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Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não sei
se foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a
mim, e se eu fora outro, também me convertera.
Navegando daqui para o Pará (que é bem que não fiquem de fora os peixes da nossa
5 costa), vi correr pela tona da água de quando em quando, a saltos, um cardume de
peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os Portugueses lhes chamavam
quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão deste nome, e achei que
verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais1 e perfeitos. “Dá graças a Deus”, lhe
disse, “e louva a liberalidade 2 de Sua Divina Providência para contigo; pois às águias, que
1 são os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra,
0 também dois; e a ti, peixezinho, quatro”. Mais me admirei ainda, considerando nesta
maravilha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar,
nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo
em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?! Oh, quão altas e
incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de Seus juízos!
1 Filosofando, pois, sobre a causa natural desta Providência, notei que aqueles quatro
5 olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles unidos como os
dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior olham
direitamente para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo. E a razão desta
nova arquitetura é porque estes peixezinhos, que sempre andam na superfície da água,
não só são perseguidos dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande
2 quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e
0 inimigos no ar, dobrou-lhes a Natureza as sentinelas e deu-lhes dois olhos, que
direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que
direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.
Oh, que bem informara estes quatro olhos uma alma racional, e que bem empregada
fora neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele
2 peixezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso de razão, só devo olhar direitamente
5 para cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para
baixo, lembrando-me que há Inferno.
Padre António Vieira, Sermão de Santo António, Porto, Porto Editora, 2020, pp. 26-28
NOTAS
1
cabais – completos.
2
liberalidade – generosidade.
Marca a página 11 Fichas de trabalho por domínio – Educação Literária
1. Comenta o sentido da expressão “[…] se eu fora outro […]” (linha 3), no contexto em que ocorre.
3. Explicita a intencionalidade crítica de António Vieira com as afirmações das linhas 11 a 15.
5. Mostra de que modo a referência à “pregação” (linha 27) contribui para o carácter persuasivo do texto.
Soluções
Educação Literária
Ficha 1
1. No contexto em que ocorre, Vieira pretende fazer o elogio
do peixe quatro-olhos. Como tal, afirma que este peixe lhe deu
ensinamentos e que, se ele não fosse padre António Vieira
(mas sim um dos colonos portugueses), converter-se-ia
perante o exemplo do quatro-olhos.