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O ANDARILHO...

Adalberto Rigueira Viana

Certa vez, um homem decidiu andar pelo mundo, sem destino certo. Sua
intenção era a de vagar como um anacoreta, sem lugar determinado e sem compromisso
com o tempo.
Ao sair do lugarejo onde morava, encontrou-se com um ancião que, ouvindo a
sua história, recomendou-lhe passar por quatro cidades as quais denominou de cidade da
Calúnia, cidade de Ambição, cidade dos Prazeres e cidade da Esprança.
O andarilho então, perguntou-lhe qual era a melhor delas e como era a vida em
cada uma delas. O ancião, pela sua sabedoria apenas lhe respondeu: “vá e passe por
todas elas e, quando voltar algum dia, estarei aqui para receber notícias e ouvir as suas
histórias pois, somente você poderá avaliar e sentir as coisas que encontrar.
Após despedir-se carinhosamente do ancião e agradecer-lhe pela ajuda, o
andarilho iniciou a sua longa e incerta caminhada. No princípio muitas dúvidas
tomaram-lhe de assalto, momentos de angústia e outros de curiosidade se sucederam.
Decidiu então, passar primeiramente pela cidade da Calúnia e lá chegando, percebeu
que todos andavam sós e que não havia nos olhares das pessoas o mínimo sinal de que
ali seria bem recebido.
Instalou-se nos fundos de um velho e abandonado armazém com o pouco que
transportava, um pequeno cobertor e alguns trastes e ali, dormiu tranqüilamente.
No outro dia bem cedo, saiu e foi para o centro daquela cidade procurando fazer
amizade com algum morador e, por acaso, encontrou-se com um homem bem vestido
que morava em uma casa suntuosa. Enquanto conversavam, o homem cortou o sentido
da conversa e apontou para alguém que passava dizendo... está vendo aquele ali? É o
maior ladrão desta cidade e além disso, sua mulher não o respeita. Aquele outro é pior
ainda, pois, além de tirar dos pobres, manda exterminar aqueles que não comungam
com as suas atitudes e idéias.
Todos os dias o andarilho conversava com pessoas diferentes e na maioria das
vezes participava de um simples monólogo, já que aqueles com quem se encontrava não
lhe permitiam emitir a sua própria opinião. Somente eles falavam e como sempre, muito
mal dos outros.
Com o passar do tempo, já bastante conhecido de todos, também aderiu ao
“modus vivendis” do lugar e já fazia as suas imprecações contra todos, inclusive, contra
aqueles que ali o receberam.
Depois de alguns meses por ali, lembrou-se do ancião e decidiu sair vagando
novamente, desta vez, rumo à cidade da Ambição. Após uma caminhada de vários dias
por caminhos cheios de rosas e imensos campos cobertos de relva, eis que avista aquela
que seria a sua próxima experiência, a Cidade da Ambição... Que lugar bonito, que
lugar maravilhoso e deslumbrante. Ruas iluminadas, calçamento e prédios dos mais
diversos estilos arquitetônicos.
Cansado e faminto, bateu à porta de um casa rodeada por altos e inexpugnáveis
muros, toda decorada de bronze e do material mais sofisticado e caro que ele imaginava
um dia conhecer. Para chegar mais próximo teve que correr para não ser atacado por
vários e ferozes cães que faziam guarda ao palacete. Com o latido dos cães alguém
apareceu na varanda e, ao ver aquele homem mal trajado, foi logo lhe perguntando, o
que deseja aqui? Quem autorizou você mendigo, a entrar no terreno de um dos homens
mais ricos e poderosos da região?

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O andarilho ainda muito assustado com a aventura que tivera com os cães,
apenas olhou e após uma pequena pausa para meditação, respondeu... não vim aqui a
mando de ninguém, sou apenas um homem simples que quer conhecer as mazelas do
mundo e neste momento, gostaria de receber apenas um pedaço de pão e um copo com
um pouco d`água para saciar a minha fome e mitigar a minha sede.
Ouvindo isso, o dono da casa ficou vermelho e enfurecido. De seus olhos saiam
chispas que penetraram no íntimo daquele infeliz que ali se encontrava solitário e sem
forças para tomar qualquer iniciativa. Quase transbordando de ódio, o homem lhe disse:
aqui não temos comida e nem água para vagabundos, o que nos pertence não dividimos,
queremos sim, sempre mais não importando os meios para conseguirmos o nosso
intento. Finalizando disse-lhe... retire-se imediatamente daqui, seu verme andrajoso e
pestilento...
Com os olhos molhados de lágrimas e com o coração em pedaços, o andarilho
virou-se e foi saindo vagarosamente, quando novamente os cães bravios, atiçados pelo
dono da casa o fizeram sair em desabalada carreira.
Após passadas algumas horas e já refeito do susto e das humilhações, percebeu
que ali não poderia permanecer por muito mais tempo, já que ouvira coisas que
certamente ouviria também de muitos outros que ali habitavam.
Desanimado, exausto e decepcionado, passou a meditar sobre o que lhe
acontecera naquele curto espaço de tempo, e, sem pestanejar, reuniu as suas poucas
coisas e saiu daquela cidade que sequer lhe recebera.
Tropeçando, caindo e levantando-se com dificuldade, pois, há vários dias não se
alimentava, seguiu por uma estrada que a princípio lhe parecera infindável. Quando
parava, dormia à sombra de algumas árvores frondosas para refazer as suas energias já
debilitadas. Todos os dias ao acordar, sempre continuava a sua peregrinação e, qual não
foi a sua grande e inefável surpresa. A estrada ia se abrindo e tudo o que via em sua
volta enchia-lhe de satisfação e que, de certa forma, serviu-lhe de alento e até como
fonte inspiradora para continuar em frente.
Ao chegar àquela cidade que estava próxima, viu mulheres lindas, vestidas de
modo extravagante, algumas seminúas que, mesmo vendo-o naqueles trajes
convidavam-no para fazer-lhes companhia. A bebida jorrava, o dinheiro era farto e os
prazeres os mais tentadores. No primeiro momento sentiu o impacto e às vezes não
acreditava naquilo que estava vendo, quando surge à sua frente uma linda donzela de
cor amorenada pelo sol que brilhava, cabelos pretos, grandes e amendoados olhos
verdes que, pegando-lhe pelo braço, convidou-lhe para entrar em sua casa.
Tomado de coragem acedeu a tão gentil e engenhoso convite e já lá dentro, foi
coberto das maiores atenções por parte daquela sedutora mulher. Após um banho com
sais perfumados, recebeu roupas novas e quando saia daquele aposento a ele destinado,
qual não foi a sua nova e agradável surpresa. No centro da sala uma enorme mesa com
os mais diversos tipos de iguarias, frutos de toda espécie, pato assado, carneiro e outras
tantas qualidades de carne animal. O vinho espumante ficava depositado em enormes e
decorados tonéis, enquanto que à mesa foram colocadas várias jarras com esse precioso
líquido.
Ainda bastante desconfiado, o andarilho não tomava iniciativa apesar de estar
ávido para sentar-se àquela mesa e satisfazer-se de tudo que lhe fosse possível.
Convidado e após fartar-se do saboroso manjar em companhia de tão atraente mulher,
ficaram até altas horas conversando até que o sono chegasse para irem dormir.
Isso acontecendo, ela, já sob o efeito de boa quantidade de vinho, enlaçou-o com
os braços e levou-o até a sua cama onde passaram uma longa e inebriante noite. Ele, ao

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acordar, olhou para o lado e viu aqueles lindos olhos a lhe fitarem, enquanto mãos
suaves acariciavam o seu peito desnudo.
Até aquele momento, apesar de haver participado intensamente de todas as
delícias que lhe foram oferecidas, não entendia bem porque aquilo estava acontecendo
consigo.
Passaram-se dias e meses e o andarilho não se preocupava com mais nada. Tinha
tudo o que queria e não gastava nada, pelo contrário, tinha ao seu lado uma mulher
bonita e cheirosa, comida farta e até dinheiro para guardar.
Numa noite igual a muitas que tivera em companhia daquela mundana, enquanto
ela dormia ele começou a meditar e mais uma vez, veio-lhe à lembrança a figura
daquele ancião que lhe indicara quatro caminhos diferentes. De manhãzinha, levantou-
se, arrumou as suas coisas e, sem que a sua amada percebesse, partiu dali deixando para
trás aquele imenso manancial de prazeres.
Durante dias e noites seguidas caminhou sem rumo certo por estradas tortuosas,
algumas cercadas de imensos precipícios e obstáculos, outras circundadas por enormes
montanhas e perigosas cavernas. Enfrentou as maiores dificuldades e por várias vezes
desejou voltar à cidade dos Prazeres. Porém, nem mesmo ele entendia, parecia-lhe ouvir
constantemente uma voz que lhe animava dizendo-lhe... não retroceda nunca... vá em
frente! Tenha forças porque em breve estará entrando em uma nova e acolhedora
cidade. Lutava contra tudo e a cada vez que as forças novamente lhe faltavam,
encontrava outra mais forte que o fazia deslizar-se rumo ao desconhecido.
Certa manhã, após ter andado uma distância que lhe parecia sem fim, eis que de
repente, surge à sua frente uma pequenina e bela cidade que reconheceu. Estava
chegando à cidade da Esperança. Rapidamente, como um filme, passaram-se pela sua
mente todas as cenas vividas desde que deixara a sua vilazinha para percorrer o mundo.
Ficou deveras surpreso.
Naquela cidade as pessoas que passavam cumprimentavam-lhe sorridentes;
algumas ofereciam-lhe ajuda e até carregaram os seus poucos pertences. Ali não viu
nenhum palacete e não ouviu ninguém proferir uma só palavra de desprezo. As
mulheres e os homens se respeitavam e não viu nenhuma bebida além da água, que
escorria pelas encostas próximas da cidade. Ficou como que estivesse sonhando e
quando já se preparava para arranjar um cantinho onde pudesse relaxar os músculos,
ouviu uma voz suave e ao virar-se, viu-se de frente para uma encantadora criança que
lhe disse: tio, vamos para a minha casa, lá tem um quartinho onde você poderá ficar
sossegado e tranqüilo...
O andarilho emocionado, levantou a criança e deu-lhe beijos na face e,
atendendo a tão inocente e sincero convite, seguiu em direção a uma acolhedora casinha
à entrada da cidade.
Quando lá chegaram, foi recebido por um casal de meia idade que após
cumprimentar-lhe foi logo tomando as providências para acolhê-lo. Conversaram
bastante, ofereceram-lhe um banho e deram-lhe comida simples para que pudesse
renovar as suas forças.
Depois de algum tempo, enquanto a criança e a mãe foram dormir, começou a
indagar algumas coisas àquele homem que tão gentilmente lhe acolhera. Ouviu que
naquele lugar as coisas eram muito difíceis de serem conseguidas, que ali não havia
lugar para as injustiças, que todos procuravam ajudar-se mutuamente e que muitos
sacrifícios seriam necessários para que ali pudesse viver.
Foram dormir. De manhã recebeu algumas orientações e saiu para procurar
alguma coisa para fazer e, chegando a noite, retornou cheio de novidades que
minuciosamente descreveu ao bom e novo amigo.

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Ficou naquela cidade por vários meses e anos, satisfeito e ao mesmo tempo
ansioso para voltar à sua terra natal.
Quando já se decidira a voltar, certa noite saiu para um passeio quando, sem
entender, viu à sua frente um velho barbado, sujo e faminto, sentado à beira do
caminho. Aproximou-se dele que estava cabisbaixo e quando tocou-lhe as mãos nos
ombros, este levantou a cabeça olhando-o firme e demoradamente nos olhos. O
andarilho perplexo, arrepiou-se e um frio gelado cortou-lhe as entranhas e, naquele
momento saiu de seus lábios esta frase: “como é possível isso? Você não é aquele
ancião que indicou-me as quatro cidades pelas quais eu deveria passar? O que você está
fazendo aqui?
O ancião, com o olhar lânguido e com a voz cansada respondeu-lhe: também eu
estava procurando esta cidade, e depois de passar pelas três outras, aqui me encontro
muito feliz. Você sabe o que significa tudo isto? Então ouça meu prezado irmão... Deus
é infinito em sua sabedoria e, para que possamos chegar até Ele, várias vezes teremos
que morrer... Não a morte do corpo, mas a morte para a ambição sem sentido, para as
calúnias que tanto mal fazem aos outros e para os prazeres terrenos. Cada vez que
ultrapassamos tais tentações, estamos paradoxalmente, morrendo para viver.
O andarilho a tudo ouvia no silêncio mais profundo. Aquele ancião, um
verdadeiro Mestre Maçom, continuou com uma pergunta, a qual ele mesmo respondeu:
Não é realmente um paradoxo o que estou lhe dizendo? Entenda meu bom rapaz, o que
vale aqui são as coisas espirituais e não as materiais. Morrer para viver, significa que a
cada momento nos aproximamos mais d`Ele, esquecendo e repudiando as coisas que
dizem respeito à matéria. Após proferir essas palavras, sorriu para o andarilho e, antes
de dar um profundo suspiro e cair devagarinho, ainda lhe disse: ”meu filho, não volte
nunca para a sua cidade”, o seu lugar é aqui na Maçonaria... a Cidade da Esperança...
Que Deus lhe proteja e guarde.

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