível de corrup-
ção de diferentes países, nada garante que a distância entre as notas 1 e 2, por exemplo, seja igual à
distância entre 7 e 8. A rigor, o que se obtém é uma classificação apenas ordinal. Em outras palavras,
que o país A parece mais corrupto do que o país B, mas não que o país A é x% mais corrupto que o
país B” (ABRAMO, Claúdio Weber. Relações entre índices de percepção de corrupção e outros indi-
cadores em onze países da América Latina. Transparência Brasil. Cadernos Adenauer, v. 10, 2000, p.
2. Disponível em: <https://www.transparencia.org.br/docs/onze.pdf>. Acesso em: 6 nov. 2017).

214
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

plica possíveis objeções aos indicadores de percepção de corrupção, como, por


exemplo, não terem sido pesquisados sujeitos com relações no país, as próprias
inclinações ideológicas e, inclusive, a intensidade da cobertura jornalística feita
sobre determinados casos de corrupção.17
Diante desse cenário desafiador, questionamos se a Administração Pú-
blica, no desempenho de suas atividades e por intermédio dos seus agentes
públicos, está estruturada e preparada para combater e, especialmente, para
prevenir a corrupção.
Desse modo, para o presente estudo, o problema que se formula é o se-
guinte: profissionalização da Administração Pública é um fator de prevenção
da corrupção?
E, partindo-se da hipótese de que a resposta é positiva, este capítulo, de
forma específica, traz uma reflexão acerca da profissionalização da Adminis-
tração Pública como um importante instrumento de prevenção à corrupção.
Diante disso, em um primeiro momento, serão apresentados os modelos
de gestão da Administração Pública, com destaque para a governança pública.
Na sequência, serão examinados os instrumentos que demonstram que a pro-
fissionalização da Administração Pública, ao lado de outras frentes de atuação,
também é um fator determinante para impedir a corrupção, especialmente, por
intermédio de uma atuação preventiva, a qual pode ser materializada pela am-
pliação da participação popular, da transparência, pela estruturação de progra-
ma de conformidade (compliance) e pela própria capacitação do agente público,
que é o responsável direto pela aplicação eficiente dos preceitos normativos.

2. A CONFIGURAÇÃO E O PAPEL DO ESTADO À LUZ DOS


MODELOS DE GESTÃO PÚBLICA
A formação e o desenvolvimento do Estado brasileiro possuem peculiari-
dades que podem clarear nossa compreensão da sua atual dinâmica. Para isso,
será realizado um resgate histórico e conceitual desse processo, caracterizando
o modelo, a estrutura e o modus operandi em destaque a cada período paradig-
mático, consideradas reformas administrativas da Nova República. De acordo
com Fadul e Souza18, é possível destacar quatro reformas mais significativas
que geraram alterações na configuração administrativa do Estado e no seu pa-
pel enquanto mediador de interesses da sociedade, quais sejam:

17 Para um maior detalhamento das objeções aos indicadores de percepção da corrupção, ver: ABRA-
MO, Claúdio Weber. Percepções pantanosas – a dificuldade de medir a corrupção. Novos Estu-
dos, n. 73, nov. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0101-33002005000300003>.
18 FADUL, Élvia; SOUZA, Antonio Ricardo de. Políticas de reformas da administração pública brasi-
leira: uma compreensão a partir de seus mapas conceituais. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NA-
CIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 29, 2005, Brasília:
Anpad, 2005. p. 1-12.

215
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

• 1a. Em 1937, com a Criação do Dasp;


• 2a. Em 1967, que instituiu o Decreto-Lei 200;
• 3a. Em 1988, gerada pela promulgação da Constituição Federal;
• 4a. Em 1995, instituída pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado.
Em Vendramini19, encontramos a definição de modelos de gestão a
partir de Chanlat20 como o “conjunto de práticas administrativas colocadas
em execução para atingir os objetivos que a direção da organização tenha
fixado”. O modelo de gestão repercutirá, então, sobre os fatores estruturais,
como as condições de trabalho, sua organização, a relação hierárquica entre
seus membros, os sistemas de avaliação e os controles utilizados para men-
surar resultados, políticas, objetivos, os valores e a filosofia da gestão21. Para
Assen, Berg e Pietersma22, os modelos oferecem “maneiras úteis de ordenar a
realidade; oferecem uma linguagem comum com a qual é possível comparar
desempenhos e desafios e resolver problemas”.
Seguindo uma evolução histórico-cronológica, os modelos de gestão
característicos da Administração Pública brasileira podem ser agrupados em
quatro grandes grupos: (a) o Patrimonialismo; (b) a Administração Pública
Burocrática; (c) a Administração Pública Gerencial (Nova Gestão Pública); e,
mais recentemente, o de (4) Governança pública-societal ou o Novo Serviço
Público23, retratados nas próximas seções dentro do contexto de reformas ad-
ministrativas do Estado brasileiro.

2.1. PATRIMONIALISMO
Desde sua origem, a administração colonial instalada no Brasil assumiu
uma relação totalmente imbricada entre os interesses públicos e privados. Na
administração colonial, o Estado “abrangia o indivíduo em todos os aspectos e
uma miríade de instâncias e jurisdições que iam do rei até o mais modesto ser-
vidor, cujas atribuições se superpunham, se confundiam e se contradiziam”24.
19 VENDRAMINI, Patrícia. Ensino de administração pública e o desenvolvimento de competências:
a contribuição do Curso de Administração Pública da Esag-Udesc. 2013. 258 f. Tese (Doutorado em
Administração) – Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013, p. 39.
20 CHANLAT, Jean-François. Modos de gestão, saúde e segurança no trabalho. In: DAVEL, E.; VAS-
CONCELOS, J. (Org.). Recursos humanos e subjetividade. 3. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,
2000. p. 119.
21 CHANLAT, Jean-François. Modos de gestão, saúde e segurança no trabalho. In: DAVEL, E.; VAS-
CONCELOS, J. (Org.). Recursos humanos e subjetividade. 3. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,
2000, p. 119.
22 ASSEN, Marcel van; BERG, Gerben van den; PIETERSMA, Paul. Modelos de gestão: os 60 mode-
los que todo gestor deve conhecer. 2. ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010, p. VIII.
23 COSTIN, Cláudia. Administração pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010; DENHARDT, R. B. Te-
orias da administração pública. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012; PINHO, J. A. G. de.
Reforma do Aparelho do Estado: limites do gerencialismo frente ao patrimonialismo. Organização
& Sociedade, Salvador, v. 5, n. 12, p. 59-79, maio/ago. 1998; SECCHI, L. Modelos organizacionais
e reformas da administração pública. RAP, Rio de Janeiro, v. 43, n. 2, p. 347-369, mar./abr. 2009.
24 LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública;
200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, v. 42, n. 5, p. 829-874, out. 2008, p. 831.

216
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

Para compor seus quadros, o Imperador nomeava arbitrariamente portugueses


de sua confiança para operar os principais órgãos, independente de critérios
meritocráticos para tal25. Essa prática se desdobrava nas jurisdições comanda-
das pelos donatários ou governadores, em que o acesso à riqueza estava asso-
ciado à criação de cargos, à sinecura ou propriedade fornecida pela própria
coroa, em contrapartida, os beneficiados deviam lealdade aos interesses dos
governantes, lembra Costin26. Em outras palavras, criavam-se ou escolhiam-se
cargos para as pessoas e não pessoas para os cargos27.
A vinda da Coroa instituiu uma nação no território brasileiro, fundou-se
então um organismo de Estado para dar conta dos trâmites administrativos
advindos da corte, exercidos pelos seus oficiais e realizados nas suas próprias
residências28. Isso reforçava ainda mais a interferência da lógica personalista
ao aparato estatal e o favoritismo daqueles que demonstravam lealdade cega e
se revertiam em práticas clientelistas, caracterizando o modelo patrimonialista
presente durante a Velha República. Esses padrões de funcionamento não são
necessariamente um modelo de gestão, dado que para ser gestão é preciso o
mínimo de políticas, práticas e regras formais alicerçados por valores e pela
identidade da própria organização, que possam servir de referência para o
controle de resultados. O patrimonialismo está mais preocupado em manter o
status quo e o poder por meio da dependência e da cooptação dos seus aliados.
A força das relações familiares que se configurou no Brasil serviu de ali-
cerce para a continuidade desses padrões. Holanda29 destaca que pais zelosos,
leia-se superprotetores, tendem a causar mais danos aos filhos que os pais me-
nos cuidadosos, que, em contrapartida, dão liberdade e autonomia necessárias
ao desenvolvimento do aprendizado e da maturidade dos filhos. Para o autor,
o apadrinhamento político apresenta-se como assunto de interesses particu-
lares, em que as funções, os empregos e os benefícios relacionam-se a direitos
pessoais dos funcionários e não a interesses objetivos. Essa dinâmica está na
maioria das vezes circunscrita a pequenos e seletos grupos, “pouco acessíveis
a uma ordenação impessoal”30.
Além da família patriarcal, outro elemento catalisador do patrimonialismo
está no próprio DNA do brasileiro e o diferencia do resto do mundo: sua hospi-
talidade, generosidade, informalidade e afetuosidade. É o conceito de homem
cordial que Holanda31 mapeou na sua obra Raízes do Brasil. Esse traço do brasi-

25 COSTIN, Cláudia. Administração pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.


26 COSTIN, Cláudia. Administração pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
27 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro:
Editora Globo, 1979.
28 GOMES, Luiz Flavio. O jogo sujo da corrupção. Baurú: Astral Cultural, 2017.
29 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
30 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 147
31 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

217
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

leiro mostra sua necessidade de um convívio social que o distancie de si mesmo,


“sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais,
à parcela social, periférica, [...] que tende a ser a que mais importa”32. Por isso,
sua aversão aos ritos sociais que o mantém distante em cerimônias protocolares
em que autoridades se fazem presentes. Há logo o desejo do brasileiro em esta-
belecer um dedo de intimidade. Até nas manifestações religiosas o homem cor-
dial trata os santos com diminutivos, chegando a ser desrespeitoso. No caldeirão
cultural do Brasil, a afetividade, os laços fraternais e a aprovação dos grupos se
sobrepõem à efetividade das ações empreendidas no campo profissional.
As características marcantes da Administração Pública nesse período são:
a concentração de poder, ausência de diferenciação de funções, normas dúbias
e repetitivas, o formalismo e a morosidade, decorrentes, sobretudo, da carência
de uma autoridade mais abrangente e alinhada e, por consequência de obe-
diência de seus membros, sintetiza Lustosa da Costa33. Ao presenciarmos a tra-
jetória das reformas, veremos que tais características nunca saíram plenamente
do cenário nacional, um ambiente promissor para o crescimento da corrupção
e de quaisquer atos que favorecessem os interesses das coalizões dominantes.
A transição para o modelo burocrático ocorre após a Proclamação da Re-
pública ao consagrar o regime Republicano favorecendo uma descentralização
inédita até o momento. O poder Moderador deixa de existir e distingue-se mais
claramente os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, declarando, inclusi-
ve, a separação entre Estado e Igreja. Essa mobilização fortalece a estrutura de
um Estado mais forte e interventor, propício ao modelo burocrático.

2.2. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BUROCRÁTICA


A Revolução de 1930 é um marco para a Administração Pública brasilei-
ra. Ela delimita o fim da República Velha, cujo modelo era o liberal-oligárquico.
A proposta de Getúlio Vargas era essencialmente modernizante, por incorporar
os preceitos burocráticos à estrutura do Estado. Os avanços nos direitos sociais
dos trabalhadores, como carteira de trabalho, previdência e a Justiça do Trabalho,
exigiam uma nova dinâmica de trabalho. Instituiu-se a estabilidade ligada a con-
cursos públicos para o funcionalismo, estes então, regidos por estatuto específico.
Em 1937, com a criação do Departamento do Serviço Público (Dasp), fun-
da-se o principal preceito naquele momento: a profissionalização dos quadros
administrativos do Estado para dar sustentação à reforma da área-meio, ou
seja, da administração geral, o que, de certa forma, garantiria o bom desempe-
nho da área-fim34 . Essa decisão veio a reboque das teorias administrativas em

32 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 147.
33 LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública;
200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, v. 42, n. 5, out. 2008, p. 834.
34 COSTIN, Cláudia. Administração pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. SECCHI, L. Modelos

218
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

alta nos países avançados, consideradas então the one best way difundido pelos
estudos de Taylor35. Já Pinho36 entende que o Dasp foi a porta de entrada da
burocracia nos moldes weberianos no país, justamente para frear as práticas
clientelistas do patrimonialismo. No centro da modernização administrativa
do Estado, Lustosa da Costa37 aponta as responsabilidades do Dasp: elaborava
orçamentos, recrutamento, seleção e treinamento de servidores, racionalização
e sistematização de contratos e gestão de estoques estavam entre suas incum-
bências. O autor ainda complementa38:
foi uma ação deliberada e ambiciosa no sentido da burocratização do Esta-
do brasileiro, que buscava introduzir no aparelho administrativo do país
a centralização, a impessoalidade, a hierarquia, o sistema de mérito, a se-
paração entre o público e o privado. Visava constituir uma administração
pública mais racional e eficiente, que pudesse assumir seu papel na con-
dução do processo de desenvolvimento […]
Ao longo dos seus 15 anos à frente do governo federal, Vargas exercia
uma política centralizadora, mas guiada por um ethos modernizante voltada
à estruturação da força de trabalho e das instituições capazes de implementar
as políticas de desenvolvimento que o país precisava. Naquele período, foram
criadas 13 estatais, entre elas a Petrobras, o BNDES e a Eletrobras, ligadas a
setores estratégicos do governo.
Apesar de todo o empenho dedicado à essa organização, Pinho39 revela
que enquanto o alto escalão guiava-se com esse ethos, os escalões inferiores es-
tavam suscetíveis a práticas clientelistas e populistas. Parece que a blindagem
burocrática contra o patrimonialismo não foi suficiente para extinguir sua pre-
sença, pois essa cultura já estava enraizada e internalizada no modus operandi
dos agentes públicos. Inúmeros órgãos foram criados para regulamentar a eco-
nomia e acabavam por disputar espaço e poder com a estrutura administrativa.
A concepção do Estado com uma modelagem burocrática também foi alvo
do governo de J. Kubitscheck, mas por outro ângulo, o da simplificação40. Dava
continuidade ao movimento desenvolvimentista e nacionalista, fortalecimento

organizacionais e reformas da administração pública. RAP, Rio de Janeiro, v. 43, n. 2, p. 347-369,


mar./abr. 2009.
35 DENHARDT, R. B. Teorias da administração pública. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012.
36 PINHO, J. A. G. de. Reforma do Aparelho do Estado: limites do gerencialismo frente ao patrimonia-
lismo. Organização & Sociedade, Salvador, v. 5, n. 12, p. 59-79, maio/ago. 1998.
37 LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública;
200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, v. 42, n. 5, p. 829-874, out. 2008, p. 846.
38 LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública;
200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, v. 42, n. 5, p. 829-874, out. 2008, p. 846.
39 PINHO, J. A. G. de. Reforma do Aparelho do Estado: limites do gerencialismo frente ao patrimonia-
lismo. Organização & Sociedade, Salvador, v. 5, n. 12, p. 59-79, maio/ago. 1998.
40 COSTIN, Cláudia. Administração pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. SECCHI, L. Modelos or-
ganizacionais e reformas da administração pública. RAP, Rio de Janeiro, v. 43, n. 2, p. 347-369, mar./
abr. 2009; LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração
pública; 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, v. 42, n. 5, p. 829-874, out. 2008.

219
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

do capitalismo e do setor industrial, mas já percebia que excessos estavam sendo


cometidos em nome do controle, da impessoalidade e da padronização.
Ao longo do período democrático (1946-1964), o que Pinho41 percebe é
que “não houve nem aprofundamento nem reforma o que indicaria uma vitó-
ria da cultura patrimonialista da sociedade e do Estado brasileiros”.
A segunda reforma paradigmática a que se referem Fadul e Souza42, foi
no final do governo de João Goulart. Aqui se delineava um esboço do gerencia-
lismo, materializado em parcerias técnicas e na Administração Indireta, com-
binado à expansão da burocracia governamental.
A Administração Pública se fortalece com a criação de um grande nú-
mero de empresas públicas, autarquias e sociedade de economia mista, regu-
lamentadas pelo Decreto-Lei n. 200/1967. A sua implementação acontece nas
mãos dos militares, que buscaram resgatar a ênfase na racionalidade técnica
para condução da gestão pública. O foco é dado às estruturas e procedimentos
burocráticos, adota-se uma visão sistêmica do aparato administrativo com a
interação dos sistemas estruturantes: de planejamento e orçamento, de finan-
ças públicas, de serviços gerais e de recursos humanos43. Lustosa da Costa44
acrescenta que além desses princípios, a reforma prescrevia mais três além do
planejamento e das modalidades institucionais mais autônomas, a
necessidade de fortalecimento e expansão do sistema do mérito, [...] dire-
trizes gerais para um novo plano de classificação de cargos; o reagrupa-
mento de departamentos, divisões e serviços em 16 ministérios [...]
Os resultados mais evidentes apontam para a descentralização (formulação
e controle de políticas com espírito gerencial, inclusive para estados e municí-
pios) e para a delegação (autonomia para níveis inferiores), afirma Vendramini45.
Nos anos que se seguiram, o endividamento das contas públicas coloca
em xeque a permanência do governo militar, agravado pela crise política, com
a mobilização social em favor da democracia e, por consequência, da transpa-
rência, da participação e do controle sociais
Antes de demarcar as fronteiras do gerencialismo é necessário destacar a
41 PINHO, J. A. G. de. Reforma do Aparelho do Estado: limites do gerencialismo frente ao patrimonia-
lismo. Organização & Sociedade, Salvador, v. 5, n. 12, p. 59-79, maio/ago. 1998, p. 64.
42 FADUL, Élvia; SOUZA, Antonio Ricardo de. Políticas de reformas da administração pública brasi-
leira: uma compreensão a partir de seus mapas conceituais. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NA-
CIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 29, 2005, Brasília:
Anpad, 2005. p. 1-12.
43 VENDRAMINI, Patrícia. Ensino de administração pública e o desenvolvimento de competências:
a contribuição do Curso de Administração Pública da Esag-Udesc. 2013. 258 f. Tese (Doutorado em
Administração) – Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.
44 LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública;
200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, v. 42, n. 5, p. 829-874, out. 2008, p. 850.
45 VENDRAMINI, Patrícia. Ensino de administração pública e o desenvolvimento de competências:
a contribuição do Curso de Administração Pública da Esag-Udesc. 2013. 258 f. Tese (Doutorado em
Administração) – Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

220
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

reforma promovida pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), que fortalece as


instâncias subnacionais em termos de autonomia na gestão de políticas públicas
e determina mudanças que afetam toda a sociedade, sobretudo em relação aos
espaços deliberativos para a construção de uma cidadania plena46 (). A partir da
CF/88 haverá desdobramentos posteriores sobre duas vertentes: a inserção do
conceito de eficiência como princípio constitucional e da participação e controle
sociais na gestão das políticas públicas. Ambas as vertentes serão alavancas para
os modelos de gestão que se desenvolvem ao longo dos anos vindouros, a Admi-
nistração Pública Gerencial e a Governança, subsequentemente.

2.3. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL


No Brasil, o discurso reformista de 1995 era sustentado pela incapacida-
de gerencial do Estado e pela necessidade de resgatarem-se a governança e a
governabilidade, mas Rezende47 afirma que a motivação estava, na verdade,
ancorada nos preceitos do Consenso de Washington – diminuição da inter-
venção do Estado na economia, desregulamentação dos mercados, abertura
comercial e financeira – e na agenda econômica, como é possível verificar
nos resultados alcançados.
A Administração Pública Gerencial baseia suas estratégias administrati-
vas na delegação de autoridade e na cobrança de resultados a posteriori, tendo
suas primeiras experiências manifestadas no Reino Unido, Austrália e Nova
Zelândia. Como características Bresser Pereira 48 destaca:
a) Descentralização política e administrativa, com a transferências de recursos
e atribuições para os níveis regionais e locais naquela, e maior autonomia
para os administradores públicos imbuídos de autoridade formal nesta;
b) Organizações estruturadas de modo flexível que possam estimular a me-
lhoria da prestação de serviços a partir da competição e gestão do conflito;
c) Constituição dos contratos de gestão com a definição de objetivos e indi-
cadores de desempenho para proporcionar o controle dos resultados e não
dos processos;
d) Foco no atendimento das necessidades do cidadão ao invés de sustentar
visões auto-referidas.
Mesmo com o reconhecimento de que a gestão pública sob o viés geren-
cial se ampare numa sociedade mais dinâmica e plural, sendo naturalmente
um campo de conflito e cooperação e incerteza, Bresser Pereira49 alerta para

46 FADUL, Élvia; SOUZA, Antonio Ricardo de. Políticas de reformas da administração pública brasi-
leira: uma compreensão a partir de seus mapas conceituais. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NA-
CIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 29, 2005, Brasília:
Anpad, 2005. p. 1-12.
47 REZENDE, 2002 apud FADUL; SILVA, 2008.
48 BRESSER PEREIRA, L. C. Uma reforma gerencial da Administração Pública no Brasil. Revista do
Serviço Público, Brasília, ano 49, n. 1, p.5-43, jan./mar. 1998.
49 BRESSER PEREIRA, L. C. Uma reforma gerencial da Administração Pública no Brasil. Revista do
Serviço Público, Brasília, ano 49, n. 1, p.5-43, jan./mar. 1998.

221
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

o fato de que o desafio é definir instituições e práticas abertas e transparentes


para que o interesse público na produção de bens ou serviços seja alcançado.
Dessa forma, é possível perceber que o modelo gerencial traz uma infle-
xão na condução da res publica ao trazer o locus de controle para os resultados
e ao preocupar-se em tornar os processos mais acessíveis ao acompanhamento
dos gestores e, em última instância, dos cidadãos.
Desde a redemocratização do país, Abrucio50 aponta outros resultados,
fragmentados e dispersos, que perpassam os períodos governamentais e en-
globam cinco movimentos:
a) a questão fiscal, que trouxe economicidade ao Estado com a aprovação, em
2000, da Lei de Responsabilidade Fiscal;
b) os governos subnacionais, que introduziram uma maior participação so-
cial no campo das políticas públicas, inclusive criando e expandindo cen-
trais de atendimento integrado aos cidadãos;
c) a regionalização do Plano Plurianual – PPA e a utilização de indicadores
para nortear sua elaboração;
d) a introdução de mecanismos de avaliação, formas de coordenação admi-
nistrativa e financeira, avanço do controle social, programas voltados às
realidades locais e ações intersetoriais, no que tange às políticas públicas;
e) a introdução do governo eletrônico, que tem levado à redução de custos e
à transparência das ações, sobretudo nas compras governamentais, o que
reduz o potencial de corrupção.
Mesmo pulverizados, esses resultados contribuem para a configuração de
uma estrutura de gestão em rede, que pretendemos explorar no próximo tópico.

2.4. GOVERNANÇA PÚBLICA OU O NOVO SERVIÇO PÚBLICO


Na tentativa de construir uma teoria da organização pública que corres-
ponda à emergência de novas práticas e processos gerenciais, que caminham
para uma profissionalização consistente da Administração Pública, de forma
ampla e coesa, refletindo na qualidade dos serviços oferecidos aos cidadãos,
Denhardt51 propõe uma redefinição do campo da Administração Pública. Tra-
dicionalmente atrelada à administração governamental ou, ainda, considerada
a “prima pobre” da Administração de Empresas, o autor sugere que ela seja
identificada mais “como um processo do que como algo que ocorre dentro de
um tipo particular de estrutura (por exemplo, hierarquia)”. Além disso, ele re-
comenda enfatizar “a natureza pública desse processo do que sua ligação com
sistemas formais de governo” (grifos nossos). 52

50 ABRUCIO, F. L. Trajetória recente da gestão pública brasileira: um balanço crítico e a renovação da


agenda de reformas. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, Edição Especial Comemora-
tiva, 1967-2007, p. 76.
51 DENHARDT, R. B. Teorias da administração pública. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012.
52 DENHARDT, R. B. Teorias da administração pública. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 22.

222
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

Para compor a redefinição do campo, Denhardt53 une os preceitos da


teoria política democrática, suas formas de promoção dos valores societários
e da teoria organizacional, que está interessada no modo como os indivíduos
podem administrar processos de mudança em proveito próprio ou das em-
presas. A síntese a que chega é que a Administração Pública está “interessada
na gestão de processos de mudança que visem lograr valores societários pu-
blicamente definidos”54.
O autor argumenta que a distinção conceitual do campo da administra-
ção pública permite aos estudiosos da área o “desenvolvimento de uma teoria
coerente e integrada com as organizações públicas, de uma teoria que se coa-
duna com as tendências emergentes no processo de governança”55.
Essa nova configuração de Estado, Governo e Administração Pública traz
novos modelos e papéis aos agentes públicos. Para Harmon e Mayer56, aqueles
que atuam legalmente em nome da sociedade e cujas ações têm consequências
para os indivíduos ou grupos são agentes da Administração Pública.
Diante dessa amplitude, Denhardt57 conclui que uma teoria de administra-
ção pública apropriada “reconhecerá a desconcertante complexidade que carac-
teriza o trabalho do gestor público”. Ao compreender os desafios do trabalho na
área pública, muitas iniciativas atestam a necessidade da atuação em rede, tanto
para uma melhor compreensão dos problemas complexos que afetam a socieda-
de, quanto para a construção de soluções mais efetivas desses problemas58.
Nesse cenário, o conceito de governança se espargiu de modo a abranger
diferentes concepções, abordagens e práticas, tal qual asseveram Proença Jú-
nior, Muniz e Poncioni sendo “possível associá-lo às intensas mudanças perce-
bidas no papel e no modo de atuação do Estado (especialmente, nas sociedades
democráticas ocidentais), para regulação da economia e da sociedade” 59
Para TCU60, a governança no setor público pode ser definida «como um
conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática
para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políti-
cas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade.»

53 DENHARDT, R. B. Teorias da administração pública. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012.
54 DENHARDT, R. B. Teorias da administração pública. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 23.
55 DENHARDT, R. B. Teorias da administração pública. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 23.
56 MATIAS-PEREIRA, J. Curso de Administração Pública: foco nas instituições e ações governamen-
tais. São Paulo: Atlas, 2008, p. 60.
57 DENHARDT, R. B. Teorias da administração pública. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 23.
58 VIEIRA, T. A. ; VENDRAMINI, P. A governança na prática: o caso do conselho comunitário de
segurança do centro de Florianópolis. I Congresso Internacional de Desempenho no Setor Público,
Florianópolis, p. 192-209, set. 2017.
59 PROENÇA JUNIOR, D.; MUNIZ, J.; PONCIONI, P. (2009). Da governança de polícia à governança
policial: controlar para saber; saber para governar. Revista Nacional de Segurança Pública, ano 3,
edição 5, p. 14-50, ago./set. 2017, p. 18.
60 TCU, 2014, p. 5/6.

223
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

Ainda com fundamento no estudo realizado pelo TCU61, a governança


estaria ligada aos processos de comunicação; de análise e avaliação; de lide-
rança, tomada de decisão e direção; de controle, monitoramento e prestação
de contas. Ademais, são indicadas como funções da governança: definição do
direcionamento estratégico; a supervisão da gestão; o envolvimento das partes
interessadas; o gerenciamento de riscos estratégicos e de conflitos internos; o
auditamento e avaliação do sistema de gestão e controle e ainda a promoção da
accountability e da transparência.
São muitos os desafios para a implementação da governança pública.
A Europa e a América do Norte vivem, desde 1980, um processo intenso
de mudança de paradigma62 na administração pública63, tendente a profissio-
nalizá-la, tornando-a mais eficiente e criativa. Na França, especificamente, as
iniciativas de profissionalização dos altos escalões do governo se concretizam
com a fundação da École nationale d’administration – l’Ena em 1945.
Contudo, na América Latina, observa-se um sensível atraso no processo
de transição e de modernização da máquina pública64 e da própria profissão
da administração65, abrindo espaço para inúmeros casos de corrupção. Diante
disso, a busca por um melhor sistema de governança ganha maior relevância
que a procura por um melhor governo.66
Com efeito, a desconfiança na legitimidade e no funcionamento do siste-
ma é um dos grandes problemas da governabilidade, de modo que o enfren-
tamento à corrupção figura-se como um dos grandes desafios a serem enfren-
tados pelas nações, principalmente por aquelas em que a democracia é uma
experiência recente.67
Nessa linha, portanto, Benevides defende que uma boa governança pas-
sa necessariamente pela implementação de medidas de prevenção e combate
à corrupção, visando evitar comportamentos de agentes públicos tendentes a
afetar o bom desempenho da economia e da política.68

61 TCU, 2014, p. 31.


62 FERGUSON, Marilyn. A conspiração aquariana: transformações pessoais e sociais nos anos 80. 11.
ed. Rio de Janeiro : Record, 1997.
63 DRUCKER, Peter F. Administrando em tempos de grandes mudanças. 5. ed. São Paulo: Pionei-
ra, 1996.
64 KEINERT, T. M. M. Os Paradigmas da Administração Pública no Brasil (1900-92). Revista de Admi-
nistração de Empresas. v. 34, n. 3, p. 41-48. São Paulo: mai./jun. , 1994.
65 KANITZ, S. A quem interessa a Lei 7. 988/45 que atrasou o Brasil? Disponível em: <http://blog.
kanitz.com.br/atraso/>. Acesso em: 28 fev. 2018. ATÉ AQUI.
66 PASCARELLI FILHO, Mario. A nova administração pública: profissionalização, eficiência e gover-
nança. São Paulo: DVS Editora, 2011, p. 96.
67 TAVARES, Maria C. Possíveis fatores explicativos do baixo grau de participação social no Brasil: a
experiência da 1ª conferência sobre transparência e controle social. Mestrado em Administração. Ni-
terói: UFF 2013, p. 88. Disponível em: < http://www.repositorio.uff.br/jspui/handle/1/2756>. Acesso
em: 20 nov. 2017.
68 BENEVIDES, Maria V. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. 4. Ed. São
Paulo: Ática, 2003.

224
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

3. GOVERNANÇA PÚBLICA: PARTICIPAÇÃO POPULAR,


TRANSPARÊNCIA, COMPLIANCE E CAPACITAÇÃO DO AGENTE
PÚBLICO
Para Proença Junior, Muniz e Poncioni (2009, p. 20), há um relativo con-
senso entre os autores ao reconhecerem que o conceito de governança vai além
do escopo governamental, sendo norteado por princípios como “transparência,
equidade, responsabilização, legalidade e o que quer que a agenda política do
momento venha a acrescentar”, articulando interesses e a tomada de decisão
entre múltiplos atores que atuam em cooperação, de forma coordenada, na ex-
pectativa de uma solução efetiva para as demandas públicas que se apresentem.
Com base em trabalho publicado pela International Federation of Accou-
ntants – IFAC, TCU69 indica como princípios básicos que direcionam as boas
práticas de governança para o setor público, a transparência, a integridade e a
prestação de contas.
Sustentamos, portanto, que a implementação do modelo de governança
na esfera pública é um importante mecanismo de combate à corrupção, espe-
cialmente, considerando-se a potencialidade de se agir mediante instrumentos
preventivos contra as condutas ilícitas lesivas aos interesses públicos.
Nesse sentido, ou seja, de se buscar prevenir a corrupção por meio da
governança, entendemos que devem ser destacados a participação popular,
a transparência, o programa de conformidade (compliance) na Administração
Pública, bem como a própria capacitação do agente público, que precisa estar
preparado para, enfim, viabilizá-la.

3.1. PARTICIPAÇÃO POPULAR


A participação da sociedade civil na gestão pública é um direito assegura-
do pela Constituição Federal de 198870 aos cidadãos brasileiros, garantindo sua
participação na elaboração de políticas públicas e na fiscalização da aplicação
dos recursos do erário.71
O conjunto de leis elaborado a partir da Constituição de 198872 assegu-
rou o exercício do controle social à população brasileira, a fim de garantir-lhe
o exercício à cidadania e o controle da Administração Pública baseada em

69 TCU, 2014.
70 Por exemplo, veja o art.74, §2º, da CRFB: “Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindica-
to é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal
de Contas da União”.
71 MEDEIROS, 2009, p. 262.
72 Destaca-se a Lei n. 8.429/192 (improbidade administrativa), LC n. 101/2000 (Lei de Responsabili-
dade Fiscal), Lei n. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), Lei n. 10.520/2002 (Lei do Pregão), Decreto
n. 5.450/2002 (Pregão eletrônico), Lei n. 131/2009 (Lei da Transparência), LC n. 135/2010 (Lei da
Ficha Limpa), Lei n. 12.257/2011 (Lei de Acesso à Informação).

225
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

uma boa governança.73


Há diversas maneiras de exercício do controle pela sociedade em geral. A
título de exemplo, há possibilidade de fiscalização das contas públicas em todos
os níveis federativos, de modo que o cidadão pode conferir se os valores de obras
e serviços prestados foram contratados em compatibilidade com o mercado.74
Esse controle pode se dar tanto de maneira individualizada, quanto por
meio dos conselhos de políticas públicas, os quais possibilitam a participação
da sociedade na gestão pública, uma vez que podem desempenhar funções de
fiscalização, de mobilização, de deliberação ou de consultoria.75
Contudo, o cenário brasileiro revela a dificuldade no desenvolvimento e
na implantação do controle social por meio da participação popular, especial-
mente em virtude da extensão territorial e das enormes desigualdades sociais.
Esses dois fatores por si só são suficientes para influenciar negativamente a
mobilização da sociedade, historicamente influenciada pela herança patrimo-
nialista, quanto à cobrança de melhorias na gestão pública, nas ações do gover-
no, na qualidade dos serviços oferecidos e no combate à corrupção.76
A construção do Estado até o final do século XX revela a manutenção
do controle do Estado sobre a população, evidenciando uma prática invertida
do que seria controle social, notadamente porque as ações são voltadas à pre-
servação “dos interesses do pequeno grupo que conduz a economia no país”, aliadas
à repressão violenta das manifestações populares mesmo durante o período
democrático e do desinteresse da elite econômica em abrir mão dos privilégios
adquiridos na condução do governo.77
Além das razões históricas e culturais, a baixa participação popular em
ações de controle social da gestão pública pode ser explicada pelo despre-
paro para o pleno exercício da democracia, prejudicando a efetividade das
normas legais que visam garantir a transparência e o combate à corrupção .
Assim, será necessário passar por um processo mais elaborado para fazer a
lógica de controle social nos termos propostos pela Constituição de 1988, em
73 TAVARES, Maria C. Possíveis fatores explicativos do baixo grau de participação social no Brasil: a
experiência da 1ª conferência sobre transparência e controle social. Mestrado em Administração. Ni-
terói: UFF 2013, p. 83. Disponível em: <http://www.repositorio.uff.br/jspui/handle/1/2756>. Acesso
em: 20 nov. 2017.
74 ASSIS, Marluce M. O controle social e a democratização da informação: um processo em constru-
ção. Revista Latino-Americana de Letras e Filosofia, v. 11, n. 3, 2010.
75 ASSIS, Marluce M. O controle social e a democratização da informação: um processo em constru-
ção. Revista Latino-Americana de Letras e Filosofia, v. 11, n. 3, 2010, p. 88
76 TAVARES, Maria C. Possíveis fatores explicativos do baixo grau de participação social no Brasil: a
experiência da 1ª conferência sobre transparência e controle social. Mestrado em Administração. Ni-
terói: UFF 2013, p. 21. Disponível em: <http://www.repositorio.uff.br/jspui/handle/1/2756>. Acesso
em: 20 nov. 2017.
77 TAVARES, Maria C. Possíveis fatores explicativos do baixo grau de participação social no Brasil: a
experiência da 1ª conferência sobre transparência e controle social. Mestrado em Administração. Ni-
terói: UFF 2013, p. 75. Disponível em: <http://www.repositorio.uff.br/jspui/handle/1/2756>. Acesso
em: 20 nov. 2017.

226
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

virtude da “total falta de liberdade política e de expressão que a história apresentou


até recentemente”. 78
Por outro lado, Pascarelli Filho assevera que a Constituição Federal dei-
xou a desejar na definição dos limites e das competências para as formas par-
ticipativas (representação direta e indireta), pois “não só remeteu a regulamen-
tação à legislação infraconstitucional, como, também, deixou inúmeras brechas que
facilitam o aparecimento de conflitos passíveis contra a participação direta.”79 Aler-
ta, ainda, que, isoladamente, nenhuma delas é capaz de garantir a governabi-
lidade e, portanto, há uma tendência em buscar a conciliação dessas formas
de exercício da democracia. O equilíbrio entre ambas deve visar evitar que a
participação popular seja resumida a simples meio de consulta, bem como o
evitar o descaso com o exame de leis e projetos essenciais para a população.
Por isso a importância de investimento nas pessoas e no seu compromisso
com o projeto político, de políticas sociais oriundas de ampla negociação do
conflito de interesses e ideologias, de forma a aumentar a consciência cidadã e
capacidade de transformação social e não apenas garantir o acesso da popula-
ção a bens e serviços públicos.80
De todo modo, apesar de todos os reveses e da lentidão no processo de
transformação, é preciso que a sociedade brasileira assuma o papel ativo de
que lhe foi atribuído pela redemocratização do país, não apenas exigindo
maior transparência e ética dos atos públicos, mas também contribuindo
com os gestores públicos para a elaboração e implementação de políticas
públicas efetivas.81
E a Administração Pública que objetiva incorporar princípios de gover-
nança e tem como efetivo propósito prevenir atos corruptos deve estar prepa-
rada para incentivar e absorver esta participação popular.

3.2. TRANSPARÊNCIA
A transparência dos atos dos gestores públicos é pressuposto para a par-
ticipação ativa da população no exercício do controle social, de modo que cabe
ao governo fornecer os mecanismos para que os cidadãos compreendam os

78 TAVARES, Maria C. Possíveis fatores explicativos do baixo grau de participação social no Brasil: a
experiência da 1ª conferência sobre transparência e controle social. Mestrado em Administração. Ni-
terói: UFF 2013, p. 47. Disponível em: <http://www.repositorio.uff.br/jspui/handle/1/2756>. Acesso
em: 20 nov. 2017.
79 PASCARELLI FILHO, Mario. A nova administração pública: profissionalização, eficiência e gover-
nança. São Paulo: DVS Editora, 2011, p. 67.
80 PASCARELLI FILHO, Mario. A nova administração pública: profissionalização, eficiência e gover-
nança. São Paulo: DVS Editora, 2011, p. 70.
81 TAVARES, Maria C. Possíveis fatores explicativos do baixo grau de participação social no Brasil: a
experiência da 1ª conferência sobre transparência e controle social. Mestrado em Administração. Ni-
terói: UFF 2013, p. 80. Disponível em: <http://www.repositorio.uff.br/jspui/handle/1/2756>. Acesso
em: 20 nov. 2017.

227
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

mecanismos de gestão.82
O acesso do cidadão à informação simples e compreensível é o ponto de
partida para uma maior transparência. Greco Filho comenta que a transparên-
cia da gestão pública depende de vários fatores, tais como da publicação de
informações, viabilização de canais de comunicação entre a população e o go-
verno; de Conselhos, órgãos coletivos tanto da esfera pública quanto privada
funcionando adequadamente e de uma apresentação de um orçamento público
de maneira mais simplificada, facilitando, assim, sua compreensão pela socie-
dade e fomentando um processo mais transparente.83
Contudo, isso não é o que se verifica no Brasil, uma vez que o orçamento
público tende a ser ininteligível ao cidadão comum, prejudicando considera-
velmente o controle social.84
Quando se volta o olhar para o âmbito municipal, por exemplo, perce-
be-se um nível de informações predominantemente precário e não metodo-
logicamente padronizadas. A dificuldade de comunicação local é agravada
pelos monopólios de mídia, pois
O pouco que existe em termos de comunicação local, como televisões
locais e rádios comunitárias, tem sido objeto de ataques sistemáticos dos
grandes monopólios da mídia. O direito de uma comunidade ter os seus
instrumentos de comunicação é vital e a sua ausência dificulta imen-
samente qualquer iniciativa participativa de mobilização da sociedade
local. O problema envolve tanto a dimensão jurídica, como soluções téc-
nicas e de gestão. Quanto mais rico for o monopólio da informação, mais
pobre será a democracia.85
Portanto, é preciso ter em mente que a transparência não é alcança-
da pela simples divulgação de informações, mas pela sua comunicação de
forma apropriada – linguagem compreensível e meios de divulgação ade-
quados. Assim, a sociedade deve ser capaz de compreender o orçamento
público e sua relação com as ações contempladas e quais os resultados espe-
rados a longo e médio prazos, sob uma ótica ampla das políticas públicas e
como elas se interrelacionam. Além disso, deve-se considerar a diversidade
de público quando se escolhe os meios de divulgação, visando assegurar o
amplo acesso aos cidadãos.86
Do mesmo modo que se apontou anteriormente, a fim de viabilizar os

82 MEDEIROS, 2009.
83 GREGO FILHO, 2015, p. 67.
84 PASCARELLI FILHO, Mario. A nova administração pública: profissionalização, eficiência e gover-
nança. São Paulo: DVS Editora, 2011, p. 44.
85 PASCARELLI FILHO, Mario. A nova administração pública: profissionalização, eficiência e gover-
nança. São Paulo: DVS Editora, 2011, p. 79-82.
86 PASCARELLI FILHO, Mario. A nova administração pública: profissionalização, eficiência e gover-
nança. São Paulo: DVS Editora, 2011, p. 89.

228
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

objetivos do modelo de governança, a Administração Pública deve fortalecer


medidas de transparência e acessibilidade de dados, o que se liga, positiva e
diretamente, à ampliação da participação popular.

3.3. PROGRAMA DE CONFORMIDADE (COMPLIANCE) NA


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Pironti87 afirma que os conceitos de governança, gestão de riscos e com-
pliance conectam-se na busca por uma atuação preventiva da Administração
Pública, o que pode ser identificado no planejamento de suas atividades e na
orientação de condutas de seus agentes, a fim de que sejam melhor alcançadas
as finalidades públicas que justificam a sua existência.88
As instituições públicas estão submetidas a uma série de riscos, que se
ampliam quando o tema é corrupção. Cabe, então, pensar preventivamen-
te, sopesando custos e benefícios relativos aos instrumentos mais adequados
para preveni-la.
Como aponta Santos89, a utilização de ferramenta de compliance é um ele-
mento de mitigação de riscos.
Compliance é palavra de origem anglo-saxã derivada do verbo to comply,
que significa agir de acordo com uma regra, atuar em conformidade90
A Lei n. 12.846/13, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e
civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública,
nacional ou estrangeira, em seu art. 7o, VIII, determina que deve ser levado em
consideração na aplicação das sanções no PAR (processo administrativo de res-
ponsabilização), a existência de mecanismos ligados à ideia de compliance que,
na norma citada, foram denominados de procedimentos internos de integrida-
de, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de
códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica.
O decreto federal n. 8.420/2015, por sua vez, detalha, em seu capítulo IV,
o programa de integridade e, em seu artigo 41, conceitua-o como sendo o “con-
junto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e in-
centivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética

87 PIRONTI, Rodrigo. Governança, Gestão de Riscos e compliance: uma nova realidade para a Admi-
nistração Pública Brasileira. Direito do Estado. 2017. Disponível em: <http://www.direitodoestado.
com.br/colunistas/rodrigo-pironti/governanca-gestao-de-riscos-e-compliance-uma-nova-realidade-
-para-a-administracao-publica-brasileira>. Acesso em: 30 out. 2017.
88 Em 2016, a Instrução Normativa conjunta MP/CGU dispôs sobre controles internos, gestão de riscos
e governança no âmbito do Poder Executivo Federal.
89 SANTOS, Reinaldo Almeida dos. Compliance como ferramenta de mitigação e prevenção da fraude
organizacional. In: Prevenção e combate à corrupção no Brasil: 6º Concurso de monografias: traba-
lhos premiados / Presidência da República, Controladoria-Geral da União. — Brasília: CGU, 2011.
90 SANTOS, Reinaldo Almeida dos. Compliance como ferramenta de mitigação e prevenção da fraude
organizacional. In: Prevenção e combate à corrupção no Brasil: 6º Concurso de monografias: trabalhos
premiados / Presidência da República, Controladoria-Geral da União. — Brasília: CGU, 2011, p. 164.

229
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios,


fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pú-
blica, nacional ou estrangeira. » O referido decreto determina que o programa
de integridade atenda às especificidades e riscos das atividades de cada pessoa
jurídica, o que deve ser acompanhado por permanente aprimoramento, além
de terem sido estabelecidos inúmeros parâmetros no art. 42 para que ele seja
realmente considerado no abrandamento das sanções.
O decreto n. 1.106/2017, de Santa Catarina, apresenta ainda um rol maior
de exigências para a avaliação do programa de integridade, deixando expresso
no art. 52, § 2o que a efetividade do programa em relação ao ato lesivo objeto da
apuração será determinante para que importe redução das sanções.
É interessante refletir sobre o fato de o legislador nacional ter feito previ-
são, como apontado acima, de programa de integridade para a pessoa jurídica
do setor privado, oferecendo benefícios e buscando o combate à corrupção,
com atuação, portanto, preventiva aos atos ilícitos, entretanto, não ter disposto
acerca de exigência ou mesmo de recomendação de instrumento normativo
equivalente para os órgãos e entidades da Administração Pública.
Breier91 sustenta que o Estado brasileiro assume postura contraditória
ao não investir na prevenção à corrupção, focando a atuação em leis e órgãos
fiscalizadores repressivos, apesar de exigir legalmente das empresas progra-
mas internos de controle e integridade. O autor defende a possibilidade de
implementação de programas de compliance para a área pública, exemplifican-
do-a por intermédio da Lei 190/2012 da Itália, que traça diretrizes de um plano
anticorrupção, que envolve um programa específico para cada órgão de acordo
com os principais riscos a que estão submetidos, devidamente acompanhados
da recomendação de como geri-los e mitigá-los, bem como, de um programa
de internalização de conduta dos agentes e orientação clara sobre como agir,
inclusive, oferecendo acesso para que sejam atendidas dúvidas relacionadas à
interpretação de códigos de ética anticorrupção.
Da mesma forma que a existência de um programa de integridade não
deve ser pensado apenas como forma de proteção a possíveis sanções futuras
decorrentes da apuração de atos de corrupção, mas sim como um mecanismo
para fomentar uma cultura anticorrupção no cotidiano das organizações, na
esfera pública ele não deve representar tão-somente mais um instrumento de
controle isolado, ainda que com um viés preventivo.
Como asseveram Braga e Granado92, a gestão pública já está submetida

91 BREIER, Ricardo. Implementação de programas de compliance no setor público é um desafio. Con-


sultor Jurídico. 2015. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-ago-20/ricardo-breier-com-
pliance-setor-publico-desafio-pais>. Acesso em: 30 out. 2017.
92 BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo; GRANADO, Gustavo Adolfo Rocha Granado. Compliance

230
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

constitucionalmente ao princípio da legalidade e, portanto, regida por um


grande formalismo. Com isto, a implementação do programa de compliance
pode produzir o efeito colateral de uma maior burocratização dos procedi-
mentos, afetando ainda mais a eficiência das atividades públicas. E não se
pode ignorar que ao setor público já são impostas diversas formas de con-
trole. Desse modo, a cultura de compliance, segundo os autores, somente re-
presentará ganhos à Administração Pública se estiver associada à ideia de
prestação de contas dos resultados alcançados em favor da sociedade pela
atividade administrativa.
É evidente, portanto, a conexão entre governança, compliance, participa-
ção popular e transparência, que ofertam elementos para a profissionalização
da Administração Pública, aliada à prevenção da corrupção e fomento da
eficiência.

3.4. CAPACITAÇÃO
A profissionalização da Administração Pública e o combate à corrupção
dependem, inevitavelmente, de agentes públicos conscientes de seu papel de
protagonistas na prevenção de atos lesivos ao bem público, capacitados para
desenvolver as atividades que lhes são inerentes de forma adequada, com a
garantia de transparência e de participação popular.
Defendemos que o fato de os agentes públicos, por uma exigência cons-
titucional e, portanto, em respeito aos princípios da legalidade, impessoali-
dade e moralidade, serem selecionados mediante concurso público, não é o
suficiente para se acreditar que eles estão aptos para lidar com as diversas e
cotidianas situações que se caracterizam como atos de corrupção praticados
contra a Administração, tampouco garante que conheçam o sistema jurídico
específico relativo ao tema93, seja para não praticarem condutas que possam
ser sancionadas como tais, seja, para, a partir dele, pensarem em instrumen-
tos eficazes para evitar e combater a corrupção. Ademais, é possível deduzir
que o formalismo de um concurso público não tem o alcance de selecionar as
pessoas conhecedoras e imbuídas dos preceitos éticos ligados à gestão da coi-
sa pública, e mais que isso, capazes de reconhecer o papel do serviço público
enquanto instrumento de educação política dos seus usuários, identificadas
e comprometidas com o servir ao público. Ao profissional da esfera pública
devidamente qualificado espera-se a combinação entre capacidade técnica e

no setor público: necessário; mas suficiente? JOTA, 2017. Disponível em: <https://www.jota.info/
opiniao-e-analise/artigos/compliance-no-setor-publico-necessario-mas-suficiente-18042017>. Aces-
so em: 24 fev. 2018.
93 Além disso, há falhas na própria estruturação jurídica pertinente ao estudo da corrupção, mostran-
do-se necessário, de forma permanente, o debate relacionado aos dispositivos legais, suas diversas
interpretações e mesmo as suas eventuais inconstitucionalidades. E isto, por si só, já é representativo
da insuficiência do concurso público para enfrentar a questão.

231
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

sensibilidade política entre seus predicados94.


A Convenção da ONU95, já referenciada, prevê em seu Art. 7, 1, « d »,
que: “d) Promoverão programas de formação e capacitação que lhes permi-
tam cumprir os requisitos de desempenho correto, honroso e devido de suas
funções e lhes proporcionem capacitação especializada e apropriada para que
sejam mais conscientes dos riscos da corrupção inerentes ao desempenho de
suas funções. Tais programas poderão fazer referência a códigos ou normas de
conduta nas esferas pertinentes.”
O TCU96 (2017) na publicação « Referencial de combate a fraude e a corrup-
ção: aplicável a órgãos e entidades da Administração Pública », em sua apresen-
tação, assevera que o administrador público é o principal agente nesse combate.
Para o TCU97, os gestores ocupam a primeira linha de defesa, tendo em
vista a possibilidade de identificarem, de forma direta, as falhas durante o
exercício de suas funções. Já a segunda linha de defesa corresponde à unidade
de gestão de riscos e as atividades de compliance. E a terceira é formada pela
auditoria interna da organização.
E, de qualquer forma, em todas essas linhas, por óbvio, os agentes públi-
cos devem, igualmente, estar preparados para atuar.
O exercício da função pública exige conhecimentos em áreas que necessi-
tam estudo e treinamento profissional qualificado nos diversos segmentos em
que o Estado atua, especialmente no tocante a “finanças públicas, política de ad-
ministração, ciência, economia, agropecuária, água, energia, poluição, transportes, vias
públicas transnacionais, logística de engenharia e outros temas vitais”. Além de qualifi-
cação profissional, há o dever de lealdade para com a coisa pública e a sociedade
a qual deve receber um tratamento adequado e um serviço de excelência.98
Nesse sentido, há um movimento na realidade brasileira de revaloriza-
ção da carreira pública que se manifesta na retomada de concursos públicos
para os níveis estratégicos de governo99. O alto nível competitividade pelas
vagas vem exigindo dos candidatos não só um conhecimento profundo das
questões legais exploradas de forma extenuante nos concursos, mas a capaci-
tação constante dos quadros já formados que buscam atualização teórico-me-

94 SECCHI, L.; SOARES, M.; PIRES, V. Concursos públicos e bom governo. Disponível em: <https://
campodepublicas.files.wordpress.com/2013/01/binder1.pdf>. Acesso em 20 fev. 2018.
95 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5687.htm)>.
96 TCU, 2017.
97 TCU, 2017, p. 12.
98 BING, Plinio Paulo. Corrupção – Disfunções de Governo. Repensar o Estado de ontem, hoje e sem-
pre. 1. ed. Porto Alegre: Age, 2016, p. 187.
99 COELHO, Fernando de Souza. Ensino Superior, formação de administradores e setor público: um
estudo sobre o ensino de administração pública – nível de graduação – no Brasil. 2006. 159 f. Tese
(Doutorado em Administração Pública e Governo) – Curso de Doutorado em Administração Pública
e Governo, Departamento de Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio
Vargas, São Paulo, 2006.

232
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

todológica nas práticas, instrumentos e processos de gestão para lidar com os


desafios da esfera pública.
Com esse propósito, cabe ilustrar a crescente oferta de cursos de gradua-
ção dedicados à formação de profissionais cuja concepção pedagógica pode
estar direcionada à administração pública, à gestão pública, à gestão de políti-
cas públicas, à gestão social ou, mais recentemente, às ciências do Estado como
áreas multidisciplinares que formam o chamado Campo de Públicas.
Esse espaço acadêmico se consolida mais fortemente em 2014, quando
o Ministério da Educação publica as Diretrizes Curriculares Nacionais pró-
prias para a Administração pública e Políticas Públicas, até então considerada
uma subárea da Administração (que no Brasil tem o viés empresarial nas suas
matrizes curriculares). Esse foi um longo embate político-institucional capita-
neados por professores, coordenadores, acadêmicos e egressos dos cursos de
graduação dos cursos que compõem o Campo de Públicas com conselhos pro-
fissionais (CRAs e CFA), associações (Angrad) e representantes políticos dos
cursos de Administração (Empresarial) no Congresso Nacional e nos agentes
reguladores (Inep e Capes), pois essas “instituições” barraram a publicação das
DCN por longos quatro anos. O interesse em retardar a regulamentação de
tais cursos pode indicar a predominância de grupos de interesses contrários à
qualificação profissional na esfera pública com razões distintas.
O fato é que os aproximadamente 200 cursos de graduação, entre pre-
senciais e à distância, que se propõem a esse fim, tem o potencial de aumentar
a consciência crítica e instrumental dos profissionais que ingressam na área
pública, seja por meio de concursos, dos servidores públicos comissionados e
mesmo os candidatos a cargos eletivos, para citar apenas os que estão ligados
aos quadros tradicionais da burocracia pública.
Estudos mostram que os alunos formados no Campo de Públicas alcan-
çam um diferencial de atuação ao demonstrar preparo tanto em termos técni-
cos quanto comportamentais para lidar com os desafios que se impõem à ges-
tão pública e que rapidamente são alçados a maiores responsabilidades no seu
ambiente de trabalho100, pela condução ética nas suas ações e pelas entregas/
resultados que são capazes de oferecer, levando em conta os interesses públi-
cos e os trâmites administrativos impostos ao gestor público.
Se até o momento destacamos a importância da existência de um pro-
grama de compliance, da participação popular e da transparência, a fim de que
se concretize o modelo de governança, é evidente a importância de o agente
público estar ciente de qual o seu papel em todos os processos inerentes a cada

100 VENDRAMINI, P. Ensino de administração pública e o desenvolvimento de competências: a con-


tribuição do Curso de Administração Pública da Esag-Udesc. 2013. 258 f. Tese (Doutorado em Ad-
ministração) – Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

233
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

um desses instrumentos e estar capacitado para tanto.


Consoante o TCU101, são medidas antifraude e anticorrupção, mediante
o mecanismo da prevenção e por intermédio dos controles preventivos, a im-
portância de ser estabelecida política e práticas de gestão de recursos humanos
para prevenir fraude e corrupção, bem como a promoção de programa de ca-
pacitação para combatê-las. Nas palavras do estudo do TCU102, “a capacitação
ajuda a criar uma cultura de integridade, ética e conformidade com leis e regu-
lamentos dentro da organização.”
Ademais, o estímulo a enxergar a significação da administração pública
também auxilia no incentivo e a destacar aqueles cujas história de vida geren-
cial adquiriram o respeito dos demais e a afastar a ideia de que tudo é “insensa-
tez e corrupção” na seara pública. Daí, também a importância de “estimulá-los
para que sejam proativos, criativos, eficientes, pacientes, perseverantes na vivência dos
processos, e por eles tomem gosto, para que sonhos, objetivos e resultados possam ga-
nhar alguma forma e fazer alguma diferença”.103
Enfim, o agente público deve estar preparado para concretizar a gover-
nança pública, pois, inexistirá real programa de integridade, transparência
efetiva e participação popular, se as pessoas que compõem a Administração
Pública não estiverem preparadas e alinhadas com tais diretrizes.
Ainda que se reconheça que a capacitação não significará um escudo
à corrupção e que, por vezes, o conhecimento pode, inclusive, represen-
tar uma possibilidade de práticas ilícitas devidamente acompanhadas dos
cuidados para que não sejam detectadas (daí a importância de um adequa-
do gerenciamento de riscos e atualização dos mecanismos de prevenção e
detecção), defendemos ser despiciendo discutir que um ambiente transpa-
rente, participativo e com agentes preparados é muito mais interessante e
benéfico à Administração, do que um cenário oposto, em que a ignorância,
o despreparo, a insegurança, fatores paralisadores da atividade administra-
tiva, estejam presentes.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sem a pretensão de encerrar o tema, o propósito desse capítulo foi am-
pliar o debate acerca da importância da profissionalização para o desenvolvi-
mento dos processos administrativos da esfera pública de modo transparente,
gerenciados de tal modo que o cidadão perceba que as organizações estão sen-
do conduzidas dentro dos preceitos éticos, legais e, sobretudo, imbuídas do

101 TCU, 2017.


102 TCU, 2017, p. 50.
103 PASCARELLI FILHO, Mario. A nova administração pública: profissionalização, eficiência e gover-
nança. São Paulo: DVS Editora, 2011, p. 99.

234
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

espírito republicano que preserve e persiga os interesses públicos.


Ao considerar a redefinição do papel do Estado perante a sociedade, o
resgate da carreira pública e a participação social, a partir da Constituição Fe-
deral de 1988, como elementos inibidores de práticas ilícitas, ganha força a
importância da implementação da governança no setor público, exigindo o ali-
nhamento de interesses, transparência nas deliberações, assim como a presta-
ção de contas ao longo do processo e, sobretudo, do resultado.
A adoção dos princípios da governança também fomenta o envolvimento
dos cidadãos, dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil
na formulação, implementação e avaliação das políticas públicas, que têm o
potencial de corrigir e mesmo de prevenir possíveis distorções de rumo frente
à pressão dos grupos de interesse. O processo democrático tende a se fortale-
cer com a iniciativa dos cidadãos ao desempenhar um engajamento cívico nas
ações de natureza pública.

5. REFERÊNCIAS
ABRAMO, Claúdio Weber. Percepções pantanosas – a dificuldade de medir a corrupção. Novos
Estudos, n. 73, nov. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0101-33002005000300003>. Acesso em: 4 nov. 2017.
______. Relações entre índices de percepção de corrupção e outros indicadores em onze países
da América Latina. Transparência Brasil. Disponível em https://www.transparencia.org.br/docs/
onze.pdf. Cadernos Adenauer, v. 10, 2000. Acesso em: 2 nov. 2017.
ABRUCIO, F. L. Trajetória recente da gestão pública brasileira: um balanço crítico e a renovação
da agenda de reformas. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, Edição Especial Comemo-
rativa, p. 67-86, 1967-2007.
ASSEN, Marcel van; BERG, Gerben van den; PIETERSMA, Paul. Modelos de gestão: os 60 modelos
que todo gestor deve conhecer. 2. ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010.
ASSIS, Marluce M. O controle social e a democratização da informação: um processo em construção.
Revista Latino-Americana de Letras e Filosofia, v. 11, n. 3, 2010.
BARROSO, Luís Roberto, Democracia, Corrupção e Justiça. In: SEMINÁRIO PROGRAMAS DE
COMPLIANCE: Instrumento de incentivo à transparência, à governança e ao combate à corrup-
ção. Brasília: Enfam/STJ/FGV, 2017. Disponível em: <https://youtu.be/nSm0vZSa-CI>. Acesso em:
28 out. 2017.
BENEVIDES, Maria V. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. 4. Ed. São Paulo:
Ática, 2003.
BING, Plinio Paulo. Corrupção – Disfunções de Governo. Repensar o Estado de ontem, hoje e sempre. 1.
ed. Porto Alegre: Age, 2016.
BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo; GRANADO, Gustavo Adolfo Rocha Granado. Complian-
ce no setor público: necessário; mas suficiente? JOTA. Disponível em: <https://www.jota.info/opi-
niao-e-analise/artigos/compliance-no-setor-publico-necessario-mas-suficiente-18042017>. Acesso
em: 24 fev. 2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 10 ago. 2017.
BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.

235
COMBATE PREVENTIVO À CORRUPÇÃO NO BRASIL: PARA ALÉM DO MODELO REPRESSIVO-PUNITIVISTA

planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em 10 ago. 2017.


BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e
civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estran-
geira, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 15 ago. 2017.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos
nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na admi-
nistração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8429.htm>. Acesso em: 15 ago. 2017.
BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Caso Lava Jato. Disponível em: <http://www.mpf.
mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/entenda-o-caso>. Acesso em: 18 out. 2017.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AP 470, 2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/
portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=236494>. Acesso em: 17 out. 2017.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades
da administração pública / Tribunal de Contas da União. Versão 2 – Brasília: TCU, Secretaria de
Planejamento, Governança e Gestão, 2014.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial de combate a fraude e corrupção: aplicável a órgãos
e entidades da Administração Pública/ Tribunal de Contas da União. Brasília: TCU, Coordenação-
-Geral de Controle Externo dos Serviços Essenciais ao Estado e das Regiões Sul e Centro-Oeste
(Coestado), Secretaria de Métodos e Suporte ao Controle Externo (Semec), 2017.
BREIER, Ricardo. Implementação de programas de compliance no setor público é um desafio.
Consultor Jurídico. 2015. Disponível em https://www.conjur.com.br/2015-ago-20/ricardo-breier-
-compliance-setor-publico-desafio-pais. Acesso em 30 out. 2017.
BRESSER PEREIRA, L. C. Uma reforma gerencial da Administração Pública no Brasil. Revista do
Serviço Público, Brasília, ano 49, n. 1, p.5-43, jan./mar. 1998.
CAVALCANTE, R. As raízes da corrupção e como combatê-la. Super Interessante, São Paulo, n. 346,
p. 28-35, maio 2015. ISSN 0104-1789.
CHANLAT, Jean-François. Modos de gestão, saúde e segurança no trabalho. In: DAVEL, E.; VAS-
CONCELOS, J. (Org.). Recursos humanos e subjetividade. 3. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,
2000. p. 118-128.
COELHO, Fernando de Souza. Ensino Superior, formação de administradores e setor público: um estu-
do sobre o ensino de administração pública – nível de graduação – no Brasil. 2006. 159 f. Tese
(Doutorado em Administração Pública e Governo) – Curso de Doutorado em Administração Pú-
blica e Governo, Departamento de Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação
Getúlio Vargas, São Paulo, 2006.
COSTIN, Cláudia. Administração pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
DENHARDT, R. B. Teorias da administração pública. 6. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012.
DRUCKER, Peter F. Administrando em tempos de grandes mudanças. 5. ed. São Paulo: Pioneira, 1996.
FADUL, Élvia; SOUZA, Antonio Ricardo de. Políticas de reformas da administração pública bra-
sileira: uma compreensão a partir de seus mapas conceituais. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO
NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 29, 2005, Bra-
sília: Anpad, 2005. p. 1-12.
FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro:
Editora Globo, 1979.
FERGUSON, Marilyn. A conspiração aquariana: transformações pessoais e sociais nos anos 80. 11.
ed. Rio de Janeiro : Record, 1997.
GOMES, Luiz Flavio. O jogo sujo da corrupção. Baurú: Astral Cultural, 2017.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

236
DENISE PINHEIRO – MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGILL – PATRÍCIA VENDRAMINI

KANITZ, S. A quem interessa a Lei 7. 988/45 que atrasou o Brasil? Disponível em: <http://blog.kanitz.
com.br/atraso/>. Acesso em: 28 fev. 2018.
KEINERT, T. M. M. Os Paradigmas da Administração Pública no Brasil (1900-92). Revista de Admi-
nistração de Empresas. v. 34, n. 3, p. 41-48. São Paulo: maio/jun. 1994.
LUSTOSA DA COSTA, Frederico. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de administração pública;
200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, v. 42, n. 5, p. 829-874, out. 2008.
MATIAS-PEREIRA, J. Curso de Administração Pública: foco nas instituições e ações governamentais.
São Paulo: Atlas, 2008.
PASCARELLI FILHO, Mario. A nova administração pública: profissionalização, eficiência e gover-
nança. São Paulo: DVS Editora, 2011.
PILAGALLO, O. Corrupção: Entrave ao desenvolvimento do Brasil. 1. ed. ed. Rio de Janeiro: Else-
vier/ETCO, 2013.
PINHO, J. A. G. de. Reforma do Aparelho do Estado: limites do gerencialismo frente ao patrimo-
nialismo. Organização & Sociedade, Salvador, v. 5, n. 12, p. 59-79, maio/ago. 1998.
PIRONTI, Rodrigo. Governança, Gestão de Riscos e compliance: uma nova realidade para a Ad-
ministração Pública Brasileira. Direito do Estado. 2017. Disponível em: <http://www.direitodoes-
tado.com.br/colunistas/rodrigo-pironti/governanca-gestao-de-riscos-e-compliance-uma-nova-re-
alidade-para-a-administracao-publica-brasileira>. Acesso em 30 out. 2017.
PROENÇA JUNIOR, D.; MUNIZ, J.; PONCIONI, P. (2009). Da governança de polícia à governan-
ça policial: controlar para saber; saber para governar. Revista Nacional de Segurança Pública, ano 3,
edição 5, p. 14-50, ago./set. 2017.
SANTOS, Reinaldo Almeida dos. Compliance como ferramenta de mitigação e prevenção da fraude orga-
nizacional. In: Prevenção e combate à corrupção no Brasil: 6º Concurso de monografias: trabalhos
premiados / Presidência da República, Controladoria-Geral da União. — Brasília: CGU, 2011.
SECCHI, L. Modelos organizacionais e reformas da administração pública. RAP, Rio de Janeiro,
v. 43, n. 2, p. 347-369, mar./abr. 2009.
SECCHI, L.; SOARES, M.; PIRES, V. Concursos públicos e bom governo. Disponível em: <https://
campodepublicas.files.wordpress.com/2013/01/binder1.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2018.
TAVARES, Maria C. Possíveis fatores explicativos do baixo grau de participação social no Brasil: a ex-
periência da 1ª conferência sobre transparência e controle social. Mestrado em Administração.
Niterói: UFF 2013. Disponível em: <http://www.repositorio.uff.br/jspui/handle/1/2756>. Acesso
em: 20 nov. 2017.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Corruption Perception Index 2016. Disponível em https://
www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016. Acesso em: 05 ago
2017.
UN – United Nations. United Nations Convention Against Corruption. Disponível em: <https://
www.unodc.org/unodc/en/treaties/CAC/>. Acesso em: 20 ago. 2017.
VENDRAMINI, P. Ensino de administração pública e o desenvolvimento de competências: a contribuição
do Curso de Administração Pública da Esag-Udesc. 2013. 258 f. Tese (Doutorado em Administra-
ção) – Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.
VIEIRA, T. A. ; VENDRAMINI, P. A governança na prática: o caso do conselho comunitário de se-
gurança do centro de Florianópolis. I Congresso Internacional de Desempenho no Setor Público,
Florianópolis, p. 192-209, set. 2017.

237
ISBN 978-65-86381-97-9

9 786586 381979 >

Você também pode gostar