Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Quando deu por si, Loki estava sendo arremessado por um buraco
no céu. O buraco fechou atrás dele como um olho que se cerra, e
ele caiu, aterrizando bruscamente num banco de areia fria.
Acordou no Deserto de Gobi.
As areias douradas rodopiavam ao seu redor, sacodidas por um
vento fantasmagórico. Contente por notar que, de alguma forma,
estava livre das algemas, ele arrancou a mordaça e cuspiu poeira.
Depois, sentou-se devagar, sentindo o peso que o tempo tinha
deixado em seu corpo, como se o preço por viajar com o Tesseract
fosse a gravidade dobrada ou triplicada.
Um cachorro latiu ao longe. Muito distante dali, havia um
acampamento modesto de tendas de couro.
Um punhado de pessoas se aproximou, suas feições sérias e
seus passos amortecidos pela areia. Todos eles estavam com
roupas tradicionais mongóis — e com expressões de confusão,
desconfiança e medo. Seus olhos investigavam Loki enquanto
estavam parados diante dele em silêncio.
Loki os encarou de volta por um momento, antes de saltar para
ficar de pé e fazer a única coisa que sabia fazer: exercer
dominação. Subindo numa pedra próxima, posicionou-se altivo.
Tomou a expressão focada de um deus todo poderoso.
— Eu sou Loki de Asgard — ele disse com as sobrancelhas muito
franzidas. — E carrego o fardo de um glorioso propósito! — Ele
sentiu as palavras reverberarem em suas entranhas. Sim, ele era
um vigarista, e orgulhoso de ser. Mas essas palavras não eram
enganação — eram a verdade mais verdadeira para ele.
Uma mulher com chapéu de pele disse:
— Quem é você? Por que veio a nossa casa?
Loki nunca escutara mongol antes, mas conseguia entender.
Afinal de contas, era um deus.
— Eu — ele tinha acabado de abrir a boca para responder
quando surgiu um som como o tinir de um vidro.
Ele virou a cabeça na direção e viu uma porta de luz aparecer no
ar. Três figuras vestidas no que pareciam ser uniformes militares
pretos passaram pelo retângulo brilhante. Loki pensou como
pareciam com aqueles agentes idiotas do FBI. Ele assistiu a um
deles se ajoelhar para observar o Tesseract, que brilhava, azul como
uma safira inestimável, contra a areia cintilante.
— Deixa para lá — ele disse à mulher com o chapéu de pele,
pulando da pedra e indo na direção do Tesseract. Não podia arriscar
perdê-lo mais uma vez. — Não toque nisso! — ele gritou com a
pessoa agachada.
Os três soldados ficaram paralisados por um segundo, mas então
se puseram, quase instantaneamente, numa organização ofensiva.
Suas armas, que lembravam bastões pretos, miravam Loki, e seus
corpos estavam tensos, prontos para um confronto.
Então uma nova porta translúcida cortou um retângulo brilhante
no ar, e uma mulher passou por ela. Vestia um uniforme similar, com
seu capacete preto irrompendo sobre a cabeça, mas ela não se
agachou ou recuou. Permaneceu altiva, sua pele escura iluminada
pelo sol do deserto.
— Parece ser uma violação padrão de sequência — ela disse.
Nas mãos, segurava um objeto retangular não muito diferente de um
Game Boy clássico. Ela apertou os olhos para enxergar algo nele.
— A ramificação está crescendo em taxa e inclinação estáveis —
acrescentou. — Variante identificada.
Loki inclinou a cabeça, enrugando a testa.
— Como é que é? — ele disse.
Mas a mulher não mostrou interesse em se explicar.
— Em nome da Autoridade de Variância Temporal — ela disse —,
eu o declaro preso por crimes contra a Linha do Tempo Sagrada.
As outras figuras uniformizadas ainda apontavam seus bastões
pretos para o peito de Loki, como se fossem armas de fogo. Atrás
deles, o céu do deserto ficava carregado de nuvens cor de carvão.
Loki teve a clara impressão de estar sendo desrespeitado, o que
sempre o deixava de mau humor.
— Mãos para cima — a mulher disse. — Você vem com a gente.
Os soldados atrás dela ativaram seus bastões estranhos. A ponta
de cada um deles brilhou âmbar. As armas emitiram um zunido
elétrico, como um motor se aquecendo.
— Desculpa — Loki disse, incapaz de esconder o desdém em sua
voz —, quem é “a gente”?
Eles não sabiam quem ele era? Era Loki. De Asgard. O vento
balançou sua longa capa verde como se concordasse com ele.
Mas a mulher se negou a responder à pergunta.
— Última chance, variante — ela disse, ativando sua própria
arma, que ficou com a ponta cilíndrica brilhando como um cigarro
aceso. Loki notou que seu capacete estava estampado com uma
letra e um número: B-15.
Pôs as mãos no quadril e riu, mas não de um jeito amigável.
Estava irritado. Podia sentir a veia proeminente pulsar em sua testa.
— Esse dia foi bem longo — Loki riu —, e acho que já tive minha
cota de idiotas em armaduras me dizendo o que fazer. Então, se
não se importam, essa é, na verdade, a sua última chance. — Ele
estufou o peito e encarou B-15. — Agora — rugiu —, saiam do meu
caminho.
Deu um passo na direção da mulher, pronto para um combate,
mas numa fração de segundos ela o derrubou, acertando a ponta do
bastão contra o queixo dele.
A dor foi aguda, instantânea, intensa, e ele caiu para trás, porém
devagar, mais devagar do que jamais tinha se movido antes, como
se o ar ao seu redor de repente estivesse mais denso.
O tempo o envolveu, sugando-o até que parasse, estendendo o
momento numa única, longa e pegajosa sensação.
Estava paralisado. A dor vibrava dentro dele.
Então sentiu uma coleira se fechar em seu pescoço, travando
com um bip suave.
Escutou as palavras da B-15 como se estivessem sendo ditas
numa galáxia distante:
— Você está se movendo a uma velocidade dezesseis vezes
menor, mas a dor é em tempo real. — Ela parecia incrivelmente
contente.
O tempo segurou Loki no lugar por um momento ou dois antes de
ele cair na areia, batendo de costas com força.
Os soldados com suas botas e capacetes pretos foram em sua
direção e o içaram de pé.
Ao se aproximarem, Loki viu que uma espécie de insígnia laranja
e vinho que ele não conhecia estava costurada em seus uniformes
também.
Mais uma vez, a porta de luz translúcida se abriu no ar, e ele foi
carregado até ela.
Atrás dele, escutou B-15 gritar mais uma ordem:
— Resete a linha do tempo.
As palavras não faziam sentido, e ainda assim ela as disse com
tanta autoridade, tanta convicção.
Ao se virar, ele a viu pegar o Tesseract.
Então um de seus subordinados colocou um objeto na areia —
algo que parecia uma lanterninha minúscula. Uma lanterninha feita
de prata e vidro brilhante, preenchida por luz laranja.
O soldado girou o topo da lanterna, e o brilho laranja ficou roxo,
escurecendo gradualmente até o preto, como uma nuvem
tempestuosa em miniatura. Uma luz como a de um amanhecer
escapou da lanterna e se espalhou pela areia como uma película de
água.
Loki não fazia ideia do que estava vendo, mas aquilo lhe deu um
pressentimento terrível. Ele tentou se virar para assistir à luz forte
cobrindo a superfície caramelo do deserto, mas os soltados o
seguraram firme. B-15 o empurrou pela porta translúcida, e num
único instante o mundo todo mudou.
CAPÍTULO DOIS
Aix-En-Provence, França
1549
Casey, que até agora não tinha sido nada mais que um
empurrador de papel para a AVT, estava sendo entrevistado por
generais condecorados. Daqueles cujos uniformes estão sempre
engomados e passados. Daqueles que nunca sorriem, apenas
franzem a testa, como se aquilo fizesse parte da descrição do cargo.
As palavras tropeçavam para fora de sua boca:
— E esse cara ficou dizendo que ia me transformar num peixe, o
que quer que isso seja, e então eles apareceram e podaram meu
carrinho, então não tinha nada que eu pudesse ter feito.
Sua alma quase saiu do corpo quando a Caçadora B-15 apareceu
do nada na frente dele, aterrissando com um tombo, e uma coleira
apitando freneticamente no pescoço.
— Ei — ele disse, hesitante —, aí está você. Olha, aquela
variante que você capturou acabou escapando.
Ele torceu que ela fosse pedir desculpas, mas ela apenas
suspirou e saiu correndo.
Loki estava sentado no chão do Teatro do Tempo 5, sentindo o
peso do pavor horripilante diante dele. Não só a AVT, mas a vida
dele. Sua inevitabilidade, como um túnel escuro que sempre leva a
um beco sem saída — não importava o que fizesse.
Ele esfregou a têmpora. Sempre pensou que os outros não
tinham escolha, mas que ele tinha. Pensava que o poder de suas
escolhas era capaz de criar e destruir o mundo. Pensava que tinha
um propósito glorioso.Talvez tivesse pensado errado.
A porta se abriu. Se fosse B-15 de novo, ele ia...
Mas não era ela.
— Loki — Mobius disse num tom não amigável —, não tem mais
para onde correr.
Quando Loki descobriu os olhos, viu que o homem empunhava
um Bastão Temporal, assim como os soldados em seus uniformes
pretos. A arma não combinava com ele, que era mais do tipo de
cara da prancheta.
— Eu não posso voltar, posso? — Loki disse. — Para minha linha
do tempo.
Loki encarou seus próprios dedos entrelaçados.
— Eu não gosto de machucar pessoas — disse. — Não gosto. Eu
faço isso porque preciso, porque eu... tinha que fazer.
— Ok — Mobius respondeu, seu Bastão Temporal abaixado agora
—, explica para mim.
— Faz parte da ilusão — Loki disse, calmo. — É o truque cruel e
elaborado conjurado pelos fracos para inspirar medo.
— Uma jogada desesperada para tomar o poder — Mobius disse.
Depois, caminhando na direção de Loki: — Você se conhece, sim.
— Um vilão — Loki suspirou.
— Não é assim que eu vejo a coisa — Mobius respondeu,
balançando a cabeça.
Loki arqueou as sobrancelhas, mas não contestou. Apanhou o
Tesseract, que estava no chão ao lado dele. Ele zunia, brilhando sua
luz azul, tão inútil quando uma bateria descarregada.
— Você tentou usar isso? — Mobius perguntou, com um tom de
diversão na voz.
— Ah, várias vezes — Loki disse. — Até as Joias do Infinito são
inúteis aqui. — Ele jogou o Tesseract para o alto e depois o pôs no
chão ao seu lado. — A AVT é formidável. — Sua garganta doeu por
dizer isso.
— Tenho essa mesma impressão — Mobius disse, pendendo a
cabeça para o lado. Depois, passado um momento, disse: —
Escuta, não posso te oferecer salvação, mas talvez eu possa
oferecer algo melhor ainda.
Loki se levantou, disposto, a esse ponto, ao menos a escutar o
que o homem tinha a dizer. O que mais ele faria? Não podia sair da
AVT. Não podia escapar. Estava claro agora.Teria que encarar
isso.Teria que encontrar outra forma de sobreviver.
— Uma variante fugitiva está matando os homens-minuto.
— E você precisa da ajuda do Deus da Mentira para parar ele —
Loki disse.
— Correto.
— Por que eu? — Loki perguntou. Ele estava próximo a Mobius
agora, sem medo do Bastão Temporal que este tinha em mãos. Ele
entendia agora: Mobius nunca ia matá-lo. Mobius precisava dele.
Se a AVT precisava da ajuda dele, que fosse. Ele ajudaria se
aquilo significasse sua sobrevivência. Se significasse sair dali algum
dia.
Mobius olhou fundo nos olhos de Loki.
— A variante que estamos caçando — disse — é você.
Loki ergueu as sobrancelhas.
— Como é que é?
CAPÍTULO DEZ
Loki olhava pelo vidro de mais um elevador. Era só isso que toda
essa gente da AVT fazia — ficar andando de elevador para lá e para
cá? Certamente parecia isso.
Esse elevador, entretanto, era um pouquinho melhor.Tinha uma
vista. Parecia viajar pela espinha de um prédio gigante de concreto,
afundando por vários andares de varandas recurvadas, através de
suas balaustradas de metal preto polido.
É como estar dentro da barriga de uma besta, pensou Loki.
Na base da espinha da besta, três imensos Guardiões do Tempo
estavam de pé, com suas mãos em prece, seus olhos focados.
Eram feitos de concreto, e maiores que arranha-céus.
Foi ali que o elevador parou.
Mobius guiou Loki pela imensa livraria, completamente ignorante
do seu tamanho ou estranheza.
— Preciso que você examine todos os arquivos dos casos de
todas as variantes e depois me dê... Como devo dizer? Sua
perspectiva única de Loki. Quem sabe? Talvez a gente tenha
deixado passar alguma coisa.
— Bem, vocês são idiotas — Loki disse. — Suspeito que tenham
deixado passar muita coisa. — Ele ainda estava sarcástico por ter
sido chamado de garotinho assustado.
Mas Mobius não deu corda.
— Por isso que tenho sorte de ter você aqui por mais um
tempinho — disse alegremente. Tinha se acalmado desde a
discussão. — Deixa eu te acomodar aqui nessa mesa, e não tenha
medo de mergulhar de cara nesse trabalho, hein? — ele disse.
A mesa era pequena e estava cheia de pastas beges e arquivos
pretos, todas recheadas de papelada até estourar.
— E uma dica para você — Mobius disse. —, finja que sua vida
depende disso. — Ele deu tapinhas leves no braço de Loki. — Vou
pegar um lanchinho.
Mais tarde, ele passou pela mesa de uma bibliotecária. Era uma
mulher mais velha, com as mãos enrugadas, cabelo muito liso e
escuro, e que vestia óculos de gatinha e um cardigã marrom sem
graça. Ela parecia completamente absorta no trabalho e nem olhou
para cima enquanto ele se aproximava da mesa.
Está mais para completamente absorta na existência sem graça
dela, Loki pensou. Ele não tinha estômago nem para um minuto de
tédio, não sabia como esse pessoal da AVT conseguia — todas
essas regras e regulações, a papelada e formulários e processos.
Aquilo o deixava enjoado só de pensar.
O computador laranja da bibliotecária se iluminava com as
palavras brilhantes à medida que ela as digitava.
— Oi — Loki disse.
Mas a bibliotecária não pareceu ter ouvido. Seus olhos estavam
fixos na tela do computador enquanto seus dedos teclavam. Ela não
parou nem por um segundo.
— Olá? — falou de novo.
Bibliotecários não deveriam ser prestativos?
Essa bibliotecária certamente não era. Ela o ignorou novamente e
seguiu digitando na velocidade da luz. Seus óculos antiquados
apenas contribuíam para sua aparência soberba.
Então Loki notou o sino na mesa. Ele o tocou de leve com um
dedo.
A bibliotecária parou de digitar imediatamente. Muito devagar, ela
ergueu o olhar para encontrar o dele.
— Posso ajudá-lo? — ela disse. Parecia ter acabado de notar a
presença dele ali.
— Pode. Eu estou resolvendo negócios muito importantes da AVT
— Loki disse, tentando não soar como uma variante. — Dando
sequência a uma missão de campo, você sabe como é. A gente, é...
ficou na linha vermelha perto do ápice, e é... bem, isso nunca é
bom. — Ele se apoiou sobre a mesa da bibliotecária, rindo no que
ele esperava que fosse um jeito amigavelmente Mobius de rir.
A bibliotecária simplesmente continuou olhando para ele.
— Ãhm — ele disse, encabulado —, gostaria de ver todos os
arquivos referentes à criação da AVT, por favor.
— Esses arquivos são sigilosos — a bibliotecária disse,
desenhando um sorriso amarelo nos lábios. Os olhos dela não
piscavam para os dele.
— Ok — Loki disse. Ele podia lidar com aquilo. Podia improvisar
um pouco. — Gostaria de ver os arquivos referentes ao início dos
tempos, então.
— Esses arquivos são sigilosos — a bibliotecária repetiu,
aparentando estar perdendo a paciência.
— Ok... — disse Loki. — Do fim dos tempos...
— Esses arquivos são sigilosos — ela disse.
— Tá legal, quais arquivos eu posso ler? —perguntou,
exasperado.
A bibliotecária olhou para ele por um segundo antes de guiá-lo a
uma estante e lhe entregar uma pequena coleção de pastas.
— Boa leitura — ela disse, divertindo-se.
Loki examinou a pilha modesta. Bem no topo estava uma pasta
bege da AVT.
Ele leu as palavras abaixo do logo da AVT: arquivo de caso de
variante.
O nome dele estava lá, impresso claramente: laufeyson, loki.
Também estava escrito o seu Número de Variante (L1130) e o
nome da Sequência de Violação: violação de tempo não
autorizada.
Então a única coisa sobra a qual ele tinha permissão de ler era...
ele? Como isso o ajudaria a chegar até os Guardiões do Tempo?
A contragosto, retornou à mesa designada a ele por Mobius e
começou a folhear seu arquivo.
Havia um documento de inquérito de um evento carimbado com
letras vermelhas cruéis: destruição de asgard. Ele parou para lê-
lo. As palavras começaram a saltar sobre ele, e o zunido da
biblioteca, a diminuir.
RAGNAROK (APOCALIPSE CLASSE SETE): Destruição
planetária total.
(Aniquilação Total da Civilização)
Fatalidades: 9.719
Loki se surpreendeu ao sentir a pressão das lágrimas crescendo
em seus olhos.
Estava com um nó na garganta.
Fora este o evento que tinha visto no telão do Teatro do Tempo 5,
um evento que ainda não tinha acontecido. Um evento destinado a
acontecer, de acordo com essa AVT estúpida e sua Linha do Tempo
Sagrada estúpida.
De repente, o peso daquilo o atingiu, e a folha de papel em suas
mãos parecia pesada como chumbo.
Esse lugar. Eles controlavam tudo. Eles o controlavam. Não podia
escapar. Nunca escaparia. Era um trem na linha que levava
diretamente a um precipício...
Mas aí seus olhos encontraram quatro palavras que mudaram
tudo:
Nenhuma Energia de Variância Detectada.
E do nada, como uma estrela cadente cortando a escuridão do
céu noturno, ele teve uma ideia.
Uma ideia brilhante.
Uma ideia que poderia lhe ganhar o favor de Mobius, que poderia
até mesmo lhe assegurar uma audiência com os Guardiões do
Tempo.
Ele se apressou para juntar as páginas que tinha espalhado pela
mesa e saiu voando da biblioteca, com o coração batendo do
mesmo jeito que batia quando uma rara oportunidade surgia.
CAPÍTULO QUINZE
Loki sentiu alguém tocar seu braço. Ele abriu os olhos, dando-se
conta de que tinha dormido numa mesa da biblioteca. Tinha babado
em alguns dos arquivos que Mobius lhe dera. Sua cabeça girava,
tinham lido sobre apocalipses em potencial por horas a fio. Deve ter
caído no sono.
— Ei — Mobius disse, tocando mais uma vez em seu braço com
uma das pastas marrons. — Vamos andar um pouquinho.
Loki apanhou sua jaqueta e ficou de pé, ainda meio dormindo.
Foram até o refeitório. Estava vazio, mais escuro, e não mais
lembrava uma sala de espera deprimente de aeroporto. Agora, Loki
pensou, lembrava um bar deprimente. Mas sentou a uma das
mesinhas redondas.
Estar de volta ao refeitório fez Loki lembrar da revista que Mobius
estivera lendo.
— A propósito — disse —, e aquela revista na sua mesa?
— Hmm. Aquela dos jet-skis?
— É. Por que você tem aquilo?
O zunido da AVT, que estava sempre — sempre — presente,
como uma pulsação constante e subterrânea, preencheu o silêncio,
até que Mobius dissesse:
— Porque jet-skis são o máximo.
Isso tirou uma risadinha de Loki.
— Acho que sim — ele cedeu.
— É — Mobius disse. — Sabe, algumas coisas — na verdade, a
maioria das coisas — da história são meio bobas, e tudo acaba
sendo arruinado eventualmente. Mas, nos anos 1990, por um breve
e brilhante momento, ocorreu a bela união entre forma e função, que
chamamos de jet-ski, e qualquer pessoa sensata não pode
discordar disso.
Loki sorriu com a sinceridade de Mobius. Sem querer, estava
realmente começando a gostar do homem.
— Já usou alguma vez?
— Não, não... — Mobius disse, limpando a garganta. — Acho que
um agente da AVT chegando na Linha do Tempo Sagrada de jet-
ski... com certeza criaria uma ramificação.
Loki ficou um pouco triste por ele, preso no subterrâneo, num
labirinto de concreto e refeitórios, escritórios e bibliotecas. Um
escravo da AVT.
— Acho que seria divertido — disse.
— É, seria bem divertido — Mobius disse, melancólico. Ele
pareceu divagar por um momento.
— Então, por que lê sobre eles? — Loki perguntou.
Mobius inspirou.
— Só... me ajuda a lembrar pelo que estamos lutando.
Além da janela imensa de vidro ao lado deles, a AVT brilhava e se
agitava como uma cidade que não dorme.
Mas Loki balançou a cabeça para tudo aquilo.
— Olha... você acredita mesmo nisso tudo?
— Não me prendo a “acreditar ou não acreditar” — Mobius disse.
— Eu só aceito o que é.
Loki olhou descrente para Mobius.
— Três lagartos mágicos...
— Guardiões do Tempo — corrigiu Mobius.
— ...criaram a AVT, e tudo que há nela...
— Isso.
— ...inclusive você?
— Inclusive eu.
— Sabe, toda vez que começo a respeitar sua inteligência, você
diz uma coisa como essa — Loki reclamou, sentindo a frustração
crescer no peito.
Então Mobius lhe respondeu com uma pergunta.
— Ok, então. Quem criou você, Loki?
Loki pensou na questão, apesar de ser óbvio e de Mobius
provavelmente já saber a resposta.
— Um Gigante de Gelo de Jotunheim — disse, sem rodeios.
— E quem cuidou de você quando criança?
— Odin de Asgard. — Obviamente, pensou Loki. Que perguntas
bobas.
— Odin — Mobius disse —, Deus dos Céus. Asgard, reino mítico
além das estrelas. — Ele tentava provar algum tipo de ponto. —
Gigantes de Gelo. Presta atenção no que você está falando.
— Não é a mesma coisa — Loki argumentou. — É
completamente diferente.
— Não.
— Não é a mesma coisa — Loki insistiu.
— É exatamente a mesma coisa — Mobius disse, convicto. —
Porque se você pensar demais sobre de onde qualquer um de nós
veio, quem nós somos de verdade? Parece meio ridículo. A
existência é um caos. Nada faz sentido, então tentamos dar algum
sentido a ela. E eu tenho sorte que o caos em que surgi me deu
tudo isso... — Mobius gesticulou na direção da vista dos grandes
feitos da AVT. — Meu próprio propósito glorioso.
Loki riu debochado. Tinha que ser Mobius para jogar sua própria
frase na cara dele. Mas aquele homem não parecia estar zombando
dele. Parecia, na verdade, bastante sincero.
— Porque a AVT é minha vida — Mobius disse. — E é real porque
eu acredito que é real. — Ele levantou um pouco os ombros.
Loki ponderou um momento.
— Justo — disse. — Você acredita que é real.
— É.
— Então tudo está escrito — Loki disse. — Passado, presente e
futuro. O livre arbítrio é uma mentira.
— Bem, quer dizer, você está simplificando demais... — Mobius
começou a falar.
— Então, na verdade, de certa forma, eu e você — Loki disse —,
aqui na AVT, somos os únicos livres de verdade.
Mobius sorriu amigavelmente.
— Onde você está querendo chegar com isso, Loki?
Loki fez uma pausa antes de falar.
— Como tudo termina? — perguntou, passando uma mão sobre a
mesa.
— Isso é um trabalho que ainda está progredindo — Mobius
disse.
Loki nunca entenderia aquilo. Se tudo já estava planejado, qual
era o sentido de tudo aquilo? Se não havia descobertas a serem
feitas, nenhuma pontinha de chance de mudança, por que só não
acabar com o tabuleiro do jogo da vida e desistir?
— Ah, esses Guardiões do Tempo preguiçosos — disse. — Estão
esperando o quê?
— Au contraire — Mobius disse. — Não. Porque enquanto
protegemos o que veio antes, eles estão trabalhando duro em seu
gabinete para desemaranhar o epílogo de suas infinitas
ramificações.
— Ah — Loki disse. Parecia ser um trabalho importante. — Então,
quando eles terminarem, o que acontece?
— Nós acabamos também — Mobius disse. Loki percebeu um
toque de tristeza na voz dele.
— Sem mais Eventos Nexus. Só ordem. E nos encontraremos em
paz no fim dos tempos.
Talvez fosse só por ser o Deus da Mentira, mas aquilo parecia
simples demais, fácil demais, para o gosto dele. Ele inclinou a
cabeça, sem acreditar, e arqueando as sobrancelhas.
— Bacana, não acha? — Mobius perguntou.
— Só ordem?
— Uhum.
— Sem caos? Parece chato.
— Deve parecer para você — Mobius disse, tranquilo.
— Sabe, você me chamou de garotinho assustado — Loki disse.
— Te chamei de um monte de coisa.
— Chamou mesmo — Loki fez uma pausa. — Mas você está
errado. — Ele deixou que mais um momento de silêncio ocorresse
para que Mobius absorvesse as palavras. — Veja, eu sei uma coisa
que as crianças não sabem.
— E o que é? — Mobius perguntou.
— Que as pessoas más nunca são verdadeiramente más — Loki
disse. — E as pessoas boas não são verdadeiramente boas.
Mobius o encarou, e Loki teve a satisfação de ver suas palavras
ecoarem na cabeça de outro homem, de fazerem a diferença,
bagunçarem as coisas lá dentro, fazendo-o pensar. Loki guardou um
sorriso dentro de si, com a crença de sua genialidade aumentada.
Mobius olhou para o nada, seus olhos ficando desfocados.
— Garotinho assustado — disse baixinho.
As palavras que saíram da boca dele lembraram Loki do quanto
tinha ficado chateado quando Mobius as disse.
— Sim, foi bem condescendente — disse. — Pensei até que foi
um pouco longe demais, na verdade.
Mobius ainda estava com o olhar perdido, entretanto, sem
responder. Então, de repente, voltou ao presente, pondo-se de pé
num salto.
— Você é muito esperto — ele disse.
Loki ficou ali sentado, pensando por que Mobius tinha dito algo
tão óbvio.
— Eu sei — disse, porque, é claro, ele era muito esperto.
Mas Mobius não o tinha ouvido. Estava saindo do refeitório,
andando rápido e resoluto. Loki se levantou e o seguiu.
CAPÍTULO DEZOITO
Uma vez mais, Loki se viu seguindo Mobius, dessa vez pela vasta
biblioteca da AVT.
Mobius caminhava depressa, falava depressa.
— A variante deixou uma coisa para trás numa cena de crime
antiga, uma catedral — disse. — Uma caixa de doces. — Ele guiou
Loki até uma estante em que pastas grossas estavam guardadas e
destravou uma das caixas de arquivo. — Um anacronismo óbvio —
continuou. — Eu mandei para a seção de análises, mas eles não
conseguiram encontrar nada real.
— Qual a importância disso? — Loki perguntou, genuinamente
intrigado. Estava se acostumando a trabalhar com o agente Mobius.
— Porque agora temos duas variáveis — Mobius disse. —
Desastres naturais apocalípticos e... — Ele puxou uma coisa de
dentro da caixa — ...Kablooie.
Loki olhou por cima do ombro de Mobius. Dentro de um saco
plástico transparente, ele segurava um pequeno item retangular. A
palavra KABLOOIE estava impressa na frente com uma fonte em
forma de bolhas.
— O que é isso? — Loki perguntou, forçando a vista para vê-lo.
— Doce — Mobius disse, perplexo. — Não tem doce em Asgard?
— Tem. Uvas, nozes — Loki disse.
— Por isso você é tão amargo — Mobius disse, empurrando Loki
para voltar à mesa que ainda estava cheia de pilhas de relatórios de
apocalipses. — Ok — disse —, Kablooie só foi vendido
recentemente na Terra, entre 2047 e 2051. Tudo que a gente
precisa fazer é cruzar isso com os eventos apocalípticos. Vou te dar
metade. — Mobius deu toquinhos numa pilha de pastas marrons
como se fossem um bichinho de estimação querido. — E que tal a
gente transformar isso numa competição? — acrescentou. — Ver
quem acha.
— Certo — Loki disse. Gostava de competições.
— Quer apostar alguma coisa? — Mobius perguntou. De alguma
forma seu ânimo tinha sido consideravelmente revigorado.
— Claro — Loki disse.
— Um acordo de cavalheiros? — Mobius perguntou. — É, vamos
apostar nosso orgulho — Ele entregou metade das pastas a Loki. —
Ok — falou —, que vença o melhor homem. Vai!
Loki folheou rapidamente as pastas, examinando seu conteúdo e
procurando pela palavra “Kablooie”.
— Achou alguma coisa?
— Ãhm... — Loki disse. — Não foi o desastre climático de 2048,
nem a tsunami de 2051.
Mobius encorajava baixinho:
— Vamos, vamos, vamos, vamos.
— 2050... — Loki seguiu. — A extinção da andorinha. Isso é
sério?
— Estragou completamente o ecossistema — Mobius disse.
— O Krakatoa entrou em erupção em 2049 também... Nada de
Kablooie — Loki disse, passando depressa à próxima pasta.
— Meu Deus, é coisa ruim atrás de coisa ruim, né não? — Mobius
disse, examinando a própria pilha de arquivos. — Ciclone, fome,
vulcões, enchentes...
— Achei ele! — Loki disse. O prazer de vencer sempre o fazia
sorrir. Ele mostrou o relatório de evento dentro da pasta a Mobius.
desastre de roxxcart estava estampado no canto superior
esquerdo em letras vermelhas.
— É aí que ele está — Loki disse.
Mobius examinou a página.
— Alabama, 2050 — cantarolou. — Você vai acabar roubando
meu trabalho se eu não tiver cuidado.
Loki tentou muito suprimir um sorrisão.
Mobius odiava ir ao escritório de Ravonna pedir coisas. Uma
única vez, ele gostaria de chegar à porta dela com alguma notícia
boa, anunciar alguma vitória. Então, talvez, ele pudesse reunir a
coragem necessária para contar o que sente por ela. Dizer-lhe que
ela é mais do que apenas uma colega para ele.
— Você quer que eu autorize o envio de uma força tarefa armada
ao possível esconderijo da variante? — ela disse enquanto se
reclinava na cadeira e erguia as sobrancelhas como se Mobius
tivesse acabado de lhe pedir para comprar um unicórnio.
— É — Mobius disse. — Haven Hills, Alabama. Cidade operária
da Roxxcart, até ser varrida por um furacão. Tem toda a comida e
suprimentos que uma pessoa precisa. Se ele gosta dali, não tem por
que não voltar para acampar lá sempre que quiser.
— E tudo isso por causa de uma teoria de uma variante que
acabou de estragar sua última missão? — Ravonna falou.
— É, ele está indo muito bem — Mobius disse sem ironia.
Ravonna inclinou-se para frente, seus cotovelos sobre a grande
mesa de madeira, seu rosto iluminado pela luz dourada da lâmpada
em sua mesa.
— Mobius — ela disse —, como sua amiga, tenho que dizer que
confiar nesse homem não é uma boa ideia.
— É, eu sei — Mobius disse. — Mas talvez ele valha a pena.
Quer dizer, ele acabou de descobrir um buraco enorme na nossa
segurança, não é mesmo?
— É isso que me preocupa — Ravonna disse com a voz mais
aguda.
Mobius respirou fundo. Ele precisava fazer aquilo funcionar.
— Eu dou conta dele. Confia em mim. É aqui que a gente vai
pegar nosso cara — disse.
— Em você eu confio. Mas nele? — Ravonna balançou a cabeça.
— Escuta, Ravonna, todos os meus instintos estão me dizendo
que é aqui que a gente encurrala essa variante.
Ela o encarou.
— Ravonna — Mobius disse —, qual foi a última vez que você me
viu tão entusiasmado assim? Eu estou animado. Estou subindo
pelas paredes.
Ravonna sorriu.
— Ok — ela disse, depois de um ou dois segundos.
— Isso. Ok — Mobius disse, se segurando para não sair pulando
e jogando os braços para cima.
— Mas, Mobius...
— Sim?
— Eu não vou poder te ajudar muito se isso der errado.
Mobius assentiu.
— Por todo o tempo — Mobius falou, solene.
— Sempre — Ravonna disse.
— Ok.
Mobius sentia-se uma latinha de refrigerante toda balançada. Ia
dar certo. Ia pegar a variante fugitiva, de uma vez por todas, pela
AVT, por Ravonna.
Do lado de fora, na sala de espera, Loki abriu as mãos em
pergunta.
— Vai rolar — Mobius disse.
Loki caminhava atrás da variante que parecia não ter para onde ir.
— Se você não quer governar a AVT — disse —, então o que
você quer?
Ele precisava saber.
Não dá para manipular uma pessoa adequadamente sem antes
saber o que essa pessoa quer.
Mas a variante era um Loki, também. E não conseguiria decifrá-la
tão fácil.
— Não importa — a variante disse. — Você chegou tarde demais.
— Logo se dará conta — Loki disse — que cheguei antes do
previsto. Encontrei seu esconderijo assim. — Deu um estalar de
dedos. — Diria que isso me torna o Loki superior, não acha?
Uma coisa brilhosa chamou a atenção de Loki, e ele viu uma das
cargas de reset numa prateleira, escondida atrás de caixas de fones
de ouvido. Estava cheia de fios, como uma bomba.
— Entendi — ele disse. — Esse é seu plano. Nos atrair até aqui
para poder explodir esse lugar. — Mas enquanto olhava a bomba
caseira, a variante desapareceu. Loki procurou ao redor, mas o
supermercado estava escuro, piscando sua luz amarelada.
Foi aí que sentiu um chute no estômago.
Ele foi lançado de costas pelo chão.
Era a variante, que tinha trocado de corpo novamente. Agora
tinha a aparência de um lenhador grande e barrigudo, que ria
enquanto rondava Loki.
— Estou com saudade do Randy — Loki disse, grunhindo.
Tentou se levantar, mas a variante o chutou de novo, metendo o
pé no ombro de Loki. Ele rastejou apoiado nas mãos e joelhos,
arfando de dor.
— Agradeço por me ajudar a ganhar tempo — a variante disse. —
Você gosta mesmo de ouvir o som da própria voz.
— Você é a primeira pessoa que me diz isso — Loki disse,
apontando para a variante. Ele ficou de joelhos, mas teve sua
jaqueta agarrada pela variante, e então foi arremessado e saiu
deslizando de barriga pelo chão.
— Blá, blá, blá, blá — a variante disse, imitando as palavras ditas
por Loki.
Loki ficou perplexo.
— Eu nunca me trataria dessa maneira — disse para si mesmo.
Então ficou de pé e andou na direção de seu agressor. — Olá —
disse.
A variante lançou um soco nele, mas Loki desviou, e a mão da
variante arrebentou um televisor atrás dele. Com uma finta elegante,
Loki se esquivou. Usou sua magia para atrair um robozinho de
limpeza redondo para si e com as duas mãos o empurrou contra o
peito da variante quando ela avançou na sua direção. A variante
agarrou o robozinho e tentou arrancá-lo de Loki, mas ele o segurou
com força.
— Ah, que é isso — ele disse. — Para de se esconder.
Mas a variante arremessou Loki pela sala mais uma vez e ele foi
forçado a largar o robozinho. Loki ficou de pé rapidamente,
entretanto, e no tempo que a variante levou para jogar o robô para
longe e chegar até ele, Loki se armou com um aspirador de pó
grande que estava num mostruário. Ele acertou a cabeça da
variante por trás e girou o equipamento nela. A variante o agarrou e
usou para puxar Loki para perto. Em poucos segundos, tinha o
pescoço de Loki estrangulado pela mangueira de sucção.
Loki arrancou a mangueira da garganta e disse para a variante,
um pouco engasgado:
— Loki, se tivesse um pouco de honra em você, lutaria comigo
como você mesmo.
— Tenho um compromisso — a variante disse. — Já chega! — E
jogou Loki num mostruário de brinquedos infantis.
Ele bateu no chão e saiu rolando até parar de costas, todo
dolorido. Grunhiu, arfando de dor. Um dos brinquedos — um
cachorrinho caramelo robótico — patinou até ele e latiu
amavelmente, apertando seu focinho plástico na cabeça dele.
Loki ouvia passos.
Mas eram os passos da variante ou de outra pessoa?
Loki ficou de pé, o cachorrinho de plástico chorando por ser
deixado para trás. Arfava, tudo doía, mas já tinha sobrevivido a
coisas piores.
Do outro lado do supermercado, pôde ver a variante agachada em
frente a uma de suas bombas artesanais, mexendo nela. Ainda
usava o corpo grandalhão do lenhador. Loki se encheu de raiva.
Nunca imaginou que seria tratado com tanto desrespeito por uma
versão de si mesmo. Ele andou até a variante.
— O que você quer de mim? — gritou. — Para que serve tudo
isso?
A variante ficou de pé e riu.
— Se prepare, Loki — disse, gargalhando de novo.
Os olhos do lenhador ficaram desfocados, e seu corpo mole,
caindo no chão. Loki sabia o que aquilo queria dizer. Sabia que a
variante — quem quer que fosse — ainda estava ali, em algum
lugar.
Então Loki ouviu a própria voz gravada sendo tocada
repetidamente pelo sistema de som do supermercado: O que você
quer de mim? O que você quer de mim?
Ele se virou e viu uma figura de capa preta. Era a variante. Não
conseguia ver seu rosto, mas sabia que era ela. Suas mãos
estavam iluminadas por luz mágica verde.
A voz de Loki retumbava pelo supermercado, na gravação
repetitiva: Para que serve tudo isso?
A variante removeu o capuz para revelar seu rosto e...
Uma mulher.
A variante era uma mulher.
Uma mulher com o cabelo ondulado e cortado num penteado bob,
e com olhos astutos e inteligentes. Sua tiara de bronze era
adornada por dois pequenos chifres, mas um deles estava
quebrado. Parecia ter vivido muitas guerras. Parecia ser capaz de
sobreviver a qualquer coisa.
— Não tem nada a ver com você — ela disse com calma. As
luzes piscavam atrás dela como o cenário de uma peça.
— Certo — Loki disse.
Só então, a bomba que ela tinha armado apitou seu último
segundo, e o Temp Pad preso a ela acendeu a palavra ativar num
laranja forte.
E todas as luzes do supermercado se apagaram.
No meio da escuridão profunda, a tela do Temp Pad mostrou
outra palavra: iniciando...
Por mais que Loki estivesse contente por não ter morrido na lua
caída, Lamentis-1, ele e Sylvie haviam sido presos, e isso vinha com
suas humilhações de sempre.
As Coleiras Temporais foram colocadas em seus pescoços, os
soldados os arrastaram por um corredor angular bem iluminado. Era
deprimente estar de volta à AVT, com suas cores apagadas, seu
ambiente distintamente subterrâneo...
Mas era melhor que morrer.
Mobius estava lá, mas não fez contato visual com Loki. Ele sentiu
uma pontada de alguma coisa em seu coração recém-amolecido.
Aquele homem confiara nele, afinal de contas.
Mas, ainda assim, trabalhava para a AVT.
Sylvie fora arrastada numa direção, e Loki, noutra. Dois soldados
seguravam Loki pelos braços, enquanto ela teve três soldados para
a escoltar. Como se ela fosse uma ameaça maior que ele. Ou uma
melhor lutadora. Ou até uma Loki melhor. Algo assim era
impensável.
Loki resistiu aos soldados, mas eles o seguraram com mais força
e, de todo jeito, sabia que, com a Coleira Temporal, não conseguiria
ir muito longe se fugisse.
De repente ele se sentiu pesado como um saco de areia.
Estava preso na AVT de novo.
Dessa vez, poderia nunca mais sair.
— Bem? — Mobius disse, quando Sylvie saiu de vista.
— Bem o quê? — Loki disse.
— Tenho certeza de que você tem alguma coisa engraçadinha
que está morrendo de vontade de dizer.
— Ah, não tenho, não. Não tenho nada para dizer a você. — Mas
aí ele pensou. — Inclusive, vocês deviam usar o mesmo nível de
segurança comigo. Isso é um insulto!
Mobius ignorou a queixa.
— Você não consegue se segurar, né? — ele disse.
— Você me traiu! — Loki disse.
— Você me traiu.
— Ah, vê se cresce.
— Cresce você.
Mobius abriu as portas do Teatro do Tempo 5, e os soldados
arrastaram Loki escada abaixo.
— Sabe — Mobius disse —, me ocorreu que você não é
realmente o Deus da Mentira.
— Ai, lá vem — Loki disse. — O insultinho idiota do idiota
bonzinho.
Mobius o encarou, com o Temp Pad em mãos.
— O que eu sou, então? — Loki disse. — Deus da
Autossabotagem, é? Deus da Traição?
— Só meio mau — Mobius disse, com tranquilidade — e um mau
amigo.
Loki tinha que admitir, aquelas palavras machucaram. Não estava
esperando a sinceridade nelas. Ficou encarando Mobius
boquiaberto.
— É, pensa um pouquinho sobre isso — Mobius disse, depois se
dirigiu aos soldados. — Tá legal. Está pronto.
Uma Porta Temporal se abriu na frente de Loki. Mas ao invés do
tom branco ou dourado usual, essa era avermelhada. A cor a
tornava ameaçadora. Imediatamente, ele ficou tenso e começou a
se debater contra os soldados.
— O que é isso? — disse, mais como forma de protesto que uma
pergunta propriamente dita. O que quer que fosse, seria ruim.
— Você vai ver — Mobius disse.
— Mobius! — Loki gritou.
— Ok, não, não, não, vamos só ver mais uma mentira
desesperada do mentiroso desesperado. Vai, fala — Mobius disse,
sua voz mais fria que de costume.
— A AVT está mentindo para você — Loki disse. Estava
desesperado. As palavras saíam da sua boca como um pedido
implorado.
O sorriso de Mobius se transformou em gargalhada.
— Bota ele para dentro —disse, apontando para a Porta
Temporal.
— Não — Loki disse, resistindo.
Mas os soldados o empurraram porta adentro.
Loki estava sentado no chão da Cela Temporal criada para ele por
Mobius.
As piras de chama queimavam eternas ao seu redor, e os arcos
em forma de lágrima de cada lado do terraço começaram a parecer
as pontas afiadas de flechas.
Tinha perdido as contas de quantas vezes Sif entrou por um arco
e saiu pelo outro. Tinha perdido as contas de quantas vezes fora
estapeado, chutado e socado. Todo seu corpo doía. Então ele
escutou a voz dela novamente.
— Você.
Ele liberou um suspiro fundo, torcendo, rezando que aquilo
parasse.
— Seu verme patético... — ela começou a falar.
— Sif. Sif — Loki disse.
— ...mentiroso, covarde.
— Sif, por favor, por favor, já chega. Eu te imploro — Loki estava
prostrado, olhando para o chão de pedra do terraço.
Ela se aproximou dele, mas tinha parado de berrar.
— Eu sou uma pessoa terrível — Loki disse. — Eu sei, sou
mesmo. — Ele usou os joelhos para se virar para ela. Sif o encarava
do alto. — Eu cortei seu cabelo porque achei que seria engraçado.
E não é.
Ela continuou encarando, séria.
Ele continuou de joelhos, como um suplicante.
— Ãhm — ele disse. As palavras, pelo visto, eram difíceis de
serem ditas. — Eu quero atenção porque eu sou... — suspirou — eu
sou... eu sou narcisista. E acho que é... é porque tenho medo de
ficar sozinho.
Essa era, sem sombra de dúvidas, a coisa mais honesta que já
dissera a ela.
Ela inspirou fundo e fechou os olhos, como se tentasse se
acalmar.
Loki ficou tenso, certo de que logo levaria outro chute. Mas, ao
contrário do que pensou, Sif estendeu a mão. Ele aceitou, e ela o
ajudou a ficar de pé, puxando-o na direção dela. Olhou em seus
olhos e disse, enfim:
— Você está sozinho. E sempre vai estar. — Ela soltou a mão
dele e foi embora.
Loki olhou para o vazio, seus olhos perdendo o foco. Claro que
estava feliz por não ter levado uma joelhada nem um soco, mas, de
alguma forma, aquilo era bem pior. Ele tinha pedido desculpas.
Tinha sido sincero. E ela ainda o odiava. Talvez estivesse certa: não
importava o que fizesse, sempre ficaria só.
Foi nesse instante que Mobius chegou ao terraço com uma
expressão séria no rosto.
— Ok, Loki — disse. — Pronto para falar?
Loki piscou para Mobius, então respirou fundo.
Ao voltar para o Teatro do Tempo 5, a Porta Temporal
avermelhada desapareceu atrás dele, e Loki viu o rosto iluminado
de Mobius.
— Tecnologia de ponta — ele disse. — Táticas ameaçadoras de
interrogação. — Sentou-se à mesa no meio da sala, oposto a
Mobius. — Parece que eu e você estamos num Loop próprio.
— Bem — Mobius disse, lendo seus papéis, com um lápis na mão
—, muita coisa mudou desde a última vez.
— Certamente.
— Ok, você disse que a AVT está mentindo para mim. — Mobius
disse, olhando para a prancheta e pondo o lápis ao lado dela. — Vá
em frente, ou era só papo de barata tonta tentando sobreviver?
Loki não estava esperando por isso.
Será que havia alguma chance de Mobius ter lhe dado ouvidos?
Será que suas palavras conseguiram alcançá-lo? Mas não daria a
ele uma informação tão preciosa sem antes garantir sua liberdade.
— Me deixe sair daqui, pare de me torturar, e eu te digo — ele
disse.
— Barata, saquei — Mobius disse, sem nem piscar. Estava com o
lápis em mão novamente. — Há quanto tempo você trabalha para
variante?
— Eu? Trabalhando para ela? Por favor — Loki ficou
genuinamente ofendido. Nunca trabalhou para ninguém. Sempre
agiu de acordo com seu próprio propósito glorioso. Mobius deveria
saber isso.
— Ok, então se não está trabalhando para variante, o que é isso?
São parceiros? — Mobius falou mais alto e agressivo.
— De forma alguma — Loki disse, balançando a cabeça em
negação. Ele pensou em Sylvie — Ela é... difícil. E irritante. E ela
tenta me bater o tempo todo.
Mobius ergueu os olhos da prancheta. Ficou olhando curioso para
Loki.
— Não — Loki repetiu —, não somos parceiros. Não.
— Tá — Mobius disse, e anotou alguma coisa. — Acho que você
não funciona com parceiros. A não ser, é claro, que seja para seu
próprio benefício e você esteja planejando trair eles em algum
ponto.
Loki teve a impressão de que não estavam mais falando de
Sylvie.
— Foi um meio para um fim, Mobius — Loki disse. — Bem-vindo
ao mundo real. Aqui somos terríveis uns com os outros para
conseguir o que queremos.
— Agora preciso que um príncipe me diga como o mundo real
funciona? — Mobius disse. Ele levantou a voz. — Por que
simplesmente não me diz o que causou o Evento Nexus em
Lamentis?
— Eu vou falar mais uma vez... — Loki disse — eu não vou te
contar só para você voltar imediatamente e me podar.
Mobius se recostou em sua cadeira.
— Acho que chegamos a um impasse, então.
— Ok, acabou.
— Vou sentir falta dos nossos papinhos — Mobius disse,
colocando o lápis no bolso.
— Também vou.
Mobius apanhou a prancheta e ficou em pé.
— Um cara jogando damas, você. E o velho Mobius jogando
xadrez. Mas é, manda um abraço para Lady Sif por mim. — Ele
pegou sem Temp Pad.
— Quê? Não. Não, não, não. Por favor, não — Loki levantou as
mãos.
Mobius apertou um botão no Temp Pad.
— Calma, espera — Loki disse. — Espera, espera, espera.
Mobius olhou do Temp Pad para ele inocentemente.
— Que foi? — disse.
Loki respirou fundo.
— Claro que fui eu, sempre mexendo as cordinhas.
Aquilo chamou a atenção de Mobius, ele se sentou novamente.
— Ela me procurou em Asgard, muito tempo atrás, e me levou a
um de seus apocalipses, e foi lá que montamos nosso plano.
Juntos.
Mobius se inclinou, ficando mais próximo.
— Que é? — perguntou.
— Um que está dando muito certo, obrigado — Loki disse.
— E a variante? — Mobius perguntou.
Loki deu de ombros.
— Não importa. Ela é um peão. Algo bem grande mesmo está
para acontecer. E quando acontecer, vou me livrar dela. — Loki
sorriu para mostrar que estava sério.
— Bem, não vai ter mais esse trabalho — Mobius disse. — Já
podamos ela para você.
E naquele instante, o mundo parou.
Mobius continuou falando:
— Então, caso eu liberte você...
— Calma aí, espera — Loki disse. — O que você disse?
— Caso eu liberte você...
— A variante — Loki disse —, ela morreu?
— Sim — Mobius disse. — Não antes de matar dois dos nossos.
Loki o encarou com os olhos arregalados pelo choque.
— É, ela estava sendo colocada na Cela do Tempo dela e
escapou. A Caçadora B-15 entrou no caminho e puff, podou ela.
Então talvez queira mandar uma notinha de agradecimento para ela,
porque parece que você é o Loki superior. Eu apostava nela, mas
essa é a graça da corrida de cavalo.
A tranquilidade na voz de Mobius gelou Loki por inteiro. Algo
estava doendo em seu âmago. Tudo estava doendo. Aquilo estava
errado. Não podia ser. Ele se recaiu na cadeira desconfortável,
sentindo como se o universo inteiro tivesse se empoleirado no seu
peito.
Então se chacoalhou e sorriu amarelo.
— Já vai tarde — disse.
Mobius olhou para ele e manteve contato visual, com a testa
franzida.
Loki devolveu a expressão.
Mobius riu fraquinho.
— Qual a graça? — Loki disse.
— Você... É como se... Olha para você! Você gosta dela.
— Quê? — Loki disse.
Mobius começou a rir de verdade.
— Você gosta dela — ele disse. — Ela gosta de você também?
— Ela foi podada? — Loki perguntou.
Mobius ignorou a pergunta.
— Faz sentido, por isso você não tem ideia do que causou o
Evento Nexus em Lamentis. Os dois estavam ocupados demais se
babando, pelo jeito.
— Me diga a verdade! — Loki disse.
— Num apocalipse, duas variantes do mesmo ser, especialmente
você, formam esse tipo de relação romântica doentia e deturpada?
Isso é caos puro. Isso pode quebrar a realidade. Está acabando
com a minha agora mesmo. Que incrível, avassalador narcisista.
Você se apaixonou por você mesmo.
— O nome dela era Sylvie — Loki disse. Sua voz mais fraca
agora. Não ligava para o que Mobius estava dizendo. Não era
deturpado ou doentio. Ela não era ele. Eram seres diferentes.
— Ah, Sylvie — Mobius disse. — Belo nome. Como se escreve?
Com um I-E, ou só um I?
— Ela está viva? — Loki gritou.
Estava desesperado para saber. E cansado das piadas sem graça
de Mobius.
Mobius o encarou. O silêncio pensou entre eles.
— Por enquanto — ele disse.
Loki soltou o ar. Nunca antes esteve tão aliviado. Era assim que
era gostar de alguém?
Encarou a mesa. Só queria poder descansar. Queria ficar só.
Mas Mobius estava imparável.
— E se infiltrar na AVT sempre foi parte do grande plano?
— Nossos interesses — Loki disse — estão alinhados.
— Tomar o controle dos Guardiões do Tempo — Mobius disse.
— Talvez eles precisem perder o controle! — Loki gritou.
— Eu vou puxar sua orelha — Mobius disse, balançando a
cabeça.
— Mobius, me escuta — Loki olhou para a porta, para a saída do
Teatro do Tempo 5. Estava com medo de que houvesse soldados lá
fora escutando. — Se o que Sylvie me disse sobre esse lugar for
verdade... é um problema para todos nós.
— Lá vamos nós — Mobius disse. — Você já me disse umas
cinquenta mentiras nos últimos dez minutos...
— Não estou mentindo.
— E agora eu preciso acreditar na sua namorada?
— É a verdade. E ela não é minha namorada.
— Pode chamar ela do que quiser! A sua versão feminina por
quem você tem uma paixonite maluca.
— Vocês todos são variantes! — Loki berrou. — Todo mundo que
trabalha pra AVT. Os Guardiões do Tempo não criaram vocês, eles
sequestraram vocês das suas linhas do tempo! E apagaram suas
memórias.
Mobius fez silêncio.
— Memórias que ela pode acessar com magia — Loki
acrescentou.
Mobius o encarou, sem ânimo.
— Então, antes disso aqui, vocês tinham um passado — Loki
disse. — Talvez uma família. Uma vida.
Mobius não tirou os olhos dele, assentindo sutilmente. Então
baixou o olhar, e ficou brincando com o lápis nas mãos.
— Boa tentativa — ele falou, baixinho, com a voz carregada de
tristeza, saudade e arrependimento. Ele riu um pouco sozinho. —
Essa foi boa. Que dupla vocês são! Uau! Incrível. Para onde vocês
vão, só tem morte, destruição e literalmente o fim dos mundos. Bem,
vou ter que encerrar esse caso agora, porque não preciso mais de
você — Ele apanhou sem Temp Pad, e Loki ouviu botões sendo
apertados. — É, como você diz, nossos interesses não estão mais
alinhados. — Os olhos de Mobius estavam frios e mortos por dentro.
Então a porta do Teatro do Tempo 5 se abriu, e soldados
apareceram descendo as escadas. Eles seguraram os braços de
Loki e o arrancaram da cadeira.
— Sabe — Loki disse —, de todos os mentirosos desse lugar... e
tem vários aqui... você é o maior de todos.
— Por quê? — Mobius perguntou, digitando em seu Temp Pad. —
Por ter mentido sobre sua namorada?
— Ah, não. Essa mentira consigo respeitar — Loki disse. — Estou
falando das mentiras que conta para si mesmo.
A Porta Temporal avermelhada apareceu de novo, e os soldados
levaram Loki até ela. Ele entrou por ela. Pela primeira vez na vida,
estava cansado de lutar.
CAPÍTULO TRINTA E UM
Loki não teve escolha. Tinha deixado mais nove Lokis entrarem
no bunker. O líder deles se parecia muito com ele, e bastante com
um presidenciável dos Estados Unidos da América.
O Loki Presidente e todos os seus lacaios tinham crachás com a
palavra LOKI escrita neles. Dentro do bunker pista de boliche, uma
música suave e alegre tocava, o que deixava ainda mais sinistro o
sorriso vitorioso do Loki Presidente.
— Seu idiota! — o Loki Clássico disse. — Trouxe os lobos direto à
nossa casa!
Loki apenas levantou as sobrancelhas.
— Nós preferimos cobras a lobos — o Loki Presidente disse.
— Já comi dos dois — Kid Loki falou. — Morrem do mesmo jeito.
Loki tinha que admitir: o menino tinha brio.
O Loki Orgulhoso segurou a nuca de Kid Loki e pôs o martelo
dourado perto do rosto do garoto.
— Peço desculpas, meu senhor — ele disse entredentes. — Eu o
traí. E agora, eu sou rei.
Loki ficou boquiaberto.
Isso é um circo rematado, ele pensou.
O Loki Presidente deu um passo adiante.
— Quanto a isso... — ele disse. Atrás dele, seus lacaios
levantaram seus machados, martelos e espadas, todos mirando o
Loki Orgulhoso.
— Não está falando sério — o Loki Orgulhoso disse, deduzindo
imediatamente o que ele queria dizer.
— Ora, vamos — o Loki Presidente disse. — O que você
esperava? — Ele sorriu, manipulador.
— Esse não era o acordo! — o Loki Orgulhoso chiou.
Loki pôs as mãos no quadril, assistindo à cena. Teve que olhar
para o chão envergonhado.
— Eu te dei a localização — o Loki Orgulhoso disse, ultrajado. —
E em troca de abrigo e suprimentos você me dá seu exército e eu
ocupo o trono.
— Ah, é — o Loki Presidente disse. — Não é um acordo muito
bom. Que tal esse aqui? — Ele fez uma pausa. — Meu exército,
meu trono. — Ele pareceu muito contente de si.
Um de seus lacaios disse:
— Quanto a isso... — e o bando inteiro de capangas malvestidos
virou as armas para ele.
— Ei — ele vociferou —, seus cabeças de vento, duas caras
incompetentes! Tínhamos um acordo!
Loki cruzou os braços, balançando a cabeça e vendo o drama se
desenrolar.
— Pelo amor de Deus — o Loki Orgulhoso disse.
O Loki Jacaré rastejou para fora de uma pilha abandonada de
pinos de boliche, soltando um rugido grave do fundo da garganta.
— Por que diabos tem um jacaré aqui? — o Loki Presidente
gritou.
— ELE É UM LOKI! — Kid Loki, o Loki Clássico e o Loki
Orgulhoso gritaram em uníssono.
O jacaré saltou no Loki Presidente, mordendo a mão dele e se
debatendo como um peixe num anzol. O Loki Presidente urrou e
grunhiu, tentando se soltar da criatura, depois puxou, com força, a
mão de dentro da boca do jacaré.
A mão, entretanto, fora arrancada e estava na boca do jacaré.
Sangue jorrava do toco moído na ponta do braço dele.
O Loki Presidente gritava com uma soprano. O som agudo doeu
no ouvido de Loki.
E então a luta começou de vez.
O Loki Presidente seguiu gritando enquanto lacaios se viravam
contra lacaios, e o jacaré saltou para a segurança dos braços de Kid
Loki.
Loki, o Loki Clássico, e Kid Loki, que segurava o jacaré, se
esgueiraram pelo caos até a saída. O Loki Orgulhoso derrubou um
dos lacaios, gritando na cara dele e rindo, o que intensificou ainda
mais a briga. Loki ficou grato pela distração, contudo, enquanto ia
furtivamente na direção da saída. Em meio ao caos, escutou o Loki
Orgulhoso gritar:
— O glorioso propósito!
O Loki Clássico conjurou uma cópia perfeita de si mesmo, assim
como cópias de Kid Loki, do jacaré e de Loki. Foi bem
impressionante, na verdade.
O Kid Loki falso arremessou o jacaré falso num dos lacaios, e o
Loki Clássico falso lançou uma esfera de magia verde noutro.
— Vamos — o Loki Clássico verdadeiro disse, e o Loki verdadeiro
o seguiu; eles foram seguidos pelo menino de verdade, que ainda
segurava o jacaré de verdade.
O Loki Clássico conjurou uma porta do nada, e eles a
atravessaram, com o barulho da confusão aumentando lá trás.
— Toma isso, Loki! — alguém gritou.
Loki olhou para trás uma última vez, para o caos criado pelos
Lokis.
Depois entrou pela porta, seguindo seus amigos.
O portal mágico os transportou para as colinas cobertas por
grama acima do bunker. O Loki Clássico não perdeu um segundo.
Saiu marchando irritado.
— Maldição! — ele disse. — Animais, animais! Mentimos, e
trapaceamos, e cortamos a garganta de qualquer pessoa que confia
em nós, e para quê? Poder. O glorioso poder. O glorioso propósito!
— Sua voz ficou triste. — Não conseguimos mudar. Estamos
doentes, todas as nossas versões estão. Para sempre.
— E — Kid Loki disse — sempre que um de nós se arrisca a se
consertar, ele é mandado aqui para morrer.
— É por isso que preciso sair daqui — Loki disse. Esperava que
eles entendessem agora. Esperava que lhe dessem ouvidos. —
Nada disso vai mudar até que alguém pare a AVT.
— E você confia nessa mulher? — o Loki Clássico disse.
Loki sabia que ele estava se referindo a Sylvie.
— Ela é a única de nós em que eu realmente confio — ele disse.
— E, neste momento, acredito que ela é nossa única chance de
parar a AVT.
— Para mim, isso é o bastante — Kid Loki disse.
Fez-se um momento de silêncio.
— Ok — o Loki Clássico disse —, ok. A gente te ajuda, mas... —
Ele olhou de testa franzida para Loki. — Se aproximar do Alioth é
uma sentença de morte. — Ele fez uma pequena pausa. — A gente
te leva até ele, mas só isso.
Loki assentiu. No horizonte distante, nuvens densas rodopiavam
como tinta preta. Não culpava o idoso por não querer chegar muito
perto. Realmente não culpava.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
Loki tinha ouvido falar que a parte mais tediosa da guerra era a
espera. Agora, esperando por Alioth, ele pensou ter entendido.
Mas pelo menos ele estava sentado ao lado de Sylvie.
O céu estava cinzento, e o vento sibilava, um aviso de que a
tempestade se aproximava. A grama balançava ao vento. O
horizonte brilhava.
Sim, Loki pensou, não pela primeira vez. Até o fim do mundo é
belo quando estou com ela.
— Mobius não é nada mau — Sylvie disse.
— Nem tão bom assim — Loki disse, com um sorrisinho. — Acho
que é por isso que nos damos bem.
Sylvie gostou daquilo e deu uma risadinha, e Loki se deu conta do
quanto gostava de diverti-la.
— Ele se importa com você — ela disse.
Loki olhou para ela, então. Olhou mesmo para ela. Eu me importo
com você, ele queria dizer. Mas não disse. Em vez disso, olhou em
volta, esfregando os braços.
— Está frio — disse.
— Uhum — Sylvie disse.
Loki olhou de volta para ela, mas seus olhos miravam o horizonte.
Ele conjurou uma manta verde elegante para se cobrir e a fechou
bem sobre os ombros, protegendo-se do vento gelado.
— Posso fazer uma para você, se quiser — ele disse.
Sylvie torceu o nariz.
— Que tal o seguinte — ela disse, segurando o colarinho —, você
pode me fazer uma roupa nova. Não faz ideia de como esse
negócio é desconfortável. — Ela olhou para baixo.
Loki não conseguia olhar para ela sem sentir seu rosto ficar
quente. Então ele olhou para baixo, em vez disso, sorrindo
desconsertado.
— Então... — Sylvie disse — Mobius tem uma teoria sobre...
ãhm... sobre...
— Ah, é, é. A teoria sobre nosso Evento Nexus — Loki disse.
Finalmente falariam sobre o que aconteceu em Lamentis-1? Será
que Sylvie finalmente admitiria que se sentia igual?
— Uma baboseira completa, né? — Sylvie disse.
O coração de Loki ficou apertado.
— Definitivamente — ele disse. — É claro, quer dizer... — A voz
dele sumiu.
— Não que não tenha sido, você sabe, um momento bacana...
— Não, foi ótimo. Bem legal. Foi ótimo.
— É só que parece outra mentira da AVT — Sylvie disse.
— Cem por cento — Loki disse. — Quer dizer, é, completamente
— Não conseguia olhar para ela. Mas também não conseguia não
olhar para ela. Ele a olhou com o canto do olho, tentando adivinhar
o que ela estava sentindo.
— Eu não sei como fazer isso — Sylvie sussurrou.
— Eu nem sei o que estamos fazendo — Loki falou, honesto.
Sylvie o olhou nos olhos.
— Eu não tenho... amigos. Eu não tenho... ninguém.
— Bem, tem coisas mais importantes que isso, né?
— Certo, é. Como acabar com a AVT.
— E salvar o universo também, né? Se a gente parar para pensar.
— Bem, também não precisa ser tão dramático, mas é, mais ou
menos — Sylvie tirou um fio de cabelo do rosto.
O vento soprou frio entre eles no silêncio.
Loki usou sua magia para alongar a manta, e a passou sobre o
ombro de Sylvie também. Ela puxou o tecido e chegou mais perto
dele.
— Não é muito fofinha — ela disse.
— Ok — Loki disse, rindo.
— É uma tolha de mesa?
— Não, é uma manta! — Loki riu de novo.
Sylvie inspirou, como se precisasse de muita força para dizer as
palavras a seguir.
— Obrigada — ela disse.
— O prazer é meu — Loki disse.
O silêncio se estendeu novamente, como se Sylvie estivesse
juntando forças para dizer o que queria dizer.
— Como eu sei que nos momentos finais você não vai me trair?
— ela perguntou.
— Escuta, Sylvie, eu... — Loki expirou longamente. — Eu traí
todos que já me amaram. Traí meu pai, meu irmão. Meu reino. Eu
sei o que fiz. E sei por que fiz isso. E esse não é mais quem eu sou.
Ok? Não vou te decepcionar. — Loki não se lembrava da última vez
que falou com tanta sinceridade sem nenhum objetivo ulterior, sem
nenhum plano, só pura e ardente honestidade.
— Tem certeza? — Sylvie disse, olhando-o nos olhos. — Por que,
se tivermos sucesso, e a AVT for destruída... Talvez exista uma linha
do tempo para você governar. — Ela ergueu as sobrancelhas do
jeitinho dela, e era impossível para ele saber se ela estava
brincando ou não desse jeito.
— Ah — ele disse, inclinando a cabeça na direção dela —, e
então eu finalmente vou ser feliz. — Ele sorriu, e ela devolveu o
sorriso, depois suspirou. — E quanto a você? — ele perguntou. — O
que vai fazer quando tudo isso acabar?
Sylvie fez uma careta.
— Eu não sei — ela disse.
— Eu também não — Loki disse. Nunca tinha falado tão
honestamente sobre seus sentimentos com ninguém. Era assim que
era uma amizade verdadeira? Era assim que era amar alguém? —
Talvez... — ele disse, engolindo o nervosismo. — Talvez possamos
descobrir... juntos — Seu rosto estava tão próximo do de Sylvie, tão
perto que podia sentir o cheiro de seu cabelo.
— Talvez — ela disse.
E então o coração de Loki fez o inconcebível: ele literalmente
bateu mais forte.
A ventania aumentou, e aqueles faisões esquisitos com bolas
flutuantes no lugar das cabeças chilrearam, se espalhando pelo
mato.
Um trovão rugiu.
Alioth estava vindo.
CAPÍTULO TRINTA E SETE
Mobius olhava atônito para a grande tela diante dele. A tela que
normalmente mostrava a Linha do Tempo Sagrada em toda sua
gloriosa linearidade. Ela estava bem diferente. Havia tantas
ramificações divergindo da Linha do Tempo Sagrada que parecia
que ramos de hera cresciam sobre a tela escura. Os computadores
dos analistas apitavam freneticamente, mas os analistas estavam
calmos, como se soubessem que não havia mais nada a ser feito
agora.
— Agora não tem mais volta — Mobius disse.
A Caçadora B-15 estava ao seu lado.
— Quem falou de voltar atrás? — ela disse.
Mobius franziu a testa olhando para a tela, sem olhar nos olhos de
B-15.
— Por todo o tempo — ele disse.
— Sempre — ela respondeu.
FIM
siga nas redes sociais:
@editoraexcelsior
@editoraexcelsior
@edexcelsior
@editoraexcelsior
editoraexcelsior.com.br