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Encontros com
professoras-pesquisadoras:
educação, práxis e discurso
Campinas
2023
Copyright © 2023 Setor de Publicações IEL
Direitos reservados e protegidos pela Lei 19.2.1998. É proibida a
reprodução total ou parcial sem autorização da editora.
1ª edição
Imagem de fundo e templates de capa: disponíveis gratuitamente em
www.canva.com. Licença para uso comercial e não comercial.
Diagramação: Setor de Publicações IEL/Unicamp.
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Tiago Pereira Nocera - CRB 8/10468
En17
Encontros com professoras-pesquisadoras : educação,
práxis e discurso / Joyce Palha Colaça, Michel Marques de
Faria, Thaís de Araujo Costa (org.). – Campinas, SP : Unicamp
/ Publicações IEL, 2023.
245 p.
ISBN 978-65-87407-25-8 .
E-book no formato PDF
1. Análise do discurso. 2. História das ideias lingüísticas. 3.
Educação 4. Prática docente. I. Colaça, Joyce Palha, 1982- . II.
Faria, Michel Marques de, 1993- . III. Costa, Thaís de Araujo,
1984-
CDD: 410.9
Rerefências 217
***
***
***
1
Aqui fazemos referência à obra de Milan Kundera, A vida está em outro lugar, retomada
em A Língua Inatingível (GADET; PÊCHEUX, 2010).
14
– inscrição incontornável para a Análise de Discurso. É no batimento entre
língua e história que se insere, também, a presente proposta. Afinal, pensar
a educação é também considerar a historicidade e os sujeitos – alunas/
os e professoras/es – que são atravessadas/os pela(s) língua(s) (em) que
falam/ensinam/aprendem.
Buscando reiterar nossa inscrição em um lugar de interlocução,
de escuta, e, é certo, de encontros, esse livro se vincula às discussões
realizadas também no âmbito de projetos de pesquisas coletivos que são
realizados em diferentes instituições brasileiras, a saber: o Grupo Arquivos
de Língua (UFF/CNPq/Faperj)2, o Arquivos de Saberes Linguísticos
(UERJ/Faperj)3, o Programa de Pesquisa Institucionalização da HIL
no Brasil (UFF-UFSM-UNICAMP)4, o Programa e Grupo de Pesquisa
O Cotidiano na História das Ideias Linguísticas do Brasil (Unicamp)5 e
o Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais e Linguísticos (UFS)6. A
vinculação com estes projetos mostra um trabalho reflexivo que avança
coletivamente e que se estabelece também por relações de afeto, de
trabalho e de admiração.
Por fim, gostaríamos de deixar nosso agradecimento ao Instituto de
Estudos da Linguagem da UNICAMP, no âmbito da Coordenadoria de
Extensão. A publicação deste livro só foi possível em função de um edital
para submissão de propostas de e-books para os novos selos editoriais
2
Sobre o Grupo Arquivos de Língua: https://gal.hypotheses.org/.
3
Sobre o Arquivos de Saberes Linguísticos (Processo Faperj No. E-26/211.851/2021),
acesse: Instagram (@arquivosdesabereslinguísticos) e Facebook (https://www.facebook.
com/arquivosdesabereslinguisticos/).
4
Sobre o Programa de Pesquisa Institucionalização da HIL no Brasil, recomendamos a
seguinte leitura: SCHERER, A. et al. História das ideias linguísticas e sua institucionali-
zação: um primeiro percurso em um programa coletivo de pesquisa. Linguagem & Ensino,
Pelotas, v. 24, n. 3, p. 646-659, jul.-set. 2021.
5
Sobre o Grupo O Cotidiano na História das Ideias Linguísticas do Brasil: https://www.
colhibri.site/.
6
Sobre o Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais e Linguísticos - DInterLin (UFS),
acesse o Instragram: @dinterlin | https://www.instagram.com/dinterlin/.
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criados pelo IEL que objetivam “ampliar a circulação da produção literária
e de divulgação científica da área e de atender a demandas de comunidades
internas e externas ao IEL relativas a estudos sobre literatura, linguagem
e ensino-aprendizagem de línguas”. Ter nossa proposta selecionada muito
nos alegrou. Com ela, esperamos, então, contribuir com os debates que
atravessam a prática docente na educação ao fomentarmos um olhar
discursivo-materialista para, assim, afetar estudantes de graduação e
professores das redes de educação básica.
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Entrevistas
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E ntrevista com Á gueda Borges
Universidade Federal do Mato Grosso
“Da mesma maneira que a história formal apaga os feitos de mulheres, no movimento
feminista a atuação de mulheres não-ocidentais também é desconhecida de grande
parte, ressaltando a diversidade étnica. De algum modo, a visibilidade de mulheres
indígenas, não apenas no mundo acadêmico, nas nossas pesquisas, é possibilitada pelo
enfrentamento de mulheres não indígenas. Neste caso, eu afirmo, no desenvolvimento de
pesquisas, no deslocamento para o convívio em áreas indígenas, reiterando que também
as mulheres não indígenas são/foram ofuscadas nas suas histórias de mulheres/
pesquisadoras. Assim, silenciadas no modo como aprenderam, apreenderam essa língua
imposta e passaram a utilizar da escrita dessa língua.”
7
Eu fui escrevendo e, na revisão, percebi que havia excedido na história. Considerando
que tenho afeição pelas notas de rodapé, pois elas alicerçam os textos, decidi seguir a nar-
rativa aqui. [...] Depois, nos mudamos para uma cidadezinha do interior de Minas Gerais,
Serra do Salitre, onde me ingressei no Ensino Primário e cursei o, na época, chamado Gi-
násio. O Segundo Grau exigiu outro deslocamento, fui morar em Patrocínio, no mesmo
Estado, depois de ter sido aprovada no, então, chamado Exame de Admissão e feito uma
seleção para ingressar na Escola Estadual D. Lustosa… era assim que funcionava. Muitas
luas se passaram, como era o costume, quem tinha parentes na capital era acolhido para
“seguir os estudos”. Fui encaminhada para a casa de tios em Belo Horizonte, com o ob-
jetivo de me preparar para o vestibular, mas meu pai faleceu (vixe!!! Aqui cabe história),
eu precisava trabalhar e surgiu a oportunidade de vir lecionar em Mato Grosso (Já aqui,
eu teria que escrever um livro de memórias, quem sabe!?). Eu já sabia que queria ser pro-
fessora e, por interpelação dos tios com quem morava, tinha conhecimento da história
de um Bispo da região do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, que era poeta e se filiava a
uma Igreja Progressista, da Teologia da Libertação, do lado dos pobres, da educação. A
região, naquele período, finalizando o ano de 1982, com a retomada da democratização,
pós-ditadura militar, era muito carente, precisavam de professores e eu vim… Aprendi a
ser professora sendo. A Universidade, por um tempo ficou no sonho, pois no ano seguin-
te me juntei ao meu companheiro, tivemos, em 5 anos, 4 filhos, mas não parei nunca de
trabalhar, de ler e estudar. Morei em Ribeirão Cascalheira, contratada pelo município de
Canarana, lecionei de tudo, Língua Portuguesa, História, Artes, Educação Física... Eu ha-
via cursado o Científico, como era nomeado o Ensino Médio, pois a pretensão era seguir
os estudos e, veja, para ser professora eu precisava ter o Magistério. Foi aí que ingressei
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história longa constitutiva desse meu lugar de pesquisadora que consiste
em compreender a constituição discursiva/subjetiva de povos indígenas
na relação com o espaço urbano. Não poderia ser outro campo teórico,
senão o da Análise de Discurso de base materialista, a me interpelar, pois eu já
tinha o chão da história, da crítica, da inquietação. No Curso de Letras, do
“Projeto de Licenciaturas Plenas Parceladas” da Universidade do Estado
de Mato Grosso, em Luciara-MT, a teoria me foi apresentada pela minha
sempre orientadora, a prof.ª Dr.ª Mònica Graciela Zoppi-Fontana. À
medida que ia compreendendo os conceitos, enxergava a possibilidade
de preencher a minha ansiedade/desejo em trabalhar, na/pela linguagem,
com a diferença, a contradição, a ideologia, o sujeito, o espaço, o corpo…
muito timidamente e, dali em diante, a minha relação com as questões
de linguagem nunca mais foram as mesmas. Aprendi que é preciso
problematizar sobre o que se nos apresenta como estabelecido. Estamos
vivendo um tempo de incertezas e dúvidas, conflitos, violências de toda
forma. Os limites são fluidos e fugidios… Bem, retornando, nos primeiros
contatos com a teoria, comecei a perceber que as minhas questões eram
discursivas e afetavam o processo de identificação/subjetivação dos
sujeitos na relação com o tempo, o espaço, a língua, a cultura, a economia,
a política, o corpo – o olhar. Lembro Pêcheux (1999), é nesse espaço
de retomadas, conflitos, regularizações que uma trajetória de pesquisa
se constrói. E Orlandi (2001, p. 46): é lá onde o esquecimento emerge
numa formação de Magistério (o Programa era o Logos II) com o intuito de prestar o
Concurso de professores para o Estado. Prestei, fui a 3ª colocada. As circunstâncias nos
levaram a mais uma mudança, agora, para Santa Terezinha, na divisa do Mato Grosso
com o Pará e lá passei a atuar na Escola Estadual, com Língua Portuguesa. Ah! É preciso
dizer que a vivência com povos indígenas já começava a se instaurar na minha vida. Em
1990, meu companheiro, também professor e com experiência em Comunicação, foi con-
vidado para trabalhar numa rádio que estava sendo ampliada em São Félix do Araguaia,
eu estava grávida da minha caçula e já tinha 3 pequenos, mas encaramos, pedi minha
remoção e lá fomos nós… A graduação veio mais tarde, num Projeto muito especial
discutido com a Universidade Estadual de Mato Grosso, a partir das necessidades que
tínhamos na região. A Unicamp, veio dois anos depois nesse ‘bonde’ em andamento...
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para significar o “[...] acontecimento do significante no mundo”. Sem a
Análise de Discurso e o diálogo com a História das Ideias Linguísticas, eu jamais
conseguiria entender o modo como se constitui o Outro, o diferente,
particularmente, esse Outro constitutivo do meu espaço de vivência.
***
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percebemos a tentativa de ruptura e inserção do indígena pela autora, no
entanto, o discurso que prevalece é do sujeito colonizador, que vê o indígena
de forma genérica e estereotipada. O livro não aborda as diferentes etnias na
contemporaneidade, o que é realidade, pelos movimentos indígenas, cada dia
mais crescentes em nosso país. Nos recortes do livro do Ensino Médio, em
nenhum momento identificamos, ao menos, a tentativa de ruptura, pois, a
formação discursiva referente ao indígena, remete ao imaginário do período
da colonização, ou seja, apenas do indígena do passado, como se eles não
existissem mais ou, até mesmo, não vivessem ao nosso lado, na escola, na
cidade. Consideramos, que a hipótese desse estudo, de que crianças e jovens
a partir do que aprendem na escola, podem construir conceitos equivocados
em relação aos povos indígenas é confirmada. Pelo visto, ainda há que se ter
muita luta para a construção de outra imagem dos povos originários e para o
reconhecimento da alteridade. (BORGES & SILVA, 2021, p. 288)
28
situa no funcionamento da linguagem nas diversas práticas tanto dentro
quanto fora da escola como já escrevi.
***
Em suas pesquisas, você tem voltado seu olhar para a escrita indígena,
tendo como objetivo compreender os modos de subjetivação de
mulheres indígenas em seus processos de produção escrita. No
texto “Escrita indígena, discurso, resistência e cidadania”, em que
analisa uma obra de Eliana Potiguara, você afirma que a escrita
indígena “se transforma em sentidos de uma prática de resistência
contra as diferentes formas de poder” (BORGES, 2019, p. 21). Nessa
direção, gostaríamos de retomar uma pergunta que você (se) faz
no mesmo artigo: “Qual fio dessa ‘rede discursiva’ de aspectos me
permitiria entrar no universo complexo de subjetivação de mulheres
indígenas pela escrita?” (BORGES, 2019, p. 17). Partimos desse
questionamento para, então, pensar em como é possível relacioná-
lo ao seu projeto atual sobre escrita e sobre a constituição subjetiva
na produção de textos dos cursos superiores. Desse modo, como
compreender os processos de subjetivação da mulher indígena,
considerando os sentidos sobre resistência, em uma escrita que,
historicamente, se calca em moldes colonizados como é a escrita
acadêmica e qual a importância dessa discussão para a formação de
professores na área das linguagens?
8
Para homenagem no IX Encontro Macro-Jê, sediado no Campus universitário do Ara-
guaia/UFMT em junho de 2018.
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aparta da língua gráfica desenhada, especialmente, na escrita do corpo em
determinados rituais. Não é uma língua linear como a nossa, não tem a
mesma ordem SVO. Tudo isso precisa ser mobilizado, quando pensamos
escrita indígena, considerando a diversidade de línguas e de gênero, pois
como escreve a Creuza Krahô:
[...]os antropólogos que vão aos Krahô só pesquisam os homens. Eles não pesquisam as
mulheres. A mulher fica de lado, sempre lá para os fundos da casa. Eles não chamam as
mulheres para pesquisar. Fiquei observando isso desde quando meu marido era vivo e eu
me perguntava: por que os antropólogos vão à aldeia e só pesquisam os homens? Só andam
com os homens? Os mensageiros da aldeia são os homens, para dar notícia, para distribuir.
Mas é falsidade os homens explicarem tudo porque não sabem tudo. As mulheres sabem
muitas coisas, passam o dia inteiro fazendo enfeite para os caçadores, porque eles não podem
andar sem enfeite. Se andarem sem enfeite, não matam nada. Aprendemos assim: sabemos
fazer desenho no corpo, pintar, cortar o cabelo do jeito Krahô… Só quem corta o cabelo
das pessoas é a mulher mais velha que não menstrua mais, uma mulher nova não pode
cortar o cabelo de ninguém. A gente tem que participar só olhando mesmo, olhando muito
como corta, como arranca, porque o cabelo é arrancado um por um. Mas, mesmo assim,
os homens são os mensageiros para levar as mensagens do trabalho das mulheres para os
antropólogos e devolver de novo para as mulheres. Ao pesquisar, vi que a maioria das
coisas não é do jeito que estão registradas, porque são as mulheres que fazem e os homens
que contam. Mal acredito que tinha tanta coisa guardada com as mulheres mais velhas!
Nunca saiu nada das histórias das mulheres Krahô, de como faziam as coisas, nenhum
livro conta a mulher Krahô. Nenhum. O antropólogo pode ser mulher, pode ser homem,
o que for, vai pesquisar os Krahô e só procura os homens. Eu pesquisei a maioria das
mulheres. Eu fui atrás só das mulheres. Na aldeia Pé de Coco, fui pesquisar as mulheres
e depois fui pesquisar o pajé Tejapoc, que morreu no ano passado. O que as mulheres
me contaram, já ele me contou diferente das mulheres. Eu juntei todo mundo e perguntei:
“O que é verdade aqui agora?”. Eu estava com um som ligado ouvindo o homem falar
e perguntei: “Isso é verdade, o que ele está falando?” E a mulher: “Não!”. “E agora?
Eu quero saber quem vai contar a verdade para mim!” E foi assim até chegar ao fim da
pesquisa. (PRUMKWYJ KR AHÔ, on-line)
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E ntrevista com A manda S cherer
Universidade Federal de Santa Maria
“ Para mim, enquanto materialista, não consigo ver aplicabilidade, certo? Para mim,
ser “responsável” por um curso de formação de professores e estar em uma “orientação”
de futuros pesquisadores é pensar na indissociabilidade entre prática e teoria… Não
tem isso, não existe isso de “Olha, agora está aqui a teoria e vamos ver como funciona
na realidade”. Primeiro que não tem realidade. Se tu não te deparas com o real não
adianta, certo? E, para mim, essa coisa da aplicabilidade é negar o real, é afastar algo
que é da ordem da ciência para pensar uma questão mais pedagógica. E por que isso
não existe? Porque produzir ciência não é uma coisa apartada do real. Tu produzes
ciência, por mais que se diga a “ciência dura” ou “linguística dura”. Tu não inventas
a frase, se tu inventas a frase, tu estás pedagogizando e aí é deslocar algo de um lugar
para tentar encaixar em outro.”.
9
N.O.: Livro publicado em francês em 1977 pela Éditions du Seuil. Atualmente, no
Brasil, é publicado pela Editora Unesp. Sobre isso, ver Barthes (2018) nas referências.
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sou contra, mas isso não é produzir. Isso é relatar, isso é discutir. E eu
acho que é isso que mais me estarrecia à época. Eu, por exemplo, custei a
entender quem era aquele sujeito que de vez em quando entrava na aula
do Roland Barthes, dizia algumas coisas e saía. Só depois fui descobrir
que era o Lacan! Hoje eu sei… O próprio Foucault, eu acho que assisti
umas duas falas dele, porque ele estava no Vigiar e Punir . O povo pedia
para discutir sobre Vigiar e Punir, sobre o que seria isso. Eu entrava nesses
locais, escutava, pouco tomava nota, porque eu não entendia muito bem.
Isso estava totalmente distante de mim. Ainda assim, eu coloco a palavra
deslocamento porque para mim é isso que é o fundamental. Isso me
ajudou, não naquele momento, não na certificação… tanto que, quando
eu volto e faço concurso, essa experiência não valeu nada para mim. Ou
melhor, não valeu para a universidade federal. Inclusive, perdi pontos no
currículo porque eu não tinha certificados e tudo mais.
***
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N.O.: A Quarta Colônia de Imigração Italiana foi o quarto assentamento de coloni-
zação italiana na então Província do Rio Grande do Sul e fica próxima ao Município de
Santa Maria, na Mesorregião do Centro Oriental Rio-Grandense.
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modo é diferente. Há esse imaginário que, a partir de outros que estão
circulando, vão regular, a partir de uma repetição x, para se construir esse
imaginário que polenta é de italiano. Não trabalho com misto também,
para mim a língua não tem nada de misto… e nem essa possível totalidade,
como se imagina. Mas, quem plantava nessa época o milho? Quem colhia
o milho? Quem fazia a farinha? No Rio Grande do Sul, era a comunidade
negra, era o escravo. E aí tu tens polenta e tu tens pirão; polenta é o milho
amassado e o melhor dele, o que sobrava ia para o angu, para o pirão. Os
dois poderiam ser polenta, mas polenta carrega uma história que tem a
ver com a imigração, mas que também tem a ver com a escravização. Tu
já tens uma separação histórica nesse comer, nesse alimentar. Uma está
ligada a uma questão europeia, e a outra parece que se apaga.
***
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N.O.: Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
“o Talian é uma das autodenominações para a língua de imigração falada no Brasil na
região de ocupação italiana direta e seus desdobramentos desde 1875, em especial no
nordeste do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso e Espírito Santo.
Sua origem linguística é o italiano e os dialetos falados, principalmente, nas regiões do
Vêneto, Trentino-Alto e Friuli-Venezia Giulia e Piemontes, Emilia-Romagna e Ligúria.”
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/183/#:~:text=O%20Ta-
lian%20%C3%A9%20uma%20das,Mato%20Grosso%20e%20Esp%C3%ADrito%20
Santo. Acesso em: 08 abr. 2023.
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da questão da escravização. Porque, por exemplo, toda a questão de
adivinhações: “Quem é que…?” Isso é da cultura africana, da cultura
banto. E parece ser isso do italiano. Eu não estou dizendo que tem que
separar. O que eu quero dizer é que enquanto a língua é conteúdo, ela está
fora do real. Ela se encaixa nesse imaginário da totalidade do italiano. E
o que nós precisamos fazer é desconstruir essa própria identidade, que é
uma identidade imaginária. Eu não estou dizendo que as identidades não
são imaginárias, elas são. Mas tu tens aí um vínculo que é externo, e que
não é um vínculo de onde tu estás vivendo.
Aí eu volto com a questão do deslocamento. Eu alimento algo que é
inacessível, mas eu não estou dizendo que a coisa é acessível. Eu alimento
algo que está cada vez mais fora, que faz parte de mim, mas que está
fora. E eu preciso fazer esse verso-reverso para entender, também, como
eu me constituo nas formulações que eu digo, nesse exagero que eu vou
colocando. Porque polenta é do italiano, aí depois eles chegam lá e ficam
desesperados porque não tem polenta. Então, a Itália está diferente? Não.
O que tem e onde tem polenta? Eu não estou dizendo que não tenha, mas
eu preciso entender que aquele “dizer sobre” é um dizer estereotipado que
corresponde a esse mundo do geral, a esse mundo da totalidade. E esse
mundo da totalidade não existe. Enfim, a gente trabalhou com um bocado
de coisas sobre isso. E é sempre polêmico porque algumas vezes vem a
pergunta “E aí, como é que eu ensino a língua?” Bom, quando eu faço essa
pergunta, é porque eu estou preso a esse “real gramatical”.
Ah, sobre como pensar a materialidade da língua? Primeiro, o que
eu entenderia como materialidade da língua, não é? Segundo, o que é
língua? O que é língua para a educação e o que é língua para a minha
constituição? Como eu me constituo? Eu tenho o formal, o crédito, a
disciplina, o número de horas… Isso, para mim, é ter uma concepção de
língua, e é nisso que eu tenho batido nos últimos tempos, que é a língua
do conteúdo. Isso, para mim, está ligado com uma questão de formação
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formal. É horrível dizer isso, mas é. “Isso é um conteúdo de quinta série,
de um quinto ano” e “Não, isso aí não é mais conteúdo de primeiro ano
de ensino médio. Não, gente, isso aí eles viram lá.” Bom, no que eu estou
pensando? Eu estou pensando a língua como conteúdo. E aí que se encaixa
a educação linguística. “Porque é não ensinar a gramática, mas ensinar a
gramática de outra maneira”. Sim, tudo bem. O cara que não sabe falar
aprende a dizer as coisas bonitinhas, e ele tem uma educação linguística.
Mas aí o que ele faz na hora de pedir emprego? O que eu quero dizer é:
como pensar a língua fora de um conteúdo? E para mim, isso é o que dá
mais trabalho. E a problemática do livro didático é não conseguir fazer
essa relação. Porque não é a fotografia, não é a imagem colorida. Eu me
lembro que nos anos 70 começa a questão do punk. Tu tens lá a foto do
punk, da meninada toda vestida de preto, pintada. E você tem formação
do nome “menino”, “menininho” e “meninada”, lá no quinto ano… mas
e o punk, o que faz do lado? Você pode dizer “punk”, “punkinho” e
“punkada”? Não, não pode! Então tu tens um real, tu tedeparas com um
real que não tem funcionamento no conteúdo. Para mim, a materialidade
da língua não é o “falar bem”, é como eu me coloco nela para falar de
mim. É difícil? É. É muito difícil. Eu me lembro que quando eu dava aula
de francês e devia dizer “Francês é assim. Mas se vocês forem na França,
vocês têm que tomar cuidado com isso”. O que eu estou fazendo? Eu
estou dando uma direção de sentido. Mas, ao mesmo tempo, eu estou no
estereótipo. Ao mesmo tempo, o que eu tenho que fazer, na verdade, é
desnaturalizar a língua como algo tão somente de conteúdo. A língua é o
que eu sou e, também, o que não sou.
***
46
de nosso dispositivo teórico-analítico. Como os encontros atuais –
entre teorias, pesquisadores e projetos – possibilitam outras formas
de fazer uma educação discursiva no Brasil?
12
N.O.: Sobre o Grupo Arquivos de Língua, ver: https://gal.hypotheses.org/
48
você poderia nos dizer quais são as possíveis contribuições que
uma perspectiva discursiva da História das Ideias Linguísticas
pode dar para a educação linguística em língua estrangeira, em seu
caso, a francesa e, assim, contribuir para afastar o imaginário de
língua estrangeira que ainda se faz presente em diferentes níveis
escolares: uma língua engessada, fechada em si mesma, feitas de
palavras e frases soltas? Para além disso, como os conceitos de
disciplinarização, manualização e pedagogização (ou, ainda, a
historicidade deles) pode vir a contribuir na formação de professores
de línguas?
A. S.: Eu acho que eu já respondi tudo isso antes (risos). Eu até coloquei
aqui, assim: “Livro da UFSM”. É aquele livro que a Verli Petri e a Cristiane
Dias organizaram, o Análise de Discurso em Perspectiva: Teoria, Método e Análise.
Nesse livro, eu acho que eu falo um pouco dessa coisa, e é o que eu tenho
trazido agora, que é essa ideia de “o francês é”, certo? E não é à toa que
uma gramática é cheia de definições. Porque uma definição determina,
aparta e recorta e te encaminha para uma totalidade. Ela aparta, ela divide,
ela encaixa, mas sempre para um determinado ponto de vista. E esse ponto
de vista é encaminhado para uma questão do geral. Hoje eu consigo fazer
uma recuperação – eu não sei se é recuperação –, mas eu consigo pensar um
pouco melhor sobre esse sujeito professor de língua francesa e ver que, de
algum modo, eu era uma repetidora de conteúdo. Inclusive, eu criava algumas
fórmulas mágicas para que os alunos entendessem, ou melhor, para que os
alunos pudessem utilizar. Por exemplo, é difícil para um brasileiro… Olha
só, como eu já estou determinando. É horrível sair disso. Esse positivismo
está encarnado na gente (risos). Enfim, é difícil compreender a questão do
pour e do par, certo? Pois se tu vais traduzir “eu quero fazer uma pergunta
para o fulano”, “eu quero ir para a casa”. Olha só como eu trabalhava uma
questão de conteúdo? Isso me fez lembrar desses últimos dois dias, pois,
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durante a Escola de Altos Estudos13, tivemos um rapaz da Universidade
Federal de Pelotas e ele queria fazer uma pergunta para a Irène Fenoglio,
porque ela só falou francês. Em um dado momento ele veio me perguntar:
“Como é que eu uso o par ou pour”. E eu, assim, mecanicamente trouxe o
conteúdo, que é: “pour é para direção, e par é o meio”. E ele disse: “Ah! Por
que eu nunca pensei nisso?”. Depois eu pensei: “Esse cara vai levar isso para
o resto da vida. Hoje vai dar certo, mas depois não vai mais dar certo”. O
que eu quero dizer é: isso é muito do sujeito professor, do sujeito professor
de línguas. É o trazer fórmulas que no início do aprendizado até funcionam,
mas funcionam porque a língua ainda está sendo a língua de conteúdo. E aí,
para colocar essa língua em funcionamento, ela deixa de ser de conteúdo –
funcionamento, que eu digo, na relação com o outro, certo? Eu me lembro
que eu trazia fórmulas do tipo: être e avoir. São dois auxiliares em francês
e utilizamos no passé composé, nesse passado composto do francês, porque
a gente ensina que o outro passado, o simples, é literário, superficial. Por
exemplo, o Michel Temer falando, não é? Não tem nada que seja de maior
superficialidade de conteúdo colocado ali, tu te divertes com as formulações.
Mas depois, de algum modo, tu acabas pensando: “Espera aí, mas o que é
mesmo que ele disse?” Porque tu te ocupas desse dizer do Temer, dessas
mesóclises, dessas ênclises que ele vai colocando. Tem algo interessante
também de pensar que é quando tu estás na coisa mesmo, do funcionamento
da língua, que não é mais uma língua de conteúdo e que não é mais aquela
anotação: “ah, ele sabe empregar o verbo être e o verbo avoir”, que funciona
lá na língua de conteúdo. Eu lembro que eu desenhava uma casinha e dizia:
“Tudo que tem direção à casinha, você terá o être”. Mas aí, mesmo dizendo
isso, eu pensava: “Bom, mas isso não funciona para isso, para aquilo”. Aí eu
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N.O.: A entrevistada se refere ao evento que ocorreu nos dias 21 e 22 de novembro,
no Centro de Documentação e Memória da UFSM em Silveira Martins. Informações
sobre o evento podem ser obtidas em: https://www.ufsm.br/orgaos-de-apoio/silveira-
-martins/ii-escola-de-altos-estudos e em https://www.instagram.com/cdmufsm/. Aces-
so de ambos os links em 31/03/2023.
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dizia que era exceção. Mas é exceção, ainda, dentro da língua de conteúdo,
tu entendes? E eles “aprendiam” o quê? A língua de conteúdo. Não sei se eu
me faço explicar, mas isso é muito legal. E eu acho que é isso que me leva,
a partir do Puech14, a pensar isso. Como eu vou disciplinarizar uma língua?
Como eu vou torná-la de conteúdo? Como eu vou colocar essa língua em um
manual? Como eu vou pedagogizar? No sentido de o que será um conteúdo
inicial e o que será um conteúdo final? “Ah, não, isso não dá para dar para
eles ainda porque eles não entendem”. Como assim? Eles não entendem
a nomenclatura da língua de conteúdo porque eu pedagogizei. Porque eu,
imaginariamente, criei etapas. Eu me lembro que quando eu era professora
de francês, no início, os alunos faziam textinhos lindos. Mas, sem passado,
sem presente e sem articuladores. Eles separavam os períodos somente com
pontos finais. É bárbaro pensar nisso. Mas onde eu estou nisso aí? Eu estou
em uma pedagogização. Por quê? Porque eu tirei essa língua desse lugar que
é maravilhoso para colocar na escola. Por isso educação. E, por isso, tarefas.
“Qual é a tarefa da educação linguística?”. Tu continuas tratando da escola.
Tu estás separando, estás dizendo que a língua na escola é uma língua de
conteúdo e por isso tem que ter tarefa. Porque a mãe não diz “Bom, nós
vamos fazer essas tarefas”, ela diz “Quais são as tarefas que tem para a
escola?”. Então, quer dizer que ela mesma já afasta, ela se desresponsabiliza,
porque parece não ser dela a competência. E, no entanto, ela está falando
com esse menino o dia todo coisas como: “Não, isso você não deve dizer
para o vô” e “Não, é assim que se diz”. Isso eu acho que tem bastante
nesse texto que eu estava lendo agora. Eu levantei mais cedo e estava lendo.
Aliás, tem um texto que eu cito no final que é do Daniel Bensaïd e que eu
adoro, que é, sob minha tradução: “Conceber o tempo político como um
tempo partido, descontinuado, ritmado de crises. É pensar na singularidade
14
N.O.: A entrevistada se refere ao texto de Christian Puech, publicado originalmente
em 1998 e traduzido em 2018 por Maria Iraci Sousa Costa, Amanda Eloina Scherer e
Maurício Bilião. Sobre isso, ver Puech (2018).
51
das conjunturas e das situações. É pensar no acontecimento não como um
milagre surgido do nada, mas como historicamente condicionado, como
articulação do necessário e do contingente, como singularidade política”.
Eu acho que é possível terminar nossa conversa com isso hoje. Essa citação
está do meu texto (SCHERER, 2013), presente no livro Análise de Discurso em
Perspectiva: Teoria, Método e Análise, na página 259, em francês. É lindo demais.
***
A. S.: Eu acho que, de algum modo, falei sobre isso no decorrer das
perguntas. De todo modo, apenas para fechar, trarei algo que tenho
acompanhado e que acho muito legal. Tem uma professora da escola
municipal de Silveira Martins que é alfabetizadora e está fazendo
Doutorado em Educação sobre letramento digital. Sabendo que a
gente tinha um laboratório de informática, ela fez um projeto para que
se pudesse pensar o digital. Nosso secretário, feliz com aquilo, veio me
falar sobre isso e o projeto tem sido desenvolvido lá na UFSM. Vejam
que legal: ela é uma pedagoga. A linguística passou longe da vida dela. A
discussão sobre o que é a língua passou longe da vida dela e, possivelmente,
continua passando. O que ela fez para essa criançada? Eles são bonitinhos.
Quando eles descem do ônibus escolar, eles estão loucos para chegar no
computador. São vinte e duas crianças, de seis a sete anos. Enfim… Ela
criou, individualmente, um e-mail para cada um. Porque, agora, eles iriam
escrever uns para os outros no computador. E tu não podes saber o que
essas crianças cresceram da noite para o dia. Porque, “Ah, professora, eu
quero dizer isso para ele”, mas eles não sabem o “isso” ainda! Entendes?
Não funciona como a cartilha de antigamente: “O ovo é da Dadá”, “O
Olavo viu a uva”. Essas crianças nunca vão colocar, por exemplo, “Olha,
52
o João viu a uva”, embora estejam em uma região de uva. O que eu quero
trazer é que esse projeto despertou nessa “criançada” um processo de
escrita e de leitura. É o lugar da palavra na vida de cada criança dessas. Não
é “o Olavo viu a uva” que está sendo importante. Eu acho isso bárbaro.
Eu sou apaixonada. Eu já chorei duas vezes, assistindo isso de camarote.
Eles acabam esquecendo o mundo em volta, entende? É muito bonito
ver as crianças falando “Professora! Professora!”, “Ele me mandou ‘isso’,
professora. E eu entendi ‘isso’. É ‘isso’ mesmo, professora?”, “Vem cá
ver, professora!”, “Professora, como é que é ‘isso’?”. Porque “professora,
ele me mandou uma palavra”, e aí eles estão indo pesquisar a palavra no
Google. E ela ensinou a eles que também tem a questão da oralidade. Que tu
pedes ao Google: “Como eu escrevo ‘carroça’?”, e o Google dá a palavra
carroça. E eles copiam a palavra carroça. É lindo demais.
***
53
54
E ntrevista com A na M aria Di Renzo
Universidade do Estado de Mato Grosso
15
N.O.: A entrevistada se refere ao Programa de Mestrado Interinstitucional (Minter),
promovido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
para a “formação de recursos humanos qualificados para o desenvolvimento sócio-ecôno-
mico-cultural, científico-tecnológico e de inovação”. Sobre isso, orientamos ver: https://
www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/bolsas/bolsas-no-
-pais/programasencerradosnopais/minter-e-dinter-capes-setec. Acesso em 10 abr. 2023.
57
mestrado, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Fausta Pereira de Castro,
discuti o repetível no processo de aquisição da escrita e, já em conversas com
a profa. Eni Orlandi, a minha reflexão apontava para uma forte relação com
a história dos sentidos que pressupunha a relação da língua com a história.
Ao terminar o mestrado, ingressei para o doutorado sob a orientação da
Profª. Eni. Obviamente, a esta altura, já imersa em inúmeros encontros pelo
Brasil afora, em grupos de pesquisa, enfim, na criação de um Centro de
Estudos e Pesquisas em Linguística na própria UNEMAT. Nessa trajetória,
tomei como objeto de reflexão a institucionalização da língua nacional e a
criação de grandes colégios pelo Brasil, dada a minha inscrição na História
das Ideias Linguísticas, a fim de construir uma elite pensante, dentre outras
ações, cujos efeitos institucionalizariam determinadas compreensões sobre
sujeitos e sentidos. Tive a oportunidade de estudar 1 ano na École Normale
Supérieure de Lyon-França, sob a supervisão de Francine Mazière, que me
permitiu compreender a relação língua, história e ideologia.
Tomei para estudo o Colégio Lyceu Cuiabano de Cuiabá/MT, sob a
inscrição na HIL e na AD, para compreender como se deu a espacialização
e a textualização da língua nacional na conjugação com a formação de
sujeitos para o Estado. Nessa direção, aprofundei-me na relação entre
ética e políticas de língua, na qual me assentei para orientar dissertações
de mestrado e teses de doutorado, tanto no programa acadêmico quanto
no profissional. Atualmente, encontro-me vinculada ao Programa de
Mestrado e doutorado em Linguística e no Programa de Mestrado em
Letras, ambos da UNEMAT, dentre outras funções16.
***
A. R.: Penso que essa questão deve ser tratada com bastante ética, em
primeiro lugar. Faço essa ponderação para evitarmos possíveis banalizações
teóricas ou mesmo um aplicacionismo esvaziado de procedimentos teórico-
analíticos sustentáveis no arcabouço teórico da Análise De Discurso de
linha materialista que construiu Eni Orlandi e seus pesquisadores afiliados
pelo Brasil. Penso que a Análise de Discurso pode contribuir fortemente
para pensar a constituição das políticas públicas de língua, as políticas
públicas de financiamento da educação brasileira, as políticas públicas de
produção de ciência, dentre outras tantas possibilidades.
Como amplamente divulgado, tem-se que o país tem uma escassa
formação em língua portuguesa quando avaliado o desempenho dos
estudantes em leitura e escrita, por exemplo. Em primeiro lugar, temos que
compreender que esses são processos que merecem profunda reflexão,
posto que aferir eficiência de/em linguagem não se faz com lógica
matemática, pois a interpretação conclama a relação dos sentidos com suas
condições de produção sócio-históricas. Entretanto, as políticas públicas
de língua têm se sustentado restritivamente em uma concepção cognitiva,
o que esvazia a relação com o sujeito e o mundo, por compreendê-los
do lugar da transparência dos sentidos, do lugar da língua como sistema
organizado e estável, dentre outras características. Os estudos discursivos,
nessa afiliação teórica, inscrevem a relação do sujeito com a língua no
campo das relações entre memória, história e ideologia, desvinculando-
se da compreensão da leitura que busca o que o autor quis dizer, de uma
compreensão de interpretação como algo já dado, que o sujeito controla
as suas intenções. Para essa área, os estudos e pesquisas desenvolvidos
59
pela AD podem romper com essa compreensão para, em seu lugar,
compreender o sujeito enquanto posição; a leitura como atribuição de
sentidos pelo sujeito que considera as condições de produção; a escrita
como representação do pensamento, e por aí afora.
A Análise de Discurso e a HIL são os campos teóricos que nos
permitem mobilizar língua e história na constituição de sentidos como
condição para compreender, justamente as políticas públicas de língua,
procurando analisar os seus efeitos sobre a língua e seu ensino. A HIL, por
se constituir como uma “visão histórica das Ciências da Linguagem”, nos
possibilitou tomar os instrumentos linguísticos — gramáticas, dicionários,
manuais, normas etc. — como objetos discursivos” (NUNES, 2008 p.107).
Ao se tomar a história do conhecimento como uma questão discursiva,
promovem-se desdobramentos diversos em estudos que articulam esses
dois campos: HIL e AD. Nesse sentido, a articulação entre a AD e HIL
incide sobre nosso gesto de leitura, tomando discursivamente a relação do
sujeito com seus instrumentos linguísticos, tal como cadernos de provas
de língua portuguesa do ENEM, livros didáticos como instrumentos
constituídos histórica e ideologicamente, perpassados pelas relações do
Estado com o simbólico.
***
A. R.: Penso ser essa uma resposta difícil de explicitar. Primeiro, talvez
fosse necessário alargar algumas compreensões de que a língua, enquanto
discurso, não interessa apenas a pesquisadores da linguística, mas que, no
entanto, somente ela está autorizada a fazer determinadas análises por
dispor de procedimentos teórico-analíticos muito específicos, que requer,
por sua vez, um conhecimento mínimo da sua organização.
61
Como teoria do discurso, pode (e deve) contribuir para que ‘discursos
sobre’ em outras áreas do conhecimento possam ser compreendidos
do lugar da relação língua, memória, história e ideologia, igualmente
produzindo rupturas com sentidos logicamente estabilizados, o que ocorre
com a maioria das ciências.
Para mim, educação discursiva é uma formulação muito forte que
pode nos inscrever em uma relação com os sentidos de que educar é
capacitar ou qualquer coisa que o valha. Se bem cuidada a sua inscrição
no dizer, penso que pode haver diversas contribuições, tais como algumas
áreas têm contribuído, a meu ver: a arquitetura, o jornalismo, a história
etc., até mesmo áreas da saúde. Nessa direção, é preciso considerar de que
lugar se está enunciando e para quem se enuncia. Logo, trata-se de uma
possibilidade do dizer outro, mas não de uma justaposição de sentidos
entre as diversas áreas e suas correntes teóricas. Daí a importância da
escola como lugar de interpretação da ordem social, de dar condições aos
alunos de promoverem um espaço significante com sua realidade social,
tornando-a visível, significável, para que possam romper com uma leitura
verticalizada, abrindo-se ao deslize, à metaforização. O que significa “saber
ler e escrever” nos sentidos das formulações que constituem as políticas
públicas de língua? É justamente nesse espaço que devemos atentar para as
materialidades linguísticas que essas políticas fazem circular como sendo
conhecimento de língua.
Esse questionamento aponta para a incompletude e para as
equivocidades da linguagem que colocam determinados sentidos em
movimento e não outros, de tal maneira que nossas análises sobre políticas
linguísticas nos possibilitaram observar o funcionamento da sobreposição
do gesto de interpretação daqueles que as formulam em relação ao efeito-
leitor, pela interdição do gesto de interpretação daqueles a que a elas estão
assujeitados. Assim, o modo como são formuladas, podem configurar-
se como uma tentativa de homogeneizar o processo de interpretação,
62
fazendo parecer evidente que o sentido só pode ser um, instaurando
uma unidade imaginária do sentido, um projeto totalizante de ciência da
linguagem, política pública de língua e seu ensino.
***
63
A. R.: Bem, essa foi uma pesquisa que, ainda que breve, muito nos
instigou. Ao refletir sobre as políticas linguísticas destinadas a essa
modalidade formativa, tocamos, para além dessas relações, a sua relação
com o político/religioso e os discursos outros que se materializam na/pela
linguagem – um percurso de estudos para compreender a forma histórica
da educação de jovens e adultos pelas quais funcionam as políticas de
ensino da EJA até os dias atuais. Refletimos sobre os modos de produção
desses acontecimentos, buscando compreender de que forma o ensino
da língua portuguesa faz funcionar um imaginário de qualificação para o
trabalho, para esse sujeito da EJA.
Tomar a historicização da escolarização brasileira pela Análise de
Discurso não significa olhá-la como uma evolução temporal, mas como
deslocamento, como movência dos sentidos em que sujeito, ideologia
e língua são ressignificados pelas condições históricas. Dito de outra
maneira, historicizar é reconstruir a história do saber linguístico, na qual
a base de constituição do sujeito é sobredeterminada por uma relação de
forças, não como um mero instrumento de formação, mas, sobretudo,
como uma formação/capacitação estruturante para atender as condições
de produção vigentes na/pela sociedade.
Nessa direção, compreendemos por que a Educação Brasileira foi
marcada pelo elitismo, que restringia a educação somente às classes mais
abastadas. Sendo assim, marca o lugar da privação do acesso à escolaridade
como direito de todos.
No Brasil, como afirma Orlandi (2002), não se nasce cidadão, se
“aprende” sê-lo. Um sujeito é constituído cidadão pela sua relação com a
língua, por isso, é necessário dizer que a relação escrita, Estado e sociedade
está na origem da relação da língua com a história na constituição dos sujeitos
e dos sentidos. Os sujeitos, para existirem, precisam ser “trabalhados
64
de dentro para fora” (ibid., p. 226), pela Escola para o Estado. E nesse
movimento, a escrita é a “matéria de significação do sujeito” (ibid., p. 257),
pois produz no sujeito o efeito de estar na origem do que diz. Efeito que
se dá “como forma material da relação com o simbólico numa formação
social como a nossa, com suas leis, regras e Instituições” (ibid., p. 243).
Assim, pensar as políticas que foram sendo implantadas na educação
da EJA e o modo como o Estado articula a produção de conhecimento e
ordenamento dos sujeitos mostra como ele exerce seu poder para assujeitar
os indivíduos aos seus modos de produção vigentes e aos processos de
individuação.
***
17
N.O.: A entrevistada se refere às Diretrizes Curriculares Nacionais.
65
fio do discurso engendra-se o imaginário de professor, língua e sujeito. O
mesmo ocorre com a formação em Pedagogia e outras licenciaturas.
A partir daí, chegamos também à elaboração dos instrumentais de
um ensino, a exemplo, livros didáticos e métodos de alfabetização que se
estruturam em concepções empíricas de língua. Como afirmou Orlandi
(2018, p. 222), “para ser um profissional das Letras, não basta saber
uma língua, pois é preciso saber que a sabemos. E podemos observar
isto através das ferramentas que construímos, que usamos, e do modo
como a ensinamos”. Tal formulação nos faz refletir sobre a complexa
relação universidade-língua-escrita-escola, dentre outras. Segundo ainda
a autora, produzir conhecimento sobre Letras, língua, literatura e suas
manifestações conexas é uma possibilidade de ação no mundo e de
produção e de recepção do conhecimento, especialmente, quando toca o
processo de formação que implica em sua profissionalização.
O dispositivo teórico da AD, no entremeio com a HIL, possibilita,
por exemplo, observar o modo como os instrumentos linguísticos como
a BNCC-Ensino Médio e os Projetos Pedagógicos das escolas vão se
configurando e como textualizam a relação com o ensino da língua. Na
sociedade dividida entre quem é escolarizado e quem não é, entre quem
lê e quem não lê, necessário se faz produzir rupturas paradigmáticas que
constituem os documentos enquanto políticas de língua administradas
pelo Estado e colocam em funcionamento um discurso que determina
a formação do professor de Letras, em nosso caso, que controlam o que
deve ser ensinado ao professor e como ele deve ensinar e o que ensinar.
Estado, Currículos (Letras) e Ensino entrelaçam-se pelo normativo, pelos
instrumentos linguísticos que textualizam as formas de controlar o que
e o como se deve ensinar. E, nessa esteira, no par teoria e prática, são
as concepções de competência e de habilidade que se tornam fundantes
66
nas políticas instituídas. Produzir rupturas nessas concepções é o maior
desafio na relação do professor em sua práxis pedagógica.
***
A. R.: Justamente, não poderia terminar essa conversa sem tocar na noção
de resistência, espaço do sentido outro que produz a diferença, pois, para
Pêcheux (1977), a ideologia é um ritual com falhas (PÊCHEUX, 1997). É
nesse movimento que se pode produzir a mexida necessária; é por meio
de pesquisas que desnaturalizam a relação escola-Estado que rompemos
com o silêncio que aliena e individua assujeitando a relação do sujeito
com linguagem a conhecimentos sobre a língua, sem experimentar a sua
relação com a exterioridade que modifica suas condições de produção,
oportunizando uma nova relação com o simbólico.
As políticas públicas educacionais e as linguísticas engendram as
práticas escolares, de forma a individuar os sujeitos que ocupam os espaços
sociais. Dessa forma, políticas públicas sociais deslocam as políticas
educacionais, o que reforça o discurso de uma sociedade do conhecimento
evoluída pela educação, na qual se prepara os cidadãos para o mercado de
trabalho. Ao refletir sobre o conhecimento, Orlandi (1987) disse “[...] que
eles não são partilhados, mas são socialmente distribuídos”, o que nos faz
compreender que não é acessível a todos os sujeitos, sendo “comuns”,
mas não “iguais”, o que faz funcionar uma “desigualdade na distribuição
do conhecimento”. Dessa forma, o discurso educacional se constitui de
67
um passado sempre presente, e que, em relação a um Estado que falha,
continua sendo sempre elaborando políticas que atendem alguns interesses
e não outros.
***
68
E ntrevista com A ndrea R odrigues
Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
Faculdade de Formação de Professores
69
e no doutorado, mas permanecia com algumas inquietações que não eram
objeto de estudo das teorias estudadas. Eu queria uma abordagem mais
ampla, que me permitisse analisar as produções de linguagem à luz de
uma exterioridade que a Análise do Discurso define como constitutiva.
Comecei então a retomar alguns trabalhos desenvolvidos em disciplinas
do doutorado, mas dessa vez com a abordagem teórica da Análise do
Discurso. Em 2011, Lucia Alves Ferreira me acolheu no grupo de pesquisa
Discurso e Cidade, coordenado por ela no Programa de Pós-Graduação
em Memória Social da UNIRIO. Sob sua supervisão, desenvolvi pesquisa
de pós-doutorado voltada para a produção de sentidos sobre a cidade
do Rio de Janeiro pela mídia estrangeira à época das implantações das
primeiras UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) nos morros cariocas. Ao
pesquisar sobre a mídia, comecei a propor e a discutir práticas de leitura
de textos jornalísticos com meus alunos de graduação e pós-graduação em
Letras. Eu havia ingressado como docente na Faculdade de Formação de
Professores da UERJ e, dois anos depois, passei a ter a oportunidade de
dar aulas para professores da educação básica da rede pública – tínhamos
conseguido a adesão ao PROFLETRAS em nossa universidade. Com
isso, aos poucos fui passando a orientar pesquisas práticas de professores
mestrandos sobre leitura, produção textual e autoria na escola a partir da
abordagem teórica da Análise do Discurso.
***
70
A. R.: Indursky (2011) nos lembra que a Análise do Discurso não surge com
objetivos voltados para o ensino, mas ao mesmo tempo a autora destaca a
possibilidade de um/a professor/a se apropriar dessa abordagem teórico-
metodológica e incorporá-la em suas práticas em sala de aula. E como
pode um professor orientar sua prática por esse aporte teórico no contexto
atual de ensino do país? Penso que não podemos ignorar que, mesmo com
as críticas que podem ser feitas ao texto da BNCC, considerando inclusive
as suas condições de produção, ele é o documento normativo atual para
a educação básica. Os livros e outros materiais didáticos, bem como os
currículos das redes municipais e estaduais, são pautados pela BNCC –
que, na área de Linguagens e suas tecnologias, apresenta uma proposta
de organização do currículo fortemente baseada nos gêneros do discurso,
articulada a uma lista de competências e habilidades a serem desenvolvidas
pelo aluno ao longo da educação básica. Contudo, independentemente de
esse documento ser inspirado em outras perspectivas teóricas, costumo
defender que os quatro eixos das práticas de linguagem apresentados
pela BNCC podem ser abordados por atividades inspiradas no aporte
teórico da Análise do Discurso. No eixo da leitura, um/a professor/a
de língua pode, ao tomar como ponto de partida a discussão sobre as
práticas de leitura e suas condições de produção (ORLANDI, 1988, 2006;
INDURSKY, 2001, 2010, 2019), propor atividades de leitura e de escuta
em que haja espaço para a interpretação, a tomada de posição, a leitura
polissêmica. Em um contexto de ensino em que nos deparamos com
atividades de leitura que muitas vezes se resumem a explorar com o aluno
as características de gêneros do discurso, é muito importante existirem
propostas que, como aponta Indursky (2020, p.19), “coloquem o texto
em relação com os outros textos, outros pontos de vista, rompendo as
fronteiras físicas que o separam da exterioridade”. Ou seja, no lugar da
71
comparação entre diferentes gêneros, haveria a proposta de o aluno ser
exposto a textos com pontos de vista distintos, e assim poder realizar uma
leitura não somente parafrástica, mas polissêmica, lembrando, também
com Indursky (2020, p.19), que “interpretar implica tomada de posição
por parte do sujeito leitor frente ao texto”. No eixo da produção textual
– e aqui também podemos incluir o eixo da oralidade – as discussões
sobre autoria na escola (ORLANDI, 1988; 2007; PFEIFFER, 1995;
LAGAZZI-RODRIGUES, 2006) podem contribuir para a formulação de
práticas que convoquem o aluno a assumir seu ponto de vista na produção
de seus textos, a se apropriar de outros textos para criar seus “recortes
discursivos” (INDURSKY, 2006) e produzir sua autoria – na escrita e na
fala. Para pensar esse repertório ao qual o aluno pode recorrer, é relevante
lembrar da noção de arquivo pedagógico, definido por Indursky (2019,
p. 107) como um conjunto de textos ou outras materialidades discursivas
reunidos pelo professor com sua turma, em geral em atividades prévias de
leitura, e que pode funcionar como um “simulacro” de redes de memória,
em que os saberes sobre um determinado tema podem estar organizados,
inclusive com diversos pontos de vista. Desenvolver práticas de produção
de texto a partir de leituras, debates, acolhendo outros pontos de vista,
são formas de um fazer pedagógico inspirado na abordagem da Análise do
Discurso, que vai significar a escrita como uma prática discursiva e, como
tal, relacionada a práticas de leitura, à possibilidade de assunção da autoria
(ORLANDI, 1998), à produção de sujeitos leitores-autores – lembro aqui
que Indursky (2020, p.19) observa que essa mudança se faz praticando:
“não é de imediato que o aluno passa de leitor-reprodutor a sujeito-leitor”.
Quanto ao último eixo apresentado pela BNCC, o da análise linguística,
voltarei a ele mais adiante, em outra pergunta. Mas termino esta resposta
reafirmando que a Análise do Discurso pode trazer com essas noções
72
– e muitas outras – diversas contribuições para inspirar as práticas de
professores de língua, literatura e produção textual.
***
73
por exemplo, que um termo considerado opcional/acessório do ponto de
vista sintático, como um adjunto adverbial, por exemplo, pode produzir
determinados efeitos de sentido, pode inserir esse texto em uma ou outra
formação discursiva, modificando os modos em que ele será lido também.
Ou seja, no âmbito do funcionamento discursivo, a categoria “termo
acessório” não é suficiente para abordar formas da língua. Estabelecer
essas análises pode contribuir para um ensino que pretenda promover
uma educação linguística, que queira produzir alunos, como diz Indursky
(2011, p. 339), que sejam capazes de “refletir sobre os funcionamentos
linguístico e discursivo”, e com isso estejam em “condições de trabalhar
com a língua, seja escrevendo, seja lendo, seja, ainda, interpretando”.
A educação linguística também envolve as leituras que fazemos dos
documentos oficiais de ensino. E a análise do funcionamento discursivo
pode contribuir para compreendermos de que modo certas evidências
operam nas propostas apresentadas na BNCC. Por exemplo, o chamado
Novo Ensino Médio traz a proposta de uma disciplina chamada “projeto
de vida”. Essa expressão entra no texto do documento sob o efeito
de evidência – junto com a palavra “protagonismo”, por exemplo – e
desnaturalizar seus usos no texto da BNCC é um modo de produzir uma
leitura discursiva voltada para propostas que sabemos que surgiram em
condições de produção nada favoráveis a uma proposta de ensino não
identificada com uma formação discursiva neoliberal. A esse respeito,
Araujo (2022) defende que o discurso sobre “projeto de vida”, ao mobilizar
certos significantes como “cidadania”, “liberdade” e “autonomia”,
“reproduz a ideologia neoliberal que culpabiliza/responsabiliza os/
as futuros/as trabalhadores/as pelo lugar que ocuparão no mercado de
trabalho.” Ou seja, a análise do funcionamento discursivo dessas formas
linguísticas contribui para expor os dizeres às suas filiações históricas,
74
e assim compreendermos como eles operam na reprodução de certas
evidências sobre os sujeitos-alunos do “Novo Ensino Médio”.
***
75
textos lidos, em que fosse possível recorrer a textos de um possível arquivo
pedagógico. (RODRIGUES; MORAES; DOMINGUES, 2020, p. 224)
76
praticam o ensino da língua. Mas penso que é importante, principalmente
para professores que vieram à universidade em busca de um mestrado
profissional, por exemplo, que sua formação possa promover espaços de
troca, de debate, que desloquem, que movimentem os sentidos sobre o
ensino, sobre a língua, sobre o aluno. E os que escolhem desenvolver suas
pesquisas a partir da perspectiva discursiva vêm trazendo contribuições
também para a área, ao desenvolverem pesquisas práticas, com alunos da
educação básica, inspirados nas propostas de diversos autores do campo
da análise do discurso – como os já citados trabalhos de Orlandi (1988;
2006), Indursky (2001; 2011; 2019), Pfeiffer (1995), Lagazzi-Rodrigues
(2006), Mariani (2016; 2018) e Gallo (1992), para mencionar alguns.
Felizmente, os projetos desenvolvidos em pesquisas práticas nas escolas
inspirados na abordagem discursiva materialista vêm crescendo muito. E
em um processo de formação docente, mesmo para aqueles que seguirão
suas pesquisas em outras perspectivas, as questões levantadas a partir das
propostas da Análise do Discurso podem convocar esses professores
a pensarem de um outro modo sobre sua prática, sobre sua língua, seu
aluno – questões que, postas em discussão, podem modificar para sempre
a prática desses professores, independentemente de seguirem ou não com
a abordagem discursiva materialista.
***
79
80
E ntrevista com C laudia Pfeiffer
Universidade Estadual de Campinas
“Não se trata, como tanto insistiu Eni em seus escritos sobre leitura e ensino, de
dizer que toda interpretação é possível, porque não é, já que a história intervém nessa
constituição. Mas significa, sim, dizer da importância de se abrir condições de produção
para que outros sentidos que estão se efetivando no espaço da escolarização sejam
escutados, façam sentido [...]. Significa dizer que essa autorização de sentidos outros
precisa ser trabalhada também pelo professor, legitimando sua prática para além de
um dizer estabilizado por discursos que se sobrepõem ao seu dizer. Significa construir
condições de autoria para professor e aluno. Significa abrir condições para que uma
interlocução real se efetive, para que o imprevisto tenha espaço, para que aquilo que
falha faça laço (político) nas práticas cotidianas do espaço de escolarização”.
81
cursos introdutórios de Antropologia, Sociologia e Ciência Política com
os calouros de 1989 do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Unicamp), durante meu segundo ano de graduação – eu entrei em
Linguística em 1988, no IEL (Instituto de Estudos da Linguagem do
IEL) – justamente por essa falta que eu sentia. No ano seguinte, em
1990, fui procurar na Faculdade de Educação o que me inquietava. Lá
fiz duas disciplinas sobre a história da educação brasileira. E, no próprio
IEL, também em 1990, cursei como eletivas e extracurriculares algumas
disciplinas da LA (Linguística Aplicada), todas voltadas para o ensino de
língua. Indo aqui e acolá ficavam as inquietações, um “ainda não é isso,
mas é quase isso”, e a certeza de que era com a linguagem que eu queria
trabalhar e, mais especificamente, com o ensino da língua. Em meio a essas
inquietações, comecei minha inscrição na pesquisa com uma iniciação
científica, orientada pela Bernadete Abaurre, entre o segundo semestre de
1990 e o primeiro de 1991, sobre a aquisição da escrita, observando uma
sala de aula de alfabetização. Bernadete havia sido nossa professora de
Fonética e Fonologia e na sua porta, no “barracão dos docentes” como
chamávamos à época o local em que ficavam as salas dos professores,
tinha uma plaquinha abaixo de seu nome indicando o projeto de aquisição
da escrita (não me lembro bem o nome!). No início do primeiro semestre
de 1990, ela entrou em uma aula da turma de linguística para divulgar a
monitoria em Fonética e Fonologia, uma modalidade de bolsa da FAPESP
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) – a de iniciação
científica – e a própria Fapesp, porque isso era totalmente distante para nós
alunos até aquela conversa. Eu não era apaixonada por Fonética e Fonologia,
mas fui com minha amiga, a Cláudia Mendes Campos, hoje docente na
UFPR (Universidade Federal do Paraná), saber mais da monitoria e da
bolsa de IC na sala da Bernadete. E lá vi a plaquinha “aquisição da escrita”
mais uma vez. A Cláudia era fortíssima em Fonética e Fonologia, por isso
a Bernadete não tinha dúvida em oferecer a vaga de monitoria para ela.
82
Eu aproveitei a ocasião para perguntar mais da iniciação científica e se
era possível fazer fora da Fonética e Fonologia, com algo que envolvesse
a aquisição da escrita – e apontei para a plaquinha! Bernadete abriu um
sorriso largo e me disse para escrever um projeto. Me passou algumas
leituras e assim comecei meu enlace até nunca acabar entre a linguagem e
a escola, o ensino, a leitura, a escrita. Mas eu ainda sentia que algo faltava
de modo forte nesse trabalho. Foi em 1991, ano em que me formava,
que tive, no último semestre, a disciplina de Análise de Discurso. Fiquei
extasiada, sobretudo com a compreensão de que, nessa teoria, tudo do que
eu sentia falta nos modos de se trabalhar a linguagem é constitutivo de
seu funcionamento. E quem me conduziu de modo encantador, potente,
com uma energia e uma alegria ímpar a cada entrada em sala de aula, foi
Eni Orlandi. Um privilégio. Meus amigos não me aguentavam, porque eu
estava absolutamente tomada pelas aulas. Só falava nisso! Quis fazer ponte
com a AD e minha iniciação, mas não dava tempo de maturação de tudo
isso. Terminei a IC, me formei e perguntei a Eni se, caso eu conseguisse
entrar no mestrado, ela aceitaria ser minha orientadora. E toda uma nova
trajetória se deu a partir desse encontro maravilhoso! Vou continuar a falar
dessa trajetória, mas antes quero frisar que falei de nomes de disciplinas, de
professores, de institutos, de plaquinhas em portas, de circulação na sala
de aula de informações sobre agências de fomento, bolsas e modalidades,
porque tudo isso importa muito na configuração de trajetórias de
pesquisa, de institucionalização de práticas de pesquisa. São fatos que
estão presentes no espaço institucional: os currículos, as distribuições de
disciplinas e docentes, os cursos e suas divisões em institutos e faculdades,
as portas com suas plaquinhas, um conjunto de fatos que compõe, de
modos distintos, a tessitura dos enlaces das trajetórias pessoais frente às
marcas da institucionalidade e da institucionalização das pesquisas, teorias,
disciplinas. Acho importante fazer essa observação.
83
Continuando em minhas rememorações, meu ano de 1992, já
formada, foi dedicado a frequentar as reuniões do grupo de Eni, fazer aulas
da pós-graduação como aluna especial e escrever meu projeto de mestrado
que vinha um pouco como desdobramento da IC, mas já conseguindo
formular a partir da AD, preocupando-me com o funcionamento da
autoria na sala de aula. Da minha IC, restou, entre outras, a inquietação de
procurar compreender de que modo as relações de sentido se estabelecem
no aluno na sua prática de escrita e que diferenças se estabeleciam nas
práticas cotidianas da sala de aula para que as formas de relação com a
escrita e os sentidos fossem diversas em uma mesma sala de aula. Eu
já resvalava na compreensão de que o funcionamento histórico-político-
ideológico da linguagem nas relações que se estabeleciam na sala de aula
seria minha ancoragem analítica, mas foi no processo de embate com o
arquivo e com as leituras teóricas e analíticas que fui tendo palavras para
compreender tal funcionamento. Ou seja, foi no decorrer do mestrado
– de 1993 a 1995 – que eu fui compreendendo melhor o funcionamento
político, histórico e ideológico da língua(gem), tanto no embate com aquilo
que adentrava em meu arquivo, quanto com as discussões dos outros
trabalhos de mestrado e doutorado que eram realizadas em grupo, bem
como com as leituras das disciplinas. Tudo acontecia em uma aconchegante
sala (com duas plaquinhas! O nome de Eni Orlandi e o nome do projeto
“Discurso, Significação, Brasilidade”) que ficava – para quem conhece os
prédios do IEL dessa época vai se lembrar bem – no segundo andar do
prédio em que hoje está o CEDAE (Centro de Documentação Alexandre
Eulalio) no térreo, e as secretarias de graduação e pós no segundo piso.
Foi lá que eu entrei em um projeto financiado pelo INEP sobre leitura.
É desse projeto a publicação do livro organizado por Eni “A leitura e os
leitores”. Em suma, e isso é uma característica fortíssima de Eni, eu entrei
na rede do grupo, fazendo pesquisa coletiva antes mesmo de entrar no
mestrado, recém-formada, em um grupo marcado por uma maioria de
84
doutorandos, muitos docentes em outras universidades, ou seja, muito
maduros, com trajetórias muito firmes em suas temáticas de pesquisa. Eu
não tive ninguém desse grupo como colega de disciplina. Então, eu tinha
o grupo do mestrado com quem eu discutia, seguia as disciplinas, convivia
mais de perto, e todos fazendo mestrado em outras áreas, e o grupo de
AD com quem eu me reunia, bastante timidamente, preciso dizer. Tudo
muito novo, muito convidativo e assustador ao mesmo tempo!
No segundo semestre de 92, conheci outra característica de Eni,
que era a de trazer muitos professores de universidades parceiras para
seminários. Muitos vinham da França. Fui conhecendo Francine Mazière,
Simone Delesalle, Andrè Collinot, Jacqueline Authier-Revuz e Sylvain
Auroux, dentre outros, sem ter muita noção, logo no início, do que
significava a presença tão importante desses pesquisadores. Foi uma imersão
a que eu fui dando sentido aos poucos. Conforme eu lia textos e conseguia
estabelecer relações. Foi espetacular essa possibilidade aberta por Eni. Era
um movimento constante! E nessa agitação toda, entrei no mestrado em 93.
E foi nesse ano, em uma reunião maior – na qual eu conheci Suzy Lagazzi (já
falei disso em outro texto!) – que Eni nos apresentou a proposta do projeto
História das Ideias Linguísticas: construção de um saber metalinguístico
e constituição da língua nacional. Foi toda uma nova abertura para mim,
novamente de nunca acabar! Eduardo Guimarães começou a oferecer
disciplinas na pós em que líamos e analisávamos gramáticas e outros
textos que adentravam na história da gramatização. Eni fazia seminários
em que discutíamos textos basilares para a área da HIL, a começar com
A Revolução Tecnológica da Gramatização, de Sylvain Auroux, que ela havia
traduzido já em 1992, antes mesmo de ser publicado na França! Mas não
só. Líamos muitos textos de Mazière, Delesalle, Collinot, Lèon, Chevallier
e Colombat, dentre outros. Esses foram sendo aos poucos traduzidos.
Outra característica fortíssima de Eni, que sempre conduziu como política
científico-linguística um programa intenso de tradução de textos de modo
85
que essas posições frente à ciência, às ciências da linguagem, circulassem.
E Eni continuava a trazer esses autores para seminários e conversas com
seus orientandos. Enfim, como vocês podem observar, saí da graduação
e entrei em uma rede profunda, movimentada, articulada, de conexões e
de construções de outros dizeres possíveis. Meu mestrado ainda não foi
em HIL-AD. Abordei, como já disse, discursivamente, o funcionamento
da autoria no espaço da escolarização. Nesse movimento, foi fundamental
compreender as diferentes formas do silêncio formuladas por Eni; as
diferentes formas do funcionamento da repetição (a mnemônica, a formal
e a histórica), igualmente formuladas por Eni; a relação entre o sujeito e
o discurso gramatical, tal como trabalhado por Claudine Haroche em seu
livro “Fazer Dizer, Querer Dizer”; os modos como Foucault compreende
o autor e seu deslocamento formulado por Guimarães e Orlandi; a
distinção entre o Discurso da Escrita e o da Oralidade, formulados por
Solange Gallo; o funcionamento do “poder dizer” formulado por Suzy
Lagazzi; e os conceitos basilares da AD formulados nos textos de Michel
Pêcheux. Quem me acompanha em minhas pesquisas e escritos acaba por
perceber que de um modo ou de outro acabo voltando a esses pontos de
ancoragem teórico-analítica na busca por compreender sempre um pouco
mais das práticas linguageiras que se efetivam no espaço da escolarização.
Foi no meu projeto de doutorado – entrei em 1996 no programa – que
eu tive condições de perguntar a partir da HIL, em seu enlace teórico e
epistemológico com a AD. Foi aí que eu entrei de modo consistente em
uma tomada discursiva da HIL no/do Brasil, perguntando das formas de
bem-dizer configuradas na história dos discursos sobre a língua portuguesa
no Brasil e suas derivas no espaço da escolarização. E foi aí que conheci
Mariza Vieira da Silva, que também fazia doutorado com Eni, mas havia
entrado dois anos antes no Programa. Não fizemos disciplinas juntas,
nos cruzávamos nas escadarias, primeiramente, conversando ainda sem
muito contato até que os seminários de HIL começaram a acontecer e
86
começamos a nos escutar falando de nossos trabalhos. Fez-se a parceria
de nunca acabar! É com ela – seja porque fazemos juntas, seja porque seus
escritos me mobilizam profundamente – que navego por essa história de
discursos sobre a língua escolar no processo de gramatização da língua
portuguesa no Brasil.
Finalmente, um último acontecimento é preciso ser trazido como
fundamental em minha trajetória: minha entrada, por meio de concurso
público, como pesquisadora no Laboratório de Estudos Urbanos
(Labeurb), também em 1996. O Labeurb é fundado em 1992, então era
uma instituição bem nova quando eu passo a integrá-la – um espaço
institucional interdisciplinar que colocava a linguagem como observatório
do funcionamento urbano a partir de uma compreensão materialista desse
funcionamento: a espacialização do simbólico e a simbolização do espaço
como tão bem formulou Orlandi em um dos primeiros escritos sobre o
Labeurb e seu objeto de pesquisa. Aos poucos, foi-se configurando no
Labeurb, sob a liderança de Eni, a área Saber Urbano e Linguagem. Em meu
concurso público, apresentei como projeto de pesquisa a ser desenvolvido
a tematização da relação entre a escola e a cidade com a hipótese de que
os processos de escolarização e de urbanização estabeleciam relações
estruturantes. Assim que entrei no doutorado no mesmo ano em que
assumi meu cargo de pesquisadora na Unicamp, onde estou até hoje, em
outra relação de nunca acabar! Foi esse espaço institucional que me permitiu
compreender de modo tão profícuo, no início de meu percurso como
pesquisadora, o funcionamento daquilo que formulei, em 1997, enquanto
um sujeito urbano escolarizado, que me acompanha em minhas pesquisas
e contribui para muitas compreensões do que está em jogo nesse bem-
dizer tão evidente e demandado ao tempo mesmo de calar o outro em seu
maldizer – compreensão que foi nuclear em minha tese de doutoramento,
defendida em 2000. Paro por aqui esse movimento de rememoração,
agradecida pela possibilidade de me voltar a esse processo, sempre muito
87
prazeroso, mas, sobretudo, agradecida por tantos encontros que não estão
nomeados, mas que significam profundamente em minha trajetória. Ter
me inserido logo tão cedo em um grupo e desde aí ter sempre trabalhado
em redes que só foram se ampliando e agregando é de uma potência sem
palavras. O meu percurso se marca por esses encontros, se nutre desses
encontros!
***
C. P.: Puxa, são tantas… você pode articular a educação linguística tanto
ao processo de escolarização do que hoje chamamos de o Ensino Básico,
quanto à formação do bacharel em Linguística ou do licenciado em Letras.
Vou chamar atenção particular para quatro pontos de muitos: i. a posição
ético-política que a AD permite construir para o lugar do professor de
língua; ii. o pressuposto da HIL brasileira, formulado por Orlandi, de
que a história da língua e do discurso sobre a língua se constituem ao
mesmo tempo, afetando-se mutuamente e, portanto, afetando o sujeito de
linguagem compreendido, por sua vez, pelo primado discursivo, formulado
por Pêcheux, a partir de Althusser, como um sujeito que se constitui junto
com a língua (não há discurso sem sujeito, não há sujeito sem ideologia);
iii. a compreensão de Pêcheux de que toda prática científica é ideológica,
dito de outro modo, de que a ciência é uma prática social e discursiva
e, portanto, não está destituída nem de sujeito, nem de ideologia; e iv. a
88
compreensão de que uma prática científica que implique na língua é uma
política de língua.
O primeiro ponto diz da implicação do modo como compreendemos
o funcionamento discursivo da língua(gem) em uma posição ético-política
do professor que, necessariamente, precisa se colocar em posição de escuta
(Pêcheux, já em 1966, enquanto Thomas Herbert, nos diz de uma escuta
social). Essa posição de escuta pressupõe a espessura dos sentidos, sua
opacidade, levando, portanto, também em consideração que aquilo que
o professor diz é igualmente opaco. Essa posição traz para si a contínua
desestabilização dos sentidos, de suas evidências, não deixando esquecer
que as práticas se dão em condições de produção. É dessa posição que se
abrem condições para que diferentes inscrições dos sujeitos (professor e
aluno) nos sentidos se efetivem e sejam legitimadas/autorizadas na sala
de aula – diferença fundamental na construção de relações reais com os
sentidos, no funcionamento de uma repetição histórica e não mnemônica
nem formal, tal como formuladas por Eni Orlandi. Não se trata, como
tanto insistiu Eni em seus escritos sobre leitura e ensino, de dizer que
toda interpretação é possível, porque não é, já que a história intervém
nessa constituição. Mas significa, sim, dizer da importância de se abrirem
condições de produção para que outros sentidos que estão se efetivando
no espaço da escolarização sejam escutados, façam sentido (o co(m)(n)
sentido com que trabalhei em minha dissertação na relação com a autoria
escolar: a possibilidade de deslocar-se do sem sentido tal como Orlandi
formula quanto à política do silêncio, distinto do não sentido que seria da
ordem do silêncio fundador). Significa dizer que essa autorização de sentidos
outros precisa ser trabalhada também pelo professor, legitimando sua
prática para além de um dizer estabilizado por discursos que se sobrepõem
ao seu dizer. Significa construir condições de autoria para professor e
aluno. Significa abrir condições para que uma interlocução real se efetive,
89
para que o imprevisto tenha espaço, para que aquilo que falha faça laço
(político) nas práticas cotidianas do espaço de escolarização.
O segundo ponto diz respeito a um pressuposto basilar da HIL a partir
do qual Eni Orlandi edificou a singularidade da HIL no Brasil justamente
por dar consequência à sua posição discursiva frente à compreensão
dessas ideias linguísticas. Esse pressuposto nos diz que a história da língua
e do saber sobre a língua se dão em um batimento contínuo. Uma das
implicações desse pressuposto é de que todo dizer sobre a língua afeta
a língua e, portanto, o sujeito dessa língua porque, discursivamente,
compreendemos que sujeito e língua se constituem mutuamente. Essa
compreensão é fundamental em uma sala de aula de ensino de língua,
uma vez que o professor não estará alheio aos efeitos de sentido do que
se diz sobre a língua nos sujeitos dessa língua, incluindo-se nessa rede
de significação. Essa posição permite olhar para os discursos sobre a(s)
língua(s) de outro lugar, perguntando-se sobre o que se diz, como se diz e
o que não se diz, por exemplo, sobre as relações entre o que se evidencia
enquanto Língua Portuguesa e as línguas indígenas e as línguas africanas.
Além disso, essa compreensão é fundamental para não deixar de lembrar
que tudo o que se diz sobre a língua tem história, tem tensão, tem disputa.
Desse modo, é possível dizer da língua, das línguas, fora da naturalização
do que se estabilizou enquanto natural de se dizer. Essa suspensão da
evidência é fundamental para que o ensino da(s) língua(s) se dê sempre no
trabalho de/com a língua enquanto um objeto científico que tem história.
E toda essa compreensão é também fundamental para o ensino superior,
seja na licenciatura em Letras, seja no bacharelado em Linguística.
Isso incorre no terceiro ponto que quero observar sobre as práticas
científicas que não se dão fora da história, do político, da ideologia. O
encontro da AD com a HIL é fundamental para que, no ensino superior,
observe-se sempre as relações tensas e contraditórias dos objetos
científicos, das relações disciplinares, da organização curricular, dentre
90
outras marcas das políticas científicas, dos processos de institucionalização
e de disciplinarização que fazem parte da história das ciências da linguagem,
fazendo lembrar a todo instante que o conhecimento não é natural e sim
histórico, político, ideológico. Assim, é preciso que a formação do bacharel
e do licenciado garanta a visibilidade das filiações e de suas consequências
nas tomadas de posição teórico-disciplinar.
Finalmente, e decorrente de tudo o que já disse antes, o quarto
ponto diz do fato discursivo de que as práticas científicas no domínio das
ciências da linguagem se configuram enquanto políticas de língua porque
instituem direções de sentido estabilizadas para disputas que são muitas
vezes invisibilizadas. Por exemplo, determinadas áreas da Linguística
receberem um financiamento muito maior, em determinado tempo-
espaço, significa em termos de relações de força e de sentido, promovendo
uma hierarquização naturalizada na distribuição de vagas de docentes, no
número de disciplinas e no momento em que essas disciplinas entram no
currículo. E isso é da ordem de uma política de língua. Uma educação
linguística que abra espaço para se observar essas práticas permite que
corpo discente e docente compreendam de modo consistente as injunções
inscritas nessas histórias do conhecimento que afetam seu cotidiano
institucional.
***
95
Com base nesse excerto, você poderia comentar, primeiramente,
como políticas públicas de ensino, como a BNCC, contribuem para
a produção desse efeito de equivalência entre “língua portuguesa”
e “língua materna” e, em seguida, como poderia haver, a partir da
perspectiva discursiva, essa abertura de espaço para práticas de
ensino de língua portuguesa que possibilitem a significação de
alunos e também de professores como sujeitos-autores em/dessa
língua? E, em um exercício de projeção, você conseguiria nos
indicar modos desse trabalho discursivo?
C. P.: Em primeiro lugar, agradeço o recorte que fizeram desse texto, que
aprecio muito, com o gesto de interpretação que vocês fazem das minhas
formulações! Para mim, a HIL é fundamental para o ensino de línguas, razão
pela qual ela deveria ser disciplina obrigatória nos currículos de Letras e de
Linguística. Acredito que isso afetaria de modo muito mais contundente
não apenas as práticas cotidianas – fundamental – mas também as políticas
públicas, porque teríamos leitores dessas políticas com uma escuta sensível
a sobredeterminações que significam as relações entre línguas e os sujeitos
dessas línguas. Nesse sentido, indo em direção à pergunta de modo mais
pontual, eu diria que a BNCC mantém a regularidade que encontramos
em diferentes textualidades que regulam o ensino e a(s) língua(s), que é a
de tomar como intercambiáveis as designações língua portuguesa e língua
materna, salvo quando, nessas textualidades, há a referência a alunos
indígenas ou oriundos de imigração. A BNCC consolida, portanto, um
processo discursivo que faz parte da gramatização da Língua Portuguesa
no Brasil, que é a produção da equivalência entre as designações língua
portuguesa, língua materna, língua nacional e língua oficial.
Na BNCC, encontramos quase exclusivamente apenas as designações
língua portuguesa/português e língua materna, com uma frequência maior
de língua portuguesa ou de português. Mas, apesar disso, há a evidência
da intercambialidade que produz a naturalização de que o aluno brasileiro
96
vai à escola para aprender a língua portuguesa, que é a sua língua materna.
Nesse processo discursivo de equivalência, diz-se da necessidade de trazer
essa língua de maneira mais próxima ao estudante, diz-se da necessidade
de respeitar todo a experiência que o aluno já tem sobre a sua língua,
já que ele a usa cotidianamente, incidindo no efeito imaginário de um
continuum entre a língua materna e a língua enquanto objeto de ensino
escolar. Um dos efeitos dessa evidência é o de que o ensino melhorará a
língua materna e, com isso, fará com que essa língua seja mais adequada
para que esse aluno alcance sucesso em sua formação e na obtenção de
emprego – e também no exercício de sua cidadania. Vê-se, portanto, um
sentido pragmático sendo conferido em uma relação de usuário da língua.
Novamente voltamos ao efeito de responsabilização individual para
o maior ou menor sucesso nessa relação que, invariavelmente, diz de
uma língua materna mais ou menos cultivada, mais ou menos adequada,
mais ou menos melhorada e, portanto, diz do sujeito dessa língua como
inadequado, inculto, insuficiente, inepto. É bastante interessante notar,
por exemplo, que na BNCC há muita ênfase na oralidade, no trabalho com
a oralidade. E, normalmente, quando a oralidade comparece, vem junto a
necessidade do respeito à diferença, vem junto uma certa discursividade
sobre a variação linguística, vem junto o uso do plural se referindo às
variedades. E quando comparece a escrita, só há formas no singular. A
escrita, nessa discursividade, materializa o efeito máximo da unidade
imaginária da língua. Não há, como diria essa discursividade, variedades
na escrita, apenas na oralidade. Esse fato discursivo já nos diz de uma
encenação da diversidade, da diferença – encenação que, aliás, também
pode ser vista – é o que nos mostram os trabalhos de Luciana Nogueira,
Juciele Dias e Tania de Souza – na referência às línguas indígenas na
BNCC: diz-se delas para silenciá-las em sua diferença real, é o que nos
mostram as autoras.
97
Em síntese, a textualidade da BNCC mantém a regularidade do
imaginário de uma unidade linguística modelar que significa um ponto
de chegada a ser alcançado no progresso de adequação do aluno na
direção dessa imaginária língua ideal. E nesse processo discursivo regular,
há aqueles significados próximos desse ponto de chegada e aqueles
significados enquanto sempre correndo atrás sem nunca ter capacidade
para chegar, sendo essa incapacidade significada, por sua vez, enquanto
consequência de uma língua materna significada como muito distante da
língua ideal. Mantém-se, portanto, com consistência, a divisão no alunado
– aqueles que portam uma boa língua de origem capaz de ser melhorada
pela escola e aqueles que a maldizem, apesar da escola. E como abrir
espaço, é o que vocês me perguntam, justamente para práticas de ensino
de língua portuguesa que possibilitem a significação de alunos e também de
professores como sujeitos-autores em/dessa língua, ou seja, que digam de
modo legitimado nessa língua, sem mal-estar, sem o sentido de maldizer?
Parte desse como está disperso nas questões anteriores.
Vou aproveitar aqui para dar ênfase a um gesto que considero muito
importante e que é uma das consequências de praticar o ensino da língua
escolar enquanto um objeto científico tal como venho insistentemente
repetindo! E por quê? Porque, enquanto objeto científico, de imediato,
há o corte com a evidência da equivalência com a língua materna. Há
também a possibilidade de olhar para a língua escolar como um objeto
a ser explorado, trabalhado, descrito e não melhorado, melhorando a
si mesmo, por consequência. Essa possibilidade permite aos sujeitos
escolares transitarem na movência contraditória e equívoca entre falar a
língua e falar da língua – uma língua, para muitos, familiarmente conhecida, mas
não para todos, já que há um alunado que escapa da evidência do efeito de
coincidência entre a língua portuguesa e a materna que se significam como
não tendo o português como sua língua materna. Há, ainda, a possibilidade
de produzir-se a diferença entre a metalinguagem e a língua, diferença
98
que foi sendo apagada na história da gramatização da língua portuguesa
sobretudo com a instituição da NGB18, por exemplo, apagando, enquanto
efeito imaginário, que há disputas, há tensões, há interpretações inscritas
nas diferentes formas de se dizer sobre a língua (já que tudo se passa como
se houvesse um único modo universal e a-histórico de se dizer sobre a
língua). Enfim, esses gestos permitiriam que a metalinguagem deixasse de
ser significada como colada à língua e passasse a ser significada como um
gesto de interpretação sobre a língua. Movimento fundamental, a meu ver.
Agora as projeções! Um dos modos, projetivamente, de se fazer isso é
abrir espaço na prática escolar para mostrar parte da história sobre esses gestos
de interpretação inscritos nas diferentes metalinguagens, assim como também
abrir espaço para parte da história da língua. E abrir espaço para mostrar
diferentes modos de se dizer da língua. Vou mencionar alguns exemplos,
mas frisando que são exemplos pontuais e ao mesmo tempo simbólicos, uma
vez que o trabalho de reflexão de quando, para quem, de que modo, onde e o que se
trabalhar na sala de aula é justamente da ordem da práxis docente. Além disso,
vou me referir a alguns trabalhos espetaculares em HIL, com a ressalva de
que inúmeros outros poderiam aqui ser lembrados. Começo pelo trabalho de
Thaís Costa sobre permanências e rupturas no discurso gramatical, pesquisa
monumental que poderia mobilizar muitas aulas no sentido de mostrar as
polêmicas, as tensões, os deslizamentos e as repetições nos diferentes gestos
de configuração da metalinguagem no processo de gramatização da língua
portuguesa no/do Brasil. Nessa esteira, emblemático ponto de tensão que
acompanha tanto discussões linguísticas quanto gramaticais é, por exemplo, as
distinções das relativas. Trazer diferentes interpretações de textos gramaticais
e linguísticos para a sala de aula pode, a meu ver, desestabilizar a evidência
de que é o aluno que tem dificuldade em distinguir uma relativa restritiva de
uma explicativa, por exemplo.
103
104
E ntrevista com E ni O rlandi
Universidade Estadual de Campinas
Universidade do Estado de Mato Grosso
Eni Orlandi: Meu encontro com a Análise de Discurso já tem sido objeto
de muitas entrevistas. Eu resumiria dizendo que meu encontro com as
Letras me veio já no que eu chamo de transversalidade, ou seja, meu
gosto pelas relações com muitas outras disciplinas ou gosto de leituras
dispersas. Assim, meu percurso começou ainda no meu curso colegial
(médio atual) pelo estudo do francês, do português e, principalmente,
do latim, pois eu pretendia entrar na Faculdade de Direito e estudava,
em aulas particulares, essas três disciplinas, tendo grande interesse pela
leitura de Cícero, no original. Em minha graduação, em Letras, além da
leitura de muita literatura, mas, também, de estudos na área da Filosofia
e das Ciências Humanas e Sociais, no caminho de minha formação como
105
intelectual, a questão política, a da história e a da linguagem ganharam uma
forte relevância. Assim mesmo: todas juntas e misturadas. Já linguista, a
Análise de Discurso, precisamente, eu encontrei quando, fazendo meu
curso de doutorado com o prof. L. J. Prieto, meu orientador de Semântica
na Univ. de Paris-Vincennes, no departamento de Sociologia, topei com
o livro AAD6919 de Michel Pêcheux, na livraria Maspero. Ali se realizou
meu desejo de ligar Filosofia, Ciências Humanas, Sociais e da Linguagem.
Pelo político, pela ideologia, pela materialidade da linguagem. Isso foi nos
finais dos anos 1960 e início de 1970. Voltei para o Brasil e implantei,
aqui, e na área da Linguística, a Análise de Discurso que pratico desde
então e que muitos passaram a praticar e a desenvolver. A História das
Ideias Linguísticas (HIL) era um projeto de S. Auroux, que conheci
durante meu pós-doutoramento na Universidade de Paris VII, nos anos
1987/1988. Também é um projeto que eu trouxe e implementei no Brasil,
em 1989. Fui convidada a participar do programa de HIL, que S. Auroux
desenvolvia, com toda uma grande equipe internacional, na Univ. de Paris
VII, inicialmente, como projeto no CNRS e, depois, na ENS de Fontenay-
aux-roses e, finalmente, na ENS-Lyon. Minha condição, para participar do
projeto, foi a de considerar a história das ideias linguísticas na conjuntura de
um país de colonização, o que nos dava nossas particularidades. Não éramos
apenas receptores de uma história das ideias linguísticas e de instrumentos
como gramáticas e dicionários, mas tínhamos a nossa história para contar
sobre a gramatização de nossa língua e de outros instrumentos linguísticos,
assim como o modo como nossa língua se constituiu e significou nossa
independência em relação a nossa descolonização. E propus trabalharmos
a HIL levando em conta os discursos sobre a língua, os discursos de
19
N. O.: A entrevistada refere-se ao livro Análise Automática do Discurso, publicado por
Michel Pêcheux em 1969. Uma primeira tradução para o português foi realizada em 1990
por Eni Orlandi e comparece na obra Por uma análise automática do discurso (HAK; GA-
DET, 2014). Em 2019, em homenagem aos 50 anos de sua primeira publicação, a obra
foi traduzida em sua totalidade por Greciely Costa e Eni Orlandi, tendo sido publicada
pela Editora Pontes. Ver Pêcheux (2019 [1969]).
106
nossos sujeitos da língua e nossa história de ideias. Na época, em meu
pós-doutorado, eu fazia pesquisas, no Institut Catholique, na Bibliothèque
Mazarine e na Bibliothèque Nationale de Paris (além de frequentar, na
Itália, a Propaganda Fide, o Arquivo Secreto do Vaticano e a Biblioteca
do Colégio Internacional dos Capuchinhos) para a escrita de meu livro
Terra à Vista. Toda quarta-feira, Auroux e eu nos encontrávamos para
discutir muitas questões que tocavam a Linguística e a História das Teorias
Linguísticas. E eu apresentava a ele questões como a da língua fluida e
língua imaginária que eu havia elaborado, assim, como particularidades
da língua que eu vinha encontrando na minha análise dos relatos de
missionários, de viajantes e de naturalistas pelo Brasil. Antes de meu
retorno ao Brasil, assinamos um convênio entre nossas instituições, que
foi, logo depois, apoiado pelo Acordo Capes/Cofecub, e, durante anos,
coordenamos o projeto junto a alunos e colegas de nossas universidades
e outras instituições parceiras, realizando uma grande produção que deu
impulso a essa disciplina feita, em nosso caso, da relação com a Análise
de Discurso. No Brasil, o programa de HIL ganhou ampla elaboração e
continua a produzir muito até hoje. Impulso dado nos anos de 1987/1988.
A Análise de Discurso começou muito antes, quando voltei ao Brasil, em
1970 e iniciei meu trabalho com Análise de Discurso na USP e na PUC
Campinas e, mais definitivamente, de forma institucional explícita, a partir
de 1979, na Unicamp. Estabeleci não só as bases dos estudos discursivos,
mas também a forma das análises e outros desenvolvimentos em relação
ao que tinha sido iniciado por Pêcheux em suas fundações. Formei mestres
e doutores que estão instalados no Brasil todo e que foram crescendo em
número e qualidade de forma exponencial. Hoje exportamos análise de
discurso, não só a internacionalizamos.
***
112
caracterizar tal discurso como do tipo autoritário, propunha que a
sua circularidade poderia ser rompida através da crítica, tornando-o
um discurso polêmico e, com isso, possibilitando que alunos e
professores, na dinâmica da interlocução, se constituíssem como
ouvintes e autores. Cerca de 30 anos depois, a despeito de todas
as críticas produzidas a partir de diferentes lugares teóricos, a
centralidade dispensada à metalinguagem e seus efeitos parece
ainda ser uma questão atual. Como você percebe essa situação
hoje, sobretudo no que diz respeito ao ensino de língua portuguesa
na escola? E como iniciativas como a prevista em seu projeto de
pesquisa atual “Versões, reformulações, ressignificações: como
funciona a linguagem”, que propõe, para o ensino de leitura e escrita,
o trabalho com versões inscritas em formas materiais significantes
variadas, poderiam contribuir para o desenvolvimento de uma
educação linguística voltada para as práticas sociais da linguagem?
116
E ntrevista com Fabiele D e Nardi
Universidade Federal de Pernambuco
“Nessa direção, compreendo que não se faz educação sem assumir posição e que isso
implica, do ponto de vista de nossa formação cotidiana, investirmos fortemente em nossa
construção como sujeitos do conhecimento, um conhecimento que se produz em condições
determinadas, que não está fora da história, que permite a interrogação, a dúvida, o
deslocamento, a retificação… Mas especialmente convidando aqueles que estão conosco
a fazer o mesmo, ou seja, desafiando-nos a um exercício constante de escuta dos sujeitos
da escola que também somos nós em nossos modos de dizer, redizer, para que possamos
nos reinventar, repensar nossas práticas. Uma tomada de posição materialista para
mim em educação é a que permite a dúvida, que aceita o inacabado, que produz o
questionamento, que faz trabalhar a contradição. É também uma tomada de posição
pela luta política no campo da educação, aquela da defesa da educação pública e do
direito aos sujeitos da educação de que lhe sejam oferecidas as condições adequadas de
trabalho-estudo, condições de pleno exercício do direito ao saber.”
20
Gostaria de fazer referência, aqui, ao papel que teve em minha escolha e em minha for-
mação o trabalho da Professora Mónica Hoppe Navarro, que me mostrou os caminhos
da literatura latinoamericana.
118
com todas as suas contradições e como lugar mesmo da luta de classes,
portanto lugar de reprodução e resistência, é fundamental para quem
compreende que é possível abrir na escola espaços outros de identificação
para os sujeitos e construção de saber. Disso resulta, entendo, o fato de
que as línguas, a escola e, em especial, a educação linguística (em línguas)
sejam questões que nunca tenham deixado de estar presentes no trabalho
que desenvolvo.
A Análise do Discurso (AD), em minha trajetória de formação, foi
paixão de meio de caminho, arrebatadora e definitiva. A AD chegou com
a possibilidade da iniciação científica. Tratava-se de um projeto vinculado
ao trabalho de pesquisa de Maria Cristina Leandro Ferreira, com quem
eu iniciava, então, uma longa história de orientações, de aprendizado e
de afeto. Por suas mãos conheci a AD e participei de um projeto que
ainda hoje dá bons frutos, falo da primeira versão do Glossário de Termos
do Discurso21, trabalho feito a muitas mãos sob a coordenação de Maria
Cristina. Foi um período de trabalho que exigiu um debruçar-se intenso
sobre obras fundadoras da AD na França e no Brasil a fim de abrir
caminhos na teoria, compreender suas noções estruturantes e formular os
verbetes que desse material fariam parte. Desse tempo no PIBIC resultou
minha vinculação definitiva à AD, como lugar a partir do qual se constituiu
meu trabalho de docência e pesquisa. E desses tempos de minha formação
inicial, entendo que trago algumas questões que seguem ressoando em
meu trabalho.
Começo por uma questão que aparece vinculada ao interesse-
compromisso com a formação de professores. Trata-se da compreensão
de que o trabalho do professor, tal como eu o entendo, é um trabalho
que demanda um movimento de autoria, no sentido de que o professor
21
O Glossário de Termos do Discurso teve uma primeira versão publicada em 2001, sob
a coordenação da Profª. Drª. Maria Cristina Leandro Ferreira, e uma versão ampliada,
publicada pela editora Pontes, no ano de 2020.
119
se construa como autor de sua prática, prática que é sempre um exercício
teórico-político, porque envolve sujeitos e saberes num processo constante
de (re)construção (ainda que muitas vezes se insista em reduzi-lo à técnica
e à repetição de modelos). Mas esses gestos de autoria na prática não se
fazem sem que para isso se construam as condições adequadas de trabalho
e de exercício da docência com liberdade e compromisso, e isso implica,
entendo, formação teórico-política e exercício teórico-político constantes,
além de uma escuta atenta da escola e seus sujeitos. Quando falamos dessas
questões em sala de aula, seja nas aulas de formação inicial de professores,
seja nas da pós-graduação, é quase constante o questionamento sobre
como possibilitar espaços de autoria para o professor apesar das condições
adversas, apesar das reformas, dos exames externos de avaliação e de seus
efeitos sobre a prática educativa, entre outras questões. Tenho tentado
sempre trabalhar sobre esse ‘apesar de’, justamente no sentido de propor
que não é possível trabalhar ‘apesar de’, é preciso trabalhar sobre, na
contramão, pelas brechas, sem a tentação enorme de equilibrar pratos ou
fechar os buracos, mas fazendo ver as rachaduras.
Minha atuação como professora-pesquisadora também esteve
sempre pautada pela compreensão de que as línguas na escola precisam
aparecer como plurais, heterogêneas, capazes de produzir saber: saber
(com-pelas-sobre) as línguas. A insistência na questão das línguas e seu
lugar na escola se faz como um movimento de resistência a um apelo de
instrumentalização e mercantilização das línguas que afeta tanto o trabalho
com a língua portuguesa na escola, quanto aquele que se pode fazer nesse
espaço com as línguas outras. Nesse sentido, a direção de trabalho que se
assume é a de olhar para os processos de escolarização das línguas e, por eles,
para questões como os efeitos de estranhamento que se podem produzir
na relação dos sujeitos com as línguas quando se reproduzem discursos
e práticas que apostam fortemente nessa relação como um trabalho de
dominar a língua, de produzir competências, de apagar heterogeneidades
120
e tratar as línguas eliminando sua dimensão política, limpando da língua
as histórias plurais que a constituem e modificam. Essa forma de entender
as línguas se constrói a partir de um olhar a língua pelo viés da AD, língua
do real, da falha, da incompletude, pensada como matéria pela qual se
produzem os processos de subjetivação dos sujeitos, língua como forma
material (ORLANDI, 1999). O exercício de pensar a língua pelo viés da
AD, trabalhando a dimensão da equivocidade como constitutiva da língua
e com ela a falta, a falha, foi fundamental para definir nosso modo de nos
aproximarmos das línguas e das práticas de ensino que têm as línguas
como seu objeto, e foi também essa compreensão de língua que nos trouxe
a relação língua-cultura como questão de pesquisa.
Em minha dissertação de mestrado, o trabalho que realizei foi de
buscar na análise do discurso um lugar de dizer sobre as línguas e seus
ensinos pelo viés da AD, pensando de forma mais específica a questão da
língua espanhola para brasileiros. Nesse mergulho na teoria para pensar as
formas de dizer a relação entre os sujeitos e as línguas, foi fundamental a
noção de tomada da palavra proposta por Serrani-Infante (1998a; 1998b) e
seus trabalhos acerca da relação entre línguas, sujeito e ensino. O trabalho
com a noção de tomada da palavra, a partir das formulações de Serrani,
nos levaram às questão da identificação na relação sujeito-línguas e,
por ela, a pensar, com Orlandi (1990), as noções de língua fluida e língua
imaginária, pelas quais se fez possível para nós compreender a força do
imaginário nas relações entre língua e sujeito e, portanto, do trabalho com
os línguas nos espaços educativos. O imaginário sobre as línguas, sobre o
que são as línguas e como se apre(e)ndem as línguas impacta fortemente
os movimentos de aproximação dos sujeitos às línguas e, portanto,
também o trabalho teórico e as práticas escolares sobre as línguas, que são,
também elas, práticas discursivas. Daí sua importância e a importância
de trabalhar sobre ele, ou seja, trabalhar sobre as formas de construção
de um imaginário – seja ele sobre as línguas, os sujeitos, os espaços –,
121
para que se possa compreender as formas de seu engendramento e os
efeitos nos modos de sua circulação-reprodução e seus efeitos. Embora
amadurecidas, deslocadas, recolocadas a partir de lugares diversos, essas
discussões sempre voltam aos meus escritos e se fazem muito presentes
no trabalho que tenho desenvolvido também com a formação inicial de
professores. Entendo, ainda, como dizia nesse trabalho, que as línguas
estrangeiras, que hoje prefiro pensar como línguas outras (e não outras
línguas), tem um enorme potencial desestruturante como se apresentam
para os sujeitos como forma material, atravessada pela história, constitutiva
das subjetividades, como matriz de processos de identificação plurais.
Esse olhar para a tomada da palavra, para o complexo das
identificações em sua relação com as língua e seu ensino foi que me levou
ao meu trabalho de tese (DE NARDI, 2007) e a nele pensar a relação
língua-cultura e o modo como aparecia a cultura em livros didáticos para
o ensino de língua espanhola para brasileiros. Entendo que permanece
em meus trabalhos, a partir do que proponho na tese, uma compreensão
de cultura como lugar de interpretação22 e a importância de se trabalhar
com a noção de cultura sempre tensionando os sentidos que sobre ela se
produzem, com especial atenção para o que, a partir de um dizer sobre a
cultura, se possa trazer de naturalização como efeito. Tenho insistido na
compreensão de que não se pode deixar nunca de trazer para um modo
de dizer e fazer trabalhar a noção de cultura a relação entre cultura e
ideologia, cultura e política(s), que se marca na própria produção dessa
22
“Entendemos que seja fundamental, portanto, compreender a cultura não como um
espaço de registros inertes - em que o papel do sujeito se restringe ao reconhecimento e
à aceitação -, mas como um lugar de interpretação. Assim compreendida a cultura, seu
estudo se torna, no ensino-aprendizagem de segunda língua, um momento propício de
promoção de deslocamentos, capazes de possibilitar que o aprendiz venha a pensar nos
processos discursivos produzidos na língua do outro e no modo como nesses discursos
os sentidos são produzidos. Passa-se, assim, do simples registro de um imaginário sobre
o outro para o questionamento de sua cristalização.” (DE NARDI, 2007, p. 54).
122
noção-conceito e seus modos de circular em tempos espaços diversos23. E,
é claro, também a partir desse olhar para/sobre a cultura foi possível tecer
reflexões sobre seu lugar nas práticas de ensino (DE NARDI, 2015), que
é algo que seguimos fazendo como exercício contínuo de formação que
exige um revisitar teorizações e propostas, vislumbrando práticas outras
capazes de propiciar esse espaço de interpretação na relação dos sujeitos
com a cultura e que, tenho entendido, fazem necessário mobilizar a noção
de língua como forma material, tal como referimos anteriormente, para
considerar os modos de inscrição da história e da memória nas línguas-
culturas.
Foi muito interessante para mim que o convite para essa entrevista
tenha chegado justamente em um momento em que, depois de me afastar
um tanto desse trabalho de tese, retorno a ele para revisitar algumas
questões a partir de provocações que vêm de desafios teóricos e de
formação, no caso, de meu trabalho com a formação de professores. Um
desses retornos se deu pela releitura da teorização sobre o silêncio que
nos traz Orlandi (1997) e que me levou a voltar às noções de silêncio, real,
valor e identificação, entre outras, em sua relação com a língua, para pensar
o silêncio nas/das línguas e os modos de com ele lidar em nossas práticas
em sala de aula, apontando para um necessário pensar na produção de
formas de “lidar com o significante” (CELADA; PAYER, 2016), “de fazer
trabalhar os sentidos nas línguas” (DE NARDI, 2022, p. 122), pensando
23
Gostaria de referir dois artigos em que me parece que o que menciono aqui aparecem de
forma mais consistente: DE NARDI, F. S.; BALZAN, F. P. RELAÇÕES ENTRE CUL-
TURA E ENSINO: um olhar discursivo sobre as políticas públicas para formação de
professores. Organon, Porto Alegre, v. 24, n. 48, 2010. DOI: 10.22456/2238-8915.28641.
Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/organon/article/view/28641. Acesso
em: 15 nov. 2022.; DE NARDI, Fabiele Stockmans. Reflexões sobre a cultura no territó-
rio da AD: um lugar para o conceito de cultura no campo da ideologia, do inconsciente e
da(s) política(s). Seminário de Estudos em Análise do Discurso (5.: 2011 : Porto Alegre,
RS). Anais do V SEAD – Seminário de Estudos em Análise do Discurso [recurso eletrô-
nico] – Porto Alegre : UFRGS , 2011. Disponível em: https://www.discursosead.com.
br/v-sead-2011. Acesso em 15 de novembro de 2022. ISSN 2237-8146.
123
em movimentos que possam, na contramão de uma prática ruidosa, sem
espaços de silêncio, dar lugar a uma “escuta do sujeito que aprende e da
língua com que se enfrentam professores e estudantes: um guardar silêncio
para que se produzam sentidos”.
Mas, como estamos falando de idas e vindas, preciso mencionar
também que, mesmo que as questões de língua, cultura, educação nunca
tenham deixado de estar presentes em minhas reflexões e práticas, porque
atravessam cotidianamente o meu trabalho com a formação de professores
e os diálogos que temos tentado travar com a escola e com outros espaços
educativos a partir de projetos como PIBID e RP, além das atividades
de extensão24, o trabalho que tenho desenvolvido como pesquisadora
do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE me abriu outros
caminhos que fui trilhando como pesquisadora do NEPLEV- Núcleo de
Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual de que sou vice-
líder. No Programa de Pós-Graduação em Letras, oriento trabalhos em
duas linhas de pesquisa: a linha de Análises do Discurso e a de Análise de
Práticas de Linguagem no campo do Ensino. Nesta última, os temas que se
vinculam aos trabalhos aqui já mencionados se mostram com mais força,
aparecendo em pesquisas que se debruçam sobre a escrit(ur)a em línguas,
as práticas de leitura e a análise de material didático, entre outras questões.
Por outro lado, o trabalho na linha de Análises do Discurso me levou a
um movimento de aproximação muito forte com o discurso político, com
a questão da memória e da resistência no campo da AD, questões que
acabam por perpassar os diferentes trabalhos vinculados a essa linha que
tenho orientado, bem como boa parte de minha produção nos últimos
24
Nos períodos de 2018-2020 e 2020-2022, coordenei, juntamente com a Profª. Cristina
Corral, respectivamente os projetos PIBID e Residência Pedagógica, núcleos de Língua
Espanhola da UFPE. O trabalho com os referidos programas, bem como projetos de
extensão ligados ao ensino da língua espanhola em diferentes espaços educativos, é algo
que temos desenvolvido, em conjunto com a Profª. Imara Bemfica Mineiro, como parte
das atividades do LaDo-ELE: Laboratório de Formação Docente da UFPE.
124
anos, construída em conjunto com muitos parceiros de trabalho, mas
que não deixam de estar presentes nos meus modos de compreender e
pensar as práticas e políticas educativas. Os processos de (des)politização
de sujeitos e discursos (GRIGOLETTO; DE NARDI, 2016), assim como
as trajetórias de memória dos enunciados, as práticas de resistência (DE
NARDI; SOUZA, 2020) em suas diversas formas de manifestação, têm
se feito, então, presentes em nosso trabalho, e vou ao plural aqui como
forma de reconhecer a importante presença, nesses movimentos, dos
colegas de NEPLEV, a quem nomeio na figura de minha companheira
de projetos e de escrita, a Profa. Dra. Evandra Grigoletto, mas que se faz
realmente num trabalho coletivo, trabalho feito a muitas mãos, em intensa
colaboração de pesquisa e pelo qual se vão costurando essas idas e vindas
por discursos e práticas a partir de um lugar comum, que é o da AD, em
seu modo singular de pensar a língua, os sujeitos e a história.
E gostaria de fechar essa questão, então, apenas mencionando
algumas discussões e projetos que começo a tecer nessas parcerias que se
vêm abrindo. Nos últimos anos, a questão das migrações25 e, por elas, as
discussões sobre os processos de identificação e subjetivação voltaram a
estar muito presentes no meu horizonte de leituras e pesquisas. No pensar
as migrações, se entrelaçam a memória, o político, a resistência, bem como
as línguas e as práticas educativas, ou seja, como vemos, são idas e vindas
que traçam muitos caminhos cruzados. Como fruto desses caminhos
que se cruzam é que iniciamos, recentemente, a escritura de um projeto
que, pretendemos, ganhe corpo e fôlego, pelo qual pretendemos retornar
às noções de educação linguística e educação de línguas, para pensar
25
Gostaria de referir o trabalho de duas orientandas, responsáveis por me levar a pensar,
de modo mais específico, sobre as migrações: o trabalho de tese em andamento, de Ca-
mila da Silva Lucena (PGLetras/UFPE) e a tese de María Esperanza Izuel. Os processos
de identificação nas tramas do real, do simbólico e do imaginário: brasileiros em condição
de imigração em Buenos Aires. 2022. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2022.
125
teorizações e práticas que a partir desses modos de dizer o fazer com-
pelas línguas se produzem. Trata-se de um projeto que se interessa pelos
discursos sobre educação na América Latina, mas também pelas políticas
e práticas que se têm produzido nesse espaço. Nessa direção, trata-se de
uma trabalho que, pretendemos, também nos coloque questões sobre os
diálogos (im)possíveis entre a AD e as teorias decoloniais, especialmente
no que concerne aos seus modos de pensar os sujeitos, as línguas e as
práticas educativas.
***
128
aporta esse conjunto de trabalhos enquanto pontos de ancoragem para
uma reflexão, por exemplo, sobre a leitura e a escrit(ur)a.
Há tempos a leitura, seja no âmbito da graduação ou da pós-
graduação, tem sido para mim objeto de trabalho e pesquisa, especialmente
a leitura em línguas outras, de forma destacada, em espanhol para
brasileiros estudantes dessa língua. As indagações sobre os modos de ler
da forma como aparecem nos documentos, em exames de avaliação e nas
práticas de ensino nos tem provocado a produzir reflexões e construir
propostas de trabalho que buscam na AD uma compreensão da leitura e
das dimensões que ela implica. Parte-se, para tanto, da compreensão da
AD como uma disciplina de interpretação para se pensar um modo de ler
que coloque descrição e interpretação como movimentos indissociáveis
de toda prática de leitura, que enquanto prática é produção e movência.
Deseja-se, assim, a promoção de formas de ler que nos permitam também
na escola “detectar os momentos de interpretações enquanto atos que
surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como
efeito de identificação assumidos e não negados” (PÊCHEUX, 2012
[1983], p. 57).
A leitura é, portanto, uma questão que perpassa o conjunto de
trabalhos que produzimos na AD, já que, ainda que não tenham a noção
de leitura como central, nossos trabalhos são sempre gestos de leitura
que se produzem sobre um corpus e, portanto, modos de ler que vamos
construindo enquanto possibilidade de compreender os processos
discursivos de que nos ocupamos. Tais gestos de leitura também se
marcam por um modo específico de trabalhar sobre as materialidades,
entre elas a língua, que se instaura a partir do trabalho com o discurso. A
língua é matéria que tece o discurso, daí a necessidade de construir, nos
termos de Orlandi (2020), um olhar para a ordem e não para a organização,
ou seja, considerar a língua em seu funcionamento entendendo que essa
língua está afetada pelo real e que é pela intervenção da história que ela
129
significa. Todo movimento de descrição, portanto, na AD, é um gesto de
interpretação que se instaura sobre o real da língua, como já nos mostrou
Pêcheux, e esse real específico abre para um modo diverso de o analista
se aproximar a essa materialidade questionando-se não pela classificação
dos elementos da língua, mas para o modo como um arranjo específico
produz sentidos no discurso.
Nesse sentido é que entendo que temos as contribuições diretas da
AD para pensar a educação, quando nos debruçamos sobre documentos,
discursos e práticas sobre-da educação, mas que também temos, no
conjunto de trabalhos que produzimos, reflexões que podem estar na
escola como algo que se dá a ler ou um modo de ler que se pode investigar,
um modo de ler o discurso, mas também um modo de ler a língua em
sua ordem. Nesse cercar a leitura pelo viés da AD entendo que há duas
obras de Eni Orlandi que podemos indicar como clássicas e que apontam
questões de partida para se pensar a leitura na escola: A linguagem e seu
funcionamento (ORLANDI, 1996) e Discurso e Leitura (ORLANDI, 2001).
Sem a pretensão de retomar aqui as discussões propostas nas obras em
sua riqueza e totalidade, aponto apenas o que entendo como discussões-
chave ali propostas e que abrem caminhos para um olhar para a leitura na
escola. Da primeira, destaco as discussões sobre o sentido e sua produção,
bem como a questão do discurso pedagógico e, por ele, as reflexões sobre
o lúdico, o polêmico e o autoritário; da segunda, as belíssimas passagens
sobre a construção de uma história de leitura para os sujeitos, e as
discussões sobre os níveis de leitura, com ênfase para o que se diz sobre a
compreensão na leitura, colocando-se em relação a materialidade da língua
e as condições de produção do dizer. Trago essas obras aqui porque elas
nunca deixam de estar presentes nos trabalhos de formação e pesquisa que
tocam na questão da leitura, porque entendo que as atravessam questões
fundadoras de uma forma outra de pensar o ato de ler (que também se
pode materializar como práticas de leituras na escola) enquanto trabalho
130
com-sobre uma materialidade significante para se produzir sentidos, esses
sentidos que sempre podem ser outros, embora não possam nunca ser
quaisquer sentidos26, pois, como já nos dizia Pêcheux (2012 [1983], p. 54),
“a descrição de um enunciado ou de uma sequência coloca necessariamente
em jogo (através da detecção de lugares vazios, de elipses, de negações, de
interrogações, múltiplas formas de discurso relatado…) o discurso-outro
como espaço virtual de leitura desse enunciado ou dessa sequência.”
Minha compreensão, portanto, é que a AD tem uma contribuição
fundamental quando se coloca em causa a relação entre AD e educação
que se mostra justamente pela possibilidade de proposição de outras
formas de ler pelo viés do discurso. Seguindo os caminhos propostos por
Orlandi (2001), a busca pela construção de um trabalho de leitura que possa
construir outras histórias de leitura para os sujeitos da prática educativa,
pelo viés de um trabalho com a compreensão, que inclui necessariamente
uma atenção às condições de produção dos discursos que se dão a ler,
bem como das condições de produção de sua leitura, são o nó de um
trabalho, no nosso caso, que nos permite pensar na formação de leitores
em línguas, expressão que temos usado para pensar as práticas de leitura
em línguas diversas como forma de fazer trabalhar as línguas outras nas
práticas educativas como espaço de contato-confronto com esse outro e
suas formas de dizer e significar. Nessa direção, menciono o trabalho que
realizamos Izuel e eu (DE NARDI; IZUEL, 2018) com foco nas condições
de produção em sua relação com a leitura, tematizando especialmente
a importância da consideração das condições de produção de textos
jornalísticos e o trabalho de sua didatização em práticas de ensino de língua
espanhola para brasileiros. Nesse artigo, que dialoga com a dissertação de
mestrado de Izuel (2017), trabalhamos, por um lado, a necessidade de se
26
Faço referência aqui à discussão trazida em LEANDRO FERREIRA, M. C. Nas trilhas
do discursivo: a propósito de leitura, sentido e interpretação. In. ORLANDI, E. A leitura
e os leitores. (Org.). Campinas: Pontes, 2003, p. 201-208.
131
colocar em causa, nas práticas de leitura, os efeitos da didatização sobre os
textos que passam a compor os materiais didáticos com que trabalhamos
e, por outro, a importância do trabalho com as condições de produção e
os movimentos da memória em sua forma de inscrever-se nos discursos e
nos modos como se dão a ler quando tratamos de um trabalho de leitura
com línguas outras, sob pena de que por ler sigamos compreendendo um
trabalho de identificação de informações no texto.
Conforme comentamos no trabalho mencionado, entendemos
que a noção de condições de produção tal como pensada por Pêcheux
(2011[1984], p. 229), remete a um modo de ler o discurso, visto que, como
diz o autor, no campo do discurso:
[...] analisa-se uma sequência na sua relação com o seu exterior discursivo específico (em
particular seus pré-construídos, seus discursos relatados, etc.) e em relação à alteridade
discursiva com que ela se defronta, ou seja, o campo sócio-histórico do qual ela se separa (cf.
noção de enunciado dividido).
27
Ver De Nardi, 2022.
136
Deixo, então, essa breve ponderação sobre as práticas a partir da
AD entendendo que com elas vamos construindo não modelos aplicáveis,
mas caminhos de investigação que nos levem a gestos no ensino, como
lindamente formulou Payer (2021).
***
F. N.: Vou começar bem rapidamente dizendo que, nos últimos tempos,
eu tendo a entender que os trabalhos que realizo melhor se dizem como
trabalhos que buscam contribuir para a construção de uma educação em
línguas, justamente porque tenho me ocupado, nas diferentes esferas
de minha atuação, em pensar nesse lugar para as línguas diversas como
formas de construção do conhecimento em espaços educativos. Digo isso
porque entendo que podem ser diferentes as compreensões que temos
de educação linguística e as práticas que dela resultam. De minha parte,
o que tenho buscado construir como formas de compreender as línguas
no âmbito das práticas educativas e promover práticas com-sobre as
línguas parte sempre da consideração da língua enquanto materialidade
do discurso, porque isso diz do lugar em que me inscrevo teoricamente.
Eu gosto muito de pensar sobre a língua como forma material nos
termos de Orlandi (1999, p. 19), quando, ao falar da AD, diz que “esses
estudos do discurso trabalham o que vai-se chamar de forma material (não
abstrata como a da linguística) que é a forma encarnada na história para
produzir sentidos: esta forma é portanto linguística-histórica”, e o é porque,
embora a AD trabalhe com a afirmação da autonomia relativa da língua,
como já nos dizia Pêcheux, e se aproxime do sistema tal como pensado
137
por Saussure e, nele, da noção de valor, como vemos em Gadet e Pêcheux
(2004), para pensar o sistêmico capaz de subversão, a AD vai pensar que
a produção de sentidos na língua implica o necessário atravessamento da
história nesse sistema sujeito a falhas. Essas são questões que estão muito
presentes no conjunto de trabalhos que mencionei aqui, para os quais o
modo de pensar a língua pelo viés da AD é sempre um ponto de partida
necessário, é necessário para pensar a relação do sujeito com a língua,
da língua com a história, da língua com os discursos… E, portanto, esse
modo de compreender a língua e a relação entre língua e história vão
produzir compreensões como as que já mencionamos, sobre o que é ler,
por exemplo, pelo viés da AD.
De alguma forma, então, acho que acabei já respondendo a como
entendo que esse modo de pensar a língua que se produz pelo viés da
AD traz implicações para a práxis pedagógica. Sem me alongar, gostaria
apenas de tocar em algumas questões que são muito comuns no nosso
modo de trabalhar a língua e produzir análises da AD e que entendo
como fundamentais de estar num modo de pensar a língua na educação,
digo da impossibilidade de separarmos forma e conteúdo, por exemplo
trabalhando sempre com os modos de dizer e seus efeitos a partir da forma
de sua aparição. Trata-se de atender ao chamado que já mencionamos e
que nos traz o trabalho de Orlandi de pensar a língua pelo viés da ordem
e não apenas da organização, entendendo que há um funcionamento
da língua no discurso que produz sentidos, e os produz a partir de uma
relação específica do enunciado com as condições e sua produção-
circulação e leitura. Pequenos gestos, nesse sentido, entendo que possam
produzir grandes efeitos no trabalho com a língua na escola, e são gestos
que, na minha compreensão, podem estar inspirados pelo modos de
produzir as análises em AD, para que possamos pensar também na sala
de aula em deslinearizar os textos, questionar as inversões sintáticas pelos
efeitos que produzem, ver como se repete um significante e percorrer seus
138
caminhos de sentido, observar como um jogo entre formas de tratamento
pode abrir para um jogo entre lugares no discurso ou como, a partir de
movimentos parafrásticos, se deslocam sentidos, fazendo aparecer o outro
do enunciado, apenas para mencionar algumas possibilidades. E isso só se
faz pelo viés da língua enquanto forma material.
***
28
Apenas a título de exemplo dessa relação entre a Análise do Discurso Materialista e a
História das Ideias Linguísticas menciono o dossiê temático Produção do conhecimento,
políticas linguísticas e ensino de línguas: contribuições da Análise do Discurso, publicado
no ano de 2021 pela Revista Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Pelotas,
disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/article/view/21752.
140
SOUZA SANTOS, 2006), especialmente no que concerne a um modo
de pensar uma educação em línguas na escola, que possa apontar para
forma de fazer trabalhar as línguas como espaços de deslocamento, de
exercício de alteridade, de afirmação do heterogêneo. Falo de trabalhos
ainda em andamento e que, embora tragam flertes antigos com o campo
das pedagogias críticas e das teorias decoloniais, compreendemos que
nos permitirão, a partir de seu amadurecimento, uma teorização mais
consistente sobre esses encontros possíveis e a proposição de olhares que
possam produzir deslocamentos, assim esperamos, em nossas práticas
educativas.
***
F. N.: Acho que hoje eu formularia isso de outra forma, mas sigo entendendo
como fundamental a relação entre língua e constituição da subjetividade.
141
Essa compreensão, para mim, surge a partir da noção de sujeito tal como
ela é entendida pela AD e pela relação necessária do sujeito com a língua,
ou seja, é com a AD que eu passo a entender que somos sujeitos na língua
e por ela. A questão da subjetividade e dos processos de identificação,
portanto, estão sempre presentes no meu modo de pensar as línguas e as
práticas de ensino, foi isso que me levou na tese, por exemplo, a pensar a
dimensão da estrangeiridade de uma língua no que ela pode produzir de
estranhamento mas também de fascínio, de acolhimento, de possibilidade
de experimentar-se para o sujeito a partir de outros lugares, em línguas
outras. Nessa mesma direção, por exemplo, encontro possibilidades de
trabalho sobre os estereótipos e os imaginários que vão na direção de pensá-
los como construções de discurso, com seus modos de funcionamento e
seus efeitos sobre os sujeitos, mas também com suas brechas, que dão lugar
a processos múltiplos de identificação (desidentificação-contraidenticação)
que podem construir, assim, para os sujeitos, modos diversos de se
relacionar com as línguas e os discursos sobre elas, encontrando espaços de
ancoragem para a produção de modos de identificar-se com essa língua e o
que por ela se diz. O que aparece, portanto, na citação mencionada, e que
alude a uma formulação que entendo como fundante de Cristine-Revuz
pela importância que tem para os trabalhos que sobre as línguas fazemos a
partir da AD, é aquela da compreensão dessa dimensão fundadora de uma
subjetividade que tem a língua materna para o sujeito, língua da qual não é
possível ao sujeito se desvencilhar (sempre atentando para o fato de que,
ao dizer língua materna, não dizemos, necessariamente, língua nacional
ou língua de escolarização). É preciso lembrar que quando falamos de
subjetividade estamos pensando nesse laço entre as ordens do simbólico
e do imaginário pelas quais se faz o sujeito, relação marcada pela presença
de uma alteridade que não cessa nunca de se fazer presente e que habita
todo processo de identificação. Talvez possamos dizer, nessa direção, que
há uma estrangeiridade que habita todo sujeito, que é, portanto, sempre
142
um ser em línguas. Acho interessante, nesse sentido, pensar que sempre se
insistiu muito no desejo de dominar a língua, de aprendê-la, como se dela o
sujeito pudesse se servir. Entendo que pelo viés da subjetividade tal como
a compreendemos a partir da AD podemos dizer que antes de dominar
as línguas estamos sujeitos a elas, somos apreendidos pelas línguas. Vou
recorrer aqui, para tentar encerrar, a uma formulação que está em De Nardi
e Nascimento (no prelo) e que acho que me ajuda a dizer desse modo de
compreender as línguas:
[...] na relação entre línguas, as novas identificações só são possíveis quando o
sujeito consegue inscrever-se na língua do outro, a partir da qual, ele consegue
se dizer, processo que se dá por meio da sua inscrição na discursividade dessa
nova língua, promovendo um desarranjo subjetivo e, consequentemente, um
rearranjo significante (SERRANI-INFANTE, 1997). É a inscrição na nova
língua que vai possibilitar ao sujeito ressignificá-la e ressignificar-se, já que
ela traz consigo novas vozes, novos questionamentos que o modificam e o
alteram e, assim, promovem essas novas identificações.
144
E ntrevista com Freda I ndursky
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
“O professor deve saber que o que sustenta diferentes tomadas de posição é a ideologia,
mas isso não implica trabalhar a noção de ideologia com seus alunos. Em sala de aula,
o que vai interessar são os diferentes efeitos de sentido, as diferentes tomadas de posição
que manifestam a ideologia. Essa é a diferença: o professor deve saber que a ideologia
se materializa em discurso, que o discurso se materializa em textos e, estes, por sua
vez, se materializam através da língua. Mas essa reflexão teórica remete à formação do
professor e não a de seus alunos. Esses conhecimentos serão fundamentais para orientar
sua práxis pedagógica, vai determinar a seleção dos textos a serem lidos, e vão iluminar
a condução da prática da leitura em sala de aula. Ou seja: toda a reflexão teórica
proporcionada por sua formação linguística deverá ser traduzida em práxis pedagógica,
em atividades que conduzam seus alunos entre leituras e práticas de escrita.”
F. I.: Essa é uma questão importante e que precisa ser bem entendida. Os
conhecimentos de uma formação discursivo-materialista são importantes
para quem? E por quê?
Tais saberes são fundamentais para a formação linguística de todo
e qualquer estudante que se interesse pelos estudos da linguagem e,
sobretudo, para aqueles que pretendem seguir pelos caminhos teórico-
analíticos da AD. Da mesma forma, interessam aos futuros professores,
pois tais conhecimentos poderão iluminar sua reflexão de como conduzir
sua práxis pedagógica. São importantes para refletir, por exemplo, sobre
o tipo de prática de leitura que desejam desenvolver com seus alunos.
São fundamentais para perceber que tomamos posição sobre o que um
determinado texto faz circular e que essa tomada de posição não é única,
nem idêntica para todos. O professor deve saber que o que sustenta
diferentes tomadas de posição é a ideologia, mas isso não implica
trabalhar a noção de ideologia com seus alunos. Em sala de aula, o que
vai interessar são os diferentes efeitos de sentido, as diferentes tomadas
de posição que manifestam a ideologia. Essa é a diferença: o professor
deve saber que a ideologia se materializa em discurso, que o discurso se
149
materializa em textos e, estes, por sua vez, se materializam através da
língua. Mas essa reflexão teórica remete à formação do professor e não
a de seus alunos. Esses conhecimentos serão fundamentais para orientar
sua práxis pedagógica, vão determinar a seleção dos textos a serem lidos e
vão iluminar a condução da prática da leitura em sala de aula. Ou seja: toda
a reflexão teórica proporcionada por sua formação linguística deverá ser
traduzida em práxis pedagógica, em atividades que conduzam seus alunos
entre leituras e práticas de escrita. A partir dos diferentes gestos de leitura
produzidos pelos alunos em sala de aula, o professor poderá colocar em
contraposição os diversos efeitos de sentido que foram produzidos bem
como apontar/comparar/contrastar as tomadas de posição que foram
produzidas pelos autores dos textos. Assim procedendo, pontuará que
não há consenso em torno de determinadas questões. Acredito que a
teoria produzida pela Análise de Discurso pode contribuir para a práxis
pedagógica desde que o professor entenda que essa teoria não se constitui
em objeto direto de sua docência, mas ela pode sustentar o modo de
conduzir suas práticas pedagógicas.
***
F. I.: Penso que, para escrever, o aluno precisa ter algo a dizer. Construir
uma coletânea de textos reunidos em um arquivo pedagógico representa
um pouco do muito que já foi dito sobre um determinado tema, simulando,
dessa forma, o interdiscurso. Mas não só. Há muitas atividades que
podem ser desenvolvidas a partir de um arquivo pedagógico e, entre elas,
por exemplo, dar visibilidade ao fato de que abordar um mesmo tema/
problema não implica consenso. O arquivo pedagógico presta-se, pois,
152
para introduzir o aluno em um espaço polêmico de leituras, no interior do qual
coexistem textos que tratam de um mesmo tema, mas que divergem por
defender posições antagônicas entre os textos aí reunidos. Assim, é possível
tomar o arquivo pedagógico como um observatório: textos que abordam
um mesmo tema não assumem necessariamente a mesma posição, nem,
tampouco, essa posição se materializa com as mesmas palavras ou com a
mesma estrutura linguística. A teoria materialista do discurso trabalha com
processos de significação e é a partir desses processos que é possível identificar
as posições defendidas por diferentes autores. Esse observatório é um
dispositivo forte para uma iniciação na prática discursiva da leitura.
Mas esse dispositivo pode/deve ir além. Acredito que uma prática
de produção de texto inicia durante a prática da leitura realizada nesse
espaço polêmico, durante a qual vai se elaborando a tomada de posição
pelo sujeito-leitor frente às diferentes tomadas de posição presentes no
arquivo pedagógico. Entendo que a tomada de posição e sua sustentação em
sala de aula pode conduzir o sujeito-leitor à posição de sujeito-autor.
Concebo essas duas práticas como as duas faces de um mesmo e amplo
processo discursivo – o ciclo da autoria29. Dito de outra forma: em uma
práxis pedagógica, defendo que a autoria não separe a prática da leitura30
da prática da escrita. Ao contrário. Uma leva à outra. A autoria é, pois, o
funcionamento ideológico-discursivo que conduz o aluno a tomar posição,
tanto na leitura, quanto na escrita. É sob o funcionamento discursivo da
autoria, já tendo tomado posição durante a prática leitora, que o aluno
procede ao recorte de fios discursivos daqui e dali, dentre os textos que
compõem o arquivo pedagógico. É ainda o funcionamento da autoria que
aponta o modo como esses fios podem ser tramados para tecer um novo
29
Trabalhei o ciclo da autoria no artigo Da heterogeneidade do discurso à heterogeneidade do texto
e suas implicações no processo da leitura (EDUCAT, Pelotas-RS).
30
Eni P. Orlandi refletiu sobre questões de leitura e de autoria no livro Discurso e Leitura
(Ed. Cortez); Solange Gallo desenvolveu a noção de efeito-leitor em Discurso da Escrita e
Ensino (Ed. da UNICAMP)
153
texto que defenda um posicionamento, que dê uma direção ao processo
de significação produzido no texto. É o trabalho discursivo da autoria que
produz o que entendo ser um sujeito-leitor-autor.
Mas o que sustenta a trama dos fios discursivos? Esse é o momento
do trabalho discursivo com a língua, com a sintaxe. Não a sintaxe da
frase, fora de qualquer contexto, mas uma sintaxe que permita organizar
os diferentes fios discursivos trazidos de outros textos, uma sintaxe
que sustente o processo discursivo de significação, que materialize
linguisticamente a tomada de posição do aluno. Uma sintaxe discursiva que
trame adequadamente os fios discursivos provenientes de outros textos
para tecer um novo texto, um novo processo discursivo. Ou seja, entra aí
um saber fundamental produzido no campo teórico da AD: nesse campo
não se trabalha com a língua enquanto forma abstrata. Na teoria materialista
da AD, a língua é uma materialidade linguística que dá sustentação a
processos discursivos de significação. É o trabalho discursivo com a
língua e sua sintaxe discursiva que transforma fios discursivos isolados/
descontextualizados, provenientes de diferentes textos, em um novo texto.
É esse trabalho discursivo que inscreve esse novo texto em um espaço
intertextual (relação com os textos de onde provêm os fios discursivos) e
em um espaço interdiscursivo (relação com o arquivo pedagógico).
Esse é o lugar em que a sintaxe ganha sua força produtiva, seu
funcionamento discursivo, sustentando uma produção de sentidos
e um determinado ponto de vista. Penso que estudar sintaxe de frase,
isoladamente, não faz sentido para o aluno e não contribui para o
crescimento de seu domínio linguístico. Trabalhar na organização
interna de fios discursivos que vêm de outros discursos permite ao aluno
perceber como a sintaxe faz parte de nosso dia a dia. Coloca à disposição
os instrumentos necessários para defender uma tomada de posição e
produzir um determinado efeito de sentido e não outro que se lhe oponha.
O trabalho da sintaxe discursiva é decorrente da ideologia, da interpelação
154
ideológica do sujeito, a qual vai “guiar” o sujeito-aluno em sua prática
da escrita, determinando o modo como reunir/agenciar/tramar os fios
discursivos recortados de outros textos para concordar ou discordar a
propósito de algum tema determinado, materializando, dessa forma, sua
tomada de posição.
O arquivo pedagógico possibilita ao aluno a percepção de que o
texto apresenta uma superfície linguística, cuja materialidade é tecida com
discursividades-outras. É essa percepção que habilita o texto produzido
por um sujeito-leitor-autor a ser inserido no interior do arquivo pedagógico
e, com essa inserção, completa-se o ciclo da autoria e o sujeito-leitor-autor
está pronto a iniciar um novo ciclo.
O texto do aluno, por sua vez, ao ser inserido no arquivo pedagógico,
ganha legitimidade para fazer parte do espaço polêmico de leituras. Essa
inserção dá-lhe o estatuto de ser um texto disponível para participar do
ciclo de autoria de outros alunos.
O arquivo pedagógico pode ser um dispositivo importante para a
formação de sujeitos-leitores-autores críticos.
O ciclo da autoria, constituído no âmbito de um arquivo pedagógico,
dá unidade à práxis pedagógica que envolve professor e alunos, iluminada
por saberes oriundos da Teoria da Análise de Discurso.
Por fim, julgo que um dispositivo como o arquivo pedagógico se
presta a várias disciplinas que trabalham com textos e não apenas para as
práticas de leitura e produção textual, da mesma forma que se presta para
um ensino integrado, que tome um determinado tema do interesse de
várias disciplinas.
***
155
F. I.: Acredito que já tenha tocado nessa questão ao responder à pergunta
3. Penso que um dos grandes desafios para um professor é o de perceber
o que é da ordem estrita da teoria e que, por conseguinte, diz respeito
apenas a sua formação linguístico-discursiva, sabendo que essa teoria pode
iluminar sua prática em sala de aula, mas não se destina à sala de aula. Essa
é a diferença fundamental entre campos teóricos que podem subsidiar
a reflexão e a práxis do professor e o campo das teorias aplicadas. Me
ocupei dessa questão, também, ao responder à pergunta sobre o arquivo
pedagógico.
Um outro desafio é o da seleção do tema para a construção do
arquivo, pois este deve interessar aos alunos. E, no meu entendimento,
essa etapa deve ser discutida/construída juntamente com os alunos.
***
F. I.: Há um ponto que não pude abordar ao longo das questões que
recebi e que julgo importante trazer aqui. Os textos fundadores nos
conduziram a pensar o discurso como a materialização da ideologia e o
texto como materialização de um discurso. Esse é um saber inquestionável.
Mas, desde que a Teoria da Análise de Discurso atravessou o Atlântico,
muitas e novas reflexões foram desenvolvidas pelos analistas de discurso
brasileiros e aqui foi feito um deslocamento importante: um discurso
necessita de uma materialidade significante para manifestar-se, mas essa
materialidade nem sempre é um texto. Ela pode ser da ordem da oralidade
ou mesmo constituir-se de materialidades imagéticas e/ou digitais. Muito
156
já foi produzido em torno dessas outras materialidades significantes. E
penso que elas podem/devem fazer parte de um arquivo pedagógico.
***
157
158
E ntrevista com M araísa Lopes
Universidade Federal do Piauí
159
questão me atravessou durante toda a graduação e me atravessa até os dias
atuais, pois, por mais que tente trabalhar com outras materialidades, sempre
me vejo às voltas com o discurso jornalístico. Concluída a graduação, ao
mesmo tempo em que eu fazia um curso de especialização em Estudos da
Linguagem, fui aceita como aluna especial para a disciplina de História das
Ideias Linguísticas, no IEL/UNICAMP, que seria ministrada por Claudia
Pfeiffer. Foi a partir da possibilidade de participar dessa disciplina que se
deu minha entrada no turbilhão de sentidos produzidos pelas discussões
sobre Análise de Discurso (AD) materialista e História das Ideias
Linguísticas (HIL). Me lembro que meu primeiro seminário na disciplina
foi sobre o livro Terra à Vista, de Eni Orlandi. Ler esse texto e participar de
todas as discussões me fez perceber que aquele seria meu lugar de filiação
teórico-analítica. Em 2006, iniciei o mestrado, retomando a questão da
Guerra do Iraque e da Folha de São Paulo, já inscrita teoricamente na
AD materialista, sob a supervisão da professora-pesquisadora Claudia
Pfeiffer. Ao mesmo tempo em que comecei o mestrado, deixei de ocupar
a posição de instrutora de inglês em escolas de idiomas e passei a lecionar
no Ensino Superior. A produção da minha dissertação acabou apontando
novos questionamentos, os quais foram a base para que eu apresentasse
meu projeto de doutorado. Em 2009, concluí o mestrado e iniciei o
doutorado. No primeiro ano, concluí todas as disciplinas e decidi que no
ano seguinte começaria a prestar concursos para ser professora de uma
universidade pública, já que reconhecia que queria ocupar uma posição
que me permitisse não só ministrar aulas, mas também realizar pesquisas,
podendo, além disso, contribuir para a formação de jovens professores-
pesquisadores. Em 2010, prestei meu primeiro concurso e fui aprovada.
Sou professora-pesquisadora na Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Atuo, na graduação, ministrando as disciplinas de Estudos Linguísticos
e Análise de Discurso para o Curso de Licenciatura em Letras-Libras
(o que vai explicar um pouco dos caminhos que venho tentando traçar
160
nos últimos tempos), e, na Pós-Graduação, sou professora permanente,
orientando dissertações e teses que se inscrevem na AD materialista e em
HIL. É a partir desse lugar, de professora-pesquisadora, na UFPI, que
venho, ao longo dos anos, tentando fazer circular a teoria, colocando mais
questões que as respondendo, instigando e incentivando meus alunos de
graduação, de iniciação científica, de mestrado e de doutorado a conhecer
esse modo de ler os discursos, em suas diferentes materialidades. Quando
digo sobre mais perguntas que respostas, aponto para a necessidade de
sempre nos movermos na relação com a teoria, com os colegas de área,
com os textos com os quais nos deparamos. Na atualidade, desenvolvo
um estágio pós-doutoral, supervisionado pela professora-pesquisadora
Eni Orlandi. Filiada ao Labeurb/Unicamp, tomo a Serra da Capivara
(sendo simplista) como foco de minhas análises e observo como dia a dia
vou (re)significando essa minha relação com a AD/HIL.
***
161
discursivo. Assim, pensando a possibilidade de contribuição da relação
AD-HIL-Educação, gostaria de retomar uma discussão feita por Orlandi
(2014) que remonta a uma distinção entre capacitação e formação para
suscitar uma questão: A educação que se oferece hoje no Brasil capacita
ou forma sujeitos? Orlandi (2014) compreende a capacitação numa
relação com a informação e a formação, com o conhecimento. Numa
sociedade como a nossa, observo que há uma demanda fortíssima para
a capacitação, a qualificação. Há um discurso dominante que circula
na mídia, no mercado, no/pelo governo. Penso que, ao deslocarmos
a educação de uma relação com a capacitação e a ligarmos à noção de
formação, principalmente, quando se trata de uma educação linguística, é
fundamental que tomemos tal ação como um processo de conhecimento,
uma prática pedagógica de construção real do conhecimento, que não
esteja presa a imaginários já consolidados que funcionam na escola e
antecedem as relações com os próprios alunos, os sujeitos desse processo.
Uma educação que considere o dispositivo teórico da Análise de Discurso
assume um novo modo de relação com o conhecimento, colocando em
funcionamento noções como sujeito, língua, ideologia e formação social.
É preciso destacarmos que o processo de individuação do sujeito se dá
(também) na relação com as instituições. A escola, Aparelho Ideológico
do Estado, é tomada como o lugar do conhecimento, portanto, é preciso
fazer com que essa instituição faça com que o sujeito se reconheça numa
relação de saber a língua, de sabe ler e escrever, saindo de um processo
de reprodução mnemônica, permitindo ao sujeito o dimensionamento
do efeito de sua intervenção nas formas sociais e o lugar da formulação,
da reformulação, da significação e da ressignificação. O sujeito deve ser
capaz de transformar seu conhecimento, compreender suas condições de
existência e ser a própria possibilidade de resistência.
***
M. L.: Esse lugar do entremeio permite que haja movência nas discussões
que são feitas por aqueles que se inscrevem na base teórica da Análise
de Discurso Materialista. Tomar a língua a partir de seus processos de
produção de sentido, enquanto um trabalho simbólico, constitutivo
do homem e de sua história, nos faz tomá-la em sua materialidade,
pensando-a como a possibilidade de formulação e circulação de discurso
entre sujeitos. Se pensarmos em uma educação discursiva, considerar as
teorias, os pesquisadores e os projetos atuais nos permite compreender
como a relação com a questão do conhecimento pode favorecer um modo
de conceber a educação a partir de um movimento que coloca em jogo
língua, sujeito, ideologia e história. Cada vez mais, diversas materialidades
têm sido tomadas como objetos de análise, o que acaba por demandar a
relação com diversas áreas, sem perder de vista a necessidade de pensá-
las na relação com a ordem do discursivo. Ademais, pensar a educação
discursivamente nos permite trabalhar a relação entre discursos a partir
de um lugar outro que não o da interdisciplinaridade, tão mencionada
nos documentos oficiais brasileiros. Compreender essa possibilidade de
164
relação entre teorias, pesquisadores e projetos para além de uma soma de
disciplinas, corrobora o estabelecimento de um complexo jogo de tensões
e de possíveis contradições que fazem avançar novas possibilidades de
compreensão teórico-analíticas.
***
168
E ntrevista com R ívia Fonseca
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
“Quando falo do capital, falo também das consequências da hegemonia de seu discurso:
consumo, tecnicismo, utilitarismo, aplicacionismo e toda lógica (efeitos de evidência)
fast-food que atravessa as práticas dos sujeitos atuais, inclusive, de modo cínico
e cruel, no ambiente escolar e no sistema educacional como um todo. A meu ver, é
uma luta diária e necessária, porém exaustiva para o professor que se vê afetado pelo
materialismo e, consequentemente, nessa posição precisa rever sua relação com o discurso
institucionalizado do Estado na/para a escola e, ao mesmo tempo, ser um sujeito cujo
modo de existir, de significar, passa pelo modo de ser do capital”.
R.F.: “O que faz a Análise do discurso em sua visada materialista? Visa compreender
os processos de produção dos sentidos ali colocados, analisa e se pergunta pela interpelação
ideológica, sempre querendo saber se o sentido poderia ser outro” (MARIANI, 2016,
p.47). Como falei anteriormente, a noção de língua como materialidade
do discurso proposta pela AD é basilar e essencial porque permite ao
professor ampliar seu escopo e, a meu ver, o liberta da prisão do ensino
do gênero textual, que tem, por força do discurso institucionalizado das
diretrizes e orientações curriculares, substituído, não raro, o ensino dos
princípios gramaticais do que se denomina norma padrão ou norma culta.
Dito de outra forma, temos observado, ao longo do tempo, a construção
de noções de língua que delimitam esse objeto. Ora a língua é significada
como sistema, ora como conjunto de regras, ora como modelos textuais.
E qual é o problema desses efeitos de sentido do ponto de vista de uma
perspectiva discursivo-materialista? A ausência do caráter histórico da
linguagem. Mostrar que o sentido sempre pode ser outro no processo de
31
N.O.: o dossiê está disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/pen-
saresemrevista/issue/view/2245/showToc. Acesso em 17 abril de 2023.
174
interpretação é evidenciar como os processos ideológicos atravessam o
processo de produção dos discursos.
A práxis pedagógica, no que tange à leitura e à escrita, no âmbito
do ensino de língua portuguesa, se beneficia profundamente com a visada
materialista. Ela possibilita que o professor as trabalhe na articulação entre
a ideologia e a história na sala de aula.
***
32
Refiro-me ao NELID – Núcleo de Estudos em Língua e Discurso, uma parceria entre
pesquisadoras e pesquisadores da UERJ, UFRRJ e UFF.
178
últimos trabalhos que orientei, o arquivo pedagógico foi parte essencial do
gesto de autoria.
***
***
Agradecemos pelas contribuições e pela sua participação nesse
projeto de entrevistas com pesquisadoras. Caso queira, deixamos a
palavra em aberto para você realizar alguma consideração final com
suas questões e inquietações ou também para tocar em ponto(s)
não abordado(s) na entrevista.
181
182
E ntrevista com S olange Gallo
Universidade do Sul de Santa Catarina
“Encontro professores de lugares e contextos muito diferentes, o tempo todo. Mas posso
dizer que são aqueles que não aguentam a prática da repetição e do autoritarismo
que acabam procurando uma outra via de realização do seu trabalho, aqueles que
chegam a um limite e então passam a se contra-identificarem com as formas autoritárias
do discurso pedagógico. Encontram-se, então, como maus sujeitos, como diz Pêcheux,
desse discurso que propõe a adoção de livros didáticos, com fragmentos de obras de
autores variados, muitas vezes sem a devida referência, tornando quase impossível uma
interpretação consequente dos textos, que articule o que lá está dito, com as condições de
produção desses dizeres”
184
HIL-Educação, o que nos coloca diante de domínios que podem
contribuir para a educação linguística. Que contribuição(ões)
seria(m) essa(s)?
S. G.: Exatamente sobre isso que eu vinha falando a vocês. Com esse
meu trabalho apresentado em Discurso da Escrita e Ensino, pude mostrar
que o mais importante para a produção de texto é criar condições, na
Escola, para a tomada de posição do aluno, em um discurso de escrita.
Trata-se de uma questão de autoria. Os professores podem fazer isso
de muitas maneiras. Na época, minha experiência foi com o discurso
literário, como eu descrevo no livro, mas já acompanhei diferentes
iniciativas de professores que trabalharam com outras discursividades,
como a jornalística, a artística, dependendo daquilo que é mais acessível
materialmente. À medida que os alunos vão entrando no funcionamento
dessa discursividade, através da aproximação dos textos disponíveis, eles
vão, ao mesmo tempo, se preparando para a assunção de uma posição
nesse discurso, o que deverá ser previsto nessa prática. Isso permite dizer
que a autoria não é uma condição isolada, a autoria é um encontro entre
uma produção do sujeito, na função-autor, relacionada a um efeito de
autoria de um discurso de escrita. Só assim a gente consegue ir além da
grafia, na prática de produção de texto.
***
185
é o caso da escrita. A língua não acontece em abstrato, ela se apoia
em práticas, que são materiais, e em tecnologias. Assim, tratar a língua
abstratamente, como uma estrutura, aos moldes saussurianos, ou mesmo
como um instrumento de comunicação, como vemos em Benveniste,
é perder a dimensão mais determinante da língua, que é sua dimensão
material. Quando falamos da dimensão material da língua, estamos falando
de processos sociais, históricos e ideológicos que se materializam na
língua, mas não só na língua, embora a língua seja a principal ancoragem
desses processos. É inegável os passos gigantes que deram pesquisadores
como Saussure, ou Benveniste, cada um no seu gesto de interpretação
da linguagem, antes sem objetos tão precisos. No entanto, os estudos
discursivos, sem negar esses objetos: a língua e a subjetividade na língua,
propõem uma teoria não subjetiva da subjetividade, o que significa trazer
para as análises outras dimensões não consideradas até então, que se
marcam no que chamamos processos discursivos e que são determinantes na
constituição dos sentidos e dos sujeitos.
Falar sobre educação, neste momento, é uma tarefa difícil. Isso porque
sempre abordei essa temática pela via da noção de autoria, que é meu foco
nesta discussão. Porém, hoje estamos todos afetados por um sentimento
187
muito forte de despossessão, que vem no sentido contrário ao da autonomia,
ao da autoria. (GALLO, 2019, p. 230)
Com isso, no texto citado, você traz uma série de análises sobre
a legislação responsável por alterar a formação básica brasileira.
Tanto a instituição da BNCC quanto a Reforma do Ensino Médio
também afetam, de algum modo, a formação de professores. Nesse
sentido, parece ser possível indicar que os dois movimentos citados
funcionam, pois, naquilo que nós, analistas de discurso, recusamos
em nosso trabalho, a saber: a criação de uma unidade na diversidade,
de modo que silencie outras e tantas diferentes formas de Educação
Linguística. Tendo isso em vista, há algo que permeia sua produção
acadêmica e diz respeito ao lugar de autoria – seja a desse sujeito-
aluno, seja a do sujeito-professor. Frente à imposição cada vez mais
forte de adequação dos currículos escolares à BNCC, é possível
mantermos – alunos e professores – a autoria nas práticas escolares
e pedagógicas? Você poderia falar um pouco sobre formas de se dar
consequência a esse trabalho em sala de aula?
S.G.: Como eu disse nesse artigo, o trabalho que leva à autoria dos alunos
(e dos professores) depende da concepção de linguagem que se trabalha na
Escola. Quando se tem uma concepção de linguagem como instrumento
de comunicação, não se pode chegar à autoria, como resultado do
processo. Isso porque a autoria, no sentido que queremos apontar como
prática pedagógica, é resultante da relação do sujeito, na função-autor,
com o efeito-autor de um discurso de escrita (que já tem no seu bojo
o efeito de autoria). Quando se tem a concepção de linguagem como
instrumento de comunicação, se espera que a autoria seja produzida pela
graça de um sujeito individualmente criativo e autônomo, independente
da sua posição-sujeito, ou seja, um sujeito que se ergue aos ares puxando-
se pelos próprios cabelos (PÊCHEUX, 1975). Portanto, não há nesse caso
188
um trabalho sistemático que garanta a autoria, apenas a crença em um ato
criativo de um indivíduo, fruto de uma posição idealista. Por outro lado,
quando se tem a concepção de autoria como resultante de um trabalho,
começa-se a poder propor práticas coletivas adequadas, em uma perspectiva
materialista. Essas práticas são coordenadas por professores e não podem
se sustentar em exercícios parafrásticos, dentro ou fora da Escola. Elas
dependem da assunção de posições-sujeito em discursos de escrita. Por
exemplo, quando se lê na Portaria n. 1.432, de 28 de dezembro de 2018,
que “estabelece os referenciais para a elaboração dos itinerários formativos, conforme
preveem as Diretrizes Nacionais do Ensino Médio”, que os alunos serão levados
a “Identificar e explicar questões socioculturais e ambientais passíveis de mediação e
intervenção por meio de práticas de linguagem e propor e testar estratégias de mediação
e intervenção sociocultural e ambiental, selecionando adequadamente elementos das
diferentes linguagens”, e ainda “desenvolver projetos pessoais ou produtivos, utilizando
as práticas de linguagens socialmente relevantes, em diferentes campos de atuação, para
formular propostas concretas, articuladas com o projeto de vida”, entendemos que
por essa via, sim, é possível se chegar à autoria. Isso porque a concepção
de linguagem é outra, a linguagem não é mais instrumento, mas prática (...
por meio de práticas de linguagem...), e é heterogênea (...elementos das diferentes
linguagens...), mas, principalmente, na medida em que há uma convocação
a uma tomada de posição do sujeito-aluno em um discurso outro, que
não exclusivamente o discurso pedagógico (desenvolver projetos pessoais ou
produtivos, utilizando as práticas de linguagens socialmente relevantes, em diferentes
campos de atuação, para formular propostas concretas, articuladas com o projeto de
vida). Estranhamos, no entanto, o enunciado: “utilizando as práticas
de linguagens...”. Entendemos a presença equivocada desse enunciado
(utilizando...) como resquício de uma concepção instrumentalista da
linguagem, mas nos prendemos ao restante da proposta, que prevê a
formulação de propostas concretas, que entendemos como propostas que
189
exigem uma tomada de posição em discursos legitimados. Algo que pode
produzir autoria. Assim, pode-se garantir, também, a diversidade.
***
S.G.: Pois é, temos falado, aqui, da tomada de posição do aluno, mas pouco
falamos dos professores. Tenho encontrado muitos professores na minha
jornada. Encontro professores de lugares e contextos muito diferentes, o
tempo todo. Mas posso dizer que são aqueles que não aguentam a prática
da repetição e do autoritarismo que acabam procurando uma outra via
de realização do seu trabalho, aqueles que chegam a um limite e então
passam a se contra-identificarem com as formas autoritárias do discurso
pedagógico. Encontram-se, então, como maus sujeitos, como diz Pêcheux,
desse discurso que propõe a adoção de livros didáticos, com fragmentos de
obras de autores variados, muitas vezes sem a devida referência, tornando
quase impossível uma interpretação consequente dos textos, que articule
o que lá está dito com as condições de produção desses dizeres; que, além
disso, propõe avaliações prontas, preparadas em outros âmbitos, avaliações
que tem como pressuposto um ilusório grupo homogêneo de alunos e
professores; um discurso que preconiza práticas de desmobilização da
capacidade intelectual e afetiva, porque as formas autoritárias não contam
com a tomada de posição dos alunos, mas tampouco dos professores,
que também são reprodutores de fórmulas. Portanto, é, no movimento
de contra-identificação com essa posição-sujeito dominante do discurso
pedagógico, que as mudanças acontecem. Sempre haverá alguém a quem
recorrer para compartilhar essa luta. Sei que nem todas terão a sorte que
190
eu tive de encontrar Eni Orlandi no caminho, mas há sempre uma saída.
O desejo é que fala.
***
192
Se, (...) propusemos que a materialidade da escrita não é a mesma que a
materialidade da língua, então precisamos levar esse reconhecimento até o
fim. Fazer isso é admitir que a discursividade do enunciado é determinada
por mais do que a materialidade da história e da língua. Também faz parte do
jogo a materialidade de suas formas concretas de circulação. O apagamento
regular do papel dessa materialidade técnica constitui, na nossa leitura, algo
que não pode ser descrito como menos do que uma forma de esquecimento
discreta e definível para a análise de discurso. Um esquecimento da espessura
técnica de um enunciado. É desse esquecimento que nos coube, aqui, falar.
(PEQUENO, 2020, p. 279-280)
193
194
E ntrevista com V anise M edeiros
Universidade Federal Fluminense
“ [...] eu acho que a prática pedagógica está presente em tudo. Vou só citar um caso,
aqui, que é o caso da correção. Há uma memória que coloca a caneta vermelha na mão
do professor e a caneta azul ou o lápis na mão do aluno. Essa é uma memória que
já inscreve uma censura, porque o vermelho é aquela tarja mais forte que acaba com
aquela escrita em lápis ou caneta de outra cor. E é legal quando você inverte isso: eu,
por exemplo, não uso caneta vermelha e falo o porquê. Eu uso lápis; a caneta é do aluno
e o lápis é meu. Porque o mais importante é a caneta, é o que ele fez, o lápis ele pode
apagar. Ou seja, isso é pensar a prática.”
33
N.O: A entrevista está disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/
pensaresemrevista/article/view/47303.
34
N.O.: A entrevistada se refere aqui à Semântica Enunciativa – disciplina, dentre outras,
ministrada pelo prof. Eduardo Guimarães (Unicamp).
35
N.O.: É professora da Unicamp e trabalha com Aquisição de Linguagem, tratada de um
ponto de vista que inclui a Psicanálise.
196
isso: eu vou observando o que há de comum entre essas teorias. E o que
há de comum? É o modo como pensam a língua, o modo como pensam
a língua na relação com o sujeito, e isso é para mim fascinante. Acho que
é isso. Eu não falei de literatura, que é outra paixão, mas porque o sujeito
também está na literatura de diferentes maneiras. A literatura também
traz, pulsantemente, a questão do sujeito. E, nela, eu vejo muitas vezes,
aquilo que a teoria está buscando, a literatura está produzindo, dizendo
e fazendo. Apenas para se ter uma dimensão disso, em meu grupo de
estudos com (ex-)orientandos tem sido muito produtivo quando a gente
lê um conto e vai discutir conceitos da Análise de Discurso e da História
das Ideias Linguísticas.
***
V. M.: Para além do que eu falei, eu acho que a prática pedagógica está
presente em tudo. Vou só citar um caso, aqui, que é o caso da correção. Há
uma memória que coloca a caneta vermelha na mão do professor e a caneta
198
azul ou o lápis na mão do aluno. Essa é uma memória que já inscreve uma
censura, porque o vermelho é aquela tarja mais forte que acaba com aquela
escrita em lápis ou caneta de outra cor. E é legal quando você inverte isso:
eu, por exemplo, não uso caneta vermelha e falo o porquê. Eu uso lápis;
a caneta é do aluno e o lápis é meu. Porque o mais importante é a caneta,
é o que ele fez, o lápis ele pode apagar. Ou seja, isso é pensar a prática. É
pensá-la nos comentários que você faz, na cor da caneta que você usa. É
no detalhe que mora o diabo, como diz o provérbio, a gente sabe disso.
Isso não significa que a gente acerte sempre, mas isso significa que a gente
lida com a desmistificação da ilusão de que eu, como professora, sou dona
de todo saber. E lida com o fato de que você não vai desautorizar o que
o aluno escreveu, mas vai propor algo que possa ser pensado e que possa
ir adiante. Eu acho que a curiosidade sustenta o conhecimento. E se ela
não existe acerca dos saberes do outro e dos outros saberes, ela é ilusória,
pequena e resvala para o autoritarismo, para coisas muito ruins. Então, eu
acho que a práxis está nesse respeitar esse lugar do saber do outro. Não é
com a escuta que o Saussure trabalha? Então vamos lá…
Sobre a materialidade da língua: a gente sabe que a língua é a
materialidade do discurso, não é? Então, quando você entra com a caneta
naquele dizer, você está entrando com a caneta no discurso, você está
censurando o discurso do outro com a caneta vermelha. E é difícil esse
lugar do professor, porque ele precisa ajustar certas coisas, mas ele não
pode impedir outras. Mas ali há uma discursividade, que muitas vezes opaca
demais o professor e isso ocorre porque a teoria também é opaca para o
aluno. Os saberes, às vezes, são muito opacos para o aluno. Na pergunta,
vocês falaram na “[...] educação linguística que é o lugar da materialidade
da língua no funcionamento discursivo [...]”. Eu dei alguns exemplos, mas
posso pensar em outros. O que eu estou pensando na prática do professor
diante dessa discursividade do aluno que se faz. E essa discursividade se
faz em sala de aula, quando ele fala. É claro, também, que é uma relação
199
de ouvir o outro. Há certos gestos que a gente produz para ouvir o outro,
e há certos gestos que a gente produz para calar o outro. Não é simples.
Não é fácil. Ter esse desejo de dar aula e ouvir o outro já é muito bom,
até na hora de ler um trabalho, que é uma parte dura do nosso trabalho.
***
V. M.: Olha, não sei se vou responder a vocês, mas vejam lá. Eu trabalho
com Análise do Discurso e História das Ideias Linguísticas, mas é a
História das Ideias Linguísticas atravessada, constituída sob a perspectiva
Análise do Discurso. Eu também trabalho com o aparato de enunciação
da Jacqueline Authier-Revuz. Eu fui formada lendo Orlandi e Guimarães,
que são próximos teoricamente, mas são dois campos, não é? Eu fui aluna
dos dois; as duas teorias sempre me fascinaram. A Análise de Discurso
não é sem relação com outras teorias, mas não é uma relação de dívida.
Desde o início, ela já tem o esforço teórico de pensar e dizer questões
que comparecem em outros lugares, mas que a gente questiona sobre
como isso fica com a Análise do Discurso. Pensar discursivamente é
um esforço enorme. Bem, vamos lá, pensar em alguma coisa para fazer
jus à essa “educação discursiva”. Eu acho que uma educação discursiva
é isso que vocês estão propondo e, de alguma forma, terão que definir
(risos). É estar nesse entremeio. E a gente já está nele desde que entra na
Análise do Discurso, não tem como estar fora disso. De algum modo, a
educação discursiva é aquela que lida com outras questões, com outros
campos do saber, com esse desejo e com essa curiosidade. E, ao mesmo
200
tempo, tentando articular de uma maneira que seja minimamente coerente
teoricamente.
***
V. M.: Nossa! O que falar? Vocês não fizeram uma pergunta, vocês
fizeram um tratado. É lindo demais isso. Primeiro, eu diria que vocês já
responderam lindamente quando falam “[...] estilhaçarmos uma concepção
de língua fechada em si mesma e dar consequência a uma concepção
discursiva de língua, como nos ensinam Gadet e Pêcheux (2010)”. Eu
acho que a resposta está aí. Por outro lado, uma vez eu falei que eu
trabalho com as minúcias. É isso que chama minha atenção e foi aí que
eu fui olhar para a nota, e da nota para o glossário. No fundo, o que eu
estava olhando era para a palavra, para a palavra que saltava de um lado
para o outro. E, nesse saltar, a minúcia diz muito. O detalhe, que pode
passar despercebido, diz muito. Eu acho que isso eu devo ao Eduardo
Guimarães – outro dia me dei conta disso pensando em uma aula dele.
Ele falava em pegar uma partezinha e então adensar. Eu acho que essa fala
dele veio ao encontro de um desejo e de um olhar que eu tinha, mas não
sabia que tinha. Eu fico fascinada, sabe? Às vezes a gente quer o mundo,
e é no detalhe que mora algo. E esse fascínio ficou e eu confesso que
ele ainda está aí. Eu comprei recentemente o livro do Monteiro Lobato
com as notas da Marisa Lajolo. Eu fiquei apaixonada e pensei: “Gente, eu
não posso não ter”. Ela faz notas para dar conta do racismo que lá está e
por aí vai… Esse é um primeiro ponto, mas as coisas estão todas juntas,
não é? Mexer com a minúcia, com o detalhe, é mexer com língua, mexer
com esse espaço para a língua. Há outra coisa que sempre me fascinou: a
relação entre instrumento ou objeto linguístico e conhecimento linguístico
que está aí em jogo. Se olharmos as notas de rodapé, por exemplo, o que
está em jogo é a questão desse conhecimento linguístico/conhecimento
sobre o sujeito e dizer sobre o dizer do sujeito. E foi por conta dessa
relação com glossários e instrumentos que eu fui pesquisar transmissão e
202
transferência. A partir dos glossários, e da palavra que estava ali em jogo,
muitas inquietações decorreram. Inquietações teóricas sobre transmissão,
sobre definição, sobre referenciação e, mais recentemente, sobre exemplificação.
E está em jogo a questão do instrumento, a questão da transmissão…
Essas inquietações teóricas são fruto do atrito com a análise, com o fato de
que você olha e fala “Não, espera!”, aí você é obrigado a pensar em alguma
outra coisa. Eu sei que vou fazer uma digressão aqui, mas veja: Hoje em
dia nós já somos uma área muito robusta, não é? Houve um tempo em que
eu me orgulhava de ter todos os livros de Análise do Discurso. Hoje, eu
já não posso mais me orgulhar, pois eu não dou conta. Eu tenho que lidar
com o fato de que eu me orgulhava de ter as revistas, de ter o catálogo de
livros. Isso não existe mais e mostra o fato de que nós somos uma área
imensa. Não tem condições de pensar nessa biblioteca que eu supunha
e que me dava um certo amparo no sentido de “Ah, tá bom, eu tenho
tudo ali”. Não, não dá mais para dizer que eu tenho tudo lá. Eu sei que
foi uma digressão, mas é uma digressão que mostra esse crescimento
maravilhosamente absurdo do nosso campo. Ah! E vocês falam daquilo
que não chega nos materiais didáticos e na sala de aula. É… não chega
pelos materiais didáticos feitos a partir de uma certa posição discursiva,
certo? Mas chega a partir de outras posições discursivas. São posições que
permitem ao aluno – ou para quem está estudando – pensar. É sair do
lugar do impor, para o lugar de “Vamos refletir: e aí, como é que fica?” E
é, no pensar como é que fica, que fica bom.
***
V. M.: Olha, hoje, eu dou aula para quem dá aula para a escola básica. Mas,
infelizmente, já vai longe o tempo em que eu trabalhei com educação básica,
203
naquela época era a quinta, a sexta e a sétima série. Agora, só voltando na
pergunta anterior, vocês citam o curso que eu dei para aquelas professoras.
Eu amei ministrá-lo. Foi de um prazer absurdo. Eu acho que estar com
essas professoras, ouvi-las e trocar com elas é algo maravilhoso para mim,
mas eu acho que também é para elas. É um espaço para elas darem esse
retorno e para que a gente possa pensar esse nosso lado. Eu acho que na
graduação todo mundo deveria, de algum modo, ter de trabalhar com
formação básica ou com formações em lugares não privilegiados, não
agasalhados pelo estado, como a educação popular, por exemplo. Melhor
do que fazer um estágio de tantas horas. Não, vai lá e dê aula, assuma uma
turma. Acho que seria bacana.
***
V. M.: Eu só queria agradecer vocês por essa interlocução que não para,
por essa interlocução que me anima… ou melhor, que nos anima e leva a
seguir adiante, não é? Muito obrigada mesmo!
***
Transcrição: Irene Cristina Silvério (UNICAMP)
Revisão de Transcrição: Rony Peterson Oliveira dos Prazeres
(UNICAMP)
204
E ntrevista com V erli Petri
Universidade Federal de Santa Maria
205
anos me alfabetizei em casa36, graças à Tia Neusa (irmã caçula de minha
mãe) que ficava comigo e que era normalista; aos dez anos ganhei meu
primeiro dicionário, um mini Aurélio, presente da Tia Verônica (irmã mais
velha de minha mãe), um marco importante na minha história que mais
tarde pude recuperar e assumir como compromisso de trabalho. As duas
tias atualmente são professoras de Língua Portuguesa aposentadas, devo
muito a elas. Leitora voraz, segui lendo tudo o que vinha pela frente, fiz
o Magistério no antigo segundo grau e, em 1990, ingressei no Curso de
Letras (Português-Francês e respectivas literaturas) na UFSM. Um mundo
de possibilidades se abre diante dos olhos de uma guria da colônia quando
ela ingressa na Universidade pública, gratuita e de qualidade. Aproveitei
muito! Depois veio o Mestrado (com bolsa da CAPES), período de mais
responsabilidade, tinha a (agora colega) Amanda Scherer como orientadora
exigente. Foi ela quem me mostrou os caminhos para conhecer a Análise de
Discurso Francesa, foram anos decisivos para minha vida profissional. Só
muito tempo depois compreendi que desde a graduação, como orientanda
de Iniciação Científica da Amanda, eu já trabalhava com história das ideias,
sem que se usasse esse título. Trabalhei na URI – Campus de Santiago
antes de partir para o doutorado na UFRGS, com Freda Indursky como
minha orientadora. De 2000 até 2004, pude me dedicar a aprofundar meus
conhecimentos em AD, o que me levou a estudar filosofia, psicanálise,
história, discurso literário, geografia humana, antropologia, para citar
algumas áreas do conhecimento por onde circulei. Era bolsista da CAPES
e mais uma vez aproveitei muito bem as oportunidades. A partir do meu
doutoramento, senti a necessidade de um projeto novo, mas que fosse
capaz de resgatar o que eu poderia ter como desejo antigo... É nesse tempo
que passo a conhecer a História das Ideias Linguísticas e em 2006 chega
até mim o livro do José Horta Nunes, sua tese sobre dicionários. Devorei
36
Dos quatro aos seis anos fiz quatro cirurgias das pernas, o que me manteve em casa e
muito tempo deitada. Tal condição me aproximou dos livros.
206
essa obra, foi puro encantamento. Nesse mesmo ano, ingressei como
professora efetiva na UFSM, logo me credenciando ao Programa de Pós-
graduação em Letras. Desde então me dedico ao estudo de instrumentos
linguísticos (AUROUX, 1992), tomando a História das Ideias Linguísticas
em suas relações com a Análise de Discurso pêcheuxtiana. Fiz meu pós-
doutorado com a Eni P. Orlandi, na UNICAMP, entre 2010 e 2012.
Pensando agora: já está na hora de sair para outro pós-doc, focando bem
em História das Ideias Linguísticas. Um projeto para breve... Já são 16
anos de ensino, pesquisa e extensão na UFSM, sempre estudando para
saber mais sobre HIL e AD. De fato, ainda há muitas coisas a saber.
***
Eu já tinha vivido antes em Santa Maria por dois períodos: 1990-1998 (graduação e
38
39
Cf. em https://periodicos.ufsm.br/fragmentum/issue/view/370
40
https://pt.scribd.com/document/275985196/Outro-Olhar-Sobre-o-Dicionario-Ver-
li-Petri
208
perspectiva discursivo-materialista pode contribuir para a práxis
pedagógica?
V. P.: Pensar sobre a língua é uma questão que permeia meu trabalho
na universidade, na escola e na vida. É interessante perguntar aos alunos
da graduação no início da disciplina: o que é língua? E depois, ao final,
perguntar: qual é a sua concepção de língua? Muita coisa se altera num
curto espaço de tempo. É importante também perguntar isso ao professor
de língua na escola, pois essa questão vai desacomodar esse sujeito
pleno em aulas e em trabalhos/provas para corrigir, vai suscitar nele um
momento de reflexão. Façam essa experiência, vale a pena. Para além
desse movimento, ainda é necessário discutir a noção de língua na sala de
aula, explicitar a sua espessura e opacidade. Isso precisa chegar aos alunos
da escola básica, espaço para se discutir o que está e não está posto no
dicionário, bem como as regras da gramática que rege a língua, criando um
lugar para se refletir sobre a produção de sentidos e estabelecendo relações
da língua com sua exterioridade constitutiva, com a história, dando ao
sujeito falante seu lugar no mundo. No meu entender, ao movimentar as
questões de língua na escola e na universidade vamos abrindo espaço para
que o sujeito se aproprie da sua língua e possa ocupar a posição-sujeito
autor, produzindo textos e discursos para além da mera reprodução
sistemática que tanto vemos por aí.
***
209
V. P.: A influência do trabalho de Michel Pêcheux é forte no meu
trabalho de pesquisa, de ensino e de extensão. Talvez meu modo de
ver o mundo e de levar a vida estejam atrelados à leitura que faço do
que Pêcheux (e todos os outros que construíram e ainda constroem a
AD) indicou como necessidade de problematização. Nele já está posta
a necessidade de estabelecimento de relações entre diferentes áreas do
conhecimento e entre diferentes sujeitos. Tenho refletido, por exemplo,
sobre a problemática da autoria e da coautoria em espaços de produção do
conhecimento, inclusive orientei uma tese41 interessantíssima que estuda
isso na obra de Pêcheux. Escrever junto com alguém exige um exercício
importante de olhar para o outro e olhar para si mesmo. É necessário se
perguntar: O que eu defendo? O que o outro defende? O que aceitarei e
ao que serei capaz de renunciar em aceitando o que o outro propõe... No
meu entender, não se produz conhecimento sozinho, nem fechados em
nossas convicções teóricas. É preciso espiar para fora, deixar novos ares
entrarem. Em geral, estar aberto ao novo (e ele sempre vem!) tem sido
muito produtivo aos analistas de discurso!
***
Faz já longa data que, em suas pesquisas, você vem tomando como
objeto o discurso dicionarístico. Destacamos dois momentos por
permitirem vislumbrar modos de afetação desse funcionamento
na práxis pedagógica: um primeiro momento em que se dedica
à reflexão e ao desenvolvimento de dicionários compartilhados
(PETRI, ALVARES, 2017; BIAZUS, PETRI, 2020) e um segundo
momento em que se lança à análise de dicionários escolares (PETRI,
TEIXEIRA, LACHOVSKI, VENTURINI, 2021).
No artigo em coautoria com Alvares, distanciando-se do sentido de
dicionário como fonte de consulta ortográfica e de sentidos, vocês
41
Kelly Guasso.
210
propõem que a desconstrução da ideia de totalidade e completude
associada ao dicionário pode e deve ocorrer “no interior da cultura
escolar, pois é nesse espaço que se fundam as subjetividades e a
cidadania, estabelecendo relações do sujeito com a língua ou com
as línguas” (PETRI, ALVARES, 2017, p. 62).
Indo além, no artigo escrito em colaboração com Biazus, vocês
pontuam a relevância da relação entre escrita e autoria para
uma tomada de posição discursiva, ressaltando que tal relação
muitas vezes não é contemplada na/pela instituição escolar. Sob
esse aspecto, reconhecem, com base em Auroux (2014 [1992]),
o dicionário, enquanto instrumento linguístico, como “uma
intervenção tecnológica e política que busca, no espaço linguístico,
reduzir aquilo que é variável, mantendo assim um ‘bom uso’ da
língua” (BIAZUS, PETRI, 2020, p. 227). Em seguida, no entanto,
ressaltam, com Petri (2012), a relevância de desvincular o processo
de dicionarização do de gramatização para que outras formas de
instrumentalização da língua cujo objetivo prioritário não seja o de
gramatizá-la possam ser contempladas.
Já, no artigo publicado em 2021, com Teixeira, Lachovski e Venturini,
no qual se debruçam sobre a materialidade de dicionários escolares,
pensando a utilização dessa tecnologia da linguagem no espaço
escolar enquanto instrumento de disciplinarização das “coisas a
saber” (PÊCHEUX, [1983] 2002), vocês trazem à luz “o debate sobre
a divisão social do trabalho de leitura”, considerando o conflito entre
o que colocam como “língua ‘sabida’” e “língua ‘a saber’” (PETRI,
TEIXEIRA, LACHOVSKI, VENTURINI, 2021, p. 473).
Com base nessas investigações, você poderia comentar algumas
conclusões a que chegou no tocante à relação entre discurso
dicionarístico e ensino de língua, ressaltando como a/o docente
poderia, à luz da perspectiva discursiva, trabalhar com dicionários
211
escolares de maneira a resistir às “divisões sociais do trabalho de
leitura” (PETRI, TEIXEIRA, LACHOVSKI, VENTURINI, 2021)
neles/por eles/a partir deles impostas e como a criação/construção
de dicionários compartilhados poderia funcionar como forma de
resistência no espaço escolar?
215
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218
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Editorial, 2003.
229
Perfil dos
Organizadores-
Entrevistadores,
das Entrevistadas e
dos Colaboradores
Perfil dos Organizadores-Entrevistadores
Claudia Regina Castellanos Pfeiffer é linguista com toda sua formação feita
no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP) nas áreas de Análise
de Discurso e História das Ideias Linguísticas. É pesquisadora no Laboratório de
Estudos Urbanos (Labeurb/Nudecri/Unicamp), desde 1996, atuando, enquanto
analista de discurso, nas áreas de Saber Urbano e Linguagem, História das Ideias
Linguísticas e Divulgação Científica com temáticas como Políticas de Ensino, de
Língua, de Saúde, de Mineração e Mudanças Climáticas.
Eni Puccinelli Orlandi é doutora em Linguística pela USP e pela Universidade
de Paris/Vincennes. Foi professora da USP (1967/1979), da PUC de Campinas
(1970/1974), da Unicamp (1979/2002), e da UNIVÁS (2002/2018). Atualmente
é pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos, Professora Colaboradora
da UNICAMP e Profa. visitante da UNEMAT. Desenvolve pesquisas em Teoria
e Análise de Discurso, História das Ideias Linguísticas e Jornalismo Científico.
É pesquisadora 1A do CNPQ. Publicou inúmeros artigos e livros no Brasil e no
exterior. Seu livro As formas do Silêncio, prêmio Jabuti em Ciências Humanas, foi
traduzido para o francês, o italiano e o espanhol.
Da apresentação.