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Joyce Palha Colaça

Michel Marques de Faria


Thaís de Araujo Costa

Encontros com
professoras-pesquisadoras:
educação, práxis e discurso

Campinas
2023
Copyright © 2023 Setor de Publicações IEL
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1ª edição
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Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Tiago Pereira Nocera - CRB 8/10468
En17
Encontros com professoras-pesquisadoras : educação,
práxis e discurso / Joyce Palha Colaça, Michel Marques de
Faria, Thaís de Araujo Costa (org.). – Campinas, SP : Unicamp
/ Publicações IEL, 2023.
245 p.
ISBN 978-65-87407-25-8 .
E-book no formato PDF
1. Análise do discurso. 2. História das ideias lingüísticas. 3.
Educação 4. Prática docente. I. Colaça, Joyce Palha, 1982- . II.
Faria, Michel Marques de, 1993- . III. Costa, Thaís de Araujo,
1984-
CDD: 410.9

R. Sérgio Buarque de Holanda, 571, CEP: 13083-859, Cidade Universitária,


Campinas, SP- Brasil.
A academia não é o paraíso, mas o aprendizado, é um lugar
onde o paraíso pode ser criado. A sala de aula com todas
suas limitações continua sendo ambiente de possibilidades.
bell hooks, 2013
S umário
N otas sobre um livro de entrevistas 9

E ntrevista com Á gueda Borges 19

E ntrevista com A manda S cherer 35

E ntrevista com A na M aria Di R enzo 55

E ntrevista com A ndrea R odrigues 69

E ntrevista com C laudia Pfeiffer 81

E ntrevista com E ni O rlandi 105

E ntrevista com Fabiele De N ardi 117

E ntrevista com Freda I ndursky 145

E ntrevista com M araísa Lopes 159

E ntrevista com R ívia Fonseca 169

E ntrevista com S olange Gallo 183

E ntrevista com V anise M edeiros 195

E ntrevista com V erli Petri 205

Rerefências 217

Perfil dos organizadores - entrevistadores ,


das entrevistadas e dos colaboradores 231
Apresentação
8
NOTAS SOBRE UM LIVRO DE ENTREVISTAS

Joyce Palha Colaça (UFS)


Michel Marques de Faria (UNICAMP)
Thaís de Araujo Costa (SaberLing/UERJ/Faperj)

Quando nossa experiência vivida da teorização está fundamentalmente ligada a


processos de autorecuperação, de libertação coletiva, não existe brecha entre a teoria e a
prática. Com efeito, o que essa experiência mais evidencia é o elo entre as duas – um
processo que, em última análise, é recíproco, onde uma capacita a outra.
(hooks, 2017, p. 85-86)

Encontros com professoras-pesquisadoras: educação, práxis e discurso. Eis o


título de um livro que se propõe a trazer, no plural, diferentes encontros
(e, por que não, também desencontros?): entre pesquisadoras, entre
teorias e entre práticas. Ele resulta de um trabalho que as organizadoras
e o organizador vêm tecendo em conjunto desde janeiro de 2022. Tudo
começou com a realização de um minicurso e a coordenação de um
simpósio no I Seminário Interinstitucional e Internacional em Análise
de Discurso (SIIAD), organizado por diferentes instituições brasileiras.
Foi a partir da realização do minicurso Língua, discurso e educação linguística:
propostas discursivas em sala de aula e da coordenação do simpósio Língua,
discurso e educação linguística: da práxis política à prática pedagógica que nos
lançamos nessa rede de interlocução. E o livro que agora chega aos olhos
da leitora/do leitor faz parte dessa rede efetiva, mas, sobretudo, afetiva.
A proposta desta obra nasce da necessidade que se impôs a nós
de uma escuta social, como ensina Pêcheux, ainda sob o pseudônimo de
Thomas Hebert (1996), voltada para a sala de aula, nos diferentes níveis
9
de ensino. Propomos, pois, um livro que seja composto por entrevistas
realizadas com professoras-pesquisadoras do campo das ciências da
linguagem que, ao trabalharem em uma perspectiva discursiva da História
das Ideias Linguísticas (FERREIRA, 2018), se voltem para a reflexão
da práxis docente na educação linguística. Entendemos que a prática de
entrevistas no campo das ciências da linguagem pode ser um instrumento
potente para a constituição, reflexão e circulação do saber científico. E,
por falar em entrevistas, não podemos deixar de mencionar que tivemos
distintas obras nos últimos anos que se voltam para essa prática. Apenas
para situar o leitor, podemos citar: Conversa com Linguistas (XAVIER;
CORTEZ, 2003), Saudades da Língua (ALBANO et al, 2004), Encontros
na Análise de Discurso: efeitos de sentido entre continentes (ADORNO et al,
2019), Experimentações em Arquivo(s): entrevistas com pesquisadores de linguagem
(MEDEIROS et al, 2021). Essas são algumas obras que, partindo de
diferentes lugares teóricos e indo em direções distintas, nos indicam a
importância das entrevistas na prática científica de trabalho no campo das
Ciências da Linguagem. No caso do livro em tela, ao reunir professoras-
pesquisadoras que se dediquem à pesquisa sobre a educação de/em língua(s)
na interlocução entre a Análise de Discurso materialista e a História das
Ideias Linguísticas, tomamos como constitutivo o imbricamento entre
teoria discursiva e prática docente.
Ancoramo-nos, então, na formulação de P. Henry (1997, p. 24),
segundo a qual, a partir de Pêcheux, afirma-se que “a prática política tem
como função, pelo discurso, transformar as relações sociais reformulando
a demanda social”, e nos ensinamentos do mestre Paulo Freire (1996),
para quem, ainda que não seja a chave das transformações sociais,
a educação também não é uma simples reprodutora das ideologias
dominantes, ressaltando-se, com isso, a importância da sua “tarefa político-
pedagógica” para que a mudança do mundo possa ser tomada como uma
possibilidade. Dessa maneira, concebendo a prática pedagógica como uma
10
práxis política ou, nos termos de Sobrinho (2014; 2020), como uma práxis
revolucionária, este projeto de entrevistas também reside na compreensão
de que a sala de aula se configura como espaço de tensão e de contradição.
Nesse sentido, foi nosso objetivo reunir reflexões que tivessem como foco
a educação linguística à luz da Análise de Discurso em seu encontro, ou
não, com a História das Ideias Linguísticas, de tal forma que pudessem
ser contempladas as relações que se estabelecem, na sala de aula, entre
sujeitos, saberes e língua(s). É um modo, pois, de dar consequências a
uma tomada de posição materialista e pensar, na esteira de Payer (2007,
p. 113), uma relação “com a língua que seja sensível ao modo como a
história predispõe a relação dos sujeitos com a(s) língua(s)”, buscando
compreender, especificamente, como essa(s) língua(s) se configuram
enquanto objetos de ensino e, portanto, de conhecimento – a chamada
língua escolar, como formularam Pfeiffer, Silva e Petri (2019).

***

Este Encontros com professoras-pesquisadoras reúne 13 entrevistadas que


se lançaram à reflexão de um conjunto de seis perguntas. Assim, Águeda
Borges, Amanda Scherer, Ana Maria Di Renzo, Andrea Rodrigues,
Claudia Pfeiffer, Eni Orlandi, Fabiele De Nardi, Freda Indursky, Maraísa
Lopes, Rívia Fonseca, Solange Gallo, Vanise Medeiros e Verli Petri são as
professoras-pesquisadoras que nos brindam com questões e inquietações
advindas de seus respectivos percursos na Análise de Discurso e/ou na
História das Ideias Linguísticas. Aqui é importante indicar o critério que
tomamos para o convite feito às entrevistadas: definimos, primeiramente,
que faríamos um livro apenas com mulheres, professoras e cientistas da
linguagem. É, pois, um posicionamento ético-político das organizadoras e
do organizador da obra que vem a lume. A partir disso, estabelecemos que
as pesquisadoras a serem convidadas deveriam: i) estar institucionalizadas;
ii) possuir produções na área de Análise de Discurso e/ou História das
11
Ideias Linguísticas voltadas para a educação linguística; e iii) realizar
orientações de trabalhos (Iniciação Científica e/ou Dissertação e/ou
Teses) na área que tematizassem a educação linguística. Com esses critérios,
totalizamos 21 professoras-pesquisadoras das quais, por diferentes razões,
13 puderam participar. Em função do curto espaço de tempo entre o
aceite de nossa proposta e o envio das respostas, as entrevistas foram
realizadas majoritariamente por e-mail. No entanto, uma obra que traz
no título a palavra encontros não poderia deixar de viabilizar outras formas
para que as professoras-pesquisadoras de nossa área se fizessem presentes.
Com isso, àquelas que responderam com interesse em participar do
livro e manifestaram preocupação com o curto prazo, nos colocamos
à disposição para realizar a entrevista via Google Meet e a sua posterior
transcrição. Isso resultou em duas entrevistas terem sido gravadas e
transcritas. Sobre as transcrições e as revisões: estas também vieram de
encontros ou, melhor situando, do enlace com estudantes de graduação
politicamente comprometidos com o fazer científico da Universidade
Pública. Assim, a acadêmica Irene Cristina Silvério (UNICAMP) e os
acadêmicos Breno Gustavo Silva Freitas (UFS) e Rony Peterson Oliveira
dos Prazeres (UNICAMP) nos brindaram com um trabalho de fôlego
ao, gentilmente, se disponibilizarem para transcrever e revisar as duas
entrevistas. Aos três, agradecemos o empenho pelo trabalho realizado sem
o qual, reconhecemos, o livro não seria lançado do modo como foi.
Sobre as entrevistas que compõem o livro em questão, é importante
dizer que se constituem, de modo geral, de seis perguntas. Sobre estas,
breves comentários: a primeira pergunta diz respeito ao percurso de
formação feito por cada uma das entrevistadas. Consideramos importante
dar a saber como foi-se constituindo um percurso de pesquisa que não
é linear e que tampouco se dá em uma relação direta. São percursos de
idas e vindas e que, de algum modo, afetam nossa relação com o objeto
de pesquisa. Essa pergunta teve o objetivo de fazer conhecer melhor os
12
caminhos tomados por cada professora-pesquisadora, dar a saber suas
trajetórias e compreender como se justifica sua participação nesta obra
por todo o percurso que trilharam na relação com a teoria discursiva e
com a educação no Brasil. Ou seja, trata-se, em última instância, de uma
pergunta cujo propósito foi homenagear suas histórias.
As três perguntas seguintes dizem respeito a algumas inquietações
que, frutos de nossa prática docente, buscamos compartilhar com
as professoras-pesquisadoras. Nelas, objetivamos mapear possíveis
contribuições da Análise de Discurso e da História das Ideias Linguísticas à
educação linguística; o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo e contribuições para a prática pedagógica; além de buscar
compreender como os (des)encontros – entre teorias, pesquisadores e
projetos – possibilitam empreender o que estamos começando a conceber
como uma educação discursiva no Brasil. Todas essas quatro perguntas
iniciais foram feitas de igual forma para as entrevistadas.
Esperamos, nesse sentido, que nossas/nossos interlocutoras/es
neste texto compreendam que não objetivamos – até porque seríamos
inconsequentes com a teoria que habitamos se assim o fizéssemos –
respostas diretas e objetivas para nossas perguntas ou fórmulas para uma
educação de base materialista, mas, tão somente, intentamos percorrer
pela teoria alguns possíveis caminhos, vislumbrando compartilhar a
experiência dessas pesquisadoras na formação de professoras/professores
de/em línguas a partir de sua reflexão inscrita na teoria discursiva.
Seguindo as perguntas, chegamos à nossa quinta questão. Essa,
diferentemente das anteriores, diz respeito à produção teórica/prática
que cada professora-pesquisadora vem desenvolvendo. Assim, a leitora
/o leitor poderá conhecer um pouco do trabalho discursivo que nossas
entrevistadas vêm desenvolvendo em suas respectivas pesquisas. Por fim,
em uma pergunta-fecho, pedimos que nossas professoras-pesquisadoras
se colocassem em um exercício de projeção e refletissem sobre qual(is)
seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma tomada de posição materialista
do professor em sua práxis pedagógica na escola básica. Às que
13
considerassem pertinente, deixamos ainda um espaço para que fizessem
suas considerações finais e abordassem algum outro tema que, porventura,
não tivesse sido tratado no decorrer da entrevista.

***

Na apresentação do Glossário de Termos do Discurso, Maria Cristina


Leandro-Ferreira nos apresenta uma inscrição que merece que se lute
por ela1. Lá, a analista de discurso nos diz “sem afeto ou com afeto, o
fato é que a Análise do Discurso nos afeta” (FERREIRA, 2020, p. 16).
Compreendemos, de nosso lugar teórico, que há muitas formas de
sermos afetados (diríamos mais: capturados) pela Análise de Discurso.
Estabelecer uma rede de trabalho em AD-HIL afetiva é uma das formas.
E o livro em tela, pela reunião das 13 professoras-pesquisadoras citadas
anteriormente, não se faz fora de uma rede afetiva, como bem marcamos
no início de nossa apresentação, e que de diversas maneiras afetou as
organizadoras e o organizador ao longo de sua formação. A leitora e o
leitor que se propuser à leitura deste livro terá contato com diferentes
formas de pensar questões que, para nós, são caras: o discurso, a educação
e a prática docente. Não há, contudo, um fio condutor para a sua leitura.
Aquela/aquele que caminhar pela tessitura da obra terá a oportunidade de
se deparar com diferentes (des)encontros: entre percursos de formação,
entre o olhar para os diferentes objetos de pesquisa, entre aquilo que cada
professora-pesquisadora tem produzido. Muitos são os caminhos a serem
realizados por aqui, muitos são os olhares que podem ser lançados para as
questões que vão sendo formuladas.

***

Ao reunirmos professoras-pesquisadoras de diferentes instituições,


acreditamos que elas não deixam de considerar a língua em sua historicidade

1
Aqui fazemos referência à obra de Milan Kundera, A vida está em outro lugar, retomada
em A Língua Inatingível (GADET; PÊCHEUX, 2010).
14
– inscrição incontornável para a Análise de Discurso. É no batimento entre
língua e história que se insere, também, a presente proposta. Afinal, pensar
a educação é também considerar a historicidade e os sujeitos – alunas/
os e professoras/es – que são atravessadas/os pela(s) língua(s) (em) que
falam/ensinam/aprendem.
Buscando reiterar nossa inscrição em um lugar de interlocução,
de escuta, e, é certo, de encontros, esse livro se vincula às discussões
realizadas também no âmbito de projetos de pesquisas coletivos que são
realizados em diferentes instituições brasileiras, a saber: o Grupo Arquivos
de Língua (UFF/CNPq/Faperj)2, o Arquivos de Saberes Linguísticos
(UERJ/Faperj)3, o Programa de Pesquisa Institucionalização da HIL
no Brasil (UFF-UFSM-UNICAMP)4, o Programa e Grupo de Pesquisa
O Cotidiano na História das Ideias Linguísticas do Brasil (Unicamp)5 e
o Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais e Linguísticos (UFS)6. A
vinculação com estes projetos mostra um trabalho reflexivo que avança
coletivamente e que se estabelece também por relações de afeto, de
trabalho e de admiração.
Por fim, gostaríamos de deixar nosso agradecimento ao Instituto de
Estudos da Linguagem da UNICAMP, no âmbito da Coordenadoria de
Extensão. A publicação deste livro só foi possível em função de um edital
para submissão de propostas de e-books para os novos selos editoriais

2
Sobre o Grupo Arquivos de Língua: https://gal.hypotheses.org/.
3
Sobre o Arquivos de Saberes Linguísticos (Processo Faperj No. E-26/211.851/2021),
acesse: Instagram (@arquivosdesabereslinguísticos) e Facebook (https://www.facebook.
com/arquivosdesabereslinguisticos/).
4
Sobre o Programa de Pesquisa Institucionalização da HIL no Brasil, recomendamos a
seguinte leitura: SCHERER, A. et al. História das ideias linguísticas e sua institucionali-
zação: um primeiro percurso em um programa coletivo de pesquisa. Linguagem & Ensino,
Pelotas, v. 24, n. 3, p. 646-659, jul.-set. 2021.
5
Sobre o Grupo O Cotidiano na História das Ideias Linguísticas do Brasil: https://www.
colhibri.site/.
6
Sobre o Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais e Linguísticos - DInterLin (UFS),
acesse o Instragram: @dinterlin | https://www.instagram.com/dinterlin/.
15
criados pelo IEL que objetivam “ampliar a circulação da produção literária
e de divulgação científica da área e de atender a demandas de comunidades
internas e externas ao IEL relativas a estudos sobre literatura, linguagem
e ensino-aprendizagem de línguas”. Ter nossa proposta selecionada muito
nos alegrou. Com ela, esperamos, então, contribuir com os debates que
atravessam a prática docente na educação ao fomentarmos um olhar
discursivo-materialista para, assim, afetar estudantes de graduação e
professores das redes de educação básica.

Aracaju – Campinas – Rio de Janeiro, abril de 2023.

16
Entrevistas

17
18
E ntrevista com Á gueda Borges
Universidade Federal do Mato Grosso

“Da mesma maneira que a história formal apaga os feitos de mulheres, no movimento
feminista a atuação de mulheres não-ocidentais também é desconhecida de grande
parte, ressaltando a diversidade étnica. De algum modo, a visibilidade de mulheres
indígenas, não apenas no mundo acadêmico, nas nossas pesquisas, é possibilitada pelo
enfrentamento de mulheres não indígenas. Neste caso, eu afirmo, no desenvolvimento de
pesquisas, no deslocamento para o convívio em áreas indígenas, reiterando que também
as mulheres não indígenas são/foram ofuscadas nas suas histórias de mulheres/
pesquisadoras. Assim, silenciadas no modo como aprenderam, apreenderam essa língua
imposta e passaram a utilizar da escrita dessa língua.”

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Águeda Borges: De fato, o percurso de pesquisa é tortuoso, ele se faz


no entremeio de perguntas movidas pelas curiosidades que, ao longo da
vida, vão se estabelecendo nas nossas relações. O objeto de pesquisa não
surge simplesmente, ele é resultado de uma construção social, histórica,
cultural, afetiva. A gente vai sendo capturada pela pesquisa, pelo objeto
selecionado e, obviamente, pela escolha/identificação teórica. Exige-se da
pesquisadora uma aliança com o objeto, aqui não dá para aceitar desvios.
Lembro do meu encantamento, ainda na graduação, com a leitura de
Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes (1981, p.64): “o meu
interesse pela linguagem é porque ela me fere ou me seduz [...] a linguagem
19
é uma pele, esfrego minha linguagem no outro, é como se eu tivesse
palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras...”. Eu diria
que é preciso ter uma relação de amor, de prazer mesmo, com a área de
pesquisa que escolhemos. Essa decisão tem que vir na espessura do nosso
sentimento encontrando, obviamente, desenhando o recorte da pesquisa
que precisa fazer muito sentido. Eu sempre gostei da linguagem nas suas
mais diversas manifestações, aprendi a ler com a minha avó Genesina (in
memoriam), com quem fui criada. Ela era professora do campo, em classe
multisseriada, dela trago as minhas primeiras escritas/leituras, impressas
em livros de Ata, com a mais linda caligrafia que já vi. Gostava de ler e
decorar poesias longas. As linguagens me atravessam e me constituem…
Na escola, eu achava bem esquisito estudar a Gramática como se fosse
a língua, obviamente, muito mais tarde, eu descobri os fundamentos.
Bem! O Curso de Letras veio como consequência e demorou7. Tem uma

7
Eu fui escrevendo e, na revisão, percebi que havia excedido na história. Considerando
que tenho afeição pelas notas de rodapé, pois elas alicerçam os textos, decidi seguir a nar-
rativa aqui. [...] Depois, nos mudamos para uma cidadezinha do interior de Minas Gerais,
Serra do Salitre, onde me ingressei no Ensino Primário e cursei o, na época, chamado Gi-
násio. O Segundo Grau exigiu outro deslocamento, fui morar em Patrocínio, no mesmo
Estado, depois de ter sido aprovada no, então, chamado Exame de Admissão e feito uma
seleção para ingressar na Escola Estadual D. Lustosa… era assim que funcionava. Muitas
luas se passaram, como era o costume, quem tinha parentes na capital era acolhido para
“seguir os estudos”. Fui encaminhada para a casa de tios em Belo Horizonte, com o ob-
jetivo de me preparar para o vestibular, mas meu pai faleceu (vixe!!! Aqui cabe história),
eu precisava trabalhar e surgiu a oportunidade de vir lecionar em Mato Grosso (Já aqui,
eu teria que escrever um livro de memórias, quem sabe!?). Eu já sabia que queria ser pro-
fessora e, por interpelação dos tios com quem morava, tinha conhecimento da história
de um Bispo da região do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, que era poeta e se filiava a
uma Igreja Progressista, da Teologia da Libertação, do lado dos pobres, da educação. A
região, naquele período, finalizando o ano de 1982, com a retomada da democratização,
pós-ditadura militar, era muito carente, precisavam de professores e eu vim… Aprendi a
ser professora sendo. A Universidade, por um tempo ficou no sonho, pois no ano seguin-
te me juntei ao meu companheiro, tivemos, em 5 anos, 4 filhos, mas não parei nunca de
trabalhar, de ler e estudar. Morei em Ribeirão Cascalheira, contratada pelo município de
Canarana, lecionei de tudo, Língua Portuguesa, História, Artes, Educação Física... Eu ha-
via cursado o Científico, como era nomeado o Ensino Médio, pois a pretensão era seguir
os estudos e, veja, para ser professora eu precisava ter o Magistério. Foi aí que ingressei
20
história longa constitutiva desse meu lugar de pesquisadora que consiste
em compreender a constituição discursiva/subjetiva de povos indígenas
na relação com o espaço urbano. Não poderia ser outro campo teórico,
senão o da Análise de Discurso de base materialista, a me interpelar, pois eu já
tinha o chão da história, da crítica, da inquietação. No Curso de Letras, do
“Projeto de Licenciaturas Plenas Parceladas” da Universidade do Estado
de Mato Grosso, em Luciara-MT, a teoria me foi apresentada pela minha
sempre orientadora, a prof.ª Dr.ª Mònica Graciela Zoppi-Fontana. À
medida que ia compreendendo os conceitos, enxergava a possibilidade
de preencher a minha ansiedade/desejo em trabalhar, na/pela linguagem,
com a diferença, a contradição, a ideologia, o sujeito, o espaço, o corpo…
muito timidamente e, dali em diante, a minha relação com as questões
de linguagem nunca mais foram as mesmas. Aprendi que é preciso
problematizar sobre o que se nos apresenta como estabelecido. Estamos
vivendo um tempo de incertezas e dúvidas, conflitos, violências de toda
forma. Os limites são fluidos e fugidios… Bem, retornando, nos primeiros
contatos com a teoria, comecei a perceber que as minhas questões eram
discursivas e afetavam o processo de identificação/subjetivação dos
sujeitos na relação com o tempo, o espaço, a língua, a cultura, a economia,
a política, o corpo – o olhar. Lembro Pêcheux (1999), é nesse espaço
de retomadas, conflitos, regularizações que uma trajetória de pesquisa
se constrói. E Orlandi (2001, p. 46): é lá onde o esquecimento emerge

numa formação de Magistério (o Programa era o Logos II) com o intuito de prestar o
Concurso de professores para o Estado. Prestei, fui a 3ª colocada. As circunstâncias nos
levaram a mais uma mudança, agora, para Santa Terezinha, na divisa do Mato Grosso
com o Pará e lá passei a atuar na Escola Estadual, com Língua Portuguesa. Ah! É preciso
dizer que a vivência com povos indígenas já começava a se instaurar na minha vida. Em
1990, meu companheiro, também professor e com experiência em Comunicação, foi con-
vidado para trabalhar numa rádio que estava sendo ampliada em São Félix do Araguaia,
eu estava grávida da minha caçula e já tinha 3 pequenos, mas encaramos, pedi minha
remoção e lá fomos nós… A graduação veio mais tarde, num Projeto muito especial
discutido com a Universidade Estadual de Mato Grosso, a partir das necessidades que
tínhamos na região. A Unicamp, veio dois anos depois nesse ‘bonde’ em andamento...
21
para significar o “[...] acontecimento do significante no mundo”. Sem a
Análise de Discurso e o diálogo com a História das Ideias Linguísticas, eu jamais
conseguiria entender o modo como se constitui o Outro, o diferente,
particularmente, esse Outro constitutivo do meu espaço de vivência.

***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

A. B.: Suponho que para dar conta da resposta eu precise acrescentar


outros motivos que justificam o meu relacionamento estreito com
a Análise de Discurso. A Análise de Discurso de base Materialista não é uma
teoria pronta, pois ela não estaciona no sistema da língua, mas funciona se
assegurando nele. O discurso toca a língua em toda a sua complexidade e
se afasta para buscar a compreensão do acontecimento de linguagem em
qualquer que seja a materialidade significante, ou seja, a Análise de Discurso
é uma teoria em movimento. Além disso, se coloca no entremeio com
outras teorias como é o caso da História, da Geografia, da Sociologia,
da Antropologia, produzindo deslocamentos, o que para mim é muito
importante, principalmente pelo fato de eu trabalhar com povos indígenas,
ou seja, na relação com outra sociedade, outras línguas, outros modos
de ser, se ver, de viver, de amar. Essas palavras iniciais servem, também,
para que eu possa estabelecer um diálogo com o campo da História das
Ideias Linguísticas, especialmente, nos trabalhos que envolvem as línguas
na história, como eu disse, os que desenvolvo com povos indígenas. A
História das Ideias Linguísticas contribui para a compreensão dos processos
22
de institucionalização da língua e de seu conhecimento na relação
necessária com o Estado. Ela envolve o conhecimento linguístico, o
Estado e a sociedade não como aplicação, por isso mesmo é fundamental
não só para o pesquisador, em termos de compreensão dos processos
de institucionalização, de proposição de políticas linguísticas, mas
para entender os discursos pedagógicos, como bem vem escrevendo a
professora Eni Orlandi desde os idos de 1983. E, ainda, acerca do ensino
de língua, não só como forma, conteúdo, mas como próprio das relações
do sujeito no espaço da escola e também nos espaços de convivência
social. Lembro Paul Henry (1997) quando o autor escreveu que foi com
o propósito de romper com a tradicional concepção instrumental de
linguagem que Pêcheux elaborou teoricamente a noção de discurso. Essa
tentativa de ruptura com a concepção dos estudos de linguagem como
instrumento, como ferramenta, foi determinante para que se desenvolvesse
essa orientação teórica de tamanha importância. Então, nessa perspectiva,
é impossível pensar essas teorias como aplicação/uso, pois é preciso ter
como princípio a indissociabilidade entre sujeito e língua, tomando a língua
inscrita na história que não se aparta do sujeito que a constitui. Bom, a
parte mais complexa vem agora, a nossa tarefa de linguistas-analistas de
discurso e estudiosos das histórias das ideias linguísticas é desenvolvermos
as nossas pesquisas vislumbrando o funcionamento da prática linguística
ao ensino. Já discuti muito com estudantes de Licenciaturas, não só de
Letras, que a noção de sujeito, tal como é reconhecida pela Análise de
Discurso, juntamente com o conceito de condições de produção podem
servir para situar e, ao mesmo tempo, deslocar o estudante para outro
modo de leitura e novos gestos de interpretação. Sair do sentido fixado
no texto já aponta para a incompletude, para a abertura dos sentidos. Essa
tarefa não é simples, embora faça parte de uma discussão histórica, pois
a escola ainda permanece atrelada aos modelos, à confusão do ensino de
Gramática Normativa como ensino de língua, menosprezando a língua
23
fluida dos educandos. Muitos egressos que se tornaram professores já me
disseram que não sabem o que fazer com tanta teoria quando vão para a sala
de aula. Então, tem muita coisa que já está melhor, mas há muito ainda que
se fazer para uma efetiva educação linguística. Não tenho passos a seguir,
sou muito sensível aos acontecimentos linguísticos, à língua funcionando,
não me prendo a fórmulas, modelos prontos, evito reproduções. E, claro,
sempre refletindo teoricamente, vou aprendendo a fazer.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

A. B.: De certo modo, já começamos a falar sobre isso na questão anterior.


Seguindo a reflexão, é necessário deixar bem claro que a prática não é a
aplicação de uma teoria, já que ela é constituída de muitos outros aspectos
da vida, da história, dos modos de conhecer de quem a pratica. Ou seja,
a prática não está atrelada apenas a um construto teórico sistematizado,
fixo. Ela é também movimento, é observação, é identificação dos sujeitos
envolvidos e as condições de produção que vão para além do quadrado
da sala de aula. Geralmente, os educadores ficam presos às determinações
da escola ou da coordenação de modo a cumprir com o que já está
estabelecido no Projeto Pedagógico da escola onde atuam. Além disso, as
diretrizes, quando se trata de escola pública de ensino básico ou médio, já
estão atreladas às orientações do Ministério da Educação (MEC). Então,
destaca-se a importância de se lembrar sempre que cabe ao(à) professor(a)
determinar o caminho a ser seguido na disciplina sob sua responsabilidade e
buscar meios de se submeter às instâncias que produzem os modelos a serem
seguidos. Obviamente, a filiação teórico-metodológica é determinante nos
24
procedimentos de construção da práxis. Assim, um sujeito filiado a “uma
perspectiva discursivo-materialista”, certamente, vai abrir brechas para se
posicionar, para se inscrever numa “formação discursiva” como discurso
sempre em (trans)formação, sempre atravessado por fios de outros
discursos. A contribuição de uma perspectiva discursiva materialista serve
para desfiar a trama de fios que se cruzam, se cortam e se constituem nos
discursos: familiar, religioso, científico, didático, literário, político dentre
outros. Serve para atravessar a transparência da linguagem, do sujeito, da
história e realizar a práxis pedagógica, produzindo a tão repetida crítica.
Ressaltando, sempre, que aí se assenta o caráter revolucionário atribuído
pela Análise de Discurso aos estudos da linguagem, afastando-se do aspecto
meramente formal e categorizador conferido pelo estruturalismo.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais —
entre teorias, pesquisadores e projetos — possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

A. B.: Interessante! Andei pensando que, talvez pela experiência de


isolamento e, até, de alguns Eventos Virtuais que se estenderam na rede,
abrindo espaço de relação com grupos diversos, nos dois primeiros
eventos presenciais pós-pandemia de que participei, senti que as bolhas não
estavam tão fechadas e em disputa. Eu mesma saí da zona de conforto, ou
seja, dos Simpósios de AD e coordenei, junto com um professor linguista
que descreve línguas indígenas e uma professora indígena Kaingang, um
Simpósio de Línguas Indígenas: práticas gramaticais e linguageiras e saibam que foi
muito produtivo. Essas trocas, diálogos teóricos, são muito importantes.
Não é na alteridade, na diferença que nos constituímos? Eu aprendo
25
demais quando me inscrevo em espaço de múltiplas línguas e saberes. E me
atento para o fato de que nenhuma das línguas funciona sozinha. Somos
sujeitos atravessados por diversas línguas, embora, principalmente no meio
acadêmico, muitos considerem que haja uma língua de ciência, o inglês.
Na academia, além da disputa entre sujeitos na corrida pela produtividade,
há, também, uma disputa entre línguas. É preciso fazer ruir essa disputa e,
no mínimo, criar aberturas para novos/outros conhecimentos linguísticos;
especialmente, falo muito nas línguas indígenas que nos constituem e
porque estão ligadas ao meu objeto de estudo. Mas me pergunto: por
que não abrir estudos que coloquem as línguas em diálogo? Será que
“viajo” quando penso que é possível mais aprender sobre educação
linguística pensando junto sujeitos, línguas, histórias, sociedades, culturas
e seus funcionamentos? Para isso, a educação precisa se libertar dos
currículos fechados. Seria necessário desenvolver estratégias de relação
entre as diferenças e para o nosso fortalecimento e inscrição na Ciência
que produzimos. Sou consciente de que a teoria, por si, não dá conta
disso, pois uma prática nessa orientação desestabilizaria as estruturas
montadas. Teria que partir do reconhecimento das diferenças existentes
entre nós, por exemplo, entre indígenas e não indígenas. As diferenças
não são o que nos separam. O que nos separa é o não reconhecimento
delas e, obviamente, as distorções em apagá-las, por isso mesmo, quanto
mais nos abrirmos à escuta, mais saímos dos casulos. Só para exemplificar,
dentre os não sei quantos trabalhos que orientei tive a oportunidade de
orientar um em que a acadêmica fez uma análise discursiva de imagens de
indígenas em Livros Didáticos de História para o Ensino Fundamental e
Médio. A autora tornou-se professora e já me disse que a prática docente
dela não seria a mesma não fosse essa pesquisa. Fazemos as seguintes
considerações no texto:
Os LD analisados tocam o indígena, mas não produzem a mudança histórica
em condições de produção atuais. Em relação ao livro do ensino fundamental,

26
percebemos a tentativa de ruptura e inserção do indígena pela autora, no
entanto, o discurso que prevalece é do sujeito colonizador, que vê o indígena
de forma genérica e estereotipada. O livro não aborda as diferentes etnias na
contemporaneidade, o que é realidade, pelos movimentos indígenas, cada dia
mais crescentes em nosso país. Nos recortes do livro do Ensino Médio, em
nenhum momento identificamos, ao menos, a tentativa de ruptura, pois, a
formação discursiva referente ao indígena, remete ao imaginário do período
da colonização, ou seja, apenas do indígena do passado, como se eles não
existissem mais ou, até mesmo, não vivessem ao nosso lado, na escola, na
cidade. Consideramos, que a hipótese desse estudo, de que crianças e jovens
a partir do que aprendem na escola, podem construir conceitos equivocados
em relação aos povos indígenas é confirmada. Pelo visto, ainda há que se ter
muita luta para a construção de outra imagem dos povos originários e para o
reconhecimento da alteridade. (BORGES & SILVA, 2021, p. 288)

A experiência de ensino/aprendizagem com povos indígenas, desde


a minha filiação às teorias discursivas, me ensina muito. Ao assumir um
trabalho com Educação Escolar Indígena, nós não indígenas precisamos
nos deixar afetar; pelo modo de ser indígena, é preciso significar. A
atitude de abrir-se ao modo de ser do Outro possibilita um trabalho
em cooperação, num movimento contínuo que recria a vida em sua
intensidade, em cada tempo-espaço em que a educação escolar se está
constituindo. No caso, é o efeito de sentido de toda uma história povoada
pelo meu contato com povos indígenas diversos que, desde o encontro
com esses povos, vem se constituindo de várias maneiras: no convívio
mesmo da amizade, na pesquisa e nas relações de ensino aprendizagem
em via de mão dupla, pois tanto eu tenho aprendido quanto, na medida
do possível, ao me inscrever como professora de Língua Portuguesa, em
alguns Programas, tento ensinar. No processo formal de escolarização
indígena, que tem sido objeto de preocupação e de ações concretas tanto
por iniciativa das próprias comunidades e organizações indígenas quanto
do Ministério da Educação e das Secretarias de Estado e Municipais, o
desafio vinha sendo (foi interrompido durante o Governo derrotado nas
27
últimas eleições) por parte de todos, indígenas e não indígenas, investir na
“descolonização da escola indígena” (ORLANDI, 1999) e descolonizar os
conceitos, os métodos fechados não só na educação escolar indígena, mas
na educação em geral. É urgente superar os modelos de escola que foram/
são transportados para as aldeias, ou seja, trabalhar pela construção de
uma escola indígena, na especificidade de cada povo, de cada comunidade,
fazendo sair do papel as propostas da chamada educação diferenciada. Suponho
que dada a diversidade de estudantes que recebemos nas Universidades,
principalmente, resultada do Programa de Expansão das Universidades
Federais nos anos 2000/2010, algumas áreas do conhecimento podem
contribuir para isso, e aqui de modo especial: a Pedagogia e a Linguística.
No entanto, para que isso ocorra é preciso que haja um deslocamento.
No caso da Pedagogia, que, frequentemente, tem se abdicado do caráter
de ciência da educação para se reduzir a um discurso afirmativo, sagrado,
definido, normativo, necessitaria assumir mudanças profundas no seu
enfoque e, antes de tudo, abrir mão do que já está previsto, alicerçado
pelos poderes e saberes que têm determinado como é/deve ser a educação
escolar. Para realizar uma educação discursiva no Brasil, é preciso lançar os
olhos à realidade, recuperar Paulo Freire, deixar-se afetar pelas forças das
condições de produção. Lembrar, por exemplo, que os povos originários
não estão mais somente nas aldeias, estão na cidade, em relação com o
mundo, com o Outro, com sociedades que têm suas formas próprias de
organização. Eles pertencem a sociedades que se estão (re)construindo no
conflito, na tensão do inevitável contato, há mais de cinco séculos. Em
relação à Linguística, é preciso deslocar-se da prática meramente formal,
que é como o ensino de Língua Portuguesa vem sendo repetido, para um
ensino que produza efeitos de sentido, numa perspectiva discursiva que se

28
situa no funcionamento da linguagem nas diversas práticas tanto dentro
quanto fora da escola como já escrevi.
***

Em suas pesquisas, você tem voltado seu olhar para a escrita indígena,
tendo como objetivo compreender os modos de subjetivação de
mulheres indígenas em seus processos de produção escrita. No
texto “Escrita indígena, discurso, resistência e cidadania”, em que
analisa uma obra de Eliana Potiguara, você afirma que a escrita
indígena “se transforma em sentidos de uma prática de resistência
contra as diferentes formas de poder” (BORGES, 2019, p. 21). Nessa
direção, gostaríamos de retomar uma pergunta que você (se) faz
no mesmo artigo: “Qual fio dessa ‘rede discursiva’ de aspectos me
permitiria entrar no universo complexo de subjetivação de mulheres
indígenas pela escrita?” (BORGES, 2019, p. 17). Partimos desse
questionamento para, então, pensar em como é possível relacioná-
lo ao seu projeto atual sobre escrita e sobre a constituição subjetiva
na produção de textos dos cursos superiores. Desse modo, como
compreender os processos de subjetivação da mulher indígena,
considerando os sentidos sobre resistência, em uma escrita que,
historicamente, se calca em moldes colonizados como é a escrita
acadêmica e qual a importância dessa discussão para a formação de
professores na área das linguagens?

A. B.: A questão é longa, e talvez aqui também eu traga parte da discussão


feita anteriormente. Contudo, vou aproveitar deste espaço de escrita para
fazer um percurso em algumas reflexões que venho fazendo até chegar nas
proposições atuais e que se ligam ao espaço de silenciamento de mulheres,
em geral, na ciência, imaginem mulheres indígenas! Pois bem, existem
muitos exemplos de mulheres que, ao longo da história, se destacaram nas
áreas da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática e – eu destaco
29
– das Letras. Inclusive, na história do patriarcado, há inúmeros casos
nos quais os homens se aproveitaram dos conhecimentos das mulheres
para brilhar com seus trabalhos. Quero afirmar com isso que o lugar da
mulher na produção científica é, também, um lugar de lutas e não pode ser
desvinculado da luta de gênero, da luta étnica, da luta pela(s) língua(s)...
escrevi sobre isso, num texto em homenagem a mulheres pesquisadoras/
cientistas tanto indígenas quanto não indígenas8. Reflitamos: no caso das
mulheres indígenas, posso dizer que são lideranças fundamentais na luta
dos povos pelo reconhecimento de sua terra, de sua identidade, da língua
própria. As diferentes etnias brasileiras estão representadas na atuação e
participação política de muitas mulheres indígenas. Como tantas outras,
elas também se veem, muitas vezes, divididas entre tantos afazeres e
responsabilidades na aldeia e enfrentam, como nós, a violência de gênero.
Porém, essas mulheres enfrentam questões que dificilmente encontram
simpatia da população brasileira e que, geralmente, são ignoradas por
mulheres ocidentais. Da mesma maneira que a história formal apaga
os feitos de mulheres, no movimento feminista a atuação de mulheres
não-ocidentais também é desconhecida de grande parte, ressaltando a
diversidade étnica. De algum modo, a visibilidade de mulheres indígenas,
não apenas no mundo acadêmico, nas nossas pesquisas, é possibilitada
pelo enfrentamento de mulheres não indígenas. Neste caso, eu afirmo,
no desenvolvimento de pesquisas, no deslocamento para o convívio em
áreas indígenas, reiterando que também as mulheres não indígenas são/
foram ofuscadas nas suas histórias de mulheres/pesquisadoras. Assim,
silenciadas no modo como aprenderam, apreenderam essa língua imposta
e passaram a utilizar da escrita dessa língua. Os motivos gráficos impressos
por mulheres de cada etnia, em determinados rituais, são também
constitutivos da memória discursiva. A escrita dessas mulheres não se

8
Para homenagem no IX Encontro Macro-Jê, sediado no Campus universitário do Ara-
guaia/UFMT em junho de 2018.
30
aparta da língua gráfica desenhada, especialmente, na escrita do corpo em
determinados rituais. Não é uma língua linear como a nossa, não tem a
mesma ordem SVO. Tudo isso precisa ser mobilizado, quando pensamos
escrita indígena, considerando a diversidade de línguas e de gênero, pois
como escreve a Creuza Krahô:
[...]os antropólogos que vão aos Krahô só pesquisam os homens. Eles não pesquisam as
mulheres. A mulher fica de lado, sempre lá para os fundos da casa. Eles não chamam as
mulheres para pesquisar. Fiquei observando isso desde quando meu marido era vivo e eu
me perguntava: por que os antropólogos vão à aldeia e só pesquisam os homens? Só andam
com os homens? Os mensageiros da aldeia são os homens, para dar notícia, para distribuir.
Mas é falsidade os homens explicarem tudo porque não sabem tudo. As mulheres sabem
muitas coisas, passam o dia inteiro fazendo enfeite para os caçadores, porque eles não podem
andar sem enfeite. Se andarem sem enfeite, não matam nada. Aprendemos assim: sabemos
fazer desenho no corpo, pintar, cortar o cabelo do jeito Krahô… Só quem corta o cabelo
das pessoas é a mulher mais velha que não menstrua mais, uma mulher nova não pode
cortar o cabelo de ninguém. A gente tem que participar só olhando mesmo, olhando muito
como corta, como arranca, porque o cabelo é arrancado um por um. Mas, mesmo assim,
os homens são os mensageiros para levar as mensagens do trabalho das mulheres para os
antropólogos e devolver de novo para as mulheres. Ao pesquisar, vi que a maioria das
coisas não é do jeito que estão registradas, porque são as mulheres que fazem e os homens
que contam. Mal acredito que tinha tanta coisa guardada com as mulheres mais velhas!
Nunca saiu nada das histórias das mulheres Krahô, de como faziam as coisas, nenhum
livro conta a mulher Krahô. Nenhum. O antropólogo pode ser mulher, pode ser homem,
o que for, vai pesquisar os Krahô e só procura os homens. Eu pesquisei a maioria das
mulheres. Eu fui atrás só das mulheres. Na aldeia Pé de Coco, fui pesquisar as mulheres
e depois fui pesquisar o pajé Tejapoc, que morreu no ano passado. O que as mulheres
me contaram, já ele me contou diferente das mulheres. Eu juntei todo mundo e perguntei:
“O que é verdade aqui agora?”. Eu estava com um som ligado ouvindo o homem falar
e perguntei: “Isso é verdade, o que ele está falando?” E a mulher: “Não!”. “E agora?
Eu quero saber quem vai contar a verdade para mim!” E foi assim até chegar ao fim da
pesquisa. (PRUMKWYJ KR AHÔ, on-line)

A importância da citação não está apenas no que ela materializa


em termos de saberes do seu povo, mas no modo como a escrita é
materializada. O texto é legível, pontuado, coerente, mas tem marcas
de uma escrita própria, embora seja alfabética. É sobre isso que venho
pensando, não tenho nada acabado. Espero que a reflexão sirva, ao menos,
31
para professores que recebem estudantes indígenas, tanto nas escolas
urbanas, quanto nas universidades.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

A. B.: Já escrevi bastante e, de certo modo, talvez esta pergunta esteja


respondida. Até mesmo por me assegurar na Análise de Discurso, a
incompletude me constitui. Não tenho orientações a seguir, contudo
imagino que o deslocamento da bolha é necessário para dialogar com
outros saberes, outras áreas de conhecimento e, no mínimo, desestabilizar
a leitura presa no texto, o sujeito preso no indivíduo, a história presa
na cronologia. Possibilitar espaços de discussão que movam para a
exterioridade. Isso não quer dizer que se produza uma legião de Analistas
de Discurso. O estudante da escola básica é cheio de histórias, de vida, de
brincadeiras... então, a escola precisa ser uma continuidade diferente dessas
práticas. As crianças já estão inscritas numa língua em funcionamento
que deve ser considerada. Pois então, para os estudos discursivos não há
espaço de fechamentos, uma coisa puxa a outra e é assim, como eu disse,
movimento. Vamos movimentar!!!
***

Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse


projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.

A. B.: Eu fiquei muito lisonjeada com o convite e agradeço! Lisonja é


uma palavra antiga que carrega, também, sentidos de vaidade. Pois bem,
32
fiquei bem cheia de orgulho e de uma certa “vaidade” pela concessão deste
espaço de escrita. Eu gosto demais de uma citação da Mónica Zoppi e vou
fazer pensar que acabei a entrevista com ela, mas o meu desejo é de que o
que me propus a escrever se abra para críticas, contribuições, sugestões e...
Como intelectuais somos interpelados por este desafio, como produzir um
pensamento do lado de fora em uma contemporaneidade que se representa
sem dobras? Como animais políticos que somos, respondamos ao apelo
para produzir múltiplas formas de encontro, apostando numa duração
que possibilite que algo pegue uma liga, uma aglutinação, um movimento.
Enquanto isso fica ainda a materialidade do gesto, na sua força de intervenção
no real da história e do sentido. Sentar no chão, bater uma panela, ir para rua,
praticar o discurso, ler ainda Pêcheux. (ZOPPI-FONTANA, 2007, In: “O
real da língua, do sujeito, da história e do discurso”).

***

33
34
E ntrevista com A manda S cherer
Universidade Federal de Santa Maria

“ Para mim, enquanto materialista, não consigo ver aplicabilidade, certo? Para mim,
ser “responsável” por um curso de formação de professores e estar em uma “orientação”
de futuros pesquisadores é pensar na indissociabilidade entre prática e teoria… Não
tem isso, não existe isso de “Olha, agora está aqui a teoria e vamos ver como funciona
na realidade”. Primeiro que não tem realidade. Se tu não te deparas com o real não
adianta, certo? E, para mim, essa coisa da aplicabilidade é negar o real, é afastar algo
que é da ordem da ciência para pensar uma questão mais pedagógica. E por que isso
não existe? Porque produzir ciência não é uma coisa apartada do real. Tu produzes
ciência, por mais que se diga a “ciência dura” ou “linguística dura”. Tu não inventas
a frase, se tu inventas a frase, tu estás pedagogizando e aí é deslocar algo de um lugar
para tentar encaixar em outro.”.

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Amanda Scherer: Então, eu fui reler um texto que escrevi há um tempo, o


nome é A casa miticamente comum, e eu acho que diz bastante disso. Quando
eu fiz vestibular, ainda no tempo que podia escolher na hora o curso
que tu querias entrar, eu estava bem dividida entre geografia e francês.
Sempre foram minhas duas paixões na escola: o francês por ser essa língua
diferente, essa coisa de entrar em uma outra lógica, de entrar em uma outra
discursividade; e a geografia por me fazer viajar a partir de Atlas – até hoje
eu tenho paixão e coleciono alguns deles. Eu escolhi Letras-Francês, fiz
a prova e fui aprovada. O que nós tínhamos na constituição do curso de
35
Letras dessa época? Era final dos anos 60, início dos anos 70 – eu me
formei em 1973. Nós tínhamos uma formação muito voltada para uma
problemática em uma versão chomskyana, pedagógica, tudo tratado de
uma forma descritiva… Eu sei que estou exagerando, não tem esse exagero
todo. Mas era uma coisa que me intrigava. Por quê? Porque a língua, para
mim, ela tem a sua descritividade, se eu posso dizer, a sua descrição. E eu
acho que a descrição também é papel nosso, enquanto estudiosos da língua,
que se interessam pela língua... Hoje eu me dou conta disso, mas à época
eu achava essa descrição como se não tivesse vida, eu diria nas palavras de
hoje, como se não fosse aquilo que eu quisesse… De todo modo, eu não
sabia o que eu queria, não tinha isso claro. E foi no francês, com alguns
professores, que eu comecei, então, a despertar interesse por algo que hoje
eu chamo de ordem da alteridade, que é o que, hoje, eu coloco do seguinte
modo: como eu ser a mesma sendo diferente? Aprendendo e movimentando
o meu eu, as minhas relações, as minhas relações com o mundo. Então,
dessa formação, eu sou professora de francês. Fui professora na Aliança
Francesa, ministrei aulas de francês no Ensino Fundamental e no Ensino
Médio. À época, enquanto professora de francês, fui premiada, se é que
posso dizer assim, ao ganhar uma bolsa de um ano e meio para a França.
E eu acho que essa relação com a França e essa partida do interior do Rio
Grande do Sul, que à época era muito longe – continua sendo longe, mas
era muito mais difícil – me ajudou, também, a sair do umbigo dessa ideia de
“Eu sou brasileira”. A questão é: “Eu sou brasileira de onde?” Por que digo
isso? Porque, na França, eu vou conviver com outros bolsistas que não são
do Rio Grande do Sul, bolsistas que são de várias partes do país. E, a partir
dessa relação, dessa interlocução, eu vou me dando conta de que essa ideia
de totalidade é furada. O que é ser brasileiro? E, principalmente, o que é ser
brasileiro no estrangeiro? E o que é ser brasileiro no estrangeiro e professor
de francês? Havia, à época, algumas formações que eram chamadas de
aperfeiçoamento – assim era chamado o estágio linguístico – para um
36
grupo que era também muito diferente entre si... Para se ter uma noção,
todos tinham e trabalhavam com o mesmo método, mas nós não tínhamos
a mesma posição e a mesma entrada na língua, mesmo trabalhando com o
mesmo método. E há uma outra coisa que também me deixou contrariada,
e eu acho que é o que me seduziu para pensar a questão da alteridade, que é
o fato de nós termos uma bolsa de aperfeiçoamento da língua francesa em
uma cidade do interior da França e o instituto de formação de professores
para o ensino de francês que nos recebeu, aos finais de semana, quase
nos obrigar a participar de festas para os idosos da região. Era para nós
dançarmos, para nós convidarmos os idosos para dançarem, sabe? Uma
relação muito assim: “Vocês estão aqui, vocês ganharam uma bolsa e vocês
são brasileiros, portanto, mostrem o Brasil para essa terceira idade”. Eu
acabei saindo da cidade, era Caen, na Normandia, e como alguns colegas
iam para Paris, eu me animei e também fui para Paris, sem bolsa, é claro.
Estou falando dos anos 1976-1977. Era uma época de efervescência – temos
que pensar que isso é depois de 1968; maio de 68 não tinha completado
10 anos ainda… Havia, de fato, uma revolução, se eu posso empregar essa
nomeação, da descentralização da Sorbonne em outros campi, em outros
lugares e um lugar que aceitava facilmente estrangeiros era uma recém-
criada universidade que se chamava Université de Vincennes, que ficava no
Bois de Vincennes. Ali é um outro choque: primeiro, é um lugar diferenciado;
segundo, ela sai da formalidade, daquilo que é sentar, escutar, tomar nota,
ler, trazer as dúvidas para a outra aula e, ao final de tanto tempo, ter uma
nota e obrigatoriamente receber um certificado. Essa coisa bem americana
que nós temos, em nível de formação, em ter que contar crédito, ter o
conceito x para ter direito a bolsa. Essa coisa da credibilidade da formação
estar no quantificativo, não naquilo que você realmente está produzindo,
está aprendendo, enfim. Para mim foi um choque isso: como mostrar que
eu fiz disciplinas? Era uma outra experiência de universidade, algo do que,
hoje, nós chamamos aberta. Eu assisti a diversos sujeitos nessa época,
37
até tem um texto em que eu conto um pouco sobre isso. Um deles foi o
Roland Barthes. Assisti a um seminário dele lá, pois foi o único lugar em
que ele pôde dar aula, pois ele não tinha “formação” de pesquisador, essa
coisa toda. Eu assisti a muitos dos grandes nomes desta época, mas eu só
vou entender essa formação, esse momento, bem mais tarde. Para mim, o
que era ainda mais difícil nesse lugar era como esperar uma formalidade
em um lugar que era contra a formalidade. Eu tinha uma outra perspectiva
de política universitária e de produção do conhecimento. Vejam: eu não
estou dizendo que esse momento é a origem, porque eu não acredito na
origem, mas isso é o que me faz pensar e responder essa primeira pergunta.
Dizer o quanto esse deslocamento não é meramente espacial, o quanto
esse deslocamento é um deslocamento do sujeito e, eu acredito, um
deslocamento necessário ao sujeito. Ainda assim, isso não quer dizer que
todo mundo tem que ir à França para passar por isso… Mas, para mim, foi
um funcionamento importante para pensar sobre a minha formação. Hoje,
eu consigo verbalizar assim, talvez há vinte, trinta anos, eu não verbalizasse
dessa maneira. Hoje, eu verbalizo do seguinte modo: o quanto deslocar na
formação é importante, também, para se pensar o pesquisador, para sair
do círculo vicioso, que é o círculo vicioso do mesmo autor, do mesmo
grupo, desse fechamento. Enfim, minha formação se dá aí. E eu penso que
formação é igual a deslocamento; formação igual a deslocamento que é igual
a retorno, mas que nunca vai ser o mesmo. É isso que me ajuda a pensar,
hoje, o porquê de estar em algum lugar que eu estou sempre dizendo que
eu não sou, mas que, no entanto, eu me acho. Não só me acho, como tenho
certeza de que o que faço é também Análise do Discurso. É uma análise do
quanto Pêcheux também é importante para mim.
Ah! Gostaria de colocar mais uma coisa: essa questão da aprendizagem
que eu coloco em uma direção de deslocamento, e aí estou colocando esse
deslocamento na questão formal, mas ele não se dá apenas no formal e
institucional, entende? Não é só o papel, essa coisa de crédito, de disciplina.
38
Eu, por exemplo, não tenho praticamente nada desse tempo, enquanto
materialidade no papel como se tem no Brasil. Mas esse deslocamento
na formalidade ele também se dá por essas pessoas que, à época, eu não
conhecia. Eu ia às palestras, pois achava muito legal ver aquele anfiteatro
completamente cheio de gente e que tinha uma série de conferências
que ainda eram divulgadas via papelzinho. Não é como hoje que, com
as redes, temos uma certa institucionalidade do tipo: “Hoje nós temos
a professora X, da escola tal”. Não havia nada disso, e isso também me
ajudou a entender o quanto a formalidade nos fecha… Para se ter uma
ideia, à época, Roland Barthes não existia para mim, porque é o auge desse
grupo e toda a minha formação, até então, havia sido no Gerativismo.
Roland Barthes estava escrevendo Fragmentos de um Discurso Amoroso9 e isso
era a aula dele. Não era uma aula pedagogizada como nós temos hoje, algo
do tipo “O que vem antes de Saussure, o que vem depois, o porquê de
Saussure escrever isso”. O cara estava produzindo e as pessoas assistindo.
Eu me lembro que eu ficava escandalizada ao ver Roland Barthes falando
tout en cours. E aí ele para de falar, caminha para lá, caminha para cá, fuma
o cachimbo dele para lá, para cá, vai, volta e aquele auditório em um
silêncio absoluto. Vocês entendem? É isso que eu digo “formalidade”. E
tem duas coisas que eu acho muito legal, que são: a questão da reprodução e
da produção. À época eu não entendia nada, porque eu queria reprodução:
“Primeiro, tomem nota, leiam isso, na próxima aula vamos discutir esse
texto…”. O que eu estou fazendo aí é reproduzindo, pedagogizando
algo que já está posto. Eu não quero dizer que não tenha uma discussão
teórica, mas não tem uma produção. Eu sei que a palavra reprodução
no Brasil é muito pejorativa, mas eu estou pensando na questão do ler e
reler um texto e não ter algo novo. Não que tenha que ter, mas a questão
que eu coloco é: ficar na pedagogização de um texto, entendem? Eu não

9
N.O.: Livro publicado em francês em 1977 pela Éditions du Seuil. Atualmente, no
Brasil, é publicado pela Editora Unesp. Sobre isso, ver Barthes (2018) nas referências.
39
sou contra, mas isso não é produzir. Isso é relatar, isso é discutir. E eu
acho que é isso que mais me estarrecia à época. Eu, por exemplo, custei a
entender quem era aquele sujeito que de vez em quando entrava na aula
do Roland Barthes, dizia algumas coisas e saía. Só depois fui descobrir
que era o Lacan! Hoje eu sei… O próprio Foucault, eu acho que assisti
umas duas falas dele, porque ele estava no Vigiar e Punir . O povo pedia
para discutir sobre Vigiar e Punir, sobre o que seria isso. Eu entrava nesses
locais, escutava, pouco tomava nota, porque eu não entendia muito bem.
Isso estava totalmente distante de mim. Ainda assim, eu coloco a palavra
deslocamento porque para mim é isso que é o fundamental. Isso me
ajudou, não naquele momento, não na certificação… tanto que, quando
eu volto e faço concurso, essa experiência não valeu nada para mim. Ou
melhor, não valeu para a universidade federal. Inclusive, perdi pontos no
currículo porque eu não tinha certificados e tudo mais.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

A. S.: Para mim, enquanto materialista, não consigo ver aplicabilidade,


certo? Para mim, ser “responsável” por um curso de formação de
professores e estar em uma “orientação” de futuros pesquisadores é
pensar na indissociabilidade entre prática e teoria… Não tem isso, não
existe isso de “Olha, agora está aqui a teoria e vamos ver como funciona
na realidade”. Primeiro que não tem realidade. Se tu não te deparas com
o real não adianta, certo? E, para mim, essa coisa da aplicabilidade é negar
40
o real, é afastar algo que é da ordem da ciência para pensar uma questão
mais pedagógica. E por que isso não existe? Porque produzir ciência
não é uma coisa apartada do real. Tu produzes ciência, por mais que se
diga a “ciência dura” ou “linguística dura”. Tu não inventas a frase, se
tu inventas a frase, tu estás pedagogizando e aí é deslocar algo de um
lugar para tentar encaixar em outro. E fazer isso é separar o que eu trago
enquanto produção e reprodução… E, a meu ver, esse é o grande problema,
não sei se da educação, mas no meu entender, esse é o grande problema
de pensar a língua tão somente enquanto conteúdo. Eu, por exemplo, não
me coloco na educação linguística: primeiro, porque educação é muito
vasto, e, se eu vou designá-la como linguística, eu estou, de novo, trazendo
a língua como conteúdo, porque aí o que entra é o gramatical, o que entra
não é a textualidade, mas o texto, esse início, meio e fim, essas articulações
dentro do texto. Por isso que eu não consigo trabalhar do ponto de vista
da aplicabilidade. O que eu procuro é entender como um conteúdo da
ciência acaba se transformando no conteúdo da sala de aula, no conteúdo
acadêmico, certo? Porque quando tu estás dando aula no ensino superior,
tu não estás produzindo ciência. Eu tenho colegas que, por exemplo, estão
produzindo um romance e que estão vivendo esse romance, eles levam
para a sala de aula todos esses vestígios de leitura. Mas, assim mesmo,
o que essas pessoas estão fazendo é reproduzir, mas não produzir. Não
que eu afaste a produção e a reprodução. O sujeito que produz e que
não sabe falar para um grande público sobre o que está fazendo não está
produzindo. Eu cansava de dizer aos meus alunos do doutorado: se você
não sabe dizer ao seu namorado, ao seu companheiro, a sua mãe, a sua vó
o que você está fazendo e aí diz “Ah, você não vai entender”, é porque
você não entendeu o que você está fazendo; o que você está fazendo é
apenas reproduzindo. Nesse caminho, para mim, pensar uma educação
linguística, é pensar que existiria algo que é muito maior… Já que educação
não seria só aquela da escola, mas um conjunto de organização de saberes.
41
Não é à toa que se fala em “tarefas”. Como assim tarefas? Tu estás dentro
deste air du temps de sala de aula. É como se a língua tu só aprendesses
enquanto conteúdo, e por isso que, basicamente, nos livros didáticos, até
hoje, tu tens coisas separadas: tu tens os textos com essas perguntas e
depois tu tens a língua. E não é porque tu tens a imagem bonita, atual,
que a língua está, de fato, funcionando enquanto, eu diria, elemento de
apropriação do entendimento de dizer: “bom, é claro… eu digo assim,
mas tem outro que diz de outra maneira”. Tu vais ver nos manuais de
ensino de língua, tu tens o texto e depois tu tens o conteúdo “gramatical”,
“discursivo”, “textual”, como se fossem coisas distintas e, para mim, não
são, enfim… Ah! Gostaria de trazer um pouco a ideia de língua como
patrimônio, pois estive envolvida há um tempo em uma formação de
professores. Dentro dessa formação de língua como patrimônio, que é
uma “cultura imaterial” – é bonito esse nome “cultura imaterial”, não é?
– já tem “cultura” e mais “imaterial”... Não vou discutir isso, mas, enfim,
vou te trazer um exemplo mais concreto. Eu não trabalho com política
linguística, porque, para mim, política linguística acorda valor a certas
línguas e, portanto, determina uma hierarquia; eu trabalho com política
“de línguas”. E eu não vou elencar “essa é a mais importante, portanto
é essa que nós vamos trabalhar”. O grande problema da quarta colônia10
aqui é que como é uma quarta colônia de imigração italiana e alemã, em
uma região de “colonização italiana”, você tem esse imaginário de que
ninguém é dali, mas todo mundo é da Itália. E, em uma dessas formações,
eu tomei o exemplo “Todo mundo come polenta”. Polenta é italiano, vem
da Itália. É bonito, não é? Se tu vais à Itália, polenta é um prato, não é
um acessório para comer com risoto, para comer com a massa. Já tem aí
um modo de fazer que é um modo nosso, eu não estou dizendo que esse

10
N.O.: A Quarta Colônia de Imigração Italiana foi o quarto assentamento de coloni-
zação italiana na então Província do Rio Grande do Sul e fica próxima ao Município de
Santa Maria, na Mesorregião do Centro Oriental Rio-Grandense.
42
modo é diferente. Há esse imaginário que, a partir de outros que estão
circulando, vão regular, a partir de uma repetição x, para se construir esse
imaginário que polenta é de italiano. Não trabalho com misto também,
para mim a língua não tem nada de misto… e nem essa possível totalidade,
como se imagina. Mas, quem plantava nessa época o milho? Quem colhia
o milho? Quem fazia a farinha? No Rio Grande do Sul, era a comunidade
negra, era o escravo. E aí tu tens polenta e tu tens pirão; polenta é o milho
amassado e o melhor dele, o que sobrava ia para o angu, para o pirão. Os
dois poderiam ser polenta, mas polenta carrega uma história que tem a
ver com a imigração, mas que também tem a ver com a escravização. Tu
já tens uma separação histórica nesse comer, nesse alimentar. Uma está
ligada a uma questão europeia, e a outra parece que se apaga.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

A. S.: Eu acho que, de algum modo, eu respondi essa questão na pergunta


acima quando eu falei de educação patrimonial e língua. Mas gostaria de
trazer algumas outras questões sobre isso. Vejam só: a demanda da região
em que estamos localizados é que se tenha italiano. Inclusive, querem que
todas as escolas não só tenham italiano, o que é uma totalidade, afinal, de
qual italiano eu falo? Mas também tenham algo voltado para os ancestrais.
Enfim… A ideia de boa parte das pessoas aqui é que, colocando o italiano
na escola, e de preferência a escola em italiano, está salva a origem. E
aí nós vamos respeitar os nossos ancestrais. E eu trago esse discurso,
nessa formação, para tentar desconstruir a ideia mesmo de ancestral e
de ancestralidade. E eles ficam apavorados. “Mas então, o que eu tenho
43
que dizer?” Como se eu tivesse dizendo que tem que controlar o sentido,
essa coisa, certo? E também de pensar: que italiano é esse? Porque aí
eu precisaria de uma licenciatura, de uma formação, de uma formação
de professores voltada para uma formação na Itália, entendes? Uma
das questões é: o que eu tenho ainda de italiano na região? Ah, e aí vem
algumas pessoas e falam: “Mas aqui se fala o talian”. Certo. As pessoas
da região falam o talian11, mas o talian é da ordem da oralidade. Como
trabalhar com uma língua que é da ordem da oralidade? E que ainda não
tem dicionários e gramáticas – eu não gosto muito dessa palavra, mas
vou dizer – autorizados por um linguista, que é um sujeito especialista da
descrição – também, mas não só – e que geralmente é feito por populares.
Eu não estou negando essa relação. O que eu quero dizer é: como tratar
de algo da oralidade para uma formação que a gente sempre dá, que é
a escrita? Porque a oralidade é basicamente descartada da sala de aula e
é ao funcionamento do escrito que a gente se dedica. Então, tu tens aí
uma problemática que é uma problemática diferente. Por onde começar?
“Ah… a gente traz o avô para falar, a gente traz as canções…” Certo,
mas e aí? Isso é da ordem da língua? É. Mas isso não é da ordem da
língua como conteúdo, isso é da ordem da língua como memória; como
funcionamento de algo que vem vindo de geração em geração, longe da
Itália, e que tem a ver com essa região e com as relações que se dão na
região também com comunidades originárias, porque eu também tenho
aí formulações indígenas… Eu também tenho aí formulações, depois,

11
N.O.: Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
“o Talian é uma das autodenominações para a língua de imigração falada no Brasil na
região de ocupação italiana direta e seus desdobramentos desde 1875, em especial no
nordeste do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Espírito Santo.
Sua origem linguística é o italiano e os dialetos falados, principalmente, nas regiões do
Vêneto, Trentino-Alto e Friuli-Venezia Giulia e Piemontes, Emilia-Romagna e Ligúria.”
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/183/#:~:text=O%20Ta-
lian%20%C3%A9%20uma%20das,Mato%20Grosso%20e%20Esp%C3%ADrito%20
Santo. Acesso em: 08 abr. 2023.
44
da questão da escravização. Porque, por exemplo, toda a questão de
adivinhações: “Quem é que…?” Isso é da cultura africana, da cultura
banto. E parece ser isso do italiano. Eu não estou dizendo que tem que
separar. O que eu quero dizer é que enquanto a língua é conteúdo, ela está
fora do real. Ela se encaixa nesse imaginário da totalidade do italiano. E
o que nós precisamos fazer é desconstruir essa própria identidade, que é
uma identidade imaginária. Eu não estou dizendo que as identidades não
são imaginárias, elas são. Mas tu tens aí um vínculo que é externo, e que
não é um vínculo de onde tu estás vivendo.
Aí eu volto com a questão do deslocamento. Eu alimento algo que é
inacessível, mas eu não estou dizendo que a coisa é acessível. Eu alimento
algo que está cada vez mais fora, que faz parte de mim, mas que está
fora. E eu preciso fazer esse verso-reverso para entender, também, como
eu me constituo nas formulações que eu digo, nesse exagero que eu vou
colocando. Porque polenta é do italiano, aí depois eles chegam lá e ficam
desesperados porque não tem polenta. Então, a Itália está diferente? Não.
O que tem e onde tem polenta? Eu não estou dizendo que não tenha, mas
eu preciso entender que aquele “dizer sobre” é um dizer estereotipado que
corresponde a esse mundo do geral, a esse mundo da totalidade. E esse
mundo da totalidade não existe. Enfim, a gente trabalhou com um bocado
de coisas sobre isso. E é sempre polêmico porque algumas vezes vem a
pergunta “E aí, como é que eu ensino a língua?” Bom, quando eu faço essa
pergunta, é porque eu estou preso a esse “real gramatical”.
Ah, sobre como pensar a materialidade da língua? Primeiro, o que
eu entenderia como materialidade da língua, não é? Segundo, o que é
língua? O que é língua para a educação e o que é língua para a minha
constituição? Como eu me constituo? Eu tenho o formal, o crédito, a
disciplina, o número de horas… Isso, para mim, é ter uma concepção de
língua, e é nisso que eu tenho batido nos últimos tempos, que é a língua
do conteúdo. Isso, para mim, está ligado com uma questão de formação
45
formal. É horrível dizer isso, mas é. “Isso é um conteúdo de quinta série,
de um quinto ano” e “Não, isso aí não é mais conteúdo de primeiro ano
de ensino médio. Não, gente, isso aí eles viram lá.” Bom, no que eu estou
pensando? Eu estou pensando a língua como conteúdo. E aí que se encaixa
a educação linguística. “Porque é não ensinar a gramática, mas ensinar a
gramática de outra maneira”. Sim, tudo bem. O cara que não sabe falar
aprende a dizer as coisas bonitinhas, e ele tem uma educação linguística.
Mas aí o que ele faz na hora de pedir emprego? O que eu quero dizer é:
como pensar a língua fora de um conteúdo? E para mim, isso é o que dá
mais trabalho. E a problemática do livro didático é não conseguir fazer
essa relação. Porque não é a fotografia, não é a imagem colorida. Eu me
lembro que nos anos 70 começa a questão do punk. Tu tens lá a foto do
punk, da meninada toda vestida de preto, pintada. E você tem formação
do nome “menino”, “menininho” e “meninada”, lá no quinto ano… mas
e o punk, o que faz do lado? Você pode dizer “punk”, “punkinho” e
“punkada”? Não, não pode! Então tu tens um real, tu tedeparas com um
real que não tem funcionamento no conteúdo. Para mim, a materialidade
da língua não é o “falar bem”, é como eu me coloco nela para falar de
mim. É difícil? É. É muito difícil. Eu me lembro que quando eu dava aula
de francês e devia dizer “Francês é assim. Mas se vocês forem na França,
vocês têm que tomar cuidado com isso”. O que eu estou fazendo? Eu
estou dando uma direção de sentido. Mas, ao mesmo tempo, eu estou no
estereótipo. Ao mesmo tempo, o que eu tenho que fazer, na verdade, é
desnaturalizar a língua como algo tão somente de conteúdo. A língua é o
que eu sou e, também, o que não sou.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção

46
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

A. S.: Vejam, vocês substituíram “educação linguística” por “educação


discursiva”... Pois é, eu continuo dizendo isso, não é? É educação. O que
é educação? É que eu acho que, quando é dito “educação linguística” pela
Linguística Aplicada, tenta-se abarcar algo que é difícil de abarcar, que é
ensino e aprendizagem. E educação parece abarcar isso. E, para mim, a
educação é muito maior. Então, eu acho que o contraditório é “educação
linguística” e “educação discursiva”, entendes? Talvez… como fazer isso
na discursividade do Brasil de hoje? Como trabalhar a língua…? Não
sei. Não deixo de ter respondido um bocado sobre isso, ao trazer alguns
exemplos. De todo modo, eu sempre achei muito difícil ser professora de
língua. Porque, embora eu não quisesse ficar no estereótipo, eu sempre
contei as minhas experiências na França. Eu nunca parei para pensar que
as minhas experiências na França eram experiências subjetivas e que eram
experiências não minhas, a idolatrada Amanda de um eu maior. Eram, na
verdade, experiências que, dentro daquilo que eu me constituía na época,
acabavam por dirigir o meu olhar para certos trajetos. Agora, tem outras
pessoas que não vão se encaminhar para esses mesmos trajetos. E, assim,
não vão encontrar as “mesmas coisas”. E isso é um problema. Quando
eu era professora de francês, as pessoas diziam “Não… Eu fui na França
e o francês é ‘assim’ e ‘assado’. Não… se tu estás dizendo que não é, é
porque tu queres defender a França”. Nisso, o que eu tenho? O que é a
problemática da alteridade? Que ponto de vista e que respostas ou que
perguntas eu me faço frente ao real da língua e frente a essa coisa que
está aí e que não é o mesmo? É difícil pensar a alteridade. Porque, mesmo
fazendo a pergunta, parece que já tenho uma resposta. E, quando eu estou
nessa direção, a alteridade não se dá porque o sujeito procura um “mesmo”
que é inexistente e um “ideal de”. De algum modo, o que nós precisamos
47
é des-superficializar esse ensino da língua. Mas não só o ensino, e sim a
aprendizagem da língua. Aliás, é difícil separar ensino e aprendizagem, não
é? E, quase sempre, se coloca o ensino do lado daquele que “ministra” e
a aprendizagem do lado daquele que está sentado e escutando. Como se
fossem dois processos. Por que isso, no meu entender, geralmente se dá
assim? Eu coloco uma autoridade e um sujeito zero. “Espera aí, gente,
eu vou explicar para vocês”. Como assim, “eu vou explicar”, entendes?
Para mim, a questão da alteridade, a problemática da alteridade é o que
hoje mais me desconforta e, ao mesmo tempo, o que me ajuda a tirar
da superficialidade a língua do conteúdo. Porque a língua, enquanto
conteúdo, é superficial.
***

Em entrevista recente aos integrantes do Grupo Arquivos de


Língua12, você nos traz a seguinte reflexão:

[...] falar de Saussure na graduação não é a mesma coisa


de falar de Saussure no Mestrado e no Doutorado. E eu
tenho, ainda, além desse saber científico e acadêmico, o saber
pedagógico que é: de que forma eu vou pedagogizar conteúdos
que são conteúdos da ciência? Ou seja, o que estou pensando
é como relacionar, no manual, um conteúdo da ciência, a
partir de uma certa pedagogização, para poder ensinar a
língua, que é o saber escolar. (SCHERER, 2021)

Isso, nos parece, toca em um ponto que vem se colocando como


reflexão em seus diferentes trabalhos: a disciplinarização, a
pedagogização e a manualização. Apenas para elencar alguns,
temos: Scherer (2019), Scherer, Pfeiffer, Medeiros e Costa (2021).
Isto posto, é importante lembrar que, durante alguns anos, você
foi professora de Língua Francesa na UFSM. Tendo isso em vista,

12
N.O.: Sobre o Grupo Arquivos de Língua, ver: https://gal.hypotheses.org/
48
você poderia nos dizer quais são as possíveis contribuições que
uma perspectiva discursiva da História das Ideias Linguísticas
pode dar para a educação linguística em língua estrangeira, em seu
caso, a francesa e, assim, contribuir para afastar o imaginário de
língua estrangeira que ainda se faz presente em diferentes níveis
escolares: uma língua engessada, fechada em si mesma, feitas de
palavras e frases soltas? Para além disso, como os conceitos de
disciplinarização, manualização e pedagogização (ou, ainda, a
historicidade deles) pode vir a contribuir na formação de professores
de línguas?

A. S.: Eu acho que eu já respondi tudo isso antes (risos). Eu até coloquei
aqui, assim: “Livro da UFSM”. É aquele livro que a Verli Petri e a Cristiane
Dias organizaram, o Análise de Discurso em Perspectiva: Teoria, Método e Análise.
Nesse livro, eu acho que eu falo um pouco dessa coisa, e é o que eu tenho
trazido agora, que é essa ideia de “o francês é”, certo? E não é à toa que
uma gramática é cheia de definições. Porque uma definição determina,
aparta e recorta e te encaminha para uma totalidade. Ela aparta, ela divide,
ela encaixa, mas sempre para um determinado ponto de vista. E esse ponto
de vista é encaminhado para uma questão do geral. Hoje eu consigo fazer
uma recuperação – eu não sei se é recuperação –, mas eu consigo pensar um
pouco melhor sobre esse sujeito professor de língua francesa e ver que, de
algum modo, eu era uma repetidora de conteúdo. Inclusive, eu criava algumas
fórmulas mágicas para que os alunos entendessem, ou melhor, para que os
alunos pudessem utilizar. Por exemplo, é difícil para um brasileiro… Olha
só, como eu já estou determinando. É horrível sair disso. Esse positivismo
está encarnado na gente (risos). Enfim, é difícil compreender a questão do
pour e do par, certo? Pois se tu vais traduzir “eu quero fazer uma pergunta
para o fulano”, “eu quero ir para a casa”. Olha só como eu trabalhava uma
questão de conteúdo? Isso me fez lembrar desses últimos dois dias, pois,

49
durante a Escola de Altos Estudos13, tivemos um rapaz da Universidade
Federal de Pelotas e ele queria fazer uma pergunta para a Irène Fenoglio,
porque ela só falou francês. Em um dado momento ele veio me perguntar:
“Como é que eu uso o par ou pour”. E eu, assim, mecanicamente trouxe o
conteúdo, que é: “pour é para direção, e par é o meio”. E ele disse: “Ah! Por
que eu nunca pensei nisso?”. Depois eu pensei: “Esse cara vai levar isso para
o resto da vida. Hoje vai dar certo, mas depois não vai mais dar certo”. O
que eu quero dizer é: isso é muito do sujeito professor, do sujeito professor
de línguas. É o trazer fórmulas que no início do aprendizado até funcionam,
mas funcionam porque a língua ainda está sendo a língua de conteúdo. E aí,
para colocar essa língua em funcionamento, ela deixa de ser de conteúdo –
funcionamento, que eu digo, na relação com o outro, certo? Eu me lembro
que eu trazia fórmulas do tipo: être e avoir. São dois auxiliares em francês
e utilizamos no passé composé, nesse passado composto do francês, porque
a gente ensina que o outro passado, o simples, é literário, superficial. Por
exemplo, o Michel Temer falando, não é? Não tem nada que seja de maior
superficialidade de conteúdo colocado ali, tu te divertes com as formulações.
Mas depois, de algum modo, tu acabas pensando: “Espera aí, mas o que é
mesmo que ele disse?” Porque tu te ocupas desse dizer do Temer, dessas
mesóclises, dessas ênclises que ele vai colocando. Tem algo interessante
também de pensar que é quando tu estás na coisa mesmo, do funcionamento
da língua, que não é mais uma língua de conteúdo e que não é mais aquela
anotação: “ah, ele sabe empregar o verbo être e o verbo avoir”, que funciona
lá na língua de conteúdo. Eu lembro que eu desenhava uma casinha e dizia:
“Tudo que tem direção à casinha, você terá o être”. Mas aí, mesmo dizendo
isso, eu pensava: “Bom, mas isso não funciona para isso, para aquilo”. Aí eu

13
N.O.: A entrevistada se refere ao evento que ocorreu nos dias 21 e 22 de novembro,
no Centro de Documentação e Memória da UFSM em Silveira Martins. Informações
sobre o evento podem ser obtidas em: https://www.ufsm.br/orgaos-de-apoio/silveira-
-martins/ii-escola-de-altos-estudos e em https://www.instagram.com/cdmufsm/. Aces-
so de ambos os links em 31/03/2023.
50
dizia que era exceção. Mas é exceção, ainda, dentro da língua de conteúdo,
tu entendes? E eles “aprendiam” o quê? A língua de conteúdo. Não sei se eu
me faço explicar, mas isso é muito legal. E eu acho que é isso que me leva,
a partir do Puech14, a pensar isso. Como eu vou disciplinarizar uma língua?
Como eu vou torná-la de conteúdo? Como eu vou colocar essa língua em um
manual? Como eu vou pedagogizar? No sentido de o que será um conteúdo
inicial e o que será um conteúdo final? “Ah, não, isso não dá para dar para
eles ainda porque eles não entendem”. Como assim? Eles não entendem
a nomenclatura da língua de conteúdo porque eu pedagogizei. Porque eu,
imaginariamente, criei etapas. Eu me lembro que quando eu era professora
de francês, no início, os alunos faziam textinhos lindos. Mas, sem passado,
sem presente e sem articuladores. Eles separavam os períodos somente com
pontos finais. É bárbaro pensar nisso. Mas onde eu estou nisso aí? Eu estou
em uma pedagogização. Por quê? Porque eu tirei essa língua desse lugar que
é maravilhoso para colocar na escola. Por isso educação. E, por isso, tarefas.
“Qual é a tarefa da educação linguística?”. Tu continuas tratando da escola.
Tu estás separando, estás dizendo que a língua na escola é uma língua de
conteúdo e por isso tem que ter tarefa. Porque a mãe não diz “Bom, nós
vamos fazer essas tarefas”, ela diz “Quais são as tarefas que tem para a
escola?”. Então, quer dizer que ela mesma já afasta, ela se desresponsabiliza,
porque parece não ser dela a competência. E, no entanto, ela está falando
com esse menino o dia todo coisas como: “Não, isso você não deve dizer
para o vô” e “Não, é assim que se diz”. Isso eu acho que tem bastante
nesse texto que eu estava lendo agora. Eu levantei mais cedo e estava lendo.
Aliás, tem um texto que eu cito no final que é do Daniel Bensaïd e que eu
adoro, que é, sob minha tradução: “Conceber o tempo político como um
tempo partido, descontinuado, ritmado de crises. É pensar na singularidade

14
N.O.: A entrevistada se refere ao texto de Christian Puech, publicado originalmente
em 1998 e traduzido em 2018 por Maria Iraci Sousa Costa, Amanda Eloina Scherer e
Maurício Bilião. Sobre isso, ver Puech (2018).
51
das conjunturas e das situações. É pensar no acontecimento não como um
milagre surgido do nada, mas como historicamente condicionado, como
articulação do necessário e do contingente, como singularidade política”.
Eu acho que é possível terminar nossa conversa com isso hoje. Essa citação
está do meu texto (SCHERER, 2013), presente no livro Análise de Discurso em
Perspectiva: Teoria, Método e Análise, na página 259, em francês. É lindo demais.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

A. S.: Eu acho que, de algum modo, falei sobre isso no decorrer das
perguntas. De todo modo, apenas para fechar, trarei algo que tenho
acompanhado e que acho muito legal. Tem uma professora da escola
municipal de Silveira Martins que é alfabetizadora e está fazendo
Doutorado em Educação sobre letramento digital. Sabendo que a
gente tinha um laboratório de informática, ela fez um projeto para que
se pudesse pensar o digital. Nosso secretário, feliz com aquilo, veio me
falar sobre isso e o projeto tem sido desenvolvido lá na UFSM. Vejam
que legal: ela é uma pedagoga. A linguística passou longe da vida dela. A
discussão sobre o que é a língua passou longe da vida dela e, possivelmente,
continua passando. O que ela fez para essa criançada? Eles são bonitinhos.
Quando eles descem do ônibus escolar, eles estão loucos para chegar no
computador. São vinte e duas crianças, de seis a sete anos. Enfim… Ela
criou, individualmente, um e-mail para cada um. Porque, agora, eles iriam
escrever uns para os outros no computador. E tu não podes saber o que
essas crianças cresceram da noite para o dia. Porque, “Ah, professora, eu
quero dizer isso para ele”, mas eles não sabem o “isso” ainda! Entendes?
Não funciona como a cartilha de antigamente: “O ovo é da Dadá”, “O
Olavo viu a uva”. Essas crianças nunca vão colocar, por exemplo, “Olha,
52
o João viu a uva”, embora estejam em uma região de uva. O que eu quero
trazer é que esse projeto despertou nessa “criançada” um processo de
escrita e de leitura. É o lugar da palavra na vida de cada criança dessas. Não
é “o Olavo viu a uva” que está sendo importante. Eu acho isso bárbaro.
Eu sou apaixonada. Eu já chorei duas vezes, assistindo isso de camarote.
Eles acabam esquecendo o mundo em volta, entende? É muito bonito
ver as crianças falando “Professora! Professora!”, “Ele me mandou ‘isso’,
professora. E eu entendi ‘isso’. É ‘isso’ mesmo, professora?”, “Vem cá
ver, professora!”, “Professora, como é que é ‘isso’?”. Porque “professora,
ele me mandou uma palavra”, e aí eles estão indo pesquisar a palavra no
Google. E ela ensinou a eles que também tem a questão da oralidade. Que tu
pedes ao Google: “Como eu escrevo ‘carroça’?”, e o Google dá a palavra
carroça. E eles copiam a palavra carroça. É lindo demais.
***

Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse


projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.

A. S.: Algo que não abordei na entrevista, pois eu já comecei falando, é o


meu agradecimento a vocês. Vocês merecem un grand merci pelo trabalho
que estão fazendo. Eu sou e estou sempre encantada com esse trabalho.
Muito obrigado pelo convite e pela escuta!
***
Transcrição: Breno Gustavo Silva Freitas (UFS)
e Irene Cristina Silvério (UNICAMP)
Revisão de Transcrição: Rony Peterson Oliveira dos Prazeres
(UNICAMP)

53
54
E ntrevista com A na M aria Di Renzo
Universidade do Estado de Mato Grosso

“Tomar a historicização da escolarização brasileira pela Análise de Discurso não


significa olhá-la como uma evolução temporal, mas como deslocamento, como movência
dos sentidos em que sujeito, ideologia e língua são ressignificados pelas condições históricas.
Dito de outra maneira, historicizar é reconstruir a história do saber linguístico, na qual
a base de constituição do sujeito é sobredeterminada por uma relação de forças, não como
um mero instrumento de formação, mas, sobretudo, como uma formação/capacitação
estruturante para atender as condições de produção vigentes na/pela sociedade.”

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Ana Maria Di Renzo: Minha trajetória de estudos inicia-se com o curso


de Letras- Português/Inglês em uma Faculdade de Filosofia e Letras de
Umuarama-Pr, hoje, UNIPAR, Universidade Paranaense de natureza
privada. Lembro-me, ao refletir sobre esse percurso, que foi a única
oportunidade que me restava, considerando minhas condições de vida,
pois meus pais eram pequenos lavradores e tinham 6 filhos. Pagar minhas
mensalidades era uma luta posto que, nessa profissão, a remuneração não
é mensal, além de instável.
Entretanto, no que toca à linguagem, fui tocada pelas aulas de
linguística ao ser apresentada pelo professor Lucas Mosselin ao Curso
de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure. Lembro-me bem da
conceituação de signo linguístico, ainda que sem desconfiar da opacidade
55
e transparência do gesto de interpretação dado pelo professor. Ao findar
o curso, fui à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Guarapuava-
PR, bem longe de onde morava, para fazer uma especialização em Língua
Portuguesa, com ênfase em leitura e escrita. Não terminei o curso, porque
fiquei devendo a monografia em função de ter recebido um convite para
ministrar aulas de linguística na, então, Faculdade Municipal de Cáceres/
MT. No que tange às discussões linguísticas, nesta fase, debrucei minhas
leituras na direção de uma linguística textual e de uma gramática normativa.
Com isso, minha formação fortalecia-se em direção a uma concepção
estruturalista da linguagem como forma de estruturação do texto e dos
sentidos. Já na atuação como docente de linguística no curso de Letras e de
língua portuguesa no curso do magistério, várias inquietações começaram
a se ajuntar em torno das práticas de linguagem para alfabetização e da
noção de valor do signo linguístico que até esse momento não havia
causado nenhuma inquietação.
A fim de ampliar e aprofundar conhecimentos, fui fazer outra
especialização, desta vez na PUC-BH/MG. O nome do curso era:
Linguística aplicada ao ensino da língua e literatura, na década de 90. Nesse
momento, começo a ver reflexões sobre a alfabetização, sobre semântica,
sobre leitura, porém, claramente, filiadas à concepção da Linguística
Aplicada. Notadamente, porém, em um dos módulos, a disciplina de
variação linguística foi ministrada por um docente que produzia uma forte
ruptura com a ideia sociológica das mudanças linguísticas, deslizando para
uma outra relação, ou seja, iniciava-se uma desconfiança na compreensão
da língua enquanto um sistema organizado. Soma-se a isso, a disciplina de
língua e ensino, que também iniciava uma reflexão sobre a relação entre
leitura e escrita que se complementou com um excelente curso de fonética
e fonologia. Passados 2 anos, iniciamos um processo de discussão no curso
de Letras para repensar a matriz de formação. Nesse processo, começamos
a ler determinados autores e a organizar seminários de discussão, até que
56
recebemos a visita da Profª. Mónica Graciella Zoppi-Fontana, que veio até
nossa instituição em substituição à Profª. Eni Orlandi.
A partir dessa semana de estudos, iniciamos uma parceria com
o IEL/UNICAMP e a UNEMAT. Essa parceria transformou aquela
pequena instituição, atualmente, Universidade do Estado de Mato Grosso.
Até então, nosso corpo docente não possuía qualificação stricto sensu, pois,
em Mato Grosso, a pós-graduação começava a surgir na Universidade
Federal. Trata-se também dos efeitos de um processo de colonização que
deixava à margem os estados mais distantes do centro sul do Brasil.
Em 1998, o projeto com o IEL/UNICAMP preparava-nos para
ingresso em um MINTER15 em Linguística. Nessa época, as teorias do
chamado construtivismo e socioconstrutivismo preenchiam um espaço
grande de reflexões sobre alfabetização e ensino de língua que se conjugava
com a compreensão Bakhtiniana da dialogia.
Antes, porém, havia me debruçado sobremaneira em um livro de
Eni Orlandi, da coleção pequenos passos, intitulado “O que é Linguística”.
Por conta e risco, comecei a ensaiar uma aproximação entre Vygotsky e
Orlandi, obviamente, nada frutífera, pois esse não é um caminho do
possível para a teoria do discurso. De tal modo que no processo seletivo
que houve, em conversa com o Prof. Eduardo Guimarães, coordenador
da parceria, resolvemos que iria abraçar a área de Aquisição de Linguagem,
na perspectiva que tratou Claudia Lemos. Foi nesse flagrante encontro
da relação escrita e sujeito que iniciava meu percurso em Análise do
Discurso, pois foram inúmeras as disciplinas e docentes que recebemos na
Universidade e, nesse processo, ocorreu uma verdadeira ruptura com os
estudos da Linguística Aplicada, Sociolinguística e Linguística Textual. No

15
N.O.: A entrevistada se refere ao Programa de Mestrado Interinstitucional (Minter),
promovido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
para a “formação de recursos humanos qualificados para o desenvolvimento sócio-ecôno-
mico-cultural, científico-tecnológico e de inovação”. Sobre isso, orientamos ver: https://
www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/bolsas/bolsas-no-
-pais/programasencerradosnopais/minter-e-dinter-capes-setec. Acesso em 10 abr. 2023.
57
mestrado, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Fausta Pereira de Castro,
discuti o repetível no processo de aquisição da escrita e, já em conversas com
a profa. Eni Orlandi, a minha reflexão apontava para uma forte relação com
a história dos sentidos que pressupunha a relação da língua com a história.
Ao terminar o mestrado, ingressei para o doutorado sob a orientação da
Profª. Eni. Obviamente, a esta altura, já imersa em inúmeros encontros pelo
Brasil afora, em grupos de pesquisa, enfim, na criação de um Centro de
Estudos e Pesquisas em Linguística na própria UNEMAT. Nessa trajetória,
tomei como objeto de reflexão a institucionalização da língua nacional e a
criação de grandes colégios pelo Brasil, dada a minha inscrição na História
das Ideias Linguísticas, a fim de construir uma elite pensante, dentre outras
ações, cujos efeitos institucionalizariam determinadas compreensões sobre
sujeitos e sentidos. Tive a oportunidade de estudar 1 ano na École Normale
Supérieure de Lyon-França, sob a supervisão de Francine Mazière, que me
permitiu compreender a relação língua, história e ideologia.
Tomei para estudo o Colégio Lyceu Cuiabano de Cuiabá/MT, sob a
inscrição na HIL e na AD, para compreender como se deu a espacialização
e a textualização da língua nacional na conjugação com a formação de
sujeitos para o Estado. Nessa direção, aprofundei-me na relação entre
ética e políticas de língua, na qual me assentei para orientar dissertações
de mestrado e teses de doutorado, tanto no programa acadêmico quanto
no profissional. Atualmente, encontro-me vinculada ao Programa de
Mestrado e doutorado em Linguística e no Programa de Mestrado em
Letras, ambos da UNEMAT, dentre outras funções16.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
16
Atualmente, atuo como Diretora Acadêmica da União das Faculdades Católicas de
Mato Grosso-UNIFACC, projeto que pretende chegar a PUC-MT; atuo como presidente
da Câmara de Educação Profissional e Ensino Superior do Conselho Estadual de Educa-
ção de Mato Grosso-CEE/MT.
58
que não estamos falando de teoria (s) aplicada (s). No entanto,
temos visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação
AD-HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que
podem contribuir para a educação linguística. Que contribuição
(ões) seria (m) essa (s)?

A. R.: Penso que essa questão deve ser tratada com bastante ética, em
primeiro lugar. Faço essa ponderação para evitarmos possíveis banalizações
teóricas ou mesmo um aplicacionismo esvaziado de procedimentos teórico-
analíticos sustentáveis no arcabouço teórico da Análise De Discurso de
linha materialista que construiu Eni Orlandi e seus pesquisadores afiliados
pelo Brasil. Penso que a Análise de Discurso pode contribuir fortemente
para pensar a constituição das políticas públicas de língua, as políticas
públicas de financiamento da educação brasileira, as políticas públicas de
produção de ciência, dentre outras tantas possibilidades.
Como amplamente divulgado, tem-se que o país tem uma escassa
formação em língua portuguesa quando avaliado o desempenho dos
estudantes em leitura e escrita, por exemplo. Em primeiro lugar, temos que
compreender que esses são processos que merecem profunda reflexão,
posto que aferir eficiência de/em linguagem não se faz com lógica
matemática, pois a interpretação conclama a relação dos sentidos com suas
condições de produção sócio-históricas. Entretanto, as políticas públicas
de língua têm se sustentado restritivamente em uma concepção cognitiva,
o que esvazia a relação com o sujeito e o mundo, por compreendê-los
do lugar da transparência dos sentidos, do lugar da língua como sistema
organizado e estável, dentre outras características. Os estudos discursivos,
nessa afiliação teórica, inscrevem a relação do sujeito com a língua no
campo das relações entre memória, história e ideologia, desvinculando-
se da compreensão da leitura que busca o que o autor quis dizer, de uma
compreensão de interpretação como algo já dado, que o sujeito controla
as suas intenções. Para essa área, os estudos e pesquisas desenvolvidos
59
pela AD podem romper com essa compreensão para, em seu lugar,
compreender o sujeito enquanto posição; a leitura como atribuição de
sentidos pelo sujeito que considera as condições de produção; a escrita
como representação do pensamento, e por aí afora.
A Análise de Discurso e a HIL são os campos teóricos que nos
permitem mobilizar língua e história na constituição de sentidos como
condição para compreender, justamente as políticas públicas de língua,
procurando analisar os seus efeitos sobre a língua e seu ensino. A HIL, por
se constituir como uma “visão histórica das Ciências da Linguagem”, nos
possibilitou tomar os instrumentos linguísticos — gramáticas, dicionários,
manuais, normas etc. — como objetos discursivos” (NUNES, 2008 p.107).
Ao se tomar a história do conhecimento como uma questão discursiva,
promovem-se desdobramentos diversos em estudos que articulam esses
dois campos: HIL e AD. Nesse sentido, a articulação entre a AD e HIL
incide sobre nosso gesto de leitura, tomando discursivamente a relação do
sujeito com seus instrumentos linguísticos, tal como cadernos de provas
de língua portuguesa do ENEM, livros didáticos como instrumentos
constituídos histórica e ideologicamente, perpassados pelas relações do
Estado com o simbólico.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

A. R.: Penso que a perspectiva materialista pode produzir rupturas com


compreensões que, como dito anteriormente, são ancoradas na ideia do
estruturalismo linguístico que não considera a exterioridade da língua
como dela constitutiva. Na mesma dimensão, compreende a interpelação
60
dos sujeitos e dos sentidos pela ideologia, o que faz com que um sentido
sempre possa ser outro. Enfim, penso que a práxis pedagógica ainda
se encontra estagnada da ideia de que é o método o problema da sua
ineficiência. Na verdade, o método não é um fim em si mesmo, como
trata um imenso contingente teórico da área de educação. Lembro-me,
nesse momento, do livro de Eni Orlandi, A linguagem e seu funcionamento,
em que trabalha o que e para que é o discurso pedagógico, estendendo
a reflexão na busca da compreensão dos seus efeitos, na relação com o
conhecimento escolar. Daí que todo processo de preparação passa pela
concepção de capacitação, de treinamento e não de formação, pois a
preparação concebe tal processo como desenvolvimento e não como
formação do sujeito. Como dito por Eni Orlandi, “Para nós, a formação é
que pode resultar na educação social em seu sentido mais forte e definidor
de uma estrutura política flexível, de uma formação social suscetível ao
dinamismo e à mudança” (ORLANDI, 2014, p. 148).
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

A. R.: Penso ser essa uma resposta difícil de explicitar. Primeiro, talvez
fosse necessário alargar algumas compreensões de que a língua, enquanto
discurso, não interessa apenas a pesquisadores da linguística, mas que, no
entanto, somente ela está autorizada a fazer determinadas análises por
dispor de procedimentos teórico-analíticos muito específicos, que requer,
por sua vez, um conhecimento mínimo da sua organização.

61
Como teoria do discurso, pode (e deve) contribuir para que ‘discursos
sobre’ em outras áreas do conhecimento possam ser compreendidos
do lugar da relação língua, memória, história e ideologia, igualmente
produzindo rupturas com sentidos logicamente estabilizados, o que ocorre
com a maioria das ciências.
Para mim, educação discursiva é uma formulação muito forte que
pode nos inscrever em uma relação com os sentidos de que educar é
capacitar ou qualquer coisa que o valha. Se bem cuidada a sua inscrição
no dizer, penso que pode haver diversas contribuições, tais como algumas
áreas têm contribuído, a meu ver: a arquitetura, o jornalismo, a história
etc., até mesmo áreas da saúde. Nessa direção, é preciso considerar de que
lugar se está enunciando e para quem se enuncia. Logo, trata-se de uma
possibilidade do dizer outro, mas não de uma justaposição de sentidos
entre as diversas áreas e suas correntes teóricas. Daí a importância da
escola como lugar de interpretação da ordem social, de dar condições aos
alunos de promoverem um espaço significante com sua realidade social,
tornando-a visível, significável, para que possam romper com uma leitura
verticalizada, abrindo-se ao deslize, à metaforização. O que significa “saber
ler e escrever” nos sentidos das formulações que constituem as políticas
públicas de língua? É justamente nesse espaço que devemos atentar para as
materialidades linguísticas que essas políticas fazem circular como sendo
conhecimento de língua.
Esse questionamento aponta para a incompletude e para as
equivocidades da linguagem que colocam determinados sentidos em
movimento e não outros, de tal maneira que nossas análises sobre políticas
linguísticas nos possibilitaram observar o funcionamento da sobreposição
do gesto de interpretação daqueles que as formulam em relação ao efeito-
leitor, pela interdição do gesto de interpretação daqueles a que a elas estão
assujeitados. Assim, o modo como são formuladas, podem configurar-
se como uma tentativa de homogeneizar o processo de interpretação,
62
fazendo parecer evidente que o sentido só pode ser um, instaurando
uma unidade imaginária do sentido, um projeto totalizante de ciência da
linguagem, política pública de língua e seu ensino.
***

Ao lançarmos um olhar por diferentes escritos seus, vemos um


percurso muito importante que toca na relação entre escola e
políticas linguísticas, como é o caso de Di Renzo (2009) e Durigon
e Di Renzo (2013). Especialmente em Di Renzo (2009, p. 13), você
nos diz que

Compreender as condições de produção nas quais se constitui a escola


brasileira nos possibilita dar visibilidade aos efeitos de um Estado capitalista
na formulação das políticas linguísticas, nos permite apreender uma ética
linguística, que não somente define língua, sujeito, ciência, como legitima
determinadas relações que configuraram um certo modo de produzir
conhecimento sobre a linguagem.

Se formos em produções mais recentes, como Di Renzo e Jesus


(2020), vemos um olhar lançado para a Educação de Jovens e Adultos
(EJA), em que vocês afirmam ser necessário “que reflitamos sobre
os efeitos que as relações de poder e de forças produzem na relação
com a ideologia e o imaginário de adulto e de jovem que estão
afetados por políticas de língua assim delineadas” (DI RENZO;
JESUS, 2020). Além disso, para vocês, “alfabetizar jovens e adultos
não é um ato apenas de ensino aprendizagem, é a construção de
uma perspectiva de mudanças”. Tendo em vista tais apontamentos,
você poderia dizer como o trabalho de base materialista, em uma
perspectiva discursiva, pode colaborar para outras formas de
conceber a educação linguística para jovens e adultos, bem como
políticas linguísticas que considerem as condições sócio-históricas
da EJA?

63
A. R.: Bem, essa foi uma pesquisa que, ainda que breve, muito nos
instigou. Ao refletir sobre as políticas linguísticas destinadas a essa
modalidade formativa, tocamos, para além dessas relações, a sua relação
com o político/religioso e os discursos outros que se materializam na/pela
linguagem – um percurso de estudos para compreender a forma histórica
da educação de jovens e adultos pelas quais funcionam as políticas de
ensino da EJA até os dias atuais. Refletimos sobre os modos de produção
desses acontecimentos, buscando compreender de que forma o ensino
da língua portuguesa faz funcionar um imaginário de qualificação para o
trabalho, para esse sujeito da EJA.
Tomar a historicização da escolarização brasileira pela Análise de
Discurso não significa olhá-la como uma evolução temporal, mas como
deslocamento, como movência dos sentidos em que sujeito, ideologia
e língua são ressignificados pelas condições históricas. Dito de outra
maneira, historicizar é reconstruir a história do saber linguístico, na qual
a base de constituição do sujeito é sobredeterminada por uma relação de
forças, não como um mero instrumento de formação, mas, sobretudo,
como uma formação/capacitação estruturante para atender as condições
de produção vigentes na/pela sociedade.
Nessa direção, compreendemos por que a Educação Brasileira foi
marcada pelo elitismo, que restringia a educação somente às classes mais
abastadas. Sendo assim, marca o lugar da privação do acesso à escolaridade
como direito de todos.
No Brasil, como afirma Orlandi (2002), não se nasce cidadão, se
“aprende” sê-lo. Um sujeito é constituído cidadão pela sua relação com a
língua, por isso, é necessário dizer que a relação escrita, Estado e sociedade
está na origem da relação da língua com a história na constituição dos sujeitos
e dos sentidos. Os sujeitos, para existirem, precisam ser “trabalhados

64
de dentro para fora” (ibid., p. 226), pela Escola para o Estado. E nesse
movimento, a escrita é a “matéria de significação do sujeito” (ibid., p. 257),
pois produz no sujeito o efeito de estar na origem do que diz. Efeito que
se dá “como forma material da relação com o simbólico numa formação
social como a nossa, com suas leis, regras e Instituições” (ibid., p. 243).
Assim, pensar as políticas que foram sendo implantadas na educação
da EJA e o modo como o Estado articula a produção de conhecimento e
ordenamento dos sujeitos mostra como ele exerce seu poder para assujeitar
os indivíduos aos seus modos de produção vigentes e aos processos de
individuação.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

A. R.: Os desafios a meu ver dizem respeito às políticas de Estado e as


políticas públicas de linguagem, ou seja, com o modo como se estruturam
essas duas bases. Nessa direção, tocamos sobremaneira as políticas de
educação estabelecidas pelo país – estruturas que dizem do modo como
as instituições se organizam, pois as compreendemos como aparelhos
de Estado. Nesse sentido, temos um arcabouço legislacional que como
instrumentos linguísticos funcionam como leis, resoluções, portarias e
programas que funcionam como formação discursiva que dão forma e
materialização às políticas de língua.
No que diz respeito à práxis do professor de língua, há que
considerar as bases teórico-epistemológicas que sustentam as concepções
de linguagem que constituem as DCNs17 do curso de Letras, posto que no

17
N.O.: A entrevistada se refere às Diretrizes Curriculares Nacionais.
65
fio do discurso engendra-se o imaginário de professor, língua e sujeito. O
mesmo ocorre com a formação em Pedagogia e outras licenciaturas.
A partir daí, chegamos também à elaboração dos instrumentais de
um ensino, a exemplo, livros didáticos e métodos de alfabetização que se
estruturam em concepções empíricas de língua. Como afirmou Orlandi
(2018, p. 222), “para ser um profissional das Letras, não basta saber
uma língua, pois é preciso saber que a sabemos. E podemos observar
isto através das ferramentas que construímos, que usamos, e do modo
como a ensinamos”. Tal formulação nos faz refletir sobre a complexa
relação universidade-língua-escrita-escola, dentre outras. Segundo ainda
a autora, produzir conhecimento sobre Letras, língua, literatura e suas
manifestações conexas é uma possibilidade de ação no mundo e de
produção e de recepção do conhecimento, especialmente, quando toca o
processo de formação que implica em sua profissionalização.
O dispositivo teórico da AD, no entremeio com a HIL, possibilita,
por exemplo, observar o modo como os instrumentos linguísticos como
a BNCC-Ensino Médio e os Projetos Pedagógicos das escolas vão se
configurando e como textualizam a relação com o ensino da língua. Na
sociedade dividida entre quem é escolarizado e quem não é, entre quem
lê e quem não lê, necessário se faz produzir rupturas paradigmáticas que
constituem os documentos enquanto políticas de língua administradas
pelo Estado e colocam em funcionamento um discurso que determina
a formação do professor de Letras, em nosso caso, que controlam o que
deve ser ensinado ao professor e como ele deve ensinar e o que ensinar.
Estado, Currículos (Letras) e Ensino entrelaçam-se pelo normativo, pelos
instrumentos linguísticos que textualizam as formas de controlar o que
e o como se deve ensinar. E, nessa esteira, no par teoria e prática, são
as concepções de competência e de habilidade que se tornam fundantes

66
nas políticas instituídas. Produzir rupturas nessas concepções é o maior
desafio na relação do professor em sua práxis pedagógica.
***

Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse


projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.

A. R.: Justamente, não poderia terminar essa conversa sem tocar na noção
de resistência, espaço do sentido outro que produz a diferença, pois, para
Pêcheux (1977), a ideologia é um ritual com falhas (PÊCHEUX, 1997). É
nesse movimento que se pode produzir a mexida necessária; é por meio
de pesquisas que desnaturalizam a relação escola-Estado que rompemos
com o silêncio que aliena e individua assujeitando a relação do sujeito
com linguagem a conhecimentos sobre a língua, sem experimentar a sua
relação com a exterioridade que modifica suas condições de produção,
oportunizando uma nova relação com o simbólico.
As políticas públicas educacionais e as linguísticas engendram as
práticas escolares, de forma a individuar os sujeitos que ocupam os espaços
sociais. Dessa forma, políticas públicas sociais deslocam as políticas
educacionais, o que reforça o discurso de uma sociedade do conhecimento
evoluída pela educação, na qual se prepara os cidadãos para o mercado de
trabalho. Ao refletir sobre o conhecimento, Orlandi (1987) disse “[...] que
eles não são partilhados, mas são socialmente distribuídos”, o que nos faz
compreender que não é acessível a todos os sujeitos, sendo “comuns”,
mas não “iguais”, o que faz funcionar uma “desigualdade na distribuição
do conhecimento”. Dessa forma, o discurso educacional se constitui de

67
um passado sempre presente, e que, em relação a um Estado que falha,
continua sendo sempre elaborando políticas que atendem alguns interesses
e não outros.
***

68
E ntrevista com A ndrea R odrigues
Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
Faculdade de Formação de Professores

“Apresentar a professores já atuantes, alunos de mestrado ou especialização, ou mesmo a


professores em formação inicial – graduandos – uma perspectiva discursiva materialista
tem sido um grande desafio na minha experiência profissional. Sabemos que não é essa
a perspectiva que predomina nos documentos oficiais, nos livros didáticos, em cursos de
curta duração oferecidos, por exemplo, a professores de redes públicas. Penso ser muito
importante que professores em formação conheçam a abordagem discursiva materialista,
justamente para que possam ter a chance de pensar a língua e seu ensino de um outro
lugar. Não se trata de um novo conjunto de técnicas, de uma nova didática. É um outro
olhar sobre a língua, o sujeito e a história, sobre identificar-se ou não com “a língua
portuguesa””

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Andrea Rodrigues: Como pesquisadora da área de Ciências da Linguagem,


desenvolvi no Mestrado em Linguística, na UFRJ, uma dissertação
inspirada na Sociolinguística e no Funcionalismo (orientada pela saudosa
Alzira Tavares de Macedo e Maria Luiza Braga) e uma tese de doutorado, na
PUC-Rio, na área da Psicolinguística (orientada por Letícia Sicuro Correa).
Somente uma década depois do doutorado e com experiência em educação
básica e magistério de nível superior, passei a desenvolver pesquisas em
Análise do Discurso. Eu gostava de toda a formação que tive no mestrado

69
e no doutorado, mas permanecia com algumas inquietações que não eram
objeto de estudo das teorias estudadas. Eu queria uma abordagem mais
ampla, que me permitisse analisar as produções de linguagem à luz de
uma exterioridade que a Análise do Discurso define como constitutiva.
Comecei então a retomar alguns trabalhos desenvolvidos em disciplinas
do doutorado, mas dessa vez com a abordagem teórica da Análise do
Discurso. Em 2011, Lucia Alves Ferreira me acolheu no grupo de pesquisa
Discurso e Cidade, coordenado por ela no Programa de Pós-Graduação
em Memória Social da UNIRIO. Sob sua supervisão, desenvolvi pesquisa
de pós-doutorado voltada para a produção de sentidos sobre a cidade
do Rio de Janeiro pela mídia estrangeira à época das implantações das
primeiras UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) nos morros cariocas. Ao
pesquisar sobre a mídia, comecei a propor e a discutir práticas de leitura
de textos jornalísticos com meus alunos de graduação e pós-graduação em
Letras. Eu havia ingressado como docente na Faculdade de Formação de
Professores da UERJ e, dois anos depois, passei a ter a oportunidade de
dar aulas para professores da educação básica da rede pública – tínhamos
conseguido a adesão ao PROFLETRAS em nossa universidade. Com
isso, aos poucos fui passando a orientar pesquisas práticas de professores
mestrandos sobre leitura, produção textual e autoria na escola a partir da
abordagem teórica da Análise do Discurso.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

70
A. R.: Indursky (2011) nos lembra que a Análise do Discurso não surge com
objetivos voltados para o ensino, mas ao mesmo tempo a autora destaca a
possibilidade de um/a professor/a se apropriar dessa abordagem teórico-
metodológica e incorporá-la em suas práticas em sala de aula. E como
pode um professor orientar sua prática por esse aporte teórico no contexto
atual de ensino do país? Penso que não podemos ignorar que, mesmo com
as críticas que podem ser feitas ao texto da BNCC, considerando inclusive
as suas condições de produção, ele é o documento normativo atual para
a educação básica. Os livros e outros materiais didáticos, bem como os
currículos das redes municipais e estaduais, são pautados pela BNCC –
que, na área de Linguagens e suas tecnologias, apresenta uma proposta
de organização do currículo fortemente baseada nos gêneros do discurso,
articulada a uma lista de competências e habilidades a serem desenvolvidas
pelo aluno ao longo da educação básica. Contudo, independentemente de
esse documento ser inspirado em outras perspectivas teóricas, costumo
defender que os quatro eixos das práticas de linguagem apresentados
pela BNCC podem ser abordados por atividades inspiradas no aporte
teórico da Análise do Discurso. No eixo da leitura, um/a professor/a
de língua pode, ao tomar como ponto de partida a discussão sobre as
práticas de leitura e suas condições de produção (ORLANDI, 1988, 2006;
INDURSKY, 2001, 2010, 2019), propor atividades de leitura e de escuta
em que haja espaço para a interpretação, a tomada de posição, a leitura
polissêmica. Em um contexto de ensino em que nos deparamos com
atividades de leitura que muitas vezes se resumem a explorar com o aluno
as características de gêneros do discurso, é muito importante existirem
propostas que, como aponta Indursky (2020, p.19), “coloquem o texto
em relação com os outros textos, outros pontos de vista, rompendo as
fronteiras físicas que o separam da exterioridade”. Ou seja, no lugar da

71
comparação entre diferentes gêneros, haveria a proposta de o aluno ser
exposto a textos com pontos de vista distintos, e assim poder realizar uma
leitura não somente parafrástica, mas polissêmica, lembrando, também
com Indursky (2020, p.19), que “interpretar implica tomada de posição
por parte do sujeito leitor frente ao texto”. No eixo da produção textual
– e aqui também podemos incluir o eixo da oralidade – as discussões
sobre autoria na escola (ORLANDI, 1988; 2007; PFEIFFER, 1995;
LAGAZZI-RODRIGUES, 2006) podem contribuir para a formulação de
práticas que convoquem o aluno a assumir seu ponto de vista na produção
de seus textos, a se apropriar de outros textos para criar seus “recortes
discursivos” (INDURSKY, 2006) e produzir sua autoria – na escrita e na
fala. Para pensar esse repertório ao qual o aluno pode recorrer, é relevante
lembrar da noção de arquivo pedagógico, definido por Indursky (2019,
p. 107) como um conjunto de textos ou outras materialidades discursivas
reunidos pelo professor com sua turma, em geral em atividades prévias de
leitura, e que pode funcionar como um “simulacro” de redes de memória,
em que os saberes sobre um determinado tema podem estar organizados,
inclusive com diversos pontos de vista. Desenvolver práticas de produção
de texto a partir de leituras, debates, acolhendo outros pontos de vista,
são formas de um fazer pedagógico inspirado na abordagem da Análise do
Discurso, que vai significar a escrita como uma prática discursiva e, como
tal, relacionada a práticas de leitura, à possibilidade de assunção da autoria
(ORLANDI, 1998), à produção de sujeitos leitores-autores – lembro aqui
que Indursky (2020, p.19) observa que essa mudança se faz praticando:
“não é de imediato que o aluno passa de leitor-reprodutor a sujeito-leitor”.
Quanto ao último eixo apresentado pela BNCC, o da análise linguística,
voltarei a ele mais adiante, em outra pergunta. Mas termino esta resposta
reafirmando que a Análise do Discurso pode trazer com essas noções

72
– e muitas outras – diversas contribuições para inspirar as práticas de
professores de língua, literatura e produção textual.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

A. R.: Pêcheux nos lembra que as evidências são materializadas nas


práticas discursivas. Praticar a educação linguística a partir da perspectiva
discursivo-materialista é promover análises que vão além da descrição
da língua e permitem leituras discursivas das formas da língua e seus
efeitos de sentido quando se leva em conta seu caráter material. “O
funcionamento linguístico é pressuposto, mas precisa ser ultrapassado
para chegar ao funcionamento discursivo” – essa afirmação de Indursky
(2011, p.329) pode ser ponto de partida para uma educação linguística
que vá além da tarefa de descrever a língua em suas relações internas
– em sua organização, como estabelece Orlandi (1996). A educação
linguística na perspectiva discursivo-materialista aborda a língua em sua
ordem – ou seja, em suas relações com a exterioridade (ORLANDI,
1996). Se a linguagem não é transparente e o sentido possui um caráter
material, o ensino de língua inspirado nessa abordagem deve produzir
análises das formas linguísticas em sua forma material – e um professor
pode desenvolver essas práticas no chamado eixo da análise linguística, se
formos considerar os eixos propostos na BNCC. Indursky (2011) propõe
que essas análises promovam uma comparação entre o funcionamento
linguístico e o funcionamento discursivo de determinadas formas. Desse
modo, as análises contrastivas podem permitir ao aluno compreender,

73
por exemplo, que um termo considerado opcional/acessório do ponto de
vista sintático, como um adjunto adverbial, por exemplo, pode produzir
determinados efeitos de sentido, pode inserir esse texto em uma ou outra
formação discursiva, modificando os modos em que ele será lido também.
Ou seja, no âmbito do funcionamento discursivo, a categoria “termo
acessório” não é suficiente para abordar formas da língua. Estabelecer
essas análises pode contribuir para um ensino que pretenda promover
uma educação linguística, que queira produzir alunos, como diz Indursky
(2011, p. 339), que sejam capazes de “refletir sobre os funcionamentos
linguístico e discursivo”, e com isso estejam em “condições de trabalhar
com a língua, seja escrevendo, seja lendo, seja, ainda, interpretando”.
A educação linguística também envolve as leituras que fazemos dos
documentos oficiais de ensino. E a análise do funcionamento discursivo
pode contribuir para compreendermos de que modo certas evidências
operam nas propostas apresentadas na BNCC. Por exemplo, o chamado
Novo Ensino Médio traz a proposta de uma disciplina chamada “projeto
de vida”. Essa expressão entra no texto do documento sob o efeito
de evidência – junto com a palavra “protagonismo”, por exemplo – e
desnaturalizar seus usos no texto da BNCC é um modo de produzir uma
leitura discursiva voltada para propostas que sabemos que surgiram em
condições de produção nada favoráveis a uma proposta de ensino não
identificada com uma formação discursiva neoliberal. A esse respeito,
Araujo (2022) defende que o discurso sobre “projeto de vida”, ao mobilizar
certos significantes como “cidadania”, “liberdade” e “autonomia”,
“reproduz a ideologia neoliberal que culpabiliza/responsabiliza os/
as futuros/as trabalhadores/as pelo lugar que ocuparão no mercado de
trabalho.” Ou seja, a análise do funcionamento discursivo dessas formas
linguísticas contribui para expor os dizeres às suas filiações históricas,

74
e assim compreendermos como eles operam na reprodução de certas
evidências sobre os sujeitos-alunos do “Novo Ensino Médio”.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

A. R.: Os encontros são fundamentais, os debates produzidos em


congressos, os projetos que envolvem diferentes instituições, e publicações
na área fortalecem essas outras formas de fazer uma educação discursiva
no Brasil. Além disso, pesquisas feitas por professores “no chão da escola”
precisam entrar mais na universidade, nos eventos que fazemos, nas trocas
que estabelecemos. Precisamos, ainda, avançar na compreensão de como
divulgar mais nossas ideias, nossas propostas, e assim ampliar nossos
diálogos com mais e mais professores. Projetos de iniciação à docência,
programas de mestrados profissionais são importantes espaços para isso
também.
***

Há um texto escrito por você em coautoria, Rodrigues, Moraes e


Domingues (2020), com um título inquietante: o impacto da Análise
do Discurso em práticas de ensino. Nele, vocês trazem a seguinte
passagem:
Quando ao aluno é solicitado que produza textos em série, sobre temas
que surgem instantânea e burocraticamente em sala de aula, a atividade de
escrita na escola torna-se desarticulada de práticas discursivas de leitura e
debate prévios, em que o aluno poderia exercitar a identificação ou não com

75
textos lidos, em que fosse possível recorrer a textos de um possível arquivo
pedagógico. (RODRIGUES; MORAES; DOMINGUES, 2020, p. 224)

Se, como apontamos na pergunta dois, a Análise de Discurso não se


faz enquanto uma teoria aplicada, é bem verdade que ela não deixa de
produzir impactos nas práticas de ensino. É pelas falhas, como nos
ensina Pêcheux (2014), que vamos constituindo uma outra prática
na educação linguística e, por que não, um determinado arquivo
pedagógico, como vocês bem trazem a partir de Indursky (2019).
Tendo isso em vista, como você compreende as contribuições que
uma perspectiva discursiva materialista pode dar à Formação de
professores da área de linguagens?

A. R.: Apresentar a professores já atuantes, alunos de mestrado ou


especialização, ou mesmo a professores em formação inicial – graduandos
– uma perspectiva discursiva materialista tem sido um grande desafio na
minha experiência profissional. Sabemos que não é essa a perspectiva que
predomina nos documentos oficiais, nos livros didáticos, em cursos de
curta duração oferecidos, por exemplo, a professores de redes públicas.
Penso ser muito importante que professores em formação conheçam a
abordagem discursiva materialista, justamente para que possam ter a
chance de pensar a língua e seu ensino de um outro lugar. Não se trata
de um novo conjunto de técnicas, de uma nova didática. É um outro
olhar sobre a língua, o sujeito e a história, sobre identificar-se ou não
com “a língua portuguesa” – e as pesquisas sobre colonização linguística
(MARIANI, 2018) e autopreconceito linguístico (MARIANI, 2016) são
fundamentais nesse debate, que costuma suscitar muitas reflexões em
turmas de professores-mestrandos, por exemplo. E também um outro olhar
sobre o ensino, com um deslocamento em relação à ênfase nos gêneros
do discurso e no modelo de competências e habilidades. Não é tarefa fácil
trazer à tona essa perspectiva, ela pode desestabilizar o modo como muitos

76
praticam o ensino da língua. Mas penso que é importante, principalmente
para professores que vieram à universidade em busca de um mestrado
profissional, por exemplo, que sua formação possa promover espaços de
troca, de debate, que desloquem, que movimentem os sentidos sobre o
ensino, sobre a língua, sobre o aluno. E os que escolhem desenvolver suas
pesquisas a partir da perspectiva discursiva vêm trazendo contribuições
também para a área, ao desenvolverem pesquisas práticas, com alunos da
educação básica, inspirados nas propostas de diversos autores do campo
da análise do discurso – como os já citados trabalhos de Orlandi (1988;
2006), Indursky (2001; 2011; 2019), Pfeiffer (1995), Lagazzi-Rodrigues
(2006), Mariani (2016; 2018) e Gallo (1992), para mencionar alguns.
Felizmente, os projetos desenvolvidos em pesquisas práticas nas escolas
inspirados na abordagem discursiva materialista vêm crescendo muito. E
em um processo de formação docente, mesmo para aqueles que seguirão
suas pesquisas em outras perspectivas, as questões levantadas a partir das
propostas da Análise do Discurso podem convocar esses professores
a pensarem de um outro modo sobre sua prática, sobre sua língua, seu
aluno – questões que, postas em discussão, podem modificar para sempre
a prática desses professores, independentemente de seguirem ou não com
a abordagem discursiva materialista.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

A. R.: A meu ver o maior desafio é a predominância de um ensino de


língua pensado em torno de gêneros do discurso, presente desde os
primeiros Parâmetros Curriculares, como apontei em Rodrigues (2019).
Na BNCC, a lista de gêneros é bastante extensa, e eles aparecem como
ponto de partida para o trabalho com as competências e habilidades para
77
a área de linguagens e suas tecnologias. Assim, eles pautam as atividades
práticas sugeridas nos quatro eixos apontados no documento – leitura,
produção textual/semiótica, oralidade, análise linguística/semiótica. Por
exemplo, ao discorrer sobre o eixo da leitura, o texto da BNCC sugere
que sejam exploradas as características composicionais do gênero, os seus
propósitos comunicativos etc. Para a produção textual também predomina
a ideia de um conjunto de atividades que vão culminar sempre na produção
de um gênero que foi lido em sala, com um exemplo a ser retomado na
produção do texto discente. Consequentemente, os currículos das redes
públicas trazem listas dos gêneros a serem apresentados aos alunos a cada
ano de escolaridade, e os livros didáticos estão cheios de atividades que
podem se resumir ao levantamento das já mencionadas características dos
gêneros e seus propósitos comunicativos. Considero que, mesmo dentro
de uma concepção de língua e discurso que leve em conta uma teoria de
gêneros, podemos pensar num certo engessamento das práticas de ensino
diante de listas e listas de gêneros. E em sala de aula com professores já
formados, escuto queixas. Escuto as pessoas dizerem desse excesso, dessa
necessidade de colocar o aluno para escrever tais e tais gêneros a cada
trimestre e de apreender as suas características. Como, diante de todo esse
quadro, um professor pode ter uma tomada de posição materialista em
sua práxis pedagógica na escola básica? Um professor que se aproprie do
aporte teórico da Análise do Discurso para sua prática de sala de aula vai
precisar ultrapassar essa barreira, ainda que esteja inserido nesse contexto
de imposição dos gêneros. Ele terá de trabalhar com textos que estejam
definidos como determinados gêneros nos currículos, mas seu foco não
será esse nas práticas de leitura, de escrita, de análise linguística. Ele pode
mesmo informar ao aluno que aquele texto é definido como uma crônica,
um conto, um artigo de opinião – e também não é possível deixar de
considerar que esse aluno poderá ser avaliado no futuro por esse tipo de
conteúdo. Mas as práticas que irá propor serão sobretudo baseadas em
78
outros modos de ler e refletir sobre a língua e os efeitos de sentidos que
as formas linguísticas podem produzir quando analisadas em sua forma
material – como comentei em questão anterior, a partir da proposta de
Indursky (2011, p.331).
***

Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse


projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.

A. R.: Quero agradecer pelo convite e destacar a importância de um projeto


como esse! Promover a divulgação das ideias de pesquisadoras na área é
fundamental para conquistarmos mais espaço nas políticas voltadas para a
educação linguística. Considero muito importante ampliar nossa atuação,
ocupar mais espaço nas políticas de ensino, no debate sobre currículos e
reformas, na produção e avaliação de material didático etc.
***

79
80
E ntrevista com C laudia Pfeiffer
Universidade Estadual de Campinas

“Não se trata, como tanto insistiu Eni em seus escritos sobre leitura e ensino, de
dizer que toda interpretação é possível, porque não é, já que a história intervém nessa
constituição. Mas significa, sim, dizer da importância de se abrir condições de produção
para que outros sentidos que estão se efetivando no espaço da escolarização sejam
escutados, façam sentido [...]. Significa dizer que essa autorização de sentidos outros
precisa ser trabalhada também pelo professor, legitimando sua prática para além de
um dizer estabilizado por discursos que se sobrepõem ao seu dizer. Significa construir
condições de autoria para professor e aluno. Significa abrir condições para que uma
interlocução real se efetive, para que o imprevisto tenha espaço, para que aquilo que
falha faça laço (político) nas práticas cotidianas do espaço de escolarização”.

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Claudia Pfeiffer: Falar de percursos entremeados é sempre um momento


prazeroso, mas também desafiador porque o que se tece é muito mais
profundo e enlaçado do que o gesto de relembrar permite dar conta. Mas
vamos lá, porque é encantador fazer esse movimento. Já rememorei meu
início de formação (não deixando de lembrar que sempre tem um antes, como
nos ensina há muito tempo Eni Orlandi!) em outros textos, mas é preciso
repetir algo muito importante para mim: o fato de que demorei muito para
me encontrar na Linguística. Ela não me satisfazia, apesar de gostar do
que aprendia. Procurava nos cursos alhures outras possibilidades. Fiz os

81
cursos introdutórios de Antropologia, Sociologia e Ciência Política com
os calouros de 1989 do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Unicamp), durante meu segundo ano de graduação – eu entrei em
Linguística em 1988, no IEL (Instituto de Estudos da Linguagem do
IEL) – justamente por essa falta que eu sentia. No ano seguinte, em
1990, fui procurar na Faculdade de Educação o que me inquietava. Lá
fiz duas disciplinas sobre a história da educação brasileira. E, no próprio
IEL, também em 1990, cursei como eletivas e extracurriculares algumas
disciplinas da LA (Linguística Aplicada), todas voltadas para o ensino de
língua. Indo aqui e acolá ficavam as inquietações, um “ainda não é isso,
mas é quase isso”, e a certeza de que era com a linguagem que eu queria
trabalhar e, mais especificamente, com o ensino da língua. Em meio a essas
inquietações, comecei minha inscrição na pesquisa com uma iniciação
científica, orientada pela Bernadete Abaurre, entre o segundo semestre de
1990 e o primeiro de 1991, sobre a aquisição da escrita, observando uma
sala de aula de alfabetização. Bernadete havia sido nossa professora de
Fonética e Fonologia e na sua porta, no “barracão dos docentes” como
chamávamos à época o local em que ficavam as salas dos professores,
tinha uma plaquinha abaixo de seu nome indicando o projeto de aquisição
da escrita (não me lembro bem o nome!). No início do primeiro semestre
de 1990, ela entrou em uma aula da turma de linguística para divulgar a
monitoria em Fonética e Fonologia, uma modalidade de bolsa da FAPESP
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) – a de iniciação
científica – e a própria Fapesp, porque isso era totalmente distante para nós
alunos até aquela conversa. Eu não era apaixonada por Fonética e Fonologia,
mas fui com minha amiga, a Cláudia Mendes Campos, hoje docente na
UFPR (Universidade Federal do Paraná), saber mais da monitoria e da
bolsa de IC na sala da Bernadete. E lá vi a plaquinha “aquisição da escrita”
mais uma vez. A Cláudia era fortíssima em Fonética e Fonologia, por isso
a Bernadete não tinha dúvida em oferecer a vaga de monitoria para ela.
82
Eu aproveitei a ocasião para perguntar mais da iniciação científica e se
era possível fazer fora da Fonética e Fonologia, com algo que envolvesse
a aquisição da escrita – e apontei para a plaquinha! Bernadete abriu um
sorriso largo e me disse para escrever um projeto. Me passou algumas
leituras e assim comecei meu enlace até nunca acabar entre a linguagem e
a escola, o ensino, a leitura, a escrita. Mas eu ainda sentia que algo faltava
de modo forte nesse trabalho. Foi em 1991, ano em que me formava,
que tive, no último semestre, a disciplina de Análise de Discurso. Fiquei
extasiada, sobretudo com a compreensão de que, nessa teoria, tudo do que
eu sentia falta nos modos de se trabalhar a linguagem é constitutivo de
seu funcionamento. E quem me conduziu de modo encantador, potente,
com uma energia e uma alegria ímpar a cada entrada em sala de aula, foi
Eni Orlandi. Um privilégio. Meus amigos não me aguentavam, porque eu
estava absolutamente tomada pelas aulas. Só falava nisso! Quis fazer ponte
com a AD e minha iniciação, mas não dava tempo de maturação de tudo
isso. Terminei a IC, me formei e perguntei a Eni se, caso eu conseguisse
entrar no mestrado, ela aceitaria ser minha orientadora. E toda uma nova
trajetória se deu a partir desse encontro maravilhoso! Vou continuar a falar
dessa trajetória, mas antes quero frisar que falei de nomes de disciplinas, de
professores, de institutos, de plaquinhas em portas, de circulação na sala
de aula de informações sobre agências de fomento, bolsas e modalidades,
porque tudo isso importa muito na configuração de trajetórias de
pesquisa, de institucionalização de práticas de pesquisa. São fatos que
estão presentes no espaço institucional: os currículos, as distribuições de
disciplinas e docentes, os cursos e suas divisões em institutos e faculdades,
as portas com suas plaquinhas, um conjunto de fatos que compõe, de
modos distintos, a tessitura dos enlaces das trajetórias pessoais frente às
marcas da institucionalidade e da institucionalização das pesquisas, teorias,
disciplinas. Acho importante fazer essa observação.

83
Continuando em minhas rememorações, meu ano de 1992, já
formada, foi dedicado a frequentar as reuniões do grupo de Eni, fazer aulas
da pós-graduação como aluna especial e escrever meu projeto de mestrado
que vinha um pouco como desdobramento da IC, mas já conseguindo
formular a partir da AD, preocupando-me com o funcionamento da
autoria na sala de aula. Da minha IC, restou, entre outras, a inquietação de
procurar compreender de que modo as relações de sentido se estabelecem
no aluno na sua prática de escrita e que diferenças se estabeleciam nas
práticas cotidianas da sala de aula para que as formas de relação com a
escrita e os sentidos fossem diversas em uma mesma sala de aula. Eu
já resvalava na compreensão de que o funcionamento histórico-político-
ideológico da linguagem nas relações que se estabeleciam na sala de aula
seria minha ancoragem analítica, mas foi no processo de embate com o
arquivo e com as leituras teóricas e analíticas que fui tendo palavras para
compreender tal funcionamento. Ou seja, foi no decorrer do mestrado
– de 1993 a 1995 – que eu fui compreendendo melhor o funcionamento
político, histórico e ideológico da língua(gem), tanto no embate com aquilo
que adentrava em meu arquivo, quanto com as discussões dos outros
trabalhos de mestrado e doutorado que eram realizadas em grupo, bem
como com as leituras das disciplinas. Tudo acontecia em uma aconchegante
sala (com duas plaquinhas! O nome de Eni Orlandi e o nome do projeto
“Discurso, Significação, Brasilidade”) que ficava – para quem conhece os
prédios do IEL dessa época vai se lembrar bem – no segundo andar do
prédio em que hoje está o CEDAE (Centro de Documentação Alexandre
Eulalio) no térreo, e as secretarias de graduação e pós no segundo piso.
Foi lá que eu entrei em um projeto financiado pelo INEP sobre leitura.
É desse projeto a publicação do livro organizado por Eni “A leitura e os
leitores”. Em suma, e isso é uma característica fortíssima de Eni, eu entrei
na rede do grupo, fazendo pesquisa coletiva antes mesmo de entrar no
mestrado, recém-formada, em um grupo marcado por uma maioria de
84
doutorandos, muitos docentes em outras universidades, ou seja, muito
maduros, com trajetórias muito firmes em suas temáticas de pesquisa. Eu
não tive ninguém desse grupo como colega de disciplina. Então, eu tinha
o grupo do mestrado com quem eu discutia, seguia as disciplinas, convivia
mais de perto, e todos fazendo mestrado em outras áreas, e o grupo de
AD com quem eu me reunia, bastante timidamente, preciso dizer. Tudo
muito novo, muito convidativo e assustador ao mesmo tempo!
No segundo semestre de 92, conheci outra característica de Eni,
que era a de trazer muitos professores de universidades parceiras para
seminários. Muitos vinham da França. Fui conhecendo Francine Mazière,
Simone Delesalle, Andrè Collinot, Jacqueline Authier-Revuz e Sylvain
Auroux, dentre outros, sem ter muita noção, logo no início, do que
significava a presença tão importante desses pesquisadores. Foi uma imersão
a que eu fui dando sentido aos poucos. Conforme eu lia textos e conseguia
estabelecer relações. Foi espetacular essa possibilidade aberta por Eni. Era
um movimento constante! E nessa agitação toda, entrei no mestrado em 93.
E foi nesse ano, em uma reunião maior – na qual eu conheci Suzy Lagazzi (já
falei disso em outro texto!) – que Eni nos apresentou a proposta do projeto
História das Ideias Linguísticas: construção de um saber metalinguístico
e constituição da língua nacional. Foi toda uma nova abertura para mim,
novamente de nunca acabar! Eduardo Guimarães começou a oferecer
disciplinas na pós em que líamos e analisávamos gramáticas e outros
textos que adentravam na história da gramatização. Eni fazia seminários
em que discutíamos textos basilares para a área da HIL, a começar com
A Revolução Tecnológica da Gramatização, de Sylvain Auroux, que ela havia
traduzido já em 1992, antes mesmo de ser publicado na França! Mas não
só. Líamos muitos textos de Mazière, Delesalle, Collinot, Lèon, Chevallier
e Colombat, dentre outros. Esses foram sendo aos poucos traduzidos.
Outra característica fortíssima de Eni, que sempre conduziu como política
científico-linguística um programa intenso de tradução de textos de modo
85
que essas posições frente à ciência, às ciências da linguagem, circulassem.
E Eni continuava a trazer esses autores para seminários e conversas com
seus orientandos. Enfim, como vocês podem observar, saí da graduação
e entrei em uma rede profunda, movimentada, articulada, de conexões e
de construções de outros dizeres possíveis. Meu mestrado ainda não foi
em HIL-AD. Abordei, como já disse, discursivamente, o funcionamento
da autoria no espaço da escolarização. Nesse movimento, foi fundamental
compreender as diferentes formas do silêncio formuladas por Eni; as
diferentes formas do funcionamento da repetição (a mnemônica, a formal
e a histórica), igualmente formuladas por Eni; a relação entre o sujeito e
o discurso gramatical, tal como trabalhado por Claudine Haroche em seu
livro “Fazer Dizer, Querer Dizer”; os modos como Foucault compreende
o autor e seu deslocamento formulado por Guimarães e Orlandi; a
distinção entre o Discurso da Escrita e o da Oralidade, formulados por
Solange Gallo; o funcionamento do “poder dizer” formulado por Suzy
Lagazzi; e os conceitos basilares da AD formulados nos textos de Michel
Pêcheux. Quem me acompanha em minhas pesquisas e escritos acaba por
perceber que de um modo ou de outro acabo voltando a esses pontos de
ancoragem teórico-analítica na busca por compreender sempre um pouco
mais das práticas linguageiras que se efetivam no espaço da escolarização.
Foi no meu projeto de doutorado – entrei em 1996 no programa – que
eu tive condições de perguntar a partir da HIL, em seu enlace teórico e
epistemológico com a AD. Foi aí que eu entrei de modo consistente em
uma tomada discursiva da HIL no/do Brasil, perguntando das formas de
bem-dizer configuradas na história dos discursos sobre a língua portuguesa
no Brasil e suas derivas no espaço da escolarização. E foi aí que conheci
Mariza Vieira da Silva, que também fazia doutorado com Eni, mas havia
entrado dois anos antes no Programa. Não fizemos disciplinas juntas,
nos cruzávamos nas escadarias, primeiramente, conversando ainda sem
muito contato até que os seminários de HIL começaram a acontecer e
86
começamos a nos escutar falando de nossos trabalhos. Fez-se a parceria
de nunca acabar! É com ela – seja porque fazemos juntas, seja porque seus
escritos me mobilizam profundamente – que navego por essa história de
discursos sobre a língua escolar no processo de gramatização da língua
portuguesa no Brasil.
Finalmente, um último acontecimento é preciso ser trazido como
fundamental em minha trajetória: minha entrada, por meio de concurso
público, como pesquisadora no Laboratório de Estudos Urbanos
(Labeurb), também em 1996. O Labeurb é fundado em 1992, então era
uma instituição bem nova quando eu passo a integrá-la – um espaço
institucional interdisciplinar que colocava a linguagem como observatório
do funcionamento urbano a partir de uma compreensão materialista desse
funcionamento: a espacialização do simbólico e a simbolização do espaço
como tão bem formulou Orlandi em um dos primeiros escritos sobre o
Labeurb e seu objeto de pesquisa. Aos poucos, foi-se configurando no
Labeurb, sob a liderança de Eni, a área Saber Urbano e Linguagem. Em meu
concurso público, apresentei como projeto de pesquisa a ser desenvolvido
a tematização da relação entre a escola e a cidade com a hipótese de que
os processos de escolarização e de urbanização estabeleciam relações
estruturantes. Assim que entrei no doutorado no mesmo ano em que
assumi meu cargo de pesquisadora na Unicamp, onde estou até hoje, em
outra relação de nunca acabar! Foi esse espaço institucional que me permitiu
compreender de modo tão profícuo, no início de meu percurso como
pesquisadora, o funcionamento daquilo que formulei, em 1997, enquanto
um sujeito urbano escolarizado, que me acompanha em minhas pesquisas
e contribui para muitas compreensões do que está em jogo nesse bem-
dizer tão evidente e demandado ao tempo mesmo de calar o outro em seu
maldizer – compreensão que foi nuclear em minha tese de doutoramento,
defendida em 2000. Paro por aqui esse movimento de rememoração,
agradecida pela possibilidade de me voltar a esse processo, sempre muito
87
prazeroso, mas, sobretudo, agradecida por tantos encontros que não estão
nomeados, mas que significam profundamente em minha trajetória. Ter
me inserido logo tão cedo em um grupo e desde aí ter sempre trabalhado
em redes que só foram se ampliando e agregando é de uma potência sem
palavras. O meu percurso se marca por esses encontros, se nutre desses
encontros!
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

C. P.: Puxa, são tantas… você pode articular a educação linguística tanto
ao processo de escolarização do que hoje chamamos de o Ensino Básico,
quanto à formação do bacharel em Linguística ou do licenciado em Letras.
Vou chamar atenção particular para quatro pontos de muitos: i. a posição
ético-política que a AD permite construir para o lugar do professor de
língua; ii. o pressuposto da HIL brasileira, formulado por Orlandi, de
que a história da língua e do discurso sobre a língua se constituem ao
mesmo tempo, afetando-se mutuamente e, portanto, afetando o sujeito de
linguagem compreendido, por sua vez, pelo primado discursivo, formulado
por Pêcheux, a partir de Althusser, como um sujeito que se constitui junto
com a língua (não há discurso sem sujeito, não há sujeito sem ideologia);
iii. a compreensão de Pêcheux de que toda prática científica é ideológica,
dito de outro modo, de que a ciência é uma prática social e discursiva
e, portanto, não está destituída nem de sujeito, nem de ideologia; e iv. a

88
compreensão de que uma prática científica que implique na língua é uma
política de língua.
O primeiro ponto diz da implicação do modo como compreendemos
o funcionamento discursivo da língua(gem) em uma posição ético-política
do professor que, necessariamente, precisa se colocar em posição de escuta
(Pêcheux, já em 1966, enquanto Thomas Herbert, nos diz de uma escuta
social). Essa posição de escuta pressupõe a espessura dos sentidos, sua
opacidade, levando, portanto, também em consideração que aquilo que
o professor diz é igualmente opaco. Essa posição traz para si a contínua
desestabilização dos sentidos, de suas evidências, não deixando esquecer
que as práticas se dão em condições de produção. É dessa posição que se
abrem condições para que diferentes inscrições dos sujeitos (professor e
aluno) nos sentidos se efetivem e sejam legitimadas/autorizadas na sala
de aula – diferença fundamental na construção de relações reais com os
sentidos, no funcionamento de uma repetição histórica e não mnemônica
nem formal, tal como formuladas por Eni Orlandi. Não se trata, como
tanto insistiu Eni em seus escritos sobre leitura e ensino, de dizer que
toda interpretação é possível, porque não é, já que a história intervém
nessa constituição. Mas significa, sim, dizer da importância de se abrirem
condições de produção para que outros sentidos que estão se efetivando
no espaço da escolarização sejam escutados, façam sentido (o co(m)(n)
sentido com que trabalhei em minha dissertação na relação com a autoria
escolar: a possibilidade de deslocar-se do sem sentido tal como Orlandi
formula quanto à política do silêncio, distinto do não sentido que seria da
ordem do silêncio fundador). Significa dizer que essa autorização de sentidos
outros precisa ser trabalhada também pelo professor, legitimando sua
prática para além de um dizer estabilizado por discursos que se sobrepõem
ao seu dizer. Significa construir condições de autoria para professor e
aluno. Significa abrir condições para que uma interlocução real se efetive,

89
para que o imprevisto tenha espaço, para que aquilo que falha faça laço
(político) nas práticas cotidianas do espaço de escolarização.
O segundo ponto diz respeito a um pressuposto basilar da HIL a partir
do qual Eni Orlandi edificou a singularidade da HIL no Brasil justamente
por dar consequência à sua posição discursiva frente à compreensão
dessas ideias linguísticas. Esse pressuposto nos diz que a história da língua
e do saber sobre a língua se dão em um batimento contínuo. Uma das
implicações desse pressuposto é de que todo dizer sobre a língua afeta
a língua e, portanto, o sujeito dessa língua porque, discursivamente,
compreendemos que sujeito e língua se constituem mutuamente. Essa
compreensão é fundamental em uma sala de aula de ensino de língua,
uma vez que o professor não estará alheio aos efeitos de sentido do que
se diz sobre a língua nos sujeitos dessa língua, incluindo-se nessa rede
de significação. Essa posição permite olhar para os discursos sobre a(s)
língua(s) de outro lugar, perguntando-se sobre o que se diz, como se diz e
o que não se diz, por exemplo, sobre as relações entre o que se evidencia
enquanto Língua Portuguesa e as línguas indígenas e as línguas africanas.
Além disso, essa compreensão é fundamental para não deixar de lembrar
que tudo o que se diz sobre a língua tem história, tem tensão, tem disputa.
Desse modo, é possível dizer da língua, das línguas, fora da naturalização
do que se estabilizou enquanto natural de se dizer. Essa suspensão da
evidência é fundamental para que o ensino da(s) língua(s) se dê sempre no
trabalho de/com a língua enquanto um objeto científico que tem história.
E toda essa compreensão é também fundamental para o ensino superior,
seja na licenciatura em Letras, seja no bacharelado em Linguística.
Isso incorre no terceiro ponto que quero observar sobre as práticas
científicas que não se dão fora da história, do político, da ideologia. O
encontro da AD com a HIL é fundamental para que, no ensino superior,
observe-se sempre as relações tensas e contraditórias dos objetos
científicos, das relações disciplinares, da organização curricular, dentre
90
outras marcas das políticas científicas, dos processos de institucionalização
e de disciplinarização que fazem parte da história das ciências da linguagem,
fazendo lembrar a todo instante que o conhecimento não é natural e sim
histórico, político, ideológico. Assim, é preciso que a formação do bacharel
e do licenciado garanta a visibilidade das filiações e de suas consequências
nas tomadas de posição teórico-disciplinar.
Finalmente, e decorrente de tudo o que já disse antes, o quarto
ponto diz do fato discursivo de que as práticas científicas no domínio das
ciências da linguagem se configuram enquanto políticas de língua porque
instituem direções de sentido estabilizadas para disputas que são muitas
vezes invisibilizadas. Por exemplo, determinadas áreas da Linguística
receberem um financiamento muito maior, em determinado tempo-
espaço, significa em termos de relações de força e de sentido, promovendo
uma hierarquização naturalizada na distribuição de vagas de docentes, no
número de disciplinas e no momento em que essas disciplinas entram no
currículo. E isso é da ordem de uma política de língua. Uma educação
linguística que abra espaço para se observar essas práticas permite que
corpo discente e docente compreendam de modo consistente as injunções
inscritas nessas histórias do conhecimento que afetam seu cotidiano
institucional.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e sobre como
uma perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a
práxis pedagógica?

C. P.: Os trabalhos de Mariza Vieira da Silva mostram há bastante tempo


que a partir da década de 70 do século XX as teorias linguísticas que são
alçadas no funcionamento do Estado brasileiro enquanto hegemônicas
91
para configurar as políticas de ensino e, portanto, as políticas de língua têm
como um de seus principais efeitos o apagamento da língua. Deixa-se de se
trabalhar com a língua. A língua é sobredeterminada pela comunicação por
meio de uma tomada pragmática de seu funcionamento. E aí trabalha-se a
eficácia/capacidade de o aluno se comunicar bem, com clareza, de acordo
com propósitos bem definidos, incorrendo em uma redução da língua a um
instrumento de comunicação que, se bem operado e dominado, permitirá
ao aluno, nos termos atuais, as habilidades e competências necessárias para
ter sucesso, ser eficiente. Esse modo hegemônico que se mantém ainda
hoje nas políticas públicas de ensino promove o mal-estar nas práticas
cotidianas, já que tudo o que não coincide e provoca ruído na relação
entre os sujeitos e as línguas é significado enquanto ineficiência, insucesso,
ausência de habilidade e de competência e é dado como responsabilidade
do aluno ou do professor: uma falha individual, uma incapacidade
individual; além de, como já disse, deixar de se trabalhar efetivamente com
a(s) língua(s). E o trabalho com a(s) língua(s) – a compreensão de sua
materialidade – é central na teoria do discurso. Pressupor a materialidade
da língua implica em abertura de possibilidades de uma prática pedagógica
de outra ordem, uma vez que se pressupõe que a língua se inscreve na
história para significar e que o sujeito é atravessado pelo inconsciente e
pela ideologia e, portanto, não há possibilidade de controle do dizer já
que esse é, por excelência, político e ideológico, significando a falha, o
equívoco, a contradição como constitutivos do funcionamento da língua
e não como defeitos a serem superados. E esse pressuposto de considerá-
los constitutivos do funcionamento da língua significa que não são da
ordem do individual, justamente, porque o inconsciente e a ideologia,
materialmente articulados, intervêm. Daí o espaço para uma teoria não
subjetiva do sujeito a que Pêcheux sempre se referia. Trabalhar na sala de
aula levando esses pressupostos que estão na base de compreensão do que
significa dizer da materialidade da língua desloca as relações do professor e
92
do aluno com a(s) língua(s) que circulam em sala de aula e com o trabalho
com ela(s). Isso nos leva a outro ponto muito importante que é o fato de
que Pêcheux sempre colocou como fundamental o batimento contínuo
entre a descrição e a interpretação para que uma análise seja praticada
de modo consistente, o que implica a observação da forma material da
língua – a forma encarnada na história para produzir sentidos, tal como
nos diz Eni –, o que, para acontecer, exige uma descrição que permita
compreender a espessura dos sentidos que se inscrevem na língua. Isso
permite fazer acontecer um trabalho com a língua muito sensível para
a escuta. Desse modo, abre-se espaço para se trabalhar com o que está
estabilizado e com tudo o que entra sem pedir licença, desestabilizando,
sem que seja colocado na lata do lixo, passando a fazer parte do objeto
língua a ser trabalhado na sala de aula. Diferença fundamental!
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

C. P.: Quantos encontros potentes aconteceram e acontecem! Vou me


ater ao potente encontro entre a AD e a HIL que afeta, como viemos
conversando, a educação linguística e, consequentemente, a educação
discursiva, já que o professor de AD que pesquisa em HIL necessariamente
leva para a sala de aula compreensões importantes que a HIL traz não
apenas em termos de análises que toquem o processo de gramatização da
LP no/do Brasil, mas também em termos do modo como se compreende
os processos discursivos em jogo em formações sociais tomadas por
determinadas evidências sobre as línguas no espaço discursivo brasileiro
93
que reverberam nesses processos discursivos sem que necessariamente
esteja se dizendo da língua. Ou seja, a aula de AD é afetada pela prática
em HIL, por uma escuta discursiva própria da HIL, das perguntas que aí
fazemos e que retornam para nossa prática em uma educação discursiva.
Lembro, por exemplo, quanto a isso, da abertura de uma nova agenda de
pesquisas realizada pela Ana Cláudia Fernandes Ferreira que coloca para a
HIL a necessidade de refletir sobre os saberes linguísticos cotidianos. Esses
saberes configuram efeitos nas formações sociais, mesmo que a língua
não esteja sendo tematizada. E isso me remete, por sua vez, ao modo
como Rogério Modesto vem propondo a noção de discursos racializados em
diálogo com o que Mariana Cestari chamou de discursos classistas racializados
de gênero. O fundamental de se chamar a atenção é que Modesto formula,
a partir de suas indagações sobre os discursos racializados sobre língua –
trabalhando com textualidades de diferentes naturezas como instrumentos
linguísticos, textos teóricos e analíticos dos campos da linguística e da
literatura –, na direção de compreender o funcionamento dos discursos
racializados ressoando questões de raça sem que sejam, necessariamente,
discurso de raça ou sobre raça, ou seja, Rogério nos mostra que há efeitos da
racialização dos discursos que vão além da tematização de raça. Isso é de
uma potência extraordinária para a educação discursiva. E também para
a HIL, porque, como temos visto desde os primeiros trabalhos em HIL
e mesmo antes, com o livro Terra à Vista de Eni ou com sua formulação
de língua imaginária e de língua fluida, há um silenciamento sobre as relações
entre línguas no espaço discursivo brasileiro, circunscrevendo as línguas
indígenas e africanas, por exemplo, a meros acréscimos na relação com
uma imaginária Língua Portuguesa originária, sendo que, no caso das
línguas africanas, esse silenciamento é ainda mais contundente. E aí entra
a demanda que Modesto e Cestari (somados a muitos pesquisadores da
AD) levantam para a teoria que é a de haver um compromisso antirracista
nos gestos analíticos de modo a dar condições para uma escuta dos
94
processos discursivos raciais que se instalam a despeito da tematização
racial. Compromisso nodal em uma educação discursiva.
***

Em suas reflexões sobre o ensino, você tem se proposto a pensar,


a partir de uma tomada de posição materialista, o processo de
institucionalização do ensino de língua portuguesa no Brasil. Com
esse fito, problematizando os modos de inscrição de um saber sobre
a língua na relação entre Estado, Ciência e Sociedade, dois eixos
temáticos têm-se destacado, a saber: a relação com as políticas
públicas voltadas para o ensino e a discussão sobre a língua
escolarizada enquanto objeto de conhecimento e, por conseguinte,
de transmissão de saberes linguísticos.

É, portanto, pensando esses modos de inscrição que, em “Discursos sobre


a língua escolarizada, leituras possíveis”, você conclui:
Nossa posição é a de que a escola deve abrir condições de produção para
que o sujeito (seja o aluno, seja o professor) observe, descreva, trabalhe com
o objeto de conhecimento que a escola tem o dever de ensinar: a língua
portuguesa, enquanto uma língua “familiarmente conhecida”, mas não
a língua materna de cada aluno, uma vez que a língua dos instrumentos
linguísticos (Língua Imaginária da qual nos fala Orlandi, 1992) não
coincide com a língua materna de sujeito algum, pois ela é construída,
imaginariamente, como uma unidade, e é necessária para o Estado. [...]
Nesse sentido, insisto, é preciso que se abra espaço nas práticas inseridas
na escola para uma escuta que trabalhe com o ensino de um lugar onde a
técnica não sobredetermine os gestos de interpretação, as leituras possíveis,
lidando assim com a ordem do político que constitui os diferentes dizeres
que circulam no e sobre o espaço escolar.
[...] É preciso, pois, com a prática – que é política – do ensino da língua
portuguesa, construir lugares de autorização de um dizer sobre a língua
e de um dizer a língua, o que abrirá condições para se estar em espaços
autorizados na língua, ou seja, na história, na sociedade. (PFEIFFER, 2015,
p. 106-107).

95
Com base nesse excerto, você poderia comentar, primeiramente,
como políticas públicas de ensino, como a BNCC, contribuem para
a produção desse efeito de equivalência entre “língua portuguesa”
e “língua materna” e, em seguida, como poderia haver, a partir da
perspectiva discursiva, essa abertura de espaço para práticas de
ensino de língua portuguesa que possibilitem a significação de
alunos e também de professores como sujeitos-autores em/dessa
língua? E, em um exercício de projeção, você conseguiria nos
indicar modos desse trabalho discursivo?

C. P.: Em primeiro lugar, agradeço o recorte que fizeram desse texto, que
aprecio muito, com o gesto de interpretação que vocês fazem das minhas
formulações! Para mim, a HIL é fundamental para o ensino de línguas, razão
pela qual ela deveria ser disciplina obrigatória nos currículos de Letras e de
Linguística. Acredito que isso afetaria de modo muito mais contundente
não apenas as práticas cotidianas – fundamental – mas também as políticas
públicas, porque teríamos leitores dessas políticas com uma escuta sensível
a sobredeterminações que significam as relações entre línguas e os sujeitos
dessas línguas. Nesse sentido, indo em direção à pergunta de modo mais
pontual, eu diria que a BNCC mantém a regularidade que encontramos
em diferentes textualidades que regulam o ensino e a(s) língua(s), que é a
de tomar como intercambiáveis as designações língua portuguesa e língua
materna, salvo quando, nessas textualidades, há a referência a alunos
indígenas ou oriundos de imigração. A BNCC consolida, portanto, um
processo discursivo que faz parte da gramatização da Língua Portuguesa
no Brasil, que é a produção da equivalência entre as designações língua
portuguesa, língua materna, língua nacional e língua oficial.
Na BNCC, encontramos quase exclusivamente apenas as designações
língua portuguesa/português e língua materna, com uma frequência maior
de língua portuguesa ou de português. Mas, apesar disso, há a evidência
da intercambialidade que produz a naturalização de que o aluno brasileiro
96
vai à escola para aprender a língua portuguesa, que é a sua língua materna.
Nesse processo discursivo de equivalência, diz-se da necessidade de trazer
essa língua de maneira mais próxima ao estudante, diz-se da necessidade
de respeitar todo a experiência que o aluno já tem sobre a sua língua,
já que ele a usa cotidianamente, incidindo no efeito imaginário de um
continuum entre a língua materna e a língua enquanto objeto de ensino
escolar. Um dos efeitos dessa evidência é o de que o ensino melhorará a
língua materna e, com isso, fará com que essa língua seja mais adequada
para que esse aluno alcance sucesso em sua formação e na obtenção de
emprego – e também no exercício de sua cidadania. Vê-se, portanto, um
sentido pragmático sendo conferido em uma relação de usuário da língua.
Novamente voltamos ao efeito de responsabilização individual para
o maior ou menor sucesso nessa relação que, invariavelmente, diz de
uma língua materna mais ou menos cultivada, mais ou menos adequada,
mais ou menos melhorada e, portanto, diz do sujeito dessa língua como
inadequado, inculto, insuficiente, inepto. É bastante interessante notar,
por exemplo, que na BNCC há muita ênfase na oralidade, no trabalho com
a oralidade. E, normalmente, quando a oralidade comparece, vem junto a
necessidade do respeito à diferença, vem junto uma certa discursividade
sobre a variação linguística, vem junto o uso do plural se referindo às
variedades. E quando comparece a escrita, só há formas no singular. A
escrita, nessa discursividade, materializa o efeito máximo da unidade
imaginária da língua. Não há, como diria essa discursividade, variedades
na escrita, apenas na oralidade. Esse fato discursivo já nos diz de uma
encenação da diversidade, da diferença – encenação que, aliás, também
pode ser vista – é o que nos mostram os trabalhos de Luciana Nogueira,
Juciele Dias e Tania de Souza – na referência às línguas indígenas na
BNCC: diz-se delas para silenciá-las em sua diferença real, é o que nos
mostram as autoras.

97
Em síntese, a textualidade da BNCC mantém a regularidade do
imaginário de uma unidade linguística modelar que significa um ponto
de chegada a ser alcançado no progresso de adequação do aluno na
direção dessa imaginária língua ideal. E nesse processo discursivo regular,
há aqueles significados próximos desse ponto de chegada e aqueles
significados enquanto sempre correndo atrás sem nunca ter capacidade
para chegar, sendo essa incapacidade significada, por sua vez, enquanto
consequência de uma língua materna significada como muito distante da
língua ideal. Mantém-se, portanto, com consistência, a divisão no alunado
– aqueles que portam uma boa língua de origem capaz de ser melhorada
pela escola e aqueles que a maldizem, apesar da escola. E como abrir
espaço, é o que vocês me perguntam, justamente para práticas de ensino
de língua portuguesa que possibilitem a significação de alunos e também de
professores como sujeitos-autores em/dessa língua, ou seja, que digam de
modo legitimado nessa língua, sem mal-estar, sem o sentido de maldizer?
Parte desse como está disperso nas questões anteriores.
Vou aproveitar aqui para dar ênfase a um gesto que considero muito
importante e que é uma das consequências de praticar o ensino da língua
escolar enquanto um objeto científico tal como venho insistentemente
repetindo! E por quê? Porque, enquanto objeto científico, de imediato,
há o corte com a evidência da equivalência com a língua materna. Há
também a possibilidade de olhar para a língua escolar como um objeto
a ser explorado, trabalhado, descrito e não melhorado, melhorando a
si mesmo, por consequência. Essa possibilidade permite aos sujeitos
escolares transitarem na movência contraditória e equívoca entre falar a
língua e falar da língua – uma língua, para muitos, familiarmente conhecida, mas
não para todos, já que há um alunado que escapa da evidência do efeito de
coincidência entre a língua portuguesa e a materna que se significam como
não tendo o português como sua língua materna. Há, ainda, a possibilidade
de produzir-se a diferença entre a metalinguagem e a língua, diferença
98
que foi sendo apagada na história da gramatização da língua portuguesa
sobretudo com a instituição da NGB18, por exemplo, apagando, enquanto
efeito imaginário, que há disputas, há tensões, há interpretações inscritas
nas diferentes formas de se dizer sobre a língua (já que tudo se passa como
se houvesse um único modo universal e a-histórico de se dizer sobre a
língua). Enfim, esses gestos permitiriam que a metalinguagem deixasse de
ser significada como colada à língua e passasse a ser significada como um
gesto de interpretação sobre a língua. Movimento fundamental, a meu ver.
Agora as projeções! Um dos modos, projetivamente, de se fazer isso é
abrir espaço na prática escolar para mostrar parte da história sobre esses gestos
de interpretação inscritos nas diferentes metalinguagens, assim como também
abrir espaço para parte da história da língua. E abrir espaço para mostrar
diferentes modos de se dizer da língua. Vou mencionar alguns exemplos,
mas frisando que são exemplos pontuais e ao mesmo tempo simbólicos, uma
vez que o trabalho de reflexão de quando, para quem, de que modo, onde e o que se
trabalhar na sala de aula é justamente da ordem da práxis docente. Além disso,
vou me referir a alguns trabalhos espetaculares em HIL, com a ressalva de
que inúmeros outros poderiam aqui ser lembrados. Começo pelo trabalho de
Thaís Costa sobre permanências e rupturas no discurso gramatical, pesquisa
monumental que poderia mobilizar muitas aulas no sentido de mostrar as
polêmicas, as tensões, os deslizamentos e as repetições nos diferentes gestos
de configuração da metalinguagem no processo de gramatização da língua
portuguesa no/do Brasil. Nessa esteira, emblemático ponto de tensão que
acompanha tanto discussões linguísticas quanto gramaticais é, por exemplo, as
distinções das relativas. Trazer diferentes interpretações de textos gramaticais
e linguísticos para a sala de aula pode, a meu ver, desestabilizar a evidência
de que é o aluno que tem dificuldade em distinguir uma relativa restritiva de
uma explicativa, por exemplo.

N.O.: A entrevistada se refere à Nomenclatura Gramatical Brasileira, instituída por


18

meio de decreto em 1959 e até hoje jamais revisada.


99
Outro fato maravilhoso a ser tematizado na sala de aula é mostrar
que a categoria gramatical sujeito nem sempre existiu, articulando, como
fez Claudine Haroche, o discurso gramatical às condições de produção
histórico-ideológicas. Também podem ser tematizadas as diferentes formas
de se definir em dicionários de diferentes épocas e lugares, articulando o
espaço-tempo aos enunciados definidores. Lembro da brilhante análise de
Mariza Vieira da Silva sobre os verbetes analfabeto e alfabetizado, ou dos
trabalhos de fôlego de José Horta Nunes em que, por exemplo, ele nos
mostra como significa diferentemente a presença de marcações em um
verbete como ‘brasileirismo’, ‘galicismo’ ou ‘regionalismo’, dentre várias
outras marcações que podem estar presentes na entrada lexical. Esses são
dois exemplos de muitos que permitem abrir diferentes possibilidades
de trabalho com o discurso lexicográfico, como comparar dicionários
cujos lexicógrafos são portugueses e brasileiros, ou gaúcho e carioca,
ou ainda comparar dicionários analógicos e digitais, ou ainda trazer o
funcionamento de um dicionário informal, como já fez Sheila Dias, por
exemplo, ou trabalhar exclusivamente com dicionários on-line como tão
bem trabalhou o Ronaldo Freitas ou ainda com dicionários colaborativos
como vem fazendo Vanise Medeiros, Phelippe Marcel e Rudá Perini ao
trabalharem com o Dicionário de Favelas Marielle Franco. Enfim, jogar
com as diferenças nesses discursos lexicográficos abrindo espaço para o
trabalho de observação, descrição, análise desses instrumentos linguísticos
não restringindo a observação a diferentes acepções – terminologia
própria do discurso lexicográfico –, mas sobretudo observando os modos
de se definir e/ou as presenças e ausências de verbetes, desestabilizando,
por exemplo, a evidência de o dicionário conter todas as palavras de uma
língua (se não está nele, a palavra não existe!), dentre inúmeras outras
evidências a serem desestabilizadas.
Poderiam ser trazidos ainda glossários em suas diferentes formas de
funcionamento, como vem mostrando os trabalhos esplêndidos de Vanise
100
Medeiros fazendo ver, por exemplo, dentre diferentes possibilidades, as
relações entre línguas. Poderiam ser trabalhados também textos do século
XVII, em que encontramos um regime ortográfico e de escrita muito
diferente do contemporâneo, sobretudo observando espacialmente a
segmentação das palavras para se tematizar a problemática histórica do
sentido de palavra e o modo como essa problemática se sustenta na escrita
e, ao mesmo tempo, desnaturalizar a segmentação atual; e, ao lado disso,
se poderia trazer textos de crianças que começam a escrever para observar
a segmentação dessa escrita (observando similaridades e diferenças com
a escrita de séculos passados em que a segmentação era tão diferente da
atual), trabalhando com a relação entre oralidade e escrita e também com
a noção de palavra e o fato linguístico de que a escrita não é transcrição
da oralidade.
Finalmente, poderiam ser trazidas textualidades em que estão
presentes discussões sobre o nome da língua, como pareceres de comissões
designadas por instituições do Estado ou os textos constitucionais (estou
lembrando dos trabalhos de Eduardo Guimarães sobre as Constituições e
o nome da língua oficial; a tese de doutorado de Luiz Francisco Dias sobre
o projeto lei do nome da língua no congresso nacional no início do século
20; ou mesmo o meu trabalho citado na pergunta em que trago o relatório
final da comissão de 1945, presidida pelo Sousa da Silveira, responsável
pela decisão sobre a denominação do idioma nacional); ou ainda poderiam
ser trazidas textualidades em que estão presentes as diferentes formas de
nomear a(s) disciplina(s) que têm/tinham como objeto a língua: retórica,
estilística, língua portuguesa; literatura; comunicação e expressão; redação;
gramática...de modo a suspender a evidência do que se ensina e do modo
como se ensina na escola. Enfim, tudo isso que eu estou trazendo como
possibilidades está em diferentes trabalhos de autores pesquisadores em
HIL que, somados a outros inúmeros trabalhos e pesquisadores potentes
em HIL, configuram um vasto arquivo que pode mobilizar práticas, não
101
para aplicar as análises já realizadas, mas para, a partir das compreensões
analíticas, mobilizar a prática docente no sentido de desestabilizações
possíveis que retiram o dizer sobre a língua de sua evidência e de sua
naturalização, descolando a língua escolar do próprio sujeito escolar
como se ela fosse naturalmente dele – sua língua materna. Ao construir
condições para esse descolamento, a meu ver, abrem-se condições para
que os gestos frente à(s) lingua(s) praticados pelos sujeitos escolares
(professores e alunos) sejam legitimados/autorizados e, portanto, estejam
significados no com sentido/consentido, deslocamento fundamental para
a construção da autoria na língua ao lado da escuta a que já me referi na
segunda questão da entrevista.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

C. P.: Não faltam desafios! A meu ver o mais difícil é a demanda


naturalizada do ensinar a ler e a escrever corretamente, porque a evidência
da injunção à correção na relação com a escola e o ensino de língua está
muito sedimentada. Essa demanda vem de todos os lugares, sobretudo da
família do alunado, mas não só. Outro enorme desafio é o de enfrentar
o disposto nos currículos, nos textos reguladores, uma vez que há a
hegemonia de uma posição comunicacional-pragmática que até lança mão
de palavras como discurso ou mesmo efeito de sentidos, mas esvaziadas de
um sentido materialista em que de fato se leve às últimas consequências o
funcionamento histórico-ideológico da língua(gem) e do sujeito.
***

Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação neste


projeto de entrevistas com professoras-pesquisadoras. Caso
102
queira, deixamos a palavra em aberto para você realizar alguma
consideração final com suas questões e inquietações ou também
para tocar em ponto(s) não abordado(s) na entrevista.

C. P.: Eu quero agradecer essa oportunidade ímpar de falar de meu


trabalho e de minha trajetória e, mais do que tudo, de falar de algumas das
imensas contribuições que a HIL e a AD têm para o espaço da educação
linguística. Quero também agradecer às redes de trabalho e afeto das
quais faço parte. É uma potência sem palavras fazer parte de articulações
entre pesquisadores de diferentes instituições e na mesma instituição com
conexão temática e/ou teórico-epistemológica nutrida sempre por tantos
gestos cuidadosos situados ético-politicamente de modo afetivo e efetivo.
Trabalhar de mãos entrelaçadas faz de nosso percurso desejante de nunca
acabar!
***

103
104
E ntrevista com E ni O rlandi
Universidade Estadual de Campinas
Universidade do Estado de Mato Grosso

“Vocês colocam a questão do porquê de uma perspectiva discursiva materialista


contribuir para a práxis pedagógica? Já pela pergunta vem a resposta. A questão da
práxis é uma questão materialista, ou, em outras palavras, a práxis é fundamento da
concepção marxista de conhecimento, que traz em si a ideia de junção de teoria e prática
e de transformação do mundo. O conhecimento como práxis transforma o mundo porque
a prática não vale por si mesma, como se pudesse se contrapor à teoria. Teoria e prática
são indissociáveis como práxis.”

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Eni Orlandi: Meu encontro com a Análise de Discurso já tem sido objeto
de muitas entrevistas. Eu resumiria dizendo que meu encontro com as
Letras me veio já no que eu chamo de transversalidade, ou seja, meu
gosto pelas relações com muitas outras disciplinas ou gosto de leituras
dispersas. Assim, meu percurso começou ainda no meu curso colegial
(médio atual) pelo estudo do francês, do português e, principalmente,
do latim, pois eu pretendia entrar na Faculdade de Direito e estudava,
em aulas particulares, essas três disciplinas, tendo grande interesse pela
leitura de Cícero, no original. Em minha graduação, em Letras, além da
leitura de muita literatura, mas, também, de estudos na área da Filosofia
e das Ciências Humanas e Sociais, no caminho de minha formação como

105
intelectual, a questão política, a da história e a da linguagem ganharam uma
forte relevância. Assim mesmo: todas juntas e misturadas. Já linguista, a
Análise de Discurso, precisamente, eu encontrei quando, fazendo meu
curso de doutorado com o prof. L. J. Prieto, meu orientador de Semântica
na Univ. de Paris-Vincennes, no departamento de Sociologia, topei com
o livro AAD6919 de Michel Pêcheux, na livraria Maspero. Ali se realizou
meu desejo de ligar Filosofia, Ciências Humanas, Sociais e da Linguagem.
Pelo político, pela ideologia, pela materialidade da linguagem. Isso foi nos
finais dos anos 1960 e início de 1970. Voltei para o Brasil e implantei,
aqui, e na área da Linguística, a Análise de Discurso que pratico desde
então e que muitos passaram a praticar e a desenvolver. A História das
Ideias Linguísticas (HIL) era um projeto de S. Auroux, que conheci
durante meu pós-doutoramento na Universidade de Paris VII, nos anos
1987/1988. Também é um projeto que eu trouxe e implementei no Brasil,
em 1989. Fui convidada a participar do programa de HIL, que S. Auroux
desenvolvia, com toda uma grande equipe internacional, na Univ. de Paris
VII, inicialmente, como projeto no CNRS e, depois, na ENS de Fontenay-
aux-roses e, finalmente, na ENS-Lyon. Minha condição, para participar do
projeto, foi a de considerar a história das ideias linguísticas na conjuntura de
um país de colonização, o que nos dava nossas particularidades. Não éramos
apenas receptores de uma história das ideias linguísticas e de instrumentos
como gramáticas e dicionários, mas tínhamos a nossa história para contar
sobre a gramatização de nossa língua e de outros instrumentos linguísticos,
assim como o modo como nossa língua se constituiu e significou nossa
independência em relação a nossa descolonização. E propus trabalharmos
a HIL levando em conta os discursos sobre a língua, os discursos de

19
N. O.: A entrevistada refere-se ao livro Análise Automática do Discurso, publicado por
Michel Pêcheux em 1969. Uma primeira tradução para o português foi realizada em 1990
por Eni Orlandi e comparece na obra Por uma análise automática do discurso (HAK; GA-
DET, 2014). Em 2019, em homenagem aos 50 anos de sua primeira publicação, a obra
foi traduzida em sua totalidade por Greciely Costa e Eni Orlandi, tendo sido publicada
pela Editora Pontes. Ver Pêcheux (2019 [1969]).
106
nossos sujeitos da língua e nossa história de ideias. Na época, em meu
pós-doutorado, eu fazia pesquisas, no Institut Catholique, na Bibliothèque
Mazarine e na Bibliothèque Nationale de Paris (além de frequentar, na
Itália, a Propaganda Fide, o Arquivo Secreto do Vaticano e a Biblioteca
do Colégio Internacional dos Capuchinhos) para a escrita de meu livro
Terra à Vista. Toda quarta-feira, Auroux e eu nos encontrávamos para
discutir muitas questões que tocavam a Linguística e a História das Teorias
Linguísticas. E eu apresentava a ele questões como a da língua fluida e
língua imaginária que eu havia elaborado, assim, como particularidades
da língua que eu vinha encontrando na minha análise dos relatos de
missionários, de viajantes e de naturalistas pelo Brasil. Antes de meu
retorno ao Brasil, assinamos um convênio entre nossas instituições, que
foi, logo depois, apoiado pelo Acordo Capes/Cofecub, e, durante anos,
coordenamos o projeto junto a alunos e colegas de nossas universidades
e outras instituições parceiras, realizando uma grande produção que deu
impulso a essa disciplina feita, em nosso caso, da relação com a Análise
de Discurso. No Brasil, o programa de HIL ganhou ampla elaboração e
continua a produzir muito até hoje. Impulso dado nos anos de 1987/1988.
A Análise de Discurso começou muito antes, quando voltei ao Brasil, em
1970 e iniciei meu trabalho com Análise de Discurso na USP e na PUC
Campinas e, mais definitivamente, de forma institucional explícita, a partir
de 1979, na Unicamp. Estabeleci não só as bases dos estudos discursivos,
mas também a forma das análises e outros desenvolvimentos em relação
ao que tinha sido iniciado por Pêcheux em suas fundações. Formei mestres
e doutores que estão instalados no Brasil todo e que foram crescendo em
número e qualidade de forma exponencial. Hoje exportamos análise de
discurso, não só a internacionalizamos.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
107
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

E.O.: Não se trata de aplicação. A relação entre Análise de Discurso e


HIL não é de aplicação, mas de transversalidade como formulei mais
acima: elas se relacionam no tratamento de seus objetos sem se desligar
de seus campos teórico e metodológico específicos. E aí incluo a questão
da Educação, que tampouco é uma relação de aplicação. Não fazemos
linguística aplicada à educação. Tratar a questão da leitura e da escrita
a partir da perspectiva da Análise de Discurso traz novas perspectivas
e consequências para o estudo e ensino da leitura e da escrita porque
se muda de terreno. E a relação com a História das Ideias Linguísticas
permite preparar professores, no ensino superior, formados para produzir
essa mudança de terreno no ensino, na Escola. Explorar espaços não
explorados pela já tão usada teoria da comunicação, do texto, e da
interatividade, que são tão restritivas à conquista de uma práxis mais
consequente com alunos em seu corpo a corpo com a linguagem e sua
possibilidade não só de compreendê-la, mas também de serem inventivos
e independentes em suas formulações, elaborações, deslocamentos. E isso
abre perspectivas, abre um outro mundo a se explorar junto a alunos,
na medida em que se considera a língua em sua relação com sujeitos e
com as condições de produção e a conjuntura em que a língua funciona,
na perspectiva de uma história de teorias possíveis com seus diferentes
métodos. Isso como parte da reflexão e da prática. Para dar um exemplo:
trabalhar com a noção de processo discursivo (da Análise de Discurso)
permite ao professor de escrita pensar as versões, as reformulações, a
reescrita, a ressignificação, junto ao aluno na chamada “produção textual”.
Não é aplicação, é uma questão de teoria e método. Ao mesmo tempo,
108
na perspectiva da HIL, esse professor, diante de seu aluno, saberá que o
conceito de língua, e a teoria de linguagem que ele sustenta, que ele pratica,
definirá as suas possibilidades metodológicas de ensino, impulsionando
não só a produtividade dos alunos, mas também sua criatividade. Desse
modo, esse professor pode criar condições para que os alunos existam
com suas próprias questões e necessidades, face à sociedade, e, ele, com
sua práxis. Transformação.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

E.O.: A relação língua e discurso tem grande importância na Análise de


Discurso. Não esqueçamos que, como disciplina de entremeio, a Análise
de Discurso se constitui tendo como campo metafórico, segundo M.
Pêcheux, a Linguística, a Psicanálise e as Ciências das Formações Sociais,
na perspectiva do materialismo. Assim, a questão da língua faz parte do
campo teórico da Análise de Discurso, no que diz respeito, sobretudo,
à teoria da sintaxe e da enunciação. De tal modo é importante que se
considera que a materialidade específica da ideologia é o discurso
e a materialidade específica do discurso é a língua. Ao mesmo tempo,
a perspectiva discursiva vai produzir uma mudança de terreno, na
consideração da sintaxe e da enunciação: um sistema não perfeito e um
sujeito que não é origem de si. Quando pensamos a materialidade da
língua, não podemos esquecer que a Análise de Discurso trabalha com
a materialidade discursiva em que a língua, em sua ordem própria entra,
no entanto, não enquanto sistema significante fechado em si mesmo, mas
como sistema imperfeito, sujeito a falhas, e aberto. E sua abertura se dá
109
justamente porque o domínio relevante para a Análise de Discurso é o da
significação, em que fazemos intervir os sujeitos e a situação, não só da
instância da formulação, mas da conjuntura sócio-histórica e ideológica
da sua constituição. Ao conceber o processo de significação, a teoria do
discurso trabalha com a determinação histórica dos sentidos. A língua se
inscreve na história para significar. Daí eu ter feito migrar a noção de
forma material, do estruturalista Hjelmslev, para a análise de Discurso,
considerando-a, discursivamente, como forma linguístico-histórica. Nem
abstrata, nem empírica, mas em sua concretude material. Uma vez que
definimos a Semântica Discursiva como a análise científica dos processos
característicos de uma formação discursiva, ligando esses processos às
condições nas quais o discurso é produzido, conhecer o real da língua, sua
ordem, o impossível de que não seja assim, e trabalhar sua materialidade
permite compreender e criar a possibilidade de ir além do sistema fechado,
como a definem os linguistas, e considerar suas falhas, seus equívocos, seus
possíveis. Isso é funcionamento. Isso é discurso. Vocês colocam a questão
do porquê de uma perspectiva discursiva materialista contribuir para a
práxis pedagógica? Já pela pergunta vem a resposta. A questão da práxis é
uma questão materialista, ou, em outras palavras, a práxis é fundamento
da concepção marxista de conhecimento, que traz em si a ideia de junção
de teoria e prática e de transformação do mundo. O conhecimento como
práxis transforma o mundo porque a prática não vale por si mesma, como
se pudesse se contrapor à teoria. Teoria e prática são indissociáveis como
práxis. A práxis é uma noção fundamental na Análise de Discurso e, de
meu ponto de vista, também do conhecimento – daí se concluir que uma
perspectiva discursiva materialista, como a da Análise de Discurso, tem
consequências extremamente importantes para a práxis pedagógica. E
contribui porque considera a relação da linguagem com a ideologia, porque
vê a escrita, a leitura como práxis simbólico-histórica, porque trabalha a
relação do real da língua com o real da história. E, finalmente, porque se
110
trabalha, no ensino, com a língua(gem) falada no mundo, por sujeitos e
para sujeitos. E isto também importa sobremaneira, porque, na perspectiva
discursiva, trabalhamos não só com a língua, mas com a língua no meio
de outras manifestações da linguagem, em suas diferentes materialidades,
não separando o que é o simbólico, o que é o real da significação e a força
daquilo que é o imaginário, a ideologia. Formar professores que tenham
o conhecimento da Análise de Discurso abre essas possibilidades para
o ensino da Língua Portuguesa e, mais amplamente, para o ensino das
Ciências da Linguagem em geral.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

E.O.: Os encontros e desencontros, atuais, entre teorias, pesquisadores e


projetos merecem, realmente, nossa atenção, quando se trata de fazer uma
educação discursiva, não só no Brasil, mas em outros países. Isso porque,
pensando justamente a práxis pedagógica, sabemos a complexidade
que enfrentamos, enquanto disciplina de entremeio, que pratica a
transversalidade do conhecimento, trabalhando com uma disciplina
que também entremeia descrição e interpretação, nas suas análises –
complexidade que resulta do fato de que, na formação do profissional das
Letras, já temos o encontro com o marxismo, a psicanálise, a linguística,
não como se apresentam em seus campos, mas já deslocadas pelo domínio
do discurso, isto é, aquele em que trabalhamos com o indivíduo constituído
em sujeito pela ideologia, afetado pela língua e pelo inconsciente. E,
também, com a constituição dos sentidos pela sua inscrição em formações
111
discursivas que são, no discurso, reflexo das formações ideológicas. Ou
seja, esses campos são atravessados pelo inconsciente e pela ideologia.
Elaboramos, assim, formas de conhecimento em sua práxis que levam em
conta o que se considera como irracional em sua partilha com o racional.
O imaginário, o não todo, a incompletude, a opacidade, o não dito, o
silêncio, aquilo que se estrutura como memória pelo esquecimento, fazem
parte do modo como nos relacionamos com a linguagem e com seu ensino.
E é só no trabalho intenso do ensino com a pesquisa e com a valorização
das diferentes teorias em suas distinções, que se pode, eu não diria dar
conta, mas levar em conta o que constitui a relação conhecimento, aluno,
professor, numa práxis pedagógica dessa natureza. Sem consistência na
relação entre teoria, método e procedimentos analíticos, sem clareza na
construção de seu objeto e, além disso, sem pesquisa, não se formam
sujeitos independentes e inventivos, face ao conhecimento e sua práxis –
uma formação, e não uma mera capacitação, que atravessa os diferentes
estamentos do curso superior, curso médio e básico, para formar sujeitos
capazes de dimensionar os efeitos de sua práxis na sociedade e, também,
dimensionar a importância da sociedade em sua práxis. Sujeitos que
superam obstáculos. Que forma de fazer educação é essa? Educação social.
Aquela que não se restringe a aplicar as “novidades” que se apresentam em
cada disciplina, ou em cada nova teoria, e que se juntam sem muito critério
nos instrumentos oficiais que administram a educação. O que estamos
propondo é a formação para uma educação social com sustentação e
consequências.
***

Já no final da década de 1980, em sua reflexão sobre o funcionamento


do discurso pedagógico, você assinalava dois efeitos da centralidade
do ensino sobre a metalinguagem, quais sejam: a diluição e a
fragmentação do objeto de conhecimento. Porém, apesar de

112
caracterizar tal discurso como do tipo autoritário, propunha que a
sua circularidade poderia ser rompida através da crítica, tornando-o
um discurso polêmico e, com isso, possibilitando que alunos e
professores, na dinâmica da interlocução, se constituíssem como
ouvintes e autores. Cerca de 30 anos depois, a despeito de todas
as críticas produzidas a partir de diferentes lugares teóricos, a
centralidade dispensada à metalinguagem e seus efeitos parece
ainda ser uma questão atual. Como você percebe essa situação
hoje, sobretudo no que diz respeito ao ensino de língua portuguesa
na escola? E como iniciativas como a prevista em seu projeto de
pesquisa atual “Versões, reformulações, ressignificações: como
funciona a linguagem”, que propõe, para o ensino de leitura e escrita,
o trabalho com versões inscritas em formas materiais significantes
variadas, poderiam contribuir para o desenvolvimento de uma
educação linguística voltada para as práticas sociais da linguagem?

E.O.: Penso que, no final da pergunta anterior falei já um pouco disso: a


diluição das teorias e métodos, assim como sua fragmentação e a maneira
como se juntam fragmentos teóricos e metodológicos para capacitar
alunos ficando na superfície e na mera aplicação. Como explicito no
projeto “Versões, reformulações, ressignificações: como funciona a
linguagem”, ao trabalhar o funcionamento da linguagem dimensionada
em suas práticas sociais, observamos que o texto materializa a presença-
ausente de um conjunto de discursos possíveis em uma relação regrada
com suas condições de produção. Trabalhar as versões atinge exatamente o
ponto em que funciona a produção do efeito que dá unidade (imaginária)
ao texto e a ilusão de centralidade ao sujeito, na posição-sujeito autor. Às
margens do texto, ficam as textualizações possíveis, mas não realizadas.
Versões possíveis em outras retomadas. Quanto ao projeto de pesquisa a
ser desenvolvido pelo professor, considerar a noção de versões e trabalhar
com os processos discursivos a partir de noções como reformulação,
113
substituição, ressignificação e deslocamento faz parte do trabalho do ensino
da leitura e da escrita e permite explorar, com os alunos ou os participantes
dos projetos, o próprio funcionamento da interpretação na produção
dos textos, tomados como discursos. Liga-se a isso a compreensão da
relação palavra/ideia/coisa ou, no domínio teórico, a compreensão da
articulação complexa e amplamente produtiva, para quem visa elaborar
o conhecimento da linguagem em sua práxis, da relação linguagem/
pensamento/mundo. É na compreensão desta relação que reside o
domínio sobre o processo de constituição dos sentidos e do sujeito, ao
se ligar linguagem e ideologia, na produção de objetos simbólicos os mais
variados quanto a sua forma material significante: escritos, imagens, digitais,
sons, cores, silêncio etc. Ao realizar a relação com as versões, a reescrita,
a reformulação e a substituição – noções próprias ao que em Análise de
Discurso Pêcheux define como “Processo Discursivo” – ganham força na
colocação do discurso em texto e faz o aluno se familiarizar com a leitura,
a releitura, a escrita e a reescrita, fazendo com que ele perceba que o texto
não é uma unidade acabada, já feita, mas um processo em que a leitura e a
escrita estão sempre incompletas e podem sempre ser transformadas. Esse
processo dessacraliza o texto e faz com que o aluno, já tão desgastado em
sua possibilidade de atenção, pelos discursos de internet que são fátuos,
urgentes e ligeiros, volte a se debruçar sobre sua escrita e leitura. A atenção é
fundamental para o trabalho com a escrita e a leitura, porque é na reescrita,
na releitura que entramos efetivamente em contato com o outro, o nosso
leitor virtual com quem nos confrontamos em nosso texto – processo de
interlocução vivo, relação pensamento, linguagem e mundo posta à prova.
A atenção, como diz S. Weil, é uma rara manifestação de generosidade;
e eu acrescentaria, uma preciosa relação com o tempo. Assim, eu penso
que é desse modo que contribuímos para o desenvolvimento da educação
em linguagem constitutiva de práticas sociais (pela linguagem). Saímos do
fechamento do discurso autoritário e nos tornamos, já de pronto, críticos
114
em relação a nossa própria escrita, pois a reescrita nos faz voltarmos sobre
nós mesmos na relação com nossos interlocutores, e, por extensão, críticos
em relação ao que lemos e ao que os outros escrevem. Esse processo, ou
ainda melhor, a práxis de reescrita faz acender o gesto da atenção, que
nos faz sair de nossa adesão a nós mesmos e a demandar a relação com o
outro. Especificamente, quanto à contribuição da Análise de Discurso, em
sua práxis, trabalhando com a linguagem, criticamente, e não de modo a
reproduzir relações autoritárias, fazemos funcionar a noção de “processo
discursivo” e elaboramos a noção de versões, de reformulação, de substituição,
de sinonímia, de ressignificação, de deslocamento, como parte do processo de
ensino da leitura e da escrita, e de como o sujeito se constitui autor em sua
relação com a linguagem, no processo de produção de sentidos.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

E.O.: Penso que o desafio está em compreender a linguagem além de


mero instrumento de informação e comunicação e aceitar, compreender
e trabalhar com a diferença, a diversidade da língua(gem) e a pluralidade
que constitui cada sujeito, capaz de deslocar-se de si mesmo. Em outras
palavras, aprender. Sem esquecer que o processo de ensino afeta igualmente
tanto o aluno como o professor. Ambos se transformam. O professor não
vai ensinar Análise de Discurso ou História das Ideias Linguísticas a seu
aluno. Ele vai procurar compreender o que é discurso, enquanto efeito
de sentidos entre locutores, situar-se face aos processos de significação
e de funcionamento da linguagem, e vai trabalhar com o aluno em seu
processo de ensino, levando em conta esse seu conhecimento nos modos
com que afeta seu aluno pelo saber a linguagem. Por outro lado, a partir
da Semântica Discursiva, sistematizada por M. Pêcheux, podemos agora,
115
e isso importa muito para o ensino, desenvolver o que tenho feito como
uma Teoria Semântico-discursiva da Argumentação. E aí começamos
um outro capítulo dessa história de disciplinas e de ensino como “prática
social”.
***

116
E ntrevista com Fabiele D e Nardi
Universidade Federal de Pernambuco

“Nessa direção, compreendo que não se faz educação sem assumir posição e que isso
implica, do ponto de vista de nossa formação cotidiana, investirmos fortemente em nossa
construção como sujeitos do conhecimento, um conhecimento que se produz em condições
determinadas, que não está fora da história, que permite a interrogação, a dúvida, o
deslocamento, a retificação… Mas especialmente convidando aqueles que estão conosco
a fazer o mesmo, ou seja, desafiando-nos a um exercício constante de escuta dos sujeitos
da escola que também somos nós em nossos modos de dizer, redizer, para que possamos
nos reinventar, repensar nossas práticas. Uma tomada de posição materialista para
mim em educação é a que permite a dúvida, que aceita o inacabado, que produz o
questionamento, que faz trabalhar a contradição. É também uma tomada de posição
pela luta política no campo da educação, aquela da defesa da educação pública e do
direito aos sujeitos da educação de que lhe sejam oferecidas as condições adequadas de
trabalho-estudo, condições de pleno exercício do direito ao saber.”

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Fabiele De Nardi: Gostaria de iniciar parabenizando os organizadores


pelo projeto, projeto instigante e relevante, e expressar minha gratidão
pelo convite que me foi feito e pela possibilidade de, ao falar da minha
trajetória, deixar talvez algumas questões a serem formuladas e uma
contribuição para o fortalecimento das discussões em torno das línguas
e da educação. Ao tentar construir esse caminho de respostas às questões
que me foram colocadas, me vi fazendo um recorte em minhas memórias
117
de formação-atuação como docente e pesquisadora. Certamente o que
entrego é um texto cheio de lacunas, de esquecimentos que vão fazendo
furo na rede que começo a tecer, mas aceitando, como nos disse Manoel
de Barros, que “Tem mais presença em mim o que me falta”, vou me
aventurar nessa escrita-conversa desejando que por ela se abram caminhos,
se possam semear questões.
Certamente é feito de muitas idas e vindas o caminho pelo qual
me construí professora-pesquisadora. Vou começar bem do comecinho
porque me parece que essas portas de entrada de nossa história são muito
significativas. Cheguei ao curso de Letras da UFRGS movida por uma
paixão: a literatura, paixão nunca abandonada mas que foi ganhando
outros sons, outra língua. O contato com as obras de Calderón de La
Barca, primeiro, e Gabriel García Márquez20, logo em seguida, fizeram a
língua espanhola entrar definitivamente no campo das paixões e de minha
formação profissional, paixões entre as quais sempre esteve a escola, lugar
de encanto e refúgio. Hoje entendo esse espaço, em suas dinâmicas mais
do que complexas, como desafiador, entendo que é preciso historicizar
a escola e as práticas que nela se realizam, que é preciso investigar os
discursos de/sobre a escola, mas a escola sempre foi para mim sinônimo
de possibilidade, de re(e)s(x)istência, e assim insisto que permaneça. Ainda
que não soubesse dizê-lo teoricamente, penso que muito cedo entendi
que a escola tinha uma função essencial no que concerne à manutenção-
subversão dos lugares sociais (na minha história se costuram histórias
de gente a quem a escola foi negada, de gente que construiu escolas em
que nunca estudou, de gente que encontrou na escola a oportunidade
de furar um ciclo de repetições) e sigo entendendo que compreender
o funcionamento da escola enquanto Aparelho Ideológico de Estado,

20
Gostaria de fazer referência, aqui, ao papel que teve em minha escolha e em minha for-
mação o trabalho da Professora Mónica Hoppe Navarro, que me mostrou os caminhos
da literatura latinoamericana.
118
com todas as suas contradições e como lugar mesmo da luta de classes,
portanto lugar de reprodução e resistência, é fundamental para quem
compreende que é possível abrir na escola espaços outros de identificação
para os sujeitos e construção de saber. Disso resulta, entendo, o fato de
que as línguas, a escola e, em especial, a educação linguística (em línguas)
sejam questões que nunca tenham deixado de estar presentes no trabalho
que desenvolvo.
A Análise do Discurso (AD), em minha trajetória de formação, foi
paixão de meio de caminho, arrebatadora e definitiva. A AD chegou com
a possibilidade da iniciação científica. Tratava-se de um projeto vinculado
ao trabalho de pesquisa de Maria Cristina Leandro Ferreira, com quem
eu iniciava, então, uma longa história de orientações, de aprendizado e
de afeto. Por suas mãos conheci a AD e participei de um projeto que
ainda hoje dá bons frutos, falo da primeira versão do Glossário de Termos
do Discurso21, trabalho feito a muitas mãos sob a coordenação de Maria
Cristina. Foi um período de trabalho que exigiu um debruçar-se intenso
sobre obras fundadoras da AD na França e no Brasil a fim de abrir
caminhos na teoria, compreender suas noções estruturantes e formular os
verbetes que desse material fariam parte. Desse tempo no PIBIC resultou
minha vinculação definitiva à AD, como lugar a partir do qual se constituiu
meu trabalho de docência e pesquisa. E desses tempos de minha formação
inicial, entendo que trago algumas questões que seguem ressoando em
meu trabalho.
Começo por uma questão que aparece vinculada ao interesse-
compromisso com a formação de professores. Trata-se da compreensão
de que o trabalho do professor, tal como eu o entendo, é um trabalho
que demanda um movimento de autoria, no sentido de que o professor

21
O Glossário de Termos do Discurso teve uma primeira versão publicada em 2001, sob
a coordenação da Profª. Drª. Maria Cristina Leandro Ferreira, e uma versão ampliada,
publicada pela editora Pontes, no ano de 2020.
119
se construa como autor de sua prática, prática que é sempre um exercício
teórico-político, porque envolve sujeitos e saberes num processo constante
de (re)construção (ainda que muitas vezes se insista em reduzi-lo à técnica
e à repetição de modelos). Mas esses gestos de autoria na prática não se
fazem sem que para isso se construam as condições adequadas de trabalho
e de exercício da docência com liberdade e compromisso, e isso implica,
entendo, formação teórico-política e exercício teórico-político constantes,
além de uma escuta atenta da escola e seus sujeitos. Quando falamos dessas
questões em sala de aula, seja nas aulas de formação inicial de professores,
seja nas da pós-graduação, é quase constante o questionamento sobre
como possibilitar espaços de autoria para o professor apesar das condições
adversas, apesar das reformas, dos exames externos de avaliação e de seus
efeitos sobre a prática educativa, entre outras questões. Tenho tentado
sempre trabalhar sobre esse ‘apesar de’, justamente no sentido de propor
que não é possível trabalhar ‘apesar de’, é preciso trabalhar sobre, na
contramão, pelas brechas, sem a tentação enorme de equilibrar pratos ou
fechar os buracos, mas fazendo ver as rachaduras.
Minha atuação como professora-pesquisadora também esteve
sempre pautada pela compreensão de que as línguas na escola precisam
aparecer como plurais, heterogêneas, capazes de produzir saber: saber
(com-pelas-sobre) as línguas. A insistência na questão das línguas e seu
lugar na escola se faz como um movimento de resistência a um apelo de
instrumentalização e mercantilização das línguas que afeta tanto o trabalho
com a língua portuguesa na escola, quanto aquele que se pode fazer nesse
espaço com as línguas outras. Nesse sentido, a direção de trabalho que se
assume é a de olhar para os processos de escolarização das línguas e, por eles,
para questões como os efeitos de estranhamento que se podem produzir
na relação dos sujeitos com as línguas quando se reproduzem discursos
e práticas que apostam fortemente nessa relação como um trabalho de
dominar a língua, de produzir competências, de apagar heterogeneidades
120
e tratar as línguas eliminando sua dimensão política, limpando da língua
as histórias plurais que a constituem e modificam. Essa forma de entender
as línguas se constrói a partir de um olhar a língua pelo viés da AD, língua
do real, da falha, da incompletude, pensada como matéria pela qual se
produzem os processos de subjetivação dos sujeitos, língua como forma
material (ORLANDI, 1999). O exercício de pensar a língua pelo viés da
AD, trabalhando a dimensão da equivocidade como constitutiva da língua
e com ela a falta, a falha, foi fundamental para definir nosso modo de nos
aproximarmos das línguas e das práticas de ensino que têm as línguas
como seu objeto, e foi também essa compreensão de língua que nos trouxe
a relação língua-cultura como questão de pesquisa.
Em minha dissertação de mestrado, o trabalho que realizei foi de
buscar na análise do discurso um lugar de dizer sobre as línguas e seus
ensinos pelo viés da AD, pensando de forma mais específica a questão da
língua espanhola para brasileiros. Nesse mergulho na teoria para pensar as
formas de dizer a relação entre os sujeitos e as línguas, foi fundamental a
noção de tomada da palavra proposta por Serrani-Infante (1998a; 1998b) e
seus trabalhos acerca da relação entre línguas, sujeito e ensino. O trabalho
com a noção de tomada da palavra, a partir das formulações de Serrani,
nos levaram às questão da identificação na relação sujeito-línguas e,
por ela, a pensar, com Orlandi (1990), as noções de língua fluida e língua
imaginária, pelas quais se fez possível para nós compreender a força do
imaginário nas relações entre língua e sujeito e, portanto, do trabalho com
os línguas nos espaços educativos. O imaginário sobre as línguas, sobre o
que são as línguas e como se apre(e)ndem as línguas impacta fortemente
os movimentos de aproximação dos sujeitos às línguas e, portanto,
também o trabalho teórico e as práticas escolares sobre as línguas, que são,
também elas, práticas discursivas. Daí sua importância e a importância
de trabalhar sobre ele, ou seja, trabalhar sobre as formas de construção
de um imaginário – seja ele sobre as línguas, os sujeitos, os espaços –,
121
para que se possa compreender as formas de seu engendramento e os
efeitos nos modos de sua circulação-reprodução e seus efeitos. Embora
amadurecidas, deslocadas, recolocadas a partir de lugares diversos, essas
discussões sempre voltam aos meus escritos e se fazem muito presentes
no trabalho que tenho desenvolvido também com a formação inicial de
professores. Entendo, ainda, como dizia nesse trabalho, que as línguas
estrangeiras, que hoje prefiro pensar como línguas outras (e não outras
línguas), tem um enorme potencial desestruturante como se apresentam
para os sujeitos como forma material, atravessada pela história, constitutiva
das subjetividades, como matriz de processos de identificação plurais.
Esse olhar para a tomada da palavra, para o complexo das
identificações em sua relação com as língua e seu ensino foi que me levou
ao meu trabalho de tese (DE NARDI, 2007) e a nele pensar a relação
língua-cultura e o modo como aparecia a cultura em livros didáticos para
o ensino de língua espanhola para brasileiros. Entendo que permanece
em meus trabalhos, a partir do que proponho na tese, uma compreensão
de cultura como lugar de interpretação22 e a importância de se trabalhar
com a noção de cultura sempre tensionando os sentidos que sobre ela se
produzem, com especial atenção para o que, a partir de um dizer sobre a
cultura, se possa trazer de naturalização como efeito. Tenho insistido na
compreensão de que não se pode deixar nunca de trazer para um modo
de dizer e fazer trabalhar a noção de cultura a relação entre cultura e
ideologia, cultura e política(s), que se marca na própria produção dessa

22
“Entendemos que seja fundamental, portanto, compreender a cultura não como um
espaço de registros inertes - em que o papel do sujeito se restringe ao reconhecimento e
à aceitação -, mas como um lugar de interpretação. Assim compreendida a cultura, seu
estudo se torna, no ensino-aprendizagem de segunda língua, um momento propício de
promoção de deslocamentos, capazes de possibilitar que o aprendiz venha a pensar nos
processos discursivos produzidos na língua do outro e no modo como nesses discursos
os sentidos são produzidos. Passa-se, assim, do simples registro de um imaginário sobre
o outro para o questionamento de sua cristalização.” (DE NARDI, 2007, p. 54).
122
noção-conceito e seus modos de circular em tempos espaços diversos23. E,
é claro, também a partir desse olhar para/sobre a cultura foi possível tecer
reflexões sobre seu lugar nas práticas de ensino (DE NARDI, 2015), que
é algo que seguimos fazendo como exercício contínuo de formação que
exige um revisitar teorizações e propostas, vislumbrando práticas outras
capazes de propiciar esse espaço de interpretação na relação dos sujeitos
com a cultura e que, tenho entendido, fazem necessário mobilizar a noção
de língua como forma material, tal como referimos anteriormente, para
considerar os modos de inscrição da história e da memória nas línguas-
culturas.
Foi muito interessante para mim que o convite para essa entrevista
tenha chegado justamente em um momento em que, depois de me afastar
um tanto desse trabalho de tese, retorno a ele para revisitar algumas
questões a partir de provocações que vêm de desafios teóricos e de
formação, no caso, de meu trabalho com a formação de professores. Um
desses retornos se deu pela releitura da teorização sobre o silêncio que
nos traz Orlandi (1997) e que me levou a voltar às noções de silêncio, real,
valor e identificação, entre outras, em sua relação com a língua, para pensar
o silêncio nas/das línguas e os modos de com ele lidar em nossas práticas
em sala de aula, apontando para um necessário pensar na produção de
formas de “lidar com o significante” (CELADA; PAYER, 2016), “de fazer
trabalhar os sentidos nas línguas” (DE NARDI, 2022, p. 122), pensando

23
Gostaria de referir dois artigos em que me parece que o que menciono aqui aparecem de
forma mais consistente: DE NARDI, F. S.; BALZAN, F. P. RELAÇÕES ENTRE CUL-
TURA E ENSINO: um olhar discursivo sobre as políticas públicas para formação de
professores. Organon, Porto Alegre, v. 24, n. 48, 2010. DOI: 10.22456/2238-8915.28641.
Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/organon/article/view/28641. Acesso
em: 15 nov. 2022.; DE NARDI, Fabiele Stockmans. Reflexões sobre a cultura no territó-
rio da AD: um lugar para o conceito de cultura no campo da ideologia, do inconsciente e
da(s) política(s). Seminário de Estudos em Análise do Discurso (5.: 2011 : Porto Alegre,
RS). Anais do V SEAD – Seminário de Estudos em Análise do Discurso [recurso eletrô-
nico] – Porto Alegre : UFRGS , 2011. Disponível em: https://www.discursosead.com.
br/v-sead-2011. Acesso em 15 de novembro de 2022. ISSN 2237-8146.
123
em movimentos que possam, na contramão de uma prática ruidosa, sem
espaços de silêncio, dar lugar a uma “escuta do sujeito que aprende e da
língua com que se enfrentam professores e estudantes: um guardar silêncio
para que se produzam sentidos”.
Mas, como estamos falando de idas e vindas, preciso mencionar
também que, mesmo que as questões de língua, cultura, educação nunca
tenham deixado de estar presentes em minhas reflexões e práticas, porque
atravessam cotidianamente o meu trabalho com a formação de professores
e os diálogos que temos tentado travar com a escola e com outros espaços
educativos a partir de projetos como PIBID e RP, além das atividades
de extensão24, o trabalho que tenho desenvolvido como pesquisadora
do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE me abriu outros
caminhos que fui trilhando como pesquisadora do NEPLEV- Núcleo de
Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual de que sou vice-
líder. No Programa de Pós-Graduação em Letras, oriento trabalhos em
duas linhas de pesquisa: a linha de Análises do Discurso e a de Análise de
Práticas de Linguagem no campo do Ensino. Nesta última, os temas que se
vinculam aos trabalhos aqui já mencionados se mostram com mais força,
aparecendo em pesquisas que se debruçam sobre a escrit(ur)a em línguas,
as práticas de leitura e a análise de material didático, entre outras questões.
Por outro lado, o trabalho na linha de Análises do Discurso me levou a
um movimento de aproximação muito forte com o discurso político, com
a questão da memória e da resistência no campo da AD, questões que
acabam por perpassar os diferentes trabalhos vinculados a essa linha que
tenho orientado, bem como boa parte de minha produção nos últimos

24
Nos períodos de 2018-2020 e 2020-2022, coordenei, juntamente com a Profª. Cristina
Corral, respectivamente os projetos PIBID e Residência Pedagógica, núcleos de Língua
Espanhola da UFPE. O trabalho com os referidos programas, bem como projetos de
extensão ligados ao ensino da língua espanhola em diferentes espaços educativos, é algo
que temos desenvolvido, em conjunto com a Profª. Imara Bemfica Mineiro, como parte
das atividades do LaDo-ELE: Laboratório de Formação Docente da UFPE.
124
anos, construída em conjunto com muitos parceiros de trabalho, mas
que não deixam de estar presentes nos meus modos de compreender e
pensar as práticas e políticas educativas. Os processos de (des)politização
de sujeitos e discursos (GRIGOLETTO; DE NARDI, 2016), assim como
as trajetórias de memória dos enunciados, as práticas de resistência (DE
NARDI; SOUZA, 2020) em suas diversas formas de manifestação, têm
se feito, então, presentes em nosso trabalho, e vou ao plural aqui como
forma de reconhecer a importante presença, nesses movimentos, dos
colegas de NEPLEV, a quem nomeio na figura de minha companheira
de projetos e de escrita, a Profa. Dra. Evandra Grigoletto, mas que se faz
realmente num trabalho coletivo, trabalho feito a muitas mãos, em intensa
colaboração de pesquisa e pelo qual se vão costurando essas idas e vindas
por discursos e práticas a partir de um lugar comum, que é o da AD, em
seu modo singular de pensar a língua, os sujeitos e a história.
E gostaria de fechar essa questão, então, apenas mencionando
algumas discussões e projetos que começo a tecer nessas parcerias que se
vêm abrindo. Nos últimos anos, a questão das migrações25 e, por elas, as
discussões sobre os processos de identificação e subjetivação voltaram a
estar muito presentes no meu horizonte de leituras e pesquisas. No pensar
as migrações, se entrelaçam a memória, o político, a resistência, bem como
as línguas e as práticas educativas, ou seja, como vemos, são idas e vindas
que traçam muitos caminhos cruzados. Como fruto desses caminhos
que se cruzam é que iniciamos, recentemente, a escritura de um projeto
que, pretendemos, ganhe corpo e fôlego, pelo qual pretendemos retornar
às noções de educação linguística e educação de línguas, para pensar

25
Gostaria de referir o trabalho de duas orientandas, responsáveis por me levar a pensar,
de modo mais específico, sobre as migrações: o trabalho de tese em andamento, de Ca-
mila da Silva Lucena (PGLetras/UFPE) e a tese de María Esperanza Izuel. Os processos
de identificação nas tramas do real, do simbólico e do imaginário: brasileiros em condição
de imigração em Buenos Aires. 2022. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2022.
125
teorizações e práticas que a partir desses modos de dizer o fazer com-
pelas línguas se produzem. Trata-se de um projeto que se interessa pelos
discursos sobre educação na América Latina, mas também pelas políticas
e práticas que se têm produzido nesse espaço. Nessa direção, trata-se de
uma trabalho que, pretendemos, também nos coloque questões sobre os
diálogos (im)possíveis entre a AD e as teorias decoloniais, especialmente
no que concerne aos seus modos de pensar os sujeitos, as línguas e as
práticas educativas.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

F. N.: Gostaria de iniciar retomando Pêcheux em seu texto de 1966,


produzido sob o pseudônimo de Thomas Herbert, texto do qual trago
a questão da prática e da aplicação, pensada pelo autor a partir de uma
reflexão sobre o fazer científico no campo da psicologia social. Disse
ele: “Por “Prática”, no sentido geral, é preciso entender todo processo de
transformação de uma matéria-prima dada em um produto determinado,
transformação efetuada por um trabalho humano determinado, utilizando
meios de produção determinados (HEBERT, 1966, p. 24). Pêcheux passa
a definir diferentes práticas: a técnica, a política, a ideológica, a teórica
e a social. As duas primeiras correspondem ao que se chama de prática
empírica, no interior de uma prática social que sofre as determinações
do modo de produção de que é parte, embora estejam, a prática técnica
e a política em “linhas diferentes”, considerando-se sua natureza e aquilo
126
que por seu exercício se pretende produzir: por uma, os produtos; pela
outra, novas relações sociais. A prática ideológica e a teórica tomam
outro lugar. Se a primeira busca a transformação de uma “consciência”, a
segunda tem como objetivo a “transformação de um produto ideológico
em conhecimento teórico”. Se há uma continuidade entre as práticas
técnicas, política e ideológica, a prática teórica, para se realizar, precisa
produzir uma ruptura, um corte epistemológico, nos diz Pêcheux, precisa
necessariamente produzir um deslocamento que lhe garanta a possibilidade
de falar, nos termos do autor, ou seja, enunciar seu objeto, mas também
se ouvir falar.
É claro que faço aqui uma passagem muito rápida pela reflexão de
Pêcheux tomando-a a partir do que dela retiro como provocação para se
pensar a aplicação também no campo das práticas educativas. A partir
de minha leitura do que nos diz Pêcheux, me arrisco a afirmar que o
movimento de teorização tal como proposto pelo autor é uma forma de
resistência a toda aplicação. A possibilidade de se fugir a essa tendência
à aplicação das técnicas e à escolarização das técnicas e de seus produtos
é o compromisso com a teorização enquanto forma de deslocar(se) o
conhecimento e os sujeitos do conhecimento. A aplicação cega da técnica,
seja ela qual for, faz desaparecer o espaço vazio, o necessariamente
ausente que permite que a prática teórica se faça como lugar de incessantes
questionamentos, criando espaços de teorização.
Toda prática educativa é transformação e é movimento que se faz,
como prática social-discursiva, no interior de um modo de produção
específico. A prática educativa está atravessada pelo político e o
ideológico e, enquanto se constituir apenas como aplicação de técnicas,
seguirá reproduzindo as demandas-comandas que lhe são impostas:
as competências para o mercado, o treinamento para os exames, o
monolinguismo em suas diferentes formas de estar na escola... A AD,
conforme a entendo, em sua relação com a educação, se coloca no lugar
127
de resistência à aplicação e, portanto, da necessária teorização pela qual
podem, os sujeitos da educação, produzir gestos de autoria. Nessa direção
é que compreendo que a AD não seja aplicável, ou seja, que não se trata
de capturar noções desse campo teóricos e aplicá-las a uma prática que
por elas seria reformada, mas fazer trabalhar a AD como espaço de
produção de questionamentos para-com-sobre essa prática. Assim, ao
pensar a educação, e mais precisamente a questão das línguas na educação,
a contribuição da AD, em minha leitura, inicia por um recolocar em causa
uma série de noções e sua compreensão, para que seja possível pensar em
práticas educativas capazes de se aproximar desse modo de compreender
que se produz no campo da AD sobre língua, sujeito, cultura, entre outras
questões, e seus espaços de real, de silêncio.
O que quero reforçar com o que digo aqui é que não entendo que
seja possível uma separação entre a prática educativa e a teorização sobre
ela, bem como compreendo que o fato de não ser uma teoria aplicada
(ou talvez justamente por não se colocar nesse lugar) não impede a AD
de contribuir com as práticas educativas e com a reflexão sobre elas, o
que se faz fortemente por meio dos trabalhos que temos realizado na
AD, tanto aqueles que mais diretamente se dedicam a pensar a questão da
língua na escola, as práticas de leitura e de escritura em línguas, as políticas
linguísticas e os discursos de-sobre a educação, bem como aqueles que,
embora não tenham como objeto as práticas educativas, produzem
modos de ler diversos sobre corpora muito variados. Seria impossível aqui
mencionar o conjunto de trabalhos que tocam, pelo viés da AD, na série
de questões a que me referi anteriormente e, portanto, refugiando-me no
fato de ser essa uma entrevista que me pede um olhar para a minha própria
trajetória, vou citar duas linhas de trabalhos que tenho desenvolvido com
meus orientados e que, entendo, se fazem possíveis a partir do que nos
oferece a AD como espaço de teorizar sobre as práticas e do que nos

128
aporta esse conjunto de trabalhos enquanto pontos de ancoragem para
uma reflexão, por exemplo, sobre a leitura e a escrit(ur)a.
Há tempos a leitura, seja no âmbito da graduação ou da pós-
graduação, tem sido para mim objeto de trabalho e pesquisa, especialmente
a leitura em línguas outras, de forma destacada, em espanhol para
brasileiros estudantes dessa língua. As indagações sobre os modos de ler
da forma como aparecem nos documentos, em exames de avaliação e nas
práticas de ensino nos tem provocado a produzir reflexões e construir
propostas de trabalho que buscam na AD uma compreensão da leitura e
das dimensões que ela implica. Parte-se, para tanto, da compreensão da
AD como uma disciplina de interpretação para se pensar um modo de ler
que coloque descrição e interpretação como movimentos indissociáveis
de toda prática de leitura, que enquanto prática é produção e movência.
Deseja-se, assim, a promoção de formas de ler que nos permitam também
na escola “detectar os momentos de interpretações enquanto atos que
surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como
efeito de identificação assumidos e não negados” (PÊCHEUX, 2012
[1983], p. 57).
A leitura é, portanto, uma questão que perpassa o conjunto de
trabalhos que produzimos na AD, já que, ainda que não tenham a noção
de leitura como central, nossos trabalhos são sempre gestos de leitura
que se produzem sobre um corpus e, portanto, modos de ler que vamos
construindo enquanto possibilidade de compreender os processos
discursivos de que nos ocupamos. Tais gestos de leitura também se
marcam por um modo específico de trabalhar sobre as materialidades,
entre elas a língua, que se instaura a partir do trabalho com o discurso. A
língua é matéria que tece o discurso, daí a necessidade de construir, nos
termos de Orlandi (2020), um olhar para a ordem e não para a organização,
ou seja, considerar a língua em seu funcionamento entendendo que essa
língua está afetada pelo real e que é pela intervenção da história que ela
129
significa. Todo movimento de descrição, portanto, na AD, é um gesto de
interpretação que se instaura sobre o real da língua, como já nos mostrou
Pêcheux, e esse real específico abre para um modo diverso de o analista
se aproximar a essa materialidade questionando-se não pela classificação
dos elementos da língua, mas para o modo como um arranjo específico
produz sentidos no discurso.
Nesse sentido é que entendo que temos as contribuições diretas da
AD para pensar a educação, quando nos debruçamos sobre documentos,
discursos e práticas sobre-da educação, mas que também temos, no
conjunto de trabalhos que produzimos, reflexões que podem estar na
escola como algo que se dá a ler ou um modo de ler que se pode investigar,
um modo de ler o discurso, mas também um modo de ler a língua em
sua ordem. Nesse cercar a leitura pelo viés da AD entendo que há duas
obras de Eni Orlandi que podemos indicar como clássicas e que apontam
questões de partida para se pensar a leitura na escola: A linguagem e seu
funcionamento (ORLANDI, 1996) e Discurso e Leitura (ORLANDI, 2001).
Sem a pretensão de retomar aqui as discussões propostas nas obras em
sua riqueza e totalidade, aponto apenas o que entendo como discussões-
chave ali propostas e que abrem caminhos para um olhar para a leitura na
escola. Da primeira, destaco as discussões sobre o sentido e sua produção,
bem como a questão do discurso pedagógico e, por ele, as reflexões sobre
o lúdico, o polêmico e o autoritário; da segunda, as belíssimas passagens
sobre a construção de uma história de leitura para os sujeitos, e as
discussões sobre os níveis de leitura, com ênfase para o que se diz sobre a
compreensão na leitura, colocando-se em relação a materialidade da língua
e as condições de produção do dizer. Trago essas obras aqui porque elas
nunca deixam de estar presentes nos trabalhos de formação e pesquisa que
tocam na questão da leitura, porque entendo que as atravessam questões
fundadoras de uma forma outra de pensar o ato de ler (que também se
pode materializar como práticas de leituras na escola) enquanto trabalho
130
com-sobre uma materialidade significante para se produzir sentidos, esses
sentidos que sempre podem ser outros, embora não possam nunca ser
quaisquer sentidos26, pois, como já nos dizia Pêcheux (2012 [1983], p. 54),
“a descrição de um enunciado ou de uma sequência coloca necessariamente
em jogo (através da detecção de lugares vazios, de elipses, de negações, de
interrogações, múltiplas formas de discurso relatado…) o discurso-outro
como espaço virtual de leitura desse enunciado ou dessa sequência.”
Minha compreensão, portanto, é que a AD tem uma contribuição
fundamental quando se coloca em causa a relação entre AD e educação
que se mostra justamente pela possibilidade de proposição de outras
formas de ler pelo viés do discurso. Seguindo os caminhos propostos por
Orlandi (2001), a busca pela construção de um trabalho de leitura que possa
construir outras histórias de leitura para os sujeitos da prática educativa,
pelo viés de um trabalho com a compreensão, que inclui necessariamente
uma atenção às condições de produção dos discursos que se dão a ler,
bem como das condições de produção de sua leitura, são o nó de um
trabalho, no nosso caso, que nos permite pensar na formação de leitores
em línguas, expressão que temos usado para pensar as práticas de leitura
em línguas diversas como forma de fazer trabalhar as línguas outras nas
práticas educativas como espaço de contato-confronto com esse outro e
suas formas de dizer e significar. Nessa direção, menciono o trabalho que
realizamos Izuel e eu (DE NARDI; IZUEL, 2018) com foco nas condições
de produção em sua relação com a leitura, tematizando especialmente
a importância da consideração das condições de produção de textos
jornalísticos e o trabalho de sua didatização em práticas de ensino de língua
espanhola para brasileiros. Nesse artigo, que dialoga com a dissertação de
mestrado de Izuel (2017), trabalhamos, por um lado, a necessidade de se

26
Faço referência aqui à discussão trazida em LEANDRO FERREIRA, M. C. Nas trilhas
do discursivo: a propósito de leitura, sentido e interpretação. In. ORLANDI, E. A leitura
e os leitores. (Org.). Campinas: Pontes, 2003, p. 201-208.
131
colocar em causa, nas práticas de leitura, os efeitos da didatização sobre os
textos que passam a compor os materiais didáticos com que trabalhamos
e, por outro, a importância do trabalho com as condições de produção e
os movimentos da memória em sua forma de inscrever-se nos discursos e
nos modos como se dão a ler quando tratamos de um trabalho de leitura
com línguas outras, sob pena de que por ler sigamos compreendendo um
trabalho de identificação de informações no texto.
Conforme comentamos no trabalho mencionado, entendemos
que a noção de condições de produção tal como pensada por Pêcheux
(2011[1984], p. 229), remete a um modo de ler o discurso, visto que, como
diz o autor, no campo do discurso:
[...] analisa-se uma sequência na sua relação com o seu exterior discursivo específico (em
particular seus pré-construídos, seus discursos relatados, etc.) e em relação à alteridade
discursiva com que ela se defronta, ou seja, o campo sócio-histórico do qual ela se separa (cf.
noção de enunciado dividido).

Assim, embora muito já se tenha avançado no que concerne ao


trabalho com a leitura na escola e também muito se tenha dito sobre a
leitura pelo viés da AD, entendemos que, especialmente quando pensamos
uma leitura em línguas, há questões sobre as que ainda vale a pena insistir,
buscando formas ler na escola que nos permitam fazer trabalhar a língua
em sua relação com a história, fazendo emergir modos de ler que coloquem
o sujeito em relação de contato-confronto com o que se diz no texto a
ser lido, fazendo-o buscar as relações com outros textos, desses textos
com os processos discursivos de que são parte, olhando para os lugares
a partir dos quais se enuncia aqui e acolá, mas também construindo esse
leitor como um sujeito capaz de assumir-se como sujeito de sua leitura, um
sujeito que lê a partir do seu lugar e que busca alargar o olhar, confrontá-lo
com outros olhares, experimentando outros lugares de dizer-fazer (dizer).
Essa insistência em trabalhar com a leitura na escola (da escola e
sobre ela) tem me feito, mais recentemente, e ainda de forma muito inicial,
132
propor, no âmbito das disciplinas de metodologias e estágios do curso
de graduação, bem como de outros projetos relacionados à formação de
professores de língua espanhola, um trabalho de (re)leitura dos currículos
e outros documentos orientadores da prática docente, especialmente
daqueles que versam sobre o trabalho com a língua espanhola nas escolas
públicas de Pernambuco. Trata-se de um movimento que entendo como
sempre necessário esse de fazer trabalhar o currículo como documento
que pede interpretação, que se dá a ler a partir de condições de produção
específicas e sobre o qual é preciso dizer-trabalhar de forma, quase
sempre, insubordinada. Nesse sentido trago breves apontamentos sobre
o início de um trabalho com o Currículo de Pernambuco para o Ensino
Médio, publicado no ano de 2021 e elaborado a partir das determinações
da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018). Trata-se, insisto,
de um trabalho ainda em andamento, e sobre o qual, portanto, teço ainda
comentários inconclusivos.
Embora sejam muitas as discussões que emergem de uma leitura desse
documento e do conjunto de documentos de que ele é parte – questões,
portanto, sobre a compreensão da diversidade, os sentidos de flexibilização
e escolha e o modo como tais noções vão sendo ditas-materializadas,
bem como os discursos que recortam esses documentos, são, em muitos
momentos, objeto de nosso trabalho –-, neste escrito gostaria de apontar
o que temos chamado de leitura pelo viés das brechas do currículo, pela
qual nos propomos a trabalhar nas fissuras dessa textualidade do currículo
como forma de construir resistências na escola que nos permitam manter
um espaço para a língua espanhola e suas formas de estar na escola
em Pernambuco. Nessa direção, temos visto na indeterminação uma
possibilidade de trabalho para o professor de LE. Explico: no Currículo
de Pernambuco para o Ensino Médio, mais especificamente quando se
apresentam os diferentes Itinerários Formativos e as unidades curriculares
que os compõem, observa-se que a formação docente “língua espanhola”
133
figura, entre outras, como habilitando o professor da área a assumir
diferentes unidades curriculares. Nas ementas de grande parte dessas
unidades, no entanto, não encontramos determinação sobre a língua em
que deve ser trabalhada a referida unidade. Se falam de seus objetivos e
dos gêneros do discurso e práticas linguageiras que serão objeto de estudo,
mas não se diz das línguas, o que abre uma possibilidade de compreensão
(indisciplinada) de que, se o professor de língua espanhola pode trabalhar
com essa unidade curricular, é em sua língua de formação e com objetos
de estudo produzidos nessa língua que ele pode trabalhar, e portanto tem
sido nessa direção que temos lido o currículo em sua “nova arquitetura” e
nele o lugar da LE.
É claro que isso não se faz sem dificuldades e que ainda há muito para
se pensar sobre modos de se vencer os desafios impostos ao professor de
língua espanhola em virtude dessa nova forma de estar a LE no currículo,
modos de (fazer) trabalhar as línguas que venham a favorecer uma inscrição
mais efetiva dos sujeitos na ordem dessa língua outra (CELADA, 2013),
mas entendemos que construir práticas que consolidam lugares para as
línguas na escola – e digo para a língua espanhola, mas também para a
pluralidade de línguas que aí possam comparecer, trazendo possibilidades
de leituras outras, de experiências diversas – é fundamental se queremos
nos enfrentar com um política monolíngue e de imposição de uma lógica
das comunicações globais que, não raro, dizem da diversidade produzindo
diferenciação. Para nós, é preciso romper com essa discursividade e
pensar que não falamos de uma língua e de outras, falamos de línguas
outras, diversas. Penso, portanto, na direção de Celada (2013), que, ainda
que devamos seguir lutando pelas línguas e por um lugar de relevância
para elas na escola, por sua oferta ampliada nesses espaços escolares como
unidades curriculares, fazer, em nosso caso, da língua espanhola, uma
língua em que se lê, em que se ouve, em que se escreve… nas diferentes
unidades curriculares em que poderá atuar o professor de língua espanhola,
134
pode nos levar a construir para a LE um lugar de permanência na escola,
reconhecendo-a como uma língua pela qual se produz conhecimento e
saber/sabor.
Nessa direção, então, é que temos entendido que a AD pode
contribuir, e muito, com a proposição de práticas de leitura de arquivo
na escola, dimensão sobre a qual começamos a trabalhar, explorando
a possibilidade da criação de arquivos de leitura em línguas outras que
possam ser objeto de investigação-estudo na escola, a partir de um trabalho
que dialogue com o currículo, também em suas brechas. Com especial
atenção para as direções apontadas pelo currículo acerca de uma presença
mais efetiva na escola do trabalho de investigação científica, em nosso
caso, no campo das linguagens, estamos entendendo que o trabalho com
a leitura de arquivos em línguas, considerando “a materialidade da língua
na discursividade do arquivo”, como nos diz Pêcheux (2010, p. 59), tem
enorme potencial no sentido de produzir modos de ler em línguas outras,
fazendo trabalhar uma escuta das línguas na escola.
Inevitável que, ao pensar a leitura, também se venham colocando
para nós questões sobre a escrit(ur)a pelo viés da AD, especialmente
quando pensamos as línguas outras e, entre elas, o espanhol para brasileiros
de forma mais específica (e vou tentar ser bem breve porque sinto que
estou me estendendo demais). Sempre em uma direção que visa deslocar
as práticas de um lugar de reprodução de modelos, que tendem a formatar
a escrita, especialmente aquela produzida em línguas outras, para a criação
de espaços de construção de uma escritura que venha a se produzir como
um movimento de tomada da palavra, conforme já comentamos na
questão anterior, temos trabalhado sobre a falta e a falha (ALEXANDRE
DA SILVA; DE NARDI, 2017) Trata-se de pensar a escrit(ur)a pelo viés
da falha, tal como a entendemos em AD, para se reajustar os modos de
trabalhar a relação do sujeito-estudante com as línguas em que escreve,
com as línguas que o habitam, no sentido de ver-se como atravessado
135
por essas línguas e, ao mesmo tempo, capaz de “estranhar-se” com elas
para se perguntar sobre o que há de singular nas formas de se dizer nessa
línguas outras27 e o que isso nos diz sobre as línguas e as possibilidades
de entrarmos em sua ordem. Nessa mesma direção, temos, ao lado de
Nascimento (2020), trabalhado na direção de pensar a escrit(ur)a em
língua espanhola a partir dos gestos de autoria que nela se produzem,
valorizando esse trabalho de inscrição em uma língua outra para o sujeito-
estudante que se coloca diante de um desafiador lugar de não saber para
reinventar-se como escrevente nessa língua. Seguindo a direção proposta
por Nascimento em sua tese de doutorado, temos pensado nas formas
de construção de um trabalho com a escrita e também no trabalho do
professor em seu movimento de revisão-correção do texto que possa,
seguindo o que apontamos anteriormente, promover outros olhares
sobre a falha, compreendendo que a língua falha, falham na língua os
sujeitos, porque aí, na língua, se inscrevem memória e história produzindo
sentidos. Temos pensado, então, que o trabalho com a escrit(ur)a na sala
de aula demanda a construção de gestos de autoria compartilhadas entre
professores e estudantes, os quais devem abrir espaço para se trabalhar
sobre e com a equivocidade da língua, mas também com os trabalhos
da memória-história na produção de sentidos para as palavras na língua
e determinação dos modos de dizer (im)possíveis em línguas diversas.
Nesse sentido, dissemos em Nascimento e De Nardi (2021, p. 462):
São esses gestos que nos levam a defender um trabalho de leitura que deve pretender
desestabilizar sentidos aparentemente estabilizados, provocando deslocamentos, derivas,
rupturas. Um trabalho produzido por um sujeito na função de leitor-revisor do texto que,
a partir de uma posição-sujeito diversa, negocia sentidos outros a partir dos movimentos
de contraidentificação ou desidentificação que se dão a partir da sua história de leitura, de
outras condições de produção. Trata-se de um trabalho em que o sujeito, nessa função de
revisor, não apenas denega, interdita, mas, ao contrário, negocia sentidos e produz, dessa
forma, uma autoria colaborativa/compartilhada.

27
Ver De Nardi, 2022.
136
Deixo, então, essa breve ponderação sobre as práticas a partir da
AD entendendo que com elas vamos construindo não modelos aplicáveis,
mas caminhos de investigação que nos levem a gestos no ensino, como
lindamente formulou Payer (2021).
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

F. N.: Vou começar bem rapidamente dizendo que, nos últimos tempos,
eu tendo a entender que os trabalhos que realizo melhor se dizem como
trabalhos que buscam contribuir para a construção de uma educação em
línguas, justamente porque tenho me ocupado, nas diferentes esferas
de minha atuação, em pensar nesse lugar para as línguas diversas como
formas de construção do conhecimento em espaços educativos. Digo isso
porque entendo que podem ser diferentes as compreensões que temos
de educação linguística e as práticas que dela resultam. De minha parte,
o que tenho buscado construir como formas de compreender as línguas
no âmbito das práticas educativas e promover práticas com-sobre as
línguas parte sempre da consideração da língua enquanto materialidade
do discurso, porque isso diz do lugar em que me inscrevo teoricamente.
Eu gosto muito de pensar sobre a língua como forma material nos
termos de Orlandi (1999, p. 19), quando, ao falar da AD, diz que “esses
estudos do discurso trabalham o que vai-se chamar de forma material (não
abstrata como a da linguística) que é a forma encarnada na história para
produzir sentidos: esta forma é portanto linguística-histórica”, e o é porque,
embora a AD trabalhe com a afirmação da autonomia relativa da língua,
como já nos dizia Pêcheux, e se aproxime do sistema tal como pensado
137
por Saussure e, nele, da noção de valor, como vemos em Gadet e Pêcheux
(2004), para pensar o sistêmico capaz de subversão, a AD vai pensar que
a produção de sentidos na língua implica o necessário atravessamento da
história nesse sistema sujeito a falhas. Essas são questões que estão muito
presentes no conjunto de trabalhos que mencionei aqui, para os quais o
modo de pensar a língua pelo viés da AD é sempre um ponto de partida
necessário, é necessário para pensar a relação do sujeito com a língua,
da língua com a história, da língua com os discursos… E, portanto, esse
modo de compreender a língua e a relação entre língua e história vão
produzir compreensões como as que já mencionamos, sobre o que é ler,
por exemplo, pelo viés da AD.
De alguma forma, então, acho que acabei já respondendo a como
entendo que esse modo de pensar a língua que se produz pelo viés da
AD traz implicações para a práxis pedagógica. Sem me alongar, gostaria
apenas de tocar em algumas questões que são muito comuns no nosso
modo de trabalhar a língua e produzir análises da AD e que entendo
como fundamentais de estar num modo de pensar a língua na educação,
digo da impossibilidade de separarmos forma e conteúdo, por exemplo
trabalhando sempre com os modos de dizer e seus efeitos a partir da forma
de sua aparição. Trata-se de atender ao chamado que já mencionamos e
que nos traz o trabalho de Orlandi de pensar a língua pelo viés da ordem
e não apenas da organização, entendendo que há um funcionamento
da língua no discurso que produz sentidos, e os produz a partir de uma
relação específica do enunciado com as condições e sua produção-
circulação e leitura. Pequenos gestos, nesse sentido, entendo que possam
produzir grandes efeitos no trabalho com a língua na escola, e são gestos
que, na minha compreensão, podem estar inspirados pelo modos de
produzir as análises em AD, para que possamos pensar também na sala
de aula em deslinearizar os textos, questionar as inversões sintáticas pelos
efeitos que produzem, ver como se repete um significante e percorrer seus
138
caminhos de sentido, observar como um jogo entre formas de tratamento
pode abrir para um jogo entre lugares no discurso ou como, a partir de
movimentos parafrásticos, se deslocam sentidos, fazendo aparecer o outro
do enunciado, apenas para mencionar algumas possibilidades. E isso só se
faz pelo viés da língua enquanto forma material.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

F. N.: Gostei muito desse modo de dizer: uma educação discursiva no


Brasil. Acho desafiador e promissor. Nessa direção, gostaria de mencionar
duas reflexões que me são muito caras e que dizem sobre educação e
formação de professores, a primeira delas é a discussão muito pertinente
que nos traz Orlandi (2020) em diversos momentos sobre capacitação e
formação e que para mim traz o compromisso de pensarmos a formação
do professor como um sujeito do conhecimento, formação que nunca
acaba, que não se esgota e que não pode nunca estancar na falsa dicotomia
entre teoria e prática. Acho que isso se enlaça com o que anteriormente
mencionei sobre os gestos de autoria na prática, as reflexões de Pêcheux
sobre aplicação e teorização. Assim eu penso os sujeitos da educação,
que somos nós, em formação, um trabalho que exige leitura, escuta e
teorização. Agora mais na direção de pensar a AD e as línguas, entendo
como preciosas as “notas para uma agenda” que nos oferecerem Celada e
Payer (2016) e que nos deixam pouco a dizer e a muito a realizar, chamando
atenção para o que a AD nos ensina sobre a forma de trabalhar os lugares
dos sujeitos da educação, especialmente a relação entre professor e aluno
139
que mencionamos em alguns momentos, sobre a necessidade de produzir
resistência aos monolinguismo e sobre a importância da valorização da
alteridade enquanto forma de trabalhar as línguas e fazê-las trabalhar
nos sujeitos, tendo em vista as importantes considerações sobre língua
materna e nacional e o que sua indistinção pode implicar de apagamentos
das línguas outras que nos constituem, enfim, uma agenda intensa que
entendo que diz daquilo que estrutura um trabalho com as línguas pelo
viés da AD.
Nessa direção, tem sido para mim fonte de imenso aprendizado uma
aproximação cada vez mais curiosa, atenta e interessada (para não dizer
interesseira) dos trabalhos que estabelecem relações entre a AD e a História
das Ideias Linguísticas28, que – me parecem – têm muito a dizer sobre-para
o campo da educação em línguas. Apenas para citar um exemplo, entendo
que temos uma contribuição importantíssima que resulta desse encontro e
que nos diz sobre um modo de trabalhar os instrumentos linguísticos em
suas diferentes formas de se configurar, também enquanto discursos sobre
a língua, o que, na minha compreensão, pode promover deslocamentos
importantíssimos na escola.
Por outro lado, tenho sentido a necessidade de mergulhar de modo
mais profundo nas relações possíveis entre o pensado por nós no campo
da análise do discurso materialista e o que, especialmente, sobre a educação
e as línguas, se pode dizer-fazer a partir de uma perspectiva decolonial. É
por isso que propomos, recentemente, como parte de um projeto mais
amplo, um trabalho que, a partir da retomada dos fundamentos teórico-
políticos dessas vertentes, nos permita dizer sobre os encontros possíveis
entre a AD, como a praticamos no Brasil, e as teorias decoloniais (DE

28
Apenas a título de exemplo dessa relação entre a Análise do Discurso Materialista e a
História das Ideias Linguísticas menciono o dossiê temático Produção do conhecimento,
políticas linguísticas e ensino de línguas: contribuições da Análise do Discurso, publicado
no ano de 2021 pela Revista Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Pelotas,
disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/article/view/21752.
140
SOUZA SANTOS, 2006), especialmente no que concerne a um modo
de pensar uma educação em línguas na escola, que possa apontar para
forma de fazer trabalhar as línguas como espaços de deslocamento, de
exercício de alteridade, de afirmação do heterogêneo. Falo de trabalhos
ainda em andamento e que, embora tragam flertes antigos com o campo
das pedagogias críticas e das teorias decoloniais, compreendemos que
nos permitirão, a partir de seu amadurecimento, uma teorização mais
consistente sobre esses encontros possíveis e a proposição de olhares que
possam produzir deslocamentos, assim esperamos, em nossas práticas
educativas.
***

Uma das questões que está na centralidade da sua produção, nas


pesquisas e orientações realizadas, é a preocupação com a educação
linguística em língua estrangeira, no caso, o espanhol. Tomamos,
então, de empréstimo, uma de suas contribuições sobre o tema, ao
afirmar que:

Não se trata, portanto, de substituir a LE em sala de aula pelo uso da LM,


o que pretendemos mostrar, apenas, é que seguir insistindo na ideia da
possibilidade de isolar o sujeito de sua língua materna implica mergulhar
na ilusão da separação entre sujeito e língua, ignorando o papel da língua na
constituição das identidades. (DE NARDI; BRANCO, 2012, p. 85)

Parece-nos fundamental a relação que se estabelece entre a língua do outro


e a língua materna, no que se refere à impossibilidade de silenciá-la. Como
a Análise de Discurso/História das Ideias Linguísticas pode contribuir
para a compreensão do reconhecimento da subjetividade nesse processo
de encontro com o outro?

F. N.: Acho que hoje eu formularia isso de outra forma, mas sigo entendendo
como fundamental a relação entre língua e constituição da subjetividade.

141
Essa compreensão, para mim, surge a partir da noção de sujeito tal como
ela é entendida pela AD e pela relação necessária do sujeito com a língua,
ou seja, é com a AD que eu passo a entender que somos sujeitos na língua
e por ela. A questão da subjetividade e dos processos de identificação,
portanto, estão sempre presentes no meu modo de pensar as línguas e as
práticas de ensino, foi isso que me levou na tese, por exemplo, a pensar a
dimensão da estrangeiridade de uma língua no que ela pode produzir de
estranhamento mas também de fascínio, de acolhimento, de possibilidade
de experimentar-se para o sujeito a partir de outros lugares, em línguas
outras. Nessa mesma direção, por exemplo, encontro possibilidades de
trabalho sobre os estereótipos e os imaginários que vão na direção de pensá-
los como construções de discurso, com seus modos de funcionamento e
seus efeitos sobre os sujeitos, mas também com suas brechas, que dão lugar
a processos múltiplos de identificação (desidentificação-contraidenticação)
que podem construir, assim, para os sujeitos, modos diversos de se
relacionar com as línguas e os discursos sobre elas, encontrando espaços de
ancoragem para a produção de modos de identificar-se com essa língua e o
que por ela se diz. O que aparece, portanto, na citação mencionada, e que
alude a uma formulação que entendo como fundante de Cristine-Revuz
pela importância que tem para os trabalhos que sobre as línguas fazemos a
partir da AD, é aquela da compreensão dessa dimensão fundadora de uma
subjetividade que tem a língua materna para o sujeito, língua da qual não é
possível ao sujeito se desvencilhar (sempre atentando para o fato de que,
ao dizer língua materna, não dizemos, necessariamente, língua nacional
ou língua de escolarização). É preciso lembrar que quando falamos de
subjetividade estamos pensando nesse laço entre as ordens do simbólico
e do imaginário pelas quais se faz o sujeito, relação marcada pela presença
de uma alteridade que não cessa nunca de se fazer presente e que habita
todo processo de identificação. Talvez possamos dizer, nessa direção, que
há uma estrangeiridade que habita todo sujeito, que é, portanto, sempre
142
um ser em línguas. Acho interessante, nesse sentido, pensar que sempre se
insistiu muito no desejo de dominar a língua, de aprendê-la, como se dela o
sujeito pudesse se servir. Entendo que pelo viés da subjetividade tal como
a compreendemos a partir da AD podemos dizer que antes de dominar
as línguas estamos sujeitos a elas, somos apreendidos pelas línguas. Vou
recorrer aqui, para tentar encerrar, a uma formulação que está em De Nardi
e Nascimento (no prelo) e que acho que me ajuda a dizer desse modo de
compreender as línguas:
[...] na relação entre línguas, as novas identificações só são possíveis quando o
sujeito consegue inscrever-se na língua do outro, a partir da qual, ele consegue
se dizer, processo que se dá por meio da sua inscrição na discursividade dessa
nova língua, promovendo um desarranjo subjetivo e, consequentemente, um
rearranjo significante (SERRANI-INFANTE, 1997). É a inscrição na nova
língua que vai possibilitar ao sujeito ressignificá-la e ressignificar-se, já que
ela traz consigo novas vozes, novos questionamentos que o modificam e o
alteram e, assim, promovem essas novas identificações.

E se as identificações nunca cessam de se produzir, por essas novas


identificações também se ressignificam os modos de estar dos sujeitos
nessas línguas que o habitam, produzindo mexidas significativas na relação
do sujeito também com a sua língua materna, fazendo com que o sujeito
se mova de um lugar de total saber para um não saber que lhe permite
perguntar-se sobre os sentidos tão sedimentados dessa língua primeira,
sobre os modos de dizer tão óbvios agora colocados à prova pelos olhos
do outro, pelo espelho das línguas outras.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

F. N.: Eu entendo que não se trata de uma tomada de posição do


professor em sua práxis na educação básica, entendo que seja uma
143
tomada de posição do professor no campo da educação, em todos os
seus níveis, que começa por assumir a natureza político-ideológica de sua
prática e, portanto, compreender que suas escolhas teórico-metodológicas
também são tomadas de posição sobre o sujeito, o mundo e a produção
de conhecimentos. Nessa direção, compreendo que não se faz educação
sem assumir posição e que isso implica, do ponto de vista de nossa
formação cotidiana, investirmos fortemente em nossa construção como
sujeitos do conhecimento, um conhecimento que se produz em condições
determinadas, que não está fora da história, que permite a interrogação,
a dúvida, o deslocamento, a retificação… mas especialmente convidando
aqueles que estão conosco a fazer o mesmo, ou seja, desafiando-nos a um
exercício constante de escuta dos sujeitos da escola que também somos
nós em nossos modos de dizer, redizer, para que possamos nos reinventar,
repensar nossas práticas. Uma tomada de posição materialista para mim
em educação é a que permite a dúvida, que aceita o inacabado, que produz
o questionamento, que faz trabalhar a contradição. É também uma tomada
de posição pela luta política no campo da educação, aquela da defesa da
educação pública e do direito aos sujeitos da educação de que lhe sejam
oferecidas as condições adequadas de trabalho-estudo, condições de pleno
exercício do direito ao saber.
***

144
E ntrevista com Freda I ndursky
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

“O professor deve saber que o que sustenta diferentes tomadas de posição é a ideologia,
mas isso não implica trabalhar a noção de ideologia com seus alunos. Em sala de aula,
o que vai interessar são os diferentes efeitos de sentido, as diferentes tomadas de posição
que manifestam a ideologia. Essa é a diferença: o professor deve saber que a ideologia
se materializa em discurso, que o discurso se materializa em textos e, estes, por sua
vez, se materializam através da língua. Mas essa reflexão teórica remete à formação do
professor e não a de seus alunos. Esses conhecimentos serão fundamentais para orientar
sua práxis pedagógica, vai determinar a seleção dos textos a serem lidos, e vão iluminar
a condução da prática da leitura em sala de aula. Ou seja: toda a reflexão teórica
proporcionada por sua formação linguística deverá ser traduzida em práxis pedagógica,
em atividades que conduzam seus alunos entre leituras e práticas de escrita.”

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Freda Indursky: Essa é uma pergunta muito pertinente. Fiz o Curso


de Letras (Língua Portuguesa e suas Literaturas e Língua e Literatura
Francesa), movida pelo desejo de ser professora de francês. Para isso,
tinha planos de estudar na França. Portanto, ao final de minha licenciatura,
me candidatei a uma bolsa de estudos do governo francês, com o objetivo
de fazer um curso de aperfeiçoamento para professor de francês, língua
estrangeira. Ganhei a bolsa que me encaminhou para a Faculdade de
Letras de Besançon, que oferecia, entre tantos cursos, uma especialização
para professores de francês. Um curso bastante completo, com linguística
145
e teoria literária. Lá, tomei conhecimento de algo que não tínhamos na
UFRGS: uma Licenciatura em Linguística. Ao término de meu primeiro
ano, pedi renovação da bolsa para fazer essa licenciatura e ganhei. Nela,
descobri um universo totalmente novo: Saussure, Jakobson, Martinet,
Benveniste, Ducrot, Barthes, cujos textos eram lidos e discutidos. Da mesma
forma, li os textos dos Formalistas Russos. Foi um universo totalmente
novo que se abriu para mim, pois aqui, à época de minha licenciatura,
a Linguística recém havia entrado no currículo e não líamos os textos
originais. Deles, tomávamos conhecimento a partir de alguns conceitos
que haviam desenvolvido. Naquela licenciatura, conheci o Professor
Jean Peytard que fazia algo totalmente novo para mim: estudava textos
literários, tomando marcas linguísticas para proceder às análises. Mas não
se tratava de usar textos literários para realizar estudos gramaticais nem
frasais. Essas marcas linguísticas eram pistas para penetrar na escritura do
texto literário. Me apaixonei por suas aulas e por sua proposta inovadora.
Isso me impulsionou a pedir renovação de minha bolsa de estudos para
fazer uma Maîtrise (mestrado) sob sua orientação. A Bolsa foi renovada
e Peytard me aceitou como orientanda. Sugeriu-me trabalhar com a obra
de Claude Simon, um escritor cuja escritura é muito densa, opaca. Foi um
trabalho bastante complexo e, sem que eu soubesse, estava me iniciando em
uma metodologia que se assemelha muito aos modos como se procede em
Análise de Discurso. Mas não só. Analisar uma obra literária daquela forma
significava ultrapassar o limiar da frase e, isso, para mim, era empolgante.
De volta ao Brasil, descobri que o ensino da língua francesa havia sido
banido das escolas. Fui trabalhar com Língua Portuguesa no Colégio
de Aplicação da UFRGS e, um ano depois, estava trabalhando no ciclo
básico da UFRGS. Enquanto isso, buscava o rumo para dar continuidade
à minha formação. Queria fazer um doutorado, mas não queria trabalhar
nem com fonologia nem com linguística de frase, que era o que, à
época, o PPG-Letras da UFRGS oferecia. Já havia experimentado essa
146
ultrapassagem e não queria dela abrir mão. Comecei a pesquisar. Descobri
que no Rio e em São Paulo trabalhavam com objetos mais amplos, como
texto e leitura. Em um congresso de leitura, em Campinas, soube que,
no IEL/UNICAMP, trabalhava-se com Análise de Discurso. Li a tese
de Haquira Osakabe que analisou os discursos do Primeiro de Maio de
Getúlio Vargas. E, neste mesmo momento, Eni Orlandi publicou o livro
A Linguagem e seu Funcionamento. Essas duas leituras foram definitivas para
meus passos seguintes. Fui para a UNICAMP, onde fiz meu doutorado
em Análise de Discurso sob a orientação de Eni Orlandi.
Como podem perceber, foi longa a trajetória entre os diferentes
campos de conhecimento que constituem a área dos Estudos da Linguagem,
até descobrir a Análise de Discurso. Mas a demora foi compensadora.
Trata-se de um campo de conhecimento bastante inquieto, que não cessa
de interrogar-se, expandindo continuamente seu horizonte, em constante
teorização. Toma os textos fundadores aos quais se filia, mas sem a eles
limitar-se. Uma vez identificada/interpelada por essa teoria, esse é meu
lugar teórico que se constituiu em uma relação apaixonante de nunca
acabar.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

F. I.: Tanto a Análise de Discurso (AD) quanto a História das Ideias


Linguísticas (HIL) constituem campos teóricos que tomam como objeto de
reflexão e teorização questões que interessam à Linguística e aos Estudos
147
da Linguagem. Por conseguinte, não surpreende que a educação linguística
possa interessar-se por reflexões desses dois campos teóricos. Nenhum
dos dois se destina necessariamente à formação de futuros professores,
mas acredito que podem aportar uma grande contribuição à educação
linguística. Penso que a formação linguística pode/deve enriquecer-se
a partir de várias pesquisas ligadas à HIL, ao refletirem, por exemplo,
sobre a história das gramáticas e a gramatização das línguas. Da mesma
forma, pesquisas que tomam dicionários como objeto de análise são um
excelente observatório, seja para cotejar o sentido lexical dicionarizado
com diferentes efeitos de sentido que tais itens lexicais assumem em
diferentes discursos, seja para observar como determinados itens lexicais,
ao serem dicionarizados, podem carregar certas marcas ideológicas e/ou
vestígios de discriminação, como, por exemplo, quando se compara os
itens lexicais homem e mulher, sobretudo se contrastarmos expressões como
homem de vida pública X mulher de vida pública. Tomemos ainda a reflexão
que os estudos de Análise de Discurso realizam em torno de Língua, por
exemplo. Tais reflexões não só podem como, eu diria, devem interessar à
educação linguística de futuros professores, pois nem todos que recebem
educação linguística na Universidade serão linguistas. Grande parte dos
estudantes que têm linguística em seu currículo serão professores e tais
reflexões podem subsidiar seu trabalho em diferentes níveis de ensino.
Ou seja: embora AD e HIL não sejam teorias aplicadas, os conhecimentos
que produzem podem embasar o trabalho de professores, seja para a
refletir sobre a língua, seja para pensar o texto enquanto objeto a ser lido
e interpretado, seja ainda para produzi-lo. Observar o texto como um
objeto que materializa saberes provenientes de um ou vários discursos
pode ser explorado pelos futuros professores em suas salas de aula. Pensar
juntamente com seus alunos que há discursos em circulação, os quais são a
matéria prima de que se constituem seus textos, pode sustentar a reflexão
sobre a materialidade que constitui os textos em geral e pode ser o ponto
148
de partida para pensar no que consiste a prática da escrita. E, ao mesmo
tempo, esse tipo de reflexão conduz a uma reconfiguração da noção de
autoria, retirando-a de seu lugar mítico, quase inatingível, que apenas
alguns alcançam, para situá-la ao alcance de todos, como vou expor na
resposta à questão 5.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

F. I.: Essa é uma questão importante e que precisa ser bem entendida. Os
conhecimentos de uma formação discursivo-materialista são importantes
para quem? E por quê?
Tais saberes são fundamentais para a formação linguística de todo
e qualquer estudante que se interesse pelos estudos da linguagem e,
sobretudo, para aqueles que pretendem seguir pelos caminhos teórico-
analíticos da AD. Da mesma forma, interessam aos futuros professores,
pois tais conhecimentos poderão iluminar sua reflexão de como conduzir
sua práxis pedagógica. São importantes para refletir, por exemplo, sobre
o tipo de prática de leitura que desejam desenvolver com seus alunos.
São fundamentais para perceber que tomamos posição sobre o que um
determinado texto faz circular e que essa tomada de posição não é única,
nem idêntica para todos. O professor deve saber que o que sustenta
diferentes tomadas de posição é a ideologia, mas isso não implica
trabalhar a noção de ideologia com seus alunos. Em sala de aula, o que
vai interessar são os diferentes efeitos de sentido, as diferentes tomadas
de posição que manifestam a ideologia. Essa é a diferença: o professor
deve saber que a ideologia se materializa em discurso, que o discurso se
149
materializa em textos e, estes, por sua vez, se materializam através da
língua. Mas essa reflexão teórica remete à formação do professor e não
a de seus alunos. Esses conhecimentos serão fundamentais para orientar
sua práxis pedagógica, vão determinar a seleção dos textos a serem lidos e
vão iluminar a condução da prática da leitura em sala de aula. Ou seja: toda
a reflexão teórica proporcionada por sua formação linguística deverá ser
traduzida em práxis pedagógica, em atividades que conduzam seus alunos
entre leituras e práticas de escrita. A partir dos diferentes gestos de leitura
produzidos pelos alunos em sala de aula, o professor poderá colocar em
contraposição os diversos efeitos de sentido que foram produzidos bem
como apontar/comparar/contrastar as tomadas de posição que foram
produzidas pelos autores dos textos. Assim procedendo, pontuará que
não há consenso em torno de determinadas questões. Acredito que a
teoria produzida pela Análise de Discurso pode contribuir para a práxis
pedagógica desde que o professor entenda que essa teoria não se constitui
em objeto direto de sua docência, mas ela pode sustentar o modo de
conduzir suas práticas pedagógicas.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

F. I.: Vários (des)encontros foram produzidos nos textos fundadores


produzidos por Pêcheux e seu grupo. Vários outros, ainda, já foram
formulados no campo brasileiro de Análise de Discurso. Vou me ocupar
aqui de alguns (des)encontros teóricos que tenho produzido ao longo
de meus trabalhos, iniciando com minha tese. Em A fala dos quartéis e as
150
outras vozes (INDURSKY, 1993; 1997; 2013), parti do (des)encontro entre
o esquema da comunicação, tal como concebido por Jakobson e reteorizado
por Pêcheux, propondo o que entendo ser uma interlocução discursiva. Anos
depois, produzi mais um deslocamento, formulando a noção de interlocução
discursiva urbana. (INDURSKY, 2014). Mas foi meu fazer pedagógico no
Curso de Letras da UFRGS que me conduziu a promover vários (des)
encontros entre algumas concepções que entendo fundamentais para um
estudante de Licenciatura em Letras, portanto presumivelmente um futuro
professor. Para tanto, trabalhei com diferentes concepções de texto, comparando
e contrastando essa noção a partir da Linguística Textual, da Teoria da
Enunciação, da Semiótica e da Análise do Discurso (INDURSKY, 2006).
Mais adiante, promovi outro (des)encontro entre diferentes concepções teóricas
de Língua, contrastando língua sistêmica, língua linguístico-pragmática e língua
discursiva (INDURSKY, 2010a). E, ainda em mais um (des)encontro, refleti
sobre as concepções de leitura que podem ser depreendidas da Linguística
Textual, da Teoria da Enunciação e da Análise de Discurso a partir de suas
concepções de língua, de texto, de contexto e de sujeito (INDURSKY,
2010b). Em cada um desses (des)encontros, procurei apontar como
cada campo reflete. Não com o objetivo de apontar a melhor nem a pior
concepção. Ao contrário. O que me moveu foi mostrar que cada área
estabelece seus objetos a partir de seus pressupostos teóricos. E, a partir
disso, observar até onde vai cada uma dessas teorias, o que se pode fazer
com cada uma delas em sala de aula, visando à formação de alunos capazes
de ler, interpretar, compreender, tomar posição e produzir seus textos. E
entendo que um professor não pode se limitar à concepção teórica com
a qual se identifica, mas precisa saber o que pode produzir com cada uma
delas. Ou seja: estabelecer comparações e especificidades que sirvam para
determinar qual a melhor abordagem para cada faixa etária ou para cada
nível de ensino. O futuro professor deve saber se movimentar em todo o
campo dos estudos da linguagem para saber como colocar em prática o
151
encontro entre língua, texto, leitura e escrita. Trata-se, pois, de conhecer
cada uma dessas concepções para poder organizar sua práxis pedagógica.
***

A noção de arquivo em Análise de Discurso é muito produtiva e


você fez um deslocamento importante ao formular a noção de
arquivos pedagógicos, que promove uma reflexão sobre o trabalho
com diferentes materialidades na sala de aula. Como se lê em sua
proposta,

com os arquivos pedagógicos criados pelo professor, o sujeito-aluno terá a


oportunidade de mergulhar numa coletânea de textos que lhe proporcionarão
diferentes leituras que aportam diversificados posicionamentos sobre um
único e determinado tema. Essa atividade vai conduzir o aluno à construção
de sua história de leituras e habilitá-lo a se apropriar de enunciados
postos a sua disposição para produzir, a partir deles, seus próprios textos.
(INDURSKY, 2019, p. 105-106)

Parece-nos que essa concepção de arquivo pode ser importante na


medida em que possibilitará ao aluno entender que os discursos lhe
são anteriores, de modo que, pela leitura dos textos, poderá assumir
uma posição de autoria de sua produção. Para você, como esse
processo de construção de arquivos pedagógicos, leitura e escrita
pode contribuir para uma educação libertadora que nos permita
transformar a escola básica brasileira?

F. I.: Penso que, para escrever, o aluno precisa ter algo a dizer. Construir
uma coletânea de textos reunidos em um arquivo pedagógico representa
um pouco do muito que já foi dito sobre um determinado tema, simulando,
dessa forma, o interdiscurso. Mas não só. Há muitas atividades que
podem ser desenvolvidas a partir de um arquivo pedagógico e, entre elas,
por exemplo, dar visibilidade ao fato de que abordar um mesmo tema/
problema não implica consenso. O arquivo pedagógico presta-se, pois,

152
para introduzir o aluno em um espaço polêmico de leituras, no interior do qual
coexistem textos que tratam de um mesmo tema, mas que divergem por
defender posições antagônicas entre os textos aí reunidos. Assim, é possível
tomar o arquivo pedagógico como um observatório: textos que abordam
um mesmo tema não assumem necessariamente a mesma posição, nem,
tampouco, essa posição se materializa com as mesmas palavras ou com a
mesma estrutura linguística. A teoria materialista do discurso trabalha com
processos de significação e é a partir desses processos que é possível identificar
as posições defendidas por diferentes autores. Esse observatório é um
dispositivo forte para uma iniciação na prática discursiva da leitura.
Mas esse dispositivo pode/deve ir além. Acredito que uma prática
de produção de texto inicia durante a prática da leitura realizada nesse
espaço polêmico, durante a qual vai se elaborando a tomada de posição
pelo sujeito-leitor frente às diferentes tomadas de posição presentes no
arquivo pedagógico. Entendo que a tomada de posição e sua sustentação em
sala de aula pode conduzir o sujeito-leitor à posição de sujeito-autor.
Concebo essas duas práticas como as duas faces de um mesmo e amplo
processo discursivo – o ciclo da autoria29. Dito de outra forma: em uma
práxis pedagógica, defendo que a autoria não separe a prática da leitura30
da prática da escrita. Ao contrário. Uma leva à outra. A autoria é, pois, o
funcionamento ideológico-discursivo que conduz o aluno a tomar posição,
tanto na leitura, quanto na escrita. É sob o funcionamento discursivo da
autoria, já tendo tomado posição durante a prática leitora, que o aluno
procede ao recorte de fios discursivos daqui e dali, dentre os textos que
compõem o arquivo pedagógico. É ainda o funcionamento da autoria que
aponta o modo como esses fios podem ser tramados para tecer um novo

29
Trabalhei o ciclo da autoria no artigo Da heterogeneidade do discurso à heterogeneidade do texto
e suas implicações no processo da leitura (EDUCAT, Pelotas-RS).
30
Eni P. Orlandi refletiu sobre questões de leitura e de autoria no livro Discurso e Leitura
(Ed. Cortez); Solange Gallo desenvolveu a noção de efeito-leitor em Discurso da Escrita e
Ensino (Ed. da UNICAMP)
153
texto que defenda um posicionamento, que dê uma direção ao processo
de significação produzido no texto. É o trabalho discursivo da autoria que
produz o que entendo ser um sujeito-leitor-autor.
Mas o que sustenta a trama dos fios discursivos? Esse é o momento
do trabalho discursivo com a língua, com a sintaxe. Não a sintaxe da
frase, fora de qualquer contexto, mas uma sintaxe que permita organizar
os diferentes fios discursivos trazidos de outros textos, uma sintaxe
que sustente o processo discursivo de significação, que materialize
linguisticamente a tomada de posição do aluno. Uma sintaxe discursiva que
trame adequadamente os fios discursivos provenientes de outros textos
para tecer um novo texto, um novo processo discursivo. Ou seja, entra aí
um saber fundamental produzido no campo teórico da AD: nesse campo
não se trabalha com a língua enquanto forma abstrata. Na teoria materialista
da AD, a língua é uma materialidade linguística que dá sustentação a
processos discursivos de significação. É o trabalho discursivo com a
língua e sua sintaxe discursiva que transforma fios discursivos isolados/
descontextualizados, provenientes de diferentes textos, em um novo texto.
É esse trabalho discursivo que inscreve esse novo texto em um espaço
intertextual (relação com os textos de onde provêm os fios discursivos) e
em um espaço interdiscursivo (relação com o arquivo pedagógico).
Esse é o lugar em que a sintaxe ganha sua força produtiva, seu
funcionamento discursivo, sustentando uma produção de sentidos
e um determinado ponto de vista. Penso que estudar sintaxe de frase,
isoladamente, não faz sentido para o aluno e não contribui para o
crescimento de seu domínio linguístico. Trabalhar na organização
interna de fios discursivos que vêm de outros discursos permite ao aluno
perceber como a sintaxe faz parte de nosso dia a dia. Coloca à disposição
os instrumentos necessários para defender uma tomada de posição e
produzir um determinado efeito de sentido e não outro que se lhe oponha.
O trabalho da sintaxe discursiva é decorrente da ideologia, da interpelação
154
ideológica do sujeito, a qual vai “guiar” o sujeito-aluno em sua prática
da escrita, determinando o modo como reunir/agenciar/tramar os fios
discursivos recortados de outros textos para concordar ou discordar a
propósito de algum tema determinado, materializando, dessa forma, sua
tomada de posição.
O arquivo pedagógico possibilita ao aluno a percepção de que o
texto apresenta uma superfície linguística, cuja materialidade é tecida com
discursividades-outras. É essa percepção que habilita o texto produzido
por um sujeito-leitor-autor a ser inserido no interior do arquivo pedagógico
e, com essa inserção, completa-se o ciclo da autoria e o sujeito-leitor-autor
está pronto a iniciar um novo ciclo.
O texto do aluno, por sua vez, ao ser inserido no arquivo pedagógico,
ganha legitimidade para fazer parte do espaço polêmico de leituras. Essa
inserção dá-lhe o estatuto de ser um texto disponível para participar do
ciclo de autoria de outros alunos.
O arquivo pedagógico pode ser um dispositivo importante para a
formação de sujeitos-leitores-autores críticos.
O ciclo da autoria, constituído no âmbito de um arquivo pedagógico,
dá unidade à práxis pedagógica que envolve professor e alunos, iluminada
por saberes oriundos da Teoria da Análise de Discurso.
Por fim, julgo que um dispositivo como o arquivo pedagógico se
presta a várias disciplinas que trabalham com textos e não apenas para as
práticas de leitura e produção textual, da mesma forma que se presta para
um ensino integrado, que tome um determinado tema do interesse de
várias disciplinas.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

155
F. I.: Acredito que já tenha tocado nessa questão ao responder à pergunta
3. Penso que um dos grandes desafios para um professor é o de perceber
o que é da ordem estrita da teoria e que, por conseguinte, diz respeito
apenas a sua formação linguístico-discursiva, sabendo que essa teoria pode
iluminar sua prática em sala de aula, mas não se destina à sala de aula. Essa
é a diferença fundamental entre campos teóricos que podem subsidiar
a reflexão e a práxis do professor e o campo das teorias aplicadas. Me
ocupei dessa questão, também, ao responder à pergunta sobre o arquivo
pedagógico.
Um outro desafio é o da seleção do tema para a construção do
arquivo, pois este deve interessar aos alunos. E, no meu entendimento,
essa etapa deve ser discutida/construída juntamente com os alunos.
***

Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse


projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.

F. I.: Há um ponto que não pude abordar ao longo das questões que
recebi e que julgo importante trazer aqui. Os textos fundadores nos
conduziram a pensar o discurso como a materialização da ideologia e o
texto como materialização de um discurso. Esse é um saber inquestionável.
Mas, desde que a Teoria da Análise de Discurso atravessou o Atlântico,
muitas e novas reflexões foram desenvolvidas pelos analistas de discurso
brasileiros e aqui foi feito um deslocamento importante: um discurso
necessita de uma materialidade significante para manifestar-se, mas essa
materialidade nem sempre é um texto. Ela pode ser da ordem da oralidade
ou mesmo constituir-se de materialidades imagéticas e/ou digitais. Muito

156
já foi produzido em torno dessas outras materialidades significantes. E
penso que elas podem/devem fazer parte de um arquivo pedagógico.
***

157
158
E ntrevista com M araísa Lopes
Universidade Federal do Piauí

“Penso que, ao deslocarmos a educação de uma relação com a capacitação e a ligarmos


à noção de formação, principalmente, quando se trata de uma educação linguística, é
fundamental que tomemos tal ação como um processo de conhecimento, uma prática
pedagógica de construção real do conhecimento, que não esteja presa a imaginários já
consolidados que funcionam na escola e antecedem as relações com os próprios alunos,
os sujeitos desse processo”

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Maraísa Lopes: Minha entrada na área de Ciências da Linguagem se deu


com o início do Curso de Licenciatura em Letras/Português em 2002. Já de
início me encantei com a Linguística! Naquele momento, me parecia a área
mais desafiadora, talvez porque, como tinha acabado de concluir o Ensino
Médio, não tivesse tido contato com discussões que me apresentassem
a área. No segundo semestre do curso de graduação, fui apresentada a
algo chamado “Análise de Discurso”, tendo contato com os trabalhos
de Maingueneau e Bakhtin. Nessa época, ainda sem poder imaginar os
caminhos que trilharia, me engajei na iniciação científica e tomei como
meu objeto de estudo a Guerra do Iraque e a Folha de São Paulo (como
talvez alguns leitores mais jovens nos leiam, a Guerra do Iraque (muito se
pode dizer sobre essa nomeação!) teve seu início em março de 2003). Essa

159
questão me atravessou durante toda a graduação e me atravessa até os dias
atuais, pois, por mais que tente trabalhar com outras materialidades, sempre
me vejo às voltas com o discurso jornalístico. Concluída a graduação, ao
mesmo tempo em que eu fazia um curso de especialização em Estudos da
Linguagem, fui aceita como aluna especial para a disciplina de História das
Ideias Linguísticas, no IEL/UNICAMP, que seria ministrada por Claudia
Pfeiffer. Foi a partir da possibilidade de participar dessa disciplina que se
deu minha entrada no turbilhão de sentidos produzidos pelas discussões
sobre Análise de Discurso (AD) materialista e História das Ideias
Linguísticas (HIL). Me lembro que meu primeiro seminário na disciplina
foi sobre o livro Terra à Vista, de Eni Orlandi. Ler esse texto e participar de
todas as discussões me fez perceber que aquele seria meu lugar de filiação
teórico-analítica. Em 2006, iniciei o mestrado, retomando a questão da
Guerra do Iraque e da Folha de São Paulo, já inscrita teoricamente na
AD materialista, sob a supervisão da professora-pesquisadora Claudia
Pfeiffer. Ao mesmo tempo em que comecei o mestrado, deixei de ocupar
a posição de instrutora de inglês em escolas de idiomas e passei a lecionar
no Ensino Superior. A produção da minha dissertação acabou apontando
novos questionamentos, os quais foram a base para que eu apresentasse
meu projeto de doutorado. Em 2009, concluí o mestrado e iniciei o
doutorado. No primeiro ano, concluí todas as disciplinas e decidi que no
ano seguinte começaria a prestar concursos para ser professora de uma
universidade pública, já que reconhecia que queria ocupar uma posição
que me permitisse não só ministrar aulas, mas também realizar pesquisas,
podendo, além disso, contribuir para a formação de jovens professores-
pesquisadores. Em 2010, prestei meu primeiro concurso e fui aprovada.
Sou professora-pesquisadora na Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Atuo, na graduação, ministrando as disciplinas de Estudos Linguísticos
e Análise de Discurso para o Curso de Licenciatura em Letras-Libras
(o que vai explicar um pouco dos caminhos que venho tentando traçar
160
nos últimos tempos), e, na Pós-Graduação, sou professora permanente,
orientando dissertações e teses que se inscrevem na AD materialista e em
HIL. É a partir desse lugar, de professora-pesquisadora, na UFPI, que
venho, ao longo dos anos, tentando fazer circular a teoria, colocando mais
questões que as respondendo, instigando e incentivando meus alunos de
graduação, de iniciação científica, de mestrado e de doutorado a conhecer
esse modo de ler os discursos, em suas diferentes materialidades. Quando
digo sobre mais perguntas que respostas, aponto para a necessidade de
sempre nos movermos na relação com a teoria, com os colegas de área,
com os textos com os quais nos deparamos. Na atualidade, desenvolvo
um estágio pós-doutoral, supervisionado pela professora-pesquisadora
Eni Orlandi. Filiada ao Labeurb/Unicamp, tomo a Serra da Capivara
(sendo simplista) como foco de minhas análises e observo como dia a dia
vou (re)significando essa minha relação com a AD/HIL.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

M. L.: Me considerando uma analista de discurso que faz História das


Ideias Linguísticas, vejo como necessário o estudo da língua na sua relação
com a sociedade, com a história. A Análise de Discurso se constitui
como um modo de ler que se sustenta em um dispositivo teórico-
analítico, permitindo uma relação menos ingênua com a linguagem, e,
especificamente articulada à HIL, toma discursos sobre a(as) língua(s)
como não transparentes, buscando compreender seu funcionamento

161
discursivo. Assim, pensando a possibilidade de contribuição da relação
AD-HIL-Educação, gostaria de retomar uma discussão feita por Orlandi
(2014) que remonta a uma distinção entre capacitação e formação para
suscitar uma questão: A educação que se oferece hoje no Brasil capacita
ou forma sujeitos? Orlandi (2014) compreende a capacitação numa
relação com a informação e a formação, com o conhecimento. Numa
sociedade como a nossa, observo que há uma demanda fortíssima para
a capacitação, a qualificação. Há um discurso dominante que circula
na mídia, no mercado, no/pelo governo. Penso que, ao deslocarmos
a educação de uma relação com a capacitação e a ligarmos à noção de
formação, principalmente, quando se trata de uma educação linguística, é
fundamental que tomemos tal ação como um processo de conhecimento,
uma prática pedagógica de construção real do conhecimento, que não
esteja presa a imaginários já consolidados que funcionam na escola e
antecedem as relações com os próprios alunos, os sujeitos desse processo.
Uma educação que considere o dispositivo teórico da Análise de Discurso
assume um novo modo de relação com o conhecimento, colocando em
funcionamento noções como sujeito, língua, ideologia e formação social.
É preciso destacarmos que o processo de individuação do sujeito se dá
(também) na relação com as instituições. A escola, Aparelho Ideológico
do Estado, é tomada como o lugar do conhecimento, portanto, é preciso
fazer com que essa instituição faça com que o sujeito se reconheça numa
relação de saber a língua, de sabe ler e escrever, saindo de um processo
de reprodução mnemônica, permitindo ao sujeito o dimensionamento
do efeito de sua intervenção nas formas sociais e o lugar da formulação,
da reformulação, da significação e da ressignificação. O sujeito deve ser
capaz de transformar seu conhecimento, compreender suas condições de
existência e ser a própria possibilidade de resistência.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
162
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

M. L.: Bagno e Rangel (2005) entendem a educação linguística, de modo


geral, como aquela que possibilitaria a aquisição, o desenvolvimento e a
ampliação do conhecimento de/sobre: a língua materna, as (outras) línguas
e a linguagem de maneira mais ampla. No Brasil, essa educação acaba
sendo formalizada, sistematizada, institucionalizada e promovida por um
dos Aparelhos Ideológicos do Estado – a escola. Se pensamos o ensino de
língua nas escolas brasileiras, podemos apontar, primeiramente, para uma
relação lacunar entre as propostas oficiais de ensino e a práxis pedagógica.
Resguardadas todas as minhas críticas às indicações redutoras postas em
funcionamento por documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares
Nacionais, a Base Nacional Comum Curricular, dentre outros, é preciso
apontar para o fato de que há, minimamente, menções a uma abordagem
discursiva da linguagem, o que ainda encontra entraves para constituir a
prática pedagógica majoritária em sala de aula. Uma segunda questão a
ser ponderada é a formação de futuros docentes pelas/nas universidades,
cabe-nos questionar o quanto esses futuros responsáveis pelo ensino de
língua são expostos a teorias como a da Análise de Discurso materialista,
que permite uma relação outra com a língua que não a normativa. Isto
posto, creio que trazer uma perspectiva discursivo-materialista para
o cerne das discussões daquilo que é colocado em funcionamento nas
escolas brasileiras, no que se refere ao ensino de língua, pode permitir
descobertas ao tomar a língua em seu não fechamento, na possibilidade da
falha, saindo da ordem do certo x errado que tanto circula num imaginário
que constitui as práticas escolares. Pensar língua e sujeito como não
transparentes, funcionando a partir de determinações históricas e
ideológicas, abre a possibilidade para a compreensão de gestos de leitura e
de interpretação. Tomar a forma-material (ORLANDI, 2007) como base
163
para a práxis pedagógica permite refletir sobre o processo discursivo a
partir do qual os sentidos são produzidos, sair da evidência de sentido
produzida pela relação imaginária com a linguagem e compreender a
materialidade do discurso, a partir da relação da língua com a exterioridade
que lhe é constitutiva.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

M. L.: Esse lugar do entremeio permite que haja movência nas discussões
que são feitas por aqueles que se inscrevem na base teórica da Análise
de Discurso Materialista. Tomar a língua a partir de seus processos de
produção de sentido, enquanto um trabalho simbólico, constitutivo
do homem e de sua história, nos faz tomá-la em sua materialidade,
pensando-a como a possibilidade de formulação e circulação de discurso
entre sujeitos. Se pensarmos em uma educação discursiva, considerar as
teorias, os pesquisadores e os projetos atuais nos permite compreender
como a relação com a questão do conhecimento pode favorecer um modo
de conceber a educação a partir de um movimento que coloca em jogo
língua, sujeito, ideologia e história. Cada vez mais, diversas materialidades
têm sido tomadas como objetos de análise, o que acaba por demandar a
relação com diversas áreas, sem perder de vista a necessidade de pensá-
las na relação com a ordem do discursivo. Ademais, pensar a educação
discursivamente nos permite trabalhar a relação entre discursos a partir
de um lugar outro que não o da interdisciplinaridade, tão mencionada
nos documentos oficiais brasileiros. Compreender essa possibilidade de
164
relação entre teorias, pesquisadores e projetos para além de uma soma de
disciplinas, corrobora o estabelecimento de um complexo jogo de tensões
e de possíveis contradições que fazem avançar novas possibilidades de
compreensão teórico-analíticas.
***

Gostaríamos de tocar, brevemente, em dois textos seus que se


articulam na medida em que você lança um olhar para a Libras a
partir do encontro teórico entre a AD e a HIL. Em Lopes (2018), ao
refletir sobre o processo de institucionalização do curso de Letras-
Libras no Brasil, você propõe que é preciso pensar tal curso para
além espaço de produção de conhecimento sobre a língua de sinais.
É preciso tomá-lo em sua discursividade para buscar

compreender o modo como sua materialização produz e estabiliza


sentidos, assim como os rompe, desliza, o modo como se identifica, contra-
identifica, desidentifica, o modo como instauram-se processos identitários,
processos disciplinares, como se normalizam e docilizam os corpos surdos,
estabelecendo-se espaços de significação e interpretação determinados.
(LOPES, 2018, p. 67).

Já em Lopes (2020, p. 79), você nos diz do processo de construção


de um sinalário em Análise de Discurso materialista que possibilite
uma compreensão do modo “como os sujeitos surdos e suas
práticas acadêmicas têm sido significadas em nossa sociedade”.
Você poderia nos falar um pouco mais sobre a importância de uma
tomada discursiva para pensar a relação que se estabelece com a
educação linguística em Libras no espaço universitário e o que
pode ressoar na Educação Básica?

M. L.: Minha entrada no Curso de Letras-Libras se dá após todo meu


processo de formação em Análise de Discurso, o que sempre me fez(faz)
questionar esse processo de institucionalização a partir de minha inscrição
165
teórico-analítica. Uma das questões que me chama a atenção nesse
processo de abertura desse curso é o fato de que se tenta institucionalizar
o espaço de produção de saber sobre uma língua que circula sobre um
duplo funcionamento: oficial, por força de lei, mas não nacional, já que
não é a língua de um povo (GUIMARÃES, 2005). A Libras não é, nem
mesmo para os sujeitos surdos, a língua que todos precisam saber, que
todos precisam usar em todas as ações oficiais, pois nas suas relações com
as instituições do Estado ainda se utiliza majoritariamente a modalidade
escrita da Língua Portuguesa. Essa falta de reconhecimento da Libras
como uma língua própria do país, como uma língua nacional, produz
sentidos quanto a sua utilização: a Libras é instaurada como a língua do
surdo, usada na e pela comunidade surda, cabendo apenas a uma minoria
linguística (LOPES, 2018). Nessa esteira, quando pensamos as práticas
pedagógicas do curso, o acesso aos textos que circulam na área de Letras
coloca-se como um entrave para o processo formativo dos alunos surdos,
dada a baixa circulação de textos traduzidos do português para a Libras.
Remontando a minha prática de professora da disciplina de Análise de
Discurso no curso, devo apontar que minhas primeiras experiências com
sujeitos surdos em sala de aula me fizeram compreender que havia uma
necessidade de fazer com que a Análise de Discurso, seus conceitos e
formulações fossem pensadas por e para esses sujeitos. É nesse momento
que passei, junto a um grupo de alunos surdos, especialistas em Libras e
analistas de discurso em formação, a pensar em um sinalário, que pudesse,
a partir da formulação de sinais para as noções que mobilizamos em
Análise de Discurso, permitir que os sujeitos surdos (se) significassem (n)
as aulas da disciplina. Desse modo, uma tomada discursiva para pensar a
relação que se estabelece com a educação linguística em Libras no espaço
universitário é fundamental. Pensar na língua como constituída por e para
sujeitos, em que há determinações histórico-ideológicas é basilar para
que se compreenda seu funcionamento. Penso que tomarmos como base
166
a Análise de Discurso materialista para a práxis pedagógica num curso
como o Letras – Libras, permite-nos criar condições para que os sujeitos
(surdos) compreendam o processo de constituição e circulação da Libras,
contribuindo para que se pense sobre como abordar essa língua nos mais
diversos espaços e níveis escolares, se deslocando de práticas que visem
apenas ao conhecimento da língua enquanto sistema, refletindo sobre
como a Libras significa e como interpela, constitui e permite que sujeitos
(se)signifiquem e (re)s(x)istam.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

M. L.: Quando pensamos que a realidade do homem é produzida a partir


das condições materiais, dentro de relações de produção pré-determinadas,
podemos expandir isso para a questão escolar. Numa ótica marxista, em
toda sociedade há classes dominantes e classes dominadas, marcadas por
relações de força, perpetuadas por questões ideológicas, fazendo com os
sujeitos se reconheçam, na evidência, a partir das condições materiais que
a vida em sociedade lhes impôs. A ideologia contribui para a manutenção
da estrutura social do capitalismo ao apagar as relações exploratórias que
estariam no cerne da sociedade. E isso se reproduz na escola ou na sua
ausência! A diferença entre as condições materiais de escolas públicas
e privadas acaba por contribuir de modo diverso para a relação com o
conhecimento, algo que é constitutivo para a formação do sujeito e que
determina o modo como ele se significa e é significado pela sociedade.
Além disso, tomada como símbolo da erudição, não estar na escola define
as relações sociais que serão possíveis para um determinado sujeito.
Tomar a escola em uma perspectiva discursivo-materialista faz com que a
compreendamos como o lugar da institucionalização do conhecimento e
167
da língua, como prática de significação, como espaço de individuação do
sujeito. É fundamental que, a partir dessa posição, possamos contribuir
para uma educação que produza sentidos para a formação (e não para
a capacitação) do alunado, para sua relação com o conhecimento e
que permita a produção de processos de identificação com diferentes
formações discursivas e ideológicas, não estabelecendo posições a priori
que devam ser ocupadas por x ou y sujeito, dadas as classes sociais às quais
pertencem.
***

168
E ntrevista com R ívia Fonseca
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

“Quando falo do capital, falo também das consequências da hegemonia de seu discurso:
consumo, tecnicismo, utilitarismo, aplicacionismo e toda lógica (efeitos de evidência)
fast-food que atravessa as práticas dos sujeitos atuais, inclusive, de modo cínico
e cruel, no ambiente escolar e no sistema educacional como um todo. A meu ver, é
uma luta diária e necessária, porém exaustiva para o professor que se vê afetado pelo
materialismo e, consequentemente, nessa posição precisa rever sua relação com o discurso
institucionalizado do Estado na/para a escola e, ao mesmo tempo, ser um sujeito cujo
modo de existir, de significar, passa pelo modo de ser do capital”.

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Rívia Fonseca: Antes de tudo, preciso registrar minha satisfação em


participar deste projeto. Agradeço imensamente o convite para falar de
questões que me tocam de modo tão visceral, sobretudo, nos tempos
atuais. Digo visceral, pois, desde meu encontro com a Análise do
Discurso, criada por Michel Pêcheux, o que ocorreu há quase trinta anos,
ainda na graduação em Letras, não pude mais deixar de ver, ouvir, ler,
compreender o mundo sem o atravessamento teórico da AD. Ingressei
no curso de Letras, na habilitação português-grego (clássico), em 1993, na
Universidade Federal Fluminense (UFF), com foco nos estudos clássicos,
movida pelo interesse que desenvolvi por Filosofia, História e Língua
antigas ao longo dos últimos anos do segundo grau. Entretanto, foram
169
as aulas de Linguística que logo me cativaram. Desde cedo, me chamava
a atenção a possibilidade de desconstruir paradigmas (posicionamento
decorrente do meu enfrentamento com uma educação religiosa bastante
rigorosa, creio eu). Diferentemente da maior parte de meus colegas, fiquei
fascinada com a descoberta de uma disciplina (Linguística) que questionava
todo entendimento que eu tinha, até então, sobre a linguagem.
Mas, a AD, chegou para mim por meio das brilhantes aulas da profa.
Bethania Mariani na disciplina de Crítica Textual. Bethania utilizava o
dispositivo analítico da AD para compreender o percurso de produção de
sentidos a partir das pistas que o trabalho de edição crítica de uma obra
fornecia. Nessa época, a profa. Bethania — junto com as profas. Cláudia
Roncaratti, da área de Sociolinguística, e Lucia Teixeira, de Semiótica —
fundou um grupo de estudos do qual participei como bolsista de iniciação
científica em AD.
Encantava-me o fato de a AD não se colocar como parte da
ciência Linguística, mas sim como uma disciplina do “entremeio” das
ciências humanas e sociais, que indagava criticamente os estudos da
linguagem e associava a essa reflexão conceitos reterritorializados de
outras ciências, tais como a Psicanálise e a História. No seu aporte, eu
enxergava a oportunidade de estudar todas as matérias de que gostava:
história, filosofia e língua. Assim, mesmo tendo prosseguido no campo
dos estudos clássicos, sempre que possível, eu buscava utilizar o suporte
teórico-metodológico da AD, por meio da compreensão dos conceitos
como dispositivos analíticos. Mas nem todas as vezes consegui concretizar
o que queria.
É estranho — e, ao mesmo tempo, engraçado, para mim, atualmente
(isso a Psicanálise, sem dúvida, explicaria) — o fato de eu não ter realizado
nem o mestrado, nem o doutorado em AD. Ingressei em 2000 no
mestrado em História Social da UFF com o intuito de estudar história
do Cristianismo primitivo, analisando as identidades dos povos grego,
170
romano e hebreu, em confronto entre si, durante o processo de formação
dessa nova religião, a partir de uma perspectiva discursiva. Busquei
compreender essas identidades como efeitos de sentido sobre o que era
ser grego, romano ou hebreu, dentro do discurso religioso, tendo como
corpus de análise os textos do Novo Testamento, com destaque para o livro
dos Atos dos Apóstolos, atribuído a Lucas. Infelizmente, meus orientadores,
apesar de serem pesquisadores marxistas, não se entusiasmaram com
um dispositivo analítico que pressupunha a contribuição da Psicanálise
lacaniana. Ainda assim, propus uma breve análise dos termos, descrevendo
as redes parafrásticas de sentido construídas no texto lucano e também em
passagens das cartas de Paulo.
Posteriormente, passei no processo seletivo para o Doutorado na
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com um projeto para
estudar um texto de Aristóteles, o Perì hermenéias (Tratado sobre a interpretação).
Minha proposta visava entender a relação do filósofo com as questões da
linguagem. Nas leituras que realizei de alguns de seus tratados, me parecia
que faltava uma interpretação que partisse dos estudos da linguagem e não
apenas da filosofia. E, claro, eu pensava em utilizar a AD nessa análise.
Estar na UNICAMP parecia um sonho e eu queria muito ter feito os
cursos com a Profª. Eni Orlandi. Não foi possível, por causa dos horários.
Na época, eu já trabalhava na Universidade Estácio de Sá com uma carga
horária considerável. Por fim, acabei me qualificando em Letras clássicas e
Linguística Textual. Apesar de não trabalhar diretamente com a AD nesse
momento, durante o doutorado estudei muito a teoria, sobretudo entre
2007 e 2008, quando fui professora substituta de Linguística na UFF.
Foram anos muito especiais.
Em 2010, um ano após finalizar o doutorado, iniciei minha carreira
como professora de Língua e Literatura latinas na Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde trabalho atualmente. Durante
todo esse percurso, a AD seguiu comigo e hoje posso estudá-la com meus
171
orientandos de graduação e pós-graduação. Ferreira (2016, p.33) afirma
que “Falar sobre a missão da Análise do Discurso é falar sobre a história
de uma teoria que, ao nos interpelar, nos captura inapelavelmente. (...) Os
que com ela se identificam são movidos pela paixão.” É assim que sinto
desde o primeiro contato. A AD nos mobiliza, nos move, e, quando esse
atravessamento acontece, não há como voltar.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

R.F.: A principal contribuição da AD para o ensino de língua e literatura,


a meu ver, se dá na mudança da visão do sujeito-professor sobre si, se
dá no deslizamento dos sentidos produzidos e já cristalizados sobre essa
posição-sujeito. Em outras palavras, a apropriação da teoria pelo professor
desestabiliza o efeito de evidência construído e constituído historicamente
sobre o que é ser professor. Consequentemente, uma série de outras
evidências sobre os processos educacionais também se desestabilizam,
como a noção de língua especificamente. O efeito de evidência de uma
língua homogênea encontra-se tão fortemente ancorado num processo
parafrástico de produção de sentidos sobre a língua que é necessário um
deslocamento da posição-sujeito professor para que tal sentido deixe de
ser evidente. Esse é um movimento necessário e urgente. A AD propicia
o suporte para o processo de desconstrução desses sentidos, pois já, desde
seu início, se coloca no enfrentamento com a Linguística tradicional,
questionando a ideia de língua como sistema, em oposição à fala. Como
172
essa é uma discussão central para a AD, ao tomar contato com a teoria,
o professor, passando à posição de analista, se confronta com a noção de
língua que ele como sujeito postula.
O artigo de Mariani, “O político, o institucional e o pedagógico:
quanto vale a língua que ensinamos?” (2016), que trata da necessidade
de desconstrução de evidências, é leitura obrigatória nos cursos que
ministro na pós-graduação. Acreditamos (o que não deixa de ser uma
evidência a desconstruir) que, por serem oriundos da área de Letras,
nossos alunos de programas de pós-graduação em estudos da linguagem,
em geral professores de língua materna, compreenderiam certos clichês
como sendo resultado da cristalização de determinados efeitos de sentido,
parafraseados à exaustão, mas não é o que acontece. Isso porque, dentro
do campo dos estudos da linguagem, falamos de posições teóricas distintas.
Nesse sentido, é que Mariani, para abordar a pergunta que intitula o artigo,
afirma:
“...é necessário virar do avesso algumas (aparentes) certezas a fim de não ficarmos repetindo
nem generalidades sobre a linguagem, geralmente compreendida como instrumento de
comunicação e de representação do mundo, nem determinados chavões sobre as línguas
naturais, como ‘francês é uma língua menos valorizada atualmente’, ‘a moda agora é
aprender o espanhol (ou mandarin!)’, ‘quem não sabe inglês não consegue emprego’, ‘saber
uma língua estrangeira permite melhorar de vida’, ‘o ensino de língua portuguesa está
recoberto de preconceitos’, e assim por diante. (MARIANI, 2016, p. 43-44)

A articulação da AD com a HIL corrobora essa urgência de revirar


as certezas ao avesso. Os trabalhos inaugurais de Orlandi e Mariani sobre
a história das ideias linguísticas e sobre a colonização linguística trouxeram
para o centro do debate linguístico as questões concernentes ao processo
de silenciamento histórico das línguas indígenas na constituição da língua
brasileira – debate ainda atual e necessário no momento histórico por
nós vivenciado, em que a colonização na educação tem sido combatida.
Em 2020, tive a oportunidade de entrevistar a Profª. Vanise Medeiros,
do quadro docente da UFF, uma das principais referências quando se
173
trata da pesquisa em HIL no Brasil. Na entrevista, publicada no Dossiê
sobre Análise de Discurso e ensino, no número 17 da Revista Pensares31,
a pesquisadora mostra, ao comentar sobre seu trabalho de análise de
dicionários e glossários, a relevância do campo de estudos da HIL para
uma educação linguística, na qual a historicidade da língua se integra ao
seu ensino.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

R.F.: “O que faz a Análise do discurso em sua visada materialista? Visa compreender
os processos de produção dos sentidos ali colocados, analisa e se pergunta pela interpelação
ideológica, sempre querendo saber se o sentido poderia ser outro” (MARIANI, 2016,
p.47). Como falei anteriormente, a noção de língua como materialidade
do discurso proposta pela AD é basilar e essencial porque permite ao
professor ampliar seu escopo e, a meu ver, o liberta da prisão do ensino
do gênero textual, que tem, por força do discurso institucionalizado das
diretrizes e orientações curriculares, substituído, não raro, o ensino dos
princípios gramaticais do que se denomina norma padrão ou norma culta.
Dito de outra forma, temos observado, ao longo do tempo, a construção
de noções de língua que delimitam esse objeto. Ora a língua é significada
como sistema, ora como conjunto de regras, ora como modelos textuais.
E qual é o problema desses efeitos de sentido do ponto de vista de uma
perspectiva discursivo-materialista? A ausência do caráter histórico da
linguagem. Mostrar que o sentido sempre pode ser outro no processo de

31
N.O.: o dossiê está disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/pen-
saresemrevista/issue/view/2245/showToc. Acesso em 17 abril de 2023.
174
interpretação é evidenciar como os processos ideológicos atravessam o
processo de produção dos discursos.
A práxis pedagógica, no que tange à leitura e à escrita, no âmbito
do ensino de língua portuguesa, se beneficia profundamente com a visada
materialista. Ela possibilita que o professor as trabalhe na articulação entre
a ideologia e a história na sala de aula.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

R.F.: No Brasil, essas movências entre a AD e outras áreas têm produzido


trabalhos muito interessantes, especialmente, porque permitem que as
pesquisas, ainda que ancoradas na AD, em termos de suporte teórico-
metodológico, enfatizem também a contribuição dessas outras áreas. Por
exemplo, há trabalhos de AD em que a Psicanálise se torna sua principal
interlocutora. Vemos esse movimento nas reflexões de Bethania Mariani, de
Belmira Magalhães, de Lauro Baldini, dentre outros. Como pesquisadora,
afetada por minha relação com os estudos clássicos, gosto de trabalhar com
a perspectiva histórica em destaque, investigar as condições de produção
de determinados discursos, com a finalidade de entender como e por que
um texto faz sentido num momento histórico determinado.
Considero que esse batimento da AD com a História, tanto a
disciplina, quanto a conjuntura, é fundamental. Daí, meu interesse pela
noção de historicidade trazida por Pêcheux a partir da releitura Althusseriana
do materialismo histórico Marxista. Aliás, recentemente, iniciei uma
leitura que tem sido muito significativa para pensar o direcionamento das
175
minhas próprias reflexões no terreno do materialismo. Coincidentemente,
é um livro de entrevistas, conversas com pesquisadores que conheceram,
conviveram e estudaram com Althusser. A obra se intitula Por Althusser,
são 20 entrevistas realizadas com filósofos, historiadores, antropólogos
etc., que de alguma forma se confrontaram com a filosofia Althusseriana
e com os conceitos que ele construiu. Nomes como Balibar, Badiou,
Milner, Rancière não apenas relatam suas experiências de convívio, mas
discutem os posicionamentos do filósofo. Chamou minha atenção o fato
de a leitura me conduzir a pensar nas próprias condições de produção da
Análise do Discurso, sobretudo com relação às definições de ideologia e de
Aparelhos Ideológicos de Estado, que, da posição da qual falo hoje como
pesquisadora da AD, são muito caras ao desenvolvimento das discussões
acerca de uma educação discursiva, não apenas linguística, mas também
histórica, filosófica, literária.
Assim, é nesse sentido que vislumbro a possibilidade de produzir
outros caminhos para uma educação discursiva. Esses encontros e
desencontros precisam acontecer no espaço acadêmico, nos quais os
educadores são formados, por isso a relevância da realização de grupos de
leitura e estudos dos textos fundadores da AD e o fomento ao debate de
suas bases com pesquisadores de diferentes áreas. É interessante pensar
que, ao mesmo tempo em que a AD, em virtude de seus recortes e dos
processos de reterritorialização de conceitos, muitas vezes, pareça não
conversar com outras disciplinas, em especial no campo dos estudos da
linguagem, ela se coloca como uma teoria que se propõe a todo tempo
discutir, debater, questionar epistemologicamente a si mesma e outros
campos.
Segundo Yves Duroux (2022), em sua entrevista para a obra citada
anteriormente, Althusser preocupava-se mais em formular questões do
que em respondê-las. Pêcheux, por seu turno, ao formular as bases da
AD, articulou diferentes fundamentos teóricos, delineando o caráter
176
transdisciplinar da disciplina, cujo caminho metodológico percorrido pelo
analista se estrutura muito mais pelas perguntas do que pelas respostas.
***

Você vem atuando no ProfLetras – Mestrado profissional da


UFRRJ – na linha de pesquisa “Teorias de Linguagem e Ensino”
e orientando a elaboração de cadernos de atividades a partir da
perspectiva discursiva. Você poderia falar um pouco dessa sua
experiência como orientadora de trabalhos acadêmicos voltados para
a prática em sala de aula, comentando as dificuldades, benefícios e
implicações de uma tomada de posição materialista na produção do
gesto de autoria de materiais didáticos, bem como a relação com o
discurso pedagógico oficial?

R.F.: Tem sido uma experiência extremamente gratificante orientar


trabalhos de mestrado, propostas e cadernos didáticos, ancorados na AD
materialista. No ProfLetras da UFRRJ, onde atuo profissionalmente, não há
outros pesquisadores do discurso na perspectiva materialista. Atualmente
tanto na graduação, quanto na pós-graduação, estou sozinha nessa
posição. Por isso demorou um certo tempo até que eu conseguisse inserir
a AD como um aparato teórico-metodológico possível na formação dos
professores do programa. Nesse sentido, o apoio da amiga, Profª. Andrea
Rodrigues, da UERJ, foi essencial. Ter alguém com quem compartilhar
os questionamentos, dividir leituras, pensar caminhos, formar as bancas
de avaliação dos primeiros trabalhos defendidos com a AD, sem dúvida,
contribuiu significativamente para que a disciplina se fortalecesse dentro
do programa.
A tomada de posição materialista na produção do gesto de autoria
dos materiais se concretiza no nosso principal objeto de estudo: o discurso
pedagógico institucionalizado. Há pouco tempo, no exame de qualificação
de uma orientanda, tive a oportunidade de articular esse ponto de reflexão
177
na conversa com outra colega, a Profª. Thaís de Araujo da Costa (UERJ).
Nas dissertações produzidas pelo ProfLetras, nem sempre fica claro, para
o mestrando que trabalha a AD em sua proposta, qual é o discurso que
está sendo analisado. Ao questionar a orientanda a respeito do discurso
que ela analisava, pudemos compreender a dinâmica da construção desses
materiais: estar no programa já é, de certa forma, para o professor que
como sujeito-autor parte de um lugar teórico demarcado como disciplina
do entremeio, numa visada materialista, se colocar como analista do
discurso pedagógico oficial (ou institucional).
Benefícios e dificuldades decorrem de tal posicionamento numa
relação de tensão. A principal dificuldade na formulação dos materiais é,
a meu ver, fazer a transposição didática da teoria para os enunciados das
atividades voltadas para os alunos. Mobilizar e operacionalizar conceitos
de língua, discurso, sujeito, leitura, de modo que estudantes do ensino
fundamental possam desenvolver uma visão crítica do processo de
produção de sentidos é um procedimento que ainda carece de refinamento.
Pensar o dispositivo analítico, tal como temos discutido no nosso grupo
de estudos32 nas reuniões mais recentes, me parece um caminho profícuo.
Por outro lado, qual é o principal benefício dessa abordagem?
Desestabilizar os sentidos cristalizados, desconstruir o efeito de verdade,
desestruturar o já-dito nas bases do discurso pedagógico oficial. Para
tanto, a noção de arquivo pedagógico desenvolvida por Indursky (2019)
tem sido de grande valia. O arquivo pedagógico é um conjunto de textos,
com temática específica, de caráter documental, construído pelo professor,
podendo ter a participação dos alunos nessa seleção, produzida para
simular o funcionamento do interdiscurso e da memória discursiva. Esse
conceito mobilizado na prática pedagógica tem tido um grande impacto
no ensino de leitura entendida como um processo de interpretação. Nos

32
Refiro-me ao NELID – Núcleo de Estudos em Língua e Discurso, uma parceria entre
pesquisadoras e pesquisadores da UERJ, UFRRJ e UFF.
178
últimos trabalhos que orientei, o arquivo pedagógico foi parte essencial do
gesto de autoria.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

R.F.: Acredito que o grande desafio é resistir ao forte processo de


alienação decorrente da ideologia do capital na sociedade contemporânea.
Quando falo do capital, falo também das consequências da hegemonia
de seu discurso: consumo, tecnicismo, utilitarismo, aplicacionismo e toda
lógica (efeitos de evidência) fast-food que atravessa as práticas dos sujeitos
atuais, inclusive, de modo cínico e cruel, no ambiente escolar e no sistema
educacional como um todo. A meu ver, é uma luta diária e necessária,
porém exaustiva para o professor que se vê afetado pelo materialismo e,
consequentemente, nessa posição precisa rever sua relação com o discurso
institucionalizado do Estado na/para a escola e, ao mesmo tempo, ser
um sujeito cujo modo de existir, de significar, passa pelo modo de ser do
capital.
O professor como outros trabalhadores vende sua força de trabalho
e enfrenta os “custos” dessa existência. Desse modo, muitas vezes, a sua
práxis pedagógica é posta à prova. Como dar lugar à falha e ao equívoco,
como constitutivos da linguagem, se o caráter autoritário do discurso
institucional promove justamente o apagamento, a homogeneização, a
manutenção das bolhas de felicidade dos comerciais de margarina? Esse
enfrentamento, para mim, é o seu grande desafio, pois, como afirmou
Pêcheux, será necessário “ousar se revoltar” ([1978] 2014, p. 281), de tal
modo que a resistência face à dominação (no que concerne ao efeito da
Ideologia sobre os sujeitos) seja, sim, sua tomada de posição. Não vai
bastar ao professor conhecer a teoria, ele precisará ser atravessado por ela.
179
Como é possível, então, agir? Em um texto que escrevi em 2020
sobre o ensino de língua portuguesa em tempos de crise, com foco na
questão da (im)possibilidade de inovação em sala de aula, formulei algumas
ideias que retomo aqui:
Criar redes de colaboração entre docentes; evitar a competição e fortalecer
a colaboração; auxiliar o professor no reconhecimento da historicidade
da crise na educação; mostrar ao professor a relevância de, como sujeito,
compreender que ele fala de um lugar determinado e que é preciso ter
clareza desse lugar; desautomatizar os efeitos de evidência... Penso que,
nesse sentido, poderemos trilhar novos caminhos no ensino de língua (e
de outras disciplinas). Não há receitas, o que há são experiências e relações.
Como afirmou Pêcheux (1990, p.17) “não há ritual sem falha, desmaio ou
rachadura”. É preciso ousar, é possível resistir.

***
Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse
projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.

R.F.: Na verdade, gostaria de reiterar meu agradecimento pelo convite para


participar deste projeto. As questões postuladas me fizeram refletir sobre o
meu lugar como professora e analista do discurso e me propiciaram pensar
nas inter-relações que a AD pode estabelecer com a prática docente. Para
mim, um gesto de interpretação fundamental.
O momento político que experimentamos hoje no Brasil exige de
nós, educadores, uma tomada de posição. Formações discursivas que
sustentam ideias conservadoras, discriminatórias e elitistas, que decorrem
do incremento histórico do projeto neoliberal, cujas bases se assentam
nos modos de produção capitalista, devem ser questionadas, criticadas,
confrontadas. Nesse sentido, a proposta da AD materialista, para a qual
sentido é direção e discurso é efeito de sentidos entre interlocutores, se
180
torna um território possível para estabelecermos o nosso lugar, a nossa
posição.
***

181
182
E ntrevista com S olange Gallo
Universidade do Sul de Santa Catarina

“Encontro professores de lugares e contextos muito diferentes, o tempo todo. Mas posso
dizer que são aqueles que não aguentam a prática da repetição e do autoritarismo
que acabam procurando uma outra via de realização do seu trabalho, aqueles que
chegam a um limite e então passam a se contra-identificarem com as formas autoritárias
do discurso pedagógico. Encontram-se, então, como maus sujeitos, como diz Pêcheux,
desse discurso que propõe a adoção de livros didáticos, com fragmentos de obras de
autores variados, muitas vezes sem a devida referência, tornando quase impossível uma
interpretação consequente dos textos, que articule o que lá está dito, com as condições de
produção desses dizeres”

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Solange Gallo: Como muitos de nós, um dia tirei um diploma e fui


autorizada a entrar em uma sala de aula como professora de Língua
Portuguesa. Foi então que meus problemas começaram. Era uma sala de
5ª série, Escola do Sesi, em Campinas. E diante daquelas crianças lindas,
nos anos 80 do século passado, eu percebi que não sabia ensinar a escrever
um texto... Poderia corrigir o texto, poderia dizer sobre a forma do texto,
mas não poderia, e não pude naquele momento, ensinar o movimento que
eles deveriam fazer para realizar a tarefa. Então, comecei a gravar tudo o
que eles tinham a dizer sobre o assunto da “redação”, em um debate que
fizemos na sala. Depois, como eles bloquearam diante da folha em branco,
183
a versão escrita acabou ficando bem frágil, com quase nada registrado,
quando comparada ao que havia sido dito. Peguei essas duas versões e
fui para a Unicamp. Mostrei para a Eni Orlandi e perguntei: “Por quê?”
E ela me disse: “É uma boa pergunta. Venha fazer o mestrado, que eu
te oriento. Vamos ver como responder...” O resultado daquele mestrado
vocês conhecem, está no meu livro Discurso da Escrita e Ensino, publicado
pela editora da Unicamp em 1994. Precisei compreender toda a história da
escrita e fazer a difícil distinção entre grafia e escrita, entendendo a escrita
como um efeito de sentido da grafia, quando essa é associada a instâncias
de poder. Portanto, pude propor a noção que chamei de Discursos de escrita.
Dessa compreensão derivou outra: a Escola trabalha com a grafia, ensina a
grafia, mas não ensina a escrita, simplesmente porque os sujeitos, professor
e aluno, não estão inscritos em nenhum discurso de escrita. Por isso,
também, é que a prática da paráfrase toma lugar da produção grafada, e
as formas de interlocução são autoritárias. Porque o mais importante, que
seria uma tomada de posição em um discurso de escrita, não se pratica na
Escola. E a questão da posição-sujeito é tão importante que hoje podemos
nos inscrever em um discurso de escrita, produzindo textos orais, ou vice-
versa, porque a materialidade histórica sobredetermina a materialidade
linguística. Está aí um bom exemplo de como a historicidade e a língua
estão imbricadas. Mas isso só conseguimos ver a partir da perspectiva do
discurso, porque não se trata da produção fisiológica da língua, mas da sua
produção discursiva. Esse conhecimento precisa chegar aos professores
de Língua Portuguesa.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-

184
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

S. G.: Exatamente sobre isso que eu vinha falando a vocês. Com esse
meu trabalho apresentado em Discurso da Escrita e Ensino, pude mostrar
que o mais importante para a produção de texto é criar condições, na
Escola, para a tomada de posição do aluno, em um discurso de escrita.
Trata-se de uma questão de autoria. Os professores podem fazer isso
de muitas maneiras. Na época, minha experiência foi com o discurso
literário, como eu descrevo no livro, mas já acompanhei diferentes
iniciativas de professores que trabalharam com outras discursividades,
como a jornalística, a artística, dependendo daquilo que é mais acessível
materialmente. À medida que os alunos vão entrando no funcionamento
dessa discursividade, através da aproximação dos textos disponíveis, eles
vão, ao mesmo tempo, se preparando para a assunção de uma posição
nesse discurso, o que deverá ser previsto nessa prática. Isso permite dizer
que a autoria não é uma condição isolada, a autoria é um encontro entre
uma produção do sujeito, na função-autor, relacionada a um efeito de
autoria de um discurso de escrita. Só assim a gente consegue ir além da
grafia, na prática de produção de texto.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

S. G.: Nossa contribuição está justamente em poder mostrar que a


materialidade histórica está imbricada na materialidade da língua, como

185
é o caso da escrita. A língua não acontece em abstrato, ela se apoia
em práticas, que são materiais, e em tecnologias. Assim, tratar a língua
abstratamente, como uma estrutura, aos moldes saussurianos, ou mesmo
como um instrumento de comunicação, como vemos em Benveniste,
é perder a dimensão mais determinante da língua, que é sua dimensão
material. Quando falamos da dimensão material da língua, estamos falando
de processos sociais, históricos e ideológicos que se materializam na
língua, mas não só na língua, embora a língua seja a principal ancoragem
desses processos. É inegável os passos gigantes que deram pesquisadores
como Saussure, ou Benveniste, cada um no seu gesto de interpretação
da linguagem, antes sem objetos tão precisos. No entanto, os estudos
discursivos, sem negar esses objetos: a língua e a subjetividade na língua,
propõem uma teoria não subjetiva da subjetividade, o que significa trazer
para as análises outras dimensões não consideradas até então, que se
marcam no que chamamos processos discursivos e que são determinantes na
constituição dos sentidos e dos sujeitos.

Por ser a Análise de Discurso, uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

S.G.: Vocês falam muito bem quando falam em (des)encontros, que


são ao mesmo tempo encontros e desencontros. De fato, a relação
que a análise do discurso se propõe a estabelecer com outras áreas do
conhecimento é sempre tensa, embora sempre necessária. Por exemplo,
a relação com a história é uma relação necessária, por tudo o que falamos
até aqui, mas ao mesmo tempo é uma relação tensa, na medida em que
provoca deslocamentos, rupturas e contradições. Por exemplo, dizer que
186
a escrita é e sempre foi privilégio de uma determinada classe produz uma
contradição em relação a toda a história da democratização do ensino
e da alfabetização para todos. A história interpreta essas práticas, como
práticas de inclusão, enquanto pudemos mostrar que ensinar grafar não
significa incluir os sujeitos em discursos de escrita. Também é tensa a
relação da Análise do Discurso com a área da Educação, por exemplo,
na medida em que deixa visível a contradição de práticas educativas
(que se dizem) emancipatórias, mas que se sustentam na garantia de
saberes já estabilizados e legitimados fora do âmbito da educação. E
isso podemos identificar a partir de análises do discurso pedagógico,
por exemplo, como fez Orlandi, já no seu primeiro livro na área, A
linguagem e seu funcionamento, mostrando o caráter predominantemente
autoritário do discurso pedagógico, justamente por essas práticas de não
reversibilidade. Assim, colocando o que é dito, mostrado, manifestado
em alguma forma material, em relação com aquilo que não se diz,
acaba-se produzindo um conhecimento novo que pode desacomodar
e produzir desencontros, como dizem vocês, mas é justamente esse o
lugar do trabalho discursivo: os entremeios. Há alguns que apreciam
os resultados da Análise do Discurso, há muitos que não. Como diz
Pêcheux, é preciso suportar o que venha a ser pensado.
***

Gostaríamos de tocar em um ponto que se coloca muito importante:


as políticas públicas de educação. E, quando falamos em políticas
públicas, há algo que está na ordem do dia: a constituição de uma
Base Nacional Comum Curricular em articulação à Reforma do
Ensino Médio. Em Gallo (2019), você afirma que

Falar sobre educação, neste momento, é uma tarefa difícil. Isso porque
sempre abordei essa temática pela via da noção de autoria, que é meu foco
nesta discussão. Porém, hoje estamos todos afetados por um sentimento

187
muito forte de despossessão, que vem no sentido contrário ao da autonomia,
ao da autoria. (GALLO, 2019, p. 230)

Com isso, no texto citado, você traz uma série de análises sobre
a legislação responsável por alterar a formação básica brasileira.
Tanto a instituição da BNCC quanto a Reforma do Ensino Médio
também afetam, de algum modo, a formação de professores. Nesse
sentido, parece ser possível indicar que os dois movimentos citados
funcionam, pois, naquilo que nós, analistas de discurso, recusamos
em nosso trabalho, a saber: a criação de uma unidade na diversidade,
de modo que silencie outras e tantas diferentes formas de Educação
Linguística. Tendo isso em vista, há algo que permeia sua produção
acadêmica e diz respeito ao lugar de autoria – seja a desse sujeito-
aluno, seja a do sujeito-professor. Frente à imposição cada vez mais
forte de adequação dos currículos escolares à BNCC, é possível
mantermos – alunos e professores – a autoria nas práticas escolares
e pedagógicas? Você poderia falar um pouco sobre formas de se dar
consequência a esse trabalho em sala de aula?

S.G.: Como eu disse nesse artigo, o trabalho que leva à autoria dos alunos
(e dos professores) depende da concepção de linguagem que se trabalha na
Escola. Quando se tem uma concepção de linguagem como instrumento
de comunicação, não se pode chegar à autoria, como resultado do
processo. Isso porque a autoria, no sentido que queremos apontar como
prática pedagógica, é resultante da relação do sujeito, na função-autor,
com o efeito-autor de um discurso de escrita (que já tem no seu bojo
o efeito de autoria). Quando se tem a concepção de linguagem como
instrumento de comunicação, se espera que a autoria seja produzida pela
graça de um sujeito individualmente criativo e autônomo, independente
da sua posição-sujeito, ou seja, um sujeito que se ergue aos ares puxando-
se pelos próprios cabelos (PÊCHEUX, 1975). Portanto, não há nesse caso

188
um trabalho sistemático que garanta a autoria, apenas a crença em um ato
criativo de um indivíduo, fruto de uma posição idealista. Por outro lado,
quando se tem a concepção de autoria como resultante de um trabalho,
começa-se a poder propor práticas coletivas adequadas, em uma perspectiva
materialista. Essas práticas são coordenadas por professores e não podem
se sustentar em exercícios parafrásticos, dentro ou fora da Escola. Elas
dependem da assunção de posições-sujeito em discursos de escrita. Por
exemplo, quando se lê na Portaria n. 1.432, de 28 de dezembro de 2018,
que “estabelece os referenciais para a elaboração dos itinerários formativos, conforme
preveem as Diretrizes Nacionais do Ensino Médio”, que os alunos serão levados
a “Identificar e explicar questões socioculturais e ambientais passíveis de mediação e
intervenção por meio de práticas de linguagem e propor e testar estratégias de mediação
e intervenção sociocultural e ambiental, selecionando adequadamente elementos das
diferentes linguagens”, e ainda “desenvolver projetos pessoais ou produtivos, utilizando
as práticas de linguagens socialmente relevantes, em diferentes campos de atuação, para
formular propostas concretas, articuladas com o projeto de vida”, entendemos que
por essa via, sim, é possível se chegar à autoria. Isso porque a concepção
de linguagem é outra, a linguagem não é mais instrumento, mas prática (...
por meio de práticas de linguagem...), e é heterogênea (...elementos das diferentes
linguagens...), mas, principalmente, na medida em que há uma convocação
a uma tomada de posição do sujeito-aluno em um discurso outro, que
não exclusivamente o discurso pedagógico (desenvolver projetos pessoais ou
produtivos, utilizando as práticas de linguagens socialmente relevantes, em diferentes
campos de atuação, para formular propostas concretas, articuladas com o projeto de
vida). Estranhamos, no entanto, o enunciado: “utilizando as práticas
de linguagens...”. Entendemos a presença equivocada desse enunciado
(utilizando...) como resquício de uma concepção instrumentalista da
linguagem, mas nos prendemos ao restante da proposta, que prevê a
formulação de propostas concretas, que entendemos como propostas que

189
exigem uma tomada de posição em discursos legitimados. Algo que pode
produzir autoria. Assim, pode-se garantir, também, a diversidade.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

S.G.: Pois é, temos falado, aqui, da tomada de posição do aluno, mas pouco
falamos dos professores. Tenho encontrado muitos professores na minha
jornada. Encontro professores de lugares e contextos muito diferentes, o
tempo todo. Mas posso dizer que são aqueles que não aguentam a prática
da repetição e do autoritarismo que acabam procurando uma outra via
de realização do seu trabalho, aqueles que chegam a um limite e então
passam a se contra-identificarem com as formas autoritárias do discurso
pedagógico. Encontram-se, então, como maus sujeitos, como diz Pêcheux,
desse discurso que propõe a adoção de livros didáticos, com fragmentos de
obras de autores variados, muitas vezes sem a devida referência, tornando
quase impossível uma interpretação consequente dos textos, que articule
o que lá está dito com as condições de produção desses dizeres; que, além
disso, propõe avaliações prontas, preparadas em outros âmbitos, avaliações
que tem como pressuposto um ilusório grupo homogêneo de alunos e
professores; um discurso que preconiza práticas de desmobilização da
capacidade intelectual e afetiva, porque as formas autoritárias não contam
com a tomada de posição dos alunos, mas tampouco dos professores,
que também são reprodutores de fórmulas. Portanto, é, no movimento
de contra-identificação com essa posição-sujeito dominante do discurso
pedagógico, que as mudanças acontecem. Sempre haverá alguém a quem
recorrer para compartilhar essa luta. Sei que nem todas terão a sorte que

190
eu tive de encontrar Eni Orlandi no caminho, mas há sempre uma saída.
O desejo é que fala.
***

Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse


projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.

S.G.: Gostaria de falar a vocês de questões mais recentes sobre as quais


tenho refletido. Questões relacionadas à materialidade digital. Como
sabemos, as práticas pedagógicas estão, pouco a pouco, acontecendo nessa
materialidade. Temos tratado esses espaços de interlocução como espaços
enunciativos informatizados, como é o caso do Google Classroom, entre
outros. A entrada da prática educacional, nesses espaços, já era um plano
desde o início da última década, porém, a pandemia acelerou o processo
de maneira violenta, e em muitos contextos, sem as mínimas condições
materiais. Tenho orientado alguns trabalhos de dissertações e teses que
desenvolvem reflexões a respeito desse problema. Posso citar a tese de
Debbie Noble, defendida em 2021, intitulada: Ensino médio na pandemia: uma
prática autoral docente para além do discurso sobre inovação na educação, na qual a
autora discute leis e resoluções, como a LDB, lei nº13.415/2017, resolução
n.3/2018 e orientações curriculares da BNCC, procurando compreender
os efeitos de sentido de “inovação”, em comparação aos efeitos produzidos
na interpretação dos próprios professores, sobre o mesmo enunciado –
inovação. Em suas conclusões, a autora mostra que a materialidade digital,
na qual se normatizam os materiais pedagógicos que são disponibilizados,
então, em uma nova roupagem, por si só não muda o que é determinante
no discurso pedagógico, o seu caráter autoritário, mesmo que sob o manto
da inovação. Ao contrário, por sua forma de disseminação em massa, o
191
que é proeminente é a homogeneização. A autora mostra que, mais uma
vez, são gestos de contra-identificação dos sujeitos professores que têm
furado a bolha da repetição, em pequenos gestos de resistência “seja pelo
desentendimento em relação às nomenclaturas e às orientações do Estado,
seja pela não negociação dos seus saberes com aqueles que circulam no
arquivo-jurídico pedagógico, ou, ainda, pela recusa do google classroom como
espaço escolar”. (NOBLE, 2021. p. 164)
Por outro lado, sabemos que há uma grande complexidade nessa
nova forma discursiva, que não é nem de escrita, nem de oralidade,
mas daquilo que denomino, escritoralidade, por constituir-se a partir de
novas determinações e relações de poder. Assim, poderíamos pensar
que, na medida em que essa forma discursiva se materializa em espaços
enunciativos informatizados, nos quais há uma grande facilidade de
publicação de textos, então, os sujeitos-alunos e professores, antes
impedidos de fazerem circular suas produções, por não se inscreverem em
discursos de escrita, agora teriam encontrado uma via de superação dessa
forma de exclusão produzida pelo autoritarismo do discurso pedagógico.
No entanto, continuamos em uma situação parodoxal, ou seja, essa
“autoria” acontece em espaços que nos convertem em mercadoria, ou
seja, produzimos lucros a essas empresas, proprietárias das plataformas
informatizadas, a cada click que damos, enquanto sujeitos de um discurso
de escritoralidade, da mesma forma que conferíamos poder aos discursos
de escrita, sempre que neles nos inscrevíamos.
Além disso, é preciso considerar que, na materialidade técnica digital,
os discursos não são simplesmente “representados”, ou seja, na mesma
medida em que a escrita não representa a oralidade, a escritoralidade não
representa nem a oralidade, nem a escrita. Pequeno, em sua obra de 2020,
Tecnologia e Esquecimento, nos diz que
nos contextos atuais, principalmente, é necessário ler a organização dos
dizeres e dos textos para entrever a ordem dos discursos e dos arquivos.

192
Se, (...) propusemos que a materialidade da escrita não é a mesma que a
materialidade da língua, então precisamos levar esse reconhecimento até o
fim. Fazer isso é admitir que a discursividade do enunciado é determinada
por mais do que a materialidade da história e da língua. Também faz parte do
jogo a materialidade de suas formas concretas de circulação. O apagamento
regular do papel dessa materialidade técnica constitui, na nossa leitura, algo
que não pode ser descrito como menos do que uma forma de esquecimento
discreta e definível para a análise de discurso. Um esquecimento da espessura
técnica de um enunciado. É desse esquecimento que nos coube, aqui, falar.
(PEQUENO, 2020, p. 279-280)

Portanto, há novos desafios a serem enfrentados, desta vez relativos


a essas novas modalidades de ensino – remoto, híbrido, síncrono,
assíncrono etc., pois sabemos que essa nova camada material, técnica,
que se coloca, hoje, na determinação dos arquivos pedagógicos (mas não
somente neles) produz, também ela, um efeito de transparência e uma
nova forma de esquecimento sobre o que precisamos refletir a partir
do dispositivo da análise de discurso e, mais uma vez, com a coragem
preconizada por Pêcheux, suportando o que venha a ser pensado.
Os desafios são muitos, mas a educação linguística não deveria ter
um horizonte menor do que esse, que podemos vislumbrar a partir da
perspectiva discursiva materialista.
***

193
194
E ntrevista com V anise M edeiros
Universidade Federal Fluminense

“ [...] eu acho que a prática pedagógica está presente em tudo. Vou só citar um caso,
aqui, que é o caso da correção. Há uma memória que coloca a caneta vermelha na mão
do professor e a caneta azul ou o lápis na mão do aluno. Essa é uma memória que
já inscreve uma censura, porque o vermelho é aquela tarja mais forte que acaba com
aquela escrita em lápis ou caneta de outra cor. E é legal quando você inverte isso: eu,
por exemplo, não uso caneta vermelha e falo o porquê. Eu uso lápis; a caneta é do aluno
e o lápis é meu. Porque o mais importante é a caneta, é o que ele fez, o lápis ele pode
apagar. Ou seja, isso é pensar a prática.”

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Vanise Medeiros: Essa pergunta é maravilhosa e já diz muito sobre


a relação da pesquisa e de quem faz ciência, de quem se preocupa em
estar na ciência. Ela toca em algo, o percurso, que não é linear mesmo,
essa relação não é direta ou linear, não é? Eu diria que é só depois que
a trajetória vai fazendo sentido, e embora a gente pense que é no antes
que faz sentido, é no depois. Uma observação: cada vez que eu faço um
projeto, sempre revejo, de alguma maneira, o que eu fiz e é nesse momento
que eu percebo que tem certas continuidades e certas inquietações que
permanecem, certos desejos que ainda estão ali e que insistem em seguir
nos cutucando para que a gente pense, reflita e produza. E isso vem só
no depois. Em uma entrevista que fiz em 2019, para a Pensares em Revista,
195
da Faculdade de Formação de Professores da UERJ, eu falei sobre como
se deu meu encontro com a Análise do Discurso na minha graduação33.
E eu fiquei pensando: meu encontro com a Análise do Discurso se deu
na graduação, mas meu encontro com História das Ideias Linguísticas se
deu já depois do doutorado. Não foi nem na minha pós-graduação, mas
na minha entrada na UERJ e com as questões que ela me colocou. Lá,
eu era professora de Língua Portuguesa e ministrava disciplinas como
dialetologia, entre outras, e, indo buscar materiais, pensava: “não, espera,
não quero desse jeito”. Eu me lembro que, antes disso, quando eu cheguei
do meu sanduíche na França, eu descobri os livros da Eni Orlandi, os dois
que foram publicados praticamente ao mesmo tempo, intitulados História
das Ideias Linguísticas e Língua e Conhecimento Linguístico, e quando eu
dei de cara com esses livros, eu pensei: “Gente, isso é tudo que eu quero
fazer na vida”. Ali, ficou muito claro por onde eu queria seguir, e eu nunca
mais deixei esse caminho. Foram os livros da Eni, aquela História das
Ideias Linguísticas já constituída pela Análise do Discurso. Teorias me
fascinam e eu trabalho com essas duas. Lá atrás, por exemplo, o que me
fascinava e continua me fascinando – volta e meia, quando eu posso, eu
volto às leituras – é a Jacqueline Authier-Revuz e o que ela traz sobre
sujeito. Há algo em Authier-Revuz, assim como na Análise do Discurso,
que me instiga e diz respeito ao como se trata o sujeito nessas teorias. É
o modo como se dá conta desse não sabido para além do não dito. Isso
sempre me fascinou. E também, lá atrás, fazendo disciplina do Eduardo
Guimarães — outra teoria34 que me alimentava a alma —, eu pude assistir
à palestra da Cláudia Lemos35 e eu fiquei encantada! Eu acho que é sempre

33
N.O: A entrevista está disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/
pensaresemrevista/article/view/47303.
34
N.O.: A entrevistada se refere aqui à Semântica Enunciativa – disciplina, dentre outras,
ministrada pelo prof. Eduardo Guimarães (Unicamp).
35
N.O.: É professora da Unicamp e trabalha com Aquisição de Linguagem, tratada de um
ponto de vista que inclui a Psicanálise.
196
isso: eu vou observando o que há de comum entre essas teorias. E o que
há de comum? É o modo como pensam a língua, o modo como pensam
a língua na relação com o sujeito, e isso é para mim fascinante. Acho que
é isso. Eu não falei de literatura, que é outra paixão, mas porque o sujeito
também está na literatura de diferentes maneiras. A literatura também
traz, pulsantemente, a questão do sujeito. E, nela, eu vejo muitas vezes,
aquilo que a teoria está buscando, a literatura está produzindo, dizendo
e fazendo. Apenas para se ter uma dimensão disso, em meu grupo de
estudos com (ex-)orientandos tem sido muito produtivo quando a gente
lê um conto e vai discutir conceitos da Análise de Discurso e da História
das Ideias Linguísticas.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

V. M.: A gente pode apontar algumas contribuições. De imediato: a Análise


do Discurso avisa que não há neutralidade. Isso é uma grande contribuição
porque você tende a pensar que uma aula de morfologia é neutra, que uma
aula de sintaxe é neutra, que uma aula de fonologia é neutra. Você tende
a pensar nessas partes disciplinares, que foram separadas nas gramáticas,
como sendo uma descrição de língua. E muitos ensinam assim. E vejam
só: foi no trabalho com o aluno, em ter de preparar uma aula, que eu
me vi obrigada a pensar em como fazer. A noção de ideologia, na Análise
do Discurso, me iluminou e me ilumina. Pensar nessa ideologia como
evidência, pensar em posição-sujeito, naquilo que cala, naquilo que faz
197
dizer, naquilo que impede, naquilo que é uma injunção ao dito… Você
começa a ver de outra maneira, você fica fascinado pelos silêncios, não
é? E eu digo isso pensando em uma aula de sintaxe ou de fonologia, por
exemplo. Tem algo que eu já falei várias vezes: quando eu fui dar aula de
sintaxe, na UERJ, eu levava as posições dos gramáticos e mostrava várias
delas. E os alunos perguntavam “Mas qual é a certa, professora?” e eu
respondia “O que você acha?”. Isso é um modo de levar o outro a pensar,
mas também a perceber como se faz e como se produz conhecimento a
partir da memória de certas posições. Você não precisa falar de conceito,
por exemplo. E essa prática não está somente na aula de sintaxe, mas em
qualquer aula. Agora, na UFF, sou professora de Linguística e quando
estou dando aula de Linguística I, onde eu falo de Saussure, de Sapir,
dentre outros, abro as aulas mostrando que uma teoria é uma organização
que possibilita ver certas coisas, mas ela não é completa. Ela tem uma
ilusão de uma completude, mas ela não é… E, a partir disso, a teoria tem
condições de produção. A gente não fala de condições de produção, mas
quando eles percebem as condições de produção para a emergência da
linguística tal como se colocou a partir do livro do Saussure, aí é outra
história. Isso eu tenho por conta da Análise do Discurso, eu não tenho a
menor dúvida.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

V. M.: Para além do que eu falei, eu acho que a prática pedagógica está
presente em tudo. Vou só citar um caso, aqui, que é o caso da correção. Há
uma memória que coloca a caneta vermelha na mão do professor e a caneta
198
azul ou o lápis na mão do aluno. Essa é uma memória que já inscreve uma
censura, porque o vermelho é aquela tarja mais forte que acaba com aquela
escrita em lápis ou caneta de outra cor. E é legal quando você inverte isso:
eu, por exemplo, não uso caneta vermelha e falo o porquê. Eu uso lápis;
a caneta é do aluno e o lápis é meu. Porque o mais importante é a caneta,
é o que ele fez, o lápis ele pode apagar. Ou seja, isso é pensar a prática. É
pensá-la nos comentários que você faz, na cor da caneta que você usa. É
no detalhe que mora o diabo, como diz o provérbio, a gente sabe disso.
Isso não significa que a gente acerte sempre, mas isso significa que a gente
lida com a desmistificação da ilusão de que eu, como professora, sou dona
de todo saber. E lida com o fato de que você não vai desautorizar o que
o aluno escreveu, mas vai propor algo que possa ser pensado e que possa
ir adiante. Eu acho que a curiosidade sustenta o conhecimento. E se ela
não existe acerca dos saberes do outro e dos outros saberes, ela é ilusória,
pequena e resvala para o autoritarismo, para coisas muito ruins. Então, eu
acho que a práxis está nesse respeitar esse lugar do saber do outro. Não é
com a escuta que o Saussure trabalha? Então vamos lá…
Sobre a materialidade da língua: a gente sabe que a língua é a
materialidade do discurso, não é? Então, quando você entra com a caneta
naquele dizer, você está entrando com a caneta no discurso, você está
censurando o discurso do outro com a caneta vermelha. E é difícil esse
lugar do professor, porque ele precisa ajustar certas coisas, mas ele não
pode impedir outras. Mas ali há uma discursividade, que muitas vezes opaca
demais o professor e isso ocorre porque a teoria também é opaca para o
aluno. Os saberes, às vezes, são muito opacos para o aluno. Na pergunta,
vocês falaram na “[...] educação linguística que é o lugar da materialidade
da língua no funcionamento discursivo [...]”. Eu dei alguns exemplos, mas
posso pensar em outros. O que eu estou pensando na prática do professor
diante dessa discursividade do aluno que se faz. E essa discursividade se
faz em sala de aula, quando ele fala. É claro, também, que é uma relação
199
de ouvir o outro. Há certos gestos que a gente produz para ouvir o outro,
e há certos gestos que a gente produz para calar o outro. Não é simples.
Não é fácil. Ter esse desejo de dar aula e ouvir o outro já é muito bom,
até na hora de ler um trabalho, que é uma parte dura do nosso trabalho.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

V. M.: Olha, não sei se vou responder a vocês, mas vejam lá. Eu trabalho
com Análise do Discurso e História das Ideias Linguísticas, mas é a
História das Ideias Linguísticas atravessada, constituída sob a perspectiva
Análise do Discurso. Eu também trabalho com o aparato de enunciação
da Jacqueline Authier-Revuz. Eu fui formada lendo Orlandi e Guimarães,
que são próximos teoricamente, mas são dois campos, não é? Eu fui aluna
dos dois; as duas teorias sempre me fascinaram. A Análise de Discurso
não é sem relação com outras teorias, mas não é uma relação de dívida.
Desde o início, ela já tem o esforço teórico de pensar e dizer questões
que comparecem em outros lugares, mas que a gente questiona sobre
como isso fica com a Análise do Discurso. Pensar discursivamente é
um esforço enorme. Bem, vamos lá, pensar em alguma coisa para fazer
jus à essa “educação discursiva”. Eu acho que uma educação discursiva
é isso que vocês estão propondo e, de alguma forma, terão que definir
(risos). É estar nesse entremeio. E a gente já está nele desde que entra na
Análise do Discurso, não tem como estar fora disso. De algum modo, a
educação discursiva é aquela que lida com outras questões, com outros
campos do saber, com esse desejo e com essa curiosidade. E, ao mesmo
200
tempo, tentando articular de uma maneira que seja minimamente coerente
teoricamente.
***

Em Pacheco e Medeiros (2009), vemos um olhar discursivo-


materialista para a historicidade da produção de material didático
no Brasil. No texto em questão vocês indicam que “materiais
didáticos se apresentam como uma necessidade na sociedade”
(PACHECO; MEDEIROS, 2009, p. 58). Em 2020, ao ministrar o
Ciclo de Palestras: Reflexões sobre Língua, Glossários e Dicionários
para a equipe docente da Sala de Leitura e Bibliotecas Escolares/
SECTUR da Prefeitura Municipal de Itaboraí, você fez um percurso
por diferentes materialidades que podem (e devem) ser trabalhadas
no espaço escolar. Esse curso, nos parece, revozeia suas produções
mais recentes, como Medeiros, Costa e Silva (2021), Freitas e
Medeiros (2020), Medeiros (2019), só para citar algumas, em que
vemos uma entrada de reflexão em outros instrumentos linguísticos
(cf. AUROUX, 2014): dicionários digitais, glossários e textos
literários. Em Medeiros (2019), por exemplo, você indica que

Se os dicionários são instrumentos linguísticos, conforme Auroux (1992),


não é diferente o movimento do glossário: ali também um léxico, por
exemplo, vai sendo institucionalizado como deste ou de outro lugar, como
de uma ou de outra classe social, por exemplo. E aí reside uma diferença
entre glossário e dicionário. (MEDEIROS, 2019, p. 90)

Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre como, ao


trabalharmos nas franjas da Análise de Discurso e da História das
Ideias Linguísticas, podemos tomar tais instrumentos em nossa
prática pedagógica para com eles estilhaçarmos uma concepção de
língua fechada em si mesma e dar consequência a uma concepção
discursiva de língua, como nos ensinam Gadet e Pêcheux (2010), ou
201
seja, dar consequência ao ensino de uma língua que é constituída
pela falha, pelo equívoco e pelo lapso, mas que nem sempre chega
aos materiais didáticos ou às salas de aula.

V. M.: Nossa! O que falar? Vocês não fizeram uma pergunta, vocês
fizeram um tratado. É lindo demais isso. Primeiro, eu diria que vocês já
responderam lindamente quando falam “[...] estilhaçarmos uma concepção
de língua fechada em si mesma e dar consequência a uma concepção
discursiva de língua, como nos ensinam Gadet e Pêcheux (2010)”. Eu
acho que a resposta está aí. Por outro lado, uma vez eu falei que eu
trabalho com as minúcias. É isso que chama minha atenção e foi aí que
eu fui olhar para a nota, e da nota para o glossário. No fundo, o que eu
estava olhando era para a palavra, para a palavra que saltava de um lado
para o outro. E, nesse saltar, a minúcia diz muito. O detalhe, que pode
passar despercebido, diz muito. Eu acho que isso eu devo ao Eduardo
Guimarães – outro dia me dei conta disso pensando em uma aula dele.
Ele falava em pegar uma partezinha e então adensar. Eu acho que essa fala
dele veio ao encontro de um desejo e de um olhar que eu tinha, mas não
sabia que tinha. Eu fico fascinada, sabe? Às vezes a gente quer o mundo,
e é no detalhe que mora algo. E esse fascínio ficou e eu confesso que
ele ainda está aí. Eu comprei recentemente o livro do Monteiro Lobato
com as notas da Marisa Lajolo. Eu fiquei apaixonada e pensei: “Gente, eu
não posso não ter”. Ela faz notas para dar conta do racismo que lá está e
por aí vai… Esse é um primeiro ponto, mas as coisas estão todas juntas,
não é? Mexer com a minúcia, com o detalhe, é mexer com língua, mexer
com esse espaço para a língua. Há outra coisa que sempre me fascinou: a
relação entre instrumento ou objeto linguístico e conhecimento linguístico
que está aí em jogo. Se olharmos as notas de rodapé, por exemplo, o que
está em jogo é a questão desse conhecimento linguístico/conhecimento
sobre o sujeito e dizer sobre o dizer do sujeito. E foi por conta dessa
relação com glossários e instrumentos que eu fui pesquisar transmissão e
202
transferência. A partir dos glossários, e da palavra que estava ali em jogo,
muitas inquietações decorreram. Inquietações teóricas sobre transmissão,
sobre definição, sobre referenciação e, mais recentemente, sobre exemplificação.
E está em jogo a questão do instrumento, a questão da transmissão…
Essas inquietações teóricas são fruto do atrito com a análise, com o fato de
que você olha e fala “Não, espera!”, aí você é obrigado a pensar em alguma
outra coisa. Eu sei que vou fazer uma digressão aqui, mas veja: Hoje em
dia nós já somos uma área muito robusta, não é? Houve um tempo em que
eu me orgulhava de ter todos os livros de Análise do Discurso. Hoje, eu
já não posso mais me orgulhar, pois eu não dou conta. Eu tenho que lidar
com o fato de que eu me orgulhava de ter as revistas, de ter o catálogo de
livros. Isso não existe mais e mostra o fato de que nós somos uma área
imensa. Não tem condições de pensar nessa biblioteca que eu supunha
e que me dava um certo amparo no sentido de “Ah, tá bom, eu tenho
tudo ali”. Não, não dá mais para dizer que eu tenho tudo lá. Eu sei que
foi uma digressão, mas é uma digressão que mostra esse crescimento
maravilhosamente absurdo do nosso campo. Ah! E vocês falam daquilo
que não chega nos materiais didáticos e na sala de aula. É… não chega
pelos materiais didáticos feitos a partir de uma certa posição discursiva,
certo? Mas chega a partir de outras posições discursivas. São posições que
permitem ao aluno – ou para quem está estudando – pensar. É sair do
lugar do impor, para o lugar de “Vamos refletir: e aí, como é que fica?” E
é, no pensar como é que fica, que fica bom.
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

V. M.: Olha, hoje, eu dou aula para quem dá aula para a escola básica. Mas,
infelizmente, já vai longe o tempo em que eu trabalhei com educação básica,
203
naquela época era a quinta, a sexta e a sétima série. Agora, só voltando na
pergunta anterior, vocês citam o curso que eu dei para aquelas professoras.
Eu amei ministrá-lo. Foi de um prazer absurdo. Eu acho que estar com
essas professoras, ouvi-las e trocar com elas é algo maravilhoso para mim,
mas eu acho que também é para elas. É um espaço para elas darem esse
retorno e para que a gente possa pensar esse nosso lado. Eu acho que na
graduação todo mundo deveria, de algum modo, ter de trabalhar com
formação básica ou com formações em lugares não privilegiados, não
agasalhados pelo estado, como a educação popular, por exemplo. Melhor
do que fazer um estágio de tantas horas. Não, vai lá e dê aula, assuma uma
turma. Acho que seria bacana.
***

Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse


projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.

V. M.: Eu só queria agradecer vocês por essa interlocução que não para,
por essa interlocução que me anima… ou melhor, que nos anima e leva a
seguir adiante, não é? Muito obrigada mesmo!
***
Transcrição: Irene Cristina Silvério (UNICAMP)
Revisão de Transcrição: Rony Peterson Oliveira dos Prazeres
(UNICAMP)

204
E ntrevista com V erli Petri
Universidade Federal de Santa Maria

“No meu entendimento, a questão da autoria é fundamental, uma autoria concebida


como processo, com bases bem alicerçadas, uma autoria capaz de dar voz a diferentes
segmentos da sociedade. Para mim, a escola é onde começa a construção de um mundo
melhor para se viver...”

Nossos percursos não se dão, é certo, em uma relação direta ou


linear com o objeto de estudo. É de idas e vindas, de formulação e de
reformulação que a pesquisa vai se constituindo ao mesmo tempo
em que se constitui também o pesquisador. Com isso, gostaríamos
que você falasse um pouco da sua trajetória enquanto professora-
pesquisadora da área de Ciências da Linguagem: seu caminho de
formação, os discursos que foram se entremeando e que a levaram
às inquietações e movências em sua filiação à Análise de Discurso
e/ou História das Ideias Linguísticas.

Verli Petri: Sou a filha mais velha de um casal de pequenos agricultores


da região noroeste do Rio Grande do Sul, região reconhecida por suas
terras férteis e muito mato, região do Alto Uruguai, fazendo alusão ao
Rio caudaloso que serve de linha demarcatória entre o Rio Grande do
Sul e Santa Catarina. Desde muito pequena, ajudei em casa e na lavoura
— terra vermelha —, como todas as crianças daquela época que viviam
na “colônia”, mas sempre tive direito à escola e grande incentivo para
estudar. Na minha escola primária, logo fiz amizade com a bibliotecária,
Dona Ecíle; antes de concluir a 8ª série tinha lido todos os livros da
biblioteca, lembro que pensava em ser escritora. Amava ler, ouvir e contar
histórias. Falar disso me dá saudades da guria que fui, de quem me orgulho
muito. O interesse por língua e linguagem vem de muito cedo, aos cinco

205
anos me alfabetizei em casa36, graças à Tia Neusa (irmã caçula de minha
mãe) que ficava comigo e que era normalista; aos dez anos ganhei meu
primeiro dicionário, um mini Aurélio, presente da Tia Verônica (irmã mais
velha de minha mãe), um marco importante na minha história que mais
tarde pude recuperar e assumir como compromisso de trabalho. As duas
tias atualmente são professoras de Língua Portuguesa aposentadas, devo
muito a elas. Leitora voraz, segui lendo tudo o que vinha pela frente, fiz
o Magistério no antigo segundo grau e, em 1990, ingressei no Curso de
Letras (Português-Francês e respectivas literaturas) na UFSM. Um mundo
de possibilidades se abre diante dos olhos de uma guria da colônia quando
ela ingressa na Universidade pública, gratuita e de qualidade. Aproveitei
muito! Depois veio o Mestrado (com bolsa da CAPES), período de mais
responsabilidade, tinha a (agora colega) Amanda Scherer como orientadora
exigente. Foi ela quem me mostrou os caminhos para conhecer a Análise de
Discurso Francesa, foram anos decisivos para minha vida profissional. Só
muito tempo depois compreendi que desde a graduação, como orientanda
de Iniciação Científica da Amanda, eu já trabalhava com história das ideias,
sem que se usasse esse título. Trabalhei na URI – Campus de Santiago
antes de partir para o doutorado na UFRGS, com Freda Indursky como
minha orientadora. De 2000 até 2004, pude me dedicar a aprofundar meus
conhecimentos em AD, o que me levou a estudar filosofia, psicanálise,
história, discurso literário, geografia humana, antropologia, para citar
algumas áreas do conhecimento por onde circulei. Era bolsista da CAPES
e mais uma vez aproveitei muito bem as oportunidades. A partir do meu
doutoramento, senti a necessidade de um projeto novo, mas que fosse
capaz de resgatar o que eu poderia ter como desejo antigo... É nesse tempo
que passo a conhecer a História das Ideias Linguísticas e em 2006 chega
até mim o livro do José Horta Nunes, sua tese sobre dicionários. Devorei

36
Dos quatro aos seis anos fiz quatro cirurgias das pernas, o que me manteve em casa e
muito tempo deitada. Tal condição me aproximou dos livros.
206
essa obra, foi puro encantamento. Nesse mesmo ano, ingressei como
professora efetiva na UFSM, logo me credenciando ao Programa de Pós-
graduação em Letras. Desde então me dedico ao estudo de instrumentos
linguísticos (AUROUX, 1992), tomando a História das Ideias Linguísticas
em suas relações com a Análise de Discurso pêcheuxtiana. Fiz meu pós-
doutorado com a Eni P. Orlandi, na UNICAMP, entre 2010 e 2012.
Pensando agora: já está na hora de sair para outro pós-doc, focando bem
em História das Ideias Linguísticas. Um projeto para breve... Já são 16
anos de ensino, pesquisa e extensão na UFSM, sempre estudando para
saber mais sobre HIL e AD. De fato, ainda há muitas coisas a saber.
***

Quando pensamos em Análise de Discurso, com ou sem articulação


à História das Ideias Linguísticas, é sempre importante ter em vista
que não estamos falando de teoria(s) aplicada(s). No entanto, temos
visto inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a relação AD-
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?

V. P.: Eu considero minhas experiências em HIL ainda recentes, foi


mais ou menos em 2005 que comecei a ler e tentar compreender seu
desenvolvimento no Brasil, suas relações com a AD e levei mais um tempo
para estabelecer relações com a Educação. Na verdade, foi um período de
muitas mudanças na minha vida pessoal e profissional, pois tinha finalizado
meu doutorado e estava ingressando na UFSM como professora efetiva
(2006), mudando de Porto Alegre37 para Santa Maria, naquele momento
de modo mais definitivo38. O meu ingresso no Laboratório Corpus,

Onde vivi e trabalhei de 2004 a 2006, período de UERGS e IPA.


37

Eu já tinha vivido antes em Santa Maria por dois períodos: 1990-1998 (graduação e
38

mestrado em Letras); 2000-2003 (parte do doutorado).


207
coordenado pela Amanda, à época, me colocou numa imersão em HIL, pois
já havia uma experiência de pesquisa bem importante ali naquele espaço
institucional. Lembro que um dos primeiros trabalhos que realizei foi
financiado pela FAPERGS e resultou na publicação da Fragmentum n.1539,
de 2008. Para falar da relação com a Educação, preciso retornar aos anos
de 1990, período em que me apaixonei pela docência e compreendi que
minha contribuição para a construção de um mundo melhor para se viver
passava pelo trabalho dos professores. Desde lá, sonhava em estabelecer
relações efetivas entre pesquisa e ensino. Quando tive oportunidade de
desenvolver projetos em escolas, sempre aproveitei e trabalhei muito por
lá, ainda trabalho... Um dos primeiros resultados do trabalho conjunto da
pesquisa com atividades de educação linguística na escola está publicado
no livro Um outro olhar sobre o dicionário, disponível on-line40, de 2010. Então
nesses últimos 10 anos, excetuando o período pandêmico (2020-2021),
segui estabelecendo relações entre HIL, AD e Educação. É pouco, há
muito por fazer ainda! Tenho incentivado meus alunos e orientandos a
olharem com carinho para a escola, para que busquem as relações entre
a pesquisa e o ensino, fazendo funcionar princípios da AD e da HIL lá
na comunidade fora dos muros da universidade e para além da academia.
Esse foi o modo que encontrei para contribuir, mas cada pesquisador deve
encontrar o seu modo, é sempre muito particular.
***

Há algo importante de se pensar quando falamos de educação


linguística que é o lugar da materialidade da língua no funcionamento
discursivo. Você poderia falar um pouco sobre isso e como uma

39
Cf. em https://periodicos.ufsm.br/fragmentum/issue/view/370
40
https://pt.scribd.com/document/275985196/Outro-Olhar-Sobre-o-Dicionario-Ver-
li-Petri
208
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?

V. P.: Pensar sobre a língua é uma questão que permeia meu trabalho
na universidade, na escola e na vida. É interessante perguntar aos alunos
da graduação no início da disciplina: o que é língua? E depois, ao final,
perguntar: qual é a sua concepção de língua? Muita coisa se altera num
curto espaço de tempo. É importante também perguntar isso ao professor
de língua na escola, pois essa questão vai desacomodar esse sujeito
pleno em aulas e em trabalhos/provas para corrigir, vai suscitar nele um
momento de reflexão. Façam essa experiência, vale a pena. Para além
desse movimento, ainda é necessário discutir a noção de língua na sala de
aula, explicitar a sua espessura e opacidade. Isso precisa chegar aos alunos
da escola básica, espaço para se discutir o que está e não está posto no
dicionário, bem como as regras da gramática que rege a língua, criando um
lugar para se refletir sobre a produção de sentidos e estabelecendo relações
da língua com sua exterioridade constitutiva, com a história, dando ao
sujeito falante seu lugar no mundo. No meu entender, ao movimentar as
questões de língua na escola e na universidade vamos abrindo espaço para
que o sujeito se aproprie da sua língua e possa ocupar a posição-sujeito
autor, produzindo textos e discursos para além da mera reprodução
sistemática que tanto vemos por aí.
***

Por ser a Análise de Discurso uma disciplina que se constitui no


entremeio, o(s) (des)encontro(s) com outras áreas do conhecimento
sempre estiveram em sua base, fazendo-nos avançar na construção
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?

209
V. P.: A influência do trabalho de Michel Pêcheux é forte no meu
trabalho de pesquisa, de ensino e de extensão. Talvez meu modo de
ver o mundo e de levar a vida estejam atrelados à leitura que faço do
que Pêcheux (e todos os outros que construíram e ainda constroem a
AD) indicou como necessidade de problematização. Nele já está posta
a necessidade de estabelecimento de relações entre diferentes áreas do
conhecimento e entre diferentes sujeitos. Tenho refletido, por exemplo,
sobre a problemática da autoria e da coautoria em espaços de produção do
conhecimento, inclusive orientei uma tese41 interessantíssima que estuda
isso na obra de Pêcheux. Escrever junto com alguém exige um exercício
importante de olhar para o outro e olhar para si mesmo. É necessário se
perguntar: O que eu defendo? O que o outro defende? O que aceitarei e
ao que serei capaz de renunciar em aceitando o que o outro propõe... No
meu entender, não se produz conhecimento sozinho, nem fechados em
nossas convicções teóricas. É preciso espiar para fora, deixar novos ares
entrarem. Em geral, estar aberto ao novo (e ele sempre vem!) tem sido
muito produtivo aos analistas de discurso!
***

Faz já longa data que, em suas pesquisas, você vem tomando como
objeto o discurso dicionarístico. Destacamos dois momentos por
permitirem vislumbrar modos de afetação desse funcionamento
na práxis pedagógica: um primeiro momento em que se dedica
à reflexão e ao desenvolvimento de dicionários compartilhados
(PETRI, ALVARES, 2017; BIAZUS, PETRI, 2020) e um segundo
momento em que se lança à análise de dicionários escolares (PETRI,
TEIXEIRA, LACHOVSKI, VENTURINI, 2021).
No artigo em coautoria com Alvares, distanciando-se do sentido de
dicionário como fonte de consulta ortográfica e de sentidos, vocês

41
Kelly Guasso.
210
propõem que a desconstrução da ideia de totalidade e completude
associada ao dicionário pode e deve ocorrer “no interior da cultura
escolar, pois é nesse espaço que se fundam as subjetividades e a
cidadania, estabelecendo relações do sujeito com a língua ou com
as línguas” (PETRI, ALVARES, 2017, p. 62).
Indo além, no artigo escrito em colaboração com Biazus, vocês
pontuam a relevância da relação entre escrita e autoria para
uma tomada de posição discursiva, ressaltando que tal relação
muitas vezes não é contemplada na/pela instituição escolar. Sob
esse aspecto, reconhecem, com base em Auroux (2014 [1992]),
o dicionário, enquanto instrumento linguístico, como “uma
intervenção tecnológica e política que busca, no espaço linguístico,
reduzir aquilo que é variável, mantendo assim um ‘bom uso’ da
língua” (BIAZUS, PETRI, 2020, p. 227). Em seguida, no entanto,
ressaltam, com Petri (2012), a relevância de desvincular o processo
de dicionarização do de gramatização para que outras formas de
instrumentalização da língua cujo objetivo prioritário não seja o de
gramatizá-la possam ser contempladas.
Já, no artigo publicado em 2021, com Teixeira, Lachovski e Venturini,
no qual se debruçam sobre a materialidade de dicionários escolares,
pensando a utilização dessa tecnologia da linguagem no espaço
escolar enquanto instrumento de disciplinarização das “coisas a
saber” (PÊCHEUX, [1983] 2002), vocês trazem à luz “o debate sobre
a divisão social do trabalho de leitura”, considerando o conflito entre
o que colocam como “língua ‘sabida’” e “língua ‘a saber’” (PETRI,
TEIXEIRA, LACHOVSKI, VENTURINI, 2021, p. 473).
Com base nessas investigações, você poderia comentar algumas
conclusões a que chegou no tocante à relação entre discurso
dicionarístico e ensino de língua, ressaltando como a/o docente
poderia, à luz da perspectiva discursiva, trabalhar com dicionários
211
escolares de maneira a resistir às “divisões sociais do trabalho de
leitura” (PETRI, TEIXEIRA, LACHOVSKI, VENTURINI, 2021)
neles/por eles/a partir deles impostas e como a criação/construção
de dicionários compartilhados poderia funcionar como forma de
resistência no espaço escolar?

V. P.: Agradeço a leitura atenta às nossas produções. São textos que


resultaram de muito trabalho de pesquisa e de experiências em educação
informal, como é o caso da Associação Cuica; e em educação formal
no chão da escola pública pelo interior deste Rio Grande do Sul. O que
me impulsiona a estudar a linguagem, acho que desde o início de minha
carreira, é o desejo de compreender como o sujeito produz discursos
e a partir dele em sua interlocução com o outro como se produzem os
sentidos. Se com minhas pesquisas eu conseguir contribuir um pouquinho
para que se avance em reflexões nessa direção para que se possa saber
mais, já terei a satisfação de ter produzido um elo ou um “alo” nessa
rede discursiva tecida por tanta gente boa. No tocante ao espaço escolar,
mais especificamente, temos que problematizar a realidade. A primeira
coisa a se observar seria uma certa perda de espaço dos dicionários (e das
gramáticas) na sala de aula de língua portuguesa nos últimos anos. Tais
livros, na maioria das vezes, ficam guardados nas prateleiras mais altas
das bibliotecas ou salas de leitura das escolas públicas. Materialmente essa
posição significa muito: livros grandes, pesados, difícil acesso. A realidade
mudou, eu entendo: a maioria das crianças e jovens tem um celular e
podem consultar no Google. O que me preocupa é a instantaneidade
dos resultados da web e o apagamento da historicidade que constitui a
palavra e os sentidos que dela podemos depreender. O movimento de
ir fisicamente à biblioteca com a turma, de ver diferentes dicionários,
de comparar e, principalmente, de contrastar, de pesquisar e poder “se
perder” no gesto de folhear o livro e de se encontrar com uma rede de
palavras é insubstituível enquanto experiência material e escolar. Há um
212
encantamento que a internet não pode nos dar! Se, por um lado, o Google
e os dicionários disponíveis na web se comprometem com a saturação:
tudo o que existe tem que estar lá! Por outro lado, o dicionário – que
está impresso e disponível na prateleira – designado como instrumento
linguístico da maior importância para o ensino e a aprendizagem de uma
língua é um livro e nele não se pode guardar o todo da língua, cabe nele
um dado número de palavras e sentidos, mas não cabe “o todo”, não é
espaço de saturação. Para mim, o dicionário, ao ser trabalhado pelo viés
discursivo, coloca o sujeito diante da incompletude, da falta, daquilo que
falha... Abre-se aí um espaço para a autoria do sujeito, é ele o falante no
mundo que mantém a vivacidade da língua, seu movimento e a produção
do sentido que sempre pode ser outro, como tão bem nos ensinou Eni
Orlandi (1999). Ao pensar nisso tudo é que podemos romper com um
ciclo de reprodução, de repetição que é próprio dos Aparelhos Ideológicos
de Estado (numa remissão a Althusser), uma ruptura em aulas de língua
portuguesa produz um furo importante na estrutura e pode gerar espaços
de resistência na e pela língua. Acredito verdadeiramente nisso!
***

A seu ver, qual(is) seria(m) o(s) principal(is) desafio(s) de uma


tomada de posição materialista do professor em sua práxis
pedagógica na escola básica?

V. P.: Ser professor de língua na escola básica e, sobretudo, na escola


pública, engendra muitos desafios. A histórica desvalorização da classe,
os baixos salários, o aniquilamento dos direitos adquiridos, a violência
no interior da escola e no entorno, o empobrecimento das famílias, para
citar alguns desafios enfrentados diariamente por todos os professores.
No tocante aos professores de línguas, há um desafio institucional muito
grande e antigo que consiste em definir efetivamente o que ensinar
e como ensinar. Em geral, o professor tem formação para saber essas
213
respostas, mas quando chega à escola se depara com questões legais e
institucionais: O que determinam os documentos nacionais/estaduais/
municipais em vigência? O que está previsto no Projeto Pedagógico da
escola? O que os concursos públicos exigem dos candidatos em termos
de saberes linguísticos? Menciono algumas questões, há tantas outras
desafiando o trabalho do professor de língua que deverá cumprir o que
está sendo determinado institucionalmente, mas poderá também fazer
avançar as práticas de leitura, interpretação, compreensão e produção de
diferentes textualidades, incentivando seus alunos a pensarem e proporem
outras possibilidades de sentidos para o que apreendem e para o que estão
vivenciando em suas práticas sociais cotidianas. No meu entendimento, a
questão da autoria é fundamental, uma autoria concebida como processo,
com bases bem alicerçadas, uma autoria capaz de dar voz a diferentes
segmentos da sociedade. Para mim, a escola é onde começa a construção
de um mundo melhor para se viver...
***

Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse


projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.

V. P.: Nas respostas anteriores não abordei a “História das palavras”,


um recorte que faço no interior da História das Ideias Linguísticas para
dar mais especificidade às minhas pesquisas. A história das palavras é um
tema que já tem resultados interessantes, os quais têm influenciado nos
modos como tenho concebido o ensino de língua e a constituição do
sujeito. Foi com o projeto de pesquisa sobre a história das palavras que
obtive minha primeira bolsa PQ2 do CNPq, o que também representa um
marco na minha carreira de pesquisadora, é um reconhecimento nacional.
214
Todas as minhas práticas de ensino, pesquisa e extensão são afetadas por
estas pesquisas mais atuais e talvez seja a partir delas que possa deixar
uma reflexão final por aqui. Precisamos aproveitar o que Michel Pêcheux
nos ensinou: as questões/perguntas podem ser outras. Isso vai intervir
diretamente nos modos de divisão social da leitura e nas possibilidades
de interpretação dos fatos de linguagem. Nosso trabalho é propor a
desconstrução dos sentidos que são dados como “literais”, colocando em
funcionamento noções como história e memória, ideologia e inconsciente,
condições de produção e exterioridade, entre outras. Precisamos estar
preparados e formar professores de línguas que possam “suportar o
que venha a ser pensado, isto é, é preciso ‘ousar pensar por si mesmo’”
(PÊCHEUX, 1995, p. 304).
***

215
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Perfil dos
Organizadores-
Entrevistadores,
das Entrevistadas e
dos Colaboradores
Perfil dos Organizadores-Entrevistadores

Joyce Palha Colaça é doutora em Estudos de Linguagem, mestra em Letras e


graduada em Letras Português/ Espanhol pela UFF. Integra o LAS/UFF e os
grupos de pesquisa DInterLin, Transversal e LED/UFS. É professora associada
de Língua Espanhola na UFS, onde coordena os cursos de Graduação em Letras
Português/Espanhol e Letras-Espanhol, o núcleo de Espanhol do PIBID e do
Exame de Proficiência em Língua Estrangeira. Atuou como coordenadora da
Especialização em Multiletramentos na Educação Linguística e Literária em
Espanhol (2018-2019). Foi membro da diretoria da ABH (2016-2018) como 1ª
tesoureira. É integrante do Movimento Fica Espanhol Brasil. Tem experiência
na área de Linguística, com ênfase em Análise de Discurso, História das Ideias
Linguísticas, Linguística Aplicada e Estudos da Tradução.

Michel Marques de Faria é doutorando em Linguística pela Universidade


Estadual de Campinas com bolsa do CNPq (Processo 141472/2021-9). Mestre
em Linguística pela mesma instituição. Graduado em Letras – Português/Italiano
pela Universidade Federal Fluminense. Integra o grupo de pesquisa CoLHIBri
(O Cotidiano na História das Ideias Linguísticas) e o Grupo Arquivos de Língua
(GAL). Dedica-se ao ensino de língua portuguesa na educação popular. Possui
como áreas de interesse a Análise de Discurso materialista e a História das Ideias
Linguísticas.

Thaís de Araujo Costa é professora Adjunta de Língua Portuguesa da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora do livro Discurso
gramatical brasileiro: permanências e rupturas (Pontes, 2019). Tem graduação em
Letras (português/literaturas) e mestrado em Língua Portuguesa pela mesma
instituição. Fez Doutorado em Estudos da Linguagem na Universidade Federal
Fluminense (UFF), com estágio sanduíche na Université Sorbonne Nouvelle
– Paris III, e pós-doutorado em História das Ideias Linguísticas na UFF e na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É membro do Grupo Arquivos
de Língua (GAL/UFF), coordenadora do Arquivos de Saberes Linguísticos
(SaberLing/UERJ/Faperj) e uma das coordenadoras do Laboratório de Estudos
em Gramática & Discurso (LabGraDis/UERJ/Faperj). Possui experiência em
Língua Portuguesa e Linguística, com ênfase em Análise de Discurso e História
das Ideias Linguísticas.
Perfil das Professoras-Pesquisadoras Entrevistadas

Águeda Aparecida da Cruz Borges é professora Associada da UFMT/


CUA-MT. Graduada em Letras pela Unemat, Mestra e Doutora em Linguística
pela Unicamp, com pós-doutoramento pelo Programa de Pós-Graduação em
Linguística (PPGL) da Unemat/Cáceres. Além de atuar na área de Linguística/
Análise de Discurso, tem experiência em formação de professores e ensino
de língua Portuguesa para povos indígenas. Publicou o livro: Da aldeia para a
cidade: processos de Identificação/subjetivação indígena e participou de várias
organizações de livros e Revistas, e outras publicações. A pesquisa converge para
a constituição discursiva do espaço urbano frequentado por indígenas; práticas de
resistência de mulheres indígenas e outras minorias. Lidera o Grupo de Pesquisa:
Arte Discurso e Prática Pedagógica (UFMT/CUA-CNPq) e pesquisa nos Grupos:
Mulheres em Discurso (Unicamp/CNPq) e O político no social: a AD no Centro-
Oeste (Unemat/PPGL). Recentemente aposentada, mas na labuta.

Amanda Eloina Scherer é Professora Titular de Linguística do Departamento


de Letras Clássicas e Linguística da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Pesquisadora do Laboratório Corpus (UFSM) e professora do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFSM. Possui doutorado em Linguística, Semiótica
e Comunicação pela Université de Franche-Comté e pós-doutorado pela
Université de Rennes 2, França. Tem experiência na área de Linguística com
ênfase em Análise de Discurso e História das Ideias Linguísticas trabalhando
com o tema: sujeito, língua e memória. Atualmente, é Coordenadora Geral do
Espaço Multidisciplinar de Pesquisa e Extensão da UFSM – Silveira Martins.

Ana Maria Di Renzo é graduada em Letras pela Universidade Paranaense (1985).


possui mestrado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2000)
e doutorado em Lingüística na Universidade Estadual de Campinas (2005), com a
participação no doutorado sanduíche em Lyon-França na ÈCOLE NORMALE
SUPÉRIEURE LETTRES & SCIENCIES HUMAINES (2003). Trabalhou
como servidor efetivo na Educação do Estado do Paraná, no setor Administração
Escolar e na Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT, de 1988 a
2020. Atua no grupo de pesquisa Linguagem: discurso e acontecimento (CNPQ)
coordenado pela Profa. Dra. Ana Luiza Artiaga da Motta. Atualmente exerce
as funções de professora colaboradora no Programa de Mestrado e Doutorado
acadêmicos em Linguística e no Profletras, campus Universitário de Cáceres/MT
da UNEMAT; de vice-presidente do Conselho Estadual de Educação de Mato
Grosso-CEE/MT e presidente da Câmara de Educação Profissional e Ensino
Superior do CEE/MT e Diretora Acadêmica da União das Faculdades Católicas
de Mato Grosso-UNIFACC. Atua em pesquisas que tratam da relação língua-
história-escola na relação com as políticas linguísticas.
Andrea Rodrigues é doutora em Letras pela PUC-Rio (2001), com estágio
de doutorado na École des Hautes Études em Sciences Sociales (França,1997)
e Pós-Doutorado na UNIRIO (2013). Fez Mestrado em Linguística (UFRJ,
1993) e Graduação em Letras (UFF, 1987). É professora da Graduação em
Letras, do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPLIN) e do
Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) da Faculdade de Formação de
Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ). Líder do
grupo de pesquisa Núcleo de Estudos em Língua e Discurso (NELID).

Claudia Regina Castellanos Pfeiffer é linguista com toda sua formação feita
no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP) nas áreas de Análise
de Discurso e História das Ideias Linguísticas. É pesquisadora no Laboratório de
Estudos Urbanos (Labeurb/Nudecri/Unicamp), desde 1996, atuando, enquanto
analista de discurso, nas áreas de Saber Urbano e Linguagem, História das Ideias
Linguísticas e Divulgação Científica com temáticas como Políticas de Ensino, de
Língua, de Saúde, de Mineração e Mudanças Climáticas.
Eni Puccinelli Orlandi é doutora em Linguística pela USP e pela Universidade
de Paris/Vincennes. Foi professora da USP (1967/1979), da PUC de Campinas
(1970/1974), da Unicamp (1979/2002), e da UNIVÁS (2002/2018). Atualmente
é pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos, Professora Colaboradora
da UNICAMP e Profa. visitante da UNEMAT. Desenvolve pesquisas em Teoria
e Análise de Discurso, História das Ideias Linguísticas e Jornalismo Científico.
É pesquisadora 1A do CNPQ. Publicou inúmeros artigos e livros no Brasil e no
exterior. Seu livro As formas do Silêncio, prêmio Jabuti em Ciências Humanas, foi
traduzido para o francês, o italiano e o espanhol.

Fabiele de Nardi é doutora em Estudos da Linguagem – Teorias do texto e do


Discurso pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007), é atualmente
Professora Associada II da Universidade Federal de Pernambuco, atuando
nos cursos de Graduação, na área de Língua Espanhola, e Pós-graduação em
Letras, na área de Linguística. Vice-líder do NEPLEV – Núcleo de Estudos em
Práticas de Linguagem e Espaço Virtual, é também pesquisadora do LaDo-ELE
– Laboratório de Formação Docente – Espanhol como Língua Estrangeira.
Freda Indursky é licenciada em Letras (UFRGS), Mestre pela Faculté des Lettres
et Sciences et Sciences Humaines da Université de Besançon (França) e Doutora
em Ciências da Linguagem pelo IEL/UNICAMP. É professora Titular pelo
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da UFRGS. Aposentada, atua
como professora convidada no PPG-Letras/UFRGS. Publicou inúmeros artigos
e os livros A fala dos quartéis e as outras vozes e O discurso do/sobre o MST: movimento
social, mídia, sujeito. Projeto de pesquisa atual: O papel das mídias na sociedade brasileira
contemporânea.

Maraísa Lopes é licenciada em Letras (Português/ Inglês) e especialista em


Estudos da Linguagem pela Universidade de Mogi das Cruzes. Licenciada
em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional. Mestre e Doutora em
Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Universidade
Estadual de Campinas. Estágio Pós-Doutoral em Educação de Surdos pela
Flagler College (Florida/USA). Professora do Curso de Letras-Libras e Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí. Líder do Núcleo
de Pesquisas em Análise do Discurso (NEPAD) e do Grupo de Pesquisa em
Análise de Discurso Materialista e História das Ideias Linguísticas (EntreRios).

Rívia Fonseca é licenciada em Letras e mestra em História pela UFF e doutora


em Linguística pela UNICAMP. Atualmente, é professora associada de Língua
e Literatura latina do Departamento de Letras e Comunicação e do Programa
de Mestrado Profissional, PROFLETRAS, da UFRRJ. Tem experiência na área
de Estudos clássicos, Ensino de línguas, Teoria e Análise linguística. Dedica-se
às pesquisas ancoradas na Análise do Discurso de base materialista, tanto na
graduação quanto na pós-graduação.

Solange Maria Leda Gallo tem atuado no Programa de Pós-Graduação em


Ciências da Linguagem da UNISUL desde sua fundação, no início dos anos
2000. A linha de pesquisa que atuo é Texto e Discurso. Seu trabalho sempre
esteve vinculado ao grupo de pesquisa do CNPq, que coordena: “Produção e
Divulgação de Conhecimento”. Fez sua formação em Análise do Discurso na
Unicamp, sob a orientação de Eni Orlandi, e na França, sob a orientação de Paul
Henry, onde obtive o Diploma do Collège Internacional de Philisophie de Paris.
Seu objeto de pesquisa é o Discurso, especificamente a autoria. Tem relacionado
a noção de autoria a questões do discurso pedagógico, acadêmico e científico,
também a questões de mídia e divulgação de conhecimento e, mais recentemente,
a questões da materialidade digital. É uma das coordenadoras fundadoras do
SEDISC (Seminário em Discurso, Cultura e Mídia), evento bienal que agrega
pesquisadores e grupos de pesquisa em análise de discurso, e que é responsável,
entre outras, pela presente publicação. Meu e-mail: solangeledagallo@gmail.com.

Vanise Gomes de Medeiros é Professora Associada da Universidade Federal


Fluminense, com pós-doutorado pela Sorbonne Nouvelle Paris III. Bolsista
do CNPq (nível 2) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Coordenadora do
Grupo Arquivos de Língua (GAL) em parceria com Phellipe Marcel e uma
das coordenadoras do Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS) da UFF. Tem
experiência na área de Letras, atuando em Análise de Discurso e História das
Ideias Linguísticas.

Verli Petri é doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do


Sul e possui estágio de pós-doutorado pela Universidade Estadual de Campinas.
Atualmente, é professora associada da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em teorias do texto e
do discurso. É coordenadora do Grupo de Estudos Palavra, Língua e Discurso –
PALLIND. É pesquisadora do Laboratório Corpus e do Centro de Documentação
e Memória, onde orienta trabalhos de iniciação científica, mestrado e doutorado
junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma instituição. É bolsista
de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
Perfil dos Colaboradores

Breno Gustavo Silva Freitas é graduando em Letras Português/Espanhol pela


Universidade Federal de Sergipe. É autor do conto Entre os sonhos e a realidade,
publicado no livro Memorial de uma academia negra: dez anos de políticas de cotas na
universidade brasileira. Desenvolve pesquisa científica na área de Análise de
Discurso materialista, com foco nas relações raciais e de gênero. Integra o grupo
de pesquisa DInterLin (Diálogos Interculturais e Linguísticos) da Universidade
Federal de Sergipe e é residente do Programa Residência Pedagógica.

Irene Cristina Silvério é graduanda em Letras – Português pela Universidade


Estadual de Campinas. É técnica em Administração pela ETEC Pedro Ferreira
Alves. Seu trabalho de conclusão de curso foi sobre projetos político-pedagógicos
na gestão de escolas públicas. Tem como área de interesse a Linguística Aplicada.
Atualmente é bolsista da FAPESP no projeto Attenty, que desenvolve uma
assistente de escrita para a língua portuguesa, utilizando técnicas de Inteligência
Artificial.
Rony Peterson Oliveira dos Prazeres é graduando em Letras – Português pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi estagiário em um programa
da Unicamp no Arquivo Edgard Leuenroth, na área de Difusão dos acervos
pertencentes ao arquivo, que constituem o maior acervo dos movimentos sociais
no Brasil. Atualmente é estagiário do Centro de Estudos Clássicos (CEC) do
Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp onde atua como Secretário. Possui
como áreas de interesse os Estudos Clássicos, a Análise de Discurso materialista
e a Linguística Histórica.
A proposta desta obra nasce da necessidade que se impôs a nós
de uma escuta social, como ensina Pêcheux, ainda sob o pseudônimo de
Thomas Hebert (1996), voltada para a sala de aula, nos diferentes níveis
de ensino. Propomos, pois, um livro que seja composto por entrevistas
realizadas com professoras-pesquisadoras do campo das ciências da
linguagem que, ao trabalharem em uma perspectiva discursiva da História
das Ideias Linguísticas (FERREIRA, 2018), se voltem para a reflexão
da práxis docente na educação linguística. Entendemos que a prática de
entrevistas no campo das ciências da linguagem pode ser um instrumento
potente para a constituição, reflexão e circulação do saber científico.
Este Encontros com professoras-pesquisadoras reúne 13 entrevistadas que se
lançaram à reflexão de um conjunto de seis perguntas. Assim, Águeda
Borges, Amanda Scherer, Ana Maria Di Renzo, Andrea Rodrigues,
Claudia Pfeiffer, Eni Orlandi, Fabiele De Nardi, Freda Indursky, Maraísa
Lopes, Rívia Fonseca, Solange Gallo, Vanise Medeiros e Verli Petri são as
professoras-pesquisadoras que nos brindam com questões e inquietações
advindas de seus respectivos percursos na Análise de Discurso e/ou na
História das Ideias Linguísticas.

Da apresentação.

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