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Reparou então que estes não estavam maquiados com a usual linha
negra de mesdenet, comumente conhecido como khol, que contornava
os olhos dos egípcios, mas com malaquita verde do Sinai, o chamado
udju, uma sombra para olhos muito comum durante o Império Antigo,
mas que caiu em desuso depois da IV dinastia, fazia 1.300 anos.
— Gosto de h o m e n s que trabalham com as mãos — disse ela,
melosa, tirando Shepsenuré de sua abstração. — O que você faz?
— Sou carpinteiro.
-— Seu ofício é honroso e, além disso, você faz parte do grupo dos
artesãos, cujo patrono, Ptah, é o deus tutelar desta cidade.
— Vivo mais que dignamente dele.
— Já percebi. Não é muito comum encontrar carpinteiros convi-
dados a este tipo de festas. Na verdade, é a primeira vez que vi u m deles
nelas.
— Isso surpreende você? Ou só sente curiosidade?
Ela riu suavemente.
— Nem uma coisa nem outra — respondeu. — Como disse, sim-
plesmente é p o u c o c o m u m . Enfim — suspirou — , gosto de você,
Shepsenuré, é uma pena que não possa ter uma mulher como eu.
— Tem certeza disso? — perguntou ele.
Men-Nefer se aproximou um pouco mais, até se situar no limite que
o decoro permitia e que o obrigou a aspirar a delicada fragrância que saía
de sua pele.
— Por acaso pode? — inquiriu, enquanto olhava os lábios dele.
— Façamos a prova — respondeu ele, aproximando os seus até
ficarem tão próximos o quanto era possível sem se tocarem.
Ela percorreu seu rosto até parar nos olhos, como se estivesse com
preguiça. Ali ficou com o olhar por alguns instantes, o suficiente, e
depois voltou a baixá-lo lentamente até sua boca.
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Shepsenuré sentiu que sua vontade o abandonava tão rapidamente,
que não dispôs de tempo para poder controlá-la. Apenas n u m instante
sua boca havia vencido a minúscula distância que os separava, levado
por u m impulso de que não era dono. Então sentiu os lábios dela, e
achou que ia enlouquecer.
Seus braços a rodearam, atraindo-a com força, sentindo a peculiar
maciez de sua pele e a firmeza de suas formas, ao mesmo tempo que nota-
va como os seios de Men-Nefer se esmagavam contra ele, duros como
aríetes. Quase instantaneamente, sentiu como seu membro tentava abrir
caminho por debaixo do kilt, numa ereção incontrolável.
Men-Nefer se afastou ligeiramente e, em seguida, acabou o beijo,
separando-se com habilidade.
Ficou, então, frente a um Shepsenuré que, excitado, respirava com
dificuldade.
— Seria de péssimo gosto continuar, não acha? E uma ofensa para
a casa de nosso anfitrião.
Shepsenuré era incapaz de articular uma palavra, de modo que não
respondeu, concentrando-se em recuperar a pulsação normal.
— Khepri abrirá caminho daqui a pouco — disse ela, apontando o
horizonte. — E desejo saudá-lo de minha casa, antes de ir dormir. Já é
hora de ir embora.
Shepsenuré agarrou-a pelo braço.
— Espere, pelo menos me diga se posso ver você outra vez.
— Q u e m sabe — respondeu ela. — Os deuses são caprichosos
com nosso destino.
— Não acredito nisso de jeito nenhum.
— Sério? — disse rindo outra vez. — Pois faz mal.
— Me diga apenas se posso visitar você — continuou ele, a voz
ainda afetada pela excitação que sentia.
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— Você é direto, Shepsenuré. Gosto de você; na verdade, talvez
pudesse...
— Pode me pedir o que deseja — cortou ele.
— Ha, ha, ha. Nisso não posso ajudar você, Shepsenuré, pois não
pedirei nada. Você é quem deve me surpreender. Só então o amarei.
Com u m movimento do braço, escapou da mão do egípcio,
dedicando-lhe de novo mais um olhar carinhoso. Depois atravessou a
varanda com o suave movimento que imprimia às suas curvas ao andar,
e desapareceu no interior da casa.
Shepsenuré se sentou nos degraus ainda com a respiração entre-
cortada, observando o jardim próximo. Nunca em sua vida pensou que
algo assim pudesse lhe acontecer. Seu coração era um torvelinho de
paixões que ele mesmo desconhecia. Mas isso não importava, pois,
nessa noite, havia conhecido uma deusa. Se o paraíso existia, devia ser
habitado por seres assim. Estava, portanto, decidido a receber um
adiantamento. Tinha sérias dúvidas de que, caso os Campos do Ialu
fossem reais, ele fosse admitido neles.
Olhou para a linha distante do leste, por onde já clareava. Rá anun-
ciava de novo sua chegada, e os primeiros gorjeios começavam a ser
ouvidos como uma saudação alegre. Shepsenuré tirou as sandálias
incômodas e se ergueu, dando um suspiro. Desceu a escada que dava
ao jardim e o cruzou pelo caminho que levava à porta exterior, conven-
cido de que amaria aquela mulher a qualquer preço.
Q u a n d o saiu à rua, as sombras desapareciam. D e n t r o da casa,
ainda soava a música.
* No Antigo Egito, não existia nenhuma liturgia especial para celebrar u m casamen-
to. Era suficiente que os noivos tivessem a vontade de se casar diante de testemu-
nhas, entrar na casa e se deitar juntos.
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poderosa que o mais forte dos licores e à qual não podia resistir. Ou,
talvez, ambas as coisas ao mesmo tempo.
Sua dependência daquela mulher chegava a extremos insólitos,
pois tinha a sensação de não se saciar nunca. Inclusive quando suas
belas pernas lhe rodeavam a cintura, fazendo-o transbordar em seu inte-
rior, notava que suas ânsias não se acalmavam. Cada noite que passava
com ela, crescia mais essa impressão de insatisfação que o levava a entrar
numa espiral de frenética paixão, até ficar exausto entre seus braços.
E, ao despertar, sempre a mesma sensação de solidão e vazio, e a
necessidade imperiosa de voltar a possuí-la mais uma vez.
Ela parecia adivinhar tudo isso e, com habilidade, o conduzia uma
vez depois da outra a uma efusão delirante que ele não podia controlar
e que satisfazia Men-Nefer.
Durante aquele tempo, Shepsenuré visitou com freqüência o
esconderijo de Saqqara. Sempre aproveitando a chegada da noite, vaga-
va pelas areias do deserto sob o atento olhar das estrelas. Como sem-
pre, cauteloso, se assegurava de que somente elas eram testemunhas de
seus atos. Chegava, desenterrava quanto considerava oportuno, e volta-
va sempre alerta com um novo despojo entre as mãos.
Quando ele o oferecia, Men-Nefer nem mesmo olhava. Simples-
mente o aceitava, fazendo um gesto a um dos empregados para que o
recolhesse. Nunca fazia nenhum comentário sobre os presentes e ele,
por sua vez, tampouco se importava, pois estava disposto a entregar
uma tumba inteira, se assim podia passar o resto de sua vida entre suas
carícias.
Mas essa impaciência que dia a dia o devorava o fez ser menos pru-
dente e, uma tarde, decidiu ir antes à necrópole, a fim de ver a amante
nessa mesma noite com novos presentes. Tomou as mesmas precau-
ções de costume, dando caprichosos rodeios até entrar no deserto.
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Uma vez ali, observou cauteloso, certificando-se de que não havia nin-
guém nas proximidades. O sol, embora baixo, ainda permitia ver com
clareza tudo o quanto o rodeava. Não parecia haver mais ninguém além
dele.
Sentou-se à sombra que a decrépita pirâmide de Sekemjet lhe pro-
porcionava, fazendo um último esforço para esperar a chegada da
noite.
Recostado sobre uma de suas pedras, viu a sombra da pirâmide se
alongar mais e mais, e então Shepsenuré ouviu um barulho. Foi quase
imperceptível, mas ele ouviu, e, de imediato, seu corpo ficou tenso
e seus sentidos se aguçaram. Manteve-se assim durante u m tempo,
recolhendo qualquer som que a necrópole lhe entregasse e que tão
bem conhecia. Mas não escutou mais nada. Levantou-se com cuidado
e rodeou o monumento silenciosamente, em busca de algum intruso.
No entanto, não parecia haver ninguém mais que ele e a crescente
escuridão que já começava a se estender. Decidiu que devia ir embora
imediatamente, mas, em seguida e como que impulsionado por artes
estranhas, a imagem de Men-Nefer apareceu de novo em seu coração,
tão real como se estivesse ali mesmo. Shepsenuré fechou os olhos ao
mesmo tempo que esticava um dos braços para acariciar aquela deusa
que se apresentava a ele tão vividamente. Ao voltar à realidade, o egíp-
cio sentiu um tormento insuportável.
Nessa noite, não estava disposto a renunciar a ela sob nenhuma cir-
cunstância, de modo que pegaria tudo o que pudesse e correria para
junto de Men-Nefer, implorando outra vez os mil prazeres que só ela
era capaz de lhe oferecer, e que ele gostaria que fossem eternos.
De novo apurou o ouvido, mas não escutou nada.
— Deve ter sido alguma cobra saindo do ninho em busca de caça
— pensou, convencendo-se de que estava sozinho.
Decidiu não perder mais tempo e, sem mais delongas, desenterrou
o acesso ao poço e tirou dele tudo o que lhe veio às mãos. Depois,
quase apressadamente, voltou a deixar tudo como estava, regressando
sobre seus passos enquanto apagava qualquer pegada. Então sentiu um
estranho calafrio e teve o pressentimento de que não estava sozinho.
Agachou-se, tentando penetrar com o olhar a escuridão que já era dona
do lugar, mas esta não permitiu ver mais que uns passos adiante.
Levantou-se e se foi o mais rápido que pôde, afundando os pés na areia
que, naquela noite, parecia ter umas mãos que o seguravam e o impe-
diam de ir mais depressa.
Ouviu o uivo de um chacal muito perto e notou como seus cabelos
ficavam em pé. Pensou que era Upuaut, o guardião da necrópole, que
o culpava por toda uma vida de ultrajes cometidos em seus domínios.
Shepsenuré abandonou Saqqara apressadamente, pegando a estra-
da que conduzia a Mênfis. Depois se dirigiria sem demora para a casa
de sua amada, a quem se entregaria por completo.
Da necrópole, os olhos da noite o viram se afastar como alma per-
dida, até que a profunda escuridão o tragasse.
Naquela mesma noite, Shepsenuré foi à casa de Men-Nefer, como
o homem do deserto o fazia ao oásis. Era muito mais que um refúgio
para ele, pois ali acalmava seu espírito, embora fosse apenas por umas
horas. Aconchegado entre os belos seios da mulher, se abandonava com-
pletamente a ela, sem se importar que sua vontade já fosse apenas uma
lembrança. Pouco restava do homem que, durante anos, tinha arrastado
sua existência pelo pó e pelos cemitérios, forjando um caráter indomá-
vel que o tinha conduzido sempre pelos caminhos da sensatez.
Amou Men-Nefer desaforadamente, como tantas vezes, até ficar
exausto e sentir de novo o estranho torpor que sempre terminava por
se apoderar dele. Seu corpo ficava inerte e seu discernimento se diluía
em conceitos abstratos que nada tinham a ver com ele.
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* * *
* Saqueador.
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mento saíram de Pi-Ramsés, dispostos a enfrentar u m inimigo que
havia mudado por completo o mapa do mundo conhecido.
Ramsés III, o grande Hórus vivo, saía ao encontro daquela confe-
deração de povos que havia arrasado todo o Oriente Próximo como
uma terrível praga de gafanhotos.
O serviço de espionagem egípcio dera detalhes da situação real:
uma verdadeira onda devastadora de povos dos mais diversos lugares
confluía com o propósito de acabar com a única nação civilizada que
restava sobre a terra.
A situação era muito grave, porque alguns destes povos tinham aca-
bado com potências lendárias, como era o caso do Grande Hatti. A
notícia de sua queda tinha deixado o faraó estupefato, porque o Hatti
sempre representara para os egípcios um inimigo considerável, e seu
exército sempre fora tido como temível. No começo, Ramsés não deu
crédito às notícias que chegavam, mas o serviço de informação foi
categórico: o Grande Hatti já não existia. O exército dos tchequeru*
havia acabado com ele e, não satisfeitos com isso, tinha devastado tam-
bém o Chipre e até a distante Ugarit.
Em seguida, Ramsés soube que outros exércitos haviam se unido
aos tchequeru. Os denenu, os peleset, os shardana**, os usheshu***, os
lukka, e os teresh, que pressionavam desde o oeste de Anatólia. U m a
força incrível, que havia assolado Arzawa, Karkemish, Alashia e até
Amurru, e cujo destino final era o fértil país da Terra Negra****.
* Série de lagos situados ao norte do golfo de Suez. Por eles transcorre atualmente
o canal com o mesmo nome.
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que adentrassem o Sinai. A partir daquele momento, seus pés deveriam
marchar atravessando aquele deserto em que os deuses pareciam
abandoná-los à própria sorte. Desse instante em diante, haveria que
racionar as provisões e, principalmente, a água, que, naquela terra, era
tão valiosa quanto o ouro de suas minas.
Que volúvel pode ser a sina dos homens, mudando, às vezes, por
fatos puramente casuais, embora o acaso seja, para alguns, outra brin-
cadeira dos deuses. Bem que poderia ter sido isso o que aconteceu
naquele dia com Nemenhat, enquanto se protegia, junto a seus compa-
nheiros, do calor do meio-dia à sombra de toldos porque já tinha sido
acaso que nesse dia os arqueiros núbios decidissem escolher o lugar
onde Nemenhat descansava para fazer seus treinos diários. Estes
arqueiros, tão antigos como o próprio exército no Egito, eram extre-
mamente orgulhosos e gostavam de fazer constantes exibições diante
do resto da tropa. Assim, após uma exaustiva marcha iniciada ao ama-
nhecer, sempre carregando seus arcos de curva dupla e com suas alja-
vas ao ombro, aproveitavam o descanso do exército durante as horas de
maior calor para praticar tiro ao alvo, desprezando o sol abrasador do
deserto, que fazia com que o ar que os rodeava parecesse a respiração
sufocante de mil fornos.
Altivos, olharam de soslaio os soldados abrigados nas sombras
improvisadas, disparando, indiferentes, suas flechas nos alvos distantes.
Seus corpos escuros, cobertos pelo suor, brilhavam, ressaltando os
contornos musculosos de seus membros raspados.
Atiravam uma vez depois da outra sem nem mirar os alvos, come-
morando isso diante do resto da tropa.
Alguns dos soldados que descansavam na sombra os censuraram
por sua presunção.
— Louve Montu* para que guie meu braço certeiro na batalha —
respondeu, orgulhoso, um dos arqueiros. — Só assim poderá salvar sua
vida miserável.
Os soldados vaiaram, enquanto os núbios riam da piada.
— Teremos sorte se não acertar na gente — disse alguém, fazendo
o resto do pessoal prorromper em gargalhadas.
U m dos núbios cuspiu no chão com desprezo, enquanto olhava os
soldados e, sem tirar os olhos deles, disparou sua flecha, exibindo sua
habilidade.
Mas como desta vez não acertou o alvo provocou uma gargalhada
geral.
— Companheiros, ele tem razão, vamos já venerar Montu, ou tere-
mos os dias contados — alguém no grupo disse, provocando, de novo,
mais gargalhadas.
Nemenhat, recostado sobre os cotovelos, embaixo do toldo, obser-
vava interessado a cena. As bravatas entre uns e outros não o preo-
cupavam; no entanto, sentia curiosidade pelos arcos que os núbios
manejavam. Eram de curva dupla e um pouco maiores que o que ele
costumava utilizar. Então sentiu vontade de experimentar um.
— Vocês não passam de carne para combate — Nemenhat ouviu
que um arqueiro dizia. — Talvez nem desperdice minhas flechas com
vocês.
Os soldados encarnaram de novo.
— É melhor mesmo; assim, evitaremos que nos acerte no traseiro.
Novas risadas fizeram coro ao comentário.
com respeito por todos eles. Mas, além de tudo, Nemenhat possuía
uma qualidade a mais, uma virtude que ninguém mais ali detinha e que
o fazia verdadeiramente magnífico: sua potência. Somente os escolhi-
dos podiam dispor de uma potência semelhante à sua, pois Nemenhat
lançava a flecha com uma força descomunal. Ninguém, desde os tem-
pos de Amenhotep II, duzentos anos atrás, lembrava algo parecido.
Inclusive, como já fizera em seu tempo o faraó atleta, Nemenhat tam-
bém disparou sobre alvos feitos por grossas pranchas de cobre,
atravessando-as, emulando, assim, o antigo deus.
— Jamais vi ninguém atirar assim! — exclamava Aja, agitado,
enquanto lhe dava palmadas nas costas. — Os deuses nos sorriem, ao
nos mandar alguém como você. Quer sinal mais claro que este? Eles
estão com a gente.
Nemenhat se limitava a sorrir e agradecer os cumprimentos que
todo mundo lhe fazia, disposto a tirar proveito da oportunidade que ha-
via se apresentado. Agora tinha esperanças concretas de sair bem daque-
la aventura a que obscuros interesses tinham-no empurrado.
Logo seu nome se tornou famoso no pequeno universo que cons-
tituía o exército de Ramsés em campanha e, assim, quando marchava
junto com seus companheiros nos treinos de rotina, os soldados de
infantaria iam vê-lo atirar, entusiasmados.
Rá parecia ter se fixado naquele jovem proscrito, projetando sobre
ele seus raios divinos. Senão, como entender os acasos que o destino
quis que acontecessem?
Embora, para qualquer egípcio devoto, aquilo não passasse de mais
uma manifestação do poder ilimitado do deus solar, inclusive Nemenhat,
algum tempo depois, teve que considerar a questão, frente ao que lhe
aconteceu.
Uma tarde, quando as tropas finalmente pararam após uma nova
jornada de marcha, Nemenhat teve uma visita inesperada. Estava
estendido sobre uma manta, com os cotovelos apoiados no chão,
observando distraidamente como alguns homens se aplicavam na tare-
fa de acender as primeiras fogueiras, quando um dos carros do faraó
passou como um meteoro junto a ele, indo parar u m pouco mais
adiante, perto de um grupo de oficiais. Nemenhat olhou com curiosi-
dade, e viu como os oficiais faziam sinais ao cocheiro, em sua direção.
Este virou o carro e se aproximou lentamente.
— Você é Nemenhat, que dizem ser Akheprure* reencarnado? —
ouviu que lhe perguntava do carro alguém com vestes próprias da rea-
leza.
Nemenhat se levantou de imediato, surpreso por visita tão impor-
tante, mal conseguindo responder afirmativamente a primeira parte da
pergunta, pois era a primeira vez que ouvia o nome de Akheprure.
— Os deuses querem que você seja a solução de meus problemas
— continuou o cocheiro. — Se for assim, farei oferendas generosas a
eles.
Nemenhat observou-o muito sério, embora, interiormente, o
estranho o deixasse muito curioso. Falava com certo artificialismo,
embora seu tom fosse implícito. Estava acostumado a ser obedecido, e
isso o fazia adotar uma atitude que parecia ser natural nele.
Ao ver Nemenhat olhando-o como a uma estátua, fez um sinal com
o chicote, apontando a boléia do carro.
— Vamos, suba, ou a noite já vai cair, e não desejo esperar a manhã
para averiguar isso.
* Deus de origem síria, sob cuja tutela lutavam os soldados dos carros.
Parahirenemef permaneceu um momento em silêncio, acariciando
o queixo.
— Vamos ver agora com o carro andando — disse-lhe, subindo
para a boléia. — Vai ver que é muito diferente atirar de uma biga em
grande velocidade. Às vezes, você fica suspenso no ar enquanto atira.
Vou fazer uma demonstração.
O príncipe pôs os cavalos a galope e atou as rédeas na cintura.
Depois pegou seu arco e várias setas.
Nemenhat o observou com interesse. O arco era de cornos de órix,
com uma peça de madeira no centro que os unia, e parecia muito
robusto. Parahirenemef apontou para a roda e disparou sucessivamente
suas flechas, enquanto o carro não parava de dar saltos. Quando se
aproximaram, Nemenhat viu que as setas haviam acertado na mosca,
embora estivessem muito separadas.
— Você vai ver, não é nada fácil atirar do carro a toda velocidade.
Tente agora.
O príncipe botou de novo os cavalos para correr e, n u m certo
momento, ordenou que Nemenhat disparasse.
Este notou como seu equilíbrio se tornava instável quando deixava
de se segurar na boléia e seu corpo se movia descontroladamente.
Mesmo assim, lançou suas setas tão rápido como pôde.
— Não está mal — disse o príncipe ao se aproximar de novo do
alvo. Não acertou no centro, mas agrupou as setas. Com um pouco de
prática, vai melhorar. Quando se acostumar com os movimentos da
biga, terá maior precisão — continuou, sorrindo. — Pelo menos é isso
que espero, pois minha vida vai estar em suas mãos.
Já estava escuro quando o príncipe entrou no pavilhão real. Ali se
encontravam as tendas do deus e as do príncipe e generais que estavam
em campanha. Os toldos exibiam os estandartes próprios da categoria,
e se via uma grande atividade ao redor deles.
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Nemenhat ainda não entendia por que se encontrava ali, e nin-
guém, pelo visto, parecia disposto a lhe explicar, e m b o r a soubesse
obviamente qual ia ser sua nova obrigação.
S u r p r e e n d e u - s e ao ver as insígnias que representavam Reshep
junto à entrada. O deus tinha o aspecto de u m sírio com o tradicional
nemes* egípcio e uma gazela no lugar do uraeus** na testa. Estranho,
sem dúvida, para todo aquele que não estivesse acostumado à vida cas-
trense, pois a maioria dos oficiais tinha à porta da tenda a mesma ima-
gem. Reshep era, por assim dizer, o patrono dos soldados de carro.
Rezavam para ele pedindo sua proteção durante a batalha, e invocavam
seu poder para lhes dar forças suficientes nela.
"Algo, sem dúvida, mudou no Egito quando u m deus de procedên-
cia síria tem semelhante ascendência", pensou Nemenhat. "Como se
não houvesse deuses suficientes no Egito!" Inclusive a deusa pagã do
amor e da guerra, Astarté, era visível no acampamento. C o n f o r m e
soube mais tarde, era a encarregada de proteger o equipamento dos
cavalos reais. Incrível!
— D ê de comer e de beber a eles. Sem dúvida, hoje eles merecem
— disse o príncipe, descendo de um salto, e entregando as rédeas a u m
cavalariço.
Depois, aproximou-se de seus cavalos e pôs a cabeça entre as cabeças
deles, enquanto lhes murmurava todo tipo de palavras carinhosas.
— Seus n o m e s são Set e Montu — disse, a p r o x i m a n d o - s e de
Nemenhat. — Ambos têm coração de guerreiro, como os deuses que
lhes deram os nomes. E garanto que são capazes de ler até meu pensa-
mento.
* Geb foi separado de sua esposa N u t por ordem de Rá, que colocou Shu entre eles
para que nunca pudessem estar juntos. Por esse motivo, Geb é representado c o m o
um h o m e m deitado com o falo ereto, que tenta por todos os meios se unir com sua
esposa Nut, a abóbada celeste.
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— Veja, ontem, enquanto fazíamos manobras, Rehire, meu acom-
panhante habitual, caiu do carro e deu tanto azar que quebrou u m
braço. Embora não seja nada grave, vai levar, no mínimo, um mês para
voltar a movê-lo. Imagine, um mês! A batalha está próxima e eu pre-
cisava de outro homem para poder substituí-lo, de modo que alguém
me falou de você. Este é o motivo de sua presença aqui. Será difícil
substituir o bom Rehire, pois ele não só atirava com o arco, como tam-
bém tinha habilidade com a lança e até com o bumerangue.
— Eu também tenho, alteza.
— Sério? Bem, vai ver, no final das contas, devo agradecer aos deu-
ses por não terem me abandonado em semelhante transe — suspirou,
enquanto oferecia uma taça de vinho.
Nemenhat pegou e bebeu um pouco, enquanto o príncipe esvazia-
va a dele em um gole só.
— Ah — disse, lambendo-se e enchendo-a de novo. — Não gosta
de vinho? — perguntou surpreso, ao ver os pequenos goles de
Nemenhat.
— Seu vinho é magnífico, meu príncipe, mas, se não se incomo-
dar, preferia beber água. Mantém minha vista mais clara.
— Ha, ha, ha! Sua vista é estupenda, disso não há dúvida. Vamos
mantê-la assim, então. Dela depende boa parte de nosso sucesso. Está
com fome?
— Já faz quase um mês, alteza.
O príncipe desatou a rir.
— Verdade? — disse, suportando a duras penas as gargalhadas. —
Não me diga mais nada. Lentilha carunchada banhada em água com
cebolas que, ultimamente, também têm bichos. Acertei?
— Em cheio, alte...
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— Deixe de altezas e de frescuras; quando estamos sozinhos, me
chame pelo meu nome mesmo. Odeio protocolos.
— Como quiser.
— Gosta de filhotes de pombos?
— Só provei uma vez, e estavam duros como pedras.
O príncipe deu outra gargalhada.
— Na certa lhe deram um filhote de urubu. Os que ofereço a você
são macios e deliciosos, pode provar.
Parahirenemef e Nemenhat jantaram com pompa. O jovem rela-
xou um pouco e participou um pouco mais das constantes brincadeiras
do príncipe. Mas nem por isso deixou de estar surpreso por se encon-
trar ali naquela noite.
— Mas, me diga — disse o príncipe, falando de novo — , como
você foi parar com os arqueiros núbios? Gostaria de saber tudo a seu
respeito.
Nemenhat se retraiu prudentemente, ficou na defensiva de modo
imperceptível e inventou uma história em que sua família era uma das
tantas que trabalham as terras dos templos e na qual ele tinha sido
recrutado à força.
— São tempos difíceis, em que todos os braços são poucos para a
defesa de nossa terra, mas, se nos sairmos bem, o deus, meu pai,
recompensará você.
Depois esticou os braços e bocejou.
— Esta noite estou um pouco cansado e vou me retirar logo para dor-
mir. Aconselho que você faça o mesmo, pois o amanhecer nos surpreen-
derá já andando de carro. Passaremos o dia praticando até você se acostu-
mar, pois não dispomos de muito tempo. Parece que o inimigo não está
longe e devemos estar preparados. Durma perto da entrada.
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Nemenhat e o príncipe passaram o dia seguinte treinando com o
carro. Atiraram com o arco, com a lança e inclusive com o bumeran-
gue. Fizeram todas as manobras próprias do combate, uma vez depois
da outra, até que Nemenhat deu mostras de ter se acostumado com os
movimentos da biga. Nemenhat exibiu sua incrível pontaria com todos
os tipos de armas, entre as exclamações de alegria de um Parahirenemef
que se entregava à sua tarefa com grande entusiasmo. Nemenhat nunca
tinha visto ninguém manejar os cavalos de maneira semelhante. O
príncipe atava as rédeas na cintura enquanto atirava e sussurrava para
os cavalos palavras estranhas, que eles pareciam compreender, pois
faziam o que o príncipe desejava em cada momento. Nemenhat achou
que aquilo fosse magia.
— Eles lêem meu pensamento — dizia Parahirenemef, agitado. —
Pode acreditar, eles sempre sabem o que têm que fazer.
Quando, bem entrada a tarde, voltaram ao acampamento, Nemenhat
mal podia se mexer para descer do carro. Sentia que doíam todos os
ossos, e que seria incapaz de chegar por si mesmo à tenda.
— Você possui o vigor de User e a habilidade de Seped* — gri-
tava o príncipe, exultante. — Acerta tudo o que quer, e a distâncias
incríveis.
Os outros oficiais de carros se aproximaram para felicitá-lo,
enquanto desembarcavam.
— Pode acreditar, nosso pai Amon nos mandou uma bênção com
este homem. É sem dúvida um sinal do Oculto**.
Nemenhat desceu da carruagem mostrando claramente que cada
passo era um martírio para seu corpo ferido.
* O deus Rá era possuidor de catorze ka, uma delas era User, o vigor, e o u t r o ,
Seped, a habilidade.
O deus Amon também era conhecido por este nome.
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Todos os presentes riram ao vê-lo caminhar com tal dificuldade.
— Não sejam cruéis com ele — exclamou o príncipe, muito ale-
gre. — E não contem a meu pai sobre suas habilidades, senão ele o tira
de mim.
Naquela noite, Nemenhat mal pôde jantar, pois até mastigar lhe
custava. Quando se deitou em sua esteira, caiu num sono tão profundo
que, quando o acordaram, nem tinha mudado de posição.
Nos dias seguintes, Nemenhat se acostumou paulatinamente ao
carro, aprendendo a percorrer o terreno, para manter o equilíbrio
estável e disparar as flechas como se não estivessem em movimento.
Inclusive os cavalos pareceram aceitá-lo de bom grado, e não tiveram
receio dele em nenhum momento.
O príncipe já não tinha dúvidas de que possuía o melhor acompa-
nhante que se poderia desejar, e não parava de elogiá-lo em público por
isso.
Nemenhat, por sua vez, adquiriu um grande carinho p o r
Parahirenemef, que se mostrava cheio de consideração por ele a todo
momento. Em poucos dias, se criou entre eles um vínculo que de
forma alguma era o de um príncipe e seu lacaio, e que Nemenhat com-
preendeu muito bem. Dentro daquela pequena caixa puxada por dois
briosos cavalos, não havia estirpe que valesse, porque a vida do prínci-
pe dependia muito da habilidade que Nemenhat poderia ter para
protegê-lo ou para eliminar seus inimigos. Os dois formavam uma
equipe que se sairia vitoriosa ou se entregaria sem compaixão.
Conhecer Parahirenemef tampouco foi difícil, pois ele se mostrava
verdadeiro o tempo todo.
Embora o príncipe fosse mais velho que ele, mantinha-se em boa
forma, pois era grande entusiasta dos esportes, da vida ao ar livre e,
principalmente, da caça. Gostava de emular seus augustos ancestrais,
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entrando no deserto para caçar leões, e não precisamente para ganhar
fama na corte. Simplesmente, sua natureza apaixonada vibrava com
semelhante atividade, produzindo-lhe o mais embriagante dos efeitos.
Por outro lado, em seguida o príncipe lhe deu mostras de sua des-
medida inclinação para a bebida, e especificamente pelo shedeh, u m
fortíssimo licor capaz de nublar o entendimento mais desperto. Não
era estranho se deparar com Parahirenemef, quase de manhã, com a
cabeça sobre os braços apoiados em alguma mesa, depois de ter bebi-
do até dizer chega. No entanto, quando subia de novo no carro, bem
cedo, estava de pé como sempre, sem que nada fizesse suspeitar dos
excessos de toda uma noite.
Diante da sincera amizade que o príncipe lhe demonstrava a cada
dia, Nemenhat começou a sentir certo desassossego. Remoía-se por ver
o coração de Parahirenemef aberto, sem desconfiança, e ele, por sua vez,
não estava sendo sincero com o príncipe. O terrível segredo que parecia
acompanhá-lo durante toda a sua vida não havia causado mais que des-
graças a seu redor e, pelo visto, continuaria causando talvez por toda a
eternidade de sua alma.
Numa noite, depois de outra dura jornada de caminhar, Nemenhat
também decidiu abrir sua alma ao príncipe, para assim lhe retribuir,
mostrando-lhe sua lealdade.
Parahirenemef ficou um tanto surpreso no começo, mas, diante dos
encarecidos pedidos de seu acompanhante, escutou sua história com
atenção do começo ao fim. Quando Nemenhat terminou, apenas podia
olhar os olhos do príncipe, tamanha era a vergonha que sentia. Em segui-
da, todo o desespero que permanecia escondido no mais profundo de
seu ser aflorou, incontrolável, como faziam as cheias do Nilo.
Após ouvi-lo, o príncipe permaneceu em silêncio, com sua taça
e n t r e as mãos, o b s e r v a n d o - o , atônito. Aquilo era, n o m í n i m o , a
melhor história que jamais tinham lhe contado, e estava fascinado.
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— Me perdoe, príncipe, por ter mentido. Sem dúvida, não sou
merecedor de sua consideração, mas tenho medo da sorte de minha
esposa e de meu pai.
— Puxa, que história! — exclamou, encantado, o príncipe. —
Não há dúvida de que seu pai vivia rodeado de bons amigos... Ankh.
— Conhece Ankh?
— Se conheço? Naturalmente. E um dos répteis mais vis que se
pode encontrar em Mênfis. Sabia que aspira ao título de Grande Chefe
dos Artesãos?
— Sério?
Parahirenemef confirmou, enquanto levava a taça aos lábios.
— É como disse a você — falou, estalando a língua com deleite.
— E para conseguir isso, seria capaz de vender ao melhor preço seus
próprios futuros filhos. Tem muitas ligações na alta sociedade menfita,
embora eu me abstenha de ir a suas festas. Não há dúvida de que se
trata de um tipo muito esperto, pois, garanto, não é nada fácil para
alguém de tão obscura ascendência como a dele chegar aos postos que
chegou na Administração.
— Compreendo.
— Não tenho tanta certeza, meu amigo. Você não conhece o tipo
de gente que prolifera lá dentro. Burocratas convictos que não param
de fazer intrigas para tratar de negócios do tipo mais obscuro. Todo
aquele que ostenta um cargo que se preza pertence a tal ou qual famí-
lia cujos antepassados foram vizires, monarcas, arquitetos reais ou Ptah
sabe-se lá o quê. Todos juntos detêm o poder do dia-a-dia nesta terra.
Garanto, são como uma praga para o Egito.
— E o deus conhece tudo isso?
— Muito bem — disse Parahirenemef, bebendo de novo. — Mas
faz caso de mim quando digo que está de mãos atadas. Para desmontar
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o sistema deste país precisaríamos de uma empresa quase que im-
possível. Estão longe os tempos em que o faraó era o senhor de todos
os que habitavam a terra de Kemet.
— Mas ele é um grande guerreiro, seu exército o obedeceria sem
hesitação, poderia...
— Não poderia fazer mais do que já faz, acredite. Talvez estejamos
diante do último grande faraó na história de nosso povo.
— Não entendo, ele ostenta o poder, a força...
— O poder? — Parahirenemef riu. — Como você sabe pouco
sobre a realidade política do Egito. Meu pai é poderoso, não é por nada
que é faraó. Mas o autêntico poder não se encontra na realeza, mas nos
templos. É um poder formidável, e meu pai sabe muito bem disso; não
é à toa que mantém boas relações com eles.
— Não consigo acreditar que o faraó se dobre diante do clero.
— Não se trata de se dobrar, mas de respeitar seus interesses. Sabia
que o templo de Amon controla a maior parte das terras do Egito? É
um poder que foi alimentado através dos séculos, e meu pai não pode
acabar com ele.
Nemenhat fez um gesto de incredulidade.
— Faz séculos, houve um deus que quis enfrentá-los — continuou
o príncipe, ao ver a cara que ele fazia. — Era um faraó um tanto mís-
tico, que elevou Aton como deus nacional, acima do todo poderoso
Amon. Inclusive mudou sua capital para Amarna, para estar longe de
sua influência. Mas foi tudo em vão. Os sacerdotes de Karnak se uti-
lizaram de todo tipo de estratégias para acabar com ele. Quando o
faraó Akhenaton morreu, o sangue de seus seguidores cobriu o chão de
seus templos. Foi uma perseguição implacável, garanto, e depois Amon
voltou a se transformar no primeiro deus nacional, e seu clero não dei-
xou de enriquecer desde então. Ouça, a batalha não está longe. Se for
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à tenda de meu pai, vai encontrar algum de seus profetas perambulan-
do por ali. Sem uma palavra, lembram ao faraó que esperam ser gene-
rosamente recompensados com parte dos despojos dos vencidos.
— É sombrio o quadro que você pinta.
— Não mais do que era um século atrás. Como disse, meu pai sabe
lidar com eles, não interfere em seus assuntos e, em troca, Amon o
abençoa em toda parte. No final das contas, o país necessita de sua
figura para que não se desfaça o equilíbrio que os deuses primitivos da
Terra Negra proporcionam.
Nemenhat moveu a cabeça, confirmando que o entendia.
— Nunca pensei que fosse tão complicado para o faraó manter seu
poder.
— Pois está vendo que é assim, e a nuvem de burocratas de que eu
falava antes não o ajuda em nada. Enfim, Nemenhat — disse o prínci-
pe, esticando os braços e sorrindo para ele — , espero que meu irmão
mais velho viva por muitos anos, para me economizar o sacrifício de
subir ao trono. Garanto que não tenho o menor interesse.
Houve um momento de silêncio, enquanto o príncipe servia mais
bebida.
— Gostaria de divertir esta noite? — perguntou de repente a
Nemenhat. — Se quiser, posso lhe arranjar uma mulher.
Nemenhat olhou-o e viu como os olhos do príncipe brilhavam de
concupiscência.
— Meu príncipe, você me deixa honrado, mas não estou com
cabeça para tais comemorações. Só ardo de desejo de saber dos meus,
de minha esposa... Não há noite que não passe pensando nela.
— Você a ama?
— Não pensei que pudesse amá-la tanto.
— E ela ama você?
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depois com novas ordens a seus destinos. Tais soldados eram os únicos
que montavam a cavalo no exército egípcio, pois este não utilizava a cava-
laria como arma, apenas os esquadrões de carros.
Não restava muito tempo a Ramsés, pois sabia da proximidade da
frota inimiga às costas do Egito. Devia encontrar as tropas invasoras o
quanto antes, se queria ter tempo suficiente para se dirigir à desembo-
cadura do Nilo e organizar a defesa contra os navios que o ameaçavam
por mar. Por isso se encontrava um tanto nervoso e mais irritado que o
normal. Não serviria de nada o esforço a que tinha submetido o exér-
cito, se não voltasse em tempo ao Delta.
— Meu pai está absolutamente insuportável — protestou
Parahirenemef, acomodando-se sobre alguns almofadões. — Acha que
o inimigo foi tragado pela terra e se sente angustiado. E, quando o
faraó se angustia, garanto que é melhor não andar por perto.
— Pois os soldados parecem convencidos de que estamos muito
perto.
— Certo, mas eles desconhecem que, para ganhar esta guerra,
teremos que passar por duas batalhas. O faraó calculou tudo, e infeliz-
mente não pode mudar seus planos.
Nemenhat concordou em silêncio.
— Caramba — continuou o príncipe — , sempre acontece a
mesma coisa. Quando menos se espera, um arauto aparece à porta da
tenda me convocando a ir ao conselho urgentemente, para me prepa-
rar para a batalha.
— Como vai se livrar?
— Isso meu pai vai decidir. É um grande estrategista, acredite. Quan-
do os batedores localizarem o inimigo, o faraó irá espiar. Situará nosso
exército de maneira adequada e combaterá onde for mais conveniente.
— E ele participa da luta?
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— Se participa?! Às vezes, torna-se extremamente difícil segui-lo e
protegê-lo. Luta como uma fera. Não é por nada que é o "todo-pode-
roso grande em vitórias"*. Mas desta vez talvez se preserve, pois o des-
tino de nosso povo depende em grande parte dele. Deve conservar a
vida para poder continuar a luta em nosso território.
Nemenhat moveu a cabeça de novo, indicando que entendia.
— Esqueci que para você será a primeira batalha. Quando botar
meus cavalos para correr, o nervoso vai passar.
— Não estou nervoso por isso — disse Nemenhat, demonstrando
sua calma natural. — Lutar não me dá medo.
— Claro — respondeu o príncipe, com uma gargalhada. — Eles é
que devem ter cuidado com seu arco. Já sei que são outros os temores
que consomem você.
Nemenhat o olhou, mudando de imediato sua expressão. Depois,
houve alguns instantes de silêncio em que ambos mantiveram o olhar
cheio de expectativa.
— Lembra a conversa que tivemos esses dias? Eu prometi tentar
averiguar alguma coisa a respeito de sua família — disse Parahirenemef,
levantando-se para servir o vinho em duas taças.
— Lembro — respondeu Nemenhat, sentindo como se formava
um nó no estômago.
— Tome — disse o príncipe, oferecendo-lhe uma taça.
— Sabe que não costumo beber — respondeu Nemenhat,
enquanto a pegava.
— Hoje beberemos juntos — prosseguiu Parahirenemef, desvian-
do o olhar. — Quero que compreenda — continuou — que estamos
longe do Egito e nada sei do que pode acontecer, embora esteja intei-
rado do que ocorreu.