Você está na página 1de 268

Editor responsável: Hugo Xavier

Título original: ‫( ةﻟﻴﻠﻮ ةﻟﻴﻠﻔﻸ‬Alf laylah wa-laylah)


Título em português: As Mil e Uma Noites – III volume
Autores: Anónimos
Ano de publicação: séculos XIV-XVIII
Revisto por Marcelino Amaral
Paginação: Aresta Criativa – Artes Gráficas

Conversão para ebook: www.arinos.in

Todos os direitos para língua portuguesa reservados para


esta edição por E-Primatur / Letras Errantes, Lda.

E-Primatur é uma chancela editorial de


Letras Errantes, Lda.
Rua Oceano Atlântico, 5
2560-510 Silveira
www.e-primatur.com
geral@e-primatur.com

1.ª edição digital, Maio de 2022

ISBN 978-989-8872-96-8
Apêndice I
História de Cámar-Azzamane
e dos seus filhos Amjad e Açaad (conclusão)
O manuscrito mais antigo d’As Mil e Uma Noites acaba a meio da 281.ª Noite, não se havendo
encontrado até aos dias de hoje nenhum manuscrito antigo completo contendo 1001 noites. Foi
possível concluir a segunda metade dessa noite e a 282.ª Noite com recurso a outros manuscritos
semelhantes ao manuscrito mais antigo, nos moldes descritos na nota de rodapé 134 do segundo
volume. Mas a partir desse ponto, a única forma de concluir a História de Cámar-Azzamane foi
recorrer a outro manuscrito, com uma numeração de noites não coincidente com o manuscrito
utilizado nesta tradução. Para o efeito escolheu-se o manuscrito do ramo egípcio com a cota Ms.
Bodl. Or. 550-551 da Bodleian Library (Oxford), datado de 1764, e manteve-se a divisão em
noites tal como neste consta, mas separou-se esta parte do resto da tradução, incluindo-a em
apêndice. Apesar de este não ser o manuscrito mais antigo com esta história, afigura-se ser
aquele que provavelmente contém uma versão mais antiga da mesma.

Em a moça vendo aquele jovem formoso dormindo à sua banda, ululou e


disse: «Ai, ai, que escândalo! Um homem a dormir comigo na mesma
cama! Valha-me Deus, e é um jovem formoso! Que escândalo este por tua
culpa! Meu Deus, se houvesse sabido que eras tu quem pediu a minha mão
ao meu pai, não teria recusado o casamento!» Ela abanou-o, mas Maimuna
havia-o mergulhado num sono pesado do qual ele não acordava. A moça
sacudiu-o e disse: «Amor meu, pela minha vida não me ignores, acorda e
faz-me companhia.» Mas ele não respondia nem palavra dizia, continuando
a respirar profundamente no seu sono. Ela disse: «Ai, ai, que tens? Será que
te disseram para assim fazeres? Terá sido o velho calamitoso do meu pai
que te deu instruções para não falares comigo?» Ele não abria os olhos, mas
o amor e o desejo dela por ele cresciam ainda mais, pois Deus Todo-
Poderoso inflamou-lhe o coração, e cada vez que ela olhava para ele, mil
suspiros se seguiam, e o seu coração palpitava, as suas entranhas vibravam
e todo o seu corpo sentia anseios. Então ela disse: «Senhor meu, fala
comigo, amor meu, responde-me, ó meu safado, diz qualquer coisa», mas
como Cámar-Azzamane continuava mergulhado no seu sono, ela disse: «Ai,
ai, porque ages assim, tão presunçoso e convencido da tua beleza?» Depois
sacudiu-o, e em o seu olhar recaindo sobre a mão dele, viu o seu anel no
dedo dele. Engoliu ar ofegantemente e disse: «Ai, ai, valha-me Deus, estás
a tornar as coisas difíceis, mas enquanto eu dormia tu davas-me amor, e
quem sabe o que fizeste comigo! Que escândalo por tua culpa! Meu Deus,
vou é retirar o meu anel do teu mindinho.»
Ao depois, abriu-lhe a camisa, reclinou-se sobre ele, e beijou-o no
pescoço e na boca. Procurou algo que lhe pudesse tirar como testemunho,
mas nada encontrou. E em o vendo sem calças, estendeu a mão por baixo
baixo da bainha da camisa dele e sentiu-lhe as pernas. A mão foi deslizando
perna acima, tal era a macieza do seu corpo, até que chegou a algo que
ficava entre as coxas e que a deixou com o coração sofrido e ávido, as
entranhas a tremer e todos os orgãos extenuados, pois o desejo das mulheres
é mais forte que o dos homens. Então, sentiu vergonha e recolheu a mão, e
beijou-o entre os olhos, na boca e nas mãos, para em seguida o abraçar,
pondo uma das mãos por baixo da nuca dele e a outra por baixo do sovaco
dele, e adormeceu desvanecendo-se no sono.
Ora, Maimuna disse a Dahnaxe: «Ó maldito, viste como perdeste? E viste
como a tua amada não está à altura do meu amado? Mas eu perdoo-te!» E
logo lhe escreveu uma carta de alforria na qual pôs a sua apostilha. Ao
depois, virou-se para Caxecaxe, o corcunda, e disse-lhe: «Vai com ele e
ajuda-o a depositá-la no lugar dela, porque já uma boa parte da noite passou
e estou atrasado.» E ele disse: «Às tuas ordens.» Dahnaxe ficou radiante, e
ambos se puseram por baixo dela para a carregarem, e voaram dali para
fora, enquanto Maimuna voou para o seu destino.
No que toca a Dahnaxe e Caxecaxe, levaram a moça para o lugar dela,
puseram-na a dormir na cama, e foram ambos à sua vida, sendo que já não
faltava muito da noite para ser dia, aí umas três horas. E em rebentando a
aurora, Cámar-Azzamane acordou…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
96.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e agir apropriado, que ao depois Cámar-Azzamane acordou e não
encontrou a moça à sua banda. Então, disse para consigo: «Meu Deus, esta
é boa, o meu pai está a tornar as coisas difíceis.» E ao depois, gritou ao
eunuco: «Que maldição, ó galdéria, sempre a dormir!» O eunuco levantou-
se, ainda zonzo de sono, e trouxe-lhe uma bilha e uma bacia, que pôs nas
latrinas. Ele fez as suas necessidades, saiu e fez as abluções para a oração
da manhã. Sentou-se a recitar o Alcorão, glorificou Deus, e olhou para o
eunuco, que estava ali pronto a servi-lo, e disse-lhe: «Ai de ti, Sawwab!
Quem levou a moça que estava à minha banda?» O eunuco disse: «Que
moça, meu senhor?» Ele disse: «A moça que dormiu no meu quarto esta
noite.» O eunuco, ao ouvir tal coisa, disse: «Valha-me Deus, meu senhor, e
por onde entraria a moça enquanto eu estava a dormir à frente da porta? Por
amor de Deus, meu senhor, ninguém entrou.» E Cámar-Azzamane disse:
«Mentes, ó escravo calamitoso! Tu és outro que tenta tornar-me as coisas
difíceis e não me queres dizer aonde foi a moça formosa que esteve a
dormir junto a mim e quem foi que a trouxe para aqui!» O eunuco ficou
perplexo e disse: «Por amor de Deus, meu senhor, não vi quem quer que
fosse!»
Cámar-Azzamane, ao ouvir tal coisa, ficou furioso e disse: «Sem dúvida
sabes mais que eu! Maldito sejas, ó cão, vem cá!» O eunuco aproximou-se
dele e Cámar-Azzamane agarrou-o pelos braços, e começou a bater-lhe,
atirando-o ao chão e agachando-se em cima dele, dando-lhe pontapés e
sufocando-o até ele perder os sentidos. Em seguida, ergueu-o e atou-o à
corda do poço, baixando-o poço adentro até chegar à água, e estes eram dias
de Inverno, e ele mergulhou o eunuco. E içou-o e tornou a baixá-lo,
mergulhou-o, e Cámar-Azzamane continuou a mergulhá-lo e a içá-lo,
enquanto o eunuco gritava, ajuda clamando. Cámar-Azzamane disse: «Não
te largo enquanto me não falares sobre a moça e me disseres quem a
trouxe.»
Então o eunuco disse para consigo: «Sem dúvida que o filho do meu amo
enlouqueceu e nada me resta senão mentir, caso contrário não me safo.»
Chamou-o dizendo: «Dê-me a sua mão, meu senhor, que eu digo-lhe.»
Cámar-Azzamane içou-o e ele saiu do poço, quase inconsciente tal fora o
sofrimento causado pelos mergulhos, e saiu de lá todo a tremer e a bater o
dente, com as roupas pesadas pela água ensopadas, e disse; «Deixe-me
espremer as minhas roupas, estendê-las, vestir outra coisa, e volto já de
seguida para tudo lhe contar sobre essa moça formosa.» E Cámar-
Azzamane disse: «Ó escravo calamitoso, se não houvesses provado a morte,
não dirias a verdade.Vai já de imediato e torna para me contares tudo.» Ora,
o eunuco abalou…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
97.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e agir apropriado, que o eunuco abalou, mal podendo acreditar que
se havia salvo, e não parou de correr até chegar ao rei Xaramane1. O vizir
estava com o rei, sentado à sua banda, e ambos haviam feito as orações da
manhã e quedaram-se a conversar sobre o caso de Cámar-Azzamane, e dizia
o rei para o vizir: «Ai de ti, ó vizir, não consegui dormir esta noite tão
inquieto estava o meu coração por mor do meu filho. Receio que algo lhe
suceda naquela torre antiga. Prendê-lo não trouxe qualquer benefício.» E
disse o vizir: «Nada lhe vai suceder, agora deixe-o lá por espaço de um mês
para lhe quebrar aquele feitio.»
E estavam eles nesta conversa e entra o eunuco no estado de aflição em
que estava, dizendo:«Meu senhor, acuda o seu filho que enlouqueceu e fez-
me isto a mim e disse que uma moça dormiu junto dele, mas sobre essa
moça nada sei.Acuda! Acuda!» Em o rei Xaramane ouvindo as palavras do
eunuco e em se dando conta do que ele havia dito, pôs-se aos gritos
dizendo: «Ai filhinho meu, ai meu lindo menino!» E em seguida virou-se
para o vizir e disse: «Ai de ti, ó cão de vizir! Vai e vê o que se passa com o
meu filho!»
O vizir ergueu-se e foi à torre ter com Cámar-Azzamane, encontrando-o
sentado a recitar o Grandioso Alcorão, e cumprimentou-o e ele retribuiu-lhe
o cumprimento. Então o vizir sentou-se à sua banda e disse: «Que Deus
amaldiçoe o eunuco, esse escravo calamitoso que maçou o rei e nos
incomodou.» E Cámar-Azzamane disse: «E o que disse o escravo para o
meu pai ficar transtornado, quando na verdade ele ninguém transtornou
senão a mim?» O vizir disse: «Meu senhor, fica sabendo que ele nos disse
algo reprovável e indigno de ser ouvido por ti, pois esse escravo calamitoso
mente. Que seja preservada a tua juventude atraente, corpo magnificente e
falar eloquente!» E Cámar-Azzamane volveu: «Mas que disse ele?» E o
vizir disse-lhe: «O escravo disse que mencionaste uma moça.» E Cámar-
Azzamane disse: «Essa é boa, valha-me Deus, essa é boa!» E mais disse:
«Vós repreendeis o eunuco pelo que ele disse? Valha-me Deus, essa é boa,
agora mostras ser mais ajuizado que ele! Mas onde está a formosa moça que
dormiu à minha banda esta noite e que vós haveis colocado no meu
quarto?»
Em ouvindo as suas palavras, o vizir disse: «Que Deus te preserve! Por
amor de Deus, filho, ninguém dormiu no teu quarto, a porta esteve trancada
e o eunuco dormiu à sua soleira, ninguém veio ter contigo. Sê ajuizado e
que o teu juízo seja preservado.» E Cámar-Azzamane, já furioso, disse:
«Maldito sejas, a moça é a minha amada formosa, a minha amiga de olhos
negros, rosadas faces, e eu e ela passámos a noite abraçados.» O vizir ficou
espantado e disse umas palavras para que Deus o não abandonasse: «Não há
força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso!» E perguntou:
«Meu senhor, viste essa moça com os teus olhos?» E ele disse: «Não, ó
velho calamitoso, vi-a com os meus ouvidos! Claro que a vi, e revirei-a com
as minhas mãos e passei metade da noite com ela, mas vós havei-la
instruído para não falar comigo. Então, adormeci à banda dela e depois
acordei e não a encontrei.» E o vizir disse: «Meu senhor, não será que a
viste enquanto dormias, que sonhaste com ela e foram só uns sonhos
confusos?» E Cámar-Azzamane disse: «Ó velho calamitoso, também tu
gozas comigo e dizes-me que estava a dormir? Quando o eunuco já me
admitiu a verdade e agora mesmo está aí a vir para ma dizer?» Em seguida,
soergueu-se e agarrou no vizir pela barba…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite.»
E em sendo a próxima noite, que era a
98.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de benéfico juízo


acertado e agir apropriado, que Cámar-Azzamane soergueu-se e agarrou no
vizir pela barba, que era comprida, agarrou-a, enrolou-a na mão e puxou-a,
atirando-se a ele de cima da cama e fazendo-o cair de cabeça, desatando a
dar-lhe murros e pontapés na nuca até ele desfalecer. Então o vizir disse
para consigo: «Se um escravo se conseguiu livrar dele mentindo, então
também eu terei de mentir. Não há dúvida de que enlouqueceu, disso é que
não resta dúvida.» Assim, pediu ele a Cámar-Azzamane: «Pára de me
bater.» Cámar-Azzamane tirou as mãos de cima dele e o vizir disse: «Meu
senhor, perdoa-me, pois o rei instruiu-me para que não te falasse sobre a
moça tua amada. Eu já estou muito velho, não tenho pele que aguente tanta
pancada, pára um pouco para que te conte tudo.»
Cámar-Azzamane parou de lhe bater e disse-lhe: «Porque não me
contaste antes de eu te bater e humilhar?Vá, conta-me tudo.» Ele disse:
«Estás a perguntar sobre a moça formosa, de rosto atraente e corpo
magnificente?» Cámar-Azzamane disse: «Sim, claro! Diz-me quem a
trouxe e a pôs a dormir à minha banda, e onde está ela agora para eu ir ter
com ela. Se foi o meu pai que fez isto comigo para conseguir casar-me,
então eu consinto no casamento. Diz isso ao meu pai e aconselha-o a me
casar com esta moça que esteve comigo o mais rápido possível.Vá,
despacha-te e vai dizer-lho.»
O vizir mal podia acreditar, e aos trambolhões, tropeçando na sua própria
capa, lá chegou junto do rei, mal podendo acreditar que se havia salvo, e ao
comparecer ante o rei, este disse-lhe: «Que te aconteceu? Que te vejo a
chorar e aterrorizado?» E ele disse: «Trago novas.» Ao que o rei disse: «E
quais são?» E ele disse: «Sem sombra de dúvida, o seu filho enlouqueceu.»
Então, o rei gritou em aflição e disse: «Explica-me que loucura é essa que
afecta meu filho?» O vizir disse: «Com certeza.» E o rei disse [, depois de
tudo ouvir]: «As tuas novas não merecem senão que te corte a cabeça, ó cão
de vizir e mais calamitoso de todos emires.Tudo isto, de fio a pavio,
aconteceu devido aos teus miseráveis e infortunados conselhos. Se algo
aconteceu ao meu filho, vou-te crucificar cravando-te pregos nos olhos!»
Em seguida o rei levantou-se, e…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
99.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de juízo acertado


e louvável agir apropriado, que o rei se levantou e levando o vizir como
companhia foi até à torre, entrando nela até dar com o seu filho Cámar-
Azzamane, e em este o vendo, saiu da cama, ergueu-se e beijou a mão do
rei. Recuou e baixou a cabeça, e ao depois ergueu-a, com o rosto em
lágrimas jorrando, e apontando para o pai, disse estes versos:
Se contra ti em certa ocasião
Pequei fazendo algo repugnante,
Arrependo-me. Que teu perdão
Abranja quem o procure arfante!

Então, o pai compadeceu-se dele, abraçou-o, chorou, beijou-o no rosto e


sentou-o à sua banda. Olhou para o vizir com olhos raivosos e disse: «Ah,
ai de ti, ó cão de vizir! Que andas a dizer sobre o meu filho?» Em seguida,
virou-se para Cámar-Azzamane e disse: «Filho, que dia é hoje?» E ele
disse: «Pai, hoje é sábado, amanhã é domingo, depois é segunda-feira, e
depois é terça-feira e quarta-feira e quinta-feira e sexta-feira.» O rei disse:
«Ó filho, louvado seja Deus por te preservar a ti à tua juventude!» E disse-
lhe ainda: «Em segundo lugar, em que mês estamos?» E o filho respondeu:
«Em árabe, estamos em Dhul-Kadah, a seguir vem Dhul-Hijjah, e depois
Muharram, e depois Safar, e Rabi-al-Awwal, e Rabi-ath-Thani, e Jumada-
al-Awwal, e Jumada-ath-Thani, e Rajab, e Xabame, e Ramadão, e Xaual.»
O rei exultou de alegria, cuspiu na cara do vizir e disse:«Ó velho
calamitoso, ninguém enlouqueceu a não ser tu!» O vizir abanou a cabeça e
disse para consigo: «Acalma-te.»
O rei disse [ao filho]: «De que andas a falar? De uma moça? Que moça?
E que aconteceu entre ti e ela?» Ora, Cámar-Azzamane disse, rindo-se:
«Oiça-me, pai, valha-me Deus, já não suporto mais isto, não me faça como
têm feito os outros, porque eu sou sincero mas já estou mais do que cansado
por o pai me tornar as coisas difíceis. É que eu agora já aceito casar-me, na
condição de ser com a moça que o pai pôs a dormir junto de mim ontem e
que retirou ainda virgem do meu quarto.» Ora, o pai disse: «Que Deus te
proteja, filho, e que sejas preservado, que moça é essa que mencionas? Meu
Deus, não faço qualquer ideia de quem seja ela. Por amor de Deus, não
percas o juízo e pede a Deus que te proteja de Satã, o Malvado, pois isso
foram sonhos confusos, e sem sombra de dúvida foste ontem à noite para
cama inquieto com a questão do casamento. Que Deus amaldiçoe o
casamento e a quem me sugeriu a ideia. Sem dúvida que ao acontecer o que
te aconteceu devido a mim, adormeceste enquanto pensavas nisto do
casamento, então sonhaste com uma moça que te abraçava e viste-a, mas
tudo isso, filho, foram sonhos confusos que tiveste enquanto dormias. Não
há força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso!» Com isto,
Cámar-Azzamane disse: «Pai, deixe-se dessas conversas, e jure pelo
Criador e Provedor, o Destruidor dos Poderosos e Aniquilador dos
Grandiosos, que não tem qualquer conhecimento daquilo de que falo.» Ao
que o rei disse: «E não tenho, valha-me Deus Todo-Poderoso, meu filho,
tudo isso que viste esta noite foram sonhos confusos.» Então, Cámar-
Azzamane disse: «Pai, vou-lhe dar um exemplo que o fará rever o que disse
sobre ser um sonho o que me sucedeu: já aconteceu em toda a vida a
alguém adormecer e ver-se nos sonhos numa situação de guerra, travar uma
batalha valente, e ao acordar encontrar na mão uma espada desembainhada
e manchada de sangue?» O rei disse: «Meu Deus, claro que não.»
Cámar-Azzamane disse então: «O importante é que enquanto eu dormia
esta noite, acordei a meio dela e encontrei uma rapariga adormecida à
minha banda, com um corpo semelhante ao meu e feições semelhantes às
minhas. Beijei-a e abracei-a, e saquei-lhe um anel do dedo, que pus no meu,
e tirei o meu anel e pu-lo no dedo dela, mas tornei a adormecer com
vergonha devido a si, caso estivesse num sítio a nos observar. Mais tarde, ao
acordar pela manhã, não encontrei a moça mas encontrei o seu anel. Como
poderia isso então ser possível? O seu anel continua até agora no meu
mindinho.Veja se isto é ou não um anel de mulher!»
Ele estendeu o anel ao seu pai, que em o vendo, disse: «A Deus
pertencemos e a Deus regressaremos.» E mais disse: «Filho, que grande
berbicacho, e eu não faço ideia como se deu esta intrusão, mas nada foi
mais prejudicial para ti que o vizir e ele é a causa desta barafunda, do
princípio ao fim. Filho, tem paciência…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
100.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»
Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de juízo acertado
e agir apropriado, que o rei disse ao seu filho Cámar-Azzamane: «Filho,
tem paciência, que em breve Deus deverá trazer alívio, tal como alguém
disse nos versos desta poesia:
Talvez o destino as suas rédeas puxe para outro lado,
E o bem traga, já que o destino é feito de reviravoltas,
E me dê alegres esperanças, provendo do que sou falto
E trocando as velhas desgraças por boas novas.»

E mais disse: «Valha-me Deus, e eu que já estava convencido de que


havias enlouquecido, mas a tua situação só Deus Todo-Poderoso a
conhece!» Cámar-Azzamane disse: «Meu Deus, se o pai se não despachar a
trazer-me essa moça, morrerei de mágoas.» Ao depois, suspirou
profundamente, mostrando-se apaixonado2, baixou a cabeça, e declamou:
Se vosso voto de amor não é fingido,
Visitai, pelo menos em sonhos, o amado,
Se sonhar a um moço fosse permitido,
Mas, por vós, do sono foi ele privado.

Partistes e na alma me haveis atiçado


Poderoso fogo que me rouba o sono.
A quem me inveja apraz vosso abandono,
Já que eu, invejado, fui abandonado.

Lágrimas verto por amada omissa


E o coração pela saudade se atiça.
Paciência e paixão em luta estão,
Uma alquebrada, a outra em vão.

O pai de Cámar-Azzamane bateu uma palma da mão contra a outra e


disse: «Isto não tem solução! O mau olhado pregou-te uma partida.» Em
seguida, pegou na mão dele e saíram os dois, indo para o palácio, sendo que
Cámar-Azzamane dormiu na cama agarrado à almofada, com o pai, o rei
Xaramane, sentado à cabeceira, triste por ele, com olhos chorosos, culpando
o destino, lamentando-se da sina e das adversidades da vida, e chorando
disse estes versos:
O destino contra mim luta qual adversário,
Perseguindo-me com martírio arbitrário.
Se um dia minha vida é pura alegria,
Noutro torna-se tamanha agonia.

Ao depois, Cámar-Azzamane absteve-se de comer e beber, e com nada se


preocupava senão em dizer: «Ó que corpo o dela! Ó quão bela ela é! Que
gazela!» e passou noite e dia sempre chorando, copiosas lágrimas escoando,
e com o pai à sua cabeceira nunca dele se separando. Ora, o vizir apareceu e
sentou-se ao fundo da cama de Cámar-Azzamane, que abriu os olhos e
olhou para o pai, e em seguida para o vizir, com os olhos escorrendo
lágrimas. Então olhou para os dois e fazendo um gesto disse uma poesia:
Tomai cuidado com o olhar dela enfeitiçante,
Ninguém está a salvo das suas miradas,
Pois seus olhos negros e lancinantes
Cortam as mais polidas e acutilantes espadas.

Que te não enganem suas palavras mansas,


A veemência da paixão a mente inebria.
Sua pele tão macia é, se lhe tocam com rosas,
Logo a lágrima em copioso choro se multiplica.

As casadas têm ciúmes da sua beleza e receiam


Que os maridos como segunda mulher a tomem.
Se em sonhos trazendo seu espectro as brisas sopram,
Também seu perfume sentirá qualquer homem.

A tornozeleira rivaliza com os pingentes das orelhas


E sobre ela caem as tranças do cabelo abundante.
De que serve ao censor, que não sabe apreciar,
Me criticar por querer ser seu amante?
Valha-me Deus, ó censor, que falta de justiça!
Ante tal beleza qualquer alma se vê submissa!

Então, o vizir disse: «Ó rei dos tempos, até quando ficará ausente do
exército? O seu apartamento para estar junto do seu filho poderá provocar
desacatos no exército, receando eu que o rei fique ainda com mais
problemas. O sábio instruído, ao ser afectado por várias doenças no corpo,
começa por curar aquela que é a mais perigosa. O meu conselho é que se
mude com o seu filho para o palácio interior3 que dá para o mar, onde ficará
isolado com o seu filho, e às quintas-feiras e à segundas-feiras virão os
emires para lhe prestar serviço, e assim o rei tratará dos seus assuntos e
arbitrará entre eles, tratando dos negócios de Estado e dando ordens, sempre
à quinta-feira e à segunda-feira. Quanto aos restantes dias, fica com o seu
filho até que Deus traga alívio, pois não se julgue livre das adversidades da
vida e dos acidentes da sina. Tão bem falou o poeta quando disse estes
versos:
Enquanto durava, a tua vida parecia bela e clara,
E não temeste o que o destino te reservara.
Mas agora as tuas noites calmas ruíram,
E da límpida noite turvas mágoas emergiram.»

Em o rei ouvindo as palavras do vizir, viu que eram acertadas e receou


perder a sua autoridade real. Então, ordenou que mudassem o seu filho
Cámar-Azzamane para o palácio interior que dava para o mar, que era
construído em pleno mar, por fora do qual havia ao meio uma passadeira
com vinte côvados.À roda do palácio havia janelas que davam para o mar, o
piso era revestido a mármore colorido, as suas paredes tinham gemas
incrustadas de todos os feitios, os tectos eram pintados de toda a sorte de
cores, os lambris eram decorados a oiro e lápis-lazúli.
Estenderam os tapetes de seda, puseram as cortinas e os sofás, e arranjam
o quarto e a cama para o filho do rei, que, devido aos serões, a comer pouco
e à angústia, estava magro e pálido, e doente por pouco dormir e passar
longas noites a pé. O rei sentava-se triste à cabeceira do filho Cámar-
Azzamane e todas as quintas e segundas vinham os emires ter com ele para
lhe prestar serviço até à hora do jantar, altura em que abalavam, ficando o
rei com o filho, de quem se nunca separava fosse noite ou dia.
O rei Xaramane e o seu filho Cámar-Azzamane ficaram [desta maneira
noites e dias a fio. E assim foi.]4 Já no que toca a dona Budur, naquela noite
em que os génios a transportaram e puseram de novo a dormir na sua cama,
nessa noite já muito pouco faltava para vir a alvorada. Em ela acordando de
manhã cedo, sentou-se com os pés de fora da cama e não viu o jovem.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, se o rei me poupar e eu viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
101.ª Noite

Em dona Budur se sentando com os pés de fora da cama, não vendo o


jovem seu amado, perdeu as estribeiras e pôs-se aos gritos, acordando
criadas e aias, e a ela acorreram as governantas, e a governanta-mor, a mais
velha, abordou-a e disse: «Minha senhora, que lhe sucedeu?» Ela disse à
anciã: «Onde está o amado do meu coração, o meu amor? Onde?» Em a
anciã ouvindo as palavras dela, disse: «Ai, minha senhora, que conversa
feia é essa?» «Ai de ti! [Onde está] o meu amado jovem e formoso, de
olhos negros e sobrancelhas unidas, que passou comigo esta noite e com
quem dormi abraçada desde ontem à noite até à madrugada de hoje?» A
governanta disse-lhe: «Valha-me Deus, ó minha senhora, por amor de Deus,
não brinque comigo dessa guisa, que me faz mal à alma, que eu sou uma
mulher já de muita idade e à beira da sepultura, e se me faz isso atormenta-
me a alma e ainda me dá um chelique e morro. Deus Todo-Poderoso não lhe
permite que me trate com estes modos.» Então Budur disse: «Ó velha
calamitosa, não me faças ter medo e não brinques tu comigo».
Em seguida, saltou cama fora, empurrou a anciã, que se estatelou de
costas e ficou de pernas erguidas, e como estava sem nada por baixo do
vestido, via-se-lhe a nudez, e Budur reparou que fazia já tempo que ela não
ia aos banhos, e por isso [não tinha feito a depilação e] tinha o pêlo das
pernas bem grande, tal como o da passarinha. Então, Budur pôs-se em cima
do peito dela e gritou às criadas e restantes anciãs, dizendo: «Ponde-vos em
cima dela e imobilizai-lhe os braços e pernas!» E assim fizeram elas,
deixando-a com os pêlos todos à mostra.
Em a governanta se levantando, foi ter com a mãe de Budur, mas à
sorrelfa, pois tinha medo do rei, e deu-lhe parte do que lhe tinha acontecido
às mãos de dona Budur, e disse: «Minha senhora, vá ver a sua filha, pois ela
enlouqueceu.» A mãe levantou-se e foi com a anciã ver dona Budur,
cumprimentou-a e ela retribuiu-lhe o cumprimento com as mais belas
maneiras. A mãe sentou-se então à sua banda e perguntou-lhe como estava
e sobre o que a anciã havia dito. E ela disse: «Não me venha com essas
conversas, ó mãe, que eu já me não aguento mais sem o meu amor, o amado
do meu coração, o formoso jovem a quem estive abraçada até de manhã.» E
ao depois declamou estes versos:
Oh! quão belo ele e seus atributos,
A magia acompanha seus movimentos.
Dissesse a Lua: «Escolhe uma noite.»
Ele, tal Lua, diria: «Nela serei o halo.»
Se o crescente o encarasse no horizonte,
Verias que ele é tal lua cheia ao espelho,
Com um sinal a pontuar a maçã do rosto
Como se por calígrafo exímio fosse escrito.
Para arrebatar minha alma pecados cometeu
Mas em boas acções Deus os converteu.
Tanto apregoo ao destino que o amo,
Mas tal seu hábito recusou minha oferta.
Perdoarei a ofensa do destino numa noite
Que com suas dádivas seja coberta,
Dormindo abraçados tendo por companhias
A embriaguez do meu amar e as palavras do amado,
Abraçando-o tal o avarento às suas quantias,
Que contra si as aperta por todo o lado.
Agarraria pelo braço quem com gazela rivaliza
E quem eu tanto receio que me tenha ojeriza.

Em a mãe ouvindo aquelas palavras, pregou-lhe uma bofetada na cara, e


disse: «Ai, ai, será que a minha filhota enlouqueceu? Ó dona Budur, que
conversa vem a ser esta? Não tens vergonha?» Ela disse: «Por amor de
Deus, ó mãe, não torne as coisas mais difíceis e case-me com o meu amado,
o qual passou a noite comigo, senão mato-me!» A mãe disse: «Ó filha, mas
ninguém dormiu junto de ti!» Dona Budur disse: «Está na sua cara que
mente!» e espetou-lhe um estalo na cara, agachou-se-lhe em cima e
despejou tudo o que tinha. Com isto ficou bem claro para a mãe que a filha
havia enlouquecido, e disse de si para si: «Não há força nem poder senão
em Deus Altíssimo e Grandioso, esta moça está mesmo mal da cabeça.»
Então, pediu ajuda às criadas, que a libertaram das garras de dona Budur, e
em se levantando foi ter com o rei Ghaiur e disse-lhe, após haver chorado…
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
palavras tão deliciosas, ó mana, e tão prazerosas», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
102.ª Noite

Após haver chorado, disse-lhe: «Ó rei, levanta-te e vai ver a tua filha, ela
está louca e bateu-me!» Ora, o rei ergueu-se e, perplexo, não parava de
dizer: «Ó minha filhinha!» Em seguida, foi ter com ela, cumprimentou-a e
ela levantou-se para o receber, cobriu a cabeça e retribuiu-lhe o
cumprimento. Ele disse-lhe: «Minha filha Budur, que Deus te preserve, mas
que conversa é esta sobre ti que me chegou aos ouvidos?» Ela disse:
«Paizinho, deixe-se dessas conversas e case-me com aquele que o pai e a
corte puseram a dormir junto de mim, aquele jovem formoso, de corpo
atraente, pálpebras lânguidas e belas, e com quem passei a noite abraçada
até de manhã.» Em o pai ouvindo as suas palavras, percebeu que ela havia
enlouquecido, e agachou-se em cima dela, atou-lhe as mãos atrás das costas
com um lenço, e ordenou que trouxessem uma gargalheira com uma
corrente fina de ferro que se prendeu a uma argola que havia no meio do
quarto. Pô-la em clausura sem criadas, anciãs ou a mãe, e disse: «Juro por
tudo em que acredito que se ouvir alguém mencioná-la ou falar sobre ela,
será decapitado.» Em seguida, incumbiu a tarefa de vigiar a porta a eunucos
da sua confiança, e abalou apreensivo, inquieto e preocupado, com o
espírito totalmente absorto na sua filha, dona Budur.
O rei sentou-se no trono e convocou os vizires e dignitários de Estado, e
então vieram os vizires, os emires, os camaristas, os delegados, beijaram o
chão ante o rei Ghaiur, soberano das ilhas, dos mares e dos sete palácios, e
trouxe-lhes ao conhecimento o caso da sua filha e do que lhe havia sucedido
durante a noite: «Sem sombra de dúvida que foi possuída por génios, e sem
sombra de dúvida que um génio lhe apareceu na forma de um jovem
formoso, dormiu junto dela esta noite e ficou-lhe na cabeça, e houve uma
coisa que me incomodou, pois vi no seu dedo um anel de homem cujo valor
era grande. Juro-vos, pois, ó emires, que aquele que a curar do que ela
padece, caso-o com ela e divido o meu reino com ele, mas a quem apareça e
a não cure, corto-lhe a cabeça.» Em os presentes ouvindo as palavras do rei,
perceberam a situação e pediram a Deus que trouxesse alívio para o rei e
sua filha.
Ora, um dos presentes disse: «Ó rei, eu ofereço-me para ir aos aposentos
de dona Budur para a exorcizar.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
103.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que em se levantando aquele que disse
«Eu ofereço-me para a exorcizar», o rei disse: «Com uma condição, se fores
aos seus aposentos e a curares, eu caso-te com ela, mas se de lá saíres sem a
curares, corto-te a cabeça. Pois não quero que alguém entre nos seus
aposentos sem a curar, porque ao sair vai contar a toda a gente em que
estado está ela, descrevendo-a e falando sobre a sua beleza e dotes, o que a
iria expor e desgraçar ao olhos de todos.» Quem havia falado aceitou a
condição e foi aos aposentos de dona Budur, acompanhado pelo rei, e pôs-
se a fazer conjuros mágicos. Ora, Budur olhou para ele e disse ao pai:
«Porque trouxe este homem aqui para fazer isto? Não tem vergonha de
trazer homens estranhos aos meus aposentos?» O rei disse: «Amorzinho,
trouxe-o para exorcizar o íncubo que te visitou esta noite.» Budur disse-lhe:
«Ó velho calamitoso e decrépito, desde quando era quem me visitou um
génio? Está a mentir, ó velho calamitoso, quem me visitou foi um jovem
formoso, o meu amado, o meu amor, tâmara da minha devoção e luz dos
meus olhos.» Em seguida, declamou uma poesia:
Ó revel que me perfuraste,
Ó coração, peço-te: calma!
Acertou-me tua flecha,
Não dispares à minha alma.
Em acusações não te poupaste,
Da paz te privaste para me deixares;
Quem te deu o direito de me matares?
Levanta um pouco o teu turbante
E sorri, talvez assim eu sobreviva
Ao ver teu sorriso no semblante.
Se viva me queres, une-te a mim
Em sonhos e sê menos distante.

Em aquele emir ouvindo as palavras de Budur, percebeu que não havia


nela loucura, mas que a visitara amor sem cura, e com vergonha de dizer ao
rei «A sua filha está enamorada», beijou o chão ante ele e disse-lhe: «Ó rei,
não a consigo curar.» Então, o rei mandou prendê-lo e no Conselho ordenou
que o decapitassem. Ele foi decapitado e os emires mais importantes
disseram: «Que Deus amaldiçoe quem invejar esta noiva.» Depois desta
decapitação, os emires desistiram e não se ofereceram mais, e o rei, por mor
da sua filha, ficou dias a fio sem que a comida e a bebida lhe soubessem
bem.
Então, o rei ordenou aos pregoeiros que apregoassem na sua cidade, nas
Ilhas do Interior, nos castelos portuários e nas aldeias em seu redor: «Quem
for astrólogo compareça junto de sua alteza, o rei Ghaiur, soberano das
ilhas, dos mares e dos sete palácios.» Assim fizeram os pregoeiros por toda
a cidade, e alguns foram, juntamente com governadores, a todas as ilhas, e
vieram gentes de todos os cantos da Terra e do país, ajuntando-se uma
enorme multidão, havendo quem soubesse e quem não soubesse [ao que
vinha], e vieram ao encontro do rei Ghaiur. Em este vendo os tantos que
eram, mandou chamar os notários e o juiz, e em eles comparecendo, disse:
«Declaro solenemente perante vós, ó gentes da lei e gentes presentes, que
quem curar a minha filha, com ele a casarei e com ele dividirei a minha
fortuna, mas quem for aos seus aposentos sem a curar, será decapitado.»
Então, os notários confirmaram que haviam testemunhado as palavras do
rei, e veio um astrólogo daqueles que haviam comparecido naquele dia,
beijou o chão ante o rei e os presentes, e disse: «Ó rei dos tempos, eu
ofereço-me para ir aos seus aposentos e a curar.» O rei disse: «Vai e declara
solenemente ante os notários.» O astrólogo aproximou-se e disse: «Declaro
solenemente perante vós que se não curar a filha do rei do que ela padece,
então o derramamento do meu sangue não será pecado.» E o rei disse:
«Declaro solenemente perante vós que se ele curar a minha filha, terá uma
família, será o seu chefe, e dividirei com ele o meu reino.» Os notários
confirmaram que haviam testemunhado as palavras do rei, e este disse a um
eunuco: «Leva-o pela mão até aos aposentos da tua patroa, dona Budur.» E
assim fez o eunuco.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
104.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que o eunuco levou o astrólogo pela
mão, atravessou com ele o corredor e levou-o até aos aposentos da princesa
Budur. Em o astrólogo a vendo, com uma gargalheira ao pescoço presa a
uma corrente, não teve dúvidas de que ela estava louca. Instalou-se e sacou
da mala um turíbulo de cobre, umas placas de chumbo, cálamos e canetas,
traçou um círculo mágico no chão e fez conjuros. Ora, dona Budur olhou
para ele e disse-lhe: «Quem és tu, ó maldito?» Ele disse: «Este seu escravo
é um astrólogo e estou a conjurar o seu amigo que entrou dentro de si e a
pôs no estado em que está.Vou atraí-lo e encarcerá-lo em vasos de cobre,
que vou selar com chumbo, para o deixar preso no fundo do mar.» Ouvindo
isto, disse-lhe dona Budur: «Ó pedaço de uma migalha de um filho da mãe!
Está mas é calado, ó maldito filho de outro maldito! Merece lá o meu amigo
que lhe façam estas coisas!» E disse o astrólogo: «Minha senhora, mas não
é ele um génio?» Ela disse-lhe: «Cala-te! O génio está é nos teus círculos!
O amigo que me visitou não é senão um jovem formoso e jeitoso, com
olhos e sobrancelhas negras, que dormiu encostado a mim até de
madrugada. Terás tu poderes que possam trazê-lo de volta a mim para que
fiquemos juntos?» Em seguida, declamou uma poesia:
Pela tua beleza não traias a nossa aliança.
Belo é nosso vínculo, se me repugnas não avança.
Pelo sentir sincero da nossa união,
Pela verdade de nosso amor, juro,
E ao invejoso não dês atenção,
De que te amo podes estar seguro.

Em o astrólogo ouvindo as suas palavras, disse: «Valha-nos Deus,


ninguém a impede de se reunir ao seu amado senão o atarantado do seu
pai!» Em seguida, carregou as suas coisas, levando os cobres apertados nos
braços, saiu furioso em direcção ao conselho, e disse: «Ó rei, vós me haveis
levado a ver uma enlouquecida, uma enamorada ou uma escrava apartada?»
Em o rei ouvindo as suas palavras, ficou furioso e disse: «Eis o que
receávamos, ao ires aos aposentos da minha filha, ao descobrires e expores
a minha intimidade, ao seres incapaz de a desencantar, vais andar a dizer
que ela está desgraçada. Ó notários, o que merece este aqui?» Eles
disseram: «Ser decapitado.» E o rei ordenou que assim fosse.
Ora, veio um segundo astrólogo, e sucedeu-lhe o mesmo que havia
sucedido ao primeiro, o rei decapitou-o e pendurou a sua cabeça nas
varandas no palácio. O rei continuou a mandar matar astrólogos um atrás do
outro, até serem mortos cento e cinquenta, havendo as suas cabeças sido
penduradas e expostas nas varandas do palácio para todos verem, e os
habitantes da cidade saíam para as observarem e se rirem.Vieram astrólogos
e gentes de todos os países, e a todos lhes sucedia o mesmo que aos outros,
havendo o rei Ghaiur continuado a fazer desta guisa por dez dias, durante os
quais foram mortos duzentos em conta certa, e as pessoas desistiram e não
se ofereceram mais, havendo o rei deixado de ouvir quem quer que fosse
dizer: «Eu sou astrólogo», e ficando cada vez mais preocupado e
desassossegado por mor da sua filha.
Havendo sucedido o que sucedeu, dava-se o acaso de a anciã governanta-
mor que havia criado Budur ter um filho, e de ter dado de mamar a ele e a
ela do seu leite, e por isso haviam-se tornado irmãos colaços. Ora esse filho
cresceu na mesma casa de Budur, mas ao atingir certa idade foi impedido de
lhe aceder, e por isso dês dos dez anos nunca mais tornara a entrar no
palácio. Havia ocupado o seu tempo a aprender aritmética, gramática,
astronomia, astrologia, cosmologia, elaboração de calendários com as horas
de oração e dias festivos e de almanaques astrológicos, divinação com areia,
conjuros e exorcismos, predição do futuro aplicada a batalhas, leitura de
linhas e sinais, e por isso havia viajado por espaço de dez anos, durante os
quais conviveu com eruditos, sábios e adivinhos5. Chegado que foi à cidade
por aqueles dias em que sucedeu a dona Budur o que sucedeu, viu as
cabeças dos astrólogos penduradas, e ao indagar sobre a causa, contaram-
lhe a história do que lhe havia sucedido a ela.
Então, foi ter com sua mãe, que o cumprimentou, deu-lhe as boas-vindas
e disse-lhe: «Filho, já sabes o que sucedeu com a tua irmã, dona Budur, e o
que a afligiu?» Ele disse-lhe: «E porque haveria eu de ter regressado do
estrangeiro senão por essa razão? É que alguns viajantes contaram-me sobre
o caso de dona Budur, filha do rei Ghaiur, que havia enlouquecido e que o
rei Ghaiur havia declarado solenemente que quem a curasse tê-la-ia em
casamento, mas quem não conseguisse seria decapitado. Por isso, regressei
das minhas viagens, já que muitos dos mais importantes astrólogos foram
mortos devido a tudo isto, e para lhe pedir que intervenha por mim.» Ela
disse: «Como assim, filho?» Disse ele: «Gostaria que a mãe conseguisse
introduzir-me à sorrelfa junto da minha irmã, dona Budur, sem que o pai
dela nem ninguém saiba, para me inteirar sobre a sua situação e pôr à prova
o meu saber. Se a curar, recebo a fortuna, os trajes de honra, e vou-me
embora, mas se não conseguir, ninguém saberá o que fiz ou deixei de fazer.
Se não me introduzires junto dela, a grande afeição que tenho pela minha
irmã vai levar-me a ir junto do rei para lhe dizer que sou astrólogo,
declarando solenemente junto dos notários, e em o fazendo vai suceder
comigo o que sucedeu aos outros astrólogos, serei decapitado e a mãe ficará
sem mim.» Ao ouvir as palavras do filho, a mãe ficou cabisbaixa um tempo,
e ao erguer a cabeça, virou-se para o filho e disse: «Ó Marzawane, filho
meu, tenho mesmo de te introduzir junto de dona Budur?» Ele disse: «Sim,
tem de ser.» Ela disse: «Filho, espera até amanhã de manhã, para eu
encontrar uma forma de o fazer.»
Ao depois, a anciã reuniu-se com o eunuco incumbido de vigiar a porta,
ofereceu-lhe um lindo presente, e disse: «Ó emir, tenho uma filha que
conviveu com dona Budur e que já está casada, e em ela ouvindo o que
sucedeu a dona Budur, ficou preocupada com ela, e gostaria de a ver.
Queria trazê-la para ela a ver um pouco sem que ninguém saiba.» Ele disse:
«Em nome de Deus, assim seja, mas não a traga senão à noite, que é quando
o rei vem, e mal ele saia, introduza a sua filha.» Ela beijou-lhe a mão e
abalou.
Ao dia seguinte, pela hora do jantar, a governanta virou-se para o filho e
vestiu-o com roupas de mulher e adornou-o. Pegou na sua mão e levou-o
até ao palácio, e após atravessarem o corredor, levou-o até ao eunuco
incumbido de vigiar a porta, que se ergueu e disse: «Em nome de Deus, faça
favor de entrar mas não se quede demasiado.» Num pronto, Marzawane
entrou nos aposentos de dona Budur, viu duas velas velhas, sentou-se e
cumprimentou-a, depois de tirar as roupas, e sacou dos cálamos, dos livros
e dos acessórios de encantamento que tinha consigo, acendeu uma vela à
sua frente, e dona Budur ao olhar para ele, disse: «Mano Marzawane! Como
estás? Assim são as pessoas, quando viajam deixamos de receber notícias
delas!» Ele disse-lhe: «Meu Deus, a mim não me chegaram notícias tuas
que me não partissem o coração. Por isso é que eu vim, talvez seja capaz de
te desencantar do que te aflige.» Mas ela disse: «Mano, valha-me Deus, eu
não enlouqueci», e em seguida, fazendo gestos, ela disse uma poesia:
Disseram: «Quem te ama foi quem te enlouqueceu.»
Disse-lhes: «Sem loucura, qual o prazer de viver?
Levai-me a loucura mas trazei quem me endoideceu!
Se sua loucura iguala a minha, não me podeis repreender.»

Mal Marzawane ouviu estas palavras, soube que ela estava enamorada, e
disse: «Que choradeira é essa, minha senhora? Conta-me a tua história e o
que te aconteceu, talvez Deus traga alívio através das minhas mãos.» E
dona Budur disse a Marzawane: «Escuta, mano, a minha história…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
105.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que dona Budur disse a Marzawane:
«Escuta, mano, a minha história. Aconteceu que uma noite de entre noites
ao acordar no último terço da noite, senti um respirar perto de mim. Sentei-
me com os pés fora da cama e vi que à minha banda estava um jovem
formoso tal um galho de salgueiro, que fatigaria qualquer língua que
tentasse descrevê-lo. Achei que havia sido o meu pai que havia ordenado
aquilo, e foi por isso que me coibi de o acordar, com medo de que fosse o
que eu fizesse lhe seria contado. Ai, que pena não o ter acordado para falar
com ele! Mas, mano, acabei por ver no meu dedo o anel dele, e no dele o
meu, e esta é pois a minha história, ó mano, e o que aconteceu. É que em
vendo o que vi fiquei em mil aflições! E o meu coração caiu na armadilha
de me enamorar dele! Agora não consigo saborear o sono nem a comida, e
nada me resta senão lágrimas derramar e poesias cantar.» E declamou uma
poesia:
Dês que amo, a vida sabor perdeu,
E um gamo pasta no meu coração.
Cómodo está ele, incomodada estou eu
Num pasto se consumindo em paixão.

Em amor, a ele reservei melhor quinhão,


Mas não retribuiu ele igual fortuna.
Não espanta eu lhe ser escrava una
Mas que suas mãos me não consolarão.
Em o amando, zelo por ele em amar.
Tudo em mim vigia tudo em mim.
Desejo doces dotes e suave tocar,
Seu corpo suculento num festim.

Pálpebras flechas lançando,


Coração apaixonado atingindo;
Teu lugar no coração vou guardando,
Mas é lugar onde amado não é vindo.

Sacrifiquei o âmago de amor padecido.


Neste mundo és a sua sina.
Se as abafo, lágrimas fazem ruído,
E meu renome se arruína!

Com vigor escondo o que consome


Mas sofrimento nunca se some.
Perto está ele, mas se longe está,
Tão perto eu o lembrar ficará.

Em seguida, ela disse: «Ó Marzawane, vê o que podes fazer e explica-me


quem me visitou.» Ele baixou a cabeça um tempo, pensativo e confuso, sem
perceber qual a causa daquilo tudo. Então, ergueu-a e disse: «Senhora
minha amiga, o que te sucedeu é real e escapa-me ao entendimento. Mas, se
Deus quiser, agora mesmo parto em viagem pelos países exteriores e irei
aos países interiores, ao Iraque persa e ao Iraque árabe, indagarei e
investigarei com todos os meus esforços, talvez Deus Todo-Poderoso
permita a tua cura pelas minhas mãos.Tem paciência e não te inquietes.» Ao
depois, despediu-se dela, beijou-lhe a mão, e ao sair ouviu-a dizer estes
versos:
Em nos encontrando, haverá briga,
É seu repúdio que a tal obriga,
Mas almas gémeas sempre se entendem…

Ao depois, Marzawane disfarçou-se e saiu atrás da sua mãe, e mal


haviam saído porta fora, estava o rei Ghaiur a vir para visitar a sua filha.
Marzawane não parou até chegar a casa de sua mãe, onde dormiu aquela
noite. Ao amanhecer aprontou-se para viajar e abalou, indo de cidade em
cidade, e de ilha em ilha, durante um mês inteiro, até que entrou numa
cidade que dava pelo nome de Zhairane6 e sondou as notícias que
circulavam sobre o país. Ora, em todas as cidades em que Marzawane
entrava e em todas as ilhas por onde ele passava, ouvia o relato da princesa
Budur, filha do rei Ghaiur, que ela havia enlouquecido e que o seu pai
estava determinado a casá-la com quem a curasse, mas que quem tentasse e
não conseguisse seria decapitado, já havendo morrido grande quantidade de
astrólogos. Marzawane ouvia sempre este relato e a mesma história em
qualquer cidade que atravessava, até que chegou àquela cidade chamada
Zhairane, onde ouviu falar de Cámar-Azzamane, filho do rei Xaramane,
soberano das Ilhas Khalidane, e que estava doente, pois havia sido visitado
por génios e alucinações durante a noite.
Ao escutar tal relato, ele indagou sobre a cidade daquele rei e disseram-
lhe: «É a cidade das Ilhas Khalidane, dista um mês inteiro por mar e por
terra são seis.» Então, Marzawane encontrou uma embarcação de
mercadores que ia para as Ilhas Khalidane e com eles embarcou.
Prepararam a embarcação e partiram depois da oração da alvorada.
Viajaram dias e noites a fio com bons ventos e bons ares, e ao cabo de um
mês avistaram as Ilhas Khalidane. Mas quando já lhe vislumbravam as
casas e palácios, não faltando senão chegarem à costa, eis que um temporal
se abateu sobre as vergas da embarcação e quebrou-a. Foi o salve-se quem
puder. Quanto a Marzawane, esse foi levado pela força da corrente e
arrastado até às bermas do palácio do rei Xaramane, no qual Cámar-
Azzamane estava acamado e doente. Por coincidência, era o dia das
audiências e todos os emires estavam no palácio, tal como os camaristas, os
delegados e outros dignitários, e todos estavam em pé no átrio do palácio,
estando o rei Xaramane num quarto sentado à cabeça do filho juntamente
com um criado em pé que enxotava as moscas. O rei estava triste por mor
do filho, que havia dois dias que não falava, comia ou bebia, estando cada
vez mais magro.
O vizir estava aos pés da cama do filho do rei, perto da janela que dava
para o mar, e ao virar os olhos para o mar viu Marzawane à beira de ser
aniquilado devido à força da corrente e aos turbilhões da água, enquanto o
mar o puxava para o afogar, estando ele já no último fôlego. Então, o vizir
sentiu compaixão dele, virou-se para o rei e disse-lhe com uma voz
cuidadosa: «Ó rei dos tempos, com sua permissão vou abrir a portilha do
palácio para salvar alguém que está à beira de se afogar e resgatá-lo à
morte, talvez Deus Todo-Poderoso e Glorioso, em este sendo salvo da
morte, salve o seu filho do estado em que se encontra.» Então o rei
Xaramane disse: «Todas as adversidades que nos aconteceram foram por
tua causa.Tu és a causa de toda esta aflição e agora queres ir buscar esse
náufrago, para que ele passe diante nós, descubra a situação, e veja o meu
filho e o estado em que se encontra. Vai regozijar-se com o nosso
sofrimento e quando sair daqui vai contar à plebe o que se passa. Por isso,
juro por ‘Quem faz fender os grãos e os caroços para germinarem’7, por
Quem estendeu a Terra e ergueu os céus, que se ele subir, vir o meu filho e
contar a quem que se seja, decapitá-lo-ei antes de te decapitar a ti. Já chega
tudo o que aconteceu devido a ti e ainda queres expor aos plebeus a nossa
situação! Mas faz o que bem entenderes.»
Então, o vizir levantou-se devagarinho e foi abrir a portilha que dava para
o mar, caminhou vinte passos pela passadeira e ao chegar ao mar viu
Marzawane já no último fôlego à beira da morte. O vizir esperou que ele se
aproximasse, estendeu-lhe a mão, agarrou-o pelos cabelos e puxou-o para
fora do mar. Ele estava num estado deplorável devido à água que engolira e
o vizir esperou um tempo para que ele recuperasse os sentidos. Então,
disse-lhe para vomitar, e em seguida tirou-lhe as roupas, deu-lhe a vestir a
sua própria capa e algo que servisse de turbante. Em seguida, disse-
lhe:«Ouve-me, filho, eu fui a causa de estares vivo e de te salvares das
garras da morte, por isso não sejas tu a causa da minha morte e da tua. Isto,
filho, porque agora mesmo vais passar por entre emires, vizires, soldados e
eunucos, e todos estão em silêncio por mor do filho do rei, Cámar-
Azzamane.»
Ora, em Marzawane ouvindo falar de Cámar-Azzamane, reconheceu o
nome, visto que havia ouvido falar dele, e disse ao vizir: «Meu senhor, e
quem é esse Cámar-Azzamane?» Ele disse: «Ele é o filho rei Xaramane, um
dos reis dos tempos, soberano deste país que dá pelo nome de Ilhas
Khalidane. Ele está doente e vai para seis meses que está acamado às portas
da morte, lágrimas derramando e suspiros exalando. Não conhece sossego,
paz, nem a noite ou o dia, e devido à magreza do seu corpo, da vida já se
separou e aos mortos se juntou, pois passa o dia em sofrimento e a noite em
tormento. Chora copiosamente e morrerá indubitavelmente, havendo nós já
perdido as esperanças de que se salve, certos de que vai expirar. Por isso, ai
de ti, filho, que olhes para ele ou te aproximes, limita-te a passar entre os
emires, olhando só para o chão onde pões os pés, senão lá se vai a minha
vida!» Então, Marzawane disse: «Por amor de Deus, meu senhor, diga-me,
esse filho do rei que me mencionou, de olhos encharcados em lágrimas e
que em se ouvindo a sua história se fica de coração partido, qual a causa da
sua situação?» O vizir disse: «Filho, nada sabemos a não ser que o pai, vai
para três anos, lhe pediu para se casar e ele recusou. Então, certa manhã ele
acordou convicto de que à sua banda havia dormido uma moça, cuja
descrição, dotes, beleza e formosura são indescritíveis mesmo para o mais
inteligente. Mencionou que lhe tirou o seu anel e pô-lo no seu próprio dedo
e que pôs nela o seu próprio anel, e nós não entendemos este mistério. Por
amor de Deus, filho, vem mas não olhes para ele nem te vires, baixa a
cabeça e segue à tua vida, porque o rei tem o coração cheio de raiva contra
mim.» E Marzawane disse: «Às suas ordens.»
Marzawane ficou empolgado e disse para consigo: «Valha-me Deus, isto
é o mesmo que fez a minha irmã, dona Budur, enlouquecer, e o que
aconteceu a este moço é o mesmo que lhe aconteceu a ela no que toca ao
casamento e à troca de anéis. Meu Deus, eis o que procuro!» Então,
Marzawane seguiu atrás do vizir mas mais devagar, até que chegou ao
palácio. O vizir sentou-se no seu lugar aos pés de Cámar-Azzamane e
quando Marzawane entrou, continuou a andar até se deter defronte Cámar-
Azzamane, pondo-se a observá-lo. Com isto, o vizir quase morreu de susto,
e pôs-se a fazer-lhe sinais com os olhos [para que se fosse embora]8, mas
Marzawane ignorou-os. E em vendo Cámar-Azzamane a gemer, percebeu
que era ele quem procurava, e disse: «Glória a Deus que fez com que o seu
porte, as suas feições, as maçãs do rosto, os olhos e as sobrancelhas sejam
como os dela!» Então, o filho do rei abriu os olhos e deu ouvidos, e
Marzawane declamou estes versos:
Choro por quem a Beleza moldou o corpo,
Jamais a ela vi igual entre sábios,
Alta por fora, bela por dentro, sem torto.
Rosadas faces, belos lábios,
Sábia tal Lucmane, formosa tal José9.
Mas eu, qual Job e Adão, é sofrer e suspirar.
Mesmo se quereis, não mateis em quem tenho fé,
Mas perguntai que direito tem ela de meu sangue derramar.

Em Marzawane acabando a sua poesia e havendo penetrado nos ouvidos


de Cámar-Azzamane, foi como se um bálsamo de ruibarbo10 lhe sossegasse
o coração. Então, ele rodou a língua dentro da boca e fez um sinal com a
mão ao rei…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
106.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Cámar-Azzamane falou, fazendo
um sinal com a mão ao rei: «Deixe este fulano sentar-se à minha banda.»
Em o rei ouvindo as palavras do filho, ficou radiante de alegria, apesar de
instantes antes estar furioso e tencionasse matar Marzawane, a ele e ao
vizir, mas mal podia crer que o filho abrira os olhos e acordado da sua
letargia. Então, o rei, que estava sentado à cabeça de Cámar-Azzamane,
levantou-se para ceder o seu lugar a Marzawane, e aproximando-se dele,
disse: «Filho, como te chamas?» «Marzawane.» «Filho, de que país vens?»
«Das Ilhas do Interior, do reino do rei Ghaiur.» «Filho, talvez o alívio do
meu filho venha pelas tuas mãos.» «Se Deus quiser, ó rei dos tempos.»
Ao depois, Marzawane aproximou-se de Cámar-Azzamane e disse-lhe
em segredo aos ouvidos: «Meu amo, tem coragem, ânimo e alegra-te, pois
se ficaste nesse estado por mor dela, nem me perguntes como ficou ela. Tu
escondeste o que sentias e ficaste doente, mas ela revelou o que sentia e
ficou demente. Ela não podia estar em pior estado e puseram-lhe uma
gargalheira de ferro ao pescoço. Mas, se Deus quiser, eu vou curá-la11.» Em
Cámar-Azzamane ouvindo estas palavras, o seu coração alegrou-se e fez
um sinal ao rei, porque se queria sentar. O rei ficou radiante e, juntamente
com o vizir, sentaram-no entre duas almofadas, e os emires e os soldados
rejubilaram com tal coisa, havendo o rei Xaramane ordenado que
perfumassem com açafrão12 quem quer que estivesse no palácio e que as
cantoras tocassem os tambores e apregoassem a alegria e o júbilo. Então, o
rei aproximou-se de Marzawane e disse-lhe: «A tua vinda até nós é
abençoada. Afinal o vizir tinha razão quando disse para te salvarmos de te
afogares. Que Deus salve o meu filho.» Em seguida, prestou-lhe as maiores
honras e ordenou que trouxessem comida e bebida, e Cámar-Azzamane
também comeu e bebeu, e fizeram para ele caldos e frangos. Naquela noite,
Marzawane dormiu no quarto de Cámar-Azzamane, tal como o rei, tão feliz
que estava pelo restabelecimento do filho e por ver alegria no seu rosto.
Na manhã seguinte, Marzawane pôs-se a dizer a Cámar-Azzamane:
«Meu senhor, esta moça com quem te reuniste uma noite existe mesmo, não
há dúvida, e dá pelo nome de dona Budur, filha do rei Ghaiur, soberano das
ilhas, dos mares e dos sete palácios.» Ao depois, contou-lhe o que havia
sucedido a dona Budur de fio a pavio, mas não há necessidade de repetir
aqui os detalhes, e contou-lhe a história de dona Budur e que o seu pai a
amava imenso, e disse: «Meu amo, o que te aconteceu com o teu pai,
também lhe aconteceu a ela.Tu és o amado que ela deseja e ela é a amada
que tu desejas.Tem ânimo e sê forte, que eu vos vou reunir a ambos, e farei
tal como um poeta disse nestes versos:
Se amigo recusa ser companhia
E só age de guisa desdenhadora,
Eu ambos unirei, e não falharia,
Tal eu fosse parafuso de tesoura.»

Continuou a encorajá-lo e dar-lhe forças, fazendo com que Cámar-


Azzamane tornasse a comer e a beber, até recuperar o espírito e a saúde, e
assim fez Marzawane, conversando e convivendo com ele, dando-lhe
consolo, declamando poesias, relatando-lhe acontecimentos e contando-lhe
histórias sobre amadores13 entre os árabes e o quanto sofreram os
enamorados devido à rejeição e à separação, até que Cámar-Azzamane foi
aos banhos. Quando tal aconteceu, o rei ordenou que decorassem a cidade, e
assim foi feito. Soaram os tambores que anunciam as boas novas, e o rei
ofertou trajes de honra aos soldados, do menos ao mais importante,
distribuiu esmolas e presentes, libertou os presos, suspendeu os impostos, e
deu oiro e prata aos pobres e vagabundos. E em o filho saindo dos banhos, o
rei ofertou a Marzawane um traje de honra dos melhores no valor de mil
dinares, deu-lhe mil dinares e outra prenda de igual valor provinda do seu
harém. Então, sentaram-se a comer.
Ao depois, Cámar-Azzamane privou com Marzawane e disse-lhe:
«Irmão, fica sabendo que o meu pai me ama mais que tudo e não se aguenta
um só momento sem me ver bem. Ora, eu não consigo estar mais tempo
sem me reunir à minha amada, por isso diz-me o que achas por bem fazer
que me não oporei em coisa alguma.» Marzawane disse-lhe: «Cámar-
Azzamane, meu amo, eu não vim do meu país senão por essa razão, é essa a
razão da minha viagem e missão fora do meu país, para trazer ao rei Ghaiur,
pai de dona Budur, a cura para a sua filha. Esse é o meu objectivo. E só há
uma forma de o fazer, com astúcia, pois o teu pai não consentiria no que
temos de fazer nem aguentaria a tua ausência. O que eu tenho a pedir-te é
que peças ao teu pai que permita que saiamos nós os dois, com mais
ninguém, para ir à caça; levas dois cavalos para ti e dinheiro para as
despesas, e outros dois cavalos para mim, e levamos connosco quatro
camelos com água e provisões. Ao rei vais-lhe dizer: “Desejo sair e dar um
passeio no campo pelas terras dentro. Quando o pai for dormir, não se
preocupe comigo.” Se assim fizermos, só teremos de pedir ajuda a Deus.»
Cámar-Azzamane ficou contente com a ideia e foi num pronto ter com o
rei para lhe dizer o que Marzawane lhe havia instruído. Então, o rei deu-lhe
licença mas disse-lhe: «Filho, não pernoites na campina mais do que uma
noite e volta depressa, pois bem sabes que a vida me não sabe bem sem ti e
que eu ainda mal acredito que Deus te trouxe de volta para nós.» E deu-lhe
licença que levasse quatro cavalos, quatro camelos, e quanto fosse
apropriado de água e provisões para a campina, proibindo Cámar-
Azzamane de levar mais alguém com ele. Então, despediu-se dele, abraçou-
o contra o peito, beijou-o entre os olhos e disse-lhe: «Que Deus esteja
contigo, filho, e não te ausentes por mais do que uma noite senão o sono
ser-me-á negado.» E desatou a chorar baba e ranho enquanto Cámar-
Azzamane e Marzawane seguiam caminho, e cada um levava consigo o
cavalo de corrida que montava, um cavalo dócil de carga e dois camelos
carregados de provisões.
Enveredaram campina adentro, e passou o primeiro dia, e o segundo, e o
terceiro, até que no quarto dia chegaram a um lugar amplo, uma pradaria
abundante em fontes de água, que era um cruzamento de quatro caminhos, e
desceram para descansar naquele lugar. Então, Marzawane virou-se para
Cámar-Azzamane e disse-lhe: «Amo, fica sabendo que o teu pai não se
aguenta sem ti mais que uma noite, e que depois vai enviar o seu exército
para te encontrar. Se me não obedeceres não irás conseguir alcançar o teu
desejo.» E logo Cámar-Azzamane disse a Marzawane: «Faz o que achares
necessário, que me não oporei em coisa alguma nem direi que não.» Em
seguida, pernoitaram naquele lugar.
Em a manhã amanhecendo, Marzawane pôs-se de pé e pegou em dois dos
camelos que tinham e abateu-os. Ao depois, pegou nalgumas roupas de
Cámar-Azzamane, rasgou-as e ensopou-as no sangue dos camelos, e
lançou-as aos quatro ventos no cruzamento, com algumas flechas, alguns
apetrechos de Cámar-Azzamane e alguns pedaços de carne de camelo.
Quanto aos ossos e peles, arrastaram-nos e enterraram-nos. Ao depois,
puseram a carga nos animais [restantes] e seguiram viagem.
Continuaram viajando dias e noites a eito, até que lhes apareceram as
ilhas do rei Ghaiur. Cámar-Azzamane rejubilou e agradeceu a Marzawane
pelas suas acções. Então, seguiram marcha até entrarem na cidade e
descansaram três dias da fatiga da viagem, ao cabo dos quais Cámar-
Azzamane foi aos banhos. Em de lá saindo, Marzawane vestiu-o com um
traje bordado de mercador e arranjou-lhe uma tábua de geomancia em oiro
com gemas preciosas incrustadas, utensílios de astrologia, um elegante
tinteiro, um cálamo em esmeralda e oiro, um astrolábio com tímpanos de
prata cravejados com oiro, tudo utensílios pelos quais desembolsou mil
dinares. Em seguida, vestiu-o com um traje que valia uma pipa de massa e
disse-lhe: «Amo, sai agora mesmo, põe-te à frente do palácio e grita: «Eu
sou o astrólogo, o escriba, o esconjurador!» Assim, o rei vai mandar alguém
buscar-te para te levar aos aposentos da tua amada, e ela mal te vendo vai-
lhe passar o que a faz sofrer, o pai vai ficar radiante e casar-te-á com ela,
dividindo contigo o seu reino, pois assim declarou solenemente.»
Cámar-Azzamane aceitou fazer o que lhe havia sido indicado, e saiu do
caravancerai com aquele traje, levando consigo os seus utensílios, deteve-se
frente ao palácio e apregoou: «Astrólogo, esconjurador, escriba,
adivinhador! Faço cálculos, escrevo conjuros e revelo o desconhecido!
Escriba, calculador, astrólogo!» Em os habitantes da cidade ouvindo os seus
dizeres, espantaram-se e saíram para o ver, porque há muito que não
ouviam alguém dizer «Eu sou astrólogo», e quando se detiveram à sua roda,
viram que era alguém de formosa figura.Viraram-se para ele e disseram-lhe:
«Por amor de Deus, meu senhor, não faça isso na expectativa de casar com
a filha do rei! Veja estas cabeças penduradas, são todas de quem morreu por
esse objectivo.» Cámar-Azzamane não se virou para eles e gritou:
«Astrólogo! Astrólogo! Esconjurador! Exorcista!» As gentes acercaram-se
dele e suplicaram-lhe, mas ele continuou dizendo: «Astrólogo! Astrólogo!»
Então disseram-lhe: «Não é senão um provocador idiota! Tenha piedade da
sua juventude.» E Cámar-Azzamane gritava: «Astrólogo! Astrólogo!»
Enquanto estavam nestas conversas, o vizir veio ter com ele e levou-o até
ao rei Ghaiur. Em Cámar-Azzamane vendo o rei, fez uma vénia, beijou o
chão três vezes e declamou estes versos:
Dês que em ti se juntaram, ninguém os separa,
São oito atributos, qualquer um os vê na tua cara:
Sabedoria, eloquência, piedade, generosidade,
Conhecimento, vigor, triunfo e prosperidade.

Em o rei Ghaiur o vendo, sentou-o à sua banda, aproximou-se dele, e


disse-lhe: «Filho, por amor de Deus, não te apresentes como astrólogo nem
te submetas às minhas condições, pois comprometi-me a decapitar quem
entrar nos aposentos da minha filha sem curá-la do que sofre, mas se
alguém a curar, eu a casarei com ele. Filho, que não te ceguem a tua
formosura e beleza, a tua garbosidade e elegância, pois se entrares nos seus
aposentos e a não curares, eu te decapitarei.» Cámar-Azzamane disse:
«Assim seja.» Após os notários confirmarem a declaração do rei, este
entregou-o ao eunuco e disse: «Leva-o à tua patroa.» O eunuco agarrou-o
pela mão e atravessaram os corredores, enquanto Cámar-Azzamane corria
passando à frente do eunuco aos tropeções. Então, o eunuco disse-lhe:
«Nada de pressas! Nunca vi nenhum astrólogo com tanta pressa para entrar
nos aposentos da minha patroa.» Cámar-Azzamane olhou para ele e
declamou estes versos:
Conheço teus dotes mas ignaro fico,
Confuso, não sabendo que dizer,
Se digo Lua, tem fases que não é cheia
E completa, mas a tua beleza é perfeita.
Ai! se digo Sol, porque sempre brilhas
Não nasce ele e se põe a milhas?

Em eles chegando à porta interior na qual havia uma cortina, Cámar-


Azzamane virou-se para o eunuco e disse-lhe: «O que lhe parece preferível,
eu entrar e curar a sua patroa lá dentro ou curá-la daqui de fora por trás
desta cortina?» O eunuco espantou-se com aquela pergunta e disse: «Meu
senhor, daqui é melhor.» Então, Cámar-Azzamane sentou-se atrás da
cortina, sacou duma folha e escreveu nela o que se segue:
Este escrito é de quem sofre privação, consumido por ardente paixão, aniquilado pela dor por
mor da tamanhura da emoção; de quem perdeu as esperanças de se salvar, certo de que se vai
expirar; é de um coração triste sem ajudante nem coadjuvante, cujos olhos, de tanto desassossego,
pela insónia foram vencidos, passando o dia em sofrimento e a noite em tormento, decrépito
devido à sua magreza, mas uma poesia declama com viveza:

Escrevo com coração a ti devoto, emoções afloram


Mas olhos interditados do direito de amar choram.
O corpo veste-se com ardor de amor e dor.
Com traje de magreza só cresce fraqueza.
Se meus sentimentos revelo, é certo que morro,
Se escondo amor que sinto, não há socorro.

Ao depois, escreveu por baixo daquele poema:


De quem está sozinho para a Lua do carinho;
Do amante prisioneiro para o príncipe guerreiro;
Do desassossegado que seroa para a amiga que repousa;
Do escravo obediente para a senhora pungente:
Aos amantes, só a reunião cura o coração, e não há pior tortura que trazer aos amantes a ruptura;
quem traiu o amado, com Deus fica dificultado; quem trai sempre cai; quem trai um de nós, sofrerá
destino atroz.
De um anónimo logo reconhecível para a mais bela e incrível;
De um amador fiel e servil para a amada hostil;
De um desassossegado em paixão ardente para a gazela sedente,
Para a Lua perfeita e cheia, pérola da humana gente;
Que a paz de Deus e Sua compaixão seja com a donzela de quem [é meu coração,
Que a paz de Deus sempre tuas qualidades preserve e teu vigor [conserve.

Ao depois, selou o escrito com estes versos:


Este escrito é um pedido de desculpa,
Hoje vos revela meu estado d’alma e dor.
Sem parar serpenteia a lágrima pelo papel;
Queixa-se o desejo à folha, cálamo em fervor.

Concede-me a existência, tem dó e compaixão.


Teu anel entrego, espero o meu na minha mão.

Em seguida, pôs o anel de mulher na carta e deu-a ao eunuco, que pegou


nela e levou-a a dona Budur. Ela pegou na carta, abriu-a, leu o que nela se
dizia, e em vendo o seu próprio anel, percebeu a intenção e soube que o seu
amado estava por detrás da cortina, então o seu coração voou, pois a sua
alegria era colossal, e a lágrima correu do olho pelo rosto abaixo. Então, ela
reuniu todo o seu vigor, estendeu com força as pernas contra parede, e
inclinando-se para trás partiu a corrente de ferro e pôs-se a andar, deixando
o eunuco boquiaberto, e ao abrir a cortina viu o seu amado e Cámar-
Azzamane olhou para ela, e de olhos nos olhos reconheceram-se um ao
outro. Logo ela se arrojou a ele, que a recebeu de braços abertos, e tal foi o
abraço que deram que ficaram sem sentidos por um tempo. Ao depois,
puseram-se a lamentar um ao outro e a recordar aquela noite, espantados
com quem teria causado aquele encontro entre os dois.
No que toca ao eunuco, esse em a vendo naquele estado, foi a correr ter
com o rei e deu-lhe parte do que havia acontecido, e disse: «Meu senhor,
este astrólogo é o mestre de todos os astrólogos, curou a minha patroa com
uma carta do lado de fora da cortina.» E contou-lhe o que havia sucedido
aos dois. Ora, o rei ficou radiante e deu graças a Deus por o novo membro
da família ser um jovem tão formoso. Levantou-se logo e foi ter com eles,
encontrando a sua filha sentada. Ela em o vendo, levantou-se, cobriu o
rosto, beijou-lhe a mão e sorriu. O rei beijou-a entre os olhos, aproximou-se
de Cámar-Azzamane, agradeceu-lhe e perguntou sobre ele. Então, Cámar-
Azzamane informou-o do seu nome, da sua linhagem, e de que era filho de
um rei, que o seu pai era Xaramane, soberano das Ilhas Khalidane, e
contou-lhe o lhe havia sucedido naquela noite com a sua filha e que havia
sido ele quem tirara o anel do dedo dela. O rei ficou espantado e disse:
«Meu Deus, a vossa história tem de ser registada nas crónicas, para que seja
lida geração após geração.»
Ao depois, foi ter com os notários e fez redigir o contrato de casamento.
Mandou decorar a cidade, pôr as mesas para o banquete. Juntou os emires e
todo o seu exército, e mandou que fizessem soar os tambores que anunciam
as boas novas, pois estava radiante com a cura da sua filha, [e dizia:]
«Aquele que vai estender a nossa linhagem é um rei filho de um rei!» Ao
depois, desvelou a filha para Cámar-Azzamane naquela mesma noite, e os
dois assemelhavam-se um ao outro [em beleza], e Cámar-Azzamane dormiu
com ela, e ambos satisfizeram o desejo de um pelo outro, e ficaram
abraçados até de manhã.
Ao segundo dia, o rei Ghaiur ofereceu um festim, convidando todos os
habitantes da ilhas. Pôs as mesas no terreiro da cidade e a festa da boda
durou um mês inteiro. Ao cabo desse mês, Cámar-Azzamane pôs-se a
pensar no rei Xaramane e no amor que lhe tinha, e tal era a sua inquietação
que nessa noite ao dormir viu-o nos sonhos, e ele dizia-lhe em jeito de
admoestação: «Ai, filho, é assim que me tratas? Tão pouco tempo e já te
esqueceste de mim! Por amor de Deus, filho, despacha-te e vem para
estares comigo, que esse é o meu desejo, e eu quero ver-te antes de morrer.»
Cámar-Azzamane acordou apavorado por ver o pai enquanto sonhava, e
amanheceu com o coração triste.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
107.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que em Cámar-Azzamane
amanhecendo com o coração triste deu parte disso à sua mulher, dona
Budur, e ela foi com ele ao rei Ghaiur, e deram-lhe parte daquilo e
solicitaram licença para ele partir até junto do pai dele, e o rei deu-lhe
licença. Mas Budur disse: «Eu não me aguento se ficar separada dele.»
Assim, o rei deu licença a ambos para partirem, assim como lhes deu
licença para se ausentarem um ano inteiro, pois queria que ela o visitasse
pelo menos uma vez por ano, condição que ela aceitou.
O rei Ghaiur tratou de os equipar para a viagem e providenciou-lhes
mantimentos, forragem e camelos. Para a filha, arranjou um palanquim dos
que se montam em cima de um camelo, três mulas e pôs homens ao serviço
dela. Providenciou-lhes tudo aquilo de que fossem faltos para a viagem. No
dia da partida, o rei ofertou um traje de honra a Cámar-Azzamane, vinte
cavalos, cinco comboios de camelos, tesoiros, e fez-lhe recomendações
sobre a sua filha. Foi com eles até aos confins das ilhas para se despedir de
Cámar-Azzamane, e o mesmo fizeram os vizires e os emires. Então, foi ter
com a filha, Budur, despediu-se dela, deu-lhe um beijo e abraçou-a
fortemente enquanto chorava. Após se ter despedido da filha, foi despedir-
se de Cámar-Azzamane, que lhe beijou a mão. Ao depois, separaram-se, o
rei Ghaiur regressou para [a capital das] suas ilhas e Cámar-Azzamane deu
ordens ao seu séquito para que partissem.
Viajaram o primeiro dia, e o segundo, e o terceiro, e o quarto, e
continuaram a viajar por espaço de um mês inteiro, até que chegaram a uma
ampla pradaria. Armaram as tendas, puseram os animais a descansar,
cozinharam e comeram. Veio a canícula do meio-dia e foram todos dormir,
tal como fez também dona Budur, que não sabia o que o destino decretara.
Ora, Cámar-Azzamane ao entrar na tenda de dona Budur, encontrou-a a
dormir de barriga para cima, com uma camisa fina e um lenço requintado
na cabeça, e como a aragem levantava a camisa, Cámar-Azzamane pôs-se a
observar o seu peito, que era mais branco que a neve, mais límpido que o
cristal e mais suave que a manteiga, e a sua barriga tinha harmoniosas
dobras e um umbigo equilibradamente plantado. Então o seu desejo por ela
cresceu ainda mais, confirmando o quanto ele a amava, pois o que lhe não
faltava era paixão, desejo e arrebatamento, e declamou uma poesia:
Se perguntassem, canícula, fogo e flamas
Me consumindo as entranhas e o coração:
«Que mais gostarias? Veres quem amas
Ou água fresca?» Diria: «A minha paixão.»

Então, Cámar-Azzamane estendeu a mão até ao cós das calças dela, e ao


puxá-lo, viu uma bolsinha presa por um nó.Abriu-a e encontrou uma jóia
carmesim como a madeira de sapão, com duas linhas de nomes gravados
em caracteres ilegíveis. Ora, Cámar-Azzamane ficou espantado com aquilo
e disse para consigo: «Se ela não achasse esta jóia importante, não a teria
guardado no seu lugar mais precioso. Se a prendeu no cós para a não perder,
é porque gosta mesmo muito dela. Quem me dera saber o que faz ela com
esta jóia e qual o segredo por detrás!» Então, saiu com a jóia para fora da
tenda para a observar melhor, e em saindo e abrindo a mão para a ver, ficou
maravilhado com a sua beleza. E em estando ele prestes a fechar a mão…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
108.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que em Cámar-Azzamane estando
prestes a fechar mão que tinha a jóia, eis que um pássaro se arremeteu céu
abaixo, rapinou-a e fugiu voando perto do chão. O coração de Cámar-
Azzamane ficou a arder com as labaredas da aflição. Então correu a toda a
brida atrás do pássaro, que voava ao mesmo passo de corrida de Cámar-
Azzamane, que por sua vez corria mesmo por baixo dele, pois o pássaro
voava perto do chão, enquanto Cámar-Azzamane corria atrás dele de rio em
rio, de colina em colina, de montanha em montanha, de planície em
planície, até que entrou a noite, veio o breu e numa árvore alta o pássaro
adormeceu. Cámar-Azzamane deteve-se por baixo da árvore, espantado
com o pássaro e cansado de tanto correr. Como estava estoirado e já era
noite, quis regressar mas não sabia a que lugar fora parar, pois não havia
dado atenção ao caminho, já que os seus olhos não haviam largado o
pássaro e a sua única preocupação havia sido segui-lo, e por isso não
conseguia regressar. Já em plenas trevas da noite, disse umas palavras para
que Deus o não abandonasse: «Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso! A Deus pertencemos e a Deus regressaremos» E em
seguida adormeceu por baixo da árvore.
Pela manhã, o pássaro pôs-se a voar devagarinho à medida do passo lento
de Cámar-Azzamane, que já irritado disse para consigo: «Que espantoso
este pássaro, ontem voava ao mesmo passo com que eu corria, e hoje que
estou cansado, voa ao passo lento com que caminho. Que coisa espantosa!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite.»
E em sendo a próxima noite, que era a
109.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e agir apropriado, que Cámar-Azzamane ficou espantando com o
modo como aquele pássaro voava, [e disse para consigo]: «Leve-me este
pássaro à desolação para eu morrer ou leve-me à civilização para eu viver,
segui-lo-ei. Valha-me Deus, este pássaro deve viver num sítio habitado.»
Então, foi caminhando devagarinho por debaixo do pássaro, e este também
ia voando devagarinho, até que veio a noite e adormeceu numa árvore, e
Cámar-Azzamane dormiu por baixo dela. E deste modo seguiu com o
pássaro por espaço de dez dias, sustentando-se com a vegetação terrestre, a
água dos rios e as folhas das árvores.
Ao cabo de dez dias, deram com uma cidade populosa, e o pássaro entrou
na cidade parecendo fazer um sinal de olhos para Cámar-Azzamane o
seguir, mas logo desapareceu da vista dele, deixando-o sem saber aonde ir.
Cámar-Azzamane ficou espantado mas disse para consigo: «Louvado seja
Deus por me haver salvo! Que Deus recompense este pássaro com o bem,
pois se não fosse ele eu já haveria perecido. Louvado seja Deus!» Ao
depois, caminhou até à porta da cidade, sentou-se e lavou os pés, as mãos e
a cara. Sentou-se um tempo enquanto se recordava do que havia sido a sua
vida palaciana e confortável e do amor pela sua sua amada Budur, e via o
que agora enfrentava por estar distante, só, com fome e cansado. Vieram-
lhe as lágrimas ao olhos, escorrendo pelo rosto abaixo, e declamou estes
quintetos:
Escondi o amor, mas ele sempre se revela.
Sem ti, as pupilas de sono ficam isentas.
Gritei, que no coração tenho farpela.
Ó fado, minha vida não poupes nem teu furor,
Minha alma só tem apuros e tormentas!

Se quem me manda amar fosse salvador,


O meu sono não seria negador.
Senhores, lamentai quem sofre paixões, tormentas.
Ó amante implacável, à lei do amor acorrentas,
Vítimas ricas e pobres, ambas sofrem igual terror.

Volta para o amador, teu refém, que definhou,


Pela paixão tão fraco, magro e moribundo ficou.
Tanto me rebaixei, e tu, que compaixão mostras?
Quero esconder o amor que me administras,
Mas faço tal doido por Leila14 que tudo delatou.

Por ti, os censores acossaram-me; não os atendi.


Por ti, deixei-os a dizer o que diziam e fugi.
Digam: «Enamoraste-te por uma tão bela?»
Digo: «Por nenhuma senão ela!
O destino, ao chegar, cega os olhos. Cingi!»

Após haver descansado um tempo, Cámar-Azzamane atravessou a porta


da cidade, sem saber aonde ir.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
110.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e agir apropriado, que em Cámar-Azzamane entrando na cidade,
sem saber aonde ir, atravessou-a toda até sair pela outra porta que dava para
o mar, e era o mar salgado e revolto. Então, caminhou à beira-mar até
chegar aos pomares da cidade, atravessou-os por entre as árvores até dar por
si num jardim, onde se deteve à porta. Ora, o caseiro saiu para o receber,
dando-lhe as boas-vindas, e disse-lhe: «Filho, aproxima-te, louvado seja
Deus que te trouxe são e salvo dos habitantes desta cidade. Entra.» Cámar-
Azzamane, que estava como que estarrecido, entrou e disse: «Ancião, que
se passa com os habitantes desta cidade?» Ele disse: «Filho, os habitantes
desta cidade são todos magos infiéis que não conhecem o Único Soberano,
mas louvado seja Deus por te trazer são e salvo. E tu, meu filho, como
vieste parar ao nosso país?» Então, Cámar-Azzamane contou-lhe o que lhe
havia acontecido de fio a pavio. O caseiro ancião ficou espantando, teve
pena dele, e disse-lhe: «Filho, fica sabendo que os países muçulmanos
distam de nós quatro meses por mar, e por terra é um ano inteiro. Nós aqui
temos um barco que zarpa uma vez por ano com comércio e mercadores
para o mais próximo país muçulmano, que é uma cidade à beira-mar que dá
pelo nome de Ilhas dos Ébanos, cujo rei se chama Armanus. Se ficares
comigo e esperares até ao fim do ano, os mercadores irão aprontar o seu
comércio e eu faço-te viajar no barco deles para ires até às Ilhas dos
Ébanos, e daí podes chegar até às Ilhas Khalidane, cujo soberano é o rei
Xaramane.»
Cámar-Azzamane pensou um tempo na sua situação e percebeu que o
melhor era quedar-se com o ancião no pomar e assim fez. O caseiro
ensinou-o a direccionar os cursos de água entre as árvores e Cámar-
Azzamane passou a tratar deles cavando com a enxada. O caseiro deu-lhe
roupas de camponês e ele passou a trabalhar no campo de sol a sol,
passando o dia todo em grande infelicidade e a noite toda chorando
copiosas lágrimas, enquanto declamava poesias e se angustiava com as suas
memórias, pensando na sua amada Budur e no seu pai Xaramane.
E assim se passou com Cámar-Azzamane depois de se haver separado da
sua amada Budur, filha do rei Ghaiur. Já no que toca a Budur…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
111.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que no que toca a dona Budur, em ela
acordando, procurou Cámar-Azzamane e não o encontrou, mas ao ver que
as suas calças estavam abertas, reparou que a bolsinha presa ao cós estava
aberta e sem a jóia. Então disse para consigo: «Meu Deus, que estranho!
Onde está o meu amado Cámar-Azzamane? Deve ter levado a jóia sem
saber o segredo escondido nela; levou-a por certo, mas aonde foi ele? Isto é
mesmo tudo muito estranho, pois ele nunca se separa de mim. Que Deus
amaldiçoe a jóia! Quem me dera que ela não existisse!» Pôs-se a matutar e
disse para consigo: «Não vou dar parte a ninguém do séquito sobre a sua
desaparição, pois iriam cobiçar-me, afinal de contas sou uma mulher.»
Firme na sua resolução, vestiu o traje de Cámar-Azzamane, apertado com o
cinto dele, calçou os botins e as esporas, botou na cabeça o turbante
cobrindo a parte inferior do rosto, deixou no palanquim uma das suas
escravas e saiu. Gritou aos criados para que lhe trouxessem o cavalo e
montou-o. Arrumaram as bagagens, os homens levantaram-se e partiram em
viagem, sem perceberem que era Budur, visto que ela de toda a gente era a
mais parecida com ele em beleza e lindeza, com o seu corpo gracioso e
harmonioso, e tinham a mesma idade e cor de pele, e assim ninguém
suspeitou que ela não fosse Cámar-Azzamane.
Budur continuou a viagem dias e noites a eito, até avistar uma cidade que
dava para o mar. Descavalgou nos arrabaldes, montaram a tenda dela e ela
foi descansar. Quando ela perguntou que cidade era aquela, disseram-lhe:
«Esta cidade tem um rei que dá pelo nome de Armanus e a cidade chama-se
Ilhas dos Ébanos. Ele tem uma filha que é das mais lindas desta época,
chamada Hayat-Annufus15.» Eis então que vieram mensageiros do rei
Armanus para saberem quem eram eles e se estavam bem. Em regressando
junto do rei Armanus, deram-lhe parte que era o filho de um rei, que se
havia perdido no caminho, e que o intuito era chegar às Ilhas Khalidane,
pois o seu pai era o rei Xaramane. Em o rei Armanus ouvindo tal coisa, saiu
do palácio…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana», disse-lhe a sua irmã Dinarzade. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite.»
E em sendo a próxima noite, que era a
112.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o rei Armanus montou a cavalo


com o seu séquito e foi ao encontro de Budur, que em o vendo desmontou,
tal como o rei Armanus, abraçaram-se e cumprimentaram-se um ao outro. O
rei Armanus deu a mão a Budur, entrou na cidade, e levou-a para o palácio,
ordenando que fossem postas as mesas e trouxessem o banquete, e instalou
a comitiva de Budur na casa de hóspedes, oferecendo-lhe tudo o que é da
praxe em termos de hospedagem por três dias.
Após três dias, o rei Armanus foi ter com Budur, que havia ido aos
banhos de rosto descoberto, e brilhando ela tal a lua cheia, todo o mundo se
revirava e toda a gente endoidecia, e ao vê-la diziam: «‘Bendito seja Deus,
o Melhor dos criadores.’»16 Então, o rei Armanus foi ter com ela, estando
ela vestida com um traje com cenas de caça e pêlo de esquilo, debaixo do
qual tinha uma veste de seda bordada a oiro, e disse-lhe: «Filho, fica
sabendo que eu já estou demasiado velho, que nunca fui abençoado por
nenhum filho macho, apenas uma filha, que graças a Deus Todo-Poderoso
se assemelha a ti em beleza e formosura. Eu já estou demasiado entrado em
anos para reinar, será que gostarias de viver no nosso país e te instalares na
nossa terra? Eu casar-te-ia com a minha filha e dar-te-ia o meu reino, e
assim poderia descansar.» Budur virou a cabeça para o chão, com o suor a
escorrer-lhe da testa de vergonha, e disse para consigo: «Como?…»
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana», disse-lhe a sua irmã Dinarzade. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite.»
E em sendo a próxima noite, que era a
113.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que dona Budur disse para consigo:
«Como farei agora, sendo eu mulher? Se eu recusar, não estarei a salvo que
ele mande um exército atrás de mim, me faça cativa e o meu segredo seja
descoberto… E onde iria eu se nem sei o que aconteceu ao meu amado?
Agora nada me resta senão viver por estas bandas ‘para que Deus cumpra o
que já decretou’17.» Então ergueu a cabeça para o rei e assentiu: «Às suas
ordens.»
O rei Armanus ficou radiante e mandou apregoar por todas as Ilhas dos
Ébanos que se fizesse festa, houvesse alegria e se decorassem as ruas, e
convocou os vizires, os emires, os camaristas, os delegados, os dignitários
do reino, os notáveis, os juízes da sua cidade, e todos vieram. Então, ele
abdicou e entronizou Budur, vestindo-a com o traje real e dando-lhe o
alfange.Ao depois, vieram os emires e todo o exército para prestar
juramento a Budur, sendo que eles não duvidavam de que ela fosse um
homem e todos ficavam embaraçados18 ao olhar para ela devido à sua
beleza e formosura. Em Budur, filha do rei Ghaiur, sendo entronizada, as
gentes das Ilhas ficaram radiantes, e em o rei Armanus redigindo o contrato
de casamento da sua filha Hayat-Annufus com Budur, em distribuindo
esmolas e em fazendo soar os tambores que anunciam as boas novas, tratou
logo de aprontar a filha, que sem delongas foi desvelada a Budur, sendo que
os dois eram quais luas cheias.
Ao depois, levaram Hayat-Annufus, filha do rei [Armanus], para o quarto
de Budur, filha do rei Ghaiur, e fecharam a porta, depois de haverem
acendido velas e candeeiros, lhes terem preparado uma cama com lençóis
de seda, e Budur ficou com Hayat-Annufus. Olhou para ela e pôs-se a
pensar no seu amado Cámar-Azzamane e como há muito que o não via,
então vieram-lhe as lágrimas e chorou, pondo-se a declamar estes versos:
Ó vós que partistes deixando-me o coração inquieto;
No meu corpo nada sobrou do fôlego da vida.
O meu único pecado contra vós é o amor completo.
Quem ama prova felicidade se ela não for banida.

Ao depois, havendo Budur declamado estes versos, sentou-se à banda de


Hayat-Annufus e beijou-a. Mas em seguida levantou-se, fez as suas
abluções e orações, e quando Hayat-Annufus adormeceu, foi para a cama,
ficando de costas viradas para ela19. De manhã, veio o pai de Hayat-
Annufus, o rei Armanus, com a sua mulher, e ela deu-lhes parte do que
havia acontecido com «o rei Budur»20, havendo declamado os versos que
ela havia dito. Então o rei Armanus disse: «Filha, deve andar a pensar na
sua família e país, e tendo saudades, declamou o que ouvistes. Esta noite,
ele vai consumar o casamento.» E isto foi o que aconteceu com estes.
Quanto a Budur, havia saído de manhã cedo.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana», disse-lhe a sua irmã Dinarzade. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite, se o rei me poupar e eu viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
114.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Budur saiu de manhã cedo, sentou-
se no trono e vieram os emires, os vizires e os dignitários do reino.
Felicitaram-na pela entronização e pediram as bênçãos de Deus para ela.
Budur foi atenciosa com eles, sorriu, ofertou trajes de honra e não se
poupou em presentes para os emires e o exército, e por isso as pessoas
adoraram-na e todo o mundo pediu bênçãos e longa vinda para ela. Ela pôs-
se a governar, dando ordens, colocando restrições e administrando justiça
até entrar a noite, altura em que foi para o quarto que lhe havia sido
preparado. Ao entrar, viu as velas acesas e Hayat-Annufus sentada. Budur
sentou-se à sua banda, deu-lhe umas palmadinhas e beijou-a entre os olhos.
Então, lembrou-se do seu amado Cámar-Azzamane, e suspirando
ofegantemente, mostrando quão triste estava sua mente, declamou estes
versos:
Ó vós que partistes deixando para trás
Corpo por vós definhado e alma vazia!
Mas não é ele em generosidade um ás?
Mesmo a de Ibn Zaida e Muáuia desafia!21

Ao depois, levantou-se, limpou as lágrimas, e fez as suas abluções e


orações, até que o sono subjugou Hayat-Annufus. Então Budur foi deitar-se
à sua banda, até ser de manhã, quando saiu e se foi sentar no trono para
governar, dar ordens e administrar justiça.
No que toca ao rei Armanus, nesse dia ele entrou nos aposentos da filha
para lhe perguntar como estava, e ela deu-lhe parte do que se havia passado
com Budur e da poesia que ela havia usado para se expressar. E disse ela ao
pai: «Nunca vi alguém mais sensato e contido, mas ele só chora e se
lamuria.» Então, o rei disse: «Tem paciência, esta vai ser a terceira noite. Se
ele não entrar em ti para consumar o casamento, então não nos resta outra
forma de agir que não seja retirar-lhe o trono e exilá-lo do nosso país.» E
tomou firmemente esta resolução.
Em vindo a noite, dona Budur dispensou os oficiais do exército e foi ter
com Hayat-Annufus ao quarto. Encontrou as velas acesas e Hayat-Annufus
sentada qual Lua no seu décimo quarto dia. Ao vê-la, lembrou-se do seu
amado Cámar-Azzamane22, da vida regalada que tinham, dos muitos
apertados abraços que davam e dos sentimentos que partilhavam, do
mordiscar o rosto e o peito. Então, chorou, e suspirando ofegantemente,
mostrando quão triste estava sua mente, declamou:
Só em quem confiamos se deposita um segredo,
Pois o segredo só os melhores o sabem guardar.
E eu, os segredos guardo num castelo bem selado,
Cuja chave se perdeu depois da porta se cerrar.

Ao depois, estando Budur prestes a fazer as suas orações, Hayat-Annufus


levantou-se, puxou-a pela bainha das roupas e disse-lhe: «Basta! Já chega!
Depois de todos os favores que o meu pai te fez, não tens vergonha?»
Budur sentou-se e disse: «Amor, que estás a dizer?» «O que estou a dizer é
que nunca vi ninguém tão convencido como tu. Será que por seres formoso
achas que tens o direito de ser tão convencido de ti mesmo e da tua beleza?
Valha-me Deus, não te disse isto para me desejares, mas porque o meu pai,
caso esta noite não entres em mim e consumes o casamento, tomou
firmemente a resolução de te retirar o trono e te exilar.Talvez até se
enfureça o quanto baste para te matar. Se te aconselho é porque tenho pena
de ti, pois Quem adverte isento de culpas fica, e quem avisa justiça pratica,
mas faz o que achares por bem.» Então, Budur ficou um tempo em silêncio
e cabisbaixa, confusa sobre o que fazer, e disse para consigo:«Se
desobedecer, perecerei. Não há outro sítio onde me possa reunir com o meu
amado senão aqui mesmo, pois a rota dele passa por cá, já que não existe
outro caminho para ele chegar ao seu país que não passe por cá. Não sei o
que fazer senão empenhar-me em ser amiga próxima da noiva para lhe
sossegar o espírito.» Então, beijou-a e disse-lhe, com uma voz meiga e
feminina, que era a sua voz verdadeira e natural, revelando quem era…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
115.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de louvável juízo


apropriado e discernimento acertado, que Budur revelou quem era, contou a
Hayat-Annufus o que havia acontecido entre ela e o seu amado marido
Cámar-Azzamane, e mostrando-lhe a sua greta, disse-lhe: «Sou uma mulher
com greta e mamas», e deu-lhe parte do que lhe havia acontecido de fio a
pavio, pedindo-lhe que guardasse segredo, acontecesse o que acontecesse, e
não revelasse a ninguém quem era ela até que se reunisse com Cámar-
Azzamane.
Em Hayat-Annufus sabendo a verdade sobre a situação e o que se
passava, ficou pasmada com a história de Budur, simpatizou com o caso
dela, teve pena da situação em que se encontrava e incentivou-a a reunir-se
de vez com o seu amado, e por isso guardou o segredo dela, ficando até
contente por ela o ter revelado, e disse-lhe: «Irmã minha, não te preocupes
que o segredo que me confiaste fica bem guardado e selado, pois Segredo
depositado em alma nobre ninguém o descobre.» E disse-lhe mais: «Por
amor de Deus, em nada te desobedecerei nem o teu segredo revelarei.» Ao
depois, puseram-se à conversa, brincaram uma com a outra entre risos até
adormecerem.
Perto da primeira chamada para a oração, Hayat-Annufus levantou-se, foi
buscar uma galinha, tirou as calças e pôs-se ao gritos, isto depois de ter
degolado a galinha, salpicando-se com o seu sangue e manchando a roupa.
Então, escondeu a galinha, vestiu as calças e chamou a sua família, que veio
logo. A sua mãe gritou de alegria, deu um beijo a Budur e disse-lhe: «Que
Deus te faça feliz, meu filho!» Puseram-se à roda de Hayat-Annufus,
enquanto Budur saiu e foi para o salão do trono. Já o rei Armanus, ao ouvir
os gritos de alegria, perguntou o que se passava, e quando lhe contaram
ficou radiante, ofereceu um banquete, mandou que soassem os tambores
que anunciam as boas novas e festejaram em grande alegria e
contentamento, excepto Budur, que encontrou conforto e se distraiu
ocupando-se em governar, dando ordens, colocando restrições e
administrando justiça. E assim foi até entrar a noite, quando Budur foi ter
com Hayat-Annufus ao quarto para conversar. Queixou-se a ela das suas
inquietações e do amor que tinha a Cámar-Azzamane. E assim continuaram
por um tempo, sendo Budur rainha da Ilhas dos Ébanos. Já no que toca a
Cámar-Azzamane, estava num pomar na Cidade dos Magos. E no que toca
ao rei Xaramane…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
116.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de juízo


apropriado e discernimento acertado,que no que toca ao rei Xaramane,
soberano das Ilhas Khalidane, pai de Cámar-Azzamane, após o filho ter ido,
julgava ele, à caça, em vindo a noite não pregou olho, de tão inquieto que
estava. O seu rosto estava cada vez mais severo e austero, e a noite foi
passando devagar enquanto ele não dormia, inquieto, mal podendo crer
quando a aurora rebentou. Então, esperou pelo filho toda a manhã, mas pelo
meio-dia não tinha ainda qualquer nova dele. Aos gritos, sentido a dor da
separação e por ela consumido, dizia: «Ó filhinho meu, amor do meu
coração.» E tanto chorou que as suas barbas brancas ficaram molhadas.
Ao depois, limpou as lágrimas, parou de chorar e deu ordens às tropas
para partirem de imediato. Cavalgaram todos e o rei Xaramane partiu triste,
de coração destroçado e desfeito por estar separado do filho Cámar-
Azzamane. Encontrando-se no cruzamento dos quatro caminhos, os
soldados separaram-se em grupos, sendo que o rei conduziu o seu durante
todo o dia até ser noite e até vir a manhã seguinte, e de novo o dia todo e a
noite, até que ao terceiro dia, pelo meio-dia, tornou23 ao cruzamento dos
quatro caminhos, e ao se dirigir a determinado sítio, observou o chão e viu
vestígios de roupas despedaçadas e carne espalhada ainda com sangue,
havendo bocados em todas as direcções. Em vendo tal coisa, o rei gritou:
«Ó filhinho meu!» E caiu no chão desmaiado.
Ao acordar, esbofeteou-se a si mesmo, arrancando a barba branca e
rasgando as roupas, e certo de que o filho havia morrido, disse: «Ó filho,
que nos encontremos na senda de Deus.» Então, os mamelucos choraram
com ele, e cada vez era maior o choro e o pranto, pois os restantes grupos
de soldados iam chegando um após o outro, os tais que se haviam separado,
e todos eram unânimes no que diziam, que não haviam visto traço de
Cámar-Azzamane nem sabido de nova boa ou má, e estando todos certos de
que Cámar-Azzamane havia perecido, rasgavam as roupas, espalhavam
terra em cima das cabeças e choravam. Em entrando a noite, enquanto
chorava e estava em pranto, o rei lembrou-se do seu filho e de como havia
desaparecido, então chorou ainda mais em grande pranto, e declamou uma
poesia:
Não culpes o enlutado por suas dores imparáveis!
Já lhe basta quanto seus olhos sofrem,
Chorando agonia e angústia incomparáveis,
Sofrimento revelando fogos que o consomem,
Tão evidentes por perder uma lua brilhante.
Chuva não é água mas suas lágrimas que caem.

Fui fulminado pela aflição de perder seu semblante


E atormentado pela rejeição aquando da sua partida.
Estava ele cheio de amor qual copo transbordante
No dia em que partiu de casa e eu perdi a vida.

Ao depois, regressou com o exército, sem esperanças de encontrar o filho


vivo, e disse: «Ou foi devorado por uma fera ou foi assaltado.» Entrou na
cidade e mandou apregoar nas Ilhas Khalidane que se vestisse o preto em
sinal de luto pelo seu filho Cámar-Azzamane. Construiu uma casa e
chamou-lhe Casa das Mágoas, passando todas as quintas e segundas-feiras a
tratar do governo do seu reino, e às sextas-feiras ia para a Casa das Mágoas
estar de luto pelo seu filho Cámar-Azzamane e chorar a sua perda.
Isto foi o que aconteceu ao rei Xaramane, que ficou neste estado, ora
chorando e se lamentando, ora vagueado pelas terras à procura do seu filho
Cámar-Azzamane. Já no que toca à situação de dona Budur, filha do rei
Ghaiur, soberano das ilhas, dos mares e dos sete palácios, passou a dormir
todas as noites com Hayat-Annufus, e tratava de governar, dando ordens,
colocando restrições e administrando justiça, e pensava muito no caso de
Cámar-Azzamane.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
117.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que dona Budur pensava muito em
Cámar-Azzamane e lamentava-se da sua situação junto de Hayat-Annufus,
e assim ficou ela dias e noites a fio, noites e dias a eito. Já no que toca a
Cámar-Azzamane, amargurado e apaixonado, fosse dia ou noite passava o
tempo todo junto do caseiro se lamentando, poesias declamando e copiosas
lágrimas derramando. Com saudades de dona Budur, mesmo em momentos
de alegria suspirava e o destino culpava. Neste estado continuou ele por
meses e dias a fio, enquanto o caseiro lhe prometia que no fim do ano
viriam as embarcações, até que a data se aproximou e ele viu pessoas
ajuntando-se. Então, o caseiro disse-lhe: «Descansa e não faças nada, deita
só um olho ao jardim, que eu vou ver se há novas das embarcações e dos
mercadores. Já falta pouco para viajares para o teu país, para o país dos
muçulmanos.»
O caseiro ancião saiu e Cámar-Azzamane ficou no pomar sozinho, de
coração destroçado, com lágrimas escorrendo rosto abaixo, sentindo
saudades da sua amada dona Budur. Em as lágrimas lhe vindo, chorou e
estes versos declamou:
Poderá o amor voltar no fim do ano
A quem a loucura da paixão o emaciou?
Fui privado de amá-la no quotidiano
E uma longa vida feliz se dissipou.
Em seguida, chorou tanto e tanto que desmaiou e só acordou uma hora
depois. Então, levantou-se e pôs-se a andar à roda pelo jardim, reflectindo
no que lhe havia decretado o Tempo e como se alongava tanto o seu
apartamento, e declamou estes versos:
A tua imagem em mim mora e jamais me desabita,
Reservei-lhe no meu coração a mais nobre ermida.
Não fosse a esperança de nos reunirmos, eu não viveria;
Não imaginasse eu a tua imagem, jamais dormiria.

Em seguida, enquanto caminhava chorando copiosas lágrimas, tropeçou e


caiu de cabeça, batendo com a testa numa aresta, e o sangue que escorria
misturou-se com as lágrimas, deixando-o sem ver o caminho. Então, limpou
o sangue e as lágrimas, atou à cabeça um trapo, e evocou a situação em que
estava declamando uma poesia:
Meus suspiros vêem para me matar
Com saudades das noites de paixão.
Se dissesse: «Mais não vou suspirar»,
De que serviria se mais virão?

Em seguida, caminhou dando voltas pelo pomar, mergulhado num mar de


pensamentos, cada vez mais impaciente. Então, olhou para uma árvore e viu
dois pássaros que guerreavam entre si e bicavam-se um ao outro, e eis que
um deles bicou o outro na garganta de tal modo que lhe tirou a cabeça,
pegou nela e voou para uma banda, enquanto o pássaro morto caiu no chão
à frente de Cámar-Azzamane, que estava prestes a pegar nele, mas eis que
dois pássaros investiram sobre o pássaro morto, quedando-se um à banda do
pescoço e outro à banda dos pés, e ambos de bico voltado para ele e
pescoço estendido pareciam chorar e louvar as qualidades do pássaro morto.
Enquanto os pássaros observava, Cámar-Azzamane chorava, e eles
chilreando voltaram as cabeças e fizeram uma cova para enterrar aquele
pássaro morto.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
118.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que em eles enterrando o pássaro
morto e cobrindo a cova de terra, voaram um tempo até que agarraram o
pássaro que o havia matado, caíram em cima dele acabando por matá-lo;
estriparam-lhe o ventre, sacaram-lhe as tripas e lançaram o sangue sobre a
campa do pássaro morto. Ao depois, depenaram-no e espalharam a carne,
rasgaram a pele, sacaram tudo o que eram vísceras e dispersaram-nas por
diferentes sítios, e tudo isto acontecia enquanto Cámar-Azzamane tudo via,
ficando espantado com o agir dos pássaros.
Então, em o seu olhar se virando para o sítio onde o pássaro havia sido
morto, viu algo que lhe chamou a atenção porque brilhava aos raios do Sol.
Aproximou-se para ver melhor o que era e viu que era o papo do pássaro
morto, que estava rasgado, e que a luz saía do rasgo. Então, Cámar-
Azzamane pegou no papo, enfiou o polegar no rasgo, partindo o papo em
dois, e extraiu uma jóia vermelha que brilhava ao Sol e que arrebatava a
vista.Ao observá-la melhor para ver o que era, percebeu que se tratava da
jóia que havia sido a causa da separação entre ele e a sua amada, dona
Budur, e que era a jóia que estava presa ao cós das calças dela, que ele
havia desprendido e que o pássaro lhe havia rapinado da mão. Em a vendo,
tombou de alegria no chão, e disse de si para si: «Meu Deus! Isto é um sinal
de boas novas, de que vou reunir-me com a minha mulher, dona Budur,
porque esta jóia, quando fui privado dela também fui privado da amada, e
Deus, se Ele quiser, não ma iria devolver senão me devolvesse também
quem amo.» Ao depois, apertou-a contra o seu peito, beijou-a e passou-a
diante dos olhos. Então, chorou e pôs-se a declamar estes versos:
Pela saudade sou consumido após sua partida,
E lágrimas ao ver as ruínas de sua casa não meço.
A quem me castigou separando-a de mim, eu diga
Que me presenteie com o seu regresso.

Ao depois, pegou na jóia e prendeu-a ao braço, cheio de boas esperanças.


Então, disse de si para si: «Meu Deus! Isto é um sinal de boas novas e
abençoadas esperanças.» Tornou para casa, todo contente, e sentou-se à
espera do ancião caseiro até de noite, mas como este não veio, adormeceu.
Fazendo-se manhã, lançou-se ao trabalho, apertou a cintura com uma
corda, pegou na enxada e na alcofa, e foi pomar adentro com a enxada ao
ombro, até que chegou a uma alfarrobeira. Pôs-se a cavar até que bateu
numa superfície que fez um som que ressoou. Descobriu-a e eis que era
uma tampo de cobre.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
119.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de louvável agir


apropriado, que Cámar-Azzamane, em batendo na superfície apareceu-lhe
um tampo de cobre. Então, procurou saber o que era, limpou a terra e o pó,
e quando o abriu deu com uma escada em caracol por baixo de uma câmara
abobadada que havia sido escavada na pedra. Desceu dez degraus e foi dar
a um lugar que era uma agradável galeria romana de tempos imemoriais, da
época de Aad ibn Xaddad24. À roda desta galeria havia talhas de cobre,
cada uma tão grande quanto um silo. Cámar-Azzamane estendeu a mão para
uma delas, viu que estava apinhada de oiro vermelho puro e disse para
consigo: «Depois da desesperança vem a bonança. E assim é porque Deus
vai reunir-me com a família.» Em seguida, declamou uma poesia:
É verdade, a alma quase jaz
Mas adversidade já se finaliza.
Foi-se a aflição e a tristeza,
E finalmente chega o solaz.

Então, contou as talhas, e eram vinte talhas de cobre cheias de oiro puro.
Saiu do subterrâneo para a superfície, deixou o tampo como estava dantes, e
foi para o pomar, entretendo-se a trabalhar nele até que o caseiro veio,
cumprimentou-o e lhe disse: «Filho, alegra-te que vais regressar à tua terra!
Os mercadores já estão prontos para a viagem e o barco já está carregado.
Daqui a três dias parte para as Ilhas dos Ébanos, que é uma das cidades dos
muçulmanos e seu rei é Armanus. Em lá chegando, viajas seis meses por
terra para chegares ao país das Ilhas Khalidane e do rei Xaramane.» Cámar-
Azzamane, ao ouvir o seu pai Xaramane ser mencionado, ficou radiante e
declamou estes versos:
Não abandones quem nunca teu abandono apreciou.
Não tortures com aversão quem nunca prevaricou.
Só eu, mesmo se tua distância é do repúdio fruto,
A tua vida consigo mudar com meu contributo!

Ao depois, Cámar-Azzamane beijou a mão do ancião e disse: «Pai, tal


como me deu essas boas novas, também eu tenho boas novas para lhe dar.»
E falou ao caseiro das talhas; ele ficou radiante e disse: «Filho, isso agora
são pertenças tuas. Eu estou neste jardim, que era do meu pai, faz oitenta
anos e nada encontrei. Tu estás comigo há um ano e encontraste uma
bênção de Deus que apaga os teus enfados e canseiras, que te reúne de novo
com a tua família e com quem te separaste.» Então, Cámar-Azzamane
disse: «Valha-me Deus, temos de dividir este tesoiro entre nós.»
Então, Cámar-Azzamane pegou no caseiro, desceu com ele aonde
estavam as talhas e dividiu-as, dez para o caseiro e outras dez para si. Nisto,
o caseiro disse-lhe: «Filho, põe em cântaros azeitonas deste pomar, pois elas
são um produto exclusivo nosso e são levadas para todos os países – são as
azeitonas conhecidas pelo nome Açafiri. Põe o oiro debaixo das azeitonas e
leva os cântaros contigo no barco.» Ele disse: «Assim seja.» Então, Cámar-
Azzamane tratou de encher cinquenta cântaros com oiro, dois terços de
cada um com oiro e um terço com azeitonas açafiri. Sacou da jóia vermelha
do seu braço e pô-la dentro do oiro num dos cântaros.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
120.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Cámar-Azzamane apinhou o oiro
nos cinquenta cântaros, deixou-os em baixo do muro do pomar e sentou-se
à conversa com o caseiro. Cámar-Azzamane estava radiante, mal podendo
acreditar que faltavam só três dias, estando certo de que se iria reunir com a
sua família, e disse para consigo: «Quando chegar às Ilhas dos Ébanos, vou
seguir viagem até ao país do meu pai. Vou procurar a minha amada, dona
Budur, e averiguar o que os decretos do destino lhe trouxeram. Ai! quem
me dera saber se ela tornou ao seu país ou se seguiu viagem até ao meu
país, isto caso nada lhe haja acontecido. Ai! Ai! Ó minha amada!» Então,
suspirando ofegantemente, revelando quão inquieta estava sua mente,
declamou uma poesia:
Deixaste o meu coração em brasa,
Mas tão cedo abandonaste a casa
E quem nela habitava, por um itinerário
Que me deixou sem santuário.

E ao me abandonares, tudo me abandonou:


O amor, o desejo e a minha persistência.
Partiste e de mim a alegria se apartou,
Pois meu coração ficou sem residência.

Quedou-se-me o sangue nos olhos escorrendo


Copiosamente por mor da tua ausência.
E quando anseio por ti a mim volvendo,
A minha saudade em vão por ti desespera;
A tua imagem no meu coração vou vendo
Revolvendo lembranças e paixão sincera.

Ó tu, cuja lembrança é manto que aquece,


A minha devoção fez do amor a minha prece.
Sou teu cativo, obediência eu brandi.
Abriga um infeliz apaixonado por ti.
Ó amor, até quando a tua descura?
Até quando a minha solidão sem cura?

Ao depois, quedou-se à espera que os dias passassem para partir de


viagem no barco. Enquanto isso, contou ao ancião a história dos pássaros, o
que lhes tinha acontecido e como havia encontrado a jóia, o que deixou o
caseiro espantado. Passou a noite, e ao dia seguinte o caseiro estava mais
adoentado, e ao terceiro dia parecia estar mais perto da morte do que da
vida, o que deixou Cámar-Azzamane triste, dorido e inquieto por ele. Assim
estava ele quando vieram os marinheiros do barco perguntar-lhe pelo
caseiro e Cámar-Azzamane falou-lhes da doença dele. Então, eles disseram:
«E onde está aquele que vai viajar connosco até à Ilha dos Ébanos?»
Cámar-Azzamane disse-lhes: «Sou eu mesmo.» E deu-lhes ordens para
levarem os cântaros para o barco. Eles pegaram nos cântaros, carregaram-
nos para o barco, puseram-nos a uma banda, selaram-nos e disseram-lhe:
«Despache-se, pois os ventos estão bons para partir.» Ao que ele disse:
«Com certeza.»
Cámar-Azzamane levou para o barco provisões, água e as suas coisas, e
foi a casa do caseiro para se despedir dele. Ao ver que ele lutava com a
agonia da morte, disse:«Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso!» Ao depois, fechou-lhe os olhos e proferiu-lhe os dois
testemunhos de fé [«Testemunho que não há nenhuma divindade a não ser
Deus; e testemunho que Muhammad é o Seu profeta»] pois ele era do povo
dos bem-aventurados. Então, Cámar-Azzamane preparou-o para ser
enterrado.
Ao fim do dia, Cámar-Azzamane saiu depois de o enterrar, com o
coração abatido, e foi para o barco, mas viu que as velas já haviam sido
içadas e o barco zarpado, sulcando mar afora, e quando olhou ainda o viu a
desaparecer no horizonte. Ora, os marinheiros haviam esperado longo
tempo, mas como os ventos estavam bons, abriram as velas, não podendo
esperar mais um momento que fosse. No barco estavam cinquenta cântaros
que eram de Cámar-Azzamane, mas não esperaram por ele porque cada um
dos mercadores tinha mercadorias no valor de cem mil dinares. Zarparam e
deixaram Cámar-Azzamane embasbacado.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
121.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado, que Cámar-Azzamane ficou embasbacado, atarantado e sem
palavras. Então, sentou-se no chão, espalhou terra em cima da cabeça e
bateu na sua própria cara. Tornou ao jardim, arrendou-o ao proprietário e
pôs ao seu serviço um homem para o ajudar na rega e no trabalho. Desceu
até ao sítio das talhas e encheu com o seu conteúdo cinquenta cântaros que
cobriu com azeitona tal como havia feito com os outros. Cada vez com
menos esperanças de tornar para a sua amada, inquiriu sobre os barcos, e
disseram-lhe: «Não zarpam a não ser uma vez por ano.» Ficou ainda mais
desassossegado, suspirou pelo que havia sucedido, sobretudo pela jóia que
era da sua amada, e disse: «A Deus pertencemos e a Deus regressaremos.»
Passou a chorar dia e noite e a declamar poesias. E isto foi o que aconteceu
a Cámar-Azzamane.
Já no que toca ao barco e aos mercadores, apanhando-se com bons
ventos, viajaram dias e noites, e tal como Deus havia escrito chegaram sãos
e salvos às Ilhas dos Ébanos, e o barco acostou. Ora, decretou o destino que
a rainha Budur estivesse sentada à ventana e visse com os seus olhos o
barco que estava a ponto de atracar, ficando com o coração a palpitar, as
entranhas a rodopiar e o espírito a se atrofiar. Então, cavalgou, e logo o
exército também, seguindo à sua frente, tal como os emires e os camaristas,
e foi até à costa. Após os mercadores haverem levado todas as mercadorias
para os armazéns, chamou o arrais para indagar sobre o barco e perguntou-
lhe o que trazia ele, ao que ele disse: «Ó rei, trago neste barco drogas,
unguentos, pós medicinais, almotolias, tecidos coloridos, sedas, musselinas,
mercadorias que seriam demasiado difíceis de ser transportadas por terra,
vários géneros de perfumes e especiarias, que deixariam qualquer visão
maravilhada e qualquer mente abismada, porcelanas chinesas e japonesas,
almíscar, pau d’áquila, cravinho, tamarindo, mirabólano de Cabul25,
cálamo-aromático26, sândalo, perfume-rei27, noz-moscada e azeitona
açafiri.» Dito isto, beijou o chão.
Em ouvindo o que ele disse, Budur sentiu que o seu coração desejava
azeitona açafiri e disse de si para si:«Meu Deus! Há quanto tempo, era eu
menina e estava com o meu pai no meu país, e adorava azeitona açafiri.»
Então, disse ao dono do barco: «E quanto tens dessa azeitona?» Ele disse:
«Ó rei, tenho cinquenta cântaros cheios, mas o seu proprietário não veio
connosco, não lhe foi possível, portanto vossa alteza, que Deus lhe
prolongue a vida, pode levar quantos quiser.» Ela disse-lhe: «Trá-los até
aqui.» Então, o arrais gritou aos seus homens que trouxessem os cinquenta
cântaros, e em ela os vendo ficou muito agradada, abriu um deles, olhou
para a azeitona e disse: «Levo estes cinquenta cântaros. Quanto foi o capital
de investimento?» O arrais disse: «Meu amo, por amor de Deus, isto não
tem valor, os cinquenta cântaros custaram uns cem dirames. Quem os
trouxe a bordo foi um homem pobre, pois este tipo de mercadoria só os
pobres é que a negoceiam.» Ao que ela disse: «E neste país, quanto seria o
preço de venda?» Ele disse: «Meu amo, valem mil dirames.» Então, ela
disse: «Levo-os por mil dinares!» Ao depois, virou-se para tornar ao
palácio, havendo ordenado que carregassem os cântaros até ao palácio, e
assim fizeram os carregadores.
Até que veio a noite e lhe trouxeram um dos cântaros – e não havia
ninguém no palácio senão ela e Hayat-Annufus. Então, Budur pôs um
grande prato ante si e ordenou que despejassem nele o cântaro, e quando o
fizeram, saiu dele uma pilha de oiro vermelho puro. Atónita, Budur disse:
«Que é isto?» Então, levantou-se, esvaziou os cântaros e encontrou-os a
todos cheios de oiro, sendo que as azeitonas todas não davam para encher
um cântaro completo. E ao remexer no oiro, encontrou a jóia e pegou nela.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
122.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de louvável agir


apropriado, que dona Budur pegou na jóia, olhou para ela, e ao reconhecê-
la, soltou um grito e um profundo suspiro, estatelando-se sem sentidos. Ao
recuperar, disse: «Meu Deus, esta é a causa de haver sido separada do meu
amado. Isto são boas novas que indicam que em breve Deus nos vai
reunir!» Pegou nela, beijou-a e deu um beijo a Hayat-Annufus, filha do rei
Armanus, e disse-lhe: «Esta jóia foi a causa da nossa separação, se Deus
quiser ela a mim não regressou senão para ser a causa da nossa reunião.»
Mal pôde esperar que fosse de manhã para mandar um camarista buscar o
arrais, que em vindo beijou o chão e Budur disse-lhe: «Onde haveis deixado
o dono destas azeitonas?» Ele disse: «Ó rei dos tempos, no nosso país, que
é o país dos magos, e ele é o caseiro de um pomar.» Ao que ela disse: «Se
mo não trouxerdes matar-vos-ei a todos!» E ele disse: «Às suas ordens.»
Então o arrais mandou a sua rapaziada ir buscá-lo, e assim fizeram eles,
trouxeram-no juntamente com os cinquenta cântaros, os tais outros que já
mencionámos, e levaram-no à presença da rainha Budur, que convocou o rei
Armanus.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
123.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado, que dona Budur convocou o rei Armanus e lhe contou a sua
história de fio a pavio. Ora, o rei Armanus disse: «Valha-me Deus, esta
história tem de ser registada nas crónicas em tinta de oiro.» Virou-se para
Cámar-Azzamane e disse-lhe: «Valha-me Deus! Ó meu filho, nós gostamos
de ti, porque és rei filho de rei, mas impomos-te uma condição, que te cases
com a minha filha Hayat-Annufus, consumas o casamento tornando-te seu
marido, senão farei dela tua serva28.» Então, Budur disse: «Juro por Deus
que seremos iguais, será uma noite para mim e outra para ela, e habitaremos
na mesma casa, porque eu me afeiçoei a ela e apraz-me que assim se faça.»
Armanus ficou radiante, mandou chamar os emires, os vizires e os
notáveis, e em eles vindo, contou-lhes a história toda [e disse]: «O rei que
primeiramente entronizei é uma moça, uma fêmea, e este é que é o rei,
Cámar-Azzamane.» Eles ficaram agradados e prestaram juramento a
Cámar-Azzamane, havendo ficado espantados com a sua história. E veio o
exército, que também ficou radiante e lhe prestou juramento. O rei Armanus
mandou que o vestissem com o traje real de honra e Cámar-Azzamane
sentou-se no trono.
A cidade foi decorada, soaram os tambores que anunciam as boas novas e
todo o mundo ficou radiante. Convocaram o juiz e os notários, redigiram o
contrato de casamento entre Cámar-Azzamane e Hayat-Annufus, filha do
rei Armanus, e ele consumou o casamento naquela noite e tirou-lhe a
virgindade. Montou banquetes, com vários pratos de comida e doçaria,
ofertou trajes de honra aos emires e dignitários do reino, deu esmolas e
presentes, libertou os presos e revogou os impostos aduaneiros, e por isso o
povo, as nações e todo o mundo pediam bênçãos para ele. Ele foi justo a
governar e a fama da sua justiça chegou a todos os países e ilhas.
Deste modo fazia Cámar-Azzamane, dormindo ora uma noite com Hayat-
Annufus, ora outra com dona Budur, vivendo a mais feliz das vidas.
Havendo qualquer tristeza desaparecido, seu pai Xaramane foi esquecido.
Entretanto, Deus abençoou-o com dois filhos machos que eram quais luas
ou gazelas radiantes, um de Budur, [que era o mais velho e se chamou
Amjad], e outro de Hayat-Annufus, que era o mais novo e se chamou
Açaad29, que era mais belo que Amjad, e mais amável, gentil e perspicaz.
Os miúdos cresceram e foram educados, aprendendo boas maneiras,
literatura, filosofia, caligrafia e redacção, e por isso ao fazerem vinte anos,
havendo atingindo a idade de ser homens, eram de uma beleza e
graciosidade perfeitas. Os dois irmãos adoravam-se um ao outro, estavam
sempre de acordo e nenhum deles suportava a ausência do outro.Viviam nos
mesmos aposentos, dormiam na mesma cama e ao mesmo tempo,
cavalgavam junto e todas as pessoas os invejavam por serem unha com
carne.
Dês daí, Cámar-Azzamane, sempre que viajava, punha os seus filhos a
governar em seu lugar, e eles revezavam-se, num dia era Amjad, no outro
era Açaad. Com este método continuaram eles, e quando iam para casa
davam atenção às suas mães e incensavam-nas pedindo protecção para elas
do mau olhado lançado por outras pessoas. Ora, decretou o destino que a
princesa Budur, mãe de Amjad, começasse a fazer olhinhos a Açaad.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
124.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que dona Budur começou a fazer
olhinhos a Açaad, filho de Hayat-Annufus, piscando-lhe os olhos e o
cortejando, e da mesma maneira Hayat-Annufus, piscando os olhos a
Amjad e o cortejando. Passaram cada uma a cortejar o enteado e a gostar
dele, pois o Diabo botou no coração de Hayat-Annufus o amor por Amjad e
no coração de Budur o amor por Açaad. Ambas as mulheres apaixonaram-
se pelos moços, entregaram-se ao amor por eles, e como Satã embelezava
os seus actos, elas estavam cada vez mais apaixonadas por Açaad e Amjad,
e cada uma delas passou a abraçar o filho da outra, e nenhum deles percebia
a verdadeira intenção da madrasta, que o enchia de beijos, os lábios lhe
chupando, a língua lhe sugando e, fazendo pressão com os seios, o
abraçando. Cada um dos moços achava que as acções de cada uma delas se
deviam ao amor maternal e puro, que não eram adultério nem fornicação.
Como o tempo passava, [sem elas encontrarem forma de satisfazer o seu
desejo,] coibiram-se de comer e o prazer do sono abandonou-as, tal era a
paixão e o desejo.
Então, num dos saimentos do rei Cámar-Azzamane para a caça, para se
divertir e folgar, ele deixou os filhos Amjad e Açaad no seu lugar como
habitualmente fazia, e eles revezavam-se, governando cada um por um dia,
enquanto o rei e o exército partiram. No primeiro dia foi Amjad, filho de
dona Budur, quem se sentou no trono a governar e a administrar justiça,
dando ordens, colocando restrições, fazendo ofertas e outorgando honrarias.
Ora, a mãe de Açaad, Hayat-Annufus, escreveu-lhe para implorar a sua
simpatia e carinho, revelando-lhe que estava enamorada dele, sem recorrer
a subterfúgios, e disse que queria unir-se a ele por amor.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
125.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que quando Hayat-Annufus se
apaixonou por Amjad e se quis unir a ele por amor, pegou numa folha e
escreveu-lhe, dizendo:
Duma pobre coitada cuja felicidade foi vedada, duma apaixonada pelo amado neglicencida,
que por te amar viu a sua juventude definhar e a sua tortura aumentar. Se eu descrevesse todo
o meu desgosto e quanto sofrimento me foi imposto, o quanto choro e gemo em aflição e me
atormento pela inquietação, o quanto custa ao meu coração, pela saudade incendiado,ser por ti
ignorado,esta carta seria tão comprida que a resposta não chegaria nesta vida. O céu e a terra
tornaram-se demasiado estreitos para mim e o meu desespero não tem fim. Já estou à beira da
morte final, minha agonia não tem igual. Sou consumida pelo fogo da dor, abandonada pelo
amador. Quisesse eu descrever o desejo ardente que sinto, não haveria folha tão grande onde
pudesse ser escrito. Estou eu tão emaciada, mas à poesia sou dada e estes versos minha voz
brada:

Quisesse eu o que sinto descrever,


— Fogo, paixão, amor e inquietação distinta –
Na Terra não sobraria papel onde escrever,
Nem coisa outra, nem cálamo ou tinta.

Tem misericórdia de quem te obedece, dum espírito sempre disponível para ti, de quem te
deseja e de ti depende. O que escrevo, ó rei Amjad, [O Mais Glorioso,] soberano do astro
mais fortunoso30, é um escrito de quem de noite não dorme, de dia pela inquietação se
absorve, cujas entranhas um fogo a consome e em cujo rosto a lágrima escorre, ardendo de
saudade e paixão por te ver, cuja imaginação a tua imagem dominou e a tua pessoa
açambarcou. Por isso, o sono as suas pálpebras não visita nem o sossego a habita. Por ti ela se
lamenta, tu és o seu único desejo e ela não se aguenta.
Em seguida, escreveu estes versos:
Até quando este repúdio e aversão tão fria?
Não bastou tanta lágrima por mim vertida?
Porque prolongas tanto a tua dura ausência?
Se foi vingança o teu intento, conseguiste-a.
Sê gentil, que eu já sofri demasiada paixão;
Ó Amjad, porque não mostras compaixão?
Fosse o destino justo com o amante punindo o traidor,
Não procuraria eu quem fizesse justiça à minha dor.
Por quem sofro eu? Quem sabe do meu degredo?
Que escândalo! Já todos sabem do meu segredo!

Que Deus a vida te prolongue, a emaciação do meu corpo te perdoe e afaste quem contra o
nosso encontro obste. Ó herdeiro da minha vida e soberano da minha morte, a minha alma
está aflita, meus olhos não dormem e as lágrimas escorrem.Tu és a causa do meu marasmo,
do meu desassossego, inquietação e preocupação. Compreende o que escreve minha alma
exposta e não te demores a dar resposta, pois de tanto me incendiar e suspirar já estou prestes
a me finar.

Enviou a mencionada folha por um eunuco, que era um servo que se


devotava às boas causas, após enrolá-la com um dos lencinhos que usava
como laço para as tranças do seu cabelo, que era feito em tecido de
requintada seda iraquiana com oiro vermelho nos bordos e bordados
egípcios em seda colorida e brilhante. Embrulhou tudo num lenço que deu
ao eunuco, ordenando-lhe que levasse a carta ao rei Amjad, e assim fez ele.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
126.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o eunuco pegou no escrito e foi


levá-lo a Amjad. Beijou o chão ante Amjad e entregou o lenço com a carta.
Amjad abriu o laço, observou-o e pô-lo no bolso. Pegou na folha, abriu-a e
leu-a.Ao perceber o que estava escrito, soube que a outra mulher do seu pai
tinha em mente o adultério e a traição ao seu pai. Então, amaldiçoou o curso
do Tempo e disse: «Que Deus amaldiçoe as mulheres traiçoeiras com falta
de tento e religião.» Ao depois, enfureceu-se até mais não, e de tanta fúria
desembainhou a espada, acercou-se do eunuco e disse-lhe: «Ai de ti, ó
escravo do mal que trazes correspondência adúltera da mulher do teu amo.
Não tens escrúpulos com as tuas feias acções!» E em seguida, degolou-o
com a espada e a sua cabeça tombou.
Ao depois, foi ter com a sua mãe, dona Budur, deu-lhe parte do que havia
acontecido, e injuriou-a e amaldiçoou-a, dizendo: «Todas vós sois umas
piores que as outras. Que Deus vos amaldiçoe. Meus Deus, se não fosse por
temor de faltar ao respeito a meu pai, decapitá-la-ia e a sua cabeça rolaria
tal como fiz ao seu eunuco.» Ao sair de lá mais que furibundo, a sua mãe,
Budur, amaldiçoou-o, praguejou contra ele e desejou arranjar uma
artimanha para lhe fazer mal e prejudicá-lo. No que toca a Amjad, esse
passou a noite enfermo e desassossegado. Ora, em a manhã amanhecendo,
Açaad saiu e pôs-se a governar no salão de audiências do seu pai, enquanto
Hayat-Annufus estava enferma após ter ouvido a reacção de Amjad e que
este havia matado o seu eunuco. Em Açaad se sentando para governar,
dando ordens, colocando restrições, administrando justiça e fazendo ofertas,
até ao final do dia, a princesa Budur, mãe de Amjad, mandou chamar uma
anciã e revelou-lhe o que lhe ia no coração. Em seguida, pegou numa folha
e escreveu uma carta para Açaad, seu enteado, lamentando-se de quanto
sofria de amor por ele.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
127.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que dona Budur escreveu a Açaad, seu
enteado, lamentando-se de quanto estava apaixonada, sofrendo de amor por
ele, e disse-lhe por escrito:
Meu corpo se debilitou, minha pele se definhou e minha perseverança se dissipou. Inquieta
pelo desejo e insónia estou, pois o sono me repudiou e desassossegada sou pelo ardor do amor
e da sua dor, pela tormenta que me não deixa dormir e deixa meu corpo se consumir. Minha
alma por ti se sacrifica e meu corpo a ti se dedica. Minha emaciação se duplica, minha aflição
se multiplica e minha ânsia se intensifica.

E compôs uma poesia onde dizia:

Decretou o Tempo paixão por ti infinita.


Ó tu de encantos tal brilhante cheia lua,
Haverá graça ou eloquência que não a tua?
Por ti o meu coração de agonia palpita.

Em seguida, enrolou a folha, perfumou-a e deu-a à anciã, ordenando-lhe


que a entregasse ao rei Açaad. Então, a anciã abalou, mal sabendo o que a
esperava, e foi ter com Açaad em privado, entregou-lhe a carta com os
cordões usados por Budur nas suas tranças, e ficou à espera da resposta.
Açaad pegou na carta, leu-a, não lhe restando dúvidas quanto ao
conteúdo, embrulhou-a com os cordões, botou-a no bolso do seu traje, e
tomou-se de tais fúrias que mais não era possível, e estando furibundo até
mais não, amaldiçoou as mulheres traiçoeiras. Então, desembainhou a
espada, decapitou a anciã e a sua cabeça tombou do tronco. Ao depois,
encontrou-se com a sua mãe, Hayat-Annufus, injuriou-a, amaldiçoou-a e
praguejou contra ela, antes de se ir embora, apesar de ter visto que ela
estava enferma, e isso, como já vimos, era por causa do que lhe havia
acontecido com Amjad.
Então, reuniu-se com o seu o seu irmão Amjad e contou-lhe o que lhe
havia acontecido com a mãe dele, Budur, que havia matado a anciã, e disse-
lhe: «Meu Deus, mano, se não fosse por ti, já teria ido ter com ela e lhe
tirado a cabeça com esta espada.» E Amjad respondeu: «Mas mano, valha-
me Deus, também a mim ontem, quando me sentei na sala de audiências, a
tua mãe me enviou um escrito», e contou-lhe o que lhe havia acontecido
com a mãe dele, dizendo ainda: «Meu Deus, mano, se não fosse por ti, já
teria ido ter com ela e feito o mesmo que fiz ao eunuco.» Então, naquela
noite estiveram à conversa amaldiçoando as mulheres traiçoeiras. Ao
depois, acharam aconselhável guardar silêncio sobre este assunto para não
chegar ao conhecimento do pai deles, Cámar-Azzamane.
E isto foi o que aconteceu à princesa Hayat-Annufus, à princesa Budur, a
Amjad e a Açaad. Já no que toca a Cámar-Azzamane…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
128.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que no que toca a Cámar-Azzamane,


após ele haver terminado a sua viagem de caça, regressou com o exército
para a cidade, foi para o palácio, dando licença aos emires para se retirarem
para as suas casas, e foi ter com as suas mulheres. Ao entrar nos aposentos,
encontrou Budur e Hayat-Annufus deitadas na cama [e muito adoentadas],
pois elas haviam arranjado uma artimanha e acordado entre si o que fazer
aos seus filhos, já que estavam desgraçadas perante eles e receavam as
consequências da sua depravação. O rei, ao vê-las naquele estado, disse-
lhes: «Que tendes?» E logo elas se puseram a chorar, havendo lavado os
seus rostos com açafrão, e inverteram a situação, dizendo-lhe: «Ó rei dos
tempos, é esta a recompensa dos teus filhos por haverem sido criados sob os
teus magnânimos auspícios? Traindo a tua família e trazendo-te vergonha
para sempre inapagável?»
Ao ouvir tal coisa, o tento do rei Cámar-Azzamane voou tal era a sua
fúria e disse: «Ai de vós se me não explicardes o que se passou!» Então,
Budur disse: «O teu filho Açaad, filho desta aqui, faz dias que me envia
cartas amorosas e eu o rejeito, e desta última vez que viajaste, ele atacou-
me quando estava bêbedo, de espada desembainhada na mão, e receei que
se o rejeitasse ele me mataria tal como fez ao meu servo, e assim ele saciou
o seu desejo comigo. Se me não fizeres justiça, eu própria me mato!» Em
seguida, Hayat-Annufus falou tal como Budur havia falado, e cada uma das
mulheres acusou o filho da outra, chorando ante o rei.
Ora, Cámar-Azzamane ficou terrivelmente furioso e ordenou que os seus
filhos Amjad e Açad fossem decapitados.
Hayat-Annufus havia dito: «Juro por Deus que se me não fizeres justiça,
chamo o meu pai Armanus, porque o teu filho Amjad faz dias que me envia
cartas amorosas e eu o rejeito e o recuso, até que tu viajaste e ele me atacou,
estando bêbedo – até parece que os dois acordaram entre si o que nos fazer.
– Então, ele encontrou nos meus aposentos a minha governanta,
desembainhou a espada, decapitou-a e a sua cabeça tombou, e pôs-se em
cima de mim, com a espada gotejando sangue, e receei que se o rejeitasse
ele me mataria tal como fez à anciã, por isso calei-me e cedi até ele saciar o
seu desejo comigo. Ai de ti que a vergonha leva à desgraça! Fica sabendo
que os teus filhos agem como os inimigos.» E ambas as mulheres se
puseram a chorar e a lamentar-se, e logo Cámar-Azzamane perdeu o tento.
Então, foi de espada desembainhada para atacar os filhos Açaad e Amjad, e
encontrou o rei Armanus, pai de Hayat-Annufus, que havia vindo para o
cumprimentar após o seu regresso de viagem. O rei Armanus, ao vê-lo de
espada desembainhada na mão, possuído de raiva e destilando veneno,
perguntou-lhe o que se passava e porque estava tão furioso, e ele deu-lhe
parte de que o filho da sua filha, Açaad, e o seu irmão haviam feito, e
rematou dizendo: «Mal os encontre, mato-os logo!» Então, o rei Armanus
disse: «É assim mesmo! Que Deus nunca abençoe filho algum que tais
acções pratica contra os pais. Mas, meu filho, o ditado diz: A quem age sem
tino, não lhe sorri o destino. Ora, esses moços teus filhos tu vais matá-los
com as tuas mãos, beber o sumo da agonia da morte de ambos e depois
mais tarde vais-te arrepender e lamentar. Envia antes um mameluco para os
matar num descampado longe dos teus olhos, pois lá diz o ditado: A lonjura
entre mim e o meu amor é melhor e mais bela, pois se olhos não vêem,
coração não se entristece.»
Ora,em Cámar-Azzamane ouvindo as palavras de Armanus,viu que eram
arrazoadas. Então, embainhou a espada, foi-se sentar no trono e mandou
chamar o camarista-mor, que era um emir já ancião, conhecedor da vida e
das suas reviravoltas, e disse-lhe: «Vai agora mesmo ter com os meus filhos
Açaad e Amjad, ata-lhes as mãos atrás das costas, põe-nos em duas arcas
para os transportares numa mula, monta no teu cavalo e leva-os para um
descampado no deserto. Aí, tira-os das arcas e decapita-os, e enchendo dois
jarros com o sangue deles vens ter comigo rapidamente.»
O camarista-mor levantou-se e foi ter com Açaad e Amjad, encontrando-
os por acaso enquanto ia a caminho no átrio do palácio, estando eles
trajados a rigor com os turbantes e as espadas, pois iam ver o pai deles para
o congratularem por haver regressado são e salvo da sua viagem. Quando o
camarista-mor os viu, agarrou-os e disse-lhes: «Meu senhores, trago ordens
de vosso pai. Obedeceis ou vos rebeleis?» Eles disseram: «Valha-nos Deus,
claro que obedecemos.» Então, ele pegou neles, atou-lhes as mãos atrás das
costas com os seus lenços, pô-los em duas arcas que prendeu numa mula,
montou no seu cavalo e saiu da cidade, dirigindo-se para o deserto. Próximo
do meio-dia, chegou com eles a um descampado desolado no meio do nada.
Descavalgou, descarregou as arcas, abriu-as e tirou Açaad e Amjad para
fora. Em seguida, deu-lhes um beijo e chorou desalmadamente.
Desembainhou a sua espada e disse: «Custa-me fazer esta maldade que
estou prestes a vos fazer e peço-vos desculpa, mas o vosso pai deu-me
ordens para vos decapitar.» Eles disseram: «Faz o que o rei te ordenou, pois
estás revestido de legitimidade para derramar o nosso sangue.»
Em seguida, os dois se abraçaram, choraram e despediram-se um do
outro, e Açaad disse ao camarista: «Tio, por amor de Deus, não me dês a
provar a agonia do meu irmão Amjad e mata-me primeiro.» E Amjad disse:
«Não o faças, ele é mais novo, mata-me antes a mim primeiro, que meus
olhos não conseguem vê-lo a morrer.» Então, choraram ambos e o seu
choro fez o camarista-mor chorar. Em seguida, os irmãos abraçaram-se,
trocaram beijos e despediram-se em choro um do outro. Então disseram ao
camarista-mor: «Tio, Assim manda o Alcorão Glorioso, assim manda o
Todo-Misericordioso, mas qual o crime que nos condenou à morte?» O
camarista-mor disse: «Filhos, lamento não o saber mas sou só um escravo
que recebe ordens.» Então, Açaad disse ao seu irmão Amjad: «Valha-nos
Deus, mano, isto é obra das depravadas das nossas mães, depois de
acontecer o que te aconteceu com a minha mãe e de acontecer o que me
aconteceu com a tua. Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso!» Então, virou-se para o seu irmão Amjad, chorou e pôs-se a
dizer o que sentia ao se separar dele com estes versos:
Ó luz de meus olhos, tua morte não aguento,
Por ti me sacrificaria no final momento.
És minha pedra e cal, vista e ouvido.
Quero morrer sem te ver falecido!
Ao depois, disse Amjad ao camarista-mor: «Peço-te pelo Soberano
Absoluto e Único, que a noite e o dia alterna e o cosmo governa, mata-me
antes do meu irmão Açaad, deixa que o fogo da angústia do meu coração se
extinga e não deixes que suas brasas me consumam.» Então, Açaad chorou,
colou-se ao seu irmão Amjad e disse: «Mano, serei eu a morrer antes de ti!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
129.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, que Amjad disse ao seu
irmão Açaad: «Serei eu a morrer antes de ti!» Então, Amjad disse: «Se
assim tem mesmo de ser, então abraça-me e eu abraço-te para que ele nos
mate ao mesmo tempo.» Então, abraçaram-se face a face, ficando colados
um ao outro, e disseram ao camarista-mor: «Ata-nos com uma corda bem
apertada dês dos pés aos ombros, desembainha a tua lâmina, agarra no seu
punho com ambas as mãos e desfere uma espadeirada nas nossas gargantas
ou barrigas, como queiras, e assim morremos ambos sem que um tenha de
ver o outro morrer. Quanto a ti, estás revestido de legitimidade para
derramar o nosso sangue.» Em seguida, choraram ambos, assim como o
camarista-mor, que exclamava: «A Deus pertencemos e a Deus
regressaremos!»
Ao depois, o camarista-mor sacou de uma cinta em coiro comprida que
media seis braças e atou-a à roda de ambos, enquanto chorava, tal como
Açaad e Amjad, cujas lágrimas corriam. Então, desembainhou a espada e
disse-lhes: «Valha-me Deus, meus senhores, custa-me fazer isto.» Então,
acercou-se deles, encostou-lhes a ponta da espada e disse: «Tendes algum
desejo final antes de morrerdes ou algum pedido para eu cumprir após a
vossa morte?» Disse Amjad: «Quanto ao que dizes sobre algum desejo, não
temos nenhum, mas peço-te que me mates comigo por cima do meu irmão,
isto é, que ponhas Açaad no chão por baixo de mim, ficando eu em cima,
assim a espada irá atravessar-me primeiro, antes de atingir o meu irmão. E
incumbo-te de uma missão, quando chegares junto de nosso pai e ele te
perguntar:“Que te disseram eles?”, vais-lhe dizer:“Os seus filhos saúdam-
no e consideram-no revestido de legitimidade para derramar o seu sangue,
porque não conhece o âmago deste caso, nem se eles são inocentes ou
culpados.” E declamas esta poesia:
“Ei-las:
Unhas envernizando,
Tranças pintando,
Homens rebaixando,
Agonias causando.”

»Em seguida, dizes:


“— Poderás numa alcofa água carregar
Ou com rede um relâmpago pescar?”

»Portanto, o pedido que te fazemos é que lhe faças chegar isto fielmente
e que nos deixes morrer com o nosso segredo, que nós não revelamos para
não expor o nosso pai ao escândalo, mas faz-lhe chegar estes versos, saúda-
o da nossa parte e nada mais digas sobre nós. Peço-te ainda, tio, que esperes
um pouco para eu declamar uma poesia ao meu irmão, poesia essa que é a
minha despedida, e quando eu terminar de a declamar, desfere uma
espadeirada em nós e mata-nos.» Ao depois, olhou para a direita e para a
esquerda, chorou desalmadamente e declamou ao seu irmão uma poesia:
Vede os antepassados:
Tantos reis idos
Nos rios da morte
Sem jusante ou norte.
Vi, indo para lá,
Pequeno e grande, velho e novo.
E certeza tive que fuga não há
Senão ir aonde vai indo o povo.

Em seguida disse ao camarista-mor: «Desfere o golpe! Foi isso que nos


foi decretado pelo Rei Omnipotente.» Ora, o camarista-mor desatou a
chorar e Amjad, com os olhos banhados em lágrimas, fez-lhe sinal para
avançar, mas o camarista-mor tinha o coração dilacerado pela mágoa.
Então, ergueu o punho com a espada em riste para desferir o golpe e eis que
o seu cavalo se assusta, e pondo-se a puxar a rédea, parte-a e desalvora
descampado afora. Como o cavalo valia quinhentos dinares, tinha sela com
brocados em oiro à maneira egípcia, valendo uma pipa de massa, e
cabeçada com oiro e safiras incrustadas, o camarista-mor largou a espada da
mão e foi a correr atrás do cavalo, com o coração aos pulos, e não parou de
correr atrás dele até que o cavalo entrou num bosque, atravessou um
canavial, e pôs-se a bater com as patas no chão, levantando poeira,
enquanto hinia e nitria. Ora, nesse bosque havia um leão que era maldoso e
feioso, muito perigoso e de olhar raivoso, de focinho carrancudo e nariz
carnudo, e ao ouvir os relinchos do cavalo espicaçou-se e foi atrás do som,
todo acirrado. Em menos de um pestanejar de olhos, o leão já estava atrás
do camarista-mor, e em este se virando viu o leão bem determinado no seu
encalço, e como não encontrou via de fuga possível nem tinha a sua espada
consigo, disse: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso! É pecado o que estou a fazer aos moços e esta viajem estava
amaldiçoada dês do início!»
Isto foi o que aconteceu ao camarista-mor.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
130.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei, que isto foi o que aconteceu ao camarista-mor. Já no


que toca a Amjad e Açaad, estavam arrasados pelo calor, e tão grande e
intensa era a sede de que sofriam que ficaram com a língua de fora,
implorando socorro, e Amjad disse a Açaad: «Estás a ver, mano, o quanto
sofremos com tamanha sede? Quem nos dera que ele nos houvesse matado
para nos livrarmos deste tormento. Vê bem o que dita o destino, como fugiu
assustado o cavalo do camarista-mor ao ponto de ele largar a espada e ir
atrás do seu cavalo. Enquanto nós agora estamos atados e se uma fera vier,
desfaz-nos e devora-nos, porque não nos podemos defender.Teria sido bem
melhor morrer pela espada do que assistirmos à nossa morte enquanto
somos despedaçados por feras e lobos.» Então, o mais novo disse: «Mano,
tem paciência que o solaz está próximo. Se o cavalo do camarista-mor se
assustou e fugiu foi por alguma razão, pois é essa a razão de estarmos
vivos, apesar de estarmos atormentados pela sede que nos pode matar.» Em
seguida, sacudiu-se movendo-se ora para a direita ora para a esquerda até se
libertar, e ao depois libertou o irmão Amjad. Pegaram na espada do
camarista-mor e disseram: «Por amor de Deus, não nos iremos embora sem
sabermos o que aconteceu ao seu cavalo e se pudermos ajudamo-lo.»
Então, seguiram o rasto do cavalo para encontrarem o camarista-mor,
sendo que o rasto os levou até ao bosque, e Amjad disse: «O cavalo e o
camarista-mor não saíram deste bosque e não é de excluir que haja um leão,
por isso fica aqui um pouco enquanto eu entro no bosque.» Mas Açaad
disse a Amjad: «Não, mano, valha-me Deus, não te deixo entrar no bosque
sozinho, só entras se formos ambos, e se houver salvação, salvamo-nos os
dois, e se não houver, morremos os dois.»
Ao entrarem ambos no bosque deram com o leão em pleno ataque ao
camarista-mor; viram-no a aproximar-se dele e a golpeá-lo com a pata, até
que o camarista-mor ficou por baixo do leão, com os olhos virados para o
céu enquanto dava testemunho da sua fé [proclamando: «Testemunho que
não há nenhuma divindade a não ser Deus; e testemunho que Muhammad é
o Seu profeta»]. Em vendo tal coisa,Amjad encheu-se de coragem e atacou
o leão com a espada do camarista-mor e aos berros lutou contra ele, deitou-
o ao chão golpeando-o com a espada entre os olhos, e tal foi a força do
golpe que a espada atravessou o leão e saiu pelas coxas. Então, o camarista-
mor levantou-se de debaixo do leão e pôs-se a olhar para ver quem Deus lhe
havia trazido para o salvar da morte certa. Encontrou à sua frente os filhos
do amo, o qual havia ordenado que os matasse, isto é, Amjad e Açaad.
Então, prostrou-se ante eles, beijou-lhes as mãos e o pés, envergonhado das
suas acções, e disse: «Meus senhores, é errado que eu mate alguém como
vós; que pereça quem queira a vossa morte. Por amor de Deus, por vós eu
daria a minha vida.»
Em seguida, levantou-se, abraçou-os e perguntou-lhes como haviam
conseguido ali chegar, e eles deram-lhe parte que estavam sedentos [que um
deles conseguira libertar-se, libertando o outro,]31 e que haviam seguido o
seu rasto até darem com ele. Era intuito deles os três recuperarem o cavalo,
então ajudaram-se mutuamente até o apanharem. Ao saírem do bosque,
Açaad e Amjad disseram ao camarista-mor: «Tio, não vais cumprir as
ordens que nosso pai te deu para nos matares?» Ele disse: «Deus me livre
de vos fazer qualquer mal ou que sofreis às minhas mãos! Filhos, o que
peço aos meus senhores é que tireis as vossas roupas e trajes, e eu dou-vos a
vestir as minhas, pois vou ter com o vosso pai, o rei Cámar-Azzamane, e
vou-lhe dizer que vos matei. Quanto a vós, cruzai pelos países fora, pois a
Terra é vasta e espaçosa. Meu Deus, como me custa separar-me de vós e
vos deixar.» Dito isto, chorou, e também Amjad e Açaad choraram. Então,
tiraram as suas roupas, o camarista-mor pegou nelas, fez um embrulho com
as roupas de cada um, deu-lhes algumas das suas roupas e algum oiro que
tinha consigo, e encheu dois frascos com o sangue do leão, que carregou na
garupa do cavalo. Despediram-se uns dos outros e o camarista-mor seguiu
para a cidade.
Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
131.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que o camarista-mor despediu-se de
Açaad e Amjad, seguiu para a cidade, e dirigiu-se ao rei Cámar-Azzamane.
Beijou o chão ante ele e o rei viu que ele estava a tremer e pálido, e isso era
devido ao que lhe havia acontecido com o leão e o quanto havia sofrido por
essa ocasião, mas o rei pensou que era por causa de haver matado os seus
filhos, e por isso regozijou-se e disse-lhe: «Fizeste o trabalho?» E ele disse:
«Sim, fiz», e deu-lhe os dois embrulhos de roupas e os dois frascos de
sangue. Então, o rei disse: «Os meus filhos fizeram-te algum pedido?» E ele
disse: «Sim, fizeram. Eu vi que eles estavam pacientes e resignados com o
que lhes sucedia, e disseram:“O nosso pai está perdoado pelo nosso destino
malfadado. Saúda-o por nós e diz-lhe: ‘Os seus filhos saúdam-no e
consideram-no revestido de legitimidade para derramar o nosso sangue,’ e
disseram: ‘Compreenda e pense nestes versos:’”
Ei-las:
Unhas envernizando,
Tranças pintando,
Homens rebaixando,
Agonias causando.

»Em seguida, disse o verso isolado:


— Conseguirias numa alcofa água carregar,
Ou com rede um relâmpago pescar?»

Em o rei ouvindo as palavras do camarista-mor, baixou a cabeça, pois


percebeu o sentido das palavras que Amjad e Açaad haviam proferido, e
disse para consigo: «Isto indica que os dois morreram injustamente.»
Pondo-se a reflectir sobre as calamidades das mulheres e as suas
artimanhas, pegou nas roupas dos filhos, abriu-as, olhou para elas e desatou
a chorar. Então, inspeccionou a algibeira da capa do seu filho Açaad, e
encontrou uma folha escrita pelo punho da sua mulher Budur e os cordões
por ela usados nas suas tranças.Abriu-a, leu-a, e ao perceber o seu
conteúdo, soube que o seu filho havia sido injustiçado. Em seguida,
inspeccionou as roupas de Amjad e encontrou num bolso uma folha escrita
pelo punho da sua mulher Hayat-Annufus e os seus laços de cabelo. Abriu-
a, reconhecendo a letra, e leu o seu conteúdo. Então, atirou ambas as cartas
ao chão, bateu uma mão contra a outra, e disse umas palavras para que
Deus o não abandonasse: «Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso! A Deus pertencemos e a Deus regressaremos!» E
disse: «Matei os meus filhos injustamente! Ai, filhinhos meus!» Em
seguida, esbofeteou-se a si mesmo e rasgou as roupas.
Ao depois, mandou construir um mausoléu com duas campas. Entrou
nele, sentou-se entre as duas campas, e gravou numa delas o nome do seu
filho Açaad e na outra o nome do seu filho Amjad, lamentado a morte de
ambos com os versos de uma elegia:
Ó Lua, sumiste para baixo da terra,
Até as estrelas te choram brilhando.
Ó galho, sem ti já ninguém berra
De alegria com teu porte gingando.
Os olhos de ti se despedem e chorando me afundo
Com medo de te não ver senão no Outro Mundo.

Em seguida, chorou desalmadamente, virou-se para a campa do seu filho


Açaad, prostrou-se e de tanto pranto o seu coração até se desfez em cacos.
Então, lamentou a sua morte com os versos de uma elegia:
O teu rosto qual lua cheia se eclipsou,
O teu porte tal galho de salgueiro se quebrou.
Ó flor florescente brotando no auge da vida,
Veio mão criminosa e te colheu impecável;
Ao túmulo lancei pérola por mim protegida,
Como quem deita fora riqueza inestimável.
Era tão feliz estando perto de mim o teu rosto,
E ao morreres troquei felicidade por desgosto.

Chorou desalmadamente e elegeu aquele mausoléu como sua habitação,


chamando-lhe Casa das Mágoas, isolando-se nela enquanto chorava os
filhos, tal como havia feito o seu pai Xaramane em relação a
ele.Abandonou as suas mulheres, não participando a ninguém as suas
acções, coisa que elas também não fizeram, sabendo-se apenas que ele lhes
havia dito que elas trabalhavam para a sua aniquilação. Pedia protecção a
Deus do mal delas e das suas artimanhas, abandonou-as e devotou-se ao
mausoléu dos seus filhos, chorando noite e dia. Isto foi o que aconteceu a
Cámar-Azzamane. Já no que toca ao seus filhos Amjad e Açaad…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
132.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, que Amjad e Açaad, ao


se separarem do camarista-mor, foram terra afora atravessando
descampados, passando a comer ervas e a beber dos riachos, e à noite
dormiam, enquanto um velava pelo outro, revezando-se nessa tarefa.
Continuaram deste modo a caminhar por espaço de um mês inteiro, e a
caminhada levou-os a uma montanha de sílex negro que circundava aquela
terra, não sabendo eles onde acabava, havendo um caminho que seguia pela
montanha adentro até ao topo. Abstiveram-se de subir a montanha, com
medo da sede e da falta de vegetação, e caminharam pelo seu sopé pela
banda direita por cinco dias. Como o caminho não desembocava em lado
algum, regressaram ao local de partida. Ao depois, caminharam pela outra
banda da montanha, a esquerda, por outros cinco dias. Como o caminho não
desembocava em lado algum, regressaram ao local de partida, cansados de
tanto caminhar e alquebrados pela falta de repouso, visto que não estavam
habituados às dificuldades demasiado fatigantes.
Não encontrando outra via senão o caminho que seguia montanha acima,
seguiram-no. Continuaram a subir e ao longo do dia a montanha era cada
vez mais alta do que parecia.Veio-lhes a noite e sendo a montanha
demasiado alta para eles, disseram: «Não há força nem poder senão em
Deus Grandioso. Já estamos completamente partidos.» Açaad estava
estafado e disse: «Estou tão estafado e partido que já nem dou conta de
mim.» Amjad disse-lhe: «Tem ânimo, mano, que Deus nos deverá aliviar.»
Seguiram caminho por mais uma hora, até que veio a escuridão, e estando
Açaad estoirado, sentou-se e disse: «Mano, estou estoirado e
desesperançado.» E Amjad disse: «Tem paciência.» Mas ele botou-se no
chão a chorar e Amjad carregou-o caminho acima noite adentro, ora o
levando ora parando para descansar um tempo, até que veio a madrugada e
chegaram ao cimo da montanha, onde encontraram um fonte de água
corrente, uma romãzeira e um mirabe ali construído, o que os deixou
incrédulos. Lançaram-se à fonte de água e beberam até se saciarem.
Ao depois, deitaram-se um pouco no chão, e quando o Sol se ergueu,
sentaram-se, lavando as mãos, os pés e a cara. Comeram daquela romãzeira
e descansaram, passando ali o dia todo. Ao jantar, comeram daquela
romãzeira, beberam daquele riacho e à noite dormiram. Estavam prestes a
continuar a jornada, mas Açaad recusou-se, pois tinha os pés doridos e
inchados, então descansaram um segundo dia e um terceiro.Ante eles
estendia-se o cimo da montanha, que eles percorreram dias e noites, tendo-
os Deus abençoado com força, plantas abundantes e água potável durante
esse tempo, e à medida que avançavam o solo que pisavam parecia ser cada
vez mais vasto, e assim foi por espaço de um mês inteiro, estando eles
extenuados da caminhada, do esforço e da falta de dormida. Então, deu-lhes
na vista uma cidade ao longe e regozijaram-se. Seguiram caminho por três
dias e viram que a cidade estava em frente ao mar salgado. Ficaram
radiantes, deram graças a Deus Todo-Poderoso e descansaram um tempo no
cimo da montanha. Então,Amjad disse a Açaad: «Mano, não me deixas
descer para ver que cidade é e que reis há nela? Assim, compraria algo para
comermos, veríamos em que terra estamos e saberíamos que territórios
atravessámos. Arriscámos as nossas vidas, mas se houvéssemos caminhado
pelo sopé da montanha não teríamos chegado a este sítio senão um ano
depois. Graças a Deus estamos sãos e salvos.» Açaad disse: «Valha-me
Deus, mano, ninguém vai descer à cidade senão eu. Eu daria a minha vida
por ti e não suporto que te separes de mim. Se desceres ficando longe de
mim algum tempo, eu fico com mil preocupações. Por isso, desço eu.» E
como insistiu, Amjad disse: «Desce, mano, mas não te demores.»
Açaad levou consigo um dinar e desceu a montanha, enquanto Amjad
ficou à sua espera. Ao chegar lá abaixo, Açaad procurou a porta da cidade e
entrou, e dando com uma das suas ruas por ela enveredou, e encontrou
vindo da ponta oposta um ancião, que era muito entrado em anos e com
uma barba que se dividia em duas partes, e cada uma parecia feita de fios de
prata caindo até ao umbigo, tendo na mão um bastão, vestindo roupas
luxuosas e um grande turbante.Ao vê-lo,Açaad ficou impressionado com o
seu trajar e roupas, cumprimentou-o e disse: «Senhor, como vou daqui para
o mercado?» O ancião sorriu para ele e disse: «Filho, pareces forasteiro.»
Ele disse: «Sim, sou.» Ao que o ancião disse: «Filho, sejas muito bem-
vindo e que a tua vinda te traga alegria e bem-estar, pois a tua chegada ao
nosso país traz felicidade enquanto o teu se aflige de saudade. O que vais
fazer ao mercado?» Açaad disse: «Tio, o meu irmão maior veio comigo mas
ficou para trás, enquanto eu vim aqui para comprar comida da vossa cidade
e inquirir sobre ela, antes de tornar a ele.» Então, ele disse: «Filho, que feliz
ocasião! Pois hoje preparei um banquete em minha casa onde vou receber
um grupo de importantes convidados. Cozinhei para eles muitas coisas e
guardei à parte uma porção da comida feita a mais. Queres vir a minha casa
para te dar comida e pão? Nada te cobro e falo-te sobre o que queiras saber
da nossa cidade. Louvado seja Deus por ter sido eu a te encontrar e não
outra pessoa.» E Açaad disse: «Tio, como queira, pois quem faz o bem é
boa pessoa, mas não se demore comigo porque o meu irmão está à minha
espera e está preocupado comigo.»
Ora, o ancião pegou na mão de Açaad e seguiu com ele, enquanto sorria
e dizia: «Glorioso seja Quem te salvou das gentes desta cidade.»
Continuaram até chegarem a uma casa, onde o ancião entrou. Açaad seguiu-
o e ao entrar viu um vasto salão, no meio do qual estavam quarenta anciões
bem entrados em anos, reunidos em roda, no meio da qual havia um fogo
aceso, pois o ancião e o seu grupo adoravam o fogo em vez do Rei
Omnipotente. Açaad ficou perplexo mas não sabia quem eram eles nem o
que faziam. Então, o ancião apregoou: «Ó anciãos! Que dia mais
abençoado!» E a seguir chamou: «Ó Ghadhbane!» Em seguida, veio um
escravo negro, imponente como uma alta montanha ou alguém dos sete
céus ou um sobrevivente do povo de Aad32, alto como uma cana e largo
como um banco de pedra, de rosto carrancudo e nariz carnudo, mas chega
de palavras para falar deste monstro, o que interessa é que ele não se
poupou a dar murros na cara de Açaad, e logo que este caiu ao chão atou-
lhe as mãos atrás das costas. Então, o ancião mago disse-lhe: «Leva-o para
o subterrâneo e deixa que a minha filha Bustane e a minha serva Qawame o
torturem dia e noite, dando-lhe a comer um pão de manhã e outro ao final
do dia, mas não exagerem, até que venha o momento de viajarmos para o
Mar Azul33 e o Monte do Fogo, onde o iremos abater para fazer o nosso
sacrifício.»34 Então, o escravo pegou no moço…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
133.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que o escravo pegou no moço, levou-o
de porta em porta, até entrar numa sala onde ao meio havia um alçapão,
cujo tampo ele levantou, descendo com Açaad por uma escada com vinte
degraus para uma sala subterrânea onde o largou, botando-lhe aos pés uma
pesada corrente. Ao depois, o escravo subiu e informou o seu senhor.
Ora, o ancião passou aquele dia com os adoradores do fogo, e quando os
seus convidados abalaram, foi ter com a sua filha Bustane e disse-lhe, bem
como à serva Qawame: «Descei ao subterrâneo aonde pus aquele
muçulmano que hoje cacei. Descei até ele, batei-lhe e torturai-o dia e noite,
de manhã e à tarde. Alimentai-o a pão e água, nada mais. É que eu quero
abatê-lo no Monte do Fogo para oferecer a sua vida em sacrifício.» Então, a
serva Qawame disse: «Assim seja, meu senhor.» Então, naquela noite
desceu aonde ele estava, despiu-lhe as roupas e pregou-lhe tareia tão
valente que o sangue lhe escorreu dos flancos e ele perdeu os sentidos.
Deixou-lhe um naco de pão e um jarro de água salobra à cabeça, e abalou.
Açaad acordou a meio da noite e viu que estava acorrentado e que havia
levado tareia, estando por isso todo dorido. Implorando socorro, suspirava
largando vários ais, escorriam-lhe as lágrimas rosto abaixo, pensava no seu
irmão e em como era boa, feliz e confortável a sua vida anteriormente com
o seu pai Cámar-Azzamane. Então chorou desalmadamente e declamou
uma poesia:
Parai nas ruínas de casa e inteirai-vos sobre nós,
Mas não espereis nela encontrar a nossa voz.
O destino que tudo dispersa nos separou
E o invejoso com nossa lonjura se vingou.
Por uma negra sou torturado, que Deus a desgrace;
Tem coração tirânico, sem piedade nem compaixão.
Que Deus alivie a dor que me vai no coração
E o contente com ente querido que me abrace.

Ao depois, sentiu com a mão um naco de pão à sua banda. Comeu tão
pouco, só o quanto bastava para se aguentar vivo, e bebeu um pouco de
água, ficando acordado até de manhã, pois não conseguia dormir devido à
aflição que lhe causavam os percevejos, as baratas e outros insectos. Em
sendo de manhã, mal ele deu por ela, já lá estava a serva Qawame. Ela
despiu-lhe as roupas, que se haviam empapado em sangue e colado ao
corpo, havendo a camisa ficado como uma crosta mole, e quando ela a
puxou, a pele veio colada à camisa e ele gritou: «Ai! Ai! Ó Senhor se este é
o Teu desejo, aumenta a severidade do teu decreto! Talvez assim não
ignores quem me oprime e me lançou nesta tormenta!» Ora, a serva pregou-
lhe uma tareia e não parou senão quando ele perdeu os sentidos. Então,
deixou-lhe um naco de pão e um jarro de água salobra, e abalou, deixando
Açaad com os flancos a esvaírem-se em sangue.
Quando acordou e viu o estado em que se encontrava, com sangue a
escorrer dos flancos, nu, o corpo dilacerado e preso a uma corrente de ferro,
longe dos seus entes queridos, prometido para ser abatido e morto, chorou
desalmadamente, pensando no seu irmão e em como era boa, feliz e
confortável a sua vida anteriormente, quando estavam todos juntos, e vendo
o que lhe havia acontecido, o seu encarceramento, a tortura, as tareias, as
correntes, a nudez e a fome, declamou estes versos:
Calma, ó fado! Quanto abusas e quão brutal!
E quantos dos meus entes queridos abalaram!
Não é já tempo de teres pena da minha tormenta
E compaixão, ó coração duro que nem pedra?

Nesta situação continuou Açaad algum tempo, noite e dia sujeito à


tortura. E isto foi o que lhe aconteceu. Já no que toca ao seu irmão Amjad,
esperou pelo irmão até ao meio-dia mas este não voltou. O seu coração
tremia e pressentia a separação, e chorou, chorou desalmadamente. Ao
depois, desceu do cimo da montanha, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
Entrou na cidade e Deus levou-o ao mercado, onde ele perguntou a um
indivíduo qual o nome daquela cidade, e foi-lhe dito: «Esta cidade chama-
se Cidade dos Magos, porque a maioria dos seus habitantes são magos que
adoram o fogo.» Então perguntou pelas Ilhas dos Ébanos e foi-lhe dito: «A
sua distância pelo deserto por baixo da poeira é um ano de tempo e por mar
é quatro meses. Depois chegas à Cidade dos Ébanos e o seu rei é Armanus,
mas hoje em dia é Cámar-Azzamane, que zela para que a justiça emane.»
Ao ouvir a menção ao seu país e o nome do seu pai, os olhos banharam-
se-lhe em lágrimas e o seu coração incendiou-se de inquietação pelo seu
irmão Açaad. Sem saber aonde se dirigir, foi a uma loja e comprou qualquer
coisa para comer, entrou num sítio onde ficasse afastado dos olhares das
pessoas, e estava prestes a comer, mas lembrou-se do seu irmão, perdeu o
apetite e forçou-se a comer um pouco, só o quanto bastava para se aguentar
vivo. Pôs-se a caminhar pela cidade para saber do seu irmão e o encontrar, e
dando com um indivíduo muçulmano que era alfaiate, sentou-se na sua loja
e contou-lhe a sua história e que ele andava à procura do irmão. O alfaiate
disse-lhe: «Irmão, se o teu irmão caiu nas mãos de um dos magos, então
não tornarás a vê-lo nem a reunir-te com ele. Mas, irmão, queres ficar em
minha casa?» E Amjad disse que sim. Então, foi para casa do alfaiate, onde
ficou vários dias, enquanto o alfaiate o confortava e consolava. Acabou por
ficar por um mês inteiro, pondo-se a aprender o mister de alfaiate.
Ora, passado esse mês, Amjad saiu e foi até à praia, lavou as suas roupas
e foi ao banhos públicos.Vestiu roupas limpas e caminhou na direcção que o
levava para a loja do alfaiate, quando no caminho lhe aconteceu cruzar-se
com uma mulher airosa e formosa.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
134.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Amjad seguia em direcção à loja
do alfaiate, quando no caminho lhe aconteceu cruzar-se com uma mulher
airosa e formosa, de ímpar perfeição, não havendo igual a ela em
compleição. Ora, ela viu que ele a vira, e ergueu a rede do véu que cobria a
vista e fez-lhe olhinhos, cativando-lhe o coração e a razão, e pestanejando
para ele disse estes versos sobre o seu profundo amor:
Vi-te caminhando e olhos baixei,
Tal como se para o Sol olhasse.
Ontem te vi e ninguém era mais belo,
E hoje mais belo que ontem te vejo.
Se a beleza em seis partes se dividisse,
Uma era de José35 e as outras eram tuas.

Em Amjad ouvindo as palavras dela, o seu âmago a ela se entregou e por


ela perdido ficou. E dando à língua testemunhou do que sentia e
pestanejando para ela, disse:
Há trilho mais atroz
Que amor sem vós?
Meu coração foi atingido
Por fogo avassalador.
Se é isto o que eu digo,
Que respondes, ó flor?
Em ela ouvindo a sua poesia, soube que a amava e queria estar com ela.
Sorriu de guisa sedutora e galanteadora, e tirou o resto do véu, arrebatando
a razão a Amjad, que ficou atónito e embasbacado ante ela. Fulminado com
o que via, disse: «Glorioso seja o Criador da formosura e Quem a vestiu
com roupas pomposas.» E disse:
Sangue fatal e negros olhos no ar;
Ó paraíso! Ó desejo! Ó fogo posto!
Quem se consegue aguentar
Ante tão formoso rosto?
Não fosse por ti, já haveria sucumbido
Às críticas de quem amor censura.
A magreza de meu corpo sofrido
Só se deve à tua magra cintura!

Em ela ouvindo as suas palavras, ficou toda perdida por ele, nutrindo
sentimentos por ele, mostrando-lhe o seu sorriso e falando com palavras
doces. Então, Amjad disse: «Minha senhora, em tua casa ou na minha?» Ela
disse: «Deus fez as mulheres miseráveis no que possuem, ter casa é coisa de
homens, não de mulheres.» Amjad baixou a cabeça, pois estava
comprometido com a moça mas tinha vergonha de ir para casa do alfaiate.
Então, caminhou à frente da moça que o seguiu, levando-a de ruela em
ruela, de lugar em lugar. A moça dizia-lhe: «Amor, onde fica o teu lar?» E
ele dizia-lhe: «Estamos perto, minha senhora.» Caminhou com ela até
ambos já estarem cansados, e ela disse: «Mas onde fica a tua casa?» E ele
disse: «Minha senhora, já chegámos.» Estando ele desnorteado, caminhou
com ela seguindo-lhe o passo, e levou-a por uma das várias ruelas,
acabando por perceber que era um beco sem saída, mas tinha de ficar à
altura da coisa. «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso», disse ele de si para si, e quando olhou para o fim da ruela, viu
uma bela casa com uma grande porta ladeada por dois bancos de pedra
cobertos com mantas de feltro, sendo que a porta esta fechada. Vai Amjad e
senta-se num deles, enquanto a moça se senta no outro e lhe diz: «Senhor
meu, de que estás à espera?» E ele disse, baixando a cabeça: «Espero o meu
mameluco, pois a chave ficou com ele. Eu disse-lhe para trazer comida,
bebida e fruta enquanto ia aos banhos. Ora, aqui estou eu a chegar e não o
vejo!» E disse para consigo: «Talvez ela se canse de esperar e se vá
embora.»
Mas a moça, ao ouvir as palavras dele, disse: «Ó senhor, não me digas
que o teu rapaz nos deixou assim à espera dele! Isto de ficarmos aqui
sentados na rua ainda vai dar escândalo!» Ora, a moça levantou-se e pegou
numa pedra para arrombar a fechadura, e com isto Amjad disse-lhe: «Não!
Não! Isso não é boa ideia. Espera um pouco.» Mas ela deu duas pancadas
com a pedra e partiu a fechadura. Amjad, já a perder as estribeiras, disse:
«O que te deu na cabeça para fazeres isto?» E ela disse: «Francamente,
senhor, o que se passa contigo? Não é esta casa tua e tu o seu dono?» Ele
disse: «Sim, claro, mas assim a fechadura ficou estragada.» E suspirou
ofegantemente.
Ora, a moça entrou à frente dele, ficando Amjad com uma perna dentro e
outra na rua, desnorteado com o que se passava. Então, a moça virou-se
para ele e disse: «Senhor meu, entra em tua casa!» Amjad baixou a cabeça e
disse: «Sim, claro, mas o meu mameluco atrasou-se e acontece que eu lhe
disse para cozinhar, preparar as refeições, limpar os mármores e arrumar a
casa, e não sei se ele já fez alguma coisa ou não.» Ao entrarem ambos,
deram com um amplo, espaçoso e elegante salão, com quatro salas
anichadas e elevadas, dispostas face a face, com armários, mezaninos, e
sofás forrados a seda e brocado. No meio, havia uma preciosa fonte, sobre a
qual havia uma bandeja coberta por uma toalha de seda, à banda da qual
havia uma travessa grande de cobre cheia de fruta e flores aromáticas, à
banda da qual havia um candelabro com uma vela requintada e uma
travessa com canecas cheias de vinho refrescante. O sítio estava
devidamente arrumado, cheio de tecidos, tapetes e almofadas de seda, e
baús fechados. Havia uma fila de cadeiras, e em cima de cada uma havia
uma pilha de tecidos, por cima do qual havia uma bolsa cheia de dirâmes.
Era uma casa espaçosa e rica com o chão forrado em mármore colorido.
Em tal vendo, Amjad, atónito, pôs o dedo na boca e disse para consigo:
«Ainda vou perder a vida. A Deus pertencemos e a Deus regressaremos.»
No que toca à moça, ao ver aquele sítio ficou doida e voou de alegria, e
disse: «Meu Deus! o teu mameluco não se poupou em nada; limpou os
mármores, preparou a carne, e pôs a fruta e um banquete. E fui eu a
escolhida para vir! Ena, meu senhor, que tens para estar aí especado e
atónito? Se tinhas um encontro com outra que não eu, não faz mal, eu
aguento-me e sirvo a outra.» Amjad riu-se de ira e foi-se sentar preocupado,
dizendo para consigo: «Que morte tão infortunada me espera!» Ora, a moça
sentou-se à sua banda e pôs-se a rir e a brincar, enquanto Amjad estava
carrancudo e angustiado, com mil preocupações na cabeça, dizendo de si
para si: «Que vou eu dizer ao dono da casa? Não há dúvida, vou mesmo
perder a vida.» Então, a moça levantou-se, arregaçou as mangas…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
135.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que a moça se levantou, arregaçou as
mangas, pegou na bandeja, estendeu a toalha, serviu a comida, pôs-se a
comer e disse: «Senhor meu, conforta o meu coração e come comigo, nem
que seja só um pouco, e não te importes com o teu mameluco estar
atrasado.» Então,Amjad aproximou-se para comer, mas a comida não lhe
sabia bem e ficou à espreita olhando para a porta, enquanto a moça
comia.Ao ficar satisfeita, levantou a bandeja e foi buscar a travessa da fruta,
pondo-se a comer frutos secos e caramelizados. Ao depois, foi buscar a
jarra, abriu-a, e pegou num copo que encheu e bebeu. Encheu outro e
serviu-o a Amjad, que pegou nele e disse para consigo: «Ai, ai, será que o
dono da casa me está a ver?» E ficou com os olhos postos no corredor de
entrada, e estando ele nisto, eis que chega o dono da casa.
Ora, o dono da casa era um militar mameluco, dos mais importantes, pois
era o estribeiro-mor do rei da cidade, e aquela casa era o seu refúgio, onde
ele se descontraía e se entretinha com quem quisesse. Naquele dia, havia
enviado alguém para abastecê-la com aquele banquete e para deixar a casa
preparada. Chamava-se Bahâdir e era um homem bondoso e generoso,
prestimoso e caridoso. Em ele chegando, ficou espantado ao ver a porta
aberta. Entrou e caminhou devagarinho, e estendendo o pescoço para
espreitar, encontrou Amjad e a moça, com a travessa de fruta diante deles e
a jarra de vinho aberta. Naquele momento, Amjad havia pegado no copo, e
ao deitar uma olhada para a porta e para o corredor, os seus olhos deram
com os do dono da casa. Amjad ficou pálido e pávido, mas Bahâdir fez-lhe
um sinal pondo o dedo na boca, como quem diz: «Não faças barulho», e
outro como que diz: «Vem cá.»
Amjad levantou-se e poisou o copo. A moça disse: «Aonde vais, meu
senhor?» Ele virou a cabeça e disse: «Verter águas.» Então, foi descalço ao
corredor, e ao ver Bahâdir, sabendo que era ele o dono da casa, apressou-se
a beijar-lhe a mão, e disse-lhe: «Meu senhor, por amor de Deus, antes de me
levar ao governador, oiça o que tenho a dizer.» E contou-lhe a sua história
de fio a pavio, a causa de haver saído da sua terra e do seu reino, de haver
entrado naquela cidade para procurar o irmão, e que não havia entrado na
casa por sua escolha mas só porque a moça havia arrombado a porta e que
havia sido ela a fazer todas as coisas. Bahâdir, ao ouvir a história de Amjad,
o que lhe havia acontecido, que ele era filho de um grande rei, sentiu
afeição e compaixão por ele, e disse-lhe: «Ouve, Amjad, eu juro por tudo
em que acredito que se me desobedeceres farei com que morras.» E Amjad
disse: «Meu senhor, em nada lhe desobedecerei.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
136.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Amjad disse ao dono da casa: «Em
nada lhe desobedecerei, pois estou em profunda dívida com a sua
hombridade.» E ele disse: «Torna agora para o sítio onde estavas sentado.
Fica lá sossegado como se nada se houvesse passado, até eu aparecer – já
agora, o meu nome é Bahâdir – então, quando eu entrar, ralhas e praguejas
comigo, e vais dizendo: “Mas o que te deteve hoje?” E não aceitas desculpa
alguma minha, deitas-me ao chão e bates-me a sério, e se mostras piedade
de mim, ai meu Deus! que te mato! Ao depois, sentas-te sossegadamente e
o que seja que hoje me pedires será atendido, mas amanhã vós seguis à
vossa vida. Faço isto para te honrar como forasteiro, porque eu gosto de
forasteiros e sinto que os devo honrar.»
Amjad beijou-lhe a mão, e o seu rosto estava corado, e mal voltou, disse
à moça: «Ó dama minha, que bom é ter-te aqui, este é um dia abençoado!»
Ela ficou radiante e disse: «Meu senhor, que maravilha da tua parte tratares-
me tão bem.» E Amjad disse: «Valha-me Deus, dama minha, pensava que
Bahâdir, o meu mameluco, me havia levado alguns colares de jóias, cada
um no valor de dez mil dinares, mas agora quando fui à casinha lembrei-me
de os ver. Ainda assim o meu mameluco está atrasado e vai ter de ser
castigado.» Amjad e a moça descontraíram-se, puseram-se a brincar e a rir,
divertindo-se, comendo e bebendo até ao poente. Eis então que veio o dono
da casa, que havia mudado de roupa, trazendo à cintura uma toalha e
calçando umas servilhas36. Cumprimentou-os, beijou a mão a Amjad, pôs
as mãos atrás das costas e baixou a cabeça, como alguém que confessa a sua
culpa. Amjad olhou para ele com o rosto carrancudo e disse: «Ai de ti, ó
mais calamitoso dos mamelucos!» E ele disse: «Meu senhor, estive a lavar
as minhas roupas e não sabia que já cá estava, pois o nosso compromisso
era [à hora de jantar e não]37 durante o dia.» Então, Amjad gritou-lhe
dizendo: «Mentes, ó mais calamitoso dos mamelucos! Valha-me Deus, vou
mesmo ter de te bater.»
Então, Amjad levantou-se, pegou na chibata e bateu-lhe suavemente,
mais vai a moça levanta-se, saca a chibata a Amjad, e assenta uma valente
tareia ao mameluco, daquelas bem dolorosas, pondo o mameluco a implorar
socorro, banhado em lágrimas e com os dentes a ranger, enquanto Amjad
gritava à moça dizendo: «Ai de ti, pára!» Mas ela dizia: «Deixa-me
descarregar a minha raiva nele para que não se torne a ausentar.» E
continuou a bater-lhe até o braço se cansar e Amjad lhe sacar a chibata e a
empurrar. Nisto, o mameluco já não aguentava de dores, mas limpou as
lágrimas e pôs-se ao serviço deles. Arregaçou as mangas para tratar da casa,
foi acender os candelabros e as velas, e tornou junto deles para com afinco
lhes prestar serviço. Com isto, a moça punha-se a ralhar e a praguejar com
ele, e amaldiçoava-o, enquanto Amjad lhe dizia: «Deixa-o, que ele não está
habituado a ser tratado assim.»
Continuaram a comer e a beber, enquanto Bahâdir ficou ao serviço deles
até à meia-noite. A moça já estava bem bebida – quanto ao dono da casa,
devido ao afinco com que os serviu, adormeceu no meio do salão; cansado
do trabalho, da tareia, e da tormenta, mergulhou no sono – e estando já bem
bebida, disse a Amjad: «Por amor de Deus, ó meu senhor, pega nesta
espada que está aqui pendurada, e faz a cabeça deste mameluco rolar. Se o
não fizeres, eu juro que o faço.» Então, Amjad disse: «Mas que te deu na
cabeça para quereres matar o meu mameluco?» Mas ela disse: «Se o não
fizeres, eu o faço.» Ao que ele disse: «Pára de dizer essas coisas.» E ela
disse: «Tenho mesmo de o fazer.» Então, levantou-se e desembainhou a
espada para matar Bahâdir.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
137.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que ao depois a moça empunhou a
espada e Amjad lhe disse: «Se alguém tem de matar o meu mameluco, sou
eu.» E Amjad disse para consigo: «Este homem tratou-nos de modo nobre e
ofereceu-nos a sua casa, e nós tratamo-lo de modo oposto às suas belas
acções.» Então, ergueu a mão até se ver a negrura do sovaco e investiu com
toda a sua força na moça, cortando-lhe a cabeça, que rolou até se deter junto
ao tronco de Bahâdir, o dono da casa, que acordou e ao ver Amjad com a
espada na mão e cabeça da moça jorrando sangue, disse-lhe: «Que te levou
a fazer isto?» E Amjad disse-lhe: «Meu senhor, aconteceu isto e isto», e
contou-lhe o que ela havia feito de fio a pavio. E Bahâdir disse: «Tê-la-ia
perdoado. Mas este foi o destino e nada há a fazer. Nada resta senão
sairmos agora mesmo antes da alvorada.»
Bahâdir apertou o cinto, pegou na moça e embrulhou-a num manto. Pô-la
numa cesta para poder carregá-la e disse a Amjad: «Tu és forasteiro, não
conheces este sítio. Senta-te onde estavas e espera por mim até à alvorada.
Se eu regressar, vou imperativamente tratar-te da melhor forma e farei todos
os esforços e mais alguns para saber o que é feito do teu irmão. Mas se o
Sol se erguer sem que eu regresse, fica sabendo que me foi decretado o fim
desta vida e, nesse caso, que a paz esteja contigo. Esta casa e tudo o que
nela se encontra passa a ser propriedade tua.» Dito isto, carregou o cesto,
saiu da casa e atravessou os mercados para chegar ao mar e lá botar a moça.
Ia ele no seu caminho, já perto do mar, e eis que aparece o governador, os
almocadéns e os chefes de polícia, e o cercam.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
138.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que se deu o acaso de o séquito do
governador se cruzar com o dono da casa, enquanto este carregava a moça
que Amjad havia matado. Reconheceram que ele era o estribeiro-mor e
apanharam-no em flagrante com a morta. Então, agarraram nele e
prenderam-no. De manhã cedo, levaram-no com a cesta até junto do rei e
deram-lhe parte do sucedido. E com isto já lhe não restavam dúvidas que ia
morrer.
O rei disse: «O que vem a ser isto?» Expuseram ao rei o que havia
sucedido e o rei ao saber daquilo tomou-se de grandes fúrias e disse-lhe:
«Ai de ti! Fazes sempre o mesmo! Matas e lanças quem matas ao mar,
ficando com as suas posses! Quantos é que já mataste?» Ele baixou a
cabeça e não disse palavra que fosse. O rei gritou com ele dizendo: «Ai de
ti! quem matou esta moça?» E ele disse: «Senhor real, fui eu. Não há força
nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso!» O rei tomou-se de
fúrias e ordenou que o enforcassem. O governador saiu e ordenou ao
pregoeiro que apregoasse pela cidade fora: «Vinde assistir! Vão enforcar
Bahâdir, o estribeiro-mor, ao meio-dia!» E os pregoeiros percorreram os
mercados e as ruas.
Já no que toca a Amjad, quando o dia se levantou e Bahâdir não veio,
disse: «A Deus pertencemos e a Deus regressaremos. Vão matar este
homem injustamente, sendo eu o assassino. Meu Deus, quem me dera que
assim não fosse.» Então, fechou a casa e percorreu a cidade para encontrar
Bahâdir. Não parou de caminhar até que o encontrou. Cortou entre as gentes
até ficar ante o governador e disse: «Meu senhor, nada faça a Bahâdir. Por
amor de Deus, ele é inocente. Ninguém matou a moça senão eu.» Em
ouvindo as palavras dele, o governador pegou nele e em Bahâdir…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
139.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que ao depois o governador pegou em
Bahâdir e em Amjad e levou-os ao rei, dando-lhe parte do que Amjad havia
dito. O rei olhou para Amjad e para o seu aspecto, e disse: «Foste tu quem
matou esta moça?» Ele disse: «Sim, real senhor.» O rei disse: «Conta-me a
causa que te levou a matá-la; sê honesto no que dizes e nada contes que seja
mentira.» Ele disse: «Com certeza», e disse: «Saiba vossa alteza bem-
aventurada que a minha história é tão estranha e espantosa, que seria um
feito tão grandioso escrevê-la no canto do olho com uma agulha quanto à
lição que dela se pode tirar.» Ao depois, contou-lhe toda a sua história, o
que lhe havia acontecido com o irmão e as mulheres do seu pai, como se
havia perdido do irmão, como havia entrado na cidade à procura dele e o
que lhe havia acontecido com a moça em casa de Bahâdir.»
O rei ficou espantando com aquilo e disse-lhe: «Fica sabendo que estás
perdoado. Mas, rapaz, será que queres trabalhar comigo como vizir, que eu
vou investigar o que é feito do teu irmão?» E ele disse: «Estou às ordens de
vossa alteza.» O rei outorgou-lhe um traje de honra e outro a Bahâdir,
fazendo de Amjad o seu vizir, dando-lhe uma boa casa, criados, eunucos,
tecidos, vários bens e tudo de que ele fosse falto, assim como salário e
abonos. Ao depois, ordenou que inquirissem o que era feito do
irmão,Açaad, mas dele nem nova boa nem má se ouvira, nem se encontrou
qualquer traço, o que deixou Amjad com o peito pesado pela angústia e
desnorteado.Ascendeu ao vizirado mas com a vida estragada e, por mor do
seu irmão, dia e noite se lamentava em poesias de aflição. E isto foi o que
aconteceu com Amjad.
Já no que toca a Açaad, Bahrame38, o mago, continuou a torturá-lo por
espaço de um ano, até chegar a festividade dos magos. Bahrame, que Deus
o amaldiçoe, pois foi ele quem encarcerou Açaad, aprontou-se para a
viagem e arranjou um barco onde carregou tudo de que fosse falto.Ao
depois, pôs Açaad num baú com um cadeado e levou-o para o barco. E
enquanto o fazia, quis o destino que naquele momento Amjad estivesse a
olhar para o baú enquanto estava sentado à janela da varanda. Olhou para as
coisas de Bahrame, que estavam a ser levadas para o barco, e sentiu o
coração a palpitar. Ordenou então aos seus servos que lhe trouxessem o seu
cavalo. De imediato lho trouxeram e ele cavalgou.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
140.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que trouxeram o cavalo a Amjad e ele
cavalgou com dois mamelucos até à costa. Deteve-se junto ao barco do
mago Bahrame e ordenou aos seus homens que subissem a bordo para
revistar o que havia no barco. Eles subiram, revistaram o barco todo mas
não encontraram nada, e desceram para dar parte disso a Amjad, que tornou
para casa. Ao chegar a casa, o seu âmago estava derrotado, sentia o peito
pesado pela angústia, o coração desassossegado, e ao olhar para uma das
paredes da varanda, viu duas linhas, que eram estes dois versos:
Se destino me atraiçoa, enganai-vos!
De meu coração e vista não vos sumistes.
Pedindo união fostes imperativos,
Mas no vero amor, vos ausentastes.

Ao ler estes versos, a paixão de Amjad e o seu ardor aumentaram ainda


mais. Recordando-se do irmão chorou desalmadamente e escreveu por
baixo daqueles versos uma poesia:
Partiram, carregaram todas as bestas.
Até minha agonia se foi com elas.
Às bestas lamentei nossa separação.
Se fala entendessem, sacudiriam as selas
E ninguém partiria deste chão.
Em seguida, chorou desalmadamente até mais não e o mundo tornou-se
negro ante os seus olhos. Então, saiu de casa a cavalo e foi até à costa,
ficando com o âmago mais sossegado, e ao olhar para o barco, sentiu o seu
coração palpitar. Mandou chamar o dono do barco, que era Bahrame, o
mago, que compareceu ante ele, e disse-lhe: «Fica sabendo que o meu
coração, âmago e cada parte de mim sem excepção me dizem que o meu
irmão está contigo neste barco, mesmo que tu não tenhas conhecimento, ele
está no teu barco sem dúvida alguma.» Ao ouvir aquilo, Bahrame ficou
pálido mas manteve-se firme e resoluto, e sem hesitações disse-lhe: «Meu
senhor, este barco está à sua disposição.»
Então,Amjad subiu a bordo e com ele ia um mameluco que levava um
pano de sarja para Amjad se sentar, e ditou o destino que o mameluco não
estendesse o pano de sarja noutro sítio que não em cima do baú onde estava
Açaad, e havendo o mameluco estendido o dito pano no dito sítio, Amjad
sentou-se.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
141.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Amjad sentou-se em cima do baú
onde estava Açaad e ordenou que lhe trouxessem todas as mercadorias e
tudo o que havia no barco, fossem pacotes, embrulhos ou qualquer outra
coisa, pois tinha de os inspeccionar a todos. Não encontrando indício que
fosse do seu irmão, disse: «Não há força nem poder senão em Deus
Altíssimo e Grandioso!» Mas Deus fez com que ele se esquecesse do baú
em cima do qual estava. Então, desceu do barco, montou o seu cavalo e foi
para casa.
Já no que toca a Bahrame, o mago, gritou aos seus homens para içarem
as velas e o barco navegou dias e noites a fio, até que se aproximaram do
Monte do Fogo. Restando só três dias de viagem, eis senão quando ventos
de tempestade se abateram, agitando revoltadamente o mar com furiosas
ondas e tornando-o negro como o breu da noite. Então, o arrais perdeu o
rumo para o Monte do Fogo e foram dar a uma outra terra, que era uma
cidade edificada sobre a água, com um castelo fortificado com janelas à sua
roda que davam sobre o mar salgado. Quem reinava nesta cidade era uma
mulher, a rainha Marjana.
Quando lhes amanheceu, aproximaram-se da cidade e o arrais disse a
Bahrame: «Perdemos o rumo e temos de parar nesta cidade, que é a cidade
da rainha Marjana. Se tu lhe disseres que és mercador, ela vai-te
perguntar:“Quais são as tuas mercadorias?” e se lhe disseres que vais para o
Monte do Fogo, ela vai-te dizer: “Vai-te embora, quem toca nos
muçulmanos não se salva.” Então, Bahrame disse: «Há outra maneira, vou
pegar neste muçulmano que veio comigo e vestir-lhe os trajes dos
mamelucos. Quando a rainha Marjana me perguntar quem é ele, digo-lhe:
“Importei mamelucos e já os vendi. Sobrou-me só este que deixei comigo
para fazer a minha contabilidade e registar as minhas mercadorias, pois ele
sabe ler e escrever.”» O arrais disse-lhe: «Muito bem calculado.»
E mal haviam terminado a conversa, quando chegaram ao porto, e veio
do seu palácio a rainha Marjana para os receber. Bahrame, o mago, vestiu
Açaad com os trajes dos mamelucos e advertiu-o para que dissesse que era
mameluco. Pegou nele, desembarcou e beijou o chão ante a rainha Marjana.
Deu-lhe parte de quem era e do que fazia, e a rainha Marjana olhou para
Açaad…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
142.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que a rainha ao olhar para Açaad sentiu
o coração tornar-se seu prisioneiro e disse-lhe: «Ó rapaz, qual é o teu
nome?» Ele disse: «Mameluco», e seus olhos encharcaram-se em
lágrimas.A rainha, ao ver-lhe lágrimas escorrendo rosto abaixo, sentiu
ternura por ele, e disse-lhe: «Ó rapaz, tens algum domínio da escrita, ou
sabes ler?» Dizendo ele que sim, ela estendeu-lhe uma folha, e ele escreveu
estes versos:
O morto salva-se da cova
E nela cai quem sabe e vê.
O ignaro com fala se aprova
E nela tropeça o eloquente.
Vê-se sem sustento o crente
E o ímpio de tudo se provê.
— Que pode fazer a gente?
O Poderoso tudo vê!

Em a rainha Marjana lendo a folha, sentiu compaixão por ele e disse a


Bahrame: «Vende-me este mameluco.» Ele disse: «Minha senhora, não o
posso vender porque vendi todos os mamelucos e não me resta nenhum
senão este.» A rainha disse: «Tens de mo vender ou oferecer.» Mas ele
disse: «Não o vendo nem o ofereço.» A rainha tomou-se de fúrias, gritou a
Bahrame, pegou em Açaad pelas mãos e levou-o consigo para o castelo,
mandando alguém dar o seguinte recado a Bahrame: «Se não zarpas da
nossa cidade hoje mesmo, mandarei destruir o teu barco e apreender tudo o
que possuis.»
Em lhe chegando o recado, ele ficou imensamente aflito e disse: «Esta
viagem está amaldiçoada.» Ao depois, foi ao mercado comprar o que queria
e aquilo de que precisava. Enquanto esperava que a noite entrasse, disse aos
seus homens: «Preparai os vossos mantimentos, enchei os vossos odres de
água doce e os vossos barris. Partimos ao início da noite.» Eles fizeram
como lhes havia sido ordenado e esperaram que a noite entrasse.
Já no que toca à rainha Marjana, pegou em Açaad e levou-o para o seu
castelo. Abriu as janelas que davam para o mar, ordenou às criadas que
trouxessem a refeição e comeram até se fartarem. Em seguida, ordenou-lhes
que trouxessem a bebida e ambos beberam. Deus botou no coração dela o
amor por ele, e ela apressou-se a servir-lhe bebida, até ele já não ter cabeça
no sítio. Então, levantou-se para fazer uma necessidade. Desceu do castelo
até ao átrio e viu uma porta aberta de onde vinha uma luz. Entrou e
caminhou, acabando por dar com um lindo jardim onde havia todos os
feitios de frutos. Embalado e dominado pela aragem, agachou-se por baixo
duma árvore, verteu águas e caminhou até à fonte que havia no meio do
jardim. Lavou as mãos e a cara, mas quando queria voltar, a aragem
embalou-o, e ele estatelou-se no chão a dormir.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
143.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de louvável agir


apropriado, que Açaad se estatelou no chão a dormir em entrando a noite. E
isto foi o que lhe aconteceu.
Já no que toca a Bahrame, o mago, em entrando a noite disse aos homens
do barco: «Preparai os vossos mantimentos, içai as velas e zarpemos.» E
eles disseram: «Assim seja, mas antes temos de encher os nossos odres e
barris de água.» Os homens desembarcaram com os odres e circundaram o
castelo, mas nada encontraram senão o muro do jardim, que treparam para a
ele aceder, e seguiram os rastos de água que os levaram até à fonte. Ao
olharem para ela, viram Açaad estatelado no chão, alheio a si, e
reconheceram-no, ficando radiantes. Encheram os odres, carregaram Açaad
e treparam o muro. Tornaram para o barco a toda a brida e disseram a
Bahrame: «Alvíssaras! Toque o tambor e o trompete com fulgor! Eis o seu
prisioneiro, que a rainha Marjana lhe tirou à força.» E botaram-no aos pés
dele. Em Bahrame o vendo, até voou de alegria, cobriu-os de honrarias e
regozijou-se. Em seguida, deu ordens aos seus servos para içarem as velas.
Continuaram a viagem em direcção ao Monte do Fogo até de manhã.
Já no que toca à rainha Marjana, após Açaad ter saído, esperou um
tempo, e como ele não tornava, levantou-se e foi à procura dele, mas dele
nada soube. Então, acendeu as velas e ordenou às criadas que o
procurassem. Ela, ao descer, viu a porta do jardim aberta, e percebendo que
ele havia entrado no jardim, caminhou até chegar à fonte e viu os seus
chinelos à banda da fonte, no local onde ele havia sido dominado pelo sono.
Percorreu o jardim todo, mas dele nem nova boa nem má. Continuou à
procura até de manhã, quando deu pela falta do barco do mago e indagou
sobre ele. Ao lhe dizerem que havia zarpado naquela noite, ela percebeu
logo que eles o haviam levado, e como tal coisa lhe não era nada agradável,
ela ficou furiosa.
Então, ordenou que aprontassem dez grandes galeras, o que foi feito num
pronto, e ela subiu a bordo de uma delas, levando mamelucos e criadas
vestidos e equipados com trajes e armas de guerra. Ao içarem as velas, ela
disse aos arrais: «Se alcançardes o barco do mago, cobrir-vos-ei de
honrarias e riquezas, caso contrário matar-vos-ei do primeiro ao último.»
Então, os homens acorreram aos conveses, apinhando-se à direita e à
esquerda, e zarparam nos barcos. Viajaram durante aquele dia e aquela
noite, e durante o segundo dia e o terceiro, e ao quarto dia avistaram o barco
de Bahrame, o mago, ainda antes do meio-dia, e rodearam-no, os dez
barcos, ao barco do mago.
Ora, naquele momento, Bahrame, o mago, havia ido buscar Açaad para
lhe dar tareia e o torturar, e de tanta dor que sofria devido à tareia e à
tortura, Açaad implorava socorro e pedia ajuda. Então, Bahrame viu com os
seus próprios olhos que estava cercado pelos barcos, os quais o rodeavam
tal como a brancura dos olhos rodeia a sua negrura, e não lhe restando
dúvidas de que estava perdido, ficou desnorteado e disse a Açaad: «Maldito
sejas, isto é tudo culpa tua.» Então, pegou nele pela mão e ordenou aos seus
homens que o botassem ao mar.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
144.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado, que o mago ordenou aos seus homens que botassem Açaad ao mar
para que ele se afogasse, e disse-lhe: «Juro que morrerás antes de mim!» Ao
depois, agarram-no pelas mãos e pelos pés e atiraram-no ao mar. Como
Deus Todo-Poderoso o quis salvar e conservar-lhe a vida, ao cair no mar ele
afundou-se e pôs-se a esbracejar com as mãos e os pés para se manter vivo,
e continuou, ora se afundando ora vindo à tona de água, debatendo-se com
as mãos e os pés, até que Deus o ajudou e lhe trouxe alívio, fazendo com
que uma onda o atingisse e o fizesse chegar a terra firme, e ele saiu do mar
mal podendo acreditar que estava a salvo.
Ao chegar a terra firme, tirou as roupas, espremeu-as e estendeu-as,
sentando-se nu a chorar devido ao lhe havia acontecido de calamidades,
crueldades e brutalidades. Chorou desalmadamente enquanto esperava que
as roupas secassem.Ao depois, vestiu-as e pôs a caminhar sem saber aonde
ir nem aonde chegar, comendo dos arbustos e das árvores, bebendo da água
dos rios, jornadeando noite e dia.Até que ao cabo de dez dias avistou uma
cidade.Apressou o passo, sabendo que o fim do dia estava próximo e que a
noite já se abeirava, mas fecharam a porta da cidade mesmo na sua cara – e
quis o destino que esta fosse a cidade onde o seu irmão era vizir. Então,
Açaad voltou para trás e foi à procura do cemitério para pernoitar nos
jazigos.Ao lá chegar, foi dar com um jazigo sem porta, entrou e dormiu lá
dentro, apoiando o rosto na manga.
Depois de terem chegado os barcos da rainha Marjana, e de Bahrame, o
mago, haver botado Açaad ao mar, quis o destino que a rainha aprisionasse
Bahrame para o inquirir sobre Açaad, mas o mago jurou-lhe que não fazia
ideia onde pudesse ele estar.A rainha revistou o barco e não encontrou
Açaad. Então pegou no mago e tornou ao seu castelo, querendo torturá-lo e
matá-lo por rancor contra ele por haver sido privada de Açaad, mas ele
comprou-lhe a sua vida com tudo o que tinha de bens e dinheiro, e com o
barco e tudo o que havia nele. A rainha ficou com tudo isto e libertou-o. O
mago saiu na companhia do seu escravo e de mais ninguém. Abasteceram-
se de provisões, arranjaram uma cavalgadura e viajaram por espaço de dez
dias, até chegarem lá pela meia-noite noite à sua cidade, encontrando a
porta desta fechada. Então, procuraram o cemitério e andaram às voltas até
encontrarem um jazigo onde dormir, e ao darem com uma porta aberta,
entraram, e quando estavam prestes a dormir, deram com um homem a
dormir e a ressonar.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
145.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado, que em Bahrame, o mago, entrando no jazigo para dormir, deu
com um homem a dormir e a ressonar – e com cada ronco! – e com o rosto
na manga.Vai Bahrame e levanta-lhe a cabeça, e vendo o rosto reconheceu
quem era. Ora, vendo que era Açaad, soltou um enorme urro e disse:
«Maldito seja aquele por cuja culpa perdi a minha vida, posses, dinheiro,
barco e homens!» Então, atou-lhe as mãos atrás das costas, tapou-lhe a
boca, e ficou à espera que se erguesse a aurora para abrirem as porta da
cidade. Quando assim foi, ordenou ao seu escravo que carregasse Açaad e
foi para sua casa, onde foi recebido pela sua filha Bustane e pela serva
Qawame. Bahrame contou-lhes o que lhe havia acontecido por culpa de
Açaad, como o havia botado ao mar, como havia perdido o seu dinheiro,
posses e barco, e como ontem dera por si no cemitério, onde encontrou
Açaad a dormir e o havia trazido consigo.
Ao depois, ordenou à sua filha Bustane e à serva Qawame que o
levassem para a cave para o torturar e que fossem mais severas em puni-lo
durante todos os dias até que viesse o próximo ano e a altura da
peregrinação ao Monte do Fogo, para o levarem e o sacrificarem no Monte.
Então, soltaram as mãos de Açaad e levaram-no para a cave. Pouco tempo
depois, Açaad acordou e viu-se na mesma cave onde havia estado
inicialmente.Veio Bustane, filha de Bahrame, despiu-lhe as roupas e deu-lhe
tareia. Ele chorou, soltou ais sentindo que a sua alma já se lhe havia ido e
berrou violentamente. Chorava e lamentava-se por ser submetido a tais
torturas e punições, por sofrer de fome, levando a sua alma a se alvorar. E
nisto, declamou uma poesia:
Nada sobrou senão um sopro exausto
E o olhar dum homem pálido de susto.

Ao ouvir a sua poesia, o coração de Bustane teve pena dele, apoderando-


se de si uma inclinação por Açaad, e disse-lhe: «Ó moço, que nome tens?»
Ele disse: «Tu queres saber o nome que hoje tenho ou o nome que outrora
tive?» A moça disse-lhe: «Mas tu hoje tens um nome e antes tinhas outro?»
Ele disse: «Sim.» Ela disse: «E quais são?» Ele disse: «Minha senhora, o
meu nome outrora era Açaad, [O Mais Fortunoso], mas hoje o meu nome é
Ataas, [O Mais Desditoso]39.» E com isto pôs-se a chorar, fazendo a moça
chorar também. Então, ela disse-lhe: «Açaad, já chega, não chores mais.
Por amor de Deus, eu tenho pena de ti, não julgues que sou uma infiel tal
como o meu pai, Bahrame. Eu sou muçulmana como tu, e rendi-me a Deus
pela mão da governanta do meu pai e em segredo, escondendo a minha
rendição do meu pai. Agora peço perdão a Deus pelo que te aconteceu às
minhas mãos, e a partir de hoje, se Deus quiser, farei tudo para que te
salves.» Em seguida, vestiu-lhe as roupas e Açaad ficou radiante,
regozijando-se e dando graças a Deus Todo-Poderoso, que era a causa da
sua salvação.
Ao depois, Bustane, filha de Bahrame, subiu até casa e desceu com um
jarro de bebida para Açaad.Ao depois, fez-lhe um caldo de frango e passou
a fazer-lhe caldos todos os dias, comendo com ele. De ora em diante, todos
os dias lhe dava bebida, alimentava-o com refeições e fazia as orações com
ele no subterrâneo.
Até que um dia de entre dias, a moça Bustane estava em pé à porta de
casa, e eis que ouve um pregoeiro, acompanhado por uma tropa de
mamelucos que lhe seguiam o passo, apregoar o seguinte: «A toda a gente:
ordena o mais grandioso vizir, Amjad, aos habitantes de todas as casas,
moradias e habitações, e segundo o que ordenou o eminente grão-vizir,
quem tenha em sua casa o seu irmão, Açaad, moço cuja descrição é tal e tal,
deve apresentá-lo. Essa pessoa receberá dinheiro em valente quantia e trajes
de honra. Já quem o esconder e o não apresentar, verá a sua casa confiscada
e da sua família e servos será despojado, revestindo-se a real autoridade de
legitimidade para apreender os seus bens e derramar o seu sangue. Quem
adverte isento de culpas fica, e quem avisa justiça pratica, e quem não
acreditar, verá.» Em a moça ouvindo aquilo e a descrição feita, percebeu
que se tratava de Açaad, e foi logo a correr ter com ele para lhe dar parte do
que havia ouvido. Ele largou ais de alegria e disse: «Valha-me Deus, veio o
alívio! Isto é obra do meu irmão Amjad!» E saiu do subterrâneo com a
moça…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
146.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Açaad subiu do subterrâneo e saiu
com a moça porta fora. E Açaad não parou de andar até que deu de caras
com o seu irmão Amjad.Agarrou-lhe o estribo e quando Amjad olhou, disse
aos gritos: «É o meu mano Açaad!» Abraçaram-se e foram rodeados pelos
mamelucos, que haviam desmontado dos cavalos, e Açaad e Amjad ficaram
sem sentidos durante um tempo. [Ao acordarem,] Amjad disse ao irmão
para montar a cavalo, e levou-o até ao rei, a quem deu parte da sua história.
Então, o rei deu ordens para que a casa de Bahrame fosse confiscada,
assim como tudo o que nela havia. Os homens do rei invadiram a casa,
pegaram em Bahrame, o mago, levaram-no ao rei. No que toca à sua filha,
trataram-na com reverência, pois Açaad havia contado ao seu irmão Amjad
o que lhe havia acontecido, as torturas e as viagens a que tinha sido
submetido, assim como o que havia feito a filha de Bahrame, e por isso não
se pouparam a tratá-la com reverência.
Ao depois,Amjad contou a Açaad o que lhe havia acontecido com a moça
[que teve de decapitar], como se salvou de ser enforcado e como se havia
tornado vizir. Em seguida, lamentaram-se um ao outro do quanto haviam
sofrido com a separação e por estarem longe da sua terra.
Ora, Bahrame, o mago, compareceu ante o rei, que ordenou que ele fosse
decapitado. Então, Bahrame disse: «Ó grandioso rei, terei mesmo de
morrer?» Ele disse: «Sim, tens.» E Bahrame disse: «E há alguma coisa que
me possa salvar da sua sentença?» E o rei disse: «Nada te poderá salvar
senão a tua rendição a Deus.» Então, ele baixou a cabeça, e em a erguendo,
deu testemunho de fé, rendendo-se a Deus pela mão do rei, e isto estando
Açaad e Amjad também presentes ante o rei, e ambos ficaram radiantes
com a sua rendição a Deus. Em seguida,Amjad contou a Bahrame o que
lhes havia acontecido a ambos de fio a pavio.
Em Bahrame ouvindo o que eles disseram40, ficou espantado até mais
não com a sua história. E disse: «Meus senhores, a cidade do vosso pai fica
nas Ilhas dos Ébanos, que hoje em dia são governadas pelo genro do rei
Armanus?» Eles disseram: «Sim, fica.» E ele disse: «Eu conheço-as!
Aprontai-vos que eu vos levarei até lá de barco e tratarei de vos
reconciliar.» Ao ouvirem o pai deles ser mencionado, choraram, mas
Bahrame disse: «Meus irmãos, não choreis, porque o vosso destino é que se
venham a reunir de novo, tal como aconteceu a Felisbelo e a Felisbela.»
Amjad e Açaad disseram: «E o que foi que aconteceu a Felisbelo e a
Felisbela?»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
147.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Amjad e Açaad pediram para ouvir
a história de Felisbelo e Felisbela. Então, Bahrame disse: «A história de
Felisbelo e Felisbela é espantosa e maravilhosa.» E Amjad e Açaad
disseram: «Por amor de Deus, conte-nos o que aconteceu a Felisbelo e a
Felisbela, talvez alivie os nossos corações e nos livre de nossas
preocupações.» E ele disse: «Com todo o prazer:»

História de Felisbelo e Felisbela

Ouvi dizer, mas só Deus conhece toda a verdade, que havia um homem
entre os habitantes da cidade de Cufa que dava pelo nome de Rabie ibn
Hâtime, que tinha grande fortuna e a quem não faltava coisa alguma. Foi
abençoado com um filho macho e chamou-lhe Felisbelo.
Um dia, enquanto estava no mercado dos maganos, viu uma rapariga que
estava exposta para venda, de mão dada a uma menina ainda pequena de
ímpar formosura, irradiante beleza e perfeita lindeza. Então, Rabie gritou ao
magano: «A quanto está esta escrava mais a filha?» E este disse:
«Cinquenta dinares.» E Rabie disse: «Redige o contrato, toma o dinheiro e
dá-o ao seu dono.» Pagou ao magano o preço da rapariga, deu-lhe a sua
comissão no valor de cinco dinares, recebeu a rapariga e a filha, e foi para
casa.
Quando a sua mulher, que era filha do seu tio paterno, viu a rapariga,
disse-lhe: «Ó primo, que rapariga é esta?» Ele disse: «Comprei-a agora
mesmo, mas só pela filha que está de mão dada com ela. Fica sabendo que
em ela crescendo não vai haver entre as filhas dos árabes, nem dos persas
ou dos turcos, alguém que rivalize com ela em beleza, perfeição ou
formosura.» Ela perguntou à escrava: «Como se chama a tua filha?» A
escrava respondeu: «Fortuna.» Então, a patroa perguntou: «E tu, como te
chamas?» Ela disse: «Prosperidade.» E a patroa disse: «Falaste verdade:
foste afortunada com ela.» E disse ao marido: «Ó primo, como lhe vais
chamar?» Ele disse: «Escolhe tu o nome.» E ela disse: «Chamemos-lhe
Felisbela.» Ao que Rabie disse: «Que ideia tão feliz a tua.»
Ao depois, ambos criaram aquela pequenita, a Felisbela, juntamente com
Felisbelo, filho de Rabie. Cresceram no mesmo berço, por assim dizer, até
atingirem os dez anos, e cada um era mais belo do que o outro. O rapaz
tratava-a como irmã e chamava-lhe «mana», e ela tratava-o como irmão e
chamava-lhe «mano». Então, Rabie foi ter com o seu filho Felisbelo e
disse-lhe: «Filho, ela não é tua irmã mas tua escrava, e eu comprei-a em teu
nome estavas tu ainda no berço. De hoje em diante, não lhe chames mana.»
E ele disse: «Se assim é, então vou-me casar com ela.» Dito isto, foi ter
com a sua mãe, deu-lhe a saber o que havia ouvido, e a mãe disse-lhe:
«Sim, filho, ela é tua escrava.» Então o rapaz tomou-a, entrou nela e a cada
dia que passava ele a amava mais.
Passaram-se anos e dias e em Cufa não havia rapariga mais bela que ela,
nem mais formosa ou airosa. Aprendeu a ler e a escrever, a jogar xadrez, a
tocar alaúde, no qual era exímia, tal como o era no canto e a tocar pandeiro
e todos os instrumentos que havia. Ela superava qualquer um da sua época.
Um dia de entre dias, estando ela com o seu senhor, Felisbelo, filho de
Rabie, num dos seus convívios, ela pegou no alaúde enquanto bebiam...…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
148.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que a escrava pegou no alaúde e pôs-se
a tocar enquanto cantava estes versos:
Como és o senhor sob cuja graça eu vivo,
A espada com que decapito o inimigo,
Nem de Zayd nem de Amr41 eu preciso,
Só de ti quando me barram o caminho.

Felisbelo ficou extremamente comovido e disse: «Ó Felisbela, pela


minha vida canta com o pandeiro!» Então, ela pegou no pandeiro e cantou
estes versos:
Pela vida de quem em suas mãos me encontrei,
Amor não darei a quem me cobiça,
Refutarei censores e só a vós obedecerei,
Renunciarei aos prazeres e à preguiça.
O amor por vós enterro nas entranhas,
Porque tu, coração, nada estranhas!

Então, o rapaz disse-lhe: «Ó Felisbela, excelente!»


Ora, enquanto estava ele a gozar a boa vida, eis que Al-Hajjaj ibn Yúçuf
Attaqafi42 passa por baixo da janela e ouve o canto da escrava. Então,
puxou as rédeas do cavalo para se deter a ouvir melhor o canto, que era uma
delícia para os ouvidos. Ao perguntar: «De quem é esta casa?» foi-lhe dito:
«É a casa de Felisbelo, filho de Rabie.» Al-Hajjaj foi para sua casa dizendo
de si para si: «Por amor de Deus, tudo farei para apanhar esta rapariga e a
levar ao miralmuminim Abdelmálique ibn Maruane43.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
149.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Al-Hajjaj tomou a firme resolução
de apanhar a rapariga e a enviar para Abdelmálique ibn Maruane, pois,
[segundo as suas palavras:] «Não há no seu palácio quem se iguale a esta
rapariga, nem mais graciosa ou formosa.» Então, convocou a governanta do
seu palácio e disse: «Anciã, vai de imediato à casa do filho de Rabie,
mistura-te com a sua família e servas, e observa a rapariga que ele tem, pois
ela foi afortunada com uma beleza sem igual à face da Terra, e relata-me
tudo o que vires.» E a anciã disse: «Às suas ordens.»
Ao amanhecer, ela vestiu-se de lã, pôs ao pescoço um rosário de madeira,
um manto de lã, levou na mão [um bastão]44 e um odre, e pôs-se a andar
dizendo: «Glória a Deus! Louvado seja Ele! Não há nenhuma divindade a
não ser Deus! Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e
Grandioso!» E continuou com a língua dando glórias, mas no coração tinha
intenções vexatórias, até que chegou a casa de Felisbelo, filho de Rabie, por
volta da oração do meio-dia, e bateu à porta. O porteiro abriu a porta e
disse-lhe: «Que deseja?» Ela disse: «Sou uma mulher pobre, devota e que
ao mundo renunciou. Sabendo que está próxima a oração do meio-dia,
quero fazer as minhas orações nesta casa abençoada.» Então, o porteiro
disse-lhe: «Anciã, esta é casa de Felisbelo, filho de Rabie, não é nenhuma
mesquita ou oratório.» E a anciã disse-lhe: «Já o sabia; não soubesse eu que
era a casa de Felisbelo, filho de Rabie, não teria sido levada a querer entrar
nela. É que eu sou governanta do miralmuminim Abdelmálique ibn
Maruane, e saí para ver as vistas, orar e devotar-me a Deus.» Mas o porteiro
disse-lhe: «De forma alguma a deixo entrar.» Os argumentos correram entre
os dois, palavra contra palavra, e deu-se o acaso de Felisbelo chegar a
casa.A anciã, em o vendo, colou-se a ele e disse-lhe: «Amo, pode alguém
como eu ser impedida de entrar em sua casa, sendo que vou a casa dos
emires e dos grandes e que estes pedem as minhas bênçãos?»
Felisbelo riu-se ao ouvir a sua conversa e disse ao porteiro: «Deixa-a
entrar.» E ela entrou atrás de Felisbelo, e quando ambos entraram onde
estava Felisbela, a anciã cumprimentou-a com os melhores modos, e ao
olhar para ela, ficou atónita [com a sua beleza], e disse: «Minha senhora,
peço para si a protecção de Deus, que fez com que a senhora e o seu amo
fossem semelhantes em irradiante beleza e perfeita lindeza. Ao depois, a
anciã dirigiu-se ao mirabe, pondo-se a fazer orações, prostrações, recitações
do Alcorão e preces, e passou o dia nisto até chegar a noite, quando
Felisbela veio e lhe disse: «Mãezinha, descanse os seus pés um pouco, que
já deve estar cansada de tanto esforço.» E ela disse: «Filha, quem quer
chegar ao Outro Mundo tem de se esforçar neste, senão não pertencerá ao
rol dos que praticam o bem.»
Então, Felisbela trouxe-lhe a refeição e disse-lhe: «Coma da nossa
comida e peça a Deus que me perdoe e tenha misericórdia de mim.» E a
anciã disse-lhe: «Filha, [eu estou a fazer jejum mas]45 tu és jovem e é bom
que comas, bebas e cantes, que Deus te perdoa, pois disse Deus no Seu
venerável livro: ‘Excepto quem se arrepender, crer e praticar o bem,
[porque esses entrarão no Paraíso e não serão injustiçados]’46.»
A rapariga ficou com ela um pouco, antes de ir ter com o seu amo,
Felisbelo, e lhe dizer: «Amo, já viste esta anciã, como é devota e se esforça
por sê-lo? Por amor de Deus, insisto que ela fique, é que no seu rosto há
marcas de devoção e luz.» O rapaz disse: «Arranja-lhe um quarto e não
deixes que mais alguém nele entre, talvez Deus Glorioso e Todo-Poderoso
oiça as suas preces pedindo a nossa bênção e jamais nos separe.»
A anciã passou a noite em orações e a recitar o Alcorão até de manhã. Ao
depois, foi ter com Felisbelo e Felisbela, desejou-lhes os bons dias e disse-
lhes: «Que Deus me conceda a vossa licença.» A rapariga disse-lhe:
«Mãezinha, aonde vai? O meu amo ordenou-me que lhe arranjasse um
quarto só para si.» E disse a anciã: «Que Deus dê vida ao teu amo e traga
eterna felicidade para ambos vós. Gostaria que désseis ordens ao porteiro
para me não impedir a entrada quando vos quiser visitar. Eu vou às
mesquitas e ao locais sagrados fazer orações, e ao depois torno a vós todos
os dias.» Dito isto, ela saiu de casa, enquanto a rapariga, Felisbela, ficou a
chorar por ela se haver ido, sem saber qual a causa por trás das suas visitas.
No que toca à anciã, mal saiu foi a casa de Al-Hajjaj, e beijou o chão ante
ele, que lhe disse: «Que novas trazes?» Ela disse: «Ó emir, vi a rapariga, e
entre as mulheres não nasceu alguma que fosse mais bela do que ela, quer
na voz, na compleição, na doçura da fala ou nos bons modos.» Al-Hajjaj
disse-lhe: «E que pensas tu fazer com ela?» A anciã disse: «Vou tirá-la
daquela casa!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
150.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, que a governanta anciã


disse a Al-Hajjaj: «Vou tirá-la daquela casa e trazer-lha!» E disse Al-Hajjaj:
«Anciã, se o fizeres, de mim receberás abundantes presentes e grandiosas
ofertas.» E ela disse: «Peço-lhe que me dê um mês para o poder fazer.» Ao
que ele disse: «Assim seja.»
Ao depois, a anciã pôs-se a frequentar a casa de Felisbelo, não se
poupando em orações e preces, e a rapariga e o seu senhor tratavam-na cada
vez com mais reverência e admiração. A anciã passou a dormir com a mãe
de Felisbelo, e passava as manhãs e as noites em casa deles. Rabie estava
perdido por ela, assim como todos os da casa, quando a viam venerando
Deus, orando, recitando o Alcorão, velando pelas trevas da noite adentro,
até que lhe surgiu a oportunidade, e um dia de entre dias apanhou-se
sozinha com a rapariga, Felisbela, e disse-lhe: «Por amor de Deus, minha
senhora, quando for aos lugares abençoados nos quais as preces são
atendidas, os lugares onde se fazem pedidos a Deus, gostaria que viesses
comigo para veres a oração dos faquires47, dos velhos e dos novos, para que
faças as tuas preces e peças o que quiseres.» A rapariga disse-lhe:
«Mãezinha, não se esqueça de me levar consigo um dia destes.» Ao que a
anciã disse: «Tenho medo do teu amo.» E a rapariga disse: «Vou ver isso
com ele, se ele me deixa ir contigo.»
Então, Felisbela disse à sua sogra, mãe de Felisbelo: «Minha senhora,
peça ao meu amo para eu sair consigo e com a anciã devota para fazermos
orações e preces com os faquires e visitar os lugares sagrados um dia
destes.» A mãe de Felisbelo disse: «Por amor de Deus, com todo o prazer o
farei.»
Ora, Felisbelo chegou a casa, sentou-se no seu salão, e veio a anciã,
beijou-lhe a mão mas ele não a deixou. Ela pediu muitas bênçãos para ele e
saiu de casa.Ao dia seguinte, ela veio mal Felisbelo havia saído de casa. Foi
ter com a rapariga, Felisbela, e disse: «Ontem rezei três preces para ti com
os devotos e os faquires.» E a rapariga disse: «Quem me dera ter estado
consigo!» E disse a anciã: «Que não percas outra oportunidade, vem agora
mesmo passear e voltas para aqui antes de chegar o teu amo.» Então, a
rapariga disse à sua sogra: «Minha senhora, por amor de Deus, peço-lhe,
deixa-me ir com ela?» A mãe de Felisbelo disse: «Ó Felisbela, receio que o
teu senhor venha a saber.» E a anciã disse: «Por amor de Deus, não a
deixarei sentar-se no chão, ficará de pé e não se vai demorar.» Então, saiu
com a rapariga e levou-a graças à sua artimanha e embuste.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
151.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que a anciã saiu de casa com a rapariga
e levou-a para o palácio de Al-Hajjaj. Pô-la num quarto e foi dar
conhecimento a Al-Hajjaj de que a rapariga havia chegado. Este veio e
quando olhou para a rapariga, viu que ela era dotada de uma compleição
como jamais havia visto igual. Ela, ao vê-lo, cobriu o rosto, mas ele não a
contrariou. Ao depois, convocou o seu camarista e disse-lhe: «Monta com
cinquenta cavaleiros e leva esta rapariga até Damasco num palanquim
fechado em cima dum camelo de corrida, lá vais entregá-la ao
miralmuminim Abdelmálique ibn Maruane. Leva esta carta minha para ele,
traz-me a resposta e despacha-te a voltar.»
O camarista preparou a carga e o seu cavalo, e montou com o seu séquito,
havendo posto a rapariga em cima do camelo, enquanto ela chorava, tão
triste estava seu coração pelo que lhe havia sucedido e por se separar do seu
amo Felisbelo. O camarista levou-a em passo acelerado até Damasco, onde
pediu licença para ser recebido por Abdelmálique ibn Maruane. Deram-lhe
licença e ele entrou, cumprimentou-o com reverência e entregou-lhe a carta.
Em ele a lendo, disse-lhe: «Onde está a rapariga?» O camarista disse: «Nos
arrabaldes da cidade.» Abdelmálique ibn Maruane disse a um dos criados
do califa: «Vai buscar a rapariga e trá-la até mim sem demora.» Assim fez o
criado. Trouxe-a e o califa [mandou] pô-la num quarto. Nisto, vai a irmã
dele e diz-lhe: «Parece que o miralmuminim comprou uma rapariga.» Ao
que ele responde: «Mana, chegou-me uma carta de Al-Hajjaj em que ele
menciona que comprou uma rapariga filha de reis no mercado de Cufa por
dez mil dinares, e foi ela quem chegou agora mesmo. Ó mana, este preço
não a paga, porque ela é única em beleza e formosura.» E a irmã disse-lhe:
«Que Deus te traga muitas mais das Suas bênçãos, ó miralmuminim!»
Ao depois, o camarista entregou a rapariga a Abdelmálique ibn
Maruane48, e ela foi recebida pela sua irmã, que a levou para um salão que
era ímpar, com toda a sorte de tecidos, onde havia um sofá de marfim
chapeado a oiro, sendo o aposento de espaço amplo. Então, a irmã do califa
aproximou-se dela, descobriu-lhe o véu, e quando a viu não escondeu uma
certa inveja, e disse: «Não se enganou quem te trouxe para a sua casa,
mesmo se o teu preço fosse cem mil dinares.» E Felisbela lhe disse: «Minha
senhora de formoso rosto, este castelo é de quem? De reis? E que cidade é
esta?» E ela lhe disse: «No que toca à cidade é Damasco. Quanto ao
palácio, é o palácio do meu irmão, o miralmuminim Abdelmálique ibn
Maruane.» E disse-lhe mais: «Ó rapariga, mas tu já o deverias saber.» E ela
disse: «Por amor de Deus, mas não sabia.» Então, ela disse-lhe: «Quem te
vendeu e recebeu o teu preço não te disse que foi Al-Hajjaj quem te
comprou e que ele te ia oferecer ao miralmuminim?» Em a rapariga
ouvindo tal coisa, chorou derramando lágrimas e disse de si para si:«Meu
Deus, caí na esparrela! Se alguma coisa disser, vão suspeitar de mim e
ninguém vai acreditar no que digo. Mas de um momento para o outro, Deus
vai-me trazer alívio, e será em breve.» Em seguida, sentou-se, e o seu rosto
estava marcado pelo Sol e pela viagem, havendo ficado com as maçãs do
rosto vermelhas, e em seguida a irmã do califa abalou.
Ao se fazer manhã, ela tornou e trouxe-lhe roupas com oiro, colares de
pérolas, esmeraldas, âmbar-gris e de outras jóias. E mal se havia arranjado,
eis que o califa entra e se senta à sua banda. Então, a sua irmã disse-lhe:
«Olha para esta rapariga, Deus Todo-Poderoso criou-a com uma compleição
perfeita.» E o califa disse a Felisbela: «Tira a mão da tua cara, Deus Todo-
Poderoso é o rei do Céu, mas eu sou o califa na Terra.» Mas ela não tirou a
mão da cara, e a irmã disse: «Mano, a sua irradiante beleza e perfeita
lindeza impedem-na.» Em ele se aproximando dela para lhe tirar a mão da
cara, viu quão nobres e roliços eram os seus pulsos, e o seu coração foi
tocado por ela e ficou perdido de amores.
Agradado com o que via nela, disse à irmã: «Mana, não vou entrar nela
senão após três dias, para ela se habituar a ti e se familiarizar contigo. Que
nenhuma serva ou eunuco se recuse a servi-la nem se poupe a conquistar a
sua simpatia.» Dito isto, deixou-a e abalou, enquanto a rapariga ficou
absorta a pensar na sua vida, em ter-se separado do seu senhor Felisbelo, na
sua sogra e no que lhe teria acontecido, até que começou a tiritar de febre.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
152.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que a rapariga foi tomada pela febre,
tremia, abstinha-se de comer e beber, andava pálida e havia perdido a sua
beleza. Deram parte do seu estado ao califa, que ficou destroçado. Os
médicos, os sábios e os eruditos vieram vê-la, mas nem um único houve que
a conseguisse curar ou conhecesse remédio eficaz. E isto foi o que
aconteceu com estes.
Já no que toca a Felisbelo, filho de Rabie, em ele tornando a casa, sentou-
se no seu salão e chamou «Ó Felisbela!», mas ninguém lhe respondeu.
Pouco tempo depois, chamou outra vez, mas nenhuma das escravas
apareceu, visto que cada uma delas havia procurado um sítio onde se
esconder, até que ele, já sem paciência, foi com passos largos até ao salão
da sua mãe, onde a encontrou sentada e com a mão no rosto. Então, disse às
escravas: «Onde está a vossa patroa Felisbela?», mas ninguém lhe
respondeu. Ele ficou um pouco em silêncio e então disse: «Mãe, onde está a
minha mulher?» Ela disse: «Valha-me Deus, a tua mulher está com aquela
que é mais temente por ela do que eu, a anciã devota que visita os faquires e
os xeques, e vai voltar.» Ao que ele disse: «Mas a Felisbela tem esse
hábito? E saiu quando?» E ela disse: «De manhã cedo.» E ele disse: «A mãe
deu-lhe licença para isso?» E ela disse: «Ó filho, foi a escolha dela.» E ele
disse: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo e Grandioso!»
Ao depois, ele saiu de casa, estando fora de si. Montou uma cavalgadura,
foi ao intendente da polícia e disse: «Com artimanha levaram a minha
escrava de casa. Tenho de viajar até Damasco para me queixar ao
miralmuminim Abdelmálique ibn Maruane!» O intendente da polícia disse:
«E quem a levou?» Ele disse: «Uma anciã cuja descrição é tal e tal, com
roupas de lã, trazendo na mão um rosário de pérolas49 e um bastão de
madeira rara. Então, o intendente da polícia disse: «Indique-me quem é a
anciã e eu vou libertar a sua escrava.» Ao que ele diz: «E quem conhece a
anciã?» E o polícia diz: «E quem conhece o que se oculta [senão Deus
Todo-Poderoso]?» Ora, o polícia sabia que ela era a cúmplice matreira de
Al-Hajjaj. Então, Felisbelo disse: «Quem tem a responsabilidade de
encontrar a minha escrava é o intendente da polícia! Vou recorrer a Al-
Hajjaj e vai ver que tenho razão!» E o intendente da polícia disse-lhe: «Vá
ter com ele ou com quem entender.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
153.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, que Felisbelo foi ao


palácio de Al-Hajjaj – e note-se que Felisbelo e o seu pai Rabie contavam-
se entre os notáveis de Cufa – e quando o secretário pessoal expôs o caso a
Al-Hajjaj, ele disse: «Traz-mo.» E ao comparecer ante Al-Hajjaj, este disse
a Felisbelo: «Qual o teu problema?» E Felisbelo disse-lhe: «Passou-se
comigo tal e tal coisa.» Então, ele disse: «Trazei-me o governador
intendente da polícia.» Em este comparecendo ante ele – e note-se que Al-
Hajjaj sabia que o intendente da polícia conhecia a anciã – disse-lhe:
«Quero que encontres a escrava de Felisbelo, filho de Rabie.» E o
governador disse: «Ninguém conhece o que se oculta, senão Deus Todo-
Poderoso.» Então, Al-Hajjaj disse: «Pega num cavalo e agora mesmo vai à
procura da rapariga por estradas e terras afora até que encontres notícias
dela.» Ao depois, voltou-se para Felisbelo e disse-lhe: «Se a tua escrava não
tornar, recompenso-te com dez escravas da casa do intendente da polícia.»
E gritou ao intendente da polícia: «Sai daqui e procura a rapariga!»
Saíram os dois, e Felisbelo estava já sem esperanças de encontrar
Felisbela e desesperado da vida – e tinha de idade catorze anos e nenhum
pêlo se lhe havia plantado nas faces – e pôs-se a chorar e a lamentar-se.
Enclausurou-se em casa às escuras e quedou-se chorando, com sua mãe e
pai ante ele, assim como as escravas, os eunucos, chorando e lamuriando-se
pela rapariga. E assim foi até de manhã, quando o seu pai se abeirou dele e
lhe disse: «Filho, Al-Hajjaj com artimanha levou a rapariga, mas não te
preocupes, de um momento para o outro, Deus vai trazer-te alívio, e será em
breve.»
Felisbelo carregava no seu coração o fardo do desassossego e da tristeza,
em tal estado ficou que já não sabia quem o visitava nem quem o
cumprimentava, quedou-se doente por três meses, andava pálido e havia
perdido a sua beleza, a tal ponto que o pai e a mãe já tinha perdido as
esperanças de que ele viesse a recuperar. Visitaram-no sábios e médicos, e
diziam: «Não conhecemos cura para isto a não ser o regresso da rapariga.»
Entretanto, um dia de entre dias, estava o seu pai sentado, quando ouve
falar de um persa que era médico, cirurgião, sábio e astrólogo. Então, Rabie
disse à sua mulher: «Tragamos este persa para ver o nosso filho, talvez ele
traga o alívio.» E logo procuraram o persa, que compareceu ante eles. Rabie
recebeu-o com reverência, fê-lo sentar-se e disse-lhe: «Veja o que se passa
com o meu filho.» O persa disse [a Felisbelo]: «Dá-me a tua mão.» Tomou-
lhe o pulso, olhou para o seu rosto e riu-se.Virou-se então para o pai e disse-
lhe: «O seu filho nada tem a não ser uma doença de coração.» Ao que o pai
disse: «Sim, doutor, [já o sabíamos].» E ele disse: «Conte-me o que
aconteceu ao seu filho sem nada esconder.» Rabie contou ao persa a história
da escrava Felisbela, como a haviam levado com artimanha e o quão o seu
filho a amava. O persa disse: «Fique sabendo que esta rapariga não subiu ao
céu nem desceu para debaixo da terra, mas está em Baçorá, ou talvez esteja
antes em Damasco, e o seu filho não tem cura se não se reunir a ela.» Rabie
disse: «Ó irmão persa, se reunir o meu filho com a rapariga, vou tê-lo em
grande consideração, e vou-lhe dar dinheiro até se fartar.» O persa disse:
«Em breve isto fica resolvido.» Então, voltou-se para Felisbelo e disse-lhe:
«Não te preocupes e tem ânimo.» Ao depois, disse a Rabie: «Dê-me quatro
mil dinares.» Num pronto, Rabie trouxe dez mil dinares e deu-os ao persa,
que disse: «Falta só uma coisa.» Rabie disse: «O quê?» Ele disse: «Que o
seu filho venha comigo, e por amor de Deus, não tornarei sem a rapariga!»
Rabie disse: «Assim seja.» E o persa disse: «Como se chama o seu filho?»
Ele disse: «Felisbelo.» E o persa [virou-se para Felisbelo e] disse-lhe:
«Filho, senta-te tranquilamente, pois Deus irá reunir-te com a tua rapariga.»
E assim fez Felisbelo.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
154.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Felisbelo se sentou e o persa disse-
lhe: «Tem ânimo e determinação, que nós hoje partimos de Cufa. Por isso,
come e bebe para teres força para a viagem.» Então, Felisbelo pôs-se a
comer e a beber, alimentando esperanças no seu coração e ganhando forças
por espaço de oito dias50. O persa abasteceu-se de tudo o que queria,
comprou tudo de que fosse falto, relíquias, cavalos, camelos e demais
coisas para a viagem.
Ao depois, Felisbelo despediu-se da mãe, do pai e de todas as pessoas de
sua casa, e partiu com o sábio persa para Mossul. Chegados que foram a
Alepo51, não deram com nenhuma notícia da rapariga. O persa prosseguiu
viagem na companhia de Felisbelo até chegar a Damasco, e três dias após a
chegada alugou uma loja e encheu-a de belas mercadorias, porcelanas
chinesas com coberturas de prata, utensílios de boa qualidade e tecidos
requintados, tudo em prateleiras chapeadas, e dispôs à frente destes objectos
frascos que continham todo o género de unguentos e de bebidas, e taças de
cristal, dispôs as relíquias, e vestiu-se com as roupas dos sábios.
Ao depois, vestiu Felisbelo com uma camisa diáfana de Bactro, um
manto turco com bordados a oiro, umas calças de Sayqal, e um cinturão em
requintado tecido de Dabique52. O médico persa sentou-se e disse-lhe:
«Felisbelo.» E ele disse: «Ao seu serviço, amo.» Então, o persa disse: «A
partir de hoje és o meu filho. Por amor de Deus, trata-me como se eu fosse
teu pai e eu trato-te como se fosses meu filho.» E ele disse: «Assim farei,
meu amo.»
Ora, toda a gente em Damasco vinha ver o persa, a sua loja e as belas
mercadorias que lá havia, e as gentes aglomeravam-se para ver Felisbelo,
devido à sua beleza, formosura e doce falar, sendo que o persa passou a
falar com ele na sua língua, e Felisbelo também em persa lhe respondia.
Com isto, as gentes compravam as mercadorias. E o persa pôs-se também a
receitar remédios. Traziam-lhe frascos de águas, ele observava-os e dizia:
«Quem verteu estas águas sofre de tal e tal.» E a pessoa dizia: «É verdade,
meu amo, arranje-me um remédio.» E o persa dizia: «Felisbelo, traz-me tal
e tal.» E passou a resolver o problema das pessoas e nunca errava. Toda a
gente em Damasco acorria a ele, a sua fama alastrou pela cidade e todos
conheciam o seu nome, que era mencionado nas casas dos abastados, dos
emires e dos notáveis, e de todas as bandas vinha gente para o consultar.
Um dia de entre dias, estava ele sentado, quando a meio do dia apareceu
uma anciã montando um burro preto com arreios de prata branca e rédeas
com trabalhos em oiro. Ao passar diante da loja do persa, puxou as rédeas e
parou, gesticulando ao persa para que ele lhe segurasse na mão. Ele
levantou-se, deu-lhe as boas-vindas e segurou-lhe na mão para ela descer, e
sentou-a na loja à sua banda. Pouco tempo depois, ela abeirou-se dele e
disse: «É o médico persa vindo das terras do Iraque?» Ele disse: «Sim, sou,
minha senhora.» Então, ela disse: «Saiba que tenho uma filha com uma
doença muito dolorosa já faz um tempo.» Em seguida, sacou de um frasco
de águas e passou-o ao persa, que olhou para ele e disse: «Minha senhora,
preciso de saber qual o nome da rapariga para poder fazer os cálculos
astrológicos e saber a que horas é melhor ela tomar os remédios.» E a
governanta anciã disse: «Saiba, irmão persa, que ela se chama Felisbela.»
Ele pôs-se a fazer cálculos na sua tábua e disse: «Minha senhora, saiba que
não posso receitar um remédio para a pessoa que verteu estas águas sem
saber onde ela foi criada, porque preciso de saber as diferenças do clima,
por isso dê-me a saber em que terra foi esta rapariga criada e que idade
tem.» E ela disse: «Está com catorze anos de idade e foi criada em Cufa, no
Iraque.» E disse-lhe o persa: «E há quanto tempo está nesta cidade?» E ela
disse: «Há poucos meses.» Ora, Felisbelo ao ouvir o nome de Felisbela,
perdeu os sentidos.
O persa disse à anciã: «Tal e tal dieta e tais e tais remédios serão
apropriados para ela.» E ela disse: «Dê-me o que lhe seja apropriado com a
bênção e ajuda de Deus,» e botou dez dinares. O sábio virou-se para
Felisbelo e ordenou-lhe que preparasse os remédios. Enquanto isso, a anciã
olhou para Felisbelo e disse: «Que Deus te proteja, a tua compleição é bela
e perfeita,» e disse ao sábio: «Ó irmão persa, este é seu filho ou é um
mameluco?» Ele disse: «É o meu filho e a alegria dos meus olhos.» Então,
Felisbelo preparou as coisas para ela, fechou-as [numa caixa], na qual
escreveu o seu nome e introduziu uma pequeno papelito onde escreveu a
tinta de oiro estes versos:
Deus lembra-se do que passámos juntos
Com devotas, ai não que não se lembra!
Foi tempo de fresca união e romance,
Boa vida qual jovem e tenro ramo.
Amor, se estivesse ao meu alcance,
No teu lar buscaria quem amo.

Introduziu a folha na caixa, selou-a e escreveu nela:«Filho de Rabie de


Cufa.» Beijou-a e deu-a à anciã, que pegou nela e se despediu do persa,
tomando o caminho de regresso para o palácio de Abdelmálique ibn
Maruane.
Em ela entrando no palácio, foi aos aposentos da rapariga, pôs o remédio
à beira dela e disse: «Minha senhora, faço saber que chegou à nossa cidade
um médico persa e que eu jamais vi alguém mais erudito do que ele nem
mais conhecedor das doenças e da medicina. Queixei-me a ele das suas
dores e ele soube logo o que era. Ordenou ao seu filho que preparasse um
remédio para si.Valha-me Deus, não há em Damasco nem nas suas
províncias alguém mais belo que ele, nem mais jeitoso, e o seu filho é tão
único como a sua loja.» Ao pegar no remédio, Felisbela encontrou o nome
do seu amo…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
156.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que a escrava Felisbela, ao pegar no
remédio, viu o nome do seu amo escrito, e em o vendo mudou de cor e
disse de si para si: «Não há dúvida, o dono desta loja é o meu amo e veio à
minha procura.» Então, disse à anciã: «Descreva-me o moço, filho do
persa.» E ela disse: «Chama-se Felisbelo, tem uma marca na sobrancelha
direita, veste trajes deslumbrantes e elegantes, é de uma beleza ímpar e de
uma perfeita formosura.» Então, a rapariga disse: «Por amor de Deus, dê-
me o remédio e que Deus me cure.»
Felisbela pegou no remédio, bebeu-o, e disse sorridente: «Abençoado
remédio»,ficando radiante e animada.Em a anciã vendo tal coisa, disse:
«Este é um dia abençoado!» Então, Felisbela disse: «Ó governanta, quero
algo para comer e beber.» A anciã disse às escravas: «Ponde a mesa com
todo o género de coisas e mais alguma.» E eis que nessa altura lhes aparece
Abdelmálique ibn Maruane, e ao ver a rapariga comendo ficou radiante. A
governanta disse: «Ó miralmuminim, felicitamo-lo pela recuperação da
rapariga, que se deve a um médico que chegou à nossa cidade, tão bom que
Hipócrates e Galeno não prestariam senão para ser seus criados.Valha-me
Deus, nunca vi ninguém mais conhecedor que ele da medicina e das
doenças. Com um só remédio, a minha patroa Felisbela ficou melhor e
veio-lhe a saúde.» Então, o miralmuminim disse: «Ó governanta, toma estes
mil dinares para o médico e trata de lhe arranjar os remédios que forem
necessários.» Ao depois, o miralmuminim saiu, contente e radiante pela
recuperação da rapariga.
Então a governanta foi à loja do persa e disse-lhe: «Amo, estão aqui mil
dinares do amo da rapariga para quem ontem receitou um remédio. Saiba
que ela é uma escrava do miralmuminim Abdelmálique ibn Maruane.» E
deu-lhe [o dinheiro com] uma folha que estava escrita, a qual o persa deu a
Felisbelo. Em este olhando para a escrita, soube que era a caligrafia de
Felisbela e leu o que estava escrito: «Da escrava cativa e privada da sua
felicidade bela, enganada pelas tormentas do destino que a separaram do
amado do seu coração, que dá pelo nome de Felisbela, cujo anterior nome
era Fortuna, filha de Prosperidade. A vossa mensagem mais contínuos
suspiros em mim espicaçou e crescente dor se me entranhou, pois deixei de
ter morada dês que do lar fui afastada, e por tanta inquietação e aflição, sou
levada a declamar estes versos:
Ó de quem eu ouvi novas a alma me espicaçando!
O coração atormentando e o corpo se emaciando!
Contínuos boatos trazem lágrimas sem calma
Chorando imprescindível paixão tão pura.
Deixastes-me refém do amor e da amargura.
Jamais imaginaria que voltásseis à minha alma.»

Em lendo a folha, os seus olhos encharcaram-se em lágrimas. Então, a


governanta disse ao persa: «Meu amo, porque chora o seu filho? Que Deus
proteja os seus olhos das lágrimas!» E ele disse-lhe: «Mãezinha, como
poderia ele não chorar? A si estou revolvido a dar conhecimento de
assuntos sobre os quais quero o seu sigilo absoluto. Fique sabendo que a
rapariga lhe pertence, e que ele, Felisbelo, filho de Rabie, de Cufa, é o seu
amo. A recuperação da rapariga a ele se deve e a sua doença à sua ausência.
Ela não tem cura a não ser ele. Por isso, ó senhora dona governanta, fique
com os mil dinares que me trouxe e poderei dar-lhe muito mais. Olhe para
Felisbelo com olhos de misericórdia e compaixão, pois agora ele e eu
somos ambos seus prisioneiros, e está nas suas mãos poder resolver este
problema.»
Ora, a anciã disse a Felisbelo: «O senhor é o amo da rapariga?» E ele
disse: «Sim, sou.» Ela disse: «Acredito, porque ela está desfeita de tanta
saudade sua e por mor de si as lágrimas não secam.» Então, Felisbelo deu-
lhe parte de tudo o que lhe havia acontecido devido à anciã que se fazia
passar por devota, e que ele não havia viajado senão para encontrar
Felisbela. Então, a anciã disse-lhe: «Ó moço, não se preocupe, eu vou ser a
causa da vossa reunião. Que eu pereça se assim não for.» E o persa disse…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
157.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, que o persa disse à


governanta: «Que Deus seja benevolente para consigo e a proteja, cuide de
si e não se poupe em recompensá-la.Veja bem o que aconteceu a Felisbelo,
tenha misericórdia da sua mocidade e beleza, e tenha misericórdia da minha
velhice, e tenha também misericórdia da rapariga e da sua mocidade.» E ela
disse: «Conte comigo.»
Ao depois, a anciã montou na sua cavalgadura e tornou de imediato à
rapariga. Olhou para o seu rosto, sorriu e disse: «Não a censuro quando
chora, nem por haver adoecido por amar o seu amo Felisbelo, filho de
Rabie, de Cufa.» Ao que ela disse: «Sim, ó mãezinha, descobriu a causa das
minhas aflições e consternações. Quem salva uma alma ‘é como se salvasse
toda a humanidade’53, sobretudo quando se trata de um moço e uma moça.»
E a governanta disse: «Por amor de Deus, reunir-vos-ei a ambos e nem que
minha alma pereça!»
Ao amanhecer, a governanta foi ter com Felisbelo e disse-lhe: «Anime-
se, que vou reuni-lo com a sua rapariga, pois o desejo que encontrei nela
por si corresponde ao que sente por ela. Mas passa-se o seguinte, o
miralmuminim quer privar com ela para a ouvir cantar e está impaciente por
isso, só que ela tem-se recusado com as suas doenças e mazelas, as quais
são por mor de si. Se tem coragem e determinação, correrei o risco para vos
reunir.» E mais disse: «Felisbelo, saiba que estão quatro almas em jogo: a
minha, a sua, a do persa e a da rapariga, mas hoje mesmo vou recorrer à
astúcia e urdir uma artimanha para o conseguir fazer entrar no palácio do
miralmuminim e para que possa reencontrar a rapariga, visto que ela não
pode sair do sítio onde está.» Ao que ele lhe disse: «Que Deus a
recompense com o bem.»
Ao depois, a governanta despediu-se dele e foi ter com a rapariga, e
disse-lhe: «O seu amo Felisbelo morre de amor e saudades por si. O que
tem a dizer sobre isso?» Felisbela disse: «Eu também, é como se minha
alma se houvesse ido.» Então, a anciã deitou mãos à obra, pegou numa
caixa contendo o que as escravas do palácio soem usar, tais como fatos e
ornatos, botins, jóias de oiro e prata, e foi ter com Felisbelo, sendo que já
havia passado o primeiro terço da noite. Bateu à porta, entrou e entregou-
lhe em mãos aquilo tudo, e pôs-se a embelezá-lo e a maquilhá-lo. Pintou-
lhe os olhos de negro, soltou-lhe o cabelo, vestiu-o com uma camisa
comprida, diáfana e perfumada, uma calças por baixo, um véu do Iémenee
seguro por uma banda perfumada de manjericão, colares com jóias
incrustadas e tornozeleiras de oiro. Arranjou-lhe o cabelo com tranças e
caracóis, e ele ficou qual a lua cheia à noite, deixando siderado quem o
visse. E ainda lhe pôs nos pés uns botins com brocados a oiro e prata.
Em a governanta terminando de o vestir e arranjar, olhou para ele e ao
ver como ele estava, disse: «Valha-me Deus, está mais belo do que a
rapariga.Agora, caminhe meneando o rabo e estreitando os ombros», e pôs-
se a ensiná-lo como se fazia. Em ele aprendendo e percebendo como se
fazia, ela disse-lhe: «Venho ter consigo amanhã, e se Deus quiser, vou
introduzi-lo no palácio do califa. Vai deparar-se com várias dificuldades ao
passar por camaristas, eunucos, criados e porteiros, por isso, tenha coragem
e determinação, baixe a cabeça e pisque os olhos, mas não fale com quem
quer que seja. Se nos aparecer algum dos criados, baixe a cabeça que eu
respondo por si.Ao passar várias portas, vai encontrar dois corredores com
quartos, um à sua direita e outro à sua esquerda. Siga pelo da esquerda,
conte cinco quartos, e entre no sexto, que é o quarto da sua escrava
Felisbela. Percebeu o que lhe disse?» E ele respondeu: «Escutei e percebi.»
Ao depois, a anciã abalou.
Ao amanhecer, a governanta entrou no palácio, foi ter com Felisbela e
disse-lhe: «Já estive com o seu amo e levei-lhe o que usam as escravas do
palácio. Pu-lo tão belo que ele ficou tal a lua cheia, com inigualável beleza
e porte. Quero trazê-lo hoje, por isso veja como se comporta.» A rapariga
agradeceu-lhe o que ela fazia e deu-lhe algum dinheiro. A governanta
abalou, foi buscar as roupas de que precisava e foi à casa onde estava
Felisbelo. Disfarçou-o, pôs-lhe o véu e disse-lhe: «Tenha coragem!»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
158.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que a anciã disse a Felisbelo: «Tenha
coragem, isto vai ser rápido!» E ele disse: «Às suas ordens.» Ela levou-o
consigo até ao palácio, e ao entrar com ele no átrio, o almocadém
encarregue da porta disse-lhe: «Mãezinha, quem é esta?» E ela disse-lhe:
«Acontece que Felisbela, escrava do califa, deseja comprar uma escrava e
encarregou-me disso. Eis que a trago, é esta rapariga. Felisbela quer vê-la e
se ficar agradada, compra-a, e se não ficar, será devolvida ao seu dono.» O
eunuco disse: «Em nome de Deus, passe.» E a anciã passou e seguiu
caminho porta atrás de porta, até chegar à última porta, quando foi travada
pelo chefe dos eunucos, que lhe perguntou: «Quem é esta escrava?» Ao que
a governanta disse: «A minha patroa quer comprá-la.» E ele disse: «Ó
governanta, ninguém entra senão por ordem do miralmuminim. Leva-a e
volta para trás, porque eu não a deixo entrar, senão a minha cabeça fica a
prémio.» E a governanta disse: «Honrado senhor, use a sua cabeça,
Felisbela é a escrava por quem o miralmuminim está apegado, e ela está em
vias de recuperar a saúde, dando grandes alegrias ao califa. Por isso, não
impeça a sua entrada para não ter problemas.Valha-me Deus, espero que ela
não venha a saber disto, caso contrário será degolado. Ó rapariga, entra e
não o oiças, e não digas à princesa que o chefe dos eunucos não te queria
deixar entrar.Valha-me Deus!» Com isto, Felisbelo entrou de cabeça baixa,
e quis seguir pela esquerda, mas foi pela direita, e quis contar cinco portas,
mas contou seis e entrou na sétima.
Ora, Felisbelo deparou-se com um espaço rico em brocados, com
cortinas de seda bordadas com oiro e prata penduradas nas paredes,
turíbulos com pau d’àquila, almíscar e âmbar-gris, sofás de vários géneros
de seda iraquiana com brocados, e ao cabo do salão estava um sofá onde
Felisbelo se foi sentar, enquanto observava aquele sítio magnificente e
imponente, mal sabendo o que o esperava e julgando nada menos nada mais
estar no salão de Felisbela. E assim estava ele, pensando na vida, e eis que a
irmã do califa entra no salão.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
159.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que a irmã do califa entrou no salão
com a sua escrava. Ao ver Felisbelo sentado num sofá ao cabo do salão,
aproximou-se e disse: «Quem és tu, ó escrava? De onde vens e quem te
introduziu nos meus aposentos sem a minha licença?» Felisbelo não lhe
respondeu nem sequer uma palavra. Ela disse: «Ó rapariga, se fores umas
das concubinas do miralmuminim, e se ele se zangou contigo, eu posso
interceder por ti para que ele se reconcilie contigo.» Mas ele não lhe
respondeu fosse de que maneira fosse. Com isto, ela disse à sua escrava: «Ó
rapariga, fica à porta e não deixes entrar quem quer que seja.» E acercando-
se de Felisbelo, descobriu-lhe o véu do rosto, ficando atónita com a sua
beleza e formosura, e disse: «Ó moça, dá-me a saber quem és, como te
chamas, de onde vens, e quem te introduziu aqui, porque eu jamais te vi
neste palácio.» Mas Felisbelo não deu qualquer resposta.
Com isto, a irmã do califa tomou-se de fúrias, e como tinha as suas
dúvidas, pôs a sua mão no peito dele, e não encontrando seios, ficou ainda
com mais e mais dúvidas. Então, Felisbelo disse: «Minha senhora, sou seu
escravo e peço-lhe que me proteja e me resguarde. Nada me pode salvar se
não perdoar o meu erro e desculpar o meu delito.» Ela disse: «Não te
preocupes. Mas quem és tu e quem te introduziu no meu salão?» Ele disse:
«Princesa, chamo-me Felisbelo, filho de Rabie, de Cufa, e arrisquei a minha
vida por mor da minha escrava Felisbela, que com artimanha foi raptada.
Por mor dela corri riscos e pus minha vida em perigos mil.» E contou-lhe o
que havia acontecido a si e à sua escrava, e como esta havia sido levada
com recurso à trapaça – mas não há necessidade de repetir aqui os detalhes.
Com isto, ela gritou à sua escrava: «Vai ao quarto de Felisbela e diz-lhe: “A
minha patroa convida-te a juntares-te a ela. Hoje és sua convidada.”» E a
escrava foi ao quarto de Felisbela.
Entretando, a governanta foi ter com Felisbela e disse-lhe: «Felisbelo já
chegou?» E ela disse: «Valha-me Deus, ainda não.» Então, a governanta
disse: «Talvez se haja perdido e entrado num salão que não o seu.» A
escrava Felisbela disse: «Não há força nem poder senão em Deus Altíssimo
e Grandioso! Estamos todos perdidos! A nossa morte está próxima!» E
sentaram-se a pensar no que iria acontecer. Enquanto estavam elas nisto, eis
que a escrava entra, cumprimenta Felisbela e diz-lhe: «A minha patroa
convida-te a juntares-te a ela, pois hoje és sua convidada.» E ela disse:
«Vou de imediato.» Nisto, a governanta disse-lhe: «O seu amo deve estar
com a irmã do califa e o seu disfarce foi descoberto.A senhora vai ficar
numa posição vulnerável se a princesa a não perdoar.»
Num pronto, Felisbela ergueu-se e foi ao salão da irmã do califa, que
disse: «O seu amo está aqui comigo. Perdeu-se no caminho e entrou no meu
salão, mas não há razão para ele ter medo ou temores.» Logo, Felisbela
beijou-lhe a mão e pediu bênçãos para ela. Em seguida, Felisbela
aproximou-se do seu amo Felisbelo e em ele a vendo, levantou-se e ambos
se abraçaram com força e perderam os sentidos. E em eles acordando, a
irmã do califa miralmuminim disse-lhes54: «Felisbela, senta-te que temos de
encontrar meio para resolver esta situação com a qual nos deparamos.» E
ela disse: «Senhora minha patroa, a nossa vida está nas suas mãos.» Ao que
a irmã do califa disse: «Por amor de Deus, jamais vos farei qualquer mal.»
Ao depois, virou-se para a sua escrava e disse: «Vai e traz-nos comida e
bebida.» Então, os quatro sentaram-se comendo e bebendo, e eram eles
Felisbelo, Felisbela, a princesa e a sua escrava, e todos comeram e beberam
até se fartarem. Ao depois, sentaram-se a beber, passando os copos de mão
em mão, cada vez com mais alegria e júbilo.
Então, Felisbelo disse: «Senhora princesa, depois de tanta alegria já não
me interessa o que possa acontecer.» E ela disse: «Ó moço, amas
Felisbela?» Ele disse: «Senhora minha, o meu amor por ela foi o que me
levou a arriscar a vida.» Então, a princesa disse: «Ó Felisbela, amas o teu
amo?» E ela disse: «Ó grandiosa princesa, foi por amá-lo que o meu corpo
definhou, que as minhas curvas se apagaram, que fiquei emaciada e pálida.»
E disse a princesa: «Valha-me Deus, vós amais-vos de verdade! Felisbela,
agora canta, diverte-te e bebe!» E ela disse: «Trazei-me um alaúde.»
Trouxeram-lhe um, ela pegou nele para afinar as cordas, começou a tocar
uma melodia que deixaria qualquer mente atónita, e cantou uma poesia:
No fundo do meu coração há um segredo íntimo,
Invisível e escondido por te amar muitíssimo.
Ó tu cuja beleza envergonha a Lua brilhante,
Cujas graças rivalizam com a manhã radiante.
A tua face é o Paraíso divinal, mas inferniza-me o fogo;
A tua saliva é água celestial, mas de sede eu morro.

Então, a princesa bebeu um copo, encheu-o e passou-o ao moço. Em


seguida, ordenou a Felisbela que cantasse, o que a deixou radiante, e ela
cantou uma poesia:
A lua cheia imita-te, mas ela é sardenta.
Brilhas tal o Sol, mas ele está eclipsado.
Ó aquele que é todo de beleza formado,
Cujo olhar o raio rouba e me atormenta,
Possui-me e promete ser meu marido,
Tal nobre pela generosidade possuído.

Então, a princesa bebeu um copo, encheu-o, pô-lo à frente de Felisbela e


disse-lhe: «Canta em honra do teu copo», e esta cantou uma poesia:
Residem no coração mágoa e tristeza,
E a paixão as vísceras frequenta.
É evidente no corpo a magreza
Por tanta aflição na alma sedenta.
Até quando o amor estará presente?
No amador a tortura é residente!

Então, Felisbela bebeu o copo, encheu-o e passou-o à escrava da


princesa.A princesa disse: «Ó Felisbela, o copo está nas mãos da minha
escrava e tu não cantas?» Ao que ela disse: «Às suas ordens.» Então, pôs-se
a tocar alaúde e cantou uma poesia:
Ofereci-lhe a alma que ele tortura!
Não consegui livrá-la dele e agora expiro.
A dor que me causas é tão dura.
Tem dó de mim no meu último suspiro.
Então, a princesa bebeu e continuaram todos em grandes folguedos. Ora,
enquanto estavam assim, eis que lhes entra no salão o miralmuminim.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
160.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que lhes entrou no salão o califa
enquanto se divertiam. Em o vendo, levantaram-se e beijaram o chão,
pondo-se ao seu serviço. O califa olhou para Felisbela e vendo que tinha um
alaúde nas mãos, disse: «Felisbela, foram-se a dor e a aflição, e veio-te a
saúde!» Em seguida, olhou para Felisbelo, que parecia uma escrava, e disse
à sua irmã: «Mana, congratulo-me pela recuperação de Felisbela, mas esta
escrava à tua banda, quem é ela?» E ela disse: «Fica sabendo, mano, que
todas as escravas do palácio têm uma amiga favorita e esta é a de Felisbela,
e se não fosse a sua companhia, Felisbela não estava a comer e a beber.»
Com isto, o califa ficou radiante e o seu coração alegrou-se. Então olhou
para Felisbelo e Felisbela, e veio-lhe uma poesia à cabeça, pondo-se a
declamar estes versos:
Vi rosa a suas faces semelhante,
E flor de faveira a seus olhos semelhante.
Disse: «Maravilhai-vos com a Obra do Senhor!
Porque tudo o que é belo imita o meu amor.»

Ao depois, disse: «Valha-me Deus, ela é mesmo formosa! Tanto quanto


Felisbela. Amanhã vou arranjar um salão para ela à banda do de Felisbela, e
mando pôr lá tapetes, mobília, cortinados, loiça bonita e tudo o que lhe faça
jeito, em honra de Felisbela.» Então, a princesa mandou que trouxessem
comida para o califa, que comeu até se fartar e depois se sentou a beber.
Encheu um copo e fez sinal a Felisbela, que pegou no alaúde e tocou para
ele uma melodia tão excelente que deixava atónita qualquer mente, e cantou
uma poesia:
Obtive tudo o que esperançoso pode esperar,
Trouxe-mo um generoso, para costas não arcar.
Sempre que sofreu perda a minha gente,
O colector piedoso a poupou.
Moisés num monte e a sarça ardente,
Não foi ela quem melhor o salvou?
Tal como ele, ninguém fica apertado
Sem mais tarde lhe vir bom fado.

O miralmuminim ficou tocado até mais não com aquela canção e bebeu
mais, enchendo outro copo, e pondo-se a olhar para Felisbela, como quem
apreciava a sua beleza e perfeita lindeza, e o seu corpo gracioso e
harmonioso, enquanto Felisbela declamava:
Juntassem o orgulho de todos os reis,
Só tu terias motivo para te orgulhares.
Único és em distinção e generosidade.
Teu nome todos conhecem pela tua moral.
Só tu entre reis da Terra de qualquer idade
Provê sem olhar a meios, fiques bem ou mal.
Apesar dos tirânicos inimigos, é tua a vitória,
Porque só tu vives em prosperidade e glória.

O califa ficou mais uma vez tocado pela sua canção e disse: «Valha-me
Deus, que bela é a tua poesia, ó Felisbela.» E elogiou-a com bonitas
palavras. Ao depois, encheu outro copo e disse: «Pela minha vida, ó
Felisbela, tens de cantar em honra do meu copo.» E ela declamou um
poesia, depois de haver afinado as cordas do alaúde:
Meus olhos pingam e as nuvens sem pingo de chuva.
Ó secura do amor, onde está o ar que traz aguaceiro?
Eu e as nuvens parece o mesmo estado de agrura,
Como se nossos olhos fossem iguais, que desvairo!
Ó olhos das nuvens, tuas lágrimas sofrem de secura,
Enquanto meu lacrimejar sem parar dura e dura.

O califa, após absorver as palavras de Felisbela, disse aos gritos: «Bravo,


Felisbela! Que escolha de palavras tão excelente e que falar tão eloquente!»
Continuaram em grandes folguedos, e lá pela meia-noite, a irmã do califa
disse: «Ó miralmuminim, Felisbela ainda tem alguns sintomas da doença
que a afectou, por isso convém alternar o seu canto com alguma conversa.
Oiça esta história que ouvi, oriunda de um livro da antiguidade escrito por
alguém de grande distinção.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
161.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história, para entretermos a noite.» E Xerazade
respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que a irmã do califa falou-lhe de uma
história que havia ouvido oriunda dos livros, e o califa disse: «Conta-ma.»
Ela disse: «Só Deus conhece toda a verdade, mas há muito tempo, havia na
cidade de Cufa um moço que dava pelo nome de Felisbelo, filho de Rabie,
de Cufa; e que tinha uma escrava que ele amava e era amado por ela, que
foi criada dês de pequena com ele e que ao crescer com ele se casou. Mas
apesar do elo que os ligava, ó miralmuminim, sofreram os duros golpes da
vida, aconteceram-lhes dissabores e o destino decretou-lhes a separação.
Ela foi retirada da casa de Felisbelo, sendo privada da sua felicidade, foi
raptada e o seu raptor levou-a a um rei, a quem a vendeu por dez mil
dinares. Ora, a rapariga amava o seu amo, e este também a amava e
perdidamente, a tal ponto que este não hesitou em fazer todos os esforços e
mais algum, a arriscar a vida, e a separar-se da sua família e da felicidade
do lar, para viajar indo à procura dela com o objectivo de se tornar a reunir
a ela. Mas mal a encontrou nem sequer teve tempo de se sentar com ela,
pois o dito rei apareceu e em o vendo não perdeu tempo e ordenou que
fossem mortos, não lhes dando qualquer oportunidade para que fosse feita
justiça, tal foi a pressa com que os condenou. O que tem a dizer, ó
miralmuminim, sobre esta injustiça?»
Abdelmálique ibn Maruane disse: «Valha-me Deus, que coisa tão
estranha! Esse rei deveria ter perdoado, porque tendo poder para julgar, era
obrigado a considerar três factores no caso deles: [em primeiro,] que eles se
amavam e eram casados; em segundo, que eles estavam na casa dele e à sua
mercê; e em terceiro, sendo ele mais poderoso, era seu dever saber perdoar.
O que ele fez não se assemelha ao que um rei faria.» Então, a sua irmã
disse: «Ó miralmuminim, pela virtude de Quem o fez reinar na Terra, oiça o
que Felisbela vai cantar.» E [virando-se para Felisbela,] disse: «Felisbela,
canta-nos um canção com as tuas palavras.» E ela declamou estes versos:
Que destino desditoso, sempre insidioso,
Emaciando corações, enchendo-os de aflições.
Os amantes separando, lhes trazendo calamidade.
Vede bem as lágrimas correndo de tanta saudade.

Com tais palavras, o califa ficou tocado até mais não, e a sua irmã disse:
«Mano, quem se julga a si mesmo tem de ser fiel à sua palavra, e tu
julgaste-te a ti mesmo, tu que és rei da Terra. Glória a Deus Todo-Poderoso,
Rei da Terra e do Céu!» E mais disse: «Ó Felisbelo, levanta-te, e tu
também, Felisbela.» Assim fizeram eles e ela disse: «Ó miralmuminim, este
aqui em pé é Felisbelo, filho de Rabie, de Cufa, e esta aqui é a sua rapariga,
que lhe foi roubada de casa por Al-Hajjaj ibn Yúçuf Attaqafi, que a enviou
para si, e que mentiu na sua carta sem se poupar nisso, mencionando que
havia comprado a rapariga por dez mil dinares a um proprietário local.
Peço-lhe por Hamza, por Aqil e por Abbas55, que os perdoe, os absolva de
qualquer delito e os ofereça como presente um ao outro. Eles bem
merecem, até porque estão no seu palácio protegidos pela sua hospitalidade,
pois comeram da sua comida e beberam da sua bebida, e eu intercedo por
eles e suplico-lhe que poupe as suas vidas.»
Logo, o califa disse: «Falas verdade, porque eu já julguei e proferi a
minha sentença sobre este caso, e eu, quando julgo, nunca volto atrás na
sentença.» Em seguida disse: «Ó Felisbela, este é o teu amo?» Ela disse:
«Sim, é, ó miralmuminim e califa ao serviço do Senhor dos mundos.» E ele
disse: «Não vos preocupeis, ofereço-vos como presente um ao outro.» E
mais disse: «Ó Felisbelo, como soubeste onde estava ela e quem te
introduziu aqui?» E Felisbelo disse: «Ó miralmuminim, escute o que me
aconteceu…»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
162.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, que Felisbelo disse:


«Escute o que me aconteceu, ó miralmuminim, pela virtude do seu pai e do
seu avô, oiça a minha história, que contarei sem nada ocultar.» Em seguida,
contou-lhe tudo o que lhe acontecera, o que havia feito o sábio persa, o que
havia feito a governanta e como ela o havia introduzido no palácio, e como
ele se havia enganado e entrado no salão da princesa, a quem pedira
protecção. O califa ficou espantado com aquilo tudo, e em seguida disse:
«Trazei-me o persa.» Num pronto o trouxeram, e o califa nomeou-o seu
comissário, outorgou-lhe um traje de honra, ordenou que lhe dessem uma
escrava de elevado valor, e disse: «Quem trata assuntos desta maneira deve
estar ao nosso serviço.» Com isto, Felisbelo ficou radiante com o rei, e
Felisbela também. Ao depois, o califa ordenou-lhe que partisse, e a
governanta acompanhou-o, pois foi-lhe oferecida como escrava. Então,
Felisbelo chegou a Cufa, onde se reuniu ao seu pai e mãe, e viveram a mais
feliz das vidas.
Açaad e Amjad disseram: «Valha-nos Deus, o que aconteceu a eles os
dois é deveras estranho e espantoso! Já nos aliviou as inquietações.
Louvado seja Deus a Quem Bahrame se rendeu!56» E naquela noite,
dormiram o mais delicioso dos sonos.
Em a manhã amanhecendo, Amjad e Açaad saíram com Bahrame ao seu
serviço para serem recebidos pelo rei, e eis que os habitantes da cidade
andavam aos pulos e aos gritos. Então, o camarista foi ter com o rei, que lhe
perguntou: «O que se passa?» E ele disse: «Meu amo, um rei chegou à
nossa cidade com o seu exército e soldados montados a cavalo e de espadas
desembainhadas, e nós não sabemos o que pretendem.» O rei convocou os
seus vizires Amjad e Açaad e deu-lhes parte da notícia. Então, Amjad disse:
«Eu vou ter com ele como mensageiro para descobrir o que quer.»
Amjad saiu da cidade e foi aos seus arrabaldes, dando com um enorme
exército e mamelucos montados a cavalo. Em eles vendo Amjad,
perceberam que ele era um mensageiro e levaram-no ao rei. Em Amjad
sendo presente ante o rei e em olhando para ele, viu que era uma mulher, e
baixou a cabeça. Então, ela disse: «Fica sabendo, ó mensageiro, que eu não
tenho qualquer exigência a fazer à vossa cidade senão um moço
mameluco.Vim à sua procura porque me privaram dele, e se o encontrar na
vossa cidade, então não vos preocupeis, mas se o não encontrar, haverá
entre mim e vós um feroz combate.» Amjad disse-lhe: «Ó rainha, qual é a
descrição desse moço e qual a sua história?» Ela disse: «Dá pelo nome de
Açaad e eu pelo de rainha Marjana. Este moço cruzou-se comigo na
companhia de um mercador que não mo quis vender. Então, eu levei-o à
força, mas a noite ainda não se havia findado e ele já não estava comigo.
Quanto à sua descrição, é tal e tal.»
Em Amjad ouvindo tal coisa, percebeu que era o seu irmão, e disse:
«Minha senhora, o alívio está próximo, pois ele é o meu irmão.» Em
seguida, contou-lhe a história deles os dois, o que lhes havia acontecido no
exílio e a razão de terem saído das Ilhas dos Ébanos. A rainha Marjana
ficou espantada com a história e radiante por reencontrar Açaad, e logo
Amjad tornou ao rei e deu-lhe parte do sucedido. Então, o rei e Açaad
saíram, querendo ir ter com a rainha Marjana, mas eis que uma colossal
poeira se ergueu e uma enorme nuvem de pó cresceu.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o rei me poupar e eu
viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
163.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, que Amjad,Açaad e o rei


saíram, querendo ir ter com a rainha Marjana, e eis que a poeira se ergueu,
revelando um exército tão gigante como o mar abundante, todos equipados
e armados. Cercaram a cidade tal como nos olhos a brancura cerca a
negrura, de espadas em riste brilhando quais relâmpagos. Então, Açaad
disse a Amjad: «Que outro exército é este? Sem dúvida, é inimigo, e se se
aliarem à rainha Marjana conquistam a nossa cidade e matam quem nela
estiver, e não haverá volta a dar. Nada resta senão que tu vás ter com eles à
guisa de mensageiro para descobrir o que querem.» Amjad obedeceu ao
irmão, saiu pela porta da cidade, passou pelos soldados de Marjana e
alcançou o exército acabado de chegar, pedindo para ser recebido pelo seu
rei, e em se encontrando ante ele, deparando-se com o pai da sua mãe
Budur, beijou o chão e desejou-lhe longa vida e vigor, e o rei disse: «Fica
sabendo que eu sou o rei Ghaiur, soberano das ilhas, dos mares e dos sete
palácios, e cheguei aqui de viagem porque o destino me afligiu com a
desaparição da minha filha Budur. Nunca mais tornei a ouvir nova boa ou
má dela, ou a encontrar qualquer traço dela.Tendes notícias dela? Ela casou-
se na minha cidade com Cámar-Azzamane, filho de Xaramane, soberano
das Ilhas Khalidane, e jamais recebi deles qualquer carta ou notícia, e muito
sofro por tanto a querer ver. Tendes alguma notícia dela?»
Ao ouvir tal coisa, Amjad baixou a cabeça e soube [sem margem de
dúvida] que este era o seu avô, pai da sua mãe. Então, lançou-se aos seus
pés, beijou-lhe o peito e as mãos, e informou-o de que ele era filho da sua
filha Budur. O rei ao ouvir tal coisa, sentiu ternura por ele, lançou-se aos
seus pés e disse: «Filho, louvado seja Deus que me reuniu a ti.»
Então,Amjad contou-lhe que a sua mãe estava bem e de saúde, assim como
o seu pai Cámar-Azzamane, e que eles estavam numa ilha chamada Ilha dos
Ébanos e que se havia tornado genro do soberano da ilha, o rei Armanus.
Em seguida, contou-lhe a sua história, ao que ele disse: «Vou levar-te a ti e
ao teu irmão para junto do vosso pai e estabelecer a concórdia entre vós,
depois do revés que vos aconteceu, e ficarei convosco por um período de
tempo generoso.» E com isto, não couberam em si de contentes.
Em seguida, Amjad regressou sorridente para dar as boas novas de que se
iriam reunir com o avô, e tornou ao rei para lhe contar a história e este ficou
espantado e ordenou que lhe fosse dada hospitalidade completa, e lhe
fossem dados mantimentos, reses, forragem, camelos e cavalos, e todos eles
aparecem ante o rei, havendo Amjad e Açaad ordenado também que fossem
dados mantimentos ao rei Ghaiur, e enquanto estavam nisto, eis que uma
poeira se levantou…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa», disse-lhe a sua irmã Dinarzade. E Xerazade
respondeu: «Isto nada é comparado com o que contarei, a ti e ao nosso rei,
na próxima noite, se o rei me poupar e eu viver.»
E em sendo a próxima noite, que era a
164.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, termina a tua história.» E


Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que Amjad e Açaad estavam a tratar da


hospitalidade para o rei Ghaiur, estando prestes a sair da cidade, e eis que
uma poeira se levantou e o céu se fechou, e ouviram-se gritos e berros, e
homens cercaram a cidade à roda dos outros dois exércitos. Em o soberano
da cidade vendo aquilo, disse a Amjad [e a Açaad]: «Mas que dia mais
abençoado! Graças a Deus até agora todos se deram bem, mas é melhor que
vades ambos à guisa de mensageiros para descobrir quem são.»
Eles saíram cidade – sendo que já se haviam fechado as suas portas e
tiveram de ser abertas – e cortaram através dos dois exércitos, o da rainha
Marjana e o do rei Ghaiur, até alcançarem o exército acabado de chegar.
Entraram e travaram conhecimento com alguns soldados, deparando-se com
o facto de estes serem afinal amigos seus da cidade das Ilhas dos Ébanos e
que o rei outro não era senão seu pai Cámar-Azzamane, que [em os vendo]
se lançou aos seus pés chorando baba e ranho e pedindo-lhes desculpa, e
abraçou-os com força, até que perdeu os sentidos.
Ao depois, Cámar-Azzamane contou-lhes o quanto havia sofrido de
saudade, e Amjad deu-lhe parte do caso do seu sogro, o rei Ghaiur, e que
ele era o soberano à frente daquele outro exército. Então, Cámar-Azzamane
montou com um séquito de cortesões, e na companhia de Amjad e Açaad
seguiu até alcançar o exército do rei Ghaiur. Amjad seguia mais à frente, e
encontrou o rei Ghaiur a quem deu parte da notícia. O rei Ghaiur cavalgou
até sair do seu acampamento, apeou-se em honra de Cámar-Azzamane, e
ambos, sorridentes e bem-dispostos, abraçaram-se um ao outro. Cámar-
Azzamane contou ao seu sogro o que lhe havia acontecido após ter saído da
sua terra, como se havia perdido no caminho e vagueado durante anos, até
que chegou às Ilhas dos Ébanos. Enfim, contou-lhe tudo o que já contámos
por inteiro, pelo não há necessidade de repetir aqui os detalhes. Ficaram
todos radiantes e jubilosos, e disseram:«Louvado seja Deus por esta
reunião!»
Ao depois, Amjad e Açaad levaram o seu pai Cámar-Azzamane e o rei
Ghaiur até à rainha Marjana. Açaad seguiu à frente deles, e a rainha
reconheceu-o logo e não coube em si de contente por ele estar são e salvo, e
foi com ele cumprimentar o rei Ghaiur e o rei Cámar-Azzamane, que lhe
deram as boas-vindas e enalteceram o seu valor.
Os três reis e alguns dos seus cortesãos entraram na cidade, cujo rei, ao
ouvir da sua chegada, foi logo recebê-los com alguns cortesãos. Beijou-lhes
as mãos e eles agradeceram. Então, Cámar-Azzamane aproximou-se do rei
da cidade para lhe tecer elogios e fomentar amizade com ele. Ficaram todos
muito contentes uns com os outros, espantados com estas coincidências
espantosas, e o soberano da cidade mandou estender as mesas para oferecer
banquetes com comidas e doçarias, e quando os reis estavam prestes a
começar a comer, eis que o mundo se encobre…

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o prestigiado rei me
poupar e eu viver. Será ainda mais tocante, espantoso, maravilhoso e
prazeroso, com palavras mais belas e frases mais singelas.»
E em sendo a próxima noite, que era a
165.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que estando os reis prestes a começar a
comer, eis que o mundo se encobre, o ar se enegrece, a poeira se levanta até
o céu se fechar, e o mundo se revira com os gritos de soldados exibindo
dentes brilhantes e lanças cintilantes, os cavalos relinchando e as espadas
luzindo como o mar abundante. Todos os cavaleiros e soldados estavam
equipados, vestidos de negro em sinal de luto, e no meio deles estava um
ancião entrado em anos, com uma barba que lhe dava pelo peito, trajado de
negro, vestindo-se de luto.
Ao verem este exército grandioso e vultoso, ficaram espantados, e
espantado também ficou o soberano da cidade, e disse ele: «Que dia o de
hoje, a cada hora chega-nos um exército! Graças a Deus que todos se vão
dar bem e ser amigos, mas este exército gigante que fechou o céu e o
horizonte, não sei quem são, mas sejam quem forem, não nos preocupemos,
porque somos três exércitos.» E estavam eles com estas conversas, e eis que
um mensageiro do exército acabado de chegar entra na cidade.Ao
comparecer, beijou o chão ante os reis, que eram o rei Ghaiur, o rei Cámar-
Azzamane, a rainha Marjana e o rei soberano da cidade, cujo nome era
Nardexá57. O mensageiro cumprimentou-os e eles retribuíram-lhe o
cumprimento, e perguntaram-lhe que mensagem trazia, ao que ele disse:
«Este rei é do país dos persas, do oriente interior, e há vários anos perdeu
um filho. Como ouviu que o seu filho se tornou rei, anda à procura dele
terras afora, e se o encontrar na vossa cidade, então não vos preocupeis,
mas se o não encontrar, arrasará a vossa cidade e lançará as suas pedras ao
mar.» Um dos reis disse: «Quem é este rei e como se chama?» E o
mensageiro disse: «Sua alteza chama-se Xaramane, soberano das Ilhas
Khalidane, e perdeu o seu filho Cámar-Azzamane faz vários anos. Há muito
tempo que este está desaparecido e o nosso rei não sabe notícias dele, assim
juntou estes soldados todos, atravessa as terras e cada cidade onde não
encontra o filho, arrasa-a. Que dizeis vós?»
Ao ouvir tais palavras, Cámar-Azzamane largou um grito tremendo e
caiu sem sentidos. Ao acordar, chorou desalmadamente e disse: «Ai,
paizinho!» e olhou para Açaad e Amjad e disse-lhes: «Filhos, ide
cumprimentar o vosso avô, que é o meu pai, o rei Xaramane, que até hoje
continua vestido de negro em sinal de luto.» Em seguida, contou ao
presentes o que lhe havia acontecido nos tempos de mocidade, como havia
saído de casa do seu pai sem ele lhe dar licença, e tudo o que lhe havia
acontecido. Eles ficaram todos espantados e tremeram de comoção, e
[disseram:] «Isto tem de ser escrito a tinta de oiro.»
Então,Amjad e Açaad saíram na companhia do mensageiro, e depois
deles veio Cámar-Azzamane e os outros reis, e chegaram até junto do rei
Xaramane, e viram que ele era um ancião entrado em anos, já marreco e
vestido de negro, e beijaram o chão ante ele. Como Amjad e Açaad haviam
ido à frente, tinham-no inteirado da história toda e ele deu graças a Deus
Todo-Poderoso por reunir quem se havia separado. E em o seu filho Cámar-
Azzamane chegando, ele levantou-se para o receber, com as lágrimas
caindo barbas abaixo, e beijou-o, não parando de chorar, e Cámar-
Azzamane também chorou, assim como Açaad, Amjad, todos os reis e toda
a gente presente. Com isto, o rei Xaramane perdeu os sentidos por um
tempo, e ao acordar disse: «É mesmo verdade, meu filho Cámar-Azzamane,
que nos conseguimos reencontrar antes de eu morrer?» E declamou uma
poesia:
Jurei às pálpebras que lágrimas se dispersarão
Graças à vinda de mensageiro fraterno.
No amor por vós sou fiel até mais não,
Mesmo que muito sofra no Inferno.

Em seguida, abraçou-o uma segunda vez, e uma terceira, falou-lhe das


saudades que havia sentido e perguntou-lhe o que lhe havia acontecido
durante aquele espaço de tempo, e Cámar-Azzamane contou-lhe tudo de fio
a pavio – e não há necessidade de repetir aqui os detalhes – e contou-lhe
também como se havia separado dos seus dois filhos Amjad e Açaad, da
morte à qual os havia condenado, da separação e da reunião de todos eles
naquele lugar. O rei Xaramane ficou espantado até mais não, e voltando-se
para o soberano da cidade agradeceu-lhe e teceu-lhe elogios, disse-lhe para
tornar para a sua cidade, e mais lhe disse: «Nós agora todos juntos somos
um povo imenso.» Os reis agradeceram-lhe e elogiaram-no, despediram-se
dele e ele tornou à sua cidade com os seus cortesões. Então, o rei Xaramane
e o seu filho Cámar-Azzamane voltaram-se para a rainha Marjana, teceram-
lhe elogios e disseram-lhe para ela tornar para o seu país. Prestaram-lhe
juramento, e ela deles se despediu e com o seu exército para o seu país
partiu.
Cámar-Azzamane partiu na companhia do seu pai [, o rei Xaramane], dos
seus filhos [Amjad e Açaad] e do rei Ghaiur [, seu sogro], e continuaram
viagem até chegarem às Ilhas dos Ébanos, e isto após uma árdua e penosa
travessia que durou quatro meses inteiros. Ao chegarem à Cidade dos
Ébanos, Cámar-Azzamane entrou nela, enquanto o rei Xaramane e o rei
Ghaiur acamparam nos arrabaldes da cidade. Cámar-Azzamane levou os
seus filhos e foi ter com o seu [outro] sogro, o rei Armanus, e deu-lhe parte
de que se havia reunido aos seus filhos, ao seu pai Xaramane e ao pai da sua
mulher Budur, o rei Ghaiur. Com isto, o rei Armanus ficou espantado até
mais não e muito comovido, levantou-se e cavalgou [para receber os
convidados que estavam nos arrabaldes], e mandou que lhes trouxessem
mantimentos e o que a hospitalidade exigia.
Tanto Amjad como Açaad, cada um deles foi ter com a sua respectiva
mãe, lançou-se ao pés dela e beijou-a, chorando e berrando, e cada uma das
mães abraçou o seu filho e chorou. Ao depois, Amjad deu a saber à sua mãe
[, Budur,] que o seu avô, o rei Ghaiur, [pai de Budur,] havia vindo, e ela
ficou radiante.
Em Cámar-Azzamane e Armanus chegando ao pé do rei Xaramane e do
rei Ghaiur, estes levantaram-se para os receber, e saudaram-se uns aos
outros. Em seguida, veio a comida e comeram todos juntos. Quando
acabaram, sentaram-se à conversa, confraternizando e espantando-se com
aquelas coincidências espantosas e estranhas novas, e assim ficaram por
alguns dias. Então, o rei Ghaiur foi visitar e saudar a sua filha Budur, pois
morria de desejo de a ver, e com isto passou-se um mês, após o qual Cámar-
Azzamane privou com o seu pai, Xaramane, e disse-lhe: «Que devo fazer?»
E ele aconselhou-o.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou. «Que
história tão deliciosa, ó mana, tão boa e tão prazerosa», disse-lhe a sua irmã
Dinarzade. E Xerazade respondeu: «Isto nada é comparado com o que
contarei, a ti e ao nosso rei, na próxima noite, se o prestigiado rei me
poupar e eu viver. Serão palavras mais tocantes, espantosas e
maravilhosas.»
E em sendo a próxima noite, que era a
166.ª Noite

A sua irmã Dinarzade disse-lhe: «Ó mana, se não estiveres a dormir, por


favor termina a tua história.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, senhor de discernimento


acertado e louvável agir apropriado, que Cámar-Azzamane pediu ao seu pai
que o aconselhasse e puseram-se de acordo sobre o que fazer, e já era de
noite quando tomaram a sua decisão. Então, Cámar-Azzamane ordenou ao
rei Ghaiur que tornasse com a sua filha Budur e o com o filho dela, Amjad,
para a cidade deles – que era cidade dos mares e dos sete palácios – e que
entronizasse o filho da sua filha, o que o rei Ghaiur aceitou, dizendo: «Já
sou um ancião entrado em anos e é mais apropriado que seja Amjad, filho
da minha filha, a reinar.» Em seguida, Amjad vestiu o traje real e despediu-
se do seu pai, Cámar-Azzamane, assim como se despediu do seu irmão, do
seu avô [, o rei Xaramane], do seu pai58 e de toda a gente.Ao depois, partiu
em viagem com o seu avô [, o rei Ghaiur], a sua mãe, Budur, e os seus
exércitos, até que chegaram às ilhas, aos mares e aos sete palácios. Amjad
entrou na cidade, sentou-se no trono que era do seu avô e reinou.
Após a partida do rei Ghaiur, de Amjad e da sua mãe, Budur, Cámar-
Azzamane ordenou a Açaad que vestisse o traje real e se sentasse no trono
da cidade do seu avô Armanus [, nas Ilhas dos Ébanos]. E disse Armanus:
«É o que eu quero, pois já sou um ancião entrado em anos e é mais
apropriado que seja Açaad, filho da minha filha, a reinar.» Então, Açaad foi
entronizado e [Cámar-Azzamane] deu-lhe conselhos relativamente ao seu
avô [Armanus] e à sua mãe Hayat-Annufus.
Ao depois, o rei Cámar-Azzamane aprontou-se para partir com o seu pai,
o rei Xaramane, e disse-lhe: «Pai, eu não quero mais mulheres nem filhos,
só quero estar consigo.» E despediu-se da sua mulher Hayat-Annufus e do
seu filho Açaad, e partiu com o seu pai, até que chegaram às Ilhas
Khalidane, e a cidade havia sido decorada para os receber, e tanto o nobre
como o plebeu não coube em si de contente com a sua chegada. Montaram
as mesas e fizeram festas e banquetes. E assim foi e assim aconteceu –
Glorioso seja Aquele que o destino maneja, o Criador de tudo o que seja. E
continuaram em festas e folguedos sem parar. Ao voltarem de viagem, eles
encontraram-se com alguns dos seus súbditos, que os puseram a par do que
havia acontecido na ausência deles. O rei Xaramane deu esmolas, presentes,
e generosamente ofereceu dinheiro aos pobres, aos órfãos e às viúvas.
Ao depois, Cámar-Azzamane foi entronizado e passou a reinar, dando
ordens, emitindo sentenças e colocando restrições, ocupando-se de todos os
assuntos do reino nas Ilhas Khalidane. E tal era o seu sentido de justiça, que
libertou os presos, revogou os impostos aduaneiros, acabou com a opressão
e a injustiça sofrida pelos pobres e necessitados, e a sua fama chegou a
todos os súbditos. Ele e o seu pai continuaram durante muito tempo a
praticar a justiça, a generosidade com todos os súbditos, dando e oferecendo
dinheiro e bens em largas quantidades. Mais tarde, o rei Xaramane foi
entregue ao perdão de Deus, passando o seu filho Cámar-Azzamane a ser o
único rei durante a passagem dos dias e das noites.
Apêndice II
História do terceiro ancião
No primeiro volume há uma sucessão de histórias contadas a um génio por três anciões.
Curiosamente a História do terceiro ancião, que faria sentido seguir-se às outras duas, não
aparece no manuscrito mais antigo, assim como nos outros do ramo sírio, sendo só mencionado
que «o terceiro ancião contou uma história ainda mais estranha e espantosa do que as outras
duas» (8.ª Noite). Possivelmente, esta história nunca existiu nas versões mais antigas, tendo sido
adicionada tardiamente de forma a satisfazer o expectável interesse dos ouvintes destas histórias.
Para satisfazer a curiosidade dos leitores, decidiu-se incluir duas versões deste conto em
apêndice. A que neste consta é retirada do manuscrito Ms. Bodl. Or. 550-551 da Bodleian Library
(Oxford). Na edição de Bulaq consta uma versão extremamente reduzida desta versão e com
pouquíssimos detalhes, apenas com uma vintena de linhas.

Quando o génio ouviu esta história, ficou espantado até mais não e disse
[ao segundo ancião]: «Sabes o nome dessa génia?» E ele disse: «Sim, sei,
ela disse-me que dava pelo nome de Carcaza, filha de Dahnaxe, [e disse-
me]:“Tenho um irmão que dá pelo nome de Caxecaxe, e nós habitamos em
altas montanhas negras, nas fontes, nas grutas e nas árvores.” E descreveu-
me o lugar como sendo tal e tal.» E após o génio ouvir tal descrição, disse:
«Ó ancião, foi com a minha filha que te casaste e ele contou-me a tua
história. Eu e o meu filho íamos hoje ter com ela, para ela desencantar os
teus irmãos, mas por causa deste mercador aconteceu-nos o que aconteceu,
e ele matou o meu filho, irmão da tua mulher, pior mal não podia ele ter
feito, mas eu concedo-te a vida do mercador, porque és meu genro, marido
da minha filha, mas antes quero ouvir a história do ancião que traz consigo
uma mula»59. Em o dono da mula ouvindo estas palavras do génio,
aproximou-se dele e disse:

Ó génio, fica sabendo que nada há de mais espantoso que a minha


história, e por isso esta deveria ser escrita a tinta de oiro. Fica sabendo, ó
génio, que esta mula é a minha mulher, filha do irmão do meu pai, e que eu
a amava enormemente e ela a mim também, mas o meu amor por ela era na
essência e na aparência, enquanto ela, pelo contrário, mostrava-me amor
nas aparências, mas só Deus Altíssimo conhece todas as confidências. Até
que um dia de entre os dias, cheguei a casa, após ter estado fora em viagem
por espaço de alguns dias, e em chegando de viagem, ao entrar em casa,
encontrei com a minha mulher uma rapariga alta e larga. Então disse-lhe:
«De onde te veio esta rapariga?» Ela disse: «Ó primo, comprei-a no
mercado por vinte dinares e disse para mim mesma:“Vai-me fazer
companhia, porque me aborreço até à morte por me sentir sozinha.” Mas se
o que paguei te pesa muito nas contas, eu vendo algumas jóias minhas e
dou-te o valor que ela custou.» Ao que eu lhe disse: «Ó prima, eu sacrifico-
me por ti e é para isso que o meu dinheiro serve.» E ela disse: «Ó primo, se
eu não soubesse que ela era uma escrava habilidosa e laboriosa, não a teria
comprado, mas ela é uma grande ajuda na lida da casa, e quando vou para a
cama, ela vela por mim e faz-me massagens até eu adormecer.» E disse-lhe
eu: «Tudo bem, mas hoje quero que vás aos banhos e deixes a rapariga em
casa a cozinhar para nós até voltares.» E ela disse: «Eu tomo banho em
casa, não há necessidade que eu saia para ir aos banhos, para as pessoas na
rua se porem a olhar para mim enquanto dizem:“Vede, é a mulher de
fulano.” Que desonra seria, ó primo.» E eu disse: «Está bem, assim seja.»
Então, ela foi aquecer água, lavou-se e vestiu-se.
Em a noite entrando, a escrava trouxe-nos o jantar e nós comemos quanto
nos bastava. Ficámos sentados à conversa, nós os dois, enquanto a escrava
ficou à parte. Com o avançar da noite fomos dormir, mas estando eu
acordado, abri os olhos e não vi a minha mulher. Então, levantei-me e fui
até ao armazém onde estava a rapariga, e eis que oiço uma voz qual trovão
de um homem que dizia: «Ó maldita, esqueceste-te de mim até agora, não te
lembraste de mim enquanto eu estava sozinho na cama. Pelo código de
honra dos negros, não volto mais a estar contigo nem me tornas a ver neste
sítio, ó cadela, ó galdéria! Entre mim e ti não há mais nada! Vai-te embora e
arranja outro.» Tudo isto se passava enquanto eu estava atrás da porta a
ouvir, e quando consegui ver quem falava, eis que era a «escrava» que eu
havia visto com a minha prima, enquanto esta estava especada ouvindo
aquelas palavras, e disse a minha prima: «Ó Saíde, senhor meu, não te
enfureças comigo! Tu és a minha única bênção e eu não amo senão a tua
beleza. Diz-me o que desejas e eu farei com que aconteça.» E ele disse-lhe:
«Não tenho outro desejo senão que largues esse chulo cornudo para
ficarmos os dois juntos, sem que te separes de mim nem eu de ti.» Ao que
ela disse: «Então toma esta faca e degola-o, e levamo-lo para o botar ao
Tigre.» E ele disse: «Quanto a matá-lo, não o faço, não é coisa que eu faça.»
E ela disse: «Valha-me Deus que tu não tens coragem de matar o meu
marido, nem tens o brio dos heróis, mas eu vou-te mostrar como lhe vou
fazer para ele ficar quietinho.»
Ao ouvir-lhe tais palavras, disse para mim: «Bem gostaria de saber o que
me vai fazer esta traiçoeira.» Em seguida, voltei para o sítio onde estava
deitado e fiquei de guarda, e eis que ela veio para junto de mim, e vendo-me
a dormir, disse-me aos ouvidos: «Estás acordado ou a dormir?» E disse-lhe
eu: «Estou a dormir, mas tive um sonho e acordei. Até tremo de medo de
pensar nele!» E ela disse: «Que sonho foi esse?» Eu disse: «O meu sonho
tinha a ver com as putas que atraiçoam os maridos fiéis.» Ora, em ela
ouvindo estas palavras, levantou-se, pegou numa taça de cobre que encheu
com água, pondo-se a tecer conjuros sobre ela, fazendo com que a água se
pusesse a fervilhar como se estivesse ao lume, e borrifou-me, dizendo:
«Pela virtude destes nomes, conjuro para que saias dessa forma humana e
tomes a forma canina.» E mal acabou ela de dizer estas palavras, sacudi-me
e estremeci, e eis que dei por mim sendo uma cadela preta.
Ao depois, ela abriu a porta para me fazer sair, e saí porta fora espantado
com a minha forma, enquanto os cães ladravam comigo e me mordiam,
deixando o meu corpo ferido e despedaçado. Ao raiar do dia, fui ao
mercado onde os cozinheiros preparam refeições, e todos os que me viam
repeliam-me e batiam-me.Até que entrei na loja de um cozinheiro, que era
um homem de bem, com uma barba branca como lingotes de prata. Em ele
vendo os cães a ladrarem comigo, pegou numa cachaporra para lhes bater e
enxotou-os. Então, pegou num naco de carne e botou-o no chão para mim, e
como o naco ficou com terra agarrada, eu não quis pegar nele e não o comi.
Em ele vendo que eu não comia o que estava no chão, pegou numa tigela,
pôs-lhe uma açorda com pão e caldo, juntou-lhe quatro nacos de carne, e
deu-me a tigela para comer. Então, acerquei-me dela e comi até ficar cheio,
e ao contrário dos cães pegava na comida com as mãos, o que deixou o
cozinheiro espantando com o meu caso. Até que veio o fim do dia, e o
cozinheiro quis fechar a sua casa de pasto para ir para casa, e quis pôr-me
fora. Fiquei com medo dos cães e disse-lhe por sinais: «Eu passo a noite
aqui.» Ao que ele disse: «Passas a noite aqui.» Abanei a cabeça e ele
percebeu que eu lhe dizia: «Está bem.» Deixou-me ali, fechou a loja, foi
para casa, e assim passei a noite dentro da loja. Até se fazer manhã, quando
veio o cozinheiro, abriu a loja, acendeu o lume, e pôs-se a cozinhar. Vieram
as pessoas para almoçar, e davam-lhe cobre por prata, porque ele não sabia
contar dinheiro. Estando eu ao longe a vê-lo, aproximei-me da caixa onde
ele punha os pagamentos, e todos os clientes lhe davam meia moeda de
cobre em vez de prata, ou uma moeda de bordos cortados, mas eu lhe dizia
por sinais: «Isto é cobre», e ele percebia que lhe dizia coisa útil. Então,
devolvia a moeda ao seu dono e este pagava-lhe o devido.Assim, passei a
contar para ele os pagamentos, e ao fim do dia ele só encontrava na caixa
moedas de prata, e não cobre ou moedas de bordos cortados.
Continuei desta maneira até que passou um mês. Um dia de entre os dias,
o escravo do cozinheiro foi a casa deste e deu conhecimento à sua família
do meu caso, deixando-os espantados até mais não. Até que o mestre
cozinheiro foi para casa e a sua filha disse-lhe: «Ouvi falar da cadela que o
pai tem na loja e gostaria de vê-la.» E ele disse: «Como queiras, amanhã
trago o cão para casa.» Na manhã seguinte, o cozinheiro chegou à loja,
abriu-a e pôs-se a vender. Até ao fim do dia, quando me levou com ele para
casa, rechaçando os cães que se aproximavam de mim.
Ora, em a filha me vendo, cobriu o rosto para eu não a ver e disse:
«Quem é este que o pai trouxe para nossa casa?» E ele disse-lhe: «Este é o
cão de que falaste.» Ao que ela disse: «Pai, este não é um cão, é um ser
humano como nós.» «Quem te contou isso?» Ela disse-lhe: «Paizinho,
passa-se que foi a mulher dele quem lhe fez isto, mas se Deus quiser vou
desencantá-lo.» E o pai disse-lhe: «Se sabes fazer alguma coisa, fá-lo e
desencanta-o, caso seja verdade o que dizes.» Ao que ela disse: «Com uma
condição, se o desencantar, vou enfeitiçar-lhe a mulher, que foi quem lhe
fez isto.» E o pai disse: «Assim seja.» Em ouvindo a resposta do pai, a filha
pegou numa taça, encheu-a de água, pôs-se a tecer conjuros sobre ela,
fazendo com que a água fervilhasse e largasse espuma tal como um tacho
ao lume, e disse: «Por Deus e pela virtude destes nomes, se ele foi criado
com esta forma, então que fique como está, mas se foi enfeitiçado, pela
virtude destes nomes que eu pronunciei, que torne à sua forma humana tal
como dantes.» – E borrifou-o com a água. – Então, sacudi-me e estremeci, e
tornei a ser como dantes, tal como Deus Todo-Poderoso me havia criado.
Então, disse-me a filha do cozinheiro: «Pega nesta taça», e pronunciou
por cima dela palavras que eu não compreendi, e disse: «Pega nela e vai ter
com a tua mulher, e em ela abrindo a porta, vais borrifá-la com esta taça de
água, e ela vai tomar a forma de qualquer animal que queiras mencionar.»
Ao depois, beijei-lhe a mão, peguei na taça e saí. Caminhei até chegar à
porta de casa, bati nela e em a minha mulher me vendo, disse: «Donde
vieste e quem foi que te desencantou?» E ao ver a taça na minha mão, quis
enganar-me, mas eu fui mais rápido que ela, borrifei-a e disse-lhe: «Que
sejas uma mula tordilha.» E ela sacudi-se e estremeceu, tornando-se como a
vês. Então, peguei nela, pus-lhe uma albarda e alforges cheios de areia para
ficar bem carregada, e como vês dediquei-me a martirizá-la fazendo-a
percorrer as campinas e os desertos. Então, passei neste lugar e vi estes dois
indivíduos sentados com este mercador. Cumprimentei-os e eles
devolveram-me os cumprimentos. Ao depois, perguntei-lhes porque
estavam sentados neste lugar, e eles contaram-me a história do mercador e
do que lhe havia acontecido contigo, e eu disse: «Valha-me Deus, não
arredo pé até ver o que se vai passar entre ti e este mercador.» E vieste tu e
nós os três contámos-te o que se havia passado connosco, na condição,
estabelecida entre nós e tu, de que por cada história que te deixasse
espantado, tu lhe concederias o perdão de um terço do castigo deste
mercador.»
Ora, o génio ficou espantado até mais não ao ouvir aquela história.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, interrompeu a sua história e


disse: «Na próxima noite, se o rei me poupar e eu viver, terminarei a
história e contar-vos-ei o que fez o génio ao mercador e aos três anciões,
àquele que tinha uma gazela, o dos dois cães e o da mula. É uma história
espantosa, estranha, tocante e maravilhosa.» E em raiando o dia, o rei saiu e
foi para o Conselho como era seu hábito. Até que ao cair do dia, Dinarzade
disse à sua irmã: «Se não estiveres a dormir, por favor conta-nos um dos
teus belos contos.» E Xerazade respondeu: «Com todo o prazer:»

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado e bem guiado, que o génio, em ouvindo


aquela história, ficou espantado até mais não. Libertou o mercador, ordenou
à sua filha que desencantasse as duas cadelas que eram os irmãos do
homem, assim como a gazela e a mula, e ela fez o que lhe havia sido
pedido, e estes arrependeram-se do que haviam feito, dos seus pecados, e
Deus perdoou-lhes o passado, e cada um deles seguiu à sua vida, e o génio
perdoou o mercador e não o matou pelo sangue derramado do seu filho, e
assim o mercador seguiu à sua vida. E assim acaba a história deles todos, ó
rei dos tempos, mas só Deus conhece toda a verdade.
Apêndice III
História do terceiro ancião (outra versão)
Este apêndice contém outra versão assaz diferente desta história, correspondendo à que consta
no manuscrito Arabe 3615 da Bibliothèque nationale de France (século xviii). Os poucos
manuscritos d’As Mil e Uma Noites seguem em moldes gerais uma destas duas versões, por vezes
misturando elementos de uma na outra. Assim, afigurou-se que estas duas versões seriam as mais
pertinentes para trazer ao conhecimento do leitor.

Então, o terceiro ancião disse: «Vou contar-te uma história mais


espantosa e mais estranha que as outras para que tu me concedas o outro
terço [do perdão].» E o génio disse: «Assim seja.»

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou.


8.ª Noite

Então, Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, senhor de discernimento acertado e


agir apropriado, que o terceiro ancião avançou e disse:

Fica sabendo que eu tomei como mulheres quinze escravas, e que elas me
deram filhos e filhas. Mas ao depois morreram todos. Então, ouvi dizer que
em Baçorá havia um homem que fazia divinação com areia, e para lá
viajei.Ao chegar a Baçorá, perguntei por aquele homem e indicaram-me
onde o encontrar. Dei-lhe parte do meu caso, de que os meus filhos não
sobreviviam. Ele lançou areia na sua tábua, olhou para ela e chorou. Então,
disse-lhe: «Porque chora?» Ele disse: «Vejo que os filhos que tem com
escravas abissínias não sobrevivem, por isso tome como concubinas duas
escravas brancas.»
Então, fui ao país dos turcos e comprei duas raparigas. Casei-me com
elas, dei-lhes roupas e reparti entre elas de maneira igual os meus
proventos, as roupas e as dormidas comigo. Ao cabo de algum tempo, Deus
abençoou-me por meio delas com dois filhos machos de belo aspecto.
Cresceram até o mais velho fazer três anos e o mais novo dois, altura em
que o mais novo morreu, ficando-me só o mais velho. Então, o ciúme
perseguiu a mãe daquele que havia morrido, e tal era o seu ciúme e inveja
que quase se finou. Entretanto, a mãe do moço maior faleceu, e a outra
raptou o filho da que havia morrido, subiu com ele à açoteia da casa e disse-
me: «Ergue a tua cabeça e olha para o teu filho, porque vou atirá-lo daqui e
deixá-lo em pedaços.» Ergui a cabeça e o meu coração estremeceu ao ver o
miúdo nas suas mãos. Com receio pelo meu filho, submeti-me e rebaixei-
me a ela, prometendo-lhe o que quisesse, e ela disse-me:«Queres que o teu
filho fique são e salvo?» «Sim», disse-lhe eu. E disse ela: «Prometes-me
que não me culpas por ter poucos filhos, nem por este filho não ser meu,
nem te casas com uma segunda mulher?» Disse-lhe que sim a tudo e
prometi-lhe solene e firmemente que faria o que ela pedisse, e ela disse:
«Não quero isso de ti, nem as tuas promessas, porque tu és pouco devoto.
Se queres que o teu filho fique são e salvo, pega numa faca e corta o teu
membro de maneira que eu veja.» Rebaixei-me perante ela implorando-lhe
várias vezes, mas ela não quis saber. Então, com receio pelo meu filho,
peguei numa faca e fiquei atrapalhado. Não me era fácil decidir entre cortar
o meu membro e a morte do meu filho. E sempre que estava preste a cortá-
lo, o meu corpo tremia e não o conseguia fazer. Então, ela disse: «Parece
que preferes ficar com o teu membro, vais ver o teu filho em pedaços!» E
ergueu-o com os braços, olhou para ele e estava prestes a atirá-lo. Implorei-
lhe mas ela não quis saber, então peguei na faca para cortar o meu membro,
estando prestes a fazê-lo com a faca encostada nas minhas partes, até que
esta cortou o meu membro e eu perdi os sentidos, esvaindo-me em sangue.

Mas Xerazade, sentindo a manhã chegar, calou-se e não mais falou.


E em sendo a
9.ª Noite

Xerazade disse:

Ouvi dizer, ó rei bem-aventurado, que o ancião disse ao génio:

Quando caí, esvaindo-me em sangue, os vizinhos acudiram-me e


levaram-me para dentro de casa.Veio um cirurgião para me tratar e eu fiquei
tão doente que estive à beira da morte. Ao depois, curei-me e recuperei a
saúde, e ouvi falar de um homem que era feiticeiro na vila onde vivia. Fui
ter com ele e dei-lhe parte do que a rapariga me havia feito, e disse-lhe:
«Quero um feitiço que a torne numa mula.» Paguei-lhe uma boa soma de
dirames e ele pegou numa taça de cobre, escreveu nela talismãs e disse:
«Quando fores para tua casa, enche-a com água e atira-a para cima dela
dizendo:“Que sejas uma mula, com a permissão de Deus.”»
Peguei na taça e fui andando até chegar a casa. Enchia-a de água e
borrifei-a com ela, dizendo: «Que sejas uma mula, com a permissão de
Deus.» E ela tornou-se uma mula, e é esta mula que está aqui comigo.
Monto nela e faço-a provar o sabor do castigo como recompensa por haver
feito o que me fez. Sigo com ela por essas campinas e desertos, fazendo-a
com que prove o castigo, até que me cruzei convosco e jurei que não
arredava pé até ver o que se iria passar entre ti e este mercador. Ao depois,
virou-se para a mula e disse: «É ou não verdade o que acabo de contar?» E
ela meneou a cabeça. E ele disse ao génio: «Não é espantosa a minha
história?» Ao que ele disse: «É sim.» E disse-lhe o ancião: «Deixa o
mercador ir-se embora para junto da sua mulher e filhos.» Assim fez o
génio, e o mercador despediu-se do grupo, montou na sua cavalgadura e
seguiu por essas campinas e desertos afora, até que chegou a sua casa, e foi
recebido pela mulher e filhos, que o felicitaram por tornar são e salvo.
Então, ele contou-lhes o que se havia passado entre ele e o génio, como
Deus o havia libertado do génio quando este estava resoluto em o matar, e
eles espantaram-se com tudo aquilo. E continuaram todos na mais feliz das
vidas até que lhes veio o destruidor dos prazeres e desmantelador de uniões.
Apêndice IV
A partida do barco na 56.ª Noite
Este apêndice contem detalhes que não são mencionados nos manuscritos mais antigos no que
diz respeito à partida do barco relatada na história contada pelo terceiro dervixe, no final da 56.ª
Noite. Este excerto consta de um manuscrito tardio do século xviii (Ms. 207 da Christ Church
Library).

Ao depois, o velho recuperou os sentidos, olhou para o seu filho


pensando no que lhe havia acontecido, e que era precisamente o que ele
receava que viesse a acontecer. Chorou, esbofeteou-se e declamou uma
poesia:
Apressa-te! Por ti me sacrifico! Mas já abalou teu povo,
Fazendo meus olhos copiosas lágrimas verter.
Que aflição a minha, partem para lugar remoto
E eu sem os poder ver, sem saber que dizer ou fazer.
Quem me dera nunca os haver visto,
Ó senhores, que posso fazer, desamparado?
Se fogo da angústia no meu coração arde,
Que consolação alcançará meu fado?
Ó sorte, se por mim passares onde vivem,
Apregoa-lhes minhas lágrimas e atrozes mazelas.
Visitou-os a morte e incendiou-se-me o coração
Tal fogo ardendo de amor entre minhas costelas.
Quem dera ser eu o escolhido pela Morte,
Pois deles não se separa minha alma.
Por amor de Deus, ó destino, calma!
Porque a eles o que me une é bem forte!
Feliz era nossa casa, de cisão havia nada,
Ligados em felicidade pela bela vida
Até que a seta da separação nos foi lançada,
E quem pode aguentar tal investida?
Pela morte foi derrubado o mais nobre do povo,
Pérola única do século, perfeita em beleza.
Sem dar por isso, eu sempre o louvo!
Quem dera que do exício não fosse presa.
Ó filho! Ó família! Por ti daria minha vida,
mas inveja em nós os olhos pôs.
Como poderei em breve te encontrar?
Ó filho! por quem daria minha vida!
Mãos pródigas as tuas qual generosa Lua,
Cuja fama e brilho não há quem não conheça.
Chamo-te Sol ou Lua porque sempre brilhas,
Mas não nascem eles e se põem a milhas?
Ó tu, cujas belezas todos – mesmo o bruto –
Aclamam e de virtudes a Virtude fez rico.
Que aflição a minha, por ti sempre de luto,
Mas assim saberei que só a ti me dedico.
Pela saudade por ti teu pai se consome,
Derrubaram-te olhos invejosos,
Com tua morte saciaram a fome,
— Ficai cegos, ó tenebrosos!

Ao depois, em agonia largou o seu último suspiro e a alma separou-se-lhe


do corpo. Então, os escravos puseram-se aos gritos, botaram terra nas
cabeças de ambos, e choraram e gritaram ainda mais. Embarcaram e
estenderam o velho à banda do filho. Depois, zarparam e perdi-os de vista.
Então, desci da árvore e entrei no subterrâneo, pondo-me a pensar no moço,
e ao ver alguns dos seus pertences, declamei uma poesia:
Pela saudade sou consumido após sua partida,
Lágrimas ao ver as ruínas de suas casas não meço.
A quem me castigou separando-os de mim, eu diga
Que me presenteie com o seu regresso.
Posfácio

PARTE I

O que há de mais importante a dizer sobre o livro d’As Mil e Uma Noites
já foi dito no preâmbulo do primeiro volume. No entanto, não se
mencionaram alguns detalhes de alguma importância relativos a esta
tradução. Da mesma maneira, julgou-se necessário colmatar certas lacunas,
proceder a pequenas correcções relativas ao Preâmbulo, e ainda esclarecer
alguns factos.

Fórmulas

No texto árabe dos manuscritos usados existem expressões atribuíveis ao


escriba que não foram propositadamente incluídas na tradução. São
expressões tais como: «Disse o contador», «Disse o narrador do conto»,
«Disse o autor do conto», sendo a maioria abreviada por: «Ele disse».
Expressões estas que ocorrem pelo menos mais de duzentas vezes ao longo
do texto do manuscrito principal, assim como em quase todos os outros.
Não interferem nem têm importância para a compreensão do texto, e
julgou-se que a sua inclusão, sobretudo a forma mais recorrente de «Ele
disse», poderia eventualmente trazer demasiada confusão à leitura da
história, mesmo que se houvesse optado por grafá-las com outro tipo de
letra. No entanto, a sua existência é suficientemente importante para ser
mencionada, pois são indício de que o escriba do texto matriz estaria
provavelmente a transcrever o que ouvia da boca de um contador, ou pelo
menos quis passar essa ideia, o que, em qualquer caso, ajudaria também a
explicar a enorme profusão de construções orais e de várias inconsistências
de ordem sintáctica. Note-se ainda que na expressão previamente
mencionada «autor do conto», a palavra «autor» não corresponde
necessariamente ao conceito contemporâneo da mesma, mas mais à ideia de
composição, montagem e enunciação do conto.
Para além da omissão anteriormente mencionada, também se fez uma
adição que não foi referida no preâmbulo. A maioria das expressões «disse
de si para si» no texto árabe figura só como «disse». A adição do «de si
para si», em bom rigor, deveria estar entre parêntesis rectos, mas optou-se
por não o fazer para comodidade da leitura. Por vezes, o texto árabe, sendo
tal mais comum nas histórias o segundo volume, assim como na conclusão
da última história que consta do Apêndice I no terceiro volume, menciona
explicitamente que a personagem está a falar consigo mesma. Nestes casos,
optou-se antes por outras expressões, como por exemplo «disse para
consigo». Mas consoante os casos, nem sempre estas regras foram aplicadas
com coerência absoluta.
Também não foi igualmente mencionada a questão do título das histórias,
que foram incluídos nesta edição propositadamente a negrito. Estes títulos
não constam no texto árabe dos manuscritos, sendo acrescentos da tradução.
O leitor poderá também constatar alguns casos em que Xerazade, Dinarzade
e o rei Xariar mencionam as histórias por outros nomes. Por exemplo, a
História do pescador e do ifrite é intitulada por Xerazade simplesmente por
«história do pescador» (8.ª Noite), assim como por Dinarzade (9.ª/10.ª/11.ª
Noites), mas esta também se refere a ela como «história do ifrite e do
pescador» (12.ª Noite), e na 15.ª Noite o rei Xariar pede que Xerazade conte
«o resto da história do rei Yunane, do vizir, do sábio Dubane, da jarra, do
ifrite e do pescador», sempre em referência à mesma história. Na 5.ª Noite,
a História do segundo ancião é referida como «a história do homem com os
dois galgos negros». Na 30.ª Noite, Dinarzade chama «história das três
raparigas» ao conto que esta edição chama História do carregador e das
três moças de Bagdade. Provavelmente, nem sempre haveria um nome
plenamente definido para intitular estes contos, e mesmo nos casos em que
talvez houvesse optou-se, sempre que tal se julgou necessário por razões de
divisão do texto, por títulos tendo em conta o nome pelas quais estas
histórias foram ficando conhecidas, não só nas edições europeias, mas
sobretudo nas edições árabes.
Por último, no manuscrito principal, os intertítulos com a numeração das
noites em árabe (os quais por sua vez são enunciados por extenso e não com
numerais) são geralmente, mas nem sempre, acompanhados em baixo pela
menção «da História d’As Mil e Uma Noites» ou «das Estranhas e
Espantosas Histórias d’As Mil e Uma Noites» ou «das histórias d’As Mil e
Uma Noites» entre outras fórmulas semelhantes, que esta tradução preferiu
omitir. Note-se ainda que no manuscrito usado no Apêndice I não são
usadas estas fórmulas na divisão das noites.

Origens

No Preâmbulo, abordou-se também a questão da datação do surgimento


do título As Mil e Uma Noites. Aboubakr Chraïbi, na obra citada no
Preâmbulo1, pretende que este remonta pelo menos ao século x. A referida
obra de Chraïbi é, sem dúvida, a mais exaustiva lista de referências directas
e indirectas às Noites encontradas em fontes clássicas publicada até aos dias
de hoje. No entanto, julgamos que esta lista não atesta essa datação
satisfatoriamente pois, como já foi mencionado no Preâmbulo, as obras
mencionadas nas fontes como Hazār Afsānah (As Mil Noites) ou ainda por
Alf Mathal wa-Mathal (Os Mil e Um Exemplos) seriam colecções de
histórias e exemplos morais, que poucos elementos partilhariam com As Mil
e Uma Noites, excepto a história quadro principal e alguns contos, tal como
defende Muhsin Mahdi2. No entanto, há uma fonte mencionada por Chraïbi
à qual não se fez referência no Preâmbulo e que merece a devida atenção:
Foi na Guenizah do Cairo, isto é na «Sinagoga dos Palestinianos» em Fostate e no
cemitério de Al-Basâtîn, aquando da sua reconstrução, cerca de 1890, que se descobriu um
verdadeiro tesouro de manuscritos, reunindo uma dezena de milhar de documentos, a maioria
redigidos em judaico-árabe e datados entre os séculos iv/x e vii/xiii. S. D. Goiten, que
investigou a fundo estes manuscritos (entre os quais figuram também excertos antigos de
Calila e Dimna!), descobriu, aquando das suas pesquisas em 1958, a seguinte citação, que é
uma menção lacónica que consta do fragmento de um catálogo de biblioteca datado de
550/1150:
«Majd ibn al-ʿazīzī [tem] o livro d’As Mil e Uma Noites».3

Esta entrada de um catálogo de biblioteca atesta que em pleno século xii


já circularia no Cairo, pelo menos entre a comunidade judaica, um livro em
árabe cujo título ipsis verbis seria As Mil e Uma Noites. Se este livro seria
mais ou menos o mesmo que consta nos manuscritos usados nesta edição é
uma questão que não é possível determinar. Façamos aqui um parêntesis
para mencionar que apesar de o manuscrito mais antigo, que seguimos nesta
edição, pertencer ao ramo sírio, pelo facto de ser oriundo da Síria e
possivelmente produzido nesta área geográfica, tal não atesta que a versão
matriz tenha sido aí elaborada, pois o mesmo manuscrito, apesar de conter
coloquialismos oriundos da Síria, é de forma geral em termos linguísticos
principalmente associável ao árabe egípcio, levando a crer que terá sido no
Egipto, e não na Síria, que o texto terá sido originalmente produzido,
mesmo que copiado na Síria. Além do mais, sendo as viagens entre
Damasco e o Cairo comuns, por razões de ordem comercial, política,
religiosa, turística, de busca de conhecimento, entre outras, seria expectável
que no Cairo houvesse alguma familiaridade com os coloquialismos sírios.

Referências religiosas

O facto de o catálogo de uma biblioteca judaica fazer referência às Noites


é muito interessante. Como já foi referido no preâmbulo, há vários
elementos judaicos nalgumas histórias. Assim, poderia ser interessante
pensar na participação da comunidade árabe judaica, ou mesmo da árabe
cristã, no processo de construção d’As Mil e Uma Noites. Mas os poucos
fragmentos e referências feitas às Noites que sejam anteriores ao mais
antigo dos manuscritos são demasiado escassos para formar qualquer teoria
sólida sobre a génese deste texto, e portanto não se pode ter a certeza do
grau de participação nesse processo de outras comunidades religiosas do
Médio Oriente.
Por outro lado, no próprio texto, tal como consta do mais antigo
manuscrito, abundam elementos que levam a crer que os contadores e o
público destas histórias seriam sobretudo muçulmanos, como é o caso das
várias referências ao Alcorão e das próprias citações deste, ao poema
Xâtibiya4, passando pelo facto de a população ser designada por «Ó
muçulmanos»5 e por expressões como: «A fé dos muçulmanos obriga-me
a…»6, entre muitos outros elementos. No entanto, não deixa de ser
interessante constatar que em lado algum aparece textualmente o nome do
profeta do Islão, Muhammad. A fórmula que corresponde à primeira parte
do testemunho de fé islâmica («[Testemunho que] Não há nenhuma
divindade a não ser Deus»)7 poderia ser proferida por qualquer crente de
outra religião monoteísta, tal como a fórmula «Não há força nem poder
senão em Deus Altíssimo e Grandioso» que aparece repetidas vezes, apesar
de outros elementos nas histórias nos levarem a crer que essas personagens
seriam muçulmanas.
Já a segunda parte do testemunho de fé («E [testemunho que]
Muhammad é o Seu profeta»] só aparece no manuscrito tardio que foi
usado para completar a História de Cámar-Azzamane e que consta no
Apêndice I8. Mesmo aí, ela não aparece textualmente, mas é mencionada
pela referência «os dois testemunhos», razão pela qual na tradução dessas
partes se optou por incluir o texto dos «dois testemunhos» entre parêntesis
rectos. Esta situação contrasta com a edição de Bulaq, assim como a edição
de Calcutá II (também conhecida por edição MacNaghten), onde tal não
acontece, havendo referências textuais ao nome de Muhammad, profeta do
Islão, sendo as fórmulas religiosas bem mais abundantes.
Outro ponto que importa mencionar é o facto de, na História do rei
encantado, os peixes do lago representarem as quatro comunidades
religiosas consideradas como Povo do Livro (Ahl al-Kitāb): os
muçulmanos, os cristãos, os judeus e os zoroastrianos, sendo que estes
últimos são referidos pelo nome «magos» no texto árabe, tal como os
cristãos o são pelo nome de «nazarenos». Trata-se de uma alegoria que
representa o desejo de que essas quatro comunidades vivessem juntas em
paz e harmonia. Mas na História dos dois vizires, no final da 75.ª Noite, a
imagem do judeu cambista que não perde oportunidade de fazer um
negócio, mesmo apesar de Badreddine se encontrar numa situação
emocional de grande fragilidade devido ao pranto e luto pela morte muito
recente do pai, parece uma caricatura tipicamente produzida num ambiente
de preconceito generalizado contra os judeus. Claro que também poderia ser
uma autocaricatura para agradar a uma plateia que corresponderia à
comunidade dominante, uma prática que não é rara em contextos sociais
onde o racismo é uma realidade estrutural.
Já no que diz respeito aos zoroastrianos, nas últimas duas histórias desta
tradução, nomeadamente a partir da 261.ª Noite, eles passam a ser referidos
de forma bastante pejorativa, como adoradores do fogo, praticantes de
magia negra e dados a sacrifícios humanos, ao contrário do cenário idílico
da mencionada alegoria dos peixes. A ideia do feiticeiro maléfico passa a
estar intrinsecamente ligada ao preconceito dominante na época
relativamente ao zoroastrianismo. Será que estes dois contos foram
adicionados por outro redactor que não aquele que compilou a primeira
parte d’As Noites? Ou será o redactor o mesmo, e durante o seu trabalho
teve menos uma preocupação de coerência crítica e mais o intuito de reunir
contos que divertissem os ouvintes? Serão estes contos simplesmente um
vasto aglomerado de vozes divergentes?

Outros manuscritos

Para além dos manuscritos d’As Noites referidos no Preâmbulo, existem


dois aos quais não se fez qualquer referência por não terem relevância para
esta tradução. Pela excessiva importância que muitos estudos sobre As
Noites lhes dão, afigurou-se apropriado referi-los neste posfácio. Esses dois
manuscritos encontram-se actualmente na biblioteca da Universidade
Everardo Carlos de Tubinga (Eberhard Karls Universität Tübingen), e são
designados genericamente por manuscritos de Tubinga, nomeadamente o
Ma VI 32 (circa 1640 AD) e o Ma VI 33 (século xiv AD), contendo o
primeiro a História de Omar Annumane e seus filhos Xarcane e Dau-al-
Macane (Ḥikayat ʿumar an-Nuʿmān wa waladayhi Sharkān wa Ḍau al-
Makān), e o segundo a História de Sul e Xumul (Qiṣṣat as-Sūl wa sh-
Shumūl), sendo que a primeira história foi integrada tardiamente n’As
Noites, e parte integrante da edição de Bulaq. Estes dois manuscritos, cujos
contos aí narrados pertencem a um estilo semelhante ao que na literatura
europeia se chama «romance de cavalaria», costumam ser associados à
historiografia d’As Mil e Uma Noites. De uma forma genérica, ambos
apresentam os respectivos contos divididos em noites e as fórmulas
intercalares associadas às falas de Xerazade e Dinarzade, como se fossem
contadas pela primeira ao rei Xariar. Nem sempre, no entanto, contêm a
numeração de noites, sendo que num deles esse espaço está em branco,
como se o redactor quisesse acrescentar o respectivo número da noite mais
tarde. Estes manuscritos só provam que os seus redactores tinham a
ambição de integrá-los n’As Noites. Mas porquê? Conheceriam de facto a
versão que consta no manuscrito usado nesta tradução, porventura até uma
cópia mais antiga, querendo aumentar o número de contos, custe o que
custasse? Certo é que tal hipótese atesta que tais tentativas teriam começado
bem cedo. Ou será que a fama dos contos d’As Noites se estendeu por aqui
e por além, e que os contadores de histórias, ao serem pressionados pelos
ouvintes a narrar as célebres Mil e Uma Noites, sem as conhecerem,
excepto a história-quadro, teriam improvisado e ido buscar outros contos?
Ou será que terão circulado várias colecções de contos bem diferentes umas
das outras, mas sob o mesmo título ou títulos parecidos, e com o mesmo
enquadramento da Xerazade, e só muito mais tarde, durante o século xix,
como já foi referido no Preâmbulo, e sob a pressão orientalista para
encontrar a versão «integral e original», os vários contos que pudessem
eventualmente ser associáveis às Noites tivessem sido aglomerados nas
primeiras edições contendo efectivamente 1001 noites? Isto, incluindo o
Sindbad, o Marinheiro, que nunca fizera parte, apesar de também pertencer
à tradição oral árabe, ou os contos do Aladino e do Ali Babá, que como já
foi referido no Preâmbulo são traduções para árabe da edição de Antoine
Galland d’As Mil e Uma Noites em francês, contos esses que lhe terão sido
originalmente narrados pelo viajante alepino Hanna Diab. Será que a partir
de determinada altura, qualquer conto com certos elementos poderia ser
associado ou apresentado como pertencendo às Noites?
Dos manuscritos que chegaram aos dias de hoje, é possível perceber que,
entre as várias linhagens de transmissão, terá havido um esforço de vários
copistas para se manterem fiéis a uma certa forma de contar e transmitir
estes contos. Para isso, basta ter atenção às enormes semelhanças textuais
entre os manuscritos, mesmo entre aqueles que foram produzidos em
épocas bem diferentes, e que atestam o desejo dos copistas de dar
continuidade a uma certa tradição contista. Infelizmente, a expressão
corriqueira «Quem conta um conto, acrescenta um ponto», apesar da sua
indubitável veracidade, sobretudo quando aplicada às Noites, leva a que
alguns investigadores se centrem demasiado nas divergências entre
manuscritos e pouco nas semelhanças, assim como uma visão da
historiografia d’As Noites que faz tábua rasa do contexto cultural e político
dos moldes em que se dá o tratamento destes contos a partir do século xviii
e que culmina nas primeiras edições impressas contendo exactamente 1001
noites durante o século xix. Por outro lado, como já vimos no Preâmbulo,
esta tradição muito possivelmente provém ela mesmo do desvio, ou mesmo
subversão, de uma outra tradição que seria conhecida apenas por As Mil
Noites, a qual se reporta mais a um conjunto de fábulas e exemplo morais, e
que remonta pelo menos ao século ix, senão ao século viii. Mas, para
acrescentar mais confusão, também não é de excluir que As Mil Noites (Alf
Laylah) fosse, como sugere Chraïbi, apenas um título abreviado de As Mil e
Uma Noites (Alf Laylah wa Laylah), tal como em português podemos
abreviar simplesmente por As Noites em vez de As Mil e Uma Noites. Como
sempre acontece quando tratamos das As Mil e Uma Noites, uma das poucas
certezas que é possível ter, é a de que, de facto, há poucas certezas.

Versão matriz

Tudo isto leva a uma questão paralela. Após a publicação do primeiro


volume, constatámos algumas reacções curiosas, fosse na esfera privada ou
pública, as quais merecem ser comentadas apenas com o intuito de
esclarecer factos.
Em várias ocasiões houve quem se referisse a esta como sendo a primeira
tradução directa d’As Mil e Uma Noite para português a partir do
manuscritos originais. No entanto, sublinhamos que não chegou aos dias de
hoje versão alguma que se possa considerar «a original». Já no Preâmbulo
nos debruçámos sobre a obsessão dos orientalistas dos séculos xviii ao xx
na caça à versão original e sobre os vários manuscritos forjados nessa altura
que foram anunciados como sendo a versão «verdadeira, completa e
original».
Em moldes muito diferentes da tradição orientalista, há de facto quem
defenda a eventualidade da existência de uma versão «matriz», como é o
caso de Muhsin Mahdi, que considera que ela foi elaborada por um autor –
não um autor de originais, mas um autor-compilador que terá dado a forma
final – provavelmente durante o século xiii ou xiv, o qual optou por ficar
anónimo e se apropriou de várias histórias que já circulariam muito antes e
do quadro principal já existente com Xerazade, a sua irmã Dinarzade e o rei
Xariar. Para Mahdi, ao contrário do que defende Chraïbi, esta versão
«matriz» nunca teve 1001 noites. E, obviamente, há quem defenda o oposto,
que nunca houve uma «versão matriz» e que sempre foi uma obra
construída colectivamente ao longo dos tempos, mas que estaria
estabilizada entre os séculos xiv e xv. Em qualquer caso, ambas as teorias –
que realçam, mesmo que de forma diferente, a proveniência colectiva das
histórias – baseiam-se mais em argumentos especulativos do que em factos.
Mas, mesmo para Mahdi, esta versão matriz não chegou aos dias de hoje
e a sua aclamada edição crítica em árabe, a primeira a ser feita com base no
manuscrito mais antigo que se conhece, parte do princípio de que este
manuscrito seria o que mais próximo estaria da fonte, mas que, ele mesmo,
seria uma cópia de uma cópia. Para Mahdi, seria possível, e esse é o espírito
que anima o aparato crítico da sua edição, reconstituir uma edição o mais
próximo possível da fonte a partir da comparação crítica dos vários
manuscritos, pois, por exemplo, em alguns manuscritos mais tardios
poderemos encontrar formulações mais de acordo com o que constaria na
versão matriz, devido à forma como foram copiados uns dos outros9. De
outra forma, nesta tradução ambicionou-se antes usar exclusivamente o
manuscrito mais antigo, recorrendo só a outros manuscritos e versões para
colmatar lacunas ou em casos de grande necessidade. Excepção para o
último conto, cuja conclusão inserida em anexo provém de outro
manuscrito.
Seja como for, a tradução aqui em causa não se baseia obviamente nos
manuscritos originais, porque estes, caso hajam existido, não chegaram aos
dias de hoje. Na eventualidade de ter havido de facto uma versão matriz, o
manuscrito no qual esta tradução se baseia será aquele que porventura mais
se aproximará dessa hipotética versão, para além de ser o manuscrito mais
antigo, o menos sujeito a tratamento por parte das elites literárias que se
foram apropriando da obra, e o mais interessante e rico do ponto de vista
político e linguístico. Porém, em nenhum caso será «o original».
Em segundo lugar, esta não é a primeira tradução directa do árabe para
português, tendo em conta os manuscritos mais antigos, mas a primeira a
ser feita em Portugal. De facto, e tal nunca foi escondido10, a primeira a ser
feita nesses moldes deve a sua autoria a Mamede Mustafa Jarouche,
publicada no Brasil entre 2005 e 2012. Jarouche traduziu duas versões
diferentes: o ramo sírio (correspondente à nossa tradução) e o ramo egípcio.
Para evitar efeitos de contágio, não consultámos esta tradução, apesar de
não duvidarmos da sua enorme qualidade tendo em conta o percurso
académico e literário do tradutor.
Apesar de todas as críticas já mencionadas à elaboração das primeiras
versões impressas em árabe, nomeadamente a edição de Bulaq e de Calcutá
II, que são o culminar do ramo egípcio tardio, estas revestem-se de grande
interesse literário. Não o dizemos devido ao facto de vários contos dessas
edições terem passado a fazer parte do imaginário e da literatura mundiais,
como Sindbad, o Marinheiro, Aladino ou Ali Babá, porque consideramos
que, no primeiro caso, faria mais sentido traduzir a partir manuscritos
propriamente ditos de Sindbad, tanto O Marinheiro, como O Terrestre e,
nos outros dois, faria mais sentido traduzir a partir versão francesa de
Galland, o que já foi feito, mas porque muitos outros continuam ainda
desconhecidos do público em Portugal, pelo menos numa tradução directa
do árabe.

Localização de fontes

Ainda sobre as mencionadas reacções à recepção do primeiro volume


desta tradução, houve quem reparasse que todos os manuscritos d’As Mil e
Uma Noites se encontram em bibliotecas europeias. Apesar de também
existirem muitos manuscritos do espólio cultural árabe preservados em
bibliotecas públicas e colecções particulares em países árabes e em países
não-árabes do mundo islâmico, o caso d’As Mil e Uma Noites é excepcional
e dois factores principais contribuíram para que assim fosse. O primeiro
deve-se à enorme e vasta caça ao tesouro levada a cabo pelos orientalistas
em busca do manuscrito completo e original d’As Noites, e cujos contornos
e consequências já foram brevemente descritos no Preâmbulo. O segundo
deve-se ao facto, também já referido, de que As Mil e Uma Noites são um
conjunto de histórias oriundas da tradição oral árabe. Elaboradas duma
forma que não obedecia aos cânones das belles lettres árabes, contendo
plebeísmos inaceitáveis, e talvez mesmo por razões morais e políticas, eram
suficientemente desprezadas, de tal forma que a conservação de tais
manuscritos não era tida por útil. Muita literatura de cordel portuguesa
também não sobreviveu. Será que algumas destas histórias circulariam nos
primórdios num ambiente que hoje em dia seria classificável como
underground ou alternativo? Juan Vernet Ginés, num discurso proferido em
1959 na Real Academia de Buenas Letras de Barcelona, resume
razoavelmente bem esta questão da seguinte forma:
O sucesso d‘As Mil e Uma Noites no Ocidente é a única razão capaz de explicar a aceitação
que têm no Oriente, no mundo árabe. Neste, foram alvo, até ao início do século passado, do
maior desprezo por parte das elites educadas, uma vez que essas narrativas que reflectem a
vida, o modo de pensar e de ser, a fantasia do vulgar ignaro, eram conhecidas apenas por se
ouvir recitá-las aos menestréis da rua que, parados no centro de públicos reunidos em círculos
maiores ou menores, iam arrancando os gatafunhos de um texto por encadernar, de folhas
quebradas, sebosas e sujas de tanto passar de mão em mão; essas narrativas, portanto, não
podiam ser apreciadas pelas pessoas privilegiadas que haviam recebido uma educação
superior e que só podiam ficar em êxtase diante da maravilhosa prosa rimada de um Hariri,
cheia de consonâncias ainda mais maravilhosas, mas vazias de significado; somente os versos
bélicos de um al-Mutanabbi ou os cânticos báquicos de um Abu Nuwas, para cujo
entendimento correcto precisavam de um comentário mais extenso do que o texto que
estavam a ler, foram capazes de fazer vibrar as suas sensibilidades mais delicadas. Porque
haveriam então de perder o seu tempo ouvindo as histórias recitadas por menestréis nos
mercados e ao alcance das inteligências mais baixas? Além disso, todo aquele que perdesse o
seu tempo lendo-as, segundo um adágio que deve remontar aos séculos xiv ou xv, morreria no
decurso da sua leitura.11

Se Ginés resume muito bem esta questão, urge no entanto fazer alguns
comentários críticos a esta passagem. No que diz respeito à ideia de que os
leitores d’As Noites morreriam no decurso da sua leitura, segundo a nota de
rodapé do texto original, esta provém de um comentário do orientalista
Victor Chauvin (1844-1913) na sua Bibliographie des ouvrages arabes ou
relatifs aux Arabes12 que, por sua vez, se baseia num comentário que
Yacoub Artin Pacha (1842-1919), historiador e ministro da Cultura do
Egipto, faz no prefácio aos seus Contes populaires inédits de la vallée du
Nil13. Não é de excluir que Yacoub Pacha, tendo em conta o público a quem
se destinava a sua obra, quisesse impressionar os leitores com tal
observação, a qual carece de fundamento, não se encontrando aliás em
outras referências bibliográficas pertinentes algo que corrobore a circulação
deste mito. No entanto, a ideia de um livro que mata o seu leitor está
presente na História do rei Yunane de Zumane e do sábio Dubane, e é
provavelmente nesta história e nesta ideia que Lovecraft se baseou para
conceber o seu famoso Necronomicon, que levaria quem o lesse à loucura, e
cujo nome original em árabe seria al-ʿazīf, palavra traduzível por «o sibilo
do vento», e que também designa certos sons e ruídos estranhos, como
aqueles que se ouvem no deserto produzidos pelas areias, cuja proveniência
alguns dicionaristas árabes dizem ser desconhecida, ou pelo vento varrendo
as areias. Em qualquer caso, são estes sons estranhos que por vezes se
associam aos produzidos por génios e ifrites durante a noite.

Os poemas que integram o texto

Na citada passagem de Ginés não deixa de ser curiosa a referência feita à


poesia, a qual se afigura pouco adequada, revelando que o mesmo não terá
dado a devida atenção aos poemas em árabe que figuram n’As Noites. Isto
porque a maioria dos que aí figuram é extremamente elaborada, rica, e
expressa-se frequentemente usando os mais altos cânones das belles lettres
da época, mesmo que com algumas incoerências métricas, variantes
introduzidas pelo contador ou pelo escriba ou copista, lacunas e outros
pequenos «defeitos». A linguagem aí usada é, na maioria dos casos, a
antítese do vernáculo e dos plebeísmos que abundam na prosa. Mesmo as
partes mais poéticas e ricas da prosa, nomeadamente a prosa rimada, não
são geralmente equiparáveis às obras de autores clássicos, tal como afirma
Ginés. Possivelmente, e partimos de uma mera suposição, os poemas não
seriam declamados à plateia pelo narrador, mas por um trovador que faria as
suas pequenas alterações, de propósito ou não, talvez acompanhado por
alguns instrumentistas, e a sua declamação seria feita de forma cantada,
como era habitual fazer-se na época. Como o leitor pode constatar pela
leitura desta tradução, esse trovador hipotético também não hesitaria em
repetir os mesmos poemas, ou partes, ou em misturar versos de um no
outro. Por exemplo, o primeiro poema da 48.ª Noite é semelhante ao
primeiro da 206.ª Noite, o quinto da 67.ª Noite é semelhante ao segundo da
216.ª Noite, o segundo da 38.ª Noite é semelhante ao primeiro da 75.ª Noite
e ao da 212.ª Noite, e o da 109.ª Noite do apêndice II contém versos
truncados do primeiro poema da 21.ª Noite, entre outros exemplos
facilmente detectáveis.
Para além disso, à medida que os poemas foram sendo traduzidos, não
foram raros os casos em que se detectou que alguns, ou partes deles, por
vezes mesmo só um verso ou um hemistíquio, ainda que aparecendo com
adaptações evidentes, propositadas ou não, são da autoria de poetas
conceituados, nem sempre os mais famosos, mas também englobando
intelectuais de renome, califas, soberanos, chefes militares e até teólogos.
Entre os autores que identificámos constam nomes como Abū ʿAbd Allāh
Muḥammad ben Idrīs ash-Shāfiʿī, Tamīm ibn al-Muʿizz, ʿalī ben Abī Ṭālib,
Abū aṣ‐Ṣalt ad‐Dānī (da cidade de Dénia na actual Espanha, conhecido em
latim pelo nome de Albuzale), Khālid ben Yazīd al-Baghdādī, as-Sarī ar-
Raffāʾ, Abū Isḥāq aṣ-Ṣābī, Ibn al-Badīrī, ʿUmar ibn ʿAbd al-ʿazīz, Abū al-
ʿatāhīyah, Aḥmad ben ʿalī ar-Rafāʿī, ʿabd al-ʿazīz ad-Dirīnī, Bahaʾ ad-Dīn
Zuhayr, Tamīm ben Muqbil, ʿabd Allāh ben al-Muʿtazz, al-Waʾwāʾ al-
Ḥalabī, ʿalqamah ben ʿubadah, Bulbul al-Gharām al-Ḥājirī, Ṣafwān ben
Idrīs at-Tujaybī al-Mursī (nascido em Múrcia), Yazīd ben Muʿāwyah, Ibn
Ḥayyūs, entre outros.
Há casos em que a autoria de uma parte de um poema é atribuída a um
poeta e outra a outro. Há poemas que aparecem em cancioneiros clássicos
sem que a sua autoria seja determinada, e outros que, em diferentes
cancioneiros, são atribuídos a autores diferentes. Há também outros que
pertencem à tradição oral e popular. Alguns poemas ou partes, por vezes
adaptados, são usados em canções árabes de cantores conhecidos do século
passado. Alguns, ou partes, aparecem em biografias ou recolhas de ditos de
Muhammad, profeta do Islão. E claro, há poemas que são únicos n’As Mil e
Uma Noites e cujo autor se desconhece.
Não espanta que a edição de Bulaq, ao acrescentar toda uma panóplia de
histórias que não fariam parte do espólio clássico d’As Noites, como já foi
referido no Preâmbulo, não tenha hesitado em enriquecer os textos com
poesia clássica, na mesma senda dos manuscritos mais antigos, recorrendo
tanto a poemas de anónimos como a autores conhecidos, como é o caso do
famoso poeta nascido em Beja14, al-Muʿtamid, autor de um poema dessa
edição, o qual aparece na 180.ª Noite (parte da História de Camar-
Azzamane, em vez do poema que nesta tradução figura na 279.ª Noite) e se
repete na 866.ª Noite (parte da História de Ali Nureddine e Mariame). Este
poema foi vertido para português pelo punho de Adalberto Alves15:
por receio de quem espia
com muita inveja a roer
ela não veio nesse dia,
pra assim traída não ser
pla luz que do rosto esplende,
plas jóias a tilintar,
e plo perfume de âmbar
a que o corpo lhe rescende.

é que ao rosto, com o manto,


tapá-lo ‘inda poderia,
e as jóias, entretanto,
facilmente as tiraria,
mas a fragrância do encanto
pra ocultá-la que faria?

As Cento e Uma Noites


Para finalizar esta primeira parte, resta só actualizar algumas informações
relativas ao livro que foi mencionado no Preâmbulo com o título As Cento e
Uma Noites com a menção «século xviii» entre parêntesis. Esta datação
corresponde ao manuscrito mais antigo que se conhece, datado de 1776, ano
gregoriano equivalente à data hegeriana que consta no seu colofão. Este
manuscrito, que se encontra actualmente na Bibliothèque nationale de
France, foi o usado por Mahmoud Tarchouna na sua edição crítica da
referida obra16, publicada pela primeira vez em 1979, cujo aparato crítico
explicita as divergências com outros quatro manuscritos, dois da Al-
Maktabah al-Waṭanīyah at-Tūnisīyah (Biblioteca Nacional da Tunísia) e
outros dois da Bibliothèque nationale de France17.
A história quadro é muito semelhante à d’As Mil e Uma Noites, mas com
algumas divergências seguidamente assinaladas18. Logo no início o
narrador conta que esta é a história d’As Cento e Uma Noites tal como um
filósofo de nome Fahrās19 contou a um rei, a pedido deste. Segundo a voz
desse filósofo havia «um rei justo com os seus súbditos» na Índia, chamado
Dāram, que todos os anos organizava um festival, durante o qual em
determinado momento mandava vir um grande espelho e, pondo-se em
frente dele, perguntava a todos os presentes, nobres e plebeus: «Conheceis
alguém no mundo que seja mais bonito que eu?» Certa vez, e ao contrário
da praxe, alguém afirmou que sim, que havia um rapaz muito mais bonito
que vivia na «cidade de Coraçone na região da Babilónia»20. O rei Dāram
ordena-lhe que o vá buscar, dando-lhe meios para o efeito, assim como
presentes valiosos para o convencer a visitá-lo. Assim é feito, e quando o
mandatário chega à Índia tenta convencer o pai do tal rapaz que seria mais
bonito que o rei Dāram a deixar o filho partir em viagem, mas como este se
vai casar muito em breve, o pai diz que tal só é possível após um ano.
Quando finalmente chega o dia da partida, o rapaz antes de chegar ao barco
lembra-se de que se esqueceu de algo e volta atrás. Ao entrar em casa,
encontra a sua mulher na cama com um negro. Degola ambos e parte de sua
terra muito desgostoso na companhia do mandatário para visitar o já
mencionado rei. Devido à sua aflição de espírito, fica magro e pálido,
perdendo toda a sua beleza e garbo. O rei ao vê-lo considera uma afronta
que alguém dissesse que tal figura fosse mais bela que a dele, mas, como
lhe é explicado que ele está extenuado da longa viagem, hospeda-o num
palácio ao lado do seu. Um dia, o rapaz de Coraçone está à janela e vê um
grupo de quarenta escravas dançando em grande euforia, acompanhadas de
uma dama, que se percebe ser a mulher do rei. A certo momento, ela larga
um grito e todas as outras desaparecem. Então, ela aproxima-se de árvore,
dá-lhe um pontapé, e de um alçapão sai um negro com quem ela faz amor.
O rapaz – tal como o irmão do rei Xariar – fica muito aliviado por ver que
tal também acontece a reis, recuperando o brio, a garbosidade e a
formosura. Quando o rei vê que o rapaz de Coraçone é, de facto, mais belo
que ele, fica intrigado em saber como fez ele para recuperar a beleza de
forma tão rápida. Exige-lhe explicação e ele lá acaba por contar o sucedido.
O rei não acredita e quer ver com os seus olhos. Após assistir ao mesmo
espectáculo, decapita as quarenta escravas, a mulher e o seu amante,
abstendo-se de casar novamente. O rapaz de Coraçone volta à sua terra
natal, e o rei, sentindo saudades da sua vida de casado, passa a casar-se com
uma mulher diferente a cada noite, finda a qual a mata. Certo dia, chama o
grão-vizir, que tem duas filhas, Xerazade e Dinarzade, e ordena-lhe: «Dá-
me a tua filha em casamento.» Ao que o grão-vizir responde: «Considere-a
sua. Bem como a sua irmã [Dinarzade].» O rei dorme com ela e na manhã
seguinte, estando prestes a matá-la, ela diz-lhe que se ele a poupar contar-
lhe-á uma «história como jamais ouviu igual.» O rei poupa-a, sai do quarto
trancando a porta, na qual coloca um selo. Ao final do dia, aquando do seu
regresso, Dinarzade pede à irmã que conte ao rei uma das suas «belas
histórias». E assim começa Xerazade a contar ao rei Dāram os contos d’As
Cento e Uma Noites.
Nesta versão, Xerazade é uma personagem passiva oferecida pelo pai, ao
contrário da personagem d’As Mil e Uma Noites em que obriga um pai
contrariado, que quer protegê-la, a oferecê-la ao rei com a missão de
«libertar o povo». Esta imagem de uma Xerazade mais passiva corresponde,
curiosamente, melhor à imagem que o imaginário árabe contemporâneo de
forma geral privilegiou: a de uma mulher desprovida de vontade e rebeldia
activa, que se submete à vontade dos homens sem os confrontar, mas que
sabe usar os seus dotes de entretenimento para resolver a situação frágil em
que se encontra. Esta imagem de Xerazade e o seu impacto nos costumes
sociais das comunidades árabes contemporâneas, que a nosso ver contrasta
com uma leitura mais atenta do manuscrito usado nesta tradução, é
brilhantemente criticada por Joumana Haddad21.
Durante 101 noites, Xerazade conta 17 histórias, desdobrando-se uma
delas em outras 21, mas o número exacto e as próprias histórias divergem
entre cada manuscrito. Cerca de metade destas histórias aparecem na edição
de Bulaq d’As Mil e Uma Noites e duas delas têm elementos em comum
com duas histórias que também figuram no ramo sírio d’As Mil e Uma
Noites. No entanto, o espírito geral da obra é bem diferente. Como Ulrich
Marzolph22 refere, os contos têm na sua generalidade uma preocupação
mais espiritual, de preparação para a vida depois da morte, assim como,
acrescentamos nós, um cunho moralista bem mais evidente, o que não é o
caso d’As Noites. Além do mais, está redigido numa língua mais cuidada e
literária.
A História do rapaz cairota e da sua mulher que figura n’As Cento e
Uma Noites23, sendo bem diferente e bem mais curta, tem vários elementos
em comum com a História das três maçãs24 d’As Mil e Uma Noites. Aquela
começa com um comerciante do Cairo bem instalado na vida, com um
próspero negócio que herdara do pai. Um dia, na sua loja, recebe de um
amigo uma «maçã iraquiana», mas recusa-a por boa educação. Entretanto o
seu filho aparece na loja, põe-na no bolso e ao chegar a casa oferece-a à
mãe que, por sua vez, a põe debaixo da almofada da sua cama. O
comerciante ao ir deitar-se descobre a maçã que o seu amigo tentara
oferecer-lhe, ficando convencido que a sua mulher tem um caso amoroso
com este. Como a sua casa dava para o Nilo, monta uma cilada à mulher,
dizendo-lhe que não consegue dormir e que gostaria de ir ao andar de cima
para contemplarem o rio. Ao chegarem lá, abre a janela e diz à mulher para
pôr a cabeça de fora. Então, pega-lhe pelas pernas e atira-a ao rio.
Por sorte do destino, estava um pescador num barco muito perto da casa
do comerciante, o qual salva a mulher e a leva para sua casa. Na manhã
seguinte, o comerciante encontra o seu filho a chorar. Quando lhe pergunta
a razão, ele explica que não sabe onde a mãe escondeu a maçã que ele lhe
dera. O pai lamenta-se interiormente do que fizera, mas agora já é tarde de
mais, e esconde do seu filho e da família o que de facto se passara. Um dia,
no mercado vê um pregoeiro a licitar uma peça de roupa que reconhece ser
da sua mulher. Por via do pregoeiro chega ao pescador, e vai com este a sua
casa, que fica numa aldeia a 12 milhas25 do Cairo, e reencontra mulher, a
quem pede desculpas e explica que havia agido por ciúme. A mulher
perdoa-lhe, mas ao regressarem a casa são assaltados por beduínos, os quais
raptam a mulher, roubam a cavalgadura e um tecido, e por pouco não
matam o comerciante.
O comerciante volta para casa, e certo dia no mercado vê um pregoeiro
licitando o mesmo tecido que os salteadores haviam levado. Pede ao
pregoeiro para lhe trazer o vendedor, que supostamente é um dos
salteadores, e monta-lhe uma cilada. Com muita simpatia, pergunta-lhe se
ele o conhece, e sendo a resposta negativa, o comerciante informa-o que é
fulano tal, junto do qual ele depositara três mil dinares. Com isto, o
beduíno, «por ganância», lembra-se logo de quem é ele. O comerciante
pergunta-lhe como havia ele arranjado o tecido, e ele explica-lhe que
haviam assaltado um «citadino» que estava com uma rapariga, montados
numa cavalgadura, e que haviam repartido o lote do assalto, a rapariga, a
cavalgadura e o tecido, pelos três, calhando-lhe o tecido. Muito
simpaticamente, o comerciante convida-o para sua casa para lhe devolver os
três mil dinares. Mas em lá chegando, assegura-lhe que se ele não escrever
uma carta aos seus comparsas para devolverem a rapariga e a cavalgadura,
ele não sairá dali com vida. E assim consegue recuperar de novo a sua
mulher, tal como a cavalgadura, havendo oferecido o tecido e alguns
dinares àquele beduíno, depois de concluída a operação. Para terminar a
história, o comerciante e a sua mulher vivem felizes até a morte os separar.
A História dos dois vizires, Nureddine Ali do Egipto e Badreddine
Haçane de Baçorá também tem alguns elementos comuns com a História
de Ali, o talhante, com Harune Arraxide d’As Cento e Uma Noites mas,
mais uma vez, trata-se de uma história bem diferente – o que está patente no
próprio título – e bem mais curta, contada em três noites. No entanto, esta
história não faz parte do manuscrito principal usado na edição de
Tarchouna, mas de outro, havendo Tarchouna incluído na sua edição um
apêndice com histórias de outros manuscritos que não figuram naquele que
editou. Estes outros manuscritos tardios, já incluem várias histórias que têm
Harune Arraxide como protagonista, levando a crer que se trata de adições
posteriores.
A história d’As Cento e Uma Noites começa com o califa Harune
Arraxide, que se sente aborrecido e decide viajar com o seu vizir Jáfar, os
dois disfarçados de dervixes, e um dia chegam a Damasco. Aí, fazem-se
convidados de um célebre talhante da cidade, e quando a filha deste aparece
para lavar as mãos aos convidados, o califa sente um enorme desejo de a
possuir, e convence um Jáfar contrariado a propô-lo em casamento ao
anfitrião. Este, com vergonha de recusar, decide consultar a mãe, que fica
chocada que o marido queira casar a filha com um dervixe vagabundo, mas
perante a insistência, dá ao marido o rubi que foi o seu dote de casamento e
ordena-lhe que diga ao intermediário, Jáfar, que aquela jóia havia sido o
dote que o marido oferecera para se casar com a sua mulher, e que ele só
ofereceria a sua filha em casamento se o dote fosse um rubi ainda maior.
Jáfar oferece então três rubis enormes. Jáfar vai tentando chamar o califa à
razão em diversas situações, de que estaria a abusar da hospitalidade do
anfitrião, mas em vão, sendo que, ainda para mais, o califa quer que o
casamento se realize e seja consumado naquela mesma noite, o que
acontece. De manhã cedo entrega à rapariga uma corrente de ouro com um
um pequeno cilindro também de ouro26, dentro do qual há um papel com o
nome e a genealogia do califa, e diz-lhe que se o filho for uma rapariga, que
esta a use ao pescoço, mas se for um rapaz que este a use presa no
antebraço, como uma bracelete. Logo de seguida parte com Jáfar para
Bagdade e, para surpresa da família da rapariga, nunca mais volta.
Passam-se os devidos meses e nasce um rapaz. Uns anos mais tarde,
enquanto brincava com amigos, um dos catraios bate-lhe e chama-lhe
«bastardo». Ele responde que não é bastardo, que o seu pai é Ali, o talhante.
Mas o outro diz-lhe que não, que Ali é o seu avô, que o seu pai dormiu uma
noite com a mãe e nunca mais apareceu. O rapaz vai ter com a mãe a chorar
e exige-lhe a verdade, ameaçando que se mata com um punhal que tem na
mão. Ao saber da verdade, decide, contra a vontade da família, partir em
viagem para encontrar o pai. Ali, o talhante, vendo que ele não desiste,
equipa-o devidamente, dá-lhe uma quantidade avultada de dinheiro e
mercadorias, e fá-lo partir numa cáfila. Mas na viagem são assaltados e os
salteadores levam tudo. O rapaz consegue escapar-se e chega a Bagdade.
Perdido, ao passar diante da loja de um pasteleiro, este vira-se para ele, diz-
lhe que também é estrangeiro, que é de idade muito avançada e não tem
filhos, acabando por adoptar o rapaz, que aprende o ofício de pasteleiro.
Devido à enorme e indescritível beleza do rapaz, o negócio prospera a um
ritmo inimaginável, formando-se à porta da loja multidões de pessoas que
vão comprar doces só para o ver e falar com ele.
A notícia da sua formosura chega aos ouvidos tanto do califa como da
filha do vizir Jáfar, a qual passa a alimentar desejos pelo rapaz. Como a sua
intermediária não é capaz de o trazer ao palácio, ela manda que seja
construído um túnel até à loja do pasteleiro. Entretanto, o califa sai
disfarçado de dervixe, juntamente com o vizir Jáfar, para conhecer o rapaz.
Quando este vê o pai, sente o coração a palpitar e faz questão de o receber
com pompa e circunstância. Enquanto comem, abre-se um buraco no chão e
aparecem escravas da filha do vizir, trazendo avultada quantidade de
dinheiro para convencer o rapaz a dormir com ela. O vizir, vendo tal coisa,
fica furioso, mas o califa, visto que estavam disfarçados, dissuade-o de
tomar qualquer iniciativa, e até aconselha o rapaz a seguir as escravas.
Apesar de este se recusar veementemente, acaba por ceder à pressão do
califa e das escravas. Passa a noite com a filha do vizir e antes de partir esta
diz-lhe que tal sucederá todas as noites dali em diante. O califa manda o
governador prender o rapaz e decapitá-lo, mas quando o governador vê o
cilindro no antebraço do rapaz percebe que ele é filho de soberanos,
suspende a execução, e leva o cilindro ao califa. Este quando o vê
reconhece-o e desmaia de emoção. Tudo isto leva a que o rapaz se case com
a filha do vizir e se faça um enorme banquete com direito a festas na
cidade. E os dois vivem felizes até a morte os separar.
Tarchouna, na introdução da sua edição crítica, talvez sem ter em conta
as vários particularidades do ramo sírio e egípcio que já foram mencionadas
aqui e no preâmbulo, considera que As Cento e Uma Noites seriam mais
antigas do que As Mil e Uma Noites, quiçá mesmo a sua génese.
Certamente, a elaboração desta obra será anterior ao manuscrito de 1776
AD, mas neste caso não existe uma única referência à sua existência por
parte de outros autores e enciclopedistas, talvez porque circulasse em
ambientes demasiado familiares, tendo em conta que maioria dos
manuscritos proveio originalmente de bibliotecas particulares de famílias. A
única excepção é a indicada pelo estudioso turco Ḥājjī Khalīfah numa obra
do século xviii. Como refere Marzolph:
Esta menção encontra-se no catálogo de livros compilado pelo estudioso setecentista, o
turco Hājjī Khalīfa (m. 1657). […] Hājjī Khalīfa diz que As Cento e Uma Noites contém cem
histórias, o que leva a crer que ou viu um livro diferente do que conhecemos hoje ou que se
limitou a referir o livro sem que o tenha efectivamente lido. Conquanto curta e possivelmente
errónea esta referência ao livro possa ser, prova firmemente a existência d’As Cento e Uma
Noites mais de uma centena de anos antes do mais antigo manuscrito identificado até agora.

Não deixando de referir noutra passagem:


O estudioso russo Ignatij Krachkovskij chegou mesmo a sugerir que se datasse a origem da
colecção apontando para o início da segunda metade do século xiv.

Marzolph assinala que estes manuscritos foram produzidos no extremo


ocidente do mundo islâmico, isto é, no Al-Andaluz ou no Magrebe, sendo
tal evidente devido ao estilo da caligrafia e às personagens históricas
referidas, como os califas da dinastia omíada.
Mas a descoberta mais sensacional à volta desta questão deve-se ao
manuscrito recentemente descoberto pela Fundação Aga Khan, adquirido
num leilão da Sotheby’s em 200527. Esse manuscrito encontra-se
encadernado juntamente com outro que o antecede, sendo este uma cópia
do Livro de Geografia (Kitāb al-Jughrāfīyah) composto por Muḥammad
ibn Abī Bakr az-Zuhrī, cópia esta que se encontra completa e cujo colofão
contém, como data hegeriana, o mês de Rabīʿ ath-Thānī de 632 AH,
equivalente a finais de Dezembro de 1234 e inícios de Janeiro de 1235 do
calendário gregoriano28. Tudo indica que o livro foi composto em Granada.
Segundo Marzolph, o papel parece o mesmo nos dois manuscritos, a
caligrafia tem estilo muito semelhante, podendo até tratar-se do mesmo
calígrafo. Mas é arriscado tentar extrapolar conclusões, pois a parte d’As
Cento e Uma Noites não contém colofão, sendo uma versão incompleta
muito semelhante à do manuscrito trabalhado por Tarchouna, ainda que
termine abruptamente no início da 84.ª Noite. A sequência de histórias é a
mesma, contendo um total de 15 e, com excepção de três, começam todas
na mesma noite. Mais, só os fólios d’As Cento e Uma Noites estão
numerados, e foram-no «por uma mão europeia», sendo que as margens
destes também foram restauradas com técnicas «não anteriores a 1970», ao
contrário do Livro de Geografia. Como Marzolph afirma29:
As páginas restauradas d’As Cento e Uma Noites foram encadernadas conjuntamente com
as páginas por restaurar do Livro de Geografia apenas quando o seu restauro foi concluído. O
que quer que possa ter levado o anterior proprietário do manuscrito a proceder desta forma
não é claro, ainda assim gera alguma incerteza relativamente à possibilidade de autenticação
da data do segundo manuscrito pela do primeiro.

Apesar de parecer uma descoberta demasiado boa para ser verdade, pois
teríamos um manuscrito com um parente relativamente próximo d’As Mil e
Uma Noites mas mais antigo que qualquer outro manuscrito desta obra, a
datação ainda continua questionável.
Mesmo Tarchouna30, na introdução à terceira edição (2013) d’As Cento e
Uma Noites, chamava a atenção de que ainda não haviam sido feitas análise
químicas com o intuito de datar o papel de ambos os manuscritos. Sabemos
também que em inícios de Novembro de 2017, a investigadora Renata
Fontanillas contactou responsáveis do Museu Aga Khan com o intuito de
obter várias informações relativas ao manuscrito, nomeadamente se já
haviam sido feitas análises químicas de datação, e que a resposta a esta
questão foi negativa31.
Ficamos por isso sem saber se este irmão ocidental ou magrebino –
conforme o adjectivo que se prefira – d’As Mil e Uma Noites lhe seria
anterior ou não na sucessão cronológica, mas talvez a intertextualidade das
várias obras da família alargada d’As Noites seja bem mais complexa para
que se possa estabelecer cronologias simples, continuando qualquer estudo
sobre esta questão à mercê da escassa quantidade de elementos factuais
conhecidos. Novamente, ficamos com mais questões do que certezas.

PARTE II

Nesta segunda parte tecem-se algumas notas relativas a fontes literárias


conhecidas dos contos d’As Mil e Uma Noites, assim como se comentam
algumas expressões que dizem respeito sobretudo, mas não só, a este
segundo volume e à conclusão da última história que consta do Apêndice I
no terceiro volume. Para além das fontes literárias, também se fazem
algumas comparações com o texto árabe estabelecido pela edição de Bulaq
de 1835. Apesar de todas as críticas à forma como esta edição foi
construída32, a sua elaboração teve como base vários manuscritos, e a sua
consulta revela-se útil quanto baste, uma vez que esta, em vários casos, faz
a tradução do árabe médio33 dos manuscritos para o árabe padrão, o que,
sobretudo em certas passagens mais difíceis, facilita em certa medida a
compreensão dos próprios manuscritos. Em alguns casos houve mesmo
necessidade de colmatar lacunas recorrendo a esta edição, e até mesmo
segui-la em detrimento dos manuscritos, o que foi devidamente assinalado
por parêntesis rectos e em nota de rodapé. Dispensou-se, porém, de fazer
comparações com a edição de Calcutá II pois, apesar de esta também ter
sido consultada e das suas pertinentes divergências, é sobretudo uma
aprimoração do texto estabelecido pela edição de Bulaq.
Os comentários que se seguem serão feitos mais ou menos pela ordem
sequencial das noites, no entanto muitos figuram fora dessa ordem para
obedecer a um bloco temático como, por exemplo, a explicação de alguns
pratos de culinária, ponto por onde iremos começar.

Culinária n’As Mil e Uma Noites

Na 117.ª Noite são referidos, entre outros, três pratos: «sicbaj, guisados,
tiras de massa frita embebidas em mel de abelha».
O sicbaj (sikbāj) é um guisado agridoce de carne com vinagre, xarope de
fruta, e especiarias. Este prato já foi referido no primeiro poema da 49.ª
Noite, onde se menciona um prato de grous cozinhado «em molho
agridoce»34, referido novamente no início da 167.ª Noite, em que o dono da
casa menciona um «sicbaj de ganso engordado». Apesar do vinagre ser
talvez o único elemento comum, alguns dicionários traçam, com
reticências, a etimologia de «escabeche» na palavra sikbāj (na sua variante
iskabāj).
O livro de culinária de Muḥammad ibn al-Ḥasan al-Baghdādī, escrito por
volta de 1226 AD, com o título Kitāb aṭ-Ṭabīkh, doravante referido como
«O Livro de Culinária de al-Baghdadi»35, fornece a seguinte receita:
Corta-se a carne gorda em pedaços de tamanho médio, põe-se numa panela e cobre-se com
água, juntamente com coentros frescos, um pau de canela e sal quanto baste. Quando ferver,
tira-se a espuma e a gordura com uma concha, e deita-se fora. Depois, retiram-se os coentros
frescos e põem-se coentros secos. Depois, pega-se em cebola branca, alho-porro e, se for a
época, cenoura, caso contrário beringela. Descasca-se tudo e corta-se a beringela em cruz, [ou
seja, cada rodela em quatro bocados,] e ferve-se ligeiramente noutra panela em água e sal.
Depois retira-se a água e deita-se na [primeira] panela sobre a carne, acrescenta-se especiarias
e apura-se o sal. Quando estiver quase cozido, pega-se em vinagre de vinho e xarope
concentrado de fruta [geralmente de uva, ou tâmaras, ou alfarroba, ou romã] – há quem
prefira antes mel, mas com xarope é mais apropriado – mistura-se de forma a que o conjunto
fique equilibrado e despeja-se na panela, deixando-se a ferver durante uma hora. Quando for
altura de deixar de alimentar o fogo, retira-se um pouco do molho, ao qual se junta açafrão36
quanto baste, e põe-se de novo na panela. Depois, adiciona-se amêndoas doces descascadas e
partidas ao meio por cima do guisado, juntamente com um pouco de uvas, passas, e figos
secos. Cobre-se a panela durante uma hora para repousar na quentura [remanescente] do fogo,
limpando-se os bordos com um trapo limpo e borrifando-se com água de rosas. Depois de
repousar, retira-se [e serve-se].

Relativamente ao prato traduzido genericamente por «guisados», o texto


árabe menciona mais especificamente o guisado chamado ṭabāhajah, que
também já foi referido no primeiro poema da 49.ª Noite, onde também foi
traduzido genericamente por «guisados». O mesmo acontece para os
guisados referidos na 167.ª Noite pelo dono da casa na seguinte fala:
«Trazei os guisados». O Livro de Culinária de al-Baghdadi37 também
contém uma receita para confeccionar a ṭabāhajah, mencionando que se
prepara com carne do rabo de uma raça de ovelha conhecida por ter o rabo
muito grande e gordo. Esta raça de ovelhas, comum no Médio Oriente e na
Ásia, também é referida na 29.ª Noite, na descrição de uma rapariga que
figura antes do segundo poema, e no final da 105.ª Noite. Para além de
carne, leva sal, açafrão, cebola, hortelã-pimenta, aipo, coentros secos,
cominhos, alcaravia, canela, gengibre, pimenta, vinagre, sumo de uvas
verdes (isto é, ainda não maduras e, portanto, ácidas), sumo de limão,
sumagre (facultativo). No final, os vegetais são retirados e borrifa-se com
murrī38 envelhecido, decora-se com gemas de ovos e borrifa-se com água
de rosas.
Já o prato seguinte, as «tiras de massa frita», o texto árabe menciona
qarmūsh, dizendo também textualmente que estas tiras foram servidas
«embebidas em mel». Nesta passagem, a iguaria só é mencionada nos
manuscritos do ramo sírio, mas possivelmente trata-se de qarmūṣ, um
género de fritos, correspondendo a grafia qarmūsh a uma variação local
usada na época ou a erro de copista. A sua receita, na versão mais simples,
consiste em fazer a massa com farinha e sal (podendo levar alguns
condimentos como cominhos ou outros), amassá-la até deixar de se pegar às
mãos, e deixá-la a descansar durante duas horas; depois forma-se uma placa
com meio centímetro ou pouco mais de altura, corta-se em tiras finas de um
ou dois centímetros e frita-se em óleo. Pode-se polvilhar com açúcar ou
sementes de sésamo tostadas, entre outras possibilidades, sendo comum que
se embebam em mel. Há variantes mais sofisticadas, e por vezes a sua
apresentação lembra os coscorões, os quais têm a fama de haver sido
trazidos para a península Ibérica pelos cruzados vindos do Médio Oriente.
Tal como a expressão «embebidas em mel», o prato mencionado logo de
seguida, «frangos recheados com açúcar e pistácio», é uma tradução literal
do texto árabe. Mas na mesma noite é ainda mencionado outro prato que foi
traduzido genericamente por «um tacho de arroz banhado em gordura de
assado», sendo uma tentativa de fazer uma tradução descritiva do prato
mencionado no texto árabe por Jūdhābah. Este prato consiste basicamente
num assado de carne feito no forno, sendo que por baixo da carne há um
recipiente contendo a jūdhābah propriamente dita, que é uma base feita
geralmente de arroz e/ou fatias de pão, entre outras possibilidades, e que
absorve a gordura do assado, ganhando um sabor próprio.
Abū Jaʿfar Aḥmad ibn al-Ḥashshāʾ (século xiii), no seu livro Mufīd al-
ʿulūm wa Mubīd al-Humūm39, conforme citado por Dozy na entrada relativa
a esta palavra no seu Supplément aux dictionnaires arabes, afirma que o
jūdhāb designa «vários tipos de pratos que levam arroz, fatias de pão, e
afins, e prepara-se com legumes ou sem legumes, com açúcar ou sem
açúcar, e que é todo posto no forno [lacuna], por cima do qual se pendura
um animal para grelhar, como o ganso, o bode ou o carneiro. A gordura caí
em cima da jūdhābah, caso contrário não é jūdhābah.»
Ainda citado em Dozy (op. cit.), Ibn al-Jawzī (século xii), no seu livro
Luqaṭ al-Manāfiʿ fī aṭ-Ṭibb, afirma que o jūdhāb al-khubz (jūdhāb de pão)
é «benéfico para a tosse.» Por sua vez, Edward Lane, em An Arabic-English
Lexicon, lembra que este prato também é conhecido por umm al-faraj (a-
mãe-dos-alívios) porque «remove a ansiedade de uma pessoa pelo tempero
ou condimento». O Livro de Culinária de al-Baghdadi contém oito
variantes de receita para cozinhar este prato.
Por último, Buṭrus al-Bustānī, no seu dicionário Muḥiṭ al-Muḥīṭ,
diferencia o jūdhāb da jūdhābah, afirmando que o primeiro é um «prato de
comida que leva açúcar, arroz, noz e carne», enquanto a jūdhābah é «o pão
bem cozido num forno de brasas, sobre o qual é pendurado uma ave ou
carne que é grelhada, caindo a sua gordura sobre ele; e alivia-te da aflição
de comer o pão sem nada». Mas nem todos os autores fazem esta diferença,
visto que o que distingue ambas as palavras é mais de ordem morfológica e
menos de significado.
Na 121.ª Noite é mencionado outro prato chamado «zirbaja» (zīrbājah ou
zīrbāj). Trata-se de um ensopado de carne que leva açúcar, amêndoas,
vinagre, entre outros condimentos. Abū Jaʿfar Aḥmad ibn al-Ḥashshāʾ, no
seu livro Mufīd al-ʿulūm wa Mubīd al-Humūm, conforme citado por Dozy
(op. cit.), afirma que zīrbāj «significa em persa um prato com cominhos,
mas que hoje em dia [no século xiii] é um prato que leva açúcar, amêndoas
e vinagre». O Livro de Culinária de al-Baghdadi menciona que é feito com
carne gorda cortada aos bocados, vinagre de vinho, açúcar, amêndoas doces
descascadas e bem moídas, amêndoas descascadas e partidas ao meio, água
de rosas, vinagre, coentros secos em pó, pimenta, almécega pura e açafrão.
Menciona ainda que se pode adicionar uma galinha depenada e partida
pelas articulações.
Higiene

Ainda na mesma noite, faz-se referência a três produtos de higiene:


potassa, junça e sabão. Potassa designa aqui um produto para lavar as mãos,
produto este que, se misturado com água, faz espuma e serve de sabão. A
palavra usada no texto árabe, ushbān, tanto designa algumas espécies de
plantas que crescem próximo de águas salgadas pertencentes à família
Amaranthaceae, nomeadamente a Kali turgidum (conhecida em português
como barrilheira ou soda, entre outros nomes), como também os produtos
alcalinos extraídos das cinzas dessas mesmas plantas, daí ter-se escolhido o
termo potassa que, entre outros sentidos, designa genericamente várias
substâncias alcalinas. Como produto extraído das referida cinzas, o ushbān
é usado na fabricação de sabão para lavar as mãos e as roupas. O dicionário
Qāmūs al-Muḥīṭ (circa 1410 AD) de al-Fayrūzabādī atribui ainda
propriedades medicinais ao ushbān, nomeadamente que seria «benéfica
para a sarna e o prurido, abstergente, emenagoga, abortiva», e da raiz desta
palavra deriva o verbo taʾashshana que significa, conforme o mesmo
dicionário: «lavar as mãos com ushbān.» Por curiosidade, note-se ainda que
em árabe todo o produto alcalino obtido da queima de plantas era
designado, entre outras palavras, por qily, de onde provêm os termos alcali
e alcalino, sendo que hoje em dia usa-se a referida palavra árabe para
designar qualquer alcali.
Junça, suʿd no texto árabe, designa várias plantas do género Cyperus,
cujos rizomas e tubérculos têm sido utilizadas ao longo dos tempos,
nomeadamente na fabricação de perfumes e essências (particularmente as
espécies Cyperus longus, Cyperus articulatus, Cyperus pertenuis, Cyperus
maculatus, Cyperus scarious, Cyperus rotundus, entre outras, sendo que, na
perfumaria, os seus rizomas são conhecidos tecnicamente pelo termo
francês souchet); para fins medicinais (por exemplo, os dicionários árabes
clássicos usam o mesmo termo para designar um «perfume» destas plantas
que tem «uma eficácia espantosa nas feridas e úlceras de difícil
cicatrização»); e culinários (os tubérculos de várias espécies são
comestíveis e usados um pouco por todo o mundo; os da espécie Cyperus
esculentus usam-se também para fazer o célebre sumo chamado horchata
de chufa em castelhano, e orxata de xufes em catalão).
Quanto à palavra sabão, ṣābūn em árabe, palavra de origem germânica
por via do latim, é conhecida e dispensa explicações.
Culinária II

Regressando à culinária, na 167.ª Noite, o prato referido genericamente


por «papas de carne» é um prato de carne misturada com papas de grãos de
trigo, muito conhecido no Golfo mas também no Levante, chamado em
árabe harīsah (mais conhecido por harīs). Não confundir com um doce
originário do Egipto e disseminado pelo Levante até à Pérsia, Arménia,
Turquia e Grécia, também conhecido em árabe por basbūsah ou nammūrah,
ou com o molho de pimentos picantes famoso no Magrebe (particularmente
na Tunísia), visto que ambos partilham o mesmo nome (que significa
«triturado, esmagado, em puré»). Já apareceu no primeiro poema da 49.ª
Noite (traduzido também como «papas de carne»). O Livro de Culinária de
al-Baghdadi40 menciona que se prepara com carne gorda cortada em
bocados rectangulares, cujos ossos são retirados quando estiver quase bem
cozida, grãos de trigo, de boa qualidade, limpo, descascado e lavado, um
frango cortado aos bocados, paus de canela, sal, gordura fresca de rabo de
ovelha (da raça de rabo gordo atrás mencionada), cominhos, canela moída,
comendo-se com murrī41 envelhecido e com limonada fresca. Menciona
ainda que a sua confecção no forno é melhor do que em braseiro e que
demora uma noite inteira, mas hoje em dia as receitas mais usuais são mais
simples e rápidas. Em vez de gordura fresca de rabo de ovelha, também se
pode usar manteiga clarificada42.
Relativamente ao prato referido na 167.ª Noite por «polhas gordas
cozinhadas em coalha de leite», a expressão «cozinhadas em coalha de
leite» no texto árabe é m(?)ṣarah, termo este que também figura no
manuscrito com o título O Livro das Histórias Espantosas e das Estranhas
Novas, livro que, como veremos mais á frente, é a fonte literária da história
onde ocorre esta passagem, e que doravante será referido abreviadamente
por Histórias Espantosas.
Mas aqui levantam-se várias dúvidas, visto que esta palavra nos é
desconhecida. Talvez a intenção do texto fosse antes maṣīrah, que segundo
a tradução para árabe do Supplément aux dictionnaires arabes de Dozy, que
faz pequenas correcções à versão original em francês, designa uma «torta
(faṭīrah) recheada de carne», enquanto a versão original do mesmo
dicionário menciona apenas que é uma «pasta» (pâté). Pouco sabemos
sobre esta iguaria. No entanto, a edição crítica de Hans Wehr do texto árabe
das Histórias Espantosas43 corrigiu esta palavra para maḍīrah, que
curiosamente é a mesma que figura no manuscrito do Vaticano d’As Noites.
Este sim, é um prato bem conhecido, também descrito em O Livro de
Culinária de al-Baghdadi. Trata-se de um prato de carne preparado em
coalha de leite com várias especiarias. Por estas razões, optou-se por esta
última leitura, mas o critério é, de certa maneira, uma escolha subjectiva do
tradutor, não sendo de excluir que não se trate de uma gralha mas um prato
apenas conhecido numa área geográfica reduzida e durante a época de
produção do manuscrito. Note-se ainda que a palavra maṣīrah também
significa tripas ou intestinos, podendo imaginar-se algum género de
salsichas, mas esta leitura é forçada e improvável. Os manuscritos do ramo
egípcio não mencionam nenhum deste pratos neste trecho. Note-se que
todos os termos árabes referidos são graficamente parecidos e facilmente
susceptíveis a erro de copista.
Ainda na mesma noite, traduziu-se lawzīyah por «bolinhos de amêndoa».
Estes bolinhos de amêndoa são geralmente cortados como bolachas em
forma de crescente. No entanto, nas Histórias Espantosas figura antes
lawzīnj, palavra também composta de lawz (amêndoa), mas que designa
uma espécie de pastéis recheados semelhantes aos qaṭāʾif (ver parágrafo
seguinte), com forma triangular (lembrando a chamuça), e que são
enriquecidos com óleo de amêndoa. Nas Histórias Espantosas é ainda
adicionado o adjectivo «suculento». Tanto o lawzīnj como os qaṭāʾif são
suculentos, ao contrário da lawzīyah. O referido lawzīnj é porém
mencionado na 233.ª Noite e foi traduzido como «pastéis de amêndoa
recheados».
Quanto a qaṭāʾif, traduzido simplesmente por «pastéis», designa um tipo
de pastéis fritos recheados com um doce de nozes e coco, ou queijo fresco,
entre outras possibilidades, geralmente adocicadas com açúcar ou mel (ou
um xarope), mas também há quem invente os seus próprios recheios ou use,
nomeadamente hoje em dia, outros doces como chocolate em creme com
avelã. A massa, feita de farinha, é previamente frita de um dos lados, como
um crepe, e depois de se colocar o recheio no centro dobram-se e são fritos
em óleo (ou assados no forno), podendo depois ainda ser polvilhados com
frutos secos triturados, ou regados com mel ou um xarope. Também
apareceu na 28.ª Noite numa versão mais requintada como «pastéis
almiscarados recheados» (qaṭāʾif bi-l-misk muḥshīyah).
A 167.ª Noite refere ainda uma «geleia de amêndoa» (khabīṣat al-lawz).
Segundo O Livro de Culinária de al-Baghdadi, esta geleia faz-se
misturando açúcar com um pouco de água de rosas até ficar uma pasta
consistente. Depois junta-se amêndoa doce descascada e triturada o mais
fino possível. Mistura-se tudo muito bem e junta-se ainda um pouco de
farinha, misturando novamente.
O «doce de cevada» referido na 267.ª Noite é um prato conhecido em
árabe por sawīq, feito à base de cevada moída, com uma gordura (por
exemplo, manteiga clarificada ou gordura de rabo de ovelha, mas pode ser
outra), água, tâmaras e açúcar. É mais uma papa mas, por razões de
simplificação na tradução, optou-se por «doce de cevada», para evitar uma
tradução descritiva tal como «papas de cevada com gordura, tâmaras e
açúcar».

Fontes das histórias

A fonte da História do Vedor: o jovem de Bagdade e a criada da senhora


dona Zubeida é bem conhecida, provém das obras escritas por um juiz de
Bagdade do século x chamado al-Muḥassin ben ʿalī at-Tanūkhī, doravante
referido por Tanukhi. A mesma história figura em duas obras deste autor,
nomeadamente: Al-Farj baʿd ash-Shiddah44 e Nishwār al-Muḥāḍarah wa
Akhbār al-Mudhākarah45. Ambas as obras de Tanukhi consistem numa
recolha de relatos verídicos (anedotas) e de conversas que o autor ouvia nos
salões de convívio das elites de Bagdade, não faltando poemas declamados
pelos convivas. Assim, esta história consta, na sua obra, como um relato
verídico contado por um comerciante de Bagdade, e apesar de pequenas
diferenças entre a versão que surge em ambas das suas obras, as
semelhanças entre estas e a história que consta n’As Mil e Uma Noites são
tantas, incluindo frases quase copiadas ipsis verbis, que é quase impossível
que o contador d’As Noites não conhecesse este relato de Tanukhi, mesmo
que indirectamente por via oral. Ainda assim, importa referir algumas
diferenças substanciais, pois a forma como uma anedota supostamente
baseada em factos reais foi apropriada atesta a criatividade e fantasia dos
autores d’As Noites, os quais não se pouparam a alguns exageros.
Em primeiro lugar, em Tanukhi, a rapariga que corteja o mercador não é
criada de Dona Zubeida, a mais conhecida e notória mulher do califa
Harune Arraxide (763-809), mas a criada da mãe do califa Almuqtadir
Billāh (895-932). Também os dez dias que o mercador passa no palácio
depois de conhecer Dona Zubeida não existem em Tanukhi, onde ele sai do
palácio logo depois de ser apresentado à mãe do já mencionado califa. Mas
note-se que o episódio da 126.ª Noite com o suposto «jarro de água de
Zamzam» que se entorna também consta em Tanukhi46.
N’As Noites o mercador limpa mas não lava as mãos, enquanto em
Tanukhi lava as mãos com potassa, mas não suficientemente bem por estar
com pressa, pois nesta versão ele tinha ido à cozinha às escondidas porque
estava com demasiada fome e não conseguia esperar mais pela comida do
banquete de casamento. A birra da rapariga em Tanukhi é muito mais
moderada, pois quando ela sente o cheiro nas mãos dele, afasta-o com um
pontapé e levanta-se para ir embora. O mercador pergunta-lhe então qual o
seu pecado e ela explica-se. Então, o mercador pede desculpas relatando a
razão do seu cheiro, e prometendo nunca mais comer zirbaja47 sem lavar as
mãos quarenta vezes, não se detalhando com que produto, enquanto que
n’As Noites são «quarenta vezes com potassa, e quarenta com junça, e
quarenta com sabão, ao todo cento e vinte». Além do mais, se em Tanukhi o
descontentamento da rapariga é rapidamente resolvido amigavelmente entre
os dois, n’As Noites ela fica dez dias sem lhe falar, findo os quais ainda lhe
corta os polegares, detalhe de crueldade que não consta em Tanukhi.
Na 124.ª Noite, onde se lê: «E ela viu-me enquanto eu dava ao criado os
dinares», há uma lacuna em relação ao texto de Tanukhi, tal como consta
em al-Farj baʿd ash-Shiddah. Pois, no que diz respeito a esta parte, lê-se:
«E voltei para junto dela, sendo que [anteriormente] lhe havia dito: “Vou
pagar os dinares [que devo aos outros mercadores]” Então, ela perguntou-
me: “Pagaste os dinares [que devias]?” E riu-se, porque me havia visto com
o criado.» Apesar de, em ambos os casos, ela perceber que o mercador quer
pagar ao criado para que este aja como intermediário, em Tanukhi essa ideia
é reforçada com a justificação desconexa do mercador e a reação da
rapariga a esta.
Tenha-se ainda em atenção a figura da governanta, que não é mencionada
textualmente nesta história, mas que aparece na História de Cámar-
Azzamane. A palavra árabe de origem grega qahramān(ah) refere-se a
alguém que faz a gestão de uma casa, um mordomo ou uma governanta.
Inicialmente, a função desta governanta no palácio do califa estava mais
relacionada com a entrega e recepção de correspondência de e para o califa,
mas com o progressivo confinamento do califa ao palácio resultante da sua
perda de poder durante a dinastia abássida, a figura da governanta adquire
tanto poder político que, em muitos casos, chegava a ser superior ao do
próprio califa, sendo as governantas que elegiam e destituíam os próprios
emires e altos dignitários do califado. Sabe-se ainda que, durante o califado
de Almuqtadir Billāh, quem de facto detinha o poder político era a sua mãe.
Esta tinha uma escrava que desempenhava o papel de governanta, sendo
igualmente poderosa. Nas versões de Tanukhi tudo indica que a criada ao
serviço da mãe do califa Almuqtadir Billāh seria esta governanta, até
porque era o único género de «criada» autorizada a sair do harém do palácio
a seu bel-prazer, facto que é mencionado explicitamente nas versões de
Tanukhi.48 Talvez não seja de excluir que também n’As Noites a criada de
Dona Zubeida fosse na realidade uma governanta, já que ela é a «sua aia
favorita».

No poema da 148.ª Noite, o último verso faz um trocadilho entre a tarefa


do zabbāl (lixeiro) e a do waqqād (fogueiro). O fogueiro, aquele que acende
e cuida do fogo necessário a determinada instalação, por exemplo uma casa
de banhos (ḥammām), usa excrementos de animais, recolhidos pelo lixeiro,
como combustível (wiqād) para acender o fogo. Por sua vez, waqqād
(fogueiro), além de nome de profissão é também um adjectivo com o
sentido de «ardente, abrasador; em chamas; flamejante, brilhante, (estrela)
radiante».

A História do Barbeiro contada nas 151.ª e 152.ª Noites, e que serve de


enquadramento para o barbeiro contar as histórias dos seus irmãos ao califa,
é muito parecida com a que consta na obra As Pradarias de Ouro de
Almaçudi, mas na versão aí narrada passa-se no tempo do califa
Almamune49, que governou entre 813 a 817 e entre 819 e 833 AD. Para
além disso, não há um barbeiro que narre o que lhe aconteceu na primeira
pessoa, mas um relato de um acontecimento supostamente verídico narrado
na terceira pessoa, e a personagem que pratica as mesmas acções que o
barbeiro é referida antes pelo epíteto de «um curioso» (ṭufaylī).
Como é referido no preâmbulo, esta obra, redigida na primeira metade do
século x, contém das mais antigas referências a um livro chamado As Mil
Noites, o qual terá sido uma das várias influências literárias na construção
d’As Mil e Uma Noites. A fonte desta história entre o barbeiro e o califa não
deveria ser desconhecida dos redactores da edição de Bulaq, pois esta
versão contém pequenas alterações para estar mais próxima da história tal
como consta n’As Pradarias de Ouro.

As histórias dos seis irmãos contadas pelo barbeiro que começam no final
da 152.ª Noite, assim como a História de Jullanar do Mar, são retiradas de
um livro anónimo com o título O Livro das Histórias Espantosas e das
Estranhas Novas (e tal como já mencionado, será referido abreviadamente
por Histórias Espantosas), que remonta pelo menos ao século xiv, datação
do único manuscrito integral conhecido, o qual que se encontra no Ayasofya
Müzesi em Istambul50. A história que consta nesse livro chama-se História
dos seis indivíduos: o corcunda, o zarolho, o cego, o paralítico, o homem
de lábios cortados, e o vendedor de vidro51.
Parece indubitável que a fonte das histórias dos irmãos do barbeiro seja
este manuscrito, e se não este exactamente, pelo menos um outro contendo
o mesmo livro, não sendo de excluir que o redactor d’As Noites possa ter
ouvido essas histórias e tentado reproduzi-las de memória, em vez de copiar
o texto. A enorme semelhança, incluindo longos excertos que se
reproduzem ipsis verbis, corrobora a ideia de que é esta a fonte literária em
que esta história se baseou. No entanto, nem sempre as histórias foram
devidamente transpostas para o contexto d’As Mil e Uma Noites, deixando
elementos do conjunto original que não se encaixam n’As Noites. Por
exemplo, um erro recorrente, mas corrigido nesta tradução, é que as
histórias originais são narradas na primeira pessoa, enquanto aqui o são na
terceira e por vezes essa alteração não foi feita na transposição. São
inúmeros os casos em que tal acontece.
Convém mencionar que nas Histórias Espantosas não é um barbeiro que
conta as histórias dos seus irmãos, mas são os próprios protagonistas que as
contam na primeira pessoa a um rei que, certa noite, sofrendo de insónias,
pediu à governanta que fosse buscar quem lhe contasse histórias
extraordinárias. Esta trouxe de um beco onde havia pedintes e gente da mais
pobre condição social «seis indivíduos: o corcunda, o zarolho, o cego, o
paralítico, o homem de lábios cortados, e o vendedor de vidro», e cada um
deles contou a sua história ao rei. Note-se, ainda, que várias vezes onde
seria expectável encontrar a palavra «califa» ou título equivalente n’As
Noites, aparece antes «o rei», o que se depreende que haja sido transposto
das Histórias Espantosas por distração52. Para comodidade de leitura, esta
tradução corrigiu tais aparentes incoerências.
Nalguns casos em que não foram feitas correcções, optou-se pela menção
«sic» em nota de rodapé. Por exemplo, no início da 162.ª Noite, a expressão
dita pelo barbeiro, «o pai dele», em referência ao seu irmão, «o das orelhas
cortadas», soa pouco natural, visto que de seguida é referido que o pai do
irmão «deixou-nos setecentos dirames, que repartimos entre nós havendo
cada um ficado com cem dirames». A transposição terá sido feita de forma
pouco reflectida, alterando simplesmente – com algum desleixo, como já
mencionámos – a primeira pessoa para a terceira, pois nas Histórias
Espantosas, onde os seis indivíduos não são aparentados, quem narra esta
história diz antes «o meu pai». Uma transposição bem feita e atenta teria
com certeza optado por «o nosso pai». No entanto, o narrador d’As Noites
teve o cuidado, para efeitos de coerência, de alterar o valor e a repartição da
herança, pois nas Histórias Espantosas o pai da personagem desta história
não deixa no total setecentos dirames repartidos por sete irmãos, mas
apenas cem, dando a entender que o vendedor de vidro teria sido o único a
beneficiar da herança do pai.

Gralhas e lacunas

Por outro lado, a comparação entre as Histórias Espantosas e As Mil e


Uma Noites leva a crer que algumas das lacunas encontradas no manuscrito
d’As Noites não podem ser elipses propositadas, mas erros de cópia ou de
reprodução feita de memória. Nestes casos, resolveu-se colmatar o texto
desta tradução com partes retiradas das Histórias Espantosas, figurando
estas partes entre parêntesis rectos. Só aquelas lacunas que pareciam
demasiado pertinentes foram completadas. Sem dúvida que muitas outras se
referem a detalhes que só iriam enriquecer o texto d’As Noites, mas o
objectivo desta tradução não foi trazer ao leitor uma versão que misturasse
fontes diferentes, fabricada ao gosto do tradutor, mas traduzir o que consta
no manuscrito mais antigo d’As Noites. Note-se ainda que n’As Noites há
detalhes que não constam nas Histórias Espantosas, e outros que talvez até
constassem mas que não foram devidamente copiados para o manuscrito
mencionado. Por exemplo, o excerto que começa na expressão «e ele
interveio», no último parágrafo (sem contar com as falas de Dinarzade e
Xerazade) da 166.ª Noite até ao início da noite seguinte, quando o quinto
irmão do barbeiro comparece diante do governador, não consta nem nas
Histórias Espantosas nem nos manuscritos do ramo egípcio. Trata-se de
uma originalidade presente só no ramo sírio.
Entre as duas versões, a do manuscrito d’As Noites usado nesta tradução
e a que consta nas Histórias Espantosas, existem diferenças, e nem sempre
a versão d’As Noites é a que fica a ganhar em riqueza diegética. Por
exemplo, no final da 154.ª Noite, o alfaiate passa a noite no moinho,
convencido de que iria ter relações sexuais com a criada da suposta amante,
visto que, por uma razão pouco clara, talvez como forma de o alfaiate ter
acesso à casa, a amante convencera-o a casar-se com a criada. Estes
acontecimentos que explicam a razão de o alfaiate passar a noite no
moinho, à partida um tanto rebuscados, não aparecem nas Histórias
Espantosas, onde o alfaiate tem antes um encontro com a amante, depois de
a criada desta o ter informado que, naquela noite, o marido não ia estar em
casa. Mas mal o alfaiate e a amante haviam acabado de comer, o marido
aparece, e o alfaiate foge para o moinho, depois da amante ter sugerido que
ele assim fizesse e que enfiasse o jugo na cabeça para passar despercebido.
N’As Noites é antes o moleiro, pago pelo marido da amante, a colocar-lhe o
jugo, confundindo-o supostamente com um mulo, talvez por estar escuro.
Nas Histórias Espantosas o resto do que acontece no moinho, incluindo os
diálogos e as chibatadas, é muito semelhante, mas em vez de ser o moleiro
é o marido a desempenhar o mesmo papel. Saliente-se ainda que a aparição
do marido só foi uma verdadeira surpresa para o alfaiate, pois as acções do
marido e da sua mulher resultam de um plano previamente acordado entre
ambos.
Outro exemplo interessante consta na 167.ª Noite, quando o anfitrião diz:
«Trazei-lhe outro vinho.» Nas Histórias Espantosas o convidado diz que
está habituado a beber vinhos mais envelhecidos, e o anfitrião manda vir
um vinho com vinte anos. Este detalhe não aparece nos manuscritos do
ramo sírio, mas consta, com algumas pequenas diferenças e mantendo
sempre a idade de vinte anos, em manuscritos do ramo egípcio, apesar de
não aparecer na edição de Bulaq. Este elemento poderá ter sido
reintroduzido no ramo egípcio, ou poderia constar na versão matriz d’As
Noites, mas sobreviveu só no ramo egípcio. Talvez este exemplo seja
demonstrativo de como manuscritos mais tardios poderão ter conservado
elementos que não sobreviveram em manuscritos mais antigos, ou de como
os redactores desses manuscritos, talvez conhecendo a origem dessa
história, tenham recuperado esses elementos. Ou, ainda, talvez diferentes
contadores conhecessem a estrutura e o índice de contos d’As Noites, mas
fossem buscar essas histórias a fontes diversas que não manuscritos
contendo formalmente As Mil e Uma Noites.
Mesmo que eventualmente algumas partes nas Histórias Espantosas
possam ser mais ricas ou mais bem construídas, não se fizeram quaisquer
correcções nem se assinalaram as diferenças, excepto em casos de
necessidade maior e devidamente assinalados. Nesta tradução optou-se por
dar voz a um manuscrito em particular, e não por reconstruir as histórias
como elas seriam numa suposta origem ou fonte, cuja busca levasse talvez a
outra fonte, e essa a outra, e por aí adiante. Para todos os efeitos,
independentemente das suas origens, as Histórias Espantosas e As Mil e
Uma Noites são duas obras distintas e não faz sentido corrigir As Noites,
sobretudo quando nem sempre é certo se são gralhas ou diferenças
propositadas.
Porém, gralhas indubitáveis foram devidamente corrigidas. A maioria
resulta da troca de personagens, seja pelos nomes ou pelos pronomes.
Nestes casos e noutros mais complexos, o texto das Histórias Espantosas
ajudou muitas vezes nessa tarefa, muito mais do que outros manuscritos
d’As Noites que reproduzem por vezes as mesmas gralhas ou do que a
edição de Bulaq, que eliminou ou transformou as passagens mais obscuras.
Por exemplo, na 162.ª Noite, onde está escrito «à sua banda havia um
alfaiate», no texto árabe lê-se antes «à sua banda havia uma parede». A
leitura das Histórias Espantosas e a própria narrativa não deixam dúvidas
de que é uma gralha, e em vez de «parede» (ḥāyīṭ) deve ler-se «alfaiate»
(khayyāṭ), sendo que ambas as palavras em árabe podem prestar-se
facilmente a erro de copista. Caso contrário, o alfaiate que é mencionado na
noite seguinte apareceria do nada. Por sua vez, o ramo egípcio também
integrou esta gralha que consta nos manuscritos do ramo sírio, e pode dizer-
se que todos os manuscritos relevantes d’As Mil e Uma Noites mencionam
que o quinto irmão «se encostou a uma parede», sem referir «alfaiate»,
nesse momento do fio narrativo. Mas depois de o quinto irmão pontapear o
cesto e partir os vidros, a personagem do alfaiate – tal como nas Histórias
Espantosas – interpela-o, acusando-o de que tal incidente resultara do seu
orgulho, ou manias de grandeza, como se tivesse ouvido o diálogo interior
do quinto irmão. Aliás, o manuscrito Arabe 3615 da Bibliothèque nationale
de France, do ramo egípcio, menciona explicitamente que, depois de os
vidros se partirem, havia um alfaiate que estava a ouvir as palavras do
irmão do barbeiro (e portanto estaria a falar em voz audível e não para si
mesmo), e parece ser o único manuscrito que tenta solucionar a aparição
repentina do alfaiate, aproveitando este momento da narrativa para
introduzir a personagem. Pelo contrário, a edição impressa de Bulaq seguiu
outra via, mencionando que a pessoa que interpelou e censurou o irmão do
barbeiro era o seu «irmão alfaiate», supõe-se que o mesmo que é
mencionado na história do primeiro irmão, mas este «irmão alfaiate» não
deixa de surgir do nada no meio da história.
No entanto, desde que houvesse margem de dúvida suficiente, evitou-se
fazer correcções em casos onde talvez se trate de erros de copista. Por
exemplo, na 156.ª Noite, quando a velha afirma: «Deixai-o sossegado, é um
vagabundo e nós precisamos dele», em vez de «vagabundo» (ṣāyiʿ, e trata-
se de uma palavra do árabe coloquial egípcio), nas Histórias Espantosas
consta «artesão» (ṣāniʿ), e tal também sucede em dois manuscritos do ramo
egípcio, o que corrobora a ideia de possível erro de copista. Quanto à edição
de Bulaq, não contém este trecho. No entanto, os dois outros manuscritos
do ramo sírio que contêm esta história (Arabic MS 2699 do India Office
Records, actualmente na British Library; e Codex Vaticanus Arabo 782)
mencionam «perdido» (ḍāʾiʿ), palavra que invoca vagamente a ideia de
«vagabundo», e à luz destes manuscritos este excerto tanto poderia ser
traduzido como «… é um perdido…» (e talvez um vagabundo), como por
«…está perdido…» ou «…anda perdido…». Todas estas palavras ( ) têm
uma grafia em árabe demasiado semelhante, tornando-as facilmente
susceptíveis a erro de cópia. Na edição crítica d’As Noites de Muhsin
Mahdi, este optou por corrigir o texto para «artesão». Talvez faça mais
sentido dizer «que nos falta» um «artesão» do que um «vagabundo», mas
não há forma de saber ao certo se a alteração presente no manuscrito mais
antigo d’As Noites foi propositada ou se é simplesmente uma gralha. Neste
caso, consideramos que ambas as opções – manter «vagabundo» ou corrigir
para «artesão» – são perfeitamente válidas e correctas, mas optámos, assim
como noutros casos e sempre que fosse possível e viável, pela fidelidade ao
manuscrito principal usado nesta tradução, com os eventuais riscos que tal
escolha possa acarretar.
Outro exemplo interessante ocorre no início da 192.ª Noite, na seguinte
passagem: «as gentes precipitaram-se a ir ter com ele, e havia quem ficasse
em silêncio, e quem o consolasse, e quem lhe exigisse os seus bens». Na
parte traduzida por «em silêncio», o texto árabe menciona sāmit, palavra
desprovida de significado. Trata-se de um erro de copista, onde em vez de
ṣāmit (silencioso, em silêncio) se grafou sāmit. Trata-se de resto de uma
gralha corrente ao longo do texto, talvez por interferência fonética das
línguas coloquiais, e existem inúmeras passagens onde a mesma aparece,
não se levantado dúvidas em relação à correcção necessária, assim como
existem inúmeros outros casos de troca entre as chamadas letras enfáticas e
não-enfáticas. O copista do manuscrito Codex Vaticanus Arabo 782 da
Biblioteca Apostólica Vaticana apercebeu-se disso e corrigiu a palavra
devidamente. No entanto, não se deixa de assinalar aqui que a edição de
Bulaq e o manuscrito Arabe 3612 da BnF corrigiram antes por shāmit, que
significa «aquele que se regozija com o mal dos outros» – que pratica o que
em alemão se chama Schadenfreude e em árabe shamātah. Esta passagem
seria traduzível então por: «… e havia quem se regozijasse com o seu seu
sofrimento, e quem o consolasse, e quem lhe exigisse os seus bens». A
correcção feita na edição de Bulaq e no mencionado manuscrito poderá
eventualmente estar errada, pelas razões já mencionadas, mas do ponto de
vista literário até torna o texto mais interessante. No entanto, optou-se
sempre pela opção mais plausível, que neste caso seria ṣāmit e não shāmit,
e não pela opção literariamente mais interessante.

Moral da história

A História de Nureddine Ali ibn Baccar e da escrava Xamsennahar


pertence ao género de narrativas que relatam um amor impossível, tal como
Majnune e Leila ou Romeu e Julieta. É a típica história romântica que não
acaba bem. Nela, o califa Harune Arraxide caracteriza-se por ser tudo
menos alguém que pratica a justiça económica, social ou muito menos
marital, nem corresponde à encarnação dos ideais da liderança islâmica
correcta e bem guiada, parafraseando o que já se disse no Preâmbulo sobre
esta personagem. Mesmo na História das três moças de Bagdade, é
duvidoso, pelo menos sob um certo olhar contemporâneo, que o seu
desfecho, marcado pelo regresso à normalidade patriarcal, seja assim tão
«feliz» quanto isso. Na História de Nureddine Ali ibn Baccar e da escrava
Xamsennahar, o célebre califa é um déspota que graças ao seu poder dispõe
de uma quantidade fabulosa de mulheres e concubinas a seu bel-prazer.
Quanto a Nureddine Ali ibn Baccar, este é retratado como um «jovem
daqueles que descendiam de reis da Pérsia», um estrangeiro a viver em
Bagdade, muito possivelmente um exilado político – a não ser que a sua
suposta ascendência nobre fosse só uma tentativa de obter algum status quo
– que se apaixona, sendo nisso correspondido, por Xamsennahar, a
concubina predilecta do califa. De um lado temos um estrangeiro e uma
escrava sinceramente enamorados, e do outro o proprietário dessa escrava,
que pode ser dono das mulheres que quiser devido ao seu poder e não
necessariamente em resultado de uma ligação amorosa e romântica.

Já a História da escrava Anice Aljalice e de Nureddine Ali ibn Khacane


é, pelo contrário, uma história amorosa que acaba bem, graças à intervenção
do califa Harune Arraxide, atestando que n’As Noites este califa assume
múltiplas facetas, ao gosto do contador. Poderia dizer-se que não há um
califa Harune Arraxide mas vários, havendo também um grande hiato entre
o califa da vida real e o(s) califa(s) de histórias imaginárias.
Curioso também constatar que Nureddine Ali ibn Khacane é um boémio
desprovido de qualquer moral que uma noite chega a casa ébrio e desflora
uma escrava, Anice Aljalice, que nem pertencia à sua família, e por quem
se enamora verdadeiramente. Quando o pai morre, a única coisa que sabe
fazer é esbanjar a fortuna do pai em festas com amigos. Na penúria, foge
com Anice Aljalice de Baçorá para Bagdade, e graças ao califa é escolhido
para ser rei de Baçorá, vivendo feliz para sempre com Anice Aljalice. Em
histórias de carácter moralista, tal personagem nunca teria tido direito ao
seu prémio final.
Quanto a Muhammad ibn Suleimane Azzainabi (Muḥammad ben
Sulaymān az-Zaynabī), referido no início desta história, talvez se trate de
uma personagem semi-histórica. Terá havido no século ix um imame em
Baçorá, e não um rei, chamado Muḥammad ben Sulaymān ben ʿabd Allāh
ben Muḥammad ben Ibrāhīm, conhecido por Azzainabi (az-Zaynabī).
Também nas Histórias Espantosas é referidoum Muḥammad ben Sulaymān
az-Zaynabī, a quem o califa Harune Arraxide entregou a cidade de Baçorá.

Geografia humana
No final da 209.ª Noite referem-se «todos os géneros de raparigas, tais
como núbias, senegalesas, francas, zagauas, gregas, turcas, tártaras, e
outras». O termo que figura no texto árabe para «senegalesas» é takrūrīyah
(ou tukrūrīyah, segundo alguns dicionários), que deriva do nome de um
antigo Estado, Takrur, que existiu entre os séculos ix e xiii na África
Ocidental, na parte baixa do rio Senegal, nos territórios hoje compreendidos
pelo Senegal e Mauritânia. No entanto, o termo é usado em árabe, pelo
menos na época, para designar genericamente todas as pessoas provenientes
da África Ocidental Subsariana. Resolveu-se nesta tradução usar também
uma sinédoque, recorrendo a um nome mais conhecido e relacionado com
aproximadamente a mesma região que o do antigo Estado de Takrur. A
tradução do termo zaghwīyah por zagauas (povo que habita uma região
compreendida entre o Leste do Chade e o Oeste do Sudão) não é tida por
certa, e não nos foi possível encontrar em nenhuma fonte documental
(incluindo dicionários, enciclopédias e tratados de geografia árabes, antigos
e modernos) qualquer referência a um povo referido por este nome. A
escolha de «zagauas» partiu da mera suposição que em vez de zaghwīyah
talvez o pretendido fosse zaghāwīyah. Não deixa de ser curioso que a lista
de povos enunciada, com excepção precisamente dos zagauas, começa na
África Oriental, passando pela África Ocidental, França, Anatólia e
Tartária, fazendo o que se assemelha vagamente a uma rotação no sentido
dos ponteiros do relógio à volta do mar Mediterrâneo. Assim, pareceria
lógico pensar que as zaghwīyah viessem de uma região da Europa, mas no
entanto nada assegura que o autor quisesse listar estas referências numa
determinada ordem espacial e geográfica (e aliás isso não acontece em
vários outros manuscritos). O termo zaghwīyah aparece também nos
manuscritos Codex Vaticanus Arabo 782 da Biblioteca Apostólica Vaticana,
Arabic 207 da Christ Church Library (Oxford), e Arabe 3612 da BnF. No
manuscrito Arabic MS 2699 do India Office Records aparece grafado
zaghzīyah, sendo possivelmente um erro em que o «z» foi trocado pelo «w»
(em árabe, estas letras são susceptíveis a erro de cópia). Outros manuscritos
fazem listagens mais ou menos semelhantes, com referência a povos da
Ásia, Europa e África. Dos termos de outros manuscritos que aqui não
constam pode-se mencionar: abissínias, berberes (nome pelo qual
antigamente eram conhecidos os amazighes), georgianas, circassianas, e
ainda outro etnónimo que também não foi possível identificar.
Fauna e flora

Relativamente aos «peixes negros» mencionados na 214.ª Noite, o nome


que parece grafado no manuscrito é «s-b-ḥ», enquanto nos dois outros
manuscritos do ramo sírio consta «s-y-ḥ». Quanto aos manuscritos do ramo
egípcio, a comparação é menos detalhada, tal como na edição de Bulaq,
onde consta simplesmente: «uvas de diversas cores, as vermelhas como
rubis e as pretas como ébano». Quanto à palavra do nosso manuscrito
grafada como «s-y-ḥ», Muhsin Mahdi, na sua edição crítica do texto árabe
d’As Noites, corrige esta palavra para sīj, mencionando no aparato crítico:
«talvez seja um plural de sāj?». «Talvez», com ponto de interrogação,
porque esse plural não é aceite pelos dicionários, mas nada obsta que fosse
usado coloquialmente. Sāj designa geralmente a teca (Tectona grandis) e a
madeira desta árvore. No entanto, os dicionários árabes também referem
que o nome é usado para uma madeira muito escura ou negra proveniente
da Índia, muito possivelmente o jacarandá da Índia, também conhecido por
ébano de Madagáscar (Dalbergia latifolia). Apesar do nome, não é
geralmente considerado um ébano asiático, sendo aliás menos escura do que
os ébanos. Por sua vez, em alguns textos árabes sāj é usado também, de
forma pouco correcta, para designar ébanos africanos, e por isso talvez
fosse usado também para qualquer tipo de ébano ou árvore com madeira
muito escura ou negra. Na 172.ª Noite, sāj foi traduzido por «teca» na
expressão «sofás de teca ferrados com prata». Como se pode depreender,
em vez de teca poderá eventualmente ser uma das outras madeiras
mencionadas.
A escolha da paráfrase «peixes negros» na 214.ª Noite é uma
interpretação livre feita a partir do contexto, pois ao lado de corais e pérolas
um peixe é mais expectável que uma árvore, mas que não corresponde
necessariamente a uma tradução correcta.
Já as «sardinhas-de-água-doce» mencionadas na 220.ª Noite
correspondem ao peixe referido no texto árabe por ray (não confundir com
o sentido mais modernamente usado desta palavra para designar os peixes
da família da rāyah, conhecida em português por «raia»). Trata-se de um
peixe que abunda no Nilo, peixe este que também é conhecido por «ṣīr» e
por «sardīn al-myāh al-ʿadhbah» (isto é, «sardinha-de-água-doce»). É um
peixe muito semelhante à sardinha, apesar de não pertencer ao mesmo
género taxonómico, mas tal como ela tem a barbatana caudal bifurcada, só
que de cor vermelha clara, que se torna mais pronunciada na época de
acasalamento. As outras barbatanas (dorsal, peitorais, ventral, anal, e o que
parece ser uma barbatana adiposa) também têm a mesma coloração. Com
excepção das barbatanas, a sua cor é prateada e uniforme, sem manchas
contrastantes, apesar de um pouco mais acinzentada e menos brilhante na
região dorsal. Trata-se de um peixe pequeno, que convive em grandes
cardumes, de dentes cortantes e assaz fortes para o seu tamanho. Ao
contrário das sardinhas, que são peixes de água salgada (com excepção da
Sardinella tawilis), este é um peixe de água doce. No entanto, não nos foi
possível identificar o seu nome binomial. Sete poemas sobre este peixe são
citados na obra de Ibn Ẓāfir al-Azdī (m. 1216) intitulada Gharāʾib at-
Tanbīhāt, e estes poemas (seis cuja autoria é indicada e um atribuído a
anónimo) descrevem o dito peixe nos moldes atrás indicados e como sendo
pescados no Nilo, não poupando louvores ao sabor, nomeadamente quando
fritos, em que a sua cor de prata se metamorfoseia em ouro. Talvez não seja
por acaso que Anice Jalice comenta no seguimento da história: «Valha-me
Deus, que peixes tão lindos! E se fossem fritos mais belos ficariam.»
Contudo, a pesca referida na história passa-se no rio Tigre e não no Nilo, e
muito possivelmente esse peixe não existe naquele. Este elemento, caso se
trate de facto do peixe que mencionámos, leva a crer que esta história tenha
sido primeiramente elaborada no Egipto, e só depois copiada na Síria.
Assim, seria possível que o seu redactor usasse um nome egípcio para um
peixe do Nilo, sem ter em conta que tal peixe não existisse no rio Tigre.

Incongruências e curiosidades

O leitor poderá também ao longo das histórias detectar várias


incongruências e contradições. Por exemplo, no início da 218.ª Noite é dito
que o califa saiu do palácio com Jáfar e Macerur, os três disfarçados. Mas
Macerur não torna a ser mencionado até à 224.ª Noite, em que volta a
aparecer como se não houvesse sido anteriormente mencionado que
acompanhara o califa e Jáfar ao Palácio das Estátuas. Nesta noite é referido
pelo respectivo nome seguido do título «o carrasco» e naquela usa-se antes
o título «o eunuco» depois do nome, mas a personagem é a mesma.
No final da 224.ª Noite, quando é dito que depois de o rei ler a carta
«beijou-a e levantou-se três vezes», não é evidente se ele beijou a carta uma
vez e se levantou três, ou se por três vezes beijou a carta e se levantou,
leitura mais provável. A edição de Bulaq corrigiu para o que seria mais
expectável: «levantou-se e beijou a carta três vezes».
No manuscrito do Vaticano reproduzem-se os restantes versos do
primeiro poema da 226.ª Noite tal como apareceu na 17.ª Noite. Se o
copista desse manuscrito, conhecendo o poema que já aparecera
anteriormente, tomou a iniciativa de fazer o acrescento, ou se é uma lacuna
colmatada por esse copista, não sabemos.

A História de Jullanar do Mar também foi retirada das Histórias


Espantosas, onde figura com o mesmo título. O ponto mais curioso surge
logo no início. Nas duas versões deste conto, começa-se por apresentar «um
rei grandioso e poderoso», mas nas Histórias Espantosas há a
particularidade de esse rei ter o nome Xariar (Shahryār), o mesmo nome do
rei da história-quadro d’As Noites, que, como sabemos, todas as noites
dorme com uma rapariga diferente que manda matar pela manhã, prática
que adoptou depois de ter sido traído pela sua mulher. No entanto, nesta
história o desgosto do rei não se deve a uma traição, mas ao facto de apesar
de ele ter muitas mulheres, entre as quais se contavam cem concubinas,
nunca ter tido um filho que herdasse o seu reino. A chegada de uma nova
escrava, Jullanar do Mar, irá alterar a situação, mas esta impõe condições ao
rei através do seu mutismo constante, e o rei, para lhe agradar e lhe dar
provas do seu amor, não tem outro remédio que não seja repudiar todas as
outras mulheres e concubinas. Este conto parece ser um manifesto contra a
poliginia53, pois apesar de esta ser permitida no Islão até ao máximo de
quatro mulheres legítimas e desde que o homem tenha recursos
económicos, nunca foi uma prática muito bem aceite por muitas
comunidades islâmicas, em particular pelas mulheres, para quem a
«aquisição» de uma segunda mulher por parte dos maridos constitui, em
muitos casos, um golpe sentimental violento, em que se confirma que a
mulher é só uma mercadoria-objecto comprada e vendida por homens.
Mesmo na história que se sucede a esta, a de Cámar-Azzamane, quando este
personagem se casa com uma segunda mulher, com a aprovação e até o
patrocínio da primeira, tal casamento é apenas o preâmbulo de uma série de
eventos catastróficos, «mas não há necessidade de repetir aqui os detalhes»
da história. Importa no entanto salientar que em três histórias – a de
Jullanar do Mar, a de Cámar-Azzamane, e a de Nureddine Ali ibn Baccar e
Xamsennahar – a poliginia parece ser um elemento que provoca
desequilíbrios de diversas ordens.
Nesta tradução, conforme o manuscrito usado, o irmão de Jullanar
chama-se Sayih (Ṣāyiḥ). Com excepção do manuscrito Arabic MS 2699 do
India Office Records, que é o menos antigo do ramo sírio, os outros do
mesmo ramo, incluindo o principal usado nesta tradução, introduzem esta
personagem com o nome Salih (Ṣāliḥ), mas em todas as outras ocorrências
usam antes o nome Sayih. Quanto ao ramo egípcio, o manuscrito Arabe
3612 da BnF usa os dois nomes alternadamente, e a versão imprensa de
Bulaq usa Salih, que é de resto também a forma usada nas Histórias
Espantosas. Não sabemos se o uso do nome Sayih corresponde a uma
originalidade deliberada ou a erro de copista, sendo que a grafia de ambos
os nomes é facilmente diferenciável, mas optou-se por Sayih, mesmo tendo
em conta que em termos de significado fizesse mais sentido usar Salih –
que significa «aquele que pratica boas acções» – do que Sayih – que
significa «aquele que grita».
A Ilha da Lua (Jazīrat al-Qamar) referida na 236.ª Noite talvez possa ser
uma alusão às Comores, pois estas ilhas em árabe são designadas por, numa
tradução literal, «Ilhas da Lua» (Juzur al-Qamar). Note-se no entanto que o
nome Comores não deriva da língua árabe, ao contrário do que por vezes se
julga, apesar da presença árabe e islâmica nessas ilhas ser bem antiga, e foi
antes um nome nativo que posteriormente, por semelhança fonética, foi
associado à palavra árabe para Lua. Mais à frente, na 338.ª Noite, fala-se
mesmo de «Ilhas da Lua» (Juzur al-Qamar). Por sua vez em Histórias
Espantosas é antes mencionado: «uma ilha das ilhas do Mar que dá pelo
nome de Mar da Lua.»
Das muitas diferenças que entre as duas versões se poderiam mencionar,
não deixa de ser interessante constatar que na 240.ª Noite, quando a família
de Jullanar diz que não a quis casar com nenhum dos pretendentes porque
não se conseguiam «separar dela nem sequer por um pestanejar de olhos»,
nas Histórias Espantosas é antes dito que foi Jullanar que não gostou de
nenhum dos pretendentes.
Já o filho de Jullanar e do rei, em vez de Badr («lua cheia» em árabe), na
edição de Bulaq e no manuscrito Arabe 3612 da BnF, chama-se Badr
Bâcime, isto é, «Lua Cheia Sorridente», enquanto nas Histórias Espantosas
chama-se al-Badr, isto é, «A Lua Cheia», o que para todos os efeitos é o
mesmo nome. Mas o mais significante nas Histórias Espantosas é ser a mãe
de Jullanar a perguntar às mulheres presentes, após o parto: «Como ireis
chamar-lhe?». E é Jullanar quem responde e escolhe o nome: «Chamai-lhe
Al-Badr.» A cena geral do parto também é diferente, sendo descrito que
quando a mãe e as primas de Jullanar ficaram a sós com esta na seu
aposento particular, o rei foi para o seu, o qual era adjacente ao quarto de
Jullanar e de onde podia ver o que se lá passava através de um pequeno
buraco junto ao tecto. Então, o rei viu que após a mãe de Jullanar pegar
numa bolsa de remédios e incensar o quarto, apareceram dez raparigas
juntamente com uma velha, que se despiu e assistiu ao parto. Após o filho
nascer e de perguntarem qual seria o nome, untaram-no com «algo branco e
incensaram-no com um estranho incenso». Logo de imediato, do nada,
aparece Salih (que como já foi dito se chama Sayih n’As Noites) que pega
no recém-nascido, e sob o olhar do rei, que estava convencido que aquele
havia pegado na criança para lha trazer, mergulha com Al-Badr no mar e,
quando voltam, o bebé trazia ao pescoço «um colar com pérolas do
tamanho de ovos de pomba e à cintura um colar de rubis […] por cima dos
cueiros.» De seguida, o irmão entrega a criança à mãe, que a põe numa
bacia de ouro com jóias incrustadas, e só então a criança é apresentada ao
rei e as portas do quarto são abertas, dando-se de seguida as celebrações na
cidade por ocasião do nascimento.
Ainda no que diz respeito a nomes próprios, note-se que no manuscrito
Arabe 3612 da BnF, na edição de Bulaq e nas Histórias Espantosas usa-se
antes o nome Samândal (as-Samandal) em vez de Xamândal (ash-
Shamandal), sendo possivelmente esta última uma corruptela da primeira.
No manuscrito principal usado nesta tradução, hesita-se entre Samândal
(usado oito vezes) e Xamândal (usado 27 vezes), enquanto nos outros dois
do ramo sírio usa-se quase exclusivamente Xamândal. Usou-se nesta
tradução a forma predominante do ramo sírio. Em árabe, a única diferença
de grafia é que Xamândal tem três pontos em triângulo por cima da
primeira letra. Possivelmente, ambas as formas existiram em simultâneo,
devido à extrema semelhança gráfica mas também fonética entre a sibilante
alveolar surda e a sibilante pós-alveolar surda. A própria edição de Bulaq
contém, por gralha certamente, a forma Xamândal pelo menos uma vez.
A palavra Samândal (co-existem em árabe as formas samandal,
samandar, samand, todas provenientes do grego) tem vários significados:
pode designar a salamandra (réptil); ou um pássaro mítico com algumas
parecenças com a fénix (al-ʿanqāʾ em árabe) e que seria imune ao fogo; ou
um tecido à prova de fogo, que seria feito, segundo vários dicionários
clássicos, das penas de um pássaro ou de um réptil ou de outro animal
pouco conhecido; mas também é possível, segundo Dozy (op. cit.), que este
«tecido» fosse na realidade amianto, cujas propriedades já eram há muito
conhecidas, mas nesse caso as explicações dadas pelos dicionaristas
clássicos sobre o seu fabrico não se afiguram correctas. Em qualquer caso,
muito possivelmente Xamândal será uma corruptela de Samândal.
A personagem da avó de Jullanar é abruptamente introduzida no início da
256.ª Noite numa descrição genealógica, sendo indicado que o seu nome é
Faraxa, que significa «borboleta»54. Este nome não consta nas Histórias
Espantosas. Na 269.ª Noite, Jullanar «juntamente com a sua mãe Faraxa
são as maiores feiticeiras que há à face da Terra», enquanto nas Histórias
Espantosas é antes dito que «Jullanar é a maior feiticeira que existe à face
da Terra, especialmente a sua mãe [sic] no que toca a provocar grandes
calamidades e desgraças.»
O nome Faraxa ficou na imaginação popular como uma grande feiticeira
e maga de poderes maléficos, mas nesta história, a sua filha Jullanar, ao
enamorar-se do rei, põe os seus poderes ao serviço das forças do bem, assim
como tranquiliza o rei garantindo que mal algum sofrerá de parte da sua
família. O nome do ancião nas Histórias Espantosas é logo introduzido
após a aparição da personagem, na parte equivalente ao início da 260.ª
Noite. N’As Mil e Uma Noites só sabemos o seu nome quando a rainha o
interpela no final da mesma noite. Na edição de Bulaq e no manuscrito
Arabe 3612 da BnF, na parte equivalente à passagem «mas não tenhas medo
dela que eu te protejo» no início da 266.ª Noite, acrescenta-se ainda: «pois
eu sou um homem muçulmano e o meu nome é Abdallah [Servo-de-Deus]».
Este acrescento, talvez redundante, visa corroborar aquilo que já se
percebeu através de vários indícios e que o seu nome também corresponde à
crença do ancião na unicidade de Deus, neste caso por via do Islão.
A fala da rainha Lab no início da 261.ª Noite, «Pela virtude do fogo e da
luz, da frescura da sombra e do calor do Sol», relembra o seguinte excerto
do Alcorão (35:19-21), onde é dito: «Não são iguais o cego e aquele que vê
/ Nem as trevas e a luz / Nem a frescura da sombra e o calor do Sol». Não
deixa de ser curioso observar que a rainha Lab, pagã e feiticeira, use uma
figura de estilo proveniente do Alcorão.
O ifrite de nome Barq que aparece na 269.ª Noite chama-se Maimuna nas
Histórias Espantosas e é uma ifrita.
Relativamente à História de Cámar-Azzamane, note-se que, para o nome
do génio introduzido na 277.ª Noite, a maioria dos manuscritos usa antes a
forma Dan’haxe (Danhash), mas, por razões de simplificação ortográfica e
fonética, preferiu-se Dahnaxe (Dahnash), que é de resto a forma que se
tornou mais conhecida e que foi usada na edição de Bulaq.
No segundo poema da 280.ª Noite, a tradução do verso «Teus negros
olhos enfeitiçam com magia» foi simplificada para trazer só o sentido do
verso e não a letra. O texto árabe diz antes «com olhos negros [ou com as
pálpebras delineadas com kohl] e harutianos», em refererência ao anjo
Harut e com o sentido de «olhos enfeitiçantes», que cativam como se
tivessem um poder mágico. Harut e Marut são dois anjos referidos no
Alcorão (2:102), que habitariam a cidade de Babilónia (Bābil) nos tempos
do reinado de Salomão. A sua missão consistiria, segundo o Alcorão, em
testar a fé das pessoas tentando-as com o ensino da magia, mas advertindo-
as previamente: «Somos só uma tentação; não renegues a fé!» (Alcorão
2:102). Note-se ainda que na 29.ª Noite, no primeiro volume, quando na
descrição de uma mulher se referem «olhos babilónicos» o sentido é o
mesmo, isto é, «olhos enfeitiçantes» ou «mágicos», visto que de forma
geral a Babilónia é associada às práticas ilícitas da magia.
No primeiro poema da 281.ª Noite, traduziu-se genericamente por
«galho» a expressão «galho de arāk». O Arāk (não confundir com araque
[ʿaraq] que é uma bebida alcoólica) é uma árvore (Salvadora persica),
também conhecida noutras línguas como «árvore da escova de dentes»,
porque os seus ramos (e raízes) são usados, julga-se que pelo menos desde
há sete mil anos, como um produto para lavar os dentes, conhecido pelo
nome de miswāk. A sua fragrância lembra a da mostarda e as suas folhas
podem ser usadas em saladas. Outros usos medicinais e alimentares são
conhecidos.
No manuscrito usado no Apêndice I para concluir a História de Cámar-
Azzamane, em vez de «calamitoso» (naḥis) usa-se antes o adjectivo
«impuro/sujo» (najis). Parece ser o único manuscrito onde tal acontece, e
devido à constância do seu uso nesta história, não deverá ser considerado
uma gralha. No entanto, excepcionalmente, preferiu-se harmonizar com o
resto desta edição e usar antes «calamitoso».
Na 99.ª Noite (Apêndice I), no manuscrito, a ordem dos meses do
calendário hegeriano enunciada por Cámar-Azzamane – e que este de forma
hoje em dia considerada pouco correcta diz serem os meses «em árabe» –
aparece curiosamente trocada, com os meses de Jumada antes dos meses de
Rabi. Esta situação foi corrigida na tradução.
Na 104.ª Noite (Apêndice I), a palavra árabe traduzida por «círculo
mágico» é mandal, do sânscrito «mandala». A palavra «mandala» também
existe em português, mas não se trata exactamente do mesmo tipo de
círculos mágicos hoje em dia associados a uma mandala, daí ter-se
preferido não a utilizar.
Na 113.ª Noite (Apêndice I), onde é dito que «vieram os emires e todo o
exército para prestar juramento a Budur, sendo que eles não duvidavam que
ela fosse um homem e todos ficavam embaraçados», curiosamente figura
antes na edição de Bulaq: «[…] não duvidavam que ela fosse um homem e
ficavam com as calças molhadas ao olhar para ela [sic] devido à sua beleza
e formosura». De resto, esta história é um dos raros casos em que a edição
de Bulaq, apesar de ter eliminado muitas das características coloquiais
usadas em diversos manuscritos e de ter censurado partes menos de acordo
com os bons costumes, enriqueceu a história com detalhes inesperados.
Veja-se, por exemplo, no final da 122.ª Noite (Apêndice I), quando Budur
reencontra finalmente Cámar-Azzamane, não é mencionada sequer qualquer
recepção da parte daquele, nem um abraço ou beijo, deixando a narrativa
muito lacunar. Pelo contrário, na edição de Bulaq, Budur recebe Cámar-
Azzamane de forma particular, pois este não reconhece Budur, pensando
que ela é um homem. Budur cumula-o de honrarias, tais como traje de
honra, dinheiro e escravos. Ele, sem perceber porquê, pergunta-lhe a razão
de tais honrarias. Budur explica-lhe que é porque o ama e quer dormir com
ele, o que deixa Cámar-Azzamane aflito, visto que ele repudia o sexo com
homens. Depois de muita insistência da parte de Budur, incluindo vários
poemas a enaltecer o sexo entre homens, e de muitas recusas por parte de
Cámar-Azzamane, este acaba por anuir um tanto contrariado, sem poder
desobedecer ao «rei», mas quando Budur lhe diz para pôr as mãos entre as
coxas dela «para que aquilo-que-bem-se-sabe-o-que-é se-lhe levante» ele,
admirado por sentir a pele tão macia e sem pénis, pensando que Budur fosse
hermafrodita, pergunta-lhe: «Ó rei, não encontro um instrumento igual ao
que os homens têm. O que o levou a comportar-se assim para comigo?»
Budur desata a rir-se e é então que se revela a ele, dizendo: «Meu amor, já
te esquecestes das noites que passámos juntos?» Este episódio, com várias
diferenças e sem os poemas, figura no manuscrito Arabe 3612 da BnF
(século xvii), no qual possivelmente a edição de Bulaq se baseou fazendo
acrescentos e modificações.
O manuscrito usado para concluir a História de Cámar-Azzamane no
Apêndice I é porventura talvez um dos mais difíceis de traduzir, por
diversas razões, nomeadamente a quantidade abissal de gralhas, tanto ao
nível sintáctico como morfológico, mas também por algum vocabulário
específico da época cujo sentido nem sempre é fácil de decifrar. O caso
mais flagrante será talvez a passagem que foi traduzida por «um eunuco,
que era um servo que se devotava às boas causas» (final da 125.ª Noite do
Apêndice I). Trata-se de um dos poucos casos que temos a certeza que a
tradução está errada e em que se usou a imaginação para produzir um texto
que fizesse algum sentido. Na realidade, no manuscrito lê-se antes: «e este
eunuco encontrava-se no bayt an-nafs que era dele». Não temos a certeza de
qual o sentido exacto da expressão bayt an-nafs, literalmente «casa da
alma», e esta não aparece devidamente explicada em nenhuma fonte ou
dicionário por nós consultados, mas sabemos, como veremos em diante, que
possivelmente significaria «hospício».
Dozy, no seu Supplément aux dictionnaires arabes, cita o uso desta
expressão noutra passagem da edição de Breslávia d’As Mil e Uma Noites,
colocando um ponto de interrogação para afirmar que não percebe o que
significa. Menciona ainda que a explicação dada por Habicht no glossário
da edição de Breslávia é «inadmissível». Esta explicação dada por
Habicht55 é a seguinte: «Bayt an-nafs designa uma espécie de hospício onde
se curam pessoas que sofrem desgraças ou doenças causadas pelo mau-
olhado ou, melhor, pelo mau-olhado lançado por outras pessoas. Esses
doentes chamam-se maʿyūn, e à pessoa capaz de lhes trazer o infortúnio dá-
se o nome miʿyān.» Apesar de a explicação pouco precisa de Habicht levar
Dozy a torcer o nariz, não está longe do sentido mais provável. Sobre esta
matéria, não deixámos de contactar algumas pessoas com conhecimento
destes assuntos e da língua árabe, e o professor Adel Sidarus, professor
emérito de História e Arqueologia na Universidade de Évora, relativamente
a esta expressão, afirma: «trata-se simplesmente de “hospício”». No
entanto, levanta dúvidas sobre a expressão que se segue, «que era dele»
(alladhī lahu). Se é ou não uma gralha, e qual seria a intenção exacta do
narrador, não nos foi possível desvelar. O certo é que a expressão «que
estava num hospício que era dele» parece despropositada no contexto, aliás
como o facto de ele estar num hospício fosse em que qualidade fosse. Dado
o quanto antecede, resolveu-se antes pensar neste servo como alguém «que
se dedicava às boas causas», mantendo o sentido da leitura recorrendo à
edição de Bulaq e ao que se segue na história nessa edição, e abdicando de
traduzir a letra.
Na 129.ª Noite (Apêndice I), a descrição dos arreios do cavalo que «valia
quinhentos dinares» é menos exacta que o texto árabe, pois neste são usados
dois termos técnicos da época para descrever duas partes específicas da sela
e cujo significado exacto não foi possível encontrar em nenhuma fonte.
Também a palavra «safiras» é uma escolha subjectiva derivada da correcção
ao texto, onde a palavra que figura é graficamente parecida mas de
significado desconhecido, não restando dúvidas que se trata de uma gralha.
Uma melhor interpretação desta passagem foi possível novamente graças ao
auxílio do professor Adel Sidarus.
Na 132.ª Noite (Apêndice I), menciona-se um «escravo negro, imponente
como uma alta montanha ou alguém dos sete céus». Esta última expressão
lê-se literalmente no texto árabe «os sete duros» (as-sabʿ shidād).
Metaforicamente, é usada no Alcorão (78:12) com o sentido de «os sete
céus», mas a expressão também poderia ser traduzida como «os sete
bravos» (ou ainda por «os setes leões», visto que shadīd, singular de shidād,
é um atributo usado para «leão»), podendo ser uma referência a algum
género de personagens mitológicas ou semi-históricas que desconhecemos.
Mas esta expressão terá sido introduzida sobretudo para efeitos de rima,
pois os três elementos deste excerto («alta montanha», «sete céus» e «povo
de Aad») rimam em árabe (al-awṭād, as-sabʿ shidād, qawm ʿād), rimas
estas que infelizmente não se conseguiu verter para o texto em português.
Outra rima que também ficou lamentavelmente perdida na tradução foi a
da expressão «Ghaiur, soberano das ilhas, dos mares e dos sete palácios»,
pois Ghaiur rima com quṣūr (palácios). Mas as restantes rimas com os
nomes desta história foram razoavelmente mantidas (Ghaiur/Budur,
Xaramane/Ilhas Khalidane/Cámar-Azzamane, Armanus/Ébanos/Hayat-
Annufus).
Talvez devido a uma incongruência métrica do texto árabe, os versos
«Não fosse por ti, já haveria sucumbido / Às críticas de quem amor
censura», no último poema da 134.ª Noite (Apêndice I), são corrigidos por
Muhsin Mahdi na sua edição crítica d’As Noites56. Segundo essa correcção,
o sentido seria antes: «Não fosse por ti [que eu estivesse enamorado], o
censor não me perdoaria na sua censura»57.
Na 135.ª Noite (Apêndice I), quando é referido que a casa era do
estribeiro-mor do rei da cidade e que este «havia enviado alguém para
abastecê-la com aquele banquete e para deixar a casa preparada», a edição
de Bulaq faz um acrescento explicitando que a razão de tal diligência era
porque ele esperava a visita de um amigo por quem estava enamorado.
Na 145.ª Noite (Apêndice I), a personagem chamada Bustane (Bustān) é
antes referida no manuscrito pelo nome Bustana (Bustānah). Optou-se antes
por usar Bustane para manter a rima toante entre Bustane, Bahrame e
Qawame, tal como fizeram outros manuscritos, assim como a versão de
Bulaq, possivelmente pela mesma razão.
Na História de Felisbelo e Felisbela, tomou-se a decisão de verter para
português os nomes destas personagens que são usados em árabe: Niʿmah e
Nuʿm. A decisão é sem dúvida criticável, mas era a forma mais viável de
manter alguns jogos de palavras com o nome dos personagens, sem fazer a
leitura depender de notas de rodapé, tornando evidente para o leitor
português o facto de serem versões masculinas e femininas de nomes com a
mesma raiz e campo de significados. A escolha porém não é original,
havendo-se usado nomes já consagrados nas diversas traduções portuguesas
da versão francesa de Mardrus, a qual já foi referida no Preâmbulo. Apesar
de todas as críticas que se possa tecer às versões de Mardrus e ao
manuscrito forjado em que ele se baseia, esta solução afigura-se como um
mal menor.
Assim, Felisbelo é usado para o nome árabe Niʾmah, que literalmente
significa «bênção, dádiva, benefício, graça, favor, bondade». Apesar de usar
o mesmo nome, a versão de Bulaq apresenta-o no início da história com o
nome Niʾmat Allāh, isto é, Dádiva-de-Deus, mas nos restantes casos refere-
se a ele só pelo nome Niʾmah.
Felisbela foi usado para Nuʾm, que literalmente significa «prosperidade,
fortuna, o estado de estar bem e feliz na vida». É um nome usado sobretudo
para mulheres, podendo também ser pronunciado como Nuʾam. A
expressão nuʾm al-ʾayn é usada para designar «o que deleita a vista e traz
prazer aos olhos, o que é agradável, bom e traz felicidade», visto que este
sentido também está inerente à raiz da palavra, que é a mesma do nome
hebraico Nāʿomī (Noemi nas versões portuguesas da Bíblia e de onde
possivelmente provem o nome Noémia). Porque a maioria das vogais não
precisa de ser assinalada na escrita árabe, algumas edições árabes
acrescentaram as vogais deste nome como sendo Niʿam, que é nome de
mulher e é o plural do já referido nome Niʾmah. Apesar desta vocalização
não ser considerada como sendo a mais correcta, não deixa de ser
interessante constatar que a resposta de Rabie depois da sua mulher
escolher o nome Felisbela é a seguinte: «Que ideia tão feliz a tua.»
Traduziu-se a expressão árabe «niʾm(a)…», geralmente traduzida por «quão
excelente…», por «tão feliz», para manter o jogo de palavras entre esta
expressão e o nome de Felisbela em árabe, visto que são ambos vocábulos
da mesma raíz. Assim, não será de excluir completamente que antigamente
na oralidade se usasse antes Niʿam, ou mesmo Niʿm por semelhança
fonética, em vez de Nuʿm. Curiosamente, este jogo de palavras na resposta
do marido não consta na versão de Bulaq.
O nome Fortuna foi usado para Saʾd, que significa «sorte, ventura,
fortuna». O nome Prosperidade foi usado para Tawfīq, que significa
«sucesso (especialmente aquele que é conferido por Deus), sorte,
prosperidade, fortuna, ventura». Por último, apesar de não ter sido
traduzido, note-se que o nome Rabie (ar-Rabīʿ em árabe) significa «A
Primavera».
Na 165.ª Noite (Apêndice I), antes das despedidas que fecham a História
de Cámar-Azzamane, a edição de Bulaq menciona que Marjana se casa com
Açaad, e Bustane com Amjad.

Na História do Terceiro Ancião que consta no Apêndice II, a expressão


«Pelo código de honra dos negros» foi traduzida de forma sintética. No
texto árabe lê-se antes: «Pelo direito da Casa dos ʿaṣātīn [ou ʿaṣātayn], do
código de honra dos negros e da Casa dos Amzār». Por «Casa» (bayt)
entende-se aqui «família» no sentido alargado do termo. Talvez os ʿaṣātīn e
os al-Amzār fossem duas famílias ou confederações tribais conhecidas na
época, se não na realidade pelo menos na imaginação. Na obra medieval
Sīrat fāris al-Yaman Sayf ben Dhī Yazan – que narra os feitos heróicos do
rei Sayf ben Dhī Yazan, personagem mítica que, sendo humana, apesar da
sua mãe e irmã serem génias, é dotada de poderes sobrenaturais graças à
roupa que veste – fazem-se referências pontuais à Casa dos ʿaṣātīn, dando a
entender que seria uma família mista de génios e humanos. No entanto, na
História do Terceiro Ancião parece pelo contexto ser antes uma família de
negros, nada obstando a que também fossem génios ou dotados de poderes
sobrenaturais. Com a pequena excepção no que diz respeito aos ʿaṣātīn, não
se encontrou mais nenhuma referência documental que permita fazer
afirmações sólidas.
Todas as traduções de textos árabes de outras obras referidas nesta
edição, salvo indicação em contrário, foram por nós realizadas. Para a
tradução dos excertos do Alcorão, devido às suas particularidades, teve-se o
cuidado de consultar e comparar várias traduções conceituadas para inglês
(Abdul Haleem, Dr. Ghali, Mustafa Khattab, Muhsin Khan, Sahih, Yusuf
Ali), francês (Jacques Berque, Muhammad Hamidullah), e português
(Helmi Nasr, Samir El-Hayek, Aminuddin Mohammad).
Terminadas estas notas finais, resta só agradecer novamente às mesmas
pessoas que constam no final do Preâmbulo. Para além das aí referidas,
agradece-se também, por ordem alfabética, às seguintes: Adalberto Alves,
Camila Sousa, Fabrizio Boscaglia, Khalil Annajar, Renata Fontanillas. E
por último, mas ainda mais importante, agradece-se ao leitor que aguardou
pacientemente dois anos para poder ler a continuação do primeiro volume.
Lisboa, 22/11/2019
Índice

História de Cámar-Azzamane e dos seus filhos Amjad


e Açad (conclusão)
História do terceiro ancião
História do terceiro ancião (outra versão)
A partida do barco na 56.ª Noite

Posfácio
Parte I
Parte II
Este livro foi publicado com o apoio dos leitores
através de um mecanismo de financiamento colectivo.

As obras propostas pelos editores,


padrinhos do projecto ou pelos leitores são,
depois de avaliadas, apresentadas no sítio
www.e-primatur.com.

Quando são anunciadas é também indicada a duração


do período em que estarão em fase de apoio bem como
o número de apoios necessários para que um
projecto se torne realidade. Durante esse período
qualquer leitor poderá apoiar um projecto cujo valor
será de aproximadamente 2/3 do valor que a obra
terá no futuro, em livraria.

No final do período de apoio poderá passar-se uma das seguintes situações:

a) atingiu-se o valor necessário e o projecto avança:


quem tiver apoiado recebe o livro sem mais custos.

b) não se atingiu o valor, mas a E-primatur decide completar o valor:


quem tiver apoiado recebe o livro sem mais custos.

c) não se atingiu o valor: quem tiver feito um apoio recebe um e-mail para
decidir se quer receber o dinheiro de volta ou se
prefere mantê-lo por novo período de apoio.

A edição deste livro resulta de uma proposta de


Hugo Xavier

Participe e construa esta editora connosco em


www.e-primatur.com
1 Ver nota 118 do segundo volume.
2 No manuscrito consta antes «perseverante» em vez de «apaixonado», mas preferiu-se aceitar
aqui o que consta na edição de Bulaq.
3 Designação que refere residência independente dentro do complexo palacial.
4 Cf. o manuscrito Arabe 3612 da Bibliothèque nationale de France.
5 Esta última palavra também poderia ser traduzida por «sacerdotes».
6 Aẓ-Ẓayran, em árabe. Outros manuscritos grafam aṭ-Ṭayzūr e aṭ-Ṭayran, enquanto a edição de
Bulaq grafa aṭ-Ṭayrab. Todas as variantes corresponderão a toponímias imaginárias.
7 Excerto de Alcorão 6:95.
8 Acrescento da edição de Bulaq.
9 Ver nota 132 do segundo volume. Lucmane (Luqmān) aparece no Alcorão como sendo um
homem extremamente sábio. Quando um anjo o visitou para lhe dizer que Deus lhe dava a escolher,
como presente seu, entre a sabedoria ou ser rei, ele optou pela primeira escolha. Para além do que é
mencionado no Alcorão, nomeadamente na 31.ª Sura que tem como título o seu nome, circulam no
mundo islâmico várias lendas, redigidas em diversas línguas, sobre esta personagem. Apesar de não
ser mencionado como profeta no Alcorão, há quem acredite que o fosse. Note-se ainda que na versão
de Bulaq estes versos são enriquecidos com mais algumas personagens da tradição abraâmica: Tem a
sabedoria de Lukman, a formosura de José, / A bela voz de David e a castidade de Maria / Enquanto
eu tenho o luto de Jacob,os suspiros de Jonas,/ Os infortúnios de Job e o castigo de Adão.
10 Do ruibarbo se preparavam remédios que eram benéficos para o fígado, e por consequência,
segundo o sistema de medicina do contexto onde estas histórias foram elaboradas, benéficos para a
melancolia (no sentido clínico antigo) e para o que hoje em dia se chama depressão.
11 Na versão de Bulaq, lê-se antes: «eu vou curar-vos a ambos.»
12 Não confundir com a curcuma, conhecida em Portugal por açafrão ou açafrão-das-índias.
13 Corrigido. No manuscrito, em vez de «amadores» (muḥibbīn), consta antes «astrólogos»
(munajjimīn).
14 Ver nota 69 do primeiro volume.
15 Hayat significa «vida» em árabe e é um nome usual de mulher. O nome composto Hayat-
Annufus (Ḥayāt an-Nufūs) talvez fosse traduzível por «A vida das almas» ou «das essências» (e é
também o nome de uma planta de uso medicinal, pelo menos em Marrocos). Igualmente importante é
a rima entre os nomes Hayat-Annufus, Armanus e Ilhas dos Ébanos (Ābanūs), tal como acontece com
Cámar-Azzamane, filho do rei Xaramane, soberano das Ilhas Khalidane, cuja capital é Zhairane, ou
entre Ghaiur e Budur.
16 Ver nota 28 do segundo volume.
17 Ver nota 50 do primeiro volume.
18 Em Bulaq: «ficavam com as calças molhadas ao olhar para ela devido à sua beleza e
formosura».
19 Corrigido. O manuscrito menciona antes: «de rosto virado para ela».
20 Note-se que o nome Budur tanto pode ser usado por homens como mulheres.
21 Referência a heróis importantes da história do Islão.
22 Note-se que «cámar» (qamar) significa Lua, sendo essa a palavra usada em árabe na frase
anterior. Igualmente importante, o nome Budur é o plural de «badr», que, como já foi referido nas
notas 102 e 110 do segundo volume, significa lua cheia. Nesta e noutras histórias, são vários os jogos
de palavras com estes nomes.
23 A tradução corrige o texto árabe. Neste lê-se antes «chegou».
24 O pretendido talvez fosse Xaddad ibn Aad (Shaddād ibn ʿād), figura semi-histórica que teria
liderado as tribos de Aad, sendo rei da mítica cidade perdida de Iram dos Pilares. Esta história foi
incluída nas versões tardias d’As Mil e Uma Noites, como na edição de Bulaq (noites 275-279). A
edição de Bulaq, nesta passagem, cita antes «época de Thamud e Aad».Ver nota 1 do primeiro
volume, e Alcorão 89:6-14. Muito menos provável, o pretendido também poderia ser Antara ibn
Xaddad (ver nota 2 do segundo volume).
25 Terminalia chebula.
26 Acorus calamus, também conhecido por ácoro.
27 Tradução literal do nome de uma planta (al-ʿiṭr-shāh) que não foi possível identificar ao certo.
Hoje em dia há quem use este nome e variantes do mesmo para certa espécie de sardinheiras ou
gerânios, nomeadamente a Pelargonium graveolens. No entanto, é pouco provável que se trate desta
planta.
28 Sic.
29 O primeiro nome (al-Amjad) significa «O Mais Glorioso», enquanto o segundo (al-Asʿad)
significa «O Mais Fortunoso».
30 Talvez haja aqui um jogo de palavras com o nome do meio-irmão Açaad, traduzível por «O
mais fortunoso» (Ver nota 29). Para manter a rima entre os dois epítetos (al-Amjad e al-Asʿad),
optou-se por incluir a tradução do nome de Amjad entre parêntesis rectos.
31 Lacuna colmatada a partir da edição de Bulaq.
32 Ver nota 1 do primeiro volume.
33 Segundo um sistema que terá vigorado no mundo antigo, os pontos cardeais eram associados a
cores. Para o sul, a cor era o vermelho (veja-se o marVermelho, cuja designação já foi usada para o
oceano Índico em geral, incluindo o golfo Pérsico e o mar Vermelho), para o norte era o negro (veja-
se o mar Negro), para o oeste o branco (em árabe sobreviveu até hoje a designação de «mar Branco»
juntamente com a de «mar Mediterrâneo» para o mesmo mar), o azul ou verde para o leste. Assim,
talvez o pretendido por «mar Azul» fosse o mar Cáspio.
34 Ver nota 109 do segundo volume.
35 Ver nota 132 do segundo volume.
36 Servilhas em português antigo, zarbūn ou zarbūl em árabe antigo, são sandálias usadas por
servos ou escravos de menor condição social, tal como o termo σέρβουλα (sérboula) usado na antiga
Constantinopla. Posteriormente, a palavra árabe zarbūn evoluiu para designar outro tipo de sapato de
maior prestígio social e não associado à escravatura, sendo que hoje em dia o termo desapareceu ou
está em vias disso.
37 Acrescento, que consta na edição de Bulaq, para corrigir o que só pode ser uma lacuna.
38 Bahrām no texto árabe. Trata-se de um nome comum persa usado por homens. Foi o nome de
vários reis sassânidas, também conhecidos em português pelo nome de Varanes, por via do grego. Na
religião zoroastriana trata-se de uma entidade divina, derivada do conceito de Verethragna em língua
avéstica.
39 Optou-se por incluir a tradução destes nomes entre parêntesis rectos. Em árabe, os nomes al-
Asʿad e al-Atʿas têm uma relação sonora com equivalências semelhantes ao que em português se
chama rima toante.
40 Sic.
41 Referência a heróis importantes da história do Islão.
42 Al-Ḥajjāj ibn Yūsuf ath-Thaqafī (661-714) foi um importante e conhecido governador e chefe
militar ao serviço do califado omíada.
43 ʿabd al-Malik ibn Marwān (646-705), califa omíada que reinou entre 685 e 705.
44 Lacuna colmatada a partir da versão de Bulaq. O bastão da anciã volta a ser referido na 152.ª
Noite (deste Apêndice).
45 Consta na edição de Bulaq.
46 Alcorão 19:60
47 Ver nota 33 do primeiro volume.
48 Sic.Talvez o narrador se referisse ao camarista do califa e não ao camarista de Al-Hajjaj de
Cufa.
49 Sic. Na 149.ª Noite (deste Apêndice) é dito que o rosário é de madeira.
50 Sic.
51 Sic. A passagem por Mossul e Alepo, no trajecto de Cufa para Damasco, por via terrestre,
parece um desvio demasiado grande.
52 Sobre Dabique, ver nota 42 do segundo volume. Pressupôs-se que balkhī seria relativo à cidade
de Balkh, conhecida também por Bactro, no Norte do actual Afeganistão; mas também poderia ser
outro lugar, o nome de um artesão, ou em qualquer caso o nome de um género de tecido, o mesmo se
passando com Sayqal, excepto que neste caso desconhecemos qualquer toponímia relacionada.
Supusemos também que zarbakht pudesse significar «bordados a oiro», visto que a palavra persa zar
significa oiro. Esta descrição das roupas, com excepção da referência aos requintados tecidos de
Dabique, é especulativa.
53 Excerto de Alcorão 5:32.
54 Sic.
55 Ḥamzah ibn ʿabd-al-Muṭṭalib, ʿaqīl ibn abi Ṭālib e Al-ʿabbās ibn ʿabd al-Muṭṭalib são
conhecidos e notáveis companheiros (aṣ-ṣaḥābah) do profeta Muḥammad, que lutaram ao seu lado,
e que eram também seus familiares.
56 Também poderia ser traduzido por: «Louvado seja Deus que lhe ofereceu o Islão!» Islão (Islām
em árabe) significa «rendição ou entrega» a Deus.
57 Nardshāh. Talvez seja um nome persa. Nard é um jogo de tabuleiro semelhante ao gamão, mas
a palavra também pode designar outros jogos de tabuleiro como o xadrez, damas, gamão, etc. Shāh
significa «rei, soberano», mas também «de sangue real, nobre» e «alguém que é excelente». Este
nome não consta na versão de Bulaq.
58 Sic.
59 No manuscrito principal usado nesta tradução não se menciona que o terceiro ancião trouxesse
consigo algum animal (ver 3.ª Noite no primeiro volume).
1 Op. cit., pp. 21-48. Ver nota 10 do primeiro volume.
2 Ver notas 20 e 26 do primeiro volume.
3 Op. cit., p. 45. Ver nota 10 do primeiro volume. Note-se que nos casos em que anos e séculos são
separados por barra (/), o primeiro elemento refere-se ao calendário hegeriano (AH) e o segundo ao
calendário gregoriano (AD).
4 Ver nota 38 do primeiro volume.
5 Ver 97.ª-99.ª e 159.ª-160° Noites.
6 Ver 145.ª Noite.
7 A qual aparece textualmente na 54.ª Noite e na 146.ª Noite, assim como na 149.ª Noite do
Apêndice I.
8 Nomeadamente nas noites 120.ª e 130.ª do mencionado apêndice.
9 Ver o diagrama da página 23 do primeiro volume, que se baseia no diagrama proposto por Mahdi
na sua edição crítica (Op. cit. na nota 20 do Preâmbulo).
10 Veja-se, por exemplo, a recensão de Mário Santos sobre esta tradução publicada no suplemento
Ípsilon do jornal Público em 8 de Outubro de 2017, com o título «O livro das mil e uma traduções»,
acessível em https://www.publico.pt/2017/10/08/culturaipsilon/entrevista/o-livro-das-mil-e-uma-
traducoes-1787378
11 GINÉS, Juan Vernet, Las Mil e Una Noches y su influencia en la novelística medieval española,
Real Academia de Buenas Letras de Barcelona, Barcelona, 1959.
12 CHAUVIN, Victor Charles, Bibliographie des ouvrages arabes ou relatifs aux Arabes publiés
dans l’Europe chrétienne de 1810 à 1885, vol. IV, pág. 9, Liége, H. Vaillant-Carmann, 1900.
13 PACHA, Yacoub Artin, «Contes populaires inédits de la vallée du Nil, traduits de l’arabe
parlé», pp. 15-16, em Les littératures populaires de toutes les nations – traditions, légendes, contes,
chansons, proverbes, devinettes, superstitions, Tome XXXII, J. Maisonneuve, Paris, 1895.
14 A que se localiza em Portugal e não a cidade homónima da Tunísia.
15 ALVES, Adalberto, Al-Muʿtamid: Poeta do Destino, 2.ª edição (revista e aumentada), Assírio &
Alvim, Lisboa, 2004.
16 TARSHŪNAH, Maḥmūd (ed.), Miʾat Laylah wa Laylah, Al-Majmaʿ at-Tūnīsī lil-ʿulūm wa al-
Ādāb wa al-Funūn, 3.ª ed., Cartago, 2013.
17 Note-se que ainda existe um sexto manuscrito pertencente a uma biblioteca particular na
Argélia e que foi editado por Shuraybit Ahmad Shuraybit em 2005. São ainda conhecidos outros
dois, que estavam na posse de dois orientalistas, mas que entretanto desapareceram. Há ainda um
nono, como iremos ver mais à frente.
18 A leitura da obra foi feita a partir da já referida edição estabelecida por Tarchouna, descartando
divergências com os outros manuscritos d’As Cento e Uma Noites.
19 Não obstante o que foi dito na nota anterior, Fahdās e Shahrās são variantes do nome deste
filósofo noutros manuscritos.
20 Ver nota 95 do Apêndice I, neste volume. Talvez nesta passagem o sentido de madīnah não seja
de «cidade» mas «capital», mas, em qualquer caso, há uma evidente incoerência de termos
geográficos.
21 HADDAD, Joumana, Eu Matei Xerazade: Confissões de Uma Mulher Árabe em Fúria,
tradução de Inês Pedrosa, Sibila Publicações, Lisboa, 2017.
22 MARZOLPH, Ulrich, «The Hundred and One Nights: A Recently Acquired Old Manuscript»,
em Treasures of the Aga Khan Museum – Arts of the Book & Calligraphy, Sabancı University Sakıp
Sabancı Museum, Istanbul, November 5, 2010 – February 27, 2011.
23 Noites 44.ª a 47.ª da edição de Tarshūnah (op. cit.).
24 Também conhecida noutras edições por História da moça esquartejada.
25 A milha no mundo árabe variou ao longo do tempo, mas nesta época o seu valor seria entre 1,8
a 2,3 quilómetros.
26 O termo usado, bāzūnk, diz respeito ao árabe tunisino. Trata-se de uma jóia de prata tipicamente
tunisina usada por mulheres. É uma corrente que se usa ao pescoço com um cilindro disposto na
horizontal, dentro do qual se guarda normalmente o contrato de casamento.
27 Cf. MARZOLPH, op. cit.
28 Cf. MARZOLPH, op. cit.
29 Cf. MARZOLPH, op. cit.
30 TARSHŪNAH, op. cit., p.10.
31 Informação prestada pela investigadora Renata Fontanillas em correspondência privada.
32 Sobre esta edição, ver o Preâmbulo.
33 Ver Preâmbulo, pp. 13-16.
34 Na primeira edição constava antes «suculento».
35 O título seria mais exactamente traduzível por «O Livro dos Pratos Cozinhados no Ponto
Certo». Foi usada a seguinte edição árabe: AL-BAGHDĀDĪ, Muḥammad ibn al-Ḥasan, Kitāb aṭ-
Ṭabīkh, edição de Qāsim as-Samārrāʾī, al-Warrāq li an-Nashr, Beirute/Londres, 2014.
36 Ver nota 148 na 106.ª Noite do Apêndice I.
37 Op. cit.
38 Trata-se de um molho de salmoura feito com farinha, sal abundante, mel, vinagre e várias
especiarias, através de um processo complicado que demora mais de dois meses. Em castelhano
chama-se almorí mas deixou de ser usado com a acepção aqui referida.
39 Livro este que se tornou conhecido na Europa pelo nome francês Glossaire sur le Mansouri de
Razès ou Glossaire sur le Mançourî de Rhazès, por se tratar de um glossário que explica os conceitos
mencionados no famoso livro de medicina denominado Kitāb al-Manṣūrī fī aṭ-Ṭibb da autoria de
Abū Bakr Muḥammad ibn Zakariyā ar-Rāzī [século ix-x], mais conhecido na Europa por Rhazes,
Rasis, ou Rhasès, sendo que o título deste livro se deve ao facto de ter sido escrito para o príncipe
samânida Abū Ṣāliḥ Manṣūr.
40 Op. cit.
41 Ver nota 38 deste Posfácio.
42 Conhecida no Magrebe por smən, no Egipto por smana e em árabe-padrão por samn, é muito
semelhante à manteiga de garrafa usada no Nordeste brasileiro e ao gheen da Índia.
43 ANÓNIMO, Kitāb al-Ḥikayāt al-ʾajībah wa al-Akhbār al-Gharībah, edição de Hans Wehr, al-
Maṭbaʿah al-Hāshimīyah, Damasco, 1954.
44 Cf. AT-TANŪKHĪ, al-Muḥassin ben ʿalī, Kitāb al-farj baʿd ash-shiddah, edição de ʿabbūd ash-
Shaljī (ou Abood Shalchy), volume IV, pp.358-369, Dār aṣ-Ṣādir, Beirute, [1975?].
45 Cf. AT-TANŪKHĪ, al-Muḥassin ben ʿalī, Nishwār al-muḥāḍarah wa akhbār al-mudhākarah,
edição de ʿabbūd ash-Shaljī (ou Abood Shalchy), volume IV, pp.177-190, Dār aṣ-Ṣādir, Beirute, [1.ª
edição: 1971], 2.ª edição, 1995.
46 No entanto, em Nishwār al-muḥāḍarah wa akhbār al-mudhākarah (op. cit.), é antes referido
ser «água de rosas». Em todos os casos, o futuro marido verte urina.
47 Em Nishwār al-muḥāḍarah wa akhbār al-mudhākarah (op. cit.) este prato é antes referido pelo
nome de dīkabrīkah, mas trata-se do mesmo prato.
48 Cf. nota de ʿabbūd ash-Shaljī sobre a qahramānah em al-Farj baʿd ash-Shiddah (op. cit.), vol.
IV, pp. 370-371.
49 Cf. op. cit. (páginas 9-13, volume IV) na nota n.º 5 do Preâmbulo no primeiro volume.
50 Para os devidos efeitos, usou-se a versão árabe editada por Hans Wehr deste manuscrito. Ver
nota 43 deste Posfácio.
51 Ao contrário do que já foi dito anteriormente em relação aos títulos dos contos n’As Mil e Uma
Noites, neste caso o manuscrito não só contém os títulos no início de cada história, como uma
introdução com o índice dos mesmos.
52 Note-se que em alguns textos antigos, designadamente de inspiração oral – por exemplo, são
vários os casos n’As Cento e Uma Noites – também se usa a palavra «rei» em referência ao califa.
Não admira pois que esta distracção tenha sido cometida. No entanto, esta é a única história do
manuscrito em que se chama «rei» ao «califa».
53 Tenha-se atenção à diferenciação de termos como poliginia, poliandria e poligamia, que
também se distinguem do termo poliamor.
54 Esta palavra (farāsha) também é usada para descrever uma pessoa inconstante.
55 HABICHT, Christian Maximilian (ed.), Tausend und eine Nacht: Arabisch : Nach einer
Handschrift aus Tunis, Volume 3, página 6, Josef Max & Comp., Breslávia, 1827. Excerto
gentilmente traduzido por Isabel Castro Silva.
56 Ver nota 20 do primeiro volume.
57 Parêntesis rectos nossos.

Você também pode gostar