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Reparou então que estes não estavam maquiados com a usual linha
negra de mesdenet, comumente conhecido como khol, que contornava
os olhos dos egípcios, mas com malaquita verde do Sinai, o chamado
udju, uma sombra para olhos muito comum durante o Império Antigo,
mas que caiu em desuso depois da IV dinastia, fazia 1.300 anos.
— Gosto de h o m e n s que trabalham com as mãos — disse ela,
melosa, tirando Shepsenuré de sua abstração. — O que você faz?
— Sou carpinteiro.
-— Seu ofício é honroso e, além disso, você faz parte do grupo dos
artesãos, cujo patrono, Ptah, é o deus tutelar desta cidade.
— Vivo mais que dignamente dele.
— Já percebi. Não é muito comum encontrar carpinteiros convi-
dados a este tipo de festas. Na verdade, é a primeira vez que vi u m deles
nelas.
— Isso surpreende você? Ou só sente curiosidade?
Ela riu suavemente.
— Nem uma coisa nem outra — respondeu. — Como disse, sim-
plesmente é p o u c o c o m u m . Enfim — suspirou — , gosto de você,
Shepsenuré, é uma pena que não possa ter uma mulher como eu.
— Tem certeza disso? — perguntou ele.
Men-Nefer se aproximou um pouco mais, até se situar no limite que
o decoro permitia e que o obrigou a aspirar a delicada fragrância que saía
de sua pele.
— Por acaso pode? — inquiriu, enquanto olhava os lábios dele.
— Façamos a prova — respondeu ele, aproximando os seus até
ficarem tão próximos o quanto era possível sem se tocarem.
Ela percorreu seu rosto até parar nos olhos, como se estivesse com
preguiça. Ali ficou com o olhar por alguns instantes, o suficiente, e
depois voltou a baixá-lo lentamente até sua boca.
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Shepsenuré sentiu que sua vontade o abandonava tão rapidamente,
que não dispôs de tempo para poder controlá-la. Apenas n u m instante
sua boca havia vencido a minúscula distância que os separava, levado
por u m impulso de que não era dono. Então sentiu os lábios dela, e
achou que ia enlouquecer.
Seus braços a rodearam, atraindo-a com força, sentindo a peculiar
maciez de sua pele e a firmeza de suas formas, ao mesmo tempo que nota-
va como os seios de Men-Nefer se esmagavam contra ele, duros como
aríetes. Quase instantaneamente, sentiu como seu membro tentava abrir
caminho por debaixo do kilt, numa ereção incontrolável.
Men-Nefer se afastou ligeiramente e, em seguida, acabou o beijo,
separando-se com habilidade.
Ficou, então, frente a um Shepsenuré que, excitado, respirava com
dificuldade.
— Seria de péssimo gosto continuar, não acha? E uma ofensa para
a casa de nosso anfitrião.
Shepsenuré era incapaz de articular uma palavra, de modo que não
respondeu, concentrando-se em recuperar a pulsação normal.
— Khepri abrirá caminho daqui a pouco — disse ela, apontando o
horizonte. — E desejo saudá-lo de minha casa, antes de ir dormir. Já é
hora de ir embora.
Shepsenuré agarrou-a pelo braço.
— Espere, pelo menos me diga se posso ver você outra vez.
— Q u e m sabe — respondeu ela. — Os deuses são caprichosos
com nosso destino.
— Não acredito nisso de jeito nenhum.
— Sério? — disse rindo outra vez. — Pois faz mal.
— Me diga apenas se posso visitar você — continuou ele, a voz
ainda afetada pela excitação que sentia.
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— Você é direto, Shepsenuré. Gosto de você; na verdade, talvez
pudesse...
— Pode me pedir o que deseja — cortou ele.
— Ha, ha, ha. Nisso não posso ajudar você, Shepsenuré, pois não
pedirei nada. Você é quem deve me surpreender. Só então o amarei.
Com u m movimento do braço, escapou da mão do egípcio,
dedicando-lhe de novo mais um olhar carinhoso. Depois atravessou a
varanda com o suave movimento que imprimia às suas curvas ao andar,
e desapareceu no interior da casa.
Shepsenuré se sentou nos degraus ainda com a respiração entre-
cortada, observando o jardim próximo. Nunca em sua vida pensou que
algo assim pudesse lhe acontecer. Seu coração era um torvelinho de
paixões que ele mesmo desconhecia. Mas isso não importava, pois,
nessa noite, havia conhecido uma deusa. Se o paraíso existia, devia ser
habitado por seres assim. Estava, portanto, decidido a receber um
adiantamento. Tinha sérias dúvidas de que, caso os Campos do Ialu
fossem reais, ele fosse admitido neles.
Olhou para a linha distante do leste, por onde já clareava. Rá anun-
ciava de novo sua chegada, e os primeiros gorjeios começavam a ser
ouvidos como uma saudação alegre. Shepsenuré tirou as sandálias
incômodas e se ergueu, dando um suspiro. Desceu a escada que dava
ao jardim e o cruzou pelo caminho que levava à porta exterior, conven-
cido de que amaria aquela mulher a qualquer preço.
Q u a n d o saiu à rua, as sombras desapareciam. D e n t r o da casa,
ainda soava a música.

No dia seguinte, ao final da tarde, Shepsenuré abandonou a cidade


a caminho de Saqqara. Escolheu as ruas mais movimentadas para se
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misturar com as pessoas e assim passar despercebido. Àquela hora, a


estrada principal que levava ao sul se encontrava cheia de gente, de
modo que não foi difícil se confundir naquela confusão.
O crepúsculo o surpreendeu com todos aqueles caminhantes que,
em sua maioria, regressavam à cidade, e aproveitou a crescente escuri-
dão para, numa volta da estrada, deixá-la e se encaminhar para a necró-
pole mais próxima. Subiu pelas areias ainda quentes até as escarpas e
ali ficou durante um bom tempo. Já era noite fechada quando conti-
nuou seu caminho, convencido de que ninguém o seguia em direção ao
esconderijo. Fazia muito tempo que não se aventurava por ali, mas,
no entanto, voltou a sentir a estranha familiaridade de antigamente, ao
caminhar por aquelas paragens.
Custou a encontrar o lugar, embora depois se sentisse satisfeito ao ver
que tudo estava tal como deixara um dia. Após se certificar novamente de
que estava na mais completa solidão, tirou a areia que tapava o acesso ao
velho poço e se introduziu nele. Acendeu sua lamparina, e a tênue luz dela
se espalhou pelo lúgubre lugar. O egípcio se extasiou durante alguns ins-
tantes com o brilho do ouro e das pedras preciosas.
"Ainda há ouro suficiente para amar Men-Nefer durante toda a
minha vida", pensou, satisfeito, enquanto olhava para todo o tesouro
que havia ali.
Uma verdadeira fortuna que já quase tinha esquecido e que manti-
nha oculta sob as areias do deserto.
Examinou devagar tanta riqueza, escolhendo as jóias que lhe pare-
ceram mais adequadas. Peças de grande valor, mas pequenas, para
assim facilitar o transporte. Pegou uma quantidade suficiente para con-
tentar a mais exigente das princesas, e as guardou num alforje que tinha
trazido para isso. Depois apagou a lamparina e saiu como tinha entra-
do, silencioso como uma cobra. Apagando cuidadosamente as pegadas
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que os pés tinham deixado, tudo ficou conforme estava antes. A seguir
foi para casa. Ainda era noite quando chegou, após cruzar discretamen-
te as ruas silenciosas de Mênfis. Pôs o alforje perto da cama e se deitou
com as mãos sob a nuca, suspirando de prazer. U m rosário de imagens
desfilou por uns olhos cada vez mais entrecerrados, dando a seu rosto
a mais feliz das expressões, adiantamento de prazeres proibidos que o
fizeram mergulhar por fim num sonho de desejos.
Quando acordou, já fazia bastante tempo que Rá-Horakhty* caía
sobre Mênfis. Depois de se espreguiçar, lavou-se minuciosamente, comeu
queijo com mel e amêndoas e tomou um pote de leite fresco. A seguir, pôs
uma camisa de fino linho com mangas amplas, que iam até os cotovelos,
e um saiote plissado que lhe cobria os joelhos e que era a última moda.
Depois, calçou aquelas odiosas sandálias a que não estava acostumado e
empacotou discretamente as jóias que considerou oportunas, num lenço
amplo, que dobrou, amarrando com cordas finas.
Ao sair de casa, sentiu uma emoção que lhe lembrava seus tempos
de adolescente, em que cada descoberta que a vida lhe proporcionava
lhe produzia um efeito similar. Sem dúvida, estava exultante. Enquanto
caminhava rua abaixo, veio-lhe à memória a velha canção que ouviu na
casa de Ankh e se pôs a assobiá-la como um rapaz.
A tarde caía de novo, criando jogos de luzes nas ruas que cruzava,
difíceis de imaginar para quem não vivesse ali. Sentia-se tão contente
que naquela tarde estava disposto a admitir que, realmente, aquela luz
era um presente dos deuses a seu povo.
Como já começava a refrescar, o passeio foi muito agradável.
Desceu quase até o cais, curtindo tudo o que seus olhos viam, o cheiro
das especiarias, o alegre alvoroço em que a rua se transformava conforme

* Rá-Horakhty representava o sol do meio-dia.


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se aproximava do rio... U m pouco antes de chegar, dobrou por uma
ruazinha que corria paralela, ao sul. Andou um longo trecho, até que as
casas foram sumindo e a ruazinha se transformou num caminho entre
altos canaviais. Cruzou uma pequena ponte sobre um dos braços que
saíam do rio, e então viu a casa, que lhe pareceu enigmática e solitária,
pois só estava rodeada de frondosa plantação de papiros. Além disso,
havia um estranho silêncio que parecia envolver o lugar, tornando-o
mais misterioso.
O caminho o levou a um muro alto que rodeava a casa. Shepsenuré
o seguiu até se deparar com uma porta de duas folhas. Era de madeira
de cedro reforçada com múltiplas chapas de cobre, que o egípcio aca-
riciou com certa devoção. Ao fazê-lo, comprovou que uma das folhas
cedia com o toque de sua mão. A porta estava aberta.
Shepsenuré a empurrou com cuidado, e o que viu foi muito mais
bonito do que esperava encontrar. Em frente, abria-se o mais belo jar-
dim que já vira, com uma variedade enorme de plantas que, em sua
maioria, ele desconhecia.
Havia um caminho de lousas de barro cozido que, da porta, levava
ao jardim e que serpenteava em direção à casa, que não ficava longe. De
ambos os lados do estreito caminho, e junto à porta, erguiam-se duas
grandes estátuas da deusa gata Bastet. Tinham sido feitas com figura de
mulher com cabeça de gata, uma mão segurando um sistro e com a
outra, um cesto*. Mas o que mais surpreendeu o egípcio não foram as
plantas nem as estátuas, mas os gatos. Sim, os gatos que o observavam
com sua felina curiosidade e que se encontravam por todas as partes.
Nunca na vida tinha visto tal quantidade de gatos juntos, nem de tantos

* Esta deusa é representada sob múltiplas formas. É guardiã do lar, simbolizando a


doçura e a fecundidade feminina. Quando encolerizada, pode se transformar e m
leoa.
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tamanhos e cores. Pareciam ter saído de cada canto oculto do jardim
para inspecionar o intruso. Shepsenuré permaneceu imóvel por um
instante, contemplando a cena fora do comum. Eles, por sua vez, con-
tinuavam olhando-o atentamente, muito quietos, como que avaliando
a natureza daquele estranho que se intrometia em seu território. Pouco
depois, um gato muito maior que os demais abriu passagem até ele. Era
negro, e seu pêlo brilhava tão lustroso que parecia recém-escovado. Ao
se aproximar, Shepsenuré comprovou que era uma fêmea.
O animal ficou perto dele, roçando-se suavemente em suas pantur-
rilhas. Depois deu uma volta em torno do egípcio e se sentou bem
em frente. Levantou a cabeça e olhou diretamente para seus olhos.
Shepsenuré se sentiu fascinado pelos olhos da gata. Eram grandes e de
uma cor verde estranha, como nunca tinha visto em nenhum animal.
Além disso, ela o olhava tão fixamente que qualquer um poderia pen-
sar que tentava ler no fundo de seu coração.
De repente, a gata se ergueu, esticando-se preguiçosa. Ao virar, distan-
ciou-se com passo silencioso, desaparecendo em seguida entre os arbustos
de hena. O restante dos gatos, então, se dispersou como por encanto, sem
emitir um só miado, deixando o caminho desimpedido para o estranho.
Shepsenuré continuou, começando a sentir uma insólita sensação
de bem-estar. Conforme avançava, o ar se enchia do perfume embria-
gador que todas aquelas plantas exalavam para ele. Chegou a uma
pequena rotunda e se deparou com várias mulheres que estavam acen-
dendo lamparinas que iluminavam o jardim, pois a noite já galopava
incontrolável sobre Mênfis. Sorriram amavelmente para ele e conti-
nuaram aplicadas em sua tarefa sem dizer uma palavra.
" Q u e silêncio estranho há neste lugar", pensou Shepsenuré,
enquanto continuava caminhando. "Nenhuma destas mulheres me
perguntou por minha visita. E nem conversam entre si."
O fim do caminho o tirou subitamente de sua reflexão, pois bem
em frente estava a casa.
Era uma grande casa de pedras gastas pelo tempo e que, no entan-
to, conservava intacta toda a graça que o arquiteto que a projetara tinha
conferido a ela. Ao vê-la, Shepsenuré ficou um tanto perplexo, pois as
casas eram feitas com adobe e tijolo, deixando a pedra somente para os
templos e monumentos. Realmente, a entrada principal lembrava os
coretos, as pequenas capelas que, às vezes, os faraós construíam em
homenagem a algum deus.
"Uma casa de pedra! Nem os faraós constroem seus palácios com
elas", pensou, enquanto subia os degraus da escada que dava acesso à
entrada.
A porta, como acontecera antes, também se encontrava aberta. Ao
empurrá-la, as dobradiças rangeram suavemente.
Shepsenuré hesitou um momento, mas foi aí que o insólito silên-
cio que parecia ocupar tudo se rompeu com o doce som de uma lira.
Ouvia-se longe, mas Shepsenuré considerou o melhor dos convites, e
entrou na casa.
Encontrou-se, então, numa ampla sala iluminada por muitas lam-
parinas, mas com uma luz tênue, o que tornava o ambiente muito aco-
lhedor. Num canto, queimava-se incenso num grande piveteiro. Em
seguida, Shepsenuré aspirou a fumaça, de cujo odor gostava muito.
Atravessou a sala respirando profundamente e saiu para um grande
pátio com colunas, que de novo o surpreendeu. Estava cheio de plan-
tas das mesmas variedades estranhas que tinha visto no jardim e que
produziam aquele perfume sem igual. As colunas que o rodeavam eram
também muito bonitas. Ao se aproximar, Shepsenuré comprovou que
eram palmiformes, um tipo de coluna de fuste cilíndrico que tinha um
capitei formado por nove folhas de palmeira atadas por seus talos. Sem
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dúvida, um tipo de coluna em desuso, e que Shepsenuré lembrava ter
visto entre os restos do templo de Unas, em Saqqara.
"Uma colunata como as construídas pelos faraós da V dinastia,
numa casa particular da XX!", pensou, de novo admirado. Tudo lhe
parecia no mínimo insólito.
Cruzou o pátio, seguindo os acordes da lira, agora próximos, e vol-
tou a entrar numa sala parecida com a anterior, em cujo extremo pen-
diam umas grandes cortinas que permitiam adivinhar imagens difusas,
suavemente iluminadas, exatamente do outro lado.
Ao afastar aqueles sutis véus com uma mão, Shepsenuré abriu a
porta para um sonho que nem mesmo na mais feliz de suas noites teria
podido imaginar.
Deuses imortais que guiam, mordazes, os inseguros passos dos
homens. Dedos invisíveis que movem os fios de destinos incertos,
convidando-os a participar na grande representação em que cada alma
deve encarnar seu papel sem saber o fim que a espera.
Então Shepsenuré, o ladrão de tumbas, filho e neto de ladrões, mo-
vido por inexplicáveis motivações, foi induzido a participar de um jogo
cujo resultado não é capaz de controlar, embora ele ainda não o saiba.
Era a irrealidade que lhe dava a mão ao ultrapassar aqueles véus, ou
seu passado foi um sonho do qual acabava de acordar?
Shepsenuré só era capaz de perceber tudo aquilo que desejamos e
depois perseguimos durante toda nossa vida: paz, sossego, bem-estar
e felicidade. Parecia que tinha deixado sua pesada carga na sala contí-
gua, sentindo-se agora livre de opressões, angústias ou receios. Aquela
seria a entrada para os Campos do Ialu?
Não lembrava que sua alma tivesse sido pesada, nem que os 42 jui-
zes dos mortos tivessem julgado seus pecados no tribunal de Osíris. No
entanto, estava ali, rodeado de toda a beleza que qualquer h o m e m
poderia desejar: plantas exóticas, ar fragrante, o m u r m ú r i o das águas
próximas do rio que pareciam arrulhar para ele, a brisa suave, as notas
daquela lira e... Men-Nefer.
Viu-a estender u m braço, convidando-o a entrar, s o r r i n d o - l h e
como só tinha visto ela sorrir. Ligeiramente recostada sobre u m divã,
parecia a sublime delícia.
Shepsenuré teve, então, consciência de tudo quanto o rodeava. Da
bela varanda onde se encontrava, da grande variedade de flores que,
por todos os lados, faziam chegar seu perfumado aroma, da escada que,
u m pouco além, descia até mergulhar nas águas do Nilo, da jovem har-
pista que, com seus gráceis dedos, arrancava aquelas notas de seu ins-
trumento, do divã de Men-Nefer situado bem no meio do mirante e da
primorosa mesinha de ébano com pequenas incrustações de marfim,
sobre a qual havia u m a bandeja repleta de grandes cachos de uva e
romãs vermelhas.
Também percebeu a existência de outras pessoas, que não tinha
reparado ao entrar. Eram dois h o m e n s de cor, de grande estatura,
possuidores de uma musculatura formidável, que brilhava volúvel ao
capricho das lamparinas. Permaneciam de pé, junto à parede, vestidos
apenas com u m pequeno kilt que cobria sua masculinidade.
— Bem-vindo à minha casa, estava esperando por você — ouviu
Men-Nefer dizer.
O egípcio virou a cabeça e se aproximou dela.
A mulher estava vestida com um simples traje de alças muito deco-
tado e que, devido à sua posição — levemente inclinada — , deixava à
mostra u m dos seios. Não estava de pulseira n e m com colares, n e m
mesmo u m anel. No entanto, ao vê-la de novo, Shepsenuré pensou que
era a mais rutilante das estrelas.
— Como sabia que eu viria esta noite? — perguntou, ao se
aproximar.
Men-Nefer riu, como sempre, cativante.
— Sente aqui, ao meu lado, e descanse. O caminho de sua casa até
aqui não é curto — disse, enquanto fazia um sinal para a harpista para
que se retirasse. — Quer um pouco de vinho?
Shepsenuré concordou, sentando-se aos pés dela, embriagado de
novo por aquela voz.
— Trouxe um presentinho para você — disse ele, fazendo u m
esforço para sair do mutismo.
Ela sorriu de novo.
— Agradeço. Pode deixar sobre essa mesa — respondeu, enquan-
to despejava o vinho numa taça de alabastro translúcido.
— Não quer saber o que é? — perguntou, surpreso.
— Não precisa, sei que não seria capaz de visitar minha casa sem
um presente digno de uma rainha — disse, oferecendo-lhe a taça.
— Rainha, diz? Nem a uma deusa eu presentearia com mais pro-
digalidade. Embora você bem pudesse ser. Hathor reencarnada não
seria mais bela.
Ela fechou a cara, ao mesmo tempo que endurecia o olhar.
— Hathor, Hathor. Deve saber que não é a deusa de minha devo-
ção. E vocês, homens, falam dela o tempo todo.
— Nesse caso, não a mencionarei mais. Talvez prefira que cite
Bastet?
Ela o olhou agora com certa excitação nos olhos.
— Bastet simboliza o princípio da variabilidade, coisa inerente à
minha natureza. Pode ser maternal e protetora ou se transformar numa
leoa cheia de cólera. Assim sou eu.
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— Por isso tem o jardim cheio de gatos?
— Ha, ha, ha. Não foi você que falou de deusas reencarnadas?
Compreendo que ache estranho.
— Na realidade, tudo aqui me parece estranho, os gatos, este
silêncio...
— Não gosta do silêncio?
— Costumo buscá-lo às vezes.
— Pois em minha casa o encontrará sempre.
— Já vi, não precisa jurar. Nem um só de seus empregados abriu a
boca quando cheguei.
Ela o olhou de novo, fixamente, sem nem pestanejar.
— Claro — disse suavemente. — Não podem falar.
— Seus empregados são todos mudos? — perguntou perplexo.
— Não, é que não têm língua — respondeu ela, enquanto levava a
taça aos lábios.
Shepsenuré sentiu um calafrio lhe percorrendo as costas.
— Ha, ha, arrepiou os cabelos? Não acha que eu as cortei, não é
mesmo?
O egípcio bebeu um bom gole, mas não respondeu. Ela o serviu de
novo com mais vinho e depois se reclinou voluptuosa.
— Dizia que tudo em minha casa lhe parece estranho. Por acaso eu
também lhe pareço?
— Sim, extremamente bonita.
Outra vez aquele riso flutuou no ambiente.
Men-Nefer estirou uma das pernas, apoiando o pé sobre o saiote
do egípcio. Este a olhou um tanto perturbado, mas ela o introduziu por
dentro do saiote e o deslizou por sua coxa.
Shepsenuré mal pôde dissimular um leve gemido ao mesmo tempo
que notava como seu membro se levantava. Ela o olhou, implacavelmen-
te sedutora, entrando de novo em sua alma como só ela sabia fazê-lo.
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Shepsenuré sentiu aquele pé que acariciava sua coxa lentamente,
cada vez mais perto de sua virilha, e introduziu suas mãos sob o saiote,
pegando-o e segurando-o sobre seu kilt. Mas em seguida reparou nos
dois homens que continuavam junto à parede como estátuas de basalto.
Ela moveu os dedos daquele pé sobre o tecido que cobria seu
membro e sentiu como crescia na mesma hora.
— Não se preocupe com eles, não vão se mover dali — sussurrou
Men-Nefer.
Ele deixou sair u m som gutural ao m e s m o t e m p o que segurava
aquele pé entre suas mãos e o levava aos lábios. Era suave e perfeito, e
começou a beijá-lo com delicadeza enquanto a olhava. Ela o observava
com complacência, umedecendo a boca voluptuosamente.
Shepsenuré entrecerrou os olhos e introduziu aqueles dedos na
boca, mordiscando-os excitado. Ela o deixava agir e mexia as pernas,
agitada. Nesse momento, ele viu como a túnica se abria deixando a des-
coberto suas coxas torneadas. Shepsenuré renunciou então àqueles
dedos e subiu com os lábios pelas pernas que a deusa lhe oferecia. N u m
interminável caminho, subiu p o r elas, beijando cada c e n t í m e t r o
daquela pele que o queimava. Suas mãos, nervosas, levantaram u m
pouco mais a túnica, mostrando coxas fortes e túrgidas, numa das quais
havia u m pequeno gato tatuado. Shepsenuré afundou a cabeça entre
elas, beijando-as, lúbrico, quase frenético. Depois, aquelas mãos puxa-
ram mais ainda o vestido, revelando suas partes íntimas.
O egípcio permaneceu quieto durante breves instantes, a vista fixa
nelas. Naturalmente, não era a primeira vez que via o sexo de u m a
mulher, embora sim de uma deidade imortal. Aquele púbis de uma cor
clara c o m o a do alabastro translúcido, e m que não se adivinhava a
menor existência de pêlos, oferecia-se a ele como o mais delicioso dos
manjares que poderia provar. Era como u m prêmio final a uma vida
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cheia de dificuldades e aflições, ou, pelo menos, assim pensou, pois se
atirou sobre ele como o beduíno do deserto teria feito ao encontrar u m
poço de vivificante água fresca.
Depois, seu coração foi apenas u m torvelinho alimentado unica-
m e n t e p o r paixões descontroladas. Sua boca se a p o d e r o u daquela
fenda de cor suavemente rosada, que lambeu c o m desespero, ao
mesmo tempo que aspirava com fruição seu odor ligeiramente almis-
carado, que o embriagou mais que todos os jardins do Egito juntos.
Não soube quanto tempo esteve ali, pois umas mãos puxaram sua-
vemente sua cabeça, separando-o de tão divino deleite.
" C o m o é fugaz meu prazer", pensou, n u m pequeno instante de
lucidez.
Mas em seguida viu que aquela deusa ofegava entre gemidos sufo-
cados e puxava sua cabeça para seus lábios, unindo-se ambos n u m beijo
em que suas essências ficaram fundidas numa só.
Numa pausa, Shepsenuré se levantou levemente, despojando-se de seu
saiote. Depois, desajeitadamente, tirou o pequeno kilt, sentindo de imedia-
to um imenso alívio ao desaparecer a opressão que já lhe era insuportável.
Ao fazê-lo, surgiu seu órgão, teso em toda a sua extensão. Shepsenuré
ficou surpreso ao ver como o sangue inchava as veias que o percorriam e
o tornavam tumefacto.
O l h o u M e n - N e f e r , e ela m o s t r o u u m sorriso de satisfação ao
contemplá-lo. A seguir, sua delicada mão se apoderou dele e o dirigiu
sabiamente para aquela secreta abertura, símbolo de prazeres excelsos.
Animou-o a entrar docemente ao mesmo tempo que elevava u m pouco
seus quadris, e ele notou como deslizava suavemente para seu interior
enquanto as pernas dela se entrelaçavam em sua cintura.
Ambos começaram, então, uma louca corrida sem nenhuma dire-
ção. U m passo suave que vai crescendo paulatinamente, até se tornar
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um frenético galope, e que nenhum dos dois estava disposto a abando-
nar até chegar à meta distante.
O animal oculto que Shepsenuré levava dentro de si corria desen-
freado pelos campos abertos do desconhecido. Estes, sim, eram os
Campos do Ialu, este, sim, era o paraíso, já não havia dúvida alguma:
era ali que queria acabar seus dias. Se não pudera escolher seu come-
ço, por que não podia escolher seu final? Para ele, já não importava
mais nada, só queria prolongar aquele prazer para sempre.
Mas nada era tão efêmero assim. Ao final, uns corpos que se
arqueavam, gritos mal contidos e espasmos descontrolados: a espiral
do prazer que deixou Shepsenuré estendido sobre ela, exausto e ofe-
gante, ainda entre convulsões.
Dedos acariciadores percorrem então suas costas, fazendo mil
arabescos sobre sua pele, cálidos desenhos que ele ignorava que exis-
tissem.
— Vamos tomar um banho.
Aquelas palavras tiraram o egípcio de sua semiconsciência. Ele
abriu os olhos, preguiçoso.
Ela o empurrou com delicadeza, animando-o a se levantar.
— A essa hora a água está deliciosa. Vamos tomar banho.
Shepsenuré levantou meio sem vontade e, em seguida, ela ficou de
pé. Olhando-o afetuosamente, deixou cair seu vestido no chão e se
dirigiu para a escadinha que descia para o rio. Ele a viu se afastar, ainda
prostrado, rebolando suas nádegas firmes.
— Vamos, não seja preguiçoso. Ou por acaso vai me deixar sozinha
na água? — ouviu que dizia.
Por fim, andou até aquela voz que o chamava, à qual nunca mais
poderia negar nada.
o % « ^o
Seu corpo ainda escorria suor quando mergulhou na água. Certa-
mente estava deliciosa. Sentiu-a regeneradora e refrescante, como se
fosse tomado instantaneamente de forças novas em seu corpo sufoca-
do. Ali, o Nilo formava uma pequena enseada de águas tranqüilas, onde
se podia nadar longe das correntes fortes.
Ela o chamou mais uma vez, enquanto chapinhava, e ele nadou
rápido para a voz.
— Você é um bom nadador — disse, recebendo-o entre seus braços.
— Em Coptos, poucos são os meninos que não aprendem a nadar.
Quase todas nossas brincadeiras eram no rio.
— Então conhece bem o rio.
— Um pouco.
— Pode sentir seu poder?
— Claro, nele reside a verdadeira força deste país.
Ela lhe passou os braços em torno de sua cabeça e o beijou.
— Hapy abençoa a terra dos faraós, não é mesmo? — disse, quase
num sussurro. — Mas também pode ser perigoso e destrutivo. De
certa forma, é variável. Essa é a essência de que lhe falei antes e que está
em mim mesma.
Shepsenuré olhou-a sem fazer muito caso a suas palavras, segu-
rando-a com seus braços como se tivesse medo de que ela desaparecesse
como uma miragem. Até a noite acompanhava aquele momento de
felicidade máxima, com uma lua completamente cheia, que brilhava
trêmula sobre o rio com reflexos prateados.
— ísis vela por sua felicidade esta noite — disse ela, lendo-lhe os
pensamentos.
Depois, mais beijos e carícias, olhares, suspiros...
Saíram da água com as mãos entrelaçadas, rindo como jovens apai-
xonados e, com os corpos ainda molhados, deitaram de novo no divã.
Voltaram a se acariciar sem pressa, pois o tempo havia parado estranha-
mente para eles. Mais um presente que Shepsenuré recebia naquela
noite de seu enigmático destino.
Agora foi ela que lhe cobriu o corpo de beijos e hábeis carícias que
despertaram de novo sua virilidade, até se sentir possuído outra vez
pelo mesmo desespero de antes.
Agora foi Men-Nefer que se sentou a cavalo sobre ele, acoplando-
se com destreza sobre o corpo do egípcio. Ele pôs as mãos sobre seus
quadris, acompanhando os movimentos circulares que a deusa come-
çou a imprimir com eles. Outra vez a porta dos sublimes prazeres se
abria de par em par. De novo a sensação de libertação de tudo quanto
de negativo havia tido sua existência. Flutuava.
Deixou-se levar por Men-Nefer com aquele ritmo lento e compassa-
do até onde ela quis, ao êxtase absoluto. Próximo do paroxismo final,
ela uniu seus lábios com os dele no mais apaixonado dos beijos, acele-
rando a cadência dos quadris. Quando o corpo de Shepsenuré estre-
meceu, agitado pelos espasmos, Men-Nefer introduziu a língua em sua
boca, sugando com frenesi. O egípcio sentiu claramente como uma
força que o ultrapassava se apoderava dele e absorvia sua essência vital
através daqueles lábios. Era como se o separassem de sua vontade e ele
assistisse, impotente, sabedor de que nada podia fazer. Seu Ka surgia do
mais profundo de suas entranhas para abandoná-lo.
Deitado no divã com o corpo daquela criatura ainda sobre ele, se
viu invadido por um irresistível torpor. Fez vãos esforços para manter
os olhos abertos, mas estes não obedeceram e suas pálpebras se torna-
ram cada vez mais pesadas. A última imagem que conseguiu reter foi a
de Men-Nefer inclinada sobre ele, olhando-o fixamente com uma luz
que parecia não ser deste mundo, enquanto gotas de água de seu cabe-
lo molhado caíam sobre sua face.
A manhã já estava avançada quando Shepsenuré acordou. O sol
incidia diretamente sobre seus olhos com toda a força própria da pro-
ximidade do verão. Protegeu-se com uma mão enquanto, com dificul-
dade, tratava de se levantar. Voltava de um sono tão p r o f u n d o que
demorou alguns instantes para tomar consciência da realidade. Sentou
no divã, esfregando os olhos com as mãos, e em seguida olhou ao redor,
buscando Men-Nefer, mas ali não havia nada mais que ele e o silêncio.
Levantou-se e foi em direção à escada que dava para o rio, mergu-
lhando nas águas. Permaneceu um bom tempo submerso enquanto
recuperava uma visão clara de tudo o que havia acontecido, revivendo
uma noite que tinha sido, talvez, parte de um sonho. Depois, saiu do
Nilo e se estendeu um momento ao sol, para se secar. Sentia-se como
nunca em sua vida, descansado e livre de temores, pois uma criatura
celestial os tinha tirado, achava que para sempre, fazendo com que ele
se sentisse eufórico e vivificado.
Quando seu corpo secou, vestiu-se e deu uma olhada ao redor. Mas
não viu ninguém, apenas o silêncio levemente quebrado pelo murmú-
rio próximo da água. A casa parecia desabitada.
O egípcio abandonou o lugar como entrou, sozinho. As portas,
como na noite anterior, estavam abertas. Mas nenhum gato se despediu
dele no jardim.

Nemenhat e Nubet tinham tido sua primeira briga. Tudo se devia


à escolha da futura casa que ambos desejavam compartilhar, pois
haviam decidido se casar. Nemenhat escolhera uma casa magnífica,
com jardins amplos, situada não muito longe do antigo palácio de
Merenptah, um lugar idílico, sem dúvida, mas que não era do agrado
de Nubet.
Ela se negava a abandonar seu bairro, acrescentando que não pen-
sava deixar de ajudar seus vizinhos só pelo fato de se casar.
— Meus vizinhos precisam de mim todos os dias, e, para alguns deles,
eu sou a única opção. Se for viver nessa casa, não poderei atendê-los.
— É a casa de nossos sonhos. De suas varandas se vê o rio, e ali a
brisa do norte chega suave ao entardecer. Tem tantas peças que não tere-
mos de nos preocupar com espaço quando vierem os filhos. Além disso,
os jardins que a rodeiam são muito bonitos, e têm até um tanque.
— Olhe, mesmo que fosse o próprio palácio do faraó, eu não dese-
jaria. Você tem de compreender que eu faço aqui um trabalho que nin-
guém poderia realizar, se for embora.
— Mas, pense, jamais teremos uma oportunidade como esta. Uma
casa assim não é fácil de encontrar.
— Não há o que pensar. Você tem que entender que nossa vida não
nos pertence por completo. Esta gente precisa de mim, Nemenhat.
A partir daí, a discussão se fazia interminável. Quer dizer então que
não me ama, que as necessidades dos outros estão acima das de sua
família, o que vai acontecer quando tivermos filhos...
A chateação durou alguns dias. Mas depois se reconciliaram, pois
se sentiam profundamente apaixonados. Nemenhat cedeu, decidindo
que a melhor coisa seria Nubet escolher a casa.
O jovem estava um pouco preocupado com outras coisas. Fizeram
outra inspeção nos depósitos da companhia, na qual os funcionários
tinham demonstrado os mesmos péssimos modos da primeira vez. Não
houve nenhuma irregularidade que pudesse ser imputada, mas a adver-
tência que alguém lhe mandava era meridiana.
Hiram, por sua vez, acionou suas influências com muita prudência,
para fazer as averiguações. Mas, em princípio, em nenhum estamento
do Estado havia denúncia alguma contra ele. Tudo parecia ser obra uni-
camente do inspetor-chefe de alfândegas do porto, departamento com
que, por outro lado, Hiram sempre havia mantido boas relações. Isso o
fez pensar que, certamente, havia outras pessoas por trás do assunto,
com interesses obscuros. Tentou fazer suas averiguações, mas não obte-
ve resultados, pois, aparentemente, ninguém sabia de nada.
Alerta a tudo o que acontecia, Nemenhat agia com a máxima pru-
dência. Intuía que tudo se devia ao comércio daquelas jóias, mas,
depois que seu pai lhe dissera que durante a festa não trocou com Ankh
mais que cumprimentos de boas-vindas, ficava um pouco descon-
certado. Preferiu, portanto, não falar a Hiram de sua antiga relação
com o escriba, até que tivesse algum indício de que ele estava por trás
da questão.
Como se isso não bastasse, havia outro fato que pesava sobre sua
consciência como a mais incômoda das cargas: era seu passado obscu-
ro. Nemenhat nunca havia imaginado que poderia chegar a se preocu-
par tanto e, contudo, era assim. A proximidade de seu casamento com
Nubet tinha despertado nele este sentimento. Não queria pensar no
que aconteceria se a jovem se inteirasse de que seu futuro marido tinha
sido um profanador de túmulos. Nem todo o amor que ela pudesse
sentir o salvaria da desgraça. Ele, por sua vez, tinha decidido ocultar
isso para sempre, pois estava convencido de que aquilo fazia parte de
um passado que já não tinha nada a ver com ele. Mas em seu interior
tinha consciência de que, de certo modo, traía a moça encobrindo
aquele pecado. Era p o r isso que se sentia incomodado e mal-
humorado. Mas tomara a decisão e não pensava em voltar atrás.
Carregaria sozinho o seu pecado, e viveria com ele pelo resto de seus
dias. Era, pelo menos, parte da penitência que, sem dúvida, algum dia
os deuses iriam lhe impor.
Apesar de todas as preocupações, Nemenhat se sentia cheio de
esperança diante das perspectivas que se abriam em sua vida. Casar
com Nubet e fundar uma família eram seu desejo máximo naquele
momento e estava convencido de que todos os problemas seriam supe-
rados ao compartilhar o amor com a jovem.
Por outro lado, seu trabalho com Hiram lhe proporcionava mais
satisfações do que poderia ter imaginado. Graças a ele havia saído do
estranho isolamento que significara sua vida anterior, e lhe dera conhe-
cimentos que, de outro modo, seriam impossíveis de alcançar, e dos
quais se sentia orgulhoso.
Todo dia cumpria suas obrigações com o fenício como se a empre-
sa fosse sua. Mas, ao cair da tarde, despedia-se apressadamente e ia em
busca de sua amada.
Encontrava Nubet envolvida na preparação de algum composto ou
atendendo algum vizinho acometido de qualquer tipo de transtorno.
Os intestinais eram os mais freqüentes, e Nemenhat se surpreendeu ao
ver o elevado número de portadores de parasitas.
Nemenhat tentava tirá-la de sua função o mais cedo possível, e
davam um passeio, como qualquer casal de namorados, fazendo planos
para o futuro e enchendo os corações com intermináveis promessas de
amor, convencidos de que, juntos, seriam felizes para sempre.
Uma tarde, a caminho da casa de Nubet, Nemenhat encontrou
Min. Não foi um encontro casual, pois o homem de cor o esperava
fazia algum tempo, e disse isso.
Fazia tempo quê Nemenhat não o via, embora soubesse de suas
andanças por Nubet e pelos comentários que Seneb costumava fazer.
Seu sogro se zangava muitíssimo pelo que ele chamava de falta de dis-
ciplina pessoal e se resignava por não poder trabalhar sem ele.
Ck. m JP
— Ele tem todos os vícios — repetia, quando soltava a língua por
causa do vinho.
E, embora exagerado, não lhe faltava um pouco de razão, pois se
conhecia de sobra a fraqueza pela bebida, pelo jogo e pelas mulheres do
gigantesco africano.
Quando, com freqüência, voltava quase ao amanhecer de suas farras
noturnas, Seneb o repreendia com dureza, ameaçando, inclusive,
acorrentá-lo, para evitar que escapasse em busca daqueles prazeres
concupiscentes de que, às vezes, o velho falava horrorizado. Min costu-
mava agüentar o castigo olhando-o com cara compungida e os olhos
bem abertos, sem dizer uma palavra. Depois, sua boca se abria, mos-
trando o melhor de seus sorrisos, e Seneb ficava completamente desar-
mado, pois sabia que por trás daquele libertino se encontrava a bonda-
de personificada. Aquele homem o queria mais que nada no mundo,
tinha certeza de que seria capaz de dar a vida tanto por ele como por
sua filha, a quem adorava. Além disso, levava muito a sério seu trabalho
e era de grande ajuda na hora dos embalsamamentos, embora, diga-se
de passagem, seu trabalho houvesse lhe custado muito.
Tinham ficado para trás os tempos em que necessitava dele, como
quando mudou duas múmias de lugar, entregando-as equivocadamen-
te para seus familiares, ou como naquela vez que tinham feito um sar-
cófago menor que o finado. Para solucionar o problema, Min quebrou
as pernas dele e o encaixou no ataúde da melhor forma possível. Claro
que isso não era a primeira vez que tinha acontecido, inclusive nas
Casas da Vida às vezes se faziam reparos semelhantes. Mas, apesar
disso, esta prática horrorizava Seneb.
— Então está me esperando há um bom tempo? — perguntou
Nemenhat. — Isso é uma surpresa, mas me alegro em ver você.
*

— Eu também me alegro — respondeu Min, com sua voz grave,


enquanto lhe dava um daqueles olhares de irmão mais velho, que cos-
tumava lhe dirigir.
— Vou até sua casa, me acompanha? — continuou Nemenhat,
levantando a cabeça para poder olhá-lo.
O africano concordou e, juntos, começaram a caminhar pela rua.
Permaneceram em silêncio durante um tempo em que Nemenhat
observou-o com curiosidade. A seu lado, parecia um pigmeu, pois mal
chegava à altura de seus ombros, aliás, hercúleos, como todo o resto.
Min pegou um cantil que levava e bebeu um longo gole. Nemenhat
viu o gogó do poderoso pescoço se mover ao dar passagem ao líquido,
e como o suor corria pela cabeça raspada de Min.
— Ah! — exclamou Min, ao acabar de beber.
Depois, ao ver que o jovem o observava, olhou-o de novo com
certa auto-suficiência.
— É para os testículos, sabe? — disse por fim.
— Sério? — perguntou Nemenhat, sorrindo. — Não sabia que
estava doente.
-— Não estou doente — disse, meio incomodado. — É por causa
da labuta.
Nemenhat deu uma gargalhada.
— Você ri porque ainda não sabe das reais necessidades de um
homem — exclamou com ironia.
O jovem se divertia ouvindo Min falando nesse tom.
— Quando se sofre tanto desgaste, é preciso ser precavido — con-
tinuou, presunçoso.
— Por quê?
— Os jovens de hoje em dia não sabem nada da vida. Eu, na sua
idade, podia enrolar você mil vezes. Por acaso ignora que a fonte de
onde brota a vida pode secar?
m
4P
— Você se refere ao mu (esperma)?
— Ia ser ao quê?
— Vamos, Min, todo mundo sabe que o mu vem dos ossos.
/

— E nisso que vocês se enganam.


Nemenhat fez u m gesto cômico.
— Pensa que sabe tudo, mas não é assim. D e onde eu venho, qual-
quer criancinha explicaria a você que o sêmen vem dos ineseway (testí-
culos).
Nemenhat olhou-o perplexo.
— Se você deixar a fonte secar, já era, será u m homem sem semente.
— Mas, pelo que vejo, você não sofre desse problema.
— Não — disse, com gesto malicioso.
— E tudo graças ao conteúdo desse cantil que leva aí. Bem, m e
diga ao menos o que contém.
— Não posso dizer — respondeu, dando-se ares de importância.
— É uma poção mágica e, portanto, secreta. Nubet me receitou.
— Nubet receitou?
— Sim. A propósito, é dela que gostaria de lhe falar.
Agora o egípcio olhou-o, estranhando.
— Pelo que sei, vocês pretendem casar.
— É verdade.
— Então direi a você que Nubet é para mim muito mais que uma
irmã. É uma irmã que sempre cuidarei. Jamais permitirei que alguém
a machuque. Ela só merece o bem. Quero que você saiba que, ao se
casar com ela, assume certas obrigações comigo, como p o r exemplo
ser o melhor dos esposos.
— Nisso você se engana, meu amigo. As obrigações eu assumo
comigo mesmo, pois não há nada mais importante para m i m que a
felicidade de Nubet. Farei tudo o que puder para conseguir isso,
acredite.
— Espero que seja um marido solícito e Nubet seja atendida como
merece.
— Nem uma princesa estará melhor.
— Bem, não precisa exagerar. Só quero que você se porte com ela
como um homem.
Nemenhat arqueou uma sobrancelha.
— Acha que não serei capaz de satisfazer Nubet?
Agora foi Min que deu uma estrondosa gargalhada.
— Me identifico com você, Nemenhat. Sempre achei você simpá-
tico — exclamou, pegando o cantil e bebendo de novo. — Espero que
logo tenham filhos.
— Pelo menos minha fonte nunca vai secar — comentou o jovem.
Min riu com vontade de novo.
— Na realidade, é um homem de sorte, embora eu ache que não sabe
ainda o quanto. Talvez não importe que eu diga o que contém meu cantil.
Em breve já não será um segredo para você — disse, ladino.
Nemenhat sorriu para ele sem dizer nada.
— Olhe, a beberagem é feita com ramos de salgueiro e arruda
esmagados com vinho. Mas não posso confessar as proporções. Confio
em que saberá guardar o segredo, agora que seremos irmãos.

Já fazia três anos da vitória sobre os "povos do oeste", quando, de


novo, inquietantes notícias chegaram ao vale no Nilo. Boatos sobre pes-
soas estranhas vindas de todos os lugares do Grande Verde, que pareciam
dispostas a assolar todo o mundo conhecido.
% m

No século XI a.C., uma confederação de povos que habitava os


mais diversos pontos do Mediterrâneo iniciou uma onda migratória
que mudou por completo o mapa daqueles tempos.
Não era um agrupamento de exércitos que se movia, mas povos
inteiros, com suas mulheres, filhos e bagagens, que invadiram a Ásia
Menor, arrasando tudo à sua passagem como uma horda incontrolável,
fazendo desaparecer da face da terra todo vestígio das nações que, até
esse momento, tinham habitado ali. Seu destino final não era outro
senão o país da abundância por excelência, o Egito.
Corria o oitavo ano do reinado de Ramsés III, quando aquelas
inquietantes notícias chegaram aos ouvidos do faraó. Dada sua gravidade,
pareceram incríveis para o deus, pois falavam do desaparecimento de
estados tão poderosos como o do Grande Hatti (hititas), inimigos ances-
trais do povo egípcio ao mesmo tempo que grandes guerreiros. Mas,
lamentavelmente, os rumores eram verdadeiros. Como uma enorme
onda humana, aqueles povos invasores tinham passado por cima do
Hatti, arrasando-o por completo. Já não restava mais nada dele.
Seus espiões tinham lhe informado que aquela enorme maré de
gente estranha se deslocava através de Anatólia com destino às terras
de Canaã, e que sua meta final não era outra senão o país de Kemet.
Outra vez os ventos da guerra sopravam pelo Egito, impulsionados
pelos boatos ameaçadores. A deusa Sejmet escutava, colérica, em seus
templos as notícias que seus divinos arautos lhe davam, o que fazia
crescer sua fúria terrível, transformando-a na mais sanguinária das
divindades. Ela ergueria todo o exército do Egito e lhe despertaria uma
fúria fora do comum, para acabar com semelhante perigo, enxame des-
conexo de pessoas das mais diferentes procedências que avançava em
tropel, com a idéia de acabar com o país que um dia os deuses criaram.
t6í

Nações de que ninguém ouvira falar antes e às quais todos chamavam


de Povos do Mar.
Naquele clima crescente de tensão, Nemenhat e Nubet se casaram.
O dia que devia ser o mais feliz de suas vidas foi festejado com os fami-
liares, amigos e inclusive vizinhos, pois Nubet tinha convidado todo
mundo. O ato foi celebrado na casa dos noivos, uma casa agradável que
Nubet tinha escolhido não longe da de seu pai, com um pequeno jar-
dim em que havia dois sicômoros. O fato de que a árvore sagrada cres-
cesse no jardim foi determinante para sua compra, "o melhor dos
augúrios", segundo disse Seneb.
Nemenhat não teve nada a se opor. A casa era espaçosa e, embora
não pudesse ser comparada àquela de que ele gostava, era uma morada
mais que digna, em que esperava poder ser feliz.
Quem não podia esconder sua felicidade era o pai da noiva, o qual,
eufórico, dava e recebia abraços a torto e a direito. Shepsenuré tam-
bém estava feliz com a união. Era necessário que Nemenhat rompesse
por completo com seu passado, e nada melhor que aquele casamento
para começar um novo caminho junto com Nubet e criar sua própria
família. Seu sangue e o do seu velho amigo Seneb se uniriam em novos
descendentes; e isso o emocionava. Inclusive Hiram, que naturalmen-
te tinha sido convidado, dava mostras de sua alegria naquele dia tão
marcante. Ele, solteirão empedernido, babava por casamentos, embo-
ra não soubesse se era por simples curiosidade ou por desejos ocultos
não satisfeitos.
Foi uma festa íntima, na qual as pessoas comeram e beberam até se
fartar. Nemenhat havia encomendado os manjares mais deliciosos, e
que não destoassem na mesa de nenhuma pessoa importante.
Nubet, que estava especialmente bela, se sentia feliz ao receber de
todo o bairro que amava suas bênçãos e votos de felicidade.
r é -
% « 4P
O noivo, na presença das testemunhas, de mãos dadas com a noiva,
em meio a felizes aclamações, entrou no que seria seu lar. Lá se deram
o mais belo dos presentes que poderiam desejar, eles mesmos,
entregando-se um ao outro na mais sublime das comunhões, em que
ambos ficaram unidos para sempre*. Depois se uniram ao resto dos
convidados para desfrutar de uma festa em que a música soou até de
madrugada e onde os noivos sentiram as mostras de carinho que todo
um bairro lhes proporcionou com entusiasmo.
Com a chegada da madrugada, os músicos se retiraram e o resto
dos convidados se despediu, mas uma enorme figura continuou solitá-
ria no jardim da casa. Era Min, que, após o enésimo brinde, velava
pelos apaixonados, decidido a lhes oferecer sua proteção para sempre.

Depois daquela noite na casa de Men-Nefer, Shepsenuré conti-


nuou visitando-a regularmente durante quase um mês. A imagem da
mulher permanecia tão vivida nele que, em seguida, transformou-se
em sua obsessão, a ponto de não haver mais lugar em seu coração, a
não ser para ela. Nos momentos de lucidez, Shepsenuré se dava conta
de que havia se tornado um escravo das paixões que sentia, mas não se
importava. Uma leve carícia das mãos de Men-Nefer ou um simples
beijo de seus lábios era suficiente para se entregar a ela por completo.
O fato de que seu filho tivesse casado havia aumentado ainda mais seu
estado de ansiedade por Men-Nefer. Talvez fosse porque já não o
necessitava, ou porque havia descoberto uma droga mil vezes mais

* No Antigo Egito, não existia nenhuma liturgia especial para celebrar u m casamen-
to. Era suficiente que os noivos tivessem a vontade de se casar diante de testemu-
nhas, entrar na casa e se deitar juntos.
m
%
poderosa que o mais forte dos licores e à qual não podia resistir. Ou,
talvez, ambas as coisas ao mesmo tempo.
Sua dependência daquela mulher chegava a extremos insólitos,
pois tinha a sensação de não se saciar nunca. Inclusive quando suas
belas pernas lhe rodeavam a cintura, fazendo-o transbordar em seu inte-
rior, notava que suas ânsias não se acalmavam. Cada noite que passava
com ela, crescia mais essa impressão de insatisfação que o levava a entrar
numa espiral de frenética paixão, até ficar exausto entre seus braços.
E, ao despertar, sempre a mesma sensação de solidão e vazio, e a
necessidade imperiosa de voltar a possuí-la mais uma vez.
Ela parecia adivinhar tudo isso e, com habilidade, o conduzia uma
vez depois da outra a uma efusão delirante que ele não podia controlar
e que satisfazia Men-Nefer.
Durante aquele tempo, Shepsenuré visitou com freqüência o
esconderijo de Saqqara. Sempre aproveitando a chegada da noite, vaga-
va pelas areias do deserto sob o atento olhar das estrelas. Como sem-
pre, cauteloso, se assegurava de que somente elas eram testemunhas de
seus atos. Chegava, desenterrava quanto considerava oportuno, e volta-
va sempre alerta com um novo despojo entre as mãos.
Quando ele o oferecia, Men-Nefer nem mesmo olhava. Simples-
mente o aceitava, fazendo um gesto a um dos empregados para que o
recolhesse. Nunca fazia nenhum comentário sobre os presentes e ele,
por sua vez, tampouco se importava, pois estava disposto a entregar
uma tumba inteira, se assim podia passar o resto de sua vida entre suas
carícias.
Mas essa impaciência que dia a dia o devorava o fez ser menos pru-
dente e, uma tarde, decidiu ir antes à necrópole, a fim de ver a amante
nessa mesma noite com novos presentes. Tomou as mesmas precau-
ções de costume, dando caprichosos rodeios até entrar no deserto.
o % « jp
Uma vez ali, observou cauteloso, certificando-se de que não havia nin-
guém nas proximidades. O sol, embora baixo, ainda permitia ver com
clareza tudo o quanto o rodeava. Não parecia haver mais ninguém além
dele.
Sentou-se à sombra que a decrépita pirâmide de Sekemjet lhe pro-
porcionava, fazendo um último esforço para esperar a chegada da
noite.
Recostado sobre uma de suas pedras, viu a sombra da pirâmide se
alongar mais e mais, e então Shepsenuré ouviu um barulho. Foi quase
imperceptível, mas ele ouviu, e, de imediato, seu corpo ficou tenso
e seus sentidos se aguçaram. Manteve-se assim durante u m tempo,
recolhendo qualquer som que a necrópole lhe entregasse e que tão
bem conhecia. Mas não escutou mais nada. Levantou-se com cuidado
e rodeou o monumento silenciosamente, em busca de algum intruso.
No entanto, não parecia haver ninguém mais que ele e a crescente
escuridão que já começava a se estender. Decidiu que devia ir embora
imediatamente, mas, em seguida e como que impulsionado por artes
estranhas, a imagem de Men-Nefer apareceu de novo em seu coração,
tão real como se estivesse ali mesmo. Shepsenuré fechou os olhos ao
mesmo tempo que esticava um dos braços para acariciar aquela deusa
que se apresentava a ele tão vividamente. Ao voltar à realidade, o egíp-
cio sentiu um tormento insuportável.
Nessa noite, não estava disposto a renunciar a ela sob nenhuma cir-
cunstância, de modo que pegaria tudo o que pudesse e correria para
junto de Men-Nefer, implorando outra vez os mil prazeres que só ela
era capaz de lhe oferecer, e que ele gostaria que fossem eternos.
De novo apurou o ouvido, mas não escutou nada.
— Deve ter sido alguma cobra saindo do ninho em busca de caça
— pensou, convencendo-se de que estava sozinho.
Decidiu não perder mais tempo e, sem mais delongas, desenterrou
o acesso ao poço e tirou dele tudo o que lhe veio às mãos. Depois,
quase apressadamente, voltou a deixar tudo como estava, regressando
sobre seus passos enquanto apagava qualquer pegada. Então sentiu um
estranho calafrio e teve o pressentimento de que não estava sozinho.
Agachou-se, tentando penetrar com o olhar a escuridão que já era dona
do lugar, mas esta não permitiu ver mais que uns passos adiante.
Levantou-se e se foi o mais rápido que pôde, afundando os pés na areia
que, naquela noite, parecia ter umas mãos que o seguravam e o impe-
diam de ir mais depressa.
Ouviu o uivo de um chacal muito perto e notou como seus cabelos
ficavam em pé. Pensou que era Upuaut, o guardião da necrópole, que
o culpava por toda uma vida de ultrajes cometidos em seus domínios.
Shepsenuré abandonou Saqqara apressadamente, pegando a estra-
da que conduzia a Mênfis. Depois se dirigiria sem demora para a casa
de sua amada, a quem se entregaria por completo.
Da necrópole, os olhos da noite o viram se afastar como alma per-
dida, até que a profunda escuridão o tragasse.
Naquela mesma noite, Shepsenuré foi à casa de Men-Nefer, como
o homem do deserto o fazia ao oásis. Era muito mais que um refúgio
para ele, pois ali acalmava seu espírito, embora fosse apenas por umas
horas. Aconchegado entre os belos seios da mulher, se abandonava com-
pletamente a ela, sem se importar que sua vontade já fosse apenas uma
lembrança. Pouco restava do homem que, durante anos, tinha arrastado
sua existência pelo pó e pelos cemitérios, forjando um caráter indomá-
vel que o tinha conduzido sempre pelos caminhos da sensatez.
Amou Men-Nefer desaforadamente, como tantas vezes, até ficar
exausto e sentir de novo o estranho torpor que sempre terminava por
se apoderar dele. Seu corpo ficava inerte e seu discernimento se diluía
em conceitos abstratos que nada tinham a ver com ele.
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% &
* * *

Os três homens falavam animadamente no caramanchão do jardim.


O calor do dia tinha dado passagem ao libertador entardecer que alivia-
va a inclemência de toda uma jornada, tornando aquele lugar muito
agradável. Aos pés da pérgula, um pequeno tanque coberto de nenúfa-
res ajudava a curtir um pouco mais o incipiente frescor que a proximi-
dade do crepúsculo anunciava.
O anfitrião, Irsw, sentado numa poltrona fofa, esticava as pernas
roliças, mexendo os dedos dos pés como se se animasse a se espregui-
çar para melhor desfrutar aquele instante.
Como de costume, quando estava de bom humor, não parava de
fazer piadas ou comentários jocosos sobre tudo aquilo que era assunto
da conversa.
Junto a ele, a delgada figura de Ankh também curtia o delicioso jar-
dim, aspirando seus aromas enquanto tratava de identificá-los. Ele
também estava de bom humor, embora, ao contrário de seu amigo, não
gostasse de demonstrá-lo com a mesma facilidade.
O terceiro homem também era magro e de expressão u m tanto
intratável, e se limitava a concordar ou não com a cabeça, ou, no máxi-
mo, a pronunciar um monossílabo. Chamava-se Seher-Tawy* e era um
conhecido juiz, famoso por sua severidade, que tinha, havia muito
tempo, uma estreita relação com o escriba, na qual existiam obscuros
interesses. Era um homem com contatos nas altas esferas da Admi-
nistração, pois sua família tinha cargos importantes há várias gerações.

* Significa p r o p u l s o r da paz nas D u a s Terras (foi o n o m e d e H ó r u s d o faraó


Inyotef I).
Seu avô tinha sido heka het, quer dizer, governador do n o m o de Mênfis
durante muito tempo, o qual aproveitou devidamente para tecer uma
boa rede de influências que seus herdeiros souberam aproveitar de modo
adequado.
Ele, sem ir mais longe, pertencia ao Grande Tribunal de Justiça
para o Baixo Egito, com sede em Heliópolis*, que lhe conferira com-
petências nos Tribunais de Justiça locais.
Era, como se disse antes, muito rigoroso nos processos e ostentava
a façanha, por todos conhecida, de ser o magistrado que mais orelhas e
narizes tinha mandado cortar em Mênfis.
Os três haviam se reunido naquela tarde para tratar de u m assunto
que lhes dizia respeito diretamente e que era necessário resolver.
— Você me prometeu uma moça, mas não me parece que você vá
cumprir — disse Irsw, recriminatório.
— Devo reconhecer que, quando cisma com alguma coisa, você
me enche — respondeu Ankh, movendo uma mão, entediada.
— Bem, já sabe que a paciência não está entre minhas virtudes.
— Nem a temperança.
Irsw riu com vontade.
— Nisso tenho que lhe dar razão. Penso desfrutar de meus apeti-
tes enquanto puder.
Ankh sorriu suavemente diante do cinismo do sírio.
— Não é m e u desejo m u d a r esses seus hábitos. Mas q u a n t o à
moça, tem de se resignar, pelo menos durante alguns dias.

* Durante a época do Império Novo, existiam dois grandes Tribunais de Justiça.


U m para o Alto Egito, com sede em Tebas, e outro no Baixo Egito, constituído em
Heliópolis. O vizir supervisionava pessoalmente os dois. Depois existiram Tribunais
de Justiça locais, confiados a notáveis com competência provincial.
4sg
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— Ouvi bem? — respondeu Irsw, botando uma mão junto à ore-
lha para escutar melhor. — Disse alguns dias?
— Sim, senhor. Pode ser até antes do que você imagina. Digamos
que será meu presente pelo êxito desta operação. A armadilha já está
para ser fechada sobre uma presa que deve ser abatida imediatamente.
— Nunca deixa de me surpreender, Ankh. Você é implacável.
Seher-Tawy deveria considerar a possibilidade de utilizar seus serviços
— continuou, com sua ironia natural.
O juiz o olhou com sua habitual expressão azeda e ignorou o
comentário.
— Mas devo reconhecer — prosseguiu o sírio — que, desta vez,
merece elogio sua diligência para acabar com isso o quanto antes.
— Não seria justo me vangloriar sozinho. Todos sabemos muito
bem quem foi o artífice do plano, incluindo você mesmo, que se encarre-
gou de aproximar a isca.
Irsw riu com discrição.
— No fim, tudo saiu como tínhamos planejado — disse Ankh. —
E, claro, ele cometeu um descuido.
— Eu disse que isso ia acontecer — exclamou Irsw, rindo. — Essa
mulher deixa todos vocês loucos. Às vezes, me pergunto se não será, na
verdade, de outro mundo.
O escriba o olhou enigmaticamente, antes de prosseguir.
— Sabemos onde guarda os despojos de seus roubos.
Irsw fez cara de surpresa.
— E mais esperto do que imaginávamos — continuou o escriba.
— Estava escondido todos esses anos bem debaixo dos nossos narizes.
Nunca teríamos encontrado o lugar se ele não nos tivesse levado até lá.
Isso foi o que aconteceu há duas noites, quando um de meus homens
conseguiu finalmente segui-lo sem ser visto.
— E onde é? — perguntou Irsw.
— N u m poço esquecido perto da velha pirâmide de Sekemjet.
Vocês ficariam surpresos se soubessem a quantidade de jóias que tinha
guardada ali.
Houve um breve silêncio, antes que Ankh continuasse.
— Este homem escondia não só a parte que lhe correspondeu no
espólio das velhas tumbas dos sacerdotes, como tinha também cente-
nas de objetos, produtos de seus roubos antigos em Ijtawy. Há uma for-
tuna considerável nesse poço que, evidentemente, deve passar a mãos
mais apropriadas.
— U m pária dilapidando semelhante tesouro, que blasfêmia! —
exclamou Seher-Tawy, abrindo a boca pela primeira vez.
— U m tesouro que deve voltar aos domínios do divino Ptah, a
quem pertence de direito, e onde será devidamente empregado.
Irsw deu uma de suas habituais risadinhas.
— Sem dúvida nenhuma — prosseguiu Ankh, sem lhe fazer caso
— , o templo não esquecerá a inestimável ajuda recebida de dois cons-
pícuos cidadãos como vocês, de modo que dará uma generosa recom-
pensa a tão insignes pessoas.
— Generosa quanto? — perguntou Irsw, distraidamente.
— O suficiente para satisfazer você — respondeu o escriba, com
certa frieza.
— E pensa agir quando?
— Está tudo preparado. Nesta mesma noite, esse h o m e m será
detido. Seher-Tawy se encarregará dele logo, logo, não é mesmo? —
inquiriu Ankh.
— Cuidarei do interrogatório pessoalmente — disse o juiz.
— Lembre que não é conveniente que fale muito.
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— Não se preocupe com isso, não terá oportunidade de compro-
meter ninguém — disse Seher-Tawy, com um tom que Ankh achou
frio.
— Que vai fazer com o rapaz? — perguntou Irsw.
— He, he. Também tenho tudo preparado para ele. Deverá en-
frentar um destino que, sem dúvida, ignora.
— Você pensou em tudo.
— Tudo será executado conforme a lei — continuou o escriba,
olhando Seher-Tawy. — Amanhã mesmo a companhia de Hiram sofre-
rá uma nova inspeção, e um dos funcionários encontrará uma jóia
comprometedora, que, obviamente, ele mesmo terá posto e pela qual
o fenício terá que responder. O juiz se ocupará dele com a retidão e a
severidade que o caracterizam, fechando a empresa e confiscando seus
bens. Hiram será submetido a julgamento sumário. Poderia se dizer
que este é outro presente que lhe oferecemos, Irsw. Vai se livrar de um
colega cuja considerável cota poderá absorver. Amanhã você será ainda
mais rico.
— Hiram tem bons contatos perto do vizir e...
— Hiram não terá tempo de fazer nada — continuou Ankh. —
Não há possibilidade de defesa para ele.
— já entendi — murmurou o sírio, enquanto olhava, malandro,
para o amigo.
— Quanto a você, Seher-Tawy, seu prestígio, quando verem desar-
ticulada trama tão vil, vai crescer aos olhos de todos os notáveis de
Mênfis. O próprio templo de Ptah estará tão orgulhoso de você que o
recomendará ao Alto Tribunal de Justiça de Heliópolis, para que faça
parte de tão elevado organismo, às ordens diretas do vizir.
Irsw aplaudiu ao final da fala.
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— Espero gozar sempre de sua amizade, Ankh. Prometo minha
devoção a você — disse Irsw, com ironia.
— Assim espero, pois necessito de sua influência para a realização
do alto objetivo que pretendo — respondeu-lhe com o olhar mais frio
de que foi capaz. — Lembre que uma vez começada a partida, é preci-
so jogar até o fim.
Dito isso, Ankh e Seher-Tawy se levantaram e se despediram de
Irsw, agradecendo a ele a hospitalidade. Faltava pouco para o crepúscu-
lo, e, naquela noite, teriam muito o que fazer.

Hiram percorria exaltado cada canto de seu escritório recolhendo


objetos e documentos, e introduzindo-os em sacos. Não podia ocultar
sua ansiedade. O chão se encontrava coberto de papiros e documentos
que ele mesmo havia posto fora. De vez em quando, ia até a janela e
espiava a rua durante alguns instantes. Depois voltava à sua tarefa,
revolvendo estantes e gavetas.
A porta se abriu de improviso e apareceu Nemenhart. O fenício
olhou-o por um momento, mas continuou atarefado.
— O que houve? — perguntou Nemenhat, observando toda aque-
la confusão.
— Parece que os deuses decidiram nos despojar de suas proteções
— disse o fenício, enquanto continuava procurando por todos os
lados. — Uma grande ameaça se abate sobre nós.
— Ameaça? Não compreendo. Seria melhor que você se acalmasse e
me explicasse o que está acontecendo.
— Me acalmar? Rapaz, estou tão calmo que não penso perder nem
um só instante, e você deveria fazer o mesmo. Durante minha vida,
naufraguei o suficiente para saber quando se deve abandonar um barco,
e garanto a você que este está a ponto de afundar.
— Abandona a empresa?
— Nós dois a abandonaremos — respondeu Hiram, enquanto
parava um pouco em sua busca incessante. — Na realidade, não sei
como não me dei conta antes, deve ser porque a soberba é capaz de
nublar a mente dos homens mais sábios. Às vezes, pensamos possuir
um poder que nos torna imunes aos perigos que sempre nos cercam, e
não é assim. A soberba é má companheira.
Nemenhat se recostou na parede e cruzou os braços, enquanto o
observava.
— Lembra que disse a você que havia iniciado algumas averigua-
ções em função daquelas inspeções que sofremos? — perguntou o
fenício, enquanto voltava a remexer suas coisas.
— Sim.
— Pois tive resultado. E lhe garanto que este não é nada agradável.
— Você é um homem com muita influência, não acredito que o
inspetor-chefe de alfândegas tenha poder para fazê-lo abandonar a
empresa assim.
— O inspetor-chefe? Ha, ha, ha. Não sabe o que diz. Ele jamais se
atreveria a fazer algo semelhante. Ele só se limita a selar a ordem de ins-
peção e mais nada. Há alguém por trás dele que planejou isso tudo.
— Suponho que sabe quem é...
— Claro que sei — disse Hiram, parando de novo por um instan-
te, enquanto virava a cabeça para ele. — Nada menos que o templo de
Ptah. Um tal Ankh é quem parece manipular os fios desse assunto.
— Ankh?
— Sim, você o conhece?
Nemenhat não pôde ocultar um sobressalto e olhou Hiram com o
rosto alterado.
— Conheço, sim. Será melhor que sente, pois preciso lhe contar
uma história.
Nemenhat contou tudo o que antes não tinha se atrevido. Como
seu pai conhecera Ankh numa taberna de Ijtawy e de que forma, dire-
ta ou indiretamente, este fizera parte de suas vidas. Falou, naturalmen-
te, da sórdida existência que tinham levado e de como Ankh tirara pro-
veito dela. Quando o jovem terminou seu relato, os olhos de Hiram
eram como duas brasas.
— Talvez eu devesse ter contado isso antes, mas deve compreender
o quanto este assunto é delicado. Além disso, já faz muito tempo que
deixamos essa vida — apressou-se em dizer o jovem.
— Delicado, você diz? — interveio o fenício, agüentando a raiva a
duras penas. — Agora, sim, é que a situação é delicada. Se tivesse me
falado antes, nada disso teria acontecido. Teríamos agido com ante-
cedência e agora estaríamos salvos. Mas não há mais tempo. Vão nos acu-
sar de ter comercializado as jóias. Sabe o que isso significa?
Houve alguns instantes de silêncio, em que ambos se olharam.
— Nunca devia ter entrado em semelhante jogo — prosseguiu o
fenício.
Nemenhat baixou a cabeça, pesaroso.
— Fizeram tudo em sigilo — continuou Hiram — , porque não
lhes interessava fazer um caso público com isso. Eles desejam recupe-
rar as jóias e depois vão acabar com a gente. Não pense que eles deixa-
rão que você conte em público o que aconteceu. Planejaram tudo
muito bem. Sabe quem instruirá o processo?
— Não.
— Pois não será outro que Seher-Tawy. Já ouviu falar dele?
O egípcio negou com a cabeça.
— Na magistratura é conhecido como "o açougueiro", porque não
há nenhum juiz no país que tenha ordenado cortar maior número de
orelhas e narizes que ele, de modo que, se tem apego aos seus, convém
que suma.
— E você? O que vai fazer?
— Vou embora de Mênfis o quanto antes. Esta noite sai um navio
para Biblos e penso embarcar nele. Isso está perdido.
Nemenhat se sentou numa das cadeiras, desolado.
O fenício, que o olhava de esguelha, aproximou-se e se sentou com
ele.
— Escute — disse, pondo uma mão sobre seu ombro. — Acontece
que, às vezes, fazemos as coisas com a melhor das intenções e, no entan-
to, estas acabam nos escapando como água por entre os dedos. O destino
é tão frágil que qualquer decisão, por simples que pareça, pode mudá-lo
por completo. Não se aflija mais. Devemos enfrentar o inevitável, para
podermos voltar ao caminho de novo. Graças a este obscuro assunto
conheci você, e devo confessar que isso significou uma alegria para meu
coração. Este velho o ama como ao filho que nunca teve.
Nemenhat olhou-o com os olhos velados pelas lágrimas que resis-
tiam em cair, e abraçou o fenício como se de verdade se tratasse de seu
próprio pai.
— Agora, deve agir com rapidez — disse Hiram, ao se separar. —
Sua família corre grave perigo. Vá em busca dos seus. Pegue o indispen-
sável e volte aqui. Traga-os à força, se necessário. Estarei esperando
vocês no porto, a bordo de u m barco de n o m e Cabires. Já está tudo
combinado. O capitão vai nos tirar da cidade esta noite mesmo.
Nemenhat se levantou, ainda confundido pela gravidade de tudo o
que Hiram havia dito. Em seguida, pensou em sua mulher e em seu pai.
Seu pai... ele sim corria o maior dos perigos. Tinha que encontrá-lo
imediatamente, antes que fosse tarde demais.
— Não perca um instante, Nemenhat. E lembre que estarei espe-
rando vocês. Mas se não chegarem antes que se anuncie a madrugada
terei que partir sem vocês.
— Obrigado, Hiram — disse o jovem, lutando outra vez com as
lágrimas, enquanto abraçava de novo o fenício.
Nunca custaria ao jovem se separar tanto de u m abraço como
naquela ocasião. Sentia seu coração pesado por uma infinidade de
emoções impossíveis de dominar, que o faziam continuar estreitan-
do o homem que, de certo modo, havia dado sentido a sua insólita
existência.
Quando, por fim, conseguiu escapar dele, foi incapaz de olhá-lo de
novo no rosto. Seus lábios não conseguiram pronunciar nem uma só
palavra. Apenas teve forças para lhe dar as costas e sair da sala apressa-
damente.
Na rua, apertou o passo, desviando-se das mercadorias que, como
de costume, se acumulavam nas docas, prontas para serem embarca-
das. O cais era um formigueiro naquela tarde. Por todos os lados se
viam trabalhadores empenhados nas tarefas rotineiras, cobertos de
suor, depois de um dia de duro trabalho. Também numerosos grupos
de soldados confluíam de todos os pontos da cidade, marchando para
os quartéis situados nos arredores. O rio era testemunha, ainda, da
afluência de milhares de soldados que, do sul, chegavam em navios de
transporte. E, na rua, havia esse ambiente de inquietação similar ao
vivido fazia apenas três anos, que Nemenhat conhecia tão bem.
Era estranho, o Egito estava se preparando de novo para a guerra e,
no entanto, o jovem mal tinha consciência de que ela se avizinhava. Os
últimos acontecimentos tinham-no feito perder a noção de quanto o
rodeava, confundindo-lhe tanto até o extremo que só era capaz de pen-
sar no perigo a que estavam expostos os seus.
Enquanto se dirigia com passos rápidos à casa de seu pai, tratava de
pôr um pouco de ordem dentro de toda aquela confusão. As conse-
qüências lhe escapavam, embora fosse capaz de adivinhar que seriam,
no mínimo, nefastas.
"Como Nubet reagirá quando souber que, na verdade, fui um mero
saqueador de tumbas? Melhor nem imaginar", pensava Nemenhat, que
agora, sim, sentia culpa por não lhe ter confessado seu passado.
Mas, mesmo sendo este um problema de envergadura, não podia
nem se comparar com o que se planejava contra seu pai. Ankh manda-
ria seus homens contra ele o mais rápido possível, disso estava certo, e
não havia dúvida nenhuma de quais seriam suas intenções. Se não o en-
contrasse antes deles, Shepsenuré seria um h o m e m m o r t o , pois o
escriba jamais lhe daria uma possibilidade para que pudesse envolvê-lo.
Esta idéia o fez sentir um calafrio e se encheu de medo diante da
possibilidade de seu pai já estar preso. Então se apressou o quanto
pôde, mas a grande aglomeração de pessoas que havia a essa hora nas
ruas o impossibilitou de caminhar tão rápido como desejava. Soldados e
mais soldados saindo de todas as partes abriam passagem a empurrões,
se necessário, diante do olhar temeroso dos cidadãos que cochichavam
sem parar sobre o novo perigo que se abatia sobre o Egito.
As sombras já eram pronunciadas quando, finalmente, Nemenhat
chegou à casa de seu pai. Entrou apressadamente, chamando-o aos gri-
tos, repetidamente, mas ninguém respondeu. Sentiu, então, como a
angústia se apoderava dele, e como se formava no estômago um pesa-
do nó. Chamou o pai de novo, assustado, enquanto percorria os cômo-
dos à sua procura, mas não teve resposta alguma. Levou as mãos ao
rosto, preso de desânimo, e emitiu um gemido de desalento.
o % «
"Devo encontrá-lo de qualquer jeito", pensou, encaminhando-se
de novo para a saída.
Então, ao passar pela pequena sala que dava acesso à porta da casa,
ouviu o som inconfundível de uns pés descalços que se aproximavam
por detrás dele. Virou-se de imediato, justo para ver um homem que
não conhecia levantar um bastão e descarregá-lo sobre sua cabeça. Foi
como se os abismos pelos quais Rá navegava todas as noites em sua
barca o engolissem subitamente, fazendo-o parte de sua escuridão. E,
no entanto, durante o mais ínfimo dos instantes, foi capaz de se dar
conta disso e de como o maior dos vazios se instalava nele. Depois caiu
no chão pesadamente e, em seguida, o sangue que escorria de sua cabe-
ça empapou o piso de terra batida, tornando-o estranhamente escuro.

Naquele dia, Shepsenuré abandonou sua casa no meio da tarde.


Passara o tempo todo pensando em Men-Nefer de modo obsessivo, e
não se achou capaz de esperar o crepúsculo para ir visitá-la. Estava há
duas noites sem vê-la, e sua ausência lhe parecia completamente insu-
portável. Sentia por ela a maior das dependências, e só pela manhã,
depois de ter se abandonado durante toda uma noite, seu ba parecia
encontrar a paz necessária.
Percorreu o caminho como de costume, sem nem reparar nos sol-
dados que, naquele dia, iam e vinham pelas ruas. Ele não pertencia
àquela terra, seu m u n d o era Men-Nefer, o resto, pouco ou nada
importava.
Como em outras vezes, sentia esse ponto de ansiedade que lhe
subia do mais profundo de seu ser e que não o abandonava até jazer ao
lado de Men-Nefer, saciado dela, bem entrada a madrugada.
r 4 > % - N

Men-Nefer! Nem a melhor papoula* de Tebas podia ter u m efeito


comparável a ela.
Deixou para trás, por fim, as últimas construções da cidade e se
dirigiu pelo caminho que cruzava a pequena ponte em direção à casa.
Nesse momento, sentiu seu coração bater com mais força, diante da
proximidade de sua amada. Ou por acaso não a amava? Era curioso,
mas nunca tinha parado para pensar nisso. Seria, talvez, p o r q u e ela
havia se tornado uma necessidade?
O sol se punha quando chegou à sua porta. Empurrou-a e, como
sempre, encontrou-a aberta.
Foi recebido pelo silêncio costumeiro, embora, desta vez, não visse
nenhum gato nem empregadas no jardim. D e novo, aquela enigmática
solidão, que parecia envolver a vila, e que era tão incômoda para o
egípcio, se mostrava claramente presente. Nem uma só voz, nem u m só
som, nem mesmo a suave brisa do norte que agitava as folhas das pal-
meiras parecia produzir ruído algum. Shepsenuré olhou as palmeiras
dum-dum** e o fato lhe pareceu curioso. Mas continuou pelo caminho
que levava à porta da casa, disposto a não perder nem u m m o m e n t o
para abraçar Men-Nefer.
Ouviu a porta ranger nas dobraduras exageradamente, ao abri-la, e
lhe pareceu estranho, pois não lembrava que o fizesse assim antes. Já
dentro da casa, estranhou ainda mais a escuridão que reinava ali e abriu
uma das janelas situadas junto à porta, e sua perplexidade foi absoluta
ao ver que a sala se encontrava vazia. Nem um só móvel, n e m mesmo
os piveteiros que, geralmente, estavam acesos. Nada. Avançou, olhando
incrédulo a seu redor, como se houvesse entrado n u m a espécie de
sonho inesperado para o qual não estava preparado.

* As papoulas de Tebas eram famosas porque delas se extraía u m opiáceo.


** Palmeiras típicas do Egito, que costumam medir até trinta metros de altura.
Entrou na sala contígua que, habitualmente, tinha abertas as portas
que davam para a varanda. Elas também estavam fechadas. E, na total
escuridão que se encontrava, o egípcio sentiu um ar estranhamente
viciado, que o fez se lembrar das tumbas. Apressou-se em abrir as gran-
des portas que comunicavam com o caramanchão e, quando a luz do
crepúsculo iluminou a cena, Shepsenuré ficou boquiaberto.
A grande sala se encontrava completamente vazia, e, além disso,
parecia que a casa estava desabitada desde muito tempo, pois tudo se
encontrava coberto de uma espessa camada de pó. Olhou o chão e viu
claramente seus passos marcados nela, coisa impossível de entender,
pois ele tinha passado por ali fazia apenas duas noites.
Quase correndo, saiu para a varanda sem acreditar em tudo o que
via, gritando o nome de Men-Nefer. Mas sua surpresa apenas aumen-
tou, ao ver que aquela varanda, que tinha sido o cenário de sua trans-
bordante paixão, também estava vazia.
Shepsenuré gritou de novo várias vezes, preso de um crescente
desespero, até ficar quase sufocado. Pensou que tudo girava ao seu
redor e que o nome de Men-Nefer era devolvido pelas paredes da casa,
como um eco carregado de risos estrepitosos. Realmente, sua cabeça
pareceu se encher de gargalhadas que nem tapando os ouvidos deixava
de escutar. Caiu no chão, preso da loucura, ficando encolhido enquan-
to murmurava o nome daquela mulher.
Impossível saber quanto tempo passou assim até que a luz da razão
voltasse a ele para tirá-lo do estado de histeria em que se encontrava,
mas já era de noite quando se levantou como o mais vencido dos
homens.
Quase arrastando os pés, foi até a escada que dava para o rio, por
onde seus corpos nus haviam passado noites atrás ainda escorrendo a
água do Nilo sagrado. Ali se sentou em silêncio, com o ânimo debilita-
do, enquanto olhava as águas escuras do rio fluírem sob seus pés.
"Como é possível?", perguntava-se muitas vezes, movendo a cabe-
ça com consternação. Estaria sofrendo o mais terrível dos pesadelos?
Ou talvez estivesse saindo dele?
Virou a cabeça para a escura silhueta da casa recortada na noite, e
reparou nas belas cercas-vivas primorosamente podadas que a rodea-
vam antes, e que agora se mostravam descuidadas. Dava a impressão de
que tudo aquilo havia sido abandonado havia muito tempo. Mas era
impossível, ele mesmo tinha desfrutado disso durante noites inteiras.
"Que tipo de feitiço ocorreu neste lugar?", perguntou-se, incapaz
de pensar qualquer explicação.
Abatido e humilhado, meteu a cabeça entre os joelhos, murmuran-
do frases desconexas e lamentando-se por sua estupidez.
Aquela mulher o tinha enfeitiçado por completo e ele se entregara
a ela sem reservas, mesmo sabendo que nunca seria sua por completo.
— Nunca pertencerei a nenhum homem — havia lhe dito na pri-
meira vez em que se viram.
Tinha buscado a felicidade com quem nunca poderia dá-la. Men-
Nefer não oferecia nada, tomava. E ele se obcecara, acreditando no
contrário.
O som de passos veio tirá-lo de todos aqueles pensamentos. No
começo, pensou que talvez fizessem parte daquela patética miragem
em cuja representação tinha tomado parte. Mas em seguida ouviu
como as pisadas se aproximavam gradualmente.
Virou o corpo, ainda sentado n u m dos degraus, e viu luzes de
tochas que se aproximavam. Em seguida, conseguiu ver que vários
homens armados se dirigiam para onde ele se encontrava.
Nesse momento, a lucidez que comumente o havia acompanhado
voltou, restituindo-lhe a clarividência que, desde muito tempo, havia
perdido. Compreendeu claramente que tudo que tinha acontecido era
uma farsa, e que haviam lhe preparado a mais perversa das armadilhas.
Levantou-se tão rápido quanto pôde e desceu pelos degraus dis-
posto a mergulhar no rio, em cujas margens poderia se esconder com
facilidade. Mas no último instante, justo quando seus pés entravam na
água, umas mãos surgiram da escuridão, agarrando seu corpo com uma
força extraordinária.
Shepsenuré tratou de se safar daquele abraço, sabendo que sua vida
dependia disso, e, fazendo um esforço sobre-humano, conseguiu cair
sobre a escadaria com aquele homem que se grudava nele com tanta
firmeza. Ouviu-se o som dos corpos, ao caírem, e u m lamento proferi-
do por seu captor ao se chocar com os degraus. Em seguida, soltou
Shepsenuré, que se levantou disposto a se lançar às águas salvadoras,
apenas a um metro de distância.
Mas, ao se levantar, viu que uma das tochas, justo sobre sua cabeça,
se arrebentava sobre seu rosto com força descomunal. Depois, de
novo, houve apenas silêncio.

A primeira coisa que Shepsenuré viu ao abrir os olhos foi a fraca


réstia de luz que entrava através da clarabóia que mal clareava o lugar.
Ao se acostumar um pouco com a escuridão, comprovou que estava
num lugar sombrio, desprovido de mobiliário e onde não havia mais
ninguém.
Tentou se levantar um pouco e, em seguida, notou uma dor insu-
portável. Levou mecanicamente uma mão ao nariz e, ao tocá-lo, a dor
aumentou ainda mais, tornando-se tão insuportável que achou que ia
desmaiar. Deitou-se de novo sobre o chão frio de calcário, tentando
não mexer muito a cabeça para suportar melhor seu desânimo. Olhou
a clarabóia, observando como os raios do sol entravam a duras penas
por ela, ao mesmo tempo que tratava de pôr em ordem seus pensa-
mentos. Onde estava? Há quanto tempo estava ali?
Em seguida se lembrou da cena nas escadarias da casa de Men-
Nefer, de como um punho forte como uma clava havia batido contra
sua cara. Sentia vivamente o resultado, pois parecia que aquele golpe
tinha quebrado seu nariz. Mas, depois, outros pensamentos lhe fizeram
sentir uma preocupação muito maior que a que procedia do golpe.
Seu filho! Corria um grave perigo e devia avisá-lo, mas de que
maneira? Intuía que, desta vez, tudo havia se acabado. Estava preso,
preso graças a sua estupidez. Onde estava a prudência que mostrara
toda a vida? Ele a tinha ignorado apenas durante um mês, e aquelas
eram as conseqüências.
Por fim, Ankh tinha sido mais esperto que ele, ganhando a partida.
Uma partida que tinha começado a jogar muitos anos atrás, naquela
taberna de Ijtawy. Nunca devia ter participado dela.
Fez um gesto de resignação. As coisas eram como eram e de nada
adiantava se lamentar agora. Se havia chegado ao final, devia enfrentá-
lo com a dignidade que nunca pudera ter. Mas, então, pensou de novo
no filho e ficou angustiado outra vez. Tinha apenas 22 anos, seu cami-
nho não podia parar ali. Tudo, fizera absolutamente tudo por ele, para
evitar que passasse a vida como um pária, como ele mesmo tinha sido,
e como também foram seu pai e o pai deste.
— Os párias semeiam de miséria os campos que compartilham —
murmurou, amargurado. — Todas as desgraças parecem se saciar neles.
— E lembrou as misérias que seu avô e seu pai tinham feito suas famílias
passar.
Suspirou, pois estava cansado de saber das conseqüências que acarre-
tavam ter cometido um crime como o seu. Não era por nada que seu avô
fora enforcado diante de seus próprios olhos, sendo ele ainda uma criança.
Não tinha medo, mas seu filho... Devia avisá-lo, de alguma forma.
Nesse momento, o ruído de um trinco sendo aberto o tirou de seus
pensamentos. Vários homens entraram no local portando tochas e se
aproximaram.
— Parece que já acordou — disse um deles, iluminando-o direta-
mente.
— Então não percamos tempo. Levante-se, cachorro! O juiz está
esperando.
Shepsenuré se levantou, sentindo de novo aquela dor terrível no
nariz, e, ao fazê-lo, umas mãos o seguraram pelos braços, obrigando-o
a caminhar.
Atravessaram um longo corredor em que não havia mais luz que a
produzida pelas tochas de seus guardiões. Em seguida, subiram por
uma escada estreita que dava num pátio amplo sobre o qual o sol caía
em cheio. O egípcio automaticamente tentou proteger os olhos de
tanta claridade, mas se deparou com aqueles braços que o seguravam
com mais força que qualquer grilhão.
Os guardas riram dele.
— Os vermes como você preferem a escuridão das masmorras,
não é mesmo? — disse um.
Os outros riram da piada, enquanto o sacudiram com brutalidade.
— Olhe, não se preocupe, certamente voltará a elas antes do que
pensa — comentou outro deles, com ironia.
Os demais riram de novo, e desta vez com certo alvoroço.
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— Psiiiiu, calem-se — ordenou o que parecia ter maior patente.
— O juiz espera impaciente, e já sabem como gosta pouco de brinca-
deiras.
Era isso mesmo. Sentado numa bela cadeira de diretor, Seher-Tawy
aguardava, cheio de expectativa. Estava esperando a manhã toda que
aquele homem voltasse a si, e já fazia tempo que começara a ficar impa-
ciente. Devia agir com rapidez, para dar aquele caso por encerrado,
senão a coisa poderia se complicar.
A acusação que recaía sobre Shepsenuré representava um dos cri-
mes mais graves que se podiam cometer no Egito, a ponto de o vizir em
pessoa ser o encarregado de julgar os casos de violação de tumbas.
Ele, como representante legal da justiça do vizir em Mênfis, devia
tomar a declaração do réu e instruir um processo que, por fim, chega-
ria ao Grande Tribunal de Justiça de Heliópolis, onde o vizir ditaria a
sentença.
Sua competência, portanto, era relativa, mas contava com uma
certa margem de manobra para poder manipular o assunto à forma que
lhe convinha. O fato era que a demanda não tinha sido interposta dire-
tamente pelo Estado, como costumava acontecer nesses casos, mas
pelo templo de Ptah, que não deixava de ser um organismo autônomo.
Era, portanto, uma acusação particular, que fora remetida diretamente
a ele, para fazer a denúncia. O Estado e, portanto, o vizir nada tinham,
ainda, com ela.
Indubitavelmente, o juiz devia informar de um caso como este o
mais alto organismo da justiça, mas passaria algum tempo até que a
pesada burocracia egípcia fizesse o processo chegar corretamente for-
malizado ao Grande Tribunal.
Seher-Tawy seria absolutamente escrupuloso para que a instrução
daquele caso chegasse adequadamente a seu destino. Mas não estava

disposto que o acusado o acompanhasse. Para isso, a lei lhe dava algu-
mas alternativas, sobretudo na forma de obter as declarações.
Shepsenuré foi levado à presença do juiz. A primeira impressão que
ele lhe causou foi a de se encontrar frente a um homem de meia-idade,
magro, com a pele amarelada e expressão amarga, os olhos frios e inex-
pressivos. Em suma, muito desagradável.
Shepsenuré sentiu seu olhar inquisitivo durante alguns minutos,
em meio ao mais completo silêncio.
— Você é Shepsenuré? — perguntou, por fim, com uma voz tão
desagradável como todo o resto dele.
O egípcio o olhou fixamente nos olhos e não respondeu.
— Bem, sabemos que você é Shepsenuré — repetiu o juiz, fazen-
do uma careta repulsiva que poderia significar qualquer coisa. — E
também conhecemos os negócios em que atua. Muito lucrativos e
que, por outro lado, atentam contra a própria essência de nosso povo.
Nada tão sagrado para qualquer cidadão como seu legítimo direito de
garantir sua vida no Além, que você se dedicou a transgredir subtrain-
do das tumbas tudo o quanto eles necessitavam para sua vida depois da
morte.
Shepsenuré continuou sem dizer nada, limitando-se a desviar o
olhar para um escriba que, sentado no chão, junto ao juiz, parecia ano-
tar tudo o que este dizia.
— Saquear tumbas é um delito muito grave, castigado com a
morte. Sabia disso, não é mesmo?
Shepsenuré continuou em silêncio.
— Já vi tudo — prosseguiu o magistrado — , despreza este tribu-
nal com seu silêncio pertinaz. Tem sorte de que este caso seja julgado
em última instância pelo vizir, senão, agora mesmo, mandaria cortar
suas orelhas.
Shepsenuré mal alterou sua expressão.
— Depois, cortaria o nariz. E, se continuasse teimando em não
falar, arrancaria sua língua, pois, pelo que vejo, não precisa muito dela.
Mas o respeito que não tenho por você devo-o ao vizir, e não gostaria
que você se apresentasse a ele sem seus apêndices.
Ambos continuaram a se olhar durante breves instantes.
— Agora direi a você o que faremos — continuou o juiz, mal pes-
tanejando. — O escriba lhe entregará uma declaração em que o faz
responsável pelos crimes que lhe são imputados, e a assinará... embo-
ra, como não sabe escrever, poderá fazer uma marca e o escriba assina-
rá por você. Isso nos economizará tempo e incômodos. E então?
Shepsenuré olhou-o com todo o desprezo de que foi capaz, e con-
tinuou sem dizer nada.
— Ah, eis aqui um homem duro, duro de verdade, não é mesmo?
Gosto deste tipo de homens — continuou, virando a cabeça para
outros dois indivíduos que se encontravam de pé atrás dele. — Os ins-
petores deste tribunal — prosseguiu o juiz, apontando-os com uma
mão — estão, faz algum tempo, no rastro de seus passos, e elaboraram
um detalhado informe com os por menores de suas atividades. São tão
minuciosos nos detalhes que, ao lê-lo, ninguém em sã consciência
duvidaria de sua veracidade. Nele, fica claro que você, Shepsenuré, não
é mais que um vulgar violador de túmulos. Não há dúvida de que seria
de grande ajuda para este tribunal que nos falasse de seus cúmplices,
acrescentando algum nome aos que já possuímos. Pelo visto, você tra-
balhava em estreita relação com alguém de nome Nemenhat e...
Ao escutar aquele nome, Shepsenuré soltou um gemido que pare-
ceu sair das profundezas de si mesmo.
— Deixem ele em paz! Ele não tem nada a ver com isso — exclamou,
enquanto tratava inutilmente de se soltar das mãos que o prendiam.

Seher-Tawy olhou-o irônico.
— Parece que esse nome soltou sua língua, não há dúvida de que o
conhece bem — disse o juiz.
— O rapaz está fora disso — exclamou Shepsenuré, com evidente
exasperação. — Ele não cometeu nenhum crime.
— Gostaria de acreditar, mas infelizmente não são esses os nossos
informes — respondeu Seher-Tawy, enquanto estalava os dedos com o
olhar voltado para um de seus ajudantes.
Este lhe entregou um papiro que o juiz desenrolou com calma.
— Vejamos — prosseguiu este, com uma voz que parecia carecer
de todo sentimento. — Segundo consta nas investigações, o tal
Nemenhat se dedicou a vender parte do butim indiscriminadamente,
desprezando, se ainda é possível, o significado que todos esses sagrados
objetos têm para nós. Imagine só, um escaravelho sagrado nas mãos de
um comerciante de vinhos cipriota! Inconcebível.
— Repito, ele é inocente. Meu filho trabalha honradamente nos
escritórios de Hiram — disse Shepsenuré, furioso.
— Seu filho? Ah, sim, quase tinha esquecido. Entendo sua postu-
ra, pois não há nada como o amor paterno, mas as provas são tão esma-
gadoras, que não tem jeito, não consigo acreditar em você.
Shepsenuré voltou a fazer força em vão.
— Alguma das peças que vendeu — prosseguiu o magistrado —
fazem parte do mesmo despojo funerário a que pertencem várias jóias
que levava com você na outra noite. Compreenderá que tanto acaso é
inconcebível, principalmente quando estamos falando de objetos com
quase 1.500 anos de antigüidade. Como lhe dizia, ele é parte direta do
crime que cometeu e, obviamente, será castigado por isso.
Shepsenuré não pôde evitar um grunhido de desespero.
— He, he, he — riu Seher-Tawy. — Seja razoável, Shepsenuré.
Assine a confissão e acabemos com isso de uma vez.
— Não falarei contra meu próprio filho — gritou com raiva. —
Não vou ser eu que vou ajudar você a prendê-lo.
— Não preciso disso — respondeu o juiz, calmamente. — Ele já
está preso.
Shepsenuré sentiu então que todo o sangue se acumulava de
repente atrás de seus olhos, velando completamente sua razão. Os
lamentos anteriores se tornaram bramidos e, remexendo-se como uma
fera enjaulada, tentou se livrar de seus capturadores.
— Deve cooperar, Shepsenuré. Seja sensato. Seu filho e Hiram são
cúmplices flagrantes...
— Hiram é u m honrado e influente comerciante dessa cidade.
Ninguém acreditará que trabalha vendendo objetos roubados — res-
pondeu Shepsenuré.
— Honrado? É muito mais espertalhão que você, pois o n t e m
mesmo desapareceu. Certamente abandonou Mênfis em algum dos
barcos que se dirigiam ao Grande Verde.
Shepsenuré baixou a cabeça, desalentado.
— Assine a confissão e terminamos logo com isso.
— Não tenho nada a dizer — disse, levantando a cabeça e olhan-
do o juiz com raiva contida. — Não serei eu a denunciar meu próprio
filho.
— Sabia que diria isso — interveio, de novo, Seher-Tawy, imper-
turbável. — Mas não se preocupe. Dispomos de meios adequados para
que o faça. Está tudo preparado.
Fez um sinal aos guardas e, no mesmo instante, estes abandonaram
a sala levando Shepsenuré quase se arrastando.
% «

— Desgraçado! Maldita seja sua semente p o r vinte gerações —
ouviu-se o réu dizer enquanto saía.
Imutável, Seher-Tawy fez u m gesto ao escriba.
— Que lhe dêem badjana, nadjana ou manini*, conforme for o caso.

Ao receber a primeira cacetada, Shepsenuré soube que ia morrer.


O golpe que recebeu nas costas foi tão grande que sentiu na hora como
seus p u l m õ e s ficavam sem ar, e seu c o r p o pareceu se partir e m
dois. A segunda o pegou nas pernas, fazendo-o perder o equilíbrio,
derrubando-o no chão frio da masmorra. Em seguida, uma chuva de
cacetadas caiu sobre ele com uma fúria que n e m a própria Sejmet
poderia superar, obrigando o egípcio a levar as mãos à cabeça, na ten-
tativa de se proteger.
Ao fim de alguns instantes, para ele impossíveis de precisar, a surra
parou, e, na pesada atmosfera daquele porão fundiram-se seus gemidos
queixosos com as entrecortadas respirações de seus verdugos, que se
recuperavam do esforço.
Viu como u m papiro e u m cálamo apareciam perto dele, pouco
iluminados pela luz fantasmagórica que havia na cela, e ouviu a voz
fanhosa do escriba convidando-o a assinar.
— Assine aqui.
Ele virou a cabeça, com desprezo, para o outro lado e, em seguida,
sentiu como as pancadas voltavam a atingi-lo, desta vez sobre os pés.
N u m ato reflexo, tentou se cobrir, mas, em seguida, recebeu uma
cacetada na cabeça, levando-o a escondê-la de novo entre os braços,
enquanto uivava de dor.

* C o m estes nomes se conheciam os três tipos de espancamento que se aplicavam,


embora não se saiba qual era a diferença entre eles.
Quando a surra parou de novo, Shepsenuré mal sentia os pés. Ele
os movia imperceptivelmente, sem saber o que fazia, com uma espécie
de tremor que não era capaz de controlar. Devia ter tantos ossos que-
brados que teria sido impossível se virar no chão. Tinha forças apenas
para respirar e, ao fazê-lo, sentia uma dor aguda nos pulmões que o
fazia sentir um terrível sofrimento.
Notou um líquido espesso na boca e, ao abri-la, expulsou uma gol-
fada de sangue. Aquilo o fez tossir, aumentando a dor insuportável que
sentia.
Com a vista nublada, pensou ver de novo o papiro e o cálamo, e
seus ouvidos pareceram escutar a voz do escriba.
— É uma mera formalidade. Assine.
Seus olhos se fecharam, enquanto se concentrava, com dificuldade,
em continuar respirando.
Outra vez Sejmet pareceu desatar sua proverbial cólera inclemente
contra ele. Será que era pelo sacrilégio cometido na tumba dos servi-
dores de seu esposo, o divino Ptah?
Enquanto as cacetadas lhe quebravam o corpo, pensou que aqueles
nomes continuavam não significando nada para ele. Não era a ira de
Sejmet, mas a vingança de Ankh que o espancava. Como era tétrico o
final de sua vida errante.
A imagem de Nemenhat lhe veio repentinamente, enchendo seu
coração de desespero. O que seria dele? Correria o mesmo risco?
Teve um instante de lucidez e se convenceu de que Ankh não se
atreveria a acabar com ele, e que talvez o castigassem com trabalhos nas
minas do Sinai. Mas a esperança durou pouco, muito pouco: em segui-
da, viu que Ankh poderia fazer o que quisesse. Isso aumentou seu sofri-
mento. Seu filho, seu bem mais precioso...

% « JP
Entrou numa semiconsciência em que já não notava os golpes. Era
cada vez mais prazerosa, convidava a se abandonar a ela. Shepsenuré
percebeu como se libertava de um lastro invisível que o ajudava a expe-
rimentar uma estranha sensação de bem-estar, em que pensou ver,
num só instante, todos seus dias passados no país de Kemet — Kemet,
a Terra Negra, a escolhida dos deuses. Por fim, se aproximava o
momento de saber se estes iam lhe pedir que prestasse contas.
Pela amizade de Seneb, seu velho amigo, a pessoa mais honrada que
havia conhecido, sua vida tinha valido a pena. Pena que tudo tivesse
acabado mal. Mas talvez o velho embalsamador tivesse razão quando
dizia que tudo estava escrito e que os deuses manejavam os fios de
nosso destino com seus dedos invisíveis.
Men-Nefer. A visão mais bela que seus olhos jamais viram. Ela era
parte transcendental daquela trama e, no entanto, não sentia rancor
por ela. Men-Nefer tinha lhe oferecido os mais felizes momentos de
sua existência, mesmo que fossem efêmeros, e também o havia condu-
zido pela mão ao seu final iminente. Não se importava, pois nem todos
os homens têm a oportunidade de ter amado uma deusa.
U m dos bastões o acertou na cabeça. Não sentiu dor. De repente,
todo ele se encheu de luz, a luz mais pura que seus olhos jamais tinham
visto, e, dentro dela, uma figura que se aproximava, brilhando como
uma estrela reluzente na noite.
Shepsenuré foi a seu encontro. Ao se aproximar, reconheceu
Heriamon, a esposa que tinha perdido fazia tanto tempo. Estava bela e
resplandecente como nos dias de sua juventude. Ficaram frente a fren-
te por alguns instantes, e ela sorriu, oferecendo-lhe a mão. Shepsenuré
a pegou com prazer e, no mesmo instante, sentiu que o contato com
aquela mão lhe redimia por completo, enchendo-o de uma felicidade
como nunca tinha sentido. Depois, de mãos dadas, caminharam para
aquela luz e, por fim, desapareceram.
O c o r p o sem vida de Shepsenuré foi levado até a necrópole de
Saqqara, onde, atirado sobre a areia, ficou abandonado, à mercê dos
chacais que perambulavam por ali e que certamente dariam conta dele.
Quanto à confissão de culpa, o escriba mesmo a assinou. Na reali-
dade, dava na mesma, pois Shepsenuré não sabia escrever.

A cabeça de N e m e n h a t doía terrivelmente. Ele sentia náuseas e


tinha restos de sangue seco que lhe cobriam parte do rosto. Sentado no
chão do grande pátio, com os braços rodeando os joelhos, esperava sua
vez na longa fila para que o sesh neferw, o escriba dos recrutas, anotasse
seus dados e lhe destinasse a unidade a que seria incorporado.
Seu ânimo se encontrava mergulhado no mais profundo dos abis-
mos. Estava desorientado e, além disso, era incapaz de lançar u m raio
de luz na confusão que o embargava.
D o dia para a noite, toda sua existência tinha caído no caos. Sem
notícias do que poderia ter acontecido com seu pai, nem com sua espo-
sa e sua família, seu mundo simplesmente não existia mais. Só lembrava
como, na atropelada busca de seu pai, alguém o atingira na cabeça. E,
pela dor que sentia, bem que podia ter sido o coice de uma mula.
Ao acordar, já estava naquele pátio do Quartel General de Mênfis,
junto com centenas de homens que, como ele, tinham sido trazidos
c o m o escória. Passara toda uma manhã suportando os demolidores
efeitos do sol menfita sem outra sombra além da que seu corpo pro-
jetava.
No entanto, a longa espera o ajudou a tomar conhecimento de qual
era sua situação e do que o esperava.
%*
ré 4P
— Estamos ferrados, companheiro — disse-lhe o h o m e m situado
atrás dele. — A maioria de nós será enviada à divisão Sutejh c o m o
combatentes de primeira linha. Maldita seja minha carne!
N e m e n h a t virou levemente a cabeça, olhando-o de soslaio, mas
não disse nada.
— Pensam que aqui está reunida a pior gentalha do Egito — con-
tinuou aquele homem. — E acham que farão bom uso dela.
Depois, como se usasse informação confidencial, adiantou-se para
lhe falar em voz baixa ao ouvido:
— Sei de fonte segura, companheiro. Vão nos mandar para a divi-
são de Sutejh, a verdadeira unidade de choque do exército.
Nemenhat, que no começo não tinha dado nenhuma importância
àquele estranho, sentiu curiosidade.
— Como você sabe disso? — perguntou também em voz baixa.
— Tenho informação de primeira mão — disse o estranho, se
dando importância. — Grande parte dessa divisão é formada pelos pio-
res bandidos do país, todos meus irmãos — continuou, debochado.
Nemenhat ia responder, quando viu que alguém se aproximava bran-
dindo um daqueles terríveis chicotes de folhas de palmeira trançadas.
— Silêncio, cachorrada! — ouviu o berro. — O u tiro o couro de
vocês. Vivos!
Durante o resto da tarde, Nemenhat se limitou a ver a fila avançar
em silêncio, até que, quando o sol começava a se pôr, finalmente che-
gou sua vez.
Diante dele, o sesh nejerw se aplicava em sua tarefa de copiar nomes
e repetir destinos sentado sob a única sombra que havia ali. Atrás dele,
dois homens moviam grandes leques, numa vã tentativa de aliviar mini-
mamente o insuportável calor. Pelo menos, ao agitar o ar, afugentavam
as pesadas moscas que importunavam sem cessar, com uma perseve-
rança assustadora.
— Nome? — perguntou o funcionário com voz cansada, sem tirar
os olhos do papiro.
Nemenhat permaneceu calado.
O escriba lhe dirigiu um olhar furioso.
— Prefere que sejam eles a perguntar? — disse, fazendo um sinal
com o polegar para dois soldados que montavam guarda. — Não deve
sentir vergonha por eles — prosseguiu, indicando os demais recrutas.
— Aqui são todos a mesma porcaria. E então?
— Meu nome é Nemenhat — respondeu, por fim, com desdém.
— Nemenhat — repetiu o escriba, enquanto transcrevia o nome.
— Ah, sim! Aqui há uma referência sobre você. Belo patife me saiu,
hein? É um bandido da pior espécie. Bem, bem, para onde vou man-
dar você estará rodeado por outros da mesma laia. Seu destino será a
divisão Sutejh. Vai se sentir em casa.
A divisão Sutejh, conhecida também com o sobrenome de Arcos
Poderosos, era uma unidade de combate de primeiríssima ordem. Ao
contrário das outras três que completavam o resto do exército, esta
divisão de infantaria era formada principalmente por soldados egíp-
cios. Em tempos de guerra, grande parte deles provinha de recruta-
mentos, e outra, de prisioneiros a quem se dava a oportunidade de se
redimir lutando sob as ordens do faraó. Nesses tempos, qualquer braço
disposto a combater era bem recebido, de m o d o que, em geral,
costumava-se comutar as penas de morte ou as condenações a traba-
lhos forçados nas minas pelo alistamento. Para todos estes guerreiros,
era preferível a possibilidade de uma morte no campo de batalha às
desumanas condições de vida que levariam nas jazidas do Sinai.
o % «
Como conseqüência de tudo isso, esta divisão era muito combati-
va, porque os soldados reconhecidos por sua coragem na luta eram
levados em alta consideração, a ponto de o próprio faraó dar terras
para estabelecer soldados que tivessem se destacado por seus serviços
castrenses.
Era sempre a primeira a entrar em combate, de modo que as bai-
xas, em geral, costumavam ser abundantes. Mas estes soldados, que
lutavam sob as insígnias do deus Set, sentiam-se orgulhosos disso e da
grande ferocidade que demonstravam nas contendas. Junto com eles,
lutava a única facção de mercenários que esta divisão tinha, os qahaq,
soldados profissionais líbios muito aguerridos e temidos por sua extre-
ma crueldade.
Este era, em linhas gerais, o novo lar de Nemenhat, algo muito
diferente do que havia conhecido e que, apesar de quanto dissesse o
escriba, em nada podia se parecer com sua casa.
Foram recebidos de péssimos modos, inclusive com certa brutali-
dade, pois não havia coisa que mais alegrasse os menefyt (os veteranos)
que dar as "boas-vindas" aos novos recrutas, escarnecendo deles o
quanto podiam.
Uma série de escribas anotou de novo o nome, e recebeu as armas:
lança, escudo retangular de madeira forrada de pele com a parte supe-
rior ovalada e a espada curva, o famoso herpe.
Foi encaminhado, junto com outros recrutas, a u m dos pelotões de
cinqüenta homens*, cujo chefe, o "grande dos 50", decidiu que come-
çassem o período de instruções nessa mesma manhã.

* Lembre-se de que cada divisão constava de 5 mil homens sob o c o m a n d o de u m


general. Ela tinha vinte comandos com 250 homens cada u m , à frente d o qual ia
u m p o r t a - e s t a n d a r t e . E esses 2 5 0 h o m e n s se dividiam e m cinco p e l o t õ e s d e
cinqüenta.
m
% -P
Pela tarde, Nemenhat pensou que o fim de seus dias estava próxi-
mo, diante da pouca habilidade que demonstrou no manejo das armas.
Os deuses não pareciam lhe desejar uma vida longa como guerreiro.
No entanto, sua natural serenidade começou a voltar gradualmente,
ajudando-o a examinar a situação com maior frieza. Nada sabia dos
seus. Seu pai tanto podia estar morto como não e sua esposa... não era
difícil imaginar o desespero em que ela devia se achar, principalmente
tendo se entregado ignorando a existência de semelhante delito. A cada
hora que passava naquele lugar, mais se convencia da necessidade de
vencer tanta adversidade. Sobreviver logo começou a se transformar
numa verdadeira obsessão. Devia sobreviver, principalmente por eles.
A divisão embarcou em vetustas gabarras, abandonando Mênfis
rumo a Pi-Ramsés, a capital construída por Seti e Ramsés II, onde os
ramésidas tinham sua residência oficial durante grande parte do ano. A
cidade, situada perto do braço oriental do delta do Nilo, conhecido
como "As Águas de Rá", era o verdadeiro quartel general das forças
armadas. Ali se situavam os regimentos de carros reais, a autêntica elite
do exército do faraó, junto com as manadas. Cerca de quinhentos cava-
los se alojavam nos enormes estábulos reais onde um sem-número de
tratadores se encarregava deles diariamente. Perto deles, erguiam-se o
grande palácio de Ramsés e as casas dos oficiais e altos comandantes de
seu exército e, ainda, o arsenal, depósitos e edifícios anexos que eram
utilizados para tudo de quanto o exército pudesse necessitar. U m a
cidade pensada para a guerra, que o grande Seti (Seti I) desenvolveu,
dando-se conta da posição estratégica que possuía, pois dela se podia
controlar grande parte do Delta e, sobretudo, fazer frente a qualquer
invasão que viesse do Oriente Próximo.

A frota atracou no porto de Pi-Ramsés uma tarde, no meio de uma


pavorosa tempestade. Os relâmpagos iluminavam o céu tenebroso,

precipitando-se com força sobre algum lugar próximo. Depois, dentre
as nuvens negras, u m som espantoso abria caminho uma vez após
outra, atroador.
— É Set que nos dá as boas-vindas em seus domínios — disse
alguém na coberta.
Mas ninguém ousou responder, pois todos estavam amedrontados.
Nemenhat nunca tinha visto tempestade semelhante. Os céus des-
carregavam sua cólera contra homens e animais com uma fúria jamais
imaginada por ele. Aqueles raios pareciam castigar a terra. Depois, uma
chuva torrencial, com pingos enormes, que os obrigou a se abrigar da
melhor forma possível, os envolveu sem misericórdia, com pancadas de
uma violência inusitada. O vento parecia cavalgar selvagemente pela
coberta, castigando com o aguaceiro que o acompanhava, quando a
encontrava em seu caminho.
Os gemidos dos infelizes que abarrotavam os barcos foram sufoca-
dos pelo tremendo estrépito da tromba d'água que caía em cima deles.
Muitos pensaram, uns mais, outros menos, que aquilo era um mau
augúrio para a empresa que estavam a ponto de começar.
Quando finalmente a tempestade passou e a forte chuva deu lugar
a um céu limpo, aqueles homens se levantaram intumescidos e trêmu-
los, mal podendo dissimular que batiam os dentes, enquanto desem-
barcavam no porto de Pi-Ramsés.
Naquela noite, Nemenhat dormiu sob o céu estrelado, perto do
fogo do acampamento. Quando conseguiu se aquecer, as luzes da
manhã já se anunciavam.
Todo o exército de Ramsés se encontrava na cidade: quatro divisões
completas (20 mil homens), mais numerosas tropas auxiliares a ponto
de sair ao encontro da maior ameaça que se abatia sobre o país desde a
invasão dos hiksos, mil anos atrás. Tal era a magnitude do problema que
a divisão Rá, chamada de "os numerosos braços", havia abandonado as
terras de Kush, ao sul do Egito, onde estavam instaladas, para unir suas
forças ao resto das tropas contra o invasor que se aproximava. U m ini-
migo de quem chegavam os mais aterrorizantes boatos, aumentados,
como de costume, pelos próprios soldados egípcios.
— Dizem que não resta nada dos povos que habitavam as terras de
Canaã — comentavam em voz baixa, como se fosse uma informação
confidencial. — Devastaram tudo à sua passagem.
— E são numerosos? — perguntava alguém sentado junto a uma
das numerosas fogueiras.
— Tantos quanto os grãos das areias do deserto ocidental —
apressou-se em responder o que parecia saber de tudo.
— Que os deuses nos amparem!
— Se não os detivermos — continuava o mais informado — , den-
tro em pouco estarão em casa, dormindo com nossas mulheres.
Aquilo era suficiente para que todos se olhassem cabisbaixos e con-
cordassem em silêncio.
Nemenhat os observava, taciturno, sem abrir a boca. Sua luta não
estava no que se aproximava, mas no que deixara para trás. Durante
todo o dia, as imagens de seus entes queridos vinham a ele, irremedia-
velmente, mergulhando-o, por vezes, num desânimo angustiante. Não
saber deles lhe dava um desalento que superava o causado pelos Povos
do Mar, que pouco significavam para ele, pois, sendo u m criminoso
para seu povo, era com este que, no final das contas, devia acertar as
contas. Por tudo isso, toda manhã, em seu rotineiro período de instru-
ção, dava mostras de uma grande falta de vontade no uso da espada.
— Não passará do primeiro dia — costumava lhe dizer, com des-
prezo, o oficial no comando.

%
Ele se limitava a ficar calado e olhar para o horizonte distante,
enquanto pensava em como sair com vida daquela aventura.
U m dia, p o u c o antes do início da campanha, teve u m a visita
inesperada.
U m oficial com os distintivos que o indicavam pertencer ao kenyt-
nesw, o corpo da elite por antonomásia da infantaria egípcia, aproxi-
mou-se de seu pelotão durante os exercícios.
Em seguida, o "grande dos 50" que o comandava saiu para recebê-lo,
demonstrando-lhe grande respeito, pois o oficial que tinha diante de si
era "um valente do rei", u m valente entre os valentes.
Estiveram falando por u m m o m e n t o , e depois o valente fez u m
sinal com o dedo na direção em que Nemenhat se encontrava. Este,
que tentava parar como podia os ataques de seu oponente com o escu-
do, não reparou no oficial, até que ouviu sua voz inconfundível.
— Parem de lutar — disse, autoritário.
Ambos os soldados pararam a luta na hora, enquanto Nemenhat
virava a cabeça para aquela voz que tão bem conhecia.
— Kasekemut! — exclamou, hesitante.
Este fez u m gesto para que o outro soldado fosse embora.
— Surpreso? — disse em tom irônico, que Nemenhat conhecia
muito bem.
Este se limitou a olhá-lo, sem responder.
— O exército é grande — continuou Kasekemut — , mas ao
mesmo tempo é como uma família. Tudo se sabe. A gente se interessa
pelos novos filhos que chegam.
— Ainda lembro sua cuspida em meu rosto — disse Nemenhat.
— Não acho que tenha algum interesse por mim.
— Aí é que você se engana. Soube na mesma hora que haviam
recrutado você, mas foram minhas obrigações que me impediram de
fazer esta visita mais cedo.
* 4
— Mesmo assim me parece esquisito. Pensei que não queria me
ver de novo.
— E é verdade. Mas preciso reconhecer um interesse... de certo
modo malévolo, ao fazê-lo.
— Entendo. Como oficial superior, certamente espera me humi-
lhar o quanto puder.
Kasekemut trocou a expressão irônica por outra muito mais séria.
— Engana-se de novo. Desejo que este seja o último dia em que nos
veremos. Mas, confesso, tenho curiosidade por lhe perguntar uma coisa.
— Pergunte.
— Veja, é uma coisa que, no começo, não acreditava. Mas, como
lhe disse antes, numa família como esta a gente acaba sabendo das fofo-
cas todas dos filhos, embora, neste caso, o escriba me garanta que não
se trata de uma fofoca. Segundo ele, você está aqui por ter sido conde-
nado como ladrão.
— O escriba não lhe contou toda a verdade, Kasekemut. Eu não fui
condenado por nada, pois, que eu saiba, para isso teria de ter ido a julga-
mento e eu não participei de nenhum. Alguém acertou minha cabeça e,
quando acordei, estava no exército. Talvez tenha sido Sejmet, a poderosa,
que me bateu com seu báculo para me incorporar na luta contra o invasor.
— Não é isso o que me disseram. E, francamente, sabendo o quan-
to você é mentiroso, suas palavras me soam ocas. Corre por Mênfis o
boato de que você e seu pai se dedicavam a negócios escusos. Quem
poderia imaginar, o bom Shepsenuré e seu filho violando túmulos nas
necrópoles! — exclamou, debochado.
Ao ouvir o nome de seu pai, Nemenhat sentiu seu pulso acelerar.
— Você não sabe nada de meu pai; portanto, não fale mais nele —
disse, visivelmente alterado.
— Isso sim é bom! — exclamou Kasekemut, rindo. — Dessa vez
deixarei para lá suas palavras, embora recomende que não tente a sorte.

Por acaso ignora onde se encontra? — perguntou, agora com desprezo.
— Acho que não preciso lhe dizer que sou u m oficial superior e, se
quiser, posso falar do seu pai o quanto quiser e como me dê na telha, e
depois mandar açoitar você até suas costas ficarem em carne viva. E
pensar que u m dia fomos amigos. É u m criminoso da pior espécie. Por
acaso nega isso?
Nemenhat lhe dirigiu u m de seus olhares mais glaciais, que tanto
desconcertavam, e permaneceu calado.
— Seu silêncio é eloqüente — prosseguiu Kasekemut, olhando-o
agora com raiva. — Aqui vai cumprir sua penitência à espera do julga-
mento que diz não ter tido, só que, desta vez, será Osíris em pessoa que
o julgará.
•— Pensa em me matar?
— Sou um oficial do faraó — disse Kasekemut, alterado. — Não
sujarei minhas mãos com um vulgar jahdja*, mas seu destino está tra-
çado. Pelo visto, você não é muito bom com a espada, o que é uma
pena, pois eu garanto que será o primeiro a entrar em combate.
— Estou convencido de que você se encarregará pessoalmente
disso — respondeu Nemenhat, impassível.
Ambos sustentaram o olhar por alguns instantes.
— Adeus, Nemenhat — disse Kasekemut, quase cuspindo as pala-
vras. — Da próxima vez que vir seu nome, será na lista dos mortos.

Por fim, n u m a manhã b e m cedo, o exército do deus se pôs e m


movimento. Quatro divisões de infantaria, dez esquadrões de carros,
tropas auxiliares e u m e n o r m e contingente de carroças de abasteci-

* Saqueador.
o % « ^o
mento saíram de Pi-Ramsés, dispostos a enfrentar u m inimigo que
havia mudado por completo o mapa do mundo conhecido.
Ramsés III, o grande Hórus vivo, saía ao encontro daquela confe-
deração de povos que havia arrasado todo o Oriente Próximo como
uma terrível praga de gafanhotos.
O serviço de espionagem egípcio dera detalhes da situação real:
uma verdadeira onda devastadora de povos dos mais diversos lugares
confluía com o propósito de acabar com a única nação civilizada que
restava sobre a terra.
A situação era muito grave, porque alguns destes povos tinham aca-
bado com potências lendárias, como era o caso do Grande Hatti. A
notícia de sua queda tinha deixado o faraó estupefato, porque o Hatti
sempre representara para os egípcios um inimigo considerável, e seu
exército sempre fora tido como temível. No começo, Ramsés não deu
crédito às notícias que chegavam, mas o serviço de informação foi
categórico: o Grande Hatti já não existia. O exército dos tchequeru*
havia acabado com ele e, não satisfeitos com isso, tinha devastado tam-
bém o Chipre e até a distante Ugarit.
Em seguida, Ramsés soube que outros exércitos haviam se unido
aos tchequeru. Os denenu, os peleset, os shardana**, os usheshu***, os
lukka, e os teresh, que pressionavam desde o oeste de Anatólia. U m a
força incrível, que havia assolado Arzawa, Karkemish, Alashia e até
Amurru, e cujo destino final era o fértil país da Terra Negra****.

* Os tkrw, também chamados de sikalaju nos textos ugaríticos, provavelmente deram


seu n o m e à Sicília.
** U m povo que tinha mercenários no exército do faraó.
* * * Vinham de algum país do outro lado do mar.
* * * * Arzawa era provavelmente a Cilícia. Alashia era o Chipre. Karkemish estava no
distante Eufrates. A m o r r u era o país dos amorritas bíblicos. Lembrar que a Terra
Negra era o n o m e pelo qual o Egito era conhecido.

Ramsés III, que era um soldado profissional, se deu conta imedia-
tamente da magnitude do problema e começou a preparar seu país
para a guerra, muito antes de os ameaçadores boatos chegarem a seu
povo.
O faraó também teve notícias de que uma grande frota de barcos des-
tes povos tentaria entrar no Egito pelas bocas do Nilo, com a intenção de
subir posteriormente por ele e se apoderar de suas cidades. Diante de tais
perspectivas, Ramsés reuniu toda sua marinha de guerra em Per-Nefer,
para que estivesse pronta para zarpar quando ele ordenasse.
Era uma invasão em regra que Ramsés decidiu enfrentar com decisão.
Combateria primeiro as hordas terrestres, que avançavam pela Ásia
Menor com vistas a alcançar sua terra sagrada. Elas representavam a maior
ameaça. Devia vencê-las e depois se dirigir ao delta do Nilo, junto com sua
marinha, para enfrentar a poderosa esquadra que invadiria o país.
Pelas informações que possuía, o faraó dispunha de certa margem
de manobra para poder investir em ambas as frentes. No entanto, para
que o plano de Ramsés fosse possível, o exército, que, naquela manhã,
abandonava Pi-Ramsés, devia avançar em marchas forçadas ao encon-
tro de um invasor que estava em algum ponto da terra de Canaã. U m
enorme esforço, sem dúvida, que o próprio deus em pessoa sofreria
junto.
Em filas de sete, os soldados marchavam com seus apetrechos nas
costas; armas, uma manta e um cantil com água era tudo aquilo de que
necessitavam. A comitiva abria a divisão de Amon com os estandartes
do deus, em que marchava o próprio faraó. Depois vinha o de Sutejh,
"o arauto do combate", sempre protetor dos soldados leais. Atrás
deles, os esquadrões de carro junto a outras duas divisões, e, por últi-
mo, as tropas auxiliares e as carroças puxadas por bois, encarregadas
de transportar os alimentos.

Dirigiram-se para o Caminho de Hórus, a antiga estrada que atra-
vessava o atual istmo de Suez e que logo correria paralela à costa da
Palestina. Uma rota utilizada desde tempos imemoriais, e que ligava o
Egito a seus vizinhos do Oriente.
Caminhavam o dia inteiro, com sua carga nas costas, os pés cada
vez mais afundados no caminho poeirento, e a vista fixa nas costas cur-
vas do soldado que marchava à frente.
Nemenhat se lembrou, então, da famosa Sátira dos Ofícios, que, às
vezes, tinha ouvido Seneb relatar desta maneira:
— "Deixe-me descrever os males do soldado... Tem que levantar
quando ainda é a primeira hora da manhã. Ficam em cima das costelas
dele como sobre um burro, e trabalha até o ocaso, com a escuridão
noturna. Está faminto, seu corpo está machucado, está morto enquan-
to ainda está vivo... São longas as marchas sobre as colinas, e bebe água
a cada três dias, mas é fétida, com gosto de sal..."
Nemenhat pensou: "Quanta razão tinha o velho embalsamador, e
que sábios aqueles versos que recitava".
Ao chegar a noite, deitava-se, rendido, junto à fogueira, enrolado
em sua manta pestilenta, contemplando o céu de estrelas sem fim que
parecia que tudo abarcava. Roubava, então, alguns instantes do cansa-
ço que, dominador, teimava em fechar suas pálpebras e pensava nos
seus; em Nubet, sua doce Nubet, seu último pensamento antes de cair
o pesado torpor.
Abandonaram o Baixo Egito pela rota que, ao norte dos Lagos
Amargos*, se liga ao Caminho de Hórus. As últimas fortalezas, situadas
na fronteira, abasteceram o quanto puderam as hostes do faraó antes

* Série de lagos situados ao norte do golfo de Suez. Por eles transcorre atualmente
o canal com o mesmo nome.

% « -P
que adentrassem o Sinai. A partir daquele momento, seus pés deveriam
marchar atravessando aquele deserto em que os deuses pareciam
abandoná-los à própria sorte. Desse instante em diante, haveria que
racionar as provisões e, principalmente, a água, que, naquela terra, era
tão valiosa quanto o ouro de suas minas.

Que volúvel pode ser a sina dos homens, mudando, às vezes, por
fatos puramente casuais, embora o acaso seja, para alguns, outra brin-
cadeira dos deuses. Bem que poderia ter sido isso o que aconteceu
naquele dia com Nemenhat, enquanto se protegia, junto a seus compa-
nheiros, do calor do meio-dia à sombra de toldos porque já tinha sido
acaso que nesse dia os arqueiros núbios decidissem escolher o lugar
onde Nemenhat descansava para fazer seus treinos diários. Estes
arqueiros, tão antigos como o próprio exército no Egito, eram extre-
mamente orgulhosos e gostavam de fazer constantes exibições diante
do resto da tropa. Assim, após uma exaustiva marcha iniciada ao ama-
nhecer, sempre carregando seus arcos de curva dupla e com suas alja-
vas ao ombro, aproveitavam o descanso do exército durante as horas de
maior calor para praticar tiro ao alvo, desprezando o sol abrasador do
deserto, que fazia com que o ar que os rodeava parecesse a respiração
sufocante de mil fornos.
Altivos, olharam de soslaio os soldados abrigados nas sombras
improvisadas, disparando, indiferentes, suas flechas nos alvos distantes.
Seus corpos escuros, cobertos pelo suor, brilhavam, ressaltando os
contornos musculosos de seus membros raspados.
Atiravam uma vez depois da outra sem nem mirar os alvos, come-
morando isso diante do resto da tropa.
Alguns dos soldados que descansavam na sombra os censuraram
por sua presunção.
— Louve Montu* para que guie meu braço certeiro na batalha —
respondeu, orgulhoso, um dos arqueiros. — Só assim poderá salvar sua
vida miserável.
Os soldados vaiaram, enquanto os núbios riam da piada.
— Teremos sorte se não acertar na gente — disse alguém, fazendo
o resto do pessoal prorromper em gargalhadas.
U m dos núbios cuspiu no chão com desprezo, enquanto olhava os
soldados e, sem tirar os olhos deles, disparou sua flecha, exibindo sua
habilidade.
Mas como desta vez não acertou o alvo provocou uma gargalhada
geral.
— Companheiros, ele tem razão, vamos já venerar Montu, ou tere-
mos os dias contados — alguém no grupo disse, provocando, de novo,
mais gargalhadas.
Nemenhat, recostado sobre os cotovelos, embaixo do toldo, obser-
vava interessado a cena. As bravatas entre uns e outros não o preo-
cupavam; no entanto, sentia curiosidade pelos arcos que os núbios
manejavam. Eram de curva dupla e um pouco maiores que o que ele
costumava utilizar. Então sentiu vontade de experimentar um.
— Vocês não passam de carne para combate — Nemenhat ouviu
que um arqueiro dizia. — Talvez nem desperdice minhas flechas com
vocês.
Os soldados encarnaram de novo.
— É melhor mesmo; assim, evitaremos que nos acerte no traseiro.
Novas risadas fizeram coro ao comentário.

* Montu era u m deus guerreiro.


%

* -p
^rs
Então o núbio voltou a atirar e de novo falhou.
— Sejmet nos proteja, irmãos — exclamou um dos soldados. —
A partir de hoje, devemos usar nossos escudos nas costas.
Foi então uma grande confusão, com todo tipo de piadas, que des-
concentraram ainda mais os arqueiros mais próximos, fazendo-os errar
repetidamente.
— Uh, uh... — provocavam os do grupo. — Deixem alguns arcos
para a gente praticar amanhã.
— Isso, me dê um — gritou outro. — Garanto que vou mirar no
traseiro.
A confusão se generalizou, entre risadas estrepitosas, o que obrigou
o oficial que comandava os arqueiros a se aproximar.
— Cachorrada de língua solta! — gritou para se fazer ouvir. —
Calem a boca ou garanto que perderão a língua antes que chegue a
noite!
O tumulto foi se acalmando até que os soldados ficaram em silêncio.
— Vocês são da pior espécie — continuou o oficial, um núbio alto
e musculoso. — Gentalha que nem merecia estar aqui. Dêem graças ao
deus (vida, saúde e força lhe sejam dadas) que perdoou a vida de vocês
e permitiu que glorificassem seu nome. Ele deu a oportunidade de se
redimirem, coisa que eu nunca teria feito por vocês.
Agora o silêncio era total.
— Como ousam falar assim de um corpo de elite que, como este,
se distinguiu durante milhares de anos? Rezem para que estes homens
— disse, apontando para seus arqueiros — facilitem o caminho, porque
senão garanto que vocês não vão durar muito tempo. Montu está nos
braços deles. Vocês seriam incapazes de acertar um burro a vinte côvados.
Fez-se um breve silêncio, que alguém entre os soldados quebrou
inesperadamente:
— Talvez trezentos côvados fosse uma distância mais conveniente.
O oficial se virou de imediato para a voz.
— Que Ammit devore meu coração se hoje não der uma punição.
Quem se atreve a falar assim?
— Eu — respondeu Nemenhat, levantando-se.
— Naturalmente, o sol do deserto acabou com a razão de todos.
Quem é você que fala tais impertinências?
— Meu nome é Nemenhat. Eu dizia ao senhor que a distância para
acertar um burro são trezentos côvados. Essa é a que usavam os garo-
tos do meu bairro.
Os soldados riram de novo, enquanto o oficial se aproximava.
— Você me deixa admirado — disse. — Nunca na minha vida
pensei que encontraria alguém tão estúpido.
— Seus arqueiros não são maus atiradores, oficial, embora não
sejam tão bons como pensa.
— Por acaso você atira melhor? — respondeu o oficial, desafiante.
— Vamos fazer a prova — respondeu Nemenhat, lacônico.
O oficial se aproximou até ficar a apenas dois palmos de distância,
e o olhou fixamente nos olhos.
— Bem — disse suavemente — , temos aqui um arqueiro em
potencial e, pelo visto, muito bom, ou talvez simplesmente insensato.
Mas, como parece louco para levar uns açoites, digo que faremos a
prova. Permitirei que atire, mas se errar, eu mesmo vou tirar a pele de
suas costas a chicotadas.
— Tudo bem — disse Nemenhat, impassível.
O oficial olhou-o de novo, incrédulo.
— Tem certeza?
Nemenhat concordou com a cabeça.
0 | I MO ^ O
— Muito bem — disse o oficial, fazendo um gesto para que o
acompanhasse. — Que alvo quer utilizar?
— O mesmo de seus homens.
Aja — assim se chamava aquele oficial — sorriu levemente.
— Dou duas chances de acertar.
— Três — respondeu Nemenhat, prontamente. — Peço três, por-
que nunca usei um arco destes.
Aja ficou em silêncio enquanto se aproximava do lugar onde se
encontrava o resto de seus homens. Os soldados tinham prorrompido
em gritos de incentivo diante do iminente desafio e esfregavam as
mãos, entusiasmados pelo espetáculo que iam presenciar.
— Está bem — disse Aja, situando-se na linha de lançamento. —
Concedo três disparos, mas, se falhar, já sabe o que esperava você.
Fez um sinal a u m de seus homens, e este entregou seu arco a
Nemenhat. O jovem o achou um pouco mais pesado do que o que cos-
tumava usar e o avaliou durante alguns instantes, enquanto observava o
alvo, um pequeno poste de madeira que se encontrava a uns cem
metros. Depois o esticou e disparou a flecha em meio à gritaria dos
soldados.
A flecha caiu na areia a apenas dez côvados do alvo, o que provocou
alguns risos entre os arqueiros núbios.
Nemenhat ficou olhando fixamente o poste, enquanto analisava o
arco.
— Vamos, Nemenhat, acerte — ouviu que lhe gritavam seus com-
panheiros.
Pediu outra flecha e, de novo, levantou o arco com suavidade.
Desta vez, permaneceu alguns momentos com a arma tensa, antes de
disparar. A seta saiu com um silvo peculiar, raspando um dos lados do
alvo, perdendo-se muito mais longe.
Í01
%
Outra vez seus camaradas rugiram, incentivando-o.
Nemenhat pediu a terceira flecha.
— É a última — advertiu Aja, ameaçador.
O jovem o olhou sem pestanejar e depois levantou de novo o arco,
esticando-o lentamente. Fixou a vista no poste com toda a atenção de
que foi capaz, contendo a respiração, enquanto sustentava a corda esti-
cada. Quando, por fim, disparou, a flecha saiu vertiginosa r u m o ao
alvo. Em seguida, ouviu-se como a madeira rangia.
— Acertou! — exclamou um dos arqueiros. — Acertou!
Os soldados prorromperam em aplausos, ao ouvir isso.
Aja fez u m gesto a Nemenhat, e se encaminharam juntos c o m
alguns de seus homens para o alvo. Ao chegarem, u m deles exclamou,
incrédulo:
— Olhem só, quase atravessou o poste por completo!
Aja comprovou que a flecha havia cravado justo no centro, atra-
vessando a madeira mais de dois palmos. Olhou Nemenhat, que parecia
indiferente a tudo o que o rodeava, e finalmente sorriu para ele.
— Seja b e m - v i n d o aos pditj nesw (arqueiro do rei) — disse,
erguendo-se e dando palmadas nas costas de Nemenhat.

Foi assim que Nemenhat passou de um simples meshaw (soldado de


infantaria), condenado a uma morte certa na primeira carga, a u m
arqueiro real, num corpo de escolhidos que gozava de grande conside-
ração no exército. Naquela mesma noite, o jovem devolveu suas armas
ao sesh mes (escriba do exército) e recebeu as que correspondiam a seu
novo destino. A partir desse momento, sua vida dentro do exército
mudaria por completo.
o % ** ^ o
Agora, marchava na unidade cheia de glória em múltiplas ocasiões,
na milenar história do Egito. Nemenhat podia sentir esse orgulho que
o rodeava e que emanava diretamente de cada um de seus novos com-
panheiros. Uma sensação nova, sem dúvida, mas que ele não compar-
tilhava. Não se sentia arrogante pelo fato de ir lutar com eles, pois sua
guerra era outra bem diferente e deveria enfrentá-la sozinho.
Mas se a nova situação ajudou Nemenhat em alguma coisa foi em
torná-lo consciente do presente que os deuses lhe enviavam de onde esta-
vam, permitindo-lhe vislumbrar um horizonte esperançosamente mais
claro. Nemenhat conhecia bem a pouca propensão à prodigalidade que
geralmente as divindades mostravam em Kemet, assim como a necessi-
dade de aproveitar o que por bem tivessem lhe proporcionado. Com eles,
nunca se sabia o que poderia acontecer, pois eram capazes de, após se
comportarem como canalhas, tornarem-se veneráveis benfeitores.
Nemenhat levou muito a sério seu novo destino, esforçando-se ao
máximo para ser o melhor dos camaradas para o resto da companhia.
Não era tarefa fácil, pois, desde antigamente, as companhias de arquei-
ros costumavam ser compostas, em sua maioria, por núbios, que não
gostavam do fato de admitir estranhos entre eles.
Mas Nemenhat havia nascido com um dom especial. U m dom que
parecia vir diretamente do próprio Montu, uma graça que o deus estra-
nhamente tinha concedido, e que, sem dúvida, o jovem possuía. Não
era fácil encontrar alguém que reunisse tantas qualidades como arquei-
ro e, no entanto, ele as possuía: um pulso firme e inalterável, uma vista
extraordinariamente perspicaz, que o fazia ver claramente os alvos lá
onde os demais não podiam, e uma habilidade incrível para pontaria
que parecia a coisa mais simples do mundo para quem via. Com seme-
lhante chave, não houve nenhum coração entre aqueles núbios que não
se abrisse totalmente e, em poucos dias, seu nome já era pronunciado
íc6

com respeito por todos eles. Mas, além de tudo, Nemenhat possuía
uma qualidade a mais, uma virtude que ninguém mais ali detinha e que
o fazia verdadeiramente magnífico: sua potência. Somente os escolhi-
dos podiam dispor de uma potência semelhante à sua, pois Nemenhat
lançava a flecha com uma força descomunal. Ninguém, desde os tem-
pos de Amenhotep II, duzentos anos atrás, lembrava algo parecido.
Inclusive, como já fizera em seu tempo o faraó atleta, Nemenhat tam-
bém disparou sobre alvos feitos por grossas pranchas de cobre,
atravessando-as, emulando, assim, o antigo deus.
— Jamais vi ninguém atirar assim! — exclamava Aja, agitado,
enquanto lhe dava palmadas nas costas. — Os deuses nos sorriem, ao
nos mandar alguém como você. Quer sinal mais claro que este? Eles
estão com a gente.
Nemenhat se limitava a sorrir e agradecer os cumprimentos que
todo mundo lhe fazia, disposto a tirar proveito da oportunidade que ha-
via se apresentado. Agora tinha esperanças concretas de sair bem daque-
la aventura a que obscuros interesses tinham-no empurrado.
Logo seu nome se tornou famoso no pequeno universo que cons-
tituía o exército de Ramsés em campanha e, assim, quando marchava
junto com seus companheiros nos treinos de rotina, os soldados de
infantaria iam vê-lo atirar, entusiasmados.
Rá parecia ter se fixado naquele jovem proscrito, projetando sobre
ele seus raios divinos. Senão, como entender os acasos que o destino
quis que acontecessem?
Embora, para qualquer egípcio devoto, aquilo não passasse de mais
uma manifestação do poder ilimitado do deus solar, inclusive Nemenhat,
algum tempo depois, teve que considerar a questão, frente ao que lhe
aconteceu.
Uma tarde, quando as tropas finalmente pararam após uma nova
jornada de marcha, Nemenhat teve uma visita inesperada. Estava
estendido sobre uma manta, com os cotovelos apoiados no chão,
observando distraidamente como alguns homens se aplicavam na tare-
fa de acender as primeiras fogueiras, quando um dos carros do faraó
passou como um meteoro junto a ele, indo parar u m pouco mais
adiante, perto de um grupo de oficiais. Nemenhat olhou com curiosi-
dade, e viu como os oficiais faziam sinais ao cocheiro, em sua direção.
Este virou o carro e se aproximou lentamente.
— Você é Nemenhat, que dizem ser Akheprure* reencarnado? —
ouviu que lhe perguntava do carro alguém com vestes próprias da rea-
leza.
Nemenhat se levantou de imediato, surpreso por visita tão impor-
tante, mal conseguindo responder afirmativamente a primeira parte da
pergunta, pois era a primeira vez que ouvia o nome de Akheprure.
— Os deuses querem que você seja a solução de meus problemas
— continuou o cocheiro. — Se for assim, farei oferendas generosas a
eles.
Nemenhat observou-o muito sério, embora, interiormente, o
estranho o deixasse muito curioso. Falava com certo artificialismo,
embora seu tom fosse implícito. Estava acostumado a ser obedecido, e
isso o fazia adotar uma atitude que parecia ser natural nele.
Ao ver Nemenhat olhando-o como a uma estátua, fez um sinal com
o chicote, apontando a boléia do carro.
— Vamos, suba, ou a noite já vai cair, e não desejo esperar a manhã
para averiguar isso.

* N o m e com o qual reinou o faraó Amenhotep II.



Agora, sim, Nemenhat não pôde disfarçar sua perplexidade, e
pareceu hesitar.
— Por acaso não sabe quem sou? — perguntou o estranho,
dando-se conta de seu atordoamento.
— Não — respondeu Nemenhat.
— Sou o príncipe Parahirenemef. Pegue seu arco e suba ao carro.
Daqui para frente, será meu acompanhante.
Ouvir aquele nome confundiu ainda mais o jovem. Não é preciso
dizer que era a primeira vez que via o príncipe, embora já tivesse ouvi-
do falar dele. O príncipe Parahirenemef era filho de Ramsés e de sua
grande esposa real ísis, e o segundo na linha de sucessão ao trono das
Duas Terras, logo atrás de seu irmão, o príncipe Amenhirkhopshef. Era
kdn do Grande Estábulo de Ramsés III na residência do Rei e chefe de
um dos esquadrões de carros do faraó. Tinha merecida fama de valen-
te e, também, de audaz e temerário, pois era o primeiro a lançar seu
carro em combate, com grande arrojo, e um desprezo absoluto pelo
perigo. Em Mênfis, cidade onde residia durante a maior parte do ano,
era muito popular. Mulherengo insensível e chegado aos excessos, suas
farras eram proverbiais, sendo um assíduo da noite menfita. Não havia
sarau que se prezasse que não contasse com sua presença, nem pessoa
importante que, ao organizar alguma festa, não tentasse que o príncipe
fosse a ela.
Mas Parahirenemef costumava recusar qualquer convite que não
lhe garantisse verdadeira diversão, pois se chateava enormemente com
todas aquelas cenas sociais que, para ele, não deixavam de ser focos de
intrigas para alcançar determinados postos na Administração. Até
mesmo a corte o repelia, preferindo viver em Mênfis, distante dela na
medida do possível. Não ligava para a política nem para as maquinações
palacianas. Ele era um homem de ação, que gostava de viver a vida
606
o% IO
intensamente, e a quem a possibilidade de governar algum dia o país
não o preocupava. Não se parecia nisso com alguns de seus irmãos, tão
propensos a manipular a sombra, para seu proveito perto de seu augusto
pai, e sempre atentos ao menor gesto que pudesse significar um trata-
mento favorável que esclarecesse seu futuro no palácio.
Como cocheiro do estábulo real de Ramsés, cumpria com presteza
suas obrigações e estava sempre disposto a ir em defesa dos interesses
do Egito sem que fosse necessário lhe solicitar. Ramsés III, que conhe-
cia bem seus filhos, o amava profundamente, perdoando-lhe seu afas-
tamento da corte e compreendendo que, por não ter nenhuma hipo-
crisia, se sentisse incomodado com ela. O príncipe, que professava um
grande respeito pelo pai, acatava sua vontade sem questioná-la em
momento algum. Nem mesmo quando o faraó nomeou como Primeiro
Cocheiro de Sua Majestade a seu irmão Sethirjopshef, quarto na linha
sucessória, o príncipe se incomodou com isso. Foi o primeiro a felici-
tar seu irmão diante dos demais oficiais e diante do olhar atento de
Ramsés, que se encheu de satisfação.
No entanto, nem tudo eram virtudes no príncipe. Próximo dos 30
anos, Parahirenemef tinha um lado obscuro que, às vezes, o sobre-
carregava, e não exercia nenhum controle sobre ele. Era incapaz de
saber quando chegava o momento de se retirar de qualquer festa ou
qual era o limite de sua medida. Por isso, não era estranho que, em
muitas ocasiões, tivessem que levá-lo para casa em total estado de
embriaguez, depois de uma noite de desvario.
Assim era Parahirenemef, o homem que, em seu carro, insistia
encarecidamente que Nemenhat o acompanhasse numa nova empresa.
O príncipe apontou de novo com firmeza o carro para que
Nemenhat subisse, e ele pareceu sair repentinamente de seus pensa-
mentos, pois pegou logo o arco e saltou sobre a boléia. Mal tinha posto
um pé em cima, quando a biga saiu em disparada como se os cavalos
que a puxavam fossem muito mais numerosos.
— Agarre-se, ou perco você no primeiro baque — ouviu que o
príncipe dizia.
Nemenhat obedeceu e tratou de se acostumar ao estranho movi-
mento do carro. Dali a pouco, achou que era capaz de manter o equi-
líbrio com destreza.
— Suponho que seja a primeira vez que anda de carro — ouviu o
príncipe de novo.

— E, sim.
— Terá que se acostumar com as acelerações, pois os cavalos, às
vezes, costumam dar arrancadas muito fortes.
Agora o carro corria pela árida estepe do Sinai, depois do campo
egípcio. Os pedregulhos saltavam, arrancados pelas rodas de seis raios,
com uma força surpreendente. Nemenhat, mais acomodado na
carruagem, começou a desfrutar daquela desenfreada corrida, sabo-
reando uma sensação totalmente nova para ele, que lhe pareceu estra-
nhamente gratificante. Aquele ar em seu rosto o fez perceber o efeito
de autêntica liberdade que o levou a encher os pulmões com ele,
sentindo-se quase regenerar.
— O negócio é estar pronto para reagirmos antes onde vamos passar
— escutou de novo que o príncipe lhe dizia. — Só assim se pode obter
o máximo rendimento do carro.
Nemenhat não respondeu e se limitou a olhar de soslaio para o
príncipe, que parecia concentrado no que fazia. Dali a pouco, este
começou a puxar as rédeas, e os cavalos foram freando até que o veícu-
lo parou.
— Disseram que você é um magnífico arqueiro. Vamos comprovar
isso. Está vendo aquela roda de carro na areia?
%«jp

— Sim.
— São restos do exército de User-Maat-Rá-Setpen-Rá quando
passou por aqui para combater o Hatti faz cem anos. Derrotou-os em
Kadesh... bem, pelo menos é o que consta nos anais, porque, cá entre
nós, Ramsés II era bem mentiroso.
Nemenhat achou o príncipe muito bonachão. Imediatamente sen-
tiu simpatia por ele.
— Quero que dispare três flechas o mais rápido que puder e trate
de agrupá-las — disse o príncipe, apontando para o alvo.
— Onde quer que as agrupe?
Parahirenemef olhou para ele, divertido.
— Ora, ora, eis um arqueiro perfeito! Já que acha que é capaz, no
rolamento.
Nemenhat deu uma rápida olhada e em seguida pegou o arco e três
flechas da aljava. Depois fixou a vista no rolamento da roda e voltou a
olhar o príncipe.
— Quando quiser — disse este, fazendo um convite com a mão.
Nemenhat sustentou o arco com a mão que segurava duas flechas
e, apontando com cuidado, disparou. Mal aquela seta saiu, disparou a
segunda e, em seguida, também a terceira.
Parahirenemef observava em silêncio.
— Atirou bem rápido. Vamos ver se acertou.
Tocou os cavalos de novo, e se aproximaram da roda velha num
trote suave.
— Ôooooo — disse o príncipe, detendo-os, ao mesmo tempo que
saltava do carro.
— Bendito Reshep*! — exclamou, ao se aproximar. — Cravou
todas no centro, e todas juntas.

* Deus de origem síria, sob cuja tutela lutavam os soldados dos carros.
Parahirenemef permaneceu um momento em silêncio, acariciando
o queixo.
— Vamos ver agora com o carro andando — disse-lhe, subindo
para a boléia. — Vai ver que é muito diferente atirar de uma biga em
grande velocidade. Às vezes, você fica suspenso no ar enquanto atira.
Vou fazer uma demonstração.
O príncipe pôs os cavalos a galope e atou as rédeas na cintura.
Depois pegou seu arco e várias setas.
Nemenhat o observou com interesse. O arco era de cornos de órix,
com uma peça de madeira no centro que os unia, e parecia muito
robusto. Parahirenemef apontou para a roda e disparou sucessivamente
suas flechas, enquanto o carro não parava de dar saltos. Quando se
aproximaram, Nemenhat viu que as setas haviam acertado na mosca,
embora estivessem muito separadas.
— Você vai ver, não é nada fácil atirar do carro a toda velocidade.
Tente agora.
O príncipe botou de novo os cavalos para correr e, n u m certo
momento, ordenou que Nemenhat disparasse.
Este notou como seu equilíbrio se tornava instável quando deixava
de se segurar na boléia e seu corpo se movia descontroladamente.
Mesmo assim, lançou suas setas tão rápido como pôde.
— Não está mal — disse o príncipe ao se aproximar de novo do
alvo. Não acertou no centro, mas agrupou as setas. Com um pouco de
prática, vai melhorar. Quando se acostumar com os movimentos da
biga, terá maior precisão — continuou, sorrindo. — Pelo menos é isso
que espero, pois minha vida vai estar em suas mãos.
Já estava escuro quando o príncipe entrou no pavilhão real. Ali se
encontravam as tendas do deus e as do príncipe e generais que estavam
em campanha. Os toldos exibiam os estandartes próprios da categoria,
e se via uma grande atividade ao redor deles.
» ^O
Nemenhat ainda não entendia por que se encontrava ali, e nin-
guém, pelo visto, parecia disposto a lhe explicar, e m b o r a soubesse
obviamente qual ia ser sua nova obrigação.
S u r p r e e n d e u - s e ao ver as insígnias que representavam Reshep
junto à entrada. O deus tinha o aspecto de u m sírio com o tradicional
nemes* egípcio e uma gazela no lugar do uraeus** na testa. Estranho,
sem dúvida, para todo aquele que não estivesse acostumado à vida cas-
trense, pois a maioria dos oficiais tinha à porta da tenda a mesma ima-
gem. Reshep era, por assim dizer, o patrono dos soldados de carro.
Rezavam para ele pedindo sua proteção durante a batalha, e invocavam
seu poder para lhes dar forças suficientes nela.
"Algo, sem dúvida, mudou no Egito quando u m deus de procedên-
cia síria tem semelhante ascendência", pensou Nemenhat. "Como se
não houvesse deuses suficientes no Egito!" Inclusive a deusa pagã do
amor e da guerra, Astarté, era visível no acampamento. C o n f o r m e
soube mais tarde, era a encarregada de proteger o equipamento dos
cavalos reais. Incrível!
— D ê de comer e de beber a eles. Sem dúvida, hoje eles merecem
— disse o príncipe, descendo de um salto, e entregando as rédeas a u m
cavalariço.
Depois, aproximou-se de seus cavalos e pôs a cabeça entre as cabeças
deles, enquanto lhes murmurava todo tipo de palavras carinhosas.
— Seus n o m e s são Set e Montu — disse, a p r o x i m a n d o - s e de
Nemenhat. — Ambos têm coração de guerreiro, como os deuses que
lhes deram os nomes. E garanto que são capazes de ler até meu pensa-
mento.

* Peça típica de tecido com que os egípcios cobriam a cabeça.


* * Serpente. Mas a palavra também designa o diadema real. (N.T.)
Depois, dando uma palmada em Nemenhat, o convidou a entrar
em sua tenda.
Por um momento, este hesitou.
— Por acaso prefere passar a noite fora?
Nemenhat, desorientado, não soube o que dizer.
— Não é como Geb, que, com seu pênis ereto, pretende levantar
de noite para possuir Nut, a abóbada celeste, não é mesmo?* — disse
com uma risada. — Enquanto estiver comigo, vai viver conforme sua
nova categoria — continuou — , e ninguém que me serve passa a noite
ao relento.
"Me dê um pouco de vinho para aliviar a ardência de minha gar-
ganta", pediu o príncipe, aos gritos, enquanto lançava seu capacete
sobre o chão atapetado e desabotoava sua couraça. "A propósito, ama-
nhã vamos lhe arrumar uma", disse, apontando-a com o dedo. "Se
quer andar comigo, não pode ser de qualquer jeito".
Nemenhat concordou respeitosamente.
— Parece de poucas palavras — prosseguiu Parahirenemef, mer-
gulhando, em seguida, a cabeça numa bacia cheia de água. — Mal falou
esta tarde. Por acaso está com medo?
— Nenhum — respondeu Nemenhat, muito calmo. — Simples-
mente não entendo o que está acontecendo comigo.
— Bem, isso é fácil de explicar — respondeu o príncipe, secando-se.
— Por um estranho acaso, os deuses designaram você para que seja
meu acompanhante.
Nemenhat olhou-o, sem compreender.

* Geb foi separado de sua esposa N u t por ordem de Rá, que colocou Shu entre eles
para que nunca pudessem estar juntos. Por esse motivo, Geb é representado c o m o
um h o m e m deitado com o falo ereto, que tenta por todos os meios se unir com sua
esposa Nut, a abóbada celeste.

% * 4>
— Veja, ontem, enquanto fazíamos manobras, Rehire, meu acom-
panhante habitual, caiu do carro e deu tanto azar que quebrou u m
braço. Embora não seja nada grave, vai levar, no mínimo, um mês para
voltar a movê-lo. Imagine, um mês! A batalha está próxima e eu pre-
cisava de outro homem para poder substituí-lo, de modo que alguém
me falou de você. Este é o motivo de sua presença aqui. Será difícil
substituir o bom Rehire, pois ele não só atirava com o arco, como tam-
bém tinha habilidade com a lança e até com o bumerangue.
— Eu também tenho, alteza.
— Sério? Bem, vai ver, no final das contas, devo agradecer aos deu-
ses por não terem me abandonado em semelhante transe — suspirou,
enquanto oferecia uma taça de vinho.
Nemenhat pegou e bebeu um pouco, enquanto o príncipe esvazia-
va a dele em um gole só.
— Ah — disse, lambendo-se e enchendo-a de novo. — Não gosta
de vinho? — perguntou surpreso, ao ver os pequenos goles de
Nemenhat.
— Seu vinho é magnífico, meu príncipe, mas, se não se incomo-
dar, preferia beber água. Mantém minha vista mais clara.
— Ha, ha, ha! Sua vista é estupenda, disso não há dúvida. Vamos
mantê-la assim, então. Dela depende boa parte de nosso sucesso. Está
com fome?
— Já faz quase um mês, alteza.
O príncipe desatou a rir.
— Verdade? — disse, suportando a duras penas as gargalhadas. —
Não me diga mais nada. Lentilha carunchada banhada em água com
cebolas que, ultimamente, também têm bichos. Acertei?
— Em cheio, alte...
0% jp
— Deixe de altezas e de frescuras; quando estamos sozinhos, me
chame pelo meu nome mesmo. Odeio protocolos.
— Como quiser.
— Gosta de filhotes de pombos?
— Só provei uma vez, e estavam duros como pedras.
O príncipe deu outra gargalhada.
— Na certa lhe deram um filhote de urubu. Os que ofereço a você
são macios e deliciosos, pode provar.
Parahirenemef e Nemenhat jantaram com pompa. O jovem rela-
xou um pouco e participou um pouco mais das constantes brincadeiras
do príncipe. Mas nem por isso deixou de estar surpreso por se encon-
trar ali naquela noite.
— Mas, me diga — disse o príncipe, falando de novo — , como
você foi parar com os arqueiros núbios? Gostaria de saber tudo a seu
respeito.
Nemenhat se retraiu prudentemente, ficou na defensiva de modo
imperceptível e inventou uma história em que sua família era uma das
tantas que trabalham as terras dos templos e na qual ele tinha sido
recrutado à força.
— São tempos difíceis, em que todos os braços são poucos para a
defesa de nossa terra, mas, se nos sairmos bem, o deus, meu pai,
recompensará você.
Depois esticou os braços e bocejou.
— Esta noite estou um pouco cansado e vou me retirar logo para dor-
mir. Aconselho que você faça o mesmo, pois o amanhecer nos surpreen-
derá já andando de carro. Passaremos o dia praticando até você se acostu-
mar, pois não dispomos de muito tempo. Parece que o inimigo não está
longe e devemos estar preparados. Durma perto da entrada.

Nemenhat e o príncipe passaram o dia seguinte treinando com o
carro. Atiraram com o arco, com a lança e inclusive com o bumeran-
gue. Fizeram todas as manobras próprias do combate, uma vez depois
da outra, até que Nemenhat deu mostras de ter se acostumado com os
movimentos da biga. Nemenhat exibiu sua incrível pontaria com todos
os tipos de armas, entre as exclamações de alegria de um Parahirenemef
que se entregava à sua tarefa com grande entusiasmo. Nemenhat nunca
tinha visto ninguém manejar os cavalos de maneira semelhante. O
príncipe atava as rédeas na cintura enquanto atirava e sussurrava para
os cavalos palavras estranhas, que eles pareciam compreender, pois
faziam o que o príncipe desejava em cada momento. Nemenhat achou
que aquilo fosse magia.
— Eles lêem meu pensamento — dizia Parahirenemef, agitado. —
Pode acreditar, eles sempre sabem o que têm que fazer.
Quando, bem entrada a tarde, voltaram ao acampamento, Nemenhat
mal podia se mexer para descer do carro. Sentia que doíam todos os
ossos, e que seria incapaz de chegar por si mesmo à tenda.
— Você possui o vigor de User e a habilidade de Seped* — gri-
tava o príncipe, exultante. — Acerta tudo o que quer, e a distâncias
incríveis.
Os outros oficiais de carros se aproximaram para felicitá-lo,
enquanto desembarcavam.
— Pode acreditar, nosso pai Amon nos mandou uma bênção com
este homem. É sem dúvida um sinal do Oculto**.
Nemenhat desceu da carruagem mostrando claramente que cada
passo era um martírio para seu corpo ferido.

* O deus Rá era possuidor de catorze ka, uma delas era User, o vigor, e o u t r o ,
Seped, a habilidade.
O deus Amon também era conhecido por este nome.
%*
Todos os presentes riram ao vê-lo caminhar com tal dificuldade.
— Não sejam cruéis com ele — exclamou o príncipe, muito ale-
gre. — E não contem a meu pai sobre suas habilidades, senão ele o tira
de mim.
Naquela noite, Nemenhat mal pôde jantar, pois até mastigar lhe
custava. Quando se deitou em sua esteira, caiu num sono tão profundo
que, quando o acordaram, nem tinha mudado de posição.
Nos dias seguintes, Nemenhat se acostumou paulatinamente ao
carro, aprendendo a percorrer o terreno, para manter o equilíbrio
estável e disparar as flechas como se não estivessem em movimento.
Inclusive os cavalos pareceram aceitá-lo de bom grado, e não tiveram
receio dele em nenhum momento.
O príncipe já não tinha dúvidas de que possuía o melhor acompa-
nhante que se poderia desejar, e não parava de elogiá-lo em público por
isso.
Nemenhat, por sua vez, adquiriu um grande carinho p o r
Parahirenemef, que se mostrava cheio de consideração por ele a todo
momento. Em poucos dias, se criou entre eles um vínculo que de
forma alguma era o de um príncipe e seu lacaio, e que Nemenhat com-
preendeu muito bem. Dentro daquela pequena caixa puxada por dois
briosos cavalos, não havia estirpe que valesse, porque a vida do prínci-
pe dependia muito da habilidade que Nemenhat poderia ter para
protegê-lo ou para eliminar seus inimigos. Os dois formavam uma
equipe que se sairia vitoriosa ou se entregaria sem compaixão.
Conhecer Parahirenemef tampouco foi difícil, pois ele se mostrava
verdadeiro o tempo todo.
Embora o príncipe fosse mais velho que ele, mantinha-se em boa
forma, pois era grande entusiasta dos esportes, da vida ao ar livre e,
principalmente, da caça. Gostava de emular seus augustos ancestrais,
ré ^
entrando no deserto para caçar leões, e não precisamente para ganhar
fama na corte. Simplesmente, sua natureza apaixonada vibrava com
semelhante atividade, produzindo-lhe o mais embriagante dos efeitos.
Por outro lado, em seguida o príncipe lhe deu mostras de sua des-
medida inclinação para a bebida, e especificamente pelo shedeh, u m
fortíssimo licor capaz de nublar o entendimento mais desperto. Não
era estranho se deparar com Parahirenemef, quase de manhã, com a
cabeça sobre os braços apoiados em alguma mesa, depois de ter bebi-
do até dizer chega. No entanto, quando subia de novo no carro, bem
cedo, estava de pé como sempre, sem que nada fizesse suspeitar dos
excessos de toda uma noite.
Diante da sincera amizade que o príncipe lhe demonstrava a cada
dia, Nemenhat começou a sentir certo desassossego. Remoía-se por ver
o coração de Parahirenemef aberto, sem desconfiança, e ele, por sua vez,
não estava sendo sincero com o príncipe. O terrível segredo que parecia
acompanhá-lo durante toda a sua vida não havia causado mais que des-
graças a seu redor e, pelo visto, continuaria causando talvez por toda a
eternidade de sua alma.
Numa noite, depois de outra dura jornada de caminhar, Nemenhat
também decidiu abrir sua alma ao príncipe, para assim lhe retribuir,
mostrando-lhe sua lealdade.
Parahirenemef ficou um tanto surpreso no começo, mas, diante dos
encarecidos pedidos de seu acompanhante, escutou sua história com
atenção do começo ao fim. Quando Nemenhat terminou, apenas podia
olhar os olhos do príncipe, tamanha era a vergonha que sentia. Em segui-
da, todo o desespero que permanecia escondido no mais profundo de
seu ser aflorou, incontrolável, como faziam as cheias do Nilo.
Após ouvi-lo, o príncipe permaneceu em silêncio, com sua taça
e n t r e as mãos, o b s e r v a n d o - o , atônito. Aquilo era, n o m í n i m o , a
melhor história que jamais tinham lhe contado, e estava fascinado.
m
<P
— Me perdoe, príncipe, por ter mentido. Sem dúvida, não sou
merecedor de sua consideração, mas tenho medo da sorte de minha
esposa e de meu pai.
— Puxa, que história! — exclamou, encantado, o príncipe. —
Não há dúvida de que seu pai vivia rodeado de bons amigos... Ankh.
— Conhece Ankh?
— Se conheço? Naturalmente. E um dos répteis mais vis que se
pode encontrar em Mênfis. Sabia que aspira ao título de Grande Chefe
dos Artesãos?
— Sério?
Parahirenemef confirmou, enquanto levava a taça aos lábios.
— É como disse a você — falou, estalando a língua com deleite.
— E para conseguir isso, seria capaz de vender ao melhor preço seus
próprios futuros filhos. Tem muitas ligações na alta sociedade menfita,
embora eu me abstenha de ir a suas festas. Não há dúvida de que se
trata de um tipo muito esperto, pois, garanto, não é nada fácil para
alguém de tão obscura ascendência como a dele chegar aos postos que
chegou na Administração.
— Compreendo.
— Não tenho tanta certeza, meu amigo. Você não conhece o tipo
de gente que prolifera lá dentro. Burocratas convictos que não param
de fazer intrigas para tratar de negócios do tipo mais obscuro. Todo
aquele que ostenta um cargo que se preza pertence a tal ou qual famí-
lia cujos antepassados foram vizires, monarcas, arquitetos reais ou Ptah
sabe-se lá o quê. Todos juntos detêm o poder do dia-a-dia nesta terra.
Garanto, são como uma praga para o Egito.
— E o deus conhece tudo isso?
— Muito bem — disse Parahirenemef, bebendo de novo. — Mas
faz caso de mim quando digo que está de mãos atadas. Para desmontar
%
ré « £>
o sistema deste país precisaríamos de uma empresa quase que im-
possível. Estão longe os tempos em que o faraó era o senhor de todos
os que habitavam a terra de Kemet.
— Mas ele é um grande guerreiro, seu exército o obedeceria sem
hesitação, poderia...
— Não poderia fazer mais do que já faz, acredite. Talvez estejamos
diante do último grande faraó na história de nosso povo.
— Não entendo, ele ostenta o poder, a força...
— O poder? — Parahirenemef riu. — Como você sabe pouco
sobre a realidade política do Egito. Meu pai é poderoso, não é por nada
que é faraó. Mas o autêntico poder não se encontra na realeza, mas nos
templos. É um poder formidável, e meu pai sabe muito bem disso; não
é à toa que mantém boas relações com eles.
— Não consigo acreditar que o faraó se dobre diante do clero.
— Não se trata de se dobrar, mas de respeitar seus interesses. Sabia
que o templo de Amon controla a maior parte das terras do Egito? É
um poder que foi alimentado através dos séculos, e meu pai não pode
acabar com ele.
Nemenhat fez um gesto de incredulidade.
— Faz séculos, houve um deus que quis enfrentá-los — continuou
o príncipe, ao ver a cara que ele fazia. — Era um faraó um tanto mís-
tico, que elevou Aton como deus nacional, acima do todo poderoso
Amon. Inclusive mudou sua capital para Amarna, para estar longe de
sua influência. Mas foi tudo em vão. Os sacerdotes de Karnak se uti-
lizaram de todo tipo de estratégias para acabar com ele. Quando o
faraó Akhenaton morreu, o sangue de seus seguidores cobriu o chão de
seus templos. Foi uma perseguição implacável, garanto, e depois Amon
voltou a se transformar no primeiro deus nacional, e seu clero não dei-
xou de enriquecer desde então. Ouça, a batalha não está longe. Se for

à tenda de meu pai, vai encontrar algum de seus profetas perambulan-
do por ali. Sem uma palavra, lembram ao faraó que esperam ser gene-
rosamente recompensados com parte dos despojos dos vencidos.
— É sombrio o quadro que você pinta.
— Não mais do que era um século atrás. Como disse, meu pai sabe
lidar com eles, não interfere em seus assuntos e, em troca, Amon o
abençoa em toda parte. No final das contas, o país necessita de sua
figura para que não se desfaça o equilíbrio que os deuses primitivos da
Terra Negra proporcionam.
Nemenhat moveu a cabeça, confirmando que o entendia.
— Nunca pensei que fosse tão complicado para o faraó manter seu
poder.
— Pois está vendo que é assim, e a nuvem de burocratas de que eu
falava antes não o ajuda em nada. Enfim, Nemenhat — disse o prínci-
pe, esticando os braços e sorrindo para ele — , espero que meu irmão
mais velho viva por muitos anos, para me economizar o sacrifício de
subir ao trono. Garanto que não tenho o menor interesse.
Houve um momento de silêncio, enquanto o príncipe servia mais
bebida.
— Gostaria de divertir esta noite? — perguntou de repente a
Nemenhat. — Se quiser, posso lhe arranjar uma mulher.
Nemenhat olhou-o e viu como os olhos do príncipe brilhavam de
concupiscência.
— Meu príncipe, você me deixa honrado, mas não estou com
cabeça para tais comemorações. Só ardo de desejo de saber dos meus,
de minha esposa... Não há noite que não passe pensando nela.
— Você a ama?
— Não pensei que pudesse amá-la tanto.
— E ela ama você?
m

— Sim, estou certo disso.


— Tem sorte, então, mesmo dentro de sua infelicidade. Como se
chama sua esposa? É bonita?
— O nome dela é Nubet, e nunca vi mulher mais bonita que ela.
— Nubet... Magnífico nome. Deve ser tão bonita como diz. Bem,
meu amigo — continuou, dando-lhe umas palmadas no o m b r o — ,
não há dúvida de que desperta todas as minhas simpatias. Nunca tinha
conhecido u m saqueador de tumbas e, no fundo, pode acreditar, acho
divertido que você despoje todos esses egoístas de tudo quanto acumu-
laram em vida.
— Mas é u m pecado que vai contra as crenças mais profundas de
nosso povo.
— Sem dúvida, o pior... se eu fosse perfeito. Mas o que você quer?
Sinto uma fraqueza pelos pecadores — respondeu, fazendo u m gesto
cômico.
O príncipe se levantou e voltou a se espreguiçar, gemendo com
prazer.
— Vou deixar você aí. Acho que não renunciarei a u m pouco de
diversão esta noite. Descanse e não pense no que não pode remediar.
Prometo que tentarei investigar o que puder deste assunto.

Nos dias seguintes, o exército forçou a marcha, avançando mais que o


comum. Para trás ficaram as desoladas terras do Sinai, e entraram nas
mais prósperas de Canaã. Os batedores se adiantaram para reconhecer o
terreno e tentar localizar um inimigo que se sabia próximo. Os veteranos,
que intuíam a iminência do combate, espalhavam todo tipo de boatos,
totalmente inventados, que intimidavam os recrutas e deixavam os demais
nervosos. Pela noite, os shemesu, mensageiros a cavalo, chegavam ao
quartel-general do faraó com as últimas informações, partindo pouco
4 8

depois com novas ordens a seus destinos. Tais soldados eram os únicos
que montavam a cavalo no exército egípcio, pois este não utilizava a cava-
laria como arma, apenas os esquadrões de carros.
Não restava muito tempo a Ramsés, pois sabia da proximidade da
frota inimiga às costas do Egito. Devia encontrar as tropas invasoras o
quanto antes, se queria ter tempo suficiente para se dirigir à desembo-
cadura do Nilo e organizar a defesa contra os navios que o ameaçavam
por mar. Por isso se encontrava um tanto nervoso e mais irritado que o
normal. Não serviria de nada o esforço a que tinha submetido o exér-
cito, se não voltasse em tempo ao Delta.
— Meu pai está absolutamente insuportável — protestou
Parahirenemef, acomodando-se sobre alguns almofadões. — Acha que
o inimigo foi tragado pela terra e se sente angustiado. E, quando o
faraó se angustia, garanto que é melhor não andar por perto.
— Pois os soldados parecem convencidos de que estamos muito
perto.
— Certo, mas eles desconhecem que, para ganhar esta guerra,
teremos que passar por duas batalhas. O faraó calculou tudo, e infeliz-
mente não pode mudar seus planos.
Nemenhat concordou em silêncio.
— Caramba — continuou o príncipe — , sempre acontece a
mesma coisa. Quando menos se espera, um arauto aparece à porta da
tenda me convocando a ir ao conselho urgentemente, para me prepa-
rar para a batalha.
— Como vai se livrar?
— Isso meu pai vai decidir. É um grande estrategista, acredite. Quan-
do os batedores localizarem o inimigo, o faraó irá espiar. Situará nosso
exército de maneira adequada e combaterá onde for mais conveniente.
— E ele participa da luta?

— Se participa?! Às vezes, torna-se extremamente difícil segui-lo e
protegê-lo. Luta como uma fera. Não é por nada que é o "todo-pode-
roso grande em vitórias"*. Mas desta vez talvez se preserve, pois o des-
tino de nosso povo depende em grande parte dele. Deve conservar a
vida para poder continuar a luta em nosso território.
Nemenhat moveu a cabeça de novo, indicando que entendia.
— Esqueci que para você será a primeira batalha. Quando botar
meus cavalos para correr, o nervoso vai passar.
— Não estou nervoso por isso — disse Nemenhat, demonstrando
sua calma natural. — Lutar não me dá medo.
— Claro — respondeu o príncipe, com uma gargalhada. — Eles é
que devem ter cuidado com seu arco. Já sei que são outros os temores
que consomem você.
Nemenhat o olhou, mudando de imediato sua expressão. Depois,
houve alguns instantes de silêncio em que ambos mantiveram o olhar
cheio de expectativa.
— Lembra a conversa que tivemos esses dias? Eu prometi tentar
averiguar alguma coisa a respeito de sua família — disse Parahirenemef,
levantando-se para servir o vinho em duas taças.
— Lembro — respondeu Nemenhat, sentindo como se formava
um nó no estômago.
— Tome — disse o príncipe, oferecendo-lhe uma taça.
— Sabe que não costumo beber — respondeu Nemenhat,
enquanto a pegava.
— Hoje beberemos juntos — prosseguiu Parahirenemef, desvian-
do o olhar. — Quero que compreenda — continuou — que estamos
longe do Egito e nada sei do que pode acontecer, embora esteja intei-
rado do que ocorreu.

* Frase característica entre os apelativos dos faraós.


C^ m éO
Nemenhat olhou para ele, angustiado e suplicante, enquanto se
esforçava para não derramar o conteúdo de sua taça.
Parahirenemef bebeu um longo gole, antes de continuar.
— Sinto ter que lhe dizer, mas seu pai está morto.
Nemenhat sentiu um suor frio correndo da cabeça aos pés. Seu
rosto ficou lívido e se transformou em estátua, sem um resquício de
vida no olhar.
O príncipe se aproximou e segurou as mãos dele entre as suas,
aproximando-lhe a taça dos lábios.
— Nem todas as notícias são más. Também sei que sua esposa está
bem. Beba um pouco, vai ajudar.
Mas Nemenhat parecia petrificado, e apenas a insistência teimosa
do príncipe o obrigou a pestanejar e a abrir a boca mecanicamente para
dar um gole.
— Lamento ser eu a lhe dar uma notícia tão ruim, meu amigo.
Como seria bom que tudo acontecesse de modo diferente, mas... você
foi vítima de uma armação.
Nemenhat levantou os olhos para o príncipe muito devagar, como
tentando assimilar suas palavras.
— Ankh teceu uma rede tão fechada ao seu redor que era quase
impossível que você escapasse.
Nemenhat observou-o, esmagado. Depois, levou as mãos à cabeça
numa inútil tentativa de fazê-la entender alguma coisa.
— C o m o você sabe, há alguns detalhes nessa história que m e
escapam.
— Uma armação — murmurou Nemenhat, continuando com o
olhar perdido. — Avisei meu pai para ter cuidado — continuou,
lamentando-se. — Mas...
— A única opção para você era abandonar o Egito — cortou o
príncipe. — Agora não adianta de nada se arrepender por não ter pen-
sado nisso.

Nemenhat baixou de novo os olhos, enquanto puxava os cabelos.
— Quer dizer que Ankh não estava sozinho nisso? — perguntou
dali a pouco, voltando a erguê-lo.
— Para realizar seu plano, precisava de alguns cúmplices — res-
pondeu Parahirenemef, cruzando os braços.
— Conhece eles?
Parahirenemef afirmou com a cabeça.
— Já ouviu falar de Seher-Tawy?
— Não, nunca.
O príncipe esboçou um sorriso estranho.
— É um dos tipos mais sinistros de Mênfis. O juiz Seher-Tawy tem
uma fraqueza por cortar orelhas. Você teve sorte de conservar as suas.
Nemenhat automaticamente levou as mãos às orelhas.
— Ele é uma amostra palpável de como alguém sem escrúpulos
pode escalar postos na Administração hoje em dia. A presença dele é
desagradável. Não consigo nem olhar na cara dele. Você devia ver,
Nemenhat, a cara dele é como uma máscara, sempre inexpressiva. Esse
homem parece não ter emoções. Além disso, carece de moral, e a dig-
nidade, para ele, não passa de uma palavra sem significado. Imagine
que utilizou sua esposa para conseguir subir na magistratura!
Nemenhat observava-o perplexo.
— Sim, a dama Nitocris, uma mulher belíssima que foi amante dos
mais poderosos dignitários de Mênfis. Seher-Tawy a incentivava a dor-
mir com todo aquele que pudesse ajudá-lo a subir um novo degrau, e
como ela era muito bem-disposta, o juiz conseguiu se estabelecer
muito bem.
Parahirenemef esvaziou em um só gole sua taça e se levantou para
servir outra.
m

— É um indivíduo muito cruel, o que, às vezes, acontece entre os


cornos, embora também sejam muitos os bobalhões. — Pareceu refle-
tir enquanto se servia de vinho. — Foi ele o braço executor deste
drama — continuou, bebendo de novo. — Ambiciona ser nomeado
parte do "Alto Tribunal de Justiça do Baixo Egito" e, se Ankh chega à
chefia dos domínios do templo de Ptah, recomendará com certeza sua
nomeação. Não esqueça que o Grande Chefe dos Artesãos tem um
considerável poder no Baixo Egito.
— Acha que Ankh conseguirá?
— Não estranharia. A julgar por tudo quanto aconteceu, Seher-
Tawy parece estar convencido disso. Ignoro quais são todos os seus
comparsas, mas acho que conheço alguns.
Nemenhat o compreendia, desalentado.
— O primeiro que me ocorre é Irsw, o homem mais rico de Mênfis.
São amigos íntimos. E o gordo Irsw sempre tira proveito de tudo. Para
você ter uma idéia, apropriou-se dos negócios do seu amigo fenício.
O rosto de Nemenhat ficou alterado.
— Canalhas... — disse, apertando os dentes.
— Essa palavra lhes serve bem. Como dizia, Irsw é riquíssimo, e a
riqueza e o poder costumam formar laços inseparáveis. Irsw poderia
conseguir para Ankh o que deseja.
— Desgraçados — xingou Nemenhat, com raiva. — Hiram é um
bom homem. Garanto, meu príncipe, que ele é inocente de tudo.
— Isso agora não serve de nada. Resolveram este assunto de modo
conveniente para eles.
Nemenhat voltou a mover a cabeça entre as mãos, desesperadamente.
— Não é possível tanta crueldade — disse por fim, com pesar. —
Deve haver algum equívoco...
Parahirenemef sorriu amargamente.
— Não há equívoco nenhum, a informação é fidedigna. Minhas
fontes são seguras. Não tenha dúvida de que as ruas de Mênfis têm
olhos. Compreende agora que você não tinha escapatória?
A imagem de Shepsenuré apareceu repentinamente vivida em sua
memória, e Nemenhat mal pôde sufocar um soluço.
— Então, por que não acabaram comigo?
— Ankh não pode semear Mênfis de cadáveres. Todo este processo
foi muito irregular. Eles estão cansados de saber disso. Em primeiro
lugar, é o vizir quem, em última instância, deveria ter julgado as provas
e emitido a sentença oportuna. Mas, como você pode compreender,
isso não podia acontecer sob pena de se verem imputados. Seu pai não
podia chegar vivo diante do grande tribunal.
— Por isso o mataram...
— Devem tê-lo matado durante o interrogatório, depois que assi-
nou sua declaração.
— Mas meu pai não sabia ler, muito menos escrever.
— Isso não era problema, alguém assinaria por ele.
Nemenhat notou como o sangue lhe subia à cabeça, enquanto que
pelas veias de suas têmporas pareciam galopar todos os esquadrões do
exército do deus.
— Eles não poderiam matar você. O melhor era fazer com que
desaparecesse. A guerra que se aproxima lhes caiu como uma luva.
Botaram você junto com outros criminosos recrutados, com ordem
para que lutasse na linha de frente.
— Mas não entendo. E se volto quando a guerra acabar?
— Acho que você não compreendeu bem — disse o príncipe, aca-
riciando a taça. — Não pode voltar. É o final que pensaram para você.
— Mas sempre há uma possibilidade de sair com vida, a não ser
que...
Parahirenemef o olhou, concordando.
— É fácil armar um braço disposto a matá-lo, ou inclusive vários.
No tumulto da luta corpo a corpo, qualquer um pode cravar uma espa-
da pelas costas.
Nemenhat se levantou ansioso para o príncipe.
— Então sou um homem morto.
— Naturalmente é impossível saber quem, entre 20 mil solda-
dos de meu pai, foi o escolhido para matar você. De qualquer forma,
vão esperar até o final, para ver se o inimigo não lhes economiza o
trabalho.
O jovem voltou a se recostar em seu assento e tentou se acalmar.
— E n q u a n t o estiver comigo, não há nada a t e m e r — disse
Parahirenemef, tranqüilizador. — Claro que Ankh nunca pensou
nesta possibilidade.
— É uma trama diabólica — murmurou Nemenhat, quase para si
mesmo.
— Sem dúvida, própria de uma mente atormentada como a de
Ankh. Mas, como eu disse antes, eles não são a lei no Egito. O plano foi
traçado às suas costas, ao controlar os canais que evitariam a intervenção
do vizir. Eles se acham muito poderosos para manejar tudo. Sem ir mais
longe, a apropriação do negócio de Hiram por parte de Irsw é mais uma
irregularidade. Se o fenício tivesse sido declarado culpado e o Estado
tivesse embargado seus bens, só meu pai, o faraó, ou o vizir, em seu
nome, poderia dispor deles, dando-os, se esse fosse seu desejo, ou
fechando a empresa para sempre.
— Então é uma apropriação ilegal — interveio Nemenhat.
— Totalmente. Ignoro o procedimento empregado por Irsw, mas
não devemos esquecer que o sírio é o centro de uma enorme rede de

influências. Todo mundo em Mênfis lhe deve favores. Com certeza,
mexeu os pauzinhos para satisfazer seus interesses.
— Então poderia se pedir ao vizir para que agisse — disse
Nemenhat, um pouco mais animado.
— Humm, não recomendo isso. Duvido muito que você tenha o
poder necessário para que sua demanda chegue ao Ti Aty (vizir). A coisa
nunca iria em frente e, na certa, você não viveria para vê-la.
— Então me encontro totalmente sem defesa.
— Temo que sim. Por isso, deve ser prudente. Lembre que Ankh
não espera que você volte — disse Parahirenemef, dirigindo-lhe um
olhar astuto.
Nemenhat acariciou o queixo, enquanto seus olhos cravavam no
príncipe. Pensava com rapidez sobre tudo o que Parahirenemef tinha
dito, assimilando definitivamente a conspiração de que haviam sido
vítimas.
— Uma armação desse porte para um pobre carpinteiro como
Shepsenuré — disse para si mesmo.
Seu terrível pesar acabou dando margem a pensamentos muito
mais analíticos, próprios de sua verdadeira natureza. Assim, seu sem-
blante também foi mudando à medida que suas idéias mudavam, e seus
olhos acabaram transformando seu olhar no mais glacial que o príncipe
Parahirenemef jamais se lembrava de ter visto.
— Pelo menos Nubet está a salvo — disse, em tom inexpressivo.
— Você deve se manter vivo por ela — o príncipe tentou animá-lo.
— Por ela — repetiu Nemenhat. — Sou uma desonra para um
coração sem mácula como o dela. Devia ter sido sincero com ela, mas
não me atrevi a tanto.
— Não se torture agora por isso. Se ela ama você, vai perdoá-lo.
Nemenhat juntou as mãos e permaneceu absorto por alguns ins-
tantes. Depois pestanejou, parecendo voltar a si.
— Me desculpe, príncipe — disse, por fim, enquanto levantava.
— Mas preciso ficar a sós com a noite.
N e m e n h a t passou aquela noite ao relento. Deitado sobre u m a
manta, contemplou em silêncio o corpo de Nut* coberto de estrelas.
Seu pai ocupou a maior parte de seus pensamentos. Recriminava-se
cem vezes por não ter vigiado seus passos durante os últimos meses. O
fato de saber que não ia vê-lo de novo o levou a uma situação de extre-
ma melancolia, algo novo, que nunca tinha experimentado, e que lhe
produziu uma angústia indescritível. Quando seus olhos, velados pelo
pranto, se secaram, vagaram pelo escuro céu de Canaã, lá em cima.
Eram tantas as estrelas! Talvez uma delas fosse a alma de Shepsenuré.
Talvez Osíris tivesse finalmente sido magnânimo com ele. Talvez, na
"Sala das Duas Verdades"**, os grandes deuses d o Tribunal dos
Mortos, sentados em tronos, empunhando os cetros was***, interce-
dessem por ele. Ou quem sabe se Anúbis, ao controlar o perfeito equilí-
brio da balança onde fora pesada sua alma, tivesse finalmente se apieda-
do, pendendo o prato a seu favor, ao ouvir as palavras que Schai, o desti-
no, com certeza lhe havia dito, fazendo ver que a vida daquele defunto
não tinha sido nada fácil. Somente assim era possível que Shepsenuré
houvesse se salvado, pois Thot, o insubornável, anotaria o resultado da
pesagem da alma.

* Representa a abóbada celeste.


* * Representação da parte superior do Livro dos Mortos onde se encontram os
grandes deuses do Tribunal dos Mortos. Nesta sala se efetuava a pesagem da alma.
* * * O cetro was representava o símbolo do poder.

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