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Ficha 1 | Sermão de Santo António, de padre António Vieira

Lê o excerto do capítulo III do Sermão de Santo António, de padre António Vieira.


Se necessário, consulta as notas.

Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não sei
se foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a
mim, e se eu fora outro, também me convertera.
Navegando daqui para o Pará (que é bem que não fiquem de fora os peixes da nossa
5 costa), vi correr pela tona da água de quando em quando, a saltos, um cardume de
peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os Portugueses lhes chamavam
quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão deste nome, e achei que
verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais1 e perfeitos. “Dá graças a Deus”, lhe
disse, “e louva a liberalidade 2 de Sua Divina Providência para contigo; pois às águias, que
1 são os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra,
0 também dois; e a ti, peixezinho, quatro”. Mais me admirei ainda, considerando nesta
maravilha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar,
nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo
em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?! Oh, quão altas e
incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de Seus juízos!
1 Filosofando, pois, sobre a causa natural desta Providência, notei que aqueles quatro
5 olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles unidos como os
dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior olham
direitamente para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo. E a razão desta
nova arquitetura é porque estes peixezinhos, que sempre andam na superfície da água,
não só são perseguidos dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande
2 quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e
0 inimigos no ar, dobrou-lhes a Natureza as sentinelas e deu-lhes dois olhos, que
direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que
direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.
Oh, que bem informara estes quatro olhos uma alma racional, e que bem empregada
fora neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele
2 peixezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso de razão, só devo olhar direitamente
5 para cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para
baixo, lembrando-me que há Inferno.
Padre António Vieira, Sermão de Santo António, Porto, Porto Editora, 2020, pp. 26-28

NOTAS
1
cabais – completos.
2
liberalidade – generosidade.
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1. Comenta o sentido da expressão “[…] se eu fora outro […]” (linha 3), no contexto em que ocorre.

2. Explicita as características do peixe quatro-olhos, relacionando-as com a referência às “águias” e aos


“linces” (linha 9).

3. Explicita a intencionalidade crítica de António Vieira com as afirmações das linhas 11 a 15.

4. Comenta o valor expressivo da metáfora da “cegueira” (linha 13) dos homens.

5. Mostra de que modo a referência à “pregação” (linha 27) contribui para o carácter persuasivo do texto.

6. Transcreve, das linhas 11 a 15,


a) a expressão que identifica a quem se dirige o louvor;

b) a antítese que acentua a incredulidade do orador.


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Soluções

Educação Literária

Ficha 1
1. No contexto em que ocorre, Vieira pretende fazer o elogio
do peixe quatro-olhos. Como tal, afirma que este peixe lhe deu
ensinamentos e que, se ele não fosse padre António Vieira
(mas sim um dos colonos portugueses), converter-se-ia
perante o exemplo do quatro-olhos.

2. Referindo-se ao quatro-olhos, Vieira refere que é um peixe


que vive à tona da água e corre um duplo perigo: pode ser
caçado pelas aves ou pelos peixes do mar. Como tal, possui
quatro olhos que se dividem em dois, que olham direitamente
para cima, e outros dois que olham direitamente para baixo,
para se vigiarem ou estarem sempre vigilantes.
Estas características do peixe louvado opõem-se e são
superiores às das águias, aves de rapina, e às dos linces,
animais predadores, que apenas têm dois olhos.

3. Ao elogiar o peixe quatro-olhos, que tem dois olhos que


olham direitamente para cima e dois olhos que olham
direitamente para baixo, António Vieira pretende destacar a
ausência destas qualidades nos homens. Neste sentido, critica
a “cegueira” de quem não quer ver, “há tantos séculos”, a
fraqueza e a irracionalidade humanas, por andar afastado dos
ensinamentos divinos, causa da corrupção naquelas “terras
vastíssimas”.

4. Vieira critica o facto de os habitantes do Maranhão


adotarem comportamentos que vão contra a doutrina da
Igreja. Como tal, acusa-os de estarem cegos.

5. Depois de ter filosofado ou refletido sobre o peixe quatro-


-olhos e as suas características, o orador refere que retirou
um ensinamento para a vida: tal como o peixe, apenas deve
“olhar direitamente para cima” e “direitamente para baixo”, ou
seja, para impedir que seja castigado e vá para o Inferno, o
melhor é seguir a virtude e a doutrina de Deus, obtendo a
graça de ir para o Céu.
Com estas palavras, o auditório poderá adotar o ensinamento
para si próprio, a fim de mudar ou alterar o seu
comportamento indigno.

6. a) “bichinho do mar” (l. 11); b) “altas” (l. 14) – “abismo” (l.


15) ou “vista” (l. 12) – “cegueira” (l. 13).

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