Você está na página 1de 306

Novelização da série televisiva

por HAYLEY CHEWINS


© 2023 MARVEL. All rights reserved.
Loki: the series – Season 1

Todos os direitos de tradução reservados e protegidos pela Lei


9.610 de 19/02/1998.
Nenhuma parte desta publicação, sem autorização prévia por escrito
da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem
os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos,
gravação ou quaisquer outros.

EXCELSIOR — BOOK ONE


tradução júlia serrano
preparação rafael bisoffi
revisão silvia yumi fk e tainá fabrin
arte e capa francine c. silva
diagramação renato klisman
tipografia adobe caslon pro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

C452L Chewins, Hayley


Loki – Novelização da série televisiva [livro
eletrônico] / Hayley Chewins ; tradução de
Júlia Serrano. –– São Paulo : Excelsior, 2023.
3Mb ; ePUB

ISBN 978-65-80448-83-8 (e-book)


Título original: Loki: the series – Season 1

1. Literatura norte-americana 2. Loki – Personagem


fictício I. Título II. Serrano, Júlia

23-3259 CDD 813


PRÓLOGO: 2012

Acidade de Nova Ior ue estava em chamas


Loki estava de pé num arranha-céu incendiado. De algemas.
Cercado por Vingadores.
Ele não estava nem tentando disfarçar seu descontentamento.
O Capitão América passou andando altivo, com um celular
encostado na orelha.
— Estou a caminho para coordenar operações de busca e resgate
— disse.
Loki não conseguiu se segurar e logo em seguida se transformou
numa cópia idêntica ao Capitão América e imitou a fala num tom
jocoso:
— “Estou a caminho para coordenar operações de busca e
resgate”. — Voltando a sua forma normal, ele revirou os olhos,
então olhou para Thor. — Sério mesmo — ele disse —, como é que
você faz para não vomi...?
Mas antes que conseguisse terminar de falar, Thor prendeu uma
mordaça sobre a sua boca.
— Cala a boca — seu irmão disse, e Loki, agora algemado e
amordaçado, pôde apenas fazer careta.
Os Vingadores o escoltaram até um elevador, Thor ficou de
guarda ao seu lado, e Tony Stark com a maleta de metal que
guardava o Tesseract entre as pernas.
Havia outras pessoas no elevador também, mortais com
aparência levemente militar. Loki quis zombar de sua insignificância,
mas infelizmente a mordaça atrapalhava os movimentos de seu
rosto.
Quando Hulk estava prestes a entrar no elevador, Stark levantou
uma mão.
— Ô, ô, ô — Thor disse.
— Ei, ei, cara. Qual é a sua? — Stark disse — Já está com a
ocupação máxima.
— Vai pela escada — Thor sugeriu.
Loki acenou para o monstrão gigante num gesto que esperava
mostrar toda sua falsa empatia.
O Hulk se jogou contra as portas fechadas do elevador.
— É. Para, para — Stark disse.
O elevador começou a descer.
Quando chegaram ao lobby, os Vingadores o atravessaram com
seu porte arrogante usual, o que irritava Loki. Ele gostava mesmo
era quando eles se ajoelhavam para os humanos. Aqueles
“agentes” ridículos de ternos pretos. Poderia haver algo mais
lamentável que uma pessoa que acreditava ser poderosa, mas de
fato — verdadeira e desesperadamente — não era? Loki riu por trás
da mordaça.
— Entregue a maleta, Stark — um dos agentes disse, estendendo
a mão para pegar a maleta e o precioso Tesseract dentro dela.
Mas Tony Stark não a soltou.
— Entregue agora — o agente repetiu rangendo os dentes.
Mas Stark não lhe deu ouvidos.
O agente agarrou e virou o pulso de Stark tentando arrancar a
maleta dele.
Sucedeu-se uma briga. Loki viu Stark derrubando a maleta. Ela
saiu derrapando pelo chão brilhoso do lobby.
Loki piscou, acompanhando a maleta. Ele franziu a testa. Tinha
algo estranho acontecendo...
A maleta parou de derrapar e um agente a apanhou do chão. Pelo
menos, Loki pensou que era um agente, até o homem pegar um
telefone e dizer:
— Bom trabalho. Me encontre no beco. Vou só pegar uma pizza,
rapidinho.
Eu conheço essa voz, Loki pensou. É o Stark.
Mas Tony Stark estava ali no lobby, de camiseta e jeans. Não
estava usando um uniforme preto, e não estava andando na direção
da saída, carregando a maleta de metal. Só tinha um jeito de o
homem segurando a maleta e o homem de camiseta serem Tony
Stark.
Um deles era do futuro.
Loki precisou admitir que aquele era um plano engenhoso (e ele
entendia bem de planos engenhosos).
O Tony Stark do presente tinha enrolado apenas o suficiente para
o Tony Stark do futuro pegar a maleta.
Loki viu o Tesseract ser levado para longe dele por um segundo,
imaginando que seu propósito glorioso estava sendo levado dele
também. Sentiu um aperto no peito.
Mas, pelo visto, monstros verdes gigantes com o autocontrole de
uma criança pequena têm seus usos.
Momentos depois, tudo mudou.
Graças ao Hulk, que arrombou a porta da escada, lançando todo
seu peso contra o Stark do futuro. O corpo comparativamente mais
frágil do Tony do Futuro, com o rosto coberto dentro de sua
balaclava preta, foi arremessado até o outro lado da sala. A maleta
metálica também saiu voando, e o impacto foi grande o suficiente
para que ela abrisse.
O Tesseract caiu de dentro dela e deslizou feito um cubo de gelo
pelo chão branco brilhoso — e parou bem nos pés de Loki.
O Hulk agora estava gritando:
— Escada não! — Ele esmurrou as paredes e avançou sobre um
grupo de espectadores. Seus gritos geraram mais gritos, se
espalhando pela multidão como um eco.
As mãos de Loki estavam algemadas, e sua boca, amordaçada,
mas ele ainda podia se abaixar para apanhar o Tesseract.
No meio do caos, ninguém percebeu.
Ninguém sequer olhou em sua direção.
Idiotas, ele pensou enquanto segurava o Tesseract em suas
mãos.
Ele fechou os olhos enquanto era carregado através do tempo e
espaço na velocidade da luz. Na escuridão, escutou seu irmão dizer:
— Cadê o Loki? Loki! Loki!
E não pôde evitar sorrir.
CAPÍTULO UM

Quando deu por si, Loki estava sendo arremessado por um buraco
no céu. O buraco fechou atrás dele como um olho que se cerra, e
ele caiu, aterrizando bruscamente num banco de areia fria.
Acordou no Deserto de Gobi.
As areias douradas rodopiavam ao seu redor, sacodidas por um
vento fantasmagórico. Contente por notar que, de alguma forma,
estava livre das algemas, ele arrancou a mordaça e cuspiu poeira.
Depois, sentou-se devagar, sentindo o peso que o tempo tinha
deixado em seu corpo, como se o preço por viajar com o Tesseract
fosse a gravidade dobrada ou triplicada.
Um cachorro latiu ao longe. Muito distante dali, havia um
acampamento modesto de tendas de couro.
Um punhado de pessoas se aproximou, suas feições sérias e
seus passos amortecidos pela areia. Todos eles estavam com
roupas tradicionais mongóis — e com expressões de confusão,
desconfiança e medo. Seus olhos investigavam Loki enquanto
estavam parados diante dele em silêncio.
Loki os encarou de volta por um momento, antes de saltar para
ficar de pé e fazer a única coisa que sabia fazer: exercer
dominação. Subindo numa pedra próxima, posicionou-se altivo.
Tomou a expressão focada de um deus todo poderoso.
— Eu sou Loki de Asgard — ele disse com as sobrancelhas muito
franzidas. — E carrego o fardo de um glorioso propósito! — Ele
sentiu as palavras reverberarem em suas entranhas. Sim, ele era
um vigarista, e orgulhoso de ser. Mas essas palavras não eram
enganação — eram a verdade mais verdadeira para ele.
Uma mulher com chapéu de pele disse:
— Quem é você? Por que veio a nossa casa?
Loki nunca escutara mongol antes, mas conseguia entender.
Afinal de contas, era um deus.
— Eu — ele tinha acabado de abrir a boca para responder
quando surgiu um som como o tinir de um vidro.
Ele virou a cabeça na direção e viu uma porta de luz aparecer no
ar. Três figuras vestidas no que pareciam ser uniformes militares
pretos passaram pelo retângulo brilhante. Loki pensou como
pareciam com aqueles agentes idiotas do FBI. Ele assistiu a um
deles se ajoelhar para observar o Tesseract, que brilhava, azul como
uma safira inestimável, contra a areia cintilante.
— Deixa para lá — ele disse à mulher com o chapéu de pele,
pulando da pedra e indo na direção do Tesseract. Não podia arriscar
perdê-lo mais uma vez. — Não toque nisso! — ele gritou com a
pessoa agachada.
Os três soldados ficaram paralisados por um segundo, mas então
se puseram, quase instantaneamente, numa organização ofensiva.
Suas armas, que lembravam bastões pretos, miravam Loki, e seus
corpos estavam tensos, prontos para um confronto.
Então uma nova porta translúcida cortou um retângulo brilhante
no ar, e uma mulher passou por ela. Vestia um uniforme similar, com
seu capacete preto irrompendo sobre a cabeça, mas ela não se
agachou ou recuou. Permaneceu altiva, sua pele escura iluminada
pelo sol do deserto.
— Parece ser uma violação padrão de sequência — ela disse.
Nas mãos, segurava um objeto retangular não muito diferente de um
Game Boy clássico. Ela apertou os olhos para enxergar algo nele.
— A ramificação está crescendo em taxa e inclinação estáveis —
acrescentou. — Variante identificada.
Loki inclinou a cabeça, enrugando a testa.
— Como é que é? — ele disse.
Mas a mulher não mostrou interesse em se explicar.
— Em nome da Autoridade de Variância Temporal — ela disse —,
eu o declaro preso por crimes contra a Linha do Tempo Sagrada.
As outras figuras uniformizadas ainda apontavam seus bastões
pretos para o peito de Loki, como se fossem armas de fogo. Atrás
deles, o céu do deserto ficava carregado de nuvens cor de carvão.
Loki teve a clara impressão de estar sendo desrespeitado, o que
sempre o deixava de mau humor.
— Mãos para cima — a mulher disse. — Você vem com a gente.
Os soldados atrás dela ativaram seus bastões estranhos. A ponta
de cada um deles brilhou âmbar. As armas emitiram um zunido
elétrico, como um motor se aquecendo.
— Desculpa — Loki disse, incapaz de esconder o desdém em sua
voz —, quem é “a gente”?
Eles não sabiam quem ele era? Era Loki. De Asgard. O vento
balançou sua longa capa verde como se concordasse com ele.
Mas a mulher se negou a responder à pergunta.
— Última chance, variante — ela disse, ativando sua própria
arma, que ficou com a ponta cilíndrica brilhando como um cigarro
aceso. Loki notou que seu capacete estava estampado com uma
letra e um número: B-15.
Pôs as mãos no quadril e riu, mas não de um jeito amigável.
Estava irritado. Podia sentir a veia proeminente pulsar em sua testa.
— Esse dia foi bem longo — Loki riu —, e acho que já tive minha
cota de idiotas em armaduras me dizendo o que fazer. Então, se
não se importam, essa é, na verdade, a sua última chance. — Ele
estufou o peito e encarou B-15. — Agora — rugiu —, saiam do meu
caminho.
Deu um passo na direção da mulher, pronto para um combate,
mas numa fração de segundos ela o derrubou, acertando a ponta do
bastão contra o queixo dele.
A dor foi aguda, instantânea, intensa, e ele caiu para trás, porém
devagar, mais devagar do que jamais tinha se movido antes, como
se o ar ao seu redor de repente estivesse mais denso.
O tempo o envolveu, sugando-o até que parasse, estendendo o
momento numa única, longa e pegajosa sensação.
Estava paralisado. A dor vibrava dentro dele.
Então sentiu uma coleira se fechar em seu pescoço, travando
com um bip suave.
Escutou as palavras da B-15 como se estivessem sendo ditas
numa galáxia distante:
— Você está se movendo a uma velocidade dezesseis vezes
menor, mas a dor é em tempo real. — Ela parecia incrivelmente
contente.
O tempo segurou Loki no lugar por um momento ou dois antes de
ele cair na areia, batendo de costas com força.
Os soldados com suas botas e capacetes pretos foram em sua
direção e o içaram de pé.
Ao se aproximarem, Loki viu que uma espécie de insígnia laranja
e vinho que ele não conhecia estava costurada em seus uniformes
também.
Mais uma vez, a porta de luz translúcida se abriu no ar, e ele foi
carregado até ela.
Atrás dele, escutou B-15 gritar mais uma ordem:
— Resete a linha do tempo.
As palavras não faziam sentido, e ainda assim ela as disse com
tanta autoridade, tanta convicção.
Ao se virar, ele a viu pegar o Tesseract.
Então um de seus subordinados colocou um objeto na areia —
algo que parecia uma lanterninha minúscula. Uma lanterninha feita
de prata e vidro brilhante, preenchida por luz laranja.
O soldado girou o topo da lanterna, e o brilho laranja ficou roxo,
escurecendo gradualmente até o preto, como uma nuvem
tempestuosa em miniatura. Uma luz como a de um amanhecer
escapou da lanterna e se espalhou pela areia como uma película de
água.
Loki não fazia ideia do que estava vendo, mas aquilo lhe deu um
pressentimento terrível. Ele tentou se virar para assistir à luz forte
cobrindo a superfície caramelo do deserto, mas os soltados o
seguraram firme. B-15 o empurrou pela porta translúcida, e num
único instante o mundo todo mudou.
CAPÍTULO DOIS

Loki não estava mais no deserto de Gobi.


O povo local que o havia encontrado — e que tinha olhado para
ele com tanto medo e curiosidade — não estava à vista. O cachorro
havia parado de latir. Suas tendas não mais pontilhavam o
horizonte.
Na verdade, não havia horizonte. O céu desaparecera. As
montanhas foram dobradas e guardadas.
Loki estava dentro de um prédio.
Parecia uma espécie de escritório governamental ou uma
instalação administrativa. Tudo ali gritava burocracia.
O saguão de teto rebaixado estava limpo e organizado, seu piso
laranja e suas paredes de painéis de madeira brilhavam como se os
tivessem acabado de polir. O teto era de um pêssego vibrante, e
havia azulejos marrons nas paredes, decorados com círculos e
semicírculos alaranjados.
Loki teve apenas alguns segundos para absorver o ambiente,
porém, antes que B-15 o puxasse por uma porta e o guiasse até
uma sala perfeitamente circular.
Mais paredes de painéis de madeira, mais piso laranja lustroso.
Loki olhou para o alto e viu que o teto era decorado por anéis
concêntricos de luzes redondas.
No centro da sala havia uma mesa laranja vivo. De trás da mesa,
um homem cheio de entusiasmo entregava uma prancheta a outro
prisioneiro de coleira, apontando para um formulário com um lápis.
A criatura de coleira parecia ser algum tipo de réptil. Sua cabeça era
coberta por escamas, e suas orelhas eram pontiagudas como as de
um elfo.
— Que espécie?
— Variante Skrull — Foi a resposta perturbadora.
Loki estava bem cansado de se sentir perturbado.
— Que lugar é esse? — ele arfou.
Do outro lado da sala, outro soldado passou por outra porta,
puxando consigo um homem enfurecido.
— Meu pai é da diretoria da Goldman Sachs! — o homem gritou.
— Uma ligação e sua carreira toda é terceirizada!
O soldado não pareceu se afetar com aquilo.
— Está certo — falou indiferente, como se já tivesse escutado a
mesma ameaça milhares de vezes.
— Seu trabalhinho — berrou o homem aborrecido —, está bom
assim para você?
Mas o soldado nem estava prestando atenção. Ele arrastou o
homem até a mesa laranja da recepção, onde o recepcionista
entusiasmado estendeu uma prancheta para ele também.
Loki podia ver que o Homem Enfurecido da Goldman Sachs era
um idiota convencido, então não sentiu pena dele — o que sentiu
mesmo foi que poderia usá-lo como uma distração.
Enquanto B-15 observava o homem reclamar, balançando a
cabeça, Loki saiu correndo.
Por um breve lindo momento, ele pensou que poderia escapar.
Ele era, afinal de contas, muito bom em escapar.
Mas B-15 pegou um pequeno cronômetro dourado e zerou o
tempo; e Loki se viu carregado de volta no tempo, de volta ao
momento em que ele estava acabando de decidir fugir. Ele olhou
para ela incrédulo, e imediatamente tentou correr novamente. Dessa
vez, ele deu apenas um passo antes de ela o arrastar de volta. Ele
caiu de joelhos e tentou arrancar a coleira do pescoço, mas ela nem
se mexeu. Sentiu-se preso como um animal, e queria agir como um
— queria atacar e rosnar, mas não se submeteria a isso. Pelo
menos não ainda.
B-15 segurou mais uma vez seu braço e começou a erguê-lo.
— Venha — ela disse. Sua voz cansada, como se Loki fosse
apenas uma das mil coisas inconvenientes com que ela precisava
lidar naquele dia.
— Você está cometendo um erro terrível — Loki disse enquanto
ela o empurrava na direção da mesa de recepção.
Do outro lado da sala, o Homem Enfurecido da Goldman Sachs
dizia aquelas mesmas palavras, tentando se desvencilhar do seu
captor.
— Você está cometendo um erro terrível! — As palavras ecoaram
ameaçadoramente pelo cômodo.
O recepcionista entusiasmado sentado à mesa, com sua camisa
engomada e seu cabelo liso preto muito bem penteado, voltou seus
olhos abertos cheios de energia na direção de B-15. Ele estendeu
uma prancheta com um formulário preso a ela.
— Olá, senhora, ãhm...
Ela o cortou, ignorando a prancheta.
— Protocole como evidência — ela disse, pondo o Tesseract
sobre a mesa.
Os olhos do recepcionista baixaram até o cubo iluminado. Ele o
apanhou hesitante.
— Ah — ele disse —, pode pelo menos me dizer o que isso é?
B-15 o ignorou e levou Loki com ela, na direção de um elevador.
Loki se virou e gritou para o homem:
— É o Tesseract — disse. — Tenha muito cuidado com ele.
— Que nome bobo — o recepcionista disse
despreocupadamente.
Loki estremeceu. Ele não podia acreditar que tinham acabado de
entregar um dos objetos mais poderosos do universo a um homem
que parecia um gerente de uma loja de iogurte saborizado.
Mas B-15 nem notou seu sofrimento. Ela puxou a alavanca ao
lado do elevador.
Ouviu-se o som de metal em movimento — umas chacoalhadas
rítmicas lentas.
Enquanto esperavam, Loki se virou para ela.
— Fique sabendo — ele disse —, que você me irritou, e haverá
sérias consequências. — Ele usou sua mais intimidadora expressão
de deus poderoso, mas ela não vacilou.
— Veremos — ela disse, impassível, e, quando as portas do
elevador se abriram, ela o empurrou para dentro e o encarou até
que as portas se fecharam na frente dela.
CAPÍTULO TRÊS

Loki estava sozinho no escuro, escutando à própria respiração.


Então, de trás de si ele ouviu sons distintivamente robóticos
Alguma coisa tocou seu ombro.
Alguma coisa estava revistando suas roupas.
— Ei, ei! — ele disse, indignado, virando-se.
Uma luz se acendeu. Sobre Loki estava um robô arredondado
com quatro membros multiarticulados. Os membros projetavam-se
do corpo como os de uma aranha e zuniam enquanto se mexiam,
como se estivessem se aquecendo. O corpo do robô funcionava
também como seu rosto: uma tela preta brilhando com dois olhos
laranjas quadrados e uma linha curva laranja que servia de boca.
Era fofo — de um jeito assustador. Loki não sabia se retribuía o
sorriso, ou se corria até o canto do elevador.
Então, em vez disso, ele ficou paralisado.
O robô assustadoramente fofo mexeu um de seus membros
articulados, o estendendo até Loki, e puxou sua capa e o imponente
peitoral de sua armadura.
— De jeito nenhum — Loki disse, enxotando o braço do robô. Ele
apontou para seu peitoral. — Isso é puro couro asgardiano.
O robô chiou, seu sorriso de brilho laranja transformou-se numa
careta.
Um de seus braços metálicos rotacionou para ficar no meio dele.
O membro — que infelizmente parecia muito com uma arma —
estava diretamente apontado para Loki. Ele zuniu, sua ponta
brilhando.
O robô falou, sua voz estava distorcida como numa ligação ruim.
— Fique bem quietinho — disse.
Loki não teve tempo de protestar. Um segundo depois, o robô
tinha desintegrado suas roupas.
Ele olhou ao redor do elevador, aturdido e completamente pelado.
Isso foi outro nível de humilhação.
O robô sorriu de maneira assustadora para ele.
— Calma lá — Loki disse, balançando seu dedo na direção do
robô e tentando não mostrar o desespero em sua voz —, espera aí
um minuto...
Mas antes que pudesse terminar, o chão estampado se abriu sob
seus pés, e ele não conseguiu evitar o grito de pavor enquanto caía.
Loki bateu com força no chão, depois se colocou de pé em um
salto e viu que estava dentro de outro elevador, vestindo um
macacão marrom feio, marcado com as letras AVT na frente.
Um gato piscou para ele do canto do pequeno e sujo ambiente.
Loki olhou para o alto, surpreso em ver um homem inexpressivo o
encarando do outro lado de uma mesa abarrotada.
Acomodada na mesa estava uma pilha de papel com uma caneta
esferográfica em cima.
O homem empurrou a pilha de papel na direção de Loki.
— Por favor, assine para confirmar que isso é tudo que você já
disse — Ele não estava sorrindo.
— Quê? — disse Loki.
Uma impressora ao lado do homem sem sorriso botou para fora
outra folha, e ele a colocou no topo da pilha.
— Assine aqui também — disse, ajustando a posição da caneta.
Loki deu um passo adiante para ler a página nova. A última
palavra que dissera estava impressa nela, acompanhada do registro
da hora.
— Ah, mas isso é absurdo — disse, com as mãos no quadril.
Olhou irritado para o homem sem sorriso. Mas essa gente, quem
quer que fosse, não parecia ser afetada por olhares mal-encarados.
A máquina ao lado do homem zuniu, pondo para fora outra folha.
O homem pôs a nova folha no topo da pilha. Não parecia contente.
— Aqui também — disse, monótono.
Havia apenas uma coisa a se fazer. Loki deu um passo à frente,
inclinando-se sobre a pilha de papel, e rabiscou agressivamente seu
nome, olhando feio para o homem com toda sua força. Ele bateu a
caneta no papel e a soltou.
Voltando para onde estava, Loki esperava que as portas do
elevador atrás dele se abrissem, mas o chão afundou mais uma vez,
e ele caiu aos gritos.
Aterrissou de cócoras — pelo menos dessa vez estava mais
preparado — e, pondo-se de pé, apontou o dedo com raiva para o
teto.
Assim que recobrou o fôlego, percebeu estar diante de uma
máquina similar àqueles detectores de metal que os mortais gostam
de usar em aeroportos, mas essa máquina em particular parecia ser
feita de madeira.
Do outro lado da máquina estava uma pequena pessoa com uma
prancheta, e usava uma camisa com as mangas dobradas e um
colete tricotado com um broche dourado da AVT.
O homem falou num tom monótono e entediado:
— Por favor, confirme que, até onde você saiba, não é um ser
completamente robótico, que você nasceu como criatura orgânica, e
que possui de fato o que muitas culturas chamariam de alma. — Ele
olhou para cima, encarando Loki, como se aquilo fosse algo
perfeitamente normal a se dizer.
— O quê? — Loki disse, espantado. — Até onde eu saiba? Muitas
pessoas não sabem se são robôs?
A essa altura, já devia estar acostumado ao absurdo do mundo
estranho e burocrático em que estava. Mas ainda estava relutante.
Não era possível que aquilo estivesse acontecendo.
Não era possível que ele estivesse ali.
Era?
O homem não respondeu à pergunta de Loki. Apenas olhou para
sua prancheta e disse:
— Obrigado pela confirmação. Por favor, pode passar.
Loki hesitou, inspecionando a máquina, que pulsava com energia
vibrante. Ele levantou as mãos, com as palmas para frente, para
senti-la vibrando no ar. Então, um pensamento lhe ocorreu.
— E se eu fosse um robô e não soubesse? — perguntou.
— A máquina te derreteria de dentro para fora — o homem disse
sem um pingo de emoção na voz. — Por favor, siga adiante, senhor.
Essa gente! Eles são mesmo capazes de falar as absurdidades
mais absurdas sem nem piscar!
Loki sentiu suas entranhas congelarem. Inspirou fundo.
— Ok — ele disse a si mesmo —, eu não sou um robô, então vou
ficar bem.
Devagar e hesitante, ele atravessou a máquina.
Um zumbido como o de uma câmera velha soou, e depois veio
um flash de luz, o som de uma foto sendo tirada.
Loki sentiu o calor do flash e fechou os olhos, ficando tenso.
— Quê? — murmurou consigo.
Depois que terminou, ele ficou aliviado ao ver que estava do outro
lado, definitivamente não derretido.
A máquina produziu uma espécie de fotografia em polaroide, mas
nenhuma face régia estava se revelando em sua superfície. Em vez
disso, um mapa borrado de cores, tal qual uma aquarela ruim,
cobriu o retângulo.
— Ei, o que é isso? — Loki perguntou.
— Sua aura temporal — disse o homem, olhando a imagem com
uma expressão inescrutável.
— O que é isso? — Loki disse. Ele estava cansado mesmo de
fazer aquela pergunta, mas não achava que tinha outra opção a
essa altura.
— Por favor, siga pela porta — disse o homem. Ele apontou para
as portas do elevador atrás dele, que se abriram para outra sala,
dessa vez com piso xadrez. Aquelas mesmas luzes circulares
estampavam o teto, e organizadores de fila serpenteavam até uma
linha de mesas protegidas por escudos de acrílico.
As caixas de som embutidas tocavam música de elevador. Elas
deveriam acalmar, Loki supunha, mas sempre o deixavam tenso.
Ele entrou na sala e olhou em volta.
O homem enfurecido de antes — cujo pai supostamente
trabalhava na Goldman Sachs — se aproximou pela esquerda.
Tinha vindo de seu próprio elevador? Loki olhou ao redor. O prédio
parecia se abrir e fechar ao bel-prazer como um origami de tijolos e
argamassa.
Uma voz bradou uma ordem:
— Pegue uma senha. — Aqui estava mais um daqueles soldados,
vestindo um uniforme preto, apontando para um dispersador de
senhas antigo.
O Homem Enfurecido da Goldman Sachs ainda estava
enfurecido.
— Isso aqui por acaso é um banco? Não. — ele se enfiou pela
catraca metálica e começou a se dirigir até as mesas do lado oposto
da sala.
O soldado deu de ombros e então apontou para o dispersador de
senhas novamente, dessa vez falando com Loki.
— Pegue uma senha — ele disse, calmo.
Loki encarou o soldado. Ele olhou para o Homem Enfurecido da
Goldman Sachs. Olhou de volta para o soldado.
— Só tem nós dois aqui dentro — ele disse. Certamente a razão
venceria.
— Pegue. Uma. Senha — o soldado disse entredentes.
Loki revirou os olhos, ficou de cara feia para o soldado enquanto
arrancava uma senha, enfiou o papel no bolso, e passou pela
catraca metálica. O soldado apenas encarou de volta, com sua arma
em riste, antes de se virar para ficar em sua posição original.
Loki continuou andando, enquanto olhava irritado para o chão
xadrez, as paredes de painéis de madeira, os pôsteres nelas com
slogans do tipo “OBEDEÇA! OU SEU RELÓGIO PARA!”
E então ele parou, não resistindo o impulso de bater o pé no chão
e gritar. Num só momento, ele explodiu com toda a frustração das
últimas horas.
— Isso é um engano! — ele gritou. — Eu não devia estar aqui!
O soldado nem sequer se moveu.
Nesse instante, Loki ouviu a voz de uma mulher. Era suave e
amigável, com um sotaque meio sulista dos Estados Unidos.
— Olá! Você deve estar dizendo “Isso é um engano. Eu nem
deveria estar aqui!”
Loki virou de um lado para o outro, procurando de onde vinha a
voz, mas não tinha ninguém ali.
Então ele notou a tela de uma pequena televisão subindo, com
várias ilustrações passando. Havia uma fileira de televisões, na
verdade, todas mostrando animações idênticas. Um relógio laranja
ilustrado com feições femininas, de olhos grandes, no estilo Betty
Boop, e fazendo biquinho com a boca, apareceu nas telas acenando
amigavelmente. Atrás dela brilhava um universo de estrelas e
plantas.
— Seja bem-vindo à Autoridade de Variância Temporal — disse a
relógio, com sua voz amigável amplificada pelo sistema de som. —
Eu sou a Senhorita Minutos, e o meu trabalho é te manter atualizado
a respeito de tudo antes que você passe pelo julgamento dos seus
crimes.
Sua voz era alegre, mas Loki ainda sentiu a palavra crimes
estremecer seus ossos.
Ele tinha cometido crimes, é claro — muitos crimes, por sinal. Ou
pelo menos, as pessoas lhe disseram que tinha. Mas que crimes ele
cometera contra a AVT? Parecia altamente improvável que tivesse,
principalmente porque nem sequer sabia do que se tratava.
O desenho na tela mostrava um relógio laranja dentro de um
relógio cuco, com o pêndulo estilizado na forma de uma corrente
com bola de ferro. A animação divertida não conseguiu aplacar o
pânico ou a confusão de Loki.
— Então — a Senhorita Minutos continuou —, não vamos perder
mais nem um minuto. Se acomode, aponte seu lápis, e se liga nisso
aqui.
Loki já estava aborrecido com sua voz açucarada. Parecia que ela
estava oferecendo uma amostra de produto numa loja e não o
instruindo sobre seus “crimes”.
Mas ele prestou atenção na tela mesmo assim, perplexo demais
para tirar os olhos.
A tela da TV mostrava um céu vasto de estrelas cintilantes
enquanto a voz da Senhorita Minutos ressoava pela sala:
— Muito tempo atrás, ocorreu uma grade Guerra Multiversal.
Incontáveis linhas do tempo singulares batalharam umas contra as
outras por supremacia, quase resultando na destruição total de,
bem, tudo.
As linhas do tempo iluminaram a tela como minhocas se
contorcendo antes de explodirem numa nuvem cogumelo cinzenta.
Essa está dando demais na cara, Loki pensou.
— Mas então — a Senhorita Minutos continuou —, os Guardiões
do Tempo oniscientes surgiram, trazendo paz ao reorganizar o
multiverso numa única linha do tempo: a Linha do Tempo Sagrada.
Agora, os Guardiões do Tempo protegem e preservam o devido
fluxo do tempo para tudo e todos.
Loki piscou para a telinha redonda. O desenho mostrava três
pessoas de pele azul vestindo robes e coroas, com um diamante de
luz nas testas. Elas seguravam a Linha do Tempo Sagrado — uma
linha azul pálida brilhante — nas mãos, gigantes sobre ela.
Guardiões do Tempo? Pensou Loki, tentando não revirar os olhos.
Que absurdo é esse?
Então a imagem mudou, passou a mostrar um homenzinho
amarelo andando por uma rua agitada.
A Senhorita Minutos não tinha terminado ainda.
— Mas às vezes — ela continuou —, pessoas como você
desviam do caminho criado pelos Guardiões do Tempo. Nós as
chamamos de variantes. Talvez você tenha dado início a uma
revolta, ou só se atrasou para o trabalho. O que quer que tenha
sido, ter se afastado do seu caminho causou um Evento Nexus, que,
se não for controlado, pode se ramificar até a loucura, levando a
outra Guerra Multiversal. Mas não se preocupe! Para garantir que
isso não aconteça, os Guardiões do Tempo criaram a AVT e todos
os seus trabalhadores incríveis. A AVT chegou para consertar o seu
erro e colocar o tempo de volta no seu caminho predeterminado.
Agora que suas ações deixaram você sem um lugar na linha do
tempo, você precisa ser julgado por seus delitos. Então aguarde um
pouco que logo, logo você estará diante de um juiz.
A animação mostrava o homenzinho amarelo com uma coleira no
pescoço, cercado por funcionários animados da AVT.
— Basta pegar sua senha — Senhorita Minutos continuou — que
você será chamado pelo próximo atendente disponível.
O logo da AVT apareceu na tela, acompanhado pelo slogan: Por
todo tempo. Sempre.
Isso deve ser algum tipo de pegadinha, Loki pensou, debochando.
— “Guardiões do Tempo”? — ele disse. — “Linha do Tempo
Sagrada”? Quem é que acredita nessa baboseira?
Da frente da sala, ele escutou uma voz dizer:
— A senha, senhor?
— Aquele cara não me deu uma senha! — o Homem Enfurecido
da Goldman Sachs disse, mentindo descaradamente. — Eu pedi
uma.
— A senha, senhor — disse o soldado na frente da sala.
— Aquele cara não me deu senha! — disse o Homem Enfurecido
da Goldman Sachs, mentindo na cara dura. — E eu pedi uma!
— Senhor...
— Quê? Você está levantando a voz para mim, cabeça de balde?
Loki olhou na direção e viu o soldado tirar seu bastão do cinto. A
ponta dele brilhava laranja. O soldado tocou a parte brilhante no
peito do homem, e o Homem Enfurecido da Goldman Sachs se
dissolveu numa nuvem de faíscas, bem diante dos olhos de Loki. O
homem sumiu completamente, como papel jogado no fogo. Seus
gritos borbulhantes ecoaram pelo cômodo até que o último
fragmento dele desapareceu.
Loki sentiu o sangue fugir-lhe da cabeça.
Aquilo parecia um fim terrível.
Deus ou não, Loki podia ser desintegrado também se não
obedecesse às regras ao pé da letra.
Ele revirou freneticamente seus bolsos em busca da senha,
dando tapinhas no peito e nos lados, procurando por ela cheio de
medo.
— Obrigada por visitar a AVT. — A voz amigável da Senhorita
Minutos soou no instante em que Loki pôs as mãos na senha pela
qual buscava.
Sentiu um alívio gelado se entranhando nele quando a pôs para o
alto, apresentando a senha a ninguém.
A voz da Senhorita Minutos continuou:
— Não hesite em avaliar nosso serviço! — ela avisou.
CAPÍTULO QUATRO

Aix-En-Provence, França
1549

Velas tremularam na escuridão fria da igreja, uma luz branda


atravessava os vitrais, e o som de sinos ecoava pelo ar.
Mobius M. Mobius estava parado sobre o chão de pedra antigo,
olhando pensativo para o corpo de um caçador da AVT. Havia três
corpos, na verdade, espalhados pelo chão. Ele balançou a cabeça,
tentando ignorar o poço de pavor em seu estômago.
— O caçador e seus homens-minuto responderam a um chamado
de rotina de um Evento Nexus — disse o Caçador U-92. — Parece
que quando chegaram, foram atacados de surpresa.
— Você acha? — disse Mobius.
— É ele — disse o Caçador U-92.
Mobius nem mesmo questionou, apesar de a ideia de um
assassino incontrolável solto por aí não ser bem uma realidade que
ele queria encarar. Suspirou.
— É, os cortes são consistentes com os outros. O posicionamento
dos corpos indica que não viram que desgraça acertou eles. E —
Enfiou as mãos nos bolsos e andou analisando o chão frio de pedra
— a carga de reset... sumiu.
— Esse é o sexto ataque essa semana — disse o Caçador U-92.
Mobius não deixou de notar um leve tom de acusação em sua
voz. Mas não era do tipo de ficar na defensiva.
— De que temos notícia — ele disse.
A porta da catedral se abriu ruidosamente, e o som ecoou pela
ampla igreja.
O Caçador U-92 pôs a mão em seu Bastão Temporal.
— Ei! — ele gritou.
Mobius levantou um dos braços para impedi-lo.
— Espere, baixe a arma! — ele disse. — Baixe a arma. — Ele viu
uma criança surgir na entrada. — É só uma criança —falou
baixinho.
O Caçador U-92 se zangou, mas guardou a arma, e ficou num pé
e noutro, desconfortável.
Mobius atravessou a nave, caminhando na direção da criança,
tentando pisar de maneira suave para não a assustar. Ele estendeu
a mão e, em francês, falou gentilmente:
— Desculpa. Meu amigo é um imbecil.
— Ei, meu! — o Caçador U-92 falou. Em francês, ele acrescentou:
— Eu também falo todas as línguas da linha do tempo. — E xingou
baixinho.
Mobius o ignorou, aliviado pela criança não ter sido atingida.
Foco, ele disse a si mesmo. Ela deve ter visto alguma coisa.
Encontre um jeito de se conectar com ela.
Ele puxou seu Temp Pad do bolso e desenhou um boneco palito
na tela com os dedos. A garota o observou com interesse cauteloso
até Mobius lhe entregar o aparelho. Ela o pegou, e observou a coisa
estranha e anacrônica.
Mobius deu toques no pulso. Baixinho, ele disse:
— Toca nele.
Quando a criança tocou a tela do Temp Pad, o boneco palito
saltou no ar, caminhando alegremente, enquanto o Temp Pad emitia
uma música de bipes simpática.
A garotinha sorriu, encantada com a figura de luz dançante.
Tendo ganhado um pouco de confiança, Mobius perguntou:
— Você sabe quem fez isso? — Ele estendeu os braços com as
mãos abertas e as palmas para cima, torcendo para que a garota
soubesse o que ele queria dizer.
Ele não queria dizer a palavra assassinou. Ele não queria dizer a
palavra matou.
A criança o olhou nos olhos, depois virou a cabeça devagar na
direção de um vitral que lançava luz no átrio. Ela apontou. A janela
retratava um demônio de chifres sentado num trono num lago de
fogo. Havia uma lua a seus pés e outra flutuando atrás ele, do
tamanho de uma coroa.
O pavor no estômago de Mobius se intensificou. Mas ele disse à
criança:
— Não se preocupe, aquele demônio tem medo da gente. Vamos
dar um jeito nele — ele tomou o Temp Pad dela gentilmente. — E
vamos colocar você — ele disse — de volta no seu lugar.
A garota sorriu, e Mobius ficou surpreso ao ver que seus dentes
estavam manchados de azul.
— Esse azul — ele disse, apontando para os próprios dentes —,
o que é isso?
A garota hesitou antes de tirar um pacote de chiclete de dentro de
uma pequena sacola marrom que tinha pendurada cruzando seu
corpo magro. Mobius pegou o chiclete e leu a embalagem.
Kablooie estava escrito em tipografia arredondada. Blooberrie.
— Hum — disse. — O diabo traz presentes. — Entregou o pacote
de chiclete ao Caçador U-92, que estava agora o rondando. — Faça
os testes de período sequencial e veja se tem alguma pista da aura
temporal.
— Sabe que não vai dar em nada — o Caçador U-92 disse,
áspero como de costume.
— Sei, mas não custa tentar — Mobius disse sereno.
Era sua função analisar todas as possibilidades. Avaliar toda pista
em potencial.
O Caçador U-92 pegou seu Temp Pad, que estava apitando um
alerta.
— A ramificação está se aproximando da linha vermelha — ele
disse. — Precisamos ir.
— Ok — Mobius disse. Voltou a falar gentilmente com a garota,
em francês — Espere lá fora. — Deu tapinhas gentis no ombro dela.
— Está tudo bem — acrescentou.
A criança se afastou, e Mobius e o Caçador U-92 voltaram ao
centro da igreja.
— Acione a carga de reset — comandou o Caçador U-92 aos
soldados que os acompanhavam.
Neste instante, um portal de luz apareceu no ar — uma Porta
Temporal. Um homem esguio passou por ela.
— Senhor —disse, dirigindo-se a Mobius e ignorando os demais
— , tenho uma coisa que vai gostar de ver — Ele entregou uma
pasta a Mobius.
E bastou um segundo para que ele soubesse do que se tratava.
A pasta de um caso.
Uma fotografia de Loki Laufeyson olhava de volta para ele.
Em letras grandes e vermelhas, alguém havia estampado a
palavra detido na página.
Detido, pensou Mobius.
E ele tinha pensado que um dia como esse não podia trazer nada
de bom.

— Próximo caso, por favor!


O som abrupto de um martelo deu pause nos pensamentos
ansiosos de Loki.
B-15 segurou o braço dele e começou a conduzi-lo até a frente do
tribunal da AVT.
Parecia um tribunal comum, com bancos de madeira e um teto
alto. Mas as paredes estavam pintadas com murais dos Guardiões
do Tempo e trabalhadores heroicos da AVT. Atrás da juíza, três
máscaras gigantes de madeira encaravam a sala, com suas bocas
abertas e seus olhos famintos.
Loki estremeceu, sentia que estava num sonho. Ou num
pesadelo.
— Laufeyson. Variante L1130, também conhecido como Loki
Laufeyson, acusado da violação de sequência 7-20-89 — disse a
juíza.
As palavras tinham pouco sentido para Loki, especialmente agora
que sua mente estava numa mistura de terror e humilhação. B-15 o
conduziu a uma pequena plataforma e ele subiu, depois olhou para
a juíza com o que esperava ser uma expressão de perplexidade
com um toque de irritação.
Mas a expressão não pareceu surtir efeito na juíza. Ela fechou a
pasta diante dela, e disse:
— Como se declara? — Seu tom demonstrava tédio extremo.
Loki riu um pouco.
— Meritíssima — ele disse — um deus é irrepreensível. Olha,
esta tem sido uma agradável pantomima, mas eu gostaria de voltar
para casa agora.
Certamente tudo isso fora um erro bobo. Certamente essa farsa
ridícula terminaria agora.
A juíza juntou as mãos. Impaciente, ela respondeu:
— Você é culpado ou não, senhor?
— Culpado de ser o Deus da Mentira? Sim. Culpado de achar
tudo isso um incrivelmente tedioso? Sim. Culpado de um “crime”
contra a “Linha do Tempo Sagrada”? — Loki pausou para efeito
dramático. — De maneira alguma. Pegaram a pessoa errada.
— Ah, é mesmo? E quem deveríamos pegar? — a juíza
perguntou. Ela arqueou uma sobrancelha perfeitamente delineada.
— Imagino que os Vingadores — Loki disse. — Veja bem, a posse
do Tesseract recaiu sobre mim apenas porque eles viajaram no
tempo; sem dúvidas numa última tentativa de impedir minha
ascensão a Deus-Rei.
— É uma acusação e tanto — disse a juíza, cerrando os olhos.
— Ah, acredite em mim — Loki disse. — Dá para sentir o cheiro
da colônia de dois Tony Starks. — Enquanto ele fala, sua voz
ecoava pela grande sala de madeira, e vindo de trás, ele podia ouvir
passos suaves se aproximando — Falou de Criminosos Temporais?
— ele continuou, resistindo ao ímpeto de olhar para trás. — É atrás
deles que você devia ir — Então olhou ao redor da sala, levantando
as mãos de maneira inquisitiva. — Talvez você possa me fornecer
uma força tarefa e recursos, e eu posso voltar e os eliminar para
você.
B-15 zombou em desacordo.
— Não estamos aqui para falar dos Vingadores — a juíza disse.
— Ah, não? — disse Loki.
— Não. O que eles fizeram deveria acontecer. Você escapar, não.
— A voz da juíza rebombava nas paredes de maneira conclusiva.
Loki não pode evitar o riso.
— Ãhm, claro — ele disse, sarcasmo pingando de sua voz. —
Não deveria escapar? De acordo com quem?
— Os Guardiões do Tempo? — disse a juíza, inclinando-se para
frente como se estivesse falando com alguém que tinha um pouco
de dificuldade de compreensão.
— Ah! Os Guardiões do Tempo — disse Loki. — Certo. — Ele se
perguntava quando essa pegadinha elaborada terminaria. — Bom,
talvez eu possa falar com esses Guardiões do Tempo, de deus para
deus — Ele deu uma piscadela para florear.
— Sinto muito — a juíza disse aborrecida —, mas eles estão
muito ocupados.
— Ah, é? O que estão fazendo? — Loki retrucou.
— Ditando o devido fluxo do tempo — disse a juíza, como se Loki
fosse um idiota.
— Entendi. Certo. E então o que você faz?
A juíza jogou as mãos para cima exasperada.
— Eu dito o devido fluxo do tempo de acordo com os ditos deles
— ela disse. E fez uma pausa, encarando Loki do alto. — Como
você se declara? — ela repetiu, cada palavra com um ponto final em
seguida.
Loki respirou fundo.
— Culpado — ele disse — disso aqui. — Estendeu os braços,
pronto para fugir. Fechando os punhos, ele invocou toda a sua
magia e tentou se teletransportar para fora do tribunal e para fora da
AVT. Mas... nada aconteceu.
Ele ainda estava no tribunal.
Não tinha se mexido um centímetro.
A juíza olhou feio para ele.
De trás dele, veio o som de uma risada abafada.
Mais uma vez, ele invocou todo o seu poder. E mais uma vez,
absolutamente nada aconteceu.
— O que está acontecendo? — disse a juíza, olhando ao redor,
confusa.
— Calma aí — Loki disse impaciente. — Todo mundo quieto.
B-15 riu.
— Ele está tentando usar os poderes dele, meritíssima — disse.
O tom indicava que não era a primeira vez que ela via algo daquele
tipo.
— Não me apresse — Loki reclamou, grunhindo com o esforço.
Mas nada funcionava. Seus poderes... não estavam funcionando.
Ele bateu com as mãos na grade diante dele.
— Maldição! Por que não funciona?
— Poderes mágicos? — disse a juíza. Ela olhou para baixo, para
Loki, como se estivesse tentando ser o mais condescendente
possível. — Eles não servem de nada na AVT, sr. Laufeyson — As
palavras pareciam dar a ela uma profunda satisfação.
Sua polidez fingida foi o suficiente para fazer o peito de Loki arder
de raiva. Ele a encarou, ofegando com o esforço.
Então as palavras da juíza ressoaram:
— A corte o declara culpado, e eu o sentencio a ser resetado —
Ela bateu o martelo. — Próximo caso, por favor.
Loki teve dificuldades de respirar por um momento. Suas mãos,
desprovidas de magia, sacodiam inutilmente.
— Resetar? — ele perguntou. — O que isso significa? — Havia
soldados de capacetes pretos e botas pretas em cada lado seu,
puxando-o para fora da plataforma. — Isso é ruim? — ele continuou,
na esperança de que a juíza respondesse. — O que significa isso?
— Sua voz ficou mais e mais alta, crescendo em tom, mas ninguém
lhe deu ouvidos, ninguém respondeu. Ele se debateu contra os
soldados enquanto o puxavam pelo piso de madeira brilhoso.
Tentando frear com os calcanhares, ele gritou: — Seus burocratas
ridículos, vocês não vão decidir onde minha história termina!
Atrás de sua mesa, a juíza estava tranquilamente virando as
páginas do arquivo do próximo caso.
— Não é sua história, sr. Laufeyson. Nunca foi.
— Você não tem ideia do que eu sou capaz! — Loki gritou, ainda
se debatendo. Os soldados se mantinham firmes, entretanto, e sem
seus poderes, ele estava diminuto, fraco — impotente. O
pensamento o deixou impactado. Tinha algo pior que ser impotente?
Então um homem se levantou de um dos bancos de madeira.
Tinha cabelos loiros, e um nariz torto, e olhos gentis. Vestia um
terno, mas ele fazia aquilo parecer casual, como se fosse algo que
tirou apressado do varal. Ele carregava uma pilha de pastas debaixo
do braço.
— Talvez... — ele disse, enquanto Loki o encarava — talvez eu
tenha.
Fez-se um silêncio surpreso, oco.
O homem loiro se voltou para a juíza, então:
— Talvez eu tenha uma ideia — ele disse — do que ele é capaz
de fazer — E para evitar qualquer confusão, ele apontou direto para
Loki.
Como aquele homenzinho insignificante poderia saber qualquer
coisa sobre mim? Loki desdenhou. Mas pelo menos os soldados
não estavam mais apertando seus braços. Ele não estava mais
sendo arrastado para ser resetado.
Loki esperava que a juíza dispensasse o homem imediatamente.
Ela parecia gostar de dispensar coisas. Mas, não; para sua
surpresa, ela disse:
— Se aproxime da mesa.
O homem loiro foi até a juíza e Loki ficou observando, mais
confuso do que antes, mas guardando uma pequeníssima fagulha
de esperança.
— Oi — ele disse à juíza. Sua fala era mansa, casual, como se
ele a conhecesse bem. Na sala cavernosa, Loki podia ouvir suas
vozes com clareza, amplificadas como se num auditório.
— Se você está pensando o que eu penso que está pensando, é
uma má ideia — a juíza disse.
— Ok — o homem disse. — Só estou seguindo um palpite.
— Se qualquer coisa der errado — a juíza disse —, a
responsabilidade é sua.
— Ok — o homem disse. Ele parou um momento, depois, num
sussurro, acrescentou: — eu sinto que estou sempre olhando para o
alto para te ver. Gosto disso, combina com sua estatura moral — Ele
sorria como se aquela fosse uma piada interna entre eles.
A juíza não disse nada, apenas manteve contato visual.
Esses dois definitivamente se conhecem, pensou Loki. Muito bem.
Será que são amigos? Ou mais que amigos?
Tendo resolvido o assunto com a juíza, o homem loiro se virou
para Loki, olhando fixamente para ele, como se tivesse um plano.
Ainda lutando contra os soldados que o prendiam, Loki encarou
de volta.
— E quem é você? — Ele reclamou.
Mas o homem apenas sorriu.
CAPÍTULO CINCO

Loki seguiu o homem loiro, um pouco reticente, por uma passagem


curvada de edra be e
Quanto mais tempo ele passava na AVT mais se convencia de
que o lugar era uma espécie de labirinto subterrâneo, projetado para
desorientar e aprisionar.
Ele não gostava disso.
— Eu vou queimar esse lugar inteiro — ele disse.
— Vou te mostrar a minha mesa — o homem brincou, amistoso.
— Pode começar por ela.
Loki deu apenas uma risada fraca. Tinha alguma coisa em
pessoas amigáveis que o irritava muito. Talvez por não acreditar que
ninguém pudesse ser tão bom assim de verdade.
E mesmo que fossem, pessoas boazinhas eram tediosas, chatas,
irrelevantes. Pessoas boazinhas não ascendiam à posição de Deus-
Rei, não é? Pessoas boazinhas não faziam o que precisava ser
feito.
Pelos menos os soldados não estavam mais o arrastando. Ele e o
cara loiro estavam sós agora.
Mas sinceramente, ele não sabia se deveria ficar aliviado ou
preocupado.
Naquele instante, um movimento lhe chamou atenção, freando
sua mente agitada por um segundo. Ele começou a andar mais
devagar para olhar por cima do parapeito que seguia a curva da
passarela. Parou. Encarou.
— Pode olhar — o homem disse, encorajando. — Lar, doce lar.
Loki se aproximou do parapeito. Para além dele, luzes dançavam
e afundavam à medida que elevadores com formato de nabo
viajavam para cima e para baixo dentro de cilindros de vidro
cintilante. Passagens, túneis e passarelas — todos esculpidos em
rocha bege sólida — recurvados como cobras.
A AVT tinha tantos níveis, tantas partes intricadas, que Loki ficou,
brevemente, admirado.
— Pensei que não houvesse magia aqui — disse.
— Não há — o homem respondeu, sem mais explicações.
O que Loki estava vendo era, para todos os efeitos, uma cidade.
Não era uma simples repartição pública.
Era uma cidade feita de pedra pálida e iluminada por milhares de
minúsculas luzes laranjas.
Uma cidade cheia de prédios, pontes e rodovias.
Uma cidade de carros amarelos voadores.
No meio de tudo isso, esculpida da mesma rocha bege, estava
uma estátua gigantesca dos três Guardiões do Tempo, com suas
mãos para o alto e um largo disco de pedra e vidro equilibrado em
suas palmas como a bandeja de restaurante.
Isso não era só um escritório, era uma civilização.
Uma civilização escondida do resto do mundo.
Uma civilização controlando o próprio tempo, controlando como
todos navegavam por ele.
Parecia impossível. E ainda assim, era possível. Era real. Loki
estava olhando para ela. Estava preso nela.
— Isso não é real — disse bastante sério.
— É real — o homem disse, uma pitada de orgulho em sua voz.
Ele pôs um braço ao redor do ombro de Loki. — E infelizmente a
papelada também — sorriu. Esse cara era a definição de bondoso.
— Mas serve bem pra ajudar com seu fogo — acrescentou. —
Venha — Guiou Loki adiante na passarela.
— Esse lugar é um pesadelo — Loki disse.
— Esse é outro departamento — disse o homem. Loki checou o
rosto dele para ver se estava brincando, mas estava perfeitamente
sério. — E nesse departamento — brincou —, eu te ajudo a tocar
fogo.
Loki seguiu o homem loiro. Apesar de tudo, não conseguia deixar
de gostar dele. Só um pouquinho.
Dentro de outro elevador — felizmente esse não parecia ter um
chão falso — Loki observava as luzes viajando como flechas pelo
painel de botões, que não indicava números de andares, mas
combinações incompreensíveis de letras.
O homem loiro estendeu a mão.
— A propósito, eu sou o Agente Mobius — disse com a mesma
voz suave e amigável.
Loki encarou a mão estendida de Mobius. Não tinha coragem de
apertá-la.
— Você está me levando a algum lugar para me matar? —
perguntou.
— Não, esse daí é onde você estava — Mobius disse, pondo as
mãos no bolso. — Estou te levando a um lugar para conversar.
O elevador descia e descia ruidosamente, o trajeto parecia
interminável.
— Eu não gosto de conversar — Loki disse.
— Mas você gosta de mentir. O que você acabou de fazer —
Mobius disse. — Porque nós dois sabemos que você adora falar. —
Deu uma risada tenra. — Blá-blá — acrescentou, imitando uma
boca tagarelando e balançando a cabeça de um lado a outro.
Loki não achou graça. Encarou Mobius, franzindo a testa tão forte
que lhe deu dor de cabeça.
E enquanto o elevador seguiu ribombando, ele disse:
— Há quanto tempo está aqui?
Mobius suspirou.
— Não sei. Difícil dizer. Sabe como é, o tempo passa diferente
aqui na AVT — Soava quase... melancólico.
— O que isso significa? — Loki perguntou.
O elevador parou e as portas se abriram fazendo barulho.
— Você vai entender — Mobius disse, saindo para outro corredor
de pedra que serpenteava, desta vez, com paredes grossas de cada
lado e um teto baixo. Luzes baixas parecidas com olhos de gato
indicavam o caminho.
Eles passaram por pequenos cardumes de gente ocupada,
algumas de uniforme, algumas de roupa comum.
— Então você faz parte da mão de obra corajosa e dedicada da
AVT? — Loki disse, sem deixar de salpicar escárnio na fala.
Sendo o Deus da Mentira, era difícil para ele não usar esse tom
na sua voz. Sabia que as pessoas não gostavam muito, mas isso
não o incomodava nem um pouco. Na verdade, até que gostava.
Para Loki, era apenas mais um sinal de que era diferente dos
outros. E por diferente, é claro, queria dizer superior.
— Faço — Mobius disse, apenas.
— E você foi criado pelos Guardiões do Tempo — Loki disse, com
cada sílaba mergulhada em descrença.
— Uhum — disse Mobius.
— Para proteger a Linha do Tempo Sagrada — Loki disse. Cada
palavra parecia marcada por aspas.
— Correto — disse Mobius, completamente despreocupado.
Loki se permitiu rir — rir mesmo. As lâmpadas tubulares sobre
eles brilhavam num ouro pálido.
— Você acha isso engraçado? — Mobius perguntou, sorrindo,
aparentemente não ofendido. Desceu um pequeno lance de
escadas e Loki ficou para trás.
Mobius estava parado, esperando, diante de uma porta dupla de
madeira.
As palavras teatro do tempo 5 estavam gravadas em ouro
acima deles.
Loki decidiu que não adiantava perguntar o que seria um “teatro
do tempo”. Nenhuma pergunta que fizera até agora recebeu uma
resposta sensata, e, além disso, toda essa organização — a AVT,
toda ela — era, sem dúvida, um monte de superstição ilógica
absurda.
— A ideia de que seu clubinho decide o destino de trilhões de
pessoas por toda a existência segundo a vontade de três lagartos
espaciais? — disse. — Sim, é engraçado. É absurdo.
Mobius pendeu a cabeça para o lado, estreitando os olhos.
— Pensei que você não gostava de conversar — ele disse.
Loki bufou. Touché, ele pensou.
Estava cansado desse pessoal não o levar a sério. Mas, sem
seus poderes, não tinha como mostrar para eles o quanto deviam
tê-lo levado a sério.
Ele estava preso num ciclo vicioso, preso no subterrâneo com um
homem nauseantemente bonzinho que parecia determinado a
convencê-lo de que o que estava acontecendo era real, quando, de
fato, aquilo não poderia ser real. Era impossível.
Mobius se dirigiu ao soldado guardando o Teatro do Tempo 5.
— Preciso desse Bastão Temporal, amigo — disse, e o soldado
lhe entregou o bastão.
Bastão Temporal, Loki pensou desdenhoso. Isso sim que é um
nome estúpido para se dar a uma arma.
O soldado abriu as portas de madeira.
Mobius apontou na direção do Teatro do Tempo com o Bastão
Temporal e suspirando prazerosamente, disse:
— Primeiro você.
Loki se obrigou a descer os degraus, atravessando a porta e
entrando a contragosto numa sala grande que estava vazia, exceto
por uma mesinha e duas cadeiras laranjas. Na mesa estava um
computador pequeno, redondo e laranja como uma tangerina.
A AVT era um lugar de pouca imaginação, ele pensou, olhando ao
redor de mais um cômodo de pedra bege lisa, com luzes
alaranjadas entrando por claraboias acima. Quem quer que tenha
projetado esse lugar — Loki supôs que Mobius diria serem esses
Guardiões do Tempo ridículos — devia amar bege, painéis de
madeira e laranja.
Tendo descido os degraus, então, parou no meio da sala, que o
fazia sentir-se engolido de um jeito muito incômodo. Pilares de
pedra de cada lado cresciam como garras até o teto. Algo ali lhe
dava a sensação de estar aprisionado, de estar no subterrâneo, de
nunca conseguir se libertar.
Loki, se tivesse que admitir, nunca esteve completamente
despojado de liberdade. Ele sentiu um frio na barriga.
Mobius foi até a mesa e colocou os arquivos que estivera
carregando sobre ela.
Loki esperou mais atrás.
— Só para registrar — disse —, isso aqui tem muita cara de sala
para me matar.
— Confiança não é muito seu forte, né? — Mobius disse.
O homem era tão irredutivelmente simpático. O suficiente para
deixar Loki com vontade de gritar.
— Confiança é pra crianças — disse — e cães. Existe apenas
uma pessoa em que se pode confiar.
— Em si mesmo? — Mobius disse. — Gostei, faz uma camisa
com isso escrito — Digitou algo no teclado do computador, e uma
das paredes se iluminou com letras em movimento. Turbilhões de
luz se juntaram como vagalumes para formar as letras A-V-T.
— Se a AVT controla mesmo todo o tempo, como foi que eu só
ouvi falar de vocês agora? — Loki perguntou. Podia sentir o calor da
frustração dentro dele, fazia seu estômago revirar.
— Porque você nunca precisou — Mobius disse. — Sempre viveu
dentro do seu devido caminho.
— Eu vivo dentro do caminho que eu bem desejar — disse Loki,
com a voz aumentada pela raiva.
— Vive, sim — disse Mobius, como se Loki tivesse acabado de
dizer que todo dia come um elefante inteiro de café da manhã. —
Certo, vem, senta aqui.
Loki marchou até o homem. Raiva faiscava em suas mãos e ele
as fechou em punhos. Podia socar esse cara bonzinho e estúpido,
ia socar. Ele ia...
Mas um segundo depois, tinha sido arrastado de volta no tempo
para um momento antes de ele sequer considerar avançar contra
Mobius.
Ugh, tinha se esquecido das ferramentas odiosas da AVT.
Mobius segurava um daqueles cronômetros dourados
abomináveis. Evidentemente, tinha virado uma chave ou algo assim.
— Eu te disse — falou —, o tempo passa diferente na AVT — E
então, gentilmente, acrescentou — Vem, senta. Vamos começar —
Ele puxou uma das cadeiras e sentou-se diante do pequeno
computador laranja.
Loki o olhou cheio de ódio, movendo-se lentamente até a outra
cadeira.
— Vamos — Mobius disse —, sente-se.
CAPÍTULO SEIS

Loki se sentou na cadeira dura e desconfortável do Teatro do Tempo


5 e cruzou os braços, fitando Mobius.
Mobius sorriu ameno.
Que irritante, Loki pensou. Absolutamente irritante.
— Se olhar matasse — Mobius disse.
— O que é que você quer de mim? — Loki disse, tentando manter
a compostura. Não gostava muito da ideia de ser arrastado de volta
no tempo mais uma vez, mesmo por apenas alguns segundos. Não
gostava de estar de coleira, preso como um cachorro. Não queria
ser um fantoche que Mobius podia mover com o aperto de um
botão.
— Bem — disse Mobius —, que tal começar com um pouco de
cooperação?
— Não é meu forte — Loki retrucou.
— É mesmo? Nem mesmo quando você está bajulando alguém
poderoso que pretende trair? — Loki notou, então, que havia um
toque de sulista dos Estados Unidos no sotaque de Mobius. Ele se
perguntou, por um segundo, por que os Guardiões do Tempo tinham
decidido dar a ele aquela característica particular — antes de rir com
a ideia deles dando qualquer coisa a alguém.
— Fala sério — Mobius falou mais uma vez.
— Você não sabe nada sobre mim.
— Talvez eu queira saber — Mobius abriu uma latinha de
refrigerante.
Loki esperou.
— Sou especialista no rastreio de variantes perigosas — Mobius
disse e tomou um gole da bebida.
— Como eu? — Loki perguntou.
Mobius engoliu, balançando a cabeça.
— Hmn, não. Variantes particularmente perigosas. Você é só um
gatinho manso.
Loki não gostou nada daquilo. Mas Mobius não lhe deu tempo
para protestar, simplesmente seguiu falando.
— Eu tenho algumas perguntas para você — ele disse a Loki. —
Responda com honestidade, e talvez então eu possa te dar algo que
queria. Quer sair daqui, né?
Loki inclinou a cabeça, ainda de braços cruzados.
— É — Mobius disse —, então a gente começa com isso. — Fez
uma pausa, organizando sua folha de questões, e então seguiu para
o questionário, sentando-se mais ereto em sua cadeira e limpando a
garganta:
— Se voltasse, o que faria? — perguntou.
— Terminar o que comecei — Loki disse.
— Que seria?
— Reivindicar meu trono.
Mobius ficou em silêncio por um instante.
— Você quer ser rei.
— Não quero ser, eu nasci pra ser.
— Sei, mas quer ser rei... do que exatamente? — Mobius
perguntou.
Loki suspirou, frustrado.
— Você não entenderia.
— Experimenta.
A sala zunia como uma máquina.
— Midgard — Loki disse, enfim.
— Também conhecida como Terra — Mobius disse. — Está certo.
Você virou rei de Midgard, e agora? Felizes para sempre?
Loki torceu os lábios.
— Asgard — disse, condescendente. — Os Nove Reinos...
— O espaço?
— Espaço?
— O espaço é grande. Seria um bom troféu na sua estante. — Ele
gesticulou como se estivesse lendo um painel luminoso com o nome
dele: — Loki, o Rei do Espaço.
Loki o encarou.
— Coragem sua zombar de mim — rosnou.
— Não estou zombando, não — Mobius disse com uma risada
baixinha na voz. — Sério mesmo, eu sou seu fã. É. E aí queria
saber: por que alguém com tantas habilidades quer só ser rei?
Loki pensou um momento, de braços ainda cruzados.
— Eu tornaria tudo mais fácil para eles — disse.
— As pessoas gostam de fácil — Mobius admitiu.
— A primeira e mais opressora das mentiras já ditas foi a canção
da liberdade — Loki declamou as palavras como se fizesse um
anúncio oficial.
— É mesmo? — Mobius perguntou, casual como sempre.
— Para quase todas as coisas vivas, escolhas geram vergonha,
incerteza, arrependimento. Há uma bifurcação em cada estrada,
mas sempre o pior caminho é tomado — Loki explicou. Aquelas
palavras eram das mais verdadeiras para ele, palavras que
carregava consigo — dentro de si — há muito, muito tempo.
— Entendi. É — Mobius falou baixinho, riscando algo na sua folha
de papel. — Você disse “quase todas as coisas vivas”, então
imagino que você não se enquadra nessa categoria?
Loki riu, mas o som saiu como um chiado. Ele olhou para o teto.
— Os Guardiões do Tempo montaram um belo circo, e os
palhaços cumprem perfeitamente seu papel — Loki disse irritado.
Mas Mobius pareceu entretido com o sarcasmo dele.
— O cara das metáforas — disse —, adoro isso. Te deixa com
ares de superinteligente.
— Eu sou inteligente — Loki disse, completamente sério.
— Eu sei — Mobius disse, sério.
As palavras pareciam guardar um significado oculto, mas Loki não
perguntaria qual.
— Ok — disse, concordando.
— Ok — Mobius disse. Depois apertou uma tecla no teclado do
computador laranja. Loki escutou um zumbido, como o de uma fita
sendo tocada. Ele viu uma parede de ladrilhos transparentes como
vidro evaporar e se transformar numa tela. Nova Iorque apareceu na
parede, projetada como num cinema. Loki franziu a testa por um
momento, atraído pela luz, pelo encanto mágico daquilo. Depois
caçoou, virando-se para Mobius.
— O que é isso? — perguntou.
— Uma amostra — Mobius disse — dos seus maiores sucessos.
Posso? — Mobius apertou outro botão, e a imagem na tela mudou,
passando a mostrar uma imagem nítida dos Vingadores.
Loki soube, imediatamente, para o que estava olhando.
Não era um filme.
Era um momento real da vida de Loki, vista pelos seus próprios
olhos.
Ele suspirou, se remexendo incomodado na cadeira, antes de
tocar o vinco na sua testa com os dedos.
Pelo sistema de som, escutou a própria voz ecoar:
— Se não se importarem, aceito aquela bebida agora.
Mobius deu um golão no refrigerante, depois ofereceu a lata para
Loki.
Ha-ha, Loki pensou. Esse cara pensava mesmo que suas piadas
eram hilárias.
— Não — disse. — E eu lembro disso, eu estava lá. Algo mais?
— Engraçado — Mobius disse —, para alguém que nasceu para
governar, você perde bastante. Alguns podem até dizer que faz
parte da sua natureza.
— Você sabe que as coisas não terminaram muito bem para a
última pessoa que me disse isso.
— Ah, sei, Phil Coulson — Mobius disse, apertando outra tecla.
A tela mudou de novo, e dessa vez mostrava o momento em que
Loki esfaqueou Phil Coulson, enfiando a faca bem no peito dele.
— Os Vingadores não se juntaram para literalmente vingar ele te
derrotando? — ele disse.
— Isso pouco serve a um homem morto. — A voz de Loki soou
monótona, indiferente, enquanto ele assistia à tela, que estava com
a imagem congelada do rosto agonizante de Phil.
A tela mudou de novo: dessa vez mostrava carros capotados,
raios de luz azul os revirando. Raios de luz vindos de Loki.
— Você gosta de machucar pessoas? — Mobius perguntou. —
Fazer elas se sentirem pequenas? Assustadas? Um nada?
— Seus joguinhos não me assustam — Loki interrompeu. Seus
braços permaneciam cruzados em seu peito. — Eu sei quem eu
sou.
— Um assassino?
— Um libertador.
— Do buraco dos olhos, talvez.
Aquela tela maldita. Mostrava bem agora o momento em que Loki
arrancou o olho de um cara, e os gritos dele encheram a sala. O
rosto de Loki, na tela, estava calmo e imperturbável.
— Olha aquele sorriso — Mobius disse. — Você está adorando
aquilo. Gostou de machucar eles?
— Não preciso participar desse jogo — Loki disse. — Sou um
deus.
— Do que, mesmo? Mentira, né? É, eu não vejo nada muito
mentiroso nisso aí — Com um movimento da cabeça, Mobius
acenou para a tela, que agora mostrava o rosto de uma mulher,
claramente sentindo dor. Pausou o filme, e o rosto dela ficou
congelado ali.
Loki desviou o olhar da tela. Isso era tão tedioso. Ele precisou
fazer as coisas que tinha feito. Tudo que já fizera, tinha sido por um
propósito, mas não queria explicar aquilo para um agente bobo da
AVT.
— Não — disse —, imagino que não.
Mobius suspirou. Claramente não estava conseguindo tirar dele a
reação que queria.
— Vamos falar das suas fugas — disse, mudando a estratégia. —
Você é realmente bom em fazer coisas terríveis e escapar depois.
— O que posso dizer? — Loki disse, revidando com amargura. —
Sou um patife mentiroso.
— Esse aqui é um dos meus favoritos — Mobius disse
calmamente, não retribuindo nenhuma gota da agressão de Loki.
Apertou outro botão, e a tela mudou.
Loki estava ficando cansado daquilo.
Não queria olhar para a tela, mas quando o som começou a sair e
as imagens tremularam no canto do seu olho, não pôde deixar de
virar-se para ela.
Instantaneamente, foi transportado de volta ao momento que
passava na tela como um filme antigo de Hollywood...
CAPÍTULO SETE

Uma aeromoça descia pelo corredor do avião quando o tinido


agradável do interfone soou.
Loki estava sentado num assento aveludado, trajando seu melhor
terno. Estava satisfeito consigo mesmo, sentindo-se como um deus,
seus cabelos curtos penteados para trás, o peito estufado pela
vitória.
A aeromoça parou ao lado do seu assento.
— Refrigerante? — disse.
— Obrigado — Loki respondeu, enquanto ela colocava a bebida
diante dele.
— De nada. Tem mais alguma coisa que possa fazer pelo senhor?
Loki gostava de ser chamado de senhor.
Ele olhou para cima na direção dela e, galanteador, retirou do
bolso um pedaço de papel e a entregou.
— Suponho que vamos descobrir, não é mesmo? — disse,
charmoso.
A aeromoça pegou o pedaço de papel e sorriu, ficando corada, e
Loki piscou para ela.
Enquanto ela se virava para sair, ele a tocou.
— Uhm, senhorita — disse.
— Sim, sr. Cooper?
— Talvez queira dar uma olhada nesse bilhete. — Ele baixou a
voz até um sussurro, colocando a mão na valise ao seu lado. —
Tenho uma bomba comigo — disse.
Loki lembrava nitidamente da satisfação de olhar pela janela do
avião e ver a pista ensolarada, o esquadrão antibombas
estacionado de maneira dispersa no asfalto. Ele assistia a um dos
oficiais entregando uma maleta cheia de dinheiro à aeromoça.
Dentro do avião, Loki sorriu com arrogância.
No Teatro do Tempo 5, o Loki do aqui e agora — o que tinha sido
preso pela AVT — gradativamente perdia a paciência. Seus braços
seguiam cruzados com força.
— Não vejo como isso pode ter relevância ou influência no...
— Shh, shh — Mobius interrompeu. — Agora é a parte boa —
Voltou-se para a tela.
Mas é claro, Loki sabia quais partes eram as partes boas. Era a
vida dele que Mobius estava projetando na parede. Ele se lembrava
dela. Não precisava que o lembrassem...
Lá estava ele, de pé no avião, que agora voava pelos ares a
oitocentos quilômetros por hora.
D. B. “Loki” Cooper observava a mesmíssima aeromoça fechar
uma bolsa de couro cheia de dinheiro — dinheiro do resgate pago
pelo esquadrão antibombas. A aeromoça lhe entregou a bolsa,
ainda com seu sorriso gentil. Ele apertou as fivelas do paraquedas,
dando umas puxadinhas para checar se estava firme. Olhou para a
mulher pelo alto dos óculos escuros.
— Te vejo de novo um dia — disse. Depois, enquanto partia,
murmurou: — Irmão, Heimdall, se preparem.
É claro que Loki ainda se lembrava daquilo — é claro. A
adrenalina ao se jogar do avião, a força do ar correndo por ele, a luz
do sol atravessando as nuvens.
Lembrava-se do sentimento de ser atirado de volta para Asgard,
também. A bolsa de dinheiro destruída e as cédulas se espalhando
que nem confete.
— Não acredito que você era D. B. Cooper! Caramba! — Mobius
estapeou a mesa animado.
— Eu era jovem e tinha perdido uma aposta para o Thor — Loki
disse. Então um pensamento lhe ocorreu. — Onde estava a AVT
quando interferi nesses assuntos dos mortais?
— Estávamos bem ali com você — Mobius disse. — Só surfando
pela Linha do Tempo Sagrada.
— Ah, então aquilo tinha o selo de aprovação Guardiões do
Tempo, né?
— Bom, eu não pensaria nisso em termos de aprovação ou
desaprovação. É meio que... — Ele balançou uma das mãos como
se fosse incapaz de continuar a explicação. — Vamos voltar às suas
fugas.
Loki suspirou longamente.
— E um pouco de psicobaboseira — disse Mobius, insistente. —
Do que você está realmente fugindo?
— Já chega — Loki disse. Queria esmagar a cabeça de Mobius
com as próprias mãos, e o teria feito se tivesse seus poderes.
Amaldiçoou as paredes de pedra ao seu redor, os Guardiões do
Tempo, a AVT. Tinha sido transformado por eles em um inútil.
Ficou de pé para se afastar, cansado daquilo, mas lá veio Mobius
de novo com seu cacareco, arrastando-o de volta no tempo,
fazendo-o sentar-se na cadeira dura e desconfortável. Aquilo o
deixou sem ar, e ele se recostou, atordoado.
— De volta à jaula — Mobius disse, alegre. — Está vendo? Posso
pegar pesado também.
— Só estava me levantando para construir um argumento! — Loki
disse, não impressionado.
— Me desculpe, vá em frente — Mobius disse.
— Não vai mais ter o mesmo efeito — Loki reclamou.
— Está bem, então, fica sentado.
— Eu faço o que eu quiser fazer! — Loki disse.
— Claro — Mobius disse.
Frustrado, Loki se levantou novamente, se virando de costas para
Mobius e para a tela. Deu alguns passos, depois disse:
— O que exatamente você quer?
— Quero que seja honesto sobre por que você faz o que faz —
Mobius gesticulava com seu lápis amarelo como um professor bem-
intencionado.
— Mentiroso — Loki cuspiu.
— É sério! Tudo que eu quero é entender melhor o temível Deus
da Mentira — Loki grunhiu, botando seus cabelos para trás, mas
Mobius continuou falando, mais alto agora. — O que faz o Loki ser
assim?
Loki olhou para o teto. A luz alimentando o ambiente era artificial,
descolorida.
— Eu sei o que é esse lugar — disse com a voz cheia de
assombro.
— E o que é? — Mobius perguntou.
— Uma ilusão — Loki rugiu. — Uma pegadinha cruel e elaborada,
conjurada pelos fracos — apontou para Mobius —, para inspirar
medo. Uma tentativa desesperada de tomar o controle. Agora,
vocês desfilam por aí como se fossem árbitros divinos do poder do
universo.
— Nós somos — Mobius disse, apenas.
— Não são, não — Loki retrucou. — Sou dono das minhas
próprias escolhas.
Essa frase pareceu instigar Mobius.
— Dono das suas escolhas — repetiu, apontando para Loki com
sua atitude positiva usual. — Boa, vamos focar nisso. — Apertou
outro botão.
A tela do tamanho de uma parede se transformou. Os pequenos
retângulos que a construíam ficaram apontados para dentro, como
cartas viradas num jogo de tabuleiro complexo.
Por favor, não. Essa tela de novo, não, pensou Loki. Não
aguentava mais aquilo.
Mas já estava hipnotizado pela tela em movimento.
— Acho que essa vai te deixar animado. — A voz de Mobius
parecia distante.
Loki de repente estava olhando o próprio rosto. Na tela, fazia um
anúncio a uma multidão, vestindo seus trajes mais finos e chifres de
ouro na cabeça. As pessoas eram seus súditos, curvavam-se a ele.
Loki falava com a autoridade e o carisma de um verdadeiro líder.
— O brilho fascinante da liberdade — o Loki do telão disse —
reduz a alegria de suas vidas a uma perseguição caótica pelo
poder...
— Exatamente — urrou o Loki sentado no Teatro do Tempo 5. —
Eu estava... Eu estou na iminência de conseguir tudo que me é
devido, e, quando isso acontecer, será porque eu consegui. Não
porque deveria acontecer, ou porque a Autoridade de Variância
Temporal, ou qualquer que seja o nome que vocês usam, me
permitiu. Honestamente, vocês são patéticos. Irrelevantes. Um
desvio, uma nota de rodapé no caminho para minha ascensão.
Mobius olhou para ele inexpressivo.
— Terminou? — disse depois de um momento. — Você vai
começar a levar as coisas a sério.
Loki grunhiu.
— Se não tivesse pegado o Tesseract, teria sido levado a uma
cela em Asgard — Mobius disse, voltando a usar o teclado.
A tela mostrava Loki com correntes atrás dos pulsos e tornozelos.
Dois homens grandalhões de armadura o conduziram à sala do
trono, onde estava sua mãe. Ela estava com um vestido longo e
fluido e seus cabelos dourados reluziam.
Loki observava a tela contraindo a face, incapaz de barrar a vazão
de emoções em seu peito. Seria tristeza, saudade ou pavor? Ele
não sabia a diferença.
— Loki — sua mãe falou.
— Olá, mãe — o Loki da tela disse com a voz encharcada de
arrogância —, te deixei orgulhosa?
— Por favor, não piore as coisas — a mãe dele disse gentilmente.
— O que é isto? — o Loki com o macacão oficial da AVT no
Teatro do Tempo 5 perguntou. — Isso é absurdo — Gesticulou em
direção ao telão. — Mais truques. Isso nem sequer aconteceu.
— Não com você — Mobius disse. — Não ainda.
Dessa vez aquele homem realmente estava falando baboseiras.
E a baboseira continuou.
— Olha — Mobius disse —, a AVT não sabe apenas seu passado,
nós sabemos tudo da sua vida, como tudo deve acontecer. Pense
nisso como reconfortante.
— Isso é absurdo — Loki abaixou a cabeça.
Da tela, a voz da mãe dele soou, clara como a luz do luar:
— E eu não sou sua mãe?
Loki olhou para cima.
— Não é — a versão dele na tela falou. A sua versão do futuro,
aparentemente.
— Hmm — sua mãe disse, um breve som, cheio de dor e
descrença.
Loki caminhou na direção da tela, assistindo sua mãe andar até
ele, seus olhos cheios de compaixão.
— Sempre tão perceptivo — ela disse — sobre todos, exceto você
mesmo.
— E os Elfos Negros atacam o palácio, e você acha que os
manda direto pra Thor... — Mobius disse, num tom entediado, como
se narrasse a história de um livro que leu muitos anos atrás.
Na tela, o belo rosto de Loki estava iluminado. Sua voz soou:
— Acho que vão querer subir pelas escadas à sua esquerda.
— Mas, em vez disso, você os manda... — Mobius disse com
suspense crescente.
Loki ouviu a voz de sua mãe novamente, tão clara como sempre
foi.
— Nunca contarei — ela disse. Um dos Elfos Negros apertava
seu grande braço ao redor do pescoço dela, trazendo-a para perto...
E então a esfaqueou pelas costas.
Loki encarou a tela, escutava apenas o som dos gritos de dor da
sua mãe, via apenas o corpo dela sem vida no chão de seu quarto.
Aquilo o horrorizou.
Era como se alguém tivesse acendido uma tocha na caverna de
seus pesadelos.
Soltou um suspiro tremulante.
— Onde ela está? — perguntou, tentando manter a calma. —
Onde ela está?
Mobius deu de ombros.
— Você levou eles direto para ela.
— Não acredito, você está mentindo, isso não é verdade.
— Isso é verdade. É o devido curso do tempo e acontece de novo
e de novo, porque deve acontecer. A AVT garante isso — Mobius
começou a gritar.
— Onde ela está? — Loki gritou de volta. Estava certo de que, a
qualquer momento, alguém abriria uma porta e ele a veria,
prisioneira, assim como ele. Essa gente... Estavam brincando com
sua vida como se fosse um joguinho de faz de conta bobo.
— Agora por que não me diz — Mobius disse, gritando ainda, com
o dedo apontado para cima enquanto gesticulava agitado — Você
gosta de machucar as pessoas?
— Não acredito em você — Loki disse.
— Gosta de matar?
— Eu vou matar você — Loki disse.
— Como fez com sua mãe?
As palavras perfuraram Loki como flechas afiadas, e ele atacou
como um predador ferido, agarrando uma das cadeiras e jogando na
tela, que tinha a imagem congelada do corpo de sua mãe falecida. A
cadeira acertou o telão, e a imagem se desfez por um momento,
mas voltou a ficar inteira. Então ele avançou em Mobius, urrando de
frustração, mas Mobius usou o cronômetro dourado para lançar Loki
de volta no tempo como um chicote. Loki caiu de bunda no chão e
chiou de dor.
— Foi mal — Mobius disse. — O Destorcedor Temporal só faz
você voltar, não a mobília. — Ele inspirou. — Você não nasceu para
ser rei, Loki. Nasceu para causar dor, sofrimento e morte. É assim
que é, é assim que foi, e é assim que sempre vai ser. Tudo para que
os outros possam alcançar as melhores versões de si mesmos.
As palavras deixaram Loki enjoado. Sua garganta estava
apertada. Sua cabeça, girando.
A tela, que ele não foi capaz nem de arranhar, mostrava agora os
Vingadores, preparando suas armas para derrotá-lo, já com ares de
vitoriosos. Raiva queimou dentro dele, mas tinha algo por trás dela,
também — uma solidão que urrava como tempestade.
A imagem dos Vingadores se congelou.
Mobius foi até ele, estendendo a mão para ajudá-lo a se levantar.
Loki o ignorou.
— O que é esse lugar? — murmurou. Seus olhos perderam o foco
ao encarar o chão laranja vivo.
— Vamos — Mobius disse com a mão ainda estendida.
Loki hesitou, depois a tomou, ficando de pé novamente.
Nesse momento, a porta dupla do Teatro do Tempo 5 se abriu, e
B-15 marchou para dentro da sala com ímpeto demais.
— O que você está fazendo? — ela perguntou a Mobius.
— O meu trabalho — Mobius disse, exasperado. — O seu é
interromper?
— Nós temos um problema.
Mobius suspirou, chutando o chão fraquinho.
— Tem sempre um problema — disse. E então se virou para Loki.
— Não saia daqui — comandou, antes de seguir B-15 para o
corredor curvo lá fora. Enquanto ele saía, Loki o escutou dizer: —
Logo quando estava ficando bom. Animado. — Soava desapontado.
Mas antes dele sequer imaginar o porquê, as portas se fecharam,
e ele ficou só.
CAPÍTULO OITO

Lá fora no corredor, B-15 dava um sermão a Mobius.


Ele não gostava muito de ouvir sermões. Preferiria evitá-los, se
ossível Es ecialmente vindos de ca adores ue não sabiam como
era ser um agente: as complexidades, a estratégia, a sutileza
necessária...
Mas Mobius era um homem educado, gentil. Alguns até diriam
que ele era bom, no fundo. E tinha sido B-15 que prendeu Loki para
começo de conversa, então não gritou com ela. Ele escutou.
— Falar com aquela variante é um erro — ela dizia.
— Essa é a sua opinião — Mobius disse. Tentava se manter
calmo.
— Ela devia ser resetada — B-15 contestou.
— Você acha que todo mundo deveria ser resetado — Mobius
disse. Ele balançou as mãos como se dissesse “para, para”. — Eu
estou conseguindo bons resultados ali dentro. — Se ela apenas
pudesse entender o que ele estava tentando fazer, quanto
alcançaria com aquele plano...
— Acabamos de perder mais uma unidade — ela disse, suas
palavras caindo como pequenas bombas.
Mobius parou de respirar por um segundo. Silêncio foi a única
resposta que conseguiu dar.
Outra unidade? Não, não podia ser.Tinha visto um time de
caçadores assassinados apenas algumas horas atrás.
Isso estava saindo do controle. Essa variante fugitiva... Estava
sempre um passo à frente deles.
A verdade era que Mobius precisava de uma vitória, e logo. Tinha
pensado que Loki poderia ser a reviravolta que estava esperando...
Mas antes, precisava lidar com mais uma unidade aniquilada.
As portas do Teatro do Tempo 5 se abriram novamente, e Mobius
entrou.
— Ok, Loki — ele começou a falar —, acho que podemos deixar
para amanhã e continuar de... — Mas sua voz foi sumindo à medida
que ele olhava ao redor da sala e se dava conta, com um aperto
repentino e nauseante no estômago, que Loki tinha sumido.
Mobius tateou os bolsos procurando seu Destorcedor Temporal.
Não estava ali.
— Patife mentiroso — sussurrou, olhou para o teto e suspirou.
Entretanto, para ser sincero, era difícil não se sentir
impressionado.
Soube, naquele instante, que Loki era exatamente aquilo de que
precisavam para resolver o problema.
Mas quando voltou ao corredor e contou a B-15 o que tinha
acontecido, ela não pareceu compartilhar da mesma opinião.
— Queria poder dizer que estou surpresa — ela disse enquanto ia
embora, marchando cheia de poder e propósito.
Mobius se segurou para não revirar os olhos. E deu passos
rápidos para acompanhá-la.
— É, queria que você não tivesse nos interrompido — Mobius
disse.
— Eu? — B-15 disse. — A culpa é minha?
— Olha, ele não pode ter ido muito longe — Mobius disse,
desviando da pergunta.
Mas B-15 já falava por cima dele.
— Dividam-se — ela disse aos soldados que a rodeavam. —
Podem podá-lo ao avistar.
Ela marchou adiante, e Mobius começou a correr na direção
oposta. Fazia mais sentido se separar; cobririam uma área maior.
— Não. Sem podar, sem resetar — gritou. — Ele ainda pode
ajudar a gente!
Mas as paredes grossas de pedra pareciam engolir sua voz. B-15
não deu nenhuma indicação de tê-lo escutado.
Foi fácil descobrir como usar o Destorcedor Temporal. Um giro de
um botão, e Loki se sentiu voando no tempo. Ele aterrissou de pé e,
ao abrir os olhos, se viu em outro corredor esquisito da AVT.
Azulejos — laranjas, vermelhos e amarelos — adornavam uma das
paredes. Luzes quadradas brancas brilhavam no teto.
Loki respirou fundo e examinou o local.
Atrás dele, uma daquelas portas retangulares de luz esquisitas
apareceu, emitindo um zunido estranho, e dois funcionários da AVT
a atravessaram, depois caminharam para longe. Não notaram Loki.
Olhando para o longo e curvo corredor, Loki viu mais alguém.
Era o recepcionista.
O homem que não soubera o que era o Tesseract.
O homem que chamou o Tesseract de bobo.
Ele estava empurrando um carrinho cheio de objetos peculiares.
De repente, Loki tinha um plano.
Ele seguiu o recepcionista até uma espécie de escritório. Estava
coberto de fileiras de pequenas mesas de madeira. Cada uma com
uma máquina de escrever laranja. Por todo canto, podia se ouvir o
barulho constante de trabalho e foco, o tec-tec das máquinas e
canetas.
O recepcionista estava lendo de uma pasta marrom, absorto em
seu trabalho.
Loki chegou por trás dele.
— Ei — sussurrou com urgência.
O recepcionista se virou abruptamente.
— Ei! — disse, surpreso. — Eu te conheço. É aquele criminoso da
caixa azul!
Loki tapou a boca do homem com as mãos.
— Shhh — disse, empurrando-o para baixo de uma mesa.
— Ai — o recepcionista disse.
Juntos, eles se agacharam no carpete e ficaram cara a cara.
— Qual é seu nome? — Loki perguntou.
— Casey.
— Me dê o Tesseract ou vou te estripar que nem um peixe, Casey
— Loki bradou.
Casey se retraiu. Mas as palavras que saíram da boca dele não
eram as que Loki esperava.
— O que é um peixe? — disse.
— Shhh! — Loki disse.
Casey sussurrou novamente a pergunta.
— O que é um peixe? — Parecia bastante confuso.
— Como assim você não sabe o que é um peixe? — Loki disse.
— Eu vivi minha vida toda atrás de uma mesa.
Literalmente, pensou Loki, balançando a cabeça, descrente.
Então ele voltou a focar no momento.
— Bom, e qual a diferença que isso faz? — chiou com pressa.
Podia sentir os soldados vindo atrás dele. Não queria ver a cara
presunçosa de Mobius de novo de jeito nenhum. Tudo que
precisava fazer era pegar o Tesseract e, então, poderia sair dali,
seguir sua vida.
— Eu quero saber — Casey disse — do que exatamente eu estou
sendo ameaçado antes de obedecer...
— Morte, Casey — Loki disse. Será que não tinha sido claro o
suficiente? — Uma dolorosa e violenta morte.
— Tá certo, tá certo — Casey disse, colocando as mãos para
cima. — Eu obedeço, eu obedeço. — Ficou de pé. — Vou obedecer!
Cruzes — Ele abriu uma das gavetas de sua mesa. — Ãhm... ah —
disse, retirando dela o Tesseract azul brilhante e o entregando a
Loki. — É isso aqui? — perguntou.
Com o Tesseract em suas mãos novamente, Loki sentiu a vida
retornar a ele. Respirou fundo. Alívio, era isso que estava sentindo:
alívio puro e refrescante, como achar um rio no meio de um deserto.
Ele o ergueu, observando a luz dançar dentro dele, sentindo o poder
passar pelas pontas de seus dedos.
Então outra coisa chamou sua atenção. Ele olhou para a gaveta.
Dentro dela, estavam mais Joias do Infinito.
Joias de todas as cores.
Era praticamente uma loja de Joias do Tempo!
— Quê? — ele se pegou dizendo. Sentia que tinha engolido um
pedaço da lua. — Joias do Infinito? — Ele passou a mão sobre elas.
— Como... — continuou — Como você conseguiu elas?
— Ah — Casey falou com naturalidade. — A gente recebe um
monte dessas. É. — Sorriu aquele sorriso estúpido de recepcionista.
— Tem gente que usa de peso de papel. — Olhou ao redor do
escritório, sorrindo, como se lembrasse de algo agradável.
Pesos de papel?
Ele pegou uma das Joias do Infinito e a jogou de volta na gaveta
desinteressadamente, como se não fossem nada mais que uma
bolinha de gude ou uma bijuteria. Ao se levantar de trás da mesa e
caminhar pelo escritório, o Tesseract ainda brilhando azul em suas
mãos, ele se deu conta: o Tesseract não o tiraria dali. E se a AVT
podia controlar até os poderes das Joias do Infinito, pelo amor de
Odin, e torná-las inúteis, bem, então aquilo significava que...
Ele parou diante do que parecia ser um sistema de televisão
suspenso no teto. Na tela, uma linha de luz branca flutuante
indicava a Linha do Tempo Sagrada.
Pela primeira vez, aquelas palavras não pareceram absurdas para
ele.
— Esse é o maior poder do universo? — perguntou a Casey, que
vinha atrás dele, empurrando seu carrinho novamente. O homem
não respondeu, apenas deu de ombros e concordou com a cabeça.
Tudo, naquele momento, parou.
Então o elevador apitou atrás dele, e, ao se virar depressa, Loki
viu B-15.
E dessa vez ela tinha reforços.
CAPÍTULO NOVE

Os soldados avançaram contra Loki.


B-15 marchou até ele com um sorriso na cara. Assim que ergueu
seu Bastão Temporal, Loki começou a ser arrastado pelo
tempo de novo, escapando por pouco de ser desintegrado como o
Homem Enfurecido da Goldman Sachs lá na sala das senhas.
Pelo menos ainda tinha o Destorcedor Temporal consigo. Foi o
que ele pensou enquanto voava para segurança na velocidade da
luz.

Loki desapareceu da sala.


Com um pulinho para o lado, Casey escapou por um fio do spray
de luz do Bastão da B-15.
E ainda assim ela olhou feio para ele, como se ele tivesse feito
algo errado.
— Ô, você quase me acertou! — disse, com a voz mais aguda. —
Isso não foi nada legal.
Mas B-15 não tinha tempo para queixas. Ela esbarrou em Casey
correndo pelo escritório, e os soldados a seguiram. Ele a escutou
gritando:
— Separem-se! Chequem o saguão inferior.
— Eu não te desculpo — ele gritou para ela. Não que ela tenha se
desculpado.
Em seu coração, desejou silenciosamente que aquele homem
estranho com a caixa azul conseguisse fugir — mesmo que ele
tivesse o ameaçado com morte certa e algo chamado peixe.
Fragmentado entre as vicissitudes do tempo, Loki viajou na
velocidade da luz pelo labirinto metafísico da AVT até aterrissar
bruscamente no chão do Teatro do Tempo 5. A dor tomou conta de
suas costas, e ele grunhiu enquanto jogava o Destorcedor Temporal
roubado perto do resto da tralha de Mobius: sua prancheta e papeis,
seus lápis e documentos oficiais. Esse homem, ele pensou, não
passa de um burocrata rematado. Ele olhou feio, mesmo sem ter
alguém para olhar.
E então notou o telão, parado na imagem dos Vingadores
vitoriosos. E seu rosto se fechou ainda mais.
Claro, ele poderia ter escolhido não voltar para o maldito Teatro
do Tempo 5. Podia ter ido a qualquer lugar da AVT na verdade,
agora que tinha o Destorcedor Temporal. Mas de que adianta? Não
podia sair de verdade da AVT. Dessa vez, pela primeira vez na vida
dele, Loki não podia escapar.
Se não pode escapar, pensou, a única coisa a se fazer é encarar
a realidade.
Ele se levantou, com a respiração pesada, e se obrigou a olhar
para a tela. Sentou-se na cadeira de Mobius e usou os controles do
teclado para avançar as imagens até uma que ainda o incomodava:
Frigga, deitada no chão, sem vida. Morta, e pelas ações dele. Ver
aquela imagem mais uma vez cobriu seu coração com uma mão
fria. Sua respiração começou a sair chorosa. Ele aportou outros
botões, passando por mais imagens, até que a tela chegou ao rosto
enrugado de seu pai. A sala se encheu da voz dele, tão calma e
calorosa, cheia de amor:
— Eu amo vocês, meus filhos. Lembrem-se desse lugar. De casa.
— Lágrimas encheram os olhos de Loki enquanto ele assistia ao
corpo do pai transformar-se em poeira dourada e se espalhar como
vagalumes no escuro.
Loki fechou os olhos com força, e as lágrimas caíram.
Na tela, Thor estava falando:
— Loki, para mim você sempre foi incrível. Pensei que lutaríamos
lado a lado para sempre.
E Loki lutou lado a lado com ele, como a tela mostrou
prontamente. Thor se virando para ele após uma vitória, dizendo:
— Talvez você não seja tão mal assim no fim das contas, irmão.
E Loki respondendo:
— Talvez não.
Loki sorriu em meio às lagrimas.
— Se você tivesse aqui — o Thor na tela disse —, talvez eu te
desse um abraço.
— Eu estou aqui — disse o Loki projetado na parede.
Mas a cena mudou, mostrando Loki apontando sua adaga para
Thanos.
— Imortal. Você devia escolher suas palavras com mais cuidado
— Thanos, sua voz como uma profunda escuridão, dizia.
Loki não conseguia tirar os olhos da tela, do filme da sua vida. Ele
viu Thanos tirar seus pés do chão, com a mão enorme dele ao redor
do seu pescoço.
Seu coração ficou pesado e escuro como uma ônix enquanto se
assistia ficar sem ar.
Ele ficou de pé e caminhou lentamente até o telão. Tentou tirar os
olhos, mas não conseguiu.
— Você — sua versão na tela disse, quase inaudível, as palavras
passando apertadas pela garganta estrangulada — nunca vai ser
um deus.
E então Loki ouviu ossos quebrarem. Viu Thanos o matar.
Viu o fim de sua vida.
Ele fechou os olhos, mas já tinha visto e sabia que aquilo o
assombraria para sempre.
Era para isso que a Linha do Tempo Sagrado o levava? Era esse
o fim destinado a ele?
Seu corpo estendido num bloco de pedra.
Thor chorando por ele.
Explosões ao longe.
O mundo conquistado pelo Deus da Morte.
Uma explosão, então, que sugou os dois numa luz roxa.
Então as imagens sumiram. A fita tinha terminado. Três palavras
brilhavam contra a parede: FIM DO ARQUIVO.
Loki gargalhou cheio de desdém, as bochechas ainda molhadas
pelas lágrimas. Era absurdo que uma vida — a vida dele — pudesse
ser resumida de maneira tão simples e concreta.
Ele ouviu a porta abrir atrás de si.
A voz de uma mulher. Provavelmente B-15.
— O que é tão engraçado? — ela perguntou. A porta bateu atrás
dele.
O riso de Loki se dissolveu. Ele encarou a tela diante de si.
— Um propósito glorioso — ele disse irônico, balançando a
cabeça, depois se virou para encarar a dona daquela voz.
Era B-15. E ela não dava sinais de que recuaria. Mas Loki, tendo
acabado de ver sua própria morte, não tinha mais medo dela.
Eles se encararam por alguns segundos tensos antes de ele
correr até ela. Ele atacou, tentando socá-la, mas ela se esquivou a
tempo e acertou um soco em seu peito. Então ela agarrou seu braço
e o virou, e ele caiu de joelhos em agonia. Ela o lançou de cara na
mesa, mas ele apanhou o Destorcedor Temporal e escapou dela,
agarrou seus braços e os puxou para as suas costas. Mantendo-a
presa, acionou o botão do Destorcedor, mas sua coleira apitou, não
lhe permitindo usar o instrumento.
Ira ferveu dentro dele, e ele arrancou a coleira e amarrou no
pescoço dela. Depois usou o Destorcedor Temporal para fazê-la
desaparecer da sala, mandando-a de volta ao momento antes de tê-
lo achado no Teatro do Tempo 5. Arfando, ainda segurando o
instrumento, ele se virou para a porta. Usou o Destorcedor para
trazê-la de volta à sala, depois jogá-la para fora de novo. Ele a fez ir
e voltar pelo tempo novamente, como um chicote, para fazê-la
aparecer na sala apenas o bastante para ouvi-la dizer:
— Pare... — E depois a fez desaparecer de novo apenas com o
giro de um botão, um movimento sutil com a ponta de um dedo. Ela
se foi e voltou dizendo: — com isso... — E sumiu e apareceu mais
uma vez; dessa vez, ele lhe permitiu ficar por tempo suficiente para
dizer três palavras: — Para com isso! — Logo em seguida a jogou
de volta no tempo novamente.
Ele fez aquilo de novo e de novo, cada vez mais rápido, até que a
imagem dela permanecesse diante dele como um borrão contínuo e
sua voz soasse cortada como num rádio. Até que, enfim, ele parou,
apertou um botão para mandá-la de volta o máximo de tempo, longe
da sala, e largou o Destorcedor Temporal na mesa.
Tinha pensado que se sentiria melhor depois daquilo, mas não
funcionou. Nada podia fazê-lo se sentir melhor agora que estava
nas mãos da AVT, agora que tinha visto o caminho mapeado para
ele na Linha do Tempo Sagrada, agora que tinha visto seu fim
lamentável.

Casey, que até agora não tinha sido nada mais que um
empurrador de papel para a AVT, estava sendo entrevistado por
generais condecorados. Daqueles cujos uniformes estão sempre
engomados e passados. Daqueles que nunca sorriem, apenas
franzem a testa, como se aquilo fizesse parte da descrição do cargo.
As palavras tropeçavam para fora de sua boca:
— E esse cara ficou dizendo que ia me transformar num peixe, o
que quer que isso seja, e então eles apareceram e podaram meu
carrinho, então não tinha nada que eu pudesse ter feito.
Sua alma quase saiu do corpo quando a Caçadora B-15 apareceu
do nada na frente dele, aterrissando com um tombo, e uma coleira
apitando freneticamente no pescoço.
— Ei — ele disse, hesitante —, aí está você. Olha, aquela
variante que você capturou acabou escapando.
Ele torceu que ela fosse pedir desculpas, mas ela apenas
suspirou e saiu correndo.
Loki estava sentado no chão do Teatro do Tempo 5, sentindo o
peso do pavor horripilante diante dele. Não só a AVT, mas a vida
dele. Sua inevitabilidade, como um túnel escuro que sempre leva a
um beco sem saída — não importava o que fizesse.
Ele esfregou a têmpora. Sempre pensou que os outros não
tinham escolha, mas que ele tinha. Pensava que o poder de suas
escolhas era capaz de criar e destruir o mundo. Pensava que tinha
um propósito glorioso.Talvez tivesse pensado errado.
A porta se abriu. Se fosse B-15 de novo, ele ia...
Mas não era ela.
— Loki — Mobius disse num tom não amigável —, não tem mais
para onde correr.
Quando Loki descobriu os olhos, viu que o homem empunhava
um Bastão Temporal, assim como os soldados em seus uniformes
pretos. A arma não combinava com ele, que era mais do tipo de
cara da prancheta.
— Eu não posso voltar, posso? — Loki disse. — Para minha linha
do tempo.
Loki encarou seus próprios dedos entrelaçados.
— Eu não gosto de machucar pessoas — disse. — Não gosto. Eu
faço isso porque preciso, porque eu... tinha que fazer.
— Ok — Mobius respondeu, seu Bastão Temporal abaixado agora
—, explica para mim.
— Faz parte da ilusão — Loki disse, calmo. — É o truque cruel e
elaborado conjurado pelos fracos para inspirar medo.
— Uma jogada desesperada para tomar o poder — Mobius disse.
Depois, caminhando na direção de Loki: — Você se conhece, sim.
— Um vilão — Loki suspirou.
— Não é assim que eu vejo a coisa — Mobius respondeu,
balançando a cabeça.
Loki arqueou as sobrancelhas, mas não contestou. Apanhou o
Tesseract, que estava no chão ao lado dele. Ele zunia, brilhando sua
luz azul, tão inútil quando uma bateria descarregada.
— Você tentou usar isso? — Mobius perguntou, com um tom de
diversão na voz.
— Ah, várias vezes — Loki disse. — Até as Joias do Infinito são
inúteis aqui. — Ele jogou o Tesseract para o alto e depois o pôs no
chão ao seu lado. — A AVT é formidável. — Sua garganta doeu por
dizer isso.
— Tenho essa mesma impressão — Mobius disse, pendendo a
cabeça para o lado. Depois, passado um momento, disse: —
Escuta, não posso te oferecer salvação, mas talvez eu possa
oferecer algo melhor ainda.
Loki se levantou, disposto, a esse ponto, ao menos a escutar o
que o homem tinha a dizer. O que mais ele faria? Não podia sair da
AVT. Não podia escapar. Estava claro agora.Teria que encarar
isso.Teria que encontrar outra forma de sobreviver.
— Uma variante fugitiva está matando os homens-minuto.
— E você precisa da ajuda do Deus da Mentira para parar ele —
Loki disse.
— Correto.
— Por que eu? — Loki perguntou. Ele estava próximo a Mobius
agora, sem medo do Bastão Temporal que este tinha em mãos. Ele
entendia agora: Mobius nunca ia matá-lo. Mobius precisava dele.
Se a AVT precisava da ajuda dele, que fosse. Ele ajudaria se
aquilo significasse sua sobrevivência. Se significasse sair dali algum
dia.
Mobius olhou fundo nos olhos de Loki.
— A variante que estamos caçando — disse — é você.
Loki ergueu as sobrancelhas.
— Como é que é?
CAPÍTULO DEZ

Num campo em Salina, Oklahoma, numa noite escura de céu limpo,


uma Porta Temporal apareceu do nada. Quatro caçadores passaram
por ela com armas em riste e brilhando seus uniformes pretos lhes
dando aspecto de sombras vivas.
Era 1858.
Tinham sido mandados de volta a este momento da linha do
tempo depois de receberem um alerta de que um Evento Nexus
havia ocorrido. Preparados para o pior, mantiveram-se alertas
enquanto vasculhavam a escuridão por algo incomum.
Pararam ao ver um objeto enfiado na terra. Era uma espécie de
espada. Ela brilhava com marcas estranhas.
Uma caçadora do grupo fez uma varredura com seu Temp Pad.
— A assinatura temporal é do início do terceiro milênio — ela
disse aos demais. — Definitivamente anacrônico.
Seu superior se ajoelhou e pegou um pouco de terra, levou até o
nariz e cheirou.
— Óleo — ele disse. — Acho que algum babaca encontrou uma
máquina do tempo. Voltou aqui para ficar rico.
— Devemos nos espalhar e procurar por ele, senhor? — a
caçadora que fez a análise da espada perguntou.
— Nah — ele respondeu. — A papelada não vale a pena. Só
poda isso. Vamos embora. — Ele se virou para outro caçador. —
Ative uma das cargas — mandou.
Mas a caçadora com o Temp Pad ficou parada.
— Espere — ela disse —, tem alguém ali.
Em meio à grama, podiam ver a silhueta de figura encapuzada,
seu rosto omitido pela escuridão.
— Deem uma olhada lá — disse o líder, e todos empunharam
suas armas ao caminhar pela grama esvoaçante.
A figura encapuzada não revelou sua face. Enquanto a
perseguiam, os caçadores podiam ver que a pessoa — quem quer
que fosse — segurava uma lanterna acesa, sua chama presa pelo
vidro.
A figura encapuzada derrubou a lanterna na grama, e as chamas
viajaram na direção dos caçadores, devorando o óleo derramado.
— Se abaixem! — o líder gritou.
Mas era tarde demais.
Antes que pudessem desviar, foram atingidos pelas chamas.
Gritaram enquanto o calor invadia suas roupas.
O líder conseguiu se proteger, entretanto, se arrastando por entre
os montes de chama para ativar a carga de reset. Precisava garantir
que estava funcionando, precisava garantir que a Linha do Tempo
Sagrada seria resetada, mantida no fluxo correto para os Guardiões
do Tempo.
Mas antes que pudesse chegar até a carga, alguém agarrou seus
tornozelos, e a escuridão ao seu redor encheu sua mente também,
afogando os gritos, e a luz, e as chamas.
Apenas a lua iluminada da noite viu o que aconteceu a seguir:
uma mão na escuridão, desativando a carga, desfazendo o que os
caçadores tinham começado.
As chamas tocaram a figura encapuzada, seu âmbar contra o
preto da noite. Mas a pessoa de capuz não fugiu, nela não havia
medo.
CAPÍTULO ONZE

Numa Feira Medieval em Oshkosh, Wisconsin, no ano de 1985,


ninguém percebeu quando uma porta de luz apareceu. Quatro
caçadores, todos de uniformes e capacetes pretos, saíram pela
Porta Temporal, e ela fechou atrás deles.
Todos ali estavam vestidos de roupas medievalescas, e alaúdes e
liras trinavam doces melodias. Um pau de fitas tinha sido erguido
para que as pessoas dançassem ao seu redor. As botas delas
sacudiam a lama molhada, e o sol iluminava as longas fitas
coloridas. Bandeiras coloridas estavam suspensas imóveis no ar
tranquilo do outono, vibrantes em contraste com o céu acinzentado
acima. Homens vestidos de Frei Tuck estavam reunidos e riam, e
mulheres com chapéus altos e pontiagudos sorriam graciosamente,
como se fossem realmente rainhas ou princesas.
Para funcionários da AVT, esses espaços eram inquietantes,
talvez por serem lembretes de que qualquer pessoa pode viajar no
tempo de certo modo, mesmo que sua viagem no tempo fosse
apenas colocar um vestido e uma capa. Esse tipo de lugar dava aos
caçadores uma leve sensação de inadequação, de linhas do tempo
se revirando entre si em vez de seguirem sua direção correta — ou
melhor dizendo, a direção que os Guardiões do Tempo queriam que
seguissem.
Os caçadores que saíram pela Porta Temporal não estavam aqui
para refletir sobre viagens no tempo, entretanto.
Estavam aqui para capturar o fugitivo que estava matando
funcionários da AVT.
Seus olhos examinaram a multidão vibrante.
Uma mulher vestida de garçonete do século XVI disse:
— Oi! O que está rolando? Vocês não estão vestidos a caráter —
Ela parecia incomodada.
Mas os caçadores a ignoraram como foram treinados para fazer,
impassíveis como rochas.
Uma caçadora do grupo checou o Temp Pad.
— Variante detectada, comandante — ela disse.
A comandante em questão, Caçadora C-20, passou por ela.
— Vamos — disse, com convicção.
Os caçadores seguiram pelo festival cheio e lamacento,
desatentos a toda a diversão dos outros.
— Isso aqui é muito importante para algumas pessoas, tá legal?
— a garçonete gritou para eles.
Os caçadores a ignoraram. Seguindo o rastro temporal da
variante, entraram numa tenda escura, iluminada apenas pela
chama de lanternas. Lá dentro, ela estava vazia e silenciosa.
— Sem energia Nexus no momento, senhora — disse uma das
subordinadas de C-20, checando seu Temp Pad novamente.
Nada dentro da tenda parecia estranho. Tudo estava no lugar,
parecia comum. Segura, até.
Mas aí, então, uma caixa de som retumbou com uma sinfonia
dramática, e os olhos dos caçadores correram tensos de um lado a
outro ao pela tenda procurando pela origem do som.
— É uma armadilha. Protejam-se! — disse C-20.
Uma voz masculina soou pela caixa de som, com a música
servindo de um grandioso acompanhamento para seu
pronunciamento:
— Minhas senhoras e meus senhores, sejam bem-vindos, e
obrigado por se unirem a nós aqui no castelo.
Era difícil enxergar dentro do interior iluminado pela luz do fogo.
Fagulhas cintilantes de luz fraca se moviam por tudo. Os caçadores
se armaram com seus Bastões Temporais, cada um girando
vagarosamente num círculo, tentando antecipar um ataque que
poderia vir de qualquer direção.
— Por favor — disse a voz nos autofalantes —, tomem seus
lugares, pois uma grande batalha está prestes a começar!
Isso, C-20 pensou, não soa nada bem.
— O prêmio? — a voz continuou. — Nossa princesa. Irá o mal
prevalecer? Ou ainda nos resta esperança de um herói que poderá
nos defender?
A parte anacrônica da última frase vibrou pela tenda junto com as
notas de música que iam ficando mais fracas. Então a atmosfera
mudou, quando uma balada dos anos oitenta começou a tocar.
No escuro, ninguém percebeu uma mão sair das sombras para
tocar a têmpora de C-20.
Uma mão com as pontas do dedo brilhando com uma luz verde.
O que os outros notaram foi sua comandante tirando o capacete.
Isso os confundiu. Por que ela faria algo assim? Estavam caçando
um assassino, afinal de contas. A caçadora C-20 sempre fora
sensata e cuidadosa. Um segundo depois, ela chutou um de seus
caçadores no joelho, e ele caiu, desabando no chão.
Outra de seus soldados olhou para ela confusa.
— Comandante? — ela falou.
Mas C-20 a ignorou e foi até uma pilha de lanças de justa. Pegou
um deles e caminhou agressivamente até a soldada. Ela acertou a
moça no peito com a lança e, como se a luta tivesse sido
meticulosamente coreografada, uma figura encapuzada surgiu das
sombras para esfaquear a subordinada nas costas.
A morte da caçadora não pareceu perturbar C-20. Ela se virou
para outro caçador, agarrou a arma dele e pressionou contra sua
garganta.
— O que você está fazendo? — ele questionou.
— Me divertindo um pouco — ela disse em tom jocoso.
A balada dos anos oitenta ainda tocava quando a Caçadora C-20
desabou no chão, seus olhos fechados, subitamente inconsciente,
como um fantoche abandonado pelo seu mestre.
O último soldado de pé foi até ela. Se acocorou, confuso com o
que tinha acabado de acontecer, esperando que o rosto de sua
comandante fosse lhe dar alguma pista.
Mas algo se moveu atrás dele. Ele ouviu, ele sentiu, como tinha
sido treinado para fazer.
Ao se virar, viu uma figura encapuzada e imediatamente se lançou
contra ela, mas a pessoa atravessou sua barriga com uma adaga,
deixando-o caído no chão sujo, coberto de feno.
A música dos anos oitenta tocou mais uma vez pelas caixas de
som, e a figura encapuzada vasculhou a escuridão para encontrar a
carga de reset. Ela pendurou a carga sobre o ombro e se abaixou
para pegar um Temp Pad, então apertou o ícone da Porta Temporal
na tela.
Quando a porta apareceu, a figura começou a passar por ela, mas
parou uma última vez para observar os caçadores que tinha
acabado de matar, antes de arrastar consigo o corpo inconsciente
da comandante através da Porta Temporal.
Então a porta apagou-se atrás dele, e a variante fugitiva
desapareceu.
CAPÍTULO DOZE

Loki estava sentado com os pés sobre a mesa do agente Mobius,


cercado por pastas e pilhas de papéis. Estava folheando uma
revista, tentando gnorar o holograma da Senhorita Minutos. Tinha
pensado que a pior coisa de ter sido capturado pela AVT seria
perder a liberdade.
Mas não: era o tédio que mais o incomodava.
O absoluto tédio de ter que aprender como a AVT funcionava.
— Tá certo, pessoal — a Senhorita Minutos dizia, sua voz
imitando o sotaque de uma professora do sul norte-americano. —
Vamos revisar o que aprendemos! — Seu tom era tão terrivelmente
entusiasmado. — O que acontece quando um Evento Nexus se
ramifica para além da linha vermelha?
— Coisas muito ruins — Loki disse desanimado, sem tirar os
olhos da revista.
A reloginha laranja pôs a mão no quadril, olhando feio para ele.
Ela ficou da cor de um pirulito vermelho de criança.
— Vamos lá, Loki, o que acontece? — ela tentou novamente.
Não ia desistir até ele dar a resposta, não é?
Os deuses bem sabem que ela tinha a disposição para vencer
todos pelo cansaço.
Loki suspirou. Baixou a revista e olhou para a Senhorita Minutos.
— É quando a AVT não consegue mais resetar um Evento Nexus
— ele falou da maneira mais sem entusiasmo que pôde. Alguém
tinha que equilibrar a energia na sala, e ele estava mais do que
disposto a fazer isso. — Tá bom? — acrescentou para consolidar
seu argumento. — Chato.
Voltou a olhar a revista, que só tinha fotos de vários jet-skis.
Páginas e páginas de pessoas bronzeadas, rido e sorrindo enquanto
atravessavam o oceano azul, deixando rastros de espuma do mar
branca atrás deles. Por que Mobius tinha uma coisa como essa?
Aquilo não era bem material de leitura instigante.
— Correto — a Senhorita Minutos disse, contente como sempre.
— E isso levaria à destruição da linha do tempo e ao colapso da
realidade como a conhecemos. — Até isso ela conseguiu dizer com
um sorriso grande no rosto.
Loki bateu a revista na mesa e a examinou.
—Você consegue me ouvir? — perguntou, mais com curiosidade
que com malícia. — Você é uma gravação? Ou você está viva?
— Ãhm, meio que as duas coisas — a Senhorita Minutos disse.
— Ah.
Loki rolou a revista num tubo e a golpeou.
Ela pulou para longe.
— Cuidado! Onde estão seus modos?
Ele se reclinou, depois avançou nela outra vez, sorrindo.
— Oh! — ela disse, pulando novamente. — Ei! Pare com isso!
Loki não parou. Lançou golpes nela como se fosse uma mosca ou
outra criatura irritante — o que ela definitivamente era.
— Isso não é legal! — ela disse antes de se transformar numa
imagem dentro do computador de Mobius. — Babaca — ela disse
no computador, sua imagem transformada num desenho 2D, mas
não menos brilhante.
Loki não conseguia mais acertá-la. Poxa.
— Você não pode se esconder — ele começou a dizer, mas
escutou a voz de Mobius.
— O treinamento está indo bem? — disse o agente da AVT.
Loki se sentou direito na cadeira como um aluno sapeca que foi
descoberto, e desenrolou a revista.
— Está — disse.
— Essa é a minha revista de jet-skis? Largue isso — Mobius
parecia tenso. Ele entregou a Loki um pacote de roupas enroladas
num plástico brilhoso. — Venha, se equipe. Houve um ataque.
Vamos nessa — Ele começou a ir embora, e Loki o seguiu.
— Vista — Mobius disse, referindo-se à jaqueta enrolada no
plástico.
Loki a desembrulhou e colocou sobre a camisa e gravata. Estava
muito feliz por não estar mais usando um macacão. Aquelas roupas
ainda não eram das mais adequadas para alguém de seu cacife,
mas pelo menos eram melhores que o uniforme de um criminoso
condenado.
Sua roupa nova mostrava que não era mais um prisioneiro. Mais
do que isso: indicava que fazia parte da equipe. Ele levantou a gola
da jaqueta e olhou para Mobius como se dissesse “o que acha?”
— Bom. É. Elegante — Mobius disse.
E lá se foram.

Uma série de pendentes de luzes circulares enchia a sala de


reuniões. Sua aparência lembrava a de luas em miniatura, roubadas
de todos os tempos e lugares que a AVT extinguira. Até em
situações como essa, Loki era capaz de um pensamento poético ou
dois.
B-15 informava o time reunido de caçadores e agentes, seu rosto
tenso numa expressão séria.
— C-20 e seu grupo foram desconectados pouco depois de
saltarem à ramificação de 1985 — ela disse. — Todos os sinais
apontam para outra emboscada. Capturamos aura temporal
suficiente para saber que se trata do nosso Loki variante, mas qual
o tipo de Loki permanece desconhecido.
— É do tipo inferior, só para deixar claro — Loki disse, olhando
para os caçadores e agentes posicionados solenemente num
círculo.
B-15 olhou para ele farta.
— Deixa eu ver as costas da sua jaqueta — ela disse.
Loki se virou, exibindo seu novo uniforme da AVT — antes de
olhar sobre o ombro e ver a palavra VARIANTE estampada em
laranja na altura dos ombros.
B-15 sorriu, satisfeita.
— Sutil — Loki disse. — Parabéns.
— Não quero que ninguém aqui esqueça o que você é — B-15
disse.
— Oh... sua única esperança de capturar um assassino? — Loki
retrucou.
— Não — B-15 disse. — Um erro cósmico.
— Já chega — Mobius falou no seu tom calmo usual.
— Que gentil — Loki disse encarando B-15.
— O negócio é o seguinte — Mobius mudou de assunto de forma
diplomática —, quando chegarmos à ramificação, não vamos só
estar em busca de um Criminoso Temporal. A gente vai atrás de um
Loki. Uma variação desse cara — apontou, e primeiro pareceu que
apontava para Loki, mas então um holograma dele apareceu no
meio do círculo como um avatar de videogame. Mobius continuou:
— Um tipo com o qual todo mundo já devia estar familiarizado,
porque a AVT já podou um monte desses caras, quase mais do que
qualquer outra variante — Mobius passou por vários Lokis, e aquilo
fez Loki sentir um arrepio.
Havia tantos deles — e todos eram diferentes. Era estranho
pensar que versões dele existiam em outros universos. Se fosse
sincero, isso até o deixava um pouco inseguro.
— E nenhum deles é parecido — Mobius dizia, passeando pela
imensa biblioteca de variantes Loki. — Diferenças sutis na
aparência, ou não tão sutis. Diferentes poderes. Apesar dos poderes
geralmente incluírem mudar a aparência, projetar ilusões, e o meu
favorito...
Loki o interrompeu:
— Conjurar duplicatas — ele disse. Lá estava Mobius,
tagarelando sobre capturar um Loki, quando Loki era um Loki. Era
mais que revoltante escutar falarem dele como se não estivesse ali.
Mobius tocou a tela do seu Temp Pad e os hologramas de Loki
desapareceram.
— É projeção de ilusão — ele corrigiu.
Sério? pensou Loki. Eu sou literalmente um especialista nisso.
— Não, são dois poderes completamente diferentes, na verdade
— Loki disse. Se alguém sabia como esse negócio funcionava, era
ele. Ele não era uma mera variante. Era indispensável e tinha que
mostrar isso a eles.
— Como? — Mobius perguntou. Parecia mesmo querer saber.
— Projetar ilusões envolve representar em detalhes uma imagem
alheia a si que é perceptível ao mundo externo, enquanto conjurar
duplicatas implica a recriação de uma cópia exata do próprio corpo
na sua situação presente, que age como um espelho holográfico da
sua estrutura molecular. — Loki pôs as mãos nos bolsos. — Mas,
ãhm, você já sabia disso.
— Ok — Mobius disse, levantando a mão em desistência. —
Respira fundo. Está anotado. — Depois continuou sua apresentação
sem perder tempo. — Vamos nos separar em dois times, incluindo
eu e o professor Loki.
— Por quê? — perguntou um dos caçadores. Ele estava ereto
com as mãos cruzadas atrás do corpo. Quando falou, sequer olhou
para Mobius, seus olhos miravam adiante, com uma expressão
tensa.
Claramente algumas pessoas não concordavam com a presença
de Loki.
— Porque — Mobius respondeu — quem quer que seja essa
variante, até agora não conseguimos encontrá-la. Então vamos
pedir ajuda a um especialista.
Loki tinha que admitir, o cara era bom de manter a calma. Loki
inspirou pelo nariz e encheu o peito.
— Esse sou eu — ele disse, caso alguém não estivesse
acompanhando.
Valia a pena, mesmo que eles todos o olhassem feio.
Se tinha algo que Loki amava, era o sentimento de ser a solução
para todos os problemas.
Posso ser uma variante, ele pensou. Mas ainda tenho poder. Eu
sou um Loki, e isso é uma grande coisa.
Alguns minutos depois, Loki estava, de novo, seguindo o agente
Mobius a um lugar não especificado. Ele caminhava com as mãos
no bolso.
— Eu vou receber uma arma? — perguntou, tentando soar
despreocupado.
— Hm-hm — negou Mobius.
— Bem, pelo menos vou ter minha magia de volta. Não tem
ninguém preocupado com isso? — Loki provocou.
— Com o quê?
— Com a possibilidade de eu trair vocês.
— Não.
— Por que não?
— Porque você já sabe que vamos conseguir te pegar. E como
trair a gente vai te deixar mais perto dos Guardiões do Tempo?
Loki tinha que admitir, aquele homem sabia criar argumentos
eloquentes quando precisava.
Mas esse pequeno detalhe o deixou intrigado. Ele parou de andar
e se virou para Mobius.
— Uma audiência com os Guardiões do Tempo está na jogada?
— perguntou.
— Mantenha esse foco — Mobius disse diplomaticamente,
segurando o braço de Loki e o conduzindo na direção do retângulo
de luz laranja à frente deles. — Vamos — chamou —, a Porta
Temporal está aberta.
Os caçadores passaram primeiro pela porta, Mobius e Loki os
seguiram.

Dentro de segundos, Loki se encontrava no Wisconsin de 1985,


numa Feira Medieval.
Não era algo que ele chamaria de divertido.
Para Loki, pessoas que se fantasiam e fingem ser algo que não
são, francamente, são patéticas. Sentia apenas dó delas. É claro
que nem todo mundo tinha a sorte de ter nascido um deus. E
olhando ao redor da feira, sentiu convictamente sortudo.
Um dos caçadores dizia:
— O ápice do Evento Nexus foi localizado, senhora — disse a B-
15.
Loki não retraiu seu desgosto ao olhar para ela. Quem ela achava
que era para o chamar de erro cósmico? Ele era Loki de Asgard. Ela
não tinha nem um nome — só um número impresso no seu fiel
capacete.
Odiava admitir, mas as palavras dela o tinham afetado. Mas ele
deixou de lado o orgulho ferido e tentou focar. Se obtivesse
resultados — ajudar a capturar esse cara — então talvez
conseguisse uma audiência com os Guardiões do Tempo. Talvez
conseguisse até os convencer a libertá-lo.
Ele caminhou ao lado de Mobius, sem nenhuma gota da rigidez
que tinham os caçadores dedicados. Até como funcionário da AVT,
Loki mantinha sua postura de deus.
— Deixa eu te perguntar uma coisa — disse a Mobius. — Por que
a gente não só volta para antes do ataque, na chegada da variante?
— Eventos Nexus desestabilizam o fluxo do tempo — Mobius
respondeu, como se lesse de um livro escrito pela própria Senhorita
Minutos. — Essa ramificação ainda está mudando e crescendo,
então você precisa aparecer aqui no momento atual.
Antes mesmo que Mobius terminasse a frase, Loki já sentia o
tédio familiar se apossar dele. Distraiu-se com visitantes da Feira
Medieval usando seus espartilhos, camisas com babados e tiras de
pano amarradas nas testas. Ele as encarava e elas o encaravam de
volta.
— Você assistiu algum dos vídeos de treinamento que deveria ter
assistido? — Mobius disse.
— Bem — Loki disse —, tantos quanto eu aturei. A propaga da
sua querida AVT é exaustiva.
Um dos soldados atrás deles os interrompeu.
— E o que fazem essas coisas aqui? — ele perguntou, apontando
para os equipamentos afixados em seu colete à prova de balas.
— Cargas de reset — Loki disse. — Podam o raio afetado de uma
linha do tempo ramificada, permitindo que ela se recupere de todas
as suas feridas — ele não podia deixar de dizer essas palavras com
autossatisfação. Pelo visto, a Senhorita Minutos tinha mesmo
ensinado alguma coisa para ele. Loki pode ouvir, atrás dele, o som
de armas sendo ativadas. Mas continuou falando —, que, inclusive,
parece eufemismo para “desintegrar tudo ao seu redor”.
Mobius mostrou-se impressionado.
— Ele está por dentro — disse, e seguiu vários caçadores ao
interior de uma tenda no estilo da Feira Medieval.
— Eu assisti os vídeos — Loki disse, vindicado. — Quer dizer,
alguns deles.

Dentro da tenda escura, lanternas tremulavam. À meia luz, Loki


conseguiu distinguir alguns corpos caídos, mas nenhum deles era o
de C-20. A única coisa que restava dela era o capacete.
Pela primeira vez desde que Loki a tinha conhecido, B-15 parecia
assustada:
— Quer dizer que agora ele está levando reféns consigo? — ela
disse.
— A variante nunca levou reféns antes — Mobius respondeu. Loki
notou que ele estava tentando manter a calma.
— Talvez esteja se aprimorando — B-15 disse.
— Ou podou ela — um dos soldados acrescentou.
— Um Loki nunca conseguiria enganar a C-20 — B-15 contra-
argumentou, como se aquela ideia fosse pavorosa demais para se
considerar.
O orgulho de Loki ficou um pouquinho amassado com aquela
pontada.
— Na verdade, acho que você está subestimando...
— Separem-se e procurem por ela — B-15 ordenou. — E rápido,
estamos a três unidades da linha vermelha.
— Vamos — um dos soldados disse. — Ela está certa.
— Venha — Mobius disse a Loki, acenando para que seguisse B-
15 e o restante do time para fora da tenda.
Mas Loki ficou para trás.
Ele podia aproveitar aquilo. Conseguir o que queria.
— Espere — ele disse.
Isso fez Mobius parar e se virar, o que, por sua vez, alertou os
outros — até B-15 — para pararem também.
— Se saírem dessa tenda — Loki falou —, vão acabar como eles.
Mobius foi até ele.
— O que está vendo? — perguntou calmo, mas sério. A
ansiedade borbulhando sob as palavras.
— Vejo um plano — Loki disse —, e, nesse plano, eu me vejo. —
As lanternas tremeluziam atrás dele, servindo de pano de fundo
enquanto ele se ajoelhou ao lado de um dos corpos caídos.
Esperava que tivesse efeito dramático. — Em Asgard nós temos um
ditado — continuou — “Onde a orelha do lobo está, a boca do lobo
logo estará.” Significa prestar atenção aos seus arredores. O que é
absurdo, porque o meu povo é, por natureza, feito de tolos
inocentes. Um traço que eu, o Deus da Mentira, explorei incontáveis
vezes simplesmente por escutar. Meus dentes eram afiados, mas
minhas orelhas mais ainda.
— Nosso tempo está acabando, Mobius — B-15 reclamou,
cerrando os olhos.
— Espera — Mobius disse, pedindo com a mão. — Só dá uma
chance a ele.
— Vocês me lembram deles — Loki disse a B-15, olhando-a com
desdém. — A Autoridade de Variância Temporal e os deuses de
Asgard — bradou —, farinha do mesmo saco. — Ele andou até ela
— Embriagados pelo poder. Cegos para a verdade. Aqueles que
vocês subestimam vão devorá-los. Vocês me subestimam, assim
como subestimam esse Loki inferior. É por isso que vão sempre
virar presas de lobo.
O Temp Pad de B-15 começou a apitar. Ela ignorou Loki
completamente.
— Duas unidades — ela disse a Mobius. — Ele está
desperdiçando nosso tempo.
— Ok, Loki, resumindo… — Mobius o encorajou.
Mas B-15 não queria saber daquilo.
— Precisamos procurar a C-20.
A pressão agradava Loki. Aquilo deixaria as coisas mais fáceis.
As pessoas sempre estão mais suscetíveis a ceder quando estão
com medo.
— É exatamente isso que a variante quer que você faça — Loki
disse, inclinando a cabeça e pondo as mãos nos bolsos. — É uma
armadilha. Ele está esperando vocês lá fora da tenda.
— Devo proteger as cargas de reset? — um dos soldados
perguntou. O pânico surgia em sua voz.
— Não, ele me quer — Loki disse. — Eu sou a chave para o plano
dele. Ele sabe que sou mais forte.
B-15 olhou para seu Temp Pad apitando.
— Quase a uma unidade.
Mas Loki continuou falando, inexorável. Se conseguisse
pressionar Mobius mais um pouquinho... talvez conseguisse o que
queria.
— E ele corretamente acredita que, juntos, podemos derrotar e
controlar a AVT. Mas não é isso que eu quero. Eu tenho um novo
propósito, sou um servo da Linha do Tempo Sagrada. E sabendo o
que sei agora das táticas dele, posso entregar a variante a vocês. —
Nesse momento, Loki pausou para efeito dramático, depois falou
baixinho sobre o ombro de Mobius — Mas preciso de garantias.
— Ah, é? — Mobius disse.
— Garantias de que não vou ser completamente desintegrado
assim que terminar meu trabalho. — Loki disse.
— Entendi... — Mobius disse.
— Vou precisar falar com os Guardiões do Tempo imediatamente.
Eles estão em maior perigo do que imaginávamos — Agora Loki
apenas sussurrou.
Um momento tenso de silêncio passou, quebrado apenas pelo
bipe persistente do Temp Pad de B-15.
Loki pensou que tinha conseguido o que queria, mas o encanto foi
sumariamente quebrado.
Mobius se virou de costas.
— Ele está mentindo — disse, ao mesmo tempo relaxado e
desapontado. — É só enrolação. Não tem ninguém lá fora.
Loki sentiu o coração apertar.
Esse Mobius... era mais esperto do que parecia. Loki espantou
sua decepção. Sem problemas, da próxima vez o pegaria. Para Loki
sempre havia uma próxima vez.
B-15 foi até a saída da tenda, seu rosto marcado com uma
expressão que era a representação perfeita das palavras “eu te
disse”.
— Resete a linha do tempo — comandou. Os soldados a
seguiram.
Mobius voltou-se para Loki de novo, olhou fundo nos olhos dele,
apontando para seu peito.
— Você quase me enganou por um segundo — sussurrou. — As
minhas orelhas são afiadas também. — E então se encaminhou
para a saída.
Loki o seguiu, sabendo que tinha que seguir, sabendo que esse
agente-mais-esperto-do-que-parece da AVT era sua única chance
de salvação. Olhou para trás e viu um dos caçadores ativar a carga
de reset — o pequeno equipamento em forma de lanterna que tinha
visto ser usado pela primeira vez no Deserto de Gobi. A carga se
encheu de luz dourada. A luz ficou rosa, depois roxa escura, depois
preta. Ela varreu o chão, cobrindo os agentes mortos e o capacete
abandonado de C-20 e os desintegrando no processo. Desfazendo
sua existência neste tempo e espaço.
Em algum lugar, Loki imaginou, em alguma sala da AVT, algum
funcionário estava vendo essa nova ramificação da Linha do Tempo
Sagrada desaparecer, voltando a se unir com a linha branca
ordenada que a organização trabalhava tanto para proteger As
palavras na tela indicariam: linha do tempo resetada. E todos
ficariam aliviados novamente. Todos sentiriam que tudo voltou ao
normal; que estavam completando sua missão; que estavam
fazendo a sua parte para manter o mundo em ordem.
Ele assistiu aos vídeos de treinamento.
Apenas uma coisa não traria conforto aos trabalhadores da AVT:
C-20 ainda estava desaparecida. Algo assim nunca acontecera, e
Loki sabia que os analistas não achariam aquilo reconfortante.
Sabia que o mero fato ameaçava tudo em que acreditavam.
CAPÍTULO TREZE

Mobius estava sentado num dos sofás confortáveis do escritório de


Ravonna Renslayer. A música de teremim favorita dela tocava em
seu sistema de som de ponta, e as notas pacíficas e melodiosas o
relaxavam. Ravonna fechara as cortinas das duas janelas enormes,
e elas fatiaram a luz que entrava em pequenos filetes. O escritório
parecia uma caverninha, um retiro pessoal. E Mobius tinha que
admitir que gostava de vir até ele. Disse a si mesmo que era porque
o escritório é um espetáculo, sempre tão pacífico e grandioso, que
sempre o lembrava do verdadeiro propósito da AVT. E era verdade,
claro. Mas ele também gostava de ver Ravonna.
— Sou só eu — ele disse —, ou esse escritório está cada vez
melhor? — Atrás dele, pôde ouvi-la servir uma xícara de chá. Ele
apontou para as grandes prateleiras de madeira que exibiam todo
tipo de artefatos dos mundos. — Onde você conseguiu aquele? O
globo de neve? Não lembro de trazer de nenhum caso.
— Você não é o único agente que trabalha para mim — Ravonna
disse.
— Mas você poderia dizer, talvez, que eu sou o seu favorito? —
Mobius brincou. — E por que você pode guardar todos esses troféus
dos meus casos aqui? Acha que eu não ia amar ter aqueles patins
ali enfeitando meu cubículo?
— Porque eu aprovo as missões — ela disse, sorrindo.
— Justo — ele reconheceu.
— Falando nisso, vamos conversar sobre o seu último fiasco —
Ravonna disse. Ela deu a Mobius a xícara de chá e ele aceitou de
bom grado.
Ravonna sentou-se no sofá oposto ao dele e abriu uma pasta cor
de creme.
— Essa variante — disse — é “insubordinada, teimosa,
imprevisível”. — Ela olhou para Mobius, seu rosto era belo e ilegível.
— Parece alguém que eu conheço.
— Eu estava pensando agorinha que parece alguém que eu
conheço — Mobius brincou antes de tomar um gole de chá.
Ele conhecia Ravonna há muito tempo. Eram amigos. Mesmo que
ela fosse, tecnicamente, sua chefe. Mobius colocou a xícara na
mesa ao seu lado, que já tinha várias manchas circulares.
— Mobius... — Ravonna disse.
— Que foi? Essas manchas já estavam aí.
— E todas foram você que deixou — Ravonna retrucou, mas
estava dando um sorrisinho.
Isso era uma situação familiar para eles.
Ele pegou um descanso de copo e colocou debaixo da xícara.
— Talvez seja do seu outro agente favorito — ele disse.
E então chegou a hora de parar com a brincadeira.
— Escuta, Ravonna. Me desculpa — ele disse. — Eu entendo que
meus, você sabe, métodos com esse Loki são controversos, mas...
— Arrastar uma variante perigosa numa missão de campo é
controverso — Ravonna o interrompeu.
— É, e não saiu exatamente como planejado hoje, mas olha o que
eu descobri: as variantes gostam de ganhar tempo e,
eventualmente, vamos pegar a outra fazendo a mesma coisa.
Porque entender esse Loki me ajuda a chegar mais perto do que
estamos caçando. Certo?
— Olha — Ravonna disse —, eu sei que coisas defeituosas são
seu ponto fraco.
As palavras foram inesperadamente comoventes. Alguma coisa
causou uma pontada no coração de Mobius.
— Não são, não — ele disse.
— São, sim. Mas Loki é uma praga má e mentirosa. Esse é o
papel dele na Linha do Tempo Sagrada.
Talvez fosse apenas o jeito de Mobius, mas era difícil para ele
pensar em qualquer um como uma praga má e mentirosa. E mais
difícil ainda acreditar que uma pessoa — ou um deus, nesse caso —
não poderia se redimir.
— Talvez ele queira dar uma chacoalhada nas coisas — ele disse.
— Às vezes a gente se cansa de interpretar sempre o mesmo papel
— Mobius pensou, por um breve instante, que poderia estar falando
de si mesmo, mas empurrou esse pensamento para o canto da
mente como sempre. — Isso é possível? — continuou. — Ele pode
mudar?
— Não sem que os Guardiões do Tempo decretem isso —
Ravonna disse, dura como sempre. — Então assim será — Ela se
recostou no sofá, colocando a xícara de chá sobre o joelho.
— E como andam os velhos Guardiões do Tempo? — Mobius
perguntou, olhando para as estátuas altas que pairavam sobre a
mesa de Ravonna. Elas brilhavam como armaduras, lembravam
magos ou reis de outro planeta. Deixavam Mobius incomodado.
Ravonna soltou um longo suspiro.
— O que você acha? — disse.
Mobius riu.
— Não sei, nunca encontrei eles. Ainda bem. — Ele olhou
novamente para seus rostos estranhos e desconcertantes, como
monstros de um sonho. — Acho que eu não devia dizer isso — ele
acrescentou, tendo a sensação de que cometia uma blasfêmia —,
mas aquele ali...
— Os Guardiões do Tempo estão monitorando cada aspecto
desse caso — Ravonna disse, inclinando-se para frente. — Nunca
os vi tão envolvidos. Querem que essa variante seja capturada. —
Suas palavras eram duras, mas polidas.
— Também quero — Mobius falou com sinceridade.
— E essa é a última chance que você vai ter com esse Loki —
Ravonna disse, pegando uma caneta para assinar o relatório do
Evento Nexus.
— Ótimo, é só disso que preciso. — Mobius esperava que soasse
como a verdade. Não, risca isso, ele esperava que fosse a verdade.
Ravonna ficou de pé para entregar-lhe a papelada assinada. Seu
nome — R. Slayer — estava assinado na parte de baixo.
— Obrigado, R. Slayer — Mobius disse afetuosamente, riscando
sua assinatura — M.M.M. — ao alto da dela.
Ele olhou para a caneta que ela o tinha dado. As palavras
FRANKLIN D. ROOSEVELT HIGH SCHOOL estavam impressas em
letras brancas em negrito no seu corpo.
— Não lembro disso aqui — ele brincou, examinando o artefato.
— Deve ser daquele agente que você mantém escondido. — Ele
devolveu a papelada a ela.
Podia ver que Ravonna achou a piada engraçada, mas não se
permitiu rir.
— Mantenha o foco — ela disse, seus olhos brilhando.
— Olhos na estrada — Mobius disse. Foi andando até a porta.
— E Mobius? — disse Ravonna.
Ele se virou com um sorriso sem graça no rosto.
— Eu já estava saindo — brincou.
Mas Ravonna estava séria. Parecia pensativa.
— Você realmente acredita nessa variante? — ela perguntou.
— Hmm... — Mobius falou. — Por sorte, ele acredita em si
mesmo o suficiente por nós dois. E, ei, se não funcionar? Eu mesmo
deleto ele. — Mobius se preparou para abrir a porta e então
concluiu: — Ele é muito arrogante.
Mobius fechou a porta de madeira pesada atrás de si e assoviou
para que Loki o seguisse.
Loki saltou do sofá na sala de espera e o seguiu.
— Você deve estar se perguntando o que aconteceu na missão —
disse. Para Mobius, ele soava preocupado, como se estivesse
tentando apagar seus rastros.
Mobius já estava esperando por isso e, para ser honesto, aquilo o
irritava um pouco.
Loki não era do tipo que admite que fez algo de errado, que pede
desculpas, que segue em frente. Ele só tentava cobrir uma mentira
com outra.
Muito irritado para responder, Mobius seguiu andando. Loki parou,
depois correu atrás dele.
— Aquela foi sua primeira lição para capturar um Loki — o Deus
da Mentira falou. — Espere o esperado. Sabe, metade da graça de
ser um mentiroso é saber que todos sabem que você é um
mentiroso, e aí muitos dos seus truques podem vir de se aproveitar
do fato que você sabe que eles sabem...
— Tá bom — Mobius disse. — Só cala a boca! Por favor. O que
aconteceu com o cara que eu conheci no elevador? Que não
gostava de falar. Lembra dele? Agora eu estou preso com essa
matraca que não para de falar sobre o que é ser um Loki! — Mobius
acelerou o passo, mas Loki o acompanhou.
— O quê? — Loki disse. — Não é para isso que estou aqui?
— Não. Eu não ligo para o que você é — Mobius disse. — Você
está aqui para me ajudar a capturar a versão superior de você. Só
isso!
— Espera um minuto! — Loki disse. — Não tenho certeza de que
superior é a palavra mais adequada.
Mobius parou diante de um elevador prateado.
— Tá vendo? Olha aí. É isso mesmo. Eu acreditei,
estupidamente, que essa insegurança, essa necessidade de
validação te motivaria a achar o assassino. Não porque você liga
para missão da AVT ou para ser um herói, mas porque você sabe
que essa variante é melhor que você. E você não consegue aceitar
isso. — Ele cantarolou as palavras como numa provocação infantil.
Houve uma pausa em seguida. Cheia de várias palavras não
ditas.
Então Loki finalmente falou:
— Muito bom — ele disse, impressionado. Inclinou-se para a
frente para ajeitar a gravata de Mobius. — Quer dizer, é adorável
que você pense que poderia me manipular. Eu estou dez passos a
sua frente. Tenho jogado meu próprio jogo esse tempo todo. — Ele
sorriu seu sorrisinho arrogante, com as mãos enfiadas nos bolsos.
— Qual? — Mobius disse, ciente de que sua voz estava
carregada de zombaria. — Usar seu charme para chegar aos
Guardiões do Tempo, enganar eles e tomar o controle da AVT?
Estou quente? Uma traição do mentiroso mais confiável da história.
— Mobius apertou o botão do elevador. Já estava exausto e estava
falando com Loki fazia apenas alguns minutos.
Loki ficou para trás.
— Ok, por que você está se arriscando por minha causa? — ele
disse.
Mobius ficou com raiva. Parou na frente de Loki e apontou para
ele.
— Vou te dar duas opções — disse —, e você pode acreditar no
que quiser. A) Porque eu vejo um garotinho assustado, tremendo no
frio, e me sinto meio mal por causa do coitadinho gelado. Ou B) eu
só quero pegar esse cara e vou te dizer o que tiver que dizer pra
isso.
O elevador apitou. A seta para baixo acendeu. As portas se
abriram, e Mobius entrou.
Loki o seguiu em silêncio.
Será que finalmente o convenci? Mobius pensou.
— Não preciso da sua simpatia — Loki disse enquanto
esperavam as portas do eleva dor se fecharem.
— Bom — Mobius soltou. — Porque a minha já está na reserva.
Mas quando as portas se abriram novamente, Loki estava
discutindo — de novo.
— O que é isso? O próximo passo da sua manipulação...
— Não, esse é o último passo — Mobius retrucou. — Sua última
chance.
— Oh — Loki disse —, e o que eu preciso fazer para ter essa
última chance?
— Trabalhar.
Mobius decidiu ignorar o fato que Loki não parecia conhecer o
significado daquela palavra.
CAPÍTULO QUATORZE

Loki olhava pelo vidro de mais um elevador. Era só isso que toda
essa gente da AVT fazia — ficar andando de elevador para lá e para
cá? Certamente parecia isso.
Esse elevador, entretanto, era um pouquinho melhor.Tinha uma
vista. Parecia viajar pela espinha de um prédio gigante de concreto,
afundando por vários andares de varandas recurvadas, através de
suas balaustradas de metal preto polido.
É como estar dentro da barriga de uma besta, pensou Loki.
Na base da espinha da besta, três imensos Guardiões do Tempo
estavam de pé, com suas mãos em prece, seus olhos focados.
Eram feitos de concreto, e maiores que arranha-céus.
Foi ali que o elevador parou.
Mobius guiou Loki pela imensa livraria, completamente ignorante
do seu tamanho ou estranheza.
— Preciso que você examine todos os arquivos dos casos de
todas as variantes e depois me dê... Como devo dizer? Sua
perspectiva única de Loki. Quem sabe? Talvez a gente tenha
deixado passar alguma coisa.
— Bem, vocês são idiotas — Loki disse. — Suspeito que tenham
deixado passar muita coisa. — Ele ainda estava sarcástico por ter
sido chamado de garotinho assustado.
Mas Mobius não deu corda.
— Por isso que tenho sorte de ter você aqui por mais um
tempinho — disse alegremente. Tinha se acalmado desde a
discussão. — Deixa eu te acomodar aqui nessa mesa, e não tenha
medo de mergulhar de cara nesse trabalho, hein? — ele disse.
A mesa era pequena e estava cheia de pastas beges e arquivos
pretos, todas recheadas de papelada até estourar.
— E uma dica para você — Mobius disse. —, finja que sua vida
depende disso. — Ele deu tapinhas leves no braço de Loki. — Vou
pegar um lanchinho.

Algumas horas depois, Loki ainda estava folheando os arquivos.


Ele grunhiu. Seu pescoço doía. Suas costas doíam. Até seu cérebro
doía.
Ele ergueu uma folha de papel, falando entusiasmado com ele
mesmo:
— Minha nossa. Não me diga que a variante emboscou e matou
outro time de homens-minuto! — Ele arfou dramaticamente. — E
roubou a carga de reset deles também! — Ele colocou a folha de
papel de lado e seguiu para a próxima terrivelmente chata
“evidência” no arquivo.
— Shh — alguém atrás dele sussurrou.
Ele se virou na cadeira, mirando a sussurradora, uma mulher de
casaco de tweed, com um olhar fulminante.
— Shh — ele sussurrou de volta.

Mais tarde, ele passou pela mesa de uma bibliotecária. Era uma
mulher mais velha, com as mãos enrugadas, cabelo muito liso e
escuro, e que vestia óculos de gatinha e um cardigã marrom sem
graça. Ela parecia completamente absorta no trabalho e nem olhou
para cima enquanto ele se aproximava da mesa.
Está mais para completamente absorta na existência sem graça
dela, Loki pensou. Ele não tinha estômago nem para um minuto de
tédio, não sabia como esse pessoal da AVT conseguia — todas
essas regras e regulações, a papelada e formulários e processos.
Aquilo o deixava enjoado só de pensar.
O computador laranja da bibliotecária se iluminava com as
palavras brilhantes à medida que ela as digitava.
— Oi — Loki disse.
Mas a bibliotecária não pareceu ter ouvido. Seus olhos estavam
fixos na tela do computador enquanto seus dedos teclavam. Ela não
parou nem por um segundo.
— Olá? — falou de novo.
Bibliotecários não deveriam ser prestativos?
Essa bibliotecária certamente não era. Ela o ignorou novamente e
seguiu digitando na velocidade da luz. Seus óculos antiquados
apenas contribuíam para sua aparência soberba.
Então Loki notou o sino na mesa. Ele o tocou de leve com um
dedo.
A bibliotecária parou de digitar imediatamente. Muito devagar, ela
ergueu o olhar para encontrar o dele.
— Posso ajudá-lo? — ela disse. Parecia ter acabado de notar a
presença dele ali.
— Pode. Eu estou resolvendo negócios muito importantes da AVT
— Loki disse, tentando não soar como uma variante. — Dando
sequência a uma missão de campo, você sabe como é. A gente, é...
ficou na linha vermelha perto do ápice, e é... bem, isso nunca é
bom. — Ele se apoiou sobre a mesa da bibliotecária, rindo no que
ele esperava que fosse um jeito amigavelmente Mobius de rir.
A bibliotecária simplesmente continuou olhando para ele.
— Ãhm — ele disse, encabulado —, gostaria de ver todos os
arquivos referentes à criação da AVT, por favor.
— Esses arquivos são sigilosos — a bibliotecária disse,
desenhando um sorriso amarelo nos lábios. Os olhos dela não
piscavam para os dele.
— Ok — Loki disse. Ele podia lidar com aquilo. Podia improvisar
um pouco. — Gostaria de ver os arquivos referentes ao início dos
tempos, então.
— Esses arquivos são sigilosos — a bibliotecária repetiu,
aparentando estar perdendo a paciência.
— Ok... — disse Loki. — Do fim dos tempos...
— Esses arquivos são sigilosos — ela disse.
— Tá legal, quais arquivos eu posso ler? —perguntou,
exasperado.
A bibliotecária olhou para ele por um segundo antes de guiá-lo a
uma estante e lhe entregar uma pequena coleção de pastas.
— Boa leitura — ela disse, divertindo-se.
Loki examinou a pilha modesta. Bem no topo estava uma pasta
bege da AVT.
Ele leu as palavras abaixo do logo da AVT: arquivo de caso de
variante.
O nome dele estava lá, impresso claramente: laufeyson, loki.
Também estava escrito o seu Número de Variante (L1130) e o
nome da Sequência de Violação: violação de tempo não
autorizada.
Então a única coisa sobra a qual ele tinha permissão de ler era...
ele? Como isso o ajudaria a chegar até os Guardiões do Tempo?
A contragosto, retornou à mesa designada a ele por Mobius e
começou a folhear seu arquivo.
Havia um documento de inquérito de um evento carimbado com
letras vermelhas cruéis: destruição de asgard. Ele parou para lê-
lo. As palavras começaram a saltar sobre ele, e o zunido da
biblioteca, a diminuir.
RAGNAROK (APOCALIPSE CLASSE SETE): Destruição
planetária total.
(Aniquilação Total da Civilização)
Fatalidades: 9.719
Loki se surpreendeu ao sentir a pressão das lágrimas crescendo
em seus olhos.
Estava com um nó na garganta.
Fora este o evento que tinha visto no telão do Teatro do Tempo 5,
um evento que ainda não tinha acontecido. Um evento destinado a
acontecer, de acordo com essa AVT estúpida e sua Linha do Tempo
Sagrada estúpida.
De repente, o peso daquilo o atingiu, e a folha de papel em suas
mãos parecia pesada como chumbo.
Esse lugar. Eles controlavam tudo. Eles o controlavam. Não podia
escapar. Nunca escaparia. Era um trem na linha que levava
diretamente a um precipício...
Mas aí seus olhos encontraram quatro palavras que mudaram
tudo:
Nenhuma Energia de Variância Detectada.
E do nada, como uma estrela cadente cortando a escuridão do
céu noturno, ele teve uma ideia.
Uma ideia brilhante.
Uma ideia que poderia lhe ganhar o favor de Mobius, que poderia
até mesmo lhe assegurar uma audiência com os Guardiões do
Tempo.
Ele se apressou para juntar as páginas que tinha espalhado pela
mesa e saiu voando da biblioteca, com o coração batendo do
mesmo jeito que batia quando uma rara oportunidade surgia.
CAPÍTULO QUINZE

As portas do elevador apitaram, abrindo-se para o refeitório da AVT.


Loki avistou Mobius imediatamente. Estava sentado sozinho numa
mesa verde-sálvia redonda, comendo uma salada bem mixuruca. O
refeitório da AVT lembrava uma sala de espera deprimente de
aeroporto, com seu teto de concreto um pouco inclinado e janelas
imensas que davam para as várias luzes piscantes da AVT. Sentado
em sua mesa, Mobius parecia derrotado, folheando outra de suas
revistas de jet-ski, mas Loki apenas deu atenção a isso por um
momento antes de correr na direção dele como um filhotinho
animado.
— Eu encontrei uma coisa — disse, mal contendo seu
entusiasmo.
Mobius o enxotou com a mão, falando com a boca cheia de folhas
de alface:
— Não, eu disse para não me perturbar até ter lido todos os
arquivos.
— Eu li — Loki disse.
— Todos os arquivos?
— Sim.
— Referentes à variante.
— A resposta não está nos arquivos. Está na linha do tempo.
Isso deixou Mobius sem resposta. Ele mastigou em silêncio.
Loki aproveitou a abertura e sentou-se do lado oposto ao dele.
— Ele está se escondendo — disse — nos apocalipses.
Surpreendentemente, entretanto, Mobius não ficou impressionado
com aquele insight.
— Que apocalipse? — perguntou. — Em qualquer tempo da
história? Tem, tipo, um milhão deles.
Mas Loki estava confiante de convencer Mobius de que sua ideia
era revolucionária. Porque era. Ele apanhou o inquérito de evento
que tinha lido na livraria.
— Ragnarok — ele disse —, já ouviu falar?
Mobius olhou para baixo.
— Já. A destruição de Asgard e a maior parte de seu povo. Sinto
muito. — Seu sentimento parecia genuíno.
— É, muito triste — Loki disse, pausando por um instante. — De
toda forma, eu fiquei pensando...
Mobius ficou olhando para ele.
— Pode falar — disse.
Loki levou um segundo para organizar seus pensamentos.
— Um Evento Nexus acontece quando alguém faz alguma coisa
que não deveria fazer, não é? — perguntou.
— Bom, é um pouco mais complicado que isso, mas sim.
Loki levantou os dois polegares fazendo sinal de legal.
— Ótimo. E então aquela coisa que eles não deveriam fazer gera
uma reação em cadeia, e várias outras coisas que não deveriam
acontecer acontecem. Et cetera, et cetera, até que, eventualmente,
uma nova linha do tempo se ramifica. Estou certo?
Mobius acenou em concordância.
— Alterações caóticas de um resultado predeterminado — disse
ponderadamente.
— Exatamente! — Loki disse. — Então, digamos que... — pegou
a salada meio comida de Mobius.
— O que você está fazendo? — Mobius disse.
— ... sua salada é Asgard nesse cenário.
— Não — Mobius falou —, não é Asgard. É meu almoço.
— É uma metáfora. Espera aí.
— Eu quero minha salada — Mobius disse.
Loki decidiu ignorá-lo. Ninguém poderia querer mesmo aquela
salada horrorosa. Continuou sua explicação:
— Eu poderia ir a Asgard antes de Ragnarok causar sua
destruição completa e fazer o que eu quisesse — disse.
Quando isso não instigou uma reação de Mobius, Loki continuou:
— Eu poderia, digamos, empurrar o Hulk da Ponte do Arco-Íris —
Para demonstrar, ele pegou um saleiro e começou a saltear o
almocinho sombrio de Mobius com os grãos brancos finos. — Lá vai
ele — disse, tentando não soar tão satisfeito... E falhando.
— O sal é o Hulk? — Mobius perguntou de braços cruzados. Ele
se reclinou na cadeira com a cara descrente.
Loki não respondeu à pergunta, estava absorto demais no próprio
monólogo.
— E eu poderia, também — disse, erguendo a pimenta —, tocar
fogo no palácio. — Ele balançou vigorosamente a pimenta na
salada.
— Não, para com isso — Mobius disse, cansado. — Não toca
fogo no palácio.
Loki mal o escutou.
— Ok? Posso fazer o que eu quiser fazer, e nada importaria. —
Balançou o sal e a pimenta sobre a cumbuca. Balançou e balançou,
e Mobius apenas encarou com uma expressão de derrota no rosto.
— Isso não iria contra o que dita o fluxo da linha do tempo — Loki
disse —, porque...
Neste momento ele bateu o saleiro e a pimenta na mesa e pegou
a lata de refrigerante de Mobius, que infelizmente descobriu estar
vazia. Não serviria. Precisava do refrigerante para a demonstração.
Ele acenou para que Mobius esperasse um segundo e pulou da
cadeira.
— Com licença — disse ao homem sentado na mesa ao lado.
Atrás dele, podia ouvir Mobius murmurando:
— Ai, Deus.
O homem da mesa ao lado olhou para Loki, e Loki notou que era
Casey, o recepcionista que comparou as Joias do Infinito a pesos de
papel.
— É você! — Casey reclamou.
— Bom te ver — Loki disse educadamente. — Só preciso disso
aqui um segundinho. — Ele pegou a caixa de suco de Casey e
sentou-se de novo na cadeira em frente a Mobius, erguendo a
caixinha triunfante. — Porque — disse — o apocalipse vem aí.
Ragnarok. Surtur destruirá Asgard não importa o que eu faça.
Chegara a hora de colocar a cereja no bolo. Loki apertou a caixa
do suco na salada de Mobius.
— Não, não faça isso... — Mobius começou. Depois suspirou,
coçando o lado do nariz em resignação.
— Aí está o apocalipse — Loki disse.
— Isso é o apocalipse?
Loki esperava que Mobius estivesse acompanhando.
— Ragnarok oblitera o sal — disse, com confiança.
Ele ergueu a caixa do suco bem ao alto da cumbuca, espremendo
o restante do suco, sorrindo largamente antes de abandonar a caixa
amassada na mesa.
— Ragnarok — Loki disse —, aí está. — Ele abriu as mãos como
se tivesse acabado de realizar o mais maravilhoso truque de mágica
do mundo; porque ele tinha mesmo.
Confie num Loki para elaborar uma tática genial como essa.
E confie num Loki ainda melhor para enxergar através dela.
— O que é isso que eu estou olhando? — Mobius disse, ainda
teimosamente não impressionado.
— Ok, era uma metáfora fraca — Loki admitiu. — Mas você
entende o que eu quero dizer — fez uma pausa para efeito
dramático. — Não importa. Poderia ser qualquer apocalipse. Podia
ser um maremoto, um meteoro. Podia ser um vulcão ou uma
supernova. Se tudo e todos ao seu redor. — Pegou a salada de
novo — está destinado à destruição iminente, então nada — ele
bateu com a salada na mesa e começou a jogar sal nela novamente
— que eu diga ou faça vai importar. Porque a linha do tempo não vai
se ramificar. Porque ela é destruída. — Balançou o sal e a pimenta
como maracás, mantendo contato visual com Mobius. Quando
Mobius ainda assim não respondeu, ele pôs o sal na mesa de novo.
— Portanto — Loki falou —, a variante poderia estar se escondendo
no apocalipse e fazendo o que quisesse, e nós não saberíamos! —
Ele se recostou na cadeira, satisfeito por ter provado seu
argumento.
Mobius concordou em silêncio, respirou fundo e, finalmente,
disse:
— Nada mal.
— Me leve a um apocalipse de verdade — Loki disse. — Me leve
pra Ragnarok. Vou te mostrar.
Mobius riu.
— É? Para você poder fugir para sua casa? Não.
— Não, eu não vou para casa; podemos ir para qualquer lugar!
— Não vou te levar para um passeio no calçadão, quanto mais no
apocalipse — Mobius disse, mortalmente sério.
— Ah, Mobius, para com isso! O que poderia dar errado? A gente
precisa testar adequadamente essa teoria.
— Bem, aqui vai uma teoria divertida. Você me atrai para o campo
e depois me acerta pelas costas. E essa é uma teoria que eu não
quero testar.
— Nunca acertaria ninguém pelas costas — Loki disse, fazendo
cara de inocente. — Essa é uma forma tão sem graça de traição.
— Loki — Mobius disse —, eu estudei quase todos os momentos
da sua vida inteira. Você literalmente acertou pessoas pelas costas,
tipo, umas cinquenta vezes.
Aquilo era, até Loki tinha que admitir, indiscutível.
— Bem, eu não faria mais — ele disse —, porque já perdeu a
graça. — Era verdade que ele odiava a ideia de ser previsível.
Mais uma risada de Mobius.
— Tá certo... — disse.
Loki precisava insistir. Tinha que provar a Mobius que sua teoria
estava certa. Tinha que mostrar que era valioso; valioso o suficiente
para assegurar uma audiência com os oniscientes Guardiões do
Tempo.
— Ok, olha — ele disse —, você não confia em mim, mas você
pode confiar numa coisa: eu amo estar certo.
Loki sorriu seu sorriso mais encantador, apontando um dedo para
Mobius tal qual um vendedor. E podia ver que o argumento estava
funcionando. Estava funcionando porque era verdade.
CAPÍTULO DEZESSEIS

No fim Mobius decidiu ir até Pompéia.


No quesito apocalipse, ele pensou, esse era um dos mais seguros
— o que eles tinham mais chances de sobreviver. Além disso, Loki
não tinha nenhuma ligação pessoal com a Roma Antiga. Nenhum
parente ou amigo próximos. Nenhum aliado que pudesse fisgá-lo
enquanto ninguém estivesse olhando.
E mesmo que a demonstração de Loki o tivesse irritado, Mobius
tinha que admitir que era uma teoria interessante. E a esse ponto
ele já estava desesperado.
Queria pegar esse cara.
Precisava pegar esse cara.
Pela AVT. Por Ravonna.
Ok, Mobius. Foco.
Pompéia cheirava a fogueiras e dias ensolarados. O céu era uma
abóbada azul, e os pássaros cantavam inocentemente em meio à
conversa das mulheres comprando legumes e ervas.
Ao longe, pairava o Monte Vesúvio, rugindo baixinho como um
urso rabugento. O vulcão devia estar a alguns minutos de entrar em
erupção.
Mobius estava sob um portal de pedra curvado com Loki, que
parecia ansioso demais para o desastre iminente.
— Lá vamos nós — Loki disse, sorrindo como uma criancinha no
Natal.
— Shh — Mobius disse baixinho. — A qualquer minuto...
— Até que essa cidade inteira seja lavada da face do planeta! —
Loki disse. — Imagine só! Toda aquela cinza vulcânica!
Mobius tinha que admitir, ele também estava um pouco ansioso
com aquilo. Mas seu decoro — algo que faltava em Loki,
aparentemente — estava no controle.
— Eu sei — ele disse. — Mas não queremos ficar tão eufóricos.
— Ah, para com isso! — Loki disse. — É legal!
— É, é legal mesmo, mas é só... é só que não é de bom gosto,
porque... — Ele balançou a mão para indicar a tragédia que estava
a momentos de acontecer.
— Eles vão morrer de todo jeito — Loki disse, como sempre
incapaz de perceber a sutileza do momento.
Era daquele jeito que a mente de Loki funcionava, e Mobius sabia.
Não perderia tempo explicando.
— Eu sei — disse. — Agora, escuta, vou monitorar o Temp Pad
para ver qualquer energia de variância.
— Ok — Loki disse.
— Porque precisamos ter cuidado. Se estiver errado, e tem uma
boa chance de estar, qualquer coisa que fizer pode criar uma
ramificação enorme...
— Ah, Mobius! Você faz até o fim do mundo ser chato.
— Escuta aqui, tá legal? A gente não devia estar aqui. Ok?
Loki suspirou.
— Ok.
— Qualquer coisa que a gente fizer pode impactar o curso da
história — Mobius disse, pontuando cada palavra. Ele precisa
mesmo explicar aquilo de novo? Frustração começou a se misturar
com a excitação de escutar o vulcão retumbando. — Você
entendeu? — acrescentou.
— Sim, sim — Loki disse, pondo as mãos nos bolsos.
— Então vamos começar com interferências bem pequenas —
Mobius disse.
— Bem pequenas — Loki ecoou, comportado.
— Consegue imitar passarinhos? — Mobius sussurrou.
Loki arfou.
— Passarinhos?
— Sim. Passarinhos. Tipo uns, sei lá, uns assovios — Mortificado,
Mobius se viu imitando um pombo.
Loki suspirou. Parecia frustrado.
Será que eles não têm pombos em Asgard? Mobius pensou.
Mas antes que pudesse perguntar, Loki saiu correndo, deixando-o
sozinho no portal. Mobius assistiu enquanto o Deus da Mentira
correu até o mercado, chamando a atenção e os olhares confusos
das pessoas ao redor. Sabia que devia ter feito alguma coisa, mas
estava paralisado, incapaz de se mover. Além do mais, se fizesse
uma cena maior, poderia causar ainda mais estrago do que Loki
sozinho.
— Loki!
Mas Loki não estava escutando. Ele correu até uma carroça cheia
de cabras e a abriu. As cabras ficaram confusas a princípio, mas
Loki gritou:
— Vão! Vão!
E as cabras, saltitando e berrando, começaram a esvaziar a
carroça, trotando pelo mercado.
— Sejam livres, minhas amigas chifrudas! — Loki gritou. —
Livres!
O pastor correu atrás das cabras, em pânico, tentando prendê-las
novamente.
Loki já tinha chamado a atenção de uma multidão. Ele falou em
latim:
— Meu nome é Loki. Nós somos agentes da Autoridade da
Variância Temporal. Eu vos trago péssimas notícias. Vocês todos...
vocês todos vão morrer! O vulcão está prestes a entrar em erupção!
— Mais pessoas estavam se juntando, seus rostos eram a própria
definição de choque e confusão. — Eu sei — Loki disse —, já que
sou do futuro. — Atrás dele, o vulcão tremeu e rugiu. — A gente é
do futuro, né? — disse em inglês, e Mobius, cuja alma tinha
abandonado o corpo momentaneamente, de repente se deu conta
de que estavam falando com ele. — O que é a AVT? — Loki
devaneou. — Quer dizer, é do futuro, não é? Ela soa como do
futuro. É bem futurística?
Mobius estava boquiaberto. Não tinha palavras para aquilo.
Então, atrás de Loki, o vulcão entrou em erupção com uma única
e violenta explosão.
As pessoas na praça do mercado começaram a gritar e correr em
todas as direções.
— Bem na hora! — Loki gritou, apontando para o céu vitorioso.
Mobius instintivamente se abaixou. O que ele estava fazendo?
Ravonna o mataria. Essa ideia era estúpida, uma ideia estúpida.
Devia saber que seria um desastre.
Ele assistiu enquanto Loki correu até um estande de verduras e
jogou um punhado de alho-poró pelos ares.
— Aproveitem sua última refeição enquanto ainda podem! — ele
gritou — Nada importa! Nada tem consequência nenhuma! Dancem
enquanto podem!
O grunhido do vulcão ficou cada vez mais alto, e os gritos
também.
Mobius encarava Loki, incrédulo.
— Uhuul! — o deus gritou.
Esse é o meu fim, Mobius pensou.
Então olhou para o Temp Pad em suas mãos.
— Como nos saímos? — Loki disse, arfando cansado, sorrindo, o
céu atrás dele preto das cinzas.
— Eu não acredito — Mobius disse. Ele encarava a tela do Temp
Pad, com a boca aberta, chocado. — Energia de Variância nula.
Não há ramificação da linha do tempo.
Loki parecia extremamente satisfeito. Ele apontou na direção de
Mobius, do jeito que políticos fazem quando prometem algo que
nunca podem entregar.
— A AVT nunca saberia que estivemos aqui — disse. Lá atrás, as
cinzas vulcânicas cresciam, rolando como uma onda gigante. Gritos
ecoavam pelo vale, mas Loki estava calmo, estendendo os braços
como um mestre de cerimônias. — Se fosse eu — disse —, era aqui
que eu me esconderia.
CAPÍTULO DEZESSETE

Loki seguiu Mobius do elevador e através de um dos escritórios da


AVT, onde pessoas trabalhavam em silêncio em suas mesas. Nunca
o vira tão energizado, nunca antes com uma voz tão determinada e
potente.
— Apocalipses... — Mobius dizia, marchando com um bolo de
pastas marrons debaixo do braço. — A variante tem emboscado
nossos soldados e se escondido em apocalipses para cobrir os
rastros.
— De nada — Loki disse, calmo.
Mobius estava ficando mais e mais exaltado, e Loki não sabia
dizer se por ansiedade ou satisfação... Ou um pouco dos dois.
— É — disse o agente —, mas para essa teoria se sustentar, os
desastres precisam acontecer naturalmente, repentinos, sem aviso,
sem sobreviventes.
— E quantos desses vão existir? — Loki perguntou, tendo
dificuldades de acompanhar seus passos rápidos pelo escritório.
— Não sei — Mobius disse. — Vamos descobrir.

Loki sentiu alguém tocar seu braço. Ele abriu os olhos, dando-se
conta de que tinha dormido numa mesa da biblioteca. Tinha babado
em alguns dos arquivos que Mobius lhe dera. Sua cabeça girava,
tinham lido sobre apocalipses em potencial por horas a fio. Deve ter
caído no sono.
— Ei — Mobius disse, tocando mais uma vez em seu braço com
uma das pastas marrons. — Vamos andar um pouquinho.
Loki apanhou sua jaqueta e ficou de pé, ainda meio dormindo.
Foram até o refeitório. Estava vazio, mais escuro, e não mais
lembrava uma sala de espera deprimente de aeroporto. Agora, Loki
pensou, lembrava um bar deprimente. Mas sentou a uma das
mesinhas redondas.
Estar de volta ao refeitório fez Loki lembrar da revista que Mobius
estivera lendo.
— A propósito — disse —, e aquela revista na sua mesa?
— Hmm. Aquela dos jet-skis?
— É. Por que você tem aquilo?
O zunido da AVT, que estava sempre — sempre — presente,
como uma pulsação constante e subterrânea, preencheu o silêncio,
até que Mobius dissesse:
— Porque jet-skis são o máximo.
Isso tirou uma risadinha de Loki.
— Acho que sim — ele cedeu.
— É — Mobius disse. — Sabe, algumas coisas — na verdade, a
maioria das coisas — da história são meio bobas, e tudo acaba
sendo arruinado eventualmente. Mas, nos anos 1990, por um breve
e brilhante momento, ocorreu a bela união entre forma e função, que
chamamos de jet-ski, e qualquer pessoa sensata não pode
discordar disso.
Loki sorriu com a sinceridade de Mobius. Sem querer, estava
realmente começando a gostar do homem.
— Já usou alguma vez?
— Não, não... — Mobius disse, limpando a garganta. — Acho que
um agente da AVT chegando na Linha do Tempo Sagrada de jet-
ski... com certeza criaria uma ramificação.
Loki ficou um pouco triste por ele, preso no subterrâneo, num
labirinto de concreto e refeitórios, escritórios e bibliotecas. Um
escravo da AVT.
— Acho que seria divertido — disse.
— É, seria bem divertido — Mobius disse, melancólico. Ele
pareceu divagar por um momento.
— Então, por que lê sobre eles? — Loki perguntou.
Mobius inspirou.
— Só... me ajuda a lembrar pelo que estamos lutando.
Além da janela imensa de vidro ao lado deles, a AVT brilhava e se
agitava como uma cidade que não dorme.
Mas Loki balançou a cabeça para tudo aquilo.
— Olha... você acredita mesmo nisso tudo?
— Não me prendo a “acreditar ou não acreditar” — Mobius disse.
— Eu só aceito o que é.
Loki olhou descrente para Mobius.
— Três lagartos mágicos...
— Guardiões do Tempo — corrigiu Mobius.
— ...criaram a AVT, e tudo que há nela...
— Isso.
— ...inclusive você?
— Inclusive eu.
— Sabe, toda vez que começo a respeitar sua inteligência, você
diz uma coisa como essa — Loki reclamou, sentindo a frustração
crescer no peito.
Então Mobius lhe respondeu com uma pergunta.
— Ok, então. Quem criou você, Loki?
Loki pensou na questão, apesar de ser óbvio e de Mobius
provavelmente já saber a resposta.
— Um Gigante de Gelo de Jotunheim — disse, sem rodeios.
— E quem cuidou de você quando criança?
— Odin de Asgard. — Obviamente, pensou Loki. Que perguntas
bobas.
— Odin — Mobius disse —, Deus dos Céus. Asgard, reino mítico
além das estrelas. — Ele tentava provar algum tipo de ponto. —
Gigantes de Gelo. Presta atenção no que você está falando.
— Não é a mesma coisa — Loki argumentou. — É
completamente diferente.
— Não.
— Não é a mesma coisa — Loki insistiu.
— É exatamente a mesma coisa — Mobius disse, convicto. —
Porque se você pensar demais sobre de onde qualquer um de nós
veio, quem nós somos de verdade? Parece meio ridículo. A
existência é um caos. Nada faz sentido, então tentamos dar algum
sentido a ela. E eu tenho sorte que o caos em que surgi me deu
tudo isso... — Mobius gesticulou na direção da vista dos grandes
feitos da AVT. — Meu próprio propósito glorioso.
Loki riu debochado. Tinha que ser Mobius para jogar sua própria
frase na cara dele. Mas aquele homem não parecia estar zombando
dele. Parecia, na verdade, bastante sincero.
— Porque a AVT é minha vida — Mobius disse. — E é real porque
eu acredito que é real. — Ele levantou um pouco os ombros.
Loki ponderou um momento.
— Justo — disse. — Você acredita que é real.
— É.
— Então tudo está escrito — Loki disse. — Passado, presente e
futuro. O livre arbítrio é uma mentira.
— Bem, quer dizer, você está simplificando demais... — Mobius
começou a falar.
— Então, na verdade, de certa forma, eu e você — Loki disse —,
aqui na AVT, somos os únicos livres de verdade.
Mobius sorriu amigavelmente.
— Onde você está querendo chegar com isso, Loki?
Loki fez uma pausa antes de falar.
— Como tudo termina? — perguntou, passando uma mão sobre a
mesa.
— Isso é um trabalho que ainda está progredindo — Mobius
disse.
Loki nunca entenderia aquilo. Se tudo já estava planejado, qual
era o sentido de tudo aquilo? Se não havia descobertas a serem
feitas, nenhuma pontinha de chance de mudança, por que só não
acabar com o tabuleiro do jogo da vida e desistir?
— Ah, esses Guardiões do Tempo preguiçosos — disse. — Estão
esperando o quê?
— Au contraire — Mobius disse. — Não. Porque enquanto
protegemos o que veio antes, eles estão trabalhando duro em seu
gabinete para desemaranhar o epílogo de suas infinitas
ramificações.
— Ah — Loki disse. Parecia ser um trabalho importante. — Então,
quando eles terminarem, o que acontece?
— Nós acabamos também — Mobius disse. Loki percebeu um
toque de tristeza na voz dele.
— Sem mais Eventos Nexus. Só ordem. E nos encontraremos em
paz no fim dos tempos.
Talvez fosse só por ser o Deus da Mentira, mas aquilo parecia
simples demais, fácil demais, para o gosto dele. Ele inclinou a
cabeça, sem acreditar, e arqueando as sobrancelhas.
— Bacana, não acha? — Mobius perguntou.
— Só ordem?
— Uhum.
— Sem caos? Parece chato.
— Deve parecer para você — Mobius disse, tranquilo.
— Sabe, você me chamou de garotinho assustado — Loki disse.
— Te chamei de um monte de coisa.
— Chamou mesmo — Loki fez uma pausa. — Mas você está
errado. — Ele deixou que mais um momento de silêncio ocorresse
para que Mobius absorvesse as palavras. — Veja, eu sei uma coisa
que as crianças não sabem.
— E o que é? — Mobius perguntou.
— Que as pessoas más nunca são verdadeiramente más — Loki
disse. — E as pessoas boas não são verdadeiramente boas.
Mobius o encarou, e Loki teve a satisfação de ver suas palavras
ecoarem na cabeça de outro homem, de fazerem a diferença,
bagunçarem as coisas lá dentro, fazendo-o pensar. Loki guardou um
sorriso dentro de si, com a crença de sua genialidade aumentada.
Mobius olhou para o nada, seus olhos ficando desfocados.
— Garotinho assustado — disse baixinho.
As palavras que saíram da boca dele lembraram Loki do quanto
tinha ficado chateado quando Mobius as disse.
— Sim, foi bem condescendente — disse. — Pensei até que foi
um pouco longe demais, na verdade.
Mobius ainda estava com o olhar perdido, entretanto, sem
responder. Então, de repente, voltou ao presente, pondo-se de pé
num salto.
— Você é muito esperto — ele disse.
Loki ficou ali sentado, pensando por que Mobius tinha dito algo
tão óbvio.
— Eu sei — disse, porque, é claro, ele era muito esperto.
Mas Mobius não o tinha ouvido. Estava saindo do refeitório,
andando rápido e resoluto. Loki se levantou e o seguiu.
CAPÍTULO DEZOITO

Uma vez mais, Loki se viu seguindo Mobius, dessa vez pela vasta
biblioteca da AVT.
Mobius caminhava depressa, falava depressa.
— A variante deixou uma coisa para trás numa cena de crime
antiga, uma catedral — disse. — Uma caixa de doces. — Ele guiou
Loki até uma estante em que pastas grossas estavam guardadas e
destravou uma das caixas de arquivo. — Um anacronismo óbvio —
continuou. — Eu mandei para a seção de análises, mas eles não
conseguiram encontrar nada real.
— Qual a importância disso? — Loki perguntou, genuinamente
intrigado. Estava se acostumando a trabalhar com o agente Mobius.
— Porque agora temos duas variáveis — Mobius disse. —
Desastres naturais apocalípticos e... — Ele puxou uma coisa de
dentro da caixa — ...Kablooie.
Loki olhou por cima do ombro de Mobius. Dentro de um saco
plástico transparente, ele segurava um pequeno item retangular. A
palavra KABLOOIE estava impressa na frente com uma fonte em
forma de bolhas.
— O que é isso? — Loki perguntou, forçando a vista para vê-lo.
— Doce — Mobius disse, perplexo. — Não tem doce em Asgard?
— Tem. Uvas, nozes — Loki disse.
— Por isso você é tão amargo — Mobius disse, empurrando Loki
para voltar à mesa que ainda estava cheia de pilhas de relatórios de
apocalipses. — Ok — disse —, Kablooie só foi vendido
recentemente na Terra, entre 2047 e 2051. Tudo que a gente
precisa fazer é cruzar isso com os eventos apocalípticos. Vou te dar
metade. — Mobius deu toquinhos numa pilha de pastas marrons
como se fossem um bichinho de estimação querido. — E que tal a
gente transformar isso numa competição? — acrescentou. — Ver
quem acha.
— Certo — Loki disse. Gostava de competições.
— Quer apostar alguma coisa? — Mobius perguntou. De alguma
forma seu ânimo tinha sido consideravelmente revigorado.
— Claro — Loki disse.
— Um acordo de cavalheiros? — Mobius perguntou. — É, vamos
apostar nosso orgulho — Ele entregou metade das pastas a Loki. —
Ok — falou —, que vença o melhor homem. Vai!
Loki folheou rapidamente as pastas, examinando seu conteúdo e
procurando pela palavra “Kablooie”.
— Achou alguma coisa?
— Ãhm... — Loki disse. — Não foi o desastre climático de 2048,
nem a tsunami de 2051.
Mobius encorajava baixinho:
— Vamos, vamos, vamos, vamos.
— 2050... — Loki seguiu. — A extinção da andorinha. Isso é
sério?
— Estragou completamente o ecossistema — Mobius disse.
— O Krakatoa entrou em erupção em 2049 também... Nada de
Kablooie — Loki disse, passando depressa à próxima pasta.
— Meu Deus, é coisa ruim atrás de coisa ruim, né não? — Mobius
disse, examinando a própria pilha de arquivos. — Ciclone, fome,
vulcões, enchentes...
— Achei ele! — Loki disse. O prazer de vencer sempre o fazia
sorrir. Ele mostrou o relatório de evento dentro da pasta a Mobius.
desastre de roxxcart estava estampado no canto superior
esquerdo em letras vermelhas.
— É aí que ele está — Loki disse.
Mobius examinou a página.
— Alabama, 2050 — cantarolou. — Você vai acabar roubando
meu trabalho se eu não tiver cuidado.
Loki tentou muito suprimir um sorrisão.
Mobius odiava ir ao escritório de Ravonna pedir coisas. Uma
única vez, ele gostaria de chegar à porta dela com alguma notícia
boa, anunciar alguma vitória. Então, talvez, ele pudesse reunir a
coragem necessária para contar o que sente por ela. Dizer-lhe que
ela é mais do que apenas uma colega para ele.
— Você quer que eu autorize o envio de uma força tarefa armada
ao possível esconderijo da variante? — ela disse enquanto se
reclinava na cadeira e erguia as sobrancelhas como se Mobius
tivesse acabado de lhe pedir para comprar um unicórnio.
— É — Mobius disse. — Haven Hills, Alabama. Cidade operária
da Roxxcart, até ser varrida por um furacão. Tem toda a comida e
suprimentos que uma pessoa precisa. Se ele gosta dali, não tem por
que não voltar para acampar lá sempre que quiser.
— E tudo isso por causa de uma teoria de uma variante que
acabou de estragar sua última missão? — Ravonna falou.
— É, ele está indo muito bem — Mobius disse sem ironia.
Ravonna inclinou-se para frente, seus cotovelos sobre a grande
mesa de madeira, seu rosto iluminado pela luz dourada da lâmpada
em sua mesa.
— Mobius — ela disse —, como sua amiga, tenho que dizer que
confiar nesse homem não é uma boa ideia.
— É, eu sei — Mobius disse. — Mas talvez ele valha a pena.
Quer dizer, ele acabou de descobrir um buraco enorme na nossa
segurança, não é mesmo?
— É isso que me preocupa — Ravonna disse com a voz mais
aguda.
Mobius respirou fundo. Ele precisava fazer aquilo funcionar.
— Eu dou conta dele. Confia em mim. É aqui que a gente vai
pegar nosso cara — disse.
— Em você eu confio. Mas nele? — Ravonna balançou a cabeça.
— Escuta, Ravonna, todos os meus instintos estão me dizendo
que é aqui que a gente encurrala essa variante.
Ela o encarou.
— Ravonna — Mobius disse —, qual foi a última vez que você me
viu tão entusiasmado assim? Eu estou animado. Estou subindo
pelas paredes.
Ravonna sorriu.
— Ok — ela disse, depois de um ou dois segundos.
— Isso. Ok — Mobius disse, se segurando para não sair pulando
e jogando os braços para cima.
— Mas, Mobius...
— Sim?
— Eu não vou poder te ajudar muito se isso der errado.
Mobius assentiu.
— Por todo o tempo — Mobius falou, solene.
— Sempre — Ravonna disse.
— Ok.
Mobius sentia-se uma latinha de refrigerante toda balançada. Ia
dar certo. Ia pegar a variante fugitiva, de uma vez por todas, pela
AVT, por Ravonna.
Do lado de fora, na sala de espera, Loki abriu as mãos em
pergunta.
— Vai rolar — Mobius disse.

Mobius estava novamente agindo como de costume: marchando e


falando a 100km/h.
— Estamos fazendo um bom trabalho hoje — disse, com seu
sotaque sulista dos Estados Unidos mais forte que o normal.
— Também acho. — Loki disse, brincando de o quão-rápido-
preciso-andar-pra-alcançar-Mobius.
Mobius levou Loki até um vestiário e parou diante de uma fileira
de armários vermelhos.
— Estou falando, se você ajudar mesmo a gente a pegar essa
variante, quem sabe, meu amigo? — Ele abriu seu armário e pegou
sua jaqueta.
— O quê? Consigo um encontro cara a cara com os Guardiões do
Tempo? — Loki perguntou. Ele estava brincando um pouco, mas
não estava mesmo brincando, só tentando despistar. Ainda estava
de olho no prêmio. E o prêmio era: sair da AVT. Voltar a viver sua
própria vida, nos seus próprios termos. Perseguir novamente seu
propósito glorioso.
— Não disse isso — Mobius disse. — Tenha paciência. Um passo
de cada vez. — Então entregou a Loki um par de adagas. — Por
segurança.
O metal estava frio em suas mãos. Estava perfeito.
— É — Mobius disse —, elas não são...
— De jeito nenhum. — Uma voz interrompeu. Era B-15. Ela
arrancou as adagas de Loki e as colocou no próprio armário, depois
fechou a porta. — Se reúnam para discutirmos a missão — ela
anunciou à sala.
Se foram tão cedo... Loki pensou.
E como da última vez, os caçadores e agentes formaram um
círculo para escutar B-15 enquanto ela lhes explicava a situação.
— Roxxcart — ela disse — é um grande hipermercado de sua
era. Contém uma série de seções espalhadas, incluindo um galpão,
que está sendo usado pelos civis como abrigo até o fim da
tempestade. Lembrem-se que este é um apocalipse classe dez. A
variante não deve saber que estamos indo, mas pode estar
escondida em qualquer lugar e deve ser considerada hostil. Então
fiquem alertas. Sempre que ocorre um ataque, a variante rouba as
cargas de reset. Ela está planejando alguma coisa, só não sabemos
o quê. Por isso, fiquem de olhos abertos para as cargas
desaparecidas. E se virem um Loki: podem ele — Os olhos dela
estavam sombrios e focados, e ao dizer aquelas palavras, ela
olhava diretamente para Loki, o que o fez sentir um leve calafrio.
— O Loki malvado, de preferência — disse, sorrindo sem graça.
CAPÍTULO DEZENOVE

Sylvie estava dentro de uma lembrança.


Uma lembrança da Caçadora C-20.
Agachada no chão da sala de segurança, ela abaixou o capuz
preto, pôs seus dedos na testa da moça e eles começaram a brilhar,
verdes. Ela estava tanto agachada na sala de segurança quanto
dentro da cabeça de C-20, na cena que passava como um filme
dentro dela.
A memória que Sylvie escolhera para ocupar era agradável.
Gostava de usar memórias boas quando enfeitiçava as pessoas.
Por qualquer que fosse a razão, elas costumavam funcionar melhor.
No mundo das memórias, a Caçadora C-20 não se parecia com a
Caçadora C-20. Ela não vestia o uniforme estúpido preto e laranja
da AVT. Em vez disso, vestia uma camiseta, e seu cabelo estava
longo e trançado. Tinha até um piercing no nariz. Ela estava sentada
num restaurante à beira-mar, com um milkshake à sua frente, e
sentada do outro lado estava sua melhor amiga. Sylvie, é claro,
tinha tomado o lugar da melhor amiga. Ela conseguia fazer isso
sendo um Loki: infiltrar-se nas memórias das pessoas e mexer um
pouco com elas. Tudo para conseguir o que queria.
No mundo das memórias, C-20 estava olhando o menu, se
remexendo animadamente em sua cadeira.
— A gente podia pegar umas batatas — ela cantarolou — ou
asinhas de frango...?
— Ou a gente podia comer noutro lugar — Sylvie brincou,
sugando seu próprio milkshake pelo canudo.
— Por que você odeia vir aqui? — C-20 devolveu a brincadeira.
No mundo das memórias, C-20 não sabia que não estava falando
com sua amiga de verdade. Falava com Sylvie como se a
conhecesse por toda sua vida.
— Não odeio — Sylvie disse. — Tenho medo daqui. Sabe quantas
vezes a vigilância sanitária interditou esse lugar?
— Bem, os milkshakes estão bons, na minha opinião — C-20
falou e se inclinou para frente, fazendo muito barulho ao tomar sua
bebida. Então, ela voltou à posição normal e balançou a cabeça,
apertando os olhos. — Minha nossa — ela disse. — Meu cérebro
congelou.
E foi aí que Sylvie viu sua chance de perguntar o que queria.
Mas antes ela precisava preparar o terreno.
— Você sabe o que acontece quando o cérebro congela, né? —
disse, tentando se manter casual, enquanto brincava com seu
canudo.
C-20 arfou dramaticamente.
— Argh, lá vem — disse.
Sylvie não deixou aquilo a interromper.
— Quando você bebe algo muito gelado...
— O cérebro congelado tem a ver com o gelo. Entendi — C-20
disse, sarcástica.
— Calma aí, eu estou falando sério — Sylvie disse, depois
continuou com sua explicação. — Então, o frio permeia o céu da sua
boca e congela as sinapses no seu cérebro, então suas memórias
ficam literalmente congeladas. — Ela sorriu, olhando direto nos
olhos de C-20. Esperava estar fazendo uma imitação decente da
amiga mais antiga dela.
C-20 assentiu, segurando o riso.
— Isso... com certeza não é verdade — disse.
— É, sim — Sylvie insistiu, dando um tapa na mesa. — Vamos,
tenta aí; o que você estiver pensando na hora vai ficar congelado.
C-20 a encarou com cara de deboche.
— Vou te fazer uma pergunta — Sylvie disse —, e você não vai
conseguir me responder até que suas sinapses tenham
descongelado.
— Desafio aceito — C-20 disse, já se inclinando para tomar o
milkshake. Ela pegou o canudo e deu um belo gole, depois balançou
a mão no ar. — Ok — disse, de repente séria —, pergunta.
Agora, Sylvie pensou. Vai lá. Pergunta.
— Quantas pessoas protegem os Guardiões do Tempo? — Ela
manteve sua voz firme.
C-20 a encarou confusa.
— Desculpa, como é que é?
Sylvie sorriu carinhosamente para ela, mexendo o milkshake com
o canudo.
Tinha que tentar de outra forma. Precisava conseguir aquela
informação.
De repente, no mundo das memórias ficou de noite. O bar se
encheu de uma música de fortes tons graves. Sylvie e C-20 seguiam
na mesma mesa, com seus milkshakes ainda pela metade.
C-20 olhou ao redor, parecia assustada.
Talvez tenha pressionado demais, Sylvie pensou.
Mas pressionar era algo que ela sabia fazer bem. Desde que
conseguia se lembrar, Sylvie estava tentando derrubar a AVT. Não
podia parar agora. Recusava-se a sentir pena da Caçadora C-20.
Ela segurou o pulso da moça.
— Ei — disse —, há quanto tempo somos amigas? — Ela
continuava com seu sorriso charmoso no rosto.
E aparentemente funcionou. C-20 relaxou e sorriu.
— Tempo demais — ela brincou.
— Não, mas sério, você sabe que pode me contar tudo, né? —
Sylvie se inclinou como se preparada para ouvir um segredo, como
ela imaginava que melhores amigas faziam, apesar de nunca ter
tido uma melhor amiga.
— Sei, sim — C-20 disse, contente.
Sylvie falou mais baixo:
— Então por que não me conta quantas pessoas estão
protegendo os Guardiões do Tempo?
— Ah — C-20 começou a falar —, tem...
Mas ela se interrompeu. Pareceu ter percebido alguma coisa.
Olhou em volta, para o bar, como se tivesse se dado conta de que
estava sonhando.
— Esse lugar... eu... — Sua voz foi perdendo força — Eu me
lembro daqui — disse —, eu conheço esse lugar.
Agora Sylvie sentiu mesmo pena dela.
Droga, ela pensou, olhando para baixo, tentando não se abalar.
Não podia pensar em mais ninguém além de si no momento.
Tinha que ser egoísta se quisesse alcançar seu objetivo.
Mas algo havia mudado.
C-20 a encarou.
— Mas eu não te conheço — ela disse.
Sylvie manteve a calma.
— Está tudo bem — disse —, você só está cansada.
No mundo real, se é que se pode dizer que isso existe, a
Caçadora C-20 estava recostada num armário na sala de segurança
da Roxxcart. Parecia estar dormindo, mas Sylvie sabia que era
assim que todos que ela encantava ficavam quando estava dentro
de suas cabeças... Literalmente. As pontas de seus dedos estavam
brilhando verdes, encostados na testa de C-20.
— É — a caçadora falou, com preguiça —, só devo estar cansada
— Seus olhos estavam fechados e sua voz pouco mais que um
murmúrio de alguém que fala enquanto dorme.
— Como eu encontro os elevadores? — Sylvie perguntou,
determinada a conseguir alguma coisa dessa moça.
— Eles são dourados — C-20 disse.
Sylvie afastou os dedos da cabeça da garota, tentando unir a
imagem dela agora com sua imagem sentada no bar, na praia,
bebendo um milkshake. C-20 começou a acordar, e Sylvie observou
as câmeras de segurança. Tinha uma parede inteira coberta de
telas mostrando todas as entradas, saídas e corredores da
Roxxcart.
Uma das telas mostrava várias pessoas atravessando o
estacionamento debaixo da chuva. Era o pessoal da AVT. Um deles
vestia a jaqueta da AVT com a palavra variante estampada nas
costas.
Tinha pouco tempo, então, para preparar o restante das cargas de
reset.
Ela saiu da sala e deixou C-20 sozinha, abrindo e piscando os
olhos como alguém que acorda de um coma.
CAPÍTULO VINTE

Chegar ao estacionamento da Roxxcart pela Porta Temporal não era


tão glamuroso quanto parecia. Em poucos instantes, Loki chegou a
Haven Hills, Alabama. O ano era 2050 e a chuva era torrencial.
Ventos tempestuosos uivavam, espalhando detritos pelo asfalto.
Trovões ru iam e raios artiam o céu como uma faca afiada
É, isso era mesmo um apocalipse.
Um apocalipse bem molhado.
Mobius falou, tentando superar o vento estridente:
— Alguma coisa?
Falava com B-15, que segurava um Temp Pad.
— Nada ainda — disse —, sigam em frente!
Loki julgou que ela estava gritando um pouquinho alto demais.
Como se tivesse algo a provar.
Como se quisesse mostrar para todo mundo que ela estava no
comando.
Isso o irritava, mas seguiu a ordem mesmo assim, avançando
pelo estacionamento escuro na direção da entrada da Roxxcart com
Mobius ao seu lado. As portas imensas se abriram, deslizando para
revelar um supermercado gigantesco com um telhado alto, no estilo
de um armazém. As prateleiras industriais estavam cobertas de
coisas, desde equipamentos de armazenamento a kits de primeiros
socorros. Um robô com forma de ovo apitou num tom amigável. Loki
supôs que fosse um assistente de compras.
As portas se fecharam silenciosamente atrás deles, diminuindo
um pouco o barulho da tempestade lá fora.
Todos estavam encharcados. Loki estava tremendo, não gostava
de ficar molhado e com frio, não gostava de ficar desconfortável de
jeito nenhum. Estava prestes a reclamar quando se lembrou: Podia
usar sua magia agora! Não estavam mais na AVT! Ele se balançou
que nem um gato, sentindo a magia ressurgir e percorrer seu corpo.
Em poucos segundos, estava completamente seco.
— Que porcaria foi essa? — B-15 disse, examinando-o da cabeça
aos pés.
Loki não podia deixar de sentir desprezo por ela.
— Fui eu. Usando magia. Para secar minhas roupas — disse. E,
quando ela não parou de lhe encarar, acrescentou: — Assim não
vou me denunciar, que nem vocês, com as botas cheias d’água.
Lá fora os trovões retumbaram. As luzes se apagaram por um
segundo e afundaram todos na escuridão até voltarem à vida. As
luzes brancas alongadas estavam alinhadas no teto do
supermercado e começaram a piscar desenfreadamente como num
jogo de videogame.
Aquilo fez B-15 recobrar seu foco.
— Os dois times, vasculhem o abrigo — ela disse a seus
subordinados.
— Sim, senhora — um deles respondeu.
— Loki e eu vamos checar a estufa — Mobius disse. — Nos
encontramos na sala de expo...
— Não — B-15 disse.
Ela claramente estava de mal humor hoje.
— Não? — Mobius disse, incrédulo.
— Você vai com D-90 — ela respondeu com calma. — Ele fica
comigo.
— Do que você está falando? — Mobius disse. — Ele está sob
minha supervisão.
Mas B-15 se recusou a ceder.
— Essa é minha operação, Mobius — ela disse. — Se ele não for
uma ameaça, então não vai ser um problema...
— É claro que ele é uma ameaça — Mobius disse. — Não lembra
do Teatro do Tempo? É por isso que quero ele comigo.
Loki precisava reconhecer os esforços de Mobius para
argumentar em seu favor.
B-15 não lhe dava ouvidos, entretanto.
— Fique à vontade para voltar para a AVT e reclamar com a
Renslayer, mas nesse momento...
— A gente está aqui — Mobius disse, gesticulando
agressivamente com os braços —, a gente não vai voltar. A variante
está aqui.
Loki escutou aquilo tudo um pouco confuso, como se assistisse os
pais discutindo sobre como repreender seu filho.
— Mobius — ele disse —, está tudo bem, está tudo bem.
Mobius estava certo. Não podiam voltar, não podiam recomeçar. A
variante estava ali, e era o trabalho deles a encontrar. Se
encontrassem, e Loki se provasse um recurso importante para a
AVT, talvez ele conseguisse uma audiência com os Guardiões do
Tempo. Talvez conseguisse sair dali. Mesmo que para isso ele
precisasse obedecer às ordens de B-15 por um tempo.
— Confia em mim — Loki disse com calma e se virou para B-15.
— Eu entendo que preciso ganhar sua confiança. E eu vou.
Mobius piscou confuso.
— Por que as pessoas em quem não se pode confiar estão
sempre dizendo “confia em mim”? — Ele balançou a cabeça de
leve, depois se voltou para B-15. — Ok, então. Vê se não perde sua
Coleira Temporal dessa vez — E então se afastou.
— Nos encontramos na sala de exposições — D-90 disse e o
seguiu.
Loki foi deixado com B-15. Enquanto caminhava supermercado
adentro, com as mãos nos bolsos, não sabia dizer se o frio na
barriga era de empolgação ou medo.

Na sala de segurança da Roxxcart, uma figura encapuzada


observava Loki enquanto ele seguia B-15. Depois ela saiu da sala,
deixando para trás apenas um Temp Pad aceso.
A tela mostrava os números 19:57. Os segundos estavam em
contagem regressiva.
Em cerca de vinte minutos, algo grande aconteceria.
Algo que ia mudar tudo.

Loki vagava pelos corredores da Roxxcart ao lado de B-15, que


mantinha o Bastão Temporal em riste, como se esperasse que a
variante fosse aparecer a qualquer momento numa esquina.
Preparada e firme, parecia mesmo uma soldada, enquanto Loki
tentava ao máximo andar como alguém que passeia pela praia: com
as mãos nos bolsos, passos lentos e casuais. Mas não importava o
quanto tentasse parecer calmo, as luzes piscando sem parar acima
deles os lembravam de que tinham mesmo viajado até um
apocalipse. Os dois passaram por estantes de plantas envasadas,
cortadores de grama e fertilizantes.
— Eu, pessoalmente, estou feliz por estarmos passando esse
tempo juntos — Loki disse, inclinando a cabeça na direção de B-15.
— Silêncio — ela sussurrou, mais séria do que nunca.
— Só estou dizendo que a gente começou com o pé...
Loki começou a falar, mas escutou alguém derrubando uma tigela.
Era um som estridente, seco e circular.
— Shh — B-15 falou.
Loki ficou um pouco tenso e a seguiu. O trovão se anunciou lá
fora, e as luzes começaram a piscar mais rápido, indicando uma
instabilidade.
No fim do corredor vizinho, um homem de moletom olhava sem
muito interesse para uma planta envasada.
— Ei! — B-15 disse, erguendo seu Bastão Temporal.
Um pouco exagerada, Loki pensou.
— Calma, calma, está tudo bem, está tudo bem — o homem
disse, virando-se para eles com as palmas das mãos à mostra.
Parecia inofensivo.
— O que está fazendo? — B-15 disse, não indicando
concordância. Ela apontou seu Bastão Temporal para ele, sua ponta
brilhava como carvão em brasa.
— Comprando plantinhas — o homem disse, timidamente. Suas
mãos ainda estavam levantadas, parecia assustado.
— No meio dessa tempestade? — Loki disse, confuso.
— É uma liquidação relâmpago — o homem disse sem ironia.
Raios brilharam pelo vidro atrás dele. — As azaleias estão pela
metade do preço.
B-15 não estava acreditando. Não cedeu.
— Ele pode ser você? — sussurrou para Loki.
Loki refletiu.
— Bom, eu provavelmente usaria um terno — disse. — Mas, sim,
pode ser.
Era só daquilo que B-15 precisava. Avançou na direção do
homem a passos cuidadosos, preparada para lutar. Estendeu a mão
para o agarrar, mas ele segurou o pulso dela, e ela congelou,
paralisada. O toque dele lançou uma luz verde para dentro do braço
dela. Por um momento, nada aconteceu. Depois o homem de
moletom caiu no chão como um fantoche abandonado.
Loki assistiu tudo chocado.
Calma aí. O que foi que aconteceu?
Ele observou o corpo. B-15 em pé ao lado dele,
consideravelmente mais calma.
— Ele morreu? — Loki perguntou.
— Não — B-15 disse. — Normalmente eles sobrevivem.
Que coisa estranha de se dizer, Loki pensou. “Eles”?
“Normalmente”?
A voz de B-15 estava diferente também. Mais suave, mais
confiante. Talvez tivesse aprendido um pouco com ele.
Ela se virou para ele, afastando os pés e relaxando os ombros.
Tinha mudado mesmo. Quem diria que prender uma variante podia
fazer isso com uma pessoa?
Ela apontou o queixo para ele.
— Então — disse —, você é o tolo que a AVT trouxe para me
caçar.
Ah, Loki pensou. Ah.
A pessoa diante dele parecia B-15. Soava, na maior parte, pelo
menos, como B-15. Mas não era B-15. Não. Loki, em vez disso,
olhava para...
— Eu mesmo, suponho? — disse para a variante fugitiva, que
atualmente habitava o corpo de B-15. Mantinha as mãos nos bolsos.
Para mostrar que não estava assustado.
— Por favor — a variante zombou —, se alguém aqui é alguém,
você que é eu. — Um instante de silêncio se fez antes que a
variante pusesse um sorriso grande no rosto normalmente sério de
B-15.
Loki retribuiu o sorriso mecanicamente.
— Prazer em te conhecer — disse.
CAPÍTULO VINTE E UM

Num depósito da Roxxcart, uma multidão de pessoas desesperadas


estava agachada, se protegendo da tempestade. Bebês estavam
chorando e suas mães os aninhavam. Os adultos falavam por
cochichos. No fundo, um noticiário estava passando, e o âncora
dizia:
— Nesta última hora, foi reportado que os ventos se
intensificaram. Mais uma vez, se você estiver vendo...
Mobius sempre voltava no tempo para eventos desastrosos que
não podia mudar. Gostava de pensar em si mesmo como um
profissional calejado pelo trabalho, mas a verdade era que nunca
tinha se acostumado a ver as pessoas sofrerem.
— Revistem as bolsas em busca das cargas de reset — o
Caçador D-90 disse.
Mobius tentou manter a cabeça baixa, não chamar atenção para
si, mas, quando um senhor de cabelos grisalhos de macacão falou
com eles, não conseguiu não olhar:
— Vocês são da FEMA? Guarda Nacional?
Eu não posso falar com ninguém, ele pensou. Evite contato visual
e mantenha o foco.
Ele ignorou o homem, tentando também não prestar atenção na
esperança que tinha em sua voz. Olhou para as bolsas no chão.
— Pode ser qualquer uma — falou sozinho.
— Ei, então — o homem disse —, se vocês tiverem um
helicóptero ou outra coisa, a hora de usar é agora. Tem mulheres e
crianças aqui. E o clima não está de brincadeira, não. — Ele tinha
se aproximado, olhava nos olhos de Mobius.
— Não, desculpa — Mobius disse. — Não temos — Era verdade,
mas, mesmo assim, doía admitir.
— Mas e com que diabos vocês vieram para cá? — o homem
disse, levantando a voz. Ele tentou dar um passo na direção de
Mobius, mas o Caçador D-90 o impediu, empurrando-o para longe.
Por sorte, o homem não opôs resistência. Dando seu trabalho por
feito, o Caçador D-90 seguiu adiante, abrindo outra bolsa em busca
das cargas de reset. Não parecia nem um pouco afetado pelo
sofrimento dos outros.
Mobius suspirou. Os Guardiões do Tempo não tinham exatamente
criado caçadores muito empáticos.
— O que você está fazendo? — disse. — Ei! Essas pessoas
estão assustadas. — Ele tocou o braço do Caçador D-90 e o virou
para si.
— Elas estão prestes a morrer, deviam estar com medo — o
Caçador D-90 disse. Não havia nenhum sinal de emoção em seu
rosto.
— Ok, mas — Mobius disse — não da gente. — Ele apontou para
o peito do Caçador D-90. — Vai com calma.
— Senhor! — alguém falou.
Mobius se virou e viu o Caçador D-150. Estava ofegante, parecia
assustado, como se tivesse acabado de ver um fantasma.
— O que foi? — Mobius perguntou, esquecendo-se
imediatamente do resto das coisas: do homem de macacão, dos
bebês chorões, e até da insubordinação do Caçador D-90.
Ele seguiu o caçador aflito até a sala de segurança.
Lá, sentada no chão com as costas apoiadas numa mesa, estava
C-20, a caçadora que a variante havia sequestrado na Feira
Medieval.
Mobius ficou aliviado na mesma hora. Ela estava viva. Estava ali.
Ela estava...
Estava sussurrando muito baixo. Mobius se aproximou para poder
escutar.
— É real — ela dizia. — É real. É real. — Seus olhos estavam
desfocados, miravam na direção de Mobius sem que o vissem.
E o alívio se tornou medo.
A Caçadora C-20 continuou repetindo as mesmas duas palavras:
— É real. É real. É real. É real. É real. — Seus olhos estavam
distantes. Não parecia conseguir ver onde estava de verdade.
Mobius estava na frente dela, apoiado sobre as mãos e joelhos,
tentado em vão se comunicar com ela.
— O que é real? — ele perguntou, desesperado.
— É real — ela disse.
— Ela está fora da casinha — o Caçador D-90 disse.
Mobius o ignorou.
— Olha para mim — disse à Caçadora C-20.
— É real — ela repetiu. E então sua voz ficou mais emotiva: —
Quero ir para casa.
— Nós vamos te levar para lá — Mobius disse carinhosamente.
Depois se virou para o Caçador D-150. — Contacte a AVT — disse.
— Alerte a enfermaria.
— Não, não, não — a Caçadora C-20 disse, de repente em
pânico. — Eu contei.
Mobius olhou mais confuso do que nunca para ela.
— Contou o quê? — o Caçador D-90 falou.
— Onde eles estão — ela disse com a voz ainda confusa. — Os
Guardiões do Tempo. — Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Ela estava com medo, respirando com dificuldade. — Eu contei
como encontrar eles.
Mobius segurou a mão dela enquanto o Caçador D-90 pegou o
Temp Pad e falou:
— B-15 — ele disse —, qual seu status? — Quando não obteve
uma resposta rápida, falou novamente: — B-15, responda. Qual seu
status?

A variante, que usava o corpo de B-15 como uma fantasia de


Halloween, passeava pelos corredores do supermercado. Loki
decidira segui-la, ficar de olho. Não tinha pensado exatamente o que
fazer ainda; estava mantendo as opções em aberto, mas sabia que
precisava manter a calma.
— Encantamento é um truque esperto — disse. — Covarde e um
pouco amador, mas esperto.
A variante não hesitou em responder. Com a voz de B-15, disse:
— Quase tão covarde quanto trabalhar para AVT — rodopiou,
brincalhona, para encarar Loki.
— Eu trabalho para mim — Loki disse, sério. Não gostava que
tirassem sarro dele. Especialmente alguém que tinha a exata
aparência de B-15. Era botar sal na ferida.
A variante riu.
— Você acredita mesmo nisso, né? — disse, rindo. — E eu estava
aqui me preocupando, pensando se tinham encontrado uma versão
melhor de mim.
Do nada, um funcionário da Roxxcart disse:
— Olá, estão procurando pelo abrigo da tempestade? — Ele
sorria de uma maneira que Loki acreditava ser incompatível com o
apocalipse em andamento.
A variante se virou na direção dele e disse, rapidamente:
— Não.
Então tocou o braço dele. Loki viu o corpo de B-15 despencar até
o chão. A variante, agora ocupando o corpo do trabalhador da
Roxxcart, caminhava tranquilamente para longe, com um sorriso
sem energia no rosto.
Por mais que ela o incomodasse, Loki não podia deixar B-15
sozinha. Pensou no que Mobius faria naquela situação. Agachou-se
para ver se ela estava bem.
Então ouviu a voz da variante sair da boca do funcionário:
— Ô, bênção! — disse. — Vai pedir ajuda a seus amiguinhos
agora? — riu de leve, maldosamente, e voltou a se afastar.
Tinha alguma coisa no jeito de falar da variante que irritava Loki
profundamente, mesmo que fosse outra versão do próprio Loki.
Pensou em Mobius, no seu amor bobo por jet-skis e sua
generosidade estúpida, mesmo diante da malcriação de Loki.
Ele se levantou e seguiu a variante.
Tinha um objetivo formado em sua mente. Algo tão afiado quanto
uma faca.
— O que foi? — ele chamou. — Está com medo de me enfrentar
cara a cara? Vem aqui. — Ele observava as costas da variante,
esperando que parasse de andar. Torcendo para que as palavras a
provocassem. Mas ela não mostrou sinais de irritação. Na verdade,
não houve reação alguma sequer. Loki tentou mais uma vez: —
Sabe, ganhar a confiança deles não foi fácil.
Aquilo fez a variante parar. Virou-se devagarinho.
— Ai, Meu Deus — disse —, você está infiltrado. — Cada palavra
pingava sarcasmo.
Loki respirou fundo.
— Se você pudesse, só por um momento, deixar suas gracinhas
de lado. Tenho uma oferta para te fazer. Por isso vim atrás de você.
— Diga — a variante ordenou, erguendo uma sobrancelha e se
afastando, na maior paz.
Loki ficou onde estava. Falava baixo diante do vento uivante lá
fora.
— Eu vou usurpar o trono dos Guardiões do Tempo. — Ele fez
uma pausa, notando a variante parar de andar. — E, é... Botando as
cartas na mesa, eu poderia fazer bom uso de um tenente
qualificado.
A variante se virou para olhar nos olhos de Loki. Sorria satisfeita.
— E suponho que esteja falando de mim? — disse, estendendo
os braços como numa apresentação de circo.
— O que me diz? — Loki disse, dando um passo adiante e
lançando uma piscadela. — Loki.
— Argh. Não me chame assim — a variante disse. — Pode me
chamar de... — olhou para o crachá preso na camisa polo do
funcionário — ... Randy — Sorriu divertidamente.
Loki sentiu a frustração crescer dentro de si.
— Deus... — ele murmurou. — Agora eu entendo por que Thor
achava isso tão irritante — Ele encarava a variante. — Escuta aqui,
já chega desses seus joguinhos. Eu estou tentando te ajudar. Até
mantive eles distraídos na Feira Medieval!
— Ah, uau, e isso foi tão legal de sua parte — a variante disse,
quase gargalhando. — Mas depois de uns oito ou dez segundos de
deliberação, a resposta é não. Não tenho interesse em governar a
Autoridade de Variância Temporal.
A variante foi embora, desaparecendo numa esquina dos
corredores.
Mas Loki foi atrás. Não desistiria tão fácil assim.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Loki caminhava atrás da variante que parecia não ter para onde ir.
— Se você não quer governar a AVT — disse —, então o que
você quer?
Ele precisava saber.
Não dá para manipular uma pessoa adequadamente sem antes
saber o que essa pessoa quer.
Mas a variante era um Loki, também. E não conseguiria decifrá-la
tão fácil.
— Não importa — a variante disse. — Você chegou tarde demais.
— Logo se dará conta — Loki disse — que cheguei antes do
previsto. Encontrei seu esconderijo assim. — Deu um estalar de
dedos. — Diria que isso me torna o Loki superior, não acha?
Uma coisa brilhosa chamou a atenção de Loki, e ele viu uma das
cargas de reset numa prateleira, escondida atrás de caixas de fones
de ouvido. Estava cheia de fios, como uma bomba.
— Entendi — ele disse. — Esse é seu plano. Nos atrair até aqui
para poder explodir esse lugar. — Mas enquanto olhava a bomba
caseira, a variante desapareceu. Loki procurou ao redor, mas o
supermercado estava escuro, piscando sua luz amarelada.
Foi aí que sentiu um chute no estômago.
Ele foi lançado de costas pelo chão.
Era a variante, que tinha trocado de corpo novamente. Agora
tinha a aparência de um lenhador grande e barrigudo, que ria
enquanto rondava Loki.
— Estou com saudade do Randy — Loki disse, grunhindo.
Tentou se levantar, mas a variante o chutou de novo, metendo o
pé no ombro de Loki. Ele rastejou apoiado nas mãos e joelhos,
arfando de dor.
— Agradeço por me ajudar a ganhar tempo — a variante disse. —
Você gosta mesmo de ouvir o som da própria voz.
— Você é a primeira pessoa que me diz isso — Loki disse,
apontando para a variante. Ele ficou de joelhos, mas teve sua
jaqueta agarrada pela variante, e então foi arremessado e saiu
deslizando de barriga pelo chão.
— Blá, blá, blá, blá — a variante disse, imitando as palavras ditas
por Loki.
Loki ficou perplexo.
— Eu nunca me trataria dessa maneira — disse para si mesmo.
Então ficou de pé e andou na direção de seu agressor. — Olá —
disse.
A variante lançou um soco nele, mas Loki desviou, e a mão da
variante arrebentou um televisor atrás dele. Com uma finta elegante,
Loki se esquivou. Usou sua magia para atrair um robozinho de
limpeza redondo para si e com as duas mãos o empurrou contra o
peito da variante quando ela avançou na sua direção. A variante
agarrou o robozinho e tentou arrancá-lo de Loki, mas ele o segurou
com força.
— Ah, que é isso — ele disse. — Para de se esconder.
Mas a variante arremessou Loki pela sala mais uma vez e ele foi
forçado a largar o robozinho. Loki ficou de pé rapidamente,
entretanto, e no tempo que a variante levou para jogar o robô para
longe e chegar até ele, Loki se armou com um aspirador de pó
grande que estava num mostruário. Ele acertou a cabeça da
variante por trás e girou o equipamento nela. A variante o agarrou e
usou para puxar Loki para perto. Em poucos segundos, tinha o
pescoço de Loki estrangulado pela mangueira de sucção.
Loki arrancou a mangueira da garganta e disse para a variante,
um pouco engasgado:
— Loki, se tivesse um pouco de honra em você, lutaria comigo
como você mesmo.
— Tenho um compromisso — a variante disse. — Já chega! — E
jogou Loki num mostruário de brinquedos infantis.
Ele bateu no chão e saiu rolando até parar de costas, todo
dolorido. Grunhiu, arfando de dor. Um dos brinquedos — um
cachorrinho caramelo robótico — patinou até ele e latiu
amavelmente, apertando seu focinho plástico na cabeça dele.
Loki ouvia passos.
Mas eram os passos da variante ou de outra pessoa?
Loki ficou de pé, o cachorrinho de plástico chorando por ser
deixado para trás. Arfava, tudo doía, mas já tinha sobrevivido a
coisas piores.
Do outro lado do supermercado, pôde ver a variante agachada em
frente a uma de suas bombas artesanais, mexendo nela. Ainda
usava o corpo grandalhão do lenhador. Loki se encheu de raiva.
Nunca imaginou que seria tratado com tanto desrespeito por uma
versão de si mesmo. Ele andou até a variante.
— O que você quer de mim? — gritou. — Para que serve tudo
isso?
A variante ficou de pé e riu.
— Se prepare, Loki — disse, gargalhando de novo.
Os olhos do lenhador ficaram desfocados, e seu corpo mole,
caindo no chão. Loki sabia o que aquilo queria dizer. Sabia que a
variante — quem quer que fosse — ainda estava ali, em algum
lugar.
Então Loki ouviu a própria voz gravada sendo tocada
repetidamente pelo sistema de som do supermercado: O que você
quer de mim? O que você quer de mim?
Ele se virou e viu uma figura de capa preta. Era a variante. Não
conseguia ver seu rosto, mas sabia que era ela. Suas mãos
estavam iluminadas por luz mágica verde.
A voz de Loki retumbava pelo supermercado, na gravação
repetitiva: Para que serve tudo isso?
A variante removeu o capuz para revelar seu rosto e...
Uma mulher.
A variante era uma mulher.
Uma mulher com o cabelo ondulado e cortado num penteado bob,
e com olhos astutos e inteligentes. Sua tiara de bronze era
adornada por dois pequenos chifres, mas um deles estava
quebrado. Parecia ter vivido muitas guerras. Parecia ser capaz de
sobreviver a qualquer coisa.
— Não tem nada a ver com você — ela disse com calma. As
luzes piscavam atrás dela como o cenário de uma peça.
— Certo — Loki disse.
Só então, a bomba que ela tinha armado apitou seu último
segundo, e o Temp Pad preso a ela acendeu a palavra ativar num
laranja forte.
E todas as luzes do supermercado se apagaram.
No meio da escuridão profunda, a tela do Temp Pad mostrou
outra palavra: iniciando...

Correndo pelo supermercado mal iluminado, Mobius escutou a


voz de B-15:
— Mobius!
Ele parou e a viu correndo em sua direção.
— Eu perdi ele — ela disse, em pânico.
— O que aconteceu? — Ele abriu os braços inutilmente, depois
começou a correr. B-15 e D-90 o seguiram.
— Parece que seu amigo te traiu, Mobius — D-90 disse.
— Anda! — Mobius disse, apenas. Não queria pensar sobre
aquilo.
No início, corriam em meio à total escuridão. Mas então as cargas
de reset se iluminaram com o brilho laranja.
Elas tinham sido unidas por uma fiação, como se para formar uma
rede. Passaram de laranja para roxo, e depois brilharam negras,
como sempre faziam.
Então, debaixo de cada uma delas, uma pequena Porta Temporal
se abriu. Cada carga de reset caiu por sua própria porta e
desapareceu.
Mobius observou com imenso interesse.
— Para onde elas tão indo? — arfou.
Na AVT, dois analistas estavam monitorando a Linha do Tempo
Sagrada quando ela começou a se ramificar em várias direções.
— Não é possível — um deles disse.
O outro ficou de pé num salto, agarrou o telefone e discou um
número.
— Aqui é o Analista 1182-E — disse ao apanhar um livro da mesa
e o folhear freneticamente. — É... reportando um código, é... triplo-
zero. Ramificações se formando rapidamente e em proporções...
Seu parceiro puxou o telefone dele e falou, sem confusão ou
hesitação:
— Alguém bombardeou a Linha do Tempo Sagrada.

Dentro de seu escritório, Ravonna viu a tela de seu computador


se acender com a visão da linha do tempo bombardeada; para ser
sincera, era muito bonito de se ver. Parecia um galho sem folhas,
um tronco no outono. Não conseguia fazer nada além de encarar
aquilo, boquiaberta, piscando assustada. Era tão bonito, tão
chocante, que demorou um pouco até recobrar seus sentidos.
Esqueça o outono, esqueça as árvores, ela pensou.
Ficou de pé e pegou seu Bastão Temporal.
Caos se instalou na AVT.
Um locutor falava calmamente pelo sistema de som enquanto
agentes e caçadores corriam pelos corredores retorcidos da AVT,
saltando por portas de luz, entrando em ação.
As luzes do supermercado da Roxxcart passaram a um vermelho
sinistro.
Loki assistiu à variante se abaixar para pegar o Temp Pad que
tinha conectado a todas as cargas de reset roubadas.
Ela segurou o Temp Pad, e olhava para ele enquanto movia os
dedos pela tela, pressionando botões que ele não conseguia ver.
Também o vigiava, para ver se faria alguma coisa. Esse sempre fora
seu plano. Ela vinha roubando as cargas há anos. Ele teve que
guardar um sorriso pela esperteza do plano, e como tudo tinha
culminado ali.
Outro botão apertado, e uma Porta Temporal se abriu diante dela.
Encaminhando-se para sair, logo antes de desaparecer, ela se virou
para ele e acenou, balançando os dedos e dando um sorrisinho.
Ela era um Loki?
Quem era ela?
Aonde estava indo?
Loki foi até a Porta Temporal. Então escutou seu nome.
— Loki!
Era Mobius. Corria na sua direção do outro lado do
supermercado. D-90 e B-15 o acompanhavam.
Dois destinos se abriam diante de Loki. Um que lhe tinha sido
ordenado. E um que poderia construir do zero.
— Loki, espera! — Mobius gritou.
Mas Loki o encarou, respirou fundo, e passou pela Porta
Temporal.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Quando a Porta Temporal abriu nas instalações da AVT, um alarme


soava, e uma voz repetia instruções pelo sistema de som: “Todos os
homens-minuto dirijam-se ao arsenal. Todos os homens-minuto
dirijam-se ao arsenal”. Vários caçadores e soldados passaram
correndo perto da porta, sem notá-la.
Lacaios, Sylvie pensou.
Ela atravessou a porta decidida com suas botas de couro
afundando no carpete aveludado. Luzes circulares contrastavam
com o teto de concreto apagado. Para Sylvie, elas lembravam olhos,
muitos olhos. Todos assistindo.
Ela finalmente conseguiu.
Tinha finalmente invadido a AVT.
Os soldados se foram. Sylvie marchou na direção oposta. A voz
nos alto-falantes dizia: “Todos os homens-minuto dirijam-se ao
arsenal. Protejam a linha do tempo”. As palavras faziam Sylvie
querer gritar, mas não gritou. Em vez disso, amarrou o cabelo, como
sempre fazia antes de uma luta. Andou altiva por uma passagem
curva com luzes de emergência piscando em faixas em seu
percurso. Ela se aproximou de um soldado pelas costas; ele
segurava um telefone no ouvido, falando baixinho:
— Eu não sei, senhor.
Sylvie estendeu os dedos e os tocou na lateral da testa do
homem, mas alguma coisa aconteceu, e a magia não o atingiu; ao
invés disso, ricocheteou nos dedos dela. Ela ficou paralisada por um
instante, tentando entender o que havia acontecido. O soldado se
virou para ela e empunhou seu Bastão Temporal. Era ágil e investiu
na direção dela, mas ela era mais rápida. Em apenas um segundo,
tinha acertado um chute em sua cabeça e tomado sua arma. Ela o
atacou com o bastão, e o viu ser desintegrado em fagulhas de luz e
desaparecer por inteiro.
Pode dizer o que quiser da AVT, pensou. Mas ela faz umas armas
bacanas.
Mas no tempo que levou para desintegrar o soldado, entretanto,
outros a haviam notado e avançaram sobre ela com seus Bastões
Temporais.
Ela se virou para encará-los, sorridente. Três contra um, ela
pensou. Ok, gosto de desafios.
Ela derrubou o primeiro soldado, e seu bastão brilhante derrapou
para longe no chão. Depois esmurrou o segundo e se curvou para
trás, evitando ser podada. Agarrou um dos soldados e deu uma
cambalhota para trás, apoiando seus pés na parede. Ela saltou,
dando um chute giratório e acertando um soldado na cara. E assim
que pousou no chão, deu uma joelhada na cabeça do outro.
Dois já foram, ela pensou. Falta um.
Então ela apanhou um dos Bastões Temporais e podou o soldado
restante, ouvindo seus gritos sendo desintegrados junto a ele, que
desapareceu tão fugaz quanto um papel em chamas. Depois largou
a arma no chão com um tinido metálico oco.

Loki se jogou pela Porta Temporal. Voltara à AVT. Um alarme


soava, e escutava a voz da Senhorita Minutos pelas caixas de som
nas paredes: “Todos os homens-minutos dirijam-se ao arsenal”, ela
dizia. “Protejam a linha do tempo.”
Boa sorte com isso, ele pensou.
A Porta Temporal se fechou atrás dele e desapareceu de vista.
Ele olhou ao redor; estava no vestiário a que Mobius o trouxera
logo antes de saírem para a missão da Roxxcart. Ele teve uma ideia
enquanto observava os armários pintados de vermelho, brilhantes
mesmo na luz fraca.
Alguma ajuda em combates seria uma boa, ele pensou, indo na
direção do armário de B-15.

Quando Sylvie encontrou o elevador, seu coração bateu mais


rápido. Era dourado, assim como a Caçadora C-20 havia dito, e com
pequenas ampulhetas gravadas nele. No átrio mal iluminado, com
paredes de painéis de madeira, ele parecia brilhar. Se Sylvie não
odiasse tanto a AVT, talvez achasse o elevador bonito.
Mas definitivamente não era nada bela a visão dos soldados o
guardando.
— Ei! — um dos soldados disse ao vê-la se aproximar. — Pare!
Mas Sylvie não parou. Ela os enfrentou. Torceu o pulso de um, o
podando com o próprio Bastão Temporal, depois chutou o outro
contra a parede com tanta força que ele caiu desacordado.
E aí Loki apareceu numa curva de um corredor, empunhando
duas adagas.
Ai, sério? Sylvie pensou. Esse cara estava atrapalhando os
planos dela.
Ele estava lá, pronto para lutar, girando uma lâmina em cada mão.
Sylvie o imitou, armando-se com sua própria espada. Se era uma
luta que ele queria, uma luta ele teria.
Loki apontou para ela com as adagas.
— Antes, umas perguntas — ele disse, calmo.
Sylvie suspirou.
— Você não tem nada melhor para fazer, não? — Ela foi devagar
até ele, e ambos andaram em círculo ao redor do outro, como
predadores lutando pela mesma carcaça.
— Grossa — Loki disse. Ele levantou uma das lâminas até a
altura da boca dela. — Tem certeza de que é uma Loki? — ele
disse.
Sylvie não precisava se explicar para ninguém.
— Você está no meu caminho — ela reclamou.
— Você é o meu caminho — Loki respondeu.
Tá, ela pensou. Se ele não vai ouvir a razão...
Ela atacou com a espada, que se enganchou com a adaga dele,
então o girou e empurrou para longe.
— Pensei que talvez pudéssemos trabalhar juntos — Loki disse.
Ele ergueu as sobrancelhas e estendeu os braços para fora, para
que as adagas não apontassem para ela.
Sylvie lhe deu um chute no estômago.
Ele caiu, derrubando as lâminas, mas se recuperou rapidamente.
— Mas agora vejo — ele disse, arfando — que lhe falta visão.
As palavras irritaram Sylvie. Ela tinha, sim, visão. Nunca lhe faltou
visão. Foi sua visão que a trouxe tão longe. Mas ela fingiu que não
ligou para aquilo e revirou os olhos.
— Argh — ela disse, ao virar e caminhar para o elevador.
Loki a seguiu. Era persistente.
— Então — ele disse —, ou você vem pela própria vontade... —
Ele agarrou o braço dela e a virou, prendendo o membro nas costas
para que ela não pudesse se mover. — Ou vem à força. De todo
jeito, é assim que eu chego aos Guardiões do Tempo.
Sylvie sabia como escapar de ser agarrada. Ela o empurrou, e ele
caiu e rolou pelo chão, então rolou para frente e se pôs de pé, com
a espada em mãos em instantes. Ele segurou o pulso dela, e
levantou um punho. Ela o encarou, desafiando-o a tentar socá-la.
—Ei! — uma voz disse.
Sylvie olhou ao redor e encontrou a diretora da AVT, Ravonna
Renslayer. Não havia nada mais revoltante que ver sua arqui-
inimiga em pele e osso.
Renslayer era acompanhada por dois soldados atrás de si. Ela
sacou seu Bastão Temporal, e ele brilhou sua luz âmbar.
Sylvie usou a distração temporária para derrubar Loki, pondo-o de
joelhos. Ela segurou a lâmina contra o pescoço dele.
— Mais perto e eu mato ele — ela gritou.
— Vai, pode matar — Renslayer disse sem nem um pingo de
simpatia. Seu sorriso era basicamente de escárnio.
A reação surpreendeu Sylvie, e ela olhou para baixo, para Loki,
por um momento, impactada. Ele não estava trabalhando para a
AVT? Certamente era valioso para eles de alguma forma.
Então ela viu que ele tinha pegado algo de seu bolso — o Temp
Pad dela.
Não, não, não, ela pensou.
Mas era tarde demais.
Loki tocou a tela, e uma Porta Temporal se abriu debaixo deles. E
enquanto Ravonna Renslayer corria na direção deles, sua arma
balançando pelo ar, o chão desapareceu.
Sylvie e Loki caíram.

Loki aterrissou de costas em algo macio. Sentia-se um pouco


enjoado, um pouco abatido. Não tinha se acostumado com aquilo,
com viajar tão rápido assim pelo espaço e tempo.
Ele abriu os olhos. Estava deitado numa espécie de abrigo, e
estava escuro. Sons graves ribombavam do lado de fora. Pedras
caindo ou montanhas se movendo, sons de um terremoto.
A variante fugitiva estava ao seu lado. Claro que estava. Ela se
moveu, grunhindo ao se arrastar sobre ele e tentar apanhar o Temp
Pad caído no chão ao seu lado.
Não podia deixá-lo cair nas mãos dela. Era a única coisa que os
ligava, seu único recurso. Uma coisa que ela queria. E Loki sabia
que o jeito de manter uma pessoa por perto era sempre ter algo que
ela queria. Ele a prendeu para que não o alcançasse.
— Solte minha perna! — ela gritou, mais irritada que assustada.
Ele conseguiu ficar por cima e alcançar o Temp Pad antes. Mas
assim que ficou de pé, ela veio por trás e meteu a cabeça dele
numa mesa metálica, o deixando tonto, com o ouvido apitando.
Que lugar era aquele? Ele tinha selecionado o primeiro destino
que encontrou no Temp Pad.
A variante fugitiva tinha o equipamento em mãos, agora, e tocava
a tela.
— Adeus, variante — ela disse, cada sílaba cheia de ódio.
Mas Loki escutou o Temp Pad emitir a voz musical e robótica da
Senhorita Minutos:
— Opa, parece que sua bateria acabou — ela disse da maneira
mais amigável possível.
Loki arfava, deitado no chão, com a cabeça ainda girando do
impacto com a mesa, mas ainda assim ouviu aquilo. As palavras
eram música para seus ouvidos.
— Não funciona — Sylvie disse. Dessa vez, ela parecia com
medo.
Loki aproveitou a oportunidade para retomar a luta mais uma vez,
mas ela tirou os olhos do Temp Pad, empunhou sua espada e se
pôs a atacá-lo.
Agora que tinham deixado a AVT, ele podia usar sua magia, e
escapou numa espiral de luz verde, desaparecendo e reaparecendo
instantaneamente atrás dela.
Era bem divertido, ele pensou com convicção, lutar com outra
Loki.
Depois ele segurou os ombros dela e a jogou contra uma estante
de metal.
Avançou na direção do Temp Pad. Em poucos instantes, estava
com ele em mãos novamente.
— Certo... — ele disse.
A variante se levantou rápido de novo, entretanto. Ela avançou
contra ele.
— Me devolve isso logo — ela disse. — Você nem sabe
recarregar.
— Claro que sei — Loki disse, tirando um pouco de cabelo dos
olhos. — Você não é a única Loki boa de tecnologia.
— Nunca me chame disso — ela disse, rodeando-o como uma
leoa.
— “Boa de tecnologia”?
— Não — ela rosnou. — Uma Loki. — Ela tentou pegar o Temp
Pad, mas Loki o fez desaparecer, deixando para trás um brilho
verde.
— Então você só é um mágico ilusionista? — ela disse.
— Certo — Loki disse, extremamente cansado de ser
ridicularizado por uma Loki que nem queria ser chamada de Loki —,
para meu próximo truque — ele se armou com as duas adagas —
vou fazer você desaparecer.
A variante fugitiva não se assustou. Pegou sua espada do chão e
a apontou para ele.
Nessa hora, entretanto, um pedaço gigante de pedra
incandescente atravessou o telhado e caiu entre eles, fumegante.
— Isso é um dos seus poderes? — Loki disse, dando um pulinho
para trás.
A variante fugitiva cerrou os olhos. De repente, parecia assustada.
— Para onde você trouxe a gente? — ela perguntou.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Loki ouviu o som grave e ribombante novamente. O som de


terremotos e explosões. Estava mais forte. Ele encarou a variante
fugitiva, paralisado de medo.
Lá fora, rochas caíam do céu em chamas. O chão roxo
diferenciado era pedregoso e cheio de crateras enormes. Escarpas
rochosas se erguiam ao redor deles. E no céu pairava um planeta
de uma cor verde doentia.
Parecia ser o fim de um dia — e o fim dos dias —, e o céu estava
tingido de um roxo suave. Loki observou ao longe. Esse lugar
parecia um campo de guerra alienígena.
A variante fugitiva embainhou a espada.
— Seu idiota! — ela gritou em meio ao barulho de rocha se
partindo. — Aqui é Lamentis-1!
— Eu não sei o que isso quer dizer! — Loki gritou de volta. Ele
olhou para o céu, para o planeta verde acinzentado. Era só
impressão dele ou ele estava chegando mais perto?
Um asteroide diminuto caiu em frente a eles, causando uma
pequena explosão. Loki se esquivou, jogando-se para trás.
— É a lua contra a qual aquele planeta está prestes a se chocar!
Ele vai destruí-la! — a variante fugitiva disse. Ela começou a correr,
ziguezagueando por entre os fragmentos de pedra que cortavam o
ar como balas, e Loki a seguiu.
— De todos os apocalipses salvos no Temp Pad, esse é o pior! —
ela gritou. — Ninguém sai vivo daqui!
Um asteroide veio voando na direção de Loki, e ele ficou
paralisado, mas a variante fugitiva gritou:
— Cuidado! — e o puxou pelo braço para o afastar do perigo.
Depois voltou a correr.
De onde ela tira essa energia toda? Loki pensou.
Mas seguiu correndo atrás dela.
— Me desculpe, madame — ele disse. — Não tive muito tempo
para folhear os panfletos de viagem.
Ela se jogou debaixo de um caminhão de mineração enorme, e
ele imitou, para se proteger. Pedras caíam por todos os lados.
— Inclusive — ele acrescentou —, pensei que me queria morto.
— Não sei onde você meteu aquele Temp Pad, mas se você
explodir, ele explode, e aí eu acabo explodindo junto — ela disse.
Asteroides continuavam caindo do céu e se destroçando ao redor
deles.
A variante fugitiva se levantou e apontou para outro abrigo.
Parecia feito de metal, uma espécie de trailer.
Um pouco precário, eu diria, Loki pensou. Mas era melhor que
ficar ali desprotegido.
— Ali! — ela disse, e começou a correr na direção do lugar.
— Então somos um time agora? — Loki gritou, correndo atrás
dela.
— Ai, Deus, não! — ela disse, enquanto movia os braços para se
ajudar a correr.
Eles atravessaram um terreno largo rochoso até o abrigo. Loki
estava atrás, a princípio, mas depois ele salvou a variante de um
asteroide e a ultrapassou.
— Não pedi sua ajuda! — ela disse.
— Você é muito esquisita! — Loki gritou em meio ao som dos
asteroides explodindo.
Ele se jogou na porta do abrigo, e a variante fugitiva se enfiou ao
lado dele para entrar.
E então estavam seguros.
Por enquanto, pensou Loki.
Ele tentou recuperar o fôlego, não corria assim havia muito tempo.
Seu peito estava em chamas. Recostou-se na parede do abrigo —
que parecia ser uma espécie de depósito — e concentrou-se na
respiração.
E então sentiu as mãos da variante fugitiva em volta do seu
pescoço. Ele se assustou, mas percebeu que ela não estava
tentando matá-lo. Seu toque era leve, e uma fraca vibração saía das
pontas de seus dedos. Quando ele mirou os olhos dela, viu que
estava sob concentração profunda.
— O que você está fazendo? — ele perguntou.
— O que você está fazendo? — ela imitou.
— Tá tentando me encantar? — Loki disse, ainda arfando. — Não
vai funcionar.
— Por quê? — a variante fugitiva disse, afastando-se e virando de
costas para ele. — Por que você é um mágico? — Sua voz indicava
frustração.
— Não — Loki respondeu. — Porque minha mente é forte demais
para isso — Ele apontou para a lateral de sua testa para ilustrar.
Essa Loki realmente acreditava que era superior a ele?
— Tá! — ela disse, virando-se rapidamente e desembainhando a
espada.
Instantaneamente, Loki se armou com suas adagas. Mas foi
tomado por exaustão. Aquilo parecia um déjà vu. Ele suspirou.
— Olha — disse —, a gente vai mesmo fazer isso aqui? De novo?
A variante fugitiva ficou ereta.
— E o que você propõe, então?
— Sei lá, uma trégua?
A variante fugitiva riu como se aquela fosse a ideia mais insana
que já ouvira antes.
— Escuta — Loki disse —, nenhum de nós vai conseguir sair
dessa pedra gigante se a gente não ligar o Temp Pad de novo.
Aquilo fez a variante fugitiva perder o controle e grunhir.
— Onde você escondeu ele? — ela gritou.
— No meu coração — Loki brincou.
— Bem, então vou arrancar ele de você — ela resmungou.
— Legal — Loki disse. — Muito engraçado, encantador. — Ele
parou para recuperar o fôlego. — Ok. Tá — ele falou. — Eu estou
sim com o Temp Pad. Mas não vou muito longe se você continuar
tentando me matar a cada trinta segundos.
— Bem, só está se enganando, porque você precisa de mim para
recarregar aquela coisa. Foi a única razão para ter me salvado lá
fora.
Um Loki reconhece outro Loki quando vê um.
O vento uivava, e o som de rochas desmoronando era
ensurdecedor. Loki estava parado com as mãos no quadril.
— Talvez — ele disse. E em algum momento, decidiu guardar as
adagas, desinteressado em continuar lutando. — É, — continuou —,
quer dizer, sim. Foi por isso também.
A variante fugitiva seguiu preparada para lutar, com o queixo
erguido.
— Ou a gente pode só se matar aqui nessa cabaninha de
mineração abandonada — Loki disse. — Que tal?
A variante deu de ombros.
— Por mim, tudo bem — ela disse, baixinho, examinando se o
cômodo seria um bom lugar para morrer.
Uma explosão veio ao longe. O som do ronco grave de uma besta
inquieta.
— O plano que você interrompeu — a variante fugitiva disse,
claramente ainda irritada com aquilo — levou anos para ficar pronto.
Anos.
— Ok — Loki disse, olhando para o chão. — Saquei.
— E assim que eu ligar o Temp Pad de novo, vou voltar direto pra
AVT e terminar o que comecei — Suas sobrancelhas formavam um
vinco reto.
Do lado de fora, a tempestade cantava como um violino
desafinado.
— Ótimo — Loki disse, sentindo-se derrotado por essa discussão
circular.
— E depois eu te mato — a variante fugitiva disse, num tom
amável.
— Ou eu mato você — Loki retrucou.
A variante fugitiva ergueu as sobrancelhas e soprou entre os
lábios semicerrados, como se dissesse “Aham, até parece”. E se
dirigiu até a porta do abrigo.
— Para onde você vai? — Loki perguntou.
— Tem energia em algum lugar dessa lua — a variante fugitiva
disse. — Só precisamos de energia suficiente para viajar pelo tempo
e espaço interdimensional.
Outra explosão balançou o abrigo e remexeu as janelas cobertas
de poeira.
— Ixe — a variante fugitiva disse.
— É — Loki disse, e saiu atrás dela.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

A variante fugitiva andava à frente de Loki, marchando como uma


militar, de queixo erguido. O mundo brilhava roxo ao seu redor, o
chão debaixo dos seus és era de um índi o sinistro e asteroides
brilhantes passavam sobre sua cabeça como estrelas cadentes
gigantescas.
Loki correu para alcançá-la.
— Qual é o plano? — ele disse, tentando não ofegar.
Ela seguiu marchando, sem olhar para trás.
— Tem uma cidade perto daqui — ela disse. — E será que você
pode calar a boca? Não é porque estou trabalhando com você que
quero ficar ouvindo sua voz.
— Tá certo, mas então — Loki disse, acelerando o passo. Agora
caminhava ao lado dela —, vai mais devagar, variante.
— Que parte de “morte iminente” você não entende? — ela
retrucou. — E não me chame de “variante”.
— Desculpa — Loki disse —, mas não vou ficar chamando uma
cópia malfeita de mim de “Loki”.
— Ótimo — ela disse, nem um pouco incomodada com o insulto
—, porque esse não é mais meu nome. Eu sou Sylvie agora.
Lamentis-1 rosnava como uma besta que despertava.
— Ah, você mudou de nome. Incrível — Loki disse.
— Se chama pseudônimo — Sylvie disse.
— Não é muito Loki de sua parte.
— Ah, é? — Sylvie disse. — O que exatamente faz um Loki ser
um Loki?
— Independência; autoridade; estilo — Loki disse, contente por
conseguir resumir sua própria natureza tão sucintamente.
Mas Sylvie não estava engolindo aquilo.
— Então, naturalmente — ela disse —, isso fez você trabalhar
para a polícia do tempo chata e opressora.
— Eu não trabalho para eles — Loki disse, um pouco insultado. —
Sou um consultor.
— Você nem sabe o que quer.
— Ah, não? E você? Seu plano que levou-anos-pra-ficar-pronto
era acabar com o lugar, criar a ausência total de poder e depois só ir
embora.
Um asteroide despencou no chão ao lado deles, deixando para
trás uma faixa de fumaça preta. O colapso da lua tinha o som de
uma tempestade de trovões, mas sem a chuva ou os raios. Só uma
trovoada infinita, até o fim.
Sylvie deu de ombros.
— Eu nunca faria isso — Loki parou de andar.
Sylvie não parou.
— É? — ela disse. — Bem, eu não sou você. Podemos andar
com isso agora?
Eles atravessaram uma planície de rochas roxas até encontrarem
uma cidade fantasma com prédios metálicos. O céu estava rosado,
da cor de algodão-doce. A estrada era de um índigo profundo, e
nuvens misteriosas, de gás ou poeira, se arrastavam por ela como
fantasmas. Loki estava exausto, mas Sylvie não parecia ter perdido
nadinha de sua energia.
— Parece que todo mundo já fugiu — Loki disse.
— Se fugiram, foi em vão — Sylvie disse do seu jeito pragmático.
Vento sibilava pelas ruas vazias, pelas janelas entreabertas e
pelos espaços entre as placas de metal enferrujado.
Eu não quero morrer aqui, Loki pensou.
— Quanto tempo nós temos? — ele disse.
— Umas doze horas — Sylvie disse, tranquila. — As coisas aqui
só vão piorar. Mais meteoros, terremotos gravitacionais e, é claro, o
colapso da sociedade diante de sua aniquilação. — ela disse
aquelas palavras tão casualmente quanto se estivesse pedindo um
café mocha.
Loki tentou não pensar sobre as próximas doze horas.Tudo que
queria pensar era sobre o agora, e carregar o Temp Pad para sair
daquele lugar. Não importa o que fosse preciso.
No centro da cidade, os prédios tinham a forma de merengues.
Um deles tinha um letreiro neon na janela soletrando uma palavra
em letras que Loki nunca vira antes. Ele examinou os símbolos
rosas.
— Será que isso carrega o Temp Pad? — ele disse.
— Talvez — Sylvie disse, indo até o pequeno prédio.
Loki observou de longe, com as mãos apoiadas no quadril.
Ela pôs a mão atrás do letreiro.
— Só checando o conector — ela disse. — Ter certeza de que é
compatível.
— Certo — Loki disse, cético.
— Ok — ela disse, estendendo a mão e balançando os dedos —,
me passa ele.
Loki riu.
— Patético — ele disse. — Eu não vou te dar ele. Vai ter que ser
mais esperta que isso.
Ele pareceu irritá-la. Sylvie passou marchando por Loki, com os
lábios apertados.
— Então não me venha com esse seu papo de “bom de
tecnologia” — ela disse. — O Temp Pad requer uma fonte de
energia imensa. Não uma luzinha.
Loki seguiu Sylvie pela cidade fantasma e através da planície de
rochas roxas. Eventualmente, eles chegaram a uma espécie de
tempestade de areia localizada. Meteoros despencavam céu abaixo
como fogos de artifício em queda livre. Nas sombras de um pedaço
enorme de rocha esverdeada, viram uma casinha metálica que
lembrava um cogumelo torto e inclinado. Sylvie marchou na direção
dela com a espada em mãos.
Loki agarrou seu braço e a virou para que o olhasse.
— Força bruta não substitui diplomacia e lábia — ele disse.
Sylvie soltou um barulhinho desdenhoso e depois chutou a porta.
Ao fazê-lo, uma rajada de energia veio de dentro da casa e a
arremessou para longe; ela bateu de costas no chão pedregoso,
grunhindo como se tivesse levado um soco.
— É impressionante — Loki disse — que você tenha sobrevivido
até agora. — Então se inclinou na direção da porta aberta. —
Desculpa por isso — ele disse para a pessoa que devia estar lá
dentro.
— Não precisa — a voz de uma mulher falou de lá. — Eu gostei.
— Ah — Loki disse —, acredite, eu também. Mas posso te
garantir que, apesar do comportamento animalesco da minha
conhecida, ãhm... nós não queremos nenhum problema. Somos
apenas viajantes cansados.
— Sei — a voz disse.
Então diplomacia e lábia não iam funcionar também. Hora da
terceira opção.
Loki olhou pela janela da casinha com cara de cogumelo. Lá
dentro havia um porta-retrato em cima da mesa com a foto de um
homem e uma mulher.
Deve ser o marido dela, Loki pensou.
Em instantes, ele se transformara numa cópia perfeita do homem
que viu na fotografia. Então, arrastou-se até a porta e viu a mulher e
sua arma.
Ela estava sentada numa cadeira com a arma no colo. Alguém
que viveu e viu muito. O tipo de pessoa que não se deve perturbar.
Mas Loki era um Loki. Sua ocupação era basicamente perturbar.
— Olá, querida — ele disse, escutando sua voz ser pronunciada
como a voz de outro homem, passando por uma garganta diferente.
A mulher ajeitou-se na cadeira e ergueu as sobrancelhas.
— Patrício? — ela disse.
Loki imitou o choro de um esposo perdido há muito tempo.
— Faz... — ele disse — faz tanto tempo. Você está tão linda
quanto...
Uma rajada de luz roxa acertou Loki no abdômen e o arremessou
para longe. Ele caiu no chão e voltou à sua forma original. Sylvie
estava sentada num balde virado, rindo, com a espada ainda
empunhada. Loki sentou-se. Dessa vez era ele que estava
grunhindo.
— Nenhuma palavra gentil saiu da boca de Patrício em trinta anos
— a mulher disse. — Vocês não são viajantes. São demônios.
Sylvie cutucou o ombro de Loki.
— Isso aí foi o quê? — perguntou. — Diplomacia, ou...
— Não — Loki disse com o dedo indicador erguido. — Só... não.
Eles não se moveram por um bom tempo, sentados no chão
poeirento roxo, escutando Lamentis-1 desmoronar ao seu redor.
A mulher que os tinha acertado se levantou e saiu da casa, ainda
apontando sua arma, que lembrava o bocal de um aspirador de pó
gigante, direto para eles.
— O que vocês diabos querem de mim? — ela perguntou.
— Só queremos fazer uma pergunta — Sylvie disse, com as mãos
para o alto, mas ainda segurando sua espada. Quando a mulher se
manteve em silêncio, Sylvie acrescentou. — Cadê todo mundo?
O céu trovoava.
— Na arca. — a mulher disse, surpresa com a ignorância deles.
Então falou cada sílaba seguinte devagar e pronunciadamente: — A
nave de evacuação.
— Uma coisa como essa teria força suficiente para realimentar o
Temp Pad — Sylvie sussurrou.
— Como chegamos até ela? — Loki perguntou à mulher.
Ela apontou com o queixo na direção da cidade fantasma.
— A estação de trem é na saída da cidade. Mas vocês nunca vão
conseguir uma passagem.
Loki viu preocupação passar pelo rosto de Sylvie. Mas ela
abaixou a cabeça e começou a se afastar da casa.
— Vamos — ela falou, baixinho.
Loki observou a mulher por um momento. Quando se sentiu
seguro de que ela não atiraria de novo neles, acompanhou Sylvie
através do deserto violeta.
CAPÍTULO VINTE E SEIS

Aestação de trem na saída da cidade, como a mulher havia


chamado aquilo, lembrava Loki de um faroeste de quinta categoria,
mas com um toque futurista.
Havia uma plataforma de madeira caindo aos pedaços ao lado do
trem, os vagões eram um arranjo de formas geométricas pontudas,
como um origami amassado. Ao lado da plataforma elevada, havia
uma fila de pessoas esperando para embarcar. Todas elas vestiam
tons de cinza, algumas com máscaras combinando, e eram de dar
pena. Guardas estavam sobre a plataforma andando de um lado
para o outro como guardas fazem. Pareciam ser os responsáveis
por decidir quem podia entrar no trem e quem não podia.
— Se afastem! — um dos guardas gritou para a multidão.
— O que está acontecendo? — uma mulher dizia. — A arca vai
embora hoje à noite e a gente já está na fila faz horas!
— Bem — Loki disse enquanto eles passavam pela linha de
pessoas —, isso parece divertido.
— Vamos logo — Sylvie disse.
— Não podemos arrumar briga para entrar no trem— Loki disse,
com medo do que Sylvie faria a seguir.
— E quem falou em briga? — ela disse.
— Todos os seus planos envolvem briga — Loki disse.
— Esse não.
Loki esperou pela explicação.
— Vou encantar um guarda, fazer ele nos guiar pela multidão, e
se alguém arrumar confusão...
— Fazer ele começar a atirar? E depois o quê? Matar todos os
guardas e roubar o trem?
— Se vai ter ou não uma briga, depende deles — Sylvie
cantarolou.
Loki respirou fundo.
— Vamos fazer isso do meu jeito — ele disse. Magia correu seu
corpo, e de repente, ele vestia uma réplica exata de um uniforme da
guarda. — Como estou? — ele perguntou.
Sylvie o encarou.
— Como alguém com um plano inútil — ela disse.
Loki ignorou o insulto.
— Só siga minha deixa — ele disse, a empurrando consigo.
A multidão estava começando a ficar agitada.
— Por que não podemos entrar? — uma mulher gritou.
Um homem se juntou ao coro.
— Deixa a gente entrar! Vamos logo!
Loki conduziu Sylvie através das pessoas gritando e até a
plataforma.
— Para Shuroo? — um dos guardas de capacete disse. — Por
aqui, senhor.
— Tem mulheres e crianças aqui! — outro homem gritou na
multidão. — Deixa a gente entrar!
— Só tão dando passagem para os ricos! — outro gritou. — A
gente fica como?
Loki caminhava calmamente com Sylvie pela plataforma,
seguindo um casal bem-vestido que parecia ter saído de um
editorial de moda futurista.
Chegaram a outro guarda, esse bem na porta do trem.
— Passagens? — ele disse ao casal elegante.
Loki estava um pouco nervoso, mas sabia o que precisava fazer.
Abaixou a cabeça e começou a conduzir Sylvie para dentro do trem.
— Epa, epa, epa, ei! — o guarda disse, o impedindo de continuar.
Mantenha a calma, Loki disse a si mesmo.
— Estou levando essa daqui até Shuroo — ele falou, sem
emoção. Tentava ao máximo soar como uma boa formiguinha
operária.
— É mesmo? — o guarda disse. — E as passagens?
— A ordem me passada de cima foi de colocar ela nesse trem —
Loki disse.
Podia praticamente sentir Sylvie o olhando torto.
O guarda começou a protestar:
— Senhor, esse...
Mas Sylvie lhe tocou o braço, e o encantou em instantes. Uma luz
verde fluiu da ponta de seus dedos, e a expressão do guarda
mudou. Ele perdeu um pouco do equilíbrio e outro guarda se
aproximou.
— Está tudo ok? — perguntou.
— Tudo certo — o guarda encantado disse. — É, está. Eu acabei
de lembrar que a central passou um rádio com a solicitação para
eles essa manhã.
O outro guarda pareceu um pouco cético, mas, depois de um
momento, suspirou:
— Ok.
O guarda encantado saiu da frente deles e sinalizou para que
embarcassem no trem.
Loki subiu com Sylvie pelas escadas e para dentro do trem.

O interior do trem estava iluminado como um cabaré. Pessoas


sorridentes em roupas elaboradas e modernas estavam sentadas
em mesas luxuosas e confortáveis, bebendo água de limão e pepino
gelada. Jazz tocava ao fundo. Loki, ainda vestido de guarda, guiava
Sylvie pelo cômodo.
— Boa noite, passageiros — ele disse, sem graça. — Olá.
Sylvie se libertou dele quando alcançaram uma mesa vazia e se
sentou.
Loki a observou. Não se sentou.
— Ãhm, é... Olha, eu não posso ir de ré num trem — ele disse.
— E eu nunca sento de costas para uma porta — Sylvie disse,
sem nenhum pouco de simpatia por ele.
— Quê? Tem portas dos lados — Loki disse.
— Ai, só senta, vai.
Loki suspirou e se jogou no banco de couro confortável. De
dentro, o vagão do trem tinha um formato octogonal, e o teto estava
coberto por um couro verde acolchoado. Nas janelas em forma de
losango, a vasta paisagem violeta da lua condenada passava. Seu
céu era como uma ametista iluminada.
Loki sentou-se e encarou Sylvie, pigarreando para registrar seu
descontentamento.
— Só para você saber — ela disse, inclinando-se para a frente —,
aquilo nem foi um plano.
— Ah, é?
— Planos têm várias etapas. Se vestir de guarda... — Sylvie olhou
de lado e falou mais baixo vendo dois guardas passar pela mesa —
...e entrar num trem é só... fazer uma coisa.
Loki não respondeu. Ela tinha meio que um ponto.
Sylvie bocejou cobrindo a boca.
— Ah, está cansadinha? — Loki disse carinhosamente. — Se
quiser pode, sabe, cochilar.
Os olhos dela o miraram afiados como adagas, e ela rosnou como
um filhotinho irritado.
— Não consigo dormir num lugar assim — ela disse.
— Não consegue dormir num trem? — Loki falou, incrédulo.
— Não, eu não consigo dormir perto de gente em que não confio.
— Ah, certo. Tá falando de mim? — Loki sussurrou.
— Mas você pode tirar um cochilo quando quiser — Sylvie disse.
— Boa tentativa.
— Não vou ficar perdendo meu tempo procurando pelo Temp Pad
sabendo que alguém te ensinou a usar magia de maneira até
decente.
Estavam sentados de frente um para o outro, com os cotovelos na
mesa, num duelo para ver quem desviava primeiro o olhar.
— Minha mãe — Loki disse, incapaz de esconder a ternura em
sua voz.
Aquilo pareceu desarmar Sylvie um pouco. Ela desviou o olhar e
engoliu seco. Depois, devagar, voltou a olhar para Loki, dessa vez
realmente olhando.
— Como ela era? — ela perguntou com delicadeza; com
sinceridade.
Loki abriu a boca para falar, mas não encontrou facilmente as
palavras. O trem zunia, e a música do piano passeava pelo ar como
folhas de outono caindo.
— Ela era, ãhm... — As palavras não vinham. As imagens que
Mobius lhe mostrara no Teatro do Tempo voltaram à sua mente — ...
uma rainha de Asgard — ele completou e assentiu, concordando
consigo. — Ela era boa. Imaculada.
— Certeza que era sua mãe? — Sylvie disse, mas num tom de
brincadeira amigável, a acidez amarga de antes ausente.
— Ah, não, não de fato. Eu fui adotado — Houve um segundo de
silêncio. — Será que foi spoiler para você? Foi mal — Loki sorriu.
— Não, eu sabia que era adotada.
Loki se inclinou para frente.
— Quê? Eles te contaram?
— Uhum — Sylvie disse. — Não contaram para você?
— Não — Loki disse, tentando não se emocionar demais.
Sylvie se deu conta que Loki estava sendo sincero. Ela olhou para
a mesa, com o rosto sério.
— Quer dizer — ele disse —, me contaram, eventualmente — Ele
respirou fundo. — Mas espera um minuto. Então, me fale... me fale
da sua mãe.
— Eu mal me lembro dela — Sylvie disse com tristeza. — Só
fragmentos de um sonho a essa altura.
Loki olhou fundo nos olhos dela. Havia tristeza real neles. Luto
verdadeiro. Lembrou-se da própria mãe. Tal qual o trem se
precipitava na direção da arca, ele também ia na direção de perdê-
la.
— Sabe — ele disse —, quando era mais novo, ela fazia esses
truques de mágica para mim. Tipo transformar uma flor no sapo, ou
lançar fogos de artifício no alto da água.
Dessa vez, Sylvie não desviou o olhar.
— Aquilo tudo parecia impossível — continuou —, mas ela me
disse que um dia eu conseguiria fazer também, porque... — parou,
sua foz se esvaindo — ...porque eu podia fazer qualquer coisa —
completou. Sim, tinha sido sortudo. Sabia disso agora.
Sylvie assentiu, mas parecia triste. Seus olhos se perderam no
vazio.
— Quer ver? — Loki disse, tentando animá-la. Levantou uma
mão. De sua palma saíram fogos-de-artifício em miniatura,
queimando e explodindo num delicado buquê de luz e cores.
Sylvie observou os fogos de artifício em miniatura com tristeza
ainda em seus olhos. Depois fungou e virou a cabeça de lado.
— Nada mal — ela disse, mordendo os lábios.
Loki sorriu e fechou a mão, fazendo os fogos desaparecerem.
Olhou para baixo, para a mesa, e desenhou uma linha invisível com
o dedo.
— Ela era o tipo de pessoa que você quer que acredite em você.
— Parece que ela acredita — Sylvie disse, ainda com ternura.
— Ela acreditava, sim.
O trem seguiu rolando.
— Então — Loki disse —, onde você aprendeu a... Você sabe,
fazer... o que quer que seja aquilo? — Aquela pergunta o estava o
incomodando há tempos. Como era que Sylvie tinha se tornado tão
habilidosa com encantamentos sem ter tido o mesmo treinamento
formal que Loki?
— Autodidata — ela respondeu com orgulho.
— Você se ensinou aquela magia? — Loki virou a cabeça e
franziu a testa.
— Uhum, foi — Sylvie disse resoluta.
— Como.... você só... Você só entra na cabeça deles e projeta
algum tipo de ilusão? — Loki precisava admitir que aquilo era
fascinante.
Sylvie estendeu as mãos.
— De verdade, ia ser mais fácil se eu te...
— ... encantasse e me fizesse te dar o Temp Pad para você saltar
de um trem em movimento? Não, obrigado.
— Tá, então não me pergunte — Sylvie disse, cruzando os braços
e se recostando no banco.
— Tá — Loki sussurrou.
Naquele momento, uma garçonete com uma bandeja prateada
chegou deslizando até a mesa deles.
— Água tônica com limão e pepino? — ela disse.
— Ah, sim — Loki disse. — Muito obrigado. — Ele pegou uma das
taças alongadas de cima da bandeja.
— Não, valeu, estou de boa — Sylvie disse, abusada como
sempre.
— Ah, eu fico com a dela — Loki disse, pegando outra taça. —
Obrigado.
A garçonete sorriu e foi embora.
Loki ergueu as duas taças — uma em cada mão.
— Saúde — ele disse,e brindou.— Ao fim do mundo.— E deu um
gole.
Sylvie ficou olhando para ele, nada impressionada. Ela tinha que
ser tão séria o tempo todo? Loki pensou que mudar o assunto
pudesse ajudar.
— Uma pena que aquela senhora escolheu morrer, não acha? —
ele disse.
— Foi por amor — Sylvie disse.
— Hmm, ela odiava ele.
— Talvez amor seja ódio — Sylvie sorriu.
Loki fez uma careta, tentando imitar a expressão de um professor
sábio.
— Melhor eu não me esquecer dessa — disse. Com um
movimento das mãos, fez um rolo de papel e uma pena aparecerem
do nada. — Como é mesmo? — Fingiu escrever. — Amor é... Amor
é... ódio.
— Ai, cala a boca — Sylvie disse.
Loki sorriu entretido e fez desaparecerem a pena e o papel entre
uma nuvem de partículas verdes.
Sylvie tentava não demonstrar que achou a piada engraçada, mas
ainda sorriu, quase imperceptivelmente.
— Então — Loki disse —, falando em amor, tem algum
namoradinho te esperando no final dessa cruzada? — A água de
limão e pepino era deliciosa, e ele tomou mais um grande gole.
— Na verdade, tem, sim.
— Ah, é?
— Consegui manter um relacionamento a distância bem sério
com um carteiro enquanto corria no tempo entre um apocalipse e
outro.
Loki riu.Ela era,genuinamente,muito divertida.Ele quase... gostava
dela.
— E com um charme como esse, quem poderia resistir? — disse.
— Bem, as pessoas ficam bem mais dispostas diante da morte
iminente.
— Com certeza.
Sylvie fez uma pausa.
— Mas sempre foi só para me dar uma energia — ela disse, com
um sorriso triste. — E você? Um príncipe... deve ter tido muitas
pretendentes? Ou talvez outro príncipe? — Ela balançou as
sobrancelhas brincalhona.
— Um pouco dos dois — Loki disse. — Suspeito que é o mesmo
com você. Mas nada... — Ele ficou procurando pela palavra certa.
— Real — Sylvie disse.
Exatamente, Loki pensou.
Mas ele olhou para sua água tônica e tomou outro gole.
Sylvie não tirou os olhos dele. Ergueu as sobrancelhas de
maneira questionadora.
— O amor é uma mentira, então — disse.
Loki engoliu, as bolhas queimando sua garganta.
— Não — ele disse —, amor é... — O trem corria pelos trilhos. E
os losangos de céu roxo tinham ficado um pouco mais escuros. —
ãhm... algo sobre o qual não quero pensar.
Se estiver em dúvida, ele pensou, evite o assunto. Aquela tática
sempre tinha funcionado para ele. Loki bebeu o restante da água.
— Você tem noção que estamos prestes a roubar a fonte de
energia da única esperança de uma civilização? — Sylvie disse do
seu jeito pragmático.
— Tenho — Loki disse, calmo.
— Não vai ser fácil — Sylvie disse. — Você devia descansar.
— Tá certo — Loki disse, grato por terem deixado o assunto amor
de lado. — Você relaxa do seu jeito, e eu relaxo do meu.
Sylvie o olhou nos olhos, mas ele não sabia se ela estava
impressionada ou irritada. Ou os dois.
CAPÍTULO VINTE E SETE

Sylvie acordou do sono profundo. Seu pescoço doeu enquanto ela


arrancava sua bochecha da mesa. Ela esfregou os olhos. O trem
ainda estava em movimento, zunindo contente.
A música tinha mudado. Violinos tocavam, e alguém cantava alto
numa língua que ela não reconhecia...
Loki. Loki estava cantando... em asgardiano.
Ele parecia estar muito feliz com o restante das pessoas no
vagão, batendo palmas e dançando energeticamente.
Sylvie piscou algumas vezes e se deu conta, com um pouco de
choque, que não estava mais vestido de guarda. Ela encontrou os
olhos dele e acenou, ele acenou de volta entusiasmado, como
amigos que não se viam há anos.
Só com os lábios, ela disse: cadê seu uniforme? E gesticulou para
as próprias roupas, mas ele só segurou as abas da jaqueta da AVT
e balançou para frente e para trás, sorrindo e cantando sua canção
tradicional asgardiana:
— E ela canta para voltar, e ela canta para voltar, e ela canta para
voltar, e ela canta para voltar... — E então parou de cantar e se
recostou sobre o bar. — Shhh — disse a todos, colocando um dedo
sobre os lábios. A plateia parou de bater palmas e cantar, e silêncio
se fez no vagão.
Sylvie viu um homem ficar de pé numa das mesas. Ele ficou
olhando para Loki por um momento antes de sair dali. Ela pressentiu
confusão.
Mas Loki não prestava atenção. Começou a cantar uma música
asgardiana melancólica, talvez uma canção de ninar, ou rito fúnebre.
Os outros viajantes estavam a seu redor, hipnotizados.
Ele tinha uma bela voz, e a melodia acordou alguma coisa no
peito de Sylvie, mas ela decidiu ignorar aquilo.
Os guardas estavam suspeitando deles. Loki tinha feito um
espetáculo, e agora ambos seriam chutados para fora do trem.
Ele começou a bater palmas de novo, pulando para lá e para cá, e
a melodia da música mudou. O ambiente voltou a se encher de vida
e animação. Loki sorria largamente.
Deve ser divertido ser tão ignorante, ela pensou, inspecionando a
sala apreensiva.
A canção alcançou seu clímax novamente, e Loki e seus amigos
entoaram juntos o refrão:
— E ela canta para voltar, e ela canta para voltar, e ela canta para
voltar, e ela canta para voltar...
Quando a canção terminou, todos aplaudiram, e Loki disse:
— A Sylvie, pessoal!
A plateia comemorou.
Sylvie pulou da cadeira e agarrou o braço dele.
— Você está parecendo um idiota — ela disse.
— Não — ele disse, recuperando o fôlego depois de dançar —, só
estou me divertindo um pouco. Sabe, antes que o mundo acabe. —
Ele pegou um pratinho com algum tipo de queijo caro. — Agora —
disse — você precisa provar isso. Talvez seja o queijo mais gostoso
que eu já comi na vida.
Sylvie ignorou o queijo. Ela cruzou os braços.
— Cadê seu uniforme? A gente não devia ficar chamando
atenção.
— Ninguém liga! — Loki disse, com o sorriso largo. — É o fim do
mundo!
— Tem alguma coisa rolando — Sylvie falou baixinho. Tinha que
convencê-lo, tinha que fazê-lo se aquietar.
— Tem — Loki disse, apontando para o teto. — O planeta está
quase batendo na gente.
— Não seja idiota — Sylvie disse. — Eu vi algumas pessoas te
olhando estranho.
— Quê? — Loki se apoiou numa mesa e derrubou o queijo no
chão. O prato quebrou. — Quando você ficou tão paranoica?
— Ah, deve ter sido quando passei minha vida toda fugindo dos
fascistas oniscientes para quem você trabalha — Ela estava
frustrada. Loki tinha estragado tudo. E se fossem jogados para fora
do trem, nunca chegariam à arca, o que significava que ela morreria,
sem nenhum feito, sozinha, nessa lua solitária, com ele.
— Uma pena esse desperdício — Loki disse.
Enfurecedor.
— Ei! — Loki disse. — Mudando de assunto, eu pensei numa
resposta — De repente, ele ficou muito próximo dela, olhando bem
fundo em seus olhos.
Ela se arrepiou.
— Resposta?
— Para sua pergunta — Loki olhava nos olhos dela e o silêncio se
alongou entre eles. — O amor — ele disse — é uma adaga. — E
num estalar de dedos, uma adaga apareceu magicamente em sua
mão, mágica e bela, com uma lâmina reta e brilhante. — É uma
arma que pode ser usada a distância ou corpo a corpo. Você pode
se ver nele. É bonito. — Ele virou a ponta da adaga para o próprio
peito. — Até te fazer sangrar. Mas, no fim das contas, quando você
tenta alcançar...
Sylvie tentou alcançar. O punho era bonito. Estava bem ali.
Mas desapareceu antes que ela pudesse pôr as mãos.
— ...não é real — ela completou o que ele ia dizer. Abriu a mão
vazia. — O amor é uma adaga imaginária? — Não podia evitar o
sarcasmo em sua voz.
— Não faz sentido, né? — Loki disse.
— Não. Péssima analogia.
— Droga. Pensei que tinha conseguido uma boa dessa vez.
Sylvie escutou a sucção das portas ao se abrir. Ela olhou para
trás. Vários guardas entraram no vagão acompanhados do homem
que tinha olhado de maneira suspeita para Loki.
— É ele — o homem disse.
— Fica calmo — Sylvie sussurrou para Loki.
As mãos dele estavam no quadril. Não mais tão leviano.
— Vai ficar tudo certo — falou com seriedade.
— Senhor, posso ver suas passagens? — Um dos guardas tinha
se aproximado e estendia uma das mãos.
Sylvie olhou ao redor. Estavam cercados.
Loki riu amigavelmente.
— Você de novo — disse, sorrindo. — Ãhm, passagens. Sim.
Claro. Aqui estão. — Ele abriu uma das mãos e fogos de artifício
lampejaram em fagulhas brilhantes para fora de sua palma. Seu
sorriso desapareceu e ele fez uma careta para a própria mão, como
se não esperasse que aquilo tivesse acontecido. O guarda pareceu
confuso.
— Ops — Loki disse. Fechou as mãos e os fogos pararam. —
Ainda assim, foi bonito, não foi?
Um dos guardas já estava puxando as mãos dele até as costas
para prendê-lo.
— Olha — Loki disse na sua cadência usual —, isso é mesmo
necessário? Tem uma explicação simples para isso...
Outro guarda foi até ele e o empurrou no peito.
— Ei — Loki disse com um tom diferente, e empurrou o guarda de
volta.
Sylvie observou. Parecia que Loki não conseguia resistir a uma
boa luta. Talvez não fossem assim tão diferentes.
Em alguns instantes, Loki tinha derrubado ambos os guardas.
E então, simples assim, uma batalha se instalou.
A atmosfera do vagão mudou de novo, carregou-se de tensão.
Sylvie escutou um dos guardas gritar aos passageiros:
— Ei! Saiam do caminho!
Uma guarda apareceu diante dela. Sylvie tirou a peça de metal
em sua cabeça e usou como arma, atacando a garganta da guarda.
Elas dançaram, a guarda atacando com a espada e Sylvie se
esquivando dela. Do outro lado do vagão, Loki atirou uma rajada de
luz verde e lançou um dos guardas para longe. Sylvie acertou um
chute giratório nas costas de sua oponente, depois deu uma
cambalhota no chão, escapando por pouco de outro golpe. Logo a
guarda tinha lhe alcançado novamente e elas lutaram, rosnando
uma para a outra, até que a guarda conseguiu colocar o braço ao
redor do pescoço de Sylvie. A variante fugitiva resistiu, mas a
guarda apertou mais forte e a arrastou até a parede. Sylvie escutou
o zunido e impacto de uma arma. Olhou para o lado e viu que a
adaga de Loki estava presa na parede, a poucos centímetros de seu
rosto.
— Que mira horrível — ela disse a ele.
Mas outro guarda atacou Loki. Ele se esquivou e o chutou para
fora da janela em forma de losango. Depois balançou os dedos.
— Tchauzinho!
Sylvie ainda lutava contra a guarda que apertava seu pescoço.
Ela conseguiu se soltar e acertar alguns socos.
E então viu dois guardas jogarem Loki pela janela do trem.
— O Temp Pad. — ela disse para si mesma. Agarrou sua espada,
avançou sobre um dos guardas e o derrubou. Depois segurou a
respiração... e pulou.

Loki bateu com força no chão e saiu rolando.Tudo doía. Sylvie


grunhiu ao se levantar ao seu lado e começou a tirar poeira de
asteroide do cabelo.
Loki caminhou até os trilhos do trem, vendo-o ficar cada vez
menor.
— Bom — disse, com as mãos no quadril —, essa não é a
situação ideal.
Quando se virou, Sylvie já tinha sacado a espada e a segurava
próxima de sua garganta.
— Me entregue o Temp Pad — exigiu.
— Tá certo, tá certo — Loki disse, levantando as mãos derrotado.
— Ok.
Sylvie não baixou a espada. Ele não a culpou por isso.
Pôs a mão por trás de si, no espaço mágico invisível no qual
havia escondido o Temp Pad, depois abriu a mão na frente dela.
Houve uma explosão de luz verde, e lá estava ele...
Quebrado e sem conserto. Soltando fagulhas e fumaça.
Atrás de Sylvie, o céu rosa se enchia de asteroides cadentes.
— Olha, eu levei uma queda e tanto — Loki disse.
— Seu idiota — Sylvie disse, afastando a espada. — Você matou
a gente.
— Talvez a gente possa consertar, ok? Ãhm... — Loki tocou o
Temp Pad, mas ele se quebrou em mil pedaços que caíram no chão.
Ele o encarou. Era quase engraçado.
— Você não é um homem sério — Sylvie disse. Loki podia ver
que ela dizia aquilo como o pior dos insultos.
— Você está certa — disse, vingativo. — Eu sou um deus.
— Você é um palhaço. Não podia só ter ficado quieto no trem?
— Eu sou um espírito livre — Loki disse. — Só estava me
divertindo um pouco — Era verdade, não era? Ninguém consegue
fugir muito da própria natureza, não importa o quanto tente.
— Eu sou um espírito livre — Sylvie disse, como se fosse uma
competição. — Muito mais que você, eu te garanto. Mas nunca às
custas de uma missão. — Ela começou a gritar. Sua voz ecoava no
deserto vazio, acompanhada pelo céu literalmente caindo.
Loki sentia alguma pontinha de remorso? Talvez uma bem
pequenininha. Mas nunca cederia na discussão.
— A missão. A missão? Qual? Seu propósito glorioso? Me poupe.
Você não vai conseguir derrotá-los.
Ele sabia. Tinha tentado. A AVT realmente era a força mais
poderosa do universo. Tinha visto em primeira mão.
Sylvie o encarou por um segundo, depois se afastou. Gritou, suas
mãos em punho brilharam verdejantes. O grito ecoou num
crescendo, e a magia que havia conjurado explodiu ao redor dela,
lançando uma onda de poeira pelo deserto. Loki apenas observou.
Pensou ser melhor dar um pouco de espaço a ela.
Sylvie se sentou numa pilha de pedra e terra e suspirou com
força.
Ao longe, Loki podia ouvir rochas caindo e quebrando ao bater no
chão.
— Ok — ele disse baixinho, caminhando até ela.
Não era de sua natureza sentir compaixão, ver pela perspectiva
de outra pessoa, especialmente de outro Loki. Não era da natureza
dele sentir remorso, também. Mas, ei, era o fim do mundo. Talvez o
fim do mundo fizesse alguma coisa com as pessoas.
Ele foi até Sylvie.
Ela suspirou novamente, encarando o horizonte, determinada a
ignorá-lo.
Ele sentou-se hesitante ao lado dela, no montinho pedregoso.
Não era muito confortável, mas dava para aguentar.
O céu outrora violeta se escurecia num índigo.
Loki escutou o trovoar do mundo moribundo.
— O grito, hmm... o grito ajudou? — disse, gentilmente.
Sylvie o olhou feio, um olhar que era uma força material.
— Sim — disse —, ajudou. Você devia tentar depois.
Loki suspirou. Provavelmente merecia aquilo.
O vento cantou entre os pedaços de pedra quebrados.
— E agora? — disse, sem nenhuma atitude.
— Não sei — Sylvie disse, parecia derrotada. — Você quebrou o
Temp Pad.
— Bem...
— E aquele planeta está prestes a nos esmagar.
— Sim, bem, mas...
— Mas o quê?
— Bem, a lua toda vai ser destruída, certo?
— Isso mesmo, e todo mundo nela vai morrer.
— Inclusive nós.
— Isso mesmo. Inclusive nós.
Loki pensou por um momento.
— E a arca?
— A arca nunca consegue sair porque é destruída.
Algo se iluminou na mente de Loki.
— Ela nunca nos teve nela antes — ele disse, batendo de leve
com seu ombro no de Sylvie.
Não havia nada que dois Lokis não pudessem fazer. Ele
realmente acreditava naquilo.
Mas Sylvie riu.
— Tá, mas então o quê? A gente toma controle da arca e faz ela
sair da lua? — ela disse.
Loki assentiu, virando os cantos da boca para baixo.
— Bom — disse —, parece uma boa ideia para mim.
Ela o encarou. Parecia estar ponderando aquilo. Era a única
opção que tinham além de morrer, então não tinha muito a se
ponderar.
Depois de um momento, ela disse:
— Ok. — E ficou de pé, pondo-se a andar.
Loki ficou lá, sentado na pilha de terra. Ele a observava.
— Sério?
Não obtendo resposta, ele se levantou e correu atrás dela.

Já estavam seguindo os trilhos há tempos, caminhando pela


escuridão violeta ameaçadora. Podiam ver a arca mais ao longe.
Parecia uma torre iluminada.
Sua última esperança.
Loki se arrastava, um pé na frente do outro. Sylvie parecia ter um
apetite insaciável por caminhadas. Talvez por ter passado a vida
correndo da AVT, sempre indo de um lugar a outro, nunca ficando
parada.
Loki estava com saudade de ficar parado.
— Sabe — ele disse —, acho que nunca andei tanto na minha
vida.
— Vida boa essa —Sylvie disse.
— Bem, você tem sorte de não ter passado por ela — Loki estava
com calor, começou a dobrar as mangas. — Uma ideia — ele disse.
— E se você me encantar e andar por nós dois? Eu tiraria um
cochilo no meu subconsciente e você poderia me acordar só quando
a gente chegasse. Que tal?
— É — Sylvie disse, sempre pronta para retrucar —, não é assim
que encantamentos funcionam.
— Ah, não? E como funcionam? — Loki perguntou, e enquanto as
palavras saíam de seus lábios, ele percebeu uma coisa: realmente
queria saber.
— Não importa — Sylvie disse.
— Sabe, sinto que já te falei tanto de mim — Loki disse. — Mas
não sei nada sobre você.
Sylvie sorriu, contente consigo.
— Obrigada pela vantagem tática — ela disse.
— Ah — Loki disse —, então você quer usar essa vantagem tática
para me matar quando a AVT aparecer.
— Está preocupado?
— Eu só... quero saber se posso confiar em você.
Novamente, Loki se percebeu falando a verdade. Não dizendo
algo para conseguir o que queria, mas algo que realmente queria
dizer.
Era um sentimento novo.
— Ok, tá legal — Sylvie disse. — Quer saber como
encantamentos funcionam — fez uma pausa. — Eu preciso ter
contato físico, depois controlar a mente das pessoas.
— Como?
— Depende da mente. A maioria é fácil e consigo controlar
instantaneamente. Outras, as mais fortes, são mais complicadas. Eu
consigo controle, mas elas estão lá também. Para manter a
conexão, tenho que criar uma ilusão a partir das memórias.
Eles andavam no escuro.
Loki balançou a cabeça. Estava pelo menos um pouco
impressionado com ela.
— E você me chama de mágico — ele disse.
— Aquela soldada novinha da AVT — Sylvie continuou —, a
mente dela estava uma bagunça. Tudo confuso. Precisei puxar uma
memória de centenas de anos atrás, antes mesmo de ela lutar por
eles.
Loki parou de andar.
— O quê? — ele disse. — O que você disse? Antes dela entrar
pra AVT?
Sylvie o encarou.
— É. Ela era só uma pessoa comum na Terra.
— Uma pessoa comum?
Sylvie deu de ombros.
— Amava margaritas.
Loki estava espantado.
— Me disseram que todo mundo que trabalha pra AVT foi criado
pelos Guardiões do Tempo — ele falou.
— Que mentira — Sylvie disse. — Eles são variantes, assim como
nós.
— Eles não sabem disso — Loki falou. Pensou sobre Mobius e
suas revistas tristes de jet-skis, seu amor pelo mundo humano,
ainda mais pelos anos 1990. Mobius não fazia ideia de que era uma
variante. Mesmo sem querer, Loki sentiu uma pontada de dor por
ele.
Do outro lado do deserto, a voz aumentada de uma locutora soou:
— Todos os passageiros com suas passagens... — ela disse.
Loki virou-se para a arca, e Sylvie também.
A nave brilhava ao longe.
— Nossa carona — Sylvie disse, de repente pensando somente
em sobreviver.
Eles aceleraram o passo.
A voz soou novamente:
— Dez minutos até a decolagem.
CAPÍTULO VINTE E OITO

Nescuridão a arca brilhava como uma árvore de Natal


A cidade estranha que crescia ao seu redor estava repleta de
burburinho e de placas neon; as ruas estreitas cobertas de fios de
telefonia, com arranha-céus se erguendo delas.
Poderia ser uma cidade qualquer na Terra, com luzes fortes e
superpopulação, mas não era. Era uma cidade numa lua. Uma lua
na iminência de ser destruída.
Loki absorveu aquele pensamento.
A voz do locutor que ouviram antes falava com calma através do
ar noturno. Mas não importava sua tranquilidade, o pavor nela era
tátil.
— Última chamada para o embarque... — a voz disse.
Loki e Sylvie entraram na cidade por um túnel. Saíram numa rua
lotada; a arca crescia acima deles, intimidante e brilhosa.
— Confiamos um no outro? — Sylvie perguntou.
— Confiamos, e você pode — Loki disse. Confiança não era algo
a que ele normalmente dava muita atenção. Mas, pelo bem ou pelo
mal, ele e Sylvie eram um time. Precisavam confiar um no outro
para sobreviver.
Sylvie parou de correr.
— Ótimo — ela disse. — Porque isso vai ser uma droga.
Na rua, as pessoas gritavam e se revoltavam, e outra voz
agourenta e apática, diferente da locutora, ecoou sobre elas:
— Mantenham a calma — disse, sem emoção. — Capacidade
limite atingida. Por favor, retornem às suas casas. — Os gritos nas
ruas aumentaram em resposta. — Se afastem — disse a voz
robótica.
A multidão começou a entoar:
— Nos deixe entrar! Nos deixe entrar!
— Cinco minutos até a decolagem — a locutora disse. Tinha a voz
de um anúncio de hidratante.
Loki encontrou um ponto mais alto e olhou sobre a multidão em
ebulição.
— Vão deixar essas pessoas morrerem — falou baixinho para si.
Sylvie chegou atrás dele. Tinha outras preocupações em mente.
— Precisamos entrar naquela arca e garantir que vai decolar.
— Como? — Loki disse, com um pesar estranho instalado em seu
estômago.
— Vamos dar a volta — Sylvie disse, puxando-o pelo pulso.
O toque dela fez Loki agir.
— Ok — ele disse, e a seguiu.
Eles correram por uma rua e encontraram um lugar parecido com
um fliperama, cheio de telas piscantes e placas cintilantes. As
paredes erguidas ao redor deles estavam pintadas com padrões
neon multicoloridos que brilhavam à luz da lua. A voz robótica falou
novamente:
— Retornem a suas casas — ela disse. Alguém gritou.
Loki parou de correr. Olhou ao redor, examinando qual seria o
melhor caminho, e Sylvie fez o mesmo.
De alguma fora, eles tinham mesmo virado um time. Até em meio
ao caos, aquilo confortava Loki.
— Voltem — disse a voz robótica. — Não avancem.
Loki e Sylvie estavam em frente a um restaurante. A porta era
semicircular, e guardas estavam tentando manter as pessoas do
lado de fora.
Loki encarou aquilo, notando a presença de Sylvie ao seu lado.
Se perguntou se ela estava pensando o mesmo que ele.
Escutaram um grunhido profundo do alto, como o de um mundo
inteiro cedendo. Loki olhou para o alto, para a escuridão, e viu o
planeta verde pálido que vinha se aproximando nas últimas doze
horas preencher o céu completamente. Asteroides voavam sobre
suas cabeças como jatinhos. Pedaços do planeta rochoso caíam do
céu noturno, esmagando a cidade. Um deles explodiu como uma
pequena bomba. As pessoas começaram a gritar e sair correndo, e
Loki correu também, sentindo a presença de Sylvie correndo ao seu
lado.
Outra explosão aconteceu — dessa vez à frente deles — e o
mundo colorido virou pó. Loki foi arremessado para trás. Seus
ouvidos apitavam como porcelana ao ser arranhada. A voz da
locutora falou, indistinta, sinistra, através da névoa suja. Por um
instante, Loki imaginou que estavam deitados no fundo do mar, em
algum lugar nas profundezas do oceano...
Mas ele voltou a si.
Ficou de pé, agarrou Sylvie e puxou para que levantasse. Eles
correram para dentro do restaurante, mobiliado com mesas altas e
bancos de bar.
— Você está bem? — Loki perguntou.
— Estou — Sylvie respondeu.
E aí, um guarda agarrou a capa de Sylvie, mas ela se soltou da
capa, a enrolou e usou para jogar o guarda no chão.
Outro guarda avançou neles, mas Loki o jogou para longe com
uma rajada mágica.
E então mais outro veio... Não tinha fim.
— Parem! — um guarda gritou. — Não se mexam!
Ele correu até Loki, que se defendeu dos golpes e o socou na
cara.
À sua direita, Sylvie estava lutando com mais um guarda.
— Continua — ela disse a Loki.
Eles saíram correndo do restaurante, e pedregulhos choviam
sobre eles. Pequenos incêndios causados por asteroides caídos
estavam começando por todas as ruas da cidade. Eles tentaram
avançar outra rua paralela, mas um prédio despencou bem em
frente deles, fechando o caminho.
Loki parou.
— Por aqui! — Sylvie gritou.
Loki a seguiu, e eles se agacharam junto a uma parede que
parecia estável o suficiente, para se proteger da chuva de pedras,
alertas para prédios caindo.
E agora? Loki pensou. Aquilo era praticamente uma zona de
guerra.
Por todos os lados, as pessoas corriam sem direção, gritando,
aterrorizadas.
Dois homens conversavam ao lado deles.
— Você vai ficar bem — um disse.
O outro começou a correr, arriscando-se pelos destroços que
caíam do céu e desviando das explosões espalhadas pelo lugar.
— Não! Não, espera! — o amigo gritou.
Loki correu do mesmo jeito que o homem fez, e Sylvie o seguiu.
Não podiam ficar ali, agachados contra a parede, assustados, para
sempre. Tinham que tentar alguma coisa. Tinham que se mexer.
Eles correram. Um prédio com um relógio de ferro no topo começou
a cair, rangendo alto, e eles se esquivaram por pouco, escapando
de serem esmagados. Enquanto corriam, a cidade desmoronava
atrás deles, e a poeira levantada pelos escombros formava uma
onda enorme.
Eles pararam.
Uma torre vinha na direção deles do alto de suas cabeças.
— Cuidado! — Sylvie disse.
— Eu resolvo! — Loki usou seus poderes para frear a torre e a
jogar de volta para o alto.
Tendo escapado a morte pela centésima vez naquele dia, eles
atravessaram os bloqueios de guardas, chutando e socando
qualquer um que tentasse impedi-los de chegar até a arca.
— Ainda dá tempo! — Loki gritou, mesmo sem ter certeza se
acreditava naquilo.
Um guarda agarrou Sylvie pelas costas. Ela se desvencilhou
escorregando e o socou, deixando-o desacordado.
— Sylvie, vamos! — Loki chamou.
Não podia evitar de ficar impressionado com o jeito com que ela
lutava. Ela era elegante e graciosa, repleta de habilidade e ímpeto.
Se não estivessem no meio de um apocalipse, talvez tivesse parado
para ficar assistindo.
Mas agora estavam correndo novamente. Correndo e correndo.
A arca estava bem ali na frente deles, impossivelmente perto...
Mas ela rangeu e chacoalhou, iluminou-se tanto quanto um
arranha-céu, e começou a se levantar no ar.
Loki parou de correr.
Sylvie parou ao seu lado.
Ambos arfavam.
Assistiram à arca decolar. Estava se erguendo ao céu, estava
indo embora, indo embora sem eles...
Mas não foi muito longe antes de explodir.
Loki a viu se partir ao meio, sua ponta dianteira se desligando e
caindo para o lado, numa nuvem de faíscas.
Nesse momento, a cidade inteira ficou em silêncio, e até um dos
guardas caiu de joelhos no chão.
Loki ouvia apenas um único choro de lamento atrás dele.
Não queria olhar para Sylvie. Não aguentaria ver como ela estava.
Toda a esperança deles desapareceu.
Morreriam ali.
Em Lamentis-1. Uma lua condenada. Numa cidade estranha,
alienígena, cercada por poeira e fogo.
Bem, Loki se pegou pensando, pelo menos não estamos
sozinhos.
Sylvie se virou de costas e se foi pelos entulhos.
E Loki ficou apenas olhando para a arca, incapaz de tirar os olhos
dela.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

Ravonna Renslayer não gostava de decepcionar ninguém,


especialmente se essas pessoas fossem os Guardiões do Tempo.
Mas já os havia decepcionado antes muitos anos atrás. E aquilo
ainda lhe doía.
A dor voltou quando a variante fugitiva conseguiu entrar nas
instalações da AVT e, de alguma forma, conseguiu pressionar uma
lâmina no pescoço de Loki.
Ravonna sabia que era culpa dela — os soldados mortos, as
cargas de reset roubadas.
A própria existência da AVT estava em risco por causa dessa
fugitiva.
Por causa de Ravonna.
Muito tempo atrás, quando Ravonna ainda era uma caçadora,
antes de ter um escritório mobiliado e luxuoso cheio de artefatos
conquistados com muito trabalho, ela saiu em missão para prender
uma variante.
A variante em questão era uma jovem mocinha que vivia em
Asgard, num palácio de ouro derretido. Eles a encontraram sentada
nos degraus do átrio, brincando com seus brinquedos.
— O dragão mergulha na direção do palácio — ela dizia a si
mesma —, mas a Valquíria passa voando, derrota o dragão e salva
Asgard!
Quando saíram pela Porta Temporal atrás dela, a garotinha se
virou, fazendo uma careta confusa, ainda segurando o dragão e a
Valquíria em miniatura.
Ravonna não se apresentou a ela. Era só uma criança, afinal de
contas, um Loki criança. Uma Loki menina. Ela varreu a garotinha
usando o Temp Pad.
— Essa é a nossa variante — ela disse aos soldados que a
flanqueavam, e os três cercaram a menina e agarraram seus
braços. — Pela autoridade dos Guardiões do Tempo — Ravonna
disse —, eu a declaro presa por crimes contra a Linha do Tempo
Sagrada — Ela segurou a garota-Loki pelo braço, sem se importar
em ser gentil, e a puxou na direção da Porta Temporal. — Resetem
a linha do tempo! — ela falou.
— Espere! — a garota-Loki gritou.
Mas Ravonna não a deu ouvidos.
A variante ofereceu bastante resistência ao ser levada, mais para
um gato de rua que um gatinho, como dizem, mas Ravonna
conseguiu, com algum esforço, levá-la até a AVT para que fosse
julgada por seus crimes contra a Linha do Tempo Sagrada. Ravonna
sempre acreditou na missão dos Guardiões do Tempo. O trabalho
que fazia para a AVT era vital. Mais do que isso: era fundamental.
Não seria muito dizer, ela pensava às vezes, que o trabalho da AVT
era o mais importante do universo.
Mas quando Ravonna finalmente conseguiu colocar a garota-Loki
diante de um juiz, a danadinha mordeu seu braço e pisou em seu
pé, escapando dela. Ravonna teve que correr atrás dela, até
perceber que a garotinha tinha conseguido, de alguma forma, roubar
seu Temp Pad. Aquela visão a fizera congelar.
A garota-Loki usou o Temp Pad para abrir uma Porta Temporal
atrás de si. A porta apareceu do nada, emoldurada por luz dourada.
Um milagre diário da AVT que Ravonna ainda se pegava admirando.
A garota-Loki encarou Ravonna com ódio antes de passar pela
porta.
A AVT a caçava desde então.
Nunca tinham sequer chegado perto de encontrá-la.
Até agora.
E agora Ravonna a tinha deixado escapar por entre seus dedos...
de novo.
Ravonna estava dentro do elevador dos Guardiões do Tempo,
respirando fundo. Enquanto o elevador se movia, ela pensou na
garota, na Loki, que tinham perdido. Pensou no que diria aos
Guardiões do Tempo. Em como tinha falhado com eles.
Então o elevador parou.
E as portas se abriram.
Ravonna ficou ereta, inspirou pelo nariz.
Estava na hora de declarar seu papel naquela situação toda.
Assumir sua responsabilidade, como todos os líderes devem fazer.
Ela desceu do elevador numa névoa escura. Diante dela, três
figuras enormes sentavam em três tronos enormes, seus olhos
brilhavam vermelhos. Olhavam para ela através da escuridão. Não
importavam as incontáveis vezes em que Ravonna havia visto
aquilo antes. Dessa vez, ela estava com medo.

Mobius esperava do lado de fora do elevador dos Guardiões do


Tempo quando Ravonna saiu dele.
Ele nunca esteve diante de um Guardião do Tempo, mas
imaginava que provavelmente era assustador.
E sabia que Ravonna seria culpada pela perda de duas variantes
num só dia.
— O que eles disseram? — ele a perguntou. — Você está bem?
— Não, não, Mobius. Eu não estou — Ravonna disse. — Na
melhor das hipóteses, é perturbador estar na presença dos
Guardiões do Tempo. E essa não é a melhor das hipóteses. — Ela
parou e o encarou. Seu rosto bonito estava tenso de ansiedade.
— Tá, mas eles não podem te culpar por isso — Mobius disse.
Ele se sentia péssimo. A missão da Roxxcart ter falhado, aquilo
era culpa dele. Loki deveria ter ficado com ele. Deveria ter
convencido a Caçadora B-15 daquilo. Devia ter insistido.
— Eles podem e vão — Ravonna disse. — A variante estava bem
aqui. E se ela tivesse chegado aos Guardiões do Tempo?
— Eu sei, mas ela não chegou — Mobius disse, tentando oferecer
palavras de conforto.
— Não, mas ela escapou. Junto com a variante que eu te dei
permissão para trazer até aqui. — Um grupo de funcionários da AVT
passou e Ravonna os observou, baixando a voz. — Você faz ideia
de como é impossível manter a linha do tempo estável?
A pergunta era retórica, é claro.
Mobius não fazia ideia de como deveria ser para ela estar naquela
posição, ter aquele nível de responsabilidade. Ter o bem-estar dos
Guardiões do Tempo sobre os ombros. Ela continuou:
— Os Guardiões do Tempo são a única coisa entre nós e um
estado completo de calamidade.
— E fico grato de eles estarem do nosso lado — Mobius
sussurrou com urgência —, mas se eles querem que eu encontre
Loki e a variante... — ele falou ainda mais baixo, num sussurro
ainda mais leve — preciso ter acesso à Caçadora C-20.
— Sinto muito, mas isso é impossível — Ravonna disse, cortando
a ideia dele imediatamente. Ela fazia bastante aquilo: não o deixava
nem terminar; só presumia saber mais do que ele. Era a chefe,
afinal de contas, mas ela não deveria confiar nele? Como ele
conseguiria fazer o trabalho dele se não fosse assim?
— Olha — ele disse —, quando a gente a achou, ela ficava
dizendo “é real, é real”. Várias vezes. Preciso descobrir do que ela
estava falando e o que mais ela viu quando estava com a variante.
Olha, eu sei que existe um protocolo, mas ela pode ter
informações...
— Ela morreu, Mobius! — As palavras sussurradas por Ravonna
cortaram profundamente.
A cabeça de Mobius ficou tonta do choque.
— O quê? — ele disse. — Como?
Ravonna olhou de canto um novo grupo de funcionário da AVT
que estava passando, seus sapatos batendo contra o chão duro. Ela
esperou que estivessem fora do alcance antes de continuar falando:
— A variante — ela disse —, ela encantou a C-20, embaralhou a
mente dela.
— Não estou entendendo — Mobius disse. — Ela parecia ok.
Parecia estar bem. — Ele balançou a cabeça, incrédulo. Aquele era
um baque e tanto. C-20 teria sido um recurso primordial para a
investigação.
— A princípio, estava — Ravonna disse. — Mas até chegar aqui,
ela mal conseguia falar. A piora se agravou depois disso.
Mobius deixou a cabeça pender.
— Eu não sabia. O que...
— Ninguém sabe — Ravonna disse, dura. Depois relaxou um
pouco. — Não queremos que as pessoas entrem em pânico. Posso
confiar em você para manter isso entre a gente?
— Sim, mas é claro — Mobius faria qualquer coisa por Ravonna.
Será que ela não conseguia ver isso?
— Me desculpa — ele acrescentou, sabendo que tinha causado
sofrimento a ela.
— Cada instante que aquelas variantes passam lá fora —
Ravonna disse —, nós estamos todos em perigo. — Ela fez uma
pausa. — Encontre eles! — Então saiu, com os calcanhares
batendo no chão duro.
Mobius franziu a testa e se foi, pensando em como consertaria
tudo aquilo.

Em Lamentis-1, uma das cidades da lua desmoronava.


O céu literalmente caía, asteroides despencavam como fogos de
artifício ao reverso, e o planeta verde que seria o fim da lua
preenchia o céu, espreitando como uma bocarra pronta para a
engolir. O choque da arca se partindo ao meio tinha passado, e as
pessoas haviam voltado a gritar, berrando aos deuses que
conheciam. Mas ninguém mais lutava. Só aguardavam o fim do
mundo.
Loki encontrara Sylvie sentada num rochedo nas redondezas da
cidade, com as mãos apoiadas nos joelhos. Estava sentada como
uma estátua, mirando a escuridão. Ele se sentou ao seu lado, mas
ela não olhou para ele.
Por todos os lados, asteroides passavam como estrelas cadentes,
e o planeta caindo em Lamentis-1 tinha deixado o céu verde e
manchado, com um brilho roxo vazando por detrás dele.
Até no fim do mundo, Loki pensou, as coisas são belas.
Ele olhou para Sylvie. Ela também era bela.
— Sinto muito — ele disse com sinceridade.
Os olhos de Sylvie encontraram os dele. Era difícil aguentar ver a
tristeza nela. Ele queria desesperadamente tentar consertar aquilo,
mas sabia que nunca conseguiria. Ela assentiu, parecendo ter
aceitado: seu destino, o destino de Lamentis-1, e até o destino da
Linha do Tempo Sagrada.
— Eu me lembro de Asgard — ela disse. — De pouca coisa, mas
me lembro. Minha casa; meu povo; minha vida — parou por um
instante, engoliu seco. — O universo quer se libertar, por isso
manifesta o caos. Como eu, nascida Deusa da Mentira. E assim que
isso criou um desvio grande demais da Linha do Tempo Sagrada —
ela cuspia as palavras —, a AVT apareceu, apagou minha realidade
e me prendeu. Eu era só uma criança.
No silêncio deles, mais asteroides caíram, incendiando a poeira
lunar debaixo deles. Lamentis-1 grunhia como um animal abatido.
— Eu escapei — Sylvie continuou. — Roubei um Temp Pad e fugi.
Por muito, muito tempo. O que foi uma droga. Todo lugar e todo
tempo a que eu ia causava um Evento Nexus. Acendia um sinal,
porque eu não deveria existir. Até que, eventualmente, descobri
onde me esconder. E então, foram neles que cresci: nos fins de
milhares de mundos.
Loki expirou. Era difícil de imaginar aquilo. E, ainda assim, era a
verdade.
— E agora — Sylvie disse, segurando as lágrimas —, é num
deles que vou morrer. — Ela olhou para a linha roxa do horizonte,
que estava, neste momento, sendo engolida por um planeta a se
desmoronar.
Loki não conseguiu evitar o sentimento: seu coração se partiu por
ela.
— Não tem nada, senhor.
Mobius não queria ouvir aquela resposta.
— Nem mesmo com os limites de nexus ampliados? — ele
perguntou à analista da AVT sentada na mesa à sua frente. —
Esses parâmetros deviam lançar alertas só de a pessoa pisar numa
folha errada.
— Onde quer que eles estejam — outra analista disse —, não
tenho certeza de que alguém consegue sobreviver.
— É... eu não os subestimaria se fosse você — Mobius disse.
Estava certo de que um Loki poderia sobreviver a, bem, qualquer
coisa. Ele se voltou à Caçadora B-15. — Encontrou alguma coisa na
Roxxcart?
— Eles se foram — ela disse com a voz derrotada. — Estão
saltando pelo tempo, planejando seu próximo massacre — ela
encarava a enorme tela de computador pendurada no teto. Um
grupo de analistas ocupava a longa mesa recurvada diante da tela.
Ela mostrava a Linha do Tempo Sagrada como uma longa linha de
luz azulada. B-15 a encarava como se procurasse por respostas,
por algum tipo de pistas. — Alguma novidade sobre a C-20? — ela
perguntou a Mobius.
Sua voz veio cheia de dor, e Mobius odiou ter que mentir para ela.
B-15 era uma boa caçadora, e se importava com as pessoas com
quem trabalhava. Mas ele tinha que mentir, por Ravonna, pela AVT,
para que tudo funcionasse como deveria.
— Não — ele disse, balançando a cabeça.
B-15 balançou a dela também.
— Nós precisamos encontrar eles — ela disse.
— A gente vai — Mobius disse, com sinceridade. E ele acreditava
nisso. Tinha que acreditar.
Pedaços imensos do planeta assassino estavam começaram a se
partir, voando por Lamentis-1, prontos para penetrar sua atmosfera.
A lua roxa brilhava com vida em contraste ao universo que se
escurecia. As estrelas observavam com olhos indiferentes,
iluminando, mas sem ver.
Loki e Sylvie ainda estavam sentados num rochedo, à espera do
fim. O céu estava cheio de pedaços de pedra flutuantes, do
tamanho de casas.
É isso aí, Loki pensou.
Ele deveria estar mais chateado, honestamente, mas sentia uma
satisfação estranha por saber que não morreria do jeito que a AVT
havia previsto para ele, do jeito que ditava a Linha do Tempo
Sagrada. Morreria na sua linha do tempo, do seu jeito, como
resultado de suas escolhas, e isso era uma morte honrosa.
Ele observou Sylvie olhando para o céu.
— Quase lá — ela disse. E então, depois de um tempo, falou: —
Você acha que o que torna Loki um Loki é estarmos destinados a
perder?
— Não — Loki disse. — Podemos perder, às vezes
dolorosamente, mas não morremos. Nós sobrevivemos. Você
sobreviveu, sabe? Era só uma criança quando a AVT te capturou,
mas você quase derrubou a organização que diz governar a ordem
do tempo. E fez isso sozinha. Deixou eles que nem baratas tontas!
Você é incrível.
Tudo que disse era verdadeiro.
Então sentiu uma coisa... Um calafrio, uma tremedeira, olhou para
baixo e viu que Sylvie estava segurando seu pulso.
Uma rocha do tamanho de uma casa caiu numa bola de fogo.
Uma onda de poeira se levantou.
Loki sentava imóvel, segurando a mão de Sylvie. Voltou seus
olhos para os dela, que não desviou o olhar.
— Conseguimos alguma coisa — disse uma das analistas. Ela
apertou alguns botões. — Alvo temporal marcado.
Na imensa tela de computador, a linha azul da Linha do Tempo
Sagrada se ramificou num pequeno galho. Ele queimava vermelho
contra o fundo escuro.
Um Evento Nexus.
— Ok — Mobius disse —, isso não é uma pessoa pisando na
folha errada — ele riu, contente. Tinham encontrado alguma coisa.
Tinham encontrado Loki. — Já viu uma ramificação assim? —
perguntou à Caçadora B-15, apontando para a tela com o queixo.
Era uma visão impressionante, se esticando verticalmente a partir
da Linha do Tempo Sagrada, praticamente perpendicular.
— Não — B-15 disse, espantada.
O que poderia ter causado aquilo? Mobius não pensou muito
sobre isso. No momento, bastava saber que tinham um alvo para o
qual apontar.

Asteroides continuavam a cair ao redor de Loki, ainda assim, não


conseguia soltar a mão de Sylvie, nem parar de olhar para seus
olhos. Uma nuvem de poeira e rochas chovia na direção deles. Em
questão de segundos, os engoliria, e ele percebeu que não ligava
tanto quanto pensou que ligaria. Nunca se sentira assim antes. Que,
de alguma forma, todas as coisas ruins valiam a pena se ele
pudesse apenas ter essa uma única, brilhante e indiscutivelmente
boa coisa. Se pudesse ter Sylvie.
E então, do lado de cada um deles, duas portas de luz se abriram.
Do nada.
Loki ficou de pé, e Sylvie também.
Encararam as portas.
Loki, sendo um Loki, claramente pensou se tratar de uma
armadilha. Imaginou que Sylvie pensasse o mesmo, e por isso tinha
ficado parada também.
Mas uma armadilha que salvava sua vida... Aí tudo bem, né? O
que quer que estivesse do outro lado das portas, eles enfrentariam
juntos. E estariam vivos juntos.
E estar juntos agora significava mais para Loki do que ele poderia
explicar.
Eles passaram pelas portas, sabendo que do outro lado estava a
AVT, com seus homens-minuto e Coleiras Temporais. O que quer
que fosse acontecer, Loki sabia que Sylvie estaria com ele do outro
lado, e viveriam para ver mais um dia nascer.
Juntos.
CAPÍTULO TRINTA

Por mais que Loki estivesse contente por não ter morrido na lua
caída, Lamentis-1, ele e Sylvie haviam sido presos, e isso vinha com
suas humilhações de sempre.
As Coleiras Temporais foram colocadas em seus pescoços, os
soldados os arrastaram por um corredor angular bem iluminado. Era
deprimente estar de volta à AVT, com suas cores apagadas, seu
ambiente distintamente subterrâneo...
Mas era melhor que morrer.
Mobius estava lá, mas não fez contato visual com Loki. Ele sentiu
uma pontada de alguma coisa em seu coração recém-amolecido.
Aquele homem confiara nele, afinal de contas.
Mas, ainda assim, trabalhava para a AVT.
Sylvie fora arrastada numa direção, e Loki, noutra. Dois soldados
seguravam Loki pelos braços, enquanto ela teve três soldados para
a escoltar. Como se ela fosse uma ameaça maior que ele. Ou uma
melhor lutadora. Ou até uma Loki melhor. Algo assim era
impensável.
Loki resistiu aos soldados, mas eles o seguraram com mais força
e, de todo jeito, sabia que, com a Coleira Temporal, não conseguiria
ir muito longe se fugisse.
De repente ele se sentiu pesado como um saco de areia.
Estava preso na AVT de novo.
Dessa vez, poderia nunca mais sair.
— Bem? — Mobius disse, quando Sylvie saiu de vista.
— Bem o quê? — Loki disse.
— Tenho certeza de que você tem alguma coisa engraçadinha
que está morrendo de vontade de dizer.
— Ah, não tenho, não. Não tenho nada para dizer a você. — Mas
aí ele pensou. — Inclusive, vocês deviam usar o mesmo nível de
segurança comigo. Isso é um insulto!
Mobius ignorou a queixa.
— Você não consegue se segurar, né? — ele disse.
— Você me traiu! — Loki disse.
— Você me traiu.
— Ah, vê se cresce.
— Cresce você.
Mobius abriu as portas do Teatro do Tempo 5, e os soldados
arrastaram Loki escada abaixo.
— Sabe — Mobius disse —, me ocorreu que você não é
realmente o Deus da Mentira.
— Ai, lá vem — Loki disse. — O insultinho idiota do idiota
bonzinho.
Mobius o encarou, com o Temp Pad em mãos.
— O que eu sou, então? — Loki disse. — Deus da
Autossabotagem, é? Deus da Traição?
— Só meio mau — Mobius disse, com tranquilidade — e um mau
amigo.
Loki tinha que admitir, aquelas palavras machucaram. Não estava
esperando a sinceridade nelas. Ficou encarando Mobius
boquiaberto.
— É, pensa um pouquinho sobre isso — Mobius disse, depois se
dirigiu aos soldados. — Tá legal. Está pronto.
Uma Porta Temporal se abriu na frente de Loki. Mas ao invés do
tom branco ou dourado usual, essa era avermelhada. A cor a
tornava ameaçadora. Imediatamente, ele ficou tenso e começou a
se debater contra os soldados.
— O que é isso? — disse, mais como forma de protesto que uma
pergunta propriamente dita. O que quer que fosse, seria ruim.
— Você vai ver — Mobius disse.
— Mobius! — Loki gritou.
— Ok, não, não, não, vamos só ver mais uma mentira
desesperada do mentiroso desesperado. Vai, fala — Mobius disse,
sua voz mais fria que de costume.
— A AVT está mentindo para você — Loki disse. Estava
desesperado. As palavras saíam da sua boca como um pedido
implorado.
O sorriso de Mobius se transformou em gargalhada.
— Bota ele para dentro —disse, apontando para a Porta
Temporal.
— Não — Loki disse, resistindo.
Mas os soldados o empurraram porta adentro.

Do outro lado da Porta Temporal avermelhada, Loki se viu de


volta a Asgard. Estava num dos terraços de pedra do palácio,
cercado por piras acesas de fogo e arranjos verdejantes. Insetos
cantavam na escuridão. A noite era quente, e o ar, doce.
— Quê? — ele disse, rindo. — É sério?
Ele olhou ao redor, esperando que algo terrível acontecesse, mas
nada aconteceu. Eles o tinham mandado de volta para casa, para
um lugar pacífico. Não conseguia entender o porquê. Pôs as mãos
no quadril e examinou o local.
— Você!
Ele se virou para a voz raivosa.
— Sif! — ele disse, sorrindo. Estava contente de vê-la.
Mas ela foi até ele reclamando.
— Seu verme patético, mentiroso, covarde. Foi você que fez isso!
— No seu punho fechado, ela carregava um punhado de seu cabelo
preto.
— Quê? — Loki perguntou, confuso.
Ela deu um tapa na cara dele.
— Ai.
— Quero que saiba que você merece e vai ficar sozinho para
sempre — Sif disse.
Loki finalmente se lembrou: tinha pregado uma peça nela, certa
vez cortara seu cabelo enquanto dormia.
— Ah, certo — Loki disse, esfregando a cara e olhando para além
da irmã. Esperava que Mobius pudesse escutá-lo. — Uma prisão de
memórias ruins? Que fofo.
Sif não respondeu.
Em vez disso, ela deu uma joelhada no meio das pernas dele,
depois um soco na cara que o derrubou no chão. Ele escutou o
barulho das botas dela enquanto se afastava.
Loki grunhiu, caído no chão. Tentou ficar de pé.
— Ai! — gemeu de dor. Conseguiu ficar de joelhos. — Belo
castigo — disse, pondo-se de pé devagar. — Lembro bem o que fiz
depois: tomei um bom banho quente e nunca mais pensei nisso,
porque foi só uma brincadeira. — Ele declarava ao ar invisível,
torcendo que Mobius ou outro capanga da AVT pudesse escutá-lo.
Olhou ao redor, arfando, esperando que alguém aparecesse.
E então ouviu a voz de Sif atrás de si.
— Você!
Ele se virou, confuso.
— Ãhn? — O que estava acontecendo?
— Seu verme patético, mentiroso, covarde. Foi você que fez isso!
— Ei, calma aí — ele disse, colocando as mãos para a frente.
Mas Sif ignorou seu gesto pacífico e o estapeou com força.
— Quero que saiba que você merece e vai ficar sozinho para
sempre — ela disse.
— Ai, espera...
Ela o chutou novamente, depois o socou, e ele caiu no chão. Ela
foi embora.
Loki ficou de quatro no chão, grunhindo.
Ele cerrou os dentes, entretanto, e ficou de pé; então tirou o
cabelo do rosto.
— Loop temporal — ele disse. — Adorável.
Tinha acabado de recuperar o fôlego quando Sif voltou.
— Você! Seu verme patético, mentiroso, covarde. Foi você que
fez isso!
Loki a encarou desamparado. Seu corpo ainda doía dos outros
dois ataques. De novo não.
Ele levantou as mãos e recuou um pouco.
— Ok, ok, Sif, espera um minuto.
Ela deu um tapa nele.
— Não — ela disse. — Escuta aqui, você merece...
— ...e vou ficar sozinho para sempre! Tá legal, já entendi! — Loki
gritou.
Sif ficou olhando para ele.
— Olha — Loki continuou —, você é uma reconstrução de um
evento passado, criada por uma organização que controla o tempo.
Sif fez uma careta para ele e cruzou os braços. Não pareceu
convencida. Não acreditava em nenhuma palavra daquilo.
— Então você precisa confiar em mim — Loki disse — e me
ajudar a escapar. Certo?
Sif assentiu, olhando para baixo. Ela colocou as mãos nos ombros
dele.
— Tá legal, certo — Loki disse, balançando a cabeça, o alívio
tomando seu corpo.
Mas aí Sif deu uma joelhada nele de novo. E o socou. E o deixou
gemendo de dor no chão.
— Patético — ela disse, zombando, e se afastou.

Mobius bateu à porta de Ravonna.


Ao entrar, a encontrou sentada à mesa, folheando alguma
papelada e massageando a testa. Nas últimas semanas, ela parecia
cada vez mais estressada a cada vez que ele a via. Estava ainda
pior agora. Ele se sentia um pouco responsável por isso.
— Oi — ele disse.
Ela sorriu.
Ele gostava muito do sorriso dela.
Mas então ela franziu a testa.
— Não deveria estar interrogando o Loki variante? — ela disse.
— Estou dando uma amaciada nele na Cela Temporal. Mas
enquanto ele está lá marinando, pensei que talvez eu pudesse
interrogar a outra variante. — Ele tentou falar como se não fosse
grande coisa, como se ele não ligasse muito para aquilo.
— Ah, não — Ravonna disse. — Só cuide do seu Loki e descubra
o que foi aquele pico de nexus.
— Eu sei, mas acho que consigo descobrir isso mais rápido se eu
trabalhar com os dois juntos. Lembra, você disse que temos um
papel a cumprir, e o papel que eu...
Ravonna deu uma risadinha, e ainda estava sorrindo, mas
apontava uma caneta para ele.
— De jeito nenhum — ela interrompeu. — Ela é perigosa demais.
Mobius tentou não levar aquilo como insulto.
— Perigosa? Calma aí, Ravonna. Esse é o meu trabalho.
O sorriso dela desapareceu. Ela meteu a caneta na mesa.
— E esse é o meu trabalho. Ninguém fala com aquela variante. —
Ela olhou nos olhos dele com uma expressão tão séria quanto o
próprio tempo.
Mobius ficou em silêncio. Olhou para o chão. Não podia discutir
mais com ela, mas, ao se virar para sair, ele disse:
— É só que, se tem alguém fazendo os planos por aqui, eu não
acho que é Loki.
— Ótimo — Ravonna disse. — Então deve ser o mais fácil de
fazer abrir a boca.
Mobius mordeu os lábios.
— Se preocupe com o seu Loki, e descubra o que causou o pico
— Ravonna disse. — Os Guardiões do Tempo estão observando,
Mobius. — Ela apontou para a estátua atrás de si.
Mobius se virou e começou a sair do escritório.
— Eles sempre estão — grunhiu. — “Se preocupe com seu Loki,
se preocupe com seu Loki”. Vai ser meu mantra.
Ele fechou a porta pesada de madeira com uma batida forte.
Às vezes as regras desse lugar o deixavam nervoso.
Ele estava voltando ao Teatro do Tempo 5 quando
coincidentemente passou pelo Teatro do Tempo 47, onde a variante
fugitiva estava presa.
Claro, havia caminhos mais rápidos até o Teatro do Tempo 5, mas
quem não precisava de uma caminhadinha de vez em quando? Dar
uma acordada no cérebro?
A Caçadora B-15 estava de guarda na porta com mais três
soldados.
— Ela está aí dentro? — Mobius disse, parando de um modo que
esperava passar a impressão de casual.
B-15 semicerrou os olhos para ele.
— Uhuum — ela disse.
Um dos soldados estava secando o rosto com um pano.Tinha
sangue escorrendo na bochecha.
Mobius riu amigavelmente.
— Eles não desistem, não é mesmo? — ele disse a ela.
B-15 não ficou convencida, entretanto.
— Você não devia estar interrogando sua variante de estimação?
— ela disse.
— Estou só... esticando as pernas — Mobius disse. — Sabe, a
gente já capturou Krees, Titãs, vampiros. Por que dois semideuses
órfãos estão dando tanta dor de cabeça?
A Caçadora B-15 riu. E depois ficou séria.
— E mesmo assim você teve a ideia de trazer um aqui para
dentro — Ela inclinou a cabeça de lado.
Ele sorriu, depois começou a se afastar.
— Não me importo de dividir os créditos pela ideia — ele falou.
— Mobius? — B-15 disse.
Ele parou de andar, esperando que ela fosse pelo menos lhe dar
algumas migalhas.
Mas tudo que ela disse foi:
— O Loki disse alguma coisa enquanto você estava lá? — A voz
dela estava mais jovial que de costume, mas insegura.
Insegurança não era uma qualidade valorizada nos caçadores da
AVT.
— Disse — Mobius falou. — Disse que a AVT está mentindo para
mim. — Ele achava graça do que Loki era capaz de fazer para
escapar dos problemas.
Esperava que B-15 também pensasse assim, mas seu rosto
permaneceu sério, franzido.
— Por quê? — ele perguntou.
Os vincos em sua testa se aprofundaram, e ela desviou o olhar,
como se estivesse pensando em algo que aconteceu há muito,
muito tempo.
— Só fazendo meu trabalho — ela disse, voltando ao seu posto.
Um sentimento inquietante apertou o peito de Mobius. Um
sentimento desconfortável e irritante, como uma pulga atrás da
orelha.
Mas não fez mais perguntas a B-15. Ele a observou ereta, como a
soldada que tinha sido criada para ser, com os ombros para trás, e a
confusão fora lavada do rosto e substituída por um olhar centrado.
Ele ficou olhando para ela um pouco.
Depois foi embora.

Loki estava sentado no chão da Cela Temporal criada para ele por
Mobius.
As piras de chama queimavam eternas ao seu redor, e os arcos
em forma de lágrima de cada lado do terraço começaram a parecer
as pontas afiadas de flechas.
Tinha perdido as contas de quantas vezes Sif entrou por um arco
e saiu pelo outro. Tinha perdido as contas de quantas vezes fora
estapeado, chutado e socado. Todo seu corpo doía. Então ele
escutou a voz dela novamente.
— Você.
Ele liberou um suspiro fundo, torcendo, rezando que aquilo
parasse.
— Seu verme patético... — ela começou a falar.
— Sif. Sif — Loki disse.
— ...mentiroso, covarde.
— Sif, por favor, por favor, já chega. Eu te imploro — Loki estava
prostrado, olhando para o chão de pedra do terraço.
Ela se aproximou dele, mas tinha parado de berrar.
— Eu sou uma pessoa terrível — Loki disse. — Eu sei, sou
mesmo. — Ele usou os joelhos para se virar para ela. Sif o encarava
do alto. — Eu cortei seu cabelo porque achei que seria engraçado.
E não é.
Ela continuou encarando, séria.
Ele continuou de joelhos, como um suplicante.
— Ãhm — ele disse. As palavras, pelo visto, eram difíceis de
serem ditas. — Eu quero atenção porque eu sou... — suspirou — eu
sou... eu sou narcisista. E acho que é... é porque tenho medo de
ficar sozinho.
Essa era, sem sombra de dúvidas, a coisa mais honesta que já
dissera a ela.
Ela inspirou fundo e fechou os olhos, como se tentasse se
acalmar.
Loki ficou tenso, certo de que logo levaria outro chute. Mas, ao
contrário do que pensou, Sif estendeu a mão. Ele aceitou, e ela o
ajudou a ficar de pé, puxando-o na direção dela. Olhou em seus
olhos e disse, enfim:
— Você está sozinho. E sempre vai estar. — Ela soltou a mão
dele e foi embora.
Loki olhou para o vazio, seus olhos perdendo o foco. Claro que
estava feliz por não ter levado uma joelhada nem um soco, mas, de
alguma forma, aquilo era bem pior. Ele tinha pedido desculpas.
Tinha sido sincero. E ela ainda o odiava. Talvez estivesse certa: não
importava o que fizesse, sempre ficaria só.
Foi nesse instante que Mobius chegou ao terraço com uma
expressão séria no rosto.
— Ok, Loki — disse. — Pronto para falar?
Loki piscou para Mobius, então respirou fundo.
Ao voltar para o Teatro do Tempo 5, a Porta Temporal
avermelhada desapareceu atrás dele, e Loki viu o rosto iluminado
de Mobius.
— Tecnologia de ponta — ele disse. — Táticas ameaçadoras de
interrogação. — Sentou-se à mesa no meio da sala, oposto a
Mobius. — Parece que eu e você estamos num Loop próprio.
— Bem — Mobius disse, lendo seus papéis, com um lápis na mão
—, muita coisa mudou desde a última vez.
— Certamente.
— Ok, você disse que a AVT está mentindo para mim. — Mobius
disse, olhando para a prancheta e pondo o lápis ao lado dela. — Vá
em frente, ou era só papo de barata tonta tentando sobreviver?
Loki não estava esperando por isso.
Será que havia alguma chance de Mobius ter lhe dado ouvidos?
Será que suas palavras conseguiram alcançá-lo? Mas não daria a
ele uma informação tão preciosa sem antes garantir sua liberdade.
— Me deixe sair daqui, pare de me torturar, e eu te digo — ele
disse.
— Barata, saquei — Mobius disse, sem nem piscar. Estava com o
lápis em mão novamente. — Há quanto tempo você trabalha para
variante?
— Eu? Trabalhando para ela? Por favor — Loki ficou
genuinamente ofendido. Nunca trabalhou para ninguém. Sempre
agiu de acordo com seu próprio propósito glorioso. Mobius deveria
saber isso.
— Ok, então se não está trabalhando para variante, o que é isso?
São parceiros? — Mobius falou mais alto e agressivo.
— De forma alguma — Loki disse, balançando a cabeça em
negação. Ele pensou em Sylvie — Ela é... difícil. E irritante. E ela
tenta me bater o tempo todo.
Mobius ergueu os olhos da prancheta. Ficou olhando curioso para
Loki.
— Não — Loki repetiu —, não somos parceiros. Não.
— Tá — Mobius disse, e anotou alguma coisa. — Acho que você
não funciona com parceiros. A não ser, é claro, que seja para seu
próprio benefício e você esteja planejando trair eles em algum
ponto.
Loki teve a impressão de que não estavam mais falando de
Sylvie.
— Foi um meio para um fim, Mobius — Loki disse. — Bem-vindo
ao mundo real. Aqui somos terríveis uns com os outros para
conseguir o que queremos.
— Agora preciso que um príncipe me diga como o mundo real
funciona? — Mobius disse. Ele levantou a voz. — Por que
simplesmente não me diz o que causou o Evento Nexus em
Lamentis?
— Eu vou falar mais uma vez... — Loki disse — eu não vou te
contar só para você voltar imediatamente e me podar.
Mobius se recostou em sua cadeira.
— Acho que chegamos a um impasse, então.
— Ok, acabou.
— Vou sentir falta dos nossos papinhos — Mobius disse,
colocando o lápis no bolso.
— Também vou.
Mobius apanhou a prancheta e ficou em pé.
— Um cara jogando damas, você. E o velho Mobius jogando
xadrez. Mas é, manda um abraço para Lady Sif por mim. — Ele
pegou sem Temp Pad.
— Quê? Não. Não, não, não. Por favor, não — Loki levantou as
mãos.
Mobius apertou um botão no Temp Pad.
— Calma, espera — Loki disse. — Espera, espera, espera.
Mobius olhou do Temp Pad para ele inocentemente.
— Que foi? — disse.
Loki respirou fundo.
— Claro que fui eu, sempre mexendo as cordinhas.
Aquilo chamou a atenção de Mobius, ele se sentou novamente.
— Ela me procurou em Asgard, muito tempo atrás, e me levou a
um de seus apocalipses, e foi lá que montamos nosso plano.
Juntos.
Mobius se inclinou, ficando mais próximo.
— Que é? — perguntou.
— Um que está dando muito certo, obrigado — Loki disse.
— E a variante? — Mobius perguntou.
Loki deu de ombros.
— Não importa. Ela é um peão. Algo bem grande mesmo está
para acontecer. E quando acontecer, vou me livrar dela. — Loki
sorriu para mostrar que estava sério.
— Bem, não vai ter mais esse trabalho — Mobius disse. — Já
podamos ela para você.
E naquele instante, o mundo parou.
Mobius continuou falando:
— Então, caso eu liberte você...
— Calma aí, espera — Loki disse. — O que você disse?
— Caso eu liberte você...
— A variante — Loki disse —, ela morreu?
— Sim — Mobius disse. — Não antes de matar dois dos nossos.
Loki o encarou com os olhos arregalados pelo choque.
— É, ela estava sendo colocada na Cela do Tempo dela e
escapou. A Caçadora B-15 entrou no caminho e puff, podou ela.
Então talvez queira mandar uma notinha de agradecimento para ela,
porque parece que você é o Loki superior. Eu apostava nela, mas
essa é a graça da corrida de cavalo.
A tranquilidade na voz de Mobius gelou Loki por inteiro. Algo
estava doendo em seu âmago. Tudo estava doendo. Aquilo estava
errado. Não podia ser. Ele se recaiu na cadeira desconfortável,
sentindo como se o universo inteiro tivesse se empoleirado no seu
peito.
Então se chacoalhou e sorriu amarelo.
— Já vai tarde — disse.
Mobius olhou para ele e manteve contato visual, com a testa
franzida.
Loki devolveu a expressão.
Mobius riu fraquinho.
— Qual a graça? — Loki disse.
— Você... É como se... Olha para você! Você gosta dela.
— Quê? — Loki disse.
Mobius começou a rir de verdade.
— Você gosta dela — ele disse. — Ela gosta de você também?
— Ela foi podada? — Loki perguntou.
Mobius ignorou a pergunta.
— Faz sentido, por isso você não tem ideia do que causou o
Evento Nexus em Lamentis. Os dois estavam ocupados demais se
babando, pelo jeito.
— Me diga a verdade! — Loki disse.
— Num apocalipse, duas variantes do mesmo ser, especialmente
você, formam esse tipo de relação romântica doentia e deturpada?
Isso é caos puro. Isso pode quebrar a realidade. Está acabando
com a minha agora mesmo. Que incrível, avassalador narcisista.
Você se apaixonou por você mesmo.
— O nome dela era Sylvie — Loki disse. Sua voz mais fraca
agora. Não ligava para o que Mobius estava dizendo. Não era
deturpado ou doentio. Ela não era ele. Eram seres diferentes.
— Ah, Sylvie — Mobius disse. — Belo nome. Como se escreve?
Com um I-E, ou só um I?
— Ela está viva? — Loki gritou.
Estava desesperado para saber. E cansado das piadas sem graça
de Mobius.
Mobius o encarou. O silêncio pensou entre eles.
— Por enquanto — ele disse.
Loki soltou o ar. Nunca antes esteve tão aliviado. Era assim que
era gostar de alguém?
Encarou a mesa. Só queria poder descansar. Queria ficar só.
Mas Mobius estava imparável.
— E se infiltrar na AVT sempre foi parte do grande plano?
— Nossos interesses — Loki disse — estão alinhados.
— Tomar o controle dos Guardiões do Tempo — Mobius disse.
— Talvez eles precisem perder o controle! — Loki gritou.
— Eu vou puxar sua orelha — Mobius disse, balançando a
cabeça.
— Mobius, me escuta — Loki olhou para a porta, para a saída do
Teatro do Tempo 5. Estava com medo de que houvesse soldados lá
fora escutando. — Se o que Sylvie me disse sobre esse lugar for
verdade... é um problema para todos nós.
— Lá vamos nós — Mobius disse. — Você já me disse umas
cinquenta mentiras nos últimos dez minutos...
— Não estou mentindo.
— E agora eu preciso acreditar na sua namorada?
— É a verdade. E ela não é minha namorada.
— Pode chamar ela do que quiser! A sua versão feminina por
quem você tem uma paixonite maluca.
— Vocês todos são variantes! — Loki berrou. — Todo mundo que
trabalha pra AVT. Os Guardiões do Tempo não criaram vocês, eles
sequestraram vocês das suas linhas do tempo! E apagaram suas
memórias.
Mobius fez silêncio.
— Memórias que ela pode acessar com magia — Loki
acrescentou.
Mobius o encarou, sem ânimo.
— Então, antes disso aqui, vocês tinham um passado — Loki
disse. — Talvez uma família. Uma vida.
Mobius não tirou os olhos dele, assentindo sutilmente. Então
baixou o olhar, e ficou brincando com o lápis nas mãos.
— Boa tentativa — ele falou, baixinho, com a voz carregada de
tristeza, saudade e arrependimento. Ele riu um pouco sozinho. —
Essa foi boa. Que dupla vocês são! Uau! Incrível. Para onde vocês
vão, só tem morte, destruição e literalmente o fim dos mundos. Bem,
vou ter que encerrar esse caso agora, porque não preciso mais de
você — Ele apanhou sem Temp Pad, e Loki ouviu botões sendo
apertados. — É, como você diz, nossos interesses não estão mais
alinhados. — Os olhos de Mobius estavam frios e mortos por dentro.
Então a porta do Teatro do Tempo 5 se abriu, e soldados
apareceram descendo as escadas. Eles seguraram os braços de
Loki e o arrancaram da cadeira.
— Sabe — Loki disse —, de todos os mentirosos desse lugar... e
tem vários aqui... você é o maior de todos.
— Por quê? — Mobius perguntou, digitando em seu Temp Pad. —
Por ter mentido sobre sua namorada?
— Ah, não. Essa mentira consigo respeitar — Loki disse. — Estou
falando das mentiras que conta para si mesmo.
A Porta Temporal avermelhada apareceu de novo, e os soldados
levaram Loki até ela. Ele entrou por ela. Pela primeira vez na vida,
estava cansado de lutar.
CAPÍTULO TRINTA E UM

A Caçadora B-15 se recostou na parede do lado de fora do Teatro


do Tempo 47. Ela estava tonta. Inspirou fundo e expirou. Havia
vários cartazes nessa seção do corredor, desenhos de linhas
grossas sobre a parede de concreto. Um dos cartazes mostrava
fileiras de figuras sem rostos. Debaixo deles, o rosto de um homem
zangado com as palavras:

pegou todos eles?


verifique a deleção completa

B-15 trabalhara toda sua vida para a AVT.


Tinha sido criada pelos Guardiões do Tempo para proteger a
Linha do Tempo Sagrada.
Ou foi o que lhe foi dito.
Agora, de pé na passagem recurvada de concreto, ela se pegou
questionando a própria existência. E a única pessoa que podia lhe
dar respostas era a variante no Teatro do Tempo 47.
Ela se recompôs e ativou o Bastão Temporal. Foi até o Teatro do
Tempo, onde dois soldados mantinham a guarda.
— Abram as portas — ela mandou.
Sylvie estava sentada com os pés na mesa.
— Olá... É... Não sei seu nome... — Ela apertou os olhos. — Ele é
um número, não dá para ler daqui.
B-15 ficou paralisada. Estava difícil de respirar. Aquilo era demais
para ela.
Sylvie se levantou e caminhou até ela, aparentemente sem medo
de morrer ou de qualquer outra coisa. B-15 a encarou, ainda
empunhando sua arma ativada.
Então, ela a guardou, e pegou o Temp Pad. Atrás dela, uma Porta
Temporal branca apareceu.
— Vem comigo — ela disse a Sylvie, atravessando o portal.

Mobius estava de volta ao escritório de Ravonna, sentado no sofá


acolchoado. Uma música suave e relaxante de teremim tocava nas
caixas de som tecnológicas. O chá aromático na xícara de Mobius
estava fumegando e tinha um cheiro delicioso. Tudo estava
exatamente como sempre fora, a luxuosidade, o prazer de estar no
escritório dela, de estar com ela. Mas tinha alguma coisa... Alguma
coisa estava diferente.
Ravonna estava com a pasta do caso de Loki aberta no sofá.
Assinou uma folha, depois virou para que Mobius também
assinasse. Mas ele não tinha coragem de olhar para aquilo, por
alguma razão. Não tinha coragem de olhar para ela.
— Mobius? — ela disse, acomodando-se e sorrindo para ele.
Aquele sorriso. Sempre mexia com ele. Mas, hoje, o rosto dela
estava frio, e sua falta de amigabilidade o deixava desconsertado.
Não o confortava.
— Ah, oi — ele disse, voltando a si e se abaixando para assinar o
nome ao lado do dela.
— Você está bem? — ela perguntou.
— Uhum, estou — Uma mentira. Mas o que ele poderia dizer?
Que estava tendo dúvidas? Que as falhas na sua devoção à AVT
estavam começando a aparecer? Ele não podia nunca, nunca, dizer
nada daquilo para ela.
Ele a entregou a pasta, e ela a fechou, batendo-a na mesa.
— Caso encerrado — ela disse, triunfante. Ela apanhou sua
xícara de chá aromático. — Saúde — ela disse e brindou com a
xícara de Mobius.
— Saúde — ele respondeu.
— A deixar isso para trás — Ravonna disse.
Mobius suspirou.
— Amém — falou baixinho.
— Se pudesse ir a algum lugar, em qualquer época, onde seria?
— Ravonna perguntou, de repente.
Não era comum para ela devanear assim. A pergunta veio do
nada, ou talvez fosse para acalmá-lo.
— Eu posso ir a qualquer lugar, em qualquer época — Mobius
disse.
— Você sabe o que eu quis dizer.
Mobius sentiu um aperto dentro do peito. Ele desviou o olhar.
Quando voltou a olhar para Ravonna, os olhos dela estavam tão
bonitos como sempre. Mas tinha algo crescendo por trás deles,
tempestades distantes em cada uma de suas íris.
— Por que você não quer que eu interrogue a Sylvie? — Mobius
perguntou quieto.
Ele esperava, desesperadamente, que ela não mentisse para ele.
Que honrasse a amizade duradoura deles e dissesse algo
verdadeiro.
— Sylvie? — ela disse, confusa.
— A variante. É assim que Loki chama ela. Por que não me deixa,
sabe, interrogar ela?
— Eu já disse — Ravonna falou, se ajeitando no assento. — Não
podemos arriscar que ela escape novamente.
— Ela não vai escapar — Mobius disse.
Ravonna cerrou os olhos para ele.
— A outra variante fugiu durante seu primeiro interrogatório, não
foi?
— Ai — Mobius disse, tão baixinho que achou que ela
provavelmente não o escutou.
— Vai — Ravonna disse, sua voz recobrando o afeto. — Qualquer
lugar e qualquer época na linha do tempo. Aonde iria?
— Eu gosto do aqui e agora — Mobius disse. — Com você.
Fazendo meu trabalho — ele percebeu, com certo teor de tristeza,
que aquela era sua verdade verdadeira.
— Tá — Ravonna disse, desistindo. Ela deu um gole no chã e pôs
a xícara na mesa. — Os Guardiões do Tempo me disseram — ela
falou — que querem estar presentes na poda da variante, e querem
que você esteja lá também.
Mobius assentiu, erguendo as sobrancelhas.
— Já era tempo — ele disse. — Ótimo. — Fez silêncio, olhando
fundo no líquido âmbar de sua xícara. Então falou: — Quando...
quando foi que você percebeu o que estava acontecendo com a C-
20? — Sabia que não devia perguntar, não devia insistir. Mas essas
perguntas não estavam largando do seu pé. E não iam a lugar
nenhum. E Ravonna era a única pessoa que poderia acabar com a
nuvem de dúvida que Loki fez crescer em sua mente.
— Mobius, o que está acontecendo com você? — Ravonna disse,
rindo, balançando a cabeça.
— Nada — ele disse.
— Nós conseguimos — Ravonna falou.
— Eu sei.
— Os Guardiões do Tempo estão felizes — ela o lembrou.
— Que ótimo — ele disse, palavras falsas como papelão.
— Missão cumprida.
— Missão cumprida — Mobius disse. — É só que... ela parecia
bem quando a vi. Quer dizer, um pouco assustada, mas bem.
— Bem, ela ficou mal bem rápido — Ravonna disse. Ela começou
a ficar defensiva.
— Ok — ele disse, recuando intuitivamente.
— Ok — Ravonna o encarou. — A C-20? A variante? Todas essas
perguntas. Aonde você quer chegar?
— Não sei, eu... É... Parece que tem alguma coisa errada.
Ravonna ficou quieta por um segundo. A música pareceu
intensificar o silêncio ao invés de preenchê-lo.
— Tá — ela disse. — Você quer a verdade? Eu estou tentando te
proteger — ela fez uma pausa. — Você normalmente interrogaria
alguém como ela? Sim. Mas a variante me assusta para caramba, e
não queria que nada acontecesse com você. C-20 perdeu a
sanidade dela. Não conseguia nem formar palavras mais para o fim.
Não ia aguentar se isso acontecesse com você, nem mais ninguém.
— Ela olhou para baixo. — Era isso que você queria ouvir?
— É, se for a verdade — Mobius disse, sincero.
— Você está passando tempo demais com os Lokis — Ravonna
brincou.
— Estou — Mobius disse, rindo. — Eu definitivamente estou
passando tempo demais com os Lokis.
— O que a gente faz aqui é importante — Ravonna disse com
paixão revigorada.
— Eu sei — Mobius disse. Ele sabia, não sabia?
— Quando estamos lá fora, lutando pela Linha do Tempo
Sagrada, também estamos lutando por isso aqui. Por nós. — Os
olhos escuros dela brilhavam. — Amigos contra o tempo. Aliados
até o fim.
Mobius olhou para ela surpreso.
— Você viu toda a existência — ela disse —, assim como eu.
Então você sabe que uma amizade como a nossa é... incomum. —
Ela olhou nos olhos dele. — Uma que vale a pena lutar para manter.
Assim como a Linha do Tempo Sagrada. — Ela tomou outro gole de
chá.
— Belo discurso — Mobius disse.
— Obrigada — Ravonna disse.
— Sabia que era seu agente favorito.
Ravonna riu.
— Foi tão difícil assim de admitir? — Mobius sorriu. A risada dela
fazia tudo parecer melhor. — O que vai fazer com aquele troféu? —
ele perguntou, apontando para a espada que tinham confiscado de
Sylvie, que estava agora na mesa de centro de Ravonna.
— Ah, é verdade! — Ravonna disse.
— Onde vai botar?
Ravonna ficou de pé e pegou a espada, indo até a estante de
artefatos procurar o lugar perfeito para ele.
Enquanto fazia isso, Mobius observava. Quando se certificou de
que ela não veria, ele pegou o Temp Pad dela e deixou o dele no
lugar. Antes que ela se virasse, colocou o Temp Pad dela no bolso
da jaqueta, discreto como um espião.
— Que tal? — ela disse, sorrindo e admirando a organização.
— Perfeito — Mobius disse. — Está ficando sem espaço por aqui
— Ele ficou de pé e bebeu o chá. — Certo, te vejo mais tarde.
Ravonna fez uma careta para ele, depois sorriu e virou a cabeça
de lado.
— Mais uma xícara? — ela disse.
— Já tomei duas, não foi?
— Mobius! — ela disse, andando até ele. — Esse é o caso de
uma carreira! Tem certeza de que está bem?
— Só estou exausto, é cansativo lidar com todos esses Lokis. —
Ele terminou o chá e pôs a xícara na mesa.
Ravonna ficou de mãos nos bolsos, olhando para ele como se
fosse uma obra de arte confusa, mas fascinante.
— Justo — ela disse, eventualmente. — Vamos terminar isso.
— Por todo o tempo — Mobius disse.
— Sempre.
— Te vejo lá em cima. Obrigada pelo chá.
Mobius saiu do escritório, sentindo-se mais inquieto que nunca,
sentindo os olhos de Ravonna queimarem suas costas enquanto
fechava a porta pesada.

B-15 sabia exatamente onde levar Sylvie. A um lugar que


pudessem conversar a sós. A luz da porta se abriu, e ela chegou ao
estacionamento da Roxxcart. O vento chicoteava ao redor delas e a
chuva caía dura como pedra.
— Tá legal. Você queria uma luta justa — Sylvie disse. — Dou
valor.
Não, ela não entendeu. Mas B-15 a faria entender.
— Quando você entrou na minha cabeça — ela contou à variante
— eu vi uma coisa.
Sylvie estava diante dela, com a testa franzida em meio à chuva.
— O que você fez comigo? — B-15 perguntou.
Sylvie não hesitou em dar a resposta:
— Eu te mostrei sua vida antes da AVT — ela disse.
— Isso é um truque. Uma ilusão — B-15 queria muito que suas
palavras fossem verdade.
— Não é, não — Sylvie disse.
— Eu fui criada pelos Guardiões do Tempo — B-15 disse, com
vigor.
Por que será que quando você está perdendo alguma coisa,
enquanto ela desmorona, você quer segurá-la com ainda mais
força? Suas palavras eram entoadas como uma oração.
— Não — Sylvie falou, resoluta. — Eu não consigo criar
memórias. Só usar o que já está lá dentro.
B-15 a encarou. A chuva descia suas bochechas em pequenas
correntes. — Os Guardiões do Tempo tiraram as suas vidas de
vocês — Sylvie disse. — De todos vocês. Vocês são variantes.
As palavras foram como um soco em B-15, e ela sabia que eram
verdadeiras. Ela soube. Desde que Sylvie a encantou, entrou na sua
mente.
O vento uivou.
— Nós somos iguais — Sylvie disse.
B-15 estendeu uma mão.
— Me mostre — ela disse, desafiadoramente.
Sylvie segurou a mão de B-15 e uma luz verde começou a brilhar
entre as palmas delas.
A chuva caía sobre B-15 à medida que a magia penetrava sua
mente, à medida que as memórias — suas memórias, de muito,
muito tempo antes da AVT — iam se revelando a ela. B-15 começou
a tremer, sua respiração ficou engasgada.
Então ela sentiu Sylvie soltar sua mão, e suas memórias
desapareceram. Ela as perdeu todas novamente. Perdeu sua antiga
vida de novo. Abriu os olhos.
Era verdade. Era verdade. Ela era uma variante. Era exatamente
a mesma coisa que sempre caçava. Todos esses anos, ela era uma
Criminosa Temporal. Quanta hipocrisia!
— Eu parecia feliz — disse a Sylvie, a voz embargada.
Sylvie assentiu com tristeza.
— E agora? — B-15 disse.
Naquele instante, trovões rugiram das alturas. Uma resposta.

Mobius caminhava pela vasta biblioteca da AVT, tentando manter


a aparência calma e resoluta, quando, na verdade, só conseguia
pensar no Temp Pad roubado em seu bolso.
O Temp Pad de Ravonna. Ele tinha roubado o Temp Pad de uma
juíza. O Temp Pad de sua amiga.
Ele se esgueirou entre duas estantes, olhou em volta para se
assegurar de que não era observado, então o pegou. Abriu o
instrumento e apertou alguns botões, então digitou o nome da
Caçadora C-20. A tela mostrava uma barra de pesquisa grossa
laranja. E ficou preta antes de mostrar os resultados da pesquisa: o
perfil da Caçadora C-20. Havia uma foto dela à esquerda. À direita,
estavam as palavras situação: falecida.
Ela era tão jovem e tinha sido tão leal à AVT. Não era justo.
Mobius sentiu uma dor crescer em seu peito. Estava quase
fechando o Temp Pad quando percebeu que o perfil tinha arquivos
anexados a ele. Ele clicou em um, e um vídeo começou a passar.
O vídeo estava granulado, mas mostrava C-20 sentada numa
mesa no que parecia ser um dos Teatros do Tempo.
— Você não está me entendendo — ela dizia —, eu estava lá.
Suas palavras eram claras, seu tom direto. Não parecia uma
pessoa cuja mente tinha sido embaralhada.
Ela continuou:
— O que eu vi era real. Foi um lugar em que eu estive.
Mobius franziu a testa para a tela, depois olhou sobre o ombro
para ver se tinha alguém atrás dele. Por algum motivo, sabia que
Ravonna não queria que ele visse aquilo.
No vídeo, a caçadora C-20 estava ficando desesperada.
— Não era a AVT. Era uma memória — ela insistiu. — Eu morei
lá. Eu fui naquele bar. Eu tinha amigos. Tinha uma vida inteira na
Linha do Tempo Sagrada.
A voz do interrogador soou:
— Se acalme — ele disse.
— Me acalmar? Eu sou uma variante! — a Caçadora C-20 disse.
— E você também é. Todo mundo aqui é.
Então Mobius escutou outra voz no Temp Pad.
— Eu vou encerrar isso aqui — ela disse.
Era a voz de Ravonna.
Pôde vê-la no vídeo, bem no limite da câmera, caminhando até C-
20.
Mobius apertou o botão de pausa e deu zoom no rosto dela. Com
certeza era ela.
Queria parar o vídeo porque não queria que ninguém soubesse
daquilo. Não queria que a informação saísse dali. Mentira para ele.
Na cara dele. Ele começou a ficar enjoado. Fechou o Temp Pad e
colocou de volta no bolso.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

O tem o tinha se desfeito; não havia começo nem fim.


Loki não sabia a quanto tempo estiva na Cela Temporal.
Estava ajoelhado no chão, recuperando-se dos golpes mais
recentes à virilha e ao maxilar, murmurando consigo.
— Já ouvi. Já sei de cor — ele disse, levantando-se devagar. Ele
recitou as palavras de Sif: — Você! Seu verme patético, mentiroso,
covarde. Foi você que fez isso! — Ele ficou esperando que ela
aparecesse, de costas para o portal. — Não é? — ele disse.
E aí escutou o som típico de uma Porta Temporal se abrindo.
— O que você está fazendo? — Mobius disse.
— Matando o tempo — Loki disse.
— Você se importa com essa variante? — Mobius disse.
— Sylvie? Não tenho certeza se me importar é o termo mais
adequado. Já conversamos sobre isso lá fora.
— Cala a boca! — Mobius disse.
Loki fez silêncio. Alguma coisa tinha mudado em Mobius.Tinha
algo diferente em seus olhos. Uma certa intensidade. Um certo
medo.
— Acredita mesmo que merece ficar sozinho? — Mobius disse.
Loki manteve a boca fechada.
— Loki!
— Você mandou eu calar a boca!
Mobius repetiu a pergunta:
— Você acredita mesmo que merece ficar sozinho?
— Eu não sei — Loki disse, honesto.
Mobius começou a gritar.
— Pois melhor descobrir logo, porque o Evento Nexus que vocês
dois causaram, o que quer que essa conexão seja, pode destruir
esse lugar por completo. Então a gente precisa entender...
— A gente? — Loki disse.
Mobius respirou fundo.
— Você jura que ela não implantou aquelas memórias na
Caçadora C-20?
— Mobius, não. Eu acredito nela — Loki disse.
— Então eu tenho que confiar em dois Lokis? — Mobius disse.
Loki suspirou e olhou para o outro lado.
— Que tal na palavra de um amigo? — ele perguntou.
Mobius assentiu.
— Você estava certo — ele disse. — Sobre a AVT. Você estava
certo desde o começo. E se quiser salvar ela, precisa confiar em
mim. Pode fazer isso?
— Posso — Loki disse.
— Ok — Mobius arfava como se tivesse corrido para chegar à
Cela Temporal. — Você pode ser quem você quiser, o que você
quiser, até mesmo alguém bom. — Ele fez um momento de silêncio.
— Caso alguém tinha lhe dito o contrário.
Mobius sorriu, e Loki retribuiu, genuinamente, o sorriso.
Então acompanhou Mobius pela Porta Temporal avermelhada.
Mas, quando ela se fechou atrás deles, de volta no Teatro do
Tempo 5, Ravonna esperava por eles, acompanhada de quatro
caçadores.
— Acho que você tem algo que me pertence — ela disse a
Mobius.
— É — Mobius disse, vasculhando os bolsos. — Eu só percebi
que tinha pegado o seu quando cheguei aqui — ele entregou o
Temp Pad ao caçador ao seu lado, que o entregou a Ravonna. — O
que está rolando? — acrescentou. Loki não sabia do que eles
estavam falando, mas com certeza Mobius estava tentando manter
a calma.
Ravonna tinha os dois Temp Pads em mãos, o dela e o dele.
— Qual o problema, Ravonna? — Mobius disse.
Ela o encarou sem dizer nada.
— Sabe para onde eu iria se pudesse ir a qualquer lugar? —
Mobius disse. — Para o lugar de onde eu vim de verdade. É, para
onde quer que minha vida fosse antes da AVT me arrastar até aqui.
Talvez eu tivesse um jet-ski. — Ele olhou para o teto. — É isso que
eu gostaria de fazer.
O caçador em frente a ele ativou sua arma e a ponta dela brilhou
âmbar.
— Ficar passeando por aí com meu jet-ski — Mobius disse.
— Podem ele — Ravonna disse.
Rapidamente, o caçador deu um passo adiante e enfiou o Bastão
Temporal na barriga de Mobius, e ele desapareceu numa chuva de
fagulhas, queimado como papel jogado no fogo.
Loki ficou paralisado, arfando como um animal enjaulado. Não,
não, não. Isso não podia estar acontecendo. Mobius. Ela mandou
podar Mobius.
A expressão de Ravenna era dolorida, mas resignada. Ela olhou
para o lado e se recompôs.
Os caçadores agarraram os braços de Loki e o guiaram para fora
do Teatro 5.
Loki não conseguia tirar os olhos dela.
Não acreditava que ela tinha feito aquilo.
— Esperem por mim no elevador — Ravonna disse, dirigindo-se
aos caçadores.
Eles levaram Loki pelos corredores curvos de concreto, na
direção do elevador. Loki não resistiu; não brigou. Estava difícil ficar
de pé. Seu corpo estava pesado e em choque. Ele olhava para
frente sem foco. Tinha esgotado as piadas. Tinha esgotado os
truques. Não havia truque capaz de mudar a situação. Mobius se
fora.

Sylvie estava sentada no Teatro do Tempo 47, sozinha, quando as


portas se abriram e Ravonna Renslayer entrou. Ela não se dirigiu a
Sylvie; tinha provado há muito tempo que não a via como humana o
suficiente para ser tratada como tal. Em vez disso, ela se virou para
os soldados que guardavam a porta.
— Quem esteve aqui com ela? — perguntou.
— Desculpe, senhora. A B-15 insistiu — um deles disse.
Ravonna fez cara feia.
— Emitam um alerta para a Caçadora B-15 — ela falou para o
caçador ao seu lado. — Ela também foi comprometida pela variante.
O caçador assentiu uma única vez, rapidamente, então saiu,
pronto para seguir as ordens de Ravonna.
Sylvie esperou até que Ravonna encontrasse novamente seus
olhos, e sorriu, levantando as sobrancelhas de leve para mostrar
que não tinha medo.

Os soldados conduziam Sylvie sem que ela soubesse para onde


estava sendo levada, até que ela viu o elevador dourado. Loki
também estava lá, ladeado por dois mosaicos enormes dos rostos
dos Guardiões do Tempo. Dois soldados o estavam segurando
também.
O que está rolando? Sylvie pensou.
— Você está bem? — ela sussurrou para Loki. Ele assentiu num
movimento simples, devagar, que lhe dizia estar vivo, mas
definitivamente não bem.
Ela escutou a voz de Ravonna atrás dela.
— Eu resolvo daqui.
As portas do elevador se abriram com um sibilo metálico. Os
caçadores abriram caminho.
Ravonna entrou no elevador e Sylvie e Loki a acompanharam.
Eles se viraram para as portas enquanto elas fechavam.
Dentro do elevador que mergulhava, estava pouco iluminado e tão
silencioso que Sylvie podia ouvir a respiração de Ravonna. Não se
arriscou a dizer nada a Loki — não ainda, enquanto Ravonna estava
por perto.
Lá estava ela, no elevador que a levaria direto aos Guardiões do
Tempo; ela finalmente conseguiria o que sempre quis, e aquela
parecia uma vitória vazia. Não esperava que fosse acontecer desse
jeito. Não sabia o que esperar.
Em todos os seus anos de fuga e luta, nunca pensou no que fazer
quando chegasse ali... Quando conseguisse o que sempre quis.
Então uma coisa que passou pela mente. Ela falou com Ravonna,
sem se virar para ela.
— Você lembra de mim? — ela disse.
O silêncio se encheu com o barulho do elevador em movimento.
— Lembro — Ravonna disse. O elevador zunia
ameaçadoramente. — O que quer dizer para mim, variante?
— Qual era o meu Evento Nexus? — Sylvie disse — Por que você
me trouxe até aqui?
— Do que isso importa? — Ravonna disse.
— Foi o suficiente para tirar minha vida de mim, levou a tudo isso
— Sylvie disse. Ela engoliu em seco. — Deve ter sido importante.
Então, qual era?
Ravonna levou um bom tempo para responder.
Então, finalmente, disse:
— Eu não lembro.
E foi aí que Sylvie se deu conta de que a AVT realmente não
ligava para nenhuma das variantes. Desde que Ravonna a
prendera, Sylvie estivera sozinha, exilada, alienada.
Dor e raiva queimaram em sua garganta.
E as portas do elevador se abriram.
Do lado de fora, estava enevoado e escuro, a luz azulada e
difusa, como se estivessem debaixo d’água.
Sylvie saiu do elevador, Loki ao seu lado, Ravonna logo atrás.
Através da névoa azulada, viu soldados enfileirados de cada lado
da sala. Diante deles, degraus de pedra levavam a um estrado de
pedra. No estrado, estavam três tronos de pedra, iluminados por
trás por linhas de luz vermelhas anguladas. Em cada trono sentava
uma pessoa.
Os Guardiões do Tempo.
Sylvie não podia acreditar que estava mesmo olhando para eles.
Vinha pensando naquilo há tantos anos.
— Grandiosos Guardiões do Tempo — Ravonna disse, sua voz
ecoando na pedra —, como prometido, as variantes.
Ravonna ficou para trás enquanto Sylvie e Loki se aproximaram
dos governantes supremos da Linha do Tempo Sagrada.
Agora que Sylvie estava mais perto deles, viu que eles não eram
bem pessoas. Pareciam mais com estátuas de olhos brilhantes.
Então um deles, o do meio, falou. Sua voz era grave e
reverberava na câmara de pedra:
— Depois de todo seu esforço, finalmente estão diante de nós.
— O que têm a dizer em sua defesa antes de encontrarem seus
fins, variantes? — disse o da esquerda. A voz dele era ainda mais
grave, e parecia estar vindo de muito distante, ou debaixo da água.
— Foi só por isso que nos trouxeram até aqui? — Loki disse. —
Para nos matar? — Ele cuspiu as palavras. — Já perdi a conta de
quantas vezes fui morto, então podem vir. Façam seu pior.
— Você e sua bravata não são ameaças para nós, variante —
disse o Guardião do Tempo à direita. Sua voz lembrava uma batida
de staccato, pedras caindo sobre um balde vazio.
— Ah, não, eu não acho que vocês acreditam nisso — Sylvie
disse. — Eu acho... — ela deu um passo adiante, mas Ravonna a
puxou de volta no tempo tão rápido que ela se sentiu tonta. Tinha se
esquecido da Coleira Temporal em seu pescoço. Seu peito queimou
de raiva, como brasa dentro dela. Sylvie inspirou longamente. — Eu
acho que vocês estão com medo. — disse às criaturas nos tronos.
— Não, variante — disse o Guardião do Tempo no meio —, vocês
não são nada além de uma decepção cósmica. Deletem eles.
Mas não podia terminar assim. Sylvie não aceitaria. A raiva em
seu peito virou chama.
— Não, eu ainda não acabei com vocês — disse, andando para
frente de novo.
Mas Ravonna mexeu numa chave e a arrastou de volta no tempo,
de novo. Não podia se mover. Estava presa num momento do
tempo, e Ravonna nunca a libertaria.
Então, de trás dela, escutou as portas douradas do elevador se
abrirem. Ravonna continuou fazendo o Destorcedor Temporal voltar
no tempo, mas não estava mais tendo o mesmo efeito.
Liberta, Sylvie virou-se para olhar.
Era a Caçadora B-15.
Era ela.
Ela veio.
Ela veio mesmo, como prometera.
Ela apertou um botão e soltou as Coleiras Temporais de Sylvie e
Loki, e elas caíram no chão.
Os caçadores ao redor de Sylvie e Loki entraram em formação,
prontos para defender os Guardiões do Tempo, mas B-15 os olhou
feio.
— Por todo o tempo — ela disse, a voz oscilando de emoção. —
Sempre.
Então sacou uma espada das costas e jogou para Sylvie.
Sylvie a apanhou. Era tão bom segurar a própria espada
novamente.
Os dois caçadores ao lado do elevador avançaram imediatamente
contra B-15, derrubando-a no chão, mas Ravonna gritou:
— Protejam os Guardiões do Tempo!
Eles largaram B-15 e se juntaram aos outros para cercar Sylvie e
Loki, que agora estavam de costas um para o outro.
Houve um instante em que todos ficaram parados, checando uns
aos outros.
Havia cinco caçadores no total, e todos seguravam Bastões
Temporais. Sylvie sabia exatamente o que suas pontas brilhantes
significavam: ser podada.
Cinco contra dois.
Já esteve em maior desvantagem antes, honestamente.
Ela piscou.
E a luta começou.
Os caçadores se lançaram sobre eles, e Sylvie lutou com toda
sua força, com mais vontade do que nunca na vida. Podia ver Loki
pelo canto do olho; ele estava fazendo o mesmo.
Os Guardiões do Tempo permaneceram sentados e parados em
seus tronos, apenas assistindo. Não correram; nem sequer se
moveram. Não pareciam ter medo. Não pareciam nem estar vivos.
Ravonna ficou próxima ao elevador, com os olhos arregalados, as
rugas se afundando ainda mais.
— Ajudinha aqui? — Loki disse.
Sylvie jogou a espada para ele.
— Aqui!
Loki usou a espada dela para se defender dos três caçadores que
o estavam atacando.
— Venham — Sylvie disse aos outros dois, e lutou com eles com
as próprias mãos, derrubando um e enfiando o Bastão Temporal
dele no corpo do outro.
Loki tinha se deslocado até os degraus de pedra. Ainda tentando
derrotar dois dos caçadores.
Sylvie ficou de frente para Ravonna, e a ameaçou girando o
Bastão Temporal roubado.
Ravonna pegou a isca. Foi andando até o caçador que Sylvie
acabara de matar e pegou o Bastão Temporal dele. Ela rondou
Sylvie com um olhar feroz e inabalável no rosto.
— Dessa vez — ela disse —, eu vou terminar o trabalho.
Ela se lançou contra Sylvie, mas esta foi mais rápida e desviou do
golpe. Avançou na direção de Ravonna com seu Bastão Temporal,
mas Ravonna levantou o seu, e as armas fizeram contato. Golpe,
após golpe, passo, após passo, Sylvie continuou tentando acertar
Ravonna, mas a mulher continuou a se esquivar. Era bem treinada e
ágil. Não seria tão fácil quando Sylvie esperava.
Podia escutar os grunhidos de Loki se esforçando para derrotar
os caçadores nos degraus de pedra.
Então, finalmente, conseguiu golpear o ombro de Ravonna, e o
olhar de espanto no rosto da juíza a fez recuar, abaixar os braços, e
sorrir. Ela tentou um chute no abdômen de Ravonna, mas sua
sequência de sorte tinha acabado. Ravonna a girou e jogou no
chão. Com as costas na pedra fria e Ravonna sobre ela, Sylvie ficou
sem ar, mas usou toda a força que tinha para tirar a arma da mão de
Ravonna, deu um salto e a jogou de costas no chão. Sylvie socou
sua inimiga no rosto, certa de que o golpe encerraria a luta.
Naquele momento, olhou para o alto e viu Loki acertando o último
caçador. O corpo dele caiu no chão.
Acabou.
Mas tinha mesmo.... acabado?
Loki desceu os degraus e entregou a espada a Sylvie.
Os Guardiões do Tempo estavam paralisados em seus tronos até
que um deles falou:
— Você também é uma filha dos Guardiões do Tempo, Sylvie —
ele disse. — Podemos conversar. — Sua voz tinha mudado. Estava
mais calma, calorosa.
Mas Sylvie não levou a sério o gesto, nem por um segundo.
— Ah, é? — ela disse, jogando sua espada com força. A espada
atravessou o ar, partiu o pescoço do Guardião do Tempo e o
decapitou em questão de segundos.
Estranhamente, os outros dois Guardiões do Tempo começaram a
rir.
A cabeça rolou degraus abaixo e parou no chão.
Sylvie ficou confusa.
Não era a reação que esperava.
Ela pegou um Bastão Temporal e mirou no Guardião do Tempo
seguinte.
Mas escutou a voz de Loki atrás de si, dizendo:
— Espere!
Os Guardiões do Tempo pararam de rir, mas outro som apareceu:
o som de uma máquina morrendo, uma caixinha de música
perdendo a corda. O som mecânico de algo pifando. Os Guardiões
do Tempo restantes apagaram em seus tronos. Um silêncio
assustador caiu sobre a sala.
Sylvie se virou, então, para Loki. Estava em pé na base da
escada.
Ela correu até lá e apanhou a cabeça decapitada do Guardião do
Tempo.
— Não — Loki disse.
Mas assim que Sylvie pegou a cabeça, percebeu que havia algo
de errado. Não havia sangue, não havia músculos, não havia veias.
O pescoço cortado do Guardião do Tempo chamuscava. Havia fios
saindo dele. Fios no lugar de veias.
Loki estava pálido.
Sylvie encarava os fios chamuscados.
— São de mentira — ela falou baixinho. — Androides sem
consciência. — Esses eram os seres de quem ela estava fugindo,
que controlaram toda a sua vida desde que era uma criança.
E eles eram só... faz de conta.
— Isso nunca acaba — Loki disse. Olhou para o alto, como se
para um deus onisciente, e começou a respirar mais com mais
força, parecia estar tendo um ataque de pânico. — Então quem
criou a AVT? — ele disse.
Por trás da sua decepção, a raiva se Sylvie se acendeu
novamente. Ela jogou a cabeça para o lado.
— Eu achava que tinha conseguido — ela disse, batendo a
cabeça no chão.
A sala do trono se tornou uma caverna fria e desoladora.
Loki ficou de costas para Sylvie. Depois olhou de novo para ela.
— Sylvie... — ele começou a falar.
— Não me venha com outro discurso encorajador, por favor — ela
pediu.
— Não — ele disse —, eu preciso te contar uma coisa. — Ele
inspirou fundo uma, duas vezes. — A gente vai conseguir resolver
isso.
— Como você sabe?
— Porque — Loki disse — é... — ele apertou as próprias mãos —
bem, lá em Lamentis... — não parecia capaz de pôr as palavras
para fora. — Isso é novo para mim, ãhm...
Sylvie o encarou, balançando a cabeça.
— Que foi?
Ele pôs as mãos nos ombros dela e a olhou nos olhos.
Tá, aquilo era estranho. Ela sentiu seu peito se aquecer, como o
calor do sol...
— O que é isso? — ela sussurrou, olhando nos olhos de Loki.
Loki abriu a boca...
...e a ponta iluminada de um Bastão Temporal perfurou seu tórax.
Seu rosto se contorceu de dor e ele engoliu o ar com força.
Paralisado de surpresa e dor, começou a queimar como papel. E
desapareceu.
Ravonna estava de pé atrás dele, com o Bastão Temporal na
mão.
Sylvie não se virou, nem se afastou. Não tinha mais pelo que
lutar, não de verdade. Apenas olhou tristemente para Ravonna.
Sentia que tudo, absolutamente tudo, tinha sido arrancado dela
pela AVT, incluindo seu plano de matar os Guardiões do Tempo e
acabar com o sistema.
Não tinha mais nada a perder. De verdade. Até Loki se fora.
Mas Sylvie era uma guerreira. Não desistiria. Agarrou o Bastão
Temporal de Ravonna, girou e mirou a ponta brilhante para ela.
Ravonna acabou de joelhos, com as mãos erguidas.
Ravonna a encarou.
— Acabe com isso — ela disse.
— Não — Sylvie falou entredentes. — Você vai me contar tudo.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

Loki acordou ofegante.


Estava morto? Não podia estar, podia? Breve, com um estalo
doloroso, ele se lembrou do que acontecera: Ravonna Renslayer o
tinha podado...
Quando seus olhos conseguiram recobrar o foco, ele viu três
figuras o encarando: um garotinho com uma coroa na cabeça e um
jacarezinho debaixo do braço; um homenzarrão com um martelo na
mão e uma capa de pele sobre os ombros; e um senhor mais velho
trajando um colã verde e amarelo.
O garoto parecia orgulhoso.
O homenzarrão, medroso.
E o mais velho, apenas curioso — ou talvez irritado.
Atrás deles, a paisagem de uma cidade devastada, com prédios
caídos apontando para o céu, tortos e sombrios, contrastando com o
céu nublado. Os prédios tinham diferentes estilos, de diferentes
eras. Estavam cobertos de plantas, vinhas, e folhas retorcidas.
Havia um sentimento de desolação no lugar que Loki nunca havia
experimentado.
Onde eu estou? ele pensou.
Mais uma vez, a AVT o surpreendera.
À primeira vista, a AVT era como qualquer outro prédio ou
instituição governamental, com suas mesas e computadores, seus
funcionários, suas bibliotecas e arquivos, suas regras chatas. Mas,
por trás daquele elevador dourado, Loki descobrira que os
Guardiões do Tempo eram, na verdade, robôs sem vida, tão
facilmente destruídos quanto qualquer máquina malfeita. E agora
ele tinha sido podado, e até mesmo isso não era o que ele pensava
ser.
Sentiu-se ameaçado com aquelas três pessoas o encarando do
alto. Pôs-se de pé.
— Que lugar é esse? — ele disse. — Onde estamos? Quem são
vocês? — as palavras atropelavam umas às outras.
E foi aí que Loki se deu conta de que eles eram Lokis. Todos eles.
Cada um, uma versão diferente de outra linha do tempo.
Foi o senhor idoso de verde e amarelo — o Loki Clássico — que
respondeu:
— Aqui é o Vazio — ele disse com a voz treinada de um ator
Shakespeariano. — Aquele é o Alioth. E nós somos o almoço dele,
venha! — Ele bateu no braço de Loki e começou a correr, e os
outros dois — o menino com o jacaré e o homenzarrão de martelo
— o seguiram.
Alioth? Loki pensou. Nunca tinha ouvido falar daquilo. Ele se virou
na direção que o homem apontara e viu o que pareciam ser nuvens
de tempestade coloridas, tão pretas quanto poeira de carvão, tão
baixas no chão quanto uma névoa.
Então as nuvens... rosnaram.
Dois olhos e uma boca avermelhados brilharam na escuridão
rodopiante. Alioth urrou, abrindo sua bocarra e bocejando como um
leão.
Loki seguiu o conselho do homem e correu.

— Me dê seu Temp Pad — Sylvie vociferou.


Estava na Corte do Tempo com Ravonna Renslayer, que estava
no chão, com a ponta do Bastão Temporal de Sylvie perigosamente
perto do rosto.
Ravonna procurou com as mãos trêmulas em seu bolso e
entregou o pequeno equipamento cor de bronze.
— Quem está por trás da AVT de verdade? — Sylvie disse.
Ravonna olhou feio para ela, contorcendo-se no chão ladrilhado.
— Eu estou tão perdida quanto você...
Sylvie pisou no ombro de Ravonna, e a juíza grunhiu.
Não podia evitar, sorriu. Olhava com desdém a face agonizante
de Ravonna.
— Pobrezinha da juíza Renslayer — ela disse. — Toda sua
realidade destruída — fez uma pausa. — Me diga, como se sente.
— Ela apertou o pé com mais força no ombro de Ravonna —
estando do outro lado da coisa? — Quando Sylvie tirou o pé,
Ravonna se encolheu, dolorida, agarrando seu ombro ferido.
Sylvie olhou ao redor da sala. Tudo parecia tão familiar. Era
familiar. Claro que era.
— Foi aqui, não foi? — ela disse. Ravonna não respondeu. — Foi
aqui que você me trouxe — Sylvie continuou — quando roubou a
minha vida. — Ela examinou a Corte do Tempo 2. Cada tijolo, cada
ladrilho, cada painel de madeira, tudo do mesmo jeito.
Ravonna ficou de pé. Arfava de dor. Estava desarmada,
completamente indefesa.
— Um lugar adequado, então — Sylvie disse. — Para acabar com
a sua. — Ela deu um passo na direção de Ravonna, segurando com
força o Bastão Temporal.
— E se eu disser que Loki não está morto? — Ravonna disse,
rapidamente, recuando e erguendo as mãos num gesto de trégua.
— Não ainda, pelo menos.
— Eu diria que você está mentindo — Sylvie disse, não tinha
paciência para os joguinhos de Ravonna. Não agora.
— Talvez — Ravonna disse — ou talvez a gente queira a mesma
coisa.
— Como ele ainda está vivo? — Sylvie perguntou, dura. — E
como salvar ele vai nos deixar mais perto de entender quem está
por trás da AVT?
Atrás de Ravonna, os rostos dos supostos Guardiões do Tempo
estavam talhados em madeira com grande detalhe e afixados na
parede, pairando como deuses que tudo veem.
Mas Sylvie os tinha desmascarado.
Sabia que eram só tigres de papel. Com dentes de papel e garras
de papel.
— É complicado — Ravonna disse, balançando devagar sua
cabeça.
Sylvie apertou a mão no Bastão Temporal e foi até ela.
— Estou te dizendo isso por minha própria vontade — Ravonna
falou, ficando mais tensa, e recuando um pouco. Ela mostrou as
palmas da mão, rendendo-se.
— Por quê? — Sylvie falou baixinho.
— Porque eu quero saber quem está no comando disso tudo —
Ravonna sussurrou em resposta, com a voz carregada de emoções.
— Quero saber quem mentiu para mim.
Sylvie ponderou aquilo. Podia ouvir o que Ravonna tinha a dizer,
não faria mal. Ela abaixou o Bastão Temporal, devagar.
Ravonna falou assim que a arma não estava mais apontada para
seu coração.
— Quando podamos uma realidade ramificada — ela disse —, é
impossível destruir toda a sua matéria. Então a movemos para um
lugar na linha do tempo em que não vai mais continuar a crescer.
Basicamente, a linha do tempo ramificada não é resetada, é
transferida.
— Para onde? — Sylvie vociferou.
— Para um vazio no fim dos tempos.
Sylvie encarou Ravonna.
— Onde cada instância da realidade colide no mesmo ponto —
Ravonna disse —, e simplesmente... para.
— Por quê? — Sylvie disse, ansiando por mais informação.
Mas Ravonna apenas balançou a cabeça.
— Não sei. — Sua voz tinha um leve toque de ironia quando
disse: — O dogma dita que o fim dos tempos ainda está para ser
escrito. Que os Guardiões do Tempo o estão transformando numa
utopia.
— Bacana — Sylvie disse —, super acreditável. — Ela ergueu as
sobrancelhas e fez uma careta.
— Seja qual for a razão verdadeira — Ravonna disse, de repente
muito séria —, nada jamais volta de lá.
Sylvie franziu a testa.
— Eu posso te ajudar — Ravonna disse —, se você confiar em
mim.
Sylvie travou seus olhos nos dela, e então tirou o Temp Pad do
bolso e o entregou.

Loki, respirando com dificuldades, tentava acompanhar o Loki


Clássico. Eles perambulavam por uma paisagem selvagem, de
ventos fortes, passando por um navio todo coberto de plantas; um
escudo do tamanho de um prédio alto, enfiado na terra; e uma
pequena aeronave coberta de vinhas marrons. Uma neblina pairava
logo acima do chão, rodopiando em seus tornozelos.
— Gostaria de sugerir que a gente faça um descanso breve, para
que eu possa perguntar as várias milhares de perguntas que tenho
para fazer. — Loki disse.
— Não dá — o Loki Clássico disse. — A gente precisa continuar
andando se não quiser morrer. — Ele andava ainda mais rápido.
Era veloz para um idoso.
— Posso apoiar essa ideia — Loki disse, acelerando o passo —,
mas qual é o seu plano?
— Não morrer — disse o Loki Clássico.
— Ok, entendido — Loki falou. — Mas e além disso?
— Não morrer — o homem repetiu, começando a ficar
exasperado.
— Não morrer não é um plano — Loki disse, enquanto faziam seu
caminho por um campo cheio de cabeças gigantes esculpidas em
pedras meio enterradas no chão. Ele parou de andar. — Isso é uma
condição básica de viver. Se são Lokis, deviam sempre ter um
plano...
O menino, o jacaré, e o homenzarrão com a capa de pele o
ultrapassaram.
De trás dele, Loki ouviu o som suave de pássaros carcarejando.
Ficou surpreso ao se ver rodeado de pequenos pássaros
corredores, como codornas ou galinhas da Angola, só que de um
roxo escuro. A cabeça dos passos flutuava logo acima dos
pescoços, na forma e cor de pétalas. O grasnado o distraiu. Ele
ficou olhando os pássaros correndo para todos os lados.
Ele havia parado onde estava, e os demais continuaram andando.
— ALGUÉM, POR FAVOR, PODE ME EXPLICAR O QUE
DIABOS TÁ ACONTECENDO! — ele gritou.
O menino, o jacaré, e os dois homens pararam de andar.
Pareciam um pouco confusos, mas pelo menos tinham parado de
andar. E pelo menos estavam olhando para ele. Tinha conseguido
sua atenção.
— Olha — ele disse —, têm sido muito, muito, muito cansativos
esses últimos dias... meses? Eu nem sei mais quanto tempo faz
desde Nova Iorque. Tudo que eu sei é que eu fui podado, e acordei
aqui, e agora estou cercado de variantes minhas, mais um jacaré,
que é com grande pesar que digo que nem estou achando tão
estranho assim! — O jacaré, Loki notou, também estava usando
uma coroa dourada adornada com chifres recurvados, não mostrou
nenhum sinal de simpatia. — E agora estamos correndo de Deus
sabe lá o que, para Deus sabe lá onde, quando o que eu preciso
fazer é procurar um jeito de voltar pra AVT.
Acima deles, o céu trovoou sombrio, e um rosto avermelhado
brilhou nas nuvens ao longe. Atrás do menino, o céu ficou escuro, e
fez-se o som de um rosnado. Alioth estava se aproximando deles.
O menino fez surgir magicamente uma adaga em sua mão e
saltou na direção de Loki, que caiu para trás, com a ponta dourada
da adaga bem na sua cara.
— Para de reclamar — o Kid Loki sussurrou, nervoso. — Senão
você vai chamar atenção do Alioth.
— Tá falando do monstro no céu? — Loki sussurrou de volta,
apontando para o ponto escurecido dos céus.
Kid Loki fez a adaga desaparecer e balançou a cabeça incrédulo.
Então ofereceu a mão para ajudar Loki a se levantar.
— Obrigado — Loki disse enquanto se limpava.
Kid Loki começou a explicar:
— Aqui é onde a AVT joga todo seu lixo, tudo que eles podam. E
o Alioth. — Ele apontou para as nuvens pretas ao longe, com o
centro piscando numa luz rosa avermelhada. — Ele garante que
ninguém nunca volte. — Os olhos azuis do menino eram
determinados, intensos. Loki viu que dizia a verdade.
— É uma tempestade viva — o homenzarrão com a capa de pele
disse — que consome matéria e energia. Eles mandam realidades
ramificadas inteiras para cá, e elas são devoradas em instantes...
— Estamos num tanque de tubarões — o Loki Clássico disse — e
o Alioth é o tubarão.
O jacaré fez um barulho de desagrado.
O Loki Clássico olhou para baixo, para ele, carinhosamente.
— Ah, não existe isso de tanque de jacaré — ele disse. — Além
disso, é uma metáfora melhor. — Ele ficou ereto e se dirigiu a Loki,
então: — Ele é muito sensível. Como todos nós.
— Espera aí — Loki disse —, está me dizendo que essa coisa é
um Loki também?
— Ah, é — o Loki Clássico disse, sem ironia.
Loki Jacaré olhou para Loki em silêncio, seus olhos fendidos
dourados misteriosos como buracos de fechadura.
Loki abriu os braços, estendendo as mãos.
— Ok, tá legal. Posso aceitar isso — ele parou um momento. —
Por que tem tantos de vocês aqui?
— Porque Lokis sobrevivem — o Loki Clássico riu. — É só isso
que a gente faz.
— Ótimo. Então como saímos daqui?
— Não saímos — o Loki Clássico disse. — Todos nós fomos
presos pela AVT e podados, assim como você. E assim como você
está fazendo agora, todos nós fizemos planos ruins que não
levaram a lugar nenhum.
— Tá, mas vocês já pensaram em usar um Temp Pad? — Loki
perguntou inocentemente.
— Ah, a única coisa que poderia nos tirar daqui com tranquilidade,
sim — o Loki grandão disse em sua capa de pele. — Eles estão por
todo lugar, né, rapazes? — Loki decidiu, naquele exato momento,
que pensaria nele como Loki Orgulhoso.
O Loki Clássico riu. Um pouco alto demais. Kid Loki balançou a
cabeça. E o Loki Jacaré moveu um olho.
— Certo — Loki disse, pondo as mãos no quadril. — E causar um
Evento Nexus? — Ele tinha aprendido tanto sobre a AVT e seu
funcionamento desde que encontrou Sylvie. Queria usar aquele
conhecimento e experiência.
O Loki Orgulhoso franziu a testa, como se aquela sugestão fosse
risível.
— A AVT não liga para o que acontece aqui — ele disse,
balançando a cabeça.
— Certamente tem algo que pode ser feito — Loki disse,
exasperado.
— Tem, sim — o Loki Clássico disse, calmo. — Sobreviver. É só o
que tem. E só isso que sempre teve.
Um pouco sombrio, Loki pensou. Mas, de alguma forma,
observando o céu turvo, o sentimento pareceu apropriado.
— Acabou a conversa. Vamos embora — Kid Loki falou. Então
deu de ombros e falou para Loki: — Faz o que você quiser, eu acho.
— E se virou.
Os três — não, quatro — Lokis começaram a se afastar, e Loki os
observou até que o céu ameaçou chover sobre ele. Não queria ficar
sozinho. Correu até eles.
— Ok, peraperaperaperaperapera — ele pediu.
O Loki Clássico seguia na frente o caminho.
— Por que você usa os chifres? — Loki disse a ele. — Deixa uma
criança mandar em você.
O idoso parou de andar.
— Faz bem em respeitar o menino — ele disse. — Esse é o reino
dele.
Loki pôs as mãos no quadril, incrédulo.
— Sei — disse, sarcástico. — E qual foi seu Evento Nexus, vossa
majestade?
O menino empinou o queixo e deu alguns passos na direção dele.
— Eu matei Thor — disse com orgulho.
Loki congelou, surpreso, e viu os quatro subirem o morro sem ele.
Continuaram andando pelos morros gramados, desolados, sem
vida, e com árvores sem folhas marcando a paisagem aqui e acolá.
Eles costuraram por entre outros artefatos descartados, inclusive um
avião de guerra e um míssil de guerra com a palavra THANOS
pintada nele.
O Loki Clássico os guiou até uma porta redonda que se abria para
o chão abaixo, como a entrada de um submarino ou bunker. Ele
desceu as escadas, e os demais o seguiram.
Loki não sabia como se sentia quanto a ficar preso no subsolo
com outros quatro Lokis, mas não tinha muita escolha. Era aquilo ou
ser devorado por uma tempestade senciente e, ao que parecia,
faminta.
Ele os seguiu, entrando por último, depois de Kid Loki, que estava
carregando o Loki Jacaré nos braços.
Acho que jacarés não são muito bons de escalar escadas, Loki
pensou, enquanto a porta se fechava sobre sua cabeça. E isso é
algo sobre o qual eu nunca pensei que pensaria.
O bunker subterrâneo era confortável, apesar das paredes de
metais e do ambiente desarrumado. Tinha todo tipo de objetos ali,
de diferentes linhas do tempo: cadeiras, máquinas de vendas, e até
uma placa de saída. Loki examinou o lugar, pensando se aquela
seria sua nova casa.
— Então, por que você queria tanto voltar pra AVT? — o Loki
Clássico perguntou.
— Deixou seu propósito glorioso por lá? — o Loki Orgulhoso
brincou.
Loki olhou ao redor, pareciam estar numa pista de boliche
abandonada, mas os Lokis a transformaram num lar. Havia luzes
pisca-pisca penduradas nas paredes, e plantas domésticas
cresciam na direção do teto alto. Havia uma máquina de pinball, e
uma fileira de cadeiras confortáveis, e até mesmo uma banheira
com uma cortina amarrada ao seu redor. No meio de tudo aquilo,
estava uma poltrona. Loki supôs que era o trono do Kid Loki.
— Tipo isso — ele respondeu, sentindo sua garganta se fechar.
Sylvie estava sentada num dos bancos da Corte do Tempo 2, com
os pés em cima do banco à sua frente, segurando o Bastão
Temporal.
Ravonna tinha usado o Temp Pad para conjurar a Senhorita
Minutos, o relógio laranja brilhante com um rosto gentil e um
comportamento ainda mais doce: a mascote da AVT. A Senhorita
Minutos flutuava no ar, pintada como uma ilustração antiga. A voz
de Ravonna ecoava pelo espaço majestoso, nas paredes de pedra,
nos murais representando os funcionários devotos da AVT.
— Senhorita Minutos — Ravonna disse —, preciso de acesso
remoto a uma série de documentos restritos do arquivo.
— Eita, nós! — a Senhorita Minutos exclamou. — Qual o
assunto?
— O início dos tempos. A formação da AVT.
— É pra já — a Senhorita Minutos disse educadamente, como se
aquele não fosse um pedido nada esquisito. Imediatamente, ela
trouxe uma prateleira giratória de pastas amarelas ilustradas e
começou a passar por elas com o dedo.
Sylvie ficou de pé.
— Peraí — ela disse —, e quanto ao fim do mundo?
— É só o Vazio — Ravonna disse.
— E se o Vazio não for o fim? — Sylvie perguntou. — E se tiver
algo além dele?
A Senhorita Minutos, ainda passeando pelos arquivos, olhou de
lado com seus grandes olhos inocentes.
Ravonna olhou para ela, e assentiu lentamente.
A Senhorita Minutos imediatamente puxou uma pasta, e a
prateleira de pastas amarelas desapareceu, sendo substituída por
um plano cartesiano, com uma única linha brilhando horizontalmente
através dele. Na extrema direita do gráfico, onde a linha branca
terminava, estava uma nuvem multicolorida cintilante.
O fim da linha do tempo.
O fim do tempo.
Sylvie examinou a linha luminosa.
— Ficar escondida em apocalipses me camuflou contra a AVT,
porque eu não podia criar uma ramificação lá, né? — Sylvie
perguntou.
Ravonna assentiu.
Sylvie apontou para o gráfico.
— Então se tudo isso ainda está sendo escrito, o que quer que
aconteça é só uma linha do tempo nova. Seria impossível começar
um Evento Nexus ali. Poderia ficar completamente indetectável.
— É isso — Ravonna disse. — É o único lugar em que eles
podem estar.
— Então como vamos além do Vazio? — Sylvie perguntou.
Ravonna soltou um suspiro derrotado, balançando a cabeça.
— É impossível, não tem nada ali para colocar no Temp Pad, não
há destinação.
— Então vamos atravessar ele — Sylvie disse, apontando com a
cabeça para o gráfico.
Ravonna olhou para ela incrédula.
— Isso é suicídio — disse.
— Então acho que não preciso mais de você — Sylvie disse. Ela
passou o Bastão Temporal para a mão direita e se preparou par
avançar em Ravonna, que imediatamente ficou tensa.
— Espera! — A Senhorita Minutos falou com sua voz doce. — E
quanto à nave do Vazio?
— É — Ravonna disse, tensa —, o protótipo.
— Ótimo — a Senhorita Minutos disse —, vou pegar os arquivos.
— A prateleira giratória com pastas amarelas pareceu novamente, e
ela as folheou, seus olhos correndo por elas nervosamente.
— É uma nave construída para resistir ao vazio temporal —
Ravonna explicou a Sylvie. — Na teoria, poderia nos levar até o fim
do tempo...
— Para encontrar o Loki — Sylvie disse.
— E quem está por trás das cortinas — Ravonna disse.
— E matar essa pessoa — Sylvie disse.
— Juntas — Ravonna disse, estendendo a mão.
Sylvie a aceitou, deu um aperto de mão, depois com um pouco de
força, puxando Ravonna na sua direção.
— Senhorita Minutos — ela disse, calmamente —, onde estão os
arquivos sobre essa nave do tempo?
— Estou procurando, meu bem — a Senhorita Minutos disse.
Sylvie segurava a mão de Ravonna, não a deixando se afastar.
— Nada? — ela disse depois de alguns segundos mais.
— Ãhn-ãhn — a Senhorita Minutos disse, parecia nervosa. —
Está bem escondido.
— É altamente confidencial — Ravonna disse. — Talvez eu nem
tenha acesso.
— Ah, não. Acho que você tem, sim. Se for real — Sylvie disse.
Ravonna estava respirando pesado. Ela olhou para a Senhorita
Minutos.
— Falta muito? — perguntou.
— A qualquer instante — a Senhorita Minutos disse, girando e
girando a prateleira de pastas amarelas.
Então as portas da Corte do Tempo 2 se abriram, e um enxame
de soldados lotou o espaço.
— Vão, vão, vão! — um deles gritou. — Se mexam!
Sylvie empurrou Ravonna e correu, saltando para trás do banco
da juíza para se esconder.
Ela escutou um dos soldados falar:
— Tá ferida?
— Eu estou bem — Ravonna disse. — Ela roubou meu Temp
Pad.
Agachada atrás da bancada da juíza, Sylvie ponderou suas
opções.
— Não está pensando em fugir de novo, tá? — Ravonna falou. —
Sabemos onde você se esconde. Mais cedo ou mais tarde, vamos
pegar você. — Ela fez silêncio, e depois seu tom mudou, sua voz
ficou mais suave. — Deve ser tão cansativo — ela disse.
Sylvie revirou os olhos com aquela falsa simpatia.
— Tenho que admitir, por um minuto você quase me enganou —
ela disse no seu esconderijo. — Ou será que tinha um fundo de
verdade? Será que a juíza Renslayer se sentiu traída pela sua
amada AVT?
— Por que você não volta e a gente conversa sobre isso? —
Ravonna disse.
— Claro — Sylvie disse. — Só pedir para o resto do pessoal ir
embora para gente poder resolver isso a sós.
— Tudo bem por mim — Ravonna disse.
— O que aconteceu com encontrar quem estava atrás das
cortinas? — Sylvie disse.
— Vamos fazer o seguinte — Ravonna disse, sua voz ecoava
pela sala cavernosa da Corte do Tempo —, você sai com as mãos
para cima e eu te coloco num loop temporal. Algo não tão ruim.
Você pode viver o resto dos seus dias numa memória boa. — Ela
pausou, deixando que as palavras mergulhassem nela, como uma
adaga na pele. — Você tem memórias boas?
Havia algo particularmente cruel em palavras dolorosas ditas por
vozes adocicadas. Sylvie torceu os lábios, ainda agachada. Sabia
que Ravonna não tinha mandado os soldados sair. Sylvie não era
estúpida; não tinha nem escutado seus passos. E Ravonna sempre
a trairia pela AVT. Ravonna faria qualquer coisa pela AVT. Ela já
tinha demonstrado isso várias vezes. Era seu propósito de vida
trabalhar para eles, com ou sem Guardiões do Tempo.
Sylvie olhou para seu Bastão Temporal.
Um pensamento lhe ocorreu. Uma ideia surgiu na sua mente.
— Só uma, na verdade — ela falou baixinho, sabendo que
Ravonna não a ouviria.
Ela ativou o Bastão Temporal, fazendo sua ponta se iluminar de
âmbar, e saltou para ficar de pé, olhando do alto para Ravonna e
seus soldados, atrás da bancada da juíza.
Ela apontou o Bastão Temporal na direção dos soldados por um
momento, mas virou a ponta brilhante para si e a pressionou em seu
peito.
Era um sentimento estranho, podar a si mesma.
Sylvie sentiu a queimação se espalhar pelo corpo, sentiu-se
desaparecer.
Foi bem doloroso.
Mas era melhor que ser colocada num loop pela AVT, ser uma
prisioneira novamente.
Muito tempo atrás, Sylvie havia decidido: ela nunca mais voltaria a
ficar presa.
Esperava tê-los chocado com o que fez. Esperava que o rosto de
Ravonna tivesse ficado pálido. Mas não tinha como saber.
Ela se fora, presa em algum lugar entre o ser e o não ser. Já
estava a caminho do Vazio.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Ravonna assistiu à variante podar a si mesma e desaparecer numa


nuvem de fagulhas. Ela olhou para o espaço vazio em que Sylvie
estivera a poucos instantes.
O soldado ao seu lado baixou a arma.
— Ela se podou — ele disse, como se não conseguisse acreditar.
Ravonna escondeu a própria surpresa.
— Melhor — ela disse, tentando soar tranquila. — Então ela
morreu também. — Pôs as mãos nos bolsos e saiu da Corte do
Tempo, deixando soldados atônitos para trás.

O bunker dos Lokis era realmente muito confortável, apesar de ter


sido uma pista de boliche um dia. Loki estava sentado num sofá
rajado de veludo, bebendo uma RoxxiSoda. Uma música de
elevador com estática estava tocando num som antigo.
— Então, depois de derrotar o Capitão América e o Homem de
Ferro — o Loki Orgulhoso dizia —, eu reivindiquei meu prêmio:
todas as seis Joias do Infinito.
Loki fez cara feia. Começou a achar que o Loki Orgulhoso era
ainda mais mentiroso que ele.
O Jacaré Loki, que boiava numa piscininha aos pés deles, deu
uma espécie de rosnado.
— Isso significa, na língua jacaré, rosnado e mentiroso ao mesmo
tempo — o Loki Clássico disse.
— Pelo menos meu Evento Nexus não foi comer o gato do vizinho
errado — o Loki Orgulhoso disse, encarando o jacaré.
O Loki Jacaré ficou irritado com ele, rastejou para fora da
piscininha e tentou o morder, mas o Loki Orgulhoso pôs as mãos ao
redor do pescoço da criatura e a segurou. O jacaré se contorceu e
se debateu. Loki se levantou para ajudar, e o Loki Clássico também.
Kid Loki meramente riu, sentado na velharia que era seu trono.
O Loki Clássico conseguiu agarrar a cauda do Loki Jacaré e
lançá-lo de volta na piscininha.
Em poucos segundos, a briga tinha acabado.
Loki ficou de pé, atônito.
O Loki Clássico se sentou e bebeu um gole de RoxxiSoda, como
se nadinha tivesse acontecido.
Kid Loki apontou para ele de seu trono, que era na verdade uma
poltrona coberta de seda vermelha e branca listrada.
— Conte sua história para eles, Loki — ele disse ao Loki Clássico.
— Eu? Ninguém quer escutar isso — o idoso disse.
— Eu... Eu gostaria, na verdade — Loki disse, surpreso com o
próprio interesse. — É só... Eu tenho me perguntado. Porque eu...
Bem, a gente deveria morrer, certo? Thanos nos mata depois de
Ragnarok.
O Loki Clássico foi mais para frente no seu assento.
— Thanos... — ele disse, balançando a cabeça. — Na minha linha
do tempo, tudo ocorreu corretamente, toda a minha vida, até Thanos
atacar nossa nave.
— Então, você não tentou atacar ele? — Loki perguntou,
lembrando-se do que tinha visto no Teatro do Tempo 5.
— Certamente não — o Loki Clássico disse. — Não se ofendam,
meus amigos, mas lâminas são inúteis diante da magia de um Loki.
Elas apenas limitam nosso potencial.
— Mas elas dão uma aparência incrível — o Loki Orgulhosos
disse.
— Ah, claro — o Loki Clássico disse. — Especialmente quando
elas quicam no chão bem antes de o seu pescoço ser partido. — Ele
se virou para Loki. — Eu conjurei uma projeção tão real de mim que
até o Titã Louco acreditou. Então me escondi entre os destroços
inanimados.
Loki arqueou as sobrancelhas.
— Depois que fingi minha morte, apenas vaguei pelo espaço.
Para longe de Thor. Para longe de tudo. Pensei sobre o universo e
meu lugar nele, e me ocorreu que, a todo lugar que eu ia, só a dor
me acompanhava. Então me removi da equação, aterrissei num
planeta remoto e fiquei lá isolado, sozinho, por muito, muito tempo.
— Ele pegou seu copo e tomou mais um grande gole.
— Como a AVT te encontrou? — Loki perguntou.
— Comecei a me sentir solitário. — Uma expressão dolorida se
formou no rosto do homem, e ele riu. — Para falar a verdade, senti
falta do meu irmão. E me perguntei se ele também sentia a minha,
se alguém sentia. Mas assim que dei meus primeiros passos para
sair do planeta, a AVT apareceu. Porque nós, meus amigos, temos
apenas um papel: Deuses dos Excluídos. E nada mais. — Ele
bebeu o restante do refrigerante, depois ergueu a lata vazia no ar.
— Ao Deus dos Excluídos! — disse amargamente.
Kid Loki levantou a caixinha de suco e tomou um gole de canudo.
O Loki Orgulhoso tomou um gole da própria bebida.
Mas Loki balançou a cabeça e pôs de lado sua RoxxiSoda. Ele
ficou de pé, resoluto.
— Eu vou embora — disse.
— Embora para onde? — o Loki Orgulhoso perguntou.
— Para fora desse lugar. Para fora do Vazio. Voltar à AVT.
Podemos ser bons em sobreviver, mas também somos bons em
escapar. Aposto que isso me dá uma chance decente. — Ele se
dirigiu para a saída do bunker.
— Você não vai conseguir — o Loki Clássico disse, sem emoção.
— Vai ser brutalmente assassinado.
— Então que seja — Loki disse. — Esse já era meu destino
mesmo.
— Você é diferente — Kid Loki disse. — Por quê?
— Não — Loki disse, andando de volta na direção dele —, não
sou, sabe? Sou igualzinho, de verdade. — Ele apontou para eles. —
Sou igualzinho a vocês. — Ele inspirou fundo. — Algum de vocês já
encontrou uma mulher variante nossa?
O Loki Clássico cruzou os braços e balançou a cabeça.
— Parece assustador.
O Loki Orgulhoso fez uma careta.
Intrigado, Kid Loki ficou de pé.
— Ah, ela é — Loki disse, sorrindo ao pensar em Sylvie. — Mas é
isso que é ótimo sobre ela. Ela é diferente. Ela não está tentando
tomar o poder da AVT. Está tentando destruí-la. E ela precisa de
mim.
Kid Loki inclinou a cabeça, curioso, ainda encarando Loki.
— Agora, você disse — Loki apontou para ele — que o Alioth é o
que nos mantém aqui.
Kid Loki assentiu sombriamente.
— Você disse que ele tem vida — Loki disse, apontando para o
Loki Orgulhoso. — E você — ele disse apontando para o Loki
Clássico —, você disse que ele é um tubarão. Bem, se está vivo,
pode morrer. Então eu vou matar o tubarão. Vou matar o Alioth. —
Ele gesticulou para seus novos amigos. — E toda ajuda é bem-
vinda — disse, encerrando seu discurso com a tentativa de um
floreio dramático.
O Loki Clássico e o Loki Orgulhoso se entreolharam por um
segundo. Então os dois começaram a gargalhar e se jogaram para
trás em suas cadeiras. O jacaré grunhiu de leve na sua piscininha.
Kid Loki se juntou a eles, rindo descontroladamente e dando tapas
na barriga.
O Loki Clássico jogou uma perna para o alto.
— É isso aí! É!
Loki saiu furioso até a escada de saída.
— Monstros. — Ele disse baixinho. Então começou a escalar as
escadas.
A porta pesada de metal para o submarino tiniu e rangeu quando
Loki a abriu.
Ele olhou para cima, para fora do submarino...
E se deparou com outros nove Lokis. No centro do grupo estava
um Loki que parecia bastante com ele, exceto por estar usando os
chifres dourados e um colete.
— Ah — esse novo Loki disse, com as mãos nos bolsos, olhando
para Loki como se ele fosse um inseto num frasco —, olá. Qual de
nós é você?
Loki soltou um suspiro curto.
— Isso é um pesadelo — ele disse.

Sylvie acordou num monte de troncos e galhos emaranhados,


com o som de trovões retumbando nos ouvidos. Ela se levantou
devagar, tirando um galhinho do cabelo.
Parecia estar dentro de algum veículo quebrado. O vento
assobiava, e o céu ribombava. Pelo jeito uma grande tempestade
estava por vir. Acima dela, o teto do veículo parecia ter sido
arrancado, e samambaias verdes estavam crescendo nas bordas.
Um raio iluminou brevemente as janelas, e então uma sombra
escura se moveu sobre ela.
Sylvie se levantou rapidamente, contente por notar que suas
pernas ainda estavam a sustentando. O veículo era um ônibus, e
Sylvie caminhou pelo corredor, olhando para fora pelas janelinhas
embaçadas de poeira.
Ela foi até a frente do ônibus e chutou o para-brisa. Ele se
despedaçou, e ela saiu pelo capô. De pé nele, ela examinou os
arredores.
O ônibus estava afundado, roda e tudo, no pasto verde. Havia
outras estruturas abandonadas ao seu redor: uma ponte tombada
ao longe, um celeiro desabado mais à frente; e elas também tinham
sido engolidas por terra, grama e outras plantas. Árvores altas e
perenes apontavam seus galhos para o alto, para o céu cinza-aço.
Então, aqui era o Vazio. Esse era o cemitério da linha do tempo.
Acima dela, o céu era da cor do ferro. Mas, de trás, uma nuvem
preta ondulante deslizava até ela, esticando e se amontoando como
uma massa sovada, tão escura quanto poeira de carvão.
Estava se movendo rápido.
Estava vindo atrás dela.
Sylvie se jogou da ponta do ônibus e começou a correr. À medida
que a tempestade se aproximava, tentáculos macios de nuvem e
névoa cinzentos a cercavam, e ela esticou uma mão e os encantou,
com o brilho verde ao redor dela. Num único segundo, Sylvie viu
flashes de imagens: montanhas gigantescas de pedra escarpada;
um castelo gótico. Mas a visão na mente da tempestade
desapareceu rapidamente.
Ela continuou correndo para o alto de um morro gramado,
parando apenas por um momento para olhar sobre os ombros.
Quando chegou no topo, viu uma ponte quebrada, tombada, tão
majestosa quando a ponte Golden Gate em São Francisco. Raios
partiram o céu roxo.
Ele escutou uma buzina. Uma buzina mesmo.
Logo após a planície, correndo por uma estrada estreita, ia um
carrinho. Sylvie respirou fundo e correu o mais rápido que pôde na
sua direção, com a tempestade escura deslizando na sua direção,
quase beijando seus calcanhares. Ao se aproximar do carro, notou
que era uma perua azul pálido, com um pedaço gigante de pizza de
papel machê sambando de um lado para o outro, preso numa mola
no telhado do veículo. O motorista fez uma curva fechada e virou o
carro para que parasse diante dela. Ela acelerou no último trecho e
se jogou no banco de trás. O motorista imediatamente acelerou,
virando as rodas do carro para longe da tempestade feroz.
Dentro do carro, Sylvie recobrou o fôlego.
— É você! — ela disse.
O motorista não era ninguém menos que Mobius M. Mobius.
Ele olhava sério para a estrada, com o pé fundo no acelerador,
tentando manter estável o volante enquanto atravessavam o
gramado.
— Pode fechar a porta? — ele disse. — Ainda estamos no meio
de um probleminha.
Sylvie bateu a porta, lutando e grunhindo de esforço contra o
vento.
Mobius ainda estava falando:
— Inclusive, você devia ter mais cuidado antes de se jogar no
carro de um estranho desse jeito.
A tempestade de nuvens negras seguia bem atrás do carro, e
Mobius acelerou.
Um tentáculo de nuvem escura se separou da tempestade como
uma serpente e mergulhou ao redor do carro, tomando a dianteira.
— Cuidado! — Sylvie apontou.
— Estou vendo, estou vendo — Mobius disse.
— Está mesmo? Porque você está indo bem na direção dela.
— Por Deus, você realmente é um de você — Mobius disse. —
Se segura! — Ele virou o volante com força para a esquerda,
desviando da tempestade que os perseguia, depois virou de novo
quando mais tentáculos de nuvem escura apareceram do outro lado.

Loki não teve escolha. Tinha deixado mais nove Lokis entrarem
no bunker. O líder deles se parecia muito com ele, e bastante com
um presidenciável dos Estados Unidos da América.
O Loki Presidente e todos os seus lacaios tinham crachás com a
palavra LOKI escrita neles. Dentro do bunker pista de boliche, uma
música suave e alegre tocava, o que deixava ainda mais sinistro o
sorriso vitorioso do Loki Presidente.
— Seu idiota! — o Loki Clássico disse. — Trouxe os lobos direto à
nossa casa!
Loki apenas levantou as sobrancelhas.
— Nós preferimos cobras a lobos — o Loki Presidente disse.
— Já comi dos dois — Kid Loki falou. — Morrem do mesmo jeito.
Loki tinha que admitir: o menino tinha brio.
O Loki Orgulhoso segurou a nuca de Kid Loki e pôs o martelo
dourado perto do rosto do garoto.
— Peço desculpas, meu senhor — ele disse entredentes. — Eu o
traí. E agora, eu sou rei.
Loki ficou boquiaberto.
Isso é um circo rematado, ele pensou.
O Loki Presidente deu um passo adiante.
— Quanto a isso... — ele disse. Atrás dele, seus lacaios
levantaram seus machados, martelos e espadas, todos mirando o
Loki Orgulhoso.
— Não está falando sério — o Loki Orgulhoso disse, deduzindo
imediatamente o que ele queria dizer.
— Ora, vamos — o Loki Presidente disse. — O que você
esperava? — Ele sorriu, manipulador.
— Esse não era o acordo! — o Loki Orgulhoso chiou.
Loki pôs as mãos no quadril, assistindo à cena. Teve que olhar
para o chão envergonhado.
— Eu te dei a localização — o Loki Orgulhoso disse, ultrajado. —
E em troca de abrigo e suprimentos você me dá seu exército e eu
ocupo o trono.
— Ah, é — o Loki Presidente disse. — Não é um acordo muito
bom. Que tal esse aqui? — Ele fez uma pausa. — Meu exército,
meu trono. — Ele pareceu muito contente de si.
Um de seus lacaios disse:
— Quanto a isso... — e o bando inteiro de capangas malvestidos
virou as armas para ele.
— Ei — ele vociferou —, seus cabeças de vento, duas caras
incompetentes! Tínhamos um acordo!
Loki cruzou os braços, balançando a cabeça e vendo o drama se
desenrolar.
— Pelo amor de Deus — o Loki Orgulhoso disse.
O Loki Jacaré rastejou para fora de uma pilha abandonada de
pinos de boliche, soltando um rugido grave do fundo da garganta.
— Por que diabos tem um jacaré aqui? — o Loki Presidente
gritou.
— ELE É UM LOKI! — Kid Loki, o Loki Clássico e o Loki
Orgulhoso gritaram em uníssono.
O jacaré saltou no Loki Presidente, mordendo a mão dele e se
debatendo como um peixe num anzol. O Loki Presidente urrou e
grunhiu, tentando se soltar da criatura, depois puxou, com força, a
mão de dentro da boca do jacaré.
A mão, entretanto, fora arrancada e estava na boca do jacaré.
Sangue jorrava do toco moído na ponta do braço dele.
O Loki Presidente gritava com uma soprano. O som agudo doeu
no ouvido de Loki.
E então a luta começou de vez.
O Loki Presidente seguiu gritando enquanto lacaios se viravam
contra lacaios, e o jacaré saltou para a segurança dos braços de Kid
Loki.
Loki, o Loki Clássico, e Kid Loki, que segurava o jacaré, se
esgueiraram pelo caos até a saída. O Loki Orgulhoso derrubou um
dos lacaios, gritando na cara dele e rindo, o que intensificou ainda
mais a briga. Loki ficou grato pela distração, contudo, enquanto ia
furtivamente na direção da saída. Em meio ao caos, escutou o Loki
Orgulhoso gritar:
— O glorioso propósito!
O Loki Clássico conjurou uma cópia perfeita de si mesmo, assim
como cópias de Kid Loki, do jacaré e de Loki. Foi bem
impressionante, na verdade.
O Kid Loki falso arremessou o jacaré falso num dos lacaios, e o
Loki Clássico falso lançou uma esfera de magia verde noutro.
— Vamos — o Loki Clássico verdadeiro disse, e o Loki verdadeiro
o seguiu; eles foram seguidos pelo menino de verdade, que ainda
segurava o jacaré de verdade.
O Loki Clássico conjurou uma porta do nada, e eles a
atravessaram, com o barulho da confusão aumentando lá trás.
— Toma isso, Loki! — alguém gritou.
Loki olhou para trás uma última vez, para o caos criado pelos
Lokis.
Depois entrou pela porta, seguindo seus amigos.
O portal mágico os transportou para as colinas cobertas por
grama acima do bunker. O Loki Clássico não perdeu um segundo.
Saiu marchando irritado.
— Maldição! — ele disse. — Animais, animais! Mentimos, e
trapaceamos, e cortamos a garganta de qualquer pessoa que confia
em nós, e para quê? Poder. O glorioso poder. O glorioso propósito!
— Sua voz ficou triste. — Não conseguimos mudar. Estamos
doentes, todas as nossas versões estão. Para sempre.
— E — Kid Loki disse — sempre que um de nós se arrisca a se
consertar, ele é mandado aqui para morrer.
— É por isso que preciso sair daqui — Loki disse. Esperava que
eles entendessem agora. Esperava que lhe dessem ouvidos. —
Nada disso vai mudar até que alguém pare a AVT.
— E você confia nessa mulher? — o Loki Clássico disse.
Loki sabia que ele estava se referindo a Sylvie.
— Ela é a única de nós em que eu realmente confio — ele disse.
— E, neste momento, acredito que ela é nossa única chance de
parar a AVT.
— Para mim, isso é o bastante — Kid Loki disse.
Fez-se um momento de silêncio.
— Ok — o Loki Clássico disse —, ok. A gente te ajuda, mas... —
Ele olhou de testa franzida para Loki. — Se aproximar do Alioth é
uma sentença de morte. — Ele fez uma pequena pausa. — A gente
te leva até ele, mas só isso.
Loki assentiu. No horizonte distante, nuvens densas rodopiavam
como tinta preta. Não culpava o idoso por não querer chegar muito
perto. Realmente não culpava.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Mobius tinha finalmente despistado a tempestade agressiva. Sylvie


via o redemoinho de massa escura no céu elo retrovisor
— Todo esse tempo — Mobius disse — eu achava mesmo que
nós éramos os bonzinhos.
Sylvie prendeu uma risada na garganta.
— Aniquilar realidades inteiras, transformar garotinhas em órfãs,
feitos clássicos de herói.
— Bem, acho que, quando se pensa que os fins justificam os
meios, não tem muito que você não vai fazer — Mobius disse,
pensativo, tentando manter o controle do carro. — E, a propósito,
você também aniquilou coisas, tá.
— Eu fiz o que tinha que fazer — Sylvie disse, olhando torto para
ele.
— É, eu também — Mobius disse.
— Você me perseguiu como um cão de caça.
Houve um momento de silêncio, penas o barulho do carro.
— Me desculpa por isso — Mobius disse.
O carro balançava pela imensa paisagem desolada de realidades
abandonadas.
— Quando eu me podei — Sylvie disse —, pensei que
conseguiria achar o Loki. Mas aquela tempestade. Aquela coisa. Ela
já deve ter pegado ele.
— Você acredita mesmo nisso? — Mobius disse, olhando para
ela.
— Não importa — ela disse. — A única coisa que importa agora é
sair daqui e encontrar quem está por trás disso. — Ela olhou para
trás, pelo vidro traseiro.
— Ótimo — Mobius disse. — E como fazemos isso?
— Dando a volta — ela disse.
— Dar a volta? — Mobius disse. — E o quê? Ir até aquela nuvem
raivosa?
— É — Sylvie disse. — Acho que ela pode ser a resposta. — Ela
se recostou no assento, levanto o rosto para perto do de Mobius. —
Vamos voltar para ela.
Mobius suspirou, mas virou o carro e o apontou na direção da
tempestade faminta de novo. Ao longe, uma coisa grande de metal
caiu do céu; um arco-íris de luz brilhou ao redor dela por um instante
antes que acertasse o chão. Mais um descarte.
Ele pensou que entendia a AVT. Pensou que conhecia seus
segredos. Mas não conhecia nem os próprios segredos, quanto
mais os dos outros. De alguma forma, Mobius sabia: o que ele
descobrira era apenas a ponta do iceberg.

Loki cruzava o Vazio com outros três Lokis.


Acabou pensando que foi Sylvie que o ensinou a fazer aquilo, a
andar ao lado de versões dele que talvez nunca entenderia. Ele
esperava, um dia, poder vê-la novamente, mesmo se fosse tão
improvável quanto escapar do Vazio.
— Preciso dizer — o Loki Clássico falou — que é estranho andar
na direção daquela criatura imensa. Você tem um plano de ação?
— Entrar — Loki disse —, encontrar o coração ou cérebro ou sei
lá, e depois, sabe, acabar com ela.
— Bem... — Kid Loki disse.
— Tá legal, só porque não é complicado não significa que é ruim
— Loki disse, lembrando-se do comentário de Sylvie sobre planos
terem múltiplas etapas.
Eles pararam ao alcançar o topo de uma colina. Postes
telefônicos inclinados em ângulos irregulares formavam uma fila
atrás deles.
— Também não quer dizer que é bom — Kid Loki disse.
O jacaré rosnou.
— Viu? — Loki disse, apontando para o réptil. — Ele apoia o
plano.
— Ele está rezando — o Loki Clássico disse. — Acha que vamos
morrer.
Eles encararam o vale à sua frente. Do céu, uma luz colorida
brilhou, e um navio de guerra gigante apareceu do nada,
despencando para o chão.
Os marinheiros a bordo corriam pelo deque, apavorados.
— Todas as mãos para as estações de batalha! — um deles
gritou.
O navio aterrissou diretamente no caminho de Alioth. De uma
colina distante, a tempestade veio rugindo, cobrindo o chão como
uma torrente poluída, correndo na direção do navio.
Loki encarou o monstro.
— Alioth é como qualquer outro animal — ele disse aos novos
amigos. — Vai atrás da presa maior primeiro. E, enquanto ele está
ocupado com ela, podemos nos aproximar furtivamente e, ãhm...
Mas a voz de Loki desvaneceu ao ver a tempestade voar até o
navio.
Os tripulantes no deque foram arremessados para longe com a
força dela. As armas que atiravam foram engolidas. A grande
tempestade senciente devorou o navio e seus marinheiros em
segundos. Quando a criatura terminou, flutuou para longe, tão
naturalmente quanto qualquer fenômeno climático.
— Ok — Loki disse, ofegando de medo. — Talvez a gente, é...
precise pensar um pouco sobre isso, que tal?
Os outros Lokis concordaram, desanimados.
Então Kid Loki se virou.
— Um carro — ele disse.
Loki também se virou.
— O quê? — de todas as coisas possíveis de se ver no Vazio, por
alguma razão, um carro comum parecia a mais improvável.
— Na linha do horizonte — o Loki Clássico disse.
— Isso é ruim? — Loki perguntou.
— Bem — Kid Loki disse com tranquilidade —, normalmente
significa saqueadores canibais, ou piratas canibais.
— Encantador — Loki disse, vendo os faróis do carro se
aproximarem. — Eles estão diminuindo a velocidade.
— O que estão fazendo? — O Loki Clássico disse.
— Mantenham a guarda — Kid Loki disse.
O carro, que tinha algo parecido com um pedaço de pizza gigante
preso nele, parou, e duas pessoas saíram dele.
Loki apertou os olhos para ver melhor.
— Sylvie — ele disse e saiu correndo na direção dela.
Mal escutou o que os Lokis atrás dele estavam dizendo.
— Eu não estou entendendo — o Loki Clássico disse. — Ele é um
covarde, ou está sendo corajoso?
— Não tenho certeza — Kid Loki disse, também apertando os
olhos no meio do vento.
— Vamos — o Loki Clássico disse.
Loki avançou colina abaixo na direção do carro, na direção de
Sylvie.
— Você está vivo — ela disse.
Loki tentou deduzir se ela estava contente ou apenas surpresa.
— O que aconteceu? Você está bem? — ele disse. Então outra
figura veio do outro lado do carro — Mobius! — Loki disse, depois
olhou para Sylvie. — Como vocês...
— A gente achou que você gostaria de reforços — ela disse. Seu
sorriso era cansado, mas genuíno.
Loki pôs as mãos no quadril e olhou para a ela com seriedade.
Queria lhe dizer como estava feliz em vê-la. Queria dizer o que
estava sentindo esse tempo todo...
Mas então Sylvie viu os outros Lokis descendo a colina. Ela pôs a
mão em sua adaga.
— Não, não, espera, espera, espera — Loki disse. — Esses são
meus amigos. — A palavra não parecia certa para ele, entretanto,
não completamente. — Bem, eles são... é... Qual seria a melhor
forma de dizer isso? Eles são... é... nós como uma criança, nós no
futuro, e nós como um jacaré.
O jacaré na grama rosnou baixinho.
Sylvie levantou as sobrancelhas.
— É melhor não perguntar — Loki disse.
— É só jogar uma pedrinha aqui que acerta um Loki — Mobius
disse, e Loki se deu conta de que estava sentindo falta do seu
senso de humor.
Sylvie cruzou os braços e encarou os outros três Lokis.
— Então vocês todos estão indo atrás da nuvem monstro gigante,
também?
— Bem — Loki disse —, ainda não decidimos como vamos matar
ela, mas...
— Desculpa, como é? Matar ela? — Sylvie disse, perplexa.
— É — Loki disse. — Vamos matar o Alioth.
— Ai, meu Deus — Sylvie disse. — Esse era o seu plano?
— Era — Loki disse. Podia notar que estava entrando na
defensiva.
— E vocês aceitaram isso sem questionar? — Sylvie disse,
dirigindo-se ao Loki Clássico e Kid Loki.
— Eu tinha minhas dúvidas — o menino falou.
— Possivelmente perigoso — o idoso admitiu.
O jacaré rosnou novamente.
— Tá legal, tá certo, mas então qual é o seu plano? — Loki
perguntou a Sylvie.
Ele tinha que admitir que os planos dela normalmente eram
melhores que os dele.
— Acho que a pessoa que estamos procurando está além do
Vazio, no fim do tempo — disse com a confiança de sempre. Ela
pendeu a cabeça. — E se estiver, aquela coisa é só o cão de guarda
protegendo a entrada.
— Ok, então, é... como a gente passa pelo cão de guarda? —
Loki perguntou.
— Eu vou encantar ele — Sylvie disse, sorrindo com a própria
competência.
Loki pendeu para frente, deixando escapar uma risada surda.
Sylvie revirou os olhos.
— Isso é insano, certo? — Loki disse. Ele olhou para Mobius
buscando apoio.
— Tão insano quanto o quê? — Sylvie disse. — Picotar uma
nuvem gigante até a morte?
— Escuta — Loki disse —, eu estou aqui há mais tempo que
você...
— Eu vou encantar ela — Sylvie insistiu.
Loki buscou apoio em Mobius outra vez, mas ele apenas sorriu do
seu jeito relaxado de sempre.
— Ela está bem confiante — ele disse, e Sylvie concordou com
um menear leve de cabeça, sorrindo.
Loki pôs as mãos no quadril e deixou a boca aberta, mesmo que
não devesse estar muito surpreso. Sylvie era, afinal de contas, a
pessoa mais irritante, talentosa, maravilhosa — e sim, confiante —
que ele já conhecera. Ela nunca o escutava. Ela era insuportável.
Ela era... brilhante. Sempre fora brilhante.
Se alguém podia encantar uma tempestade senciente guardando,
literalmente, o fim do mundo, essa pessoa era Sylvie.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Ravonna Renslayer tinha se trocado e vestia um novo uniforme


engomado da AVT. Tinha se lavado e tirado a poeira e o suor do
corpo. Seu cabelo estava amarrado num coque apertado.
A ora ue o caos tinha acabado era hora de voltar ao trabalho É
claro que a natureza do que seu trabalho requeria tinha mudado um
pouco, mas aquilo não importava. Estava de volta ao seu cargo, de
volta a sua zona de conforto, alinhada ao seu propósito como juíza
da AVT. Verdadeiramente nunca se sentira melhor.
Ela entrou no Teatro do Tempo 8.
— Nos deixe sós — ela falou para os soldados. Eles a
obedeceram, e as portas duplas se fecharam atrás dela. Ela
atravessou a sala e ficou parada em frente à Cela Temporal que
tinha sido instalada numa das paredes. Do lado de fora, a Cela
Temporal parecia uma parede rubra e lisa. Mas ao apertar um botão
no Temp Pad, a parede laranja se partiu ao meio e se abriu como
um elevador. Dentro da cela estava a Caçadora B-15. Ainda estava
com seu uniforme da AVT, mas não estava mais do lado dela,
Ravonna sabia disso graças a sua traição. B-15 estava sentada de
pernas cruzadas no chão, com a cabeça caída como se estivesse
envergonhada.
Bom, Ravonna pensou. Ela deve sentir vergonha.
Tinha abandonado seu dever com a AVT. Tinha agido
desonrosamente. E pagaria por isso.
B-15 olhou para cima, e nos olhos de Ravonna. Sem piscar, ela
disse:
— Por que estou presa aqui?
— Você libertou a variante — Ravonna disse. Não acreditava que
tinha que explicar. — Você não foi leal à AVT.
— Não fui leal?
— Achou que não seria punida por aquilo?
— Não fui leal a quem? — B-15 disse. As luzes alaranjadas da
Cela Temporal brilharam ao redor dela. — Você estava na câmara
dos Guardiões do Tempo! Eles não eram reais.
— E por que você acha que isso muda alguma coisa? — Ravonna
disse.
A verdade era, entretanto, que seus próprios sentimentos eram
um pouco mais complicados que aquilo. Acreditara nos Guardiões
do Tempo tanto quanto os demais. Tinha ficado tão chocada quanto
Sylvie quando descobriram que eles eram apenas autômatos sem
vida. Sentira-se traída. Mas aquilo não tinha mudado o fato que ela
acreditava na missão geral da AVT. Se os Guardiões do Tempo não
estavam mesmo no comando, alguém estava, obviamente. E ela
trabalhava para este alguém. Queria saber quem esse alguém era.
Mas aquilo era complicado demais para explicar à B-15, então
Ravonna resumiu tudo numa simples e tragável pergunta.
De todo jeito, nada tinha mudado em termos práticos. Ravonna
Renslayer ainda acreditava na AVT. E, até onde ela sabia, a AVT
também acreditava em Ravonna Renslayer. A AVT era a sua vida.
A Caçadora B-15, entretanto, não estava convencida.
— Isso muda tudo — ela disse. — As pessoas precisam saber a
verdade.
— Não — Ravonna disse. — A AVT precisa de estabilidade. E,
até que possamos entender o que está acontecendo, é isso que ela
vai ter. — Ela deu um passo na direção de B-15. — Então você —
ela falou devagar — precisa me contar tudo.
O rosto da Caçadora B-15 era tão ilegível quanto pedra.
— O que você quer de mim exatamente?
— Você teve uma conexão com a variante — Ravonna disse,
calma. — Quero que me conte a motivação dela.
— A motivação dela é vingança — B-15 disse. — Matar os
Guardiões do Tempo. Mas acabou que eles eram uma mentira, caso
tenha esquecido. Então ela deve ir atrás de quem quer que os tenha
criado.
Então queremos a mesma coisa, Ravonna pensou.
Uma fagulha de verdade deve ter passado por seu rosto, porque a
Caçadora B-15 a encarou, depois riu.
— Não tem nada a ver com proteger a AVT, tem?
Ravonna encarou de volta, não querendo soltar nem mesmo a
menor ponta de sua verdadeira vontade.
— Você só quer encontrar quem está por trás de tudo isso
também — a Caçadora B-15 disse. Quando Ravonna não
respondeu, B-15 riu e balançou a cabeça. — Você nunca vai
encontrar. Não antes dela.
— E por que você acha isso? — Ravonna retrucou. Não queria,
mas B-15 conseguiu lhe deixar irritada.
— Você só quer encontrar — B-15 disse —, ela precisa encontrar.
Ravonna não sabia o que responder.
Ela fechou a Cela Temporal de novo e deixou o Teatro do Tempo
8, andando depressa pelos corredores curvos de concreto. Ela tirou
o Temp Pad do bolso e chamou a Senhorita Minutos, que apareceu
no ar ao lado dela, brilhando alaranjada como uma televisão
pequena.
— E aí? — A Senhorita Minutos disse, na sua voz amigável usual.
Ravonna continuou andando, e a Senhorita Minutos flutuando no
ar ao seu lado.
— Preciso de todos os arquivos sobre a fundação da AVT —
Ravonna disse. — Tudo desde o início do tempo.
A Senhoria Minutos pareceu preocupada.
— Oras, esse é um pedido bem grande — ela disse.
— Quem quer que tenha criado esse lugar está em perigo —
Ravonna vociferou. — Preciso encontrá-los.
A expressão de ceticismo no relógio brilhante tornou-se de
preocupação.
— Ok — ela disse. — É pra já, senhora.
Então ela deu uma voltinha e desapareceu.
Ravonna fechou com força o Temp Pad e avançou pelo corredor;
as palavras da Caçadora B-15 ressoavam em sua mente. Você
nunca vai encontrar. Não antes dela.
Ah, mas vou, sim, Ravonna pensou. Eu com certeza vou.
Mobius estava abrigado num prédio abandonado com os três
novos Lokis. Na verdade, “abrigado” é uma palavra forte, porque a
construção em que estavam mal tinha um teto, ou janelas, muito
menos paredes. Mas melhor que nada, não é mesmo?
— Você realmente não lembra dele? — o Loki mais velho disse.
— Quer dizer, a AVT prendeu muitos Lokis, mas... não, não
lembro de nenhum jacaré — Mobius disse.
A criatura estava deitada ao lado da fogueira que tinham
construído e rosnou para ele, com os dentes à mostra.
— Veja bem, quem pode mesmo dizer se ele é um Loki variante?
— Mobius refletiu.
— Ele é verde, não é? — o idoso disse.
— Não sei — Mobius disse. — Ele pode estar mentindo. Uma
farsa longa. É claro que isso apenas tornaria mais provável que ele
seja um Loki. — Ele olhou para o homem mais velho. — Com vocês
é sempre o jogo dentro do jogo. O que eu respeito.
— Mobius — o menino disse —, supondo que você volte à AVT, o
que vai fazer, exatamente?
Mobius respirou fundo e suspirou.
— Não sei — ele disse. — Gostaria que as pessoas conhecessem
a verdade.
— Então você vai virar as costas àquilo que você dedicou sua
vida tão fácil assim? — o Loki mais velho disse.
Mobius via que ele estava cético.
— Nunca é tarde demais para mudar — ele falou com suavidade.
O idoso encarou as chamas, e Mobius teve a sensação de que
ele entendeu exatamente o que quis dizer.
— Espero que eles saibam o que estão fazendo — o menino
disse, com os olhos numa das janelas quebradas.
Eu também, Mobius pensou.
E ele não estava cem por cento convicto, mas ao olhar para o
jacaré, pensou ter visto que a criatura sentia o mesmo.

Loki tinha ouvido falar que a parte mais tediosa da guerra era a
espera. Agora, esperando por Alioth, ele pensou ter entendido.
Mas pelo menos ele estava sentado ao lado de Sylvie.
O céu estava cinzento, e o vento sibilava, um aviso de que a
tempestade se aproximava. A grama balançava ao vento. O
horizonte brilhava.
Sim, Loki pensou, não pela primeira vez. Até o fim do mundo é
belo quando estou com ela.
— Mobius não é nada mau — Sylvie disse.
— Nem tão bom assim — Loki disse, com um sorrisinho. — Acho
que é por isso que nos damos bem.
Sylvie gostou daquilo e deu uma risadinha, e Loki se deu conta do
quanto gostava de diverti-la.
— Ele se importa com você — ela disse.
Loki olhou para ela, então. Olhou mesmo para ela. Eu me importo
com você, ele queria dizer. Mas não disse. Em vez disso, olhou em
volta, esfregando os braços.
— Está frio — disse.
— Uhum — Sylvie disse.
Loki olhou de volta para ela, mas seus olhos miravam o horizonte.
Ele conjurou uma manta verde elegante para se cobrir e a fechou
bem sobre os ombros, protegendo-se do vento gelado.
— Posso fazer uma para você, se quiser — ele disse.
Sylvie torceu o nariz.
— Que tal o seguinte — ela disse, segurando o colarinho —, você
pode me fazer uma roupa nova. Não faz ideia de como esse
negócio é desconfortável. — Ela olhou para baixo.
Loki não conseguia olhar para ela sem sentir seu rosto ficar
quente. Então ele olhou para baixo, em vez disso, sorrindo
desconsertado.
— Então... — Sylvie disse — Mobius tem uma teoria sobre...
ãhm... sobre...
— Ah, é, é. A teoria sobre nosso Evento Nexus — Loki disse.
Finalmente falariam sobre o que aconteceu em Lamentis-1? Será
que Sylvie finalmente admitiria que se sentia igual?
— Uma baboseira completa, né? — Sylvie disse.
O coração de Loki ficou apertado.
— Definitivamente — ele disse. — É claro, quer dizer... — A voz
dele sumiu.
— Não que não tenha sido, você sabe, um momento bacana...
— Não, foi ótimo. Bem legal. Foi ótimo.
— É só que parece outra mentira da AVT — Sylvie disse.
— Cem por cento — Loki disse. — Quer dizer, é, completamente
— Não conseguia olhar para ela. Mas também não conseguia não
olhar para ela. Ele a olhou com o canto do olho, tentando adivinhar
o que ela estava sentindo.
— Eu não sei como fazer isso — Sylvie sussurrou.
— Eu nem sei o que estamos fazendo — Loki falou, honesto.
Sylvie o olhou nos olhos.
— Eu não tenho... amigos. Eu não tenho... ninguém.
— Bem, tem coisas mais importantes que isso, né?
— Certo, é. Como acabar com a AVT.
— E salvar o universo também, né? Se a gente parar para pensar.
— Bem, também não precisa ser tão dramático, mas é, mais ou
menos — Sylvie tirou um fio de cabelo do rosto.
O vento soprou frio entre eles no silêncio.
Loki usou sua magia para alongar a manta, e a passou sobre o
ombro de Sylvie também. Ela puxou o tecido e chegou mais perto
dele.
— Não é muito fofinha — ela disse.
— Ok — Loki disse, rindo.
— É uma tolha de mesa?
— Não, é uma manta! — Loki riu de novo.
Sylvie inspirou, como se precisasse de muita força para dizer as
palavras a seguir.
— Obrigada — ela disse.
— O prazer é meu — Loki disse.
O silêncio se estendeu novamente, como se Sylvie estivesse
juntando forças para dizer o que queria dizer.
— Como eu sei que nos momentos finais você não vai me trair?
— ela perguntou.
— Escuta, Sylvie, eu... — Loki expirou longamente. — Eu traí
todos que já me amaram. Traí meu pai, meu irmão. Meu reino. Eu
sei o que fiz. E sei por que fiz isso. E esse não é mais quem eu sou.
Ok? Não vou te decepcionar. — Loki não se lembrava da última vez
que falou com tanta sinceridade sem nenhum objetivo ulterior, sem
nenhum plano, só pura e ardente honestidade.
— Tem certeza? — Sylvie disse, olhando-o nos olhos. — Por que,
se tivermos sucesso, e a AVT for destruída... Talvez exista uma linha
do tempo para você governar. — Ela ergueu as sobrancelhas do
jeitinho dela, e era impossível para ele saber se ela estava
brincando ou não desse jeito.
— Ah — ele disse, inclinando a cabeça na direção dela —, e
então eu finalmente vou ser feliz. — Ele sorriu, e ela devolveu o
sorriso, depois suspirou. — E quanto a você? — ele perguntou. — O
que vai fazer quando tudo isso acabar?
Sylvie fez uma careta.
— Eu não sei — ela disse.
— Eu também não — Loki disse. Nunca tinha falado tão
honestamente sobre seus sentimentos com ninguém. Era assim que
era uma amizade verdadeira? Era assim que era amar alguém? —
Talvez... — ele disse, engolindo o nervosismo. — Talvez possamos
descobrir... juntos — Seu rosto estava tão próximo do de Sylvie, tão
perto que podia sentir o cheiro de seu cabelo.
— Talvez — ela disse.
E então o coração de Loki fez o inconcebível: ele literalmente
bateu mais forte.
A ventania aumentou, e aqueles faisões esquisitos com bolas
flutuantes no lugar das cabeças chilrearam, se espalhando pelo
mato.
Um trovão rugiu.
Alioth estava vindo.
CAPÍTULO TRINTA E SETE

Uma nuvem preta se formou contra o céu pálido cheio de nuvens,


achaduras de raios lilases cortavam seu corpo de carvão.
Loki e Sylvie estavam de pé na colina coberta de grama,
flanqueados por seus aliados e amigos: Kid Loki, o Loki Clássico,
Mobius, e, é claro, o jacaré.
A tempestade viajava na direção deles. Logo estaria sobre eles. O
vento estava guinchando, sacudindo violentamente a grama alta
para todo lado.
Loki estava virado para a tempestade. Não estava sem medo,
mas estava com seus amigos.
— Ok, então, qual é o próximo passo? — Mobius teve que gritar
para ser ouvido no meio da ventania e da trovoada.
— A AVT precisa ser destruída — Sylvie disse. Ela soava
indomável como sempre. — Não sabemos quem a criou, ou onde
estão, mas sabemos que aquela coisa sabe. — Ela apontou para
Alioth. — E, quando ela me acertou mais cedo, eu me conectei a
ela. Foi rápido, mas eu vi alguma coisa, e acho que, se chegar perto
o suficiente dela, posso encantá-la, e ela vai me levar a quem quer
que esteja atrás disso tudo.
Loki ouvia as palavras inspiradoras de Sylvie e as sentia farfalhar
em seu peito como folhas em movimento, um sentimento de
mudança, de vida nova. Era primavera e doçura misturada com
trepidação. O amor realmente fez coisas estranhas com seu
coração.
Sylvie lhe entregou o Temp Pad que guardara no bolso, e ele o
aceitou. Mas assim que olhou para ele, em suas mãos, sabia que
não voltaria, que não o usaria.
Ele mirou Alioth, que se aproximava.
— Eu vou ficar — ele disse. Não podia abandoná-la. Nem agora,
nem nunca.
Ele escutou a voz dela falar:
— Loki, eu nem sei se isso vai funcionar.
— Para onde você for, eu vou — ele disse em meio ao vento.
Sylvie disse que nunca teve amigos antes. Bem, Loki também
não; não de verdade. Ela era a primeira. E ele faria tudo por ela,
sabia disso.
Ele entregou o Temp Pad a Mobius.
— Vai começar, pessoal — o menino falou. — A ramificação vai
ser bem ali. — Ela apontou na direção da tempestade senciente.
— Vou mandar lembranças suas para Renslayer — Mobius disse.
— Ah, por favor — Sylvie disse.
— Vocês dois querem uma passagem para sair daqui? — Mobius
se dirigiu ao Loki Clássico, Kid Loki e Loki Jacaré.
— Quê? — Kid Loki disse. — Não. A gente vai ficar.
O Loki Clássico assentiu.
— Aqui é nossa casa.
Até o jacaré, que os deuses o abençoem, abriu a boa e rosnou.
— Têm certeza? — Loki disse. — E quanto ao Alioth?
— Já sobrevivemos até agora — o Loki Clássico disse. —
Sabemos nos cuidar. — Ele encarou a tempestade, corajoso e
resoluto.
— Loki — o menino disse —, você vai precisar disso aqui na sua
jornada. — Ele conjurou uma espada dourada e girou na mão,
depois a estendeu para Loki. — Pegue.
Loki a pegou, instantaneamente conjurando uma bainha que ficou
presa a suas costas. Ele colocou a espada na sua proteção de
couro, sentindo que não podia estar mais bem preparado.
— Boa sorte — o Loki Clássico disse. — Espero que encontre o
que está procurando.
Loki acenou com a cabeça em agradecimento, e as três variantes
de Loki começaram a se afastar.
Mobius apertou um botão no Temp Pad, e uma porta de luz se
apareceu, uma porta que levava de volta à AVT.
— Parece que você conseguiu escapar no fim das contas — ele
disse a Loki.
— Eu sempre consigo — Loki respondeu.
Mobius sorriu com a piada.
— O que você vai fazer — Loki disse — com a AVT?
— Queimar aquele lugar inteiro — Mobius disse, com uma
piscadela. — Obrigado por acender a chama.
Loki sorriu.
— Bem, te vejo depois, Loki — Mobius disse. Ele ofereceu a mão
para que Loki apertasse.
Mas Loki se aproximou e o puxou para um longo abraço. Um
aperto de mãos não seria suficiente.
— Obrigado, meu amigo — ele disse a Mobius.
Então escutou Mobius sussurrar sobre o ombro dele para Sylvie:
— Você é minha favorita.
Mobius atravessou a Porta Temporal, e ela desapareceu, assim
como ele, e o levou de volta para a AVT.
Só restou o céu cinzento, a tempestade rodopiando na direção
deles. Loki se virou para enfrentá-la ao lado de Sylvie.
O que quer que fosse acontecer, eles estavam juntos nessa.
Loki observou o vale onde as carcaças podadas de objetos
estavam abatidas em meio à grama.
Sylvie se pôs a caminha na direção da tempestade raivosa,
passando por um tanque engolido por plantas. Loki a seguiu. Ela
gritou instruções em meio ao vento uivante:
— Quando uma ramificação aparecer, o Alioth vai focar nela. É aí
que vou encantar ele.
E como se tivesse ouvido o plano de Sylvie, Alioth rugiu e foi
partido por raios rosa e violeta. Sua face terrível brilhava. Estava
cada vez mais perto, espalhando-se pelo chão como gás venenoso.
Eles estavam cara a cara com a tempestade, com seus olhos
vermelhos ocos, e sua boca como a bocarra de um predador. Ela
gritou e o som machucou os ouvidos de Loki, mas Sylvie não
recuou.
— E se não tivermos tempo de esperar por uma ramificação? —
Loki perguntou.
A tempestade ficou ainda mais próxima, e não havia nada para
distraí-la. Se ficassem parados ali, ela os engoliria.
Sylvie podia não estar assustada, mas ele certamente estava.
— Precisamos criar uma distração — ela disse. Estava olhando
feio para Alioth, encarando de frente a tempestade.
Loki pensou que ela devia ser a pessoa mais corajosa que ele já
conheceu. Provavelmente.
Foi aí que ele decidiu o que faria.
Pôs a mão no ombro dela, e ela virou o rosto devagar para olhar
para ele. Ela leu o plano no rosto dele imediatamente, e balançou a
cabeça negativamente, mas ele apenas assentiu positivamente em
resposta. Então se virou para Alioth, respirou fundo, e começou a
correr. Ele correu para o lado, para longe de Sylvie, tentando
chamar atenção do monstro para longe dela.
Funcionou.
Os olhos vermelhos da grande tempestade se viraram para ele.
O coração de Loki estava acelerado. Ele correu mais rápido,
olhando para a tempestade, depois parou e sacou a espada.
— Vem me pegar! — ele gritou. Ele empurrou a espada na
direção da tempestade, e a lâmina dourada se transformou em
chamas.
Alioth começou a se mover na direção de Loki, e ele se manteve
firme no lugar, balançando sua espada flamejante no ar como um
farol. Lenta e terrivelmente, a nuvem preta gigante deslizava na
direção dele, com seus olhos penetrantes fixos em Loki.
As palmas das mãos de Sylvie estavam erguidas, e uma luz verde
brilhante saída delas. Ela estava tentando. Estava tentando
encantar Alioth.
Isso, Loki pensou. Isso. Está funcionando.
Mas então a grande tempestade notou o encantamento; notou
Sylvie. E se virou na direção dela.
— Não! Vem aqui! — Loki gritou, correndo na direção dela,
tentando chamar atenção da criatura de novo. — Vem me pegar!
Mas a tempestade era tão barulhenta, o vento levou para longe
sua voz, e a atenção de Alioth estava presa, inabalavelmente, a
Sylvie. Ela abriu sua bocarra, trovejando na direção de Sylvie, e sua
silhueta estava obscurecida e delgada contra a luz vermelha da
papada aberta da besta.
— Não! — Loki gritou — Não!
Sylvie estava parada, imóvel. Seria devorada...
Mas, no último instante, a atenção de Alioth foi desviada. Uma
grande cidade verde apareceu atrás dele, tão clara quanto o
amanhecer, mudando a cor do céu.
O que era aquilo?
Loki olhou na direção da luz e viu o Loki Clássico. A luz verde
vinha dele, que usava sua magia para conjurar uma cidade — uma
cidade inteira — para distrair Alioth com a ilusão de uma ramificação
podada.
O Loki Clássico grunhia, com as palmas para o alto, erguendo
castelos de pedra do chão, tijolo a tijolo, molécula a molécula. A
tempestade faminta virou a cabeça para longe de Sylvie, para
devorar a cidade imaginária, as torres e palácios majestosos de
Asgard transformadas em realidade.
Loki assistiu abismado. Sylvie correu até ele.
— Como ele está fazendo isso? — ela disse.
— Acho que somos mais fortes do que sabemos — ele
respondeu.
O Loki Clássico carregava o peso da Asgard conjurada com as
duas mãos.
— Vão! — ele gritou, e sua voz ecoou pelo vale.
Sylvie segurou a mão de Loki.
— O que você está fazendo? — ele perguntou a ela.
— Nós vamos encantar a tempestade — ela disse.
— Eu não sei fazer isso.
— Você sabe — ela disse —, porque nós somos iguais.
Eles se entreolharam. Loki viu nos olhos dela que ela acreditava
naquilo. Eles eram iguais. Imagens espelhadas um do outro,
perfeitamente complementares.
Alioth estava devorando as torres da Asgard conjurada pelo Loki
Clássico, bem distraída. Ela gritava enquanto tentava engolir uma
torre de pedra que desaparecia assim que sua boca a tocava. O
Loki Clássico ria. Parecia estar gostando de enganar o monstro. Ele
abriu bem as mãos e construiu mais torres, do nada, apenas com a
magia dentro dele.
Loki segurava com força a mão de Sylvie. Tentáculos de nuvem
preta serpenteavam na direção dele. Sylvie estendeu a mão livre
com a luz da magia verde brilhando ao redor dela. Loki nunca
encantou ninguém antes, muito menos um sistema atmosférico
senciente, mas ele estendeu a mão mesmo assim e tentou focar sua
mente. Nenhuma luz verde brilhou em sua mão, entretanto. Ele
franziu a testa.
Para além do vale, ele podia ver o velho se esforçando para
manter a cidade conjurada de pé. Os prédios começaram a
desaparecer como giz se apagando, fumaça se dissipando, linhas
de luz verde ficando para trás como se estivessem se derretendo no
chão.
Não, Loki pensou, mas Sylvie puxou sua mão, trazendo sua
atenção de volta para ela, para si próprio, e ele enfiou a mão de
volta na nuvem escura e rodopiante... e acessou a magia de
encantamento. Luz verde se acendeu ao redor da mão dele, assim
como na dela.
Ele focou na própria mão, na nuvem preta se espalhando em sua
direção e na luz verde saindo de sua palma, e podia sentir que
Sylvie estava fazendo o mesmo, apertando com força sua outra
mão.
O Loki Clássico caiu de joelhos. E sua cidade ilusória colapsou
também.
Alioth, enraivecido pelo truque, caiu sobre o velho, a boca
vermelha bem aberta, avançando como uma onda.
O Loki Clássico ficou de pé e abriu os braços para abraçar seu
destino.
— Que propósito glorioso! — ele gritou ao vento, na cara de
Alioth, olhando com desdém para a criatura, rindo como uma
pessoa que tinha, finalmente, encontrado seu propósito.
Alioth despencou sobre ele e o engoliu por inteiro, cuspindo
apenas sua coroa de chifres dourados.
Loki estava pouco ciente disso enquanto mergulhava na
tempestade, tocando nela com uma mão e segurando a de Sylvie
com a outra, esforçando-se para encantar a criatura como Sylvie
estava fazendo.
Os olhos vermelhos de Alioth se viraram para ele, e ele sabia que
não tinham muito tempo antes de também serem devorados. A
tempestade senciente berrou, voando céu abaixo na direção deles.
Loki fechou os olhos...
E então, num único instante, tudo mudou. A luz verde de sua
magia, perfeitamente misturada com a de Sylvie, cortou o corpo do
monstro. Seus olhos vermelhos brilharam verdes. Sua boca também
ficou verde.
Loki não conseguia acreditar.
Eles conseguiram.
Tinham encantado a tempestade.
Tinham encantado Alioth.
Uma paz se instalou no vale enquanto Alioth flutuava parado, não
mais atacando. Até o vento diminuiu um pouco.
Loki fechou os olhos, mais relaxado.
— Abra os olhos — Sylvie disse.
O céu estava coberto por uma luz esverdeada, e o vento
balançava suavemente em seus cabelos. O mundo estava
segurando a respiração. Tudo estava parado. Eles conseguiram.
Conseguiram mesmo.
Num redemoinho de verde brilhante, as nuvens densas e escuras
de Alioth se afastaram, revelando uma mansão gótica debaixo de
um céu rosa, azul e roxo neon.
Era ali.
Ainda segurando a mão de Sylvie, com o coração palpitando, Loki
olhou nos olhos dela, e ela nos dele. Então eles se viraram na
direção do grande buraco nas nuvens de Alioth e foram na direção
da mansão do fim do tempo.
CAPÍTULO TRINTA E OITO

A mansão gótica no fim do tempo descansava no fundo de uma


bacia de rocha vulcânica tão escura e brilhosa quanto alcaçuz.
Além do Vazio o céu estava coberto or cascatas cadentes de
várias cores, e a Linha do Tempo Sagrada podia ser vista
desenhando uma curva por ele, brilhando um azul pálido, correndo
segura numa só direção.
A gravidade funcionava diferente aqui. Rochas pretas flutuavam
em câmara lenta no ar, à deriva.
Loki andava ao lado de Sylvie, subindo a encosta que levava à
entrada da casa.
Mentiria se dissesse que não estava nervoso. O que estava atrás
das portas da mansão mudaria... bem, tudo. Mas ele continuou
andando, e Sylvie também.
Havia uma escada até as portas duplas largas da mansão. A casa
toda parecia feita de um mármore preto perfeito cortado por veios
dourados luminosos. As escadas eram pretas, as portas eram
pretas, e o portal da porta era preto. No geral, tinha uma aparência
sinistra, mas Loki tentou deixar isso de lado.
Loki e Sylvie ficaram diante da porta juntos, lado a lado.
Então Sylvie deu um passo à frente, na direção da porta, em
silêncio. Loki pôde ver que estava tensa.
— Você não vai mandar eu não arrombar a porta? — ela disse.
Ele balançou um pouco a cabeça, sorrindo.
— Nunca funcionou — ele disse.
Sylvie ficou de frente para ele, a Linha do Tempo Sagrada
brilhando no infinito atrás dela.
— Bem, se acha que é uma má ideia — ela disse com suavidade.
— Prefiro que fale o que pensa.
Loki fez uma careta para ela, um pouco confuso. Agora ela queria
a opinião dele? Agora que tinham vindo até aqui?
— Não — ele disse —, nada a dizer.
Sylvie piscou para ele.
— Que milagre — ela disse, então se virou para a porta de novo.
Claro que ela estava enrolando. Era esse o seu objetivo, o que ela
perseguiu por toda sua vida. Estava finalmente aqui. Tem algo
profundamente perturbador com sonhos que se tornam realidade.
Loki sabia disso.
Sylvie encarava a porta. Ela coçou a garganta, suspirou, ameaçou
um passo, parou... O pé flutuando no ar, incapaz de decidir se
entrava ou não. Talvez precisasse de uma forcinha.
— Tudo certo aí? — Loki falou gentilmente.
Sylvie fungou.
— Só preciso de um momentinho.
— Certo — Loki disse.
Ela se mexeu um pouco onde estava. Loki começou a falar:
— É só que você normalmente...
— Loki, cala a boca — Sylvie disse. — Eu fui podada antes
mesmo de você existir. Espero por esse momento a minha vida
toda. Só preciso de um segundo para acalmar a cabeça, tá legal?
— Certo — Loki disse, olhando pra baixo. — Mas é claro.
Sylvie voltou a olhar para a porta. Ela fechou os olhos, e os
manteve fechado por um tempo, depois os abriu. Lambeu o lábio
inferior e respirou fundo.
Loki ainda esperava que ela agisse quando a grande porta dupla
começou a se abrir devagar, rangendo até relevar um hall feito do
mesmo mármore preto com veios dourados correndo por ele como
tinta escorrida.
Loki olhou ao redor, procurando pela pessoa que abrira a porta.
Mas não parecia ter ninguém lá dentro. O hall estava
completamente vazio.
Eles entraram com cuidado. A mão de Sylvie logo acima do punho
da adaga.
As portas bateram atrás deles.
Estava mais escuro dentro da mansão do que fora. As janelas
altas e estreitas, com padrões floridos na armação de ferro,
deixavam entrar apenas uma luz fraca.
O hall era circular, sustentado por pilares de maneira com
entalhes elaborados, e levava a outro hall, e mais outro, e mais
outro, dando a impressão de que a mansão se expandia
eternamente.
O silêncio era mortal ali dentro. Loki vasculhou nervoso o lugar.
Esculturas enormes de figuras encapuzadas pairavam sobre eles,
observando-os com seus rostos sem olhos.
— E aí! — Uma explosão de luz laranja quase cegou Loki quando
a Senhorita Minutos apareceu bem na frente da cara dele, o rosto
sorridente e de olhos arregalados dela era perturbador.
Imediatamente, Loki sacou sua espada, e Sylvie fez o mesmo
com sua adaga. Eles apontaram suas armas para a Senhorita
Minutos, mesmo que fosse inútil tentar atacar um ser digital feito de
luz e informações.
— Você de novo — Sylvie disse.
— Bem-vindos à Cidadela no Fim dos Tempos — a Senhorita
Minutos disse com a sua animação insuportável. Parecia que ela
estava liderando algum tipo de grupo de turistas malucos.
— Vamos — Loki disse, sinalizando a Sylvie com um movimento
de cabeça para que fossem para a direita. Eles circundaram a
Senhorita Minutos, com as armas ainda em riste.
— Meus parabéns — a Senhorita Minutos disse —, foi uma
jornada bem longa para chegarem até aqui. Ele está impressionado.
— Quem está impressionado? — Sylvie disse.
— Aquele Que Permanece — a Senhorita Minutos disse,
segurando as mãos atrás das costas.
Loki franziu a testa para ela.
— E quem é ele? — ele disse.
— Ele criou tudo — a Senhorita Minutos disse, reverente — e ele
controla tudo. No fim, é apenas ele, Aquele Que Permanece. — Ela
abriu as mãos como uma professora escolar explicando algo
simples a uma criança. — E ele quer oferecer um acordo a vocês.
Ele têm criado uma série de ajustes criativos, e achou a solução
para reinserir os dois de volta na Linha do Tempo de uma maneira
que não vai perturbar as coisas — A voz dela ecoava no hall
cavernoso.
Sylvie recuou, e Loki também, seguindo sua iniciativa.
— Não vai perturbar as coisas? — Sylvie disse.
— Uhum — a Senhorita minutos disse. — A AVT pode continuar
com seu trabalho imprescindível, e vocês podem viver a vida que
sempre quiseram — Ela piscou para eles inocentemente.
— E o que sempre quisemos? — Loki perguntou.
— Ah, não se faça de tímido comigo, rapazinho — a Senhorita
Minutos disse. — Você sabe como entrou nessa confusão.
Loki baixou a espada dourada.
— O quê?
— A Batalha de Nova Iorque, bobo — a Senhorita Minutos falou.
— Você contra aqueles Vingadores presunçosos? Não gostaria de
vencê-los? — Ela pôs as mãos para trás, piscando para ele. — Mas
não só aquela — ela continuou. — Você pode matar Thanos.
Loki tinha que admitir, aquela era uma proposta extremamente
tentadora. Não apenas por sempre ter querido sair vitorioso, mas
porque significaria também que não estaria destinado a um fim
trágico e apagado. Ele olhou ao longe, imaginando aquilo.
A Senhorita Minutos não tinha terminado ainda:
— Quer a Manopla do Infinito? Pode ficar. O trono de Asgard?
Sem problemas! — E então ela olhou para Sylvie. — E você,
mocinha? — ela disse. — Todos aqueles anos fugindo?
Desesperada, sozinha. Como se sentiria acordando amanhã com
uma vida inteira de boas lembranças?
Sylvie parecia prestes a chorar.
— Dois Lokis no mesmo lugar — a Senhorita Minutos disse.
— Nós dois — Loki disse — juntos na Linha do Tempo. — Loki
olhou para Sylvie. Os olhos dela cintilavam com lágrimas.
— É loucura — a Senhorita Minutos disse —, mas ele pode fazer
funcionar. — Ela fez uma pausa. — Tudo isso. Tudo. Exatamente
como vocês sempre quiseram.
No hall escuro, a Senhorita Minutos brilhava como um sinalizador.
— Vocês podem ter tudo isso... juntos.
Sylvie inspirou profundamente, depois soltou o ar. Ela balançou
um pouco a cabeça, impressionada, ou incrédula.
— Isso é ficção — ela disse, enfim.
E estava certa. As palavras atingiram Loki bem no peito,
acordaram-no de seu devaneio.
— Nós escrevemos nosso próprio destino, agora — ele disse.
— Ah, claro que sim — A Senhoria Minutos disse, ainda em seu
tom doce pegajoso. Depois ela riu. — Boa sorte com isso! — Ela
saltitou para longe, desaparecendo, deixando-os no hall escuro,
sozinhos.
Era perturbador, na verdade, saber que você é responsável por
ditar o próprio destino, mas Loki sabia que, com Sylvie, ele poderia
fazer qualquer cosia. Eram um time agora.
— Vamos — ele disse, apontando para o arco na frente deles,
que sem sombra de dúvidas estava os convidando a entrar.
Devagar, eles se esgueiraram pela Cidadela no Fim dos Tempos.
Cada hall de mármore preto dava lugar a outro, cada porta levava
a outra porta. A Cidadela parecia interminável, e cada hall era mais
ou menos igual.
— Aquele Que Permanece — Loki disse.
— Não por muito mais tempo — Sylvie ponderou.
A luz do céu multicolorido brilhava pelas janelas, pintando arco-
íris no mármore preto e dourado.
Loki e Sylvie entraram no hall seguinte, e o tique-taque constante
de um relógio ressoava pela sala. Havia três esculturas de mármore
de três homens vestidos de mantos. Magos ou reis. Um deles tinha
sido derrubado, partido em milhares de pedaços. Loki passou o
dedo pela beirada de um dos pedestais. Estava coberto por uma
camada grossa de poeira.
— Será que ele está vivo mesmo? — Loki disse.
Em resposta, veio um som — mas não de Sylvie.
Era o som de uma porta se abrindo.
Loki e Sylvie vasculharam a sala.
O som pareceu vir de trás de uma porta pontiaguda de mármore.
Eles a encararam, esperando que fosse aberta, preparando-se
para o que poderia estar atrás dela.
Mas a porta deslizou e um elevador espaçoso se abriu. Dentro
dele, um homem estava sentado numa banqueta de couro preto.
Estava de calças cinzas, sapatos de couro, e uma capa de seda
roxa. Era jovem e esguio, e a luz que vinha do alto iluminava seu
rosto como o de um santo. Sua pele negra brilhava.
Loki e Sylvie ficaram parados com as espadas em mãos.
O homem inclinou-se para frente, sorrindo. Depois ficou em pé e
saiu do elevador.
— Que doideira — ele disse, jogando uma maçã de uma mão
para a outra. — Vocês dois. A mesma pessoa.
Loki não abaixou a espada.
— Quer dizer, não é muito natural, mas... uau! — Ele olhava de
um para o outro. — Doideira! — Depois deu uma mordida na maçã,
fazendo barulho ao mastigar.
— Aquele Que Permanece — Sylvie disse. Seu tom sugeria que
não estava nenhum pouco impressionada.
— Aquele Que Permanece — o homem disse, com a boca cheia
de maçã. — Ela ainda me chama assim? — Ele deu outra mordida.
— Esquisito, né? Mas... eu até que gosto.
Loki e Sylvie o encararam.
— Vamos — o homem disse —, venham. Vamos conversar no
meu escritório. — Ele gesticulou na direção do elevador atrás dele,
com a mão segurando a maçã.
Loki olhou para Sylvie. Por um lado, não parecia uma ideia muito
sábia. Por outro, o que mais poderiam fazer? Tinham vindo aqui
para encontrar a pessoa que vivia no fim dos tempos, e agora que
tinham encontrado, não podiam simplesmente desistir.
Com as espadas ainda em riste, foram devagar até o elevador.
Aquele Que Permanece ficou na frente deles, e a porta de
mármore preto fechou na frente da cara dele.
Loki continuou apontando sua espada, e estava perigosamente
perto do pescoço do homem, mas Aquele Que Permanece não
parecia nem um pouco incomodado por aquilo. Ele continuou
comendo a maçã.
— Não era o que estavam esperando, né? — ele disse.
— Você é só... um cara — Loki disse.
— Hm — disse Aquele Que Permanece. — De carne e osso —
Ele esfregou o nariz. — Não me digam que estão decepcionados.
— Não — Sylvie disse —, só vai ser mais fácil te matar — Com
isso, ela desferiu um golpe na cabeça dele, mas num instante, ele
se moveu para o lado e a lâmina não acertou o alvo. Tinha se
movido tão rápido, quase como um borrão.
Não parece humano, Loki pensou.
Aquele Que Permanece riu, e Loki percebeu com um sobressalto
que ele estava sentado no banquete atrás deles. Ele ria com um
sorriso largo.
Sylvie o atacou novamente, mas de novo ele saiu do caminho no
último instante, tão rápido que mal podiam vê-lo. Mais uma vez, ela
tentou matá-lo com a espada, mas ele se moveu para longe. Ela
começou a arfar cansada, procurando por ele pelo elevador. Mas ele
desaparecera.
Então o elevador rangeu e parou. Ele apitou, e a porta se abriu
diante deles. Aquele Que Permanece estava ali, sorrindo,
segurando sua maçã meio comida.
— Podem entrar — ele disse, virou-se e entrou no grande
escritório de chão de mármore preto.
A sala toda parecia construída num só pedaço de mármore,
marcado apenas pelos veios espalhados de ouro. Prateleiras de
livros antigos corriam as paredes curvas, e uma lareira ardia. Uma
mesa imponente estava no meio da sala, e atrás dela estavam
várias janelas circulares que davam ao lugar a impressão de ser
uma igreja ou algum outro santuário.
Sylvie foi na frente, e Loki seguiu.
Aquele Que Permanece estava reclinado sobre a mesa, servindo
café em pequenas xícaras.
— Um, dois... — ele disse.
Aparentemente, era um tirano hospitaleiro.
— Por favor, sentem-se — ele lhes disse, apontando para duas
poltronas generosas do outro lado da mesa dele, como se reuniões
fossem uma atividade diária.
Loki olhou para Sylvie. Ainda empunhava sua espada dourada,
pronto para atacar. Mas não parecia que Aquele Que Permanece
estava muito interessado em lutar. Pelo menos, não ainda. Loki não
queria se sentar mesmo assim. Sentar-se parecia um movimento
arriscado.
Aquele Que Permanece continuou agindo como se tivessem se
reunido para um chá da tarde.
— Ãhm, Loki — ele disse, colocando uma das xícaras na mesinha
de madeira entre as poltronas. — Loki — ele repetiu, colocando a
outra. — Duas colheres de açúcar — ele acrescentou, depois voltou
para o outro lado da mesa e começou a servir café para ele mesmo.
Sylvie ergueu as sobrancelhas, e Loki entendeu aquilo como um
sinal para se sentarem. Ele obedeceu, mesmo não achando que era
uma boa ideia. Eles lentamente circundaram as cadeiras, ainda
armados, com a mira no homem, até mesmo ao se sentarem.
O homem riu. Parecia estar se divertindo com a apreensão deles.
A verdade era que Loki e Sylvie estavam preparados para
qualquer coisa — para qualquer tipo de truque — e não queriam cair
noutra armadilha. Era o jeito Loki de viver a vida, e apenas Sylvie
entenderia aquilo. Mesmo sentados, seguiam empunhando suas
armas, prontos para qualquer coisa, encarando o homem que viveu
até o fim dos tempos.
Ele era o começo — e, com sorte, o fim — da AVT. E estava
sentado bem na frente deles. Estavam tão próximos.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Ravonna Renslayer folheava furiosamente os documentos que


pegou do arquivo, tentando encontrar qualquer informação sobre a
fundação da AVT. O sofá de couro em seu escritório estava coberto
om montanhas de pastas, e ela passava por elas freneticamente.
Seu Temp Pad estava aberto, baixando os arquivos que a Senhorita
Minutos tinha encontrado para ela sobre o começo dos tempos. Se
eles apenas baixassem mais rápido...
Ela viu as marcas das xícaras de Mobius sobre a mesinha de
madeira. De repente, ela desejou que ele estivesse sentado ao seu
lado, ajudando com isso. Estava arrependida de tê-lo podado.
Então a Senhorita Minutos apareceu.
— Olá — ela disse, docemente.
— Por que demorou tanto? — Ravonna disse.
— Foi mal — a Senhorita Minutos disse. — Algumas coisas
precisavam ser resolvidas. Mas estou baixando os arquivos que
você precisa agora mesmo.
A voz dela estava animada como sempre, mas Ravonna tinha
começado a desconfiar dela. Ela estava começando a pensar que a
Senhorita Minutos tinha propósitos ocultos.
Ravenna apanhou o Temp Pad e abriu os arquivos que a
Senhorita Minutos tinha baixado.
— Não foi isso que eu pedi — ela disse.
Não estava entendendo. Ela era a juíza Renslayer. Nada que dizia
respeito à AVT — sua administração ou fundação — deveria estar
fora de sua jurisdição. Mas a Senhorita Minutos parecia estar
enrolando.
— Eu sei — a Senhorita Minutos disse. — Mas ele acha que
esses serão mais úteis.
Ravonna olhou confusa para o relógio laranja brilhante.
— Quem? — ela perguntou.
— Boa leitura! — a Senhorita Minutos disse, rodopiando e
desaparecendo, deixando Ravonna franzindo a testa para seu Temp
Pad, com um sentimento ruim na boca do estômago.
Horas depois, Ravonna estava enfiando pastas numa bolsa
quando ela ouviu alguém bater à porta.
— Eu disse que não queria ser incomodada.
— Bem, então você não vai ficar feliz de me ver — uma voz disse.
Ravonna se virou, surpresa. Mobius.
— Ele voltou! — ele sussurrou, abrindo os braços como um
apresentador. Estava com um Bastão Temporal na mão. Ele o
recostou no ombro como um taco de baseball.
— Se alguém podia sair do Vazio — Ravonna disse —, acho que
esse alguém ia ser você mesmo.
— Ah, você sabe. O Vazio de um homem é o mamão com açúcar
do outro.
Ele realmente era sua pessoa favorita na AVT. Sentiu uma dor no
peito. Ela inspirou fundo e depois soltou o ar.
— Então você vai me podar? — ela disse.
— Gosto da ideia — Mobius disse. — Mas, sabe, meus padrões
podem ser um pouco maiores que o seu nessa área. Você sabe,
com relação aos amigos mais próximos.
— Me desculpa, Mobius. — Ela estava mesmo arrependida,
apesar de duvidar que ele a perdoaria algum dia. Ela o podou
porque realmente acreditava estar fazendo o melhor para a AVT.
Agora não sabia mais nada. Mas nunca diria isso a ele. Em vez
disso, ela disse: — Não podia deixar você interferir na nossa
missão.
— Missão? — Mobius disse. — Os Guardiões do Tempo são uma
farsa. Todos somos variantes. Que missão?
— Não pode ter sido tudo para nada — Ravonna disse, dando-se
conta da verdade. — Foi por isso que eu tive que te podar —
Ravonna falou no Temp Pad. — Caçador D-90, venha ao meu
escritório imediatamente — ela ordenou.
— É, foi mal, Ravonna. Isso não vai sair do jeito que você pensa
que vai, agora que a gente sabe seu segredo.
Ravonna abaixou o Temp Pad.
— O que você fez?
Mobius tirou uma caneta do bolso. Na caneta estava escrito, em
letras brancas grossas, as palavras FRANKLIN D. ROOSEVELT
HIGH SCHOOL.

A Caçadora B-15 estava escondida atrás de uma fileira de


armários, respirando com dificuldade. Podia ouvir vozes. Elas
estavam falando sobre ela.
— Fiquem alerta. Ela está por perto.
Era o Caçador U-92.
B-15 estava acostumada a ser a caçadora, não a caça.
Mas agora que sabia a verdade sobre a AVT, não queria ser
nenhum dos dois.
Tinha viajado para 2018, pra Fremont, em Ohio, para mostrar a
verdade aos outros também.
Ela escutou passos vindo na sua direção, e saiu de trás dos
armários, revelando sua posição.
— Cerquem o perímetro — U-92 disse aos colegas.
Podia ouvi-lo vindo atrás dela.
Ele estava bem onde ela queria.
Ela entrou no escritório da diretoria e ficou atrás da mesa,
deixando a porta aberta e esperando que ele a alcançasse.
Quando ele apareceu na porta, reduziu a velocidade.
— Se entregue, B-15 — ele disse.
— Você precisa me escutar — ela falou.
— Vai ter tempo para isso.
— Só espera — B-15 disse.
Verdade seja dita, ela só estava ganhando tempo. Só precisava
que ele ficasse um pouco mais na sala...
— O que diabos está acontecendo aqui? — Uma mulher entrou
no escritório. Uma mulher esguia, de cabelo cacheado castanho e
pele negra. A mulher era exatamente como Ravonna Renslayer.
Cada detalhe do seu rosto, até mesmo o jeito que ela se movia
lembrava a elegância da juíza da AVT.
A mulher era Ravonna Renslayer, mas também não era.
B-15 a encarou.
U-92 a encarou.
— Juíza Renslayer — U-92 falou, educadamente.
— Quê? — a mulher disse. Não parecia reconhecer aquele nome.
Claro que não.
B-15 sabia que a mulher para quem estavam olhando era
Ravonna Renslayer antes dela ser presa por crimes contra a Linha
do Tempo Sagrada. Antes dela se tornar uma variante. Antes dela
trabalhar para a AVT. Antes mesmo dela saber que a AVT existia.
Em 2018, ela era apenas uma pessoa comum, vivendo sua vida.
Era a diretora da Franklin D. Roosevelt High School. Era um ser
humano.
A mulher olhou do Caçador U-92 para a B-15 e de volta para ele.
— Quem são vocês? — ela disse. — E o que estão fazendo na
minha escola?
— Essa não é a juíza Renslayer — B-15 disse a U-92. Ela
precisava contar a verdade para ele. Precisava contar a verdade
para todo mundo.
— Como? — U-92 disse.
B-15 engoliu em seco, mantendo contato visual. Olhar para a
mulher que não era Ravonna Renslayer a deixava tonta.
— Temos muito a conversar — ela disse.

— Acho que as pessoas estão prontas para ouvir um pouquinho


da verdade agora — Mobius disse a Ravonna. Ainda estavam em
seu escritório, encaravam-se como inimigos mortais. — Você sabe,
tipo que a AVT é uma mentira.
— Mas e se for uma mentira necessária? — Ravonna disse.
Sabia que provavelmente soava como uma louca para ele, mas
acreditava mesmo naquilo. Se a Linha do Tempo Sagrado fosse
destruída, o universo inteiro, todos os universos que já existiram,
seriam lançados no caos total. Será que Mobius não entendia como
aquilo seria catastrófico? — Alguém criou os Guardiões do Tempo.
Eles criaram todo esse lugar. Eles nos deram propósito. Eu tenho
que acreditar que tinham um motivo.
— Não — Mobius disse, baixando o Bastão Temporal. — Porque
eu já vi o horror que espera as pessoas quando elas são podadas, e
não tem nada de necessário naquilo.
— Você sabe o que aconteceria se não podássemos a Linha do
Tempo? — Ravonna disse. Começara a gritar. Não, a suplicar.
Suplicar que seu amigo a perdoasse, que ele a entendesse.
— O quê? — Mobius disse.
— Caos. Morte.
— Livre arbítrio?
Ravonna se escutou gargalhar. Havia dor naquele som.
— Livre arbítrio? Só uma pessoa pode ter livre arbítrio. A que está
no comando — ela se voltou para sua mesa e recomeçou a guardar
as pastas na bolsa. Ela tinha um plano. Ela ia desvendar aquilo.
Entender. Ia lutar pela AVT.
— Amigos além do tempo — Mobius disse. — Aliados até o fim.
— Cala a boca — Ravonna disse.
— Aquilo foi tão bonito. E depois você me manda para morrer —
ele parou por um momento antes de continuar. — O que aconteceu
com você?
— Nada, Mobius — Ravonna disse. — Eu não mudei.
— Você não mudou? Você me traiu!
— Não, não. Você que me traiu! — Ravonna gritou, apontando
um dedo trêmulo para Mobius. Ela não tinha percebido, até agora, o
quanto aquilo tinha lhe deixado chateada. — Eu me preocupei com
você. Me botei na linha por você. E aí você tem uma crise de fé e se
vira para aquelas... variantes? Eras de amizade. E você jogou tudo
fora por causa de uns Lokis. Não, Mobius. Eu não traí você.
Mobius respirou fundo.
— Não podemos tirar o livre arbítrio das pessoas, Ravonna. Será
que não consegue ver? — Mobius começou a sussurrar. Sua voz
era como ela lembrava; suave e gentil. Ele sempre foi seu favorito.
Não mais.
Ela pegou o Temp Pad, apertou alguns botões e abriu uma Porta
Temporal.
— O que você está fazendo? — Mobius disse.
— O que eu preciso fazer — ela disse.
— Espera. Para — ele disse, indo na direção dela. — Olha, talvez
a gente possa transformar isso aqui em algo melhor, juntos.
Ravonna balançou a cabeça.
— Sinto muito, Mobius.
— Eu não vou deixar você ir embora — Ele ativou o Bastão
Temporal, e sua ponta brilhou âmbar.
— Por favor, Mobius — Ravonna disse. — Mesmo com isso, você
não representa perigo para mim — Ela olhou para o Bastão
Temporal, tentando acreditar nas próprias palavras.
— É isso que você pensa? — ele perguntou. Esperou. — Vamos
ver — ele disse. Mobius avançou sobre ela, mirando a ponta
brilhante no estômago dela, mas ela saiu do caminho, agarrou a
arma, e o chutou no chão. Ele bateu no sofá de couro e caiu no
chão, gemendo de dor.
Ravonna estava com o Bastão Temporal agora. Ela o apontou
para ele.
— É — Mobius disse do chão, levantando-se devagar —, você
estava certa. Voltamos para o começo.
A respiração de Ravonna estava forte em seus ouvidos enquanto
ela o observava na outra ponta do Bastão Temporal.
— Vai em frente — ele disse, dando de ombros, se apoiando no
cotovelo.
Mas enquanto olhava para ele, percebeu que não poderia fazer
aquilo, não de novo. Ela afastou o Bastão Temporal e o desativou. A
ponta âmbar ficou preta novamente. Com a arma na mão, ela puxou
a bolsa cheia de pastas da mesa e se virou para a Porta Temporal.
— Para onde você vai? — Mobius perguntou. Ainda estava caído
no chão.
Ela olhou para ele, com a resposta mais verdadeira de sua vida:
— Em busca do livre arbítrio — ela disse.
Ravonna atravessou a Porta Temporal, e ela se fechou e
desapareceu.
CAPÍTULO QUARENTA

Sylvie e Loki ainda estavam sentados no escritório d’Aquele Que


Permanece
O homem que vivia do outro lado do Vazio estava relaxado
sentado em sua cadeira.
— Foi uma longa jornada para vocês, não foi? — ele disse. —
Muita correria. Muita dor. — Ele olhou por cima do nariz para Loki.
— E você — falou, soprando ar pela boca — é uma pulga nas
costas de um dragão — Ele riu. — Pegando uma carona das boas.
Mas você conseguiu se segurar, uhum. Acho que isso vale alguma
coisa.
A lareira queimava, e a luz cor de algodão-doce cintilava pelas
janelas, tão fascinantes quando as luzes de uma Aurora Boreal.
Loki apontou para o homem com sua espada dourada.
— Acho que você não está entendendo a situação — ele disse. —
Você perdeu. — Olhou para Sylvie. — Nós te achamos.
— Dã — o homem disse com a cara lavada. — Claro que
acharam.
Aquilo era demais para Sylvie. Ela saltou da cadeira, e se lançou
sobre a mesa para acertar o pescoço do homem com a espada.
Mas, assim como no elevador, ele saiu do caminho no último
instante, no piscar de um milissegundo.
— Passou longe! — ele disse, rindo.
Sylvie rosnou.
— Então a gente ainda está nessa, né? — o homem disse,
apoiando os cotovelos nas costas da cadeira, claramente se
divertido demais. Mas então seu tom mudou. — Vamos resolver isso
logo — ele disse, indo até uma pilha de pastas ao lado de sua
mesa. Ele pegou um e abriu na mesa. — Ok — ele disse —, vamos
lá. — Ele tirou duas folhas de papel fino e as colocou na mesa para
mostrar a Loki e Sylvie. — Vocês não podem me matar, porque eu já
sei o que vai acontecer — ele disse.
Ambos Loki e Sylvie foram até a mesa. Loki examinou as folhas
de papel.
Nelas, impressas de maneira organizada em tinta preta, estavam
cada palavra da conversa deles, dispostas como um roteiro. Além
das palavras de Loki, estava o nome L. 1130. Loki Número 1130.
Sylvie estava identificada como L. 1190. Loki Número 1190. Aquele
Que Permanece era simplesmente “eu”.
Loki riu, mas o som saiu apertado de sua garganta, doeu.
— É um truque de mágica — ele disse, torcendo que fosse
verdade.
— Ok — disse o homem, levantando uma mão. — Não querem
saber como eu consigo fugir dos golpes — ele fez uma dancinha —
logo antes de vocês me matarem?
— Não — Sylvie disse, com a voz confiante de sempre. — É por
causa daquele Temp Pad que você tem ali. — Ela já tinha visto
pessoas serem arrastadas no tempo e espaço com aquelas coisas.
Não era nada novo para ele. Algumas vezes os movimentos eram
tão rápidos que a pessoa ficava parecendo um borrão. Nada de
novo.
— Tá legal — o homem disse, cedendo. — Mas como eu já tenho
ele carregado de tudo que preciso para não ser morto por vocês
dois? — O homem tinha um sorriso enorme na cara, como se
aquela conversa fosse a coisa mais divertida dos últimos anos.
Loki supôs que provavelmente era mesmo.
Aquele Que Permanece já estava sozinho nessa mansão fria e
desconfortável há muito, muito tempo. Quem sabe quanto tempo
fazia desde a sua última conversa estimulante.
— Fácil — o homem disse quando não teve uma resposta de
Sylvie ou Loki. — Eu sei de tudo. E já vi tudo. — Ele se jogou de
volta na cadeira. — Tudo que vocês fizeram em Lamentis, eu vi.
Todas as coisas que a AVT não sabia? Eu sabia. Toda a
maquinação. Toda a f-f-f-faladeira. Aquela troca de olhares perto do
lago.
Sylvie olhou para Loki, preocupada.
— Muito emocionante — Aquele Que Permanece disse. — Chega
amolece o coração, inclusive.
— Não — Sylvie disse, torcendo o nariz. — Não, nós
desmantelamos seu joguinho. Foi assim que chegamos aqui.
— Não. Errado — Aquele Que Permanece disse, rolando os erres
em “errado”. — Para cada passo que vocês deram para chegar até
aqui: Lamentis-1, o Vazio, fui eu quem pavimentou a estrada.
Vocês? Vocês só passaram por ela — Ele abanou os dedos.
Dessa vez, Sylvie ficou em total silêncio. Os olhos dela corriam de
um lado para o outro. Não sabia o que fazer com aquela informação.
Loki também estava achando aquilo extremamente desconfortável.
Eles queriam acabar com a AVT pela forma como a organização
restringia sua liberdade de criar as próprias vidas. E agora, Aquele
Que Permanece estava basicamente dizendo que eles nunca
tiveram essa liberdade. Dizendo que não havia livre arbítrio. E que,
não importa como, mesmo sem a AVT, eles sempre seriam peões
impotentes no grande jogo da vida.
— E eu tenho o resto, é... bem aqui — o homem disse, ficando de
pé novamente e folheando a pasta aberta na mesa. Ele tirou um
punhado de páginas e as colocou diante de Loki e Sylvie. — Tudo
que, é... que vai acontecer — ele disse. — Só tem um jeito disso
aqui terminar.
— Então por que estamos aqui? — Sylvie berrou.
— Ah, qual é? — o homem disse. — Você sabe que não pode
chegar ao fim antes que seja mudado pela jornada. — As palavras
dele tinham um toque de zombaria. — Essa coisa, ela precisa
acontecer. Para nos deixar com... com a cabeça no lugar certo para
terminar a missão.
— Certo — Loki disse, seu coração pesado como chumbo.
— Certo — o homem concordou.
— Então isso tudo é um jogo — Loki disse. — É tudo... uma
manipulação.
— Interessante... — o homem disse — que sua cabeça tenha ido
para esse lugar. — O homem se inclinou sobre a mesa para
observar Loki.
Loki se arrepiou. Ele se ressentia que zombassem dele.
— Sylvie — Aquele Que Permanece disse —, você acha que
pode confiar nesse cara?
— Não escute ele — Loki disse.
— Não escute ele — Aquele Que Permanece imitou, rindo. —
Você acha mesmo que é capaz de confiar em alguém? — Aquela
pergunta foi para Sylvie, que olhou para Loki, mas sem olhar de
verdade.
Loki não conseguiu manter a esperança. Bem ali, ele parou de
acreditar que as coisas poderiam terminar bem. Podia sentir tudo
escapando por entre seus dedos.
CAPÍTULO QUARENTA E UM

Loki não sabia quanto tempo tinha se passado no escritório


d’Aquele Que Permanece.
Podiam ter sido horas.
Podiam ter sido anos.
Uma coisa é certa, Loki pensou. Esse cara ama o som da própria
voz.
— Eu entendo suas objeções morais ao que a AVT faz — Aquele
Que Permanece disse, sentado na ponta da sua mesa como um
diretor que dá um sermão a dois estudantes malcriados. — E meus
métodos são enganosos. Mas a missão, ela nunca foi. Sem mim,
sem a AVT — ele cuspiu a sigla numa síncope musical — tudo
acabaria.
Loki absorveu as palavras. O silêncio na sala, aquecido apenas
pelo estalar da lareira, era alto no escritório grande, vazio, e mal
iluminado.
— Do que você tem tanto medo? — ele perguntou.
Aquele Que Permanece inspirou e prendeu o ar lá dentro.
— De mim — ele disse, enfim.
— E quem é você? — Sylvie disse, num tom que sugeria que
estava rapidamente perdendo a paciência com ele.
— Ah, eu já fui chamado por muitos nomes por muitas pessoas —
Ele ficou de pé e foi até o outro lado da mesa. — Um governante,
um conquistador. Aquele Que Permanece — ele se sentou na
poltrona de couro acolchoada. — Mas não é tão simples quanto um
nome.
Loki observou quando Aquele Que Permanece começou a mexer
numa peça de joia no pulso esquerdo — uma pulseira grossa, que
parecia feita do mesmo mármore usado na cidadela. Mármore preto
como ébano, rajado com ouro. Ele passou o dedo por ela como se
fosse um Temp Pad. Uma bolha de matéria se soltou da pulseira, e
Aquele Que Permanece lhe deu um peteleco para que caísse na
mesa dele. Então a bolha de matéria começou a se mover e mudar,
transformando-se numa versão em miniatura d’Aquele Que
Permanece, imitando seu olhar orgulhoso, sua postura ereta.
— Milênios atrás — Aquele Que Permanece disse —, antes da
AVT, uma versão de mim mesmo viveu na Terra, no século trinta e
um. — Ele sorriu orgulhoso, mas seus olhos carregavam a tristeza
de um contador de história que conhece o final. — Ele era um
cientista — continuou — e descobriu que havia universos
empilhados em cima do seu próprio — a matéria preto e dourada se
separou d’Aquele Que Permanece em miniatura e formou três
universos em forma de discos, um no topo do outro como pratos
giratórios. — Ao mesmo tempo — Aquele Que Permanece
acrescentou —, outras versões de nós estavam aprendendo a
mesma coisa. Naturalmente, eles entraram em contato, e, por um
tempo, tudo ficou em paz. — A matéria preta e dourada mudou
novamente, mostrando a miniatura d’Aquele Que Permanece
encontrando outro homem. Um homem assim como ele. — Uma paz
narcisista e de autovalidação. — A matéria escura brilhante se
transformou e mostrou dois homens apertando as mãos e sorrindo
um para o outro. — Eu amo seus sapatos, adoro seu cabelo, ai,
cara, que belo nariz, valeu, cara, et cetera. Eles compartilharam
tecnologia e conhecimento, usando o melhor de seus universos para
melhorar os outros.
O mármore líquido brilhoso mostrava duas figuras numa mesa,
conduzindo um experimento.
— Entretanto... — Aquele Que Permanece parou para pegar sua
maçã meio comida, dando mais uma grande mordida. — Nem todas
as versões de mim eram tão... tão puras de coração — ele falou
enquanto mastigava, fazendo barulho com os lábios. — Para alguns
de nós, novos mundos significavam apenas uma coisa: novas terras
a serem conquistadas — A matéria preta e dourada mudou para um
homem segurando o mundo em suas mãos, com uma espada
embainhada na cintura. — A paz entre as realidades — Ele imitou
uma explosão como faria uma criança, jogando as mãos para o alto
— entrou explodiu numa guerra total, com cada variante lutando
para preservar o seu universo e aniquilar os outros. Esse foi quase o
fim, senhoras e senhores, de tudo e todos. — Aquele Que
Permanece soltou uma risadinha.
— E aí os Guardiões do Tempo apareceram e salvaram a todos
nós — Sylvie zombou.
Aquele Que Permanece adotou uma postura religiosa, juntando
as mãos em prece e cantou:
— Amém. — O mármore maleável se ajustou novamente e
mostrou figuras de joelhos, rezando. Então Aquele Que Permanece
encerrou a cena. — Não — ele riu —, não. Não mesmo, aqui é onde
divergimos de dogma. — Ele coçou o queixo. — Aquela primeira
variante encontrou uma criatura, gerada por todos os rasgos na
realidade, capaz de consumir o tempo e espaço. — O mármore
líquido se transformou para mostrar uma versão miniatura d’Aquele
Que Permanece segurando uma lâmpada antiquada e olhando para
a escuridão. — Uma criatura que vocês dois conhecem.
— Alioth — Loki disse, o nome caindo na sua mente como uma
moeda brilhante.
— Bingo! — Aquele Que Permanece disse. — Eu domei os
poderes da besta e comecei a fazer experimentos com ele. — O
mármore escuro se transformou n’Aquele Que Permanece
estendendo a mão na direção da versão em miniatura da grande
tempestade senciente. — Transformei Alioth numa arma, e acabei...
Eu acabei com a Guerra Multiversal — Aquele Que Permanece deu
um murro na mesa. — Quando isolei nossa linha do tempo, tudo
que precisei fazer foi gerenciar a passagem do tempo para prevenir
novas ramificações. Por isso a AVT. Por isso os Guardiões do
Tempo e uma burocracia altamente eficiente. Por isso anos e anos
de harmonia cósmica. — Aquele Que Permanece subiu na própria
mesa, pontuando suas palavras com as batidas de seus pés. Ele se
agachou. — Não precisam me agradecer por isso.
Ele sorriu, depois pareceu desapontado que nem Loki nem Sylvie
sorriram de volta. O sorriso sumiu. Ele tocou a pulseira mágica de
novo, e sua versão preto e dourada se desintegrou e mergulhou de
volta em seu bracelete, endurecendo-se em mármore comum
novamente.
— Vocês vieram matar o diabo, não foi? — Ele pulou da mesa de
maneira elegante e se recostou na mesa, mais uma vez adotando a
pose de um diretor escolar. — Bem, adivinha? Eu mantenho vocês
seguros. E se acham que sou malvado, bem, esperem só para
conhecer minhas variantes. — Ele encarou Sylvie, depois Loki. Loki
não sabia o que dizer, e nem Sylvie, pelo visto. Ambos estavam em
silêncio. Eles se entreolharam. O que quer que estivessem
esperando, Loki não achava que era aquilo.
— E aí está o gambito! — o homem proclamou. — Ordem
opressora ou caos cataclísmico.
Não é sempre isso que dizem os ditadores? Loki pensou. Bem
conveniente.
Ele sabia por experiência, é claro. Tinha passado por muita coisa
desde suas horas no Teatro do Tempo 5 com Mobius, mas se
lembrava de ter dito a Mobius que as pessoas não queriam ter
escolha, queriam que as escolhas fossem feitas por elas. Loki não
era ingênuo o suficiente para pensar que aquilo ainda era
verdadeiro, não depois de ter as próprias decisões tiradas dele.
— Você pode odiar o ditador — Aquele Que Permanece disse —,
mas alguma coisa — ele suspirou profundamente — muito pior vai
preencher aquele vazio se você se desfizer dele. — Ele se sentou.
— Já vivi milhões de vidas. Já passei por todos, todos, os cenários.
Esse é o único caminho. A AVT funciona.
— Ou — Sylvie disse — você é um mentiroso.
— Ou eu sou um mentiroso — Aquele Que Permanece disse,
destacando o blefe dela.
Loki estava tentando processar tudo aquilo. Entender o que
Aquele Que Permanece estava propondo. Por que ele estava
contando tudo aquilo?
— Então você vai continuar podando linhas do tempo inocentes?
— Loki disse.
— Ãhn-ãhn — Aquele Que Permanece disse, balançando a
cabeça. Ele apontou com dois dedos para Loki e Sylvie. — Vocês
dois vão continuar.
Loki olhou para Sylvie, confuso. Ela não parecia mais estar
entendendo melhor que ele. E ela definitivamente era a Loki
superior.
Então, Aquele Que Permanece passou a falar como um
apresentador de um show de apostas, alongando as vogais.
— Tem duuuuas opções! — ele disse, animado. — Opção um:
vocês me matam e destroem tudo isso, e não vão ter só um diabo,
mas infinitos deles. Ou opção dois: vocês dois controlam a coisa
toda! — ele acenou como se aquela fosse uma sugestão simples.
— Você está mentindo — Loki disse, olhando feio para ele. Não
entendia como o homem que era literalmente o mestre do universo
poderia desistir de tudo e dar para dois Deuses da Mentira, além de
tudo. — Por que abriria mão do seu controle?
Aquele Que Permanece suspirou, recostando-se nas costas de
sua cadeira. Parecia pensativo.
— Amigo, eu estou cansado. E mais velho. Sou bem mais velho
do que aparento. Esse jogo é para alguém mais jovem, mais ávido.
Já vivi vários cenários, tentando encontrar a melhor pessoa para
ocupar esse cargo. E descobri que essa pessoa veio em duas
formas. — Ele expirou, sem acreditar na própria sorte. — Mas
definitivamente são vocês dois.
Loki olhou para Sylvie. Ele se perguntou se ela acreditava em
tudo aquilo.
Aquele Que Permanece voltou a falar.
— Então, sem mais mentiras. Vocês me matam, e a Linha do
Tempo Sagrada fica completamente exposta. Vem a Guerra
Multiversal. Ou vocês assumem o cargo, e retornam à AVT como
governantes benevolentes. — Ele gesticulou para o ar, como se
pudesse ver aquilo acontecer. — Digam à força tarefa quem eles
são e por que fazem o que fazem. — Ele sorriu abertamente.
Mas Sylvie não estava sorrindo.
— Você tratou a vida de pessoas de verdade como um jogo — ela
disse, sua espada descansando no colo. Estava praticamente
rosnando.
— Não é pessoal. É apenas pragmático.
— Foi pessoal — Sylvie disse — para mim.
Aquele Que Permanece começou a gritar.
— Ah, vê se cresce! — ele berrou. — Cresce, Sylvie! Assassina.
Hipócrita. — Depois ele sorriu, voltando a sua postura usual. —
Todos nós somos vilões. Todos fizemos coisas horríveis, terríveis,
medonhas. Mas agora nós... vocês... têm a chance de fazer essas
coisas por uma boa razão. — A voz dele estava calma, constante,
enquanto ele se inclinava sobre a mesa. Atrás dele, numa janela
redonda, as cores do céu arco-íris rodopiavam. Então sua
expressão mudou. Ele fez silêncio, como se houvesse escutando
um som distante. Do lado de fora, trovões retumbaram. Seus olhos
ficaram vítreos por um instante. Parecia estar preso num
pensamento profundo, ou não pensando completamente nada. Ele
olhou para as mãos, depois ao redor da sala, na direção do fogo, e
a luz das chamas dançantes iluminaram seu rosto.
— Nós acabamos de passar do limite — ele disse, seus olhos
correndo de um lado a outro. Um sorriso confuso apareceu nele.
Mais trovões, e ele suspirou pensativo. — Ó... — ele disse, olhando
ao redor novamente.
Loki pensou que ele parecia estar um pouco louco.
Aquele Que Permanece pegou um peso de papel e colocou na
mesa, observando-o curiosamente, e então, finalmente, olhou para
Sylvie e Loki.
— Então, eu menti — ele disse. — Menti mais cedo quando disse
que sabia como tudo aconteceria. Eu sei... eu sabia... tudo até um
certo ponto, e esse ponto era até uns... sete, oito, nove, dez... dez
segundos atrás.
Loki não achava que aquele cara podia ficar ainda mais caótico,
mas lá estava ele...
Sylvie franziu a testa, o ceticismo sumiu de seu rosto.
Além da grande janela circular, como uma auréola ao redor da
cabeça d’Aquele Que Permanece, o brilho azulado da Linha do
Tempo Sagrada começou a se ramificar.
— Mas agora eu não faço ideia, nenhuma ideia, de como as
coisas vão acontecer daqui para frente — o homem disse, girando a
cadeira para olhar pela janela. — Estou sendo sincero. — Dizer a
verdade tirou um peso dos ombros dele, e ele expirou como alguém
que acabara de fazer uma confissão sombria.
— Então é isso — Loki disse.
Aquele Que Permanece apenas ofereceu seu belo e maníaco
sorriso.
— É isso? É isso que acontece depois do fim dos tempos? — Loki
disse. — E você só vai sentar aí com toda sua liberdade e nos
deixar decidir seu destino?
— Sim! — o homem disse, animado, se inclinando na direção de
sua mesa larga. — Sim! Sim! — ele se inclinou para trás
novamente. — Qual a pior coisa que pode acontecer? Ou vocês
assumem e continuam o que construí ao longo de toda minha vida,
ou enfiam uma faca no meu peito e mais uma infinitude de
confusões começam outra Guerra Multiversal. E aí eu só ia acabar
voltando para cá de todo jeito. — Ele riu do jeito estranho e
desesperado dele — Reencarnação, baby.
— Não — Sylvie disse, balançando a cabeça, negando todas
aquelas palavras loucas. — É só mais uma mentira.
Loki inspirou para dizer alguma coisa, mas ela continuou a falar:
— Mais manipulação.
— Ah, não — Aquele Que Permanece disse. — Sem mentiras.
Sem manipulação — Mais trovões soaram, e ele suspirou, refletindo
sobre como aquilo era majestoso, e, então, mexeu na sua pulseira
mágica, a feita de mármore preto e dourado, e a tirou do braço. Ele
a virou nas mãos, olhando para ela, para os veios dourados
cintilando nela, refletindo a luz da lareira. — Uau — ele disse —, eu
adoro isso. — Ele olhou para a pulseira e a empurrou pela mesa
para Loki e Sylvie. — Estou adorando toda essa honestidade —
Aquele Que Permanece disse. — Parece um bom recomeço — Ele
olhou para a sala com um sorriso estranho no rosto de novo, e Loki
mais uma vez se perguntou se, talvez, ele não tivesse passado
tempo demais sozinho todos esses anos.
Por um momento, o escritório ficou em completo silêncio, exceto
pelo estalar do fogo, e da respiração dos três.
Então Sylvie avançou contra Aquele Que Permanece, com a
espada erguida, mas Loki era tão rápido quanto ela (ou pelo menos,
ele gostava de pensar que sim) e agarrou o braço dela.
— Ui, nossa! — Aquele Que Permanece disse, com um sorrisão
no rosto.
Loki só foi capaz de segurar o braço de Sylvie por um momento.
Ela girou e pressionou a espada no peito dele, fazendo-o recuar.
— O que você está fazendo? — ela disse.
— Sylvie, espera um momento... — Loki tentou manter a calma,
mas era difícil com todo aquele papo sobre o destino-do-universo-
inteiro, e pelo fato de que a espada de Sylvie estava extremamente
perto da sua garganta.
Ele a olhou nos olhos e pôs a mão em seu braço, abaixando-o
devagar.
— Vamos conversar sobre isso.
Sylvie abaixou a espada, mas ainda estava com raiva.
— Ou que tal a gente terminar o que começamos e matar ele? —
ela retrucou. Esbarrou em Loki e correu na direção da mesa de
novo, mas Loki a puxou de volta com magia, usando uma corda
invisível.
Ela usou a força do puxão para atacar com a espada. Loki
desviou, e a lâmina não o acertou por pouco. Ele ergueu a própria
espada, e suas espadas tiniram uma contra a outra.
Ele conquistou um momento de pausa.
Sylvie o encarava, arfando.
— E se ele estiver dizendo a verdade? — Loki disse
— E daí?
— Eu acredito nele.
— Você acredita em quê? Que um zilhão de bichos papões vão
aparecer só porque demos livre arbítrio às pessoas? — Os olhos
dela estavam cheios de desdém. — Ele é um mentiroso, Loki.
— Eu também sou — Loki disse, colocando uma mão no peito. —
E eu não acho que ele estava mentindo. Não sobre isso. Ele é
louco? Sim. Mas talvez estivesse dizendo a verdade.
De trás dele veio a voz estridente do homem:
— Melhor se apressarem! — ele gritou. — A linha do tempo já
está se ramificando!
— E qual a sua sugestão? — Sylvie disse, já sentindo-se traída.
Loki estendeu uma mão.
— Estou sugerindo que pensemos sobre isso.
— E sobre o que exatamente você quer pensar? — Sylvie disse,
irritada.
— Você não ouviu o que ele disse? Esse é o gambito: remova o
ditador, e o que fica no lugar?
Alguma coisa apareceu no rosto de Sylvie. Um olhar de
compreensão, de desapontamento, como se ela só agora o tivesse
entendido e não gostava do que estava vendo.
— Ah — ela falou baixinho —, você quer o trono.
Loki sentiu um frio no peito.
— Não, não é isso. Não — ele disse.
— Eu não acredito em você.
— Sylvie, o universo está em equilíbrio. Tudo que conhecemos
como verdadeiro... tudo. Eu sei que a AVT machucou nós dois, mas
e se, ao tirar ele do poder, nós arriscamos soltar algo ainda pior? —
Ele teve dificuldade em recobrar o fôlego. — Só estou sugerindo
que a gente tire um minuto para pensar sobre isso. — Ele colocou a
mão sobre seu coração. — Eu prometo a você, de coração, que não
tem a ver com nenhum trono. — Ele precisava que ela soubesse
aquilo, que entendesse, que acreditasse naquilo.
Mas Sylvie já tinha se fechado para ele. Podia ver a parede
invisível que se erguera de repente ao redor dela.
— Onde eu estava com a cabeça? Confiar em você? — ela disse.
— Tudo isso foi uma farsa?
— Sério? É isso que você pensa de mim? — O peito de Loki doía.
— Depois de todo esse tempo? Claro, por que não? O grande plano
do Loki malvado finalmente se completa. Olha, você nunca confiou
em mim, confiou? Qual era o sentido? Não consegue ver? Isso é
maior que nossa experiência.
— Por que não estamos vendo isso da mesma forma? — Sylvie
disse. Parecia tão triste. Loki queria consertar aquilo, consertar tudo,
mas sabia que não conseguiria.
— Porque você é incapaz de confiança — Loki disse, derrotado
—, e não se pode confiar em mim.
— Então acho que temos um problema — Sylvie disse, com a voz
sem vida.
— Sylvie, espera — Loki abriu as mãos. — Espera — Tudo que
ele queria era poder parar o tempo, fazê-la parar e refletir, fazer uma
pausa e respirar. Mas Sylvie não esperaria. A briga não tinha
diminuído dentro de seus olhos.
Ela se lançou contra ele, mirando seu abdômen com a lâmina,
mas ele saiu do caminho e contra-atacou. As espadas se bateram,
de novo e de novo, até que Sylvie girou e deu um chute na barriga
de Loki, lançando um pouco de magia na direção dele para o jogar
para o outro lado da sala. Ele bateu numa estante e caiu no chão,
com madeira partida e artefatos quebrados empoeirados caindo
sobre ele. Doeu bater no chão, doeu saber que ela não confiava
nele, saber que ela o julgou desonesto tão fácil assim. Mas não
deixaria ela fazer aquilo... não a deixaria lançar o universo inteiro no
caos.
Ele olhou para o alto e viu que ela ia até Aquele Que Permanece,
que estava sentado atrás de sua mesa, tranquilo, hipnotizado com a
luta que estava acontecendo diante dele. Loki estendeu uma mão e
lançou magia nela, derrubando-a. No tempo que ela levou para se
levantar, ele ficou diante dela com sua espada dourada em riste. A
espada dela acertou a dele, e eles ficaram ali, travados juntos, metal
contra metal. Loki olhou nos olhos dela, esperava convencê-la a
parar. Mas ela não pararia. Ela se separou dele e golpeou com a
espada, e ele se defendeu, mas a força o jogou para trás. Antes que
se desse conta, ela o tinha encurralado contra a mesa. Ele lutou
com toda sua força para manter a lâmina dela longe de seu
pescoço. Conseguiu, eventualmente, a empurrar de novo. Suas
espadas se bateram uma vez, e outra vez.
— Sylvie — ele disse —, Sylvie — Loki a empurrava para trás,
centímetro a centímetro.
Ela gritou e afastou a espada da dele, depois alcançou seu
pescoço, mas ele conseguiu chegar ao pescoço dela também.
Por um momento, pararam de lutar, sabendo que um tinha a vida
do outro nas mãos.
— Talvez ele esteja mentindo, talvez não esteja — Loki disse. —
O custo de estar equivocado quanto a isso é grande demais.
— Tá — Sylvie vociferou. — Anda logo! — Ela puxou a espada de
Loki mais para perto de sua garganta. — Me mata. Suba no seu
trono. — Ele podia sentir a raiva sair dela em forma de calor.
— Não — ele disse.
Ela o chutou para longe, com força.
Ele se recuperou rapidamente, e se defendeu do golpe seguinte,
mas ela rodopiou para longe dele, dando voltas no ar como uma
ginasta. Então ficou de pé e correu na direção d’Aquele Que
Permanece. Loki foi atrás dela, mas ela lançou a força de sua magia
na direção dele, o jogando para trás. Ela se lançou sobre o homem
atrás da mesa, com a espada levantada. Loki apareceu na frente
dela quando ela estava prestes a descer a lâmina.
— Sylvie, para — ele disse, levantando as mãos, rendendo-se.
Ele implorava. — Para — disse novamente. Largou a espada no
chão e ela tintilou no mármore.
Sylvie manteve sua espada erguida, bem acima do ombro de
Loki. Ela estava ofegante.
— Para — ele disse mais uma vez, mais suave.
No silêncio, falavam apenas os estalos do fogo e a respiração
errática de Sylvie.
— Para — ele disse de novo, gentilmente, pondo as mãos nos
ombros dela.
Ela fungou. Parecia estar prestes a chorar. Parecia desesperada.
— Eu já estive no seu lugar — Loki disse, com calma. Lágrimas
se formavam em seus olhos. — Já senti o que está sentindo.
Sylvie choramingou, franzindo a testa, com lágrimas nos olhos
também.
— Não me pergunte como eu sei. Eu só sei que... eu não quero
machucar você. — Ele deixou as lágrimas caírem, mas não as
secou. — Não quero um trono — ele disse —, só quero... — Ele
suspirou, com dificuldade para continuar falando. — Eu só quero
que você fique bem.
Sylvie fungou. Ela largou a espada. E depois o beijou. Seus lábios
se encaixaram, e Loki sentiu o tempo pausar, fluindo como mel.
Como ele tinha vivido esse tempo todo sem sentir isso? Agora que
sabia como era amar alguém, realmente amar alguém, nunca mais
seria o mesmo. Sylvie o beijou, e o deixou perdido no tempo. Tudo
parou. Nada mais importava.
Depois ela se afastou.
Pôs a mão no peito dele.
Olhou em seus olhos.
— Mas eu não sou você — ela disse.
Numa fração de segundo, uma das Portas Temporais da AVT
apareceram atrás dele, e Sylvie o empurrou por ela. Ele estava de
volta à AVT, de volta a um Teatro do Tempo. A porta se fechou e
desapareceu, e ele não podia voltar para ela. Não podia pará-la.
Todo esse tempo, ele esteve se preocupado com a possibilidade de
traí-la. Mas nunca pensou sobre o que aconteceria se ela o traísse.
E agora ela tinha traído.
E o universo... o universo dele, e todos os universos que viriam a
existir nunca mais seriam os mesmos.
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Finalmente, Sylvie estava a sós com Aquele Que Permanece. E


poderia fazer o que veio para fazer, aquilo pelo que vinha lutando
todos esses anos.
Ela oderia recon uistar sua liberdade
Poderia destruí-lo.
A pulseira mágica que ela usara para jogar Loki de volta na AVT
ainda estava em sua posse. Seus veios dourados brilharam com
magia por um momento, depois se apagaram novamente.
— Incrível — Aquele Que Permanece disse.
Ela se virou, trocando a forma do bracelete para a de uma
espada, e o encarou.
Ele não parecia assustado.
Bom, então. Não tentaria fugir, e ela poderia acabar rápido com
aquilo.
Ela arremessou a mesa dele para o outro lado da sala, e ele se
balançou na poltrona confortável, sorrindo descuidado.
— Não vai implorar pela sua vida? — ela disse.
— Ãhm... — ele disse. — Até que poderia — ainda sorrindo seu
sorriso estranho.
Sylvie pôs a mão num de seus ombros, olhou-o nos olhos, e
enfiou a espada em sua barriga.
O corpo dele se contraiu, seus olhos ficaram esbugalhados.
— Até logo — ele disse. E riu uma última vez. Depois a vida se
esvaiu de seus olhos, e ele pendeu mole para frente.
Por um momento, Sylvie apenas ficou ali parada, sem perceber
nada. Tudo ficou branco, como uma página nova, ou uma lápide
sem epitáfio. Então a ficha caiu. Ela conseguiu. Ela realmente
conseguiu. Ela o encontrou, e ela o matou. E traiu Loki para isso.
Seu coração pesou, e ela começou a chorar. Suas pernas cederam.
O céu se revirava além da imensa janela, e o som de trovões enchia
a sala, o som do mundo se rachando, e Sylvie apenas ficou ali
sentada, no chão de mármore gelado, olhando para a pedra escura
com veios de ouro.
Quando levantou o rosto, olhando adiante, a janela estava coberta
pela luz das ramificações da Linha do Tempo Sagrada, os traços de
cor azul pálida cada vez mais intricados, ramificando-se nas mais
finas capilaridades, enchendo o céu com sua luz delicada.
O som daquilo era estrondoso, como uma árvore imensa se
partindo com a força de um raio, como fogos de artifício.
Era uma morte; era um início.
Logo, todo o céu no fim dos tempos estava cheio de linhas de luz
finíssimas, tão intricadas quando a trama da seda, tão bonitas
quanto a rede de pequenos vasos sanguíneos nas asas de um
filhote de passarinho.
Sylvie olhou para ele.
Tão magnífico. Tão estarrecedor.

Mobius olhava atônito para a grande tela diante dele. A tela que
normalmente mostrava a Linha do Tempo Sagrada em toda sua
gloriosa linearidade. Ela estava bem diferente. Havia tantas
ramificações divergindo da Linha do Tempo Sagrada que parecia
que ramos de hera cresciam sobre a tela escura. Os computadores
dos analistas apitavam freneticamente, mas os analistas estavam
calmos, como se soubessem que não havia mais nada a ser feito
agora.
— Agora não tem mais volta — Mobius disse.
A Caçadora B-15 estava ao seu lado.
— Quem falou de voltar atrás? — ela disse.
Mobius franziu a testa olhando para a tela, sem olhar nos olhos de
B-15.
— Por todo o tempo — ele disse.
— Sempre — ela respondeu.

Loki estava sentado, corcunda, nos degraus do Teatro do Tempo


5. Nunca antes experimentara dor como aquela. Seu coração tinha
se partido mil pedacinhos, afiados como lâminas minúsculas que o
estraçalhavam.
Ele deixou a cabeça pender.
Não tinha ideia do que fazer agora. O que poderia fazer? Ele
sabia, sem precisar estar presente no local, que Sylvie tinha matado
Aquele Que Permanece. Sabia que tinha libertado as linhas do
tempo, todas elas, uma miríade delas e, com isso, uma miríade de
versões do tirano Aquele Que Permanece. O mundo nunca mais
seria o mesmo; o mundo lá fora, agora mergulhado em caos, e o
mundo dentro dele, que tinha sido amolecido pelo amor e manchado
pela traição. Loki olhava para o chão, lembrando-se de quando
Mobius o trouxera aqui pela primeira vez para dizer que sua vida
inteira só poderia ir numa direção: a da destruição e morte. Pensou
que Sylvie tinha mudado aquilo, que ela o tinha dado algo novo pelo
qual viver. Ele não mentiu quando disse a ela que não se importava
com trono nenhum tanto quanto se importava com ela. Todas suas
palavras foram verdadeiras.
Doía agora, pensar naquilo.
Loki olhou em volta. A sala estava exatamente igual, mas tudo
estava diferente. Ele estava diferente. Não queria caminhar mais na
direção da morte e destruição... queria que o mundo fosse bom. Não
queria? Para ele, e para Sylvie. Queria que tudo fosse bom para ela.
Ele sentou-se ereto, algo em seu coração finalmente funcionando.
Tinha que encontrar Mobius. Tinha que fazer alguma coisa. Tinha
que avisá-lo do que estava por vir. Não importa o que acontecesse,
quer ele encontrasse Sylvie novamente, ou não, ele tentaria seu
melhor para melhorar as coisas. Então, talvez... só talvez, eles
pudessem viver juntos naquele mundo melhor.
Levantou-se e saiu correndo pelos corredores curvados,
trombando com um grupo de caçadores que corriam na direção
oposta. Pareciam tão frágeis para ele agora, não mais
ameaçadores. Ele se sentiu como uma criança que conhece o outro
lado da cortina do show de fantoches, que viu as mãos movendo os
fantoches.
Continuou a correr, parou no refeitório em que tinha explicado sua
teoria do apocalipse a Mobius. Os ponteiros de um relógio
pendurado no teto tinham se multiplicado. Funcionários da AVT iam
para todos os lados, assustados e resolutos. Alguns caçadores
passaram por ele, e um deles falou:
— Entendido. Reportando ao arsenal, senhor.
Ele se perguntou para onde estavam indo, agora que tudo estava
diferente, agora que a AVT estava acabada, agora que tudo tinha se
mostrado uma fraude. Será que sabiam que eram variantes? Será
que saberiam algum dia? Não havia arma no mundo que pudesse
protegê-los dessa terrível verdade.
Pensou onde Mobius poderia estar.
Precisava encontrá-lo.
Continuou a correr, para a biblioteca, os arquivos, por entre
estantes de livros e pastas sigilosos, registros da vida das pessoas,
de ramificações podadas e realidades aniquiladas. Todo aquele
esforço, toda aquela papelada infinita, e agora tudo tinha virado um
caos.
Então, finalmente, ele viu Mobius.
Sabia que ele estaria aqui, Loki pensou.
Mobius M. Mobius estava ao lado de uma série de estantes
acompanhado da Caçadora B-15. Ambos olhavam para a tela de um
Temp Pad.
— Isso são o quê? Sessenta e três novas ramificações só nessa
unidade? — Mobius disse a ela.
— E ele quer que a gente só deixe todas elas se ramificarem? —
B-15 disse.
— Bem, a essa altura, como poderíamos parar tudo isso? —
Mobius disse.
Tinha algo na voz dele que soava diferente, causou uma
sensação esquisita em Loki, como olhar para um espelho distorcido
e não ver o rosto que esperava.
Mas Loki ignorou o sentimento estranho na boca do estômago.
Aquilo era urgente demais. Ele foi até eles, incapaz de se manter
em silêncio por mais tempo.
— Não podemos! — ele gritou.
Mobius olhou para ele, fazendo uma careta.
— Quê? — ele falou. — O que você disse?
Loki se aproximou dele. Tinha que fazê-lo entender.
— Acabou, Mobius — ele disse. — Cometemos um erro terrível.
— O que acabou? — B-15 disse, sua voz cheia de ansiedade.
A boca de Mobius formou a palavra “quê?”
— Libertamos a linha do tempo — Loki disse, tentando recuperar
o fôlego. — Nós o encontramos além da tempestade. Na Cidadela
no Fim dos Tempos. — Loki podia sentir seu desespero escorrendo
nas palavras. Parecia um alívio finalmente contar aquilo para
alguém, entretanto. Alguém que entenderia exatamente do que ele
estava falando. — Ele é assustador, planejou tudo. Ele já viu tudo.
Ele sabe de tudo. É complicado, ok?
— Certo — Mobius disse, estendendo as mãos para tentar
acalmar Loki.
Mas Loki não se acalmaria. Não podia. Precisava alertá-los.
— Tem alguém vindo. Versões incontáveis de uma pessoa muito
perigosa, e eles estão todos querendo uma guerra. Precisamos nos
preparar.
— Relaxa — Mobius disse. — Você é um analista, né? De qual
divisão?
— Quê? — Loki berrou. — Do que você está falando?
— Quem é você? — Mobius disse. — Qual o seu nome?
Algo começou a zunir dentro da cabeça de Loki. Ele se sentiu
tonto, enjoado.
B-15 falou em seu walkie-talkie.
— Chamando reforços agora. Aos Arquivos.
Loki se virou de costas para Mobius. Ele não era Mobius, de todo
jeito. Bem, era uma versão de Mobius, mas não era o Mobius que
Loki conhecia. Não era o Mobius que Loki precisava nesse
momento.
Já tinha começado, as linhas do tempo girando para longe uma
das outras, como bolinhas de gude derrubadas sobre uma pedra
lisa.
— Quem é você? — Mobius falou de novo, mas Loki mal o
escutou.
Ele estava olhando para longe, além da sacada, para o centro do
Arquivo. Olhando para o que costumava ser uma estátua de pedra
gigante de um do Guardiões do Tempo. Só que agora a estátua
gigante não era um Guardião do Tempo — era Aquele Que
Permanece, suas feições exatas esculpidas na pedra, sua
expressão carrancuda pairando sobre a AVT. Pavor invadiu o peito
de Loki, tomando o lugar da dor da traição.
Pensou que a batalha tinha acabado quando encontraram o lugar
além do Vazio.
Pensou que ele e Sylvie poderiam construir um novo mundo
juntos.
Mas, ao contrário disso, o mundo... os mundos tinham se
multiplicado ao redor deles, universos inteiros empilhados uns sobre
os outros, e Loki não sabia em qual deles tinha ido parar, e qual
deles Sylvie chamaria de lar.
Ele a tinha perdido, e agora eram ambos minúsculos fragmentos
de vidro, afastando-se um do outro pelo espaço a uma velocidade
descomunal.
Uma nova guerra estava se desenhando.
A luta não tinha acabado. Ela tinha apenas começado.

FIM
siga nas redes sociais:
@editoraexcelsior

@editoraexcelsior
@edexcelsior
@editoraexcelsior
editoraexcelsior.com.br

Você também pode gostar